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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO GUERRILHEIRAS E BIOGRAFIAS: A IMAGEM DA MULHER MILITANTE NOS CICLOS DE MEMÓRIA SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NITERÓI 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA … · Aos amigos historiadores. Ao André, por dividir comigo as angústias de ser historiador, por discutir minha pesquisa

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HISTÓRIA

PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO

GUERRILHEIRAS E BIOGRAFIAS: A IMAGEM DA MULHER MILITANTE NOS

CICLOS DE MEMÓRIA SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

NITERÓI

2019

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JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO

GUERRILHEIRAS E BIOGRAFIAS: A IMAGEM DA MULHER MILITANTE NOS

CICLOS DE MEMÓRIA SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História do Instituto de História da

Universidade Federal Fluminense, como requisito

parcial à obtenção do título de Mestra em História.

Orientadora: Profa. Dra. Janaina Martins Cordeiro

NITERÓI

2019

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JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO

GUERRILHEIRAS E BIOGRAFIAS: A IMAGEM DA MULHER MILITANTE NOS

CICLOS DE MEMÓRIA SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História do Instituto de História da

Universidade Federal Fluminense, como requisito

parcial à obtenção do título de Mestra em História.

Orientadora: Profa. Dra. Janaina Martins Cordeiro

Aprovada em: ___/___/____

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________

Profa. Dra. Janaina Martins Cordeiro – UFF

Orientadora

_________________________________________________________

Profa. Dra. Denise Rollemberg – UFF

_________________________________________________________

Profa. Dra. Caroline Silveira Bauer – UFRGS

_________________________________________________________

Profa. Dra. Luísa Lamarão – CAP-UFRJ (suplente)

_________________________________________________________

Profa. Dra. Lívia Gonçalves Magalhães – UFF (suplente)

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À Angela, sempre, por tornar tudo

isso e muito mais possível.

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AGRADECIMENTOS

Tenho muito a agradecer por todo o aprendizado desses dois anos! Percebo, com grata

surpresa, que meus agradecimentos vão, em sua maioria, para mulheres extraordinárias que

contribuíram para o desenvolvimento dessa pesquisa sobre mulheres, de diferentes formas.

Agradeço imensamente às professoras das matérias cursadas tanto no PPGH-UFF,

quanto nos programas da UERJ e da UFRJ, que ajudaram tanto na constituição de uma base

teórica para este trabalho: Laura Maciel, Marcia Gonçalves, Maria Paula Araújo e Samantha

Quadrat.

Às professoras Denise Rollemberg e Lívia Magalhães, que aceitaram compor a banca

de qualificação e cujas sugestões e observações foram extremamente proveitosas para a

elaboração da versão final da dissertação. Meus agradecimentos também às professoras que

participarão da banca de defesa: Caroline Bauer, obrigada por contribuir mesmo à distância;

Denise Rollemberg, agradeço pela disponibilidade mais uma vez.

À professora Marina Franco que, com a leitura de um breve resumo, fez apontamentos

e críticas que mudariam – para melhor – os rumos dessa pesquisa.

À minha orientadora, Janaina Martins Cordeiro. A admiração que sinto por você é

enorme! Obrigada por ter me feito sentir acolhida desde o momento em que aceitou orientar

este trabalho, acreditando nele e se mostrando tão disposta e disponível. Agradeço pelas dicas

de leitura, de eventos, pelas revisões tão apuradas, por compreender minhas ideias e por

continuar me orientando com a mesma qualidade, mesmo à distância. Nunca pensei que fosse

ter reuniões com uma orientadora pelo Skype! Obrigada por ser tão acessível e maravilhosa!

Agradeço à minha mãe, Angela, por ter acreditado que eu conseguiria, mesmo quando

eu não acreditei, do processo seletivo à entrega da dissertação. Por ter se desdobrado para me

bancar em Niterói, tornando tudo isso possível. Obrigada, mãe! Seu apoio é o que me motiva,

sempre. Obrigada por estar sempre disposta a ler o que eu escrevo, ouvir minhas dúvidas e

angústias, dar sugestões e se esforçar tanto para entender.

À tia Bia, que participou disso tudo tão ativamente, assim como de todas as fases da

minha vida. Obrigada pelas palavras de incentivo e de carinho, principalmente nos momentos

de desespero, por ter feito minhas mudanças de ida e de volta, pelo primeiro pedaço de bolo,

mesmo a quilômetros de distância.

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Ao meu pai, Milton, por ter me inspirado desde criança a amar e estudar História, por

me motivar a seguir cada vez mais adiante e se demonstrar tão orgulhoso com tudo o que me

proponho a fazer. Obrigada por tudo e, principalmente, por entender meus sumiços.

À vovó e ao vovô, por cuidarem tão bem da Iara enquanto eu não pude, entendendo

minha ausência e sempre me recebendo com o carinho, amor e comidas gostosas de sempre.

À Juliana, sempre, por aceitar ouvir tanto sobre esse trabalho, ler e reler cada alteração.

Obrigada por entender os motivos pelos quais eu não ando conseguindo ver série. Espero que

isso mude logo! Obrigada ao Rafa também, pela amizade e pelas risadas.

À Janaina, amiga que Niterói me deu e São Paulo manteve, agradeço por me aceitar na

sua casa, pelos brigadeirões, biscoitos e pelas tantas vezes que a gente chorou de rir. Obrigada

por ter lido partes desse trabalho com a atenção que só você consegue ter.

Aos amigos historiadores. Ao André, por dividir comigo as angústias de ser historiador,

por discutir minha pesquisa comigo e por dizer as palavras de incentivo que, às vezes, eu preciso

tanto ouvir. Ao Carlos, companheiro de estudo sobre ditadura. Amigo, obrigada pelas trocas de

livros e conversas tão leves e necessárias. Agradeço à Mariana, por se demonstrar sempre tão

interessada no meu tema. Bem-vinda ao mundo doido da história, amiga! Ao João, que dividiu

as angústias de PPGH, qualificação, defesa. Obrigada!

Ao Miguel, meu companheiro e parceiro de vida. Obrigada por ser tão compreensivo e

dedicado, pelas dicas e críticas tão valiosas sobre esse trabalho, por acreditar e se orgulhar, e

sempre dizer isso. Obrigada por aceitar fazer de Niterói a nossa cidade, do Plaza o nosso

shopping e da 1001 o nosso meio de transporte oficial.

Por último, e não menos importante, à minha Iarinha, por dormir ao meu lado em todos

os momentos da escrita desse trabalho. Por me receber com tanto amor em cada volta para casa.

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RESUMO

Levando em consideração a distinção entre memória e história, este trabalho tem por objetivo

compreender que memórias foram mobilizadas em narrativas biográficas sobre guerrilheiras

que atuaram durante a ditadura civil-militar brasileira. Publicadas no pós-redemocratização, as

datas de produção dessas biografias são essenciais para este estudo, pois permitem o

mapeamento da memória social sobre o período ditatorial, uma vez que o tempo presente da

construção da narrativa influencia diretamente a maneira de recordar os eventos do passado.

Pretende-se, portanto, através da análise dos discursos biográficos, produzir uma “história da

memória” e, fundamentalmente, observar as permanências e rupturas das formas de lembrar,

identificando as possíveis memórias hegemônicas e subterrâneas e como estas se relacionam

com as demandas de seus tempos. Além da memória, outro elemento essencial para a pesquisa

é o gênero, posto que as biografias selecionadas tratam exclusivamente das vidas de mulheres,

sendo estas: Iara Iavelberg, com biografia escrita por Judith Patarra (1992); e Dilma Rousseff,

com obra de Ricardo Batista Amaral (2011). Ao observar as formas de lembrar os passados

dessas ex-guerrilheiras, será possível examinar quais os olhares lançados para as atuações

femininas na política – primordialmente nas esquerdas – como e por que estas foram

recuperadas e recontadas.

Palavras-chave: memória; mulheres; ditadura civil-militar

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ABSTRACT

Considering the difference between memory and history, this master thesis aims to understand

which memories were selected in biographical narratives about women in guerrilla groups that

acted during the Brazilian civil-military dictatorship. Published in the post-democracy period,

it’s essential to this study to consider when these books were written, so that the social memory

about the dictatorship can me mapped, once the narrative construction present time influences

directly in how people remember past events. Therefore, I intend to produce a “history of

memory” through the biographical speeches’ analysis and, fundamentally, take notice of how,

in the way of remembering, they change or stay the same. Thus, it will be possible to identify

hegemonic and underground memories and how they relate with their own time demands.

Besides the memory, another essential concept to this research is gender, since the selected

biographies deal with women’s lives exclusively: Iara Iavelberg, with biography written by

Judith Patarra (1992); and Dilma Rousseff, with book by Ricardo Batista Amaral (2011). By

observing the different looks on this former guerrillas’ past, I will be able to examine how

feminine political engagements were described – primarily in left-wing –, and how and why

these stories were told.

Keywords: memory; women; civil-military dictatorship

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LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS

AI-5 Ato Institucional N° 5

ALN Ação Libertadora Nacional

AP Ação Popular

ARENA Aliança Renovadora Nacional

BNM Brasil: Nunca Mais

CCC Comando de Caça aos Comunistas

CEIVT Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura do Estado de

Minas

CEMDP Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos

CJM Circunscrição Jurídica Militar

CNV Comissão Nacional da Verdade

CPI Comissão Parlamentar de Inquérito

COLINA Comandos de Libertação Nacional

DOI-Codi Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações e

Defesa Interna

DOPS Departamento de Ordem Política e Social

JEC Juventude Estudantil Católica

MDB Movimento Democrático Brasileiro

MPF Ministério Público Federal

MPv Medida Provisória

MR-8 Movimento Revolucionário Oito de Outubro

OBAN Operação Bandeirante

OLAS Organização Latino-Americana de Solidariedade

PC Polícia Civil

PCB Partido Comunista Brasileiro

PCdoB Partido Comunista do Brasil

PE Polícia do Exército

PM Polícia Militar

POLOP Organização Revolucionária Marxista – Política Operária

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

PT Partido dos Trabalhadores

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RM Região Militar

SNI Serviço Nacional de Informações

VAR-Palmares Vanguarda Armada Revolucionária Palmares

VPR Vanguarda Popular Revolucionária

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13

CAPÍTULO 1 - UMA FEMINISTA NA REVOLUÇÃO? A BIOGRAFIA DE IARA

IAVELBERG SEGUNDO JUDITH PATARRA (1980-1990) ............................................ 29

1.1 A TRAJETÓRIA DE IARA IAVELBERG ................................................................... 30

1.2 CONSTITUIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO LIVRO: A AUTORA E O PROCESSO DE

ESCRITA ............................................................................................................................. 35

1.3 SENSUAL E DE VANGUARDA: IARA IAVELBERG SOB A ÓTICA DE PATARRA

.............................................................................................................................................. 44

CAPÍTULO 2 – O MITO DA SOCIEDADE VÍTIMA E RESISTENTE: DÉCADAS DE

1980 E 1990 E A(S) MEMÓRIA(S) DE REJEIÇÃO À DITADURA ................................ 61

2.1 REBELDIA E INOCÊNCIA: DITADURA E ESQUERDAS NA BIOGRAFIA DE

IARA IAVELBERG ............................................................................................................. 66

2.2 DE VOLTA AOS “ANOS REBELDES”: RECEPÇÃO DO LIVRO ............................ 83

CAPÍTULO 3 - UMA GUERRILHEIRA QUE NÃO GUERRILHOU: A BIOGRAFIA

DE DILMA ROUSSEFF POR RICARDO BATISTA AMARAL ..................................... 92

3.1 A TRAJETÓRIA DE DILMA ROUSSEFF ................................................................... 93

3.2 CONSTITUIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO LIVRO: O AUTOR E O PROCESSO DE

ESCRITA ............................................................................................................................. 99

3.3 POLÍTICA E DEMOCRÁTICA: DILMA ROUSSEFF SOB A ÓTICA DE RICARDO

AMARAL ........................................................................................................................... 108

CAPÍTULO 4 – “RECONCILIAÇÃO E PACIFICAÇÃO NACIONAL”: A MEMÓRIA

COMO DISCURSO E POLÍTICA DE ESTADO (DÉCADAS DE 2000 E 2010) .......... 130

4.1 TEORIA DOS DOIS DEMÔNIOS À BRASILEIRA: DITADURA E ESQUERDAS NA

BIOGRAFIA DE DILMA ROUSSEFF ............................................................................. 140

4.2 GUERRA DE MEMÓRIA: RECEPÇÃO DO LIVRO E O PASSADO DE DILMA EM

DISPUTA ........................................................................................................................... 165

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 174

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 187

ANEXOS ............................................................................................................................... 208

Anexo A – Capa e contracapa do livro Iara: reportagem biográfica, de Judith Patarra ... 208

Anexo B – Capa e contracapa de A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a

primeira presidenta do Brasil, de Ricardo Batista Amaral ................................................ 209

Anexo C – Capa da edição portuguesa do livro A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma

Rousseff, a primeira presidenta do Brasil, de Ricardo Batista Amaral ............................. 209

Anexo D – Capa da edição argentina de La vida pide coraje: la trayectoria de Dilma

Rousseff, primera presidenta de Brasil, de Ricardo Batista Amaral .................................. 210

Anexo E – Página 14 da edição do O Estado de S. Paulo, de 18 de dezembro de 2011. .. 211

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INTRODUÇÃO

Em 29 de maio de 1971, o periódico Jornal do Brasil publicou uma transcrição de

documentos apreendidos na casa do ex-capitão do Exército e líder da Vanguarda Popular

Revolucionária (VPR) Carlos Lamarca, após a invasão de um apartamento, organizada pelos

órgãos de segurança da repressão. Essa reportagem, que mencionava a “amante” de Lamarca,

Iara Iavelberg, contém um texto dedicado apenas a ela, sob o título “Ficha de Iara”:

Segundo os dados liberados, Iara Yavelberg [sic] era casada em São Paulo com um

médico, que desquitou-se dela ao surpreendê-la, seis meses após o casamento, em uma

festinha com estudantes. (...)

Informam que ela conheceu Lamarca nos quadros do terrorismo, através de Breno, e

após algum tempo passou a viver com êle. Tem participado de atividades terroristas e

estêve em Registro, tendo “abandonado a área por haver contraído doença grave em

órgão genital, segundo declarações de terroristas presos”1.

O vocabulário empregado no texto é depreciativo, com o objetivo de deslegitimar as

atividades de Iavelberg, pessoais e políticas. Até mesmo uma possível doença ginecológica foi

usada para desmerecê-la. Nota-se que a notícia foi publicada no contexto da ditadura civil-

militar, reafirmando a posição determinada pelo regime a respeito de seus opositores.

Pouco mais de vinte anos depois, em 26 de abril de 1992, o mesmo periódico publicou

uma reportagem intitulada “Iara à semelhança de Olga”, com texto-chamada na capa e duas

páginas dedicadas à matéria. Noticiando o lançamento de biografia de Iavelberg, a jornalista

Marília Martins descreveu a biografada:

Iara Iavelberg, militante de quatro organizações clandestinas nos anos 70, a mulher

que virou a cabeça do legendário capitão Carlos Lamarca, acaba de chegar às livrarias

como tema de uma impecável reportagem biográfica. Singelamente intitulado Iara, o

volume (...) faz um retrato de sua protagonista à imagem de Olga Benário, tão trágica

e tão indomável quanto a primeira mulher de Carlos Prestes2.

O discurso utilizado nesta reportagem tem caráter oposto ao da notícia anterior. Iara foi

representada como heroína, assim como Olga Benário3. Não é mais terrorista, e sim militante.

Lamarca foi descrito como legendário. Em 1992, a democracia já havia sido restaurada há 4

1 “APARELHO” estourado revela dois documentos de Lamarca. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 mai. 1971,

1° Caderno, p. 14. 2 MARTINS, Marília. Iara à semelhança de Olga. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1992, Caderno B, p. 3. 3 Olga Gutmann Benário Prestes foi militante comunista alemã, de origem judaica, nascida em 1908. Foi enviada

ao Brasil para integrar o Partido Comunista Brasileiro, onde conheceu seu cônjuge, o líder Luís Carlos Prestes.

Foi deportada pelo governo brasileiro para a Alemanha nazista, onde foi presa e executada, em 1942.

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anos, com a promulgação da Constituição de 1988, permitindo a circulação de ideias antes

censuradas e o debate sobre trajetórias de vida de opositores do regime instaurado com o golpe

civil-militar de 1964, como Iara Iavelberg.

Assim, este trabalho propõe analisar obras biográficas e de trajetórias de vida de

mulheres que se engajaram na luta armada durante a ditadura civil-militar, com a intenção de

contribuir para uma história da memória da ditadura, analisando como os discursos sobre seus

engajamentos foram elaborados, influenciados pela conjuntura democrática.

Dois livros serão estudados, publicados em contextos sociais e históricos distintos –

ambos após a redemocratização –, o que permitirá uma investigação do que se recordou sobre

o regime ditatorial em cada momento da democracia. São eles:

• Iara: uma reportagem biográfica – Judith Patarra, 1992, editora Rosa dos

Tempos, biografada Iara Iavelberg;

• e A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a primeira presidenta

do Brasil – Ricardo Batista Amaral, 2011, editora Sextante, biografada Dilma

Rousseff.

As obras foram escolhidas por terem sido escritas em diferentes períodos e, assim, por

trazerem memórias diversas sobre o mesmo passado – a ditadura. Além disso, os livros

examinam trajetórias de mulheres distintas na luta revolucionária, demonstrando uma

pluralidade de lugares da atuação feminina nas esquerdas nos anos 1960 e 1970.

Iara Iavelberg é, conforme evidenciado anteriormente, uma personagem recorrente e de

destaque quando se trata de militância feminina de esquerda na ditadura. Durante seu

engajamento, os órgãos de segurança, ecoados pela imprensa, condicionavam suas atividades

às do guerrilheiro Carlos Lamarca, importante líder das organizações revolucionárias. Sua

biografia é uma obra importante de ser examinada por ter tido ampla circulação entre o público

leitor e por ter pretendido se constituir como narrativa definitiva sobre Iavelberg – dessa forma,

o livro é utilizado como ponto de partida essencial e, de certa forma, incontestável para

pesquisas sobre a guerrilheira e a luta armada em geral.

A outra biografia foi selecionada por sua importância a partir dos anos 2010: Dilma

Rousseff foi a primeira presidenta4 do Brasil, eleita em 2010 e em 2014 – tendo sido esse último

4 Neste trabalho, usarei o termo “presidenta”. Esta foi a forma adotada por Dilma Rousseff para se autodenominar

ao ser eleita. Além disso, a palavra flexionada no gênero feminino é aceita pelo Dicionário Aurélio – “mulher que

preside”. Cf. ALMEIDA, Daniela. Reunião 2ª deve formalizar uso do termo "presidenta" para Dilma. iG, São

Paulo, 2 nov. 2010. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/eleicoes/reuniao-2-deve-formalizar-uso-do-

termo-presidenta-para-dilma/n1237817938668.html>. Acesso em: 16 jan. 2019.

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mandato interrompido por um impeachment, em 2016. Durante as duas campanhas,

principalmente a primeira, o passado de guerrilheira de Dilma foi recuperado pelos veículos de

imprensa e eleitores em geral e muitas versões foram difundidas. O livro biográfico, publicado

nos meses iniciais da primeira gestão presidencial, desejou estabelecer uma história oficial da

vida da chefe de Estado, abordando inclusive sua atuação nas organizações revolucionárias. A

análise do discurso construído pelo biógrafo é essencial para compreender a memória

construída e evocada por uma presidenta a respeito de seu passado polêmico; memória esta que

foi influenciada por demandas eleitorais e de governabilidade, e pela conciliação com

opositores, em diálogo com processos anteriores de construção de uma memória oficial sobre

a ditadura e a luta armada contra ela.

A diferença entre os períodos de publicação de cada uma das biografias permite

compreender como a ditadura civil-militar foi compreendida e narrada em momentos políticos

e sociais posteriores. Para isso, serão utilizadas as fases de memória mapeadas e propostas pelo

historiador Marcos Napolitano, em seu texto Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da

construção da memória sobre o regime militar brasileiro5. Nesse artigo, o autor identifica uma

memória hegemônica sobre a ditadura, o período em que foi forjada e como determinadas

memórias subterrâneas foram se relacionando com a dominante em outros momentos da história

democrática.

A primeira fase proposta por Napolitano localiza-se entre 1964 e 19746, e é caracterizada

pela formação de um discurso favorável ao regime vigente, com o Estado ditatorial como

principal produtor de memória. Tal discurso contempla fatos como o golpe – referido pelos

então governantes como “Revolução” –, a repressão à luta armada e outras formas de oposição

ao regime – “guerra ao terror” – e o “milagre econômico”.

A segunda fase, mais explorada nesta dissertação, intitulada pelo autor de “A construção

da memória crítica”, situa-se entre os anos de 1974 e 1994. O marco de 1974 é definido pois,

segundo Napolitano, a derrota eleitoral do partido ARENA nas eleições deste ano é

representativa de uma insatisfação crescente com o modo de governo. Neste momento, então,

“a classe média escolarizada e os movimentos sociais se tornaram protagonistas na construção

de uma memória crítica ao regime, ajudando a desgastá-lo e a deslegitimá-lo perante a opinião

pública7”. Segundo Napolitano, essa memória crítica se tornou a memória hegemônica sobre o

5 NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o

regime militar brasileiro. Antíteses, v. 8, n. 15esp., nov. 2015. 6 Ibid., p. 12. 7 Ibid., p. 22.

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regime – e perpetuou-se durante todas as outras fases memoriais mapeadas por ele –,

caracterizada por se opor à ditadura e por identificá-la enquanto uma “lacuna histórica”,

“usurpação” – os “anos de chumbo”, alcunha que desqualifica o Estado militar e oculta o apoio

civil a ele, colocando a sociedade como “‘vítima’, mas resistente e digna”8.

O terceiro ciclo, por sua vez localizado pelo autor entre 1995 e 2004, é denominado “As

‘leis de memória’ e a política de Estado”. A década de 1990 é vista pelo historiador como uma

ruptura pois, a partir de 1995,

o Estado se pautou por uma política de reparações e de recuperação das histórias de

vida (e morte) das vítimas da violência do regime militar, ao mesmo tempo em que

tem promovido ações institucionais e simbólicas situadas no campo da memória

hegemônica crítica à ditadura9.

Napolitano, então, aponta a entrada do Estado, em suas diferentes instâncias, como

produtor de memória, em diversas tentativas de criar um discurso oficial sobre a ditadura –

discurso este convergente com a memória hegemônica preestabelecida: conciliador, sem

revanchismos, que valoriza a resistência democrática da sociedade e, no entanto, oculta a

liderança civil tanto no golpe quanto no regime em si. Apesar de estabelecer 2004 como marco

final da fase, o autor cita a Comissão Nacional da Verdade como simbólica do discurso forjado

neste momento – isto pois os discursos memoriais não se restringem às suas fases e podem se

manifestar em outros momentos.

A quarta e última fase, “Revisionismos ideológicos e historiográficos” [sic], de 2004 a

2014, é descrita pelo autor como o primeiro momento em que a memória hegemônica apresenta

uma fissura e que discursos antes subterrâneos de apoio à ditadura, vindos de diversos atores

sociais, ganham espaço significativo. Napolitano apresenta como hipótese para este cenário a

rivalidade entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira

(PSDB):

A cisão PT – PSDB que tem marcado a política brasileira do início do século XXI fez

com que este último, naturalmente, flertasse com lideranças conservadoras e

disputasse eleitores mais à direita, avessos ao “sapo barbudo” do petismo. O resultado

é o surgimento de um liberalismo abertamente de direita e conservador, ainda que

conserve traços republicanos, mas que trouxe de volta ao espaço público, uma extrema

direita abertamente fascistoide e golpista10.

8 Idem. 9 Ibid., p. 25. 10 Ibid., p. 32.

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Ainda que haja mais iniciativas do Estado em prol da memória, como as resultantes dos

50 anos do golpe, em 2014, “o revisionismo ganha espaço11”. O autor menciona também, dentro

do debate historiográfico, o aumento de estudos que questionam o conceito de resistência à

ditadura e das reflexões sobre as direitas golpistas “por pesquisadores que não se deixaram virar

reféns da memória hegemônica e suas armadilhas e restrições12”.

Assim, essas fases propostas pelo historiador serão mobilizadas para a análise das

biografias e seus contextos de produção nessa dissertação, mas de maneira crítica e sendo

problematizadas ao longo do trabalho, com acréscimos e decréscimos, além do cruzamento com

outras referências historiográficas.

Sem embargo, algumas dessas críticas devem ser feitas já na introdução. A principal

delas se refere ao uso do termo “revisionismo” pelo autor para caracterizar tanto determinadas

correntes historiográficas, quanto discursos ideológicos que questionam a memória crítica à

ditadura. Vale ressaltar, dessa forma, que há uma separação contundente entre os revisionismos

ideológicos e aquilo que o autor chama de “revisionismos historiográficos”. Estes consistem no

aumento de pesquisas que se desprendam da memória dominante, promovendo o

desenvolvimento de estudos com enfoque não só na atuação das esquerdas, mas também das

direitas. Para isso, são utilizados critérios e métodos acadêmicos. Creio que o termo usado por

Napolitano para classificar esses debates não seja de maneira alguma adequado, principalmente

por seu caráter depreciativo e por colocá-los no mesmo patamar de discursos conservadores,

retirando sua complexidade; uma distinção mais incisiva entre os dois tipos de “revisionismo”

não é feita de maneira explícita pelo historiador. Dessa forma, irei me referir, nessa dissertação,

aos discursos que ressurgem a favor da ditadura como conservadores ou negacionistas,

evitando o uso da palavra “revisionismo”, que pode ser mal interpretada.

A outra crítica a Napolitano se refere à divisão dos ciclos feita pelo historiador. O

terceiro ciclo, que trata da entrada do Estado como produtor de memória, não traz uma ruptura

forte que justifique o início de uma nova fase. O Estado vincula como “memória oficial” o

discurso que já era dominante, sem alterações significativas em seu teor. Esse ponto será melhor

discutido no capítulo 4.

****

11 Ibid., p. 34. 12 NAPOLITANO, 2015, op. cit., p. 34.

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18

Depois de tempos de priorização da análise do coletivo e das grandes estruturas nas

ciências sociais, observou-se, principalmente durante o século XX, uma revalorização do

sujeito na história. Em vez de organizações, camadas sociais e partidos, a experiência individual

reapareceu como fonte pertinente13. A chamada guinada subjetiva, analisada por Beatriz Sarlo,

recolocou em pauta os relatos de experiências individuais14, expressados no campo

historiográfico através, principalmente, da história oral e do testemunho, que “restituíram a

confiança nessa primeira pessoa que narra sua vida para conservar uma lembrança ou reparar

uma identidade machucada”15.

Essas observações são importantes, visto que o século XX foi também um século com

múltiplas experiências traumáticas e muitas “identidades machucadas”16. Exemplos dos

horrores vividos neste século foram os causados durante as duas grandes guerras. O extermínio

em massa, perpetrado pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial, chocou o mundo,

recolocando em evidência uma categoria do sujeito marcada pela subjetividade: a figura da

testemunha17. A reinclusão dos relatos em primeira pessoa foi crucial, pois proporcionou a

possibilidade de falar sobre as mazelas vividas, o que, no caso da escrita da história, permitiu

uma mudança no ponto de vista sobre quem são os sujeitos históricos: aqueles indivíduos e

grupos antes marginalizados e silenciados passam agora a protagonistas e porta-vozes de

determinados processos. Portanto, as testemunhas, que são também sobreviventes, produzem

seus relatos a fim de assegurar que os traumas aos quais foram submetidas não sejam

esquecidos18.

Primo Levi, judeu e químico italiano, foi um dos sobreviventes de Auschwitz. Após ser

libertado em 1945, escreveu seu primeiro livro de memórias sobre o que vivenciou no campo

de concentração: a obra É isto um homem?, que chegou a ser rejeitada por uma editora, foi

publicada pela primeira vez em 1947, porém não teve destaque entre o público leitor. O próprio

Levi afirmou que: “depois do retorno de Auschwitz, eu tinha uma necessidade enorme de falar,

encontrava aqui os meus velhos amigos e os enchia de histórias19”. Michael Pollak aponta que,

13 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-

212. 14 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2007. 15 Ibid., p. 17, grifos meus. 16 Idem. 17 AVELAR, A. S.; GONÇALVES, M. A. Giro linguístico e escrita da história nos séculos XX e XXI: elementos

para um debate. IN: MEDEIROS, B. F. et al. (orgs). Teoria e historiografia: debates contemporâneos. São Paulo:

Paco Editorial, 2015. 18 GABNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. 19 CAMON, Ferdinando. Conversazione con Primo Levi. Parma: Ugo Guanda Editore, 1997.

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19

“para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma

escuta20” (grifos meus). A publicação de A Trégua, outro romance autobiográfico de Levi –

este tratando especificamente da libertação e da volta para casa após a vida no campo –, em

1963, trouxe reconhecimento para o autor. É pertinente observar que a data de publicação é

posterior ao julgamento de Adolf Eichmann21, em 1961 – que foi transmitido por rádios e

televisões de todo o mundo e contou com depoimentos de sobreviventes dos campos. De acordo

com Annette Wieviorka, “o julgamento de Eichmann conferiu às testemunhas a identidade

social de sobreviventes e as transformou em portadoras de história22”. Encontrou-se, naquele

momento, finalmente, um espaço de escuta.

Os testemunhos publicados no pós-guerra e em outros períodos de trauma consistiram

em uma literatura de teor testemunhal. Esse termo foi cunhado pelo crítico e teórico literário

Márcio Seligmann-Silva, que esclarece sua importância:

A questão do testemunho tem sido cada vez mais estudada desde os anos 1970. Para

evitar confusões, devemos deixar claro dois pontos centrais: a) ao invés de se falar em

“literatura de testemunho”, que não é um gênero, percebemos agora uma face da

literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes e que faz com que toda a

história da literatura — após duzentos anos de auto-referência — seja revista a partir

do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o “real”. Nos estudos

de testemunho deve-se buscar caracterizar o “teor testemunhal” que marca toda obra

literária, mas que aprendemos a detectar a partir da concentração desse teor na

literatura e escritura do século XX. Esse teor indica diversas modalidades de relação

metonímica entre o “real” e a escritura; b) em segundo lugar, esse “real” não deve ser

confundido com a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance

realista e naturalista: o “real” que nos interessa aqui deve ser compreendido na chave

freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação23.

De acordo com François Hartog, esses testemunhos possuem um caráter crucial, “uma

vez que o plano de extermínio previa também a supressão de todas as testemunhas, assim como

dos vestígios do crime24. Relatar, nesse contexto, seria uma “'cura' da alienação e da

coisificação25”.

20 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p.

6. 21 Adolf Eichmann foi tenente-coronel nazista e um dos principais organizadores do Holocausto. Seu julgamento

ocorreu em 1961, em Jerusalém. 22 Tradução livre de: “The Eichmann trial conferred on the witnesses the social identity of survivor and transformed

them into the bearers of history”. WIEVIORKA, Annette. The witness in History. Poetics Today: International

Journal for Theory and Analysis of Literature and Communication, vol. 27, n. 2, 2006, p. 385. 23 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Proj.

História, São Paulo, v. 30, jun. 2005, p. 85. 24 HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p.

211. 25 SARLO, op. cit. p. 39.

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20

A importância da inclusão dessas narrativas enquanto fonte para a produção

historiográfica é inquestionável. Contudo, é preciso se atentar para um fato: os relatos adquirem

um caráter de verdade absoluta por serem narrados por sujeitos e testemunhas oculares dos

processos e acontecimentos. Essas pessoas possuem grande legitimidade para testemunhar

sobre tais situações por as terem vivido e/ou presenciado diretamente. O historiador Rodrigo

Motta observa que

Não raro, principalmente em seminários, o historiador é interpelado por pessoas que

se sentem mais capazes para falar do passado recente, considerando seu testemunho

superior ao olhar de um pesquisador que “não estava lá”26.

Tendo isso em vista, faz-se primordial a distinção entre memória e história. Segundo

afirma o historiador Jacques Le Goff, em seu clássico verbete “Memória”,

a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual

e coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das

sociedades de hoje, na febre e na angústia27.

Assim, a memória consiste em um discurso sobre o passado, que pode ser individual ou

coletivo, construído por diversos grupos e instituições tanto da sociedade civil quanto do

Estado28, conforme ratifica Pierre Nora: “a memória emerge de um grupo que ela une, o que

quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é,

por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada29”.

Dessa forma – ainda que o passado seja imutável –, a memória está passiva de mudança

de acordo com influências do presente, conforme apontado por Lvovich e Bisquert:

As exigências do presente, o peso dos discursos dominantes sobre o passado, a

mudança das condições que determinam sua audibilidade e legitimidade, as políticas

de memória desenvolvidas pelo Estado, entre outros fatores, podem determinar

modificações substanciais no conteúdo das memórias30.

26 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. História, Memória e as disputas pela representação do passado recente. Patrimônio

e Memória, São Paulo, Unesp, v. 9, n.1, janeiro-junho, 2013, p. 61. 27 LE GOFF, Jacques. Memória. IN: Enciclopédia Einaudi: Memória – História. V. 1. Lisboa: Imprensa

Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 46. 28 FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. El pasado cercano en clave historiográfica. IN: Historia reciente.

Perspectivas y desafíos para un campo en construcción. Buenos Aires, Paidós, 2007, p. 1. 29 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Proj. História, São Paulo, vol. 10, dez.

1993, p. 9. 30 Tradução livre de: “Las exigencias del presente, el peso de los discursos dominantes sobre el pasado, el cambio

de las condiciones que determinan su audibilidad y legitimidad, las políticas de la memoria desarrolladas desde el

Estado, entre otros factores, pueden determinar modificaciones sustanciales en los contenidos de las memorias”.

LVOVICH, Daniel; BISQUERT, Jaquelina. La cambiante memoria de la dictadura: discursos públicos,

movimientos sociales y legitimidad democrática. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2008, p. 8-9.

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21

Daniel Aarão Reis aponta que “embora querendo ser sincera, a memória, de modo

solerte, ou inconsciente, desliza, se faz e se refaz em virtude de novas interpelações, ou

inquietações e vivências, novos achados e ângulos de abordagem31”. Nesse sentido, Joel

Candau também afirma que “o ato memorial tem uma dimensão teleológica. Lembrarmo-nos

consiste, podíamos dizê-lo, em configurar presentemente um acontecimento passado no quadro

de uma estratégia para o futuro (...)32”.

Além disso, e talvez o aspecto mais importante que caracteriza a memória, observa-se

uma pretensão de ser verdadeira e fiel ao passado relatado. Como há uma pluralidade de pontos

de vista, memórias, sobre o passado, cria-se uma disputa: “todas reivindicam a sua versão dos

acontecimentos como a verdadeira, conferindo-lhe caráter sagrado e inquestionável33”. Apesar

disso, a memória é seletiva – justamente por ser diretamente influenciada pelas preferências

políticas e pessoais de quem a constrói –, “nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado34”.

A história, ainda que também seja um discurso sobre o passado, se difere da memória

por ter uma pretensão científica. De acordo com Rodrigo Motta, “o historiador deve desconfiar

das suas fontes, inquiri-las em busca da verdade35”. Pierre Nora, ao comparar ambas, assinala

que “a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A

memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma

representação do passado36”.

Por ser uma reconstrução, a história está sempre sujeita a ser revisitada e questionada a

partir do debate historiográfico. A memória, por pretender-se sagrada, envolve-se em disputas,

guerras, para ter hegemonia. Diversas narrativas memoriais podem conviver em um mesmo

espaço e tempo, contudo, há uma que se sobressai, uma memória dominante entre outras

memórias subterrâneas. Segundo Michael Pollak, a memória hegemônica ou dominante pode

ser produzida pelo Estado – uma memória oficial –, mas pode também ser produto de uma

sociedade englobante em oposição a grupos minoritários37 – que mantêm suas memórias

subterrâneas. A emergência de determinadas lembranças em detrimento de outras é

consequência das circunstâncias do presente: “essas memórias subterrâneas que prosseguem

31 REIS, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. IN: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI,

Marcelo Siqueira; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004).

Bauru: Edusc, 2004. 32 CANDAU, Joel. Antropologia da memória. São Paulo: Instituto Piaget, 2013, p. 51. 33 MOTTA, 2013, op. cit., p. 62. 34 POLLAK, 1992, op. cit., p. 4. 35 MOTTA, 2013, op. cit., p. 61. 36 NORA, 1993, op. cit., p. 7. 37 POLLAK, 1989, op. cit., p. 5.

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seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos

de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa38”.

O estudo desses movimentos é essencial para o historiador. Através do desenvolvimento

de uma história da memória, conforme proposto por Lvovich e Bisquert, é possível realizar

uma análise “da evolução das formas e os usos do passado feitos por grupos significativos sobre

um período dado, em geral vinculado ao processamento de experiências fortemente

traumáticas”39. Janaina Cordeiro justifica a necessidade de um estudo sobre a memória: apesar

de grande importância política, não se pode contentar com as simplificações da memória. A

memória não pode ser considerada história e nem substituí-la40. É nesta perspectiva que este

estudo se insere.

As ditaduras latino-americanas foram consideradas, pela memória, experiências

traumáticas que marcaram o século XX. No Brasil, em 1964 houve um golpe civil-militar, que

instaurou uma ditadura e um regime de exceção, que permaneceu em vigor até 197941, sendo

restabelecido o regime democrático apenas em 1988, com a promulgação da nova Constituição

– após um período de transição que, segundo Daniel Aarão Reis, compreende o intervalo entre

essas duas datas42. Durante esse período, articularam-se formas de repressão à oposição e em

prol de um modelo de vida baseado na ideia de “moral e bons costumes”, por meio de diversas

frentes: censura, espionagem, prisões políticas, torturas e mortes.

Embora a ditadura civil-militar seja considerada um trauma por discursos memorias, é

necessário problematizar essa perspectiva. Segundo Janaina Cordeiro, o apagamento do aspecto

civil e, em vez disso, a responsabilização exclusiva dos militares – concretizada através do uso

da expressão “ditadura militar” – transformou a sociedade em combativa e resistente, apagando

o papel de setores da sociedade para a construção e manutenção do regime:

para expurgar o peso de ter vivido a ditadura, em especial os anos do Milagre como

os anos de ouro, enquanto os opositores eram perseguidos, para explicar o convívio –

nem sempre conflituoso – com o regime de exceção, para reconciliar-se consigo

mesma, a sociedade escolheu o silêncio a respeito das relações complexas

estabelecidas com o regime. Escolheu-se rememorar as vítimas (...)43.

38 Ibid., p. 4. 39 Tradução livre de: “(...) análisis de la evolución de las formas y los usos del pasado desarrollado por grupos

significativos sobre un período dado, en general vinculado al procesamiento de experiencias fuertemente

traumáticas”. LVOVICH & BISQUERT, 2008, op. cit., p. 10. 40 CORDEIRO, Janaina Martins. Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do Sesquicentenário

da Independência entre consenso e consentimento. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal

Fluminense, Niterói, 2012, p. 321. 41 Tal periodização não é consenso na historiografia, gerando debates polêmicos. Cf. REIS, Daniel Aarão. Ditadura

e democracia no Brasil. 1964: 50 anos depois. Rio de Janeiro: 2014. 42 Idem. 43 CORDEIRO, 2012, op. cit., p. 320.

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E quem seriam essas vítimas? De acordo com dados levantados pelo projeto Brasil:

Nunca Mais (BNM), o número total de afetados pelos processos do Superior Tribunal Militar

abertos durante o período foi de 17.420, entre denunciados, indiciados, testemunhas e

declarantes. Já a Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório final produzido em 2014,

reconheceu 434 mortes e desaparecimentos com motivações políticas. Esses números, apesar

de muito relevantes – consistem, definitivamente, em um trauma para as esquerdas –, quando

comparados à população brasileira da época, são indicativos do isolamento dos projetos

revolucionários defendidos pelas organizações. Segundo Denise Rollemberg,

a luta armada foi derrotada uma vez que não houve uma relação de identidade entre o

seu projeto revolucionário e os movimentos sociais (...). Sequer as propostas de

enfrentamento que não fossem de luta armada, como as propostas de greves operárias

e manifestações de massas, encontravam ressonância nas classes sociais44.

Contudo, como apontado por Rollemberg, a sociedade que não apoiou a luta armada,

interessou-se muito por conhecê-la45. Ainda com o Ato Institucional n° 5 (AI-5) em vigência,

em 1977, foi publicada a primeira autobiografia de um ex-guerrilheiro: Em Câmara Lenta, de

Renato Tapajós – militante da Ala Vermelha do PCdoB –, escrita enquanto era preso político,

em 1973. O sociólogo Mário Augusto Medeiros aponta que o discurso da obra tem um tom de

autoavaliação, “apresentando erros e acertos dos outros e seus próprios”46, referindo-se a um

do desejo do autor de refletir criticamente sobre as ações da esquerda. Tapajós, em entrevista à

Medeiros, afirmou que:

É, sobretudo, uma discussão em torno da contradição que se colocou para os

militantes, em determinado momento, entre o compromisso moral e as opções

políticas que se delineavam. É claro que o romance é também uma denúncia da

violência repressiva e da tortura, porque ninguém pode escrever com um mínimo de

honestidade sobre política em nosso país, nesse período, sem falar de tortura e de

violência policial [...]. No entanto, esse não é o aspecto principal do romance. De certa

forma, ele é um balanço e uma autocrítica, um esboço em torno do desmantelamento

das organizações de esquerda e da reação dos militantes a respeito desse fato47.

44 ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In: Jorge Ferreira; Lucilia de Almeida Neves

Delgado (org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século

XX. 1ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 4, p. 43-91. 45 ROLLEMBERG, Denise. Esquecimento das memórias. IN: João Roberto Martins Filho (org.). O golpe de 1964

e o regime militar. São Carlos: Ed. UFSCar, 2006, p. 4. 46 SILVA, Mário Augusto Medeiros da. Os escritores da guerrilha urbana: literatura de testemunho, ambivalência

e transição política. São Paulo: Annablume, 2008, p. 63. 47 Idem.

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24

O anseio por registrar e compartilhar suas vivências era imenso, a ponto de se submeter

a procedimentos tão custosos para que o livro fosse escrito. Ao ser publicada, no entanto, a obra

foi censurada e o autor preso novamente. Segundo Caroline Bauer,

a negação da realidade pela censura, pela desinformação – através das versões

inverídicas – e a imposição do esquecimento leva à ausência do reconhecimento social

das experiências dos ex-presos e perseguidos políticos e dos familiares de mortos e

desaparecidos políticos, que têm seus relatos deslegitimados e considerados irreais,

impossibilitando o processo de luto48.

A experiência do exílio também foi raiz de uma onda de produção de testemunhos de

outros militantes da esquerda armada brasileira. O livro Memórias do exílio: Brasil (1964 –

19??) foi uma obra coletiva, com entrevistas e manuscritos de diversos ex-guerrilheiros

exilados – a maioria composta pelos libertos e banidos após as quatro capturas de embaixadores.

A obra foi publicada em 1976 no cenário internacional, com primeira edição brasileira em 1978.

Na introdução, os organizadores justificam a produção do livro: “em condições marcadas por

rupturas históricas tais como as que provocam o exílio, a memória coletiva tem que ser feita

pois ela exige um esforço consciente de recuperação para uma cultura nacional49”. Os

testemunhos são múltiplos, apesar do risco de não poderem retornar ao país por conta deles ou

de haver represálias caso o fizessem. Alguns dos depoentes utilizaram pseudônimos, numa

tentativa de zelar por sua segurança.

Em 1979, o jornalista Fernando Gabeira publicou O que é isso companheiro?, narrativa

autobiográfica que tratava da captura do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles

Elbrick, por militantes do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e Ação

Libertadora Nacional (ALN). Gabeira era ligado ao MR-8 e, durante a ação, era o responsável

pelo imóvel que serviu de cativeiro. A publicação da obra se deu em uma conjuntura de

transição, ainda autoritária, mas muito diferente da época da publicação do livro de Tapajós:

após o fim do AI-5 e da promulgação da Lei de Anistia política (o próprio Gabeira já estava de

volta ao Brasil quando do lançamento do livro). Por diversas razões, a narrativa em questão é a

maior referência para o grande público quando o assunto é guerrilha, um consenso50. Sua

48 BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade.

São Paulo: Paco Editorial, 2017, p. 19. 49 UCHÔA, P. C.; RAMOS, J. (org.). Memórias do exílio: Brasil (1964-19??) – de muitos caminhos. São Paulo:

Livramento Ltda, 1978, p. 9 50 ROLLEMBERG, 2006, op. cit., p. 3.

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popularidade foi tamanha que, em 1997, ganhou uma adaptação cinematográfica. O historiador

Daniel Aarão Reis aponta que:

com o recuo da ditadura militar, no quadro da abertura “lenta, segura e gradual”, a

sociedade queria recuperar e se reconciliar com a história agitada dos anos 60, mas na

concórdia, sem revanchismos estéreis, como aconselhavam os militares e os homens

de bom senso. No contexto da mal chamada anistia recíproca, não seria possível avivar

a memória sem despertar os demônios do ressentimento?51

O testemunho de Gabeira, portanto, atendia às demandas conciliatórias postas pela

sociedade e, por isso, ganhou espaço e legitimidade. Apesar de denunciar a tortura, não fazia

uma análise crítica sobre a ditadura e lançava um olhar de “aventura” à guerrilha.

Até a redemocratização foram publicados ainda muitos testemunhos sobre o período

ditatorial, do ponto de vista das esquerdas: Os carbonários, de Alfredo Sirkis (1980); Os fornos

quentes (1980) e A fuga (1984), de Reinaldo Guarany; Memórias das mulheres no exílio (1980),

segundo volume de Memórias do exílio, supracitado; entre outros. A quantidade de livros de

memória publicados que tratam de experiências individuais das esquerdas durante a ditadura

civil-militar brasileira (entre eles autobiografias, biografias e romances que mesclam as duas

modalidades anteriores – testemunhos em geral), a partir de 1977, cresce a cada ano, em

diversos locais do país, por diversas editoras52. Um exemplo disso é o recente lançamento da

biografia53 de Herbert Daniel54, escrita pelo historiador James Green, em julho de 2018, ano de

escrita dessa dissertação. Além desse, o livro biográfico Marighella: o guerrilheiro que

incendiou o mundo55, de Mário Magalhães56 sobre Carlos Marighella57, lançado em 2012,

51 REIS, Daniel Aarão. Versões e ficções: a luta pela apropriação da memória. IN: REIS, Daniel Aarão et. al.

Versões e ficções: o sequestro da história. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 102-3. 52 Em levantamento feito de biografias e autobiografias de militantes de esquerda, encontrei que quatro foram

publicadas pela Editora Codecri. Uma dessas autobiografias é a O que é isso companheiro?¸ de Fernando Gabeira,

obra de maior expressão quando se trata de luta armada. 53 GREEN, James. Gay e revolucionário: a vida extraordinária de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela

democracia, diversidade e inclusão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. 54 Herbert Eustáquio de Carvalho foi um sociólogo, jornalista e ex-guerrilheiro brasileiro. Durante a luta armada,

integrou as organizações POLOP, Colina, VAR-Palmares e VPR. Morreu em 1992, por complicações causadas

pela AIDS. 55 MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras,

2012. 56 Jornalista e escritor brasileiro. Fonte: <https://theintercept.com/staff/mario-magalhaes/>. Acesso em: 4 mar.

2019. 57 Carlos Marighella, nascido em Salvador em 1911, foi um guerrilheiro comunista, criador da Ação Libertadora

Nacional e um dos expoentes da luta armada durante a ditadura. Foi assassinado em uma emboscada planejada

pelo DOPS, em São Paulo, em 1969. Fonte: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-

biografico/marighella-carlos>. Acesso em: 4 mar. 2019.

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voltou a ter destaque graças ao lançamento do filme Marighella, dirigido por Wagner Moura58,

em 2019.

A multiplicidade desses relatos não se resume apenas em diferentes histórias de vida,

mas também inclui diversas linhas de abordagem e pontos de vista sobre o ocorrido. Se há uma

batalha pela memória óbvia entre os que construíram e se beneficiaram com o regime ditatorial

e os que se opuseram a ele, há também disputas dentro da própria esquerda59. Como vimos, as

memórias, apesar de conterem “marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis60”, são

influenciadas tanto por posicionamentos políticos e ideológicos de quem as narra, quanto pelas

conjunturas e demandas do presente – tornando-as passíveis de “flutuações, transformações,

mudanças constantes61”. Neste sentido, uma questão se faz pertinente para este trabalho: quais

narrativas sobre as esquerdas e a ditadura civil-militar estão vinculadas a cada biografia e em

que medida isso pode se relacionar com o contexto da produção destes relatos?

Uma outra observação relevante a ser feita é sobre quem estas histórias tratam: quantos

desses livros têm mulheres como protagonistas? Dados do BNM indicam que de 15 a 20% do

total de denunciados foram do sexo feminino62, portanto, houve expressiva participação

feminina nas diversas formas de oposição à ditadura e nas lutas revolucionárias. Tendo em vista

a grande quantidade de relatos autobiográficos sobre experiências das esquerdas durante a

ditadura – dado os exemplos de Tapajós, Gabeira, Sirkis e Guarany, citados anteriormente – é

possível, neste caso, formular uma nova questão: se a participação feminina foi um fato, por

que elas escrevem menos, em primeira pessoa, sobre suas memórias? Numa tentativa de

encontrar respostas para essa questão, Julia Insuela afirma que

Talvez o motivo seja a atitude de [as mulheres] não quererem se confrontar com essas

memórias, com essas trajetórias. As questões do trauma, principalmente pela tortura,

e da subjetividade feminina, inserida na discussão de gênero, têm papel significativo

nessa postura63.

58 Ator, diretor e jornalista brasileiro, nascido em 1976, em Salvador. 59 ROLLEMBERG, 2006, op. cit., passim. 60 POLLAK, 1992, op. cit., p. 2. 61 Idem. 62 RIDENTI, Marcelo. As mulheres na política brasileira: os anos de chumbo. Tempo Social, v. 1, n. 1, 1990, p.

114. 63 INSUELA, Julia Bianchi Reis. Visões das mulheres militantes na luta armada: repressão, imprensa e

(auto)biografias (Brasil – 1968/1971). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense,

Rio de Janeiro, 2011, p. 115.

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Os livros selecionados como fontes neste trabalho foram escritos por terceiros. Por esse

motivo, outro aspecto importante para esta investigação é a figura do biógrafo. Na perspectiva

de Leonor Arfuch, “a fronteira entre biografia e autobiografia não é tão nítida64”, uma vez que

“toda escrita é autobiográfica65”. Contudo, o fato de um dos biógrafos ser do sexo masculino

será levado em consideração, uma vez que essa particularidade é determinante sobre a forma

de enxergar o mundo e as experiências vividas – há um lugar de fala masculino, que não

compreende na totalidade vivências “tipicamente” femininas66.

Para completar o tripé igualmente proposto por Arfuch sobre a constituição de ensaios

biográficos – autor, biografado e leitor67 –, dados sobre o público consumidor dessas obras

serão incluídos no estudo, na medida do possível. Dessa forma, será viável identificar os

motivos pelos quais determinadas biografadas foram escolhidas pelos autores e quais demandas

do mercado editorial foram atendidas. Beatriz Sarlo, antecipando a resposta para esses

questionamentos, aponta que “como a dimensão simbólica das sociedades em que vivemos está

organizada pelo mercado, os critérios são o êxito e o alinhamento com o senso comum dos

consumidores68”. Assim, cabem as perguntas: quais são os discursos comuns aos

consumidores-alvo desses livros? Esses discursos foram incorporados nas obras?

Destarte, a proposta deste trabalho é observar as narrativas biográficas sobre mulheres

enquanto construções do presente sobre o passado, influenciadas por demandas e disputas

memoriais que dizem respeito a seu próprio tempo – e não somente ao que pretendem retratar.

Será possível, então, analisar criticamente as seleções, os esquecimentos e os destaques dados

a determinados pontos de memória em cada época e compreender os motivos de tais escolhas.

A dissertação está dividida em 5 capítulos. Destes, o primeiro e o segundo tratam dos

discursos de memória vinculados ao livro de Judith Patarra: no primeiro, é analisada a

constituição do livro e a construção da personagem Iara Iavelberg; no segundo, reflito a respeito

da narrativa da autora sobre a ditadura e as esquerdas.

Já nos terceiro e quarto capítulos, trato do livro biográfico de Dilma Rousseff, de autoria

do jornalista Ricardo Amaral, seguindo a mesma divisão: no primeiro, observo a constituição

64 ARFUCH, Leonor. Memoria y autobiografía: exploraciones em los limites. Fondo de Buenos Aires: Fondo de

Cultura Economica, 2013, p. 49. 65 ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Editora da

UERJ, 2002, p. 76. 66 Ao tratar de experiências tidas como “tipicamente” femininas, estou me referindo a vivências que, ao longo dos

séculos, foram tidas como exclusivas do feminino, em uma perspectiva de gênero – papéis atribuídos socialmente

a cada sexo. Cf. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade. Porto

Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995. 67 ARFUCH, 2013, op. cit., passim. 68 SARLO, 2007, op. ci.t, p. 15.

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do livro e a construção da biografada; no segundo, analiso a narrativa sobre a ditadura e as

esquerdas. O último capítulo faz uma abordagem comparada de ambos os livros estudados,

ressaltando as continuidades e rupturas da memória ao longo do tempo.

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CAPÍTULO 1 - UMA FEMINISTA NA REVOLUÇÃO? A BIOGRAFIA DE IARA

IAVELBERG SEGUNDO JUDITH PATARRA (1980-1990)

“Pessoa bonita, sensível, tranquila, solidária, Iara conseguia

traduzir na prática o conselho do Guevara de ‘endurecer-se sem

perder a ternura’”

Inês Ettiene Romeu sobre Iara Iavelberg69

No congresso do Partido dos Trabalhadores que anunciou sua pré-candidatura à

Presidência da República, em 2010, Dilma Rousseff proferiu um discurso. Nele, afirmou:

(...) não posso deixar de ter uma lembrança especial para aqueles que não mais estão

conosco. Para aqueles que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte de minha

história. Mais que isso: eles são parte da história do Brasil70.

Neste momento, Dilma citou nomes de alguns militantes mortos durante a ditadura civil-

militar: Carlos Alberto Soares de Freitas, Maria Auxiliadora Lara Barcelos e Iara Iavelberg.

Sobre esta última, afirmou: “Iara, que falta fazem guerreiras como você71”.

Inês Etienne Romeu, em depoimento à jornalista Judith Patarra, apontou que “Iara

conseguia traduzir na prática o conselho do Guevara de ‘endurecer-se sem perder a ternura72”.

Maria Lúcia Carvalho, ex-guerrilheira assim como as outras duas, declarou que “tudo

que fosse revolucionário, pode ter certeza que a Iara ia se interessar. Era uma pessoa que estava

sempre procurando coisas mais à frente do seu tempo, muito estudiosa73”.

Guerreira, terna e à frente de seu tempo. Essas características, aliadas à beleza, são as

mais utilizadas para descrever Iara Iavelberg. Por diversas vezes, é denominada “musa da

esquerda”, como em matéria da Istoé: “Iara Iavelberg tinha o rosto lindo, a cabeça brilhante e

o coração revolucionário. Era a musa da esquerda brasileira em 1969 (...)74”; ou como no Metro

69 apud PATARRA, Judith. Iara: reportagem biográfica. 2ª edição. Rosa dos Tempos: Rio de Janeiro, 1992, p.

349. 70 ÍNTEGRA do discurso de Dilma Rousseff no Congresso do PT. O Estado de S. Paulo, 20 fev. 2018. Disponível

em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,integra-do-discurso-de-dilma-rousseff-no-congresso-do-

pt,513842>. Acesso em: 01 ago. 2019. 71 Idem. 72 PATARRA, 1992, op. cit., p. 349. 73 MONCAU, Gabriela. Revolução e paixão na vida admirável de Iara Iavelberg. Revista Adusp, out. 2013, p. 63.

Disponível em: <https://adusp.org.br/files/revistas/55/mat06.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2018. 74 STUDART, Hugo. O guerrilheiro apaixonado. Istoé, n. 1948, 28 fev. 2007. Disponível em:

<https://istoe.com.br/1356_O+GUERRILHEIRO+APAIXONADO/>. Acesso em: 02 ago. 2018.

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Jornal que, mesmo sem citar seu nome, utiliza como manchete: “Musa da resistência armada é

tema de documentário75”.

Contribuiu muito para a formação desta “marca registrada” a publicação do livro

biográfico sobre a guerrilheira, intitulado Iara: reportagem biográfica, escrito pela jornalista

Judith Patarra e fonte para este capítulo. Aqui, abordarei o impacto desta obra para a

consolidação da imagem de Iara para as esquerdas e como ela ajuda a compreender os processos

de construção da memória coletiva sobre a ditadura e as oposições a ela.

1.1 A TRAJETÓRIA DE IARA IAVELBERG

Antes de morrer, deve-se plantar uma árvore, ter filhos e escrever um livro. Anna

Veronica Mautner, na contracapa do livro Iara, declara que a biografada não fez nenhuma das

três coisas: “Muitos amores, nenhum livro, nenhum diário, nem árvore, nem filho tão

desejado76”. Mesmo assim, sua história de vida teve relevância para muitos, uma vez que

mereceu a publicação de uma biografia.

Iara Iavelberg foi militante de organizações revolucionárias durante a ditadura civil-

militar, entre elas a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP),

Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária Palmares

(VAR-Palmares) e Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Nasceu em 7 de maio de

1944, em São Paulo77. Seus familiares eram judeus imigrantes – húngaros na parte materna e

romenos na paterna. Foi a primeira filha de David e Eva Iavelberg, tendo outros 3 irmãos:

Samuel, Raul e Rosa Iavelberg. Os pais eram comerciantes de roupas e tecidos e a família

morou por muito tempo no bairro do Ipiranga, na Zona Sul da capital paulista.

Em maio de 1960, aos 16 anos, Iara se casou com Samuel Haberkorn, de 25, médico de

família tradicional judia no bairro do Ipiranga. O relacionamento não foi bem visto pela família

Haberkorn, mas os Iavelberg aprovavam78. A proclama de casamento foi publicada em 13 de

maio, no Diário Oficial do Estado de São Paulo:

18º subdistrito (Ipiranga)

75 BRAGA, Tercio. Musa da resistência armada é tema de documentário. Metro Jornal, 27 mar. 2014. Disponível

em: <https://www.metrojornal.com.br/cultura/2014/03/27/musa-da-resistencia-armada-e-tema-

documentario.html>. Acesso em: 12 ago. 2018. 76 MAUTNER, Anna Veronica. Contracapa. In: PATARRA, op. cit., 77 SÃO PAULO. Proclamas de casamento. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 13 mai. 1960, p. 51. 78 Depoimento de Samuel Iavelberg. EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana Pamplona.

São Paulo: Produtora Kinoscópio, 2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido.

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FAÇO SABER que pretendem se casar: Samuel Haberkorn, nascido em São Paulo,

aos 21 de março de 1935, solteiro, universitário, residente neste subdistrito, filho de

Israel Haberkorn e Genia Haberkorn e Iara Iavelberg, nascida em S. Paulo, aos 7 de

maio de 1944, solteira, de prendas domésticas, residente neste subdistrito, filha de

David Iavelberg e Eva Iavelberg. (...)79.

Em 1964, iniciou o curso de Psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da

Universidade de São Paulo80, na época localizada na Rua Maria Antônia, epicentro do

movimento estudantil nos anos 1960 e palco da “Batalha da Maria Antônia81”. Após algum

tempo cursando a universidade, iniciou sua militância na POLOP, organização na qual o irmão

Samuel já militava82.

Em agosto de 1965, Iara e o marido Samuel se separaram oficialmente – como indicado

em publicação do Diário Oficial do Estado de São Paulo de 17 de agosto: “desquite amigável –

Samuel Haberkorn e Iara Haberkorn – cumpra-se o V. Acórdão (...)83”. O casamento, segundo

os que conviviam com o casal, sempre fora cheio de discordâncias e instabilidade84.

Neste mesmo ano, tornou-se professora do cursinho do Grêmio da faculdade de

Psicologia – que, em 1968, tornou-se o Equipe Vestibulares85, ao qual Iara permaneceu

vinculada86 –, graças à participação na POLOP. Seu engajamento, inicialmente, girava muito

em torno do movimento estudantil, com ações voltadas para decisões sobre a estrutura do curso

e a instituição em geral87. Chegou a ser presidente do “Centrinho” – Associação Universitária

dos Estudantes de Psicologia88.

79 SÃO PAULO, 1960, op. cit., p. 51. 80 Depoimento de Samuel Iavelberg. EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana Pamplona.

São Paulo: Produtora Kinoscópio, 2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido. 81 Confronto entre estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e da

Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2 de outubro de 1968. Um estudante secundarista, José Guimarães,

morreu. 82 Depoimento de Samuel Iavelberg. EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana Pamplona.

São Paulo: Produtora Kinoscópio, 2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido. 83 SÃO PAULO. Vara da Família e das Sucessões. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 17 ago.

1965, p. 38. 84 Depoimento de Evelise de Souza Marra. EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana

Pamplona. São Paulo: Produtora Kinoscópio, 2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido. 85 Atual Colégio Equipe, localizado no bairro Higienópolis. 86 ANÚNCIO – Equipe Vestibulares. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 jan. 1968, p. 9. 87 MONCAU, 2013, op. cit., passim. 88 Idem.

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Em meados de 1967, conforme aponta a colega Ecléa Bosi, “dona Anita89 [sic] a

convidou para ser professora de Psicologia Social e ela chegou a ser docente, mas logo partiu

para a clandestinidade”90.

Em 11 de julho de 1968, Iara foi presa com o então namorado Silvério Soares Ferreira91,

também militante da POLOP, e ambos foram levados para o Departamento de Ordem Política

e Social (DOPS), detenção que originou seu registro no órgão de segurança92.

Em 1967, por ocasião do racha da POLOP, Iara passou a integrar a Vanguarda Popular

Revolucionária (VPR) – uma das organizações formadas pelos dissidentes93. Nessa

organização, sua principal função era alugar apartamentos que serviriam como aparelhos94 e

promover assistência teórica ao círculo de estudos que funcionava à noite em Quitaúna, Osasco.

Iara trabalhava como uma espécie de professora/mediadora, auxiliando os militantes com as

leituras consideradas fundamentais – obras teóricas marxistas-leninistas e sobre as funções da

guerrilha. Carlos Lamarca – guerrilheiro que, com o tempo, se tornou famoso sobretudo no

imaginário das esquerdas brasileiras – também integrante da VPR neste período, passou a

frequentar as reuniões. Com o tempo, desenvolveram um relacionamento amoroso. De acordo

com matéria publicada em 1971 pelo O Estado de S. Paulo,

Lamarca era considerado dentro do terror como um bom elemento de ação, mas nunca

um teórico. Em documentos da VPR, apreendidos pela polícia, o ex-militar era

89 Annita de Castilho Cabral foi professora e chefe da cadeira de Psicologia do curso de Filosofia da FFCL – USP

entre 1947 e 1968. Disponível em: <http://200.144.182.66/memoria/por/pessoa/508-

Annita_de_Castilho_Cabral>. Acesso em 24 jun. 2016. 90 apud MOURA, Mariluce. Narrativas sensíveis sobre grupos fragilizados. Entrevista com Ecléa Bossi. Revista

Pesquisa Fapesp, ed. 218, abril, 2014. Disponível em: <http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/04/24/eclea-bosi-

narrativas-sensiveis-sobre-grupos-fragilizados/>. Acesso em: 25 mai. 2018. 91 SÃO PAULO. Ficha – Iara Iavelberg. Secretaria de Segurança Pública – Departamento de Ordem Política e

Social, 1968. Disponível em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/deops/fichas/DEOPSSPI000031.pdf>. Acesso em:

19 dez. 2018. 92 DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL (DOPS). Prontuário – Iara Iavelberg. Secretaria da

Segurança Pública, São Paulo, 11 jul. 1968. Disponível em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/deops/fichas/DEOPSSPI000031.pdf>. Acesso em: 9

fev. 2019. 93 A outra seria o Comando de Libertação Nacional (COLINA). Cf. COELHO, Eurelino. SANTOS, Igor Gomes.

Para a história da POLOP (1961-1983): debate historiográfico e apontamentos iniciais de pesquisa. Anais... XXVI

Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, jul. 2011. Disponível em:

<http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300874101_ARQUIVO_POLOPANPUHI.pdf>. Acesso:

20 dez. 2018. 94 “Aparelho, no contexto da ditadura militar no Brasil, referia-se a um local (apartamento ou casa) usado como

refúgio por uma "célula" (grupo de ativistas com ideal e atuação afins) de organização política clandestina e

servindo também para a realização de reuniões, guarda de material de propaganda, dinheiro, armas, etc.” Fonte:

APARELHO (POLÍTICA). In: Wikipédia, 23 ago. 2018. Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Aparelho_(pol%C3%ADtica)>. Acesso em: 20 dez. 2018.

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bastante criticado por sua falta de cultura política. Segundo um ex-terrorista, ele não

tomava nenhuma decisão de caráter político antes de consultar Iara95.

Após a constituição da VAR-Palmares, Iara e Lamarca passaram a integrar a

organização. Por meio desta, Iara participou do treinamento de guerrilha no Vale do Ribeira.

Foram publicados no Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 1979, trechos do processo

contra seus integrantes. Nesse texto, constam alguns entendimentos dos órgãos de segurança a

respeito da atuação política de Iara enquanto ainda viva:

Yara Yavelberg [sic], ao lado de Dilma Vana e Miriam Abramovay, é a figura

relevante de mulher dentro da VAR-Palmares. Tão ativa é a sua participação nos

movimentos subversivos que Maria Cora Sacomani, ainda antes da própria existência

da VAR, participou de reuniões clandestinas na casa de Miriam e dos Iavelbergs.

Dilma Vânia [sic] coloca Yara [sic] entre as figuras que se sobressaiam. A fls. 642-

646 é citada entre as participantes dos encontros realizados no apartamento da rua da

Consolação, já referidos. Não há dúvida sobre a sua criminosa atuação96.

Após a captura do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, liderada por

Lamarca, o casal passou a ser ainda mais procurado pelas autoridades da ditadura. Assim, entre

1970 e 1971, mudaram-se para o Rio de Janeiro, para integrarem-se ao MR-8. Segundo o ex-

dirigente desta organização, Carlos Alberto Muniz,

na época, a VPR no Rio estava sob um cerco maior ainda, quer dizer, ela tava

com uma infraestrutura pior, ela não tinha a inserção que nós [MR-8] tínhamos

aqui no Rio de Janeiro. Aí eu expliquei um pouco mais sobre o que que era a

nossa ideia do trabalho no campo, cheguei a dizer, a contar um pouco que nós

já tínhamos companheiros deslocados pra lá. Aí eles decidiram que viriam pro

MR-897.

95 POLITICAMENTE, Iara dominava. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 set. 1971, p. 12. 96 SÃO PAULO. Justiça Militar Federal – 1ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar. Diário Oficial do

Estado de São Paulo, São Paulo, 2 jun. 1979, p. 104. 97 Depoimento de Carlos Alberto Muniz. EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana

Pamplona. São Paulo: Produtora Kinoscópio, 2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido.

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Com o aumento das prisões de militantes no Rio de Janeiro, ambos foram enviados para

a Bahia: o capitão para o sertão, próximo ao Rio São Francisco, e Iara para Feira de Santana98

e, posteriormente, por motivos de segurança, para Salvador99.

Em 20 de agosto de 1971, policiais do DOI-Codi invadiram o aparelho onde Iara estava

abrigada em Salvador com outros companheiros – ação integrante da chamada Operação

Pajussara100. A respeito da morte de Iara, o relatório da ação narra: “IARA IAVELBERG, a fim

de evitar sua prisão, ocultou-se em um banheiro do apartamento vizinho; sentindo-se cercada e

sofrendo a ação dos gases lacrimogêneos, suicidou-se101”.

Apesar de, segundo o jornalista Elio Gaspari, a operação ter sido considerada um

sucesso – pois pegaram do apartamento três militantes do MR-8, uma empregada e duas

crianças102 –, a morte de Iara foi vista como um possível entrave para o objetivo principal da

ação: a captura de Lamarca. O próprio relatório, no subtópico “principais ensinamentos”

observa:

Mesmo assim, considera-se que houve certa precipitação no deslocamento inicial das

equipes para a área de Operações, apesar da evolução rápida dos acontecimentos em

SALVADOR, com a morte de IARA, e a possibilidade de tal fato chegar ao

conhecimento de LAMARCA, provocando a sua saída da Região de BROTAS DE

MACAÚBAS103.

Como se pode observar no trecho acima, a morte de Iara – apesar de oficialmente ter

sido um “suicídio” – foi considerada como consequência das ações da operação, precipitadas.

Mesmo assim, a tese do suicídio permaneceu um consenso e foi apropriada por diversos

historiadores e jornalistas. O próprio Gaspari a reafirma: “Iara Iavelberg pulara um pequeno

vão, passando de um apartamento para o outro, mas a polícia encurralou-a num quarto infestado

98 Consta no relatório da Operação Pajussara um depoimento do então militante José Carlos de Souza, o Rocha:

“Após a morte de IARA, 'ROCHA', interrogado intensamente e traumatizado por esse acontecimento, confessou

que, em fins de JUNHO, havia conduzido CARLOS LAMARCA e IARA para a BAHIA, deixando esta em FEIRA

DE SANTANA e dirigindo-se para a Região de BROTAS DE MACAÚBAS com LAMARCA, passando-o a JOSÉ

CAMPOS BARRETO, 'JESSÉ', elemento nascido e criado em BROTAS, onde também já se encontrava LUIZ

ANTONIO DE SANTA BÁRBARA, 'MERENDA', ambos realizando trabalho de campo”. MINISTÉRIO DO

EXÉRCITO – IV Exército, 6ª região militar. Quartel General – 2ª seção. Operação Pajussara – Relatório. 1971.

Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/upload/001-relatorio-operacao-pajussara.pdf>. Acesso

em: 19 dez. 2018. 99 Depoimento de César Queiroz Benjamim. EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana

Pamplona. São Paulo: Produtora Kinoscópio, 2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido. 100 MINISTÉRIO DO EXÉRCITO – IV Exército, 6ª região militar. Quartel General – 2ª seção. Operação

Pajussara – Relatório. 1971. Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/upload/001-relatorio-

operacao-pajussara.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2018. 101 Ibid., p. 2. 102 GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 354. 103 MINISTÉRIO DO EXÉRCITO, 1971, op. cit., p. 19.

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de gás lacrimogênio. Ouviu-se um tiro. A bala transfixou-lhe o coração e o pulmão

esquerdo104”.

Durante muitos anos, porém, a família Iavelberg lutou para que o corpo de Iara fosse

exumado e essa teoria pudesse ser contestada. Em 1997, os Iavelberg apresentaram caso à

Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e, durante o processo, várias

testemunhas corroboraram com a tese de assassinato, em vez de suicídio105. Em 2003, a

demanda da família finalmente foi aceita e uma perícia, realizada pelo professor Daniel Romero

Muñoz, da Universidade de São Paulo106, concluiu que a ferida causada pela bala seria

incompatível com um suicídio107. Constatou-se, assim, que Iara Iavelberg foi assassinada, em

20 de agosto de 1971, aos 28 anos108.

1.2 CONSTITUIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO LIVRO: A AUTORA E O PROCESSO DE

ESCRITA

Iara: reportagem biográfica teve a primeira edição publicada em 30 de março de 1992,

pela editora Rosa dos Tempos. Este selo, vinculado à editora Record, foi fundado em 1990 por

“Rose Marie Muraro e a atriz Ruth Escobar. A ideia era criar, no Brasil, um instrumento que

desse voz às mulheres, uma editora com ótica feminista109”. O livro teve 4 edições, sendo a

última de 19 de abril de 1993, e está esgotado, sem previsão de reimpressão110.

A autora Judith Patarra, jornalista e, na época da publicação, diretora da revista Saúde,

da editora Abril, trabalhou entre 7 e 8 anos na escrita da obra – a qual ela denominou de

“reportagem biográfica”, destacando seu caráter jornalístico. As fontes utilizadas por Patarra

são principalmente entrevistas com familiares e amigos da biografada – a Veja apontou que

foram mais de 100111 –, mas também notícias publicadas na grande imprensa, panfletos e

104 GASPARI, 2002, op. cit., p. 354. 105 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade – Relatório. Vol. III – Mortos e desaparecidos políticos. Brasília:

CNV, 2014, p. 697. 106 Idem. 107 PAMPLONA, Mariana. Clandestina, a vida de Iara Iavelberg em dois roteiros. Dissertação (Mestrado em

Multimeios) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009, p. 1. 108 EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana Pamplona. São Paulo: Produtora Kinoscópio,

2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido. 109 Rosa dos Tempos. Disponível em:

<http://www.record.com.br/grupoeditorial_editora.asp?id_editora=8&pag=1>. Acesso em: 21 mai. 2018. 110 Em janeiro de 2018, o selo foi reinaugurado com a publicação de um livro, após 12 anos da edição do último.

Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/grupo-record-reativa-rosa-dos-tempos-seu-selo-

feminino-22251894>. Acesso em: 21 mai. 2018. 111 GIUDICE, C. História revisitada. Entrevista: Judith Patarra. Revista Veja, 12 de agosto de 1992.

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documentos, fotografias, outras biografias, depoimentos e a historiografia/literatura em geral

sobre o tema.

Apesar das escassas informações sobre a jornalista, sabe-se que Patarra nasceu em 1935,

na Alemanha, tendo hoje cerca de 83 anos. É filha do advogado e escritor Karl Lieblich, alemão

e judeu que se exilou com a família no Brasil em 1937112. Patarra estudou Ciências Sociais na

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na Rua Maria Antônia, na década de 1960113, assim

como Iavelberg, mas nunca a conheceu. Trabalhou em grandes veículos de mídia, como o

Jornal da Tarde114, Veja, Cláudia, Superinteressante, dentre outros. Publicou ficção também:

contos na antologia Contos Jovens, e seu primeiro livro, O círculo da castidade115, publicado

em 1969116. Além deste, publicou ao menos mais dois livros: Direitos Humanos no Brasil:

conferências para educadores (1986)117 e Os médicos de Cangaíba: viver é gostar de gente

(2012)118. Foi casada com o jornalista comunista Paulo Patarra, fundador da revista

Realidade119, com quem teve três filhos, entre eles a roteirista Dani Patarra120 e o jornalista Ivo

Patarra.

O livro sobre Iara, com 521 páginas, está dividido em seis partes – Ipiranga, Maria

Antônia, VPR, Lamarca, No estrangeiro e Bahia –, subdividas em capítulos, além do Prefácio

– escrito pelo jornalista Alberto Dines –, Prólogo e Epílogo. Patarra buscou “reconstituir” toda

a trajetória de Iara, contando a história de seus familiares anterior ao seu nascimento, sua

infância, vida familiar, estudantil, militância e morte. Toda a narrativa é feita de maneira

cronológica e linear. Pierre Bourdieu, ao estudar biografias, critica essa estratégia, uma vez que,

na ótica do autor, “o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos

112 COLFFIELD, Carol. Karl Lieblich. Arquivo Virtual ArqShoah, s/d. Disponível em:

<https://www.arqshoah.com/index.php/busca-geral/aei-97-lieblich-karl>. Acesso em: 17 jun. 2018. 113 ‘ANOS Rebeldes’ desperta reações emocionadas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 jul. 1992, Caderno 2,

Televisão, p. 2. 114 CASAGRANDE, Ferdinando. Jornal da Tarde: uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira. São Paulo:

Alpendre, 2016. 115 PATARRA, Judith. O círculo da castidade. São Paulo: Brasiliense, 1969. 116 BERG, Marli. Iara, uma militante por acaso. O Globo, Rio de Janeiro, 3 mai. 1992, Livros, p. 6. 117 OCCHIUZE, Heloisa; PATARRA, Judith; COHEN, Paula (orgs.). Direitos humanos no Brasil: conferências

para educadores. Rio de Janeiro: MPA, 1986. 118 PATARRA, Judith (org.). Os médicos de Cangaíba: viver é gostar de gente. São Paulo: Fênix, 2012. 119 AZEVEDO, Carlos. Patarra morreu. Viva Patarra! Observatório da Imprensa, 22 jan. 2008. Disponível em:

<http://observatoriodaimprensa.com.br/tv-em-questao/patarra-morreu-viva-patarra/>. Acesso em: 17 jun. 2018. 120 Dani Patarra escreveu longas como Proibido Proibir (2006) e Batismo de Sangue (2007), baseado no livro de

Frei Betto.

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eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente

imprevisto, fora de propósito, aleatório121”.

Fica evidente, após conhecer a história de vida da própria autora, a quantidade de pontos

em comum entre as duas: ambas são de famílias judias, com pais imigrantes (no caso de Judith,

a própria imigrou para o Brasil), com familiares perseguidos pelo nazismo e a formação na

Faculdade da Maria Antônia na mesma época. Retoma-se, portanto, a observação de Leonor

Arfuch sobre a proximidade entre biografia e autobiografia: “há muito de autobiográfico no

modo de abordar essa vida do outro, assim como também um limite ético: não se confundir com

ele122”.

Esses fatores em comum podem ter sido decisivos na escolha da biografada pela

biógrafa. Rachel Soihet afirma que “com frequência, o que envolve a pesquisa de uma mulher

sobre uma outra vida feminina é a vontade ou a necessidade de buscar pontos de referência

para uma autodefinição não mais fundada no modelo patriarcal, mas sobre as experiências reais

das mulheres123”.

No entanto, ao ser questionada sobre o motivo da preferência por Iara, Patarra não os

mencionou diretamente, afirmando apenas que:

tudo começou com uma conversa com o jornalista Alberto Dines a respeito da nossa

missão, como profissionais, de testemunhar sobre o que vimos e vivemos nessa época.

A minha maior preocupação foi reconstruir aquele pedaço da nossa História, que não

podia ser esquecido. (...) Como minha intenção não era fazer apenas um relato

histórico, mas mostrar o clima e o comportamento dos anos rebeldes, vi na Iara uma

personagem muito mais interessante [do que Lamarca]124.

O jornalista citado por Patarra como encorajador da escrita da biografia tem ligação

prévia com Iara. Alberto Dines foi editor-chefe do Jornal do Brasil na década de 1960 e início

de 1970, periódico com maior incidência de artigos sobre Iavelberg nessa época125. Após a

morte dela, Dines126 publicou um livro de contos, sendo um deles sobre o relacionamento de

121 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos

e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 185. 122 Tradução livre de: “La frontera entre biografia y autobiografía no es entonces tan nítida, y en verdad, como

observa Holroyd, hay mucho de autobiográfico en el modo de abordar esa vida del otro, así como también un

límite ético: no confundirse con él”. ARFUCH, 2013, op. cit., p. 49. 123 SOIHET, Rachel. Mulheres e Biografia. Significados para a História. Locus, v. 9, n. 1, 2003, p. 46, grifos meus. 124 GIUDICE, op. cit., p. 8. 125 Cf. NASCIMENTO, Juliana Marques do. “Amante, amásia, transeira e subversiva”: as representações de Iara

Iavelberg na grande imprensa durante a ditadura civil-militar. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em

História) – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2016. 126 Judeu, nascido em fevereiro de 1932 no Rio de Janeiro, iniciou sua carreira como crítico de cinema, mas

enveredou para o jornalismo, tendo dirigido jornais como o Última Hora, Diário da Noite, Jornal do Brasil, Folha

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Iara e Lamarca, sob os pseudônimos de Moema Iavenfeld e Mário L, intitulado “Um caso único

de saudade à primeira vista”127. Nos agradecimentos de Iara, Patarra se refere ao jornalista:

“Alberto Dines, a inspiração e o conto sobre Iara ‘Um caso único de saúde à primeira vista’, no

livro Posso?128”.

Observa-se na narrativa do livro, de fato, uma tentativa de reconstrução da mentalidade

dos personagens envolvidos na trama, segundo sua ótica – não só de Iavelberg, mas dos

integrantes das organizações de oposição ao regime de modo geral, como o movimento

estudantil, a luta armada etc. Em suma, da “Geração de 1968”.

- Você veja esse filme tcheco. Acusa a burocracia corrupta que se apossa da direção

do partido e enterra o socialismo. Ventos purificadores sopram na Tchecoslováquia.

- A União Soviética um dia terá de aceitar o princípio da unidade da diversidade –

reforçaram os companheiros da POLOP, provocando os comunistas. – Os PCs não

podem mais subordinar-se aos interesses e estratégia russa.

- No fundo, vocês são trotsquistas envergonhados – recebiam de volta.

- De jeito nenhum. É só lembrar a tragédia na Hungria.

- Cada país é de um jeito – apaziguou Iara. – No Brasil o camponês não sabe se é gado

ou gente129.

Conforme evidenciado no trecho acima, para que isso fosse feito, a autora se fundamenta

nas referências culturais e políticas atribuídas a esses grupos e recria diálogos e linhas de

raciocínio, utilizando jargões e termos que, usualmente, são relacionados a eles.

As entrevistas coletadas pela jornalista são a base principal para a constituição da

narrativa da obra: as impressões pessoais com riqueza de detalhes de familiares, amigos e

colegas que conviveram com Iavelberg sustentam a personagem construída por Patarra. É

importante salientar, no entanto, que a pesquisa e os depoimentos foram feitos cerca de 10 anos

após a morte da biografada. As circunstâncias do falecimento também devem ser consideradas

como grandes influenciadoras dos testemunhos e na forma de reconstruir as lembranças sobre

a protagonista. A esse respeito, Michael Pollak aponta que:

É como se, numa história de vida individual (...) houvesse elementos irredutíveis, em

que o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a

ocorrência de mudanças. Em certo sentido, determinado número de elementos torna-

se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora outros

tantos acontecimentos e fatos possam se modificar em função dos interlocutores, ou

em função do movimento da fala130.

de S. Paulo (sucursal do Rio de Janeiro) e Exame. Foi professor universitário e fundador do site Observatório da

Imprensa. Faleceu em maio de 2018. 127 DINES, Alberto. Posso? Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. 128 PATARRA, 1992, op. cit. 129 Ibid., p. 142. 130 POLLAK, 1992, op. cit., p. 2

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A jornalista não problematiza essa “solidificação da memória” e toma como verdade as

informações testemunhadas. O livro foi escrito com total aval da família e pessoas próximas da

biografada, o que coloca a narrativa em consonância com o que é autorizado e estimulado que

se destaque. O único entrave para Patarra foi a recusa do ex-marido de Iara Iavelberg a

testemunhar, diminuindo o espaço dedicado à vida conjugal da biografada e seus detalhes –

mas não excluindo por completo, já que outros envolvidos falaram de suas impressões a respeito

do relacionamento.

[Iara e Dilma] Falavam de cinema.

- Iara tinha prazer de contar filmes enquanto caminhávamos peripatéticas. Preferia os

de suspense, quando se ignora quem é o criminoso. E os de amor. Sempre a riqueza

de detalhes e interpretação. Também gostava de cantar. Adorava Pra dizer Adeus, de

Edu Lobo e Torquato Neto. Pensava em Breno. Cantou trocentas vezes no meu

ouvido: “Adeus, vou pra não voltar/e aonde quer que eu vá/sei que vou

sozinho/.../(...)”.

Ao dormir, luzes apagadas, a conversa prosseguia e Iara acabou falando de Lamarca.

- Preciso me dar tempo, eu sei. Atravesso uma fase de definição. Lamarca faz

propostas, mexe comigo. Extremamente terno, cavalheiro, educado. Mas é o Breno

que me mobiliza. Gente, cada olho verde! O corpo atlético, perfeito, você reparou que

lindo fica depois de tomar sol? Pena que arisco. Difícil.

- Ele diz que não se liga a ninguém porque vai pra guerrilha rural. Não sei se é verdade,

nunca se prendeu. Acho que tem dificuldade de encarar uma relação.

Imaginava-o ainda líder universitário em Belo Horizonte, jogador de basquete,

prêmios de natação(...).131

A análise do trecho acima – e de muitos outros no texto biográfico – evidencia uma

problemática na narrativa: a tentativa da autora de preencher as lacunas deixadas pelos relatos

daqueles que conviveram com a biografada, partes da personalidade e/ou dos sentimentos de

Iara que, por ventura, não foram confidenciados a ninguém, sua subjetividade. Patarra se propõe

a mobilizar também esses aspectos mais íntimos e preenche tais lacunas com sua imaginação e

estimativa:

Insatisfeita, saiu do prédio e tocou o carro em direção à rua Augusta. O que devaneara?

Estacionou perto da confeitaria Yara. Fui excelente aluna no colégio, primário. Cenas

com Cecília, Ely. Concentrava-me, prazer nos estudos. O que aconteceu? Dona

Angelina, o paradigma. Eva a exigir perfeição. Competia para ganhar. Depois veio

Sá, sequidão. O científico, Honório. Onde perdi o pé? (...)132.

Em alguns momentos, como o exposto acima, por consequência do uso do relato em

primeira pessoa, confunde-se quem está falando: trata-se da biografada ou da biógrafa?

131 PATARRA, 1992, op. cit., p. 297. 132 Ibid., p. 156.

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Portanto, nota-se que o discurso adotado por Patarra é o indireto-livre, aquele que mescla as

modalidades de discurso direto e indireto, ou seja, as falas das personagens podem estar

incluídas como diálogos ou integralmente dentro do discurso do narrador:

Não há marcas que indiquem a separação da fala do narrador da fala da personagem,

como os verbos de elocução, os sinais de pontuação e as conjunções que aparecem

nos discursos direto e indireto. Assim, por vezes é difícil delimitar o início e o fim do

discurso da personagem, uma vez que o mesmo está inserido dentro do discurso do

narrador, confundindo-se com este133.

Os aspectos descritos dão ao livro um perfil de romance, de ficção – e, nesse sentido, a

intenção de Patarra de “reconstruir aquele pedaço da nossa História” foi levada às últimas

consequências: até mesmo os ângulos e momentos que não poderiam ser captados são descritos

com o uso de suposições da autora baseadas no perfil construído por ela da biografada e da

geração dos “anos rebeldes”.

Essa ficcionalização do real, de acordo com Sabrina Schneider, é característica de uma

modalidade de escrita literária chamada de romance-reportagem. Essa narrativa surgiu em

livros publicados por jornalistas durante os anos 1970 e esteve “geralmente focada em temas

que, na organização editorial dos grandes veículos de comunicação, caberiam ao noticiário

policial134”. A autora aponta que, apesar de terem sido bem recebidas pela crítica jornalística,

obras com esse estilo foram desaprovadas pela crítica literária. Tal gênero, no entanto,

continuou sendo usado como um recurso por repórteres que almejem publicar

narrativas de fôlego que desejam ultrapassar, em profundidade – e, de certa forma, em

grau de fidelidade ao real –, a notícia, produto do jornalismo informativo diário. Assim

como o romance-reportagem setentista, tais obras também são relatos coerentes, que

pretendem mostrar a “verdade” sobre algo; da mesma forma, focam em casos

singulares com a intenção de retratar determinados segmentos da sociedade ou

denunciar situações recorrentes na “realidade brasileira”135.

Segundo Schneider, bem como na tradição setentista, os jornalistas que publicam essas

obras procuram temas também relacionados a casos policiais e/ou episódios

traumáticos/violentos136. Entre as características dessa forma de narrativa estão o uso de

133 NORMA CULTA. Discurso indireto livre. Disponível em: <https://www.normaculta.com.br/discurso-indireto-

livre/>. Acesso em: 17 jun. 2018. 134 SCHNEIDER, S. Ditadura militar e literatura “parajornalística”: desconstruindo relações. Estudos de Literatura

Brasileira Contemporânea, 2014, p. 111. 135 Ibid., p. 117. 136 Idem.

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recursos para comover o leitor, descrições detalhadas e, por vezes, chocantes, “no intuito tanto

de reforçar a veracidade do relato quanto de tornar mais vívida a experiência do leitor137”. Estes

elementos estão presentes no livro analisado, como se verifica no trecho a seguir que trata da

despedida de Lamarca e Iavelberg, descrita com riqueza de detalhes que, por vezes, coloca o

leitor no centro da cena narrada – como testemunha ocular do vivido –, com experiências

sensoriais:

Despedem-se dos companheiros, afundam na quadratura das acomodações, perdi meu

pavor a baratas. Vaga o tempo no espaço humilde, privilégio sem par. Banheiro

comum a todos, o fio d’água a refresca-los, um é a visão do outro. Braços que

agasalham, vagarosos. Lágrimas. Lábios alimentam, umidade impregnada nos corpos.

Sobre a colcha áspera de tecido branco Iara pressente a gravidez, arcano das

profundezas. Lamarca beija a barriga, sente-o chorar, é um círculo arquetípico,

murmura, música organiza, insuperável sinfonia de vitalidade, finalmente o filho. A

vida recomeça. Compromisso.

(...)

O hotelzinho acordava. Abraçaram-se longamente, limpo o amor de impurezas. No

refeitório, o desjejum caipira: ovo estrelado, cuscuz de tapioca e queijo frito, mamão,

café, leite. Na Kombi subiram os quatro, feito moradores de Vitória da Conquista em

trânsito. Na rodoviária desceram Iara e Sérgio Furtado. Pegariam o ônibus para

Salvador, via Feira de Santana. Lamarca e José Carlos partiram de carro. Você fica

nas mãos de Barreto, boas mãos.

A separação, rápida e indiferente a fim de evitar reparos, deixou-a anestesiada. Corria

os olhos pela paisagem sem ver. Não se fixava em pensamento e mal conversou. Olha

eu lá, cantou Elis. (...)138.

Portanto, apesar do título do livro de Patarra considerá-lo uma reportagem biográfica,

é possível constatar que pode ser classificado como romance-reportagem: a jornalista escolheu

o caso singular de Iara Iavelberg para descrever características do que considera uma geração

inteira – a “Geração de 1968” – e a ferramenta do “romance” deu-lhe a liberdade de escolher

ângulos e formas de abordagem para trabalhar a temática da ditadura e dos movimentos de

oposição, mesmo que de maneira ficcionalizada. Beatriz Sarlo classifica essa forma de escrita

como um modelo realista-romântico, em que a verdade está no detalhe: “o detalhe reforça o

tom de verdade íntima do relato139”.

Patarra, nas entrevistas analisadas, expôs a intenção de, por meio de seu livro,

reconstruir determinado período histórico. Contudo, em nenhum momento falou sobre a pouca

objetividade de seu relato, seu aspecto de ficção. Schneider aponta esse ocultamento como

sintomático “da ideologia profissional dos jornalistas, que se organiza em torno da busca

137 Ibid., p. 119. 138 PATARRA, 1992, op. cit., p. 474-475. 139 SARLO, 2007, op. cit., p. 52.

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idealizada pela ‘verdade dos fatos’140”, o que estimula também cobranças por outros jornalistas.

Em reportagem para a Veja sobre o lançamento do livro, o jornalista Paulo Moreira Leite

postula: “faltam, também, referências às fontes que reconstituíram cenas descritas em detalhe,

como o primeiro beijo de Lamarca e Iara, que não teve testemunhas. São falhas da primeira

edição, que podem ser corrigidas nas seguintes141”.

Aponto, no entanto, que a ausência de fontes não se deve a um erro, que pode ser

corrigido, mas a uma escolha discursiva que faz uso da ficção como recurso, e esse aspecto não

pode ser negligenciado:

é preciso compreender que a prosa do romance-reportagem, apesar de “ilusionista”,

não pode ter sua ficcionalidade descartada; se o romance-reportagem é “mimético”,

isso ocorre na medida em que representa personagens em ação, configurando uma

intriga capaz de ser seguida pelo leitor, e não em função de “retratar” ou “espelhar”

uma realidade142.

De forma complementar, Rachel Soihet aponta que, apesar do descrédito das biografias

no pós-1920, quando as análises econômicas e estruturais ganharam mais destaque, a presença

desse gênero de escrita se manteve entre o público feminino “na forma de biografias

romanceadas ou de vidas edificantes de mulheres virtuosas que servissem de exemplo para

jovens143”. Nesse sentido, é importante observar que o livro de Patarra faz descrições

esmiuçadas, principalmente nas partes que retratam relacionamentos, aproximando-se muito da

chamada “literatura cor-de-rosa”, ou “literatura sentimental” – que tem como exemplos os

famosos Sabrina, Julia e Bianca. Essa modalidade é caracterizada por ter, em sua maioria,

mulheres como autoras e público alvo144, texto com cunho sentimental – apesar da presença da

erotização – e por ressaltar os dilemas internos das personagens145. Denise Sousa aponta que

esses três títulos foram lançados e muito vendidos nas décadas de 1970 e 1980 e que, nos anos

1990,

dando continuidade a esse perfil, surgem os chick lits, gênero de ficção feminino

caracterizado por romances que apresentam os conflitos da mulher contemporânea,

numa narrativa leve, divertida e recheada de glamour. Geralmente, as heroínas têm

140 Ibid., p. 128. 141 LEITE, Paulo Moreira. Tiros, paixões e batom. Revista Veja, 8 abr. 1992, p. 88. 142 SCHNEIDER, 2014, op. cit., p. 128. 143 SOIHET, 2003, op. cit., p. 35. 144 Estudiosos do tema apontam o uso de pseudônimos femininos quando se trata de autores homens. 145 SOUSA, Denise D. de C. O saber e o sabor da literatura cor-de-rosa: a leitura dos romances das séries Sabrina,

Julia e Bianca. Tese (Doutorado em Interinstitucional em Letras). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande

do Sul; Universidade Estadual da Bahia, Porto Alegre, 2014, p. 47.

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entre quinze e trinta e poucos anos e vivem cenas, como: o primeiro amor, amizade,

estilos de moda, hobbies, como colecionar filmes e escrever na agenda ou no diário146.

Tais características têm muito em comum com o que é apresentado por Patarra no livro,

uma vez que ela se propõe a descrever o modo de vida da Geração de 1968, discorrendo sobre

suas vidas nos mais diversos aspectos: relacionamentos amorosos e de amizade, referências

culturais e políticas etc. A escolha de Iara como centro da narrativa permite que ela mobilize

ainda mais esses assuntos, em razão de seu interesse por assuntos como moda, música e cinema

– a personagem criada por Patarra se aproxima cada vez mais das leitoras, humanizando-se e

destoando do estereótipo das guerrilheiras, que quase sempre são retratadas como

masculinizadas e desprovidas de vaidade, afastadas das futilidades ditas “burguesas”.

A paixão pelo cinema aumentou. Nada como Jaula Amorosa, colorido, o lindo Alain

Delon, Jane Fonda, direção de René Clement. Além do suspense, os aposentos

secretos de onde o fugitivo espionava sem ser visto, espelho one way, o inconsciente

a comandar do invisível, imagem infantil de Deus. Em matéria de simbolismo,

comentou, tudo a ver com Psicologia. Talvez consigo mesma, culpas ancestrais à

espera de expiação, medo de águas insondáveis, de ficar só.

- Sou uma pessoa gregária por excelência. Rachel bem diz, não posso viver sem gente.

Arena Conta Zumbi, texto de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, foi um

impacto. O sistema coringa pretendia impedir a identificação dos atores com

personagens. Vestidos de jeans e camisa-esporte, interpretavam múltiplos papéis.

Eram narradores da peça, críticos, “resfriadores” – Brecht naturalizado. E tome

História, heroísmo, reflexão. Fatos extraídos de jornais, discurso de Castelo Branco,

a música de Edu Lobo, a força da atriz Dina Sfat. Em Iara ressurgiu o impulso pelo

palco, adormecido desde a escola do Cambuci. Assistiu ao show Opinião mais de uma

vez. Inesquecíveis os textos de Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes. Nara,

doçura de bossa-nova, cantava contestação; a substituta Bethânia arrepiou no final, o

pé a golpear o tablado: carcará, pega, “matá” e come! Não perdeu o show Liberdade,

Liberdade de Flávio Rangel na Guanabara e viajou meio de amigos. Textos e

documentos de Brecht, Anne Frank, Churchill, Franco, hinos da Resistência, músicas

de Carnaval.

- O Brasil acorda – inflamaram-se147.

A partir da análise do trecho acima, fica claro o objetivo da autora de incluir diversas

referências culturais atribuídas ao período e à geração em que enquadra a biografada. Aqui

destaco que, embora trate de um período lembrado como “sensível”, Patarra busca formas de

suavizar a prosa biográfica, fazendo uso justamente das características que diferenciam Iara das

guerrilheiras “normais”, aproximando-a das mulheres escolhidas como público-alvo. A

vivência profissional da autora na revista Cláudia parece ter relação com a seleção de público

o qual ela deseja alcançar.

146 Ibid., p. 51. 147 PATARRA, 1992, op. cit., p. 105.

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Sousa, tratando ainda da literatura sentimental, aponta que há um projeto ideológico

muito marcado nessas narrativas: “a normalização amorosa ou sexual, constituindo o sujeito

feminino segundo o estado da legislação ou da moral patriarcais em vigor, com a ajuda de

informações sobre ética, moral, casamento, família, felicidade, etc.148”. A obra de Patarra é

ambígua neste aspecto, pois, apesar de ser produzida em um contexto de destaque do feminismo

e criar uma personagem “feminista”149, com muitos parceiros ao longo da vida, cria uma espécie

de redenção ao construir um “amor verdadeiro”: Iara, ao encontrar Lamarca, torna-se completa.

Em consonância com o apresentado por Sousa como característica da literatura sentimental,

tudo caminha para um final feliz, típico de conto de fadas150 – independentemente do desfecho

trágico, posto que, na narrativa de Patarra, o casal se reúne no momento da morte, através de

“delírios” de Iara, numa construção que remete ao romance clássico de Romeu e Julieta: “cada

um tem seu momento, aproximou-se do rosto de Lamarca. Seu homem. Ajeitou o revólver no

peito, varar o coração”151.

Isto posto, não se pode deixar de considerar um agente essencial na produção e consumo

do livro: o leitor. Através da ficcionalização do real e da romantização da narrativa, é garantida

a identificação de quem lê com a situação relatada. Segundo Schneider, o leitor emerge da

leitura “não como conhecedor de uma série de fatos e acontecimentos, mas como possuidor de

uma experiência humana152”. Neste momento, cabe a pergunta: qual é essa experiência? E

quais elementos do presente da escritora e do leitor ela a influenciam?

1.3 SENSUAL E DE VANGUARDA: IARA IAVELBERG SOB A ÓTICA DE PATARRA

Durante sua narrativa, Patarra constrói imagens para os personagens, cenários e

contextos político-sociais os quais pretende mobilizar. Essas imagens são permeadas por

influências do presente de sua pesquisa e escrita, além das memórias hegemônicas em voga

neste momento.

Iara Iavelberg, a personagem da obra escrita por Judith Patarra, é construída de maneira

linear e contínua. A autora dá grande ênfase a atributos de sua personalidade durante a infância

148 SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. 2. ed. São Paulo: Ática, 1988 apud SOUSA, op. cit., p.

52. 149 Detalho aqui que, segundo a acepção empregada por Patarra, feminista seria a mulher liberta sexualmente. Ao

longo da narrativa biográfica, a Iara de Patarra menciona apenas brevemente questões como divisão de trabalho,

relação das mulheres com as atividades da vida privada etc. Mas, é notório que sua principal preocupação é em

relação à vida amorosa e sexual. 150 SOUSA, 2002, op. cit., p. 52. 151 PATARRA, 1992, op. cit., p. 515. 152 Ibid., p. 129.

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e adolescência que explicarão escolhas feitas por ela na vida adulta – como a narrativa é

cronológica, o desenvolvimento dessas características fica mais evidente. O desfecho da

biografia é praticamente inevitável, pois começa a ser construído desde os primeiros momentos

de sua vida. Bourdieu classifica essa forma de narrar uma história de vida como “ilusão

biográfica”: “um trajeto, uma corrida, um cursus, uma passagem, uma viagem, um percurso

orientado, um deslocamento linear, unidirecional, que tem um começo, etapas e um fim, no

duplo sentido, de término e de finalidade, um fim da história153”. Ao mesmo tempo em que é

linear, o leitor observa, no decorrer da narrativa, o desenvolvimento e fortalecimento dessas

características.

Moisés lembra-se de Eva enfileirando os filhos depois da praia, no chuveiro do

banheirinho do quintal.

- Todos nus, um atrás do outro.

E de Iara a devanear ao caminharem na rua, desligada dos outros154.

Mal o ano começou Iara converteu-se em polo de atração, consciente do próprio

aporte155.

O trecho acima evidencia que, desde a infância, a Iara de Patarra é excepcional, diferente

de todos de sua família.

Um dia, por exemplo, Cecília Finger confidenciou-lhe:

- Minha mãe disse que japoneses sorriem na frente e nas costas enfiam uma faca.

Em casa ouvia coisas semelhantes, herança da Segunda Guerra. Verdade? No

parquinho, ela e o irmão brincavam com crianças negras, brancas e orientais. Só

guardava boas lembranças.

A observação racista da amiguinha entravou-se porque pertencia a japoneses a oficina

de automóveis pegada às lojas dos Finger e Iavelberg “de cima”. E quando, por uma

razão qualquer, Cecília atravessou o local cheio de trabalhadores japoneses, Iara não

resistiu ao impulso de humilhá-la:

- Corre aqui, venha! Corre aqui, ninguém vai te enfiar faca nenhuma156.

O relato enfatiza, sempre que possível, um senso de justiça presente entre as

preocupações da criança Iara – em busca, possivelmente, de uma relação com seu engajamento

político no futuro. A situação descrita de maneira tão detalhada, mesmo que se referindo a um

episódio ocorrido décadas antes, ratifica a ideia da memória influenciada pelo presente. A esse

respeito, Beatriz Sarlo aponta que tais detalhes, inseridos no modo realista-romântico de narrar,

153 BOURDIEU, 2006, op. cit., p. 183. 154 PATARRA, 1992, op. cit., p. 42. 155 Ibid., p. 44. 156 Ibid., p. 51.

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são necessários, pois têm a função de explicar as escolhas feitas pelo personagem biografado e

justificar a narrativa adotada pelo biógrafo:

Se a história tem um sentido estabelecido de antemão, os detalhes se acomodam nessa

direção, mesmo quando os próprios protagonistas custam a percebê-la. Os traços,

peculiaridades, defeitos menores e manias dos personagens do testemunho, acabam

se organizando em algum tipo de necessidade inscrita além deles157.

Contudo, talvez a característica mais marcante da biografada, segundo a ótica de Patarra,

seja sua sensualidade e alta libido, fatores primordiais para explicar a sua futura libertação

sexual – corroborados pelos testemunhos. Esse “atributo” é descrito pela primeira vez quando

Iara tinha apenas 11 anos, e prossegue por toda a narrativa:

No clima de menor expectativa [em 1955], Iara desabrochou. Professores e colegas

admiravam a excelente aluna, de ideias originais. Comunicativa, sensual, distinguia-

se também por ler muito, excepcionalmente bem formada para o nível da classe158.

O desejo de flertar vinha periodicamente, forte. De repente, não bastava fantasiar o

amor de algum rapaz, idealizado graças a um sorriso, gesto, palavra [em 1956]159.

A essa altura, Iara e Felícia tornaram-se íntimas.

- Eu tinha 14, estava no último ano. Ela, 12. Ignoro se fiquei impressionada ou me

incomodou pela força. Minha primeira lembrança, no ginásio, é um misto de

admiração e ressentimento. Tão competitiva! E certa pena porque se expunha demais,

entrega que desdenhava consequências, desprendimento chocante, erotismo fora dos

padrões da época, sobretudo no Ipiranga. Seria capaz de namorar rapaz gói, algo

impensável. Lembro de meninos dizendo: “A Iara é uma putinha.” Eu pensava: por

que desguarnecer assim? Claro, eu invejava a audácia que se contrapunha à minha

timidez.

David ainda não percebera a inquietação da filha adolescente, vistosa, corpo de

mulher, a ponto de freguesas a confundirem com a mãe na loja160.

Mais uma vez, nota-se que o testemunho é incorporado como verdade ao texto. Não há

uma reflexão sobre o que e como se lembra, e nem sobre qual a intenção dessas memórias. A

autora as utiliza para fundamentar os aspectos que, em sua perspectiva, são a base da

personalidade de Iara e que se justificam através de indícios de atitudes desde sempre em sua

vida. Seu desenvolvimento sexual precoce parece ser usado para explicar o casamento também

precoce – e malsucedido –, aos 16 anos.

Há anos, Iara observava Samuel [Haberkorn]. Adorava provocá-lo, ria-se ante o olhar

severo. Acompanhou a estranha cumplicidade entre ele e a namorada Ida, vivência à

157 SARLO, 2007, op. cit., p. 55. 158 PATARRA, 1992, op. cit., p. 54. 159 Ibid., p. 55. 160 Ibid., p. 55-56.

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qual ninguém tinha acesso, uma desnorteante exclusão. Atingir o jardim exclusivo

pareceu-lhe o sentido da vida. O cotidiano limitava-se a um grande prólogo; dias

intermináveis de obrigações, vez que outra a emoção de um jogo, prova, cinema, festa,

insuficientes para apaziguá-la. Insuportável esperar a iniciação, mistérios acobertados,

o próprio corpo semi-real. A música norte-americana na rádio Eldorado, à noite,

prometida. Some day he’ll come along¸corpo e alma confirmados. Pele, mucosas.

Quem sabe Samuel, o melhor partido do Ipiranga161.

Samuel [Haberkorn] não suportava ficar sozinho. Com 22 anos descobriu Iara, 13 e

meio. Corpo de adulta, aguda percepção dos outros. Admirava-o sem críticas.

Conhecia de sobra as neuroses do bairro, nenhuma cena a surpreenderia. Adolescente,

manipulável, menos ameaçadora162.

Lembro, neste ponto, que Judith Patarra não obteve o testemunho de Samuel, ex-marido

da biografada. No entanto, utilizando-se do recurso do romance-reportagem e através da

ficcionalização da realidade, narra também as impressões, sentimentos e situações do ponto de

vista dele. A hiperssexualização de Iara serve como justificativa para o casamento, ainda que

jovem163 e apesar da discrepância de idade, a responsabilidade e intencionalidade das famílias

nesta união são neutralizados – principalmente da família Iavelberg.

A família Haberkorn reagiu horrorizada ao namoro e possível casamento. Pior do que

Ida! Belicosos, infernizavam o convívio. Quanto aos Iavelberg, o caso agradava

sobretudo a David. Ansiava proteger a jovem dos próprios impulsos.

- Vi o rapaz crescer. Médico... A gente quer ver os filhos encaminhados.

Eva oscilava, contraditória. De um lado, torcia por ver Iara numa Faculdade –

exatamente aquilo que seus pais em vão lhe pediram. De outro, orgulhava-se da filha,

à frente de todas na corrida matrimonial.

- Tudo por causa da pressão do bairro, terrível – acusa Shirley. – Não me lembro de

um só pensamento em que me sentisse ajustada. Sofri muito, revoltada164.

Patarra relaciona o apoio dos Iavelberg ao casamento a um desejo de conter a

sexualidade da filha, numa atitude motivada pela preservação da moral e dos bons costumes,

sentimentos conservadores atribuídos à época. No entanto, esse argumento é usado para

endossar as inclinações de Iara para a libertação sexual, ratificando a ideia de que, para a

jornalista, Iara estava “à frente de seu tempo” a despeito de sua pouca idade. A concepção de

Iara enquanto uma mulher de vanguarda é uma constante em toda a biografia, usada como

argumento pela jornalista para descrever a proeminência da biografada – mas deve ser

problematizada, pois é uma construção da memória.

161 Ibid., p. 58-59. 162 Ibid., p. 62. 163 Já para os padrões dos anos 1990, e não dos anos 1960. 164 PATARRA, 1992, op. cit., p. 63, grifos meus.

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O comportamento de Iara, na praia, escandalizou a colônia migrante do Ipiranga.

Circulava de mãos dadas com uma amiga mais jovem, fazendo-se púbere. Não

ocultava a alegria de ser observada pelos rapazes. Certa vez, ao sair da balsa do

Guarujá, virou-se para a acompanhante e reagiu em tom de 1968 e não 1960 à oferta

de carona, gozando o alvoroço que provocava:

- Vamos aceitar? Sou de opinião que a gente deve experimentar de tudo na vida165.

Essa representação da biografada enquanto hiperssexualizada e, por vezes, promíscua

se torna contraditória com a narração de um fato profundamente explorado por Patarra: a

virgindade de Iara. Segundo os relatos coletados pela autora, o casal não consumou o

casamento.

Novembro terminava quando tomou o ônibus e desceu a serra, os pais em Santos. De

surpresa, expôs a situação, às vezes assertiva, outras a chorar. Continuava virgem.

- Foi uma tijolada na cabeça – confessa David. – Minha vida mudou completamente.

Apesar do clima de velório, não aconselharam a separação. Com interesses

profissionais e vida própria, Iara manteria a paz e o status de esposa de um cirurgião

que esperavam renomado. E quem sabe amadureceriam, superando as aflições. Iara

aceitou a proposta, confortável. Afinal, gostava de Samuel. E garantia a segurança

econômica, evitando a humilhação de voltar à rotina dos pais, estaca zero,

independência perdida166.

Embora apresente detalhadamente os casos extraconjugais mantidos por Iara, Patarra

reafirma a todo momento sua virgindade. Os relatos da biógrafa possuem riqueza de detalhes e

proporcionam experiências palpáveis, com a descrição de sensações, locais e odores:

Iara foi a Santo André uma última vez. Finalmente, resolver o desejo que os consumia.

Honório aguardava-a no ponto de ônibus e admirou-lhe as sapatilhas enfeitadas à

Brigitte Bardot. A irmã, dentista, emprestara-lhe as chaves da clínica no térreo de um

sobradinho fechado nos fins de semana. Abriram o portão embaraçados, cacos de

cerâmica onde fora o jardim, entrada em arco, o mundo a observá-los. Na saleta de

espera, o cheiro característico de eugenol. Riso nervoso, reconheceram o terreno –

consultório, quartinho de despejo. Beijaram-se de pé, longamente. Até aí, intimidade

já familiar, tudo fluiu bem. Mas quando ela sentiu as mãos do namorado a percorrer

suas costas sob a blusa, apavorou-se. Enrijeceu.

- Tenho muito medo de engravidar – murmurou embaraçada. E afastou-o167.

Os rapazes temiam o ritmo incontido, a carga emocional e a própria inexperiência.

Também os assustava o marido, crimes de honra. A ambivalência dos flertes ampliava

em Iara a expectativa e sentimento de rejeição. Na verdade, pouco mais conhecia do

que qualquer uma de suas amigas solteiras. Continuava virgem168.

165 Ibid., p. 66, grifos meus. 166 Ibid., p. 67. 167 Ibid., p. 75. 168 Ibid., p. 86-87.

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A respeito de um namoro, após o desquite, a partir do relato de Patarra fica subentendido

que a falta de sexo é um problema para a biografada – problema este causado pelos traumas do

casamento frustrado:

Hóspede, no Bixiga, da tia que trabalhava fora, viam-se ali regularmente.

Desenvolveram proximidade. Contudo, a indisposição de Iara ao contato físico

persistia. Além da profanação, perdia-se num inexplicável pavor do desconhecido,

sem referências. Antonio Eduardo, inteligente e sensível, intuiu no inesperado recato

de Iara – contraste com sua exuberância – o trauma que a aniquilava. Dependência da

individualidade inatingível do outro, encontro perverso marcado pela solidão antes de

dissolver-se ao abraço. Corpo vazio, dores, rejeição para além do tempo. Mas não

sabia o que fazer. E ela se atirava no turbilhão intranquilo da Maria Antônia,

impedindo-o de evoluir até estabelecerem uma espécie de jogo erótico psicológico em

busca de confiança, ternura e resposta sexual169.

Ao longo de grande parte do texto, a virgindade de Iara parece estar em disputa. A

autora, em diversos momentos, enfatiza que a biografada ainda não foi desvirginada, contudo,

dubiamente, descreve situações que se assemelham a atos sexuais, confundindo o leitor:

- Tive grande atração sexual por ele. Depois fiquei péssima. Sempre me sinto meio

mal. Com qualquer homem.

Sensação de sujeita, meu lado cego preso numa enxovia. Dá vontade de me enfiar

inteira no chuveiro, os cabelos, o corpo, os acontecimentos170.

Iara sofria por não engravidar. Precisava de um filho, de Antonio Eduardo ou qualquer

paixão. Imperioso descobrir o sentido da eternidade, ordenar o caos, reverter a

corrosiva dispersão. A esterilidade é castigo somatizado, na linha da asma ou do olfato

perdido que me roubou o sabor de tanta coisa, praga divina, descambava. Lembra

casulo seco de borboleta. Faltava-lhe a psicoterapia, abandonada, dizia, por causa da

militância171.

(...) O faz-de-conta da transformação e descoberta de si. Mensagens enganosas, o

cotidiano num baile à fantasia, erotismo. Virtudes físicas, sociais, uma lasca de

personalidade e história da outra.

- Adorei sua blusa – dizia [Iara]. – Empresta pra eu dar uma voltinha? Quanto mais

vestida, mais nua172.

A esterilidade de Iara é fato conhecido173. No entanto, essa descoberta teria sido feita

antes da perda de sua virgindade? Por que a autora faz tanta questão de especular sobre o

assunto?

169 Ibid., p. 118. 170 Ibid., p. 106. 171 Ibid., p. 118-119. 172 Ibid., p. 125. 173 No documentário “Em busca de Iara”, diversas pessoas, em seus depoimentos, tratam do assunto.

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Junto ao namorado [José Dirceu], o temor ao prazer desconhecido cedia, embora lhe

temesse a impaciência. Terno e vaidoso, queria ajudá-la a tornar-se mulher. A rigor,

foi seu primeiro homem174.

Apenas após seu desquite oficial é que Patarra, enfim, confirma a perda da virgindade –

apesar de deixar subentendido que Iara já tinha tido outras experiências –, e o escolhido parece

não ser obra do acaso, uma vez que este foi uma figura importante tanto para o movimento

estudantil dos anos 1960, quanto para o cenário político brasileiro dos anos 1990, momento de

publicação do livro: José Dirceu175.

A forte sexualização de Iara é apresentada de forma veemente quando Patarra aborda a

única prisão da biografada, em 1968. Nesta ocasião, Iavelberg ficou confinada por uma semana

em uma solitária no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), no bairro da Luz176.

Aparentemente sem relatos sobre o vivido por Iavelberg neste período – a menos que tenha

obtido testemunho do carcereiro, mas não há referência a isso no texto –, a autora narra com

detalhes a experiência:

Jornais para deitar-se e um buraco, a latrina. Lembra o congresso da UNE, amainou-

se. Primeira providência, um espaço interior meu. Ninguém entra, é minha casa da

força. A senha: o que vem dos baixos não me atinge. Segunda providência: romper o

isolamento, seduzir o carcereiro.

(...)

Logo Iara ficou amiga do carcereiro, que levava a Silvério bilhetinhos carinhosos:

“Saudade. Você está bem?”.

– É ruim ficar fechada porque tenho asma – choramingou ao homem. – Você arranja

um jornal para eu me abanar?

Atraído, diariamente levava-lhe um exemplar novo; substitui o antigo já amassado,

justificou ela ao pedi-lo, insinuante. Obteve que deixasse aberta a portinhola por onde

entregava a comida177.

Um pouco antes do desquite, Iara Iavelberg foi admitida na faculdade. A partir desse

momento, o discurso de Patarra destaca o envolvimento gradual da biografada com a militância,

assim, descrevendo a materialização de características presentes na narrativa desde a mais tenra

idade, como o incômodo com desigualdades sociais, senso de justiça aguçado etc. Isto é, apesar

de relatar uma mudança na personalidade de Iavelberg, esta não é uma ruptura propriamente

dita, uma vez que estas atitudes já eram previstas – é apenas um desabrochar.

174 PATARRA, 1992, op. cit., p. 143. 175 Nos anos 1990, época de lançamento do livro, foi eleito para mandatos de Deputado Federal por São Paulo,

pelo Partido dos Trabalhadores (PT). 176 Onde atualmente está localizado o Memorial da Resistência. 177 PATARRA, 1992, op. cit., p. 229.

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Iara obstinou-se em definir a justiça intrínseca de cada conceito. Seria incoerente

apregoar posicionamentos, maldizer colaboracionistas se não praticasse as convicções

no dia-a-dia. Vieram-lhe os versos do sábio Hillel repetidos há dois mil anos, memória

da escola do Cambuci: Se não eu, quem? Se não hoje, quando? Distanciava-se, porém,

do judaísmo dos pais, da família de Samuel, do Ipiranga. Queria sacudir a ignorância,

trilhar a rota dos justos178.

- Vamos nos engajar em algum grupo de oposição – propôs Iara a Maria Lucia. Urgia

canalizar a indignação.

Concordou. Abominavam a ditadura militar. Defendiam a Universidade livre, justiça

social, o fim da miséria, a derrota do capital estrangeiro e do imperialismo.

- Então somos comunistas – abismou-se Iara, mal liberta do ideário de Samuel. É

verdade que nas festas e mesas de botequim, socializar com marxistas diluíra a

estranheza. (...)179.

A partir deste ponto da narrativa, como se observa no trecho acima, torna-se inteligível

o motivo pelo qual havia um incômodo da parte dos que conviviam com Iara, os “normais”,

com suas atitudes ditas “extraordinárias”, segundo a ótica de Patarra. Concretiza-se a visão da

autora de que Iara era uma mulher “à frente de seu tempo” e que esses traços eram intrínsecos

à personagem, e que foram apenas estimulados pelo meio propício.

A jornalista confirma esse ponto de vista em uma entrevista, ao afirmar que:

Em particular, eles tinham um senso de justiça muito forte. Em 1964, quando houve

o golpe, muitos deles foram vítimas das primeiras violências, quando as faculdades

foram invadidas, alunos e professores foram presos. Essas arbitrariedades inocularam

um sentimento de indignação muito grande, quem tinha preocupação política não

podia fugir à participação. Ficar impassível era quase um crime de opinião180.

A “emancipação” de Iara do meio conservador em que estava inserida sua família e sua

antiga vida conjugal, iniciada com a vida acadêmica e consumada através do engajamento em

organizações revolucionárias – primeiro, de acordo com Patarra, um flerte com o Partido

Comunista Brasileiro (PCB) e, logo em seguida, o envolvimento concreto com a POLOP –,

permitiu maior desenvolvimento de outra libertação: a de sua sexualidade. A partir de então, a

personagem Iara se torna efetivamente uma ativista contra o machismo. Apesar de demorar a

usar o termo “feminista” propriamente dito, a jornalista incorpora essa característica cada vez

mais à personalidade de sua biografada.

Iara falou com uma colega das Ciências Sociais, “polopiana”. Queria informações. A

outra animou-se. Qualquer organização ganharia prestígio se incorporasse Iara,

atuante, moderna, liberada181.

178 Ibid., p. 93. 179 Ibid., p. 97. 180 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 10, grifos meus. 181 PATARRA, 1992, op. cit., p. 98.

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O clima de abertura sexual afrontava o estado repressor, que brandia a censura e

clichês moralistas como instrumentos de controle. Por isso, tudo era politizado.

- Defender o direito de uma criança chupar o dedo abre fendas no maciço autoritário.

Não defendo só a liberdade de dispor de mim. Ou o direito de mulheres à vida integral,

dentro das limitações que protegem o convívio social de todos. Através do

comportamento combato a ditadura e a paranoia da Segurança Nacional, que vê em

cada cidadão um inimigo potencial. Você não acredita, mas a última descoberta dos

milicos é que em todo copidesque existe um subversivo infiltrado. Louquinhos de

internar182 [disse Iara].

Esse traço da personalidade da biografada perdura por toda a obra e se mescla com sua

militância nas organizações revolucionárias.

O orgulho invadiu Iara. Postura ereta, brilho de ousadia nos olhos. A militância

feminina enfrenta a covardia do CCC, a direita policialesca. Como admirava a

coragem183!

À frente, microfone na mão, voz embargada, quase gerou tumulto:

- Quero pedir moção de censura ao companheiro Rubens. Ele não tem respeito pelas

companheiras. Há pouco, numa reunião da Psicologia, chamou-nos de vacas. É levar

as coisas a um nível muito baixo, um machismo revoltante e ultrapassado184.

Durante congresso da POLOP na Praia Grande, litoral de São Paulo, as militantes

mulheres, de acordo com Patarra, teriam ficado responsáveis pelas atividades domésticas –

“compras, cozinha e ‘fachada’ de estudantes em fim de semana prolongado”. Neste momento

da narrativa, Iavelberg manifesta seu incômodo:

- Absurdo o machismo desse pessoal – reclamou Iara na cozinha. – Os graduados

discutem, e a gente no serviço doméstico. Fico louca da vida. De vez em quando nos

concedem a honra de um palpite. Bem que eu digo, a gente só fica sabendo das coisas

na cama185.

Dilma concordava, grandes olhos castanhos umedecidos. Que ousadia a de Iara,

enfrentar a coerção e assumir a importância dos sentimentos.

- Você é uma feminista, a primeira que conheço186.

Dessa forma, na narrativa, Iara era exceção em sua família e exceção até mesmo dentro

da luta armada, o que reforça a hipótese de que a personagem tenha sido construída como uma

vanguardista, uma mulher à frente de seu tempo, aspecto que será melhor detalhado no próximo

tópico. Por esse motivo, sua atividade na militância per se é, por vezes, diminuída – os objetivos

182 Ibid., p. 105. 183 Ibid., p. 120. 184 Ibid., p. 176, grifos meus. 185 Ibid., p. 182. 186 Ibid., p. 296-297.

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genuínos da luta armada parecem pouco importantes quando comparados pela autora à suposta

agenda pessoal da biografada.

Pertencer à POLOP, longe de transformar Iara em militante integral, expandiu seus

contatos. Mantinha amigos de todas as tendências e conhecia os mais diversos projetos

e mexericos, o que causava mal-estar na organização187.

Iara, restrita ao setor intelectual, quis aprender a atirar. Exceto quanto à coragem, não

preenchia os requisitos: habilidade manual, dureza, agressividade188.

A depreciação do papel de Iara nas organizações é reproduzida pela imprensa após o

lançamento da biografia. O jornalista Paulo Moreira Leite intitulou de “Tiros, paixões e batom”

sua resenha do livro para a Veja, refletindo os principais aspectos envolvidos na vida de Iara.

A respeito dos “tiros”, no entanto, faz ressalvas, citando informações obtidas através da leitura:

Esteve com Lamarca no campo de treinamento de guerrilhas no Vale do Ribeira e

também aprendeu a atirar – mas a única vez que apertou o gatilho para valer foi para

disparar o revólver calibre 22 com o qual se matou. Vestiu a camisa de quatro

organizações – Polop, VAR-Palmares, VPR e MR-8 –, mas nunca ocupou um cargo

de dirigente. Não comandou uma única ação189.

Carlos Lamarca, mencionado por Leite em sua resenha, é personagem essencial da

biografia: o cunho romântico da obra atinge seu ápice a partir da introdução deste personagem.

Como tratado acima, o livro é dividido em unidades, a maioria delas intituladas por lugares e

fases cruciais na vida de Iara – o bairro onde cresceu, a faculdade, a clandestinidade. No entanto,

a unidade IV é denominada “Lamarca”, dada a importância que o capitão tem na construção da

narrativa e, por conseguinte, na vida da biografada, pela ótica da biógrafa. Interessante ressaltar

que os dois se conheceram em 1968 e seu relacionamento durou cerca de 3 anos, até a morte de

ambos, em 1971. O relato desses três anos ocupa precisamente a metade do livro, evidenciando

a centralidade dada pela autora ao capitão, embora o vivido pelo casal durante grande parte

desse tempo tenha tido poucas testemunhas em virtude da clandestinidade.

Lamarca é a figura histórica a quem Iara Iavelberg esteve sempre condicionada e

destinada, durante e posteriormente à ditadura: os documentos dos órgãos de repressão e a

imprensa se referiam a ela como “amante”, “amásia” e “companheira” de Lamarca190 etc.

187 Ibid., p. 102-103. 188 Ibid., p. 204. 189 LEITE, 1992, op. cit., p. 87. 190 Cf. INSUELA, 2011, op. cit., passim e NASCIMENTO, 2016, op. cit., passim.

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Mesmo após ambos serem assassinados, continuaram sendo profundamente vinculados. Na

entrevista à Veja, Patarra é perguntada sobre o porquê de ter escolhido Iara e não Lamarca que,

segundo a entrevistadora, “teve um papel político muito mais relevante”191, ao que a autora

responde que viu em Iara uma personagem muito mais interessante:

Ela era uma moça de família conservadora, que fez inúmeras descobertas e vivenciou

as mudanças de comportamento, a revolução sexual. A trajetória de Lamarca não se

prestava para abordar esses assuntos, além disso já haviam escrito um livro sobre ele.

(...) Ela não pegou em armas, mas teve uma influência decisiva sobre o próprio

Lamarca. No livro eu relato uma discussão sobre a decisão de não matar o embaixador

da Suíça, sequestrado pela organização. Ela defendeu a vida e convenceu o

companheiro com uma argumentação racional e não com uma chateação de

mulherzinha192.

Apesar de Iara ser “mais interessante” para Patarra, a narrativa ainda submete grande

parte das vivências da biografada à vida do guerrilheiro e dá ao relacionamento dos dois um

caráter de conto de fadas – consolidando a similaridade do relato com a literatura cor-de-rosa.

Em reportagem do Jornal do Commercio, o fascínio pelo casal é ressaltado: “o que mais a

sensibilizou [Patarra] foi o romance entre Iara e Lamarca. Com a ajuda de Herbert Daniel,

falecido recentemente e que foi próximo do casal, ela obteve preciosas informações sobre a

intimidade dos dois193”.

Antes de conhecê-lo, Iavelberg é sempre descrita com um vazio, o qual justifica sua

busca incessante por namorados e amantes.

- Meio clandestina, fico em desvantagem – explicou [Iara]. – A militância deixa as

coisas fugazes, tarefas impedem que a gente se autodetermine. Mas a vida afetiva é

espaço nosso e eu preservo, além da maioria dos militantes, a perspectiva de uma vida

feliz. É preocupação intencional. Quero valorizar o indivíduo e impedir que os eventos

o conduzam194.

(...) Iara preocupou-se com a ligação. Problemas afetivos aguçam-se na solidão dos

esconderijos. Falta à VPR assistência psicológica. Meu papel é ajudar

descompensados, guia-los na compreensão de si, resolver impasses. Sobretudo,

aceitar a própria afetividade195.

Ainda sem um primeiro encontro oficial, Patarra narra uma situação em que os dois

estavam no mesmo evento, prévia ao envolvimento de ambos na militância política.

191 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 8. 192 Idem. 193 MARGUTTI, Mário. Biografia de uma guerreira. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 30 abr. 1992, Última

Página, Capital Cultural, p. 60. 194 PATARRA, 1992, op. cit., p. 275. 195 Ibid., p. 289.

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Num fim de semana quente, prenúncio de primavera em agosto, Tom convidou os

amigos para um banho de piscina em Quintaúna. Foram de trem à cidadezinha

próxima. Afonso, à paisana, passeou-os pelo quartel e Iara riu: os soldados quase

interromperam o jogo de futebol à passagem das moças.

- Caímos n’água, brincamos. Depois fizemos uma rodinha de papo. O oficial-de-dia,

pistola 45 na cinta, extremamente formal, participou e apresentei-o à Iara. Era

Lamarca. O contato foi superficial196.

Apesar de o contato ter sido superficial, como relatado pela própria autora, ao se

conhecerem oficialmente197 anos depois, em 1968, Patarra descreve um suposto

reconhecimento mútuo, dando ao romance um caráter de predestinado, épico – contudo, não

cita fontes:

Iara demorou a reconhecer no homem alto e magro, expressão fechada, o militar que

evitava olhá-la quando esteve no quartel em 1962. Lamarca de imediato viu nela a

estudante, biquíni e corpo molhado à beira da piscina, grandes olhos e lábios carnudos.

Julgou ainda mais atraentes o dengue nos gestos, rosto amadurecido, gentileza no

rebater um, estimular outro198.

A erotização do relacionamento das personagens é posta desde seu primeiro contato,

conforme demonstra o trecho acima. A sexualidade aguçada de Iara, característica constante de

toda a obra, é usada como justificativa para o começo do relacionamento – segundo Patarra, ela

teria tomado a iniciativa. Ao fazer essas observações, a autora utiliza eventos da época para

compor o cenário:

O casamento de John Lennon e a pregação pacifista na cama de um hotel vienense

lembrou-a de que estava sem namorado. Queria um homem de verdade, chega de

meninos. Jocosa, o largo sorriso no rosto emagrecido, abordou Valdir, alçado à cabeça

da VPR ao lado de Barreto e Espinosa.

- Você não vai me apresentar o Lamarca? Pode escrever, estou interessada.

Balançou a cabeça, jovial – como é que seus contatos secretos com o capitão chegaram

a Iara? Quanto a ele, ignorava que os dois se conheciam199.

A narrativa é toda permeada por impressões subjetivas de cada um – impossíveis de

serem captadas posteriormente, já que ambos estavam mortos –, o que reforça o cunho

romanceado do relato. Lamarca passa a ter pensamentos e sentimentos transcritos, assim como

196 Ibid., p. 73. 197 Aqui, o uso da palavra “oficialmente” se justifica pois Patarra insere uma situação prévia em que os dois

estavam no mesmo local como uma data extraoficial em que foram apresentados. Contudo, não há relatos que

corroborem com esta teoria e não há indícios de que eles se lembravam um do outro quando se conheceram de

fato, no fim da década de 1960, por meio da militância. 198 Ibid., p. 261. 199 Ibid., p. 291.

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Iavelberg, ainda que baseados em suposições da autora. A mitificação que o envolve entre as

esquerdas brasileiras é transposta para o relato, através da criação de um fluxo de pensamento

do capitão:

A esquerda armada é força contra força. Cedo ou tarde chegará minha opção de vida,

a morte. Pensa bem se continuas comigo, teus irmãos escolheram a VAR, oportunismo

escudado em trabalho político – agrediu. Eu sou vanguarda. Morreram Marighella, o

Che e tantos soldados, letras de sangue no livro do internacionalismo proletário. Não

me vejo no Exterior à espera de cair a camarilha ou de uma anistia revoltante. Perdão

é pra mãe deles. Cada um assume seu papel de homem na História. Abro o caminho

da guerrilha no país onde a perfídia assassina patriotas, hoje a pequeno-burguesia

refestela-se em compras de Natal, adoram o bode-preto, não o Menino200.

A frequência da narração de fluxos de pensamentos aumenta muito após a entrada

efetiva de Lamarca na história. Provavelmente esse recurso tenha sido escolhido pela autora

para representar uma época em que ambas as personagens estão cada vez mais introspectivas e

que há poucas testemunhas do cotidiano vivido: a clandestinidade. Através de reconstruções

das reflexões do casal, Patarra reconstitui um romance permeado por preocupações políticas,

colocando o risco iminente de morte. A biografia passa a ter dois personagens principais.

A cautela de Lamarca em relação a [sic] Heleny e Ulisses desfez-se. Dormia até tarde,

almoçava e lia, a biblioteca à disposição. Ansiava preencher o que definia como

“lacunas teóricas”. Começou a esperar as vindas de Iara, agora nos fins de semana.

Enternecia-o a companheira livre, afetividade transbordante e mais determinada do

que nos círculos de estudo em Quintaúna. É a militância, a responsabilidade de

articular os grupos armados. Admirava-lhe a presença de espírito nos momentos de

aflição. A risada cheia de vida. Compadecia-o a esterilidade201.

Com poucos dias de convivência, o Lamarca de Patarra demonstra ter uma profunda

percepção de quem Iara é, de marcas de sua personalidade e tem até mesmo conhecimento de

aspectos muito particulares, como sua esterilidade – a qual terá grande importância no

relacionamento dos dois.

Ao relatar o primeiro contato íntimo entre o casal, a autora inclui detalhes que tornam a

narrativa mais realista, ressaltando romantismo e erotismo.

Houve um momento em que ele quis tomar café e Iara foi à cozinha pressentindo, e

de fato sentiu-o atrás de si, braços a segurá-la perdidos ambos em desejo, expressão

de susto quando a virou para si com delicadeza, submerso em ternura, e se beijaram

enlaçados, sede crescente, aquele homem cheio de energia a sorver o ar da rua, a

liberdade, o gozo do sexo, finalmente onde segurar-se no vazio sem raízes.

200 Ibid., p. 345. 201 Ibid., p. 294.

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- Desculpe – Lamarca desprendeu-se, procurando respostas que o tranquilizassem. –

Desculpe, companheira. Não sei o que aconteceu comigo. Uma fraqueza.

Na sala, a tomar café, instou-o a compreender a expansão e o recuo. Vergonha ao

pensar na mulher, nas crianças, confessou. Só se apaixonara duas vezes na vida e Iara,

maternal, curativa como anelava sua fantasia masculina, achegou-se no sofá, rostos

em fusão202.

Ao contrário do que possa parecer pelo caráter realista conferido pela grande inclusão

de detalhes na narrativa, a descrição é escancaradamente ficcionalizada e a autora parece abrir

mão de uma pretensa “veracidade”, em nome da construção de um romance com todos os

atributos que tenha direito para demonstrar sua natureza lendária e, consequentemente,

predestinada. Curioso notar que, embora narre a cena apenas do primeiro beijo entre o casal,

Patarra menciona o “gozo do sexo, finalmente”, transparecendo que a busca de Iara por prazer

havia finalmente terminado – sua sexualidade aguçada poderia encontrar lugar em apenas uma

pessoa, seu par ideal.

Enfraquecido, ele se entristecia a pensar na família. Loucura, amar Iara. Ela o

encorajava a abrir-se, aos poucos monossilábico, quase senhas. Opunha ângulos, o ser

humano vive muitas vidas, cada circunstância tem necessidades específicas,

correspondem ao momento histórico, nada vem do acaso. Somos materialistas.

Reprimia o medo de perde-lo, não fosse a culpa maior que o amor203.

Em busca da construção de um Lamarca humanizado, homem com sentimentos, de

maneira oposta ao terrorista cruel concebido pela ditadura204, Patarra descreve remorso pelo

desenvolvimento de um relacionamento extraconjugal e saudades da família, que estava

refugiada em Cuba. A personagem Iara igualmente se sente culpada, contrapondo-se à imagem

de amante insensível.

A relação dos dois, consequentemente, é descrita não como um caso qualquer. Apesar

do grande apelo sexual, Patarra constrói um amor verdadeiro, que escusa a traição e as

adversidades provocadas pela militância clandestina, pois, acima de tudo, tem a benção da

revolução brasileira – narrativa que tem muito em comum com a imagem do casal que se

consolidou entre a memória da esquerda.

- Não sei onde [Lamarca] está. Dói mas ele vive dentro de mim, eu dentro dele. Uma

certeza irracional de que voltaremos a nos ver, cada momento de saudade constrói a

revolução. Estamos ligados por um fio invisível, fusão à distância205.

202 Ibid., p. 294. 203 Ibid., p. 326. 204 Cf. NASCIMENTO, 2016, op. cit. 205 PATARRA, 1992, op. cit., p. 308.

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Os reacionários e a imprensa burguesa envenenam, o governo espalha a ideia de

esquerda orgíaca, exijo que você compreenda, o amor de hoje é impostergável, à

véspera da morte.

Reconciliaram-se.

O relacionamento entre dois mitos, só poderia ser mítico. O final de ambos, a morte,

consolida a opção heroica. A partir da intensificação do isolamento, em decorrência da

clandestinidade, Patarra atribui à Iara falas sobre suicídio, a fim de construir o desfecho e

manter a linearidade da personagem.

Para cúmulo, alguns resistiam ao ingresso do casal na organização. Impossível

absorver os dois. E já conheciam a direção, um risco.

– Amigos, é minha a última bala do meu revólver – garantia [Lamarca]. – Ninguém

me pega vivo. Se a repressão descobrir este aparelho, abro os bicos de gás e acendo o

isqueiro.

– Ei! Não quero morrer explodida, você nunca me falou desse plano. Meu negócio é

tiro – insurgiu-se Iara, brincalhona, tom de Décio Bar206.

Theodomiro fará exames de laboratório e radiológicos, quanto o estraçalharam na

tortura? Mil vezes a morte. Medo de morrer. É só respirar fundo e dou no gatilho,

fecho os olhos e pronto, feito uma injeção207.

Vem a hora do jantar, sempre um lanche com pão fresquinho, queijo. Trocam

amenidades na cozinha, presença escura do oceano. Acomodou-se no colchão.

Benedita e a filha na sala, Jaileno e Nilda nos fundos. Ao lado, Lúcia Bernardete e

Cantídio, que some de madrugada dividido em dois208. Fechou os olhos, a segurança

manda cair fora. Pode não ser. Se for, não me pegam viva. Meu último prazer209.

Iara foi morta com um tiro no coração. Durante muitos anos vigorou a hipótese do

suicídio, imposta pelos médicos-legistas ligados à ditadura. Patarra acata essa versão em sua

narrativa – mesmo sem a existência de um laudo que confirmasse a causa da morte, visto que

este desapareceu –, reconstituindo esse momento de maneira poética, ao transcrever os

pensamentos da biografada em seus últimos momentos – embora tenham sido vividos sem

testemunhas:

Havia duas possibilidades. A primeira, escapar. De que maneira, depende das

circunstâncias. Os donos da casa, por exemplo, podem ajudá-la a sair à noite, no solo

do carro. Tantos já escaparam assim, nas barbas da polícia (...).

A segunda alternativa é morrer, melhor não pensar. O revolucionário é um otimista.

Cadeia, nunca. E nada de tomar resoluções lógicas, irrefutáveis, e na hora fazer o

206 Ibid., p. 460. 207 Ibid., p. 482. 208 O último aparelho em que Iara morou foi no bairro da Pituba, em Salvador. Moravam outros militantes do MR-

8, Nilda e Jaileno, um jovem casal baiano, e a irmã de Nilda, Lúcia Bernardete (não-militante) e seu filho. Cantídio,

amante de Lúcia e pai da criança, era o dono do apartamento e não passava todas as noites lá, uma vez que tinha

uma outra família. Benedita era a babá do bebê. 209 PATARRA, 1992, op. cit., p. 506.

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contrário. A morte ilumina a vida, coroa o sacrifício. Lega às gerações a dignidade da

escolha. Morrer, morre-se de duas formas. Levo alguém junto, o clássico abrir

caminho à bala; as metralhadoras inimigas reduzem o sofrimento. Ou a bala certa no

coração, aulas de tiro, Espinosa a ensinar. A morte foca também a mente, a beleza.

Nunca um tiro na cabeça210.

Em nenhum momento a versão de suicídio é questionada na biografia. Ao contrário, a

autora mobiliza meios para ratificar esse discurso, apresentando como ideia da própria Iara a

opção pela morte e, sobretudo, a opção por um tiro no coração – essa escolha é justificada com

a vaidade de Iara, tornando o pensamento previsível e verossímil, devido à construção da

personalidade da biografada durante toda a obra: “a morte foca também a mente, a beleza.

Nunca um tiro na cabeça”. Neste momento, pela primeira vez em todo o livro, há o testemunho

de um coronel, Luiz Arthur de Carvalho211, comandante da ação:

– Era muito alva, bonita, uma beleza judaica – recorda o coronel. – Não sabíamos

quem era. Mandamos telex ao Rio e responderam: provavelmente Iara. Escondemos

da imprensa porque talvez nos ajudasse a localizar Lamarca212.

O livro apresenta outro relato, o de Paulo Rezende, “funcionário de supermercado213” –

citado também na biografia de Lamarca214 – e morador do prédio. Segundo o livro de Patarra,

Paulo afirmou:

Enviaram a mensagem por rádio e o aparato retornou, inclusive o coronel Luiz Arthur.

Jogaram tantas bombas de gás que a fumaceira aparentava um incêndio. Na rua,

usávamos lenço para respirar. Lembro de alguns federais a dizer “a moça cometeu

suicídio”. Na época eu tinha dois colegas metidos em política. À noite contei o

sucedido e eles pediram que eu verificasse marca de balas. Fui olhar no outro dia.

Nenhum tiro. Exceto ela, ninguém atirou ali dentro215.

Paulo, em sua exposição, faz questão de reafirmar a quantidade de tiros disparados e

atestar que ele próprio conferiu-os – ressaltando sua ligação com “pessoas metidas com

política”. Já na década de 1990, a família Iavelberg estava em uma batalha pela exumação do

corpo de Iara, na tentativa de obter provas a respeito de um possível assassinato, e não suicídio

210 Ibid., p. 513-514. 211 Coronel que foi Secretário de Segurança Pública da Bahia e agente da repressão durante a ditadura. Fonte:

MAIA, Luiza. A Bahia não pode continuar homenageando torturadores. Bahia Notícias, 26 mar. 2013. Disponível

em: <https://www.bahianoticias.com.br/artigo/529-a-bahia-nao-pode-continuar-homenageando-

torturadores.html>. Acesso em: 28 jun. 2018. 212 PATARRA, 1992, op. cit., p. 515. 213 Ibid., p. 510. 214 JOSÉ, Emiliano; MIRANDA, Oldack de. Lamarca: o capitão da guerrilha. 18ª edição. Rio de Janeiro: Global,

2015. 215 PATARRA, 1992, op. cit., p. 510.

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– o que torna a narrativa de Patarra contraditória, uma vez que a autora usa a versão dos

familiares como base para a construção de todo o livro. Assim, apesar de toda a crítica e de se

propor a tratar profundamente das organizações revolucionárias contra a ditadura, fica claro

que a autora não faz um questionamento considerável sobre a maior controvérsia envolvendo

Iara: sua morte. Caso houvesse esse questionamento, a crítica ao regime ditatorial seria mais

profunda.

Anos depois do lançamento do livro, quando a família Iavelberg finalmente obteve

autorização para exumação do corpo, em 2003, Patarra foi procurada pelo Jornal do Brasil para

falar sobre a versão veiculada no livro:

Judith ouviu a versão oficial do próprio coronel Luis Arthur [sic] mas acredita que

possa ter sido forjada. “Hoje dizem que o tal garoto que viu Iara e a arma era afilhado

do coronel”. Está convencida de que roubaram a história de Iara, e a do país, e está

disposta a reescrever o livro depois da saída do laudo. “Naquela época ninguém falava

a verdade”216.

O laudo saiu dois anos mais tarde, em 2005, e o professor e perito da Universidade de

São Paulo Daniel Romero Muñoz descartou a possibilidade de suicídio, tendo como base o

rascunho do laudo original e fotos do cadáver de Iara217, afirmando que é mais provável que ela

tenha sido morta por um tiro disparado a longa distância. O livro de Patarra, no entanto, não foi

reescrito mesmo após essa mudança fundamental.

O ponto de vista do suicídio reforça na narrativa o caráter de heroísmo e não põe em

xeque o modo conciliatório com que a sociedade brasileira pós-redemocratização lida com a

memória sobre o período ditatorial. De acordo com declaração dada ao Jornal do Commercio

na época do lançamento da primeira edição do livro, Patarra acreditava que “Iara foi uma

mulher forte, que fez tudo o que queria e morreu com dignidade, elegância e muita fé218”. Não

há espaço para revanchismos, mentalidade típica da memória dominante, forjada ainda na

década de 1970 e que será discutida no próximo capítulo.

216 COURI, Norma. Iara, símbolo dos anos de chumbo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 out. 2003, País, p. A8. 217 CORSALETTE, Conrado. Suicídio de mulher de Lamarca é improvável, diz laudo. Folha de São Paulo, São

Paulo, 27 jun. 2005, Brasil, p. A9. 218 MARGUTTI, 1992, op. cit., p. 60.

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CAPÍTULO 2 – O MITO DA SOCIEDADE VÍTIMA E RESISTENTE: DÉCADAS DE

1980 E 1990 E A(S) MEMÓRIA(S) DE REJEIÇÃO À DITADURA

“Durante os anos rebeldes, as pessoas tinham esperança,

eram solidárias, acreditavam em mudanças e os

interesses individuais eram absolutamente secundários”.

Judith Patarra, em entrevista à Veja219

Em entrevista à Veja e na narrativa de Iara, Judith Patarra se referiu à militância durante

a ditadura como anos rebeldes. Além disso, caracterizou os militantes como pessoas

esperançosas e solidárias, imbuídas de um senso de justiça social, como fica evidente na citação

acima – a ofensividade revolucionária é deixada de lado.

O historiador Marcos Napolitano, em seu texto Recordar é vencer: as dinâmicas e

vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro220, propõe um estudo

da construção da memória social sobre o período ditatorial, por meio de fases da memória. Uma

das fases apresentadas é chamada pelo historiador de “A construção da memória crítica” à

ditadura e teria ocorrido entre 1974 e 1994, tempo de produção e publicação do livro aqui

analisado. Localizá-lo em um ciclo de memória auxilia a responder questões sobre as demandas

de produção – tanto editoriais, quanto do público leitor – e sobre o discurso vinculado a respeito

da ditadura, possibilitando a análise de temas sobre o presente de elaboração do livro que

influenciam sua narrativa sobre o passado.

O marco inicial do ciclo é colocado pelo autor em 1974, com a ditadura ainda em

vigência – ano da derrota eleitoral do partido do governo, Aliança Renovadora Nacional

(ARENA). Segundo Daniel Aarão Reis, “era difícil escapar da conclusão que se impunha: a

ditadura sofrera sua primeira grande derrota político-eleitoral desde o golpe de 1964”221.

Fatores como a crise econômica e a corrupção foram fundamentais para uma mudança na

percepção sobre o governo ditatorial e, consequentemente, sua primeira perda222.

A proposta de Napolitano é que, neste período, constituiu-se uma memória de oposição

à ditadura, levada a cabo principalmente pela classe média intelectualizada. Segundo ele, a

partir principalmente do início do processo de transição, foi-se consolidando uma memória que

pretendia desassociar a sociedade do regime, “da ditadura como ‘lacuna histórica’, como

219 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 8. 220 NAPOLITANO, 2015, op. cit., passim. 221 REIS, 2014, op. cit., p. 108. 222 NAPOLITANO, 2015, op. cit., p. 22.

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‘usurpação’ do Estado pelo autoritarismo e como era de violência política a ser superada”223,

os chamados “anos de chumbo”. Além disso, de acordo com o historiador, a sociedade passou

a se considerar vítima do regime e se apresentar como sempre resistente a ele, “fixando

‘resistência’ e ‘democracia’ como noções que combinavam senso crítico em relação ao

autoritarismo do regime e pragmatismo realista em relação à ordem democrática que emergiu

das suas cinzas”224. Na perspectiva de Napolitano, essa memória se tornou hegemônica nesse

período e perdurou como dominante até, ao menos, 2013. Contudo, é necessário destacar que

esses discursos, apesar de hegemônicos, não são unos, homogêneos: “não estamos diante de

uma memória hegemônica construída unicamente pelos vencidos, mas de uma memória cheia

de armadilhas que selecionou elementos e identidades políticas entre estes vencidos, colocando

em um segundo plano, por exemplo, o projeto da esquerda armada”225.

Dessa forma, neste tópico, trabalharei as diferentes narrativas de memória e atores que

se propuseram a lembrar da ditadura nesse período, evidenciando os elementos constitutivos

dessa memória que, apesar de hegemônica, é plural e, de certa forma, mutável. Pretende-se,

assim, complexificar as reflexões de Napolitano, vinculando cada forma de recordar a seu

presente específico.

Embora coloque 1974 como data inicial da memória crítica, foi o ano de 1979, de acordo

com a historiografia, o decisivo para a consolidação de um discurso opositor ao regime

ditatorial. Essa “oposição”, contudo, é permeada por ambiguidades, uma vez que as discussões

em torno da aprovação da Lei de Anistia, neste mesmo ano, possuíam um caráter de

conciliação. Segundo Daniel Aarão Reis, foram estabelecidos alguns silêncios em nome da

plena reinstauração da democracia, a respeito principalmente da tortura como política de

Estado, do apoio da sociedade à ditadura e sobre o aspecto revolucionário da luta das esquerdas

armadas226.

Esse pacto permitiu as primeiras reconstruções da memória, a princípio com muitos

pontos em comum com o “mito da sociedade vítima”, proposto pelo historiador Bruno Groppo,

ao tratar de como se rememora o papel civil durante regimes autoritários recém-encerrados:

Ele [o mito] consiste em apresentar a sociedade como um todo exclusivamente como

uma vítima impotente de eventos e de forças sobre os quais ela não tem nenhuma

223 NAPOLITANO, 2015, op. cit., p. 23. 224 Ibid., p. 24. 225 Ibid., p. 19. 226 REIS, Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 45, 2010,

p. 173. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2914/1835 >. Acesso em: 14

fev. 2019.

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responsabilidade. Em vez de se questionar sobre a parte de responsabilidade dos

diferentes segmentos e setores da sociedade, constrói uma memória coletiva muito

simplificada, mais ou menos distante da realidade histórica, e que termina por essa via

por transmitir uma imagem deformada do passado227.

Ao esquecer do papel de setores da sociedade civil para o regime, do consenso e apoio

de alguns, caracterizou-se a ditadura como “anos de chumbo”, opressores para todos os

cidadãos brasileiros. Aqueles que se beneficiaram com os anos de ouro foram esquecidos,

privilegiando-se a memória dos anos de chumbo e da opressão da ditadura sobre todos. Na

perspectiva de Denise Rollemberg, a memória também trata as violações de direitos humanos

como ações clandestinas, feitas nos porões: “a consagração da metáfora porão que torna

invisível – leia-se, ignorado – o inadmissível, uma vez que nos subterrâneos”228.

A respeito da anistia e do discurso de memória desenvolvido e difundido a partir de

então, Caroline Bauer aponta que:

forjou-se durante esse processo a denominada “ideologia da reconciliação”, baseada

na premissa da equiparação da violência do Estado e das organizações de esquerda

armada – o que permitia responsabilizar a todos pela violência do período e, assim,

incentivar o esquecimento recíproco, através da desmemória e do silêncio229.

Tal silêncio viabilizou a criação de uma versão brasileira da “teoria dos dois

demônios230”: a sociedade seria vítima de dois algozes – a violência política do Estado e das

organizações revolucionárias. Essa memória foi criada e influenciou na forma de lembrar a

ditadura durante, principalmente, a década de 1980. O popular filme Pra frente Brasil231, de

227 GROPPO, Bruno. O mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditatoriais em face de seu passado na

Europa e na América Latina. IN: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. História e memória das

ditaduras no século XX. Vol. 1. Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 42. 228 ROLLEMBERG, 2010, op. cit., p. 2. 229 BAUER, Caroline. Conciliação e revanchismo ao término da ditadura civil-militar brasileira: a perpetuação do

medo através do perigo da “argentinização” da transição política. Diálogos, Maringá, v. 18, n. 1, jan./abr. 2014, p.

124. Disponível em:

<https://www.researchgate.net/profile/Caroline_Bauer2/publication/265729048_Conciliacao_e_revanchismo_ao

_termino_da_ditadura_civil-

militar_brasileira_a_perpetuacao_do_medo_atraves_do_perigo_da_argentinizacao_da_transicao_politica/links/5

41c444b0cf241a65a0bf74b/Conciliacao-e-revanchismo-ao-termino-da-ditadura-civil-militar-brasileira-a-

perpetuacao-do-medo-atraves-do-perigo-da-argentinizacao-da-transicao-politica.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2019. 230 Segundo Lvovich e Bisquert, “releitura do passando recente desenvolvida pelo Estado [argentino] (...) que

configurará a imagem de uma sociedade vítima e inocente presa entre a violência política de extrema direita e

extrema esquerda”. Cf. LVOVICH & BISQUERT, 2008, op. cit., p. 13. 231 PRA frente Brasil. Direção: Roberto Farias. Roteirista: Roberto Farias. Rio de Janeiro: Produções

Cinematográficas R. F. Farias Ltda.; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A., 1982. Disponível em

plataforma digital (106 min), son., colorido.

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Roberto Farias232, lançado em 1982, pode ser entendido como uma síntese desse discurso. O

filme tratou da repressão perpetrada pela ditadura, especificamente na realização da Copa do

Mundo de Futebol de 1970. Contudo, os dois lados considerados extremos por Farias – os

torturadores e os guerrilheiros – têm finais trágicos, com a morte, o que representa que, na ótica

do diretor, ambos os “demônios” mereciam “punição”.

Apesar da demonização inicial dos dois lados, mesmo no filme há uma tendência à

positivação maior das esquerdas, das vítimas, em oposição a uma representação dos agentes da

repressão como vilões. De acordo com o historiador Wallace Guedes,

por mais que ambos os extremos – à esquerda e à direita – sejam punidos com a morte

ao final, o primeiro recebe um tratamento consideravelmente mais positivado que o

segundo, conforme discutido anteriormente; enquanto a extrema-direita é composta

por vilões caricaturais, os guerrilheiros de esquerda são jovens vazios, mas movidos

por boas intenções233.

Essa “positivação”, embora ainda tímida, já era um prelúdio de outro mito fundamental

presente nos discursos de memória sobre a ditadura: o da sociedade resistente. Esse mito, mais

uma vez, permite ignorar a colaboração e o consenso de setores civis com o regime,

desassociando-os completamente. Ele foi incorporado de maneira mais concreta na memória

sobre a ditadura a partir da valorização das trajetórias das vítimas, na segunda metade dos anos

1980, principalmente com o lançamento do Brasil: Nunca Mais (BNM). O BNM, que resultou

na publicação de livro de mesmo título em 1985234, elaborado pela Comissão de Justiça e Paz

da Arquidiocese de São Paulo, representou um marco na constituição da memória sobre a

ditadura, com caráter de denúncia. A partir da cópia clandestina de processos do Supremo

Tribunal Militar, o grupo responsável pôde produzir um relatório sobre as violações de direitos

humanos empreendidas durante os anos ditatoriais235.

Segundo Reis, é inegável a contribuição da obra para a inauguração de uma outra forma

de lembrar a ditadura: as referências fixadas pelo Brasil: Nunca Mais “se tornaram uma espécie

de lugar-comum. Habitam discursos políticos, livros didáticos, filmes e materiais diversos de

análise e divulgação. Podem ser sintetizadas numa tese: a sociedade brasileira viveu a ditadura

232 Diretor de cinema e de televisão, nascido no estado do Rio de Janeiro em 1932. Faleceu em 2018. Fonte:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_Farias>. Acesso em: 8 mar. 2019. 233 GUEDES, Wallace Andrioli. Política como produto: “Pra frente Brasil” e o cinema de Roberto Farias. Tese

(Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016, p. 107. Disponível em:

<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1798.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2019. 234 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985. 235 BRASIL: Nunca Mais. Disponível em: <http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/>. Acesso em: 28 jun. 2018.

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como um pesadelo que é preciso exorcizar236”. A teoria dos dois demônios perdeu a força,

substituída pelo mito da sociedade resistente, muito embora com estreitas relações com o mito

da sociedade vítima.

Bruno Groppo afirma que a memória de uma sociedade sempre resistente à ditadura se

apropria de episódios de resistência, mesmo que sejam de uma minoria, e apresenta-os como se

tivessem sido comportamentos da sociedade inteira. Tais episódios, de acordo com o

historiador, “são então retrospectivamente amplificados por narrativas de caráter épico-

patriótico237”.

No caso específico da ditadura civil-militar brasileira, o mito da sociedade resistente238

não só esquece o apoio e o consenso de alguns setores ao regime, como ressignifica as pautas

das organizações revolucionárias, apagando seus objetivos e transformando-os em luta

exclusivamente de resistência. De acordo com Daniel Aarão Reis,

assim, a luta revolucionária contra a ditadura seria reinterpretada como uma forma de

resistência ao absoluto fechamento do regime, uma tentativa imposta pela ausência de

brechas institucionais que viabilizassem, de algum modo, as lutas democráticas (...).

Os que haviam se levantado com armas nas mãos, bravos jovens, generosos, mas

equivocados, teriam sido apenas, inconscientemente, uma espécie de “braço armado”

da resistência democrática239.

Nos anos 1990, essa memória é ainda mais ressignificada e “adocicada”. Nesse

momento, houve o impacto forte do lançamento de (auto)biografias e livros sobre a juventude

dos anos 1960 – como, por exemplo, a obra O ano que não terminou, de Zuenir Ventura, lançada

em fins dos anos 1980, mas com grande impacto na década seguinte; a exibição da minissérie

Anos Rebeldes, na Rede Globo; o próprio lançamento de Iara, por Judith Patarra e o lançamento

do filme O que é isso, companheiro, adaptação do livro de Fernando Gabeira. A perspectiva

conciliadora da memória continua, mas intensificada, e com o olhar muito direcionado às

organizações de luta armada: estas são caracterizadas como integradas por jovens de uma

geração combativa, mas inocente, rebelde – e não revolucionária.

Embora a memória sobre a ditadura tenha mudado de acordo com seu presente nos

períodos apresentados (1974-1994), elementos em comum permaneceram sendo vinculados a

236 REIS, 2014, op. cit., p. 13. 237 GROPPO, 2015, op. cit., p. 43. 238 Esse conceito também foi usado por Denise Rollemberg. Cf. ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da

memória: a Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). IN: ROLLEMBERG, Denise;

QUADRAT, Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e

consentimento no século XX. Vol. 2: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 239 REIS, 2014, op. cit., p. 9.

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todos os discursos: os mitos da sociedade vítima e resistente, o caráter conciliador, o

apagamento do sentido revolucionário e o esquecimento do apoio/consenso de setores. Esses

aspectos, portanto, no meu entendimento, constituem a memória hegemônica nesses momentos.

Ressalto, dessa forma, que esses discursos não são de todo homogêneos ou únicos, como dá a

entender Marcos Napolitano, mas sim sofreram transmutações para atender as demandas

específicas de seus respectivos presentes.

Além disso, não podemos esquecer que, apesar de dominantes, essas narrativas

memoriais não eram as únicas. Embora sendo emitidas apenas por grupos minoritários, que não

encontravam tanto respaldo na sociedade, as vozes favoráveis à ditadura sempre existiram240.

A batalha pela memória – ou por sua hegemonia – sempre foi uma realidade; ainda que as

memórias simpatizantes permanecessem subterrâneas, sempre estiveram lá.

2.1 REBELDIA E INOCÊNCIA: DITADURA E ESQUERDAS NA BIOGRAFIA DE IARA

IAVELBERG

Como a intenção da biografia de Iara Iavelberg, segundo a autora Judith Patarra, era

reconstituir uma época – os “anos rebeldes” –, a obra tem um caráter totalizante, ou seja, a

jornalista procura, de maneira às vezes pouco acessível ao leitor, abranger todos os assuntos e

pautas que ela julga tocantes à época. A quantidade de testemunhos, fontes e livros por ela

consultados permite a constituição de um cenário de fato muito plural, com a vinculação de

informações sobre os mais diversos aspectos públicos, tanto relacionados à política nacional,

quanto internacional. Por esse motivo, apesar de o objeto principal da biografia ainda ser a vida

de Iara, temáticas como o golpe de 1964, a constituição do governo ditatorial e das organizações

revolucionárias, políticas empregadas e sua recepção são descritas com detalhes, em certos

momentos com informações descobertas e/ou formuladas posteriormente. Por esse motivo, a

narrativa empregada por Judith Patarra no livro sobre Iara dialoga muito com o discurso da

memória hegemônica, e produz, por sua vez, novas memórias.

Ao relatar o golpe de 1964, a despeito de um discurso muito detalhado sobre fatos

políticos em outros pontos do livro, não há menção clara aos movimentos da direita civil a favor

do golpe, como as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, por exemplo. Em um trecho

240 Cf. MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes

e militares. Varia Historia, Belo Horizonte, n. 28, dez. 2002. Disponível em:

<https://www.academia.edu/2022291/A_guerra_da_mem%C3%B3ria_a_ditadura_militar_nos_depoimentos_de

_militantes_e_militares>. Acesso em: 8 mar. 2019.

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que contém uma série de informações pouco específicas, tal movimentação é mencionada

indiretamente, assim como o apoio de outros setores liberais, de certa forma ofuscados por uma

narrativa com grande fluxo de valores peculiares da época241:

Os milicos golpistas brasileiros, fobia a mudanças, são paus-mandados. A Escola

Superior de Guerra é o órgão brasileiro da CIA. Essa fomentadora de tiranos, com

auxílio dos asseclas latifundiários e a alta burguesia, financiou a escória sevandija,

marchadeiras, o IPES e o IBAD, falsas entidades de pesquisa devotadas ao descrédito,

desestabilização, espionagem e boatos242.

Após esse excerto, não há mais nenhuma alusão a tais questões. Contudo, cabe uma

reflexão sobre se, mesmo as informações que foram de fato narradas, estão acessíveis para a

compreensão do leitor. Isso pois são usados termos muito específicos, com os quais o público

não está necessariamente familiarizado, uma vez que o leitor alvo não integra a comunidade

acadêmica especializada no tema.

Se a autora pretendia fazer um relato total sobre a época, as Marchas, por exemplo, não

possuíam um papel central? Seu relato é total, mas seguindo a perspectiva hegemônica do mito

da sociedade resistente. Portanto, não faz sentido mencionar eventos de apoio à ditadura, se o

que se quer acreditar é que todos tenham resistido.

Patarra também não trata, na maior parte do tempo, sobre lideranças civis de apoio ao

golpe que, independentemente de suas intenções quanto ao prosseguimento do regime243, foram

fundamentais para sua consolidação: Daniel Aarão Reis menciona como expoentes Carlos

Lacerda e Magalhães Pinto e a grande mídia impressa, como O Estado de S. Paulo, Jornal do

Brasil e Correio da Manhã244.

A imprensa tem um papel fundamental na obra, sendo diversas vezes mobilizada para

fundamentar os pontos apresentados pela autora. No entanto, seu apoio ao golpe é suprimido.

Uma das únicas menções à mídia impressa e sua suposta simpatia pelo regime está no trecho:

“No dia seguinte o jornal O Estado de S. Paulo intitulou a sanha destruidora de ‘Diligência em

Faculdade’. Mas a 15 de maio publicou um vigoroso protesto do antropólogo e sociólogo Paulo

Duarte – ninguém ainda ousaria calá-lo245”. Contudo, a menção é rápida e de difícil

compreensão, referindo-se apenas ao título de uma pequena nota publicada pelo jornal,

241 Nesta parte do livro, a autora parece ter a intenção de reproduzir discussões de uma assembleia estudantil

convocada pelo Grêmio da Faculdade de Filosofia. 242 PATARRA, 1992, op. cit., p. 91. Este trecho tem como referência: DREIFUSS, René Armanda. 1964: a

conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. 243 Para mais detalhes sobre tais impressões, Cf. REIS, 2014, op. cit., p. 49. 244 REIS, 2014, op. cit., p. 49. 245 PATARRA, 1992, op. cit., p. 92.

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ocultando comentários a respeito do fato de que a edição inteira era dedicada à aprovação do

novo governo.

Outra alusão à imprensa caracteriza como “parcialidade” a colaboração, de maneira

eufêmica:

Certa manhã, incrédula, Iara leu nos jornais que o Exército cercava um foco

guerrilheiro em Caparaó. Então, sempre se fazia alguma coisa! Nos dias seguintes

comprou o Correio da Manhã e Jornal do Brasil, ambos da Guanabara, menos

tendenciosos e melhor noticiário246.

Em entrevista à Veja, quando questionada diretamente sobre o apoio de veículos de

comunicação à ditadura, a autora silencia:

Veja – A Rede Globo foi o veículo oficial do regime militar. A minissérie [Anos

Rebeldes] pode ser entendida como uma tardia revisão da História ou é puro

marketing?

Judith – Acho ótimo que a Rede Globo esteja patrocinando a minissérie. Através da

telinha milhões de pessoas estão entrando em contato com essa época que foi tão rica

e até hoje não tinha sido contada. Pode até ser marketing, porque depois que a Guerra

Fria acabou não existe nenhum risco em tocar no assunto. (...).

Patarra não faz nenhum comentário a respeito do apoio da Rede Globo ao regime,

apenas ressalta a importância de se falar sobre o assunto. Ela não conjectura os motivos pelos

quais o tema ainda não tinha sido tratado – usando o fim da Guerra Fria como um obstáculo a

menos, referindo-se provavelmente ao fim da bipolarização do mundo entre comunismo e

capitalismo.

Da mesma forma que sobre a imprensa, a referência às lideranças civis do golpe é rápida

e pouco acessível, restrita à figura de Carlos Lacerda247, explicitada no trecho a seguir e em

mais algumas passagens durante o livro:

Em julho, Juscelino foi cassado. Revoltava os militares o enorme apoio popular de

sua candidatura às eleições de 1965. A oficialidade linha-dura, insuflada por Carlos

Lacerda, outro aspirante civil à presidência, exigira a medida.

– Desbancam os líderes com força eleitoral – diagnosticaram no Grêmio. – Juscelino,

safardana, assistiu de camarote Jango a se enterrar. Voltaria salvador. Lacerda tira JK

do páreo mas será o próximo. Mosca azul é fogo. Levam o corvo no bico.

246 Ibid., p. 149. 247 Carlos Frederico Werneck de Lacerda foi jornalista e político. Nascido em 1914, foi membro da União

Democrática Nacional (UDN) e vereador, deputado federal e governador da Guanabara. Uma das lideranças civis

do golpe de 1964 e, posteriormente, opositor ao regime ditatorial, formando a Frente Ampla. Faleceu em 1977, e

as circunstâncias de sua morte foram questionadas por alguns jornalistas.

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Linha-dura foi a nomenclatura dada pela mídia liberal e conservadora àqueles adeptos

de certa “truculência de seus procedimentos”248. “Mosca azul” é um poema de Machado de

Assis que “conta a história de um plebeu que, ao deparar-se com uma curiosa mosca azul, com

‘asas de ouro e granada’, deslumbra-se e passa a sonhar com poder e riquezas, ilusão que acaba

comprometendo sua sanidade e seu senso de realidade”249. Ou seja, uma metáfora para sede de

poder. Nas frases “desbancam os líderes com força eleitoral” e “levam o corvo no bico”, o

sujeito, apesar de oculto, é o mesmo: os militares. Lacerda foi frequentemente representado em

caricaturas como um corvo. Neste diálogo, a autora transmite a ideia de que os militares se

utilizaram de estratégias para eliminar todos os possíveis líderes eleitorais – inclusive Lacerda

que, mesmo tendo corroborado com o regime através da iniciativa para cassação de JK, seria o

próximo.

Fica claro que mesmo os civis apoiadores do golpe seriam apenas peças provisórias

utilizadas pelos verdadeiros golpistas – os militares. Patarra, no entanto, atribui tais ideias a

uma discussão no Grêmio da Faculdade, mas sem citar fontes e/ou testemunhos que corroborem

sua fidedignidade. O uso da expressão “corvo” para se referir a Lacerda – em outro trecho, sem

a menção de seu nome – exige do leitor conhecimento prévio de política da época para uma boa

compreensão.

O ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda, teve suas ações igualmente

condicionadas ao autoritarismo da ditadura – ocultando-se sua própria truculência – através de

uma fala de um possível estudante, daí sua desqualificação:

O ministro da Educação acusava colônias de vírus entre os estudantes, liderados por

agitadores e pequenos ladrões, a ameaçar o futuro do povo. A POLOP, radical, decidiu

boicotar a eleição.

– A ditadura usa o ministro, um funcionariozinho ignaro, para intervir no movimento

universitário – discursaram na primeira assembleia.

Somente ao narrar 1967, ao tratar da Frente Ampla250, é que Patarra menciona de

maneira mais explícita o apoio de lideranças civis ao golpe, através de uma suposta colocação

de Iara:

248 REIS, 2014, op. cit., p. 42. 249 MOSCA AZUL. In: DICIONÁRIO Online de Português. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/mosca-

azul/>. Acesso em: 25 jun. 2018. 250 “Movimento político lançado em 28 de outubro de 1966 com o objetivo de lutar pela ‘restauração do regime

democrático’ no Brasil, a Frente Ampla teve como principal articulador o ex-governador da Guanabara, Carlos

Lacerda, e contou com a participação dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, e de seus

correligionários”. Fonte: LAMARÃO, Sério. Articulação da oposição: a Frente Ampla. FGV CPDOC. Disponível

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– Democratas, no fundo, são totalitários. Aponte um desses líderes civis sobreviventes

das cassações que não apoiou os golpistas de 64. Abertamente ou por baixo do pano.

O negócio é obrigá-los a revelar sua face ditatorial e violenta – concebeu Iara (...)251.

Antes de discorrer sobre o decreto do Ato Institucional n° 5, Patarra se remete a ele,

tratando do assunto como um debate dentro da organização, em uma espécie de previsão:

Falavam da guerrilha próxima, porque o golpe dentro do golpe, iminente, liquidaria

as medidas civis, desacreditadas aliás: greves, a federação oposicionista, eleições,

reforma constitucional, anistia, o que fosse. Daí a importância dos assaltos, roubo de

armas, munições, compra de áreas de cerco difícil252.

É possível observar que a autora reproduz uma noção arraigada na memória coletiva: a

de que as ações armadas das esquerdas estariam condicionadas ao endurecimento do regime.

Esse discurso tem relação com um elemento apresentado no tópico anterior, a respeito do

esvaziamento do aspecto revolucionário das esquerdas e sua consequente transformação em

“braço armado da resistência democrática”. A esse respeito, Daniel Aarão Reis afirma que a

luta armada foi ressignificada enquanto uma forma de resistência ao fechamento do regime,

“uma tentativa imposta pela ausência de brechas institucionais que viabilizassem, de algum

modo, as lutas democráticas, uma reação desesperada à falta de alternativas253”. Isto é, a

memória hegemônica responsabilizou os militares por tudo, inclusive pelo avanço da guerrilha.

Patarra chega a mencionar o caso da guerrilha de Caparaó, anterior ao AI-5, e reconstitui

debates dentro da organização sobre a pertinência da ação armada. Iara, no entanto, só aceita

essa tática após o AI-5.

Depois do AI-5, Quartim acreditou que os companheiros militaristas, entre os quais

Espinosa e Ladislau, assumiriam a consolidação. Iara, às vezes vacilante, julgou que

a luta interna traria consenso.

– Acabou o movimento estudantil. Estamos sozinhos. Se a gente der o famoso passo

atrás, o golpe cai no vazio. É questão de bom senso. Vamos ajeitar as coisas no quartel

e impedir a ação254.

– Lamarca errou em sair do quartel. Mas é um herói – revelou Iara. – A ordem é

otimismo, ver o lado positivo. Só a esquerda armada é capaz de combater regimes

militares. As horrendas execuções em massa na Indonésia provam que outros

em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/Exilio/Articulacao_da_oposicao>. Acesso em: 28 jun.

2018. 251 PATARRA, 1992, op. cit., p. 191. 252 Ibid., p. 265. 253 REIS, 2014, op. cit., p. 8. 254 PATARRA, 1992, op. cit., p. 271-272.

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caminhos não funcionam. Chegaremos a ser numerosos e fortes como os

tupamaros255.

Neste momento, cabe analisarmos o olhar de Patarra sobre a guerrilha. Em entrevista

sobre o lançamento da biografia, a autora é questionada: “Hoje, quase trinta anos depois, a

militância dos anos rebeldes parece um tanto ingênua. Essa sensação é porque já conhecemos

o fim da história?”256; ao que Patarra responde:

Nós realmente acreditávamos que seria possível construir um país melhor, mais justo,

mais alegre. O sonho virou pesadelo com o golpe de 1964, que chegou de forma

violenta. Os anos rebeldes vieram em seguida como uma tentativa de resistência. Com

o tempo, alguns acharam que era preciso ir além e resolveram pegar em armas. Era

uma ilusão equivocada achar que seriam capazes de enfrentar a ditadura, mas eles

tinham um fervor tão grande e a injustiça os revoltava tanto que hoje até dá para

entender essa atitude257.

Patarra usa a primeira pessoa do plural ao tratar dos que sonharam com um país mais

justo antes do golpe, referindo-se talvez às reformas de base propostas pelo presidente João

Goulart e se incluindo como apoiadora. Todavia, ao tratar da luta armada, usa a terceira pessoa

– “alguns acharam que era preciso ir além” –, criando um distanciamento entre si e os outros,

“nós” e “eles”, o que confirma que a autora não se identificava com a luta armada, a qual ela

considera uma “ilusão equivocada”, embora justificável, dadas as circunstâncias. A ideia de

“equívoco inocente” é vinculada por Patarra quando narra as vésperas do golpe:

Mal começavam as aulas e Iara aderiu ao protesto com toda a Faculdade de Filosofia,

convicta de integrar o grande movimento nacional que derrotaria as forças

antinacionalistas da direita. Pouco depois, em Porto Alegre, João Pinheiro Neto

qualificaria de “arreganhos senis” as diatribes anticomunistas do ex-interventor da

ditadura Vargas em São Paulo. Expressava a ingenuidade que vestia a esquerda258.

Daniel Aarão Reis propõe uma distinção entre três vertentes de críticos à ditadura que,

embora em certos momentos se articulassem, eram divergentes: os moderados (partidários do

Movimento Democrático Brasileiro – MDB, com o apoio clandestino de PCB, a Frente Ampla,

setores eclesiásticos, liberais e outras lideranças civis que apoiaram o golpe); o movimento

estudantil que, segundo o historiador, “era um movimento democrático radical e preconizava

255 Ibid., p. 284. 256 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 10, grifos meus. 257 Idem. 258 PATARRA, 1992, op. cit., p. 90, grifos meus.

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derrota da ditadura”259; e as organizações revolucionárias clandestinas, que “não desejavam

apenas se livrar da ditadura, queriam também destruir o sistema capitalista, abrindo a via para

a construção de um regime alternativo, socialista”260.

No livro Iara, Patarra descreve todas as vertentes, utilizando a trajetória de Iara como

exemplo linear de uma espécie de “evolução” de um projeto para o outro, como uma rota para

a radicalização, representando também um crescente desenvolvimento intelectual. Num

primeiro momento, Iara teria pretendido se engajar no PCB, frustrando-se. Tal frustração

permite que a autora disserte sobre as divergências entre os outros setores de oposição a esse

grupo.

O Partido Comunista decepcionou Iara e Maria Lucia. Os militantes insistiam no

caráter nacionalista e burguês da revolução brasileira. Preconizavam a defesa do

capital “nativo” e o apoio a militares antiimperialistas. E que ar desmoralizado! Ainda

na véspera do golpe juravam-se próximos do poder. (...)

Desistiram. Os críticos têm razão, o PC é revisionista, o oportunismo corre solto. O

socialismo nunca virá pacificamente. Só ingênuos ou mal-intencionados confiam na

burguesia nacional, pronta a vender-se. E que mania, apostar em militares! Os que

valiam alguma coisa grama a rua da amargura – presos, aposentados, no exílio. Talvez

a opção seja mesmo a POLOP. Há intelectuais atraentes, dinamismo, dá status261.

A POLOP, conforme observado por Reis, controlava “muitas entidades representativas

estudantis e apareciam nas passeatas com propósitos que ultrapassavam o escopo das mesmas,

ecoando palavras de ordem de enfrentamento armado com a ditadura262”, o que permite à

Patarra narrar o envolvimento de Iara com o movimento estudantil. Contudo, apesar de

conceber uma Iara socialista desde seu envolvimento com a organização, a tática da luta armada

só é aceita por ela após o AI-5, em concordância com o trecho supracitado: “Acabou o

movimento estudantil. Estamos sozinhos. Se a gente der o famoso passo atrás, o golpe cai no

vazio. É questão de bom senso. Vamos ajeitar as coisas no quartel e impedir a ação263”.

Assim, curiosamente, se nota que Patarra parece identificar Iara mais com o âmbito de

“anos rebeldes” da década de 1960 do que com os que “acharam que era preciso ir além e

resolveram pegar em armas”. Apesar de narrar momentos em que a personagem de fato se

identifica com e defende a tática guerrilheira, a autora faz questão de frisar o fato de Iara nunca

ter pego em armas. Esse ponto é retomado por todos os veículos de mídia que noticiaram o

259 REIS, 2014, op. cit., p. 71. 260 Idem. 261 PATARRA, 1992, op. cit., p. 98. 262 REIS, 2014, op. cit., p. 71. 263 PATARRA, op. cit., p. 272.

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lançamento do livro. Em entrevista citada previamente, Patarra afirma: “ela não pegou em

armas, mas teve uma influência decisiva sobre o próprio Lamarca”264. Em reportagem do Jornal

do Brasil, o discurso tem o mesmo tom: “Iara aprenderia cedo a atirar, mas a única vez que o

fez para valer foi com o revólver calibre 22 com o qual se matou. Nunca ocupou posto dirigente

nas quatro organizações clandestinas que participou – Polop, VAR-Palmares, VPR e MR-

8”265. O texto, que é quase idêntico ao publicado dias antes pela Veja, supracitado, distancia

Iara da ação armada concreta.

Em outra entrevista, dessa vez para o Jornal do Commercio¸ Patarra enfatiza: “mesmo

sendo contra o regime adotado, nunca estive próxima da luta armada”266. Tal distanciamento,

determinado pela autora e reproduzido pela mídia, legitima a trajetória de Iara e a “inocenta”,

pois, não obstante seu envolvimento com as organizações armadas, ela nunca teria de fato

participado diretamente de uma ação. A jornalista demarca de maneira evidente a separação

entre Iavelberg e a “militância mais ativa267”, visto que ela se preocupava com questões que

não pareciam pertinentes para a luta política – como namoros, por exemplo. Talvez por esse

motivo a narrativa das ações armadas sejam descritas sem a participação e o conhecimento da

personagem principal – ao menos antes de seu envolvimento concreto com Lamarca.

(...) [Iara] Aprendeu a atirar. Espinosa e ela embrenhavam-se na fazenda junto à

rodovia Castelo Branco onde é hoje Alphaville. Às vezes Miriam participava.

– Ai, esse troço faz barulho! – mirava atenta, as mãos pequenas para o 38. – Jamais

serei boa atiradora.

Treinavam na represa Billings com simulações de metralhadores e a Mugger,

automática.

– Ninguém me chama para ação armada. Quero participar. Que tem a Cecília (Renata)

a mais?

Não a consideravam talhada, nem boa motorista. Ninguém se preocupou em formá-

la militarmente. Ficava na retaguarda, limitada às chapas de automóvel. (...)268.

Aprontou-se para sair com Lucia. Não deveriam estar em casa durante o assalto à

agência Banespa do prédio, absurdo, bem onde a gente mora, ao menos vou almoçar

comida boa de minha mãe: bife à milanesa, empadão, pudim de leite macio, enchendo

a boca.

O sucesso do roubo, descrito quase como roteiro de filme nos jornais, alarmou-a.

– Eu quero ir embora, não fico mais aqui269.

264 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 8. 265 MARTINS, Marília. Personagem heroica no fracasso. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1992, Caderno

B, p. 6. 266 MARGUTTI, 1992, op. cit., p. 60. 267 GIUDICE, 1992, op. cit. 268 PATARRA, 1992, op. cit., p. 244, grifos meus. 269 Ibid., p. 255.

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Iara não era apropriada para a luta armada, na ótica de sua biógrafa. Suas tarefas nas

organizações consistiam em estabelecimento de contatos, através do cumprimento de pontos,

panfletagens e transporte de documentos. Essas funções “minguadas” em relação ao imaginário

da luta armada se adequam ao possível desejo da autora de se distanciar de relatos violentos,

opção em conformidade com a memória hegemônica. Iara foi a guerrilheira perfeita, nos

padrões da memória, por ser aquela que não se ajustava à guerrilha e, por esse motivo, sua

trajetória se prestou à criação de um discurso que remetesse menos à materialização em táticas

políticas propriamente ditas e mais aos “anos rebeldes” – usando o sentido dado por Patarra, de

uma resistência “pacífica” aos padrões comportamentais vigentes –, e aos debates culturais e

sociais considerados pela jornalista como típicos da época.

Assim, a personagem Iara Iavelberg está muito mais próxima do “nós” de Patarra, do

que “deles”, a militância ativa. Esta, por sua vez, é descrita pela autora como chata, piegas e

hierárquica. Em entrevista, a Veja pergunta diretamente: “Os militantes eram chatos?”, ao que

ela responde:

(...) Conheci um sujeito que condenava quem bebia e gostava de Coca-Cola. Outro

problema eram citações. O militante parece que tinha a obrigação de citar Marx,

Engels e Lenin a cada três palavras. Mas não eram todos e hoje eles até merecem um

desconto. A chatice era a maneira de sobreviver à repressão. Eles tinham de tomar

tanto cuidado com a segurança, para não chamar a atenção, que acabavam perseguindo

as pessoas extrovertidas e que davam muita bandeira270.

Mais uma vez, a jornalista se utiliza do artifício de responsabilizar a ditadura pela

estrutura das organizações. A “chatice” à qual ela se refere é mais uma estratégia de

esvaziamento do sentido revolucionário das organizações. As estratégias políticas adotadas

pelos militantes, quando não distorcidas em “resistência democrática armada”, são

caracterizadas como delírios ou ‘chatices’. Esse aspecto é ressaltado em diversas partes da obra:

Em 1965 formou-se uma base da POLOP só com estudantes da Psicologia e Filosofia.

As exposições do dirigente, análises e debates teóricos aborreciam Iara. Mas ela

acordava quando discutiam táticas para neutralizar o PC, muito atuante nas Ciências

Sociais271.

(...) – A grana vai produzir bombinha atômica? Distribuir cartórios? Aí é que está – e

Iara conduziu a conversa para as próprias dúvidas. – Os milicos cada vez mais

fascistas. A oposição consentida, além de legitimar a ditadura, diz que só débeis

mentais imaginam aventuras insurrecionais vitoriosas. O dr. Silvana manipula o

MDB, bando de ratinhos engaiolados. Contra a força, só a força.

270 GIUDICE, op. cit., p. 8. 271 PATARRA, 1992, op. cit., p. 101.

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– A esmo, companheira? Sem condições objetivas? Em lugar do Debray leia os

clássicos. Disciplina militar sim, mas num partido de revolucionários profissionais,

sob as ordens do comitê central. Essencial. Lenin disse em O que fazer? que só um

partido será a vanguarda das forças revolucionárias. Aquele que organizar as

denúncias e revelações políticas, visando o povo inteiro. Claro, numa etapa futura,

mas a leitura de Lenin é fundamental272.

Daniel Aarão Reis caracteriza essa metamorfose como forma de ignorar os objetivos de

revolução:

apagou-se, assim, a perspectiva ofensiva, revolucionária, que havia moldado aquelas

esquerdas. E o fato de que elas não eram de modo nenhum apaixonadas pela

democracia, francamente desprezada em seus textos273.

Apesar de descrever discussões internas das organizações e de discorrer sobre os

posicionamentos dos militantes, ao caracterizá-los como inocentes, a autora parece romantizar

as pautas colocadas, dando lugar a uma visão de inocência, engano juvenil – convergindo com

a memória hegemônica.

(...) Construiremos um socialismo único, humanista, o povo libertado da escravatura.

Imaginou a avenida coalhada de gente até a praça do Correio, o Anhangabaú, a Sé,

mar de bandeiras vermelhas. Sentiu-se viva, mudança social nas mãos. Respirou

fundo, veria Lamarca, juntos a escrever o papel decisivo da História, aquele que vai

remir, dona Angelina, dos mais torpes labéus274.

Convicta, [Iara] explanava que a guerrilha na América Latina não pretendia crescer e

transformar-se em exército. Sua função de núcleo era catalisar a luta geral. Exerceria

influência sobre o conjunto da sociedade, produzindo fontes revoltosas no campo,

cidades, fábricas, escolas. Uma situação insurrecional no país. Como em Cuba275.

A descrição das convicções de Iara para o futuro e sua imaginação, como nos trechos

citados acima, reforçam essa inocência, visto que a autora sabe como a história termina: tais

visões e intenções não chegam nem perto de acontecer. São delírios infundados e impossíveis

da personagem, que está tomada por utopias no sentido estrito da palavra – fantasias

irrealizáveis.

Após o engajamento de Lamarca, seu personagem é construído, conforme expõe o texto

acima, como o grande redentor dessa revolução – similar a Che Guevara, por exemplo. É um

herói por excelência, humano, pacífico e com aquele “senso de justiça” descrito por Patarra

272 Ibid., p. 172. 273 REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, pos. 683 (leitura em

ebook). 274 PATARRA, op. cit., p. 316. 275 Ibid., p. 283.

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como inerentes de todo militante de esquerda. Tal discurso se contrapõe veementemente ao

difundido pela ditadura e a autora parece pretender corrigir a imagem cunhada pelo regime

ditatorial: “ex-capitão do exército, traidor que se transforma num terrorista e criminoso

comum”276. Patarra fez questão de narrar alguns dos casos que corroboraram com a formação

desse pensamento, como a morte de pessoas em ações e a deserção do exército.

Em 1966, ainda primeiro-tenente, voltei ao 4° RI. Inquieto, angústia crescente,

obrigado a reprimir operário em Osasco, Barreto no meio, cercar estudantes no

Centro, você no meio. Não me formei para isso. O que faço aqui dentro? (...) Mas não,

aprendi tanto e agora virei capitão-do-mato? À tropa ensinei morrer pelo Brasil e

comando porrada em estudante? Baioneta castigando operário? Não defendemos a

Pátria mas o patrão, daqui a pouco o soldado prende o pai, irmãos, vizinhos, parentes,

muitos incorporados dali de perto, maluco, endoido, de manhã faço a barba, espelho,

olho no olho, colaboro com um sistema contrário a todos meus princípios, qual a

alternativa? O grupo medita, quero me demitir. (...)277

Num dos assaltos, a 20 metros da agência bancária na rua Piratininga, Brás, Lamarca

entrou no bar da esquina. Pediu café e fingiu interessar-se por uma jovem, que sorriu.

Xícara na mão, voltou-se à rua como a espairecer e deu com o guarda-civil na calçada

oposta, quase correndo, revólver empunhado – um faxineiro do banco pulara a janela

dos fundos e preveniu-o. O companheiro que surgisse, provavelmente carregando a

sacola do dinheiro, seria morto. Mirou, viu-o cair. (...)

O noticiário explorou a morte do guarda-civil.

– Não tive jeito, ele ia mandar bala. Atirei no ombro, mexeu-se, não sei, caiu. Foi

tragédia – desabafou. – Minha primeira morte neguinha, uma tragédia porque sem

querer, certo? O dom maior é a vida. Por isso é crime explorar o homem, trabalhar

feito animal para que outro viva feito rei.

Intranquilo, registrou os discursos ideológicos que justificavam o acidente.

– Tem uma coisa sem volta, que é a morte. Estou atrelado a ela. Aceitar o fim é a

condição da vitória278.

Evidentemente tais reflexões de Lamarca são especulações de Patarra, uma vez que

foram supostamente confidenciadas à Iara. Contudo, a presença desse diálogo no livro é crucial

pois revela a intenção de humanizar a personagem e, consequentemente, suas opções políticas.

A biografia, dessa forma, consolida Lamarca como herói, dialogando com a memória social das

esquerdas279.

– O que é o imaginário! Você já faz parte da mitologia popular – entusiasmou-se Iara

depois que ouviram o relato280.

276 NOGUEIRA, Jefferson Gomes. Carlos Lamarca no imaginário político brasileiro: o papel da Imprensa na

construção da imagem do “Capitão Guerrilheiro”. Revista Ágora, Vitória, n. 7, 2008, p. 14. 277 PATARRA, 1992, op. cit., p. 306. 278 Ibid., p. 307. 279 ROLLEMBERG, Denise. Carlos Marighella e Carlos Lamarca: memórias de dois revolucionários. FERREIRA,

Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). As esquerdas no Brasil: revolução e democracia. Vol. 3. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2007, p. 2. 280 PATARRA, 1992, op. cit., p. 317.

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– Se eu fosse um sanguinário – disse Lamarca – saía para abater meia dúzia de

policiais. Sem dificuldade. Mas nossa luta é contra o Estado que sufoca os

trabalhadores. Importante manter isso em vista: o inimigo principal não é a repressão.

Seria um desvio – reiterou, a convencer-se. – Dirão que a luta armada terminou.

Mostraremos aos operários e camponeses que o combate continua, determinado.

Jamais os abandonaremos porque somos a sua vanguarda. Esse período vergonhoso

da História não será uma página em branco. O povo brasileiro não passará por

covarde. Houve um punhado de homens e mulheres na trincheira. Trabalhadores como

Neto, camponeses como a mãe dele, funcionários da saúde como Jô. Intelectuais como

Iara, militares como eu281.

Esse trecho reproduz uma suposta reação de Lamarca ao assassinato de Carlos

Marighella. Embora mencione casos de assassinato, desaparecimento e tortura, a obra de

Patarra não se constitui em um livro com objetivos explícitos de denunciar.

Embora utilize informações coletadas pelo BNM, marco essencial nos discursos de

memória que tinham a intenção de denunciar a violência política, a narrativa de Patarra não

está inserida ou coaduna com tal discurso – o que revela que os discursos de memória variaram

entre si, apesar de manterem alguns elementos em comum. Ao tratar da tortura no filme Que

bom te ver viva, lançado poucos anos antes do livro de Patarra, em 1989, a cineasta e ex-

guerrilheira Lúcia Murat282 criou uma personagem, interpretada pela atriz Irene Ravache, que

representa “uma geração inteira de jovens mobilizados para transformar seu país, que sofreram

com as violências do governo contra o qual lutavam e carregam traumas e memórias incômodas

até o presente”283. O paralelo com o filme se mostra pertinente pois ambas as narrativas, apesar

de estarem em diferentes suportes, tratam de experiências femininas durante o período ditatorial

e tiveram expressão no mercado consumidor.

O filme de Murat é constantemente retomado em debates sobre o período e consiste em

referência até os dias atuais a respeito da atuação de mulheres na oposição à ditadura284 e sobre

as sevícias destinadas especificamente às militantes (torturas sexuais, por exemplo)285.

Todavia, o livro de Patarra difere da película por abordar uma outra perspectiva. A

biografia não tem o objetivo de denunciar as feridas causadas pela repressão e, por isso, optou-

se por uma personagem que “suicidou-se”, foi presa apenas uma vez, antes do “endurecimento

281 Ibid., p. 344. 282 Lúcia Maria Murat de Vasconcelos é uma cineasta brasileira e ex-militante da luta armada brasileira, tendo

integrado o MR-8. 283 MONTEIRO, Ygor Pires. Lúcia Murat: trajetos de vida pela ditadura civil-militar – sensibilidades

cinematográficas e história pública (1989 – 2012). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal

Fluminense, Niterói, 2018, p. 28. 284 Idem. 285 LEME, Caroline Gomes. Cinema e sociedade: ditadura militar no Brasil. Dissertação (Mestrado em Sociologia)

– Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011, p. 57.

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do regime”, nunca foi torturada e representou mais os ares dos anos rebeldes, como os sentiram

as classes médias das grandes cidades, como os sentiram Judith Patarra: clima de libertação

sexual, rebeldia intelectual e festiva. Dessa forma, a autora constrói uma atmosfera de desejo

por rupturas não unicamente no âmbito público, aquele da política e da economia, mas com

adversidades enfrentadas também na vida privada – meio, por excelência, relacionado com as

mulheres286.

É neste sentido que se justifica a centralidade de aspectos pessoais e subjetivos da

biografada no livro. Seus relacionamentos amorosos ocupam parte maior da narrativa do que

as discussões políticas empreendidas nas organizações. Patarra aplica ao contexto brasileiro o

molde da revolução sexual vivida em outros países, como França e EUA, que tiveram grande

atuação dos movimentos feministas de Segunda Onda já na década de 1960. “O pessoal é

político” (personal is political) – um dos principais slogans do feminismo de Segunda Onda

estadunidense parece, à primeira vista, ser um dos motes da narrativa de Patarra. Segundo a

filósofa feminista Linda Nicholson,

para usar a terminologia da filosofia contemporânea, o slogan “o pessoal é político”

expressava uma definição estipulante; intencionava uma mudança no entendimento

tradicional do termo “político”. (...) Nesse caso, a crença popular na distinção dos

campos da vida pessoal e pública foi um ingrediente importante para manter os

campos separados. Questionar essa crença foi, portanto, em certa extensão, questionar

a realidade constituída por ele. Resumidamente, “o pessoal é político” expressou uma

definição estipulante constitutiva. Foi estipulante no que intentou redefinir o termo

“político” e constitutiva enquanto uma nova definição que deve, por sua vez, afetar a

realidade sendo definida. O slogan foi, portanto, em si, uma declaração política; por

sua alocação mesma, intentou fazer uma mudança na realidade social287.

A biógrafa de Iara, de fato, segue nesta tradição, ao narrar fatos que concernem à vida

privada da biografada de maneira tão detalhada, ao ponto de se sobreporem ao lado “político”,

que se define por sua trajetória de militância nas organizações, anticapitalistas por excelência,

mas não “antimachistas”. Seria Patarra também uma feminista?

A Veja a questiona sobre a escolha de Iara como biografada, em vez de Lamarca: não

teria sido uma “opção puramente feminista?”. Ao que a autora responde que “isso é equivalente

a dizer que se fosse o Lamarca eu teria feito uma escolha machista. A Iara, independentemente

286 COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,

1997. 287 apud REIS, Ana Regina Gomes dos. Do Segundo Sexo à Segunda Onda: discursos feministas sobre a

maternidade. Dissertação (Mestrado em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo) –

Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008, p. 91.

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de ser mulher e por isso despertar mais o meu interesse, era uma figura fascinante288”. Essa

pergunta é posterior a uma já citada neste trabalho: “por que Iara e não o capitão Lamarca, que

teve um papel político muito mais importante?”. A autora justifica a escolha da biografada a

partir do desejo de tratar assuntos como a revolução sexual e mudanças de comportamento,

vividos por Iavelberg.

Apesar de deixar a impressão que considera feminismo como o exato oposto de

machismo289, Patarra revela um incômodo com o questionamento da entrevistadora. Esta

demonstra a ideia de uma maior relevância de Lamarca por seu “papel político” – um mérito

não observado por ela em Iara, cujas reflexões teriam ficado apenas no âmbito “privado”,

supostamente de menor importância. Além disso, embora não considere um motivo

determinante, Patarra ressalta que o fato de Iara ser mulher despertou mais seu interesse.

Observa-se aqui, mais uma vez, que a autora da biografia valoriza o privado tanto quanto o

político e, por isso, demarca tanto Iara enquanto uma feminista. Não obstante, essa perspectiva

pode ser problemática ao corroborar com a ideia de que o espaço da mulher é privado, mais que

o público. O que mais se destaca na trajetória da Iara de Patarra, mesmo ao sair para a militância

pública, ao transgredir, deixando o espaço a que foi relegada por ser do sexo feminino, são suas

ações privadas – o espaço feminino “por natureza”.

Contudo, é preciso problematizar a noção de uma militante feminista em plena luta

armada. O feminismo de Iara, tão marcado em sua personalidade conforme descrição de Patarra,

tem muito mais relação com o presente de constituição da obra do que com o tempo vivido por

Iavelberg.

Há muitas divergências e disputas por um marco inicial da Segunda Onda do feminismo

no Brasil. Porém, essa data teria sido na década de 1970 e não nos anos 1960, como admitido

por Patarra.

A historiadora Joana Pedro aponta que, apesar de a data “oficial” ser 1975, com a

organização de um evento no Rio de Janeiro intitulado “O papel e o comportamento da mulher

na realidade brasileira”, patrocinado pelo Centro de Informação da ONU, algumas mulheres

reivindicam outras versões290. Uma delas é Rose Marie Muraro, que afirma que “seu feminismo

288 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 8, grifos meus. 289 Essa informação de Patarra é, no entanto, equivocada. Cf. BRAGA, Beatriz. O contrário do feminismo é a falta

de coragem. Revista Algo Mais, 12 set. 2017. Disponível em: <http://revista.algomais.com/noticias/o-contrario-

do-feminismo-e-a-falta-de-coragem-por-beatriz-braga>. Acesso em: 29 jun. 2018. 290 PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). Revista Brasileira

de História, São Paulo, v. 26, n° 52, 2006, p. 251.

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é anterior a essa data291”, uma vez que participou de grupos de reflexão sobre textos feministas

no início da década de 1970 e de um congresso organizado pelo Conselho Nacional da Mulher,

em 1972292. Joana Maria Pedro afirma que foi por intermédio de Muraro “que o livro A mística

feminina, da norte-americana Betty Friedan, publicado nos Estados Unidos em 1963, ganhou

edição brasileira em 1971293”.

Importante retomar que Rose Marie Muraro foi uma das fundadoras do selo editorial

que publicou o livro Iara de Patarra, conforme dito anteriormente, o que pode ter estimulado a

presença tão marcante do feminismo no discurso da obra e sua relação direta com a personagem

principal. Joana Pedro aponta, no entanto, que este feminismo anterior a 1975 não estava

relacionado com as organizações revolucionárias, muito pelo contrário: as reuniões feministas

do início da década eram idealizadas por mulheres com boas condições econômicas,

“intelectuais de esquerda” – embora incluísse também mulheres “bem relacionadas com a elite

do governo294 [ditatorial]”, como Romy Medeiros295 – e que tinham acesso a países do exterior,

como Estados Unidos e França, de onde traziam as leituras para serem discutidas.

Militantes de organizações clandestinas, de acordo com Joana Pedro, viam o feminismo

como pauta secundária à luta efetiva, que deveria ser contra o capitalismo. Suely Gomes

Costa296, ao ser convidada para participar desses grupos feministas por Maria do Espírito

Santo297, afirma: “eu não me via muito no campo dela. Eu era muito mais ligada às lutas da

291 Ibid., p. 253. 292 Ibid., p. 257. 293 Idem. 294 Ibid., p. 258. 295 Romy Martins Medeiros da Fonseca foi “advogada e feminista, natural do Rio de Janeiro (RJ), foi a autora do

projeto do Código Civil que mudou a situação da mulher casada. Em 1966 propôs a criação do Conselho Nacional

de Mulheres do Brasil”. Nasceu em 1921 e faleceu em 2013. Fonte: MULHER: 500 ANOS ATRÁS DOS PANOS.

Disponível em: <http://www.mulher500.org.br/romy-martins-medeiros-da-fonseca-1921/>. Acesso em: 17 jun.

2018. 296 Suely Gomes Costa, militante feminista, “nasceu em 1938 e mora em Niterói – RJ. Hoje, é Professora

aposentada do Serviço Social da Universidade Federal Fluminense”. Fonte: PEDRO, Joana Maria. Feminismo e

gênero na universidade: trajetórias e tensões da militância. História Unisinos, n. 9, v. 3, set./dez. 2005, p. 176. 297 Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos (Santinha) foi militante comunista, é médica sanitarista e feminista

brasileira.

Cf. SILVA, Tauane O. G. Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos: a contribuição de uma mulher negra na

construção dos movimentos de mulheres e feministas. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28., 2015,

Florianópolis. Anais...: Florianópolis: Associação Nacional de História, 2015. Disponível em:

<http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434415511_ARQUIVO_MariadoEspiritoSantoTavaresdos

Santos-acontribuicaodeumamulhernegranaconstrucaodosmovimentosdemulheresefeministas.pdf>. Acesso em: 17

jun. 2018.

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esquerda do que a qualquer outra coisa. Assim, ligada a problemas existenciais e tal, eu não era

(...)298”.

Nesse sentido, a historiadora Jessie Jane Vieira de Souza, ex-militante da ALN, em

entrevista concedida a Samantha Quadrat e João Bosco Hora Góis, afirmou que a questão de

gênero e emancipação feminina não era colocada nas organizações revolucionárias dos

1960/1970:

(...) naquela época isso não se colocava dessa forma e eu sempre gosto de dizer as

coisas como eram naquela época, porque senão fica um pouco anacrônico. (...) Nesse

contexto, essa questão não era absolutamente colocada, essa coisa de gênero, nem se

falava disso. As contradições eram as contradições do capitalismo, que se resolveriam

na revolução socialista. O resto era tudo um discurso pequeno-burguês299.

A construção da personagem Iara Iavelberg realizada por Patarra se relaciona muito

mais com essas mulheres – feministas, de elite (ou “burguesas”), preocupadas com “problemas

existenciais” e que não se envolveram com a luta armada – do que com o estereótipo da

guerrilheira. Na narrativa do livro, esses aspectos são ressaltados, em contraste com os outros

militantes – com os relatos dos próprios para corroborar o ponto de vista.

- Muito inteligente, certa fraqueza teórica, Iara não se destaca nos encontros da

POLOP devido ao caráter doutrinário das discussões. O sectarismo dominava.

Defendíamos a militância estrita, rigorosa, disciplinada – disse Eder Sader. –

Insubmissa, ela faltava às reuniões por motivos que, anos depois, eu julgaria os mais

saudáveis. Sua existência rica não se continha dentro de um grupo restrito,

centralizador300.

Banharam-se [Iara e Christine] juntas no chuveiro. Ao observar a amiga, Iara

escandalizou-se:

- Christine! Como é que você anda com uma perna peluda dessas?

- Uma revolucionária pensa em depilação? – envergonhou-se.

- Ah, que desleixo! A gente tem de estar sempre lisinha, roupa de baixo combinando.

E não é pra homem, só. É pra gente301.

- (...) Iara me parecia um elemento destacado da esquerda festiva. Preservava-se

pouquíssimo. Não consigo enxerga-la mudada, pois só a recordo na vivência da Maria

Antônia, roupas e mesas de bar302.

298 Entrevista concedida por Suely Gomes Costa, realizada por Joana Maria Pedro em Florianópolis, no dia

17.02.2004, transcrita por Maise Zucco, apud PEDRO, 2006, op. cit., p. 260. 299 GÓIS, J. B. H.; QUADRAT, S. V. Militância política e gênero na ditadura brasileira: entrevista com Jessie Jane

Vieira de Sousa. Gênero, Niterói, v. 8, n. 2, p. 23-41, 1 sem. 2008, p. 23. 300 PATARRA, 1992, op. cit., p. 127. 301 Ibid., p. 153. 302 Ibid., p. 195.

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A narrativa que, conforme exposto, tem tom sentimentalista e, em certos aspectos,

remete mais a uma novela pela quantidade de detalhes íntimos relatados, aparenta ter um

direcionamento muito específico: alcançar o público feminino. Esse objetivo se consolida

através da construção de uma personagem que, mesmo tendo pertencido à Geração de 1968,

foge da caracterização padrão antes conferida a esta e, por isso, se aproxima do público leitor.

A Iara de Patarra, apesar de seu engajamento político radical, tem preocupações como as de

diversas mulheres: é vaidosa, atenta com as roupas que veste, a maquiagem que usa, é

“moderna”, levanta pautas que dizem respeito às mulheres – sobretudo às mulheres dos anos

1980 e 1990 –, como a liberdade sexual, a submissão aos homens etc. A chamada Terceira Onda

feminista, consolidada na década de 1990303, mas com raízes nos anos 1980. De acordo com a

antropóloga Cynthia Sarti,

Nos anos 1980 o movimento de mulheres no Brasil era uma força política e social

consolidada. Explicitou-se um discurso feminista em que estavam em jogo as relações

de gênero. As idéias feministas difundiram-se no cenário social do país, produto não

só da atuação de suas porta-vozes diretas, mas também do clima receptivo das

demandas de uma sociedade que se modernizava como a brasileira. Os grupos

feministas alastraram-se pelo país. Houve significativa penetração do movimento

feminista em associações profissionais, partidos, sindicatos, legitimando a mulher

como sujeito social particular304.

Essa onda feminista, que ficou conhecida como “pós-feminismo”305, posto que

preconizava uma pluralidade de identidades e, consequentemente, diferentes formas de

opressão femininas. São propostos novos recortes e a inclusão de mulheres silenciadas pelo

feminismo de Segunda Onda, como as negras, lésbicas, bissexuais etc. De acordo com Camilla

Siqueira,

Nesse momento, então, foi necessário encarar a dolorosa conclusão de que o

movimento feminista vinha sendo excludente. Na primeira e na segunda ondas,

mulheres como as suffragettes bem-educadas de classe média e as donas de casa

americanas dos anos 70 e 80 tinham monopolizado as demandas feministas, em

303 MENEZES, Lená Medeiros de. Feminismo(s): reflexões sobre silêncios, resistências e descontinuidades. In:

MAGALHÃES, Lívia (org.). Lugar de mulher: feminismo e política no Brasil. Coleção Pensar Político. Rio de

Janeiro: Oficina, 2017, p. 30. 304 SARTI, Cynthia. Feminismo e contexto: lições do caso brasileiro. Cadernos Pagu, Campinas, n. 16, 2001, p.

42. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332001000100003>.

Acesso em: 29 jun. 2018. 305 SIQUEIRA, Camilla Karla Barbosa. As três ondas do movimento feminista e suas repercussões no direito

brasileiro. In: BEDIN, Gilmar Antonio et. al. XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI -

UFMG/FUMEC/DOM HELDER CÂMARA, 2015, Anais... Disponível em:

<https://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/w8299187/ARu8H4M8AmpZnw1Z.pdf>. Acesso em: 30 jun.

2018, p. 338.

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prejuízo de questões enfrentadas por outras mulheres que, apesar de serem também

mulheres, não estavam no mesmo patamar daquelas em relação a outros marcadores

sociais306.

Portanto, apesar da autocrítica do movimento feminista, típica da Terceira Onda, o livro

de Patarra se insere muito mais como herdeiro da Segunda Onda. A personagem escolhida é de

origem judaica, branca, de classe média alta e escolarizada – dialogando com as demandas do

público-alvo do livro.

Contudo, em relação à memória hegemônica sobre a esquerda armada, Iara, durante a

obra, mostra uma faceta mais “palatável” da militância em organizações revolucionárias, o que

evita um discurso “revanchista” sobre a ditadura e, por isso, atende às demandas conciliatórias

da sociedade sobre o período. Em entrevista na época do lançamento do livro, à Revista Veja,

Patarra ratifica essa hipótese ao argumentar que:

Iara era uma exceção, junto com as duas amigas, na militância paulista. Hoje em dia,

seu comportamento seria absolutamente normal. Ela era uma moça que gostava de se

sentir bonita, de se arrumar, de se vestir bem. Só que nenhuma militante ousava gastar

dinheiro com cabeleireiro, com uma minissaia ou qualquer tipo de compra. O grupo

reprimia qualquer atitude que lembrasse um comportamento pequeno-burguês, como

usar meia de seda e sapato de salto alto307.

2.2 DE VOLTA AOS “ANOS REBELDES”: RECEPÇÃO DO LIVRO

Como foi dito anteriormente, o livro Iara teve quatro edições publicadas, estando

atualmente esgotado. A primeira foi em 30 de março de 1992 e a última em 19 de abril de 1993

– não há informações sobre as datas precisas da segunda e da terceira edições308. Apesar de não

haver dados sobre a tiragem de cada edição, foram 4 edições em pouco mais de um ano, sendo

possível supor que o livro teve vendas bem-sucedidas.

Diversos periódicos noticiaram o lançamento da biografia, tanto com notas sobre

sessões de autógrafos, quanto com reportagens, resenhas e entrevistas. Judith Patarra participou

de pelo menos dois programas de televisão e um de rádio tratando da obra, sendo estes:

Encontro com a imprensa, na Rádio Jornal do Brasil, em 28 de abril de 1992; Programa Livre,

no SBT, com reprise em 2 de fevereiro de 1993309; e Opinião Nacional, na TV Cultura, em 8

de março de 1993.

306 Idem. 307 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 8, grifos meus. 308 Informações obtidas através de contato com a editora Record, por meio do funcionário Marcelo Vieira, em 17

de janeiro de 2018. 309 Não foi possível precisar quando o programa foi exibido pela primeira vez.

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Rodrigo Patto Sá Motta adverte que “o testemunho só pode oferecer um olhar parcial e

interessado, naturalmente insuficiente para quem almeja chegar próximo à verdade310”. Ao

longo deste capítulo e do anterior, analiso o livro de Patarra, criticando-o à luz desta reflexão,

buscando caracterizá-lo enquanto memória. Motta afirma também que há casos em que esta,

por sua vez, é confundida e transformada em história, quando testemunhos são aceitos como

sagrados. Terá sido esse o caso de Iara?

****

Em 14 de julho de 1992 estreou a minissérie Anos Rebeldes311, exibida pela Rede Globo,

escrita por Gilberto Braga312 e Sérgio Marques313 e dirigida por Dennis Carvalho314. A

minissérie foi inspirada nos livros Os carbonários, de Alfredo Sirkis315 (1981) e 1968: o ano

que não terminou, de Zuenir Ventura316 (1988), dos quais a emissora adquiriu os direitos

autorais317. O impacto da minissérie foi inegável e, de acordo com Walter Clark, importante

executivo da indústria televisiva, “a ‘novela’ alavancava a audiência para toda a estação”318.

Segundo Roberto Abdala, a produção se iniciou em 12 de abril de 1992, mas a sinopse

teria sido enviada bem antes à direção de produção da rede televisiva319. Ainda assim, houve

tempo para que tanto autores, quanto atores, entre outros membros da produção, tivessem

contato com a biografia de Patarra. A atriz Cláudia Abreu, que viveu uma das protagonistas,

Heloísa – garota de classe alta, que se envolve, ao longo da trama, com a luta armada, filha de

um empresário que financiava a ditadura –, afirma ter lido o livro de Patarra “para se cercar do

máximo de informações sobre os tempos que não viveu”320. Esse dado foi noticiado tanto pelo

310 MOTTA, 2013, op. cit., p. 62. 311 ANOS rebeldes. Autor: Gilberto Braga. Direção: Denis Carvalho, Silvio Tendler e Ivan Zettel. Direção geral:

Dennis Carvalho. Produção: Rede Globo de Televisão, 1992-2003. 3 DVDs (680 min). Período de exibição: de

14-7-1992 a 14-8-1992. Horário: 22h30. N. de capítulos: 20. 312 Autor de telenovelas brasileiro. 313 Autor de telenovelas, séries e minisséries brasileiro. 314 Ator, dublador e diretor de novelas brasileiro. 315 Alfredo Hélio Sirkis é gestor ambiental e urbanístico, jornalista e escritor. Foi líder estudantil secundarista entre

1967 e 1968, engajando-se na VPR. Participou dos sequestros do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben e

do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. 316 Jornalista e escritor brasileiro. 317 ABDALA JUNIOR, Roberto. Brasil anos 1990: teleficção e ditadura — entre memórias e história. Topoi, v.

13, n. 25, jul./dez. 2012, p. 102. 318 Ibid., p. 101, grifos meus. 319 Ibid., p. 102. 320 BITTENCOURT, Mona. Grã-fina que se alia à guerrilha é grande trunfo de ‘Anos Rebeldes’. Revista TV

Programa – Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 2, n. 58, 26 jul. 1992, p. 34.

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Jornal do Brasil quanto pela Veja, para a qual a atriz declarou que a leitura do livro auxiliou na

construção de sua personagem321.

Além dessa, diversas outras notícias atrelavam o livro Iara ao impacto gerado pela

minissérie. Em O Estado de S. Paulo, Judith Patarra foi convidada para opinar sobre o programa

de televisão:

Estou gostando muito. Acho superimportante a televisão mostrar aquela época. É um

período que estava completamente recalcado. O fato de a trama política vir mesclada

de uma história de amor também é muito positivo. Envolve mais o espectador,

principalmente aqueles que não viveram os acontecimentos. E, depois, os anos 60 não

foram apenas os anos de chumbo. Havia muito amor, ternura e generosidade naquela

época. Mais que hoje322.

A já referida entrevista com Patarra nas páginas amarelas da Veja de 12 de agosto de

1992, teve como assunto principal a minissérie, conforme explicitado no texto do lead: “a autora

do livro Iara comenta a geração militante, corajosa e chata que agora evoca uma onda de

nostalgia na minissérie Anos Rebeldes323”.

As perguntas feitas são, em geral, propostas de comparação entre o que a minissérie

estava retratando e uma suposta realidade, o que aconteceu “de verdade”. Patarra foi

entrevistada como uma especialista no período ditatorial.

Veja – Alguns personagens não estão forçados demais? Quase uma caricatura?

Judith – Sem dúvida, mas não sei se esse é um recurso necessário do próprio veículo.

Talvez seja uma característica da minissérie, que tem pouco tempo para definir o

personagem e por isso precisa carregar nas tintas. A mesma ressalva vale para o caso

do jornalista Damasceno. Nos primeiros capítulos fica claro que ele é um comunista

assumido. Depois do golpe ele larga a redação e vai para a UNE com os estudantes.

Eu suponho que naquele dia todos os comunistas viajaram para o sítio, trocaram o Rio

de Janeiro por Santa Catarina, para não serem presos. Mas esses erros não têm

importância em si. Quem escreve ficção tem o direito de criar324.

Patarra é admitida pelo periódico como alguém com propriedade para discorrer sobre

os erros e acertos cometidos pela minissérie. Ainda sobre esse tema, a entrevistadora pergunta:

“Os anos rebeldes estão na moda?” e Patarra responde:

321 GIANNINI, Silvio. Romance nos porões. Veja, 15 jul. 1992, Televisão, p. 86. 322 ‘ANOS rebeldes’ desperta reações emocionadas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 jul. 1992, Caderno 2,

Televisão, p. 2. 323 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 7. 324 Ibid., p. 8.

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Talvez seja um modismo, como voltar a usar roupas hippies e deixar o cabelo

comprido. Mas eu prefiro achar que o interesse pela minissérie está relacionado às

crenças e ao clima da época. (...) O reencontro com o passado, neste momento em que

o Brasil vive uma crise de valores, pode ser entendido como uma tentava de reviver

algo que foi digno de orgulho. Espero que a noção de justiça dos jovens rebeldes

esteja atraindo telespectadores325.

A “crise de valores” à qual Patarra se refere corresponde ao escândalo envolvendo o

governo do presidente Fernando Collor326, em maio deste mesmo ano de 1992: “o irmão do

presidente, Pedro Collor, concedeu uma entrevista à Veja na qual acusava Paulo César (PC)

Farias, tesoureiro da campanha de Collor, de comandar um grande esquema de corrupção, com

o envolvimento direto do presidente”327, tópico sobre o qual a entrevistadora pede que Patarra

comente:

Veja – Nos anos 60, muitos jovens lutavam pela liberdade, contra a ditadura e havia

grande politização. Hoje, a CPI do PC Farias não agita as ruas. A corrupção é um tema

sem apelo para mobilizar a sociedade?

Judith – Depois do golpe militar, houve um processo de mobilização. Mas ele foi lento

e restrito a alguns centros urbanos. É preciso lembrar que muitos brasileiros, talvez a

maioria, não se rebelaram contra a ditadura. Ao contrário, concordavam com ela. Por

isso, acredito que não é impossível mobilizar pessoas de alguns centros mais

politizados para tentar modificar o atual estado das coisas. O movimento das diretas

já começou em 1983 como um ato político do nada e foi crescendo aos poucos por

todo o país. Agora, o mesmo fenômeno pode se repetir328.

Nesta entrevista, Patarra aproxima as mobilizações do período da ditadura com as

reivindicações políticas de sua época – reforçando a relação entre a evocação do passado e sua

influência no presente.

Em 21 de agosto de 1992, a Tribuna da Imprensa noticiou o relançamento da biografia

de Iara no evento “Tarde dos anos de chumbo”, promovido pela Associação Scholem Aleichem

de Cultura e Recreação, em Botafogo, no Rio de Janeiro329. Tal evento foi organizado em

decorrência do encerramento da exibição da minissérie.

325 Ibid., p. 7, grifos meus. 326 Fernando Affonso Collor de Mello é um político brasileiro. Foi presidente do Brasil de 1990 até 1992, quando

renunciou - após ter sido iniciado um processo de impeachment. Atualmente é Senador por Alagoas, pelo Partido

Trabalhista Cristão (PTC). Fonte: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/collor-

fernando>. Acesso em: 8 mar. 2019. 327 COMO foi o processo de impeachment de Collor? Guia do Estudante, 14 abr. 2016. Disponível em:

<https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/como-foi-o-processo-de-impeachment-de-collor/>. Acesso em: 29

jun. 2018. 328 GIUDICE, 1992, op. cit., p. 8. 329 ANOS de chumbo. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 21 ago. 1992, Tribuna Bis, p. 6.

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No final de 1992, em 26 de dezembro, o Jornal do Brasil publicou no Caderno

“Ideias/Livros & Ensaios” o box “O que eles estão lendo – Os melhores de 92”, com três

pessoas influentes indicando os melhores livros que leram naquele ano. Uma dessas pessoas foi

José Dirceu, que indicou:

Trabalhando até 16 horas por dia nos dossiês da CPI, não tive muito tempo para

leitura. Li Os anos Mitterrand de Franz-Olivier Giesbert, obra indispensável para

quem quer governar. Ótimo também O impeachment, clássico do ministro Paulo

Brossard. Mas o melhor, que ainda não consegui acabar, é Iara, uma autobiografia

(sic) de Judith Patarra330.

Os livros mencionados por José Dirceu têm todos relação mais ou menos direta com o

processo de impeachment de Collor, exceto a biografia de Iavelberg. Dirceu foi o relator da CPI

“PC Farias”331, processo aberto a partir da denúncia apontada anteriormente.

O lançamento da biografia de Iara teve grande impacto sobre Anos Rebeldes, à qual foi

constantemente associada, como demonstraram as fontes analisadas. A minissérie, por sua vez,

teve influência sobre o processo de impeachment e sobre as manifestações públicas feitas a seu

favor (tão reivindicadas pela Veja) – que utilizaram signos e discursos criados pela oposição ao

regime ditatorial e que foram veiculados na televisão332:

(...) testemunhos de época insistem em afirmar que se estabeleceram relações entre as

manifestações públicas que precederam o processo de impeachment e a minissérie. A

revista de maior circulação nacional — a Veja —, por exemplo, afirmava numa das

reportagens sobre as manifestações pró-impeachment que nos 50 mil panfletos e 20

mil cartazes distribuídos pela União Brasileira de Estudantes Secundaristas

convocando a população para a manifestação de São Paulo “se lia ‘Anos Rebeldes,

próximo capítulo: Fora Collor, Impeachment Já’”333.

Abdala Junior aponta ainda que a minissérie apresentou um “exagero de detalhes”, tal

qual a biografia constituída por Patarra:

Os detalhes de época reunidos na minissérie são mesmo impressionantes: signos dos

anos 1960, de toda natureza, circulam nas mãos dos personagens, na cenografia que

compõem suas ações — em cenas de estúdio ou externas, nas conversas dos

personagens e até mesmo o clima de opressão que a população brasileira enfrentou

durante o período da ditadura aparece representado na obra334.

330 O QUE eles estão lendo / Os melhores de 92. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 dez. 1992. Caderno

Ideias/Livros & Ensaios, p. 12. 331 JOSÉ DIRCEU. Memória Roda Viva, 29 jun. 1992. Disponível em:

<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/725/entrevistados/jose_dirceu_1992.htm>. Acesso em: 30 jun. 2018. 332 ABDALA JUNIOR, 2012, op. cit., p. 110. 333 Ibid., p. 95. 334 Ibid., p. 103.

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As opções discursivas têm, de fato, muito em comum. A repercussão gerada tanto pela

minissérie quanto pela obra de Patarra foi grande, uma vez que a primeira foi reprisada três

vezes e a última teve todas as edições esgotadas.

Em 5 de dezembro de 1993, foi lançado o curta Iara - Lembranças de uma mulher, com

duração de 13'32'', dirigido por Alberto Baumstein335 e Renato Sacerdote336 e produzido pela

VIDECOM – Vídeo Comunicações do Brasil337, com apoio da Secretaria de Cultura do

Governo do Estado de São Paulo. Durante a exibição dos créditos iniciais, ouvimos um diálogo

por rádio solicitando a volta dos militares para o apartamento no bairro da Pituba, em Salvador,

pois uma mulher armada foi encontrada por uma criança no quarto. Um dos interlocutores

afirma: “a ordem é só capturar, eu repito, é só capturar338”.

A primeira cena é uma interpretação de Mariana Pamplona, sobrinha de Iavelberg, dos

últimos minutos de vida de sua tia. A cena, em preto e branco, se passa em um cômodo cheio

de fumaça – gás lacrimogêneo, mencionado durante o diálogo entre os militares no rádio, para

que a moça não atirasse. Iara segura uma arma e demonstra estar desesperada. Não há falas da

personagem, que, quando o gás se intensifica, senta-se e aponta a arma em direção ao peito,

atirando. Em seguida, a porta é arrombada pelos militares, que a encontram morta.

Após a dramatização do suicídio de Iara, é transcrita na tela uma parte do documento

sobre sua morte: “... 20 ago 71 – Na operação do CODI/6 na Pituba, Salvador/Bahia: - Iara

Iavelberg 27 anos, 'falecida'...”.

Então, iniciam-se os depoimentos. Todo relato é introduzido com uma foto do depoente

na época em que Iara era viva, com o nome usado na época – nos casos de militantes, os nomes

de guerra – e suas atividades – no caso de Patarra, jornalista; no caso dos militantes, sua

organização etc.; ao exibir o vídeo “atual”, mais uma vez são colocados os nomes e as atividades

exercidas, só que em relação ao presente do documentário – José Dirceu, por exemplo, é

descrito como Deputado Federal.

O primeiro dos depoimentos é o de Judith Patarra – apontada como, na atualidade,

“autora do livro 'Iara'” – no qual ela afirma, reproduzindo o conteúdo de sua obra:

335 Diretor e dono da produtora VIDECOM. 336 Consultor de comunicação e advogado especializado em mediação de conflitos. 337 Produtora de vídeo e multimídia de São Paulo. 338 IARA - Lembrança de uma mulher. Direção: Alberto Baumstein e Renato Sacerdote. Produção: VIDECOM e

Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. 13'32''. São Paulo: VIDECOM, 1993. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=jAZPFhArSnk>. Acesso em: 30 jun. 2018.

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A gente esqueceu muito depressa tudo o que aconteceu na ditadura. Eu tava

procurando uma pessoa pra fazer uma biografia e trazer junto a época. E a Iara se

prestava a isso muito bem, porque ela viveu muitas vidas na vida curta dela, né. Ela

teve aquela infância muito, muito estreita, quer dizer, muito, vamos dizer, careta, né.

Na época em que ela morava no Ipiranga. E depois o casamento que não deu certo,

que já foi uma afronta pras coisas, vamos dizer, estabelecidas. E depois a ida dela pra

Maria Antônia. Então, é outra vida, né, completamente diferente daquela que ela tinha

se formado. E depois o envolvimento, a preocupação dela com a justiça social339.

Em seguida ao seu depoimento, são exibidos os testemunhos do irmão de Iara, Samuel

Iavelberg; José Dirceu, ex-namorado; “Tutinha340”, amiga; Alfredo Sirkis, participante da

captura dos embaixadores alemão e suíço; Maria Lúcia de Carvalho, amiga de Iara; Chizuo

“Mário” Osava, ex-militante da VPR; Darcy Rodrigues, ex-sargento do exército e ex-militante

ao lado de Lamarca e Iara; Maria do Carmo Brito, ex-militante da VPR; Rosa Iavelberg, irmã

de Iara.

Todas as pessoas são mostradas testemunhando mais de uma vez, exceto Patarra – a

única que não conviveu pessoalmente com Iara. Ainda assim, sua fala é a que abre o filme,

tratando do contexto da época e, nos créditos, há um agradecimento feito nominalmente a ela:

“agradecimentos especiais: Judith L. Patarra (autora do livro IARA) e a todos aqueles que

deram seus depoimentos”. Ao que parece, a produção do documentário foi muito influenciada

pela publicação do livro de Patarra.

O documentário foi contemplado com o Prêmio Estímulo para a Realização de

Videotape de 1993, organizado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo – estimo que,

atualmente, este prêmio corresponda ao Prêmio Estímulo ao Curta-Metragem. Criado em 1968,

é a mais antiga ação de fomento do Estado de São Paulo. Trata-se de um concurso

voltado à seleção anual de projetos em audiovisual, cujo produto final sejam filmes

com até 25 minutos de duração. A seleção é feita por uma comissão julgadora com

cinco integrantes, sendo composta por especialistas em cinema (diretores, curadores,

produtores e professores universitários) e gestores da Secretaria. Ao longo dos anos,

tornou-se o principal instrumento de incentivo na formação de novos realizadores do

cinema paulista, sendo mecanismo essencial da política pública de apoio ao

audiovisual no Estado341.

Após 14 anos da publicação da primeira edição da biografia de Lamarca, e dois anos

após a primeira edição de Iara, foi lançado o filme Lamarca, dirigido por Sérgio Rezende,

339 Idem. 340 Maria Clotilde Magaldi, conhecida como Tutinha Magaldi, Psicóloga formada na USP. Foi aluna de Iara no

Cursinho Popular da Filosofia e, então, viraram amigas. 341 PRÊMIO Estímulo ao Curta-Metragem. ProacSP – Incentivo à Cultura do Estado de São Paulo. Disponível em:

<http://www.proac.sp.gov.br/premio_estimulo/principal/>. Acesso em: 30 jun. 2018.

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baseado no livro de Emiliano José e Oldack Miranda. O ator Paulo Betti interpretou o capitão

e atriz Carla Camurati interpretou “Clara”, personagem baseada em Iara. A Revista Cláudia,

em 1993, publicou uma nota sobre o lançamento da biografia e, na mesma edição, uma segunda

tratando da representação de Iara e Lamarca no cinema:

Cinema mostra Iara e Lamarca

O cinema nacional começa a sair das trevas revisitando fantasmas da história brasileira

recente. Sério Rezende, que dirigiu O homem da capa preta e Doida demais, começa

a filmar a vida de Carlos Lamarca – oficial que deixou o Exército para aderir à luta

armada no final dos anos 60 e foi morto na Bahia, em 1971. Sua ex-mulher, Iara

Iavelberg, também será mostrada nas telas, em adaptação de Tizuka Yamasaki do livro

Iara, da jornalista Judith Patarra.

Contudo, o filme sobre Iara não chegou a ser produzido.

Mais recentemente, em 2013, o jornalista Otávio Cabral publicou uma biografia de José

Dirceu, intitulada Dirceu: a biografia, editada pela Record – a mesma responsável pelo selo

Rosa dos Tempos, que publicou Iara. O relacionamento de Dirceu com Iavelberg toma um

capítulo de um total de 23, que compreendem desde a década de 1960 até sua condenação pelo

Supremo Tribunal Federal, em 2012.

Denominado “Você partiu e me deixou”342, o capítulo tem como epígrafe uma frase

atribuída pelo autor à Iara, mas sem referência que confirme a informação: “Cabeludo e

desempregado aos 17 anos, apenas dois jogos de roupa, quase roubara. Mas arranjava quem

cuidasse de si e das contas, chamego de mulheres343”. Todo o capítulo tem como fonte principal

a obra de Patarra e inclui, indiscriminadamente, os diálogos criados por ela, reproduzindo até

mesmo a ideia de que Dirceu teria sido o “primeiro homem” de Iara. A obra tem o objetivo de

apurar fatos sobre José Dirceu, segundo o próprio autor no Prefácio: “se ele tinha segredos que

só poderia revelar depois dos 80 anos, eu precisava desvendá-los antes disso. Se não todos, pelo

menos boa parte deles”344. Contudo, a respeito da relação do biografado com Iara Iavelberg,

não houve apuração alguma, apenas uma reprodução de informações criadas por Patarra.

****

A amplitude do alcance da memória vinculada ao livro de Patarra é considerável. Além

de indicar a grande circulação do livro entre o público leitor e sua reprodução em outros meios

342 Trecho de Nossa Canção, de Roberto Carlos (1966). 343 CABRAL, Otávio. Dirceu: uma biografia. São Paulo: Record, 2013, p. 20. 344 Ibid., p. 10.

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e suportes – notícias de jornal, documentário, historiografia, participação da autora em

entrevistas –, revela também um interesse sobre a personagem – que, apesar de ser, em alguns

casos, prévio ao lançamento do livro, agravou-se com ele, ultrapassando os limites da esquerda.

Iara tornou-se popular principalmente entre os setores mais à esquerda e progressistas.

O interesse dessa memória específica por assuntos comuns ao dia-a-dia feminino, sua

sensibilidade e feminilidade e a centralidade do romance na narrativa biográfica aproximam

Iara do grande público – preferencialmente o feminino –, criando um laço de identidade e até

mesmo de representatividade entre mulheres de classe-média – ou, leitoras de Revista Cláudia.

Para além disso, a narrativa vinculada por Patarra no livro está em constante diálogo

com a memória hegemônica previamente discutida, que é, sem dúvidas, crítica à ditadura,

como apontou Napolitano. Contudo, é preciso compreender o que essa “criticidade” mascara:

os discursos de memória, ao rechaçarem apenas os militares e o governo autoritário, o fizeram

em troca do esquecimento sobre os apoios e consensos da população, em seus diversos setores,

em torno do regime – elementos fundamentais de serem lembrados para uma reflexão mais

aprofundada sobre o período. Esse caráter conciliador, impregnado do mito da sociedade

resistente, provoca uma celebração pouco crítica da oposição. Dessa forma, o projeto

revolucionário é silenciado, substituído por um “senso de justiça” que esvazia a ideologia das

esquerdas armadas.

Pode-se concluir que a Iara, de Patarra, tomou um lugar de memória dominante sobre

as jovens mulheres de esquerda dos anos 1960. Se as memórias das esquerdas – embora

ressignificadas como “resistência armada” – ocupam papel hegemônico na batalha por

memórias sobre a ditadura, pode-se identificar uma outra batalha dentro dessa pluralidade de

narrativas, dentre a qual algumas se sobressaem. Iara se sobressaiu e é lugar comum quando se

deseja tratar da militância feminina principalmente por sua narrativa “adocicada” e acessível ao

público leitor de classe média. O discurso memorial criado por Patarra é, na maioria das vezes,

tomado por história. A intenção deste capítulo foi refletir sobre este aspecto e problematizá-lo,

atentando para os limites da memória, as influências do presente sobre ela, que não podem ser

esquecidas pelos historiadores.

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CAPÍTULO 3 - UMA GUERRILHEIRA QUE NÃO GUERRILHOU: A BIOGRAFIA

DE DILMA ROUSSEFF POR RICARDO BATISTA AMARAL

Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família, pela inocência das crianças

em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade,

contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,

o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas,

por um Brasil acima de tudo, e Deus acima de todos, o meu voto é sim345.

Em 17 de abril de 2016, dia da votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff

no Congresso Nacional, o então deputado federal Jair Bolsonaro346, durante a manifestação de

seu voto, fez o discurso citado acima. Dentre outros fatores, Bolsonaro justificou seu

posicionamento favorável ao impedimento da presidenta com base em elementos do passado

dela de militância na luta armada: demarcou duas derrotas do comunismo, a primeira em 1964,

com o golpe civil-militar, e a segunda em 2016, com o início do processo de derrubada da

presidenta do poder. Além disso, Bolsonaro prestou homenagem à memória do coronel Carlos

Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi de São Paulo, notório torturador e responsável

pelas mortes de inúmeros militantes durante a ditadura – “o pavor de Dilma”.

Este discurso, assim como toda a votação, foi transmitido por diversos canais da TV

aberta – com exceção do SBT. De acordo com o UOL, apenas a transmissão da Rede Globo foi

vista por 82 milhões de brasileiros, considerando todo o tempo de exibição (das 15h30 às

23h50). No momento de maior audiência, cerca de 34 milhões de telespectadores estavam

sintonizados347. Segundo a BBC Brasil¸ “a emissora passou quase 500 minutos sem

interrupções com a cobertura ao vivo da Câmara dos Deputados, um tempo recorde – mais até

do que durante a cobertura do 11 de Setembro, em 2001”348.

Não houve constrangimento por parte do ex-deputado Bolsonaro em proferir um

discurso a favor da ditadura civil-militar e, principalmente, de um torturador – discurso esse

televisionado e assistido por milhões de brasileiros. Atitudes como esta demonstram haver uma

ruptura na memória hegemônica sobre a ditadura, apresentada no primeiro capítulo desta

345 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=h3VoCM91gu4>. Acesso em: 31 jan. 2018. 346 No ano da publicação dessa dissertação, presidente da República. 347 CASTRO, Daniel. Transmissão histórica: mais de 82 milhões de brasileiros viram impeachment de Dilma pela

Globo. Notícias da TV – UOL, 19 abr. 2016. Disponível em:

<https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/audiencias/mais-de-oitenta-e-dois-milhoes-de-brasileiros-viram-

impeachment-de-dilma-na-globo--11045>. Acesso em: 12 fev. 2019. 348 MENDONÇA, Renata. Votação do impeachment revela 5 coisas que você não sabia sobre a Câmara. BBC

Brasil, São Paulo, 19 abr. 2016. Disponível em:

<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160419_impeachment_revela_congresso_rm>/ Acesso em:

16 jan. 2019.

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dissertação – memória esta personificada na trajetória da então presidenta –, uma vez que o

discurso recebeu apoio de setores da sociedade. Este episódio é um exemplo entre outros que

vêm acontecendo desde meados dos anos 2010, nos quais grupos, ainda que minoritários,

demonstram claramente seu apoio à ditadura. Cabe ressaltar que a fala do então deputado foi

permeada por vaias e gritos de apoio no Congresso – a consolidação das batalhas pela memória.

Os questionamentos e desconfianças a respeito da militância de Dilma Rousseff,

contudo, não começaram apenas no processo de impeachment, mas sim desde o lançamento de

sua primeira candidatura à presidência, em 2010. Dessa forma, nesse capítulo analisarei a

biografia, de certa forma “oficial”, lançada em 2011 – primeiro ano do primeiro mandato – pelo

jornalista Ricardo Batista Amaral, que pareceu ter o objetivo de acalentar as inquietações dos

eleitores e estabelecer uma narrativa única para a vida de Rousseff. Estudarei aqui em que

medida o autor obteve sucesso e os limites dessa construção narrativa.

3.1 A TRAJETÓRIA DE DILMA ROUSSEFF

A história de Dilma Rousseff foi, pelo menos desde sua eleição, muito disputada por

diversos atores da sociedade: imprensa, organizações e partidos políticos, indivíduos comuns

etc. Uma breve busca na plataforma de compartilhamento de vídeos YouTube resulta em

milhares de vídeos que propõem contar sua “verdadeira história”, a “história não contada” ou

revelar os “segredos” de seu “passado negro” [sic] e apurar os “crimes” por ela cometidos. A

atenção pode ser justificada pelo fato de Dilma ter cumprido mandatos na presidência do país.

Contudo, para além disso, o motivo para toda a polêmica é, provavelmente, seu engajamento

em organizações de luta armada contra a ditadura durante sua juventude – parte de sua vida que

será priorizada nesta dissertação.

Dilma Vana Rousseff foi a primeira presidenta mulher do Brasil, eleita por dois

mandatos consecutivos, mas já estava engajada politicamente desde a juventude. Foi militante

de organizações revolucionárias durante a ditadura civil-militar, entre elas a POLOP, COLINA

e VAR-Palmares. Nasceu em 14 de dezembro de 1947, em Belo Horizonte, e tem 71 anos no

ano da publicação dessa dissertação. Filha de um imigrante búlgaro, Pétar Russév – ou Pedro

Rousseff, no Brasil – e de uma fluminense criada em Uberaba, Dilma Jane da Silva, ela teve

outros dois irmãos: Igor e Zana Rousseff. O pai trabalhava construindo imóveis e revendendo-

os para obter lucro e a mãe era professora primária349.

349 SEGALLA, Amauri. A história do pai. Istoé, 1 nov. 2010. Disponível em:

<https://istoe.com.br/103655_A+HISTORIA+DO+PAI/>. Acesso em: 17 jan. 2019.

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Dilma estudou o Curso Clássico350 no Colégio Estadual Central de BH, entre 1964 e

1966, onde iniciou sua militância política351, por volta dos 16 anos. O colégio era um local de

grande efervescência do movimento estudantil, com atuação de diversas organizações, como a

POLOP, a Ação Popular (AP), a Juventude Estudantil Católica (JEC) e o PCB352 – Dilma se

engajou na POLOP. Sua principal função na organização era a de editar o jornal clandestino O

Piquete, “voltado para o trabalho de base no meio operário e sindical”353.

Nessa época, conheceu Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, militante da POLOP

desde 1962, recém-liberto da prisão, para a qual foi enviado pouco após o golpe, em junho de

1964354. Cláudio Galeno trabalhava no jornal Última Hora, em BH, e os dois começaram um

namoro.

Em 1967, Dilma ingressou no curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal

de Minas Gerais (UFMG) – o qual não conseguiu concluir, pois em 1969 partiu para a

clandestinidade. Ainda em 1967, por ocasião do racha da POLOP355, houve a formação de dois

grupos dissidentes, entre eles o Comandos de Libertação Nacional (COLINA) – inicialmente

chamada de O. [ó pontinho]356. Dilma e Cláudio Galeno migraram para a COLINA, como

aponta Isabel Leite:

Alguns nomes recorrentes na transição POLOP-COLINA são: Ângelo Pezzuti, João

Lucas Alves, Carlos Alberto Soares, Guido Rocha, Oroslinda Goulart, Juarez Brito,

Apolo Lisboa, Jorge Nahas, Dilma Vana Roussef [sic], Gilberto Martins Vasconcelos,

350 Modalidade que corresponde ao atual Ensino Médio, com duração de três anos, porém, com foco nas Ciências

Humanas e área de Letras. 351 AZEVEDO, Solange. A descoberta política no Colégio Central. Istoé, 1 nov. 2010. Disponível em:

<https://istoe.com.br/103661_A+DESCOBERTA+DA+POLITICA+NO+COLEGIO+CENTRAL/>. Acesso em:

21 dez. 2018. 352 TEIXEIRA, Aleluia Heringer Lisboa. “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-

1964). Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo

Horizonte: UFMG, 2011. Disponível em:

<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/FAEC-

8GAGQB/tese___uma_escola_sem_muros.pdf?sequence=1>. Acesso em: 21 dez. 2018. 353 POLOP vem contestar hegemonia dos PCs. Memorial da democracia, s./d. Disponível em:

<http://memorialdademocracia.com.br/card/a-polop-contesta-o-dogmatismo>. Acesso em: 17 jan. 2019. 354 THOELE, Alexander. Entrevista com ex-marido da Dilma: "Éramos socialistas. E o sou até hoje". SwissInfo,

Bienne, 28 ago. 2014. Disponível em: <https://www.swissinfo.ch/por/entrevista-com-ex-mrido-da-

dilma/40570706>. Acesso em: 17 jan. 2019. 355 “Grupos majoritários em Minas Gerais e São Paulo divergiram da posição da direção a respeito da questão da

luta armada. As resoluções programáticas da POLOP incluíam a luta armada, até mesmo com a construção de

focos, mas aqueles grupos consideravam insuficientes as formulações e exigiam respostas práticas mais imediatas.

O cisma dividiu a POLOP ao meio e deu origem a duas organizações dissidentes: o Comando de Libertação

Nacional (COLINA), em Minas Gerais, e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), em São Paulo (depois estes

grupos se ramificaram em outros estados)”. Cf. COELHO & SANTOS, 2011, op. cit., p. 5. 356 OLIVEIRA, Joelma Alves de. POLOP: as origens, a coesão e a cisão de uma organização marxista (1961-

1967). Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007, p. 14.

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Herbert Eustáquio de Carvalho, Marcos Antonio Rocha, Reinaldo José de Melo, Jorge

Batista Filho e Cláudio Galeno Linhares357.

Em setembro desse mesmo ano, Dilma e Cláudio se casaram, ela com 19 e ele com 25

anos358. Ambos eram importantes quadros da nova organização – Dilma, especificamente, era

do Setor Operário, no qual retomou a publicação d’O Piquete. Em seu auto de qualificação e

interrogatório359 consta que:

(...) tendo em vista os últimos reveses a dissidência da POLOP [COLINA] resolveu

ressuscitar um jornal que havia sido da POLOP, de nome PIQUETE, cuja tônica do

noticiário era diatribes à linha da AP, no que diz respeito a deflagração de greves, no

dizer dos articulistas, precipitadas (...)360.

Dilma também era responsável pela organização de cursos de marxismo para os outros

integrantes da organização, como demonstram as informações que forneceu aos agentes de

segurança, sob tortura:

(...) a indagada teve oportunidade juntamente com OROSLINDA de ministrar dois

cursos de capacitação política masxista [sic] para uma célula do Setor Operário, então

composta por VERA LIGIA HUBRA [sic], um tal de MARCELO e um operário

amigo de VERA LIGIA; Que, tal curso teve a duração aproximada de dois meses e

foram as aulas ministradas na residência de VERA; (...)361.

Em relação às ações armadas, não há evidências concretas da participação direta ou não

de Dilma; contudo, é fato que a organização as realizou durante o período de seu engajamento:

“três assaltos a banco e um atentado a bomba (...); que, lembra-se a interroganda que o ataque

a bomba por ela referido foi praticado na casa do Interventor do Sindicato dos Metalúrgicos;

atingindo também a casa do Delegado Regional do Trabalho, pois as residências eram

contíguas”362. Ainda assim, a opção pelo engajamento em uma organização revolucionária já

presumia o envolvimento com atividades armadas, independentemente de um envolvimento

“direto” ou não.

No início de 1969, com o aumento das prisões de militantes do COLINA, Dilma e

Cláudio tiveram que partir para a clandestinidade, na cidade do Rio de Janeiro. Pouco tempo

357 LEITE, Isabel. Comandos de Libertação Nacional: oposição armada à ditadura em Minas Gerais (1967-1969).

Dissertação (Mestrado em História e Culturas Políticas) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,

2009, p. 112, grifos meus. 358 Idem. 359 Interrogatório este feito sob tortura. 360 DOPS, 1970, op. cit., p. 1332. 361 Ibid., p. 1333. 362 Idem.

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depois, Cláudio foi enviado a Porto Alegre363. Dilma, no Rio, tinha funções cada vez mais

relevantes na organização: “(...) nas vésperas da fusão da COLINA com a VPR a interroganda

e ERBERT [sic] foram designados para integrarem o Comando Geral da COLINA (...)”364.

Segundo o jornalista Luiz Maklouf, ela ficou responsável pelo transporte de armas e munição,

participação em reuniões e produção de documentos365.

Como parte da liderança da COLINA, Dilma participou da reunião em Mongaguá, ainda

em 1969, que iniciou a fusão desta organização com a VPR e, posteriormente, da reunião que

ratificou a união, formando a VAR-Palmares:

que, na data marcada para a nova reunião, em início de julho de 1969, a interroganda

mais os elementos acima citados compareceram à reunião (...); que nessa reunião foi

decidida a união das duas organizações, sendo que três foram as principais decisões

tomadas na mesma, ou seja: a Escolha Geral de Área Extratégica [sic] (para

guerrilhas) (...); CRIAÇÃO DA VAR-PALMARES E ELEIÇÃO DO COMANDO

NACIONAL (...)366.

Dilma não integrou o Comando Nacional da VAR, mas passou a compor a Assessoria

do Comando do Setor de Lutas Secundárias, responsável pela administração de regiões sem

“colunas”367 guerrilheiras, setor dirigido por “Max”368 – o advogado Carlos Franklin Paixão de

Araújo, com quem Dilma estava em um relacionamento. Em viagem ao Rio Grande do Sul para

ações da Assessoria, ela terminou seu casamento com Cláudio, contando-lhe sobre seu novo

relacionamento com Max369.

Em decorrência do “racha dos sete”, a saída de Lamarca e outros companheiros da VAR

por divergências políticas, Dilma voltou às atividades de formação na organização: era a

responsável pela coordenação do Setor Operário e do Setor Estudantil e “ministrava aulas de

marxismo-leninismo para as duas células”370, para integrantes do movimento estudantil e

operário, um cargo de extrema importância.

Em 16 de janeiro de 1970, Dilma foi presa e levada ao DOI-Codi, na Rua Tutóia, São

Paulo. A partir desse dia, a militante foi duramente torturada durante a realização dos

363 CARVALHO, 2009, op. cit., passim. 364 DOPS, 1970, op. cit., p. 1334. 365 CARVALHO, 2009, op. cit., passim. 366 DOPS, 1970, op. cit., p. 1336. 367 Segundo Domenico Hur, “o foco devia se organizar como uma Coluna Guerrilheira em deslocamento, sendo

base do futuro Exército Guerrilheiro. Quando mais organizado, poderia adquirir as características de um Exército

Regular, que poderia combater e vencer o Exército do Estado”. HUR, Domenico Uhng. Cartografias da luta

armada: a guerrilha como máquina de guerra. Mnemosine, v. 8, n. 2, 2012, p. 8. 368 DOPS, 1970, op. cit., p. 1337. 369 CARVALHO, 2009, op. cit., passim. 370 DOPS, 1970, op. cit., p. 1341.

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interrogatórios. Seu registro oficial, no entanto, foi apenas feito no dia 19 de fevereiro, quando

ela foi transferida para o DOPS, no Largo General Osório371. Em depoimento à Comissão de

Direitos Humanos, em 2001, Dilma explicou esse fato: só se passava a existir legalmente ao

chegar no DOPS372. Dilma permaneceu encarcerada por cerca de 3 anos, sendo transferida

constantemente entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro – três estados onde foi

processada pela Justiça Militar.

Em maio de 1970, ocorreu sua primeira transferência para Minas Gerais, com o objetivo

de prestar depoimento à Auditoria da 4ª Circunscrição Jurídica Militar (CJM) realizada na

cidade de Juiz de Fora. A respeito dessa época, Dilma relatou:

Mas, depois do depoimento [à Auditoria], eu fui levada, (ou melhor teria de ser levada

para SP), mas fui colocada num local (encapuçada) que sobre ele tinha várias

suposições: ou era uma instalação do Exército, ou Delegacia de Polícia. Mas acho que

não era do Exército, pois depois estive no QG Exército e não era lá. Nesse lugar ficou

sendo interrogada sistematicamente e queriam que entregasse os contatos de PM

[Polícia Militar] ou PC [Polícia Civil] para viabilizar a fuga do Angelo [Pezzuti]. Não

era sobretudo sobre minha militância em MG. Supuseram que, tendo apreendido

documentos do Angelo que integram o processo, achavam que nossa organização

tinha contatos com a PM ou PC mineira que possibilitassem fugas de presos. Acredito

ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não era presa recente; não tinha

“pontos” e “aparelhos” para entregar373.

Também foi torturada no 1° Batalhão da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro,

localizado na Rua Barão de Mesquita, para onde foi transferida provavelmente em dezembro

de 1971. Dilma, a respeito da experiência vivida nesse local, relatou: “dentro da Barão de

Mesquita (RJ) ninguém via ninguém. Havia um buraquinho, na porta, por onde se acendia

cigarro”374.

Foi transferida novamente para Minas em janeiro de 1972:

Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia de PE, 4ª RM,

lá apareceu outra vez o DOPS que me interrogava. Mas foi um interrogatório bem

mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro. Um dia, a gente estava nessa cela,

sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois

371 DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL (DOPS). Prontuário – Dilma Vana Rousseff

Linhares. Secretaria da Segurança Pública, São Paulo, 19 fev. 1970. Disponível em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/deops/fichas/DEOPSSPD002556.pdf>. Acesso em:

31 jan. 2019. 372 COMISSÃO ESTADUAL DE INDENIZAÇÃO ÀS VÍTIMAS DE TORTURA DO ESTADO DE MINAS

(CEIVT). Depoimento de Dilma Vana Rousseff. Rio Grande do Sul, 25 out. 2001, p. 1. Disponível em:

<http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/documentos/Capitulo9/Nota%20212%20241%20243%20-

%2000092_001027_2012_80.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2019. 373 Ibid., p. 2. 374 Ibid., p. 3

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estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos

para o hospital375.

A respeito das sevícias sofridas, Dilma, no depoimento concedido em 2001, afirmou:

“as marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”376.

No processo de Minas Gerais, Dilma foi condenada à pena de um ano de detenção377,

com base no artigo 36378; no Rio de Janeiro, a um ano e um mês379; em São Paulo, a quatro

anos, com base no artigo 14380, e teve seus direitos políticos suspensos por 10 anos381.

Como o Supremo Tribunal Militar reduziu sua pena para dois anos e um mês382, em

meados de 1972, Dilma foi solta e passou a viver em Porto Alegre, próximo à prisão de seu

então marido, Carlos Franklin Paixão de Araújo. Nesse período, ela retomou os estudos

interrompidos por conta da ida para a clandestinidade, na Universidade Federal do Rio Grande

do Sul, e teve seu primeiro emprego: foi estagiária da Fundação de Economia e Estatística

(FEE) em 1975383. Em 1977, constava na lista de “subversivos” que trabalhavam em estatais,

elaborada pelo ministro do Exército, Sylvio Frota384.

Após a soltura de Carlos, o casal teve uma filha, a primeira e única de Dilma, Paula

Rousseff Araújo, em 1976. No período de transição para a democracia, a partir de 1979, Dilma

participou ativamente das discussões que deram origem ao Partido Democrático Trabalhista

(PDT), ao qual permaneceu filiada até 2001. Através do PDT, ocupou cargos em diversos

governos: Secretária da Fazenda, diretora-geral da Câmara Municipal de Porto Alegre,

375 Idem. 376 Ibid., p. 4. 377 BRASIL: NUNCA MAIS. Sumário do BNM 158. Disponível em:

<http://bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/200/158.html#T2>. Acesso em: 31 jan. 2019. 378 Art. 36. Fundar ou manter, sem permissão legal, organizações de tipo militar, seja qual fôr o motivo ou pretexto,

assim como tentar reorganizar partido político cujo registro tenha sido cassado ou fazer funcionar partido sem o

respectivo registro ou, ainda associação dissolvida legalmente, ou cujo funcionamento tenha sido suspenso: Pena

- detenção, de 1 a 2 anos. BRASIL. Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967. Define os crimes contra a

segurança nacional, a ordem política e social e dá outras providências. Brasília, 13 mar. 1967. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-

publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 31 jan. 2019. 379 BRASIL: NUNCA MAIS. Sumário do BNM 186. Disponível em:

<http://bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/200/186.html>. Acesso em: 31 jan. 2019. 380 Art. 14. Divulgar, por qualquer meio de publicidade, notícias falsas, tendenciosas ou deturpadas, de modo a pôr

em perigo o bom nome, a autoridade o crédito ou o prestígio do Brasil: pena - detenção, de 6 meses a 2 anos. 381 BRASIL: NUNCA MAIS. Sumário do BNM 095. Disponível em:

<http://bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/100/095.html >. Acesso em: 31 jan. 2019. 382 DILMA Rousseff. Primeira mulher a ser eleita presidente no Brasil, Dilma sofreu impeachment no Congresso.

Porém, conseguiu manter o direito de assumir cargo público. Época, 30 jun. 2016. Disponível em:

<https://epoca.globo.com/tudo-sobre/noticia/2016/06/dilma-rousseff.html>. Acesso em: 2 mar. 2019. 383 BIOGRAFIA da presidenta. Governo do Brasil, 11 jan. 2011. Disponível em:

<http://www.brasil.gov.br/governo/2011/01/biografia-da-presidenta>. Acesso em: 7 fev. 2019. 384 BAHIA vai investigar denunciados na lista. O Estado de S. Paulo, 26 nov. 1977, p. 12.

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Secretária Estadual de Minas, Energia e Comunicação do Rio Grande do Sul e, na década de

1990, retornou à Fundação de Economia e Estatística, desta vez como diretora385.

Filiou-se ao PT em 2002, integrando a equipe de transição dos governos Fernando

Henrique Cardoso – Luiz Inácio Lula da Silva386. Após a posse de Lula, foi nomeada Ministra

de Minas e Energia. A partir de 2005, com o afastamento de José Dirceu387, foi escolhida para

ocupar o cargo de Ministra-Chefe da Casa Civil, no qual permaneceu até 2010, quando foi eleita

Presidenta do Brasil. Exerceu o primeiro mandato de 2011 a 2014, quando foi eleita para o

segundo. Este, no entanto, foi interrompido por um impeachment, em 2016.

3.2 CONSTITUIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO LIVRO: O AUTOR E O PROCESSO DE

ESCRITA

A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a primeira presidenta do Brasil

teve a primeira e única edição brasileira publicada em 5 de dezembro de 2011, pelo selo

Primeira Pessoa da editora Sextante. Este selo, fundado em 2010, segundo a própria editora,

tem “como missão publicar histórias de brasileiros que contribuem para o crescimento da

cidadania no Brasil e no mundo, dedicado a obras de não-ficção com ênfase em biografias,

autobiografias, relatos, depoimentos e livros-reportagem”388. A tiragem inicial foi de 25 mil

exemplares, não houve reimpressões e atualmente encontra-se esgotado no estoque da editora,

sem previsão de relançamento389. Contudo, é possível adquiri-lo no formato digital, e-book. A

capa contém uma imagem de Dilma contemporânea à publicação do livro. A contracapa,

todavia, foi a que mais chamou atenção da mídia e do público leitor – uma imagem até então

inédita de Dilma na juventude, em audiência da Auditoria Militar, com seus julgadores

escondendo os rostos: foi apelidada por muitos de “ditadura envergonhada” (anexo B).

Em novembro de 2012, foi publicada uma edição portuguesa da obra, pela editora Clube

do Autor. Tem prefácio do jornalista português Miguel Sousa Tavares390 e capa diferente da

edição brasileira, que intercala, ao fundo, a foto clássica de Dilma na juventude e, à frente, foto

385 BIOGRAFIA da presidenta. Governo do Brasil, 11 jan. 2011. Disponível em:

<http://www.brasil.gov.br/governo/2011/01/biografia-da-presidenta>. Acesso em: 7 fev. 2019. 386 Idem. 387 ALENCAR, Kennedy. Lula confirma Dilma para a vaga de Dirceu na Casa Civil. Folha de S. Paulo, Brasília,

21 jun. 2005. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2106200502.htm>. Acesso em: 28 fev.

2019. 388 Primeira Pessoa – Histórias que mudam vidas. Sextante, s./d. Disponível em:

<http://www.esextante.com.br/selos/primeira-pessoa>. Acesso em: 17 jan. 2019. 389 Informações obtidas com a funcionária Isabella Farias, da editora Sextante, em 7 de dezembro de 2007. 390 Jornalista, cronista e escritor português.

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oficial da campanha de 2010 (anexo C). Ainda se encontra disponível para compra no site da

editora391. Em dezembro de 2015, mesmo mês da abertura do processo de impeachment, foi

publicada a edição argentina, pela editora Taeda. Em maio do ano seguinte, foi realizada uma

cerimônia de lançamento da obra, na livraria El Ateneo, uma das mais famosas de Buenos Aires.

O título em tradução espanhola ficou La vida pide coraje: la trayectoria de Dilma Rousseff,

primera presidenta de Brasil. A capa segue o mesmo padrão da edição brasileira: uma foto

atual de Dilma – contudo, usando os característicos trajes vermelhos. A edição analisada neste

capítulo será a brasileira (anexo D).

O autor Ricardo Batista Amaral, jornalista, trabalhou, segundo afirmações do próprio,

por menos de um ano na escrita da obra: “(...) a ideia do livro surgiu logo depois da eleição de

2010. (...) Ao final da campanha, olhando, conversando com os amigos, olhando pros lados, eu

não tinha, eu nunca tive o projeto de escrever o livro enquanto eu estava lá, nunca tinha

conversado com ninguém sobre isso (...)”392. Ou seja, Amaral teve a ideia, presumivelmente,

apenas após o fim da campanha, em fins de 2010, e em fins de 2011 o livro já estava publicado.

A biografia é denominada por Amaral de “livro-reportagem” – relacionando-se com seu

ofício de jornalista e a experiência prévia de 25 anos como repórter de política393. O autor afirma

que percebeu “que existiam matérias ruins sobre Dilma, mas também algumas muito boas. No

entanto, nenhuma conta [sua história] de uma maneira amarrada e de maneira linear. Usei um

formato jornalístico”394. A noção da reportagem aparece no próprio texto do livro, quando, em

nota de abertura, Amaral afirma que procurou “fazer um relato objetivo dos fatos, como se

espera de uma reportagem (...)395”. Segundo Paula Rocha e Cintia Xavier, “considera-se um

livro-reportagem quando uma obra trata de acontecimentos ou de fenômenos reais e utiliza,

para sua produção, procedimentos metodológicos inerentes ao campo do jornalismo, sem,

contudo, descartar certas nuances literárias396”. O livro contém, em certa medida, as “nuances

literárias” descritas pelas autoras – algumas reproduções de diálogos, linguagem mais acessível

391 A vida quer é coragem. Clube do autor, s./d. Disponível em: <https://www.clubedoautor.pt/catalogo/128>.

Acesso em: 31 jan. 2019. 392 GENTE que é gente. TVC/BH, 25 mar. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM&t=590s>. Acesso em: 31 jan. 2019. 393 THUM, Tássia. 'Presidência jamais esteve nos planos', diz autor de livro sobre Dilma. G1, Rio de Janeiro, 15

dez. 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/12/presidencia-jamais-esteve-nos-planos-

diz-autor-de-livro-sobre-dilma.html>. Acesso em: 31 jan. 2019. 394 SOUZA, Luiz Philipe. ‘Ela é a mesma de sempre’, diz autor de livro sobre Dilma Rousseff. Sextante em Revista,

16 dez. 2011. Disponível em: <http://www.sextante.com.br/noticias/?p=2964>. Acesso em: 18 nov. 2019. 395 AMARAL, Ricardo Batista. A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a primeira presidenta do

Brasil. São Paulo: Sextante, 2011, p. 8. 396 ROCHA, Paula Melani; XAVIER, Cintia. O livro-reportagem e suas especificidades no campo jornalístico.

Rumores, v. 7, n. 14, jul./dez. 2013, p. 7. Disponível em:

<http://www.journals.usp.br/Rumores/article/view/69434/72014 >. Acesso em: 31 jan. 2019.

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e narrativa mais poética. Não obstante, em grande parte, o autor opta por um discurso mais

objetivo.

O livro tem 304 páginas e é dividido em 22 capítulos, precedidos por uma nota

explicativa do autor. Há duas seções com fotografias: da própria biografada, em diversos

momentos de sua vida pessoal e pública, mas também de seus familiares, amigos, imagens de

momentos históricos – como uma foto de Lula discursando em greve em São Bernardo, por

exemplo – cópias de documentos e notícias. No total, são 68 imagens, que provêm de fontes

variadas, inclusive do acervo pessoal de Dilma. Os capítulos procuram abordar toda a vida da

biografada, de sua infância até a chegada à presidência, de forma linear e cronológica – apesar

de, em alguns momentos, durante a narrativa do passado, trazer elementos do futuro, de maneira

teleológica. Esse aspecto, segundo Fernando Catroga, é típico da recordação: “a retrospectiva

urde um enredo finalístico que domestica o aleatório, o casual, os efeitos perversos e

descontínuos do real-passado quando este foi presente397”.

Em reportagem, O Globo aponta que o livro é dividido em três partes: “a primeira cobre

a vida pessoal e política da presidente, da infância aos tempos do brizolismo. A segunda

examina a participação no governo Lula, e a terceira trata da campanha de 2010”398. Embora

essa divisão não seja explícita na biografia, talvez seja uma organização interna adotada pelo

autor, uma vez que foi ecoada por outros veículos de imprensa, como o Correio Braziliense399.

Diversas são as fontes utilizadas por Amaral para a constituição da obra: documentos

oficiais, principalmente os da época da ditadura; notícias publicadas na imprensa, específicas

sobre Dilma e sobre os fatos históricos das épocas abordadas; outras biografias; historiografia

e, principalmente, livros jornalísticos sobre os temas mobilizados; entrevistas com pessoas

próximas à presidenta, feitas pelo próprio autor ou por terceiros, mas usadas por ele. Apesar

disso, o jornalista não cita essas referências ao longo do texto – o faz ocasionalmente, através

de notas de rodapé. Ele também não contextualiza as informações citadas, como por exemplo

as entrevistas, sua época de concessão etc. – o autor cita falas de Dilma que o leitor não

consegue discernir se foram direcionadas diretamente a ele ou a terceiros. Amaral, contudo,

esclarece essa questão apenas para a mídia que cobriu o lançamento do livro:

Eu não a entrevistei para este livro. Usei depoimentos que ela fez para a campanha

eleitoral e uma reflexão dela sobre a ditadura dado ao cineasta Silvio Tendler, que me

397 CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 21. 398 LIMA, Maria. Uma aventura política. O Globo, Rio de Janeiro, 17 dez. 2011, Prosa & Verso, p. 6. 399 AZEDO, Luiz Carlos. Vida devassada. Correio Braziliense, Brasília, 8 jan. 2012, Política, p. 5.

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cedeu o depoimento integral, de 1 hora de duração. Fiz isso também para preservar

minha autonomia e a responsabilidade dela400.

Ricardo Batista Amaral é um jornalista mineiro, nascido em Belo Horizonte em 1958,

tendo atualmente cerca de 60 anos, dos quais trabalhou por 25 como repórter político em

Brasília401, entre os periódicos Época, Valor Econômico e agência de Notícias Reuters402.

Ocupou cargos na gestão do ex-presidente Lula, entre os quais: Assessoria Especial da

Secretaria-Geral da Presidência da República entre setembro de 2003403 e abril de 2004;

Subsecretário-Geral Adjunto da Secretaria-Geral da Presidência da República entre abril de

2004404 e abril de 2005405; Assessoria Especial da Casa Civil enquanto Dilma era ministra-

chefe, entre novembro de 2009406 e março de 2010407, quando passou a trabalhar na campanha

à presidência408 – contudo, voltou para o cargo na Casa Civil após o fim da campanha409, saindo

novamente em janeiro410, desta vez em definitivo. Este é o único livro publicado pelo jornalista.

Mesmo após o fim do governo do ex-presidente, Ricardo Amaral continuou prestando

serviços ao Instituto Lula, através de sua empresa de assessoria. O Ministério Público Federal

apurou que a RIMA Soluções em Comunicação Ltda., empresa de Amaral, recebeu, entre 2012

400 THUM, 2011, op. cit. 401 RICARDO Batista Amaral. Livronautas, s./d. Disponível em: <http://www.livronautas.com.br/ver-

autor/844/ricardo-batista-amaral>. Acesso em: 31 jan. 2019. 402 Idem. 403 BRASIL. Casa Civil – Nomeações. Diário Oficial da União, 8 set. 2003, p. 2. Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=2&data=08/09/2003>. Acesso em:

31 jan. 2019. 404 BRASIL. Casa Civil – Nomeações. Diário Oficial da União, 20 abr. 2004, seção 2, capa. Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=1&data=20/04/2004>. Acesso em:

31 jan. 2019. 405 BRASIL. Casa Civil – Exonerações. Diário Oficial da União, 6 abr. 2005, p. 2. Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=1&data=06/04/2005>. Acesso em:

31 jan. 2019. 406 Apesar de ser nomeado pela ministra-chefe interina, Erenice Guerra. BRASIL. Casa Civil – Nomeações. Diário

Oficial da União, 17 nov. 2009, seção 2, capa. Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=1&data=17/11/2009 >. Acesso em:

31 jan. 2019. 407 BRASIL. Casa Civil – Exonerações. Diário Oficial da União, 1 abr. 2010, seção 2, capa. Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=1&data=01/04/2010>. Acesso em:

31 jan. 2019. 408 AMARAL, 2011, op. cit., p. 8. 409 BRASIL. Casa Civil – Nomeações. Diário Oficial da União, 8 nov. 2010, p. 2. Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=2&data=08/11/2010>. Acesso em:

31 jan. 2019. 410 BRASIL. Casa Civil – Exonerações. Diário Oficial da União, 11 jan. 2011, seção 2, capa. Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=1&data=11/01/2011>. Acesso em:

31 jan. 2019.

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103

e 2014, R$ 224.678,13411. Segundo o próprio MPF, a função da empresa é fornecer “consultoria

em gestão empresarial, exceto consultoria técnica específica”412. Em depoimento prestado por

Lula, após condução coercitiva em 4 de março de 2016, ao ser questionado sobre as transações

com a Rima, o ex-presidente afirmou que “se recebeu dinheiro do Instituto, prestou serviço. Se

prestou serviço, tem nota. Se tem nota, já foi pago os impostos direitinho413”. Essa informação

é pertinente para a análise na medida em que representa a continuidade das relações

profissionais – através das assessorias – entre o jornalista Amaral e Lula, assim sendo, o PT.

Não entrarei no mérito se houve ou não atividade ilegal.

O jornalista, no entanto, afirma com contundência que a obra não se trata de uma

biografia autorizada e procura a todo momento se distanciar da biografada, responsabilizando-

se completamente pelos pontos de vista expostos, como demonstra a nota a seguir, publicada

na Folha de São Paulo por Amaral em resposta a uma informação veiculada em reportagem no

jornal:

O livro “A vida quer é coragem” é uma reportagem sobre a trajetória e a eleição da

presidente Dilma Rousseff. Não se trata de uma “biografia autorizada” (...). Todas as

informações e opiniões que constam do livro são de responsabilidade do autor, não da

presidente, que não teve acesso ao livro antes da publicação414.

Porém, ao analisar as evidências, é possível observar que há uma relação próxima entre

biógrafo e biografada, ainda que em nível profissional: Amaral trabalhou diretamente na

construção da figura pública e das narrativas acerca do governo petista e da trajetória de vida

de Rousseff, tendo completa consciência das escolhas discursivas e políticas feitas por esses

sujeitos. Ainda que o autor negue, trabalharei com a hipótese de que há, ao menos, proximidade,

ou afinidade, entre os discursos dispostos na obra biográfica e os mobilizados pelo PT em suas

gestões – fundamentais para a inclusão da memória hegemônica sobre a ditadura na narrativa

oficial.

411 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Requerimento de medidas cautelares e monitoramento de terminais

telefônicos. Procuradoria da República no Paraná – Força-Tarefa Lava Jato, Curitiba, 17 fev. 2016. Disponível

em: <https://www.conjur.com.br/dl/pedido-quebra-sigilo-mpf.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2019. 412 Idem. 413 RESENDE, Narley. Justiça disponibiliza depoimento de Lula na Lava Jato. ParanáPortal, 18 abr. 2016.

Disponível em: <https://paranaportal.uol.com.br/politica/operacao-lava-jato/justica-disponibiliza-depoimento-de-

lula-na-lava-jato/>. Acesso em: 31 jan. 2019. 414 AMARAL, Ricardo Batista. Painel do leitor – Dilma. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 dez. 2011, Opinião,

p. A3.

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Marcos Napolitano aponta que, apesar de políticas memoriais terem sido desenvolvidas

já a partir dos anos 1990, foi nos governos petistas que houve “o aprofundamento de uma

política de memória do Estado, calcada na memória hegemônica, crítica ao regime militar e

tributária da cultura democrática”415. É importante ressaltar que, durante certo tempo, Amaral

fez parte do governo, sendo integrante do Estado enquanto produtor desta memória. Um dos

objetivos da análise é identificar se houve a reprodução dessas narrativas em sua obra

biográfica.

Há poucas informações concretas a respeito da opinião de Dilma sobre o resultado do

livro. Em entrevista ao portal de notícias G1, Amaral afirmou: “a entreguei o livro na semana

passada [dezembro de 2011], ela viu a foto do pai, e ficou muito emocionada. Ela gosta muito

do pai e ficou emocionada em rever a imagem”416. Já o jornalista Luís Carlos Azedo, em sua

coluna no Correio Braziliense, declarou: “os petistas gostaram do livro; Dilma, não. Acha que

foi muito invasivo de sua vida privada. Faz parte”417. O colunista, no entanto, não cita as fontes

de onde obteve essa informação. O Globo, em 30 de dezembro de 2011, publicou uma entrevista

com o ex-marido de Dilma, Carlos Araújo:

O Globo: O que a presidente Dilma achou do livro “A vida quer é coragem”?

Conversaram sobre ele?

Carlos Araújo: Teve alguma coisa lá que ela não gostou. Deve ser alguma coisa

pessoal, mas ela não quis me contar.

O Globo: Foi da parte que descreve seus romances, com a Beth Mendes, enquanto

ela estava presa?

Carlos Araújo: Ela pode não ter gostado disso, mas não falou o que era. Vi que estava

zangada com alguma coisa. Perguntei, mas ela não quis falar. Só disse que era

desnecessário418.

Embora tenha se incomodado com um fato pontual, outro aspecto corrobora, em certa

medida, com a hipótese de que Dilma – ou ao menos o PT – estaria de acordo com a publicação

do livro: a legislação que regulamentava o assunto. O Código Civil, em seus artigos 20 e 21,

afirma haver possibilidade de proibição de circulação de informações a respeito de uma pessoa,

caso esta desejasse:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à

manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da

palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa

poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que

415 NAPOLITANO, 2015, op. cit., p. 32. 416 THUM, 2011, op. cit. 417 AZEDO, 2012, op. cit., p. 5, grifos meus. 418 LIMA, Maria. Corpo a corpo: Carlos Araújo. “Ninguém pense que engana a Dilma! Ela conhece todo mundo

muito bem”. O Globo, Rio de Janeiro, 30 dez. 2011, O País, p. 4.

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couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se

destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas

para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento

do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer

cessar ato contrário a esta norma419.

Apenas em 2016, o Supremo Tribunal Federal, em decisão favorável a uma Ação Direta

de Inconstitucionalidade, declarou “inexigível o consentimento de pessoa biografada

relativamente a obras biográficas, literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária

autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas

falecidas)”420.

Além disso, o El País, em maio de 2016, noticiou que um novo livro seria escrito por

Amaral – até hoje, sem lançamento: “assim que Rousseff deixar a presidência brasileira e perder

metade de seu salário (que hoje é de 33.000 reais), a petista se dedicará não só a denunciar o

‘golpe’, mas também a contribuir para um novo livro que o jornalista Ricardo Batista Amaral

está escrevendo sobre ela”421.

Portanto, apesar da pretensa “autonomia” do autor em relação à narrativa, não se pode

deixar de lado que, como afirma Leonor Arfuch, “o biógrafo deve realizar uma imersão na vida

do outro para construir a personagem” e que, como já citado previamente, “a fronteira entre

biografia e autobiografia não é tão nítida”422. Essa imersão tratada por Arfuch se concretiza na

obra analisada quando o jornalista se permite conjecturar pensamentos e sentimentos da

biografada. Se ele não a entrevistou, como sabe como ela se sentiu?

Arfuch também trata dos motivos pelos quais um biografado é escolhido: “a ideia de

resgatar personagens não suficientemente reconhecidos ou injustamente esquecidos”423. É

possível notar que Amaral escolheu Dilma como biografada para resgatar sua trajetória não

reconhecida – ao menos em detalhes – e, ao mesmo tempo, reparar o que ele – e o PT,

possivelmente – considerava as injustiças cometidas contra esta trajetória durante a campanha

419 BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, 2002, grifos meus.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 31 jan. 2019. 420 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815. Relatora Ministra Cármen

Lúcia. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4815&processo=4815>.

Acesso em: 31 jan. 2019. 421 BENITES, Afonso. Dilma vive últimos dias abraçada a movimentos sociais e longe dos políticos. El País,

Brasília, 11 mai. 2016. Disponível em:

<https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/11/politica/1462926904_504785.html>. Acesso em: 21 jan. 2019. 422 ARFUCH, 2013, op. cit., p. 49. 423 Idem.

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– especialmente pela imprensa, que, segundo ele, “assumiu, na prática, o poder de julgar e

condenar, em sua missão de fiscalizar os poderes da República”424. Dessa forma, pode-se

conjecturar que, mesmo que tente produzir uma narrativa independente, o autor imergiu em sua

trajetória e fala em sua defesa – a escrita do biógrafo, neste caso, está à serviço da biografada.

Retomando os objetivos para escrita da obra, o principal propósito para a constituição

de uma biografia de Dilma, de acordo com o biógrafo, foi

explicar, especialmente para os mais jovens, os contextos históricos e políticos que

levaram à eleição da primeira presidenta do Brasil, a primeira mulher presidenta. E

contextos também que fossem capazes de explicar por que foi Dilma Rousseff essa

mulher que alcançou pela primeira vez essa posição425.

Esse desejo do autor se concretiza no livro por meio de sua opção narrativa, que associa

fatos específicos da vida de Dilma – pessoal ou política – aos contextos históricos, políticos e

sociais mais gerais contados por ele. Esse recurso é utilizado desde o princípio, quando o autor

fornece ao leitor informações sobre a política brasileira, mesmo que sem relação direta alguma

com a biografada:

No dia da inauguração da siderúrgica, Getúlio [Vargas] foi recebido no centro de Belo

Horizonte com vaias de estudantes ligados à União Nacional Democrática (UDN) e

ao Partido Comunista. JK o levou para ser aplaudido pelos operários no Barreiro. Duas

semanas depois, quando chegou à cidade a notícia do suicídio, multidões enfurecidas

cercaram a sede do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Numa manobra desesperada,

um estudante comunista fez um discurso inflamado contra os “verdadeiros

responsáveis” pela desgraça do presidente morto: os trustes norte-americanos e os

entreguistas da UDN. O jovem comunista juntou às palavras um latão de gasolina, e

assim começou o incêndio do consulado dos Estados Unidos em Belo Horizonte.

Dilminha tinha seis anos426.

De acordo com Amaral, “o objetivo do livro foi (...) contar essa história desde o começo

– tanto a história dela quanto a história recente do Brasil”427. Essa fala, associada à análise

do trecho apresentado, é de extrema importância, pois confirma a intenção do autor de escrever

um livro de História, cuja função é ensinar os mais jovens e associar a trajetória de Dilma à

história do Brasil, como se uma estivesse destinada à outra. Ou seja, ainda que a obra seja

424 MANZANO, Gabriel. Jornalista faz perfil simpático à guerrilheira que virou presidente. O Estado de S. Paulo,

São Paulo, 18 dez. 2011, Política, p. 14. 425 GENTE que é gente. TVC/BH, 25 mar. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM&t=590s>. Acesso em: 31 jan. 2019. 426 AMARAL, 2011, op. cit., p. 24. 427 GENTE que é gente. TVC/BH, 25 mar. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM&t=590s>. Acesso em: 31 jan. 2019, grifos meus.

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definida enquanto um “livro-reportagem”, os limites que separam jornalismo e história ficam

pouco delimitados. Em entrevista, o autor afirmou que o livro, “na verdade, trata-se de uma

grande reportagem, que é como ganho a vida, pois traz o processo histórico que levou à eleição

da primeira presidente do Brasil”428. Na nota que abre o livro, agradece “coletivamente aos

jornalistas que ajudam a escrever a História do Brasil”. Dessa forma, ainda que não

explicitamente, o biógrafo revela que, em suas concepções, as funções do jornalista convergem

muito com as funções do historiador.

As autoras Cintia Xavier e Paula Rocha afirmam que a modalidade do livro-reportagem

tende a explorar a interseção entre as duas áreas: “é menos abrangente que o [ponto de vista]

do historiador, mas mais amplo do que o do jornalista, pelo menos aquele dedicado ao

noticiário”429. Elas apontam que “as relações entre jornalismo e história podem ser visualizadas

ainda quando estas se utilizam da memória como fonte e método para as abordagens”430. É fato

que a história e o jornalismo se utilizam da memória como fonte, mas não como método – ao

menos, não a história. É notório, contudo, que o livro de Amaral se utiliza de memórias para

produzir discursos também memoriais – que, para o autor, estão travestidos de história. Nesse

sentido, é necessário se fazer uma distinção: apesar de ser um livro-reportagem, que mobiliza

fatos históricos e utiliza como fontes memórias, este não é um livro de história.

Apesar dessa diferenciação, nota-se que o autor se vale do “caráter pedagógico da

história”431 para legitimar e justificar a existência de seu livro, no trecho citado anteriormente

e em todas as entrevistas concedidas por ele:

Amaral: uma parte mais prazerosa pra mim foi reconstituir os anos 1960 em Belo

Horizonte.

Edivaldo Farias: Ah, sobre isso, tenho o maior interesse, porque eu faço parte dessa

geração, né... Da geração que foi caçada pelo golpe militar, mas que sobrevivemos,

demos a volta por cima e companheiros estão no governo.

Amaral: e estão aqui para contar história, né? E, por favor, contem mais, porque eu

acho que o futuro do Brasil merece que vocês contem essa história432.

428 PEIXOTO, Mariana. Livro do jornalista Ricardo Amaral aborda trajetória de Dilma Rousseff. Uai, 15 mar.

2012. Disponível em: <https://www.uai.com.br/app/noticia/e-mais/2012/03/15/noticia-e-mais,99564/livro-do-

jornalista-ricardo-amaral-aborda-trajetoria-de-dilma-rousseff.shtml>. Acesso em: 31 jan. 2019. 429 ROCHA & XAVIER, 2013, op. cit., p. 8. 430 Ibid., p. 9. 431 BAUER, 2017, op. cit., p. 162. 432 GENTE que é gente. TVC/BH, 25 mar. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM&t=590s>. Acesso em: 31 jan. 2019, grifos meus.

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Ao se valer do caráter pedagógico da história e afirmar que o futuro do Brasil depende

de que essa história seja contada, Amaral demarca uma distância contundente entre o passado

ditatorial e o presente do governo de Dilma. Isso, de acordo com Caroline Bauer, caracteriza a

definição de dois tempos históricos distintos, o atual e o passado433. Dessa forma, segundo a

concepção de Amaral, é necessário conhecer bem o passado recente para que ele não se repita

– e o governo de Dilma jamais repetiria, uma vez que representava o exato oposto dos governos

da ditadura.

Assim, cabe fazer-se uma pergunta: como foi esse passado que não deve ser repetido?

E quais foram as ações de Dilma durante este período?

3.3 POLÍTICA E DEMOCRÁTICA: DILMA ROUSSEFF SOB A ÓTICA DE RICARDO

AMARAL

O título “A vida quer é coragem” já diz muito sobre a personagem Dilma construída por

Amaral: uma guerreira e lutadora desde a infância. Este é um excerto do livro Grande Sertão:

Veredas, de Guimarães Rosa, citado por Dilma em seu primeiro discurso como presidenta do

Brasil:

Esta, às vezes, dura caminhada me fez valorizar e amar muito mais a vida e me deu

sobretudo coragem para enfrentar desafios ainda maiores. Recorro mais uma vez ao

poeta da minha terra:

“O correr da vida” – diz ele – “embrulha tudo.

A vida é assim:

esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,

sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem”.

É com essa coragem que vou governar o Brasil434.

Observa-se, dessa forma, que o título do livro dialoga com a imagem que Dilma

disseminou de si mesma em seu primeiro pronunciamento enquanto chefe de Estado –

demonstrando, mais uma vez, a proximidade de discursos do biógrafo e da biografada. Embora

considere a biografada uma personagem, trabalho com a hipótese de que, em sua construção,

tenham sido incorporadas intencionalidades narrativas de Amaral – claro, o autor da obra – mas

também da própria Dilma. O biógrafo alega não a ter entrevistado diretamente, para garantir

433 BAUER, 2017, op. cit., p. 165. 434 ROUSSEFF, Dilma. Discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff, durante Compromisso

Constitucional perante o Congresso Nacional. Brasília, 1 jan. 2011. Disponível em:

<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/dilma-rousseff/discursos/discursos-da-

presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-compromisso-constitucional-perante-o-

congresso-nacional>. Acesso em: 31 jan. 2019.

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uma pretensa “imparcialidade”, mas faz uso indiscriminado de declarações feitas por ela e

entrevistas dadas a outros jornalistas. Amaral está em diálogo direto com as concepções de

Dilma a respeito de sua própria vida e não há nenhum questionamento ou crítica a respeito dos

relatos feitos por ela.

O livro é aberto com a narração de um episódio dramático na vida da biografada: a

confirmação do diagnóstico de câncer. Neste momento, aparece a primeira menção à atuação

de Dilma na ditadura: “quem passou pela violência do pau de arara, pelas máquinas de choques

elétricos, pela agonia incerta de resistir à tortura sabe que a vida não é fácil. Nunca foi”435. O

autor compara o sofrimento da tortura com as dificuldades da vida, em especial aquelas

causadas pela doença que acabara de ser diagnosticada – colocando-se, nesse momento, como

mensageiro da dor e dos sentimentos de Dilma.

Amaral afirmou, porém, em entrevistas concedidas, que desejava transcender os pontos

pelos quais a biografada era mais conhecida – chamados por ele de “fragmentos dramáticos”,

seriam três: o engajamento nas organizações revolucionárias durante a ditadura, a luta contra o

câncer e a imagem de gestora forte. Segundo ele, “são dados que não compõem a realidade

toda, que não explicam tudo. Embora sejam verdadeiros, não explicam tudo. O objetivo do livro

foi juntar tudo isso num todo (...)436”. Apesar de desejar superar esses “estereótipos”, o

jornalista abre o livro fazendo uso dos três – a tortura, comparada à dor da doença, em trecho

previamente analisado, e a firmeza da gestora:

A ministra sentou-se numa cadeira para conversar com o médico. Falaram sobre o

tratamento inadiável, doloroso e incômodo. O exame definitivo tinha chegado de um

laboratório de Houston, nos Estados Unidos, naquela sexta-feira, 17 de abril. Quanto

mais rápido iniciassem o procedimento terapêutico, melhor. Combinaram data e hora,

ela agradeceu, despediram-se. Um breve silêncio foi quebrado por um suspiro longo,

e Dilma voltou os olhos na direção do secretário particular, que tinha permanecido

todo o tempo vigilante junto à porta da sala:

- A vida não é fácil. Nunca foi.

A ministra devolveu o telefone ao secretário e seguiu para a entrevista coletiva.

Parecia segura. Vestia um casaco de linho vermelho sobre a blusa de seda preta, o

decote redondo acompanhava a curva do colar de pérolas. Era a Dilma de sempre,

respondendo com firmeza (...)437.

Esses três elementos – aliados à candidatura à presidência, fato que deu mais destaque

à Dilma em nível nacional –, expostos logo no primeiro capítulo do livro, atraem o leitor por

serem, seguindo a linha de raciocínio do autor, os que mais são conhecidos sobre a biografada.

435 AMARAL, 2011, op. cit., p. 17. 436 GENTE que é gente. TVC/BH, 25 mar. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM&t=590s>. Acesso em: 31 jan. 2019. 437 AMARAL, 2011, op. cit., p. 12.

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Após essa introdução, inicia-se a narrativa propriamente dita, que explicará tudo, tanto em

relação à história de Dilma, quanto à “história recente” do Brasil – aquela que se pretende

definitiva, oficial.

Como dito anteriormente, o texto mescla constantemente contexto histórico com fatos

específicos sobre Dilma – por vezes, priorizando os contextos.

No ano em que Dilma nasceu, brilhava a estrela do mais famoso representante daquela

geração: Juscelino Kubistchek, deputado federal do PSD, maior partido do país, em

campanha pelo governo de Minas.

(...)

No pioneiro bairro dos Funcionários, onde a família Rousseff morava no começo dos

anos 50, as ousadias urbanísticas de JK eram pouco percebidas, a não ser pelo novo

calçamento das ruas, com paralelepípedos retirados das avenidas que ele mandou

asfaltar. Os sinais mais visíveis de que a cidade vivia novos tempos estavam

encravados no topo dos muros que protegiam as casas e dividiam quintais. Disformes,

cortantes, ameaçadores, os cacos de vidro serviam para espantar os gatunos numa

cidade onde a população crescia ao ritmo de 7% ao ano (...). A Dilminha eles não

intimidariam. Cedo a menina aprendeu a se equilibrar sobre as bordas dos muros

encarquilhados, valendo-se de alguma coragem e das plantas dos pés acentuadamente

arqueadas438.

O primeiro trecho parece ter a intenção de introduzir Dilma em uma tradição de política

mineira – ela nasceu enquanto JK, um mineiro, “o mais famoso representante daquela geração”,

fazia campanha. Mesmo que a relação não seja explícita, revela uma intenção do autor de inserir

a biografada em uma linha de continuidade, de eficiência mineira na esfera pública. O segundo

excerto localiza a família Rousseff em BH para, então, dar um panorama da modernização

urbana na cidade. É inserido também um aspecto fundamental da personalidade da biografada:

a coragem – coragem esta incorporada a um contexto político maior:

Nos primeiros anos da rua Major Lopes, a vida ainda corria na velocidade da bicicleta

amarela. Ficaria ainda mais emocionante em 1958, quando o presidente JK voltou à

cidade para inaugurar a rodovia BR-3 (Rio-Belo Horizonte-Brasília, atual BR-040).

A nova estrada começava ali perto, uma larga faixa de asfalto subindo da avenida do

Contorno até as franjas da serra do Curral. Que pista para uma descida de bicicleta...439

No trecho acima, observa-se uma estratégia padrão presente em todo o livro: a descrição

de um fato histórico-político para, posteriormente, inserir Dilma nesse contexto. Ela se torna

agente, participante e/ou espectadora de todos os acontecimentos, uma vez que, na ótica do

438 Ibid., p. 20-21. 439 Ibid., p. 27-28.

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autor, “seja de maneira local, regional ou nacional, em todos os momentos ela teve participação

na história brasileira”440.

O incômodo com a desigualdade social e econômica também é exposto desde a infância

de Dilma – assim como no caso de Iara, previamente analisado.

Pedro Rousseff era capaz de rir de coisas que deixavam dona Dilma aflita, como no

dia em que a filha rasgou ao meio uma nota de alguns cruzeiros para dividir com um

menino pobre (naquele tempo os pobres batiam à porta das casas para pedir trabalho,

esmola ou comida).

- Onde já se viu rasgar uma nota? Que burrice! Essa menina não sabe o que é dinheiro

– afligiu-se a mãe.

Não sabia mesmo, mas começava a perceber que havia muitas pessoas sem nada no

mundo. Dilma se lembra de ter conversado com o pai sobre a miséria em lugares muito

distantes do bairro dos Funcionários. Ele entendia por que os pobres gostavam de

Getúlio.

Como a narrativa no livro é cronológica, pode-se inferir que esse acontecimento tenha

sido quando Dilma tinha cerca de 10 anos. Esse fato confere à biografada uma preocupação

com as questões sociais e, principalmente, a miséria desde a mais tenra idade, criando uma outra

linha de continuidade, dessa vez com o “final da história”: o engajamento na política e, por fim,

a chegada à presidência.

O primeiro contato efetivo de Dilma com trabalhos sociais é descrito por Amaral:

Aos domingos, as moças do Sion e os rapazes do Loyola, o colégio dos jesuítas,

subiam o morro do Papagaio para dar algum tipo de assistência à população da favela,

ao lado da BR-3. O Grupo Gente Nova (GGN) era uma expressão local da doutrina

social da Igreja, na virada dos anos 50 para os 60. Sob a direção das freiras, ensinavam

a ferver a água, ofereciam noções de higiene, ajudavam nos mutirões, mas nada de

discussão política. Muito cedo Dilma percebeu que aquele esforço não mudaria o

mundo.

“Eu me lembro dela dizendo: ‘isso é muito bom, mas não vai levar a lugar nenhum.

Não resolve os problemas reais’”, conta a professora Sônia Lacerda, amiga desde os

tempos do Sion. “Me impressiona até hoje, porque ela já tinha essa percepção ali pelos

12 ou 13 anos de idade”441.

Aqui, o desconforto de Dilma com as desigualdades sociais se complexifica: ela critica

o assistencialismo como um fim em si próprio, sentindo falta de uma discussão mais profunda,

política a respeito do assunto. Pode-se inferir que a Dilma de Amaral, bem precocemente, inicia

uma reflexão sobre o que resolveria tais problemas: se não a Igreja e seus trabalhos voluntários,

o processo revolucionário? O Estado?

440 PEIXOTO, 2012, op. cit. 441 AMARAL, 2011, op. cit., p. 28.

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Esses excertos se encontram no segundo capítulo, intitulado “Um homem muito alto” –

em referência ao pai de Dilma, Pedro Rousseff. Durante a narração, há diversas menções a ele,

que morreu quando a biografada era uma adolescente de 15 anos. A frase escolhida para

encerrar essa parte do livro é fundamental para compreender a opção discursiva e memorial do

autor: “‘Quando meu pai morreu, eu perdi o meu super-superego’, Dilma diria muito tempo

depois”. O próximo capítulo – Capítulo 3: A política na esquina – inicia uma sequência de

outros que abordarão o período da ditadura civil-militar e da transição para a democracia (1964-

1988)442, os selecionados para esta análise:

▪ Capítulo 4: A revolução tem pressa, companheiro

▪ Capítulo 5: A engrenagem sem retorno

▪ Capítulo 6: Tão logo a noite acabe

▪ Capítulo 7: Começar de novo

▪ Capítulo 8: O tempo dos lenços vermelhos

A citação da frase de Dilma a respeito da morte do pai443 – a qual teria causado a “perda

de seu superego” – dá a ideia de uma ruptura forte causada em 1962, que será tratada pelo autor

nos capítulos seguintes. É fundamental ressaltar, contudo, que o autor não cita fontes de onde

essa declaração teria sido dada, a ocasião ou contexto – deixando sua interpretação aberta ao

leitor.

A terceira definição do Dicionário Michaelis para a palavra “superego”, em uso

coloquial, é: “indivíduo que serve de modelo ou exemplo para alguém”444 – significado que

poderia ser o que Dilma almejava com sua colocação. Contudo, quem criou a expressão foi o

psicanalista Sigmund Freud, quando este dividiu a personalidade em três elementos: id, ego e

superego. O último seria regido pelo “princípio da moralidade”445 – o senso de certo e errado.

Segundo a definição freudiana, o superego

É formado a partir das identificações com os pais, dos quais assimila ordens e

proibições. Assume o papel de juiz e vigilante, uma espécie de autoconsciência moral.

442 O autor utiliza a temporalidade “tradicional” de duração da ditadura (1964-1985). Isso será analisado no

próximo tópico. 443 Importante salientar que o autor, apesar de atribuir essa frase à Dilma e afirmar que ela foi dita muito tempo

depois dos acontecimentos narrados, não cita qual foi a ocasião em que ela foi proferida e nem para quem – se

para ele ou para terceiros. 444 SUPEREGO. IN: Michaelis Online, s./d. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-

portugues/busca/portugues-brasileiro/superego/>. Acesso em: 31 jan. 2019. 445 ID, ego e superego: Freud explica! IN: Psicoativo TV – O universo da Psicologia, 8 set. 2016. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=AECr6BoLOig&t=246s>. Acesso em: 31 jan. 2019.

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É o controlador por excelência dos impulsos do id446 e age como colaborador nas

funções do ego447. Pode tornar-se extremamente severo, anulando as possibilidades

de escolha do ego448.

É possível, assim, que o emprego dessa frase logo ao fim do capítulo, num momento de

transição entre a infância e a juventude – esta, permeada por engajamento político e,

principalmente, armado – seja uma forma de o autor, sutilmente, caracterizar o envolvimento

de Dilma com as organizações revolucionárias como um desvio de moral, ou um desvio dos

valores vigentes na sociedade, uma vez que tinha perdido seu superego e, assim, se libertado

das proibições.

Apesar de não ter sido citada, essa declaração de Dilma foi dada à Marie Claire, em

entrevista de 2009, enquanto ainda era Ministra-Chefe da Casa Civil. Enquanto a entrevistada

abordava sua militância da juventude, foi perguntada sobre a opinião de sua família a respeito

disso. A resposta foi a seguinte:

Eu queria ser profissional, ganhar a vida, ser independente. Tive de convencer minha

mãe, meu pai já tinha morrido. Ele morreu quando eu tinha 15 anos. Talvez se ele

estivesse vivo, o nível de proteção que ele construiria em torno de mim fosse tão forte

que eu tivesse de levar algum tempo para ser o que eu fui. Mas eu seria,

inexoravelmente. Sartre, que também perdeu o pai, tem uma frase ótima sobre isso:

“Morreu meu superego”. Em que pese eu ter gostado muito e ter uma relação

fortíssima com meu pai, de uma certa forma, é no momento da morte dele que - não é

que eu deixo de ter um superego - deixo de ter um super-superego449 [risos]450.

446 “Fonte da energia psíquica, é formado por pulsões e desejos inconscientes. Sua interação com as outras

instâncias, é geralmente conflituosa, porque o ego, sob os imperativos do superego e as exigências da realidade,

tem que avaliar e controlar os impulsos do id, permitindo sua satisfação, adiando-a ou inibindo-a totalmente”. 447 “A parte organizada do sistema psíquico que entra em contato direto com a realidade e tem a capacidade de

atuar sobre ela numa tentativa de adaptação. O ego é mediador dos impulsos instintivos do id e das exigências do

superego”. 448 BOTELHO, Rachel. Freud explica: entenda sete conceitos básicos da psicanálise. Revista Galileu, 6 nov. 2017.

Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2017/11/freud-explica-entenda-sete-conceitos-

basicos-da-psicanalise.html>. Acesso em: 31 jan. 2019. 449 O psicanalista britânico Wilfred Bion tinha uma definição de super super-ego distinta da de Freud: “o ‘super’-

superego de Bion alude a uma área psíquica que é própria do que ele chama de ‘parte psicótica da personalidade’,

em cujos casos, o sujeito, indo além do ‘certo-errado’, ‘devo-não-devo’, ‘bem-mal’..., cria a sua própria moral e

as suas leis com as quais ele afronta a realidade e que, a qualquer custo, ele pretende impor aos demais”. Dada a

declaração de Dilma, não acredito que essa definição tenha a ver com o que ela pretendeu dizer. Através da

interpretação de sua fala, fica claro que ela usou o outro “super” de uma maneira cômica, com a intenção de dar

intensidade ao conceito de Freud.

Fonte: ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica – uma abordagem didática.

Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 85. 450 GULLO, Carla; NEVES, Maria Laura. A mulher do presidente - Confira a entrevista que Dilma Rousseff

concedeu a Marie Claire em abril de 2009. Marie Claire, 16 jun. 2011. Disponível em:

<http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/0,,EMI175873-17735-3,00-

A+MULHER+DO+PRESIDENTE+CONFIRA+A+ENTREVISTA+QUE+DILMA+ROUSSEFF+CONCEDEU

+A+M.html>. Acesso em: 31 jan. 2019.

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Dilma está tratando, no início da fala, de sua decisão de entrar para o Colégio Estadual

– onde começou sua militância. Ela afirma, corroborando com a hipótese apresentada, que, caso

seu pai estivesse vivo, demoraria algum tempo para ser o que foi: a militante das organizações

revolucionárias, a mulher política. Amaral, entretanto, ao não contextualizar essa declaração,

retira uma complementação importante: “Mas eu seria, inexoravelmente” – ou seja, com

superego ou sem superego, Dilma, em 2009451, acreditava que teria feito o que fez independente

da aprovação de seu pai.

Em 2010, a então candidata à presidência foi intensamente questionada a respeito de seu

passado como guerrilheira. Inúmeros veículos da imprensa se propuseram a “desvendar” o

passado de Dilma. Ao utilizar aquela expressão, de certa forma descontextualizada, antes de

introduzir a militância tão polêmica de Dilma na juventude, Amaral cria uma espécie de álibi,

que a isenta de sua responsabilidade e a coloca mais próxima de uma situação de “passividade”

– retira a autonomia de sua decisão de se engajar e caracteriza essa atitude como consequência

da morte de seu pai, que, diga-se de passagem, é um homem452.

O primeiro sinal de ruptura da biografada com o status quo descrito pelo autor é, em

consonância com o dito por ela mesma em entrevista, a entrada no Colégio em que teve contato

com a organização:

Entre a morte de Pedro Rousseff, as reuniões da Polop e o namoro com o jornalista

revolucionário, a ex-aluna do Colégio Sion havia percorrido um caminho longo em

ritmo veloz. Para começar, Dilma recusou o destino comum das moças de sua classe,

que seria cursar a escola normal e tornar-se professora, como fizeram a mãe e as tias.

(...) Dilma cortou os cabelos bem curtos, deixando aparecer a nuca, com franjas

caindo como vírgulas sobre a testa453.

Dessa forma, antes de se engajar formalmente, Dilma já transcendia: ousou recusar o

“destino comum”. Aqui está a singularidade defendida pelo autor desde o princípio: seu

objetivo era explicar os contextos que levaram à eleição da primeira mulher presidenta e, para

além disso, explicar por que essa mulher só poderia ter sido Dilma Rousseff. Para além da

rebeldia que rompia com tradições da época, a Dilma de Amaral tem inteligência acima da

média e é uma leitora voraz:

451 Na entrevista à Marie Claire, Dilma disse coisas que contrariaria depois, durante a campanha presidencial,

como o fato de ser favorável à descriminalização do aborto, por exemplo – sinal de que houve um abrandamento

de seu discurso e posicionamentos com a possível chegada ao poder. 452 Em documentos produzidos pelos órgãos de segurança durante a ditadura civil-militar e em discursos da

imprensa na mesma época, era comum o condicionamento da militância de mulheres a determinados homens. Cf.

COLLING, 1997, op. cit., passim; INSUELA, 2011, op. cit., passim e NASCIMENTO, 2016, op. cit., passim. 453 AMARAL, 2011, op. cit., p. 34.

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Ela aprofundou as leituras para além da biblioteca do pai, e decidiu prestar exames

para o curso científico (equivalente hoje ao ensino médio) no Colégio Estadual. Não

era fácil passar no exame de admissão daquela escola pública centenária, dirigida por

um reitor, com professores que não raro eram autores dos livros adotados nos

melhores colégios. (...) Dilma chegou ali em março de 1964, apenas duas semanas

antes do golpe militar454.

Dilma devorou o que havia disponível na literatura brasileira marxista (ou

influenciada por Marx): Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado.

Um dia a secundarista surpreendeu Carlinhos com uma citação de Althusser. “Você

anda lendo muita orelha de livro, menina”, ele ironizou. Carlinhos ficou mais surpreso

ainda quando Dilma apresentou a ele a biblioteca que tinha em casa, para provar que

lia o que citava455.

A intelectualidade de Dilma é muito bem detalhada, com anedotas a respeito de suas

primeiras leituras, seu primeiro contato com os escritos de Marx, ressaltando-se sempre que

esse envolvimento foi muito precoce. Fica implícito que essa foi sua porta de entrada para as

organizações revolucionárias – para a POLOP, especificamente –, contudo, não há uma

descrição mais detalhada de como isso ocorreu – um silêncio. Quando o leitor se dá conta,

Dilma já é uma militante – porém, inocente e inofensiva.

Quando Dilma entrou para a Polop, a principal atividade da organização ainda era

imprimir material considerado subversivo pelas autoridades, essencial para formar

novos quadros, mobilizar e “educar o proletariado”456.

A organização fazia finanças à base de mensalidades, e Dilma era uma das

responsáveis pelo carnê da revolução457.

Nos trechos acima, o autor dialoga com a memória hegemônica, destacando a

“ingenuidade” da organização: o uso da expressão educar o proletariado, entre aspas, atribui

um viés cômico, quase irônico, às intenções políticas dos militantes, bem como o “carnê da

revolução” – especialmente porque o autor sabe que o projeto revolucionário nunca pôde sair

do plano das ideias e que foi duramente reprimido. A escolha por descrever um episódio da

militância de Dilma reforça essa percepção:

No final de 1966, com a organização de novo sem dinheiro, Beto Soares de Freitas

selecionou uns versos da MPB – Torquato Neto, Geraldo Vandré, Chico Buarque – e

pediu para Guido Rocha ilustrar com uns desenhos abstratos. Surgiram assim os

cartões de Natal mais incrementados que a cidade já tinha visto. Nada podia ser menos

454 Ibid., p. 34-35. 455 Ibid., p. 36. 456 Ibid., p. 39, grifos meus. 457 Ibid., p. 40, grifos meus.

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revolucionário (e mais constrangedor para uma moça de classe média) do que vender

cartões de Natal na porta das lojas do centro da cidade, mas Dilma cumpriu a tarefa.

Tudo pela causa...458

Ressaltando a frivolidade das ações da organização, busca-se frear o mito da violência

destas e humanizá-la. Dilma era apenas uma garota da classe média – embora tentasse se

desvincular dessas origens – com uma causa, entre aspas, revolucionária, em nome da qual se

prestaria a tudo.

A biografada rompeu as tradições mais uma vez, com a opção por um casamento “não-

burguês” – mais uma consequência da falta de seu superego: “aquele casamento ‘só no civil’

contrariava as convenções – mas quem seria capaz de impor a Dilminha uma cerimônia

‘burguesa’? A festa, com bolo, champanhe e bombons recheados de frutas, foi um dos últimos

momentos de ‘vida normal’ para ela”459.

Quando afirma que o casamento ocorreu já no fim da “vida normal”, o autor introduz

uma aceleração do tempo iniciada em 1967/1968; esta aceleração vem acompanhada de, em

sua concepção, uma possível radicalização tanto das organizações quanto da ditadura – fatores

que serão analisados no próximo tópico. “A revolução tem pressa, companheiro”. O aumento

da velocidade gera também uma predominância de fatos históricos e políticos na narrativa e a

subtração de aspectos relativos especificamente à Dilma. A partir desse momento, a vida da

biografada perde lugar e ela se torna quase uma coadjuvante em sua própria biografia –

evidenciando o desejo do autor de produzir um livro de “história”.

Quando é inserida no contexto mais amplo, é possível identificar uma Dilma “não-

pertencente”:

A primeira cópia do livro de Debray chegou a Belo Horizonte na bagagem do ex-

sargento da Aeronáutica João Lucas Alves. Ele vinha do brizolismo e se aproximou

da Polop em São Paulo, onde as bases já estavam excitadas pelo ativismo militarista

da ALN. A ideia era rodar uma edição clandestina em mimeógrafo e vender o livro da

moda na cidade. “Revolução na revolução?” contribuiu pouco para melhorar as

finanças na Polop, mas foi um catalisador eficaz da luta interna na organização. Dilma

desconfiava daquela história de “12 homens na montanha e uma revolução na

planície”, mas parecia cada vez mais óbvio que não se luta sem armas contra uma

ditadura militar460.

Segundo o historiador Jean Rodrigues Sales, tanto a obra de Debray quanto a realização

da Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) em 1967

458 Ibid., p. 41. 459 Ibid., p. 43 460 Ibid., p. 47.

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influenciaram os integrantes do novo COLINA no rompimento com a POLOP: “para o Colina,

não restava dúvida de que ‘no Brasil estão maduras as condições para o desencadeamento da

luta armada. E não somente na etapa da tomada do poder, mas durante todo o processo da luta

revolucionária’”461. Sales cita um documento produzido pelo COLINA em 1969, “Concepção

da luta revolucionária”462.

Ainda que tenha sido fundamental para a constituição da organização de Dilma, o livro

de Debray teria gerado desconfianças na biografada, segundo Amaral, por tratar da tática do

foco guerrilheiro, com base na experiência da Revolução Cubana. Seria a Dilma de Amaral

uma guerrilheira pacífica? O autor deixa implícito que ela só aceitou aderir à nova tática porque

seria a única forma de responder à altura da ditadura, sugerindo que havia uma guerra em

curso: “não se luta sem armas contra uma ditadura militar”. Esse argumento parece justificar

tal adesão, esvaziando-se o sentido revolucionário das organizações. Para Amaral, o objetivo

dos engajamentos era lutar contra a ditadura e não subverter a ordem vigente.

Após um salto, sem grandes detalhes a respeito da atuação de Dilma dentro da POLOP,

o autor já introduz a criação da COLINA. A participação da biografada é reduzida, mais uma

vez, a apenas uma espectadora: “Dilma estava presente quando a Colina foi criada, no começo

de 1968, num congresso realizado em um sítio em Contagem”463. Apesar de descrever

atividades pelas quais companheiros de Dilma eram responsáveis e detalhar ações armadas

promovidas pela organização, a biografada nunca aparece. Mesmo quando ela está envolvida

em atividades, a estratégia usada é distanciá-la:

Dilma e Galeno, casados, foram morar num dos imóveis deixados por Pedro Rousseff,

o apartamento 1.001 do Condomínio Solar, aquele edifício moderno perto da

Faculdade de Direito. Bem localizado, o apartamento foi se transformando aos poucos

num ‘aparelho’ da Colina. (...) O apartamento do Solar recebia militantes vindos de

outras cidades e servia para reuniões mais amplas464.

O agente das construções do autor parece sempre serem outros, que não os próprios

militantes – que, por sua vez, assumem sempre uma posição de passividade: o apartamento

recebia militantes, e não seus moradores tinham a responsabilidade de abrigá-los. O espaço

servia para reuniões mais amplas, e não os moradores organizavam reuniões.

461 SALES, Jean Rodrigues. A luta armada contra a ditadura militar: a esquerda brasileira e a influência da

revolução cubana. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 98. 462 IN: REIS, Daniel Aarão; SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução: documentos políticos das organizações

clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. 463 AMARAL, op. cit., p. 48. 464 Ibid., p. 50.

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Em outros poucos momentos, de maneira discreta e um pouco apartada do texto, Amaral

especifica um pouco mais o papel de Dilma:

Marco Antônio Meyer foi recrutado no Estadual Central e dirigia a Kombi vermelha

da Colina em missões pela cidade. Ele se lembra de ter ido ao Solar para ouvir um ex-

sargento falar de táticas militares. Aulas práticas eram ministradas num sítio na região

de Betim. (Dilma só realizou seu treinamento militar em 1969, numa fazenda no

Uruguai, em outro grupo de esquerda. Ela contou que aprendeu a montar e demontar

[sic] um fuzil de ‘olhos fechados’, mas nunca tentou aprender a atirar por causa da

miopia acentuada.)465.

A vulnerabilidade da Colina era evidente e ameaçava os que não se envolviam nas

ações armadas, como era o caso de Dilma466.

O fato de ter recebido treinamento militar em 1969 não é mencionado nenhuma outra

vez no texto, a “outra organização” não é especificada e não há detalhes sobre esse momento,

o que permite inferir que muitas outras atividades de Dilma são ocultadas, ou esquecidas. Ainda

essa é incorporada por Amaral entre parênteses, quase como uma curiosidade pouco necessária

– apesar de se tratar do livro que pretende contar a história dela. No trecho seguinte, o autor faz

questão de afirmar, de forma casual, que Dilma não se envolvia nas ações armadas. Em

contrapartida, não há descrição sobre quais atividades a biografada de fato se envolvia –

observa-se que o autor opta por detalhar mais as atividades inofensivas, e suprimir as mais

“relevantes”, ou ofensivas. Além disso, Amaral ignora o fato de que as organizações tinham

divisões internas, sendo a “frente armada” apenas mais uma dessas divisões, tão importante

quanto as outras, responsáveis por estratégia, formação etc.

A mudança de Dilma e seu então marido para o Rio de Janeiro – a ida para a

clandestinidade – causa mais uma mudança de capítulo. Amaral intitula essa parte do livro de

“A engrenagem sem retorno”: o autor enxerga que a clandestinidade e a militância a partir desse

momento geravam um comprometimento do qual não havia como se arrepender. Após essa

decisão, não haveria mais como voltar atrás. Não que a Dilma de Amaral não desejasse...

Uma alegria reencontrar o Beto, aliás, companheiro Breno, e compartilhar as dúvidas

sobre o caminho da revolução, numa cidade grande e cosmopolita, onde não se

encontrava “todo mundo” nas ruas, no cinema, no bar. Dilma criticava o viés que a

luta ia tomando, marcadamente militarista, mas seria acusada de vacilante se abrisse

seus receios a qualquer um. Com Beto era possível duvidar. Ele se torturava

procurando uma formulação teórica capaz de combinar luta de massas e luta

armada467.

465 Idem. 466 Ibid., p. 52. 467 Ibid., p. 54, grifos meus.

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Mais uma vez, a biografada é colocada na posição de questionadora da tática adotada

pelas organizações das quais ela mesma participa. Ela se encontra, segundo raciocínio

construído pelo autor, impossibilitada de mudar de posição, de romper com tais

posicionamentos por conta da “engrenagem”; é provável que Amaral acredite e trabalhe com a

hipótese de que uma desistência levasse a apenas dois caminhos possíveis: a prisão, e tudo o

que dela decorre, ou os justiçamentos. Ao ressaltar que Dilma se opunha ao viés militarista da

luta, ele inicia sua explicitação de uma Dilma não-violenta; quase uma guerrilheira pacifista

dentro da luta armada. Essa informação é conflitante com a dada pelo próprio autor,

anteriormente citada, sobre o treinamento militar feito por ela.

Talvez o episódio do treinamento militar não tenha sido retomado pois, nas memórias

evocadas por Amaral, a biografada não atuava nessas frentes.

Para Dilma, a tarefa era fazer contatos e preparar os documentos políticos para a fusão

da Colina com a VPR, que começava a ser discutida468.

Ao final da operação [o assalto ao cofre de Adhemar de Barros], a VAR-Palmares

detinha cerca de 2,5 milhões de dólares – dinheiro ensopado, mas quente,

‘expropriado da corrupção’. Ao todo, 13 militantes se envolveram no assalto, do

planejamento até a secagem das notas. Dilma não participou469.

Há uma separação contundente feita pelo autor a respeito das responsabilidades de

Dilma – mais “burocráticas” e documentais – e das ações armadas, totalmente apartadas das

primeiras. Essa diferenciação constrói uma militante que não pertence ou não concorda com o

todo de sua organização – como se as atividades burocráticas não estivessem aliadas às frentes

armadas. É curioso notar que o jornalista aponta que 13 militantes participaram da expropriação

do cofre, “do planejamento até a secagem das notas”, mas que Dilma não se envolveu. Na

mesma página, no entanto, narra:

A primeira troca [de dólares para cruzeiros novos] foi feita no dia seguinte, numa casa

de câmbio em Copacabana, uma das poucas que havia então. Carlos e Espinosa

ficaram do outro lado da rua, dando cobertura a Dilma e Dodora, que sabiam falar

inglês e se passaram por turistas americanas. Elas trocaram cerca de mil dólares cada

uma, dinheiro que virou almoço e jantar para os famintos da VAR naquela semana470.

Fica evidente, então, que Dilma participou sim do processo, envolveu-se com os dólares

quando trocou uma parte deles na casa de câmbio e, logo, Amaral contradiz sua própria

468 Ibid., p. 55. 469 Ibid., p. 61 470 Idem, grifos meus.

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narrativa. Há, porém, novamente uma distinção bem demarcada: o dinheiro trocado pela

biografada foi usado para alimentar os “famintos” militantes clandestinos. O restante, de acordo

com Amaral, “não trouxe felicidade à VAR-Palmares. Boa parte foi dissipada na compra de

terras para sediar guerrilhas que nunca saíram do papel”471 – com esse montante, Dilma não

teria se envolvido.

Constata-se que a preocupação da personagem Dilma construída por Amaral é com

pessoas, e não com a guerrilha em si, não com a revolução enquanto objetivo a ser concretizado.

E, tendo isso como base, pode-se interpretar o seguinte trecho, de grande relevância para a

construção da memória da biografada:

Para os políticos, como Dilma, aquele dinheiro seria suficiente para a sobrevivência

da VAR-Palmares sem ter de recorrer aos arriscados e violentos assaltos. Para os

militares, como Lamarca, serviria para comprar terras e armas modernas e deslanchar

a guerrilha no interior do país472.

Lamarca, aqui – diferentemente da personagem que aparece na biografia de Patarra –

representa outra coisa: a luta armada per se, aquela violenta e militarizada, isolada. Lembro,

neste ponto, as proposições de Denise Rollemberg e de Daniel Aarão Reis a respeito da luta

armada não ter encontrado amplo apoio nos setores da sociedade473. Ao diferenciar Dilma de

Lamarca, Amaral a afasta do estereótipo do guerrilheiro e do ideal da luta revolucionária,

situando-a em outro projeto, o da luta de massas – assim, a própria Dilma não teria encontrado

lugar na guerrilha. Nesse sentido, o autor opta por apresentar um depoimento dado por ela à

jornalista Judith Patarra nos anos 1990 como uma exposição de seus argumentos de 20 anos

antes, criticando sua própria linha de engajamento: “qual o sentido político da ação?

Substituímos a guerra revolucionária por assaltos a banco. Dizer que somos compelidos a

buscar fundos é quase subjetivo. Essencial seria o buscar o povo”474. A autocrítica entre

membros da esquerda armada foi comum nos anos 1990, porém, é usada pelo autor para definir

o que Dilma acreditava nos anos 1970, constituindo em anacronismo.

Portanto, é possível entender o aspecto principal da Dilma de Amaral: ela não pertence

à burguesia – mesmo tendo vindo dela –, mas também não pertence à luta armada. A Dilma de

Amaral pertence ao povo. Segundo o jornalista,

471 Ibid., p. 62. 472 Ibid., p. 61, grifos do autor. 473 ROLLEMBERG, 2003, op. cit. 474 AMARAL, 2011, op. cit., p. 64.

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Ela [Dilma] faz essa opção de seguir com as organizações revolucionárias, mas dentro

dela, dentro dessas organizações, ela também toma um partido. Porque havia uma

dicotomia entre reforçar a luta armada ou manter a luta de massas, né. A chamada

linha de massas, que era manter o trabalho, não perder o contato com a sociedade, não

perder o contato com os trabalhadores. Ela sempre nessa posição... Que também é

derrotada dentro [das organizações]...475

Estar ao lado do povo – e não em um projeto que este rejeitou – é o comportamento que

se espera de um Chefe de Estado, destino ao qual Dilma estaria fadada – e isso fica evidenciado

mais à frente, quando o autor narra seus tempos de prisão:

Dilma saía-se melhor defendendo suas opiniões do que seu tempo, mesmo quando

suas ideias pareciam indigestas para a esquerda. Na Copa do Mundo de 70, ela torceu

pela seleção brasileira com conhecimento e convicção. Era torcedora do Atlético

Mineiro (“E viva o Galo!”, ela bradava), compreendia táticas de futebol e até o

insondável mistério da linha de impedimento. Entre os companheiros que

denunciavam a “seleção manipulada pela ditadura” e os “90 milhões em ação”, Dilma

optou pela linha de massas. Quando a ditadura decidiu ampliar o mar territorial

brasileiro de 12 para 200 milhas, antecipando-se à convenção da ONU sobre direitos

do mar, parte da esquerda torceu o nariz: era uma patriotada irresponsável, criticavam.

Para Dilma, era uma questão de soberania nacional – e ponto. (...) Em 1971, ela foi

contra uma greve de fome que rachou o presídio. Ficou solidária aos grevistas, mas a

repercussão do protesto foi negativa, como havia calculado476.

Amaral parece pretender criar – ou lembrar – uma Dilma que discorda mesmo entre

seus pares – a esquerda revolucionária –, para exibi-la enquanto uma pessoa mais conciliadora,

mais moderada – em oposição ao radicalismo das organizações – e capaz de levar em

consideração a opinião da maioria – a soberania nacional. A biografada poderia concordar com

decisões tomadas pelos governos ditatoriais, aos quais era tão crítica, caso respondessem às

demandas do povo, como é o caso do episódio citado. Essas atitudes são típicas de um líder de

Estado e são atribuídas pelo autor à Dilma como se fossem inatas, integrantes de sua

personalidade desde a juventude. Esvazia-se, mais uma vez, o sentido revolucionário e

ideológico da luta armada, em prol de uma visão de “bom para o povo” x “ruim para o povo”.

O jornalista faz uso desse caso para estabelecer uma ponte com o seu presente, no qual a atuação

política de Dilma justifica tal apoio tão inesperado: “sem as 200 milhas, a Petrobras jamais teria

desenvolvido suas plataformas marítimas – nem a futura ministra Dilma Rousseff teria

475 GENTE que é gente. TVC/BH, 25 mar. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM&t=590s>. Acesso em: 31 jan. 2019. 476 AMARAL, 2011, op. cit., p. 81.

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anunciado ao país a descoberta da gigantescas jazidas do pré-sal, em outubro de 2008, quase

40 anos depois”477.

Interessante observar outra continuidade criada por Amaral: é bem conveniente que a

Dilma da biografia tenha se colocado a favor da Copa de 1970, mesmo quando seus

companheiros militantes se posicionavam firmemente contra478. O comportamento de Dilma

pode estar associado ao contexto de lançamento do livro, um momento em que o país se

preparava para sediar a Copa do Mundo sob a chefia da presidente, conquista de governos

anteriores do PT.

O próximo capítulo é o que propõe tratar mais diretamente e exclusivamente da

biografada – “Tão logo a noite acabe”, em referência à música de Paulinho da Viola, aborda o

período em que Dilma esteve presa e os momentos em que foi torturada. A partir desse

momento, o livro de Amaral constrói a figura de Dilma como vítima do Estado militarizado.

Nessa parte da obra, o tempo da narrativa, que era extremamente acelerado, com informações

espaçadas e pouco detalhadas, torna-se lento. O autor faz questão de descrever as situações

minuciosamente e há constantes referências ao que a biografada estava sentindo, com a intenção

de tocar o leitor.

A Vanda da VAR-Palmares, aliás, Luíza, aliás, Estela, estava cercada. Eram quatro

horas da tarde 16 de janeiro de 1970, uma sexta-feira. Nos 22 dias seguintes, Dilma

Rousseff conheceria o inferno da tortura, aonde se chegava cruzando a cancela do

DOI-Codi na Rua Tutóia. Ela só voltaria a andar pelas ruas depois de passar dois anos

e dez meses num presídio da ditadura479.

Ao narrar o momento de prisão de Dilma, não é ela quem está sendo presa: é Vanda,

Luíza, Estela – seus nomes de guerra dentro das organizações revolucionárias. No entanto,

quem vivenciou os horrores da tortura e a vida na prisão foi Dilma. Há um corte entre as duas

personas da biografia: de um lado, a clandestina, militante, guerrilheira; e, de outro, a vítima.

Ainda havia luz quando Dilma foi jogada na cela das mulheres da Oban. Apresentou-

se como Vanda, e uma prisioneira grávida, da ALN, deixou escapar: “Xii... você está

ferrada. Eles estão loucos te esperando”.

Não é a coisa mais estimulante para se dizer a quem está na expectativa de enfrentar

a tortura pela primeira vez. O medo de não suportar a violência e trair amigos é uma

parte da angústia. O medo de morrer é outra480.

477 Idem. 478 Cf. ALMEIDA, Maria Hermínia Brandão Tavares de; WEISS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da

oposição de classe média ao regime militar. IN: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no

Brasil. Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 479 AMARAL, 2011, op. cit., p. 71. 480 Idem.

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O trecho acima é baseado na entrevista concedida por Dilma ao jornalista Luiz Maklouf

Carvalho em 2003, publicada na Folha em 2005. É curioso, no entanto, a ressignificação feita

por Amaral da narrativa do episódio. Na entrevista original, a fala de Dilma é a seguinte: “(...)

E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de

mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro.

Ela disse: ‘Xi, você está ferrada’”481. Dilma declarou na entrevista que deu seu nome

verdadeiro; Amaral, utilizando essa mesma fonte, opta por afirmar que ela se apresentou como

Vanda, fortalecendo minha hipótese de que, em sua concepção, ela só tenha se tornado Dilma

novamente após a tortura – a vítima.

Essa entrevista é tratada pelo biógrafo como a única vez em que Dilma falou em detalhes

das torturas sofridas482 – talvez o autor desconhecesse o depoimento dado por ela à Comissão

Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura do Estado de Minas (CEIVT), em 2001, ou que

tenha escolhido, por alguma razão, não inclui-lo na narrativa biográfica. As partes selecionadas

por Amaral da reportagem são as que descrevem com mais clareza a tortura: as falas em que

Dilma cita os nomes dos torturadores, narra com riqueza de detalhes as sevícias e, para além

disso, diz que aguentou.

Eu aguentei. Não disse nem onde eu morava. Não disse quem era o Max (Carlos

Araújo). Não entreguei o Breno (Carlos Alberto Freitas), porque tinha muita dó (...).

Primeiro, eu não queria que meus companheiros estivessem numa situação daquelas.

Segundo, eu tinha medo que algum deles morresse483.

A Dilma de Amaral foi uma vítima, sem sombra de dúvidas, mas também foi resistente

– principalmente ao não entregar seus companheiros, resultando que também se tornassem

vítimas. O autor ratifica essa linha de raciocínio em entrevista concedida a Paulo Henrique

Amorim:

Paulo Amorim: Ricardo, você transcreve aqui a entrevista que ela deu para um livro

de um jornalista, Maklouf, em que ela descreve pormenorizadamente a tortura que foi

submetida. E eu não me lembro de ter visto em nenhum momento um torturado

descrever com tanta intensidade, clareza, tudo aquilo que foi submetida. E ela, é muito

481 CARVALHO, Luiz Maklouf. Dilma diz ter orgulho de ideais da guerrilha. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21

jun. 2005. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2106200508.htm>. Acesso em: 31 jan.

2019, grifos meus. 482 Ibid., p. 72. 483 Ibid., p. 74, citando CARVALHO, 2005, op. cit.

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importante observar, é torturada durante quanto tempo? Durante 22 dias. Todas as

formas de tortura possíveis e imagináveis. E ela não falou.

Ricardo Amaral: Não, ela não... esse senhor que tá aqui [Carlos Araújo], que nos

ajudou muito, não caiu graças ao silêncio dela. E outras pessoas que não caíram graças

à resistência dela484.

A ideia de que ela não tenha “entregado” ninguém sob tortura é muito reproduzida na

narrativa biográfica. No entanto, há um silêncio de Amaral em relação ao caso do operário

Natael Custódio Barbosa, descrito nos processos do Brasil: Nunca Mais e referido por Luiz

Maklouf Carvalho em uma de suas reportagens sobre Dilma, em 2009 – prévia à publicação do

livro. As informações são de que Natael seria um operário ligado à VAR-Palmares e seu contato

dentro da organização seria Luísa, nome de guerra de Dilma. Segundo Carvalho,

Dilma tinha encontros regulares com Natael Custódio Barbosa, que participara das

greves operárias de 1968 em Osasco. “Dilma era uma companheira muito séria e

dedicada, que acreditava no que estava fazendo”, disse-me Barbosa na sua casa, em

Londrina, onde é caminhoneiro e vive com a mulher e três filhos.

No final de janeiro de 1970, Barbosa foi ao encontro que haviam marcado, às cinco

da tarde, na movimentada rua 12 de Outubro, na Lapa. Ele vinha numa calçada, do

lado oposto e em sentido contrário ao que ela deveria vir. Quando a viu, de braços

cruzados, atravessou a rua, passou por ela sem dizer nada, andou uns vinte passos e,

sem desconfiar de nada, voltou. “Voltei, encostei do lado dela e perguntei se estava

tudo bem”, contou Barbosa, emocionadíssimo. “Ela fez aquela cara de desespero e

eles caíram imediatamente em cima de mim, já me batendo, dando coronhadas e me

levando para o camburão, e depois para a Oban”485.

A versão de Natael de que teria sido preso em um ponto com Dilma já consta em seu

interrogatório no DOPS, de fevereiro de 1970: “que, o interrogando sempre tinha ‘contacto’

com ‘LUISA’, tendo ‘caído’ num encontro marcado com a mesma486”. Esse episódio foi muito

destacado por conservadores e por negacionistas: a imprensa conservadora e blogs de oposição

à Dilma e ao PT em geral, culparam-na por ter delatado seu “amigo” e, inclusive, afirmaram

que a redução de sua pena teria ocorrido em decorrência dessa delação487.

484 ENTREVISTA Record: Eduardo Campos (2012). Record News, 28 jun. 2016. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=0Pyk1sHgUxc>. Acesso em: 14 fev. 2019. 485 CARVALHO, 2009, op. cit. 486 BNM 095, p. 195. 487 No livro Guia politicamente incorreto dos presidentes da República consta que “tudo indica que houve redução

de sua pena em troca da delação premiada de alguns “companheiros”, como o seu amigo guerrilheiro Natael

Custódio Barbosa, ao [sic] qual atraiu para um encontro em que a polícia o capturou”. Essa afirmação é feita sem

a citação de fontes que permitam confirmá-la. O jornalista Reinaldo Azevedo também contou o caso em seu blog

na Veja.

Cf. SCHMIDT, Paulo. Guia politicamente incorreto dos presidentes da República. Edição atualizada. São Paulo:

Leya, 2017; AZEVEDO, Reinaldo. Dilma, o passado e a delação. Blog Reinaldo Azevedo – Veja, 6 abr. 2009.

Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/dilma-o-passado-e-a-delacao/>. Acesso em: 11 fev. 2019.

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Como as informações foram publicadas por Luiz Maklouf Carvalho, jornalista muito

consultado por Amaral para obter dados sobre a biografada, é provável que o biógrafo tenha

tido conhecimento sobre esse fato e tenha optado pelo silêncio. Ao fazer essa escolha, a

construção da imagem de Dilma como vítima e, de certa forma, heroína se torna mais sólida.

Em determinado ponto da narrativa, Amaral afirma: “a repressão sabia que ela era um

quadro importante, mas não desconfiava que Dilma tinha se tornado dirigente da VAR-

Palmares depois do racha de Lamarca488”. Antes de sua prisão, e após o “racha dos sete”, a

única menção do autor em relação às novas funções assumidas pela biografada é: “Para Dilma,

era tempo de deixar o Rio. Com a prisão de Roberto Espinosa, ela foi escalada para reorganizar

a VAR-Palmares em São Paulo e dessa vez teria de ir só (...)”489 – Amaral reproduziu o que a

imprensa da época490 listou como atribuição de Dilma, mas não disse de forma explícita que ela

assumiu uma posição de dirigente. Pode-se inferir, assim, que o autor silencia sobre grande

parte da atuação política de Dilma dentro das organizações, como dito anteriormente. O próprio

fato de o biógrafo se utilizar da voz passiva – “Dilma foi escalada” – aponta para uma

construção da biógrafa enquanto o oposto de uma “guerrilheira-ativa”.

Contudo, é possível conjecturar que a menção de Dilma enquanto dirigente tenha sido

necessária a essa altura da narrativa para justificar a quantidade e a severidade das torturas às

quais foi submetida. Uma militante com pouca visibilidade, apenas política, não teria sido vista

com tanta importância pelos órgãos de segurança.

Apesar da tortura e do sofrimento serem elementos de centralidade no discurso

biográfico, Amaral não menciona os episódios em Juiz de Fora:

Os depoimentos nas auditorias militares eram ocasiões para sair da cela e rever

companheiros. Em Juiz de Fora, Dilma encontrou Gilberto Vasconcelos, o contato da

Colina em Uberaba. Estudante de Medicina, um dos presos no Congresso da UNE em

Ibiúna, ele operava o telex da agência do Banco do Brasil em Uberaba e foi acusado

de tramar um assalto que nunca ocorreu.

(...)

Em Juiz de Fora ela também reviu Guido Rocha, seu mentor político na Polop491.

Essa é mais uma evidência de que o autor não obteve acesso ao depoimento concedido

por Dilma à comissão mineira. Amaral não deixa de narrar a ida dela à MG, como visto no

488 AMARAL, 2011, op. cit., p. 74, grifos meus. 489 Ibid., p. 67. 490 O próprio Amaral cita em seu texto uma matéria publicada pela imprensa após a detenção de Dilma: “Dilma

Vana Rousseff Linhares (“Luíza”), oriunda da Colina de Minas Gerais e que ultimamente vinha operando na

Guanabara, veio para São Paulo em dezembro de 69, por determinação do Comando Nacional da VAR-Palmares

para reestruturar esta organização subversivo-terrorista; (...)”. 491 AMARAL, 2011, op. cit., p. 85.

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trecho acima, mas não trata das sevícias – escolha essa que pode ter sido consciente ou fruto de

desconhecimento do documento; em vez disso, conjectura e cria um cenário de certa forma

positivo e leve – o que não condiz com a construção da biografada enquanto vítima. Esse hiato

na obra pode corroborar com a afirmação do jornalista de que fez um trabalho independente,

sem o apoio de Dilma. Contudo, não se pode deixar de destacar que Dilma, em nenhuma ocasião

com exceção da CEIVT, fez declarações sobre as experiências vividas em JF – por serem as

mais traumáticas, é possível que ela tenha desejado mantê-las em segredo.

Amaral demonstra uma grande preocupação em atestar que Dilma não foi condenada

por nenhuma ação armada, mesmo após três Inquéritos Policiais Militares (IPMs) que a

investigaram exaustivamente – utilizando-se da tortura para isso: “nenhum dos três IPMs

estabeleceu a participação de Dilma nas ações armadas (assaltos a bancos, roubo de carros e

armas, atentados, entre outros) da Colina e da VAR492”. Ao denominar as ações que Dilma

poderia ter sido condenada, mas não foi, ele dialoga com o discurso muito divulgado durante a

campanha de 2010: a Veja, em junho, apontou que Dilma e seus companheiros da VAR

“lutaram, mataram e morreram” para tentar implementar uma ditadura comunista493; a Época,

em agosto, afirmou que “Dilma foi denunciada por chefiar greves e assessorar assaltos a

banco494”, bem como O Globo, novembro495; a Folha, também em novembro, noticiou que

Dilma tinha a senha de acesso para armamentos roubados496. Amaral tenta apaziguar esses

discursos, fazendo uso da própria estrutura judiciária do Estado militar para dar-lhe

legitimidade – “não sou eu que estou dizendo, são os próprios militares”.

O jornalista cita também as polêmicas denominações de um juiz paulista, muito

retomadas em 2010 pelos veículos de imprensa:

Em São Paulo, o juiz auditor carregou a mão na denúncia – chamou Dilma de “papisa

da subversão”, “uma das molas mestras e um dos cérebros dos esquemas

revolucionários postos em prática pelas esquerdas radicais” – e obteve a pena máxima:

quatro anos. Em novembro de 1972, o Superior Tribunal Militar (STM) reavaliou os

processos, fixou a pena total em dois anos e um mês e determinou a soltura da ré.

492 Ibid., p. 86. 493 AZEVEDO, Reinaldo. Dilma e a degradação da política: o terrorismo agora em palavras. Veja, São Paulo, 23

jun. 2010, atualizado em 21 fev. 2017. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/dilma-e-a-

degradacao-da-politica-o-terrorismo-agora-em-palavras/>. Acesso em: 31 jan. 2019. 494 LOYOLA, Leandro; SILVA, Eumano; ROCHA, Leonel. Dilma na luta armada. Época, 20 ago. 2010.

Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI163155-15223,00-

DILMA+NA+LUTA+ARMADA.html>. Acesso em: 31 jan. 2019. 495 ÉBOLI, Evandro; CARVALHO, Jailton de. Documentos da ditadura dizem que Dilma 'assessorou' assaltos a

bancos. O Globo, 19 nov. 2010. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/politica/documentos-da-ditadura-

dizem-que-dilma-assessorou-assaltos-bancos-2922841>. Acesso em: 31 jan. 2019. 496 LEITÃO, Matheus; FERRAZ, Lucas. Dilma tinha código de acesso a arsenal usado por guerrilha. Folha de S.

Paulo, Brasília, 20 nov. 2010. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2011201008.htm>.

Acesso em: 31 jan. 2019.

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Tendo em vista os poucos dados apresentados por Amaral em relação à atuação efetiva

dentro das esquerdas revolucionárias, as falas desse juiz parecem, de fato, exageradas. O

jornalista encerra a narrativa sobre o tempo de prisão da biografada com uma colocação

interessante:

Num artigo sobre a luta armada contra a ditadura, o sociólogo Marcelo Ridenti

registrou a atuação de 434 mulheres em organizações clandestinas, das quais pelos

menos 43 foram mortas, a maioria sob tortura. Em suas memórias do cárcere, Dilma

guardou a frase do dramaturgo alemão Bertold Brecht, que alguém descreveu numa

parede do Presídio Tiradentes: “Feliz é o povo que não precisa de heróis”497.

Essa colocação antecede dois parágrafos que introduzem Luiz Inácio Lula da Silva na

narrativa. Amaral descreve o que Lula estava fazendo em 1972, ano em que a biografada foi

solta, e encerra o capítulo com o seguinte parágrafo: “cinco anos depois [de 1972], já presidente

do sindicato, Lula comandaria a grande maré grevista que desafiou a ditadura e levantou a

cabeça do movimento operário. Eram as massas, e não apenas os heróis, abrindo enfim o

caminho para a democracia”498.

Neste ponto, Amaral opõe dois projetos distintos de luta “contra a ditadura”, um bem-

sucedido e outro não: o projeto ofensivo da luta armada, os “heróis”, na concepção do biógrafo;

e o projeto dos metalúrgicos/operários, pacífico, o das “massas”. Esse antagonismo explica

porque a luta armada não obteve sucesso e, mais do que isso, porque a Dilma de Amaral, apesar

de envolvida, não se identificava com o projeto revolucionário. Janaina Cordeiro coloca que:

“(...) no estereótipo do herói, figura bem definida, de traços bem demarcados, comprometida

com a ação não cabe toda a sociedade499”. Por isso, Amaral coloca como projeto que finalmente

derrotou a ditadura aquele com a participação de todos, onde o povo se encaixava. Dilma

finalmente consegue fazer a “transição” para esse lado ao conhecer Lula, o líder, mas não herói.

O que Amaral não menciona é o motivo pelo qual a frase de Brecht ficou gravada na

memória de Dilma e seu significado para ela. A então ministra-chefe da Casa Civil, em 2009,

concedeu uma entrevista à Folha:

FOLHA - Informação obtida sob tortura é de responsabilidade de quem tortura e não

de quem fala? Dá para culpar a pessoa que falou?

497 AMARAL, 2011, op. cit., p. 87. 498 Idem. 499 CORDEIRO, 2012, op. cit., p. 319.

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DILMA - Não dá mesmo. Até porque ali, naquela hora, tinha uma coisa muito

engraçada que eu vi. Aconteceu com muita gente, não foi só comigo. É por isso que

aquela pergunta é absurda, a do senador [Agripino Maia, do DEM]. A mentira é uma

imensa vitória e a verdade é a derrota. Na chegada do presídio [Tiradentes], estava

escrito "Feliz do povo que não tem heróis", que era uma frase do Brecht que tem um

sentido amplo. Esse fato de não precisar de heróis mostra uma grande civilidade. É

preciso que cada um tenha um pouco de heroísmo500.

Segundo Dilma, a frase “tem um sentido amplo”, não captado pelo biógrafo – que atribui

apenas um. Além disso, ela continua: “esse fato de não precisar de heróis mostra uma grande

civilidade”: pode-se inferir que Dilma esteja afirmando que um povo que não precisa de heróis

está em um nível de “civilidade” alto – o que, segundo sua falta indica, não ocorria durante a

ditadura. Ao tratar que “é preciso que cada um tenha um pouco de heroísmo”, ela está se

referindo ao pouco heroísmo que demonstrou ao não fornecer informações verdadeiras sob

tortura: “a mentira é uma imensa vitória e a verdade é a derrota”.

Contudo, fica claro que a visão de Amaral é diferente da de Dilma em 2009: a biografada

é construída como vítima, assim como toda a sociedade, mas não é heroína como seus

companheiros de luta armada pretendiam ser. O único caminho para a democracia seria o das

massas, o de Lula.

A redenção da vítima perante seus perpetradores ocorre anos depois, na perspectiva de

Amaral: “trinta e quatro anos depois de sair de uma prisão da ditadura, Dilma Rousseff estava

diante dos oficiais-generais das três Forças, dizendo a eles como o país poderia crescer e

distribuir renda, numa democracia de mais de 100 milhões de eleitores”501. A oposição entre

dois regimes muito distintos fica evidente aqui – Dilma está frente a frente com seus algozes,

agora enquanto detentora de poder para melhorar a vida dos brasileiros, enquanto integrante de

uma Brasil democrático. E é nesse futuro em que aparecem as declarações explícitas do livro a

respeito das intenções democráticas da biografada:

O programa do PT foi uma prévia do que João Santana preparava para a propaganda

eleitoral. Começava com Lula elogiando o trabalho da ex-ministra (“Não tenho dúvida

de que muito do sucesso do meu governo se deve ao trabalho de coordenação que ela

fez na Casa Civil”, ele dizia) e sua trajetória pessoal (“O que eu mais admiro na Dilma

é a história dela, uma história de luta”). Seguia com uma pequena biografia de Dilma,

destacando os cargos que ocupou e a luta contra a ditadura. Avaliando as pesquisas,

Santana sugeriu “vacinar” a candidata contra versões que a apresentavam como

“terrorista e assaltante de bancos”. Dilma dizia no programa:

500 ODILLA, Fernanda. Aos 19, 20 anos, achava que eu estava salvando o mundo. Folha de S. Paulo, Brasília, 5

abr. 2009. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0504200908.htm>. Acesso em: 31 jan.

2019. 501 AMARAL, 2011, op. cit., p. 238.

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– Eu lutei pela liberdade e pela democracia. Lutei contra a ditadura do primeiro ao

último dia. Quando o Brasil mudou, eu mudei. Mas nunca, nunca mesmo, mudei de

lado502.

“Quem, da minha geração, lutou pela democracia sabe que ouvir as vozes críticas da

imprensa é mil vezes preferível ao silêncio imposto pela censura”, a candidata [Dilma]

afirmou, numa reunião na Associação Brasileira de Imprensa503.

Fácil, para ela, nunca foi. Dilma teve de superar todos os desafios que a vida colocou

diante dela ao longo do caminho: a condição feminina numa sociedade machista, a

militância na clandestinidade, a tortura, a cadeia, a luta tantas vezes áspera pela

democracia, o desafio de participar do primeiro governo dirigido por um trabalhador

no Brasil, a superação do câncer e uma campanha eleitoral duríssima, em que a

candidata estreante enfrentou um dos mais experientes políticos do país504.

Embora a tenha caracterizado, durante a narrativa do período ditatorial, como uma

mulher das massas, como “deslocada” dentro das organizações revolucionárias, Amaral não

tinha, de fato, empregado a palavra democracia para definir a luta de Dilma nos anos 1960 e

1970. Essa denominação acontece apenas nos capítulos que se referem à campanha à

presidência, primeiro com declarações da própria Dilma, e depois com uma apropriação deste

discurso por Amaral. Ao concorrer para eleições gerais, Dilma se torna uma mulher que sempre

lutou pela democracia, ocultando, de uma vez por todas, o lado revolucionário de seu

engajamento. Construções da memória que ocorrem em razão de demandas do presente.

Construções da memória que convergem com o caráter conciliador – afinal, quem, no Brasil,

elegeria uma presidenta que pegou em armas para a derrota do capitalismo e instauração de

uma nova ordem socialista? Quem elegeria uma guerrilheira que, de fato, guerrilhou?

502 Ibid., p. 503 Ibid., p. 261. 504 Ibid., p. 304.

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CAPÍTULO 4 – “RECONCILIAÇÃO E PACIFICAÇÃO NACIONAL”: A MEMÓRIA

COMO DISCURSO E POLÍTICA DE ESTADO (DÉCADAS DE 2000 E 2010)

Conforme apontado anteriormente, a biografia de Dilma Rousseff foi publicada em

2011, primeiro ano de seu primeiro mandato presidencial – terceiro consecutivo de um

representante eleito pelo PT. Essa data é crucial pois abarca dois momentos importantes para a

memória sobre a ditadura e seus produtores: as políticas de Estado pela memória e a crescente

cisão com a memória hegemônica sobre a ditadura, com (re)ascensão de discursos antes

subterrâneos de apoio ao antigo regime ditatorial.

O primeiro desses momentos, de acordo com o historiador Marcos Napolitano, tem

como marco fundador a entrada do Estado enquanto produtor de memória, formando-se um

novo ciclo: “as leis de memória e a política do Estado”, que tiveram início em 1995, no governo

de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), com a aprovação da lei n° 9.140 – a Lei dos

Desaparecidos Políticos do Brasil. Esta “reconhece como mortas pessoas desaparecidas em

razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de

setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências”505.

A grande inovação desta lei é, sem dúvidas, o reconhecimento da responsabilidade do

Estado pela morte de pessoas desaparecidas. A temporalidade, contudo, ainda tem em comum

com a Lei de Anistia: compreende os desaparecimentos entre 2 de setembro de 1961 a 15 de

agosto de 1979, em consonância com o determinado pela lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979,

a Lei de Anistia. No entanto, foi alterada por outra lei, a 10.536, de 14 de agosto 2002, tornando-

se o período entre “2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988”506.

Outro aspecto da Lei dos Desaparecidos Políticos que está em conformidade com a Lei

de Anistia é a orientação pelo “princípio de reconciliação e de pacificação nacional”507. Houve

também a determinação de abertura de uma Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos

Políticos (CEMDP) que, além de apurar a localização dos corpos, emitiria pareceres sobre

505 BRASIL. Lei n° 9.140, de 4 de dezembro de 1995. Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de

participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de

agosto de 1979, e dá outras providências. Brasília, DF: Planalto, 1995. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9140compilada.htm>. Acesso em: 12 fev. 2019. 506 BRASIL. Lei n° 10.536, de 14 de agosto de 2002. Altera dispositivos da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de

1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou de acusação de participação,

em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências.

Brasília, DF: Planalto, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10536.htm>.

Acesso em: 12 fev. 2019. 507 Idem.

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pedidos de indenização, que deveria ser concedida pelo presidente. É importante salientar que

as principais demandas dos familiares, prévias à aprovação da lei, consistiam no “conhecimento

da verdade (a revelação das condições em torno dos crimes), a apuração das responsabilidades

dos envolvidos e a localização e identificação dos despojos das vítimas”508. Essas demandas,

no entanto, não foram atendidas em função do não rompimento com a Lei de Anistia e seu

discurso conciliador. A cientista política Glenda Mezarobba afirma que “o pagamento de

reparações jamais figurou entre as prioridades reivindicadas”509.

Aqui, portanto, cabe um questionamento sobre a proposta de Napolitano: seria a

entrada do Estado como produtor de memória suficiente para o início de um novo ciclo?

Principalmente levando em consideração que, embora seja um produtor novo na batalha pela

forma de lembrar o passado, o Estado não criou um novo discurso, mas se apropriou do

anterior, estabelecendo uma linha de continuidade com a forma conciliadora de enxergar o

passado. Através da análise das políticas de memória empreendidas pelos diversos governos

que se seguiram a partir de 1995, será possível refletir sobre o fato de esse momento poder ser

considerado um novo ciclo ou não.

Ainda na gestão de FHC, foi aprovada outra iniciativa pela memória: a lei n° 10.559, de

13 de novembro de 2002510, regulamentou ações de reparação econômica “para reduzir as

perdas dos que foram impedidos de exercer suas atividades por causa da perseguição política

sofrida durante o arbítrio511”. Essa lei partiu da demanda de anistiados, que não se viram

contemplados na anterior, que outorgava indenizações aos familiares de apenas mortos e

desaparecidos512. A Lei dos Anistiados Políticos também criou a Comissão de Anistia, que,

segundo Ana Pessoa, realizou “ações como: Caravanas da Anistia (promovendo julgamentos

públicos em várias partes do país), palestras, debates, apresentação de filmes e documentários,

tudo com o objetivo de suscitar as memórias dos acontecimentos ocorridos na ditadura”513.

508 MEZAROBBA, Glenda. Entre reparações, meias verdades e impunidade: o difícil rompimento com o legado

da ditadura no Brasil. Sur, v. 7, n. 13, dez. 2010, p. 13. 509 Idem. 510 BRASIL. Lei n° 10.559, de 13 de novembro de 2002. Regulamenta o art. 8o do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias e dá outras providências. Brasília, DF: Planalto, 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10559.htm>. Acesso em: 12 fev. 2019. 511 MEZAROBBA, 2010, op. cit., p. 14. 512 Em 2001, por forte demanda dos anistiados, o então presidente aprovou uma Medida Provisória que

regulamentasse as compensações. Cf. BRASIL. Medida Provisória n° 65, de 28 de agosto de 2002. Regulamenta

o art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras providências. Brasília, DF: Planalto,

2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas_2002/65.htm>. Acesso em: 12 fev.

2019. 513 PESSOA, Ana D. L. B. Da Lei de Anistia (1979) ao Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH – 3

(2009): políticas da memória como contribuição à educação em direitos humanos. Dissertação (Mestrado em

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Nos últimos dias de seu governo, FHC publicou o decreto nº 4.553, de 27 de dezembro

de 2002514, que regulamentou o acesso a documentos considerados secretos: “os prazos foram

alterados substancialmente, com os ultrassecretos passando para o prazo máximo de 50 anos,

secretos com o prazo máximo de 30 anos e os confidenciais, com o prazo máximo de 20 anos;

também nos três casos renováveis por igual período”515.

Dessa forma, apesar de responsabilizar-se a si mesmo pelos assassinatos,

desaparecimentos e pela saída forçada do país – lembrando as vítimas, os vencidos e não os

vencedores, aspectos esses da memória hegemônica –, promovendo reparações financeiras, é

possível depreender que o caráter conciliador da memória, inaugurado pela Lei da Anistia516,

continuou se fazendo presente no discurso estatal. O Estado passou a ser um produtor de

memória e o discurso hegemônico, que ganhou lugar no período de transição e nos primeiros

anos da democracia, tornou-se memória oficial.

Com a mudança de gestão, e a chegada de Lula ao poder, a expectativa era de uma maior

discussão sobre esses temas – especialmente pelo fato de o PT se apresentar como um partido

de esquerda, herdeiro das lutas de oposição à ditadura. Houve, de fato, de acordo com o

historiador Guilherme Gouvêa, uma disposição maior em lidar com os temas do passado

autoritário – “todavia, as políticas desses governos tiveram limites claros”517. Um dia antes da

comemoração de 24 anos da Lei de Anistia, em 27 de agosto de 2003, Lula publicou um decreto

(sem numeração)518, que criava uma Comissão Interministerial para estabelecer critérios para o

pagamento de indenizações a anistiados, em consonância com a lei 10.559, aprovada por FHC.

Políticas Públicas em Educação em Direitos Humanos) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017, p.

58. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/11820/1/Arquivototal.pdf>. Acesso

em: 12 fev. 2019. 514 BRASIL. Decreto n° 4.553, de 27 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações,

documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração

Pública Federal, e dá outras providências. Brasília, DF: Planalto, 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4553Compilado.htm>. Acesso em: 12 fev. 2019. 515 FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra. Reflexões sobre os registros da repressão: o arquivo DOPS-PB. XXVII

Anais... Simpósio Nacional de História – ANPUH Brasil, Natal, 22 a 26 jul. 2013, p. 3. Disponível em:

<http://encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/27/1364756101_ARQUIVO_Simposio2013_LuciaGuerra_ST

016.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2019. 516 REIS, Daniel Aarão. O governo Lula e a construção da memória do regime civil-militar. IN: PINTO, Antonio

Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa

do Sul e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 216. 517 TORRES, Guilherme Gouvêa Soares. Sobre passados que não passam: a justiça de transição em perspectiva

histórica. Anais... VI Congresso Internacional UFES/Paris-Est: Culturas políticas e conflitos sociais, 2017, p. 8.

Disponível em: <http://www.publicacoes.ufes.br/UFESUPEM/article/view/18061/12237>. Acesso em: 12 fev.

2019. 518 BRASIL. Decreto de 27 de agosto de 2003. Institui Comissão Interministerial para estabelecer critérios e forma

de pagamento da reparação econômica aos anistiados políticos de que trata a Lei nº 10.559, de 13 de novembro de

2002. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2003. Disponível em:

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133

A morosidade no cumprimento dessa lei durante o governo petista gerou insatisfação

entre membros do próprio partido. Em sessão solene realizada também em comemoração aos

24 anos da Anistia, realizada na Câmara dos Deputados, houve manifestações de alguns

políticos, entre eles o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP): “não pode ser crível para

nenhum brasileiro um governo em que o presidente seja anistiado, o Ministro-Chefe da Casa

Civil tenha sido exilado, voltou e foi anistiado e oito ministros tenham sido anistiados. Este

governo tem que ser o governo da anistia519”. O então Deputado Federal Aloysio Nunes (PSDB-

SP) também fez uma fala nesse sentido: “Lula, em uma de suas últimas entrevistas, disse uma

frase que comoveu a ele mesmo e a todos nós: é um sinal da honradez política e uma marca do

seu temperamento não deixar companheiros na estrada. Ele não pode deixar esses seus

companheiros na estrada”520.

Em março de 2004, mês que marcou as rememorações dos 40 anos do golpe civil-

militar, o presidente Lula publicou a Medida Provisória (MPv) n° 176, que alterou mais uma

vez a lei n° 9.140, incluindo entre mortos por responsabilidade do Estado aqueles

c) que tenham falecido em virtude de repressão policial sofrida em manifestações

públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público;

d) que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem

presas ou em decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de atos de tortura

praticados por agentes do poder público521;

Essa MPv se tornou a lei n° 10.875 em 1° de junho de 2004522, alargando ainda mais o público

que se tornaria apto a receber indenizações.

Em 18 de novembro de 2005, o presidente publicou o Decreto n° 5.584, tendo a

Ministra-Chefe da Casa Civil Dilma Rousseff como signatária, que determinava o recolhimento

pelo Arquivo Nacional de “documentos arquivísticos públicos produzidos e recebidos pelos

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/2003/decreto-514-27-agosto-2003-473474-publicacaooriginal-

1-pe.html>. Acesso em: 12 fev. 2019. 519 MARIZ, Cristiano. Protesto marca sessão pelos 24 anos da anistia: Advogado de famílias do Araguaia critica

recurso judicial do governo. Folha de S. Paulo, Brasília, 29 ago. 2003. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2908200318.htm>. Acesso em: 12 fev. 2019. 520 Idem. 521 BRASIL. Medida Provisória n° 176, de 24 de março de 2004. Altera dispositivos da Lei no 9.140, de 4 de

dezembro de 1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de

participação, em atividades políticas. Brasília, DF: Planalto, 2004. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Mpv/176.htm>. Acesso em: 14 fev. 2019. 522 BRASIL. Lei n° 10.875, de 1° de junho de 2004. Altera dispositivos da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de

1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação,

em atividades políticas. Brasília, DF: Planalto, 2004. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.875.htm#art1>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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extintos Conselho de Segurança Nacional - CSN, Comissão Geral de Investigações - CGI e

Serviço Nacional de Informações - SNI, que estejam sob a custódia da Agência Brasileira de

Inteligência – ABIN523”.

Em agosto de 2007, foi lançado o livro-relatório “Direito à Memória e à Verdade”, com

informações compiladas a partir do trabalho da CEMDP: “Em 500 páginas, são detalhadas as

circunstâncias das mortes de 339 casos analisados pela comissão. Destes, familiares de 221

desaparecidos foram indenizados pelo Estado – 118 casos foram indeferidos”524. Foi a primeira

documentação do Estado que responsabilizou os órgãos de segurança por tortura e mortes.

Contudo, durante o lançamento da obra, Lula fez questão de declarar:

Os seus familiares e amigos, seguindo uma tradição milenar, reclamam o justo direito

sagrado de sepultar seus entes queridos. E esse direito milenar e sagrado é de todos,

independentemente de credo religioso ou político. É esse direito que queremos

resgatar sem rancor, sem revanchismo de qualquer ordem525.

Janaina Cordeiro comenta que o texto introdutório do relatório afirma que “ao longo dos

21 anos de regime de exceção, em nenhum momento a sociedade brasileira deixou de

manifestar seu sentimento de oposição, pelos mais diversos canais e com diferentes níveis de

força526”. Esse discurso demonstra a apropriação pelo Estado do mito da sociedade resistente,

elemento típico da memória dominante – configurando em mais um elemento de base para o

questionamento sobre o início de um novo ciclo: essencialmente, não houve ruptura alguma nas

narrativas memoriais com a entrada do poder público.

A data de lançamento do livro também foi escolhida para demarcar a posição de

conciliação: o evento ocorreu em 29 de agosto, um dia após o aniversário de 28 anos da Lei de

Anistia o que, segundo a comissão responsável pela elaboração da obra, “sinaliza a busca de

523 BRASIL. Decreto n° 5.584, de 18 de novembro de 2005. Dispõe sobre o recolhimento ao Arquivo Nacional

dos documentos arquivísticos públicos produzidos e recebidos pelos extintos Conselho de Segurança Nacional -

CSN, Comissão Geral de Investigações - CGI e Serviço Nacional de Informações - SNI, que estejam sob a custódia

da Agência Brasileira de Inteligência - ABIN. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2005. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2005/decreto-5584-18-novembro-2005-539207-publicacaooriginal-

37267-pe.html>. Acesso em: 14 fev. 2019. 524 LULA descarta 'revanchismo' no lançamento de livro sobre mortos e desaparecidos políticos. UOL, São Paulo,

29 ago. 2007. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultnot/2007/08/29/ult23u535.jhtm>. Acesso em: 14 fev.

2019. 525 LULA lança livro sobre ditadura e militares não comparecem. Extra, 29 ago. 2007, grifos meus. Disponível

em: <https://extra.globo.com/noticias/brasil/lula-lanca-livro-sobre-ditadura-militares-nao-comparecem-

707280.html>. Acesso em: 14 fev. 2019. 526 COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS. Direito à memória e à

verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 23 apud CORDEIRO, Janaina. “A nação que

se salvou a si mesma”: entre memória e história, a Campanha da Mulher pela Democracia (1962-1974).

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008, p. 28, grifos meus.

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concórdia, o sentimento de reconciliação e os objetivos humanitários que moveram estes 11

anos de trabalho”527. Ainda assim, o livro incomodou as Forças Armadas, gerando uma nota

assinada pelo comandante do Exército, Enzo Martins Peri, que afirmava: “a Lei da Anistia, por

ser parâmetro de conciliação, produziu a indispensável concórdia de toda a sociedade, até

porque fatos históricos têm diferentes interpretações, dependendo da ótica de seus

protagonistas”528.

Essa “concórdia” não parecia ser consenso entre todos os membros do governo: em 2008

o então Ministro da Justiça, Tarso Genro, declarou haver necessidade de uma modificação na

Lei da Anistia que permitisse a punição de torturadores e assassinos, iniciando uma polêmica

coberta pela mídia. O Ministro da Defesa, Nelson Jobim, contrariou o companheiro de governo,

afirmando que a lei “‘foi auto-suficiente’ e ‘satisfez a situação que tinha para satisfazer’. E

pediu: ‘Vamos olhar para o futuro’”529. Na mesma ocasião, a reportagem da Folha perguntou

ao comandante do Exército sua opinião sobre as declarações de Genro. Sua resposta foi

“nenhum comentário”. “Indagado sobre o que achava da declaração de Jobim, de que não

haveria mudanças na lei, o comandante sorriu e disse: ‘Se o ministro falou, está falado’530”.

Alguns dias depois, no entanto, Genro declarou à imprensa a posição de Lula: “o

presidente orientou e consolidou a posição que vínhamos defendendo durante a semana, de que

qualquer interpretação a respeito da Lei da Anistia é do Poder Judiciário e que o Poder

Executivo não vai compartilhar dessa discussão. É uma questão atinente ao Poder

Judiciário531”.

Em 13 de maio de 2009, foi criado o Projeto “Centro de Referência das Lutas Políticas

no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas”, vinculado ao Arquivo Nacional e à Casa Civil,

com o objetivo de:

tornar-se espaço de convergência e difusão de documentos ou informações produzidos

ou acumulados sobre o regime político que vigorou no período de 1º de abril de 1964

527 LULA descarta 'revanchismo' no lançamento de livro sobre mortos e desaparecidos políticos. UOL, São Paulo,

29 ago. 2007. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultnot/2007/08/29/ult23u535.jhtm>. Acesso em: 14 fev.

2019. 528 COMANDANTE do Exército afirma que Anistia “produziu concórdia”. Agência Brasil, 31 ago. 2007.

Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2007-09-01/comandante-do-exercito-afirma-

que-anistia-produziu-concordia>. Acesso em: 14 fev. 2019. 529 GUIBU, Fábio; ROCHA, Graciliano. Jobim rebate Tarso e diz que Lei da Anistia não vai mudar. Folha de S.

Paulo, 2 ago. 2008. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0208200802.htm>. Acesso em:

14 fev. 2019. 530 Idem, grifos meus. 531 ANDRADE, Carollina. Lula deixa Lei da Anistia para o Judiciário, diz Tarso Genro. Último segundo IG, 11

ago. 2008. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/lula-deixa-lei-da-anistia-para-o-judiciario-diz-

tarso-genro/n1237693419292.html>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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a 15 de março de 1985, bem como pólo incentivador e dinâmico de estudos, pesquisas

e reflexões sobre o tema532.

Apesar de consistir em um centro de difusão de documentos relativos à ditadura civil-

militar, não há nomeação específica do regime, tornando-o “aquele que não deve ser nomeado”

– como evidenciado pelo trecho acima, o período é tratado de maneira extremamente genérica,

como um “regime político que vigorou de 1° de abril de 1964 a 15 de março de 1985”. Daniel

Aarão Reis a esse respeito afirma que

pode-se dizer que o atual Programa do Arquivo Nacional ‘Memórias Reveladas’

deveria ter um complemento: ‘(...) e Ocultadas’, porque no programa não aparecem

as aproximações, as cumplicidades, os apoios que vicejaram na sociedade à sombra

sinistra, dura, mas, para muitos, generosa, da ditadura. Nas Memórias Reveladas, só

se revela a “resistência”, uma palavra quase mágica, homogeneizante, uma espécie de

passe-partout, através do qual se tornam pardos todos os gatos533.

Em fins de 2009, o Decreto n° 7.037534 aprovou o Programa Nacional de Direitos

Humanos (PNDH-3), produzido pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Esse programa

estabeleceu diretrizes e metas para a implementação de uma política pautada na defesa dos

direitos humanos na sociedade brasileira, tendo um eixo específico sobre a memória: Direito à

Memória e à Verdade535. Contudo, algumas propostas foram duramente criticadas pelo

Ministério da Defesa e pelas Forças Armadas, gerando uma crise no governo. O Estadão

apontou que “o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes militares Enzo Martins

Peri, do Exército, e Juniti Saito, da Aeronáutica, ameaçaram pedir demissão caso o trecho sobre

a Comissão da Verdade não fosse alterado”536. Já O Globo noticiou que Lula considerou “um

erro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos incluir no novo plano setorial - cujo decreto

532 BRASIL. Portaria n° 204, de 13 de maio de 2009. Cria o “Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil

(1964-1985) – Memórias Reveladas”, no âmbito do Arquivo Nacional da Casa Civil da Presidência da República.

Brasília, DF: Casa Civil, 2009. Disponível em:

<http://www.memoriasreveladas.gov.br/administrator/components/com_simplefilemanager/uploads/582f58e906

cb30.85684117/Portaria%20204.pdf >. Acesso em: 14 fev. 2019. 533 REIS, 2013, op. cit., p. 227. 534 BRASIL. Decreto n° 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos -

PNDH-3 e dá outras providências. Brasília, DF: Planalto, 2009. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm>. Acesso em: 14 fev. 2019. 535 SECRETARIA de Direitos Humanos da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos

– PNDH-3. Brasília, DF: SEDH, 2010. Disponível em: <https://pndh3.sdh.gov.br/public/downloads/PNDH-

3.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2019. 536 ENTENDA a polêmica sobre a Lei da Anistia. Estadão, 28 abr. 2010. Disponível em:

<https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,entenda-a-polemica-sobre-a-lei-da-anistia,544229>. Acesso em: 14

fev. 2019.

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vem provocando embate dentro e fora do governo - assuntos relacionados à Lei de Anistia537”.

Dessa forma, em maio de 2010 foi publicado o Decreto n° 7.177, que alterou alguns pontos do

documento anterior538:

c) Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial, bem como

locais onde foram ocultados corpos e restos mortais de perseguidos políticos (Decreto

n° 7.037).

c) Identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as

circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais

ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade, bem como promover,

com base no acesso às informações, os meios e recursos necessários para a localização

e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos (Alteração

através do Decreto n° 7.177).

f) Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material

didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior

sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repressão (Decreto n°

7.037).

f) Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material

didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior

sobre graves violações de direitos humanos ocorridas no período fixado no art. 8º do

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 (Alteração

através do Decreto n° 7.177).

c) Propor legislação de abrangência nacional proibindo que logradouros, atos e

próprios nacionais e prédios públicos recebam nomes de pessoas que praticaram

crimes de lesa-humanidade, bem como determinar a alteração de nomes que já tenham

sido atribuídos (Decreto n° 7.037).

c) Fomentar debates e divulgar informações no sentido de que logradouros, atos e

próprios nacionais ou prédios públicos não recebam nomes de pessoas identificadas

reconhecidamente como torturadores (Alteração através do Decreto n° 7.177).

d) Acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização

civil ou criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985

(Decreto n° 7.037).

d) Acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização

civil sobre casos que envolvam graves violações de direitos humanos praticadas no

período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da

Constituição de 1988 (Alteração através do Decreto n° 7.177).

As alterações têm em comum a ocultação da especificação quanto ao regime ditatorial:

retira-se a periodização de 1964-1985 e a expressão “ditatorial”. Ao contrário, os novos textos

dão a ideia de que seriam apuradas violações de direitos humanos, dando a impressão de que

elas possam ter sido cometidas em qualquer momento, como se não tivesse havido um momento

autoritário específico, em que a violência tenha sido empregada como política de Estado. A

537 PARA Lula, Lei da Anistia é assunto da Justiça. O Globo, Política, 10 jan. 2001. Disponível em:

<https://oglobo.globo.com/politica/para-lula-lei-da-anistia-assunto-da-justica-3070982>. Acesso em: 14 fev.

2019. 538 Citei aqui apenas as alterações de propostas referentes ao período da ditadura civil-militar. Porém, houve

alterações também em relação à legalização do aborto, por exemplo, feitas por pressão de setores religiosos.

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rápida menção ao acompanhamento e monitoramento de processos judiciais de

responsabilidade de crimes cometidos entre 1964-1985 foi neutralizada, principalmente por

questionar o maior princípio da Lei da Anistia – de que não haverá julgamento por nenhuma

ação perpetrada nesse período. Para não haver especificação, a temporalidade foi substituída

pelo período determinado pela Constituição Cidadã: de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro

de 1988. Marcos Napolitano trata esse recurso como estratégia para não denominar um

“monstro” existente: “esses marcos temporais revelam o cuidado da linguagem jurídica

brasileira em não caracterizar, com todas as letras, um período evidente de exceção, marcado

pela existência de um regime político de força e discricionário”539.

Apesar disso, grande contribuição do PNDH-3 foi a proposta de criação de uma

Comissão Nacional da Verdade, que se concretizaria apenas em 2011, com a lei n° 12.528540,

já na gestão de Dilma Rousseff.

Nota-se que as declarações ou propostas do governo Lula que fizeram tentativas

mínimas de transcender a já tradicional política conciliatória e compensatória, retrocederam ou

foram abrandadas em virtude de possíveis represálias advindas das Forças Armadas. A

conciliação ou o “não-revanchismo” foram sempre usados como forma de absolvição e a

denúncia concreta ou a efetiva punição nunca esteve próxima de se tornar uma política de

Estado. Daniel Aarão Reis aponta que os governos civis seguiram uma tradição de postura em

relação a esse tema: “ou indiferentes, como se o assunto não lhes dissesse respeito, ou, quando

o propuseram à discussão, cedendo diante da negativa dos militares”.

Ambas as gestões de Lula atuaram fortemente na construção do discurso oficial de

memória, muito em consonância com a memória hegemônica de oposição à ditadura: lembrou-

se os vencidos, as vítimas, sem que isso implicasse em punição para os vencedores,

perpetradores. Porém, paralelamente a isso, ocorria a ascensão de discursos conservadores, ou

negacionistas541, antes subterrâneos, indicando fissuras na memória hegemônica, e agora

oficial. Ou seja, mesmo tendo optado por narrativas conciliadoras e brandas, ocultando a

539 NAPOLITANO, 2015, op. cit., p. 22. 540 BRASIL. Lei n° 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa

Civil da Presidência da República. Brasília, DF: Planalto, 2011. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm>. Acesso em: 14 fev. 2019. 541 Segundo Daniel Aarão Reis, “a revisão e o revisionismo são procedimentos essenciais e inevitáveis do ponto

de vista das ciências e das artes. As ciências e as artes avançam através de revisões. O que nós não podemos fazer

é negar evidências. Isso é o que se chama lá na Europa em relação àqueles que querem negar o Holocausto, aqueles

que querem negar o extermínio do povo judeu na Segunda guerra Mundial, ali eles fizeram uma revisão baseada

no negacionismo, né, negar uma evidência”. ‘NÃO é desconhecimento histórico, é truculência’, diz historiador

sobre Bolsonaro. Estúdio CBN – Entrevista, 15 out. 2018. Disponível em:

<https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/220345/nao-e-desconhecimento-historico-e-truculencia-diz-

.htm>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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radicalidade do projeto revolucionário de determinadas esquerdas e o uso da tortura como

política de Estado pelas Forças Armadas, a memória hegemônica foi duramente abalada e

perdeu lugar entre os diversos setores da sociedade. Esse momento é delimitado por Napolitano

como um novo ciclo de memória, marcado por esses discursos e a negação de que a ditadura

tenha existido em primeiro lugar.

Para o historiador, os grandes produtores desses novos discursos são os veículos da

imprensa liberal que, por se oporem aos governos do PT e aos posicionamentos por eles

defendidos – inclusive a crítica à ditadura – abriram espaço para esse tipo de manifestação.

Além disso, Napolitano afirma que “os erros políticos, a fragilidade ideológica e os deslizes

morais do PT, outrora um partido que se julgava o ‘sal da terra’ para renovar a política e

reinventar a democracia, obviamente deram munição para a imprensa conservadora”542.

Como exemplo desse papel exercido pela mídia para acirrar as disputas pela memória

está uma reportagem da Folha de São Paulo de abril de 2009. Tratava-se de uma entrevista com

Dilma Rousseff, que publicou a reprodução de uma ficha da militante, que teria sido produzida

por órgãos de segurança durante a ditadura. Nesse documento, Dilma era colocada como

envolvida em uma série de ações: assaltos e planejamento de assassinatos. A legenda da foto

afirmava, no entanto, que ela não havia cometido tais delitos543. Somente 20 dias depois, o

jornal publicou outra reportagem apontando que a autenticidade do documento era questionável

– apesar de não afirmar categoricamente que ele seja falso, mesmo com declarações do

responsável pelo Arquivo do DOPS em São Paulo de que “essa ficha não existe no acervo. (...)

Nem essa ficha nem nenhuma outra ficha de outra pessoa com esse modelo. Esse modelo de

ficha a gente não conhece”544. A Folha também apurou que

pelo menos desde novembro [de 2008] a ficha está na internet, destacadamente em

sites que se opõem à provável candidatura presidencial de Dilma. O Grupo

Inconfidência, de Minas Gerais, mantém no ar uma reprodução da ficha. A entidade

reúne militares e civis que defendem o regime instaurado em 1964545.

Dessa forma, percebe-se que os discursos subterrâneos de apoio à ditadura e oposição

ferrenha às esquerdas atuantes no período estavam ganhando força. Não obstante terem se

iniciado durante o governo Lula, tiveram como alvo principal Dilma Rousseff. Além de um

542 NAPOLITANO, 2015, op. cit., p. 25. 543 ODILLA, 2009, op. cit. 544 AUTENTICIDADE da ficha de Dilma não é provada. Folha de S. Paulo, Rio de Janeiro, 25 abr. 2009.

Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2504200915.htm>. Acesso em: 14 fev. 2019. 545 Idem.

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provável teor misógino, isso pode ter ocorrido porque Dilma teve atuação em organizações de

guerrilha, enquanto Lula foi apenas um sindicalista. Independentemente dos esforços do

Estado de construir uma memória segundo a qual os grupos revolucionários eram transformados

em democráticos e resistentes, as memórias subterrâneas não puderam ser silenciadas.

Por esse motivo, e retornando à fonte principal de análise deste capítulo, cabe um estudo

sobre como o livro de Ricardo Amaral produziu sua narrativa a respeito tanto da ditadura quanto

daqueles que se opuseram a ela. Estaria Amaral, de fato, em consonância com a memória

produzida pelo governo do qual participou ativamente? Quais seus artifícios para contribuir

com a manutenção da hegemonia da memória de oposição – e, ao mesmo tempo, conciliação –

à ditadura, tão fomentada pelos governos petistas?

4.1 TEORIA DOS DOIS DEMÔNIOS À BRASILEIRA: DITADURA E ESQUERDAS NA

BIOGRAFIA DE DILMA ROUSSEFF

Ricardo Amaral, na biografia de Dilma Rousseff, apesar de pretender contar a história

recente do país e de se demorar nas narrativas sobre os contextos políticos e sociais das épocas

abordadas, não fornece muitos detalhes ao leitor a respeito do golpe civil-militar de 1964. O

biógrafo trata como um sintoma da Guerra Fria e da oposição Estados Unidos x União Soviética

os acontecimentos de março e abril de 1964:

Na moldura da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, foi também uma

fase de brutal radicalização política: a oposição da UDN, a Igreja Católica, fazendeiros

e empresários mobilizavam intensamente a classe média contra o governo. Os

consulados americanos distribuíam filmes anticomunistas, que padres exibiam nas

praças e igrejas. Políticos alinhados com os Estados Unidos recebiam dinheiro e apoio

publicitário de organizações ligadas ao Departamento de Estado.

Amaral, dessa forma, menciona o papel ativo de religiosos, fazendeiros e empresários –

setores da sociedade civil – na propaganda contra o governo de João Goulart e suas reformas –

incentivados pelos Estados Unidos. Em relação às mobilizações que antecederam o golpe, o

autor afirma:

Jango reuniu 300 mil no Comício das Reformas, em 13 de março de 1964, quando

desapropriou as margens das rodovias para a reforma agrária. Uma semana depois, a

oposição botou meio milhão nas ruas de São Paulo, na Marcha da Família com Deus

pela Liberdade, que esconjurava o comunismo e queria depor a “república

sindicalista” de Jango. O jogo desempatou, com a derrota da esquerda, no dia 1° de

abril de 1964, quando o governo Jango caiu sem disparar um tiro. O presidente

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deposto exilou-se no Uruguai e orientou seus aliados a não mergulhar o país numa

guerra civil546.

Embora deixe implícito as manobras golpistas, o autor não utiliza nenhum termo que

denomine de fato o que ocorreu: não há menção a golpe – militar, ou civil-militar –, ditadura

ou sequer Forças Armadas. O “jogo” foi desempatado com derrota da esquerda, mas não se

sabe quem obteve a vitória; Jango caiu, mas não se sabe quem o derrubou. Esse relato muito

breve e pouco explícito dos fatos destoa da estratégia que o autor afirma ter usado para a escrita

do livro, mas tem muito em comum com o modelo empregado pelo PT na aprovação de leis em

prol da memória: em nome de um “não-revanchismo”, os atores dos processos autoritários não

são citados; o “monstro” não é nomeado. A especificação de onde veio o golpe aparece somente

duas páginas depois, e de forma breve, coadjuvante: “Dilma chegou ali [no Colégio Estadual]

em março de 1964, apenas duas semanas antes do golpe militar”547.

O relato de Amaral sobre o período ditatorial, entretanto, em sua grande maioria,

concentra-se na trajetória das esquerdas. O ponto de partida do primeiro capítulo que trata dessa

época é, justamente, a POLOP – a partir do engajamento de Cláudio Galeno, primeiro marido

da biografada: “A Polop, como o nome indicava, propunha a formação ideológica e a

organização da vanguarda da classe proletária, mas enquanto existiu recrutou seus quadros

basicamente na pequena burguesia, que é como os marxistas chamam a classe média548”. Aqui,

não obstante o uso de termos caros ao marxismo e às organizações revolucionárias – como

vanguarda e classe proletária –, o autor não deixa claro ao leitor o que, em termos práticos, isso

significava. Faz-se silêncio sobre a palavra socialismo, por exemplo – tão temida pelos adeptos

de uma narrativa conciliadora e pouco “radical” e que, em suas perspectivas, deslegitimaria o

engajamento da biografada. No entanto, segundo o historiador Jean Sales,

a revolução socialista aparecia como necessidade inadiável [na concepção da POLOP]

para a resolução do problema da classe trabalhadora. A estratégia revolucionária, por

sua vez, retomava claramente o modelo bolchevique de revolução e propunha a

insurreição de massas liderada pela classe operária como caminho para se chegar ao

socialismo549.

O socialismo, como exposto pelo historiador, era sim prioridade da POLOP, o que não

fica evidente na narrativa de Amaral. Além disso, Sales também versa sobre a inserção da

546 AMARAL, 2011, op. cit., p. 33. 547 Ibid., p. 35. 548 Ibid., p. 31. 549 SALES, 2007, op. cit., p. 32.

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organização nos movimentos sociais: “o grupo teve algum espaço dentro do movimento

estudantil e, principalmente, nos organismos dos militares de baixa patente550”. Amaral

silencia sobre esses militares, citando só a pequena burguesia, o que deixa implícito, de maneira

irônica, possíveis contradições existentes na organização. Ele também descreve a primeira ação

da POLOP:

Foi nesse ambiente de crítica à conciliação de classe que a ortodoxa Polop namorou

com o perigo. Um grupo de Minas foi se reunir no Rio com sargentos expulsos das

Forças Armadas e da PM da antiga Guanabara para discutir seriamente uma

resistência armada. Eles conspiravam num apartamento em Copacabana. Não eram os

únicos a pensar num contragolpe, um putsch, como se dizia. (...) O “Foco de

Copacabana” em que a Polop se meteu frustrou-se antes mesmo de pegar em armas,

com a prisão simultânea de 14 conspiradores, entre eles Guido Rocha e Cláudio

Galeno. Beto Soares de Freitas escapou por pouco551.

Aqueles integrantes da pequena burguesia “se meteram”, agora junto com alguns ex-

militares e policiais – surgidos inesperadamente – em experiências de foco guerrilheiro,

“namorando com o perigo”. É possível observar que o autor narra os acontecimentos como uma

aventura juvenil, esvaziando seu sentido político, revolucionário e estratégico, mesmo que

isolado das intenções da população brasileira como um todo. Jean Sales aponta que esse

episódio foi denominado de “Foco de Copacabana”, como citado por Amaral, de forma

pejorativa. Sales pondera que “talvez não seja o caso de procurar relacionar as ideias cubanas a

esta tentativa do grupo pegar em armas contra a ditadura, uma vez que a organização, até o

golpe, não via no foquismo um caminho adequado para a revolução brasileira552”. Essa tentativa

de ação armada, na perspectiva do historiador, pode ser derivada da ideia de insurreição das

massas, inspirada pela Revolução Russa, e pelo alinhamento da organização com as bases

militares, e não, ainda, pelo foquismo em si.

Apesar de pretender se constituir enquanto um livro da história recente do Brasil,

Amaral não pondera essas questões, reproduzindo elementos calcados na memória e que

esvaziam as ideologias e especificidades políticas de cada organização. Tudo isso é jogado em

um único caldo e transformado em ações inocentes. Tais ideias são reforçadas em outro trecho:

Cláudio Galeno era, portanto, um quadro experiente quando retornou a Belo

Horizonte, e o que ele viu na pensão da Odete parecia mais um encontro de jovens

rebeldes do que a reunião clandestina de uma célula revolucionária. A começar pela

presença daquelas secundaristas, meninas ainda, vestidas com a blusa branca com

550 Ibid., p. 34. 551 AMARAL, 2011, op. cit., p. 33. 552 SALES, Jean Rodrigues. A Organização Revolucionária Marxista-Política Operária e a Revolução Cubana nos

anos 1960. História e Perspectivas, Uberlândia, v. 26, n. 48, jan./jun. 2013, p. 14. Disponível em:

<http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/view/23309>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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gravatinha verde e a saia cinza evasê do uniforme do Colégio Estadual. Elas

interrompiam a análise de conjuntura a qualquer tempo para falar de cinema, de teatro

ou dos escritores da moda, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. E o toca-discos no

quarto, que não parava, o que era aquilo? Era Tamba Trio, Quarteto Novo, Zimbo

Trio, era Baden Powell tocando Vinicius, até jazz americano se ouvia, antes, durante

e depois da reunião (...) Carlinhos teve de explicar ao aturdido Galeno: “olha,

companheiro, ou a gente faz dessa maneira ou não tem como ampliar a organização

na base”.

Afinal de contas, a música era boa; a conversa, inteligente, e as meninas... Bem, as

meninas eram muito interessantes (...)553.

Se a narrativa tinha um caráter aventureiro, agora fica evidente que o autor também tinha

um olhar do movimento como tipicamente juvenil – muito próxima da caracterização feita por

Judith Patarra. Amaral mostra a “esquerda festiva”, que não tem nada de ameaçadora ou

revolucionária, formada por jovens escolarizados da classe média, envolvidos naquelas

situações por motivos circunstanciais.

Essa descrição prossegue até a segunda metade da década de 1960: “o máximo que o

pessoal da Polop se arriscava fazer, até 1966, além das publicações clandestinas, era pichar os

muros da cidade com palavras de ordem do tipo ‘Abaixo a ditadura’, ‘Fim do arrocho

salarial’”554. A citação demonstra uma ironia e contradição dentro do próprio texto: o máximo

que a POLOP fazia, até 1966, era pichar muros e distribuir publicações clandestinas – mas,

algumas páginas antes, o próprio Amaral descreveu uma tentativa de ação armada encabeçada

pela organização. Ademais, mesmo essas pichações “inofensivas”, para o contexto da

organização, estavam alinhadas a sua principal preocupação: “‘dar consciência ao proletariado’,

uma vez que o momento era de preparação revolucionária, na qual a ênfase devia recair sobre

o trabalho na propaganda e nas atividades de organização do proletariado”555.

Apolo Lisboa tinha sido preso pela primeira vez depois de uma ocupação da

faculdade, em setembro de 1964. Meses depois, virou notícia de novo, agora como

campeão da etapa mineira do Concurso Nacional de Bíblia. Primogênito entre os 13

filhos de um pastor presbiteriano, Apolo sabia de cor a linhagem dos profetas do

Antigo Testamento, os salmos do Rei Davi e os nomes de cada um dos muitos filhos

do Rei Salomão. Ele guardou na memória a nota irônica de um jornal da época, algo

na linha “A polícia prendeu como subversivo um rapaz que já leu a Bíblia cinco

vezes”. Dilma guardou a lembrança na casa do pastor, onde a vanguarda do

proletariado foi recebida com limonada e Ki-Suco. O tempo de rebeldia quase

inocente ia ficando cada vez mais distante556.

Impregnado de memória, o discurso de Amaral mais uma vez pinta as organizações e

seus integrantes de maneira inocente – como aqueles jovens, que bebiam limonada, Ki-Suco e

553 Ibid., p. 34. 554 Ibid., p. 40. 555 SALES, 2007, op. cit., p. 34. 556 AMARAL, 2011, op. cit., p. 41-42, grifos meus.

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ganhavam concursos de Bíblia, poderiam ser a vanguarda do proletariado? Porém, os

primeiros sinais de radicalização e o início da perda dessa inocência, na concepção do autor,

vêm com o endurecimento do regime – ignorando, mais uma vez, a experiência armada anterior:

A direção da Polop fazia o possível para conter a onda militarista que entusiasmava

as bases da organização, mas era cada vez mais difícil defender uma estratégia de luta

pacífica no quadro de radicalização que se formava também pelo lado dos “gorilas”,

como a esquerda chamava os generais da ditadura557.

Fica evidente nesse trecho que Amaral considera como pacífica a estratégia seguida pela

POLOP até 1966, e que, posteriormente a isso, aceita-se a adoção da tática de guerra de

guerrilha, esta não-pacífica. Porém, não é isso que o historiador Jean Sales coloca: ele aponta

que, antes de 1966, a POLOP se baseava nas estratégias soviéticas de insurreição do

proletariado, como citado anteriormente; e que, a partir de 1966, a organização tentava conciliar

essa concepção com os focos guerrilheiros, inspirados na Revolução Cubana. Em entrevista,

Ruy Mauro Marini, um dos fundadores da POLOP, aponta: “nossa concepção estratégica geral

era a de que a evolução seria violenta, com a tomada do poder concretizada por uma insurreição

proletária urbana. A base do poder armado seria constituída pelas camadas inferiores das forças

armadas burguesas (...)558”.

O conceito de revolução por si já envolve a violência e a ofensividade. Na perspectiva

de Hannah Arendt, não se pode compreender o início de uma revolução sem a violência que

proporcionará a ruptura política e a constituição de uma nova ordem559. O filósofo André

Duarte, à luz de Arendt, afirma que, embora não se possa confundir os dois conceitos, “não há

revolução sem violência”560. É possível compreender, dessa forma, que quem adiciona o

componente do pacifismo é o próprio Amaral. Conquanto a estratégia da insurreição de massas

não tenha a mesma ofensividade do foco guerrilheiro, ela não pode ser caracterizada como

pacífica. Revolução alguma pode.

Essa ideia de incluir o viés pacífico e de valorizá-lo, segundo Marcos Napolitano, tem

relação com a memória construída no fim da década de 1970 – muito presente na Lei de Anistia

– de conciliação e pacificação nacional, e com a nova cultura política democrática que se

esboçava. Além disso, ao tratar do engajamento político de uma presidenta eleita

557 Ibid., p. 45, grifos meus. 558 apud SALES, 2007, op. cit., p. 32, grifos meus. 559 DUARTE, André. Poder, violência e revolução no pensamento político de Hannah Arendt. Cadernos de

filosofia alemã: crítica e modernidade, v. 21, n. 3. Edição especial Hannah Arendt, 17 dez. 2016, p. 20. Disponível

em: <http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/124502>. Acesso em: 8 fev. 2019. 560 Ibid., p. 20, grifos meus.

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democraticamente, num Brasil com essa nova cultura política, é mais legitimador que ela tenha

seguido, o máximo possível, por caminhos pacíficos e democráticos.

Ainda assim, o autor demonstra ter conhecimento sobre a influência da Revolução Russa

na organização:

Criada em 1961, por dissidentes do PCB e do antigo Partido Socialista Brasileiro

(PSB), e por seguidores do russo Leon Trotski, a Polop reivindicava a herança de

Vladimir Lenin, pai da Revolução Soviética de 1917, e da revolucionária alemã Rosa

Luxemburgo561. Dentre as organizações da esquerda brasileira, era de longe a mais

exigente com a formação teórica de seus militantes, um traço imposto pelo fundador,

Eric Sachs (...)562.

(...)

Não era a tomada do Palácio de Inverno, mas, se não havia propriamente uma

revolução socialista no horizonte, algum tipo de mudança, transformadora e com

raízes populares, parecia ao alcance da mão no começo de 1964563.

Para explicar a eventual radicalização – silenciando sobre o fato que a escolha por um

caminho revolucionário já implicava em radicalidade –, Amaral a condiciona ao endurecimento

da ditadura. Quem poderia permanecer inerte frente a um regime tão violento?

Logo depois de 1964, a radicalização de parte a parte, a radicalização do governo

militar, que vai cada vez mais ampliando a censura, restringindo os espaços

democráticos, restringindo a atuação dos partidos, a extinção... Isso tem como

contraponto uma radicalização também daquela oposição das organizações

revolucionárias564.

Após introduzir o acirramento nas estratégias de “ambos os lados”, o autor faz um

balanço do que chama de “luta desigual que marcou uma geração”:

[A tentativa de atentado ao avião em que estaria Costa e Silva no aeroporto de

Guararapes, em Recife] Foi o primeiro disparo da esquerda na luta desigual que

marcou uma geração. Pelo lado da ditadura, o primeiro crime de sangue confirmado

foi a tortura e o assassinato do ex-sargento Manoel Raimundo Soares, no Rio Grande

do Sul. O corpo dele foi encontrado com as mãos amarradas numa ilha do rio Jacuí,

em Porto Alegre, em agosto de 1966. Ao fim da ditadura, 20 anos depois, 379 pessoas

tinham sido mortas em ações policiais, combates de rua, sob tortura nas cadeiras, em

locais clandestinos de extermínio ou simplesmente dadas como “desaparecidas”,

segundo a Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos. Grupos de esquerda foram

responsáveis por 73 mortes em assaltos, tiroteios e “justiçamentos”, de acordo com o

balanço do jornalista Elio Gaspari. O projeto Brasil: Nunca Mais catalogou 7.367 réus

da Justiça Militar no período, dos quais 1.918 ousaram denunciar que tinham sido

561 Embora tenha morado na Alemanha, Rosa Luxemburgo era polonesa. 562 AMARAL, 2011, op. cit., p. 31. 563 Ibid., p. 32, grifos meus. 564 GENTE que é gente. TVC/BH, 25 mar. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM&t=590s>. Acesso em: 31 jan. 2019.

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torturados. Outras dez mil pessoas, pelo menos, foram presas sem processo na

ditadura. Não é possível calcular quantas foram presas sem registro565.

O “primeiro disparo” dado pela esquerda teria sido o atentado ao avião em que Costa e

Silva estaria (mas não estava) em julho de 1966566; um mês depois, viria a resposta da ditadura,

com a morte do ex-sargento Manoel Raimundo. Esse trecho evidencia a ideia de guerra, mesmo

que desigual, e, por isso o autor acha necessário citar dados de “ambos os lados” – recriando,

dessa forma, uma espécie de versão brasileira da teoria dos dois demônios567. É possível ver

muito em comum, por exemplo, com a forma de lembrar do filme Pra frente Brasil, mencionado

no capítulo anterior. A teoria dos dois demônios, em seu país de origem, Argentina, teve lugar

no momento posterior à ditadura, mas depois foi superada e é imensamente criticada568. No

Brasil, porém, isso não ocorre: ela continua sendo recuperada como forma de manter a

conciliação.

Para Napolitano, essa recuperação pode ser uma consequência do aumento dos discursos

conservadores, sendo a coleção de Elio Gaspari a que mais fomenta a ideia569. Assim sendo, a

preocupação de Amaral em não deixar de fora os números da esquerda pode ser uma estratégia

para responder eventuais críticas sobre o fato de apenas ser contado um lado da história,

reivindicação muito comum entre as Forças Armadas e outros adeptos das memórias

subterrâneas. Nota-se, portanto, aspectos em comum com o PT em suas ações pela memória –

abranda-se o discurso para que ele seja bem aceito em todos os setores da sociedade, para que

se torne consenso. Por esse motivo, nesse trecho, embora cite a violência do Estado, esta não é

tratada como política institucionalizada e incentivada como prática para conter o avanço dos

opositores.

Quando o general Costa e Silva tomou posse, em março de 1967, as bases da Polop já

se consumiam numa disputa teórica sobre o caráter socialista da revolução brasileira

e as formas de luta contra a ditadura. Em julho de 1966, Guido Rocha elaborou uma

proposta de luta pacífica por uma Assembleia Constituinte Popular e Soberana. Os

“gorilas” resolveram a questão a sua maneira, impondo uma Constituição e uma Lei

565 AMARAL, 2011, op. cit., p. 46. 566 A historiografia, no entanto, tem tratado sobre as ações armadas antes do golpe civil-militar. Cf.

ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro:

Mauad, 2001. Disponível em: <

http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/O_apoio_de_Cuba_a_luta_armada.pdf>. Acesso em: 8 mar.

2019. 567 Segundo Lvovich e Bisquert, “releitura do passando recente desenvolvida pelo Estado [argentino] (...) que

configurará a imagem de uma sociedade vítima e inocente presa entre a violência política de extrema direita e

extrema esquerda”. Cf. LVOVICH & BISQUERT, 2008, op. cit., p. 13. 568 Idem. 569 NAPOLITANO, 2015, op. cit., p. 34.

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de Segurança Nacional às vésperas da posse de Costa e Silva. Nas bases da Polop, a

luta pela Constituinte deu lugar à fórmula cubana do foco guerrilheiro570.

No trecho acima, o autor condiciona mesmo as políticas aprovadas pela ditadura – como

a nova Constituição e Lei de Segurança Nacional – ao avanço das organizações armadas: “os

‘gorilas’ resolveram a questão a sua maneira”. Ainda assim, Isabel Leite, em entrevista com

Guido Rocha, – que teria proposto essa “luta pacífica” – esclarece que o militante apoiava a

luta armada, desde que esta tivesse um fim:

ele chegou a apoiar a luta armada, mas em defesa de uma Assembleia Constituinte

(pois o problema, em seu entendimento, estava no âmbito da legitimação do poder).

Para tal objetivo era preciso uma preparação para o ingresso nesta forma de luta, não

a sua deflagração sem projetos571.

Fica evidente, dessa forma, que não é que Guido Rocha fosse a favor de uma luta

pacífica, mas do uso da luta armada para atingir resultados políticos mais eficazes. Ainda assim,

a luta pela Constituinte foi deixada de lado pela POLOP/COLINA pelo fato de ser considerada

uma estratégia muito próxima da defendida pelo PCB e, portanto, reformista572. Mesmo esses

embates internos da organização são tratados pelo autor como dúvidas juvenis:

Na cabeça dos jovens militantes as dúvidas podiam ser simplificadas assim: construir

o partido do proletariado ou pegar em armas contra o capitalismo opressor; ser

reformista ou ser revolucionário; ser mais um intelectual pequeno-burguês ou ser um

novo homem guerrilheiro?573

Observa-se que o relato simplifica as ideias e os debates colocados pelas esquerdas e,

de certa forma, trata-os de maneira pejorativa. A respeito dos resultados desses

questionamentos, Amaral aponta:

As contradições explodiram no fim do ano, em Campos, litoral do Rio, onde se

realizou o IV Congresso da Polop. Eric Sachs apresentou seu “Programa Socialista

para o Brasil”, com uma concessão à tese da guerrilha rural, desde que fosse parte de

uma Frente de Esquerda Revolucionária. As bases radicalizadas não tinham mais

paciência para aquele papo equilibrista.

570 AMARAL, 2011, op. cit., p. 46. 571 LEITE, 2006, op. cit., p. 55. 572 LEITE, Isabel Cristina. Comandos de Libertação Nacional: oposição armada à ditadura em Minas Gerais

(1967-1969). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009,

p. 101. 573 AMARAL, 2011, op. cit., p. 47.

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“OLAS, bolas!”, ironizou Apolo Lisboa numa rodinha do congresso. O trocadilho

virou palavra de ordem dos rebeldes sob a influência cubana. Era o racha, como se

dizia na esquerda.

(...)

A nova organização era formada por células e setores bem definidos (...). Seu objetivo

declarado era alcançar o socialismo, e não apenas lutar contra o imperialismo574.

De fato, o documento apresentado por Eric Sachs, idealizador da POLOP, foi motivo de

muitas divergências e cisões dentro da organização: “para os revolucionários rompidos, a

POLOP reproduzia um discurso europeu que não cabia na realidade brasileira. Acreditavam

também que a POLOP se considerava como ‘vanguarda ideológica’, porém tinha falsas

concepções e reproduzia ‘frases feitas’”575. O rompimento com a POLOP e a criação de uma

nova organização, no entanto, não significa que haja um objetivo novo de alcançar o socialismo

– como se essa não fosse a intenção do primeiro grupo, como o autor dá a entender. O que

ocorreu foi uma mudança de estratégia: o aspecto revolucionário permanece, mas com outra

forma de atingi-lo. A luta armada seria a “‘forma fundamental de luta de classes na atual

conjuntura – que terá que ser centralizada no campo, sob a forma de guerra de guerrilhas’,

consequentemente promovendo uma organização da classe operária, com orientações claras

para a derrubada do regime”576.

Tratando do envolvimento da organização com a classe operária, Amaral narra as greves

e passeatas organizadas pelo movimento estudantil e dos trabalhadores em 1968:

A diminuta base operária da ex-Polop fez sua parte na greve dos operários de

Contagem, organizada por militantes do Sindicato dos Metalúrgicos e pela Corrente,

a dissidência mineira do PCB, braço local da ALN.

(...) Nos meses seguintes, uma lista negra de demissões se abateu sobre os

trabalhadores, fábrica por fábrica, desarticulando por muitos anos o movimento

operário na região.

A greve coincidiu com a eclosão das passeatas estudantis apoiadas pela classe média,

pelos artistas e, agora, também pelos padres. O movimento de massas levantava-se

contra a ditadura, afinal, mas não teria folego para chegar ao fim do ano nem para

romper a lógica da radicalização577.

Para o historiador Daniel Aarão Reis, os órgãos de segurança e mesmo alguns estudiosos

confundiram movimentos sociais e organizações clandestinas578. Não é o caso de Amaral,

evidentemente. O autor não só antagoniza por completo as duas formas de manifestação

política, como coloca como impedimento para o pleno desenvolvimento dos primeiros a

574 Ibid., p. 47-48. 575 LEITE, 2009, op. cit., p. 106. 576 Ibid., p. 106. 577 AMARAL, 2011, op. cit., p. 48. 578 REIS, 2014, op. cit., p. 71.

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existência dos segundos, conforme exposto no trecho destacado. Essa tática ratifica o

distanciamento radical entre as massas – mesmo os setores organizados delas – e as esquerdas

revolucionárias: as últimas estariam isoladas do povo brasileiro por vontade própria, pelo

desejo de serem heroínas. Reis aponta que os movimentos grevistas de 1968 logo “foram

dominados” pela ditadura579. Amaral traz esse ponto de vista, mas atribui parte da

responsabilidade à lógica de radicalização em voga. Daniel Aarão Reis, contudo, evidencia: as

greves e passeatas tinham caráter democrático, porém radical580.

O ano de 1968 foi aquele em que o brigadeiro João Paulo Burnier tentou explodir o

gasômetro do Rio, botar a culpa na oposição e lançar seus chefes em alto mar; foi o

ano em que a esquerda começou a assaltar bancos, roubar armas e explodir bombas;

o ano da passeata dos Cem Mil e da prisão de 920 estudantes no Congresso da UNE

em Ibiúna; o ano em que a tortura foi banalizada, o Congresso Nacional foi fechado e

a ditadura baixou o AI-5, transferindo todo o poder às Forças Armadas581.

Nesse trecho, podemos notar um silêncio que se rompe de maneira bem discreta: para

Amaral, o AI-5 transfere todo o poder às Forças Armadas. Se o poder foi transferido

completamente às Forças Armadas somente em 1968, pode-se concluir que, anteriormente, o

regime ditatorial era também constituído e controlado por entidades civis. Esse aspecto está

ausente da narrativa de Amaral até aqui, assim como de toda a narrativa memorial construída

pelo PT. Além disso, a ideia de que a tortura foi “banalizada” nos faz deduzir que ela já era

prática anterior ao ato, mas pontual. Mesmo após sua possível banalização, Amaral não a

classifica como política de Estado.

Em outro ponto do livro, o autor retoma o endurecimento do AI-5:

A barra ia ficando mais pesada à medida que 1968 chegava ao fim, e com ele as

passeatas, a simpatia da classe média pela esquerda, a onda rebelde em Paris, Praga,

São Francisco, Cidade do México... Dilma apostava que o regime endureceria de vez

depois da visita da rainha Elizabeth II da Inglaterra ao Brasil. “Quando a rainha for

embora, eles fecham pra valer”, ela dizia aos amigos.

(...)

No dia 13 de dezembro, Costa e Silva baixou o AI-5. Caía a máscara da ditadura.

Estava fechado o Congresso, mutilado o Supremo Tribunal Federal, suspenso o

habeas corpus. Intelectuais, jornalistas e artistas foram presos por serem intelectuais,

jornalistas e artistas. (...) Acima de qualquer manifestação individual – cantada ou

pintada, falada ou escrita – prevaleciam os censores embrutecidos. Acima de tudo e

de todos pairava sobre o país o medo, verdadeiro soberano da nova ordem582.

579 Ibid., p. 70. 580 Idem. 581 AMARAL, 2011, op. cit., p. 48. 582 Ibid., p. 52.

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A primeira frase que chama atenção é a que diz que, a partir do fim de 1968, as esquerdas

perderam uma importante simpatia: da classe média. O discurso do autor está profundamente

calcado na memória hegemônica sobre o regime, que depreende que não apenas a classe média,

como todos os setores da sociedade civil, seriam vítimas e estariam resistindo ao autoritarismo

da ditadura. Esse discurso, no entanto, oculta mais uma vez um aspecto significativo de análise:

a participação efetiva da sociedade civil – principalmente das classes médias – para a

implementação e consolidação da ditadura. Embora tenha insinuado um rompimento com este

silêncio, ratifica-o novamente.

Como tal classe poderia ter simpatia pelas esquerdas que, quatro anos antes, temeu de

maneira tão incisiva? Janaina Cordeiro lembra da importância “da compreensão do consenso

erguido em torno da ditadura civil-militar, bem como a cultura política de determinados

segmentos sociais brasileiros, a qual é permeada por elementos bastante autoritários”583.

Amaral faz exatamente o oposto: concebe a sociedade como vítima e resistente, que somente

retira sua simpatia às esquerdas quando estas partem para a ação ofensiva.

Ao afirmar que “intelectuais, jornalistas e artistas foram presos por serem intelectuais,

jornalistas e artistas”, Amaral reafirma sua posição em consonância com a memória

hegemônica de que todos da sociedade seriam opositores, inclusive aos olhos do regime,

ignorando o viés político das detenções e censuras – em muitos casos, legitimadas pela

sociedade. O biógrafo isola os censores numa função guiada pela brutalidade individualizada,

desmedida e sem eco entre o resto dos brasileiros. A historiadora Janaina Cordeiro, à luz de

Beatriz Kushnir e Carlos Fico, aponta que:

É preciso buscar na prática da censura não apenas o Estado repressor, mas também o

outro pólo, a sociedade que consentia, tácita ou explicitamente. O censor, o

funcionário público, não é uma entidade à parte – a censura –, não está descolado da

sociedade. É parte e produto dela, podendo expressar sob vários aspectos a opinião

dos setores mais conservadores da sociedade, dessas muitas pessoas que acreditavam

nos efeitos benéficos da atividade desse tipo de profissional e que não se constrangiam

em demandar deles uma ação mais eficaz584.

Ainda na perspectiva de Amaral, o medo pairava, soberano na nova ordem autoritária –

são os anos de chumbo, tão característicos da memória hegemônica. Mas medo para quem? É

necessário problematizar essa noção de medo generalizado: para além daqueles que estavam se

583 CORDEIRO, Janaina Martins. Femininas e formidáveis: o público e o privado na militância política da

Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE). Revista Gênero, v. 8, 2009, p. 3. Disponível em:

<http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/Femininas_e_formidaveis_0.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2019. 584 CORDEIRO, 2012, op. cit., p. 265-266.

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organizando em oposição ao regime e à ordem vigente, e daqueles que apoiavam a consolidação

da ditadura, houve também aqueles que estavam indiferentes – “essa espécie de personagem

constante da história que atravessa os tempos em diferentes partes do mundo assistindo a toda

espécie de crime sem nada ver”585.

Para enfrentar violência, só com violência – seria a estratégia da esquerda, segundo

Amaral. A fusão entre VPR e COLINA é descrita pelo biógrafo como um incômodo para Dilma,

como já vimos anteriormente, uma vez que a primeira “ostentava um cartel de ações

espetaculares586”. A Dilma de Amaral se preocupava com a fusão, com medo da perda do

“trabalho de massas587”, mas teve participação ativa nas atividades que prepararam o

surgimento da nova organização conjunta – contraditório. Ao tratar da primeira ação da já

VAR-Palmares, Amaral descreve:

Naquele momento havia algo mais urgente a fazer: uma grande ação de levantamento

de fundos. Os grupos de esquerda sobreviviam basicamente de assaltos a bancos

(seriam mais de 100 em 1970), sempre arriscados e de resultado incerto. O alvo agora

era a fortuna de um político corrupto, que estaria ao alcance da mão numa casa no alto

de Santa Teresa.

(...)

Ao final da operação, a VAR-Palmares detinha cerca de 2,5 milhões de dólares –

dinheiro ensopado, mas quente, “expropriado da corrupção”. (...) A Ação Grande foi

a “expropriação revolucionária” mais lucrativa de todos os tempos, mas as atenções

do mundo se voltavam para a missão Apollo 11, que culminaria dois dias depois com

a chegada do primeiro homem à Lua.

O autor, em todo o livro, utiliza as palavras assalto e sequestro para denominar as ações

das esquerdas revolucionárias. Mesmo no excerto, previamente analisado, em que ele analisa

os dados “de cada lado”, esses foram os termos usados – com exceção de “justiçamento”, que

veio entre aspas. No trecho agora observado, ao introduzir o assunto, Amaral utiliza a palavra

assalto; ao descrever a Ação Grande propriamente dita, emprega expropriação, mas sempre

entre aspas, como quem exprime ironia. Daniel Aarão Reis caracteriza isso como: “hegemonia,

quando os vencedores conseguem fazer com que os vencidos usem o seu vocabulário, carregado

de conotações pejorativas588”. Além disso, o uso desses termos pela repressão retirava o caráter

político e estratégico dessas ações, transformando-as em delitos comuns. Amaral se apropria

fortemente do vocábulo “hegemônico” e, quando faz uso das palavras consideradas adequadas

pelas esquerdas na época, o faz de maneira pejorativa.

585 ROLEMBERG, 2006, p. 3. 586 AMARAL, 2011, op. cit., p. 55. 587 Ibid., p. 58. 588 REIS, 2014, op. cit., p. 75.

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Lembro aqui que essas ações foram alvo de muito questionamento durante toda a

trajetória pública de Dilma, principalmente durante as duas eleições para as quais concorreu. O

uso das palavras “assalto” e “sequestro” retiram o componente político das ações,

transformando-as em delitos comuns, muito condenados pela sociedade. Por esse motivo, tanto

Dilma em suas declarações, quanto Amaral na biografia, apropriam-se dessa linguagem

depreciativa e apolítica e criam um distanciamento forte entre a ex-militante e os “delitos”,

negando qualquer forma de envolvimento.

Após a Ação Grande radical das esquerdas, Amaral passa a narrar a repressão e sua

articulação como forma de resposta:

Em São Paulo, a repressão passou a se organizar em torno da Oban, a Operação

Bandeirante, um combinado de militares e policiais civis, comandados em tese por

um major do Exército. A Oban ficava numa delegacia na rua Tutóia, no bairro do

Paraíso, e era financiada pelo governo do estado e por uma caixinha de empresários.

Um dos colaboradores mais ativos da caixinha, o norueguês Henning Albert Boilesen,

da Ultragaz, seria morto a tiros por um comando da ALN em 1971, na fase terminal

da organização.

A Oban contava com a colaboração – na verdade, concorrência – do DOPS,

comandado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Esquadrão da Morte, que

executava criminosos, suspeitos e desafetos da polícia. Na caça aos subversivos,

Fleury atuava como parceiro do Centro de Informações da Marinha, o Cenimar. No

Rio, era o Centro de Inteligência do Exército (CIE) que enfiava as botas no trabalho

sujo. A competição entre as forças da ordem refletia a instabilidade dos quartéis, onde

os generais disputavam o futuro da Revolução Democrática de 1964. Quem viu no

AI-5 o auge da ditadura não imaginava o que estava por vir na segunda metade de

1969589.

Antes de uma análise mais aprofundada do excerto, chamo a atenção novamente para

os termos. Embora se utilize de palavras próprias do vocabulário dos militares – subversivos e

Revolução Democrática de 1964 –, nesse caso, o autor não parece ver necessidade de aspas

para indicar que se refere a expressões próprias daquele grupo, como no caso das esquerdas,

mesmo que essas palavras pareçam inadequadas para a memória hegemônica. É, novamente, a

hegemonia dos vencedores impondo e normalizando seu vocabulário.

Ao tratar da OBAN, o autor faz uma breve descrição dos atores fundamentais para sua

criação e funcionamento: “um combinado de militares e policiais civis, comandados em tese

por um major do Exército. (...) financiada pelo governo do estado e por uma caixinha de

empresários”. O comando em tese do major do Exército indica que as ações lá empregadas não

tinham comando algum e partiam do livre arbítrio dos agentes de segurança, permitindo que

chegassem à barbárie, de maneira descolada da autorização estatal. Ao tratar do financiamento,

589 AMARAL, 2011, op. cit., p. 62-63.

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a ausência do governo federal e a entrada de uma “caixinha” de empresários dá a ideia de algo

provisório e clandestino. Essa ideia é influenciada pelos discursos da memória que não tratam

a tortura e os assassinatos como terrorismo de Estado.

A despeito de nunca ter sido legalmente oficializada, a Operação Bandeirante foi

concebida por diversos agentes do Estado, inicialmente em um evento realizado em Brasília,

em que estavam presentes “todos os secretários de Segurança Pública, os comandantes das

Polícias Militares e os superintendentes regionais da Polícia Federal, sob a orientação do então

ministro da Justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, e do general Carlos de Meira Mattos, chefe

da Inspetoria Geral das Polícias Militares”590. A “caixinha” dos empresários recebia verbas de

grandes bancos brasileiros, da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), de advogados,

como Paulo Sawaia, industriais e empresários, como Henning Boilesen, aliciados por Antônio

Delfim Netto e Gastão Vidigal – dono do Banco Mercantil de São Paulo591.

A colaboração desses civis com o funcionamento de centros de tortura, como este em

São Paulo, vem sendo cada vez mais divulgada e debatida e o caso de Boilesen é emblemático,

principalmente pelo seu justiçamento pela ALN. Esse fato foi recuperado no filme Pra frente

Brasil, com um personagem baseado no empresário; além disso, em 2009, foi lançado um

documentário intitulado Cidadão Boilesen592, dirigido por Chaim Litewski. Dois fatores que

podem ter influenciado Amaral a citar o caso, não obstante seu silêncio sobre colaborações civis

em outros momentos.

As expressões “enfiar as botas no trabalho sujo” e “instabilidade dos quartéis” remetem

à ideia de vilania e ineficiência – mais uma vez, dando a ideia de que essas são ações isoladas

e descoladas de uma política de Estado. Esse maniqueísmo não permite a crítica profunda da

estrutura estatal autoritária e da perseguição às esquerdas como um plano sistematizado. Nesse

sentido, é importante ressaltar que a justificativa das divergências entre órgãos apresentada por

Amaral não se sustenta: eles não “disputavam o futuro da Revolução Democrática de 1964”,

como apontado por Amaral, mas sim, de acordo com Mariana Joffily:

Esse fenômeno ocorreu por duas razões distintas. A primeira está ligada à importância

e ao prestígio que o combate à guerrilha urbana adquiriu no seio do regime militar,

decorrente da proeminência da Segurança Nacional dentro do projeto de governo.

(...)

590 JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios da Operação Bandeirante e no DOI de São

Paulo. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 30. 591 Ibid., p. 32-33. 592 CIDADÃO Boilesen. Direção: Chaim Litewski. Roteiristas: Ana Paula Brasil e Chaim Litewski. Rio de Janeiro:

Palmares Produções e Jornalismo Ltda., 2009. Disponível em plataforma digital (93 min), son., colorido.

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A segunda diz respeito à uma escolha pragmática por uma política de resultados –

encarnada nas memoráveis capturas de bandidos famosos e de lideranças de esquerda

pelo delegado Fleury – em detrimento da centralização e coordenação efetiva das

forças repressivas593.

O final do trecho de Amaral inaugura, de fato, os anos de chumbo: “quem viu no AI-5

o auge da ditadura não imaginava o que estava por vir na segunda metade de 1969”. A chegada

de Emílio Garrastazu Médici à presidência é descrita pelo biógrafo:

Na primeira fala, recendendo a caserna, Médici advertiu: “Todo aquele que tentar

contra a tranquilidade pública e a segurança nacional será inapelavelmente punido.

Quem semear a violência colherá fatalmente a violência”.

Em 31 de março, no sexto aniversário do golpe, o general Médici seria ainda mais

claro: “Haverá repressão, sim. E dura, e implacável. (...)”.

Nunca antes um chefe da ditadura tinha se dirigido de forma tão direta e ameaçadora

aos subversivos, mas a essa altura não havia como dar meia-volta na engrenagem

implacável da luta clandestina. Não havia retorno possível para quem tinha feito o

caminho da revolução. A nova ordem de Médici, ordem unida, deu eficácia cruel ao

comando brutal do AI-5. Em pouco mais de dois anos, as organizações

revolucionárias no Brasil estariam reduzidas a apenas dois grupos: os presos e os

mortos594.

Amaral faz questão de se lembrar dos integrantes das organizações revolucionárias

como vítimas, presos ou mortos; esquece-se, porém, dos exilados. A respeito dessa “nova

ordem” de Médici, o biógrafo cria uma ruptura muito forte entre os governos anteriores e este,

como se tivesse havido então a invenção da repressão. Porém, é importante lembrar que Médici

foi chefe do SNI durante o governo de Costa e Silva. Denise Rollemberg alerta:

No entanto, é importante ressaltar, conforme Carlos Fico, que as atribuições do SNI e

das antigas seções de segurança nacional, transformadas em divisões de segurança e

informações (DSIs) já tinham sido aumentadas desde janeiro de 1968. Ou seja, bem

antes do AI-5, o fechamento do regime já estava no horizonte (...)595.

Esse período é considerado o de maior repressão, de fato. Contudo, é também permeado

por ambiguidades: ao mesmo tempo em que foram os anos de chumbo, foram também os anos

de ouro, devido ao milagre econômico e às comemorações nacionais e patrióticas – Copa do

Mundo de Futebol, dentre outros596. Amaral também lembra desse momento:

593 Ibid., p. 60. 594 AMARAL, 2011, op. cit., p. 65. 595 ROLLEMBERG, Denise. A ditadura civil-militar e o tempo de radicalização e barbárie (1968-1974). IN:

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ,

2006, p. 6. 596 Cf. CORDEIRO, 2009, op. cit., passim.

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Viver nos subterrâneos, com medo de “cair” a qualquer momento, dava aos militantes

uma sensação de isolamento incompatível com a perspectiva de construir o

socialismo. Havia, sobretudo, uma nova realidade econômica e social no país, que

distanciava os revolucionários das massas: a ditadura estava controlando a inflação –

um ponto fraco do governo deposto em 1964 –, fazendo a economia crescer e criando

empregos em ritmo veloz. (...)

O “milagre brasileiro” era financiado por uma oferta de capitais sem precedentes

desde o fim da Segunda Guerra, possibilitando alto endividamento externo e grandes

investimentos num país sem greves e sem opinião pública. Seu condutor era o

ministro da Fazenda Antônio Delfim Netto, um jovem professor de Economia culto e

sagaz597.

A concepção do milagre apresentada por Amaral está afinada com a historiografia:

usando uma frase fundamental dita por Médici – “eu posso. Eu tenho o AI-5 na mão e, com ele,

posso tudo. Se eu não posso, mais ninguém pode598” –, Janaina Cordeiro aponta a centralidade

dos atos autoritários para a viabilização do milagre. Segundo ela, os mecanismos de exceção

“compunham o quadro de estabilidade e ordem que caracterizou, para muitos, este período da

ditadura. Coerção e consentimento, mais que os dois lados da mesma moeda compunham, sob

este aspecto, elementos de uma mesma paisagem que fizeram do governo Médici, para muitos,

um grande sucesso599”. Mas por que Amaral, que está em diálogo com um discurso memorial

que favorece as esquerdas, escolheu lembrar deste aspecto?

Como observado no trecho acima, Amaral apresenta Antônio Delfim Netto, um jovem

professor culto e sagaz. Então, o biógrafo trata de sua imagem “no auge da luta pela

redemocratização, nos anos 80, Delfim se converteria no totem dos piores males da ditadura:

da inflação à dívida externa, da corrupção à impunidade600”. No entanto, Amaral parece não

concordar com essa visão:

No século XXI, vivendo em outro Brasil, Delfim se tornou conselheiro econômico de

Lula e interlocutor da própria Dilma. A esquerda já o demonizava em 1969, mas não

foi capaz de perceber o que ocorria no país real. A euforia do milagre foi embalada

numa onda de patriotismo e exaltação à ditadura, impermeável a qualquer crítica

marxista e, por algum tempo, até mesmo à pauta das liberdades democráticas: “Brasil,

ame-o ou deixe-o”601.

Retomando a ideia de que a memória se refere mais ao presente do que ao passado,

Amaral utiliza dados da ditadura para justificar fatos de seu presente. O autor opta por uma

crítica do passado, que justifica um elogio ao presente. As esquerdas da década de 1970

597 AMARAL, 2011, op. cit., p. 67, grifos meus. 598 apud CORDEIRO, 2012, op. cit., p. 254. 599 Idem. 600 AMARAL, 2011, op. cit., p. 67. 601 Idem.

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estariam cegas para a eficiência de Delfim Netto; as massas não, estas usufruíam dos benefícios

proporcionados por ele. Vivendo num outro Brasil, Delfim se encaixa no governo Lula; apesar

da aparente “esquizofrenia ideológica”, Lula soube reconhecer, na concepção do biógrafo, a

competência de Delfim.

Este, por sua vez, tornou-se conselheiro econômico do ex-presidente Lula em maio de

2007602, um ano antes da crise mundial de 2008. Mas, a aproximação teria acontecido antes,

logo após a eleição de Lula, segundo mostra o Estadão:

Delfim, de outra geração, é um interlocutor também lembrado por Lula como o

homem que aprendeu a admirar, depois de muito criticá-lo. Sua participação em

reuniões que traçaram as diretrizes do pacote cambial mostra a influência do

neoconselheiro no Planalto. “O problema da esquerda é que não tem um bom ouvido

direito”, ironizou Delfim, ao se aproximar de Lula, na campanha de 2002. “Eu

sempre achei que você daria um magnífico professor de geografia, por conhecer o

Brasil.” A partir daí foi selada uma aliança que só se aprofundou e o ex-ministro da

Fazenda no regime militar é hoje uma espécie de consultor do governo, para desespero

do PT603.

Amaral, é claro, não lembrou de mencionar o fato de Delfim Netto, além de culto e

sagaz, também ter sido um dos signatários do AI-5604 e, como apontado acima, um dos que

buscavam financiamento para a sobrevivência da Operação Bandeirante. Nota-se mais uma vez

que o biógrafo está em consonância com, ou a serviço dos discursos que legitimavam os

governos petistas e suas escolhas.

Ao fim do capítulo, Amaral escolhe os militantes mencionados por Dilma em discurso

que anunciou sua pré-candidatura à presidência, em 2010 para contar seus “desfechos”: Iara

Iavelberg, Maria Auxiliadora Lara Barcelos e Carlos Alberto Soares de Freitas. Em relação à

Iara:

Iara enfurnou-se com o capitão Lamarca (e com Herbert) num treinamento de

guerrilha no Vale do Ribeira e depois o acompanhou em esconderijos diversos,

compartilhando a ilusão nunca realizada da coluna móvel guerrilheira. Lamarca foi

602 LULA empossa Delfim em conselho econômico. G1, 16 mai. 2007. Disponível em:

<http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL37474-5601,00-

LULA+EMPOSSA+DELFIM+EM+CONSELHO+ECONOMICO.html>. Acesso em: 6 fev. 2019. 603 ROSA, Vera. Time de não-petistas ganha força entre os conselheiros do presidente. O Estado de S. Paulo, 12

abr. 2008. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,time-de-nao-petistas-ganha-forca-entre-

os-conselheiros-do-presidente,156007>. Acesso em: 6 fev. 2019. 604 BRASIL. Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de

1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e

municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo

prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências. Brasília,

DF: Planalto, 1968. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm>. Acesso em: 14

fev. 2019.

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fuzilado pela tropa do coronel do Exército Nilton Cerqueira no sertão da Bahia, em

setembro de 1971. Estava doente, faminto, esfarrapado. Em agosto, cercada pela

polícia num apartamento em Salvador, Iara suicidou-se com um tiro no peito605.

O autor inclui o destino também de Lamarca, atrelado ao de Iara, reproduzindo a ideia

amplamente difundida de que os dois são um só – mesmo que ela tenha falecido primeiro, a

morte dele é descrita antes, afinal, parece ter maior importância. Doente, faminto e esfarrapado:

como aponta Denise Rollemberg, a morte de Lamarca representa, aqui, a morte também da luta

armada. Isolado das massas606.

Em relação à Iara, Amaral reproduz a versão oficial das Forças Armadas, ecoada por

Judith Patarra – o próprio Amaral cita o livro como referência importante para a constituição

da biografia de Dilma, tanto na obra quanto em entrevistas concedidas, mas parece não o ter

problematizado. A narrativa final escolhida por Patarra continua sendo reproduzida décadas

depois, em um momento que a família Iavelberg já tinha obtido a confirmação de que Iara tinha

sido assassinada e seus restos mortais transferidos para a ala comum do cemitério israelita.

É provável que Amaral tenha sido alertado a respeito dessa informação e, em entrevista

posterior ao lançamento do livro, afirma: “Iara morreu, há controvérsias se ela foi assassinada

ou se foi um suicídio, morreu em um cerco em Salvador, quando ela estava seguindo para uma

tentativa frustrada de guerrilha, mais uma, a última607”. Embora faça ressalva, o autor continua

considerando possível a versão da ditadura e de Patarra. Além disso, aponta que a operação se

deu enquanto Iara seguia para “uma tentativa frustrada de guerrilha, mais uma, a última”,

demonstrando mais uma vez sua opinião a respeito da tática.

Ainda assim, a denúncia da tortura é uma preocupação do autor – em consonância com

a construção da biografada enquanto vítima:

Três equipes de interrogatório se revezavam no DOI-Codi da rua Tutóia. Dilma caiu

no turno do capitão Benoni de Arruda Albernaz, citado 15 vezes como torturador no

levantamento de processos em auditorias militares que deu base ao livro Brasil: nunca

mais. A equipe do capitão Albernaz era a mais temida pelos presos da Tutóia608.

Quem torturava?

O Albernaz e o substituto dele, que se chamava Tomás. Eu não sei se é nome de

guerra. Quem mandava era o Albernaz, quem interrogava era o Albernaz. O Albernaz

batia e dava soco. Ele dava muito soco nas pessoas. Ele começava a te interrogar. Se

605 AMARAL, 2011, op. cit., p. 67-68. 606 ROLLEMBERG, 2003, op. cit., p. 25. 607 BHConnection, 2 jan. 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eFcmm8FwefM&t=1842s>.

Acesso em: 14 fev. 2019. 608 Ibid., p. 72.

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não gostasse das respostas, ele te dava soco. Depois da palmatória eu fui pro pau de

arara609.

Pelas mãos de um certo capitão Alberto, do DOI-Codi, Carlos ficou livre da vingança

de Fleury, mas não escapou do temido capitão Benoni Albernaz. O oficial que torturou

Dilma entrou no hospital militar ameaçando começar a bater no preso ali mesmo610.

Albernaz ainda bateu em Carlos pelo menos três vezes na rua Tutóia611.

O nome do torturador é exposto em diversos momentos da narrativa, como evidenciam

os trechos selecionados acima; essa atitude demonstra uma possível intenção do autor em fazer

uma denúncia. Segundo o sociólogo Bernhard Giesen, nas últimas décadas (referindo-se aos

anos 2000, 1990 e 1980), as sociedades democráticas têm procurado denunciar as ações de

perpetradores em períodos de trauma. Assim, há necessidade de identificar o perpetrador por

nome e rosto, e ser exibido em público. A individualização do torturador, como ser que age só,

e não orientado por políticas muito bem definidas e direcionadas, contribui com a ideia de que

a tortura era um desvio de personalidade, cometido por loucos, bárbaros – e não por integrantes

de um Estado terrorista612. Ainda sobre Albernaz, Amaral aponta: “ele nunca se adaptou à vida

fora do porão. Em 1984, na reserva com o posto de major, foi preso passando-se por coronel,

acusado de aplicar golpes no mercado de imóveis. Colegas diziam que ele estava louco quando

morreu, em 1993613”.

Caroline Bauer trata da importância do uso do conceito de terrorismo de Estado para a

compreensão das ações do Estado ditatorial: embora haja especificidades no caso da ditadura

brasileira, não se pode negar que as estratégias de repressão política foram profundamente

desenvolvidas, principalmente a partir de duas frentes: “a produção de informações e a ação

repressiva propriamente dita614”. Dessa forma, a historiadora aponta que somente através da

compreensão do Estado enquanto terrorista,

práticas como o seqüestro, a tortura, a morte e o desaparecimento ganham

inteligibilidade como métodos de um determinado tipo de regime político. A categoria

609 CARVALHO, Luiz Maklouf apud AMARAL, 2011, op. cit., p. 73. 610 Ibid., p. 82. 611 Ibid., p. 83. 612 GIESEN, Bernhard. Sobre héroes, víctimas y perpetradores. Puentes, Argentina, ano 2, n. 5, out. 2001, p. 19. 613 AMARAL, 2011, op. cit., p. 83, grifos meus. 614 BAUER, Caroline Silveira. Terrorismo de Estado e repressão política na ditadura cívico-militar de segurança

nacional brasileira (1964-1988). Anais... XXIII Simpósio Nacional de História – ANPUH, Londrina, 2005.

Disponível em:

<https://www.researchgate.net/profile/Caroline_Bauer2/publication/267038337_Terrorismo_de_Estado_e_repre

ssao_politica_na_ditadura_civico-militar_de_seguranca_nacional_brasileira_1964-

1988/links/5442f0440cf2a6a049a8a151/Terrorismo-de-Estado-e-repressao-politica-na-ditadura-civico-militar-

de-seguranca-nacional-brasileira-1964-1988.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2019.

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de “regime autoritário”, utilizada pelos pesquisadores brasileiros como unidade

conceitual para a ditadura cívico-militar de segurança nacional brasileira, perde seu

potencial explicativo, devido a generalidade do conceito. Além disso, através da

utilização do conceito de terrorismo de estado, ações que poderiam ser vistas como

excessos protagonizados por alguns membros do aparelho repressivo do Estado

passam a ser percebidas como resultado de um sistema definido, previamente

organizado e incentivado desde a própria estrutura do poder615.

Notamos, então, que Amaral, ao individualizar a ação do torturador, caracteriza-o como

algoz solitário, isentando, em certa medida, o Estado. O biógrafo não trata a questão da tortura

e dos desaparecimentos como terrorismo de Estado, mas como excessos de certos agentes de

segurança. Esse posicionamento pode servir para justificar sua pouca dedicação ao tratar da Lei

da Anistia:

Na questão da Anistia, Figueiredo negociou a aprovação de um projeto restrito,

excluindo os condenados que ainda estivessem cumprindo pena por “crimes de

sangue”. A Lei da Anistia indultou previamente os torturadores que viessem a ser

acusados por “crimes conexos” na repressão aos subversivos. De qualquer forma, a

porta estava aberta para o retorno dos exilados – e o mais aguardado de todos era

Leonel Brizola (...)616.

Embora, supostamente, seja um livro de responsabilidade exclusiva de Amaral, como

ele próprio mencionou, o autor se exime de fazer uma crítica mais aprofundada à Lei da Anistia.

Cita os fatos, que demonstram um cenário não tão adequado para o ponto de vista defendido

por ele – o das esquerdas –, colocando, em oposição, outro elemento que compensaria a parte

ruim: “de qualquer forma, a porta estava aberta para o retorno dos exilados”. A demanda de

punição para os torturadores não foi atendida, no entanto, os exilados puderam voltar para casa;

a balança tinha sido equilibrada. Essa é a única fala do autor a respeito da aprovação da Lei da

Anistia – apenas um parágrafo.

A ausência de uma crítica mais contundente, ou ao menos de uma fala que expusesse a

insatisfação das esquerdas quando da aprovação da lei, faz crer no diálogo das concepções do

autor com as do governo PT. Daniel Aarão Reis indica que “há evidências de que nem todos

estiveram de acordo. De fato, ficaram nas margens os que desejavam uma anistia ampla, geral

e irrestrita, o que implicaria inclusive o desmantelamento da polícia política e o julgamento dos

torturadores. Essa proposta, decididamente, não empolgou as gentes617”.

Ainda assim, o biógrafo parece enaltecer ações individuais de exposição e vexação dos

torturadores:

615 Ibid., p. 7. 616 AMARAL, 2011, op. cit., p. 99. 617 REIS, 2010, op. cit., p. 172.

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Em 1986, ela estava numa viagem ao Uruguai na comitiva do presidente José Sarney

(o vice, vindo da Arena, que assumiu com a morte de Tancredo). Na recepção oficial,

Bete Mendes reconheceu o adido militar da embaixada brasileira em Montevidéu,

coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Tratava-se do Doutor Tibiriçá, o temível chefe

do DOI-Codi paulista onde ela, Carlos e Dilma foram torturados. Bete o denunciou

ali mesmo, forçando sua remoção do posto no exterior. Sempre foi uma mulher

valente618.

A punição jurídica não seria possível, pois colocaria em risco o pacto619 nacional, mas

a figura do torturador merece ser humilhada e excomungada da sociedade. Sobre a

individualização da prática da tortura, é interessante observar o que coloca Bernhard Giesen a

respeito da figura do perpetrador:

é requerido que sua encarnação pessoal seja expulsa, excomungada da comunidade,

confinada para além de suas fronteiras. Todas as comunidades se purificam ao

expulsarem o perpetrador individual, ao pecador, ao criminoso620.

Esse isolamento individual acalenta as inquietações causadas pelos crimes cometidos

pelo Estado e exime a sociedade de sua parcela de “culpa”:

Os perpetradores foram então descritos como monstros estrangeiros, como sedutores

satânicos, como criminosos diabólico, intoxicando e enganando a nação inocente. Esta

radical demonização dos perpetradores purifica a nação e desmoraliza o passado.

Limita a questão da responsabilidade e da culpa a alguns poucos agentes responsáveis,

que foram expulsos para além dos limites da comunidade moral e isolados do grupo

de gente decente621.

Amaral, mais à frente, faz questão de citar a presença de ex-guerrilheiros e ex-torturados

na composição do governo Lula:

Dos 33 ministros nomeados por Lula no primeiro dia de governo, 12 tinham militado

em grupos marxistas clandestinos antes ou depois da Anistia de 1979. Destes, três

conheceram a cadeia por atividades políticas (José Dirceu, banido e exilado em Cuba;

Dilma Rousseff e Nilmário Miranda, torturados, cumpriram pena no país), sem contar

Gilberto Gil, preso por ser artista e forçado a se exilar, Olívio Dutra e Luiz Dulci,

618 AMARAL, 2011, op. cit., p. 106. 619 REIS, 2010, op. cit., p. 176. 620 Tradução livre de: “Sin embargo, se requiere que su encarnación personal sea expulsada, excomulgada de la

comunidad, confinada más allá de las fronteras. Todas las comunidades morales se purifican expulsando al

perpetrador individual, al pecador, al criminal”. GIESEN, Bernhard. Sobre héroes, víctimas y perpetradores.

Puentes, Argentina, ano 2, n. 5, out. 2001, p. 19. 621 Tradução livre de: “Los perpetradores fueron entonces descriptos como monstruos extranjeros, como seductores

satánicos, como criminales diabólicos, intoxicando y engañando a la nación inocente. Esta radical demonización

de los perpetradores purifica a la nación y desmoraliza el pasado. Limita la cuestión de la responsabilidad y la

culpa a unos pocos agentes responsables, que han sido expulsados más allá de los límites de la comunidad moral

y echados del grupo de gente decente”. Ibid., p. 22.

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presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional por liderar greves, da mesma

forma e na mesma época que o novo presidente622.

É curioso o fato de em um governo constituído por essas pessoas especificamente, não

haver espaço suficiente para questionamento da anistia, da forma como foi aprovada. Da mesma

forma, é notável que um livro que se propõe a contar a trajetória de uma guerrilheira, vítima

das torturas, o autor não demonstre insatisfação. Silêncios. Amaral parece compartilhar – e

assim, legitimar – da estratégia do PT em silenciar sobre um debate a respeito da punição dos

perpetradores e do uso da tortura como política integrante do terrorismo de Estado. Essa

omissão é típica da memória hegemônica e da necessidade de manter a conciliação nacional.

Doutor Afrânio Araújo acionou em vão seus contatos com o mundo da lei e da ordem,

até que o filho obteve uma audiência com o coronel-chefe de relações-públicas do III

Exército. O tal coronel – Carlos Sabia – era, de fato, o homem do DOI-Codi na área

e já farejava o projeto de distensão controlada do general Ernesto Geisel, sucessor

indicado do presidente Médici, com posse marcada para março de 1974.

- Como é que está o pessoal lá na ilha [em Guaíba, Porto Alegre, presídio onde estava

Carlos Araújo]? Estudando muito marxismo, pensando na revanche? – provocou o

coronel ao receber o preso em seu quartel.

- É só dar uma folga que a gente estuda, porque temos de estar preparados para chegar

ao poder. Mas não tem isso de revanche, não. – Carlos se lembra de ter respondido623.

O autor faz questão de destacar a negação da revanche por parte das esquerdas, mais

uma das ações muito frequentes do PT. No caso desse excerto, ainda há uma referência a uma

possível guerra perdida, repetida em outro momento: “sete anos depois, serviu de cárcere para

os remanescentes da guerra que a esquerda armada perdeu”624. É possível observar, dessa

forma, que o discurso biográfico está em consonância com o discurso da Lei da Anistia – e,

consequentemente, por vezes, da memória. A historiadora Janaína Teles demonstra que:

Prevaleceu a interpretação de que a anistia teria sido recíproca, favorecendo vítimas e

algozes, realçando os conhecidos argumentos de que se tratava de uma “guerra”, em

que os dois lados cometeram “excessos”, equiparando injustamente a tortura praticada

pelos agentes do Estado às ações políticas dos opositores da ditadura625.

Em entrevista na Record News, Ricardo Amaral é questionado pelo jornalista Paulo

Henrique Amorim a respeito da Lei da Anistia:

622 AMARAL, 2011, op. cit., p. 129. 623 Ibid., p. 89, grifos meus. 624 Ibid., p. 88, grifos meus. 625 TELES, Janaína de Almeida. As disputas pela interpretação da Lei de Anistia de 1979. Ideias, Campinas, v. 1,

n. 1, 2010, p. 76. Disponível em:

<https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/8649306/15861 >. Acesso em: 14 fev. 2019.

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Paulo Amorim: Essa mulher, essa guerrilheira aqui, você acha que, dadas as

circunstâncias políticas, ela mexe na Lei da Anistia?

Ricardo Amaral: Olha, ela será coerente. Eu acho, eu tenho certeza que ela não tem

nenhum espírito revanchista. (...) Inclusive, mexer na Lei da Anistia é algo que está

fora do alcance dela. Eu digo, como ela trata essa questão, eu não tenho dúvida que

ela trata essa questão de uma maneira muito objetiva. A verdade deve ser contada, a

verdade deve ser exposta. Agora, como ela disse, ela não mudou de lado, mas o Brasil

mudou, o mundo mudou. É isso que eu entendo... Ela não tem um espírito de revanche,

de recomeçar. Até porque não faz sentido, nós vivemos situações políticas

completamente diferentes. Agora, não quer dizer que ela vá esconder, ao contrário. Eu

acho que durante o governo, na Casa Civil, quando ela teve essa questão em suas

mãos, ela trabalhou exatamente no sentido de avançar, de abrir arquivos, de procurar

ir cada vez mais forçando essa porta. Então não tenho dúvidas em relação a isso.

Paulo Amorim: Sem revanche, mas sem esquecimento?

Ricardo Amaral: Sem revanche, mas sem ocultação626.

Novamente, o possível desejo por punição é visto por Amaral como “espírito

revanchista”. O autor faz uma oposição profunda entre o regime ditatorial e o Brasil presidido

por Lula e Dilma, afirmando que o país “mudou, o mundo mudou”, embora Dilma não tenha

mudado de lado. Amaral está afirmando que, apesar de a sociedade não ter abraçado a luta das

esquerdas durante a ditadura civil-militar, abraçava agora, no presente, elegendo como seus

chefes de Estado representantes de um partido de esquerda. Por isso, em sua perspectiva, não

haveria motivo para revanche, para dar continuidade à guerra, correndo o risco de perde-la.

Assim, a posição de Amaral é tão contraditória quanto a adotada pelo Estado

democrático – sobretudo pelos governos do PT – em seus discursos e políticas de memória: as

vítimas são lembradas, os torturadores expostos; não há, contudo, um esforço para que sejam

punidos juridicamente. Marcos Napolitano analisa essa incoerência:

(...) convivem no mesmo Estado, discursos e ações pontuais tributários da memória

crítica do regime militar, com redes institucionais que, se não endossam os valores

autoritários e a violência política do passado, protegem os perpetradores impedindo

qualquer punição na justiça criminal, em que pesem esforços no sentido contrário de

setores do Ministério Público627.

Na narração dos eventos do fim da década de 1970, um novo personagem toma conta

da biografia: Lula, o líder das massas.

[Ernesto Geisel] deixou também [para Figueiredo] uma onda de greves que se

alastrava desde março daquele ano, uma onda iniciada na fábrica da Scania em São

Bernardo, na área do sindicalista Luiz Inácio da Silva, o Lula.

Figueiredo tratou as greves na base do cassetete. Tropas do Exército ocuparam São

Bernardo em abril de 1979. Lula e os diretores do sindicato foram presos e acusados

de crime contra a segurança nacional, mas o desafio aberto dos metalúrgicos ao overno

626 ENTREVISTA Record: Eduardo Campos (2012). Record News, 28 jun. 2016, grifos meus. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=0Pyk1sHgUxc>. Acesso em: 14 fev. 2019. 627 NAPOLITANO, 2015, op. cit., p. 27.

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estimulou novas paralisações pelo país – muitas até espontâneas e desorganizadas –

e catalisou a ruptura definitiva entre a ditadura e a sociedade brasileira.

Desta forma, com a intenção de descrever os fatos que realmente contribuíram, em sua

perspectiva, para a ruptura definitiva entre sociedade e ditadura, o biógrafo eclipsa a biografada,

destacando outros atores políticos mais relevantes para o processo. Concretiza-se, dessa forma,

sua intenção de constituir um livro da história recente do Brasil e, nesse ensejo, a luta armada

não teve lugar de eficácia na oposição à ditadura: as massas tiveram; Lula teve. Entre muitos

acertos e alguns erros, Amaral descreve a esquerda pacífica e democrática derrotando a

ditadura, aliada ao povo:

A eleição de Brizola, no Rio, e de governadores do PMDB em São Paulo, Minas e

mais sete estados mostrou o esgotamento político da ditadura. Para manter estreita

maioria no Congresso, a Arena teve de contar com os senadores biônicos e com os

coronéis do voto nas regiões mais pobres do país, chamadas de “burgos podres” pelo

novo governador de Minas, Tancredo Neves. A ditadura chegava ao fim, faltava só

marcar a data628.

Como evidencia o trecho acima, é importante destacar que, apesar da proeminência dada

à atuação de Lula especificamente, o autor trata de toda e qualquer iniciativa em prol da

redemocratização, independente de quem a tenha tomado – esquerda ou não. Essa perspectiva

está em convergência com a memória dominante a medida em que coloca todos os setores da

sociedade brasileira enquanto democráticos – até aqueles que apoiaram o golpe de 1964, em

primeiro lugar. Daniel Aarão Reis, nesse sentido, salienta que “do mais moderado ao mais

radical, de ex-partidários da ditadura aos que sempre se haviam colocado em oposição, de

antigos exilados a lideranças recentes, todos se uniram e parecia que, efetivamente, nada

poderia conter aquela pressão”629.

Fica claro, mais uma vez, que os inimigos eram os militares e que a sociedade queria

uma liderança civil, independentemente se por meio de eleições diretas ou não:

Os comícios capitalizavam a maré das diretas com o slogan “Muda Brasil, Tancredo

Já!”. Tancredo prometeu convocar uma Assembleia Constituinte, ao mesmo tempo

que negociou com os militares uma transição pacífica, sem revanchismo. Sem pedir

cargos em troca, o PDT deu a ele os votos de seus dois senadores e 23 deputados no

Colégio Eleitoral. Brizola podia aguardar mais um pouco. Além do mais, a ideia de

um presidente civil, mesmo eleito indiretamente, tinha criado uma onda de

entusiasmo no país.

O PT se recusou a participar da eleição indireta e perdeu, por isso, três deputados,

que decidiram votar em Tancredo (...).

628 AMARAL, 2011, op. cit., p. 104. 629 REIS, 2014, op. cit., p. 145

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Ao negar o voto a Tancredo, o PT cometeu erro político semelhante ao do velho PCB

no final do governo Vargas. (...) Tancredo baixou no Hospital de Base de Brasília na

véspera da posse, com o país em festa pela volta dos militares aos quartéis. Passou

por oito cirurgias, duas infecções, três equipes médicas e um resfriamento criogênico

até morrer, em 21 de abril, Dia de Tiradentes. A longa (38 dias) e cruel agonia fez

dele um mártir nacional, o mártir da redemocratização – e o PT assistiu ao cortejo

de multidões em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João del-Rei, onde ele foi

enterrado630.

A contraposição entre o PT e Tancredo Neves é evidente: o último negociou com os

militares uma “transição pacífica, sem revanchismo”; o partido decidiu se manter fiel ao

objetivo de reestabelecimento da democracia e, por isso, cometeu erro político grave. Um dos

erros mais graves do PT, na perspectiva do autor, foi se opor à transição conciliatória – um

erro que não cometeria mais. Neste momento, é possível fazer uma ponte com o presente de

produção do livro: o PT radical ficou para trás; o partido que governava era marcado por essa

conciliação, tão aclamada pelos brasileiros. A sociedade brasileira, com a ambição de se

desligar dos militares e esquecê-los, aceitou o presidente civil eleito indiretamente e ainda o

transformou em mártir da redemocratização.

Curioso notar que, embora dialogue com a memória hegemônica, o autor não considera

1985 como um marco definitivo da volta da democracia.

A redemocratização de 1985 começou pela legalização dos dois partidos comunistas

e pela convocação de eleições para prefeito nas capitais, que não ocorriam havia mais

de 20 anos631.

As mágoas da campanha municipal tiveram de ser guardadas, porque em 1989 o país

teria, enfim, as primeiras eleições presidenciais diretas depois de 29 anos. Para o PDT,

era hora de retomar “o fio da História”, interrompido em 1964, quando Leonel Brizola

era o candidato do PTB à sucessão do cunhado João Goulart. As diretas completariam

o ciclo de transição do governo Sarney e da Constituinte, que aprovou em 1988 a carta

democrática – com novos, modernos e amplos direitos sociais632.

Amaral considera 1985 como data de início de um ciclo de transição, devido à volta de

um civil à presidência. Silencia, porém, sobre a prévia proximidade de Sarney com a ditadura.

O ciclo se conclui com a promulgação da Constituição, em 1988, e com as primeiras eleições

presidenciais, de 1989 – às quais Lula concorreria.

Uma breve síntese do olhar do autor sobre a ditadura: os militares foram os únicos

responsáveis pela implementação e consolidação do regime; estes são caracterizados por uma

vilania, prioritariamente associada aos torturadores, que têm suas atitudes isoladas e deslocadas

630 AMARAL, 2011, op. cit., p. 105-106. 631 Ibid., p. 106 632 Ibid., p. 108.

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de uma política de Estado. A respeito das esquerdas, imersas em uma guerra desigual,

representam os mocinhos, independentemente de suas linhas de ações equivocadas ou

extremadas: “ter sido presa e torturada na luta contra a ditadura era um atributo positivo,

relacionado à firmeza de posições e à coragem de combater do lado certo633”. Mas Amaral

adverte, sinalizando para um crescimento da guerra pela memória: a luta contra a ditadura

“podia associar a candidata [Dilma] a conceitos negativos, como terrorista – palavra que teve o

sentido recarregado depois dos atentados de 11 de setembro de 2001634”. Dessa forma, nos cabe

analisar o impacto do livro, levando em consideração as demandas desses setores da sociedade

que, se antes estavam subterrâneos, emergiam.

4.2 GUERRA DE MEMÓRIA: RECEPÇÃO DO LIVRO E O PASSADO DE DILMA EM

DISPUTA

Antes mesmo de ser lançada, a biografia de Dilma Rousseff gerou um impacto na

imprensa: a foto (anexo B), antes inédita, de Dilma na Auditoria Militar recebeu muita atenção

dos veículos de comunicação. A Época foi a primeira a publicar, em 3 de dezembro de 2011, a

fotografia em seu site, e no dia 5 em sua edição impressa635. Além da imagem, a reportagem

reproduziu trechos do livro de Amaral, lançado no mesmo dia da revista. Os trechos foram

divididos em 5 temas de destaque entre o público:

1) O casamento na clandestinidade

2) O encontro com Iara Iavelberg, a mulher de Carlos Lamarca

3) Na Auditoria Militar

4) A candidata de Lula

5) O ataque a Serra no primeiro debate do segundo turno da eleição de 2010

Não obstante os excertos do livro, o que reverberou na imprensa foi mesmo a fotografia,

a respeito da qual as informações ainda eram escassas. A revista afirmou que “ela foi tirada em

novembro de 1970 e mostra a presidente Dilma Rousseff aos 22 anos. Dilma já passara por 22

dias de tortura e respondia na ocasião a um interrogatório na sede da Auditoria Militar do Rio

de Janeiro”. A construção da frase permitiu que veículos de direita, com discursos

conservadores, interpretassem que a foto teria sido tirada logo após os 22 dias.

633 Ibid., p. 216. 634 Idem. 635 A trajetória de Dilma, da guerrilha ao poder. Época, 2 dez. 2011. Disponível em:

<http://revistaepoca.globo.com/tempo/noticia/2011/12/trajetoria-de-dilma-da-guerrilha-ao-poder.html>. Acesso

em: 14 fev. 2019.

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O Estado de S. Paulo, em 4 de dezembro de 2011, apenas um dia após a publicação da

foto pela Época, incluiu em uma reportagem sobre a presidenta a fotografia recém-divulgada.

Apesar de o texto tratar sobre a imagem de Dilma no exterior, a fotografia possui uma pequena

legenda que se refere ao livro de Amaral:

Livro relata a trajetória da ex-guerrilheira

Foto divulgada pela revista Época retrata a presidente Dilma, então com 22 anos,

durante um interrogatório na sede da Auditoria Militar do Rio de Janeiro. A imagem,

feita em 1970, é uma reprodução que consta no processo da Justiça Militar. A

fotografia está no livro A vida quer é coragem, do jornalista Ricardo Amaral636.

Por não estar relacionada com o conteúdo da reportagem em si, a foto parece ter sido

adicionada de última hora, para que não ficasse de fora da publicação – o que indica a dimensão

do impacto que ela causou.

O Globo, também em 4 de dezembro, publicou a imagem em uma matéria intitulada

“Em foto inédita, Dilma sob interrogatório”. A reportagem é, substancialmente, um resumo da

publicada pela Época, e trata da relação biógrafo-biografada: “Além de publicar documentos,

Amaral também se baseou nos anos de convivência com a presidente, durante o período em que

foi assessor da Casa Civil e, posteriormente, da campanha de Dilma637”. Correio Braziliense,

na mesma data, publicou reportagem e a famosa foto, incluindo informações mais detalhadas

sobre o lançamento do livro, apesar de não haver previsão de quando ocorreria em Brasília638.

Reinaldo Azevedo, então jornalista da Veja, também no dia 4, publicou um texto em seu

blog, “O que a foto de Dilma sugere, revela e esconde”, no qual trata a biografia de Amaral

como “hagiografia” – palavra que, segundo o dicionário Google, significa “biografia ou estudo

sobre biografia de santos” e/ou “biografia excessivamente elogiosa”639. Azevedo questiona:

Segundo se informa, Dilma havia sido torturada durante 22 dias antes de ser

apresentada ao tribunal. Não vou pôr isso em dúvida. É coisa séria demais! Noto

apenas que alguém que se deixa torturar pela lógica se vê obrigado a indagar por que

os trogloditas que a seviciaram interromperam o serviço sujo para dar curso ao aspecto

legal e formal da prisão640.

636 MANZANO, Gabriel. ‘Faxina’ faz Dilma repetir prestígio de Lula no exterior. O Estado de S. Paulo, 4 dez.

2011, Nacional, p. A8. 637 JUSTUS, Paulo. Em foto inédita, Dilma sob interrogatório. O Globo, São Paulo, 4 dez. 2011, 2ª edição, O País,

p. 9. 638 LUIZ, Edson; BRAGA, Juliana. Retrato de Dilma quando guerrilheira. Correio Braziliense, Brasília, 4 dez.

2011, Política, p. 7. 639 AZEVEDO, Reinaldo. O que a foto de Dilma sugere, revela e esconde. Blog Reinaldo Azevedo – Veja, 4 dez.

2011. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/o-que-a-foto-de-dilma-sugere-revela-e-esconde/>.

Acesso em: 15 fev. 2019. 640 Idem.

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167

Azevedo, apesar de afirmar que não colocará em dúvida a tortura sofrida por Dilma,

questiona como alguém que se deixa torturar, não se pergunta o motivo pelo qual é deslocado

repentinamente para uma audiência, permeada de legalidade e formalidade. O que Azevedo

parece ignorar é o fato de que a audiência militar ocorreu 10 meses após a prisão de Dilma e,

consequentemente, após as sessões de tortura. A partir de então, o jornalista disserta em

consonância com a “teoria dos dois demônios”, dos quais a esquerda seria o mais ameaçador:

“Dada a brutal diferença de aparato, fôssemos criar um “Índice de Letalidade” dos esquerdistas

armados e das forças do regime, aqueles ganhariam de muito longe. No campeonato na morte,

as esquerdas são sempre invencíveis. É inútil competir641”. O jornalista escolheu mostrar fotos

de dois homens que, segundo ele, não tiveram a mesma sorte de Dilma: Mário Kozel Filho e

Alberto Mendes Júnior, mortos em ações das organizações revolucionárias – “felizmente,

Dilma sobreviveu e é hoje umas das beneficiárias, em certa medida, de sua própria derrota, já

que é a democracia que a conduziu ao posto máximo do país. Este garoto, no entanto, não teve

igual sorte642”.

No dia seguinte, Reinaldo Azevedo escreveu outro texto a respeito do mesmo tema e

esclarece o ponto em relação à data da tortura e quando a fotografia foi tirada:

Ela foi presa em 16 de janeiro de 1970, e o interrogatório foi feito em novembro. Daria

tempo para ter se recuperado. O ponto que interessa à lógica é outro. Sessões de tortura

ao longo de 22 dias, conforme a versão influente, não eram prática dos trogloditas dos

porões. As coisas costumavam ser mais rápidas e letais. Mas não! Eu não vou

especular a respeito e, já escrevi aqui em outras ocasiões, acho que não se deve fazê-

lo. Até porque havia, sim, torturadores operando nos porões do regime. NINGUÉM

PRECISA NEGAR A PRÁTICA DA TORTURA PARA DIZER AS COISAS

CERTAS A RESPEITO DAQUELE TEMPO643.

Embora não possa ir contra os fatos, o jornalista encontra outro ponto que relativize a

alegação de tortura de Dilma: segundo ele, não era prática dos “trogloditas dos porões” torturar

por tanto tempo – apesar de não citar fontes de onde obteve essas informações. Alerta, então,

para o que chama de “photoshop da história”, contrariando os argumentos de que a foto seria

falsa:

641 Idem. 642 Idem. 643 AZEVEDO, Reinaldo. O problema da jovem Dilma no tribunal é o photoshop na história, não na fotografia.

Ou: quem mostra e quem cobre a cara. Blog do Reinaldo Azevedo – Veja, 5 dez. 2011, grifos do autor. Disponível

em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/o-problema-da-jovem-dilma-no-tribunal-e-o-photoshop-na-historia-

nao-na-fotografia-ou-quem-mostra-e-quem-cobre-a-cara/>. Acesso em: 15 fev. 2019.

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O QUE SE PRETENDE COM O ESCARCÉU EM TORNO DESSA

FOTOGRAFIA É OPERAR UM PHOTOSHOP NA HITÓRIA. É isso que tem

de ser combatido. NÃO CAIAM NA CILADA DE DESCONFIAR DA

VERACIDADE DA IMAGEM. TENHAM, ISTO SIM, É A CLAREZA PARA

DESCONFIAR DO NOVO OFICIALISMO644.

Esse “novo oficialismo” seriam os discursos da memória contra a ditadura e em favor

das esquerdas – a memória hegemônica, que, contudo, não seria nova, como apresentei nesse

trabalho. Porém, pode ter gerado um incômodo por ter atingido o plano oficial, estatal, com a

eleição de uma ex-guerrilheira à presidência. Azevedo descreve ações de justiçamento feitas

pelas organizações durante a ditadura e conclui: “A tortura é uma prática asquerosa. Mas o que

dizer de grupos que matam inocentes e jogam em cima do cadáver um manifesto explicando os

“motivos”, responsabilizando-o por sua própria morte? Será coisa, assim, tão moralmente

superior?”645.

Outro colunista da Veja, em 5 de dezembro, publicou em sua coluna: “Também quero

falar da foto da presidente Dilma, quando jovem, presa diante de um tribunal militar. Vamos

lá”. O jornalista Ricardo Setti dá sua opinião a respeito da foto e o que ela representa: “Em

primeiro lugar, vejo uma jovem filha de família burguesa e educada em colégio de freiras que

resolveu, ainda em seus verdes anos, dar um passo que milhões de brasileiros, à época —

inclusive eu –, consideravam errado: partir para a clandestinidade e a chamada luta armada646”.

Ainda que menos incisivo do que Azevedo, Setti também corrobora com a teoria dos dois

demônios:

Errado, em minha opinião, porque a violência política só atrai mais violência. (...)

Errado porque, sem ter a mais mínima chance de derrotar o regime, deram a ele, com

assaltos, atentados terroristas, assassinatos e sequestros, justificativa para endurecer

ainda mais, violar ainda mais os direitos humanos, espremer e reduzir ainda mais os

direitos civis e permanecer no poder mais tempo, talvez, do que poderia ter

permanecido647.

Nota-se, dessa forma, que muitos dos maiores veículos da mídia publicaram, logo após

a Época, a fotografia de Dilma Rousseff jovem – a grande maioria deles no dia 4 de dezembro

644 Idem. 645 Idem. 646 SETTI, Ricardo. Também quero falar da foto da presidente Dilma, quando jovem, presa diante de um tribunal

militar. Vamos lá. Ricardo Setti, 5 dez. 2011, grifos meus. Disponível em: <http://www.ricardosetti.com/tambem-

quero-falar-da-foto-da-presidente-dilma-quando-jovem-presa-diante-de-um-tribunal-militar-vamos-la/>. Acesso

em: 15 fev. 2019. 647 Idem.

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de 2011648. Era de se esperar que isso acontecesse, afinal tratava-se de uma foto inédita da

presidenta da República em sua juventude, sendo julgada por uma auditoria militar. Quase todos

utilizaram a palavra “guerrilheira” para descrever Dilma na juventude, com a exceção dos

colunistas da Veja, com ênfase em Reinaldo Azevedo, que utilizou a palavra “terrorista”. Não

obstante seja apenas um veículo dentre os analisados emissário desses novos discursos, a Veja

condensa em seu blog narrativas que estavam se multiplicando em blogs pessoais e veículos

menores. Além disso, seus textos têm grande alcance entre o público-leitor, gerando muito

engajamento – comentários e compartilhamentos. Dessa forma, fica evidente uma fissura na

hegemonia da memória de oposição à ditadura – estavam (re)emergindo discursos que

colocavam a sociedade como vítima de dois demônios; notoriamente, porém, demoniza-se com

maior intensidade um lado específico, a esquerda.

A despeito de sua intenção de se constituir como um livro que contasse a “verdadeira

trajetória” de Dilma, antes mesmo de seu lançamento, os discursos conservadores vociferaram.

Neste momento, no entanto, todos os holofotes estavam voltados apenas para a fotografia, uma

vez que o livro estava em vias de ser lançado e ainda não havia tempo hábil para uma crítica

mais aprofundada do discurso.

A primeira das reportagens que se propõe a analisar a narrativa biográfica em que me

aprofundarei será a publicada pelo O Globo, em 17 de dezembro, intitulada “Uma aventura

política”, por Maria Lima – o título se apropria da expressão empregada pelo próprio Amaral

para definir a trajetória de Dilma. Apesar da centralidade da foto no texto, a militância de Dilma

durante a ditadura recebe pouco destaque:

No calor da campanha presidencial, quando começaram a aparecer os vários

personagens da vida da até então pouco conhecida “gerentona” do governo Lula, uma

declaração de seu ex-marido, Carlos Araújo, falando da paixão imediata pela beleza

da jovem guerrilheira Vanda, gerou comentários desconfiados. A imagem que vinha

à cabeça de muitos era a de uma jovem meio masculinizada, com óculos fundo de

garrafa e semblante emburrado. A divulgação de uma foto inédita publicada no livro-

reportagem “A vida quer é coragem” (Primeiro Plano) [sic], do jornalista Ricardo

Batista Amaral, prova que Araújo, o Max do tempo de militância, tinha razão649.

648 Importante destacar que a foto – e, consequentemente o lançamento do livro – teve relevância também aos

olhos da imprensa internacional. Cf. DIFUNDEN uma foto inédita de Dilma durante un interrogatorio militar.

Clarín, Argentina, 4 dez. 2011, Mundo. Disponível em: <https://www.clarin.com/mundo/difunden-inedita-dilma-

interrogatorio-militar_0_H1ZL4JcnP7g.html>. Acesso em: 15 fev. 2019.

A. J. La guerrillera Rousseff. El País, Rio de Janeiro, 3 dez. 2011. Disponível em:

<https://elpais.com/internacional/2011/12/04/actualidad/1322957715_676401.html>. Acesso em: 15 fev. 2019.

e, mais tarde, ROMERO, Simon. Leader’s Torture in the ’70s Stirs Ghosts in Brazil. The New York Times, Nova

Iorque, 4 ago. 2012. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2012/08/05/world/americas/president-rousseffs-

decades-old-torture-detailed.html?_r=1&pagewanted=all>. Acesso em: 15 fev. 2019. 649 LIMA, 2011, op. cit., p. 6.

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Ao tratar da militância de Dilma, a repórter apenas o faz mobilizando um estereótipo

vinculado a essa e a outras guerrilheiras: a masculinização. Ainda que o livro de Amaral não

faça essa descrição propriamente dita, é o que ecoa para a imprensa; tal ideia está, de certa

forma, alinhada à imagem criada pelo próprio regime ditatorial em relação às mulheres

militantes de esquerda: mulheres que ousavam ocupar o espaço público através de seu

engajamento político só poderiam querer ter homens, ou sê-los650. Apesar de não ser da mesma

forma que o livro de Amaral, há também aqui um esvaziamento do elemento político, em prol

do privado – espaço, na tradição patriarcal, por excelência ocupado pela mulher.

Fica perceptível que, muito embora a matéria se proponha a analisar o discurso

biográfico, ela pouco o faz – ao menos em relação ao engajamento de Dilma na ditadura. O que

prevalece são as noções anteriores à narrativa de Amaral, aliadas às impressões geradas pela

divulgação da fotografia.

O Estado de S. Paulo, em 18 de dezembro, publicou a matéria “Jornalista faz perfil

simpático à guerrilheira que virou presidente”, por Gabriel Manzano. Nela, o jornalista trata do

“cartão de visita” do livro: “a foto da jovem Estela, ou Vanda, ou Luiza – enfim Dilma – aos

22 anos, depondo como militante da VAR-Palmares à Justiça militar do Rio de Janeiro”651. Não

obstante, a foto não está publicada. A reportagem critica sutilmente Amaral, ao afirmar que o

livro, apesar de se pretender neutro e objetivo, só faz críticas aos “tucanos” e aos “não-petistas”.

Ao narrar os principais pontos da escrita biográfica, o jornalista, a respeito do período ditatorial,

enfatiza a prisão de Dilma, que teria ocorrido por “incompetência” sua – essa palavra é,

inclusive, usada como subtítulo. Questiona também o relato rápido sobre a expropriação do

cofre de Adhemar de Barros. Fica evidente, assim, que, por mais que a intenção de Amaral

tenha sido estabelecer uma narrativa única e, em certa medida, oficial para a trajetória de Dilma,

ele encontra resistência entre os próprios veículos de comunicação.

Importante ressaltar também a organização da página na qual a matéria está publicada

(anexo E): ela se encontra no canto inferior direito, dividindo a folha com apenas uma outra

notícia, que trata do lançamento de biografia sobre o ditador Emílio Garrastazu Médici – esta,

ocupando toda a metade superior. A legenda da matéria afirma: “Em tempos de Comissão da

Verdade, livro de general defende legado da ditadura” e trata, em linhas gerais, da popularidade

de Médici e do desejo dos autores da biografia em estabelecer um contraponto à sua imagem

650 COLLING, 1997, op. cit., p. 84. 651 MANZANO, 2011, op. cit.

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como incitador de tortura e fomentador dos “anos de chumbo”. Enquanto, como dito acima, a

legenda da matéria sobre Dilma tem como subtítulo a palavra incompetente, sem aspas, o

subtítulo de Médici é ‘democrata’, com aspas simples. A guerra pela memória materializada na

página do jornal.

Com discurso completamente descolado da narrativa biográfica de Amaral, O Globo

publicou outra notícia a respeito da fotografia de Dilma. A reportagem “a história por trás da

foto de Dilma”, escrita, mais uma vez, por Maria Lima, é aberta com a seguinte frase: “no

começo de 2011, quando o país assistia meio incrédulo à festança de chegada ao poder de uma

mulher e ex-guerrilheira, caiu nas mãos do pesquisador Vladimir Sachetta, por acaso, três fotos

que revelam um dos momentos mais marcantes da ‘terrorista’ Vanda”652. A “incredulidade do

país”, descrita por Maria Lima, se deve ao fato de a presidenta ser mulher e ex-guerrilheira; no

entanto, ela negligencia o fato de que foi este mesmo país que a elegeu. Novamente, não é

possível enxergar os marcos da narrativa de Amaral – que chegou a dar declarações para a

constituição da matéria – no discurso disseminado pela imprensa.

O lançamento da biografia, dessa forma, foi amplamente coberto pela imprensa. Além

das reportagens citadas, foram publicadas outras em jornais – impressos e digitais653 – e em

blogs pessoais de jornalistas de diversas partes do país654. Por um deles, inclusive, chegou a ser

classificado como tentativa do “lulopetismo” de “fazer narrativa falsa da história

contemporânea655”.

Amaral foi convidado para conceder entrevistas também em programas de TV, como:

“Em Pauta”, da Globo News (28 dez. 2011); “BH Connection”, da BH News Tv (02 jan. 2012);

652 LIMA, Maria. A história por trás da foto de Dilma. O Globo, Brasília, 23 dez. 2011, O País, p. 12. 653 AGÊNCIA Estado. Jornalista lança biografia da presidente Dilma Rousseff. Estadão, Cultura, São Paulo, 23

jan. 2012. Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,jornalista-lanca-biografia-da-presidente-

dilma-rousseff,826175>. Acesso em: 12 fev. 2019.

AUTOR de biografia de Dilma comenta a obra; leia trecho. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 dez. 2011. Disponível

em: <https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/1020429-autor-de-biografia-de-dilma-comenta-a-obra-leia-

trecho.shtml>. Acesso em: 12 fev. 2019;

D’ÁVILA, Ulisses. A vida quer é coragem. O Fluminense, 1 fev. 2016. Disponível em:

<http://www.ofluminense.com.br/en/cultura/vida-quer-é-coragem>. Acesso em: 12 fev. 2019.

FRANCO, Bernardo Mello. Livro de Dilma liga Serra a ataques anônimos em 2010. Folha de S. Paulo, São Paulo,

12 dez. 2011, Poder, p. A8.

THUM, 2011, op. cit.; 654 AMORIM, Paulo Henrique. Como Dilma vai entrar para a História. Com uma foto. Conversa Afiada, 9 jan.

2012. Disponível em: <https://www.conversaafiada.com.br/brasil/2012/01/09/como-dilma-vai-entrar-para-a-

historia-com-uma-foto>. Acesso em: 12 fev. 2019. 655 BRAGA, Políbio. Anti-dica de leitura – A vida quer é coragem. Políbio Braga, 3 abr. 2018. Disponível em:

<https://polibiobraga.blogspot.com/2018/03/anti-dica-de-leitura-vida-quer-e-coragem.html>. Acesso em: 12 fev.

2019.

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“Entrevista Record”, da Record News (10 jan. 2012); e “Gente que é Gente”, da TVC/BH (25

mar. 2012).

Lideranças de esquerda manifestaram estarem lendo o livro. Mário Soares, ex-

presidente de Portugal e líder do Partido Socialista, em sua coluna no jornal português Diário

de Notícias declarou:

Os nossos irmãos brasileiros vão de vento em popa. Felizmente! (...) A sucessora de

Luís Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, resistente à ditadura militar, torturada,

eleita primeira Presidenta do Brasil, é uma personalidade política de excepcional

qualidade e valentia. Recomendo aos meus leitores o interessante livro biográfico

escrito por Ricardo Batista Amaral sobre a trajetória de Dilma Rousseff intitulado A

Vida Quer É Coragem. O Brasil é um país irmão, membro da CPLP, que, por todas as

razões, devemos acompanhar de perto656.

Em 2 de fevereiro de 2012, a Folha publicou em seu painel que Fidel Castro estaria

lendo a biografia, e teria contado a Dilma a respeito657. Pouco depois, no dia 10 do mesmo mês,

o portal de notícias IG afirmou que Lula também estaria lendo a obra: “O ex-presidente Lula

tem passado os dias no apartamento em São Bernardo do Campo. Ele tem lido diversas

biografias, entre elas as de Nelson Mandela, Franklin Roosevelt e o livro A vida quer é coragem,

do jornalista Ricardo Amaral, que relata a vida da presidenta Dilma Rousseff658”.

A partir de 2016, com a consolidação do impeachment, blogs conservadores e jornais

pessoais relembraram o livro de Amaral. O jornalista Alexandre Parrode publicou no Jornal

Opção que “Livro sobre Dilma Rousseff é vendido por 5 reais e ninguém quer comprar”. O

repórter foi a uma livraria em Goiânia e obteve uma declaração do vendedor: “Apesar da

excelente promoção, ninguém quer comprar659”. Outros blogs noticiaram, em 2018, a venda do

livro a R$2,99660.

****

656 SOARES, Mário. Tempos difíceis. Diário de Notícias, 3 jan. 2012. Disponível em:

<https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/mario-soares/interior/tempos-dificeis-2217529.html>. Acesso em: 12 fev.

2019. 657 LO PRETE, Renata. Painel. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 fev. 2012, Poder, p. A4. 658 GALHARDO, Ricardo. Na cabeceira de Lula. IG, 10 fev. 2012. Disponível em:

<http://poderonline.ig.com.br/index.php/tag/franklin-roosevelt/>. Acesso em: 12 fev. 2019. 659 PARRODE, Alexandre. Livro sobre Dilma Rousseff é vendido por 5 reais e ninguém quer comprar. Jornal

Opção, Goiânia, 30 jan. 2016. Disponível em: <https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/livro-

sobre-dilma-rousseff-e-vendido-por-5-reais-e-ninguem-quer-comprar-57612/>. Acesso em: 12 fev. 2019. 660 Cf. ONOFRE, Jair. Preço do livro sobre a ex-presidente Dilma "A vida quer é coragem" por R$ 2,99. Bahia na

política, 5 jan. 2018. Disponível em: <http://www.bahianapolitica.com.br/noticias/64236/preco-do-livro-sobre-a-

ex-presidente-dilma-a-vida-quer-e-coragem-por-rs-299.html>. Acesso em: 12 fev. 2019.

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Conforme já apontado, a publicação do livro teve bastante repercussão por diversos

veículos de mídia, repercussão esta impulsionada principalmente pela divulgação da fotografia

de uma presidenta em uma situação de julgamento em primeira mão pelo autor em seu livro.

Uma biografia que trata da vida de uma presidenta naturalmente obteria destaque – contudo,

pela análise das fontes feita acima, é possível concluir que a narrativa de Amaral não foi de

fato o centro das atenções.

Esse é um problema, considerando as intenções originais do livro: estabelecer um relato

que, em certa medida, esclarecesse a trajetória de Dilma e que não deixasse espaço para

questionamentos ou negacionismos; constituir-se enquanto um livro de “História Verdadeira”

não só da biografada, mas também do país – uma História Oficial. O que aconteceu, no entanto,

foi exatamente o oposto: o discurso biográfico foi ressignificado e usado justamente para

deslegitimar a trajetória de Dilma.

A publicação obteve, sem dúvida, boa recepção por parte das esquerdas e suas lideranças

– principalmente entre os petistas e governistas –, justamente por convergir com a memória

dominante de oposição à ditadura e, ao mesmo tempo, conciliadora, “não-revanchista”. Mas,

reforçou os questionamentos dos opositores, principalmente por ser caracterizado como um

livro-propaganda, e por isso digno de desconfiança, além de ter sido interpretado como um

mensageiro de “inverdades”. Nesse sentido, os esforços do biógrafo em contar versões “dos

dois lados” – acentuando uma perspectiva de teoria dos dois demônios – não se mostraram

eficazes em acalentar as inquietações e suprimir os discursos subterrâneos negacionistas e de

apoio à ditadura que estavam ressurgindo.

A trajetória do livro pode ser considerada uma metáfora para a memória hegemônica:

suas constantes tentativas de demonstrar as esquerdas dos anos 1960 e 1970 como pacíficas e

democráticas não encontraram mais lugar numa sociedade que se via cada vez menos

representada por essas esquerdas; a obra de Amaral, assim como a memória de crítica à

ditadura, perdeu seu lugar de hegemonia perante a sociedade brasileira, que caminha para uma

nova forma de relembrar o período da ditadura, reaproximando-se dos ideais de autoritarismo

evocados em 1964. O passado se altera em função das demandas do presente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

FOLHA: Eu li a biografia dela e lá conta que ela levou a senhora

no Jambert para cortar o cabelo...

DILMA: Ela levou sim. Ela gostava muito de bons cabeleireiros,

ela tinha muito bom gosto.

FOLHA: Mas era meio incompatível com a rotina que vocês

tinham, não?

DILMA: A gente andava na rua, entramos num cabeleireiro,

cortamos e saímos.

FOLHA: Mas era um salão chiquíssimo, que servia champanhe

aos clientes...

Duas amigas e companheiras de revolução, vivendo de forma clandestina na cidade do

Rio de Janeiro no fim da década de 1960, procuradas pela polícia política e com suas fotos

estampadas em cartazes por todo o país, tinham um problema muito sério a resolver: uma juba

fora de moda. Decidiram, então, ir a um dos salões mais caros da cidade, em Ipanema, o Jambert

– frequentado pela alta sociedade carioca e que servia champanhe à vontade. Seus nomes eram

conhecidos pelos órgãos de segurança: Dilma Rousseff e Iara Iavelberg.

Esse episódio é muito lembrado sempre que se trata de Iara ou do passado de

engajamento de Dilma contra a ditadura. Foi narrado pela primeira vez na biografia de Iara, de

autoria de Judith Patarra:

- A gente precisa se cuidar – já automatizara o discurso, – Olha, vou levar você ao

Jambert para cortar sua juba fora de moda. Não está certo esconder o rosto desse jeito.

Ele corta bem, acaba sendo mais barato.

Quem se divertiu com a argumentação foi outra companheira de Belo Horizonte,

Maria do Carmo Brito, a Lia. Conheciam-se desde os tempos da POLOP, quando

trabalhavam no setor de imprensa e propaganda.

- Seu cabelo é muito grande, crespo e você ainda usa essa gaforinha! – insistiu Iara,

já usando expressões inusitadas em São Paulo. – Um corte realça seus olhos bonitos.

Juro!

Dilma obedeceu. Beberam o champanha que ofereciam no cabelereiro e saiu de

cabelos curtos. Penteava-os com os dedos. (...)661

A partir disso, ganhou a imprensa em diversos momentos – principalmente após Dilma

se tornar ministra-chefe da Casa Civil. Ricardo Batista Amaral também o descreveu em A vida

quer é coragem:

Iara cuidava da aparência, vestia-se com bom gosto e racionalizava a vaidade natural.

“Faz bem à autoestima. Quem se acha interessante trabalha melhor, é mais segura, dá

menos bandeira”, ela disse uma vez a Dodora.

661 PATARRA, 1992, op. cit., p. 298.

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Com esse papo na ponta da língua e um surpreendente cartão de crédito, Iara

convenceu Dilma a “cortar essa juba fora de moda” no salão do badalado Carlos

Jambert, onde serviam champanhe às clientes. “Você é uma feminista, Iara, a primeira

que conheço”, admirou-se a nova amiga662.

O jornalista Elio Gaspari, célebre autor de uma série de livros sobre a ditadura, narrou

o assunto no volume Ditadura escancarada, mas incluir a presença de Dilma:

Poucos meses depois da fuga de Quintaúna o capitão [Lamarca] se apaixonara pela

musa da VPR, a Clara [Iara Iavelberg], uma mulher bonita, com enormes olhos claros.

Vaidosa, era capaz de sair de um aparelho para cortar o cabelo e tomar champanhe

no Jambert de Ipanema, o melhor e mais caro salão do país663.

O livro é de 2002, antes de Dilma ganhar projeção na política nacional. Posteriormente,

em reportagem para a Folha, publicada em 2005, ano em que Rousseff passa a ocupar o cargo

na Casa Civil, Gaspari retoma o episódio, incluindo-a: “Um dia Iara levou Vanda/Dilma para

uma aventura da vaidade. Cortaram cabelo no salão Jambert da Ataulfo de Paiva, o preferido

da grã-finagem carioca, onde servia-se champanhe aos clientes664”

A Folha retomou o assunto duas outras vezes, com matérias de autoria da jornalista

Fernanda Odilla, ambas de 2009 – em uma delas, publicou como autêntica uma ficha

falsificada, que atribuía à Dilma diversos crimes durante a ditadura. Nessa mesma reportagem,

a jornalista deixa implícito que o corte de cabelo teria sido financiado pelos dólares

expropriados na Ação Grande: “A extravagância foi bancada depois da ação que deu fama à

VAR-Palmares: o assalto ao cofre do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros,

guardado na casa da amante dele, com cerca de US$ 2,4 milhões”665. Essa informação, porém,

não consta no livro de Patarra e não há fontes que a confirmem.

Odilla realizou entrevista com Dilma, publicada na Folha e com trecho na epígrafe deste

capítulo, na qual quase 10 perguntas foram dedicadas ao assunto do salão. Apesar de toda ênfase

dada pela repórter, Dilma afirma: “Era um bom lugar, mas não é uma coisa relevante na minha

vida”666.

Por que, dentre tantos outros fatos, escolher justamente esse episódio para ser lembrado

a respeito das trajetórias de ambas as militantes?

662 AMARAL, 2011, op. cit., p. 298. 663 GASPARI, 2002, op. cit., p. 343, grifos meus. 664 GASPARI, Elio. Delúbio tem a idade do Brasil. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 jun. 2005. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2606200511.htm>. Acesso em: 15 fev. 2019. 665 ODILLA, Fernanda. Grupo de Dilma planejava sequestrar Delfim. Folha de S. Paulo, Brasília, 5 abr. 2009.

Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0504200906.htm>. Acesso em: 12 fev. 2019. 666 ODILLA, 2009, op. cit.

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Não obstante os livros analisados nesta dissertação tenham sido publicados em períodos

diferentes – o primeiro no início da década de 1990 e o segundo no início dos anos 2010 –,

ambos os autores fizeram uma escolha bem demarcada ao optarem por biografadas mulheres.

Judith Patarra poderia ter escolhido Lamarca; Ricardo Amaral poderia ter escolhido Lula.

Contudo, embora tenham a condição feminina em comum, as duas personagens são construídas

de maneiras muito distintas; e talvez o episódio narrado na introdução deste capítulo seja

emblemático de cada uma.

A Iara de Patarra usufrui de liberdade sexual incomum para sua época e seu meio, é

extremamente vaidosa e, por isso, rompe com o estereótipo típico da guerrilheira, vista como

masculinizada.

A Dilma de Amaral, por sua vez, não tem sua beleza física descrita pelo autor em

momento algum – embora ele utilize o adjetivo “linda” para descrever outras militantes, como

a própria Iara e Carmela Pezzuti. A biografada é firme, direta, pouco vaidosa; optou por se casar

duas vezes, sempre em relacionamentos estáveis e duradouros, deslocando-se do estereótipo de

“puta comunista”, mas incorrendo em outro, o da guerrilheira masculinizada.

A historiadora Ana Maria Colling, ao realizar uma pesquisa com ex-militantes de

organizações revolucionárias, concluiu que “além da caracterização da mulher militante como

prostituta, a repressão trabalhava na tentativa de desmoralização com duas outras ideias: a de

que as mulheres estavam buscando homens e a de mulher-macho”667. Ainda que não sejam

discursos ligados à repressão – muito pelo contrário, são críticos a eles, como se apresenta a

memória dominante sobre a ditadura em geral –, é possível observar continuidades nas

narrativas biográficas: a Iara de Patarra, de certa forma, estava à busca de homens; a Dilma de

Amaral, mesmo que não explicitamente, possui as características esperadas pela sociedade de

um homem.

Independentemente de serem mulheres diferentes, e poderem representar a pluralidade

da atuação feminina no engajamento político das esquerdas revolucionárias, os autores

constroem suas personagens de forma que as estratégias e convicções políticas postas naquele

momento ficam de lado. Cada uma à sua maneira, com seus próprios atributos, encontrava

formas de fugir à militância per se em que estavam envolvidas. Ambas são retratadas de como

pacíficas e/ou inadequadas para a luta armada – Iara nunca pegou em armas, exceto para tirar

sua própria vida668; Dilma nunca quis atirar, era míope669. Além disso, possuem suas agendas

667 COLLING, 1997, op. cit., 84. 668 De acordo com a narrativa de Patarra. Sabe-se, porém, que Iara foi assassinada, como dito anteriormente. 669 AMARAL, 2011, op. cit., p. 13.

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individuais e prioritárias, que não aquelas colocadas pelas organizações: Iara era “feminista” e

queria lutar pelos direitos das mulheres; Dilma era uma mulher das massas, e apoiaria o que

quer que elas apoiassem.

É possível observar, assim, duas estratégias diferentes de esvaziamento da luta

revolucionária nas narrativas, em prol da inclusão de pautas mais referentes ao(s) tempo(s)

presente(s) dos biógrafos. No caso de Iara, seria adequado para o contexto dos anos 1980 e

1990, e as demandas colocadas nesse período, que a “musa das esquerdas” fosse também

feminista, livre e rebelde. Essa construção possibilitaria uma maior identificação com as

mulheres leitoras do livro, brancas, de classe média, que questionavam o papel de soberanas

apenas do espaço privado. Seria mais palatável conhecer a história de uma mulher que, acima

de tudo, fora resistente e guerreira – mas não tão guerrilheira.

No caso de Dilma, recém-eleita presidenta da República quando do lançamento do livro

e, antes disso, Ministra-Chefe da Casa Civil em dois mandatos do governo Lula, seria mais

apropriado para a estabilidade do governo e a conciliação com as oposições a construção de

uma “personagem” crítica às opções radicais e, sobretudo, muito democrática. Seu engajamento

nas organizações revolucionárias causou estranhamento da mídia e das oposições antes mesmo

do início da campanha eleitoral e esses incômodos precisavam ser atenuados.

Dessa forma, a luta armada não ocupa lugar central na narrativa específica sobre

nenhuma das biografadas. Por que, então, os biógrafos escolheram mulheres guerrilheiras para

escrever biografias se não pretendiam falar da guerrilha? No caso de Dilma, a eleição para a

presidência pode ser usada como justificativa para um livro dedicado à sua trajetória de vida.

Contudo, o caso de Iara é curioso: uma mulher que morreu muitíssimo jovem e dedicou os

últimos anos de sua vida exclusivamente à luta revolucionária foi retratada como imprópria

para ela.

É fato, como vimos, que a sociedade brasileira não apoiou a guerrilha; no entanto, quis

conhecê-la. Porém, percebe-se um pré-requisito para que essas memórias sejam aceitas: um

abrandamento dos discursos, uma tentativa de apaziguar os engajamentos. Esse abrandamento

é, como vimos, resultado do mito da sociedade resistente, que precisava acreditar que foi contra

a ditadura desde o princípio. Assim, viu na atuação das esquerdas revolucionárias a

oportunidade de uma ressignificação e consequente transformação desta em “braço armado da

resistência democrática”. Como resultado, observamos nas biografias guerrilheiras que, “na

verdade”, nunca tiveram intenção de guerrilhar – tinham apenas um “senso de justiça” aguçado

e um incômodo latente com o regime autoritário. O desejo de subverter a ordem capitalista é

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minimizado, pois representaria uma ofensividade que a sociedade brasileira não estaria

preparada para lidar.

Nos momentos em que essas ideologias ofensivas são colocadas em pauta, os fatos que

se sobressaem nas trajetórias de vida das militantes, então, são aqueles que apontam possíveis

contradições com as ideologias defendidas. Lembra-se das idas aos salões de elite, dos amores,

das peças e filmes assistidos, dos questionamentos em relação às organizações; silencia-se sobre

as funções dessas mulheres dentro da militância, de suas contribuições teóricas e estratégicas,

de suas ações em nome das ideologias que defendiam. Uma lembrança mais adocicada e

idealizada, mais conciliatória, tem lugar garantido na memória dominante sobre a ditadura.

A ditadura tinha concepções bem marcadas do que seria a “mulher ideal” nos moldes

de sociedade defendidos: após o golpe civil-militar, a imagem era de uma “mãe, esposa, dona-

de-casa”, semelhante ao perfil das mulheres integrantes da Campanha da Mulher pela

Democracia (CAMDE), entidade feminina conservadora organizadora das Marchas da Família

com Deus pela Liberdade670. Já a partir dos anos 1970, houve uma alteração neste padrão, que

incluía “as ambivalências do processo de modernização conservadora: se a mulher ainda

alimentava o sonho da família e dos filhos – o lar perfeito –, este parecia cada vez menos

incompatível com a carreira profissional”671.

Nenhuma dessas imagens, no entanto, é compatível com a da mulher militante,

comunista; muito pelo contrário, representa sua antítese completa. Isso ocorreu pois os padrões

definidos pela ditadura eram anticomunistas, caracterizando as guerrilheiras não só como

terroristas, mas também como “não-mulheres”. Ana Maria Colling aponta que, na perspectiva

da repressão, as mulheres militantes eram duplamente desviantes: ousavam, assim como os

homens, ao reivindicarem uma nova ordem política e social, oposta à ordem vigente; porém,

mais que isso, transgrediam ainda mais por adentrarem o espaço público, o espaço da política

e das decisões, masculino por excelência672.

Mesmo em suas biografias, que pretendem se distanciar tanto dos discursos defendidos

pelo “antigo regime” ditatorial, notamos uma aproximação em relação à interpretação do

engajamento das mulheres: elas estão presas no espaço privado; invisíveis no espaço público.

Os livros, dessa forma, reproduzem estereótipos tradicionais a respeito dos papéis femininos.

Seus cargos dentro das organizações são esquecidos ou não são os aspectos centrais que os

670 CORDEIRO, Janaina. Mães do ano: a CAMDE e a imagem da mulher nos primeiros anos da ditadura civil-

militar. 2019. No prelo. 671 Idem. 672 COLLING, 1997, op. cit.

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livros se propõem a expor. A ofensividade da luta armada, seu aspecto revolucionário, não gera

empatia entre o público leitor e, por isso, é secundarizado, por vezes terceirizado – não parece

ser “coisa de mulher”.

Os homens, por sua vez, são responsáveis, nas biografias, pelas ações mais violentas:

Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Juarez Brito, Ângelo Pezzuti são lembrados como

revolucionários. Às mulheres caberia a contemplação dessas ações. Contudo, através da análise

dos documentos produzidos pelo Estado ditatorial, nota-se que, embora não considerassem o

engajamento de forma alguma adequado para as mulheres, houve reconhecimento do papel

político desempenhado por elas, ignorados, em certa medida, pelos biógrafos:

Yara Yavelberg [sic], ao lado de Dilma Vana e Miriam Abramovay, é a figura

relevante de mulher dentro da VAR-Palmares. Tão ativa é a sua participação nos

movimentos subversivos que Maria Cora Sacomani, ainda antes da própria existência

da VAR, participou de reuniões clandestinas na casa de Miriam e dos Iavelbergs.

Dilma Vânia [sic] coloca Yara [sic] entre as figuras que se sobressaiam. A fls. 642-

646 é citada entre as participantes dos encontros realizados no apartamento da rua da

Consolação, já referidos. Não há dúvida sobre a sua criminosa atuação673.

Dilma Vana Rousseff Linhares, “Joana D’Arc” da subversão. A figura feminina de

expressão tristemente notável. (...) Não há [como] especificar sua ação, pois tudo o

que foi feito no setor teve sua atuação direta. Praticamente foi a organizadora e

distribuidora de funções. Seu nome está em qualquer parte do processo, como se pode

verificar pelo que até agora foi exposto e pelo que se dirá674.

Embora não mais em um contexto de Estado autoritário, a sociedade brasileira continua

com uma estrutura fortemente patriarcal, diretamente refletida nas narrativas biográficas.

Mesmo quando decidiram por adentrar o espaço público, engajar-se em causas revolucionárias

por vontade própria, as prioridades dessas mulheres são invertidas e recordadas como mais

brandas, menos políticas, e mais pessoais. Há uma tentativa, diretamente influenciada pelo

machismo e pelos papéis de gênero, de enquadrá-las o máximo possível em papéis de

“feminilidade” aceitáveis dentro das biografias. Dessa maneira, por mais que tivesse havido um

vasto engajamento político, termina-se por lembrar sempre, de forma quase icônica, apenas

uma suposta ida a um cabeleireiro de luxo.

****

673 SÃO PAULO. Justiça Militar Federal – 1ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar. Diário Oficial do

Estado de São Paulo, São Paulo, 2 jun. 1979, p. 104. 674 BRASIL. Justiça Militar – 1ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar. Brasil: Nunca Mais, Processo

095, São Paulo, 10 ago. 1970, p. 6.

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Apesar dos diferentes momentos de produção, os dois livros produzem discursos

memoriais muito semelhantes – influenciados pela memória hegemônica. Esta, como já vimos,

foi constituída com base no mito da sociedade resistente e na conciliação, além do apagamento

do sentido revolucionário das esquerdas. Esses aspectos permitem ocultar o consenso, e por

vezes apoio, de setores da sociedade civil ao golpe e à ditadura em si; além disso, ocultam o

uso da violência como política do terrorismo de Estado. Dessa forma, a punição dos

perpetradores não só se mostra “desnecessária”, como uma ameaça à democracia – uma

demanda vingativa, revanchista.

Esse discurso teve o mesmo caráter da Lei da Anistia: segundo Denise Rollemberg, “o

reencontro de 1979 e dos anos seguintes – com os exilados e os presos políticos, ‘da sociedade

com a democracia’ – criou um fosso entre o passado e o futuro, como se para fazer este fosse

preciso esquecer aquele”675. As próprias esquerdas aderiram a essa forma de lembrar – ou

esquecer –, fazendo prevalecer “a interpretação segundo a qual o regime se impunha

exclusivamente pela repressão ou manipulando os baixos níveis de escolaridade das maiorias

ou dominando os meios de comunicação”676.

Seguindo essa forma de lembrar, ambos os livros tratam do golpe civil-militar como

uma ação repressiva, sem demanda prévia da sociedade. O golpe, na perspectiva dos biógrafos,

partiu unicamente dos militares, em um ato de vilania que condenou o país. Dessa forma,

nenhum deles enxerga – ou lembra – a ditadura como “produto da sociedade”. Segundo Janaina

Cordeiro, é necessário compreender o período ditatorial assim, reconhecendo que

houve apoios declarados, engajados, militantes, mas também os silenciosos. Aqueles

que faziam parte de uma espécie de engrenagem do consentimento, ou seja, uma

lógica de pensamento de acordo com a qual aquela determinada situação é a única

escolha possível ou, ao menos, a mais razoável, restando, portanto, a obediência677.

Em relação às organizações de esquerda, os autores divergem um pouco. Judith Patarra

romantiza a “resistência” – os chamados “anos rebeldes”. Muito embora haja uma certa

demarcação entre a militância de Iara e a guerrilha em si – silenciando sobre o fato de que a

biografada estava inserida nessa forma de engajamento –, ambas as formas de organização são

tratadas como “inocentes” e “tipicamente juvenis”. Há, claro, mais uma vez, um esvaziamento

do aspecto revolucionário, em nome de um pretenso senso de justiça inerente aos militantes,

que os fizeram tomar decisões extremadas. Patarra, apesar disso, procura humanizar os

675 ROLLEMBERG, 2006, op. cit., p. 5. 676 Idem. 677 CORDEIRO, 2012, op. cit., p. 31.

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responsáveis pelas ações mais violentas, fazendo uso do seu formato de escrita para isso,

colocando arrependimento e culpa nos pensamentos dos personagens. Eram todos jovens,

inconsequentes, movidos por utopias.

Amaral, por sua vez, publicou seu livro em um momento que discursos conservadores

e negacionistas ganhavam lugar. Por isso, observa-se sua estratégia de construir dois lados de

uma guerra que, mesmo que injusta, produziu efeitos para a sociedade vítima. Dessa forma, o

autor apresenta as ações das esquerdas como delitos violentos – cita os números de mortos em

ação, trata dos “assaltos” e “sequestros” –, que, segundo ele, tiveram como resposta o

endurecimento da repressão. Em certa medida, o biógrafo reatualiza a teoria dos dois demônios,

buscando, no entanto, isentar sua personagem, que sempre teria se oposto aos “excessos” das

esquerdas, enquanto sofreu na própria carne os “excessos” cometidos pelo Estado ditatorial.

Assim, trata da tortura, dos assassinatos e desaparecimentos como atos violentos, porém com

certo caráter de “clandestinidade”, fruto da loucura de alguns torturadores. Nunca como

terrorismo de Estado.

Quanto a Judith Patarra, no tocante às ações repressivas do Estado ditatorial, a autora

pouco trata do assunto. Ao escolher Iara como biografada, Patarra selecionou uma militante

que proporcionaria uma narrativa que ela considerava mais leve, uma vez que sua única prisão

foi curta e prévia ao AI-5 e que, ao menos oficialmente, sua morte teria sido um suicídio – dessa

forma, não precisaria mobilizar discursos a respeito da violência política. O que contribui para

ratificar ainda essa de escolha de Patarra, é sua recusa em ao menos apontar a controvérsia –

naquela altura, já denunciada pela família – quanto à morte de Iara; além disso, a biógrafa faz

uso de depoimento de um dos agentes de segurança responsáveis pela ação que a assassinou. A

fala deste agente é tratada por Patarra como verdade, evidenciando contradições no discurso

que enaltece os “anos rebeldes”, mas que não questiona os perpetradores.

Bernhard Giesen afirma que as sociedades modernas têm diversas formas de lidar com

a confissão de uma culpa coletiva do passado: “alguns estão dispostos a reconhecer sua

responsabilidade nacional por um genocídio do passado; outros se resistem a fazê-lo”678. Ainda

que não se configurem como genocídio, como o autor aponta, os crimes cometidos pelo

terrorismo de Estado precisam ser vistos como violações. O Brasil, porém, parece resistir a

admitir sua culpa coletiva: sob uma suposta “memória crítica à ditadura” se escondem as culpas

do apoio de setores da sociedade civil ao regime e o fato de que nem todos foram resistentes a

678 GIESEN, 2001, op. cit., p. 19.

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todo tempo. Ambas as biografias contribuem para manter o pacto social que mantém a memória

da ditadura conciliadora e, por isso, não toca nas feridas.

****

Conforme apresentado, ambos os biógrafos são jornalistas. Estão inseridos em um

contexto de aumento de livros que tratam de assuntos históricos e/ou biografias, cuja autoria é

de jornalistas e repórteres. O historiador Benito Schmidt aponta como justificativa para o

interesse desses profissionais na escrita de biografias, especificamente, a influência da literatura

no movimento do new journalism679, e, dessa forma, o interesse pela “aplicação das técnicas

ficcionais a textos de não-ficção680”.

É fato que os dois autores se utilizam de técnicas ficcionais, mas, pode-se identificar

essas características prioritariamente no livro de Patarra: a autora tem como objetivo principal

a reconstituição completa das personagens as quais busca retratar, preenchendo as lacunas com

situações criadas por sua imaginação. Recria cenários, pensamentos, sensações até mesmo

sensoriais, o que basicamente insere o leitor dentro de um mundo criado pela biógrafa – que se

passa como o mundo “verdadeiro” vivido por Iara.

Amaral, por sua vez, apesar de também usar elementos ficcionais para dar leveza à sua

narrativa e, de certa forma, preencher algumas lacunas, utiliza menos os recursos de diálogos,

por exemplo – muito embora, em diversas ocasiões, ele transcreva os sentimentos e

pensamentos da biografada, a qual ele alegou não ter entrevistado ou se aproximado para a

constituição do livro.

Os dois autores fazem muito uso de fontes orais – depoimentos de pessoas próximas às

biografadas –, mas também de notícias publicadas pela imprensa e documentos oficiais para

fundamentar suas pesquisas. No entanto, observa-se que eles não lançam olhares críticos a tais

fontes, aceitando suas informações como verdade a ser incorporada integralmente no texto. Não

questionam a origem dos dados obtidos ou a riqueza de detalhes vinculada – muito pelo

contrário, quanto mais detalhes, mais a impressão de veracidade. Além disso, ambos apenas

esporadicamente citam referências sobre a procedência do que é vinculado – muitas vezes,

inclusive, essas informações são deliberadamente ocultadas, como no caso de Amaral,

679 Também conhecido como Jornalismo Literário, surgido na década de 1960, nos Estados Unidos, tem como

principal objetivo mesclar a narrativa jornalística com a literária, ainda assim constituindo obras de não-ficção. 680 SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias ... Historiadores e Jornalistas: Aproximações e Afastamentos.

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, 1997, p. 5. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2040/1179>. Acesso em: 16 fev. 2019.

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principalmente –, o que, segundo Benito Schmidt, é comum às escritas biográficas feitas por

jornalistas:

Deve-se ressaltar também que o jornalista quase nunca separa com nitidez a sua fala

enquanto narrador da transcrição dos documentos. (...) privilegiou-se a fluidez da

narrativa ao invés da precisão formal que, longe de ser apenas um artifício técnico,

permite ao leitor conhecer as informações que serviram de base para a construção do

texto e cotejar as mesmas com as interpretações do autor681.

Nota-se que os jornalistas possuem um maior compromisso com a linguagem, a escrita

e a fluidez de seus discursos, e menor, ou nulo, com a criticidade que o método historiográfico

requer de suas fontes. Ainda assim, como afirmam Schmidt e Beatriz Sarlo, a riqueza de

detalhes não causa estranhamento no leitor, muito pelo contrário, confere legitimidade e

veracidade à narrativa682. Dessa forma, observamos que, apesar de serem livros de memória,

são julgados como livros de História – e até se pretendem como tal. O historiador Marcos Silva

declara que a história, como tema, “é uma legítima dimensão de muitos saberes — Sociologia,

Economia, Teatro, Romance, Cinema, Jornalismo... Outra coisa é sua identidade como campo

de conhecimento homônimo683”. É por isso que, segundo ele, há que se fazer uma separação

contundente entre a escrita do jornalista e a do historiador:

Não se trata de preciosismo técnico: o método específico garante ao historiador um

texto de natureza explicativa e demonstrativa, que vai além das opiniões dos

personagens ou do próprio historiador. Quando os profissionais de outros campos de

saber (e alguns historiadores irmanados com estes) tomam a História apenas como

tema, esse zelo não costuma ser mantido684.

É por isso que se faz necessário retornar ao ponto de partida deste trabalho: a diferença

entre história e memória. Ainda que mobilizem a história ou períodos dela como tema, os livros

aqui analisados trazem discursos de memória. Pretendem-se verdadeiros, não seguem o rigor

metodológico historiográfico e condicionam o passado ao presente, fazendo uso dele da forma

que melhor convém para atender as demandas postas por seu tempo. Por isso, foram

identificados nesses discursos seleções, esquecimentos, silêncios. São movimentos típicos da

memória, que se pretende soberana, mas que responde a disputas.

681 Ibid., p. 9. 682 SARLO, 2007, op. cit. 683 SILVA, Marcos. Jornalismo retrospectivo e quase-história (imaginem se a ditadura fosse desavergonhada!).

Adusp, São Paulo, maio 2005, p. 81. Disponível em: <https://www.adusp.org.br/files/revistas/34/r34a11.pdf>.

Acesso em: 16 fev. 2019. 684 Idem.

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****

O historiador francês Henry Rousso tratou da constituição do campo específico de

estudo da história da memória, cujo objetivo seria fazer a história das expressões que resultam

na memória coletiva. Rousso aponta que: “a história da memória tem sido quase sempre uma

história das feridas abertas pela memória, não sendo no fundo senão uma manifestação, entre

outras, das interrogações atuais e palpitantes sobre certos períodos que ‘não passam’”685. O

historiador ainda trata da relação profunda entre a história da memória e a análise das culturas

políticas de uma sociedade.

Nesse sentido, essa pesquisa pretendeu se constituir como contribuição para uma

história da memória, através da análise das biografias e os discursos nelas empregados, sobre

a ditadura civil-militar brasileira. De acordo com Carlos Fico, a categoria do trauma é essencial

para caracterizar as experiências das esquerdas: “particularmente, a prisão, a tortura e a morte

desses rapazes e moças tornaram a fase final do processo um evento traumático”686. Porém, é

preciso problematizar o fato de que a ditadura civil-militar, nas concepções da memória tratada

nesse trabalho, constitua-se como trauma para toda a sociedade.

Essa característica específica da memória oculta fatores cruciais para a compreensão da

ditadura pós-64, como o papel de setores da sociedade no pacto construído em torno do

regime687, viabilizado a partir de uma cultura política específica, com bases num

“conservadorismo-autoritário” e marcada por forte anticomunismo688. Além disso, o

distanciamento entre as organizações revolucionárias e a sociedade é colocado como fruto da

repressão, e não da não identificação da segunda com o projeto político e revolucionário das

primeiras. Ao fazer uma leitura de si mesma sempre como resistente e democrática, a sociedade

esquece de aspectos não tão agradáveis de serem lembrados e faz as pazes consigo mesma.

Ao mesmo tempo em que os brasileiros eram lembrados como resistentes, os militares

eram colocados na posição de vilões – principalmente os perpetradores de violações de direitos

humanos, promovidas nos centros de tortura e desaparecimento. Estabeleceu-se um

maniqueísmo forte que, apesar disso, não mereceu punição no âmbito jurídico. A transição para

685 ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína

(org.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006. 686 FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Tempo e argumento,

Florianópolis, v. 9, n. 20, jan./abr. 2017, p. 44. 687 CORDEIRO, 2012, op. cit., 688 Idem.

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a democracia e a Lei da Anistia, muito pelo contrário, evocavam a conciliação, prevenindo

qualquer punição, esta caracterizada como “revanchismo”: “em relação aos militares a anistia

se tratava de uma medida para o futuro, quanto a uma expectativa ou possibilidade de

responsabilização penal689”. Camuflaram-se as ações violentas do Estado em excessos

individuais, eclipsando a ideia de terrorismo estatal. “Exatamente onde não houve muita

resistência é que não se deve remexer no passado”, diz Daniel Aarão Reis. “Todos resistiram,

todos resistimos, assim parecia melhor”690.

Ao questionar tais memórias, minha intenção não foi minimizar o sofrimento daqueles

atingidos pela tortura, os desaparecidos e assassinados; não foi contribuir para uma “teoria dos

dois demônios”691, mas sim, questioná-la, buscando evidenciar as contradições de uma

sociedade marcada por uma cultura política autoritária, não obstante lembre de si mesma como

pacífica e democrática. Como declara Janaina Cordeiro, “é preciso, sobretudo no âmbito da

pesquisa acadêmica, tentar superar os limites impostos pelas batalhas de memória”692.

Ainda assim, é preciso destacar um fato: a historiografia que se propôs a estudar a

memória dominante sobre a ditadura, aquela que favorecia os “vencidos” e renegava os

“vencedores”, foi constituída, sobretudo, na segunda metade dos anos 2000, quando o Brasil

vivia um outro contexto político e social. Tendo em vista a data de produção dessa dissertação,

cabe tomarmos emprestado o questionamento feito por Caroline Bauer: “como será o

passado?”693; qual será o futuro da memória e, sobretudo, das políticas de memória sobre o

passado recente?

O primeiro livro analisado – biografia de Iara Iavelberg –, apesar de todas as suas

especificidades, encontrou lugar mesmo trazendo como personagem principal uma integrante

de organizações revolucionária. Teve quatro edições esgotadas e desfruta de profunda

legitimidade entre o público leitor. O segundo – a respeito de Dilma Rousseff –, por sua vez,

precisou abrandar ainda mais seus discursos, pois foi publicado em um momento de batalhas

pela memória acirradas, com aumento de discursos negacionistas. Contudo, só teve uma edição

que, inicialmente, teve boas vendas, mas, após a crise do governo de Dilma, foi renegado pelos

consumidores. Apesar de ter como proposta, mesmo que indireta, estabelecer uma história

689 BAUER, 2017, op. cit., p. 17. 690 apud ROLLEMBERG, 2006, op. cit., p. 5. 691 Destacar a ofensividade das esquerdas armadas não significa justificar sua repressão e assassinato pelo Estado

ditatorial – terrorismo de Estado. 692 CORDEIRO, 2012, op. cit., p. 27. 693 BAUER, 2017, op. cit.

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oficial da ex-presidenta, foi extremamente criticado e malvisto pelos conservadores que

ganharam espaço na última década.

Por fim, fica claro que é preciso refletir o lugar da memória dominante no presente do

país. É preciso questionar se estaríamos diante da formação de um novo ciclo de memória, com

novas narrativas hegemônicas. Essa reflexão auxiliará na compreensão do contexto social e

político que se configura, uma vez que a memória está mais relacionada com o seu presente do

que com o passado que se propõe a lembrar.

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ANEXOS

Anexo A – Capa e contracapa do livro Iara: reportagem biográfica, de Judith Patarra

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Anexo B – Capa e contracapa de A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a

primeira presidenta do Brasil, de Ricardo Batista Amaral

Anexo C – Capa da edição portuguesa do livro A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma

Rousseff, a primeira presidenta do Brasil, de Ricardo Batista Amaral

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Anexo D – Capa da edição argentina de La vida pide coraje: la trayectoria de Dilma Rousseff,

primera presidenta de Brasil, de Ricardo Batista Amaral

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Anexo E – Página 14 da edição do O Estado de S. Paulo, de 18 de dezembro de 2011.