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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM CAMILLA RAMALHO DUARTE DESENCANNESE PENSA NO ESSENCIAL: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA DE PUBLICIDADE ÀS AVESSAS NITERÓI, RJ 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE …§ão - Versão Final - Camilla...Agradeço, em primeiro lugar, a Deus que nunca me desamparou: mil cairão ao teu lado e dez mil à

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

CAMILLA RAMALHO DUARTE

“DESENCANNES” E PENSA NO ESSENCIAL: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA

DE PUBLICIDADE ÀS AVESSAS

NITERÓI, RJ

2016

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CAMILLA RAMALHO DUARTE

“DESENCANNES” E PENSA NO ESSENCIAL: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA

DE PUBLICIDADE ÀS AVESSAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Estudos de Linguagem da Universidade Federal

Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título

de Mestre em Estudos de Linguagem.

Linha de Pesquisa: Teorias do Texto, do Discurso e da

Interação.

Orientadora: Profª. Drª. Rosane Santos Mauro Monnerat

NITERÓI, RJ

2016

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D812 Duarte, Camilla Ramalho.

“Desencannes” e pensa no essencial : uma análise

semiolinguística de publicidade às avessas / Camilla Ramalho Duarte.

– 2016.

101 f. : il.

Orientadora: Rosane Santos Mauro Monnerat.

Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade

Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2016.

Bibliografia: f. 93-101.

1. Linguística. 2. Publicidade. 3. Desencannes (Site da Web). I.

Monnerat, Rosane Santos Mauro. II. Universidade Federal Fluminense,

Instituto de Letras. III. Título.

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CAMILLA RAMALHO DUARTE

“DESENCANNES” E PENSA NO ESSENCIAL: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA

DE PUBLICIDADE ÀS AVESSAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Estudos de Linguagem da Universidade Federal

Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de

Mestre em Estudos de Linguagem.

Linha de Pesquisa: Teorias do Texto, do Discurso e da

Interação.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Rosane Santos Mauro Monnerat – Orientadora

Universidade Federal Fluminense – UFF

_________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Patrícia Ferreira Neves Ribeiro

Universidade Federal Fluminense – UFF

_________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Lino Pauliukonis

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

_________________________________________________________

Profª Drª Nadja Pattresi de Souza e Silva

Suplente - Universidade Federal Fluminense – UFF

_________________________________________________________

Profº Drº Wagner Alexandre dos Santos Costa

Suplente - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ

Niterói

2016

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SINOPSE

Análise de peças publicitárias, veiculadas pelo site do Desencannes, chamadas de

publicidades às avessas, por conta da subversão da principal estratégia da publicidade

canônica: a venda de uma marca. Uso de conceitos da Teoria Semiolinguística de Análise do

Discurso, de Patrick Charaudeau, bem como das noções de ethos e pathos e das

particularidades da publicidade tradicional para a realização de tal análise.

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A toda minha família,

em especial ao meu querido Tio Peres (in memoriam),

cujo sonho sempre foi viver

para ver alguém se tornando doutor na família.

Espero ser a primeira...

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, a Deus que nunca me desamparou: mil cairão ao teu

lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido.

Depois, agradeço aos meus pais, por todo amor incondicional que a mim dispensam:

sem eles, não sou.

Ao meu irmão, tios e tias, primos e primas, sou grata pela família que temos e por todo

amor e preocupação que temos uns pelos outros. Minha vida não seria a mesma sem vocês...

À minha querida orientadora Rosane, sempre tão carinhosa e paciente, que me

acompanha desde o Português VII. Ela viu potencial em mim e no meu trabalho já na primeira

reunião em que conversamos sobre o Jornal Sensacionalista. Rosane acredita em mim

quando eu mesma me esqueço de que sou capaz. Muito obrigada, de coração!

À querida professora Patrícia que me acolheu como se fosse sua orientanda, desde a

primeira aula à qual assisti. Ninguém mais poderia ser minha supervisora de estágio, minha

banca de qualificação e, agora, de defesa. Muito obrigada!

À professora Aparecida que muito contribuiu para a realização da minha pesquisa,

tanto na qualificação, quanto na defesa. Sem a sua ajuda, teria sido ainda mais difícil...

À melhor prima/amiga/irmã que alguém pode ter: Ranninha. Nunca se esqueça de que

you're my person.

Ao meu primo Fefo, melhor amigo, confidente e companheiro por estar sempre ao

meu lado, me apoiando e amparando.

Às minhas amigas de uma vida inteira, Sandra e Daiana, por todo amor e

companheirismo que partilhamos.

Às minhas amigas de vida e de UFF, Débora e Tatiana. É como eu sempre digo: a

minha trajetória é mais bonita porque vocês estão comigo.

Às queridas amigas que fiz no mestrado, Sabrina, Gisella e Eveline que foram

essenciais ao longo desses dois anos. Só quem passa por essa experiência entende a

importância delas nos dias mais caóticos.

A todos aqueles que já trabalharam comigo e que, de alguma maneira, ajudaram a

traçar meu caminho até aqui, em especial, Franco, Fezinha, Carlinha, Duda, Mari, Bethinha,

Anna e Pereira.

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À Universidade Federal Fluminense que virou minha segunda casa em 2007, na

graduação, e que continuou sendo meu lar durante a especialização e o mestrado. Sou grata

demais por ter tido a oportunidade de fazer parte da história de uma das melhores

universidades do país.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela bolsa

concedida durante esses dois anos que tanto me ajudou a manter a tão temida produtividade

acadêmica.

Enfim, a todos e todas que conviveram e compartilharam da minha vida durante esse

tempo de mestrado, serei profundamente grata. A vida é mais feliz porque tenho vocês por

perto!

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Ela que descobriu o mundo

E sabe vê-lo do ângulo mais bonito

Canta e melhora a vida, descobre sensações diferentes

Sente e vive intensamente

Aprende e continua aprendiz

(...)

Despreocupa-se e pensa no essencial

Gerânio - Marisa Monte

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Peça publicitária do preservativo Jontex, publicada pelo Desencannes 19

Figura 2: Peça publicitária da Sega, publicada pelo Desencannes 20

Figura 3: Peça publicitária da Anvisa, publicada pelo Desencannes 21

Figura 4: Peça publicitária do biscoito Bono, publicada pelo Desencannes 65

Figura 5: Peça publicitária do Governo Federal, publicada pelo Desencannes 75

Figura 6: Peça publicitária da Igreja Universal, publicada pelo Desencannes 78

Figura 7: Peça publicitária do Viagra, publicada pelo Desencannes 98

Figura 8: Peça publicitária do absorvente Sempre Livre, publicada pelo Desencannes 108

Figura 9: Peça publicitária do dicionário Aurélio, publicada pelo Desencannes 109

Figura 10: Peça publicitária do laxante Lacto Purga, publicada pelo Desencannes 109

Figura 11: Peça publicitária do Guaraná Antarctica, publicada pelo Desencannes 117

Figura 12: Peça publicitária da Coca-Cola, publicada pelo Desencannes 129

Figura 13: Peça publicitária do preservativo Prudence, publicada pelo Desencannes 139

Figura 14: Peça publicitária da massa Barilla, publicada pelo Desencannes 148

Figura 15: Peça publicitária do leite condensado Itambé, publicada pelo Desencannes 158

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SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO E JUSTIFICATIVA DO TRABALHO 13

1.1 Objetivos 16

1.2 Hipóteses 18

2 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE 23

2.1 Constituição do Corpus 23

2.2 Procedimentos de Análise 24

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 28

3.1 Análise Semiolinguística do Discurso – Conceituação 28

3.2 O Processo de Semiotização do Mundo 29

3.3 O Ato de Linguagem e o Contrato de Comunicação 31

3.4 Sujeitos do Ato de Linguagem e suas identidades e competências 33

3.5 Gêneros Textuais, Visadas Discursivas e Modos de Organização do

Discurso

41

4 A TRILOGIA ARISTOTÉLICA: O ETHOS, O LOGOS E O PATHOS 58

5 PERSUASÃO: A PUBLICIDADE QUE VENDE 80

6 AMOR: HUMOR 100

7 ANÁLISE DO CORPUS 120

7.1 Desencannes: a publicidade que não vende 120

7.1.1 Tomando uma Coca-Cola com o Desencannes 129

7.1.2 Prudence: o trabalho é nosso – do Desencannes – e o prazer é

seu.

139

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7.1.3 Barilla: onde tem fusilli, tem Itália 148

7.1.4 Ei, moça, você prefere o Itambé? 158

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS 169

9 REFERÊNCIAS 174

ANEXOS 177

RESUMO 178

ABSTRACT 179

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1 Apresentação e justificativa do trabalho

A partir do escopo da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, desenvolvida

por Patrick Charaudeau, desde a década de 1980, o presente trabalho pretende discutir a

maneira pela qual as publicidades às avessas (MONNERAT, 2003)1, criadas pelo site

Desencannes, transgridem o Contrato de Comunicação firmado, de uma maneira geral, entre

os protagonistas do ato de linguagem quando estes produzem e recebem publicidades

tradicionais. É o caso, por exemplo, de propagandas em que não há alusão ao nome da marca

ou a presença de um slogan que represente um produto, ou é o caso de propagandas que

chocam os leitores, tornando-os adversários do que está sendo veiculado pela peça em questão

ou, ainda, é o caso de propagandas que denigrem os produtos que anunciam, em vez de

exaltá-los.

As propagandas desencannadas tornaram-se objetos de análise justamente por serem,

possivelmente, transgressões às propagandas de nosso dia a dia, quebrando paradigmas até

então imutáveis, como é o caso de uma propaganda responder, diretamente, à outra de seu

concorrente, no Brasil, ou falar mal do produto que pretende vender. Logo, mais do que

discutir uma peça publicitária ou outra, tem-se por finalidade, nesse trabalho, o estudo do

próprio fazer publicitário, haja vista que o discurso empreendido por publicistas acaba

induzindo seus destinatários à compra, muitas vezes, desnecessária, de determinados produtos

que se tornam objetos de valor a serem alcançados de qualquer maneira, já que, na sociedade

atual de consumo, a tônica do ter parece prevalecer em relação à do ser.

Os sujeitos, sociais e discursivos, implicados pelo próprio ato de linguagem assumem

um papel de destaque dentro da presente análise, posto que são eles, na instância da produção,

que veiculam o discurso desencannado, assim como são eles que, na instância da recepção,

precisam perceber que estão diante de peças humorísticas que trazem para o rés do chão temas

tabu ou, ainda, causam estranhamento em seus leitores a partir do momento em que

subvertem o contrato publicitário tradicional.

São esses mesmos sujeitos que construirão para si e para o outro, com quem interagem

dentro da atividade linguageira, uma imagem, entendida, aqui, como sendo o conceito de

1 Apesar de não mencionar a nomenclatura publicidade às avessas, foi a partir do título do livro de Rosane

Monnerat (2003) - A publicidade pelo avesso - propaganda e publicidade, ideologias e mitos e a expressão da

ideia – o processo de criação da palavra publicitária – que tal denominação surgiu.

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ethos, que pode ou não coincidir com a imagem real, que possuem os parceiros do ato de

linguagem, no circuito externo ao texto. O eu comunicante, por meio do eu enunciador,

tentará parecer, por exemplo, mais desencanado e descolado que os publicistas do mundo real,

haja vista que produzirá peças humorísticas capazes de discutir e até mesmo de (des)construir

o fazer publicitário em geral.

Com a transgressão do Contrato de Comunicação publicitário, a visada de efeito, ou

seja, aquela que pretende causar um efeito patêmico em seu destinatário, é elencada como

sendo a que norteará toda a troca linguageira, já que o objetivo primeiro do Desencannes é

fazer seu leitor se chocar e/ou rir, diferente do objetivo primordial das propagandas

tradicionais, que é fazer o leitor adquirir determinado produto, ou melhor, fazer com que o

leitor adquira determinada marca, que nomeia e faz existir, no mundo, determinado produto.

Vale lembrar que a visada de incitação, muitas vezes, está por detrás da de efeito, já que, em

algumas publicidades desencannadas, existirá a estimulação, ainda que indireta, da venda de

determinado produto.

Os modos de organização do discurso estão presentes no gênero textual em questão de

maneira diversa daquela como estão presentes nas propagandas do mundo real: não há uma

modalização alocutiva no modo enunciativo, já que implicar o sujeito na troca comunicativa

não é a principal escolha do referido discurso; entretanto, via de regra, essas peças

publicitárias farão uso, de forma predominante, do modo argumentativo, pois, como todo e

qualquer discurso, visam a persuadir seu leitor acerca do está sendo dito, afinal, querem

convencê-lo, por exemplo, a responder não, não pode à pergunta Só tem Pepsi, pode ser?

É, então, a partir da realização do Processo de Semiotização do mundo que se cria uma

nova configuração de mundo onde o discurso enviesado de uma publicidade às avessas pode

ter voz e vez, seja para relativizar a seriedade de todo o discurso publicitário, seja para trazer à

superfície do texto temas tabus, seja para reacender discussões inflamadas sobre a escolha de

uma marca em detrimento da outra, seja para denegrir um produto.

O sujeito, por sua vez, será capaz de compreender todos os implícitos que esse

discurso veicula por possuir competências linguísticas e comunicacionais que o tornam apto a

perceber que está, por exemplo, diante de uma publicidade que não quer, necessariamente,

vender um produto, mas que quer fazer escárnio e rir de si mesma e até mesmo do outro,

mostrando que o importante, dentro desse universo glamoroso da publicidade, é se divertir

com aquilo que está sendo construído no e pelo discurso.

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Torna-se importante esclarecer que o sujeito enunciador do Desencannes, ainda que

crie publicidades fictícias, muitas vezes, faz uso de estratégias de patemização para tornar seu

destinatário cúmplice do que está sendo dito e não adversário. Esse sujeito enunciador

pretende, portanto, engajar seu destinatário num comportamento reacional, quer seja para

fazê-lo rir, quer seja para fazê-lo “comprar” determinado produto, quer seja para fazê-lo

“desistir de uma compra”. Como as emoções inscrevem-se numa lógica de auto-

representação, o destinatário só fará uso de produtos que lhe conferem um status satisfatório,

posto que a escolha dirá mais sobre ele mesmo do que sobre o próprio produto ou sobre a

marca desse produto que foi escolhido.

Obviamente, só se pôde chegar ao conceito de publicidade às avessas, uma vez que as

publicidades canônicas nos eram velhas conhecidas. Por esse motivo, foi necessário estudá-las

mais detalhadamente, a fim de se descobrir quais eram suas características, peculiaridades,

normas, comportamentos, enfim, seu modus operandi para que, então, o presente trabalho

fosse capaz de analisar até que ponto as peças do Desencannes mimetizavam as estratégias de

captação empreendidas pela publicidade tradicional, até que ponto rompiam com essas

estratégias e até que ponto eram capazes de subvertê-las.

Já que se falou em estratégias de captação, torna-se forçoso afirmar que o humor

talvez seja a maior estratégia de captação posta em prática pelos sujeitos desencannados,

afinal, a finalidade primeira dessas propagandas é fazer o outro rir e/ou se chocar com o

discurso subversivo com o qual se depara. É por meio do riso que o destinatário parece se

envolver com os anúncios do Desencannes, tornando-se, dessa maneira, cúmplice do que está

sendo dito e não adversário; ou seja, o destinatário precisa, também ele, ser desencannado

para se tornar capaz de rir de uma publicidade às avessas.

Pensando, agora, nos capítulos que compõem o presente trabalho, pode-se afirmar que

o primeiro trata da apresentação e da justificativa do referido trabalho, bem como de seus

objetivos e hipóteses; o segundo apresentará os procedimentos de análise, assim como falará

da maneira como o corpus é constituído; já no terceiro capítulo, proceder-se-á à

fundamentação teórica para que as peças publicitárias possam ser analisadas, fazendo uso de

alguns conceitos da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, como é o caso da própria

definição de Semiolinguística, de Processo de Semiotização do Mundo, de Contrato de

Comunicação, de Sujeitos do Ato de Linguagem e suas respectivas identidades e

competências e, por fim, de Visadas Discursivas e Modos de Organização do Discurso.

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O quarto capítulo, por sua vez, discutirá das noções de ethos e de pathos, já que esses

são conceitos de fundamental importância para a realização do estudo em questão; o quinto

capítulo referir-se-á às peculiaridades do discurso publicitário canônico, destacando suas

estratégias e seu próprio fazer textual e discursivo; o sexto capítulo explorará as noções de

humor trazidas por grandes teóricos, como é o caso, por exemplo, de Bergson (2001), Freud

(1996) e Bakhtin (2013); o sétimo capítulo, a seu turno, tratará da análise propriamente dita

do corpus, que, nesse caso, é composto por quatro publicidades às avessas; o oitavo capítulo

diz respeito às considerações finais obtidas a partir do trabalho em questão; e o nono capítulo

mostrará as referências de todo o material utilizado para a realização dessa pesquisa.

Diante do exposto, justifica-se a elaboração do presente trabalho com o objetivo de se

aprofundar o estudo de determinadas questões, propondo uma nova maneira de se enxergar a

publicidade, já que a própria publicidade traz essa proposta a seus leitores mais

desencannados: publicidade “boa de verdade” é aquela que faz seu leitor rir, questionar o

mundo onde vive – e vivem também suas crenças, ideologias e conhecimentos de mundo – e

refletir sobre ele.

1.1 Objetivos

O presente trabalho tem por objetivo os seguintes tópicos:

– Objetivo Geral

Tem-se por objetivo geral a análise dos diferentes efeitos de sentido produzidos

quando ocorre a transgressão do Contrato de Comunicação publicitário, haja vista que esse

gênero discursivo é apresentado de maneira diferente à que os leitores estão acostumados a

ver, já que houve uma espécie de subversão de um dos componentes da situação de

comunicação, a saber, a visada.

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– Objetivos Específicos

Mostrar como o site Desencannes empreende seu processo de Semiotização do

Mundo, criando um mundo novo onde é possível fazer com que a publicidade ria de si

mesma;

Mostrar como esse mundo novo, significado, serve como objeto de troca dentro da

atividade linguageira;

Mostrar como se dão as relações entre os sujeitos sociais e discursivos do ato de

linguagem empreendido pelo Desencannes;

Estabelecer que nem sempre sujeitos sociais e sujeitos discursivos são simétricos;

Demonstrar a maneira como a ruptura do Contrato de Comunicação acaba por

possibilitar uma nova forma de apresentação dos textos de publicidade aos leitores.

Mostrar como essas estratégias desencannadas, usadas esse gênero discursivo, são

sobredeterminadas pela mudança da visada, elencada, muitas vezes, como principal

pelo discurso desencannado;

Demonstrar quais são os modos de organização do discurso presentes nas peças

publicitárias veiculadas pelo Desencannes.

Esclarecer a maneira como o ethos, tanto dos sujeitos da instância da produção, quanto

dos da instância da recepção, influencia na credibilidade e na legitimidade de tais

sujeitos;

Estabelecer a maneira como se dá o efeito patêmico produzido pelo discurso do site

Desencannes;

Demonstrar quais são as estratégias publicitárias elencadas por esse discurso, assim

como demonstrar quais foram aquelas deixadas de lado e quais foram as subvertidas

pelo sujeito enunciador desencannado.

Mostrar como e por que as publicidades desencannadas são diferentes das

publicidades canônicas de nosso dia a dia.

Estabelecer quais são os mecanismos linguísticos e discursivos usados no discurso

desencannado para produzir novos possíveis efeitos de sentido.

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Estabelecer quais são os imaginários sociodiscursivos presentes em algumas

publicidades desencannadas e de que forma eles contribuem para criar novos

possíveis efeitos de sentidos.

Mostrar de que maneira o humor é produzido nas peças publicitárias do Desencannes.

Ressaltar a importância do humor como estratégia de captação das publicidades às

avessas aqui analisadas.

1.2 Hipóteses

É possível pensar que a transgressão do Contrato de Comunicação publicitário parece

ser o grande diferencial das peças veiculadas pelo site Desencannes, já que, a partir dessa

subversão, o que seriam propagandas possivelmente se tornarão peças humorísticas, visto que

há uma espécie de predileção pela visada de efeito como condutora de todo o discurso, em vez

de se destacar a visada de incitação, posto que o objetivo de tais propagandas parece não ser,

necessariamente, vender um produto, mas sim fazer seu leitor rir ou se chocar diante do

discurso desencannado.

Os sujeitos e as imagens que constroem de si e de seus parceiros também parecem ter

um papel de destaque dentro do presente trabalho, haja vista que são eles os responsáveis por

semiotizar um novo mundo, transformando esse mundo a significar em mundo significado por

meio da palavra, onde é possível a existência de um discurso publicitário que ria de si mesmo

e que choque seu leitor com aquilo que cria.

Os sujeitos, sejam sociais, sejam discursivos, parecem ser os responsáveis pelos

diferentes efeitos de sentido que tais textos possam vir a produzir: se os sujeitos interpretantes

coincidirem, por exemplo, com o perfil idealizado pelo sujeito comunicante, entenderão as

peças como sendo humorísticas, caso contrário, poderão ficar chocados com o que é veiculado

pelo site do Desencannes e, possivelmente, tornar-se-ão adversários de tal discurso em vez de

cúmplices.

Dessa forma, é possível pensar que o ethos, entendido como imagem de si e imagem

do outro, criada pelos sujeitos do ato de linguagem, pode vir a ser determinante na produção

de sentidos do discurso desencannado, haja vista que é, justamente, essa imagem de si e do

outro que possibilitará a existência, por exemplo, de credibilidade e legitimidade entre os

parceiros e os protagonistas da cena enunciativa.

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Os efeitos patêmicos, provocados pelo discurso do Desencannes, parecem ter como

objetivo a captação do leitor desse veículo de comunicação, fazendo-o enxergar não só a

necessidade de rir diante de tal discurso, como também a de refletir e de questionar o que é

trazido por essas peças humorísticas e, também, perceber tudo aquilo que elas deixam

implícito, ou melhor, deixam a cargo do leitor que, simétrico ao idealizado, conseguirá

decifrar esses não-ditos.

A publicidade desencannada tende a fazer uso de estratégias argumentativas típicas da

publicidade canônica, seja mimetizando-as, seja repelindo-as, seja transgredindo-as, o que

fica patente se se observar os exemplos destacados abaixo:

Figura 1 – Peça publicitária do preservativo Jontex, publicada pelo Desencannes.

Na figura 1, pode-se perceber a utilização de uma das estratégias típicas da

publicidade canônica, que é a de reforçar somente os aspectos positivos do produto que

anuncia, conforme ocorre com a publicidade fictícia da marca de preservativos Jontex. Como

se sabe, todo e qualquer método contraceptivo possui um percentual de falhas, de que, a

princípio, nenhuma marca de camisinhas está livre, no entanto, os da marca Jontex estão,

afinal, a camisinha Jontex Ultra não estoura nem a pau, sendo, portanto, a melhor disponível

no mercado.

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Figura 2 – Peça publicitária da Sega, publicada pelo Desencannes.

A peça publicitária destacada acaba por repelir um dos princípios básicos da

publicidade tradicional, a saber, o de que o consumidor não pode se sentir ofendido com a

publicidade empreendida por determinada marca, afinal, se isso acontecer, corre-se o risco de

se perder o cliente, pois este, em vez de se tornar cúmplice do que diz o enunciador, torna-se

adversário.

Nos dias de hoje, em que há uma preocupação ainda mais pungente com relação às

pessoas com necessidades especiais, nesse caso, os deficientes visuais, não há como uma

marca de videogames, como a Segga, permitir que seja veiculada, em seu nome, uma

propaganda que agrida o consumidor, haja vista que como garota-propaganda da marca tem-

se uma mulher cega, segurando uma bengala para conseguir andar, com menos dificuldade,

pelas ruas de determinada cidade. Logo, é apenas dentro do universo do Desencannes que tal

peça parece poder existir. Além disso, em um universo onde a linguagem conotativa impera, o

uso da linguagem denotativa, como no caso da palavra segga – embora seguindo uma

convenção de escrita não-padrão – gera estranhamento, além de choque por parte do público

leitor.

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Figura 3 – Peça publicitária da Anvisa, publicada pelo Desencannes.

A figura 3 também faz parte do rol de publicidades desencannadas que transgridem as

estratégias escolhidas pela publicidade tradicional para fazer parte de seu discurso, a partir do

momento em que faz parecer que o trabalho sério da Anvisa – Agência Nacional de Vigilância

Sanitária – é apenas fechar estabelecimentos, sejam eles quais forem, e não somente fechar

aqueles locais que, por alguma razão, desrespeitam as normas de saúde pública e põem em

risco a vida de seus frequentadores: é como se o trabalho dos agentes da Anvisa fosse impedir

que os estabelecimentos continuassem funcionando, sem se preocupar se, de fato, eles estão

cumprindo regras e normas pré-estabelecidas.

Pode-se pensar, então, que as estratégias argumentativas publicitárias, assim como os

paradigmas desse discurso, podem vir a ser adotados, repelidos ou transgredidos, a fim de que

se crie um discurso subversivo, capaz de questionar o próprio fazer publicitário e toda a

necessidade exagerada de consumo que a publicidade parece trazer consigo, principalmente

no mundo capitalista no qual estamos inseridos, onde o status conferido a um produto é,

possivelmente, transferido a quem o adquire.

Os imaginários sociosdiscursivos parecem, também, ter grande importância dentro do

discurso desencannado, haja vista que é possível que, nessas peças, ressoem imagens que são

construtos simbólicos da realidade, empreendidos por um grupo social, dentro de um domínio

de prática, também ela social. Assim sendo, os imaginários parecem estar presentes nas peças

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publicitárias desencannadas, como dito, por meio de imagens mentais presentes no discurso,

de maneira explícita ou implícita.

Provavelmente, a produção de humor é a principal estratégia de captação posta em

prática pelo Desencannes, afinal, o sujeito enunciador desencannado parece querer cooptar

seu destinatário para o que diz por meio do riso, possivelmente, desconstruindo, dessa

maneira, a seriedade típica do discurso publicitário canônico que, via de regra, pretende fazer

com que seu destinatário compre um produto e não que ria do próprio fazer publicitário ou da

marca a qual propaga, por exemplo.

Com as hipóteses estabelecidas, torna-se imprescindível estipular os procedimentos

metodológicos os quais serão usados ao longo do presente trabalho.

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2 Procedimentos Metodológicos:

A partir de agora, dar-se-á início à descrição do corpus que compõe o presente

trabalho, bem como dos procedimentos teórico-metodológicos que serão utilizados para que o

referido corpus seja analisado.

2.1 Constituição do corpus

O site Desencannes, responsável pela criação e veiculação das peças publicitárias que

compõem o corpus deste trabalho, tem por finalidade criar peças publicitárias que

desconstruam o universo do sério no qual a publicidade está inserida, afinal, no site em

questão, o importante é fazer o leitor rir, imaginando o absurdo que seria a existência de

propagandas como as que são produzidas pelos sujeitos enunciadores do Desencannes.

O grande diferencial desse tipo de discurso é fazer com que a publicidade ria de si

mesma, de sua seriedade: não importa mais se tal peça publicitária será eficaz no sentido de

vender um determinado produto ou uma determinada ideia, o que estabelece um juízo de valor

positivo acerca de cada publicidade é o quanto ela fará com que seus destinatários riam e se

divirtam, uma vez que publicidade “boa de verdade” – pelo menos para o Desencannes – é

aquela que traz para o rés do chão um discurso tão sério e crível, como é o caso do

publicitário.

O próprio nome do site faz uma alusão a um verbo da Língua Portuguesa, desencanar,

que traz em seu significado o objetivo do grupo criador de tal site: relaxar, ficar tranquilo,

ficar relax. É claro que o universo glamoroso da mídia, bem típico da publicidade e daqueles

que a realizam, não seria deixado de lado: é lembrado pela outra parte que compõe o nome do

site, a famosa cidade francesa de Cannes, onde ocorre um dos principais festivais de cinema e

de publicidade do mundo, o Festival de Cannes. Assim sendo, é possível estabelecer que o

próprio nome do site traz consigo a ideia de deixar de lado o luxo e a seriedade do discurso

publicitário, preocupando-se apenas em despreocupar-se.

A ideia para se criar um site como o Desencannes surgiu no e por causa do próprio dia

a dia de seus sujeitos comunicantes. Explica-se: esses mesmos sujeitos comunicantes, por

serem publicitários, participavam de diversas reuniões de criação, em que, segundo eles,

surgiam os mais estapafúrdios insights que nunca poderiam ser veiculados enquanto

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propaganda, uma vez que feriam alguns dos princípios básicos que norteiam esse gênero,

como é o caso de nunca ofender um consumidor em potencial.

Mas, como essas ideias acabavam divertindo quem as ouvia, o empreendimento de um

site como o Desencannes parecia perfeitamente viável. E foi assim que surgiu um projeto

ambicioso de veicular, em um site de humor, na internet, todas aquelas propagandas

impublicáveis surgidas das mentes criativas de publicitários que não só eram capazes de fazer

publicidade canônica, como também de fazer publicidade às avessas.

O site Desencannes, então, justamente por desconstruir o discurso publicitário e toda

sua rigidez, é capaz de veicular aquelas peças impublicáveis que aparecem nas mentes mais

criativas das reuniões – ou breafings, no jargão publicitário – das agências de criação. Dito de

outro modo: o Desencannes, como mencionado em seu manifesto, é a propaganda que não

existe. Imaginária. Engraçada. Absurda. Sem compromisso. A publicidade fazendo humor de

si mesma. Para brincar e se divertir (FONTE: Anexo I).

2.2 Procedimentos de Análise

Pensando, justamente, na necessidade de analisar claramente nosso objeto de trabalho,

elencaram-se quatro peças publicitárias para fazer parte do corpus, transformando-as em

objeto de estudo. A partir de tal escolha, definiu-se como base teórico-metodológica a Teoria

Semiolinguística de Análise do Discurso, cunhada por Patrick Charaudeau, principalmente no

que tange aos conceitos de sujeitos sociais e discursivos, Processo de Semiotização do

Mundo, Contrato de Comunicação e Competências Discursivas, os quais dialogam, de

maneira eficaz, com o corpus escolhido, bem como com a proposta do trabalho em questão.

Em um segundo momento, numa tentativa de enquadrar o referido corpus em um

gênero textual, utilizaram-se os estudos acerca desse tópico, realizados, também, por

Charaudeau, agregando, à noção de gênero textual, a de visadas e até mesmo dos modos de

organização do discurso. Para falar sobre gêneros textuais, tornou-se necessário recorrer a

Marcuschi (2002; 2008). Em seguida, procedeu-se a um estudo detalhado dos lugares de

argumentação que um discurso ocupa ou daquilo que se chamou de trilogia aristotélica: ethos,

logos e pathos, trazendo, como contribuições a essas noções os estudos de Maingueneau

(1993; 2008; 2013), Eggs (2013) e do próprio Charaudeau (2013).

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Depois disso, tornou-se necessário alargar as noções de publicidade, comparando-as

com as publicidade às avessas, assim como foi necessário tratar das estratégias e

particularidades do discurso publicitário, usando, para isso, as pesquisas de diversos autores,

principalmente de Nelly de Carvalho (1996), Pinto (1997), Vestergaard/Schroder (2000) e

(Guimarães, 2000; 2003). Esse último foi escolhido para tratar das cores e dos aspectos

intrínsecos aos textos não-verbais, tão comuns no universo publicitário.

Tornou-se necessário falar, ainda, daquilo que Charaudeau (2010b) chama de dupla

dimensão do fenômeno linguageiro que tem, justamente, a ver com a expectativa múltipla do

ato de linguagem, já que sua compreensão/interpretação depende do ponto de vista dos

sujeitos envolvidos na atividade linguageira. Tal expectativa múltipla é o que possibilita a

produção de diversos possíveis efeitos de sentido dentro do ato de linguagem, ou seja, tem a

ver com a maneira como tais sujeitos recebem os discursos produzidos, que podem ser

entendidos apenas pelo aspecto verbal ou literal, ou se levando em conta seu possível sentido

implícito.

Assim sendo, é necessário estabelecer que o ato de linguagem é, ao mesmo tempo,

explícito e implícito, afinal, para cada enunciado, corresponde um significado que se restringe

apenas ao que está sendo dito, mas que corresponde, também, a uma infinidade de outros

possíveis efeitos de sentido que preveem as circunstâncias de produção de um discurso,

principalmente a intencionalidade do sujeito falante.

Portanto, sentido de língua e sentido de discurso relacionam-se à dupla dimensão do

ato linguageiro, a saber, o explícito e o implícito, que os enunciados carregam consigo logo

assim que são produzidos. Sentido de língua, então, diz respeito ao explícito da linguagem,

àquilo que está sendo, de fato, dito: o literal que os enunciados trazem em si. Por outro lado,

sentido de discurso significa, justamente, prestar atenção nos implícitos, naquilo que

comumente se diz que algum sujeito quis dizer.

Pensando, justamente, nos conteúdos implícitos que um texto traz consigo, é possível

afirmar que com o discurso desencannado não é diferente, já que, muitas vezes, seu sujeito

enunciador apropria-se de inferências, pressupostos e ambiguidades para construir os

possíveis efeitos de sentido de seu texto. As inferências ou subentendidos são aquilo que os

enunciados sugerem, mas não dizem explicitamente, cabendo, ao leitor, por meio de um

processo mental, construir novas proposições a partir de outras já dadas, criando, assim,

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relações não explícitas entre elementos que ele só consegue estabelecer por meio de seus

conhecimentos de mundo, deduzindo o que foi apenas dito nas entrelinhas.

Os pressupostos, por sua vez, são ideias que não são expressas de maneira explícita,

mas que o leitor consegue perceber por causa de certas palavras ou expressões, contidas nos

enunciados. Logo, é possível afirmar que os pressupostos são marcados linguisticamente, ao

contrário das inferências. Os pressupostos precisam ser verdadeiros ou, pelo menos, assim

considerados pelos sujeitos do ato de linguagem, uma vez que, a partir deles, constroem-se

informações explícitas. Como exemplo, podemos citar o enunciado o Rio de Janeiro continua

lindo, em que o verbo continuar é a marca linguística que diz que o Rio de Janeiro já era

lindo. Assim sendo, é possível dizer que o que está posto é que o Rio de Janeiro continua

lindo, mas o que está pressuposto é que ele sempre foi lindo.

Ambiguidades, a seu turno, podem ser definidas como a propriedade que possuem

certos enunciados de poderem ser interpretados de diferentes formas, haja vista que parecem

pouco claros, o que pode ocorrer por causa da intenção do enunciador, ou não. A ambiguidade

pode ser, ainda, estrutural ou polissêmica. Se for polissêmica, as palavras apresentarão mais

de um sentido e poderão ser substituídas por outras ou poderão ser explicadas pelo contexto e,

então, a ambiguidade será resolvida; por outro lado, se ela for estrutural, resultará de

problemas de construção na estrutura do enunciado, decorrente de falhas e brechas no sistema

linguístico e poderá ser corrigida com a reescrita desse enunciado.

Cabe, ainda, explicitar o conceito de interdiscursividade, de que fala Fiorin (2006),

posto que algumas peças, aqui analisadas, fazem uso do interdiscurso. Por interdiscurso,

entende-se a capacidade que um texto possui de dialogar com outro, por meio da incorporação

de temas, ideias e figuras, sob forma de alusão ou citação, que podem ser negadas ou aceitas

pelo segundo texto.

O presente trabalho recorrerá, mais uma vez, a Charaudeau (2009) para poder discutir

a noção de imaginário sociodiscursivo e mostrar como os referidos imaginários povoam as

propagandas desencannadas, demonstrando, dessa forma, quais são as diferentes

representações sociais que subjazem nesses discursos. Muitas vezes, essas representações e,

consequentemente, esses imaginários são tão arraigados na sociedade que se tornam

estereótipos. Por esse motivo, adotamos as contribuições de Amossy e Pierrot (2004) e Férres

(1998) para conseguirmos mostrar a maneira pela qual constroem-se os estereótipos e o

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quanto eles são, muitas vezes, reducionistas no que concerne à realidade, ainda que sejam

necessários para ajudar o indivíduo a entender o mundo que o cerca.

Por fim, foram utilizadas as diferentes noções de humor, trazidas por Freud (1996),

Bergson (2001), Bakhtin (2013) e Almeida (1999), para explicar os mecanismos linguísticos e

discursivos de que faz uso o discurso desencannado para produzir possíveis efeitos de sentido

cômicos, diversos daqueles produzidos pela publicidade canônica, já que a principal

finalidade das peças publicitárias fictícias é fazer seu leitor rir, se chocar e/ou refletir sobre o

que é dito.

Haja vista que o suporte teórico a que se ancoraram as análises foi delimitado, cabe-nos,

nesse momento, passar à fundamentação teórica do presente trabalho.

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3. Fundamentação Teórica

Como bem se sabe, antes de iniciar a análise do corpus escolhido, torna-se necessário

proceder à fundamentação teórica que guiará todo o trabalho que será empreendido.

3.1 – Análise Semiolinguística do Discurso – Conceituação

O presente trabalho basear-se-á nos conceitos e pressupostos da Teoria

Semiolinguística de Análise do Discurso, criada por Patrick Charaudeau, a partir da década de

1980. Trata-se de uma teoria semiolinguística, uma vez que, como o próprio termo semiosis

sugere, há uma construção de forma-sentido do discurso, empreendida por um sujeito

intencional, que é, ao mesmo tempo, senhor de seu próprio dizer, mas influenciado pela

sociedade na qual vive. Já o termo linguística é usado para designar o material de que faz uso

tal análise, a saber, o das línguas naturais, as quais, por meio da atividade linguageira,

determinam o processo de semiotização do mundo. Dito de outro modo, nas palavras do

próprio Charaudeau (1999):

Eis porque a posição que tomamos na análise do discurso pode ser chamada de

semiolinguística. Semio-, de “semiosis”, evocando o fato de que a construção do

sentido e sua configuração se fazem através de uma relação forma-sentido (em

diferentes sistemas semiológicos), sob a responsabilidade de um sujeito

intencional, com um projeto de influência social, num determinado quadro de

ação; linguística para destacar que a matéria principal da forma em questão – a

das línguas naturais (...) por sua dupla articulação, pela particularidade

combinatória de suas unidades (sintagmático-paradigmática em vários níveis:

palavra, frase, texto), impõe um procedimento de semiotização do mundo

diferentes do das outras linguagens. (CHARAUDEAU, 1999: p. 13)

Torna-se necessário, ainda, lembrar que a análise semiolinguística do discurso é

semiótica, haja vista que se interessa por um objeto, nesse caso, as atividades linguageiras,

que apenas se constitui na alteridade, visto que depende da interação entre dois sujeitos da

linguagem que procuram extrair do processo comunicativo, do qual fazem parte, possíveis

significados não só para aquilo que está sendo dito/ouvido, como também para o mundo onde

se vive. Semiótica, então, é a relação que existe entre a construção do sentido e a construção

das formas (CHARAUDEAU, 2012).

A atividade linguageira é, também, como dito, um construto de forma-sentido, a partir

do qual se dá o processo de semiotização do mundo, de que falaremos agora:

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3.2 O processo de semiotização do mundo

Tendo por base, justamente, o construto forma-sentido em que se inscreve o discurso,

é possível pensar que o mundo só existe na e pela linguagem. Por esse motivo, é possível

estabelecer que o processo de semiotização do mundo é responsável pela construção psico-

socio-linguageira do sentido, a qual se realiza através da intervenção de um sujeito, sendo,

ele próprio, psico-sócio-linguageiro (CHARADEAU, 2005: p. 11). Tal processo ocorre em

duas frentes: a primeira é o chamado processo de transformação, no qual o “mundo a

significar” passa a ser um “mundo significado” a partir da ação de um sujeito falante. Dessa

forma, pode-se perceber que o mundo extralinguístico só ganha significado no momento em

que o sujeito falante lhe atribui o sentido que mais lhe aprouver. Já a segunda frente é o

chamado processo de transação, em que o “mundo significado” torna-se objeto de troca com

outro sujeito, que desempenha o papel de destinatário, dentro desse processo comunicacional.

É mister ressaltar que, embora articulados, o processo de transação regula o de

transformação.

O processo de transformação do mundo compreende quatro tipos de operação que são

a identificação, haja vista não ser possível falar de um mundo sem antes nomear e identificar

o que dele faz parte; a qualificação, que, por sua vez, descreve os seres que fazem parte do

mundo em questão; a ação, que é a responsável por designar as ações realizadas pelos seres

desse mundo transformado; e, ainda, a causação, visto que os seres que existem nesse mundo

transformado são nele descritos e agem por causa de algum motivo. Assim sendo, um

enunciado deve, por excelência, ser marcado pela identificação, dada, grosso modo, pelos

substantivos; pela qualificação, função, na maioria das vezes, exercida pelos adjetivos; pela

ação, representada pelos verbos; e pela causação, indicada, predominantemente, pelos

marcadores circunstanciais de causa. Logo, o processo de transformação do mundo parece

existir apenas dentro de um ambiente estritamente linguístico, ao passo que o processo de

transação empreende fenômenos do mundo biopsicossocial, como se verá a seguir.

O processo de transação, do mesmo modo, também se realiza conforme quatro

princípios básicos, os quais são o da alteridade, pertinência, influência e, por último,

regulação. Por princípio de alteridade entende-se, obviamente, a troca comunicativa entre

dois parceiros, os quais devem reconhecer a si próprios e ao outro como semelhantes e

diferentes: semelhantes, pois devem compartilhar saberes e motivações comuns; diferentes,

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pois um sujeito só descobre a si próprio em contato com a dessemelhança do outro. Assim,

segundo este princípio, cada um dos parceiros está engajado num processo recíproco (mas

não simétrico) de reconhecimento do outro, numa interação que o legitima enquanto tal – o

que é uma condição para que o ato de linguagem seja considerado válido. (CHARAUDEAU,

2005: p. 15).

O princípio de pertinência diz respeito à necessidade que os parceiros têm de

reconhecer os saberes que estão compartilhando, seja para aceitá-los, seja para repeli-los.

Deste modo, este princípio exige então que os atos de linguagem sejam apropriados (no

sentido de P. Grice) a seu contexto (no sentido de Sperber e Wilson) e, nós acrescentamos, à

sua finalidade (...) (CHARAUDEAU, 2005: p. 15).

Já o princípio de influência remete-nos ao fato de que todo sujeito, quando produz um

discurso, tem por objetivo primordial atingir seu parceiro a fim de fazer com que ele aja ou

que seja afetado emocionalmente ou, ainda, fazer com que siga suas ideias. Por consequência

do próprio processo comunicativo, o sujeito que recebe o discurso também está ciente das

intenções de seu, agora, interlocutor e pode escolher se se deixa seduzir, ou não, confirmando,

assim, a existência de uma finalidade intencional de todo ato de linguagem [que] se acha pois

inscrita no dispositivo sócio-linguageiro (CHARAUDEAU, 2005: p. 16).

Por fim, há o princípio da regulação, o qual está intimamente ligado ao da influência,

uma vez que toda influência pode gerar uma contra-influência. Para que a troca que existe no

ato da linguagem não termine em agressão física ou verbal, é necessário que os parceiros

saibam e façam uso da regulação, com o objetivo de determinar aquilo que pode, ou não, ser

dito sem que se cause nenhum desconforto ao outro. Para evitar quaisquer tipos de transtorno,

os parceiros fazem uso de estratégias no interior de um quadro situacional que [lhes]

assegura uma intercompreensão mínima, sem a qual a troca não é efetiva (CHARAUDEAU,

2005: p. 16). Ou seja, é por meio da regulação, com o uso de estratégias bem definidas que o

processo comunicativo, de fato, realiza-se, sem que haja nenhum atropelo.

Vale lembrar que os discursos produzidos não devem, necessariamente, limitar-se ao

processo de transformação, que torna o mundo extralinguístico um mundo significado por

meio da linguagem: devem, porém, ir além, apropriando-se do mundo significado pelas

atividades linguageiras e permitindo que este seja objeto de troca entre os parceiros do ato

comunicacional, afinal, a linguagem é, por excelência, meio de comunicação e diálogo entre

os indivíduos e – por que não dizer? – o motivo pelo qual esses mesmos indivíduos existem

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no mundo e se apropriam dele. Dessa forma, o mundo pode ser significado de diferentes

maneiras, se levarmos em conta as diferentes atividades linguageiras que os sujeitos

empreendem. Citamos, pois, Charaudeau (op. cit.): Assim como não é mais possível

contentar-se com as operações de transformação isoladamente, também é necessário

considerá-las no quadro situacional imposto pelo processo de transação, (...)

(CHARAUDEAU, 2005: p. 17)

Já que falamos de princípio de regulação, é necessário, por conta disso, estabelecer o

conceito de contrato de comunicação, visto que tal contrato, estabelecido entre os sujeitos do

ato de linguagem, noção que, também, será estendida a seguir, atém-se às regulações e às

possibilidades que a troca linguageira engendra.

3.3 O ato de linguagem e o Contrato de Comunicação

Como visto anteriormente, o Processo de Semiotização do Mundo é dividido em duas

etapas: o “mundo a significar” passa a ser um “mundo significado” por meio da atividade

linguageira e, consequentemente, vira objeto de troca entre os sujeitos do ato de linguagem. O

ato de linguagem, portanto, só se torna válido quando o processo de transação, de fato,

ocorre.

O ato de linguagem, por sua vez, parece estar condicionado a alguns fatores, como é o

caso da identidade dos sujeitos que o realizam, de suas intencionalidades e das proposições de

mundo que possuem. É possível dizer, também, que os atos de linguagem ocorrem, sempre,

em um determinado “aqui” e em um determinado “agora”, estando, desse modo, atrelados a

um tempo e a um espaço, dentro dos quais figuram o próprio ato de linguagem e seus

produtores, que carregam consigo – no discurso e fora dele – conhecimentos de mundo que

devem ser partilhados para que o ato aconteça.

Logo, é possível falar que o ato de linguagem, assim como o próprio processo de

transação, é efetuado sob uma espécie de “liberdade vigiada”, já que as intencionalidades de

seus sujeitos orientam a produção e a recepção de tal ato. Ou seja, todo ato de linguagem está

condicionado a uma situação de comunicação que comporta a intencionalidade dos parceiros

da troca, suas identidades e suas vivências no mundo extralinguístico, além de estar atrelado a

um momento e a um local, seja ele físico ou não.

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É essencial para que o ato de linguagem ocorra que seus parceiros reconheçam um ao

outro enquanto parceiros, creditando o tu, ao eu, o direito à fala, o que depende de suas

identidades sociais e também discursivas. É essencial, ainda, que os sujeitos possuam, em

comum, um mínimo de saberes que são colocados em jogo na própria troca linguageira. Isto

posto, diz-se que, levando em conta os princípios da regulação e influência, os parceiros

operam numa certa margem de manobra que lhes permite usar de estratégias para persuadir o

outro sobre aquilo que se diz, criando, assim, um espaço de restrição, que compreende as

condições mínimas às quais é necessário atender para que o ato de linguagem seja válido, e

um espaço de estratégias, que corresponde às escolhas possíveis à disposição dos sujeitos na

“mise-en-scene” do ato de linguagem (CHARAUDEAU, 2005: pp. 17-18).

É importante salientar, ainda, que o ato de linguagem realiza-se num duplo espaço de

significância: um que é exterior e outro que é interior ao texto, determinando, assim, a

existência de quatro sujeitos dentro do ato de linguagem: dois que são responsáveis pelo que

se chama de circuito externo e outros dois que figuram apenas dentro do circuito interno ao

texto. Sobre estes quatro sujeitos responsáveis pelo ato de linguagem falaremos a posteriori.

Finalmente, é possível definir o ato de linguagem como

(...) originário de uma situação concreta de troca, dependente de uma

intencionalidade, organizando-se ao mesmo tempo num espaço de restrições e

num espaço de estratégias, produzindo significações a partir da interdependência

de um espaço externo e de um espaço interno (...) (CHARAUDEAU. 2005: p. 18)

Todo e qualquer ato de fala, leia-se todo e qualquer discurso, está inserido em uma

situação de comunicação da qual depende intimamente para que seu interesse social seja

construído, afinal, os parceiros da troca linguageira precisam reconhecer-se enquanto tais e

precisam se reportar a um quadro de referência: os sujeitos sociais e discursivos acabam por

jogar o jogo de regulação das práticas sociais, adequando seu discurso e até a si mesmos às

convenções e normas dos comportamentos linguageiros, sem os quais a comunicação humana

não se efetuaria.

Pensando, pois, na situação de comunicação, é possível estabelecer que, quando se

trata das peças publicitárias do Desencannes, esta é de fundamental importância, haja vista

que seus sujeitos necessitam saber que estão diante de um site de humor que veicula

propagandas feitas para serem impublicáveis, pois quebram algum elemento prototípico do

Contrato de Comunicação vigente entre os sujeitos que produzem e recebem as publicidades

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canônicas, estabelecendo-se, assim, já que se está diante de uma nova situação de

comunicação, um novo Contrato.

Assim sendo, é possível pensar que o Contrato de Comunicação, do qual fala

Charaudeau (2012) é, justamente, esse quadro de referência ao qual se submetem os sujeitos

do ato de linguagem, havendo, entre eles, portanto, um acordo mútuo e prévio sem o qual não

existiria a troca comunicativa. Os sujeitos, então, lançam mão de estratégias calcadas na

intencionalidade destes e da própria troca, visto que todo ato de linguagem acontece tendo por

base um reconhecimento recíproco do quadro de referência ao qual se reportam.

Como se pôde perceber, não é possível falar em Processo de Semiotização do Mundo,

ato de linguagem e Contrato de Comunicação sem se falar de sujeitos. Por esse motivo, é de

fundamental importância que se fale um pouco mais sobre os indivíduos que compõem, não

só a cena enunciativa, como também fazem parte do mundo extralinguístico.

3.4 Sujeitos do ato de linguagem, suas identidades e suas competências

O sujeito, na concepção da Análise Semiolinguística do Discurso, cunhada por Patrick

Charaudeau, não é completamente assujeitado às ideologias dominantes, pelo contrário, é

capaz de ir contra elas, negando-as e transformando-as de acordo com suas crenças, com o

lugar que ocupa no mundo extralinguístico e com suas vivências, permeadas pela presença do

outro, que é seu interlocutor. Logo, o sujeito, conforme já dito, é produtor de seu próprio

discurso, o qual, por sua vez, é influenciado pelo universo biopsicossocial em que tal sujeito

vive. É mister ressaltar que a existência de um sujeito constrói-se por meio de sua identidade

discursiva, que, contudo, nada seria sem uma identidade social a partir da qual é definido e se

define (CHARAUDEAU, 2009)

Charaudeau (2009) considera os sujeitos tendo por base dois aspectos: primeiro, a

existência desse sujeito social no mundo extralinguístico, ou seja, aquele sujeito que possui

uma carteira de identificação e é um cidadão, que tem consciência de si mesmo, uma vez que

possui uma identidade; segundo, há o sujeito discursivo, capaz de se comunicar, de se

expressar e de se posicionar, seja em uma troca dialógica, na qual o locutor faz seu discurso

na presença do interlocutor, seja numa situação de monolocução, em que um dos

interlocutores não está presente e a troca é, por esse motivo, postergada.

Fica claro, então, que os seres humanos, de acordo com o princípio da alteridade, só

constituem a si mesmos na presença do outro. Explica-se: é apenas sendo diferente do outro

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que um dos parceiros da troca se reconhece enquanto indivíduo único que é, ou seja, é apenas

porque o outro existe que se tem consciência de si próprio.

Por outro lado, para haver a troca linguageira, é necessário que os parceiros partilhem

e compartilhem, ainda que de maneira parcial, motivações, intenções e objetivos. Enfim, os

parceiros devem legitimar a si mesmos e ao outro e, mais que isso: devem legitimar seu

próprio discurso e o discurso do outro por meio do que o Charaudeau (2009) chama de olhar

avaliador.

É possível, desse modo, pensar que a questão identitária é bastante complexa, porque

esta resulta, por um lado, de um entrecruzamento de olhares: o do sujeito comunicante que

não pode, por sua vez, evitar atribuir àquele com quem se fala uma identidade, levando em

conta seus próprios conceitos, crenças e valores, ao mesmo tempo em que seu interlocutor lhe

atribui uma identidade, levando, também, em conta seus próprios conhecimentos, crenças e

valores.

Pensando justamente nessa espécie de dupla identidade dos sujeitos, Charaudeau

separa-os dicotomicamente em sujeitos sociais e discursivos, relacionando-os aos circuitos

externo e interno em relação ao ato de linguagem. Por circuito externo, entende-se o fato de

que todo texto pertence ao mundo extralinguístico, onde os sujeitos sociais vivem e onde,

consequentemente, localiza-se a situação de comunicação em que tais textos figuram, levando

em conta, ainda, a incursão sócio-histórica destes.

Por outro lado, o circuito interno faz menção ao aspecto puramente linguístico do ato

de linguagem, limitando-se, deste modo, à superfície dos referidos atos, sem inscrevê-los,

contudo, em uma situação de comunicação e em um lugar sócio-histórico, o que cabe, como

dito, ao circuito externo ao ato.

Os sujeitos, para Charaudeau, ocupam um lugar de destaque nos discursos produzidos,

uma vez que são dotados de uma intencionalidade também discursiva e acabam por ser

responsáveis pela comunicação que empreendem, visto que a atividade linguageira é, por si

só, dialógica. Ou seja, para haver atividade linguageira, é fundamental a existência de, pelo

menos, dois sujeitos sociais que darão vozes a sujeitos discursivos os quais tratarão de se

comunicar numa troca linguageira que depende, necessariamente, de tais sujeitos para

produzir o(s) possível(is) efeito(s) de sentido.

Há, por conseguinte, quatro sujeitos responsáveis pela enunciação/coenunciação de

um texto: dois deles pertencem ao circuito interno e dois deles, por sua vez, pertencem ao

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circuito externo. Os sujeitos do circuito externo são aqueles seres de carne e osso que ocupam

um lugar no mundo e se personificam, dentro dos textos, em sujeitos discursivos. Já os

sujeitos discursivos são sujeitos imaginários que figuram apenas dentro da cena enunciativa

da qual fazem parte, sendo, portanto, vozes que estão no discurso, mas não no mundo

extralinguístico, pertencendo, desta forma, ao circuito interno ao texto.

É importante ressaltar que o sujeito social que fala, ou seja, o sujeito comunicante,

idealiza o sujeito com quem fala dentro do texto, a saber, o tu destinatário. O coprodutor do

discurso, o chamado tu interpretante, por sua vez, também acaba por idealizar o sujeito

enunciador. Torna-se, claro, deste modo, que as idealizações dos sujeitos acontecem no

circuito externo ao texto e podem ou não se concretizar dentro do circuito interno. Dito de

outro modo: o tu destinatário, idealizado pelo eu comunicante, pode, ou não, coincidir com o

tu interpretante. Do mesmo modo, o eu enunciador, idealizado pelo tu interpretante, pode

coincidir, ou não, com o eu comunicante.

A identidade, por sua vez, não é resultado de várias identidades globais, mas sim de

traços de identidades. A identidade social, sozinha, não é responsável por designar esses

traços de identidades aos quais nos referimos, entretanto, ela pode, sim, determinar alguns

comportamentos e designar alguns papéis sociais, como é o caso, por exemplo, do papel

social de mãe. Entretanto, o uso que se faz do discurso por meio das atividades linguageiras é

o que determinará as possíveis identidades discursivas que essa mãe irá assumir com relação

aos seus filhos: ela será inflexível, compreensiva, autoritária ou, ainda, controladora? Assim

sendo, a identidade de “ser” [da mãe] resultará da combinação de atributos de sua

identidade social com tal ou qual traço construído por seus atos de linguagem.

(CHARAUDEAU, 2009: p. 311).

É importante salientar que a identidade construída pelos atos de linguagem pode

reativar a identidade social de um indivíduo. É o que acontece, por exemplo, quando um chefe

é autoritário com seus subordinados e reitera sua posição de superioridade. Por outro lado, se

o chefe em questão mostrar-se compreensivo, nega sua posição de superioridade, colocando-

se em uma posição de igualdade para com seus empregados, contrariando, dessa maneira, o

estereótipo que lhe caberia por exercer determinada função dentro de uma empresa.

A identidade social não dá conta da totalidade de significação que o discurso

produzido por um indivíduo é capaz de gerar. Por outro lado, esse mesmo discurso não existe

de forma solitária, afinal, vem acompanhado da significação que a identidade social do

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indivíduo produz. Assim sendo, a identidade social necessita ser reiterada, reforçada,

recriada, ou, ao contrário, ocultada pelo comportamento linguageiro do sujeito falante, e a

identidade discursiva, para se construir, necessita de uma base de identidade social

(CHARAUDEAU, 2009: pp. 313-314).

A identidade social precisa, ainda, ser reconhecida e legitimada pelo outro, haja vista

que tal reconhecimento é o que confere a um indivíduo seu “direito à palavra”

(CHARAUDEAU, 2009: p. 314), ou seja, é necessário que alguém lhe diga que ele está

autorizado a agir da maneira como age, dependendo, obviamente, do seu local de fala e da

situação de comunicação da qual faz parte. Do mesmo modo, quando um indivíduo usa o

discurso de maneira que é, aos olhos do outro, inapropriada, seu direito de legitimidade é

posto em xeque, afinal, não lhe é permitido falar assim.

A identidade discursiva do falante é construída para responder à questão: “Estou aqui

para falar como?” e é por esse motivo que depende das estratégias de credibilidade e de

captação. A primeira está ligada à necessidade que o sujeito falante tem de que se acredite

naquilo que ele diz, tanto na verdade do discurso, quanto na sua sinceridade. Para ser levado a

sério e para fazer seu discurso crível, o sujeito falante pode adotar diferentes atitudes

discursivas, a saber, a da neutralidade, em que o sujeito apaga, no seu discurso, qualquer

resquício de julgamento; a do distanciamento, na qual o sujeito tende a adotar uma atitude fria

para analisar sem paixão o discurso em questão; e a do engajamento, em que o sujeito, opta

por tomar uma posição ao escolher quais argumentos irá usar a fim de convencer ou cooptar

seu interlocutor.

Nesse sentido, o processo de captação do outro, dentro da troca comunicativa, consiste

em, como o próprio nome sugere, captar o outro para aquilo que está sendo dito pelo sujeito

falante. Logo, a captação nada mais é do que persuadir o outro a adotar o discurso trazido por

aquele que detém a palavra. Trata-se, então, de fazer com que o sujeito interpretante partilhe

do discurso, das ideias e dos ideais defendidos por quem fala, evitando uma possível

discussão entre ambos. Vale ressaltar que os gêneros do domínio publicitário fazem, todos

eles, uso desse processo de captação, afinal, sem que o outro seja captado, não há compra.

As estratégias utilizadas pelo eu-falante para convencer/seduzir seu interlocutor são

adotadas quando aquele não está em uma posição de autoridade com relação a este, afinal, se

estivesse, uma ordem bastaria para que o processo de captação se realizasse sem nenhum

empecilho.

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O sujeito falante, por sua vez, pode, ainda, adotar atitudes discursivas diferentes das já

mencionadas, com relação ao seu interlocutor: pode ser polêmico, quando tenta antecipar as

possíveis objeções do outro, com o objetivo de eliminá-las; pode ser sedutor, quando propõe

ao seu interlocutor um processo de identificação ou rejeição, por meio de sua atividade

linguageira e pode, também, adotar a atitude de dramatização, quando tenta fazer com que seu

interlocutor sinta certas emoções para convencê-lo daquilo que quer.

Portanto, neste ponto do presente trabalho, já é possível falar em construção de

identidade discursiva. Citamos, pois, as palavras de Charadeau (2009):

Assim, a identidade discursiva se constrói com base nos modos de tomada da

palavra, na organização enunciativa do discurso e na manipulação dos

imaginários sociodiscursivos. Ao contrário da identidade social, a identidade

discursiva é sempre algo “a construir – em construção”. Resulta de escolhas do

sujeito, mas leva em conta, evidentemente, os fatores constituintes da identidade

social (CHARAUDEAU, 2009: p. 318).

É necessário, também, salientar que identidade social e discursiva não podem ser

trabalhadas fora da situação de comunicação, uma vez que é esta a responsável por

determinar, antecipadamente, a identidade social dos parceiros na atividade linguageira em

questão: dependendo do contexto comunicativo em que se encontra, o indivíduo pode ser

chefe, marido, pai ou filho e é a partir do seu lugar de fala, de sua identidade social que seu

discurso passará a ser estruturado. Além disso, a situação de comunicação também definirá

alguns traços da identidade discursiva do falante, dando, muitas vezes, instruções de como

esse falante deve comportar-se. Ao sujeito, restará a decisão de agir conforme as instruções ou

de mascará-las, subvertê-las ou transgredi-las. Portanto, é necessário considerar quais são as

características da identidade social de cada situação, bem como as instruções que são dadas

à identidade discursiva (CHARAUDEAU, 2009: p. 319).

Charaudeau, em texto de 2001, chama a atenção para o fato de que os sujeitos do ato

de linguagem, divididos em suas identidades social e discursiva, possuem, todos,

competências relativas à comunicação instaurada pela atividade linguageira, ou seja, para se

comunicar, é necessário que haja competências que determinarão a maneira como os sujeitos

construirão os possíveis efeitos de sentido de determinados discursos, afinal, o discurso está,

como bem se sabe, vinculado a condições de produção que não são, necessariamente, iguais

às condições de recepção, podendo haver, assim, a formação de um efeito de sentido que é

diferente daquele que foi visado pelo sujeito enunciador.

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Comumente, levando em consideração a definição tradicional do termo competência,

chega-se a uma espécie de lugar-comum que nos diz que ser competente é estar apto a realizar

algo dentro de uma determinada área do conhecimento, o que só se estabelece, de fato,

quando um juízo de valor é emitido acerca de alguém. Por exemplo, diz-se que um

publicitário é competente quando consegue criar propagandas capazes de fazer com que seu

destinatário compre o produto em questão. No entanto, quando se diz respeito às

competências linguísticas, o fato de ser competente não traz consigo uma ideia de juízo de

valor: um falante ser competente em termos de comunicação não depende da opinião de outro

sujeito.

A construção de sentido dos atos de linguagem vem de um sujeito que se dirige a outro

sujeito, dentro de uma situação de comunicação específica, que, por sua vez, sobredetermina

as estratégias linguísticas que serão utilizadas dentro da atividade comunicacional. A partir

disso, Charaudeau (2001) postula, nesse primeiro momento, que são três as competências que

todo sujeito do ato de linguagem deve ter: a competência situacional, no nível também

situacional, a discursiva, no nível discursivo e a semiolinguística, no nível semiolinguístico.

A competência situacional, como o próprio nome sugere, tem a ver com a situação de

comunicação na qual o ato de linguagem se inscreve. Tal competência exige que o sujeito

construa seu discurso em função da identidade dos protagonistas - eu enunciador e tu

destinatário - da troca comunicativa; da finalidade, ou visada, dessa troca; da tematização

escolhida pelos sujeitos do ato de linguagem; e das circunstâncias materiais em que ocorre a

referida troca linguageira. Dessa forma, pensando na competência situacional, é possível

estabelecer que o sujeito deve estar apto a reconhecer a margem de manobra de que dispõe

quando se propõe a fazer uso de um Contrato de Comunicação ao qual se reporta quando

empreende uma atividade linguageira.

A identidade desses parceiros determina “quem fala com quem?” em termos de papel

social exercido dentro das relações de força, presentes em todo ato de linguagem, afinal, o

sujeito enunciador só diz o que diz, pois detém o poder da palavra. Dito de outro modo: o

sujeito enunciador utiliza-se de estratégias discursivas que são capazes de lhe dar legitimação

e credibilidade para dizer aquilo que diz e captar seu destinatário.

A finalidade da troca diz respeito ao objetivo que há por trás de toda troca linguageira,

já que os sujeitos, dentro da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, carregam

consigo uma intencionalidade discursiva que acaba refletindo na(s) visada(s) que é(são)

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elencada(s) para nortear toda a situação de comunicação. Apenas dessa forma é possível

responder à pergunta: “Estou aqui para dizer o quê?”. Já o propósito diz respeito à

tematização que demarca os enunciados, tematização essa que responde à questão: “sobre o

que se fala” em tal ou qual enunciado? As circunstâncias materiais em que se dão as trocas

comunicativas têm a ver com o fato de a troca linguageira acontecer por meio da fala ou da

escrita.

Há, também, a competência discursiva que exige que o sujeito enunciador manipule as

estratégias colocadas em prática dentro da cena enunciativa e que o sujeito destinatário as

reconheça. Em um primeiro momento, Charaudeau diz que as estratégias discursivas são de

três tipos: enunciativas, enuncivas e semânticas. As estratégias enunciativas remetem às

atitudes que o sujeito enunciador tomará em função da imagem que faz de si, a qual quer

transmitir ao outro, e da imagem que faz de seu destinatário. Também diz respeito à imagem

que faz da troca linguageira ocorrida, como bem se sabe, na interação e dentro de uma

situação de comunicação específica.

As estratégias da ordem do enuncivo nada mais são do que os chamados modos de

organização do discurso: o descritivo, que tem por função nomear e qualificar os seres do

mundo, tendo em vista que qualificar é tomar partido (CHARAUDEAU, 1992: p. 663); o

narrativo, que relata as ações vividas por esses seres, os quais foram colocados no mundo a

partir do momento em que foram nomeados e qualificados; e o argumentativo, que consiste

em saber usar sequências causais capazes de atestar o que é verdadeiro, o que é falso e o que é

verossímil.

As estratégias da ordem do semântico têm a ver com os conhecimentos que são

compartilhados pelos sujeitos do ato de linguagem; conhecimentos esses que são divididos em

saberes de conhecimento – os quais remetem a percepções e definições mais ou menos

objetivas em torno do mundo, que podem ser comprovadas por meio da observação da

realidade – e os saberes de crença, que remetem a sistemas de valores, mais ou menos

normatizados em função de um mesmo grupo social e sustentados pelos juízos de valor que

esse grupo social lhes confere: são, pois, fruto de uma opinião coletiva e não podem ser

comprovados por meio da observação da realidade.

Por fim, existe a competência semiolinguística, que postula que os sujeitos do ato de

linguagem podem manipular e reconhecer a forma que assumem os signos linguísticos, bem

como suas regras combinatórias e, a partir disso, depreender os possíveis efeitos de sentido

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que um determinado discurso engendra. A escolha em torno dos signos linguísticos, usados

em diferentes tipos de textos, traz consigo uma intenção de comunicação, que está de acordo

com os elementos da situação comunicativa e das exigências da organização discursiva de tal

ou qual texto. A competência semiolinguística, dessa forma, abrange desde a disposição dos

elementos paratextuais que compõem um texto, passando pela escolha dos signos linguísticos,

chegando aos tipos de construção gramatical – ativa, passiva, impessoal, nominalizada.

Segundo Charaudeau (2001), trata-se, portanto, de uma competência específica, que consiste

em saber reconhecer e usar as palavras em função do valor de identificação que possuem e

de sua força portadora de verdade. (CHARAUDEAU, 2001: p. 17 – tradução do autor)2

Dessa forma, é possível estabelecer que a competência semiolinguística parece

restringir-se aos aspectos puramente linguísticos de um texto, já que se centra nas formas que

assumem os signos linguísticos e nas relações que empreendem entre si e com o texto como

um todo. É, então, a partir da observação dessas escolhas linguísticas e da maneira como os

signos são dispostos e combinados nas concretizações de um discurso que o falante fará uso

dessa competência que o torna, portanto, apto a apreender os diferentes efeitos de sentido

produzidos por um texto.

É importante lembrar que, em texto de 2009, Charaudeau reestrutura as competências

linguísticas, dizendo haver, dentro da competência discursiva, outra: a competência

semântica, que tem a ver com a aptidão dos protagonistas do ato de linguagem de organizar

seus diferentes tipos de saberes, os quais constituem suas referências, e tematizá-los,

tornando-os parte do discurso, a fim de serem compartilhados com os outros sujeitos que

fazem parte da cena enunciativa.

Portanto, quando se fala em competências, seja a discursiva, a semiolinguística e a

semântica, tem-se em mente a aptidão que possuem os sujeitos do ato de linguagem para se

comunicar, levando em conta a situação de comunicação na qual estão inseridos; a

organização discursiva – descritiva, narrativa ou argumentativa – que se escolhe para fazer

parte da cena enunciativa; a combinação de formas, que acontece em função das restrições

impostas pela situação comunicacional e dos elementos da referida organização discursiva; e

a organização dos saberes que se tornam referência para os sujeitos do ato de linguagem e são,

por eles, tematizados. Em outras palavras: a competência é uma atitude ou capacidade para

2 se trata, por tanto, de una competencia específica, que consiste en saber reconocer y usar las palabras en

función de su valor de identificación y su fuerza portadora de verdad (CHARAUDEAU, 2001: p. 17)

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saber e saber fazer que se atualiza ou não segundo a intencionalidade do sujeito que fala ou

interpreta (CHARAUDEAU, 2001: p. 21 – tradução do autor).3

O falante precisa, também, ser competente para perceber diante de qual gênero

discursivo está, além de saber, ao certo, qual foi a visada discursiva escolhida para nortear

toda a troca linguageira, empreendida por esse falante e por seu ouvinte. Diante disso, torna-

se necessário falar um pouco mais sobre esses dois conceitos, além dos já mencionados

modos de organização o discurso.

3.5 Gêneros textuais, visadas discursivas e modos de organização do discurso

Como bem se sabe, a questão dos gêneros, além de complexa, é antiga. Basta nos

lembrarmos, por exemplo, de A Poética Clássica (2005), de Aristóteles, que postulava uma

espécie de modus operandi dos gêneros épico/narrativo, dramático e lírico. Os chamados

gêneros clássicos, como estes ficaram conhecidos, foram, durante muito tempo, os únicos

capazes de se enquadrar nas antigas definições de gênero. Atualmente, entretanto, a noção do

que seriam os gêneros textuais parece ter-se estendido para além daqueles tidos como

clássicos, possibilitando, desta forma, que novas discussões e proposições surjam a fim de que

essa questão seja analisada sob novo(s) ponto(s) de vista.

É justamente nessa nova abordagem acerca dos gêneros textuais que se enquadra o

estudo de Charaudeau (2004) que propõe a articulação de quatro diferentes dimensões a que

se deve recorrer para definir a noção de gênero. É o caso da ancoragem social a que todo

gênero textual se submete, da natureza comunicacional de que faz parte, da atividade

linguageira construída e das características formais dessas atividades que, por si só, não são

capazes de definir um gênero textual. Segundo o teórico, a noção de gênero só será, de fato,

bem construída caso se recorra ao entrelaçamento dessas quatro perspectivas.

A primeira delas, como dito, diz respeito ao fato de que todo gênero textual é fruto de

uma ancoragem social que cria práticas sociais capazes de servir como quadro de referência -

sem o qual a troca linguageira seria impossível - aos sujeitos do ato de linguagem quando

estes estão produzindo e/ou coproduzindo seus discursos. Desse modo, é possível pensar que

o Contrato de Comunicação, ao qual nos referimos anteriormente, acaba por determinar, a

3 es una atitud (o capacidad) para saber y saber-hacer que se actualiza o no, según la intencionalidad del sujeto

que habla o interpreta (CHARAUDEAU, 2001: p. 21).

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priori, o que seria o gênero textual, afinal, é a esse Contrato que se submetem os parceiros e

os protagonistas da atividade linguageira. Para elucidar de vez tais questionamentos, citamos,

pois, Charaudeau (2004):

[...] o lugar de ancoragem social pode ser considerado como um lugar contratual

que determina, através das características de seus componentes, um certo lugar de

dados situacionais, os quais dão, por sua vez, instruções para a discursivização.

(CHARAUDEAU, 2004: p. 33)

Essa ancoragem social dos gêneros permite, então, que se criem os campos - no

sentido que lhes deu Bourdieu - ou o que Charaudeau (2004) chama de domínios de prática

linguageira, haja vista que se referem à experiência comunicativa dos falantes, às suas

identidades, bem como aos papéis que devem desempenhar na cena enunciativa, mostrando,

portanto, como os discursos produzidos dependem intrinsecamente de seus enunciadores, já

que a origem enunciativa daquilo que é dito é ainda mais importante do que o que, de fato, se

diz.

Articulando, dessa forma, as duas perspectivas acima referidas - ancoragem social e

natureza comunicacional - pode-se pensar que o domínio de prática social acaba por regular

as trocas comunicativas, instaurando regularidades discursivas que são próprias de tal ou qual

natureza comunicacional, instituindo, assim, ritualizações que são típicas de um domínio

comunicacional.

Já a terceira dimensão, diz respeito às atividades linguageiras construídas que,

conforme dito, são frutos de quadros de referência que existem, de maneira inconsciente, em

cada sujeito social e em cada sujeito discursivo. Diante disso, é possível dizer que tais quadros

ocupam a memória dos sujeitos no que diz respeito ao uso e à normalização do

comportamento linguageiro desses sujeitos, assim como do sentido e das formas empregados

nas referidas atividades linguageiras que foram construídas:

Diremos, primeiramente, à maneira de Bakhtin (1984:285), que é preciso, ao

sujeito falante, ter referências para poder se inscrever no mundo dos signos,

significar suas intenções e comunicar. Isso é resultado do processo de

socialização do sujeito através da linguagem e da linguagem através do sujeito,

ser individual e coletivo. É conjuntamente que se constroem, em nome do uso, a

normalização dos comportamentos, do sentido e das formas, o sujeito registrando-

os em sua memória. (CHARAUDEAU, 2004: p. 19)

É justamente a partir dessa afirmação que se pode dizer que os sujeitos e suas

atividades linguageiras são permeados por três tipos de memória que testemunham as

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maneiras de dizer de determinadas comunidades discursivas que são assim chamadas por

reunirem - virtualmente - sujeitos que partilham os mesmos posicionamentos [e] os mesmos

sistemas de valores (CHARAUDEAU, 2004: p. 20). A primeira dessas memórias é a dos

discursos na qual se constroem os saberes de crença e de conhecimento sobre o mundo onde

vivem os sujeitos do ato de linguagem, saberes esses que se tornam representações sócio-

discursivas que, por sua vez, constroem as identidades coletivas e dividem a sociedade em

“comunidades discursivas”, que se identificam enquanto tais, uma vez que partilham, como

dito, saberes e crenças.

Há, também, a memória das situações de comunicação que acaba por normatizar as

trocas comunicativas, visto que ativa uma espécie de expectativa nos sujeitos do ato de

linguagem, definindo, assim, um conjunto de condições psicossociais para a realização dessas

trocas que estabelecem o tal quadro de referência mencionado anteriormente. Essa construção

diferenciada do sentido, possível apenas por conta da memória das situações de comunicação,

acaba por criar as chamadas comunidades comunicacionais que reúnem fisicamente sujeitos

que partilham da mesma visão acerca daquilo que devem ser as constantes das situações de

troca linguageira.

Há, ainda, a memória da forma dos signos que são, grosso modo, maneiras de dizer

mais ou menos corriqueiras que, por meio do “saber dizer”, acabam por criar as chamadas

comunidades semiológicas, que são comunidades também virtuais que se reconhecem

enquanto tais pela utilização rotineira de formas de comportamento e de linguagem. A partir,

então, da articulação estreita dessas três memórias, unindo-as à situação de comunicação, é

que se pode estabelecer a seguinte afirmação:

[...] o sujeito social se dota de gêneros empíricos e, por meio de representações

que constrói deles pela aprendizagem e pela experiência, os erige em normas de

conformidade linguageira e os associa aos lugares de prática social mais ou

menos institucionalizados (CHARAUDEAU, 2004: p. 21).

Pensando justamente nessa ideia de representações que o sujeito faz dos gêneros

empíricos, que nada mais são do que aqueles acordos tácitos que estabelecem na hora de

escolher o Contrato de Comunicação ao qual irão se reportar, é que se torna possível dizer

que uma análise dos gêneros, como diz Charaudeau (2004), precisa apoiar-se em uma teoria

do discurso que possua princípios gerais, a fim de que fundem as atividades da linguagem,

como é o caso do princípio da influência, que regula toda a troca linguageira empreendida por

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seres dotados de intencionalidade, e do nível dos mecanismos que tais princípios colocam em

funcionamento. O funcionamento desse nível de princípios é duplo, haja vista que

compreende um conjunto de situações de comunicação e um conjunto de procedimentos

semiodiscursivos, ou seja, a discursivização. É importante ressaltar que a discursivização, por

outro lado, acaba por se tornar o lugar onde as maneiras de dizer são instituídas.

A situação de comunicação talvez seja uma espécie de construto que há fora do texto,

permeando - e por que não dizer ditando - o caminho que ela, a troca linguageira, tomará por

meio do discurso de seus falantes. A situação de comunicação é, então, o lugar onde se criam

as restrições e as possibilidades que determinam a(s) expectativa(s) da troca linguageira, que

podem ou não coincidir em termos de sujeitos sociais e discursivos. As referidas restrições e

possibilidades são fruto, concomitantemente, da identidade dos parceiros da troca, do lugar

que eles ocupam dentro da cena enunciativa, da finalidade - leia-se visada - que os sujeitos

intencionais querem que tal troca possua, da tematização que ela empreende e das

circunstâncias materiais na qual a referida troca ocorre.

Vale lembrar que aquilo que é regra, em determinados discursos, como componentes

da situação de comunicação, pode ser transgredido, tornando-se, assim, uma exceção. Seria o

caso, por exemplo, de propagandas cuja finalidade da troca não fosse vender um marca, mas

sim provocar o riso ou chocar seus leitores, como é o caso daquelas que integram o corpus do

presente trabalho. Há, então, uma ruptura no que diz respeito ao objetivo da troca

comunicativa, que deixa de ser, primeiramente, vender uma marca e passa a ser causar um

efeito patêmico no destinatário, provocando, nele, o riso ou o choque, transgredindo, portanto,

a acepção primeira da propaganda publicitária, que é incitar seu destinatário a comprar uma

marca. Por conta disso, é possível afirmar que a situação de comunicação, como dito

anteriormente, é de fundamental importância para que se construam os diferentes efeitos de

sentido dentro do discurso desencannado das peças publicitárias aqui analisadas.

As características formais acabam não sendo o suficiente para determinar qual é o

gênero textual em questão, afinal, muitas dessas características se repetem em gêneros

diferentes, como é o caso da indeterminação dos sujeitos em notícias de jornal ou em textos

opinativos em que o autor queira se apresentar de maneira delocutiva, ou seja, apagando as

marcas de primeira pessoa do singular que poderiam estar presentes no referido discurso.

Apenas juntando essa perspectiva às outras três – memória discursiva, memória das situações

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de comunicação e memória da forma dos signos – é que se pode tentar estabelecer qual é o

gênero textual que está sendo utilizado em determinada situação de comunicação.

Como bem se sabe, a finalidade da troca comunicativa que passará a ser chamada,

aqui, de visada, acaba por definir, já que os sujeitos, na Teoria Semiolinguística de Análise do

Discurso, são dotados de intencionalidade, o quadro de referência ao qual os parceiros da

troca se reportarão, estabelecendo, assim, qual será o Contrato de Comunicação “assinado”

por eles e, por consequência, qual será o gênero textual utilizado. Logo, a visada conduzirá

toda a troca linguageira e conduzirá, inclusive, o comportamento discursivo dos sujeitos.

Nesse sentido, o gênero textual corresponde ao conceito de Contrato de Comunicação trazido

por Charaudeau (2012), que é, por sua vez, direcionado pela(s) visada(s) discursiva(s) que o

sujeito enunciador elenca para fazer parte do texto que produz.

Visadas discursivas são entendidas como uma intencionalidade psico-sócio-

linaguageira que determina o "enjeu" da troca comunicativa, bem como a expectativa dos

sujeitos discursivos responsáveis por essa troca. Entretanto, para que as visadas atinjam o

efeito de sentido pretendido, é necessário que tanto sujeitos produtores quanto sujeitos

receptores percebam qual(is) visada(s) está(ão) em jogo. Cada situação de comunicação

seleciona, então, uma ou mais visadas, que serão responsáveis pelas expectativas geradas

nesta ou naquela troca linguageira, empreendida por estes ou aqueles sujeitos discursivos.

Tomando como exemplo o discurso publicitário e pensando-o em termos de finalidade

da troca, é possível perceber que a visada elencada pelos sujeitos de tais textos é,

primeiramente, a de incitação, em que o eu não se encontra em posição de "mandar fazer",

mas na de "fazer acreditar" - já que o eu não está em posição de autoridade frente ao outro -

um tu que, por sua vez, encontra-se em posição de "querer acreditar". Ou seja, o eu quer fazer

com que o tu acredite que o produto possui qualidades extraordinárias e inigualáveis e é

apenas por meio da apropriação de tal produto que o tu se tornará o beneficiário dessa ação.

A publicidade, por outro lado, para atingir seu objetivo primeiro, que é vender uma

marca, utiliza-se de estratégias de persuasão/sedução para convencer seu público-alvo de que

aquilo que vende é um produto singular. Para isso, acaba selecionando uma segunda visada,

não menos importante que a primeira, que é a visada de efeito, em que o eu se encontra em

posição de "fazer sentir" o tu, que, a seu turno, encontra-se em posição de "querer sentir".

Nessa visada, o eu tem por objetivo causar um efeito patêmico em seu destinatário, fazendo-o

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cúmplice de seu discurso - nunca adversário -, por meio de estratégias de captação permitidas

pela situação de comunicação em que o ato de linguagem se inscreve.

Ainda discutindo questões acerca dos gêneros textuais, é importante trazer, à

superfície do texto, algumas considerações feitas por Marcuschi (2002; 2008) sobre o fato,

por exemplo, de que o gênero textual possui um caráter muito mais sócio-pragmático do que

linguístico-estrutural, visto que suas características linguísticas e estruturais parecem ser

facilmente sobrepostas pelas questões de uso e também de intensidade desse uso, geradas

pelas escolhas feitas pelos falantes, que, por sua vez, usam o gênero textual para se

comunicar.

Como bem nos lembra Marcuschi (2002), não são apenas as novas tecnologias que

originam novos gêneros, mas sim o fato de haver recorrência e intensidade nesse uso. Ou seja,

não basta apenas utilizar novas tecnologias que aparecem no hall de escolha dos falantes, é

necessário que a intensidade desse uso seja crescente por parte deles, o que, obviamente, gera

uma interferência e uma mudança nas atividades comunicativas diárias no que diz respeito à

questão dos gêneros textuais, uma vez que:

[estes] surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais, bem

como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se

considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a

sociedades anteriores à comunicação escrita (MARCUSCHI, 2002: p. 19).

Para Bakhtin (2010) e também para Bronckart (1999, apud, MARCUSCHI, 2002), os

gêneros textuais são indispensáveis para a comunicação, visto que não é possível que os

falantes se comuniquem a não ser por meio desses gêneros. Os gêneros textuais, então,

precedem o ato de comunicação: antes mesmo de o falante escolher de quais palavras fará uso

no ato comunicacional, escolherá qual gênero usará, afinal, para se dirigir a uma autoridade

precisará de um gênero específico, diferente daquele que usará numa conversa informal com

um amigo, por exemplo. Os gêneros textuais, dessa forma, se constituem como ações sócio-

discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo

(MARCUSCHI, 2002: p. 22).

A dimensão social dos gêneros textuais parece ser a tônica central de uma nova

perspectiva de análise, haja vista que deixaram de ser moldes a ser seguidos, levando-se em

conta apenas aspectos estruturais, formais, lexicais e sintáticos, e passaram a ser realizações

linguísticas de determinados objetos em situações de comunicação particulares. Em outras

palavras, os gêneros tornaram-se formas concretas de comunicação, que, como bem se sabe,

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só podem se realizar socialmente, visto que não são fruto da vontade de um só indivíduo.

Portanto, houve uma mudança de perspectiva: atualmente, a dimensão sócio-pragmática dos

gêneros sobrepõe-se àquela puramente linguística, em que estes eram tidos como engessados,

estáticos e até mesmo inflexíveis.

Os gêneros textuais passaram a ser, então, construídos socialmente pelas mãos de

falantes e ouvintes que deles fazem uso, propiciando, aos gêneros, uma maior liberdade;

liberdade essa capaz de fazer com que não sejam mais definidos e pré-determinados por

algumas propriedades que deveriam, a priori, ser necessárias e suficientes para eles, mas sim

pelo seu aspecto primeiro: o social. Citamos, pois, mais uma vez, Marcuschi (2002):

Quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e

sim uma forma de realizar linguisticamente objetos específicos em situações

sociais particulares, pois, como afirmou Bronckart (1999:103), “a apropriação

dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática

nas atividades comunicativas humanas”, o que permite dizer que os gêneros

textuais operam, em certos contextos, como formas de legitimação discursiva, já

que se situam numa relação sócio-histórica como fontes de produção que lhes dão

sustentação muito além da justificativa individual (MARCUSCHI, 2002: p. 29).

Os gêneros textuais, por outro lado, acabam servindo de modelos comunicativos – não

entendidos aqui no sentido de obrigação que o termo, usualmente, pode trazer consigo –, por

conta de sua heterogeneidade em relação à forma e aos usos. Os gêneros, por causa dessa

heterogeneidade servem, muitas vezes, para criar uma expectativa no interlocutor, tentando,

assim, antecipar uma possível reação deste. Por outro lado, justamente por conta de tal

expectativa, o interlocutor pode ser surpreendido, caso o uso e até mesmo a forma do gênero

em questão sejam contrários ao esperado. Por exemplo, o gênero receita de bolo foi usado

fora de seu contexto usual na época da Ditadura Militar brasileira para indicar que os textos

que seriam veiculados nos jornais foram, na realidade, censurados. Vale lembrar que tal

episódio da história nacional também reforça o caráter sócio-pragmático dos gêneros textuais.

Esses, os gêneros, como diz Bakhtin (2010), criam o caminho da compreensão e

acrescentamos: os gêneros podem, também, desfazer esse caminho e até mesmo subvertê-lo.

É importante ressaltar, ainda, que uma análise dos gêneros textuais significa, também,

uma análise do texto e do discurso, da descrição da língua e de uma visão de sociedade,

tentando sempre responder a questões socioculturais, que dizem respeito ao uso da língua,

afinal, os gêneros textuais são uma forma de ação social, nas palavras de Carolyn Miller

(1984) (MILLER, apud MARCUSCHI, 2008: p. 149), que funcionam como parte importante

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da estrutura comunicacional das sociedades em geral. Os gêneros textuais, portanto, não

podem ser separados de sua realidade social e de sua relação extremamente imbricada com as

atividades humanas, uma vez que a comunicação entre falantes e ouvintes apenas se realiza

por meio do uso de gêneros textuais, que, por sua vez, não são escolhidos de maneira

aleatória, porém são escolhidos para atender a interesses específicos de falantes e ouvintes.

Nesse ponto do trabalho, torna-se necessário falar um pouco mais dos aspectos

formais que acabam por fazer parte das discussões acerca dos gêneros textuais. Para tal,

precisamos recorrer àquilo que Charaudeau chamou de modos de organização do discurso

que podem ser definidos como a utilização de determinadas categorias de língua, ordenadas

em função da(s) finalidade(s) discursivas do ato de comunicação. Em outras palavras, os

modos de organização do discurso constituem os princípios de organização da matéria

linguística, princípios que dependem da finalidade comunicativa do sujeito falante:

ENUNCIAR, DESCREVER, CONTAR, ARGUMENTAR (CHARAUDEAU, 2010b: p. 68).

Os modos de organização do discurso possuem, os quatro, uma função base que tem

justamente a ver com a finalidade discursiva da troca linguageira e possuem, ainda, um

princípio de organização que, como o próprio nome sugere, diz respeito à maneira como os

enunciados se organizam para atender às necessidades dos falantes. Quando se trata dos

modos narrativo, descritivo e argumentativo, esse princípio de organização é forjado tendo,

como resultado, lógicas de construção típicas desses modos, como é o caso, por exemplo, do

uso de adjetivos no modo descritivo, ou de verbos de ação no narrativo, e uma organização da

sua “encenação” - entendida, aqui, como encenação discursiva, presente na cena enunciativa -

que, também é narrativa, descritiva ou argumentativa.

O modo enunciativo, por sua vez, possui uma configuração especial, já que comanda

os outros modos. Isso acontece porque o modo enunciativo dá conta da posição do enunciador

com relação ao seu destinatário, a si mesmo e aos outros, criando, assim, uma espécie de

aparelho enunciativo, intervindo na encenação desses três outros modos. Recorremos, mais

uma vez, a Charaudeau:

o locutor, mais ou menos consciente das restrições e da margem de manobra

proposta pela Situação de Comunicação, utiliza categorias de língua ordenadas

nos Modos de organização do discurso para produzir sentido, através da

configuração de um Texto. Para o locutor, falar é, pois, uma questão de

estratégia, como se ele perguntasse: “Como é que vou / devo falar (ou escrever),

levando em conta o que percebo do interlocutor, o que imagino que ele percebe e

espera de mim, do saber que eu e ele temos em comum, e dos papéis que eu e ele

devemos desempenhar” (CHARAUDEAU, 2010b: p. 75).

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No modo enunciativo, o foco da cena está voltado para os protagonistas do ato de

linguagem. Ou seja, diferentemente do que ocorre na situação de comunicação, aqui, o que

importa são os seres do dizer, principalmente o eu enunciador, afinal, tal modo é uma

categoria do discurso que mostra a maneira como o sujeito falante age na “mise-en-scène”

discursiva. O modo enunciativo ocorre, então, no nível do discurso e não pode ser restrito aos

procedimentos linguísticos usados pelos já citados protagonistas do ato de linguagem.

No entanto, existem maneiras ou categorias linguísticas para marcar a posição do eu

enunciador, dentro de cada enunciado, em relação ao seu interlocutor: são os chamados

processos de modalização, que determinam, linguisticamente falando, o modo como os

sujeitos enunciadores dão voz a si próprios dentro dos discursos, levando em conta seus

destinatários. Assim sendo, torna-se possível pensar que há maneiras que precisam o

comportamento do eu com relação ao tu dentro da cena enunciativa.

Dizemos que se trata de um comportamento alocutivo quando o dizer do eu impõe um

comportamento ao tu, fazendo com que esee tome para si a posição que já foi assumida pelo

enunciador dentro do discurso, havendo, portanto, uma ação do enunciador sobre seu

destinatário. Logo, a enunciação tem como foco a persuasão do tu. É possível perceber, desse

modo, que há uma relação de influência que vai do eu para o tu e que acaba por regular toda a

troca linguageira empreendida por esses dois sujeitos discursivos.

A relação de influência pode dar-se por meio da superioridade do eu com relação ao

tu, em que aquele impõe certo comportamento linguageiro a este. Assim, é possível que o tu

assuma uma posição de inferioridade com relação ao eu, já que é capaz de “poder fazer” ou

“poder atender” a uma solicitação de seu enunciador. Contudo, o eu pode se colocar numa

posição de inferioridade com relação ao tu, o que ocorre, quando, por exemplo, faz um

pedido, cabendo ao destinatário decidir se atende, ou não.

O eu pode, também, assumir um comportamento elocutivo quando enuncia seu ponto

de vista sobre o mundo, sem implicar a tomada de posição do tu em relação àquilo que diz.

Logo, a enunciação tem como foco o ponto de vista do eu. A tematização dos enunciados diz

somente respeito à posição assumida pelo eu frente àquilo que ele diz, revelando, assim, uma

subjetividade interna do sujeito falante.

Por fim, o sujeito falante pode assumir um comportamento delocutivo, apagando a si

próprio e às suas marcas do ato enunciativo. O eu, então, testemunha a maneira pela qual os

discursos do mundo (provenientes de um terceiro) se impõem a ele. O resultado é uma

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enunciação aparentemente objetiva (no sentido de “desvinculada da subjetividade do

locutor”) (...) (CHARAUDEAU, 2010b: p. 83). Nesse caso, o ponto de vista do eu é

mascarado por uma objetividade provinda dos discursos de outrem que o eu “reproduz”, o que

o isenta da responsabilidade daquilo que está sendo dito.

Como dissemos acima, o modo enunciativo engendra outros três, a saber, o descritivo,

o narrativo e o argumentativo. Diante disso, torna-se necessário falar um pouco mais sobre

cada um desses modos, mostrando a maneira como eles contribuem para ajudar a definir que

gênero textual será usado em determinadas trocas linguageiras. Comecemos, então, pelo

descritivo.

Como bem nos lembra Charaudeau (2010b), um texto é sempre heterogêneo do ponto

de vista de sua organização, já que depende da situação de comunicação na qual se insere e

das diversas ordens de organização do discurso que foram utilizadas a fim de construí-lo. Por

esse motivo, o modo descritivo deve ser pensado em três níveis distintos: o da situação de

comunicação que determina o Contrato de Comunicação e a finalidade resultante de tal texto;

o do modo de organização do discurso que, por sua vez, determina as categorias de língua

usadas na sua produção; e também o gênero textual que extrai a finalidade do que está em

jogo dentro da situação de comunicação.

A partir disso, é possível pensar que o modo descritivo não é uma simples descrição ou

resultado de algo, mas sim um processo que corresponde a uma atividade de linguagem, que

se combina com a de contar e a de argumentar, e que tem por objetivo nomear os seres do

mundo, localizando-os em uma dada situação de comunicação e qualificando-os, já que faz

existir seres significantes no mundo, ao classificá-los (CHARAUDEAU, 2010b: p. 112).

Essa atividade de identificação/nomeação dos seres do mundo acaba por ser

delimitada pela finalidade das situações de comunicação na qual o modo descritivo ocorre,

sendo, portanto, relativizada ao passar pelo crivo da subjetividade do sujeito descritor que

pode descrever um ser do mundo ao seu bel prazer. O processo de nomear faz com que um

“ser seja”. Por sua vez, tal modo também é o responsável por localizar e situar tais seres,

determinando o lugar que eles ocupam no espaço e no tempo, descrevendo sua posição

espaço-temporal. Logo, tal modo faz com que um “ser esteja” no mundo.

A atividade de qualificar está ligada à de nomear, já que os seres só podem ser

qualificados a partir do momento em que passam a existir por meio de sua identificação. A

referida atividade de qualificar faz com que os seres sejam classificados em função de suas

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semelhanças e/ou diferenças com outros seres, fazendo com que a nomeação, que estrutura o

mundo de maneira desordenada, adquira um sentido particular por meio da qualificação;

qualificação essa que pode ser mais ou menos subjetiva, já que tem origem no olhar que o

sujeito falante lança sobre os outros seres e o mundo, testemunhando, então, sua

subjetividade (CHARAUDEAU, 2010b: p. 115)

O ato de qualificar faz com que o ser “seja alguma coisa” no mundo, permitindo que o

indivíduo que o põe em prática satisfaça seu desejo de posse pelo mundo, já que é tal sujeito

que o singulariza e o especifica, dando ao ser descrito uma substância e uma forma

particulares que só existem em função da visão de mundo e de si que o próprio sujeito possui.

Assim sendo, é possível estabelecer que qualificar é, então, uma atividade que permite ao

sujeito falante manifestar seu imaginário, individual e/ou coletivo, imaginário da construção

e da apropriação do mundo (...) num jogo de conflito entre as visões normativas impostas

pelos consensos sociais e as “visões próprias” ao sujeito (CHARAUDEAU, 2010b: p. 116).

O sujeito descritor pode intervir, ou não, de maneira explícita na descrição que faz,

produzindo, em todos os casos, a partir de suas escolhas linguísticas, efeitos como o de

realidade, o de ficção e o de verossimilhança. As descrições também podem ser mais ou

menos precisas, respeitando, sempre, a intencionalidade dos sujeitos quando esses se tornam

descritores.

É importante ressaltar que as qualificações que o sujeito descritor faz do mundo não

são, via de regra, verificáveis e comprováveis, já que o universo construído por meio do ato

de descrever é relativo ao imaginário pessoal do sujeito, estabelecendo, assim, o que,

comumente, se chama de descrição subjetiva. Os textos publicitários podem ser considerados

como exemplos de descrição subjetiva, já que o sujeito descritor descreve as qualidades do

produto em questão de maneira sugestiva, singularizando-o e tornando-o único e desejável.

Pensando, agora, no modo narrativo, fica claro que apenas a partir de nomeações,

qualificações e localizações espaço-temporais é que se torna possível estabelecer uma

sequência de acontecimentos vividos por seres do mundo. Entretanto, não é apenas o fato de

haver uma sequência de ações que torna o ato de contar uma narrativa: é necessário que tal

sequência de ações seja inserida num contexto por um contador - narrador ou autor quer

transmitir alguma coisa ao seu destinatário. O ato de contar é, então, posterior a uma

realidade, que pode ser real ou fictícia. O fato de tal realidade ser real ou fictícia fica em

segundo plano, já que a narrativa faz surgir um universo contado mais ou menos crível para

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seu destinatário, fazendo-o crer no verdadeiro, criando, assim, um efeito de realidade que

acontece dentro da ficção.

A narrativa, na realidade, assume-se como sendo uma totalidade que tem como

finalidade básica contar alguma coisa, o que acontece por meio do modo narrativo, que faz

seu leitor descobrir um mundo que foi construído no desenrolar de uma sucessão de ações, e

do descritivo, que nomeia e qualifica os seres que vivem tais acontecimentos, criando um

mundo que necessita ser mostrado ao outro.

Assim sendo, é possível estabelecer que

a encenação narrativa constrói o universo narrado (ou contado) propriamente

dito, sob a responsabilidade de um sujeito narrado que se acha ligado por um

contrato de comunicação ao destinatário da narrativa. Esse sujeito age ao mesmo

tempo sobre a configuração da organização lógico-narrativa e sobre o modo de

enunciação do universo narrado jogando com sua própria presença

(CHARAUDEAU, 2010b: p. 158)

Pensando, também, no princípio de organização de uma narrativa, é possível

estabelecer que, para haver lógica narrativa, é necessário existir uma sucessão de

acontecimentos interligados uns aos outros por um princípio de coerência, e outro, de

encadeamento, já que uma ação precisa, necessariamente, estar ligada à outra de maneira

coerente. Tais acontecimentos são fruto de uma causa, atendem a uma finalidade e se definem

por um princípio de intencionalidade. Eles também precisam de um enquadramento espaço-

temporal, já que a coerência e a motivação de tais acontecimentos é determinada por um

princípio de localização.

Essa localização espaço-temporal é de suma importância para a narrativa. A

cronologia narrativa obedece a um encadeamento de ações que acontece seguindo,

obviamente, uma cronologia que, por sua vez, pode dar-se de maneira progressiva e contínua,

ou apresentar um estado final que só será explicado a posteriori; pode, ainda, ser descontínua

e interrompida em seu desenrolar para criar um efeito de expectativa ou suspense; pode,

também, ser descontínua com a alternância de sequências narrativas. A localização no espaço,

por sua vez, pode ser mais ou menos precisa, dependendo de que configuração se queira dar à

narrativa, já que pode designar um deslocamento ou uma fixação no mesmo lugar.

É importante falar, ainda, da encenação narrativa, que tem como componentes os

sujeitos sociais que dão vozes a sujeitos discursivos os quais – ambos – adquirem significação

apenas ao longo da narrativa. Uma narração provém de um contador – que não pode ser

confundido com o autor real que escreveu o livro –, que conta a história de si mesmo ou de

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outrem a um destinatário, que também não pode ser confundido com os leitores reais que

compram os livros os quais desejam ler. Portanto, é necessário estabelecer limites entre os

sujeitos do circuito externo da narrativa: não são eles que a produzem nem são eles quem a

recebem, assim como não são eles os actantes responsáveis pelas sequências narrativas.

Geralmente, esse autor-escritor do mundo real dá voz e vez a um narrador, afinal é

aquele que engendra o discurso, que, por sua vez, pode contar uma história que viveu ou pode

contar uma história vivida por outros indivíduos, assumindo, assim, diferentes pontos de vista

sobre aquilo que seu herói - personagem principal da obra - vive. O narrador possui, então,

uma identidade que responde à pergunta “quem fala?”, assim como instaura, com sua

atividade criadora, um estatuto entre ele e seus heróis: “quem conta a história de quem?”.

Quando o narrador conta a história de outro indivíduo, diz-se que ocorre um princípio

de delocutividade, em que são apagadas do discurso as marcas linguísticas referentes ao eu,

uma vez que o narrador se constitui como porta-voz de uma história vivida por alguém que

não é ele mesmo. No entanto, se o narrador contar uma história por ele vivida, haverá um

princípio de elocutividade, no qual narrador e herói, teoricamente, confundem-se, sendo,

dessa forma, um só. Logo, as marcas linguísticas referentes ao eu serão mantidas ao longo da

narrativa.

O ponto de vista, assumido pelo narrador, quando este conta algo que não viveu, é

chamado de externo, quando só há uma simples observação da aparência física dos

personagens, ou de interno, quando o narrador supõe saber o que sente ou o que pensa o

personagem em questão. O narrador pode assumir que sabe mais e, por isso, diz mais que o

personagem; que só diz aquilo que o personagem sabe de si próprio; e que só diz aquilo que

vê acerca do personagem, limitando-se à aparência física dele.

Por fim, torna-se imprescindível falar sobre o modo argumentativo que, ao contrário

dos modos narrativo e descritivo, não trabalha apenas com as ações humanas nem se

confronta com a realidade visível e tangível, mas tenta dar conta de um saber proveniente da

experiência humana. É importante ressaltar que, ao contrário do que acontece numa narrativa,

a argumentação pode vir a ser anulada, caso o argumento que a valide seja contestado pelo

sujeito ao qual se destina.

Na realidade, o estudo da argumentação é uma prática bastante conhecida, ainda mais

se pensarmos nos gregos da Antiguidade, que já ressaltavam a importância de influenciar o

outro por meio de suas paixões e não apenas de sua razão:

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é por isso que, desde aquela época, distinguia-se o que derivava da pura “ratio”,

para a qual devia existir uma técnica demonstrativa suscetível de “dizer a

verdade”, daquilo que derivava da “interação entre os espíritos”, para a qual

devia existir uma técnica expressiva suscetível de “comover e captar” o interesse

de um auditório (CHARAUDEAU, 2010b: p. 202)

Logo, é possível pensar que o estudo da argumentação tinha como estatuto primário

guiar um discurso, representando, assim, uma maneira de agir sobre o outro, fazendo do

receptor cúmplice do discurso produzido, dos argumentos utilizados e do ponto de vista

adotado pelo argumentador.

Argumentar, então, não significa, necessariamente, produzir uma série de

combinações frásticas com operações lógico-argumentativas: boa parte da argumentação

encontra-se naquilo que está implícito, como é o caso da maioria dos slogans publicitários

conhecidos do grande público, que parecem pouco argumentativos, mas, na realidade, têm

como acepção primeira convencer o sujeito destinatário a comprar uma marca. O sujeito

argumentador, por sua vez, tenta persuadir seu destinatário por meio de convicções e

explicações, fazendo com que seu ele modifique um comportamento, o que, geralmente,

ocorre, a não ser que este refute a tese que o argumentador introduz, demonstrando que ela é

falsa e, por isso, não é passível de credibilidade.

Torna-se importante estabelecer alguns parâmetros para que haja argumentação, como

é o caso do que se convencionou chamar de proposta, que diz respeito, como o próprio nome

sugere, a uma proposta de mundo que cause um questionamento, em termos de legitimidade,

em alguém. Assim sendo, é necessário que haja alguém que se engaje em relação a esse

questionamento ou convicção acerca do mundo, tentando dar, a essa proposta, um status de

verdade, implicando, portanto, a existência de outro sujeito a quem o argumentador se

dirigirá, tentando fazer com que este compartilhe da mesma verdade assumida por aquele.

Portanto, haverá uma busca de influência que tende a um ideal de persuasão, o qual consiste

em compartilhar com o outro (interlocutor ou destinatário) um certo universo de discurso até

o ponto em que este último seja levado a ter as mesmas propostas (atingindo o objetivo de

uma coenunciação) (CHARAUDEAU, 2010b: p. 206).

A argumentação apresenta-se como um resultado de um processo de combinação entre

diferentes componentes que são dependentes de uma situação de comunicação e que têm por

finalidade primeira a persuasão do outro, seja por meio de uma razão demonstrativa que busca

estabelecer relações de causalidade - entendida, aqui, no sentido amplo do termo - para

comprovar aquilo que está sendo dito; seja por meio da razão persuasiva que busca

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estabelecer, também, uma espécie de prova para comprovar aquilo que está sendo dito, com a

ajuda de argumentos que justifiquem as propostas trazidas pelo argumentador e expliquem as

relações de causalidade entre as asserções ou ideias.

As relações argumentativas, por outro lado, compõem-se de três elementos: uma

asserção ou um dado de partida, que constitui uma fala sobre o mundo; uma asserção de

chegada, ou seja, uma conclusão a que deve chegar o sujeito destinatário; e uma asserção de

passagem, que permite ir do ponto de partida até o ponto de chegada, por meio de inferências,

argumentos e provas, justificando a relação de causalidade que existe entre a asserção de

partida e a de chegada.

A passagem que se faz da asserção de partida à de chegada, como dito, ocorre por

meio de inferências que estabelecem, entre a relação da premissa com a conclusão, vínculos

modais que se expressam no domínio do possível, quando a asserção inicial gera outras

interpretações diferentes daquela obtida na asserção final; por meio da obrigação, em que a

asserção final representa, obrigatoriamente, a conclusão pretendida pela inicial; e por meio da

probabilidade, já que a asserção final é, provavelmente, uma conclusão a que se chega diante

da asserção inicial.

A proposta, como citado anteriormente, é um dos elementos que compõem a cena

argumentativa, e necessita estar inscrita em um quadro de questionamento, gerando, assim, a

ocorrência de um ato de persuasão que será determinado pelo Contrato de Comunicação ao

qual se reporta a atividade linguageira, pelo sujeito que é incitado a tomar posição frente ao

discurso do qual é destinatário e pelos procedimentos argumentativos – semânticos,

discursivos e de composição – que serão usados ao longo da cena argumentativa.

A proposta é, então, o resultado da combinação de asserções, bem como de seus

encadeamentos, cuja veracidade será atestada pela tomada de posição de um sujeito

argumentador, criando, assim, uma proposição, com a qual o sujeito pode estar de acordo, ou

não. Se o sujeito estiver de acordo, ou seja, se entender a proposta como verdadeira, haverá a

justificativa dessa proposta, porém, se o sujeito não estiver de acordo, ou seja, se a julgar

falsa, haverá a refutação daquela. Pode ser, também, que o sujeito argumentador mantenha-se

neutro com relação à proposta, não tomando nenhuma posição: ele apenas tende a ponderar os

prós e os contras estabelecidos pela proposta em questão. Entretanto, não basta que um sujeito

argumentador diga que tal ou qual proposta é verdadeira ou falsa: é necessário que ele

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comprove a veracidade da proposta por meio de um ato de persuasão que pode refutar,

justificar ou ponderar o que foi proposto.

Os procedimentos usados na encenação argumentativa contribuem, cada um a seu

modo, para validar uma argumentação, baseando-se ora no valor dos argumentos, como é o

caso dos procedimentos semânticos; ora nas categorias linguísticas, capazes de produzir

certos efeitos de discurso, como é o caso dos procedimentos de discurso; ora, organizando,

quando a situação de comunicação permite, um conjunto de argumentação, como é o caso dos

procedimentos de composição.

Tentando articular as questões levantadas acerca dos conceitos de gênero, visadas e

modos de organização do discurso, é possível estabelecer que a visada acaba por determinar a

finalidade de um Contrato de Comunicação que nada mais é do que um quadro de referência

ao qual se reportam os falantes quando da atividade linguageira. O Contrato de Comunicação,

então, parece corresponder, a nosso ver, à ideia de gênero textual, já que leva em conta os

sujeitos do ato de linguagem, bem como a situação de comunicação na qual tal ato está

inserido e, ainda, sua ancoragem social. Desse modo, parece existir uma relação estreita entre

três conceitos – visadas, situação de comunicação e Contrato de Comunicação – já que as

visadas determinam qual Contrato de Comunicação será “assinado” entre os parceiros e os

protagonistas do ato de linguagem. Ou seja, determina qual será o gênero textual escolhido

pelos sujeitos quando estes se comunicarem.

Os modos de organização do discurso, grosso modo, acabam por demonstrar a

maneira como os sujeitos colocam em prática suas estratégias discursivas que visam a tornar o

outro coconstrutor da produção de sentido de um discurso. É por isso que o primeiro dos

modos, o enunciativo, tem a ver justamente com a maneira como os sujeitos da cena

enunciativa colocam-se dentro dela, recorrendo ora à modalização alocutiva, que tem por

objetivo persuadir o tu a ser cúmplice do eu, ora à modalização elocutiva, que expressa a

relação do enunciador consigo mesmo, ora à modalização delocutiva, em que há o

apagamento do eu.

O modo enunciativo, por sua vez, acaba implicando outros três: o descritivo, o

narrativo e o argumentativo. O primeiro tem a ver com fazer existir, nomeando e

identificando, um ser no mundo e, posteriormente, descrevendo-o, a partir das impressões de

um sujeito descritor. O segundo diz respeito às ações que tais sujeitos podem empreender no

mundo onde vivem e que podem ser contadas por meio de um narrador que dá vida aos

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actantes, agentes ou pacientes da ação, contando a um leitor as peripécias que os personagens

ou heróis, que também desempenham o papel de actantes, “vivem” na realidade que, aqui, é

transformada numa ficção mais ou menos verossímil. Por fim, o terceiro deles tem a ver com

o ponto de partida e até mesmo o de chegada de um discurso, que é a persuasão do outro: o

sujeito argumentador quer fazer com que seu destinatário partilhe da sua proposta

argumentativa, engajando-se, assim, no discurso produzido. Tais modos parecem, então, ficar

mais restritos ao aspecto predominantemente linguístico de um texto, já que, como o próprio

nome sugere, sinalizam os modos que se concretizam no discurso, deixando pistas textuais;

enquanto as visadas e o Contrato de Comunicação/gênero textual dizem respeito ao

discursivo.

Já que se falou acerca da argumentação como um todo, torna-se fundamental discutir a

noção de ethos que nada mais é do que a imagem de um enunciador que serve ela própria

como meio de persuasão e a de pathos, que tem a ver com as estratégias de sedução e de

captação empreendidas por um discurso, quando se pretende causar um efeito patêmico em

seu destinatário.

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4 A trilogia aristotélica: o ethos, o logos e o pathos.

Ethos, logos e pathos constituem a trilogia aristotélica, que determina os lugares de

argumentação que um texto pode ocupar: um orador pode convencer seu público por meio de

sua imagem - ethos -, por meio de seu próprio discurso - logos - e por meio das emoções -

efeitos patêmicos - que pode causar no referido público. Assim sendo, ethos, logos e pathos

constituem as três provas argumentativas que são engendradas pelo discurso.

Segundo Eggs (2013), Aristóteles distanciava-se de seus contemporâneos por entender

que o ethos também contribuía para a persuasão de um auditório, estabelecendo, assim, que

um orador que parecer mais honesto aos olhos de seu público - daí vem o termo epieíkeia -

terá mais chances de convencê-lo acerca daquilo que diz. Desse modo, é possível dizer que o

termo ethos está ligado a dois campos semânticos: um de sentido moral, fundado na epieíkeia,

que tem a ver com atitudes e virtudes, como a honestidade, a benevolência ou a equidade; e

outro, que se apresenta de maneira mais neutra, já que sobre ele não recai nenhum juízo de

valor explícito: trata-se da héxis, que diz respeito aos costumes e hábitos.

Em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que esses dois campos semânticos,

representados pelas palavras epieíkeia e héxis, são contraditórios entre si, porém, o ethos de

um orador está ligado à imagem que ele passa de si mesmo, mostrando-se honesto ao dizer o

que diz e, ainda, diz respeito aos seus hábitos e costumes que determinarão, via de regra, o

que se pensa sobre tal sujeito, afinal, seu discurso precisa ser condizente e coerente com

aquilo que realiza ou, nas palavras de Maingueneau (1993), o ethos precisa ser mostrado e não

apenas dito explicitamente:

O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz que é simples ou

honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O ethos está, dessa maneira,

vinculado ao exercício da palavra, ao papel que corresponde a seu discurso, e não

ao indivíduo “real”, (apreendido) independentemente de seu desempenho oratório:

é portanto o sujeito da enunciação uma vez que enuncia o que está em jogo aqui

(MAINGUENEAU, 1993, p.138).

O logos pode ser definido como o lugar que engendra o ethos, já que o discurso é o

local onde o orador se mostra a partir das escolhas que faz frente às possibilidades linguísticas

e estilísticas que tem ao seu dispor. Pensando, justamente, no logos como lugar que faz surgir

o ethos e o pathos é que se pode concluir que estes só são produzidos no e pelo discurso, já

que a credibilidade que se dá ao orador só pode ser consequência daquilo que ele diz. Assim

sendo, é possível dizer que o orador apenas inspira confiança se seus argumentos e conselhos

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forem sábios e razoáveis – phrónesis –, se ele argumentar honesta e sinceramente – areté – e

se for amável e solidário com seus ouvintes – eúnoia.

Cada uma dessas posturas assumidas pelo orador frente ao seu auditório se relaciona

com um dos lugares de argumentação que o discurso ocupa. Assim sendo, é possível

estabelecer que phrónesis faz parte do logos, já que tem a ver com os argumentos utilizados

pelo referido orador: leva-se em conta se tais argumentos podem ser considerados sábios e

razoáveis; a areté, por sua vez, diz respeito ao ethos, uma vez que se considera se o orador

apresenta-se de maneira sincera e honesta, inspirando, assim, a confiança de seu público; por

fim, a eúnoia relaciona-se com o pathos, pois trata do afeto que existe por parte do orador

para com seu destinatário, afinal, o efeito patêmico ocorre quando o orador se mostra

solidário e benevolente frente ao seu espectador. Logo, é possível estabelecer que os oradores

inspiram confiança, (a) se seus argumentos e conselhos são sábios, razoáveis e conscientes,

(b) se são sinceros, honestos e equânimes e (c) se mostram solidariedade, obsequiedade e

amabilidade para com seus ouvintes (ARISTÓTELES, 1378ª.C, apud EGGS, 2013: p. 37).

Os critérios utilizados para fabricar uma boa argumentação, mencionados acima, por

serem reais e funcionais, são passíveis de avaliação por parte de seus ouvintes, pois estes são

capazes de perceber que há argumentações que violam um ou outro desses critérios e, por

isso, tendem a criticá-las, assumindo, assim, o papel de juiz da comunicação (EGGS, 2013). É

possível dizer, também, que o ethos enquanto prova retórica é procedural, uma vez que tem

um sentido moral ou ideal que não nasce de uma atitude interior ou de um sistema de valores

abstrato, contudo, é produzido pelas escolhas competentes, deliberadas e apropriadas de um

orador.

Pode ser que o verdadeiro e o justo não se imponham durante a fala do orador ao seu

público e, se isso acontece, é porque o orador não se utilizou de argumentos que atingissem os

lugares comuns ou as tópicas de seu auditório, como bem nos lembra Aristóteles, ao enumerar

os topoï específicos de cada gênero retórico e as regras de inferência comuns aos tipos de

público, ou seja, enumera os topoï comuns a todo discurso humano, inclusive, àqueles que

dizem respeito às paixões e às três qualidades de uma argumentação, referidas anteriormente:

phrónesis, areté e eúnoia.

É importante que o orador, além de parecer honesto, apresente-se de maneira honesta e

sincera para que o verdadeiro e o justo se imponham perante seus destinatários. Para que isso

aconteça, é necessário que se respeitem os topoï e os saberes comuns, o que implica que o

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orador mostre um ethos apropriado à sua idade e à sua situação social, adaptando seu discurso

aos hábitos e costumes de seu auditório, realizando o que se convencionou chamar de ethos

objetivo. A realização do ethos moral, aquele que tem a ver com as atitudes e virtudes do

orador, passa, necessariamente, pela realização do ethos objetivo ou neutro, já que todo orador

tem por objetivo primordial convencer pelo discurso.

Existe, ainda, um triângulo aristotélico que distingue o orador, o ouvinte e o discurso,

mostrando que as provas fornecidas pelo discurso são de três espécies. A primeira delas está

centrada em seu orador, por isso, relaciona-se ao ethos ou à imagem de si que esse orador faz;

a segunda está ligada ao fato de o orador colocar seu ouvinte em certa disposição, tentando

captá-lo por meio da persuasão empreendida por seu discurso e pelas emoções que gera em

seu destinatário, ou seja, tentando provocar nele um efeito patêmico; a terceira diz respeito,

justamente, ao próprio discurso empreendido pelo orador. Desse modo, é possível estabelecer

que o ethos está ligado ao orador, assim como o pathos está ligado ao ouvinte.

Torna-se necessário, agora, estabelecer uma relação entre o ethos do orador e o ethos

do auditório: a imagem que o orador faz de si mesmo, ao se mostrar em público, com sua

idade, seu status e seu caráter, dependerá, inevitavelmente, da constituição ética de seu

auditório. O orador, então, acaba por adequar sua própria imagem a partir do momento em

que leva em conta as características e até mesmo as expectativas de seu auditório, afinal, a

persuasão do auditório é sempre a finalidade de um discurso, já que esse auditório funciona

como uma espécie de juiz acerca da expressão afetiva do orador, mostrando-se solidário ao

discurso desse orador e até mesmo ao ethos empreendido pelo sujeito enunciador em questão,

criando, assim, um princípio de cooperação que não só depende do ethos do orador, mas

também das paixões que ele provoca em seu auditório.

Charaudeau (2013), retomando Barthes, lembra que tanto ethos quanto pathos

participam do que chama de demonstrações psicológicas que não correspondem,

necessariamente, ao estado psicológico do orador ou de seu auditório, estabelecendo, assim,

uma diferença entre o ethos e o pathos visados pelo discurso e a imagem real/extradiscursiva

do orador e as emoções que seu auditório, de fato, sente. E é pensando, justamente, nessa

separação que existe entre identidades sociais e discursivas, as quais os sujeitos do ato de

linguagem carregam consigo, que se pode estabelecer que a Análise Semiolinguística do

Discurso não dá conta da imagem real do indivíduo que enuncia, mas apenas da enunciação

em si, já que o orador deve parecer amável e honesto e causar boa impressão em seu

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auditório, independente de ser assim, ou não, enquanto sujeito do mundo real. Desse modo, o

ethos está ligado ao próprio discurso e não ao indivíduo real que o profere.

Charaudeau diz, ainda, que há um ethos condizente com cada identidade que o sujeito

assume: há um ethos pré-discursivo que existe antes mesmo de o sujeito enunciador

empreender seu discurso, que corresponde à imagem que tal sujeito possui enquanto ser social

empírico. Por outro lado, há um ethos que só é ativado por meio do discurso, ou seja, por

meio do próprio ato de linguagem. O ethos, [então] relaciona-se ao cruzamento de olhares:

olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como pensa

que o outro o vê (CHARAUDEAU, 2013: p. 115).

Levando em conta, justamente, a questão da identidade pode-se dizer que o ethos é o

resultado de uma dupla identidade assumida pelo sujeito enunciador, já que ele se apresenta

não só como um ser social, existente no mundo extralinguístico, mas também como um ser de

palavra, visto que existe no e pelo discurso. É exatamente essa identidade social que confere,

a ele, o direito à palavra e funda sua legitimidade em função de seu papel dentro da cena

enunciativa. No entanto, o sujeito constrói para si uma identidade discursiva e se torna um

sujeito enunciador que se concentra no papel enunciativo que exerce e na imagem que quer

passar de si.

O ethos, para o teórico, não é totalmente voluntário nem consciente e não precisa

coincidir necessariamente com aquilo que o auditório percebe, afinal, o ethos é, antes de tudo,

uma imagem construída tanto pelo sujeito enunciador quanto pelo seu destinatário, apesar de

haver um desejo de que o sujeito se mostre tal qual ele é e que ele não faça uso de máscaras.

Charaudeau (2013) nos lembra, ainda, que a questão da identidade dos sujeitos passa

por representações sociais, já que a realidade em que vive o sujeito falante é uma realidade

construída pelas representações sociais que circulam em determinados grupos e que acabam

por se configurar naquilo que o teórico convencionou chamar de imaginários sócio-

discursivos, mostrando, assim, como a corporalidade e o tom de que fala Maingueneau - os

quais serão retomados a posteriori - dependem, intrinsecamente, da visão que a sociedade tem

do corpo e da maneira como ele é mostrado.

Portanto, já que o ethos é inscrito numa percepção das representações sociais, que

tendem a essencializar e unificar determinadas visões, pode-se dizer que ele diz respeito tanto

a indivíduos quanto a grupos de indivíduos, já que esses últimos, por conta do que se chama

de identificação, tendem a partilhar caracteres similares que, vistos de fora, dão a impressão

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de que esse grupo se constitui como sendo uma entidade homogênea. Logo, o ethos coletivo é

uma visão global, haja vista que é construído apenas pela atribuição apriorística de uma

identidade que emana de uma opinião coletiva em relação a um outro grupo

(CHARAUDEAU, 2013: p. 117).

Então, é possível dizer que

O ethos é bem o resultado de uma encenação sociolinguageira que depende dos

julgamentos cruzados que os indivíduos de um grupo social fazem uns dos outros ao

agirem e falarem. “As ideias são construídas por maneiras de dizer que passam por

maneiras de ser”, afirma Maingueneau. É preciso acrescentar a recíproca, que diz

que as maneiras de ser comandam as maneiras de dizer, portanto, as ideias

(CHARAUDEAU, 2013: p. 118).

Maingueneau (2008), por sua vez, alerta para o fato de a noção de ethos ser bastante

intuitiva, já que faz parte do senso comum a ideia de que um locutor, ao empreender seu

projeto de fala, ativa em seus destinatários certa representação de si mesmo, procurando

controlá-la e, por conta disso, persuadir seu público acerca daquilo que está dizendo.

Persuasão essa que pode ser comprovada por uma espécie de technè cujo objetivo é mostrar

que não se deve convencer este ou aquele indivíduo pelo discurso, mas sim tipos de

indivíduos que correspondem a uma espécie de perfil idealizado por aquele que fala. Dessa

forma, é possível pensar que o ethos é o responsável por causar uma boa impressão no público

a que se destina determinado discurso pela forma como esse discurso é construído,

estabalecendo, assim, uma imagem de si mesmo que gera confiança em seu auditório.

É possível dizer que o destinatário atribui a um locutor inscrito no mundo

extradiscursivo traços que só são serão reconhecidos no e pelo discurso, já que são associados

a formas específicas de dizer, influenciadas, portanto, pelo tom de voz usado pelo orador, por

sua entonação e pela cadência de sua voz, mostrando que o ethos assume certa corporalidade,

que também tem a ver com o fluxo de fala, as escolhas lexicais e argumentativas, a postura, as

aparências, criando uma imagem sociológica e psicológica de si mesmo.

Essa representação do locutor é, antes de tudo, uma representação dinâmica construída

por seu destinatário a partir da observação da própria fala do locutor cujo ethos implica numa

experiência sensível por parte daquele que recebe o discurso: o pathos tem, então, por

objetivo mobilizar uma espécie de afetividade em seus ouvintes, proveniente não só do logos,

como também do ethos, que, por sua vez, não pode ser um fingimento, estabelecendo, assim,

a necessidade de haver uma coconstrução entre o enunciador e a pessoa que ouve seu discurso

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para que o efeito patêmico se realize. A fim de elucidar, de vez, a questão da trilogia

aristotélica, recorremos, pois, a Maingueneau:

Para retomar uma fórmula de Gilbert (século XVIII), que resume o triângulo da

retórica antiga,“instrui-se pelos argumentos, comove-se pelas paixões; insinua-se

pelas condutas”: os “argumentos” correspondem ao logos; as “paixões” ao pathos,

as “condutas” ao ethos” (MAINGUENEAU, 2008: p. 14)

Pensando, justamente, no fato de que um orador não sabe as diferentes características

que pode encontrar em seu auditório é que ele deve escolher quais paixões quer suscitar nesse

auditório, afinal, as virtudes não são consideradas da mesma maneira em todos os lugares por

todas as pessoas. Logo, é apenas diante de seu público que o enunciador construirá uma

imagem, levando em conta aquilo que é considerado virtude pelo referido público, pois a

persuasão não se criará caso o auditório não possa ver que esse sujeito que fala tem o mesmo

ethos que ele, ou seja, persuadir consistirá em fazer passar pelo discurso um ethos

característico do auditório, para lhe dar a impressão de que é um dos seus que está ali

(MAINGUENEAU, 2008: p. 15).

É preciso, ainda, estabelecer a diferença entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo.

Por ethos pré-discursivo, entende-se o fato de que o público acaba por construir uma ou mais

de uma representação do ethos do enunciador, antes mesmo que ele fale. É o que acontece,

por exemplo, no discurso político, em que um orador já é conhecido de seu público por suas

ações e seu caráter antes mesmo de empreender seu discurso, que virá a negar ou a confirmar

a imagem que o auditório tem de seu orador. O ethos discursivo é, por sua vez, a imagem que

o orador cria para si por meio do discurso que realiza, ficando este um pouco mais restrito ao

material linguístico produzido por aquele em determinado discurso, realizado por um orador,

uma vez que ele quer persuadir seu destinatário acerca do que diz.

O ethos, então, é fruto de uma percepção complexa, já que mobiliza a afetividade de

um intérprete provinda do material linguístico que fornece e também do ambiente onde está

inserido, haja vista que o ethos é, por natureza, um comportamento que articula o verbal e o

não-verbal, provocando, por isso, efeitos multissensoriais em seus destinatários. Porém, é

preciso esclarecer que o ethos visado não corresponde, necessariamente, ao ethos produzido,

visto que este é uma noção discursiva construída no e pelo discurso.

Há, ainda, que se retomar a noção de ethos coletivo, afinal, segundo Kerbat-

Orecchioni (1996, apud MAINGUENEAU, 2008), essa noção pode ser associada aos hábitos

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locucionais compartilhados por uma comunidade de fala, tornando-se, assim, um quadro de

referência invisível e imperceptível para os membros dessa comunidade, determinando,

portanto, as maneiras de se comportar e de interagir que são mais ou menos aceitas por uma

comunidade, em função das expectativas comuns que devem ser atendidas quando há a

atividade linguageira.

A noção de estereótipo surge, principalmente, quando se observa o discurso

publicitário, uma vez que este se apropria de ethé mais estereotipados – noção de estereótipo

será retomada posteriormente –, convencionados por determinadas comunidades, para fazer

com que seu público-alvo adira a determinadas propagandas, pois esse público tem o direito

de ignorá-las ou de recusá-las, mas pode, no entanto, aceitar que há um processo interativo de

influência de um sujeito sobre o outro. Muitas vezes, as publicidades do corpus são

entendidas como sendo ofensivas, justamente por burlarem certos estereótipos, fazendo com

que seu destinatário se recuse a aderir ao discurso produzido e veiculado pela publicidade.

Justamente por estarmos lidando com publicidade às avessas, é que se pode

estabelecer que a propaganda abaixo, veiculada pelo site de humor Desencannes, cujo

enunciado diz Encha seu filho de bolacha, pode ser considerada como sendo ofensiva, caso

bolacha seja entendida pelo viés da violência, já que há uma crença de que bons pais não

devem bater em seus filhos, devem, ao contrário, estabelecer, com eles, um diálogo,

ensinando-lhes o que é certo e o que é errado. Portanto, tal propaganda fere um dos

estereótipos mais comuns de nossa sociedade: bons pais não batem em seus filhos.

Por outro lado, o vocábulo bolacha pode ser entendido como sendo sinônimo de

biscoito, o que abrandaria o ethos de pais ruins, mas não tanto, já que biscoito recheado não é

um tipo de alimento que deva ser ingerido com tanta frequência, pois não é benéfico para a

saúde. Dessa maneira, pode-se afirmar que tal propaganda fere, ainda, outro estereótipo

bastante recorrente em nossa sociedade: o de que bons pais dão para seus filhos apenas

alimentos saudáveis e não biscoitos recheados, contendo altos níveis de açúcar.

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Figura 4 – Peça publicitária do biscoito Bono, publicada pelo Desencannes.

É importante, ainda, atentar para o fato de que o ethos é uma noção sócio-discursiva

que funciona, deste modo, tanto na instância do discurso quanto na instância do social, visto

que se trata da avaliação de um comportamento socialmente aceito por determinado grupo que

não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação, que precisa, por sua vez, estar

integrada, ela mesma, a determinada conjuntura sócio-histórica.

Maingueneau (2008) traz à baila o conceito de fiador que nada mais é do que o

enunciador construído pelo destinatário a partir de índices liberados na enunciação, que se

relaciona com a “vocalidade” que um texto pode assumir e que se manifesta numa

multiplicidade de “tons” que estão associados a uma caracterização do corpo do enunciador.

Dessa forma, o teórico retoma a noção “encarnada” do ethos, utilizando o termo de Auchlin,

que recobre não só a dimensão verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e

psíquicas ligadas ao “fiador” pelas representações coletivas estereotípicas

(MAINGUENEAU, 2008: p. 18), atribuindo, assim, um “caráter” e uma “corporalidade” a

ele; “corporalidade” essa que está associada a uma constituição corporal e a uma maneira de

vestir-se, ao passo que o “caráter” está associado a traços psicológicos. O caráter e a

corporalidade apoiam-se em um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou

desvalorizadas e de estereótipos sobre os quais a enunciação se dá contribuindo para reforçá-

los ou, ao contrário, para transformá-los.

O fiador, por sua vez, engendra, ele próprio, um “mundo ético” do qual faz parte e ao

qual apenas ele mesmo tem acesso por meio da leitura que reúne certo número de situações

associadas a comportamentos. Dessa forma, o leitor, ou intérprete no dizer de Maingueneau

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(2008), inicia o processo de “incorporação” dentro do qual se apropria desse ethos. A

publicidade, como dito, parece estar intimamente ligada ao ethos, já que, no mundo

contemporâneo, busca efetivamente persuadir seu público-alvo, associando produtos que

promovem uma maneira de viver no mundo a um corpo em movimento, apoiando-se em

estereótipos validados para “encarnar” aquilo que prescreve.

Maingueneau (2013) diz que todo discurso pressupõe uma cena de enunciação para

seu enunciado a qual deve validar por sua própria enunciação, visto que qualquer discurso

precisa instaurar uma situação de comunicação que o torna pertinente. Diante disso, é possível

estabelecer que a "cena da enunciação" integra três outras cenas, a saber, a "cena englobante",

que diz respeito ao tipo de discurso que se quer veicular; a "cena genérica", que se associa a

um contrato, o qual, a seu turno, associa-se a um gênero discursivo; e a "cenografia", que é

uma construção estabelecida pelo próprio texto, já que não é imposta pelo gênero discursivo,

logo, parece se assemelhar a uma espécie de modos de dizer e de fazer que são comuns a

determinados gêneros. O discurso publicitário, assim como o político, faz uso de cenografias

variadas posto que pretende persuadir seu interlocutor, captando, para isso, seu imaginário,

atribuindo a ele uma identidade, invocando uma cena de fala valorizada.

A cenografia de um discurso é reconstruída por um leitor com o auxílio de indícios

discursivos que um texto traz, cuja descoberta se apoia, por exemplo, no conhecimento do

gênero discursivo, no ritmo de um texto ou até mesmo em conteúdos explícitos. Em qualquer

cenografia, a figura do enunciador, entendido, aqui, como fiador, possui um figura correlativa,

a saber, o coenunciador os quais se associam numa dada cenografia, ou seja, num dado

momento e numa dada topografia, já que ocupam um determinado lugar do qual o discurso

parece originar-se. A cenografia é, portanto

(...) ao mesmo tempo, aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela

legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa

cena de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar (...) São

os conteúdos desenvolvidos pelo discurso que permitem especificar e validar a

própria cena e o próprio ethos, pelos quais esses conteúdos surgem.

(MAINGUENEAU, 2013: pp. 77-78)

O ethos pode, também, incidir sobre o conjunto de uma cena de fala que é apresentada

como um modelo ou, por outro lado, um antimodelo a ser seguido. Essa cena pode ser

chamada de “cena validada”, haja vista que o sentido de “validada”, aqui, é o de “já instalada

na memória coletiva”. Tais cenas são fixadas, facilmente, em representações estereotipadas,

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popularizadas pela tradição, variando de acordo com o que é valorizado por cada grupo e pelo

que é visado dentro de um tipo de discurso específico, desde que sejam representações

partilhadas por esse público-alvo.

As referidas cenas validadas são, ao mesmo tempo, exteriores e interiores ao discurso

que evocam: exteriores porque existem de maneira prévia ao discurso, sendo-lhes anteriores

em algum lugar do interdiscurso; e interiores, pois são, também, produto desse discurso que,

por sua vez, configura-as segundo seu próprio universo. Vale lembrar que a exploração dessas

cenas validadas ou cenas de referência varia de acordo com o posicionamento de quem as traz

para o texto.

O enunciado, então, dá-se pelo tom que usa o fiador, associado, como dito, a uma

dinâmica corporal, cujo sentido o leitor identifica, já que participa “fisicamente” do mesmo

mundo trazido pelo fiador por meio do discurso: o coenunciador se deixa captar pelo ethos,

que é, ao mesmo tempo, envolvente e invisível, decifrando seus conteúdos de um discurso.

Dessa forma, é possível pensar que o coenunciador é implicado em sua cenografia, visto que

participa de uma esfera na qual pode reencontrar um enunciador que, pela vocalidade da fala,

é tido como fiador de um mundo representado por ele(s).

Recorremos, mais uma vez, a Maingueneau (2008) para tratar do ethos:

O ethos de um discurso resulta da interação de diversos fatores: ethos pré-

discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também os fragmentos do texto

nos quais o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito) - diretamente (“é

um amigo que lhes fala”) ou indiretamente, por meio de metáforas ou de alusões a

outras cenas de fala, por exemplo, a distinção entre ethos dito e mostrado se

inscreve nos extremos de uma linha contínua, uma vez que é impossível definir uma

fronteira nítida entre o “dito” sugerido e o puramente “mostrado” pela enunciação.

O ethos efetivo, construído por tal ou qual destinatário, resulta da interação dessas

diversas instâncias (MAINGUENEAU, 2008, pp. 18-19)

Antes de falar do outro lugar que a argumentação ocupa, a saber, o pathos, torna-se

imprescindível diferenciá-lo das emoções propriamente ditas, já que essas podem ser

provocadas fisiologicamente e até mesmo mensuradas quimicamente, como bem nos lembra

Charaudeau (2010a). Os estudos acerca desse tipo de emoções centram-se no indivíduo e

propõem explicações causais sobre o(s) comportamento(s) que apresentam. No entanto, é

necessário explicitar que as emoções não são apenas fruto das pulsões ou da irracionalidade

ou, ainda, da ordem do incontrolável, visto que carregam consigo um caráter social que

determina, por sua vez, o sentimento de pertencimento de um indivíduo a um grupo,

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representando, assim, a vitalidade de uma consciência coletiva. Dessa forma, há que se

considerar que esse grupo guia a maneira como os indivíduos devem se comportar,

moralmente falando, em termos afetivos e emocionais. Logo, as emoções, por serem

socialmente partilhadas, inscrevem-se num quadro axiológico que as torna mais ou menos

passíveis de existirem em determinados contextos, já que dependem da “aprovação” de

indivíduos que compõem um mesmo grupo.

A análise do discurso, por sua vez, não pode ter como objeto de estudo as referidas

emoções que um indivíduo, de fato, sente: cabe ao analista do discurso estudar as emoções

que são visadas em termos discursivos, ou seja, aquelas que o enunciador quer que seu

destinatário sinta quando produz seus discursos. Trata-se, então, de um estudo das emoções

discursivas que só existem, assim como ethos, no e pelo discurso, e seu estudo só se dá de

maneira efetiva quando suas análises englobam os mecanismos de intencionalidade do sujeito,

os de interação social e a maneira como essas representações sociais constituem-se dentro do

discurso.

Os efeitos patêmicos do discurso ligam-se às emoções que são, ao contrário daquilo

que o senso comum determina, intencionais, estão ligadas a saberes de crença e se inscrevem

em uma problemática da representação social. É possível dizer que as emoções são fruto de

intencionalidade, pois se trata de emoções produzidas no e pelo discurso, afinal, a

racionalidade, como resume Elster (1995, apud CHARAUDEAU, 2010a), está a serviço de

um agir para alcançar um objetivo – que não precisa, necessariamente, ser atingido – cujo

agente é o primeiro beneficiário dessa ação. Podemos dizer, ainda, que esse objetivo a ser

alcançado ou essa visada acional é fruto de uma busca por um objeto que é desencadeada por

algo que se insere na ordem do desejo, visto que seu agente quer ser, ao mesmo tempo, agente

e beneficiário da ação. Dessa forma, é possível afirmar que essa racionalidade é fruto do

desejo de um sujeito e pode, por esse motivo, ser qualificada como sendo subjetiva.

Citamos, pois, Charaudeau (2010a):

Assim, podemos afirmar que as emoções se inscrevem em tal quadro de racionalidade

pelo fato de “... conterem em si mesmas uma orientação direcionada a um objeto

(Nussbaum, 1995, p. 24), do qual tiram sua propriedade de intencionalidade. É pelo

fato de as emoções se manifestarem em um sujeito “a propósito” de algo que ele

representa para si que elas podem ser nomeadas de intencionais (CHARAUDEAU,

2010a: p. 28).

As emoções estão ligadas aos saberes de crença, haja vista que não é suficiente que os

sujeitos percebam algo, não basta que esse algo venha acompanhado de alguma informação

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ou de um saber, é necessário que esse sujeito avalie esse saber para que possa se posicionar

em relação a ele, a fim de poder vivenciar ou exprimir certas emoções. Esse tipo de saber

possui, então, duas características no dizer de Elster (1995, apud CHARADEAU, 2010a),

pois se estrutura em torno de valores que são polarizados, mas que não devem ser entendidos

como sendo verdadeiros, já que são fruto da subjetividade de um indivíduo que, por sua vez,

constrói esse saber. Pode-se, dessa maneira, dizer que se trata de um saber de crença, afinal,

baseia-se em uma construção subjetiva, opondo-se, portanto, a um saber de conhecimento,

que se baseia, a seu turno, em critérios de verdade que são exteriores ao referido sujeito.

As emoções, por conseguinte, devem ser tratadas sob um olhar judicativo que se apoia

nas crenças partilhadas por um grupo social, cujo respeito e, até mesmo o desrespeito, levam a

uma sanção moral da ordem do elogio ou da repreensão. Tais emoções podem ser entendidas

como um tipo de estado mental racional em que qualquer modificação de crença leva,

necessariamente, a uma modificação de emoção. Do mesmo modo, qualquer modificação de

emoção leva a um deslocamento de crença.

Como nos lembra CHARAUDEAU (2010a), pode-se afimar que:

i) as crenças são constituídas por um saber polarizado em torno de valores

socialmente compartilhados; ii) o sujeito mobiliza uma, ou várias, das redes

inferenciais propostas pelos universos de crença disponíveis na situação onde ele

se encontra, o que é susceptível de desencadear nele um estado emocional; iii) o

desencadeamento do estado emocional (ou a sua ausência) o coloca em contato

com uma sanção social que culminará em julgamentos diversos de ordem

psicológica ou moral (CHARAUDEAU, 2010a: p. 30).

A partir do momento em que se diz que as emoções são estados emocionais que se

baseiam em saberes de crença, é possível afirmar que elas se inscrevem em uma problemática

de representação posto que essa procede de um duplo movimento de simbolização e de auto-

representação. A simbolização acontece quando as emoções arrancam os objetos do mundo,

fazendo com que eles deixem de ser objetos e passem a ser uma imagem, que é dada pelo

próprio objeto, mas que não é o objeto em si. Trata-se de uma noção de autorrepresentação,

haja vista que o sujeito constrói, de forma imaginária, um mundo que, por um fenômeno de

reflexividade, retorna ao próprio sujeito como imagem que ele mesmo constrói desse mundo e

por meio da qual ele mesmo se define. Em outras palavras, o mundo é autoapresentado para o

sujeito e é por meio dessa imagem que lhe foi apresentada que ele constrói sua própria

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identidade, revelando mais sobre si próprio quando enuncia do que revelaria acerca de seu

enunciado.

As representações são consideradas patêmicas caso descrevam uma situação da qual

resulta um juízo de valor articulado e compartilhado coletivamente, juízo de valor esse que

questiona um actante que acredita ser beneficiário ou vítima e ao qual o sujeito da

representação encontra-se ligado. Assim sendo, é pertinente dizer que a relação patêmica

acaba engajando um sujeito em um comportamento reacional, de acordo com as normas

sociais às quais ele se submete e é submetido.

As representações podem ser, ainda, chamadas de sociodiscursivas, afinal, seu

processo de configuração simbolizante do mundo faz-se por meio de signos enunciados que

significam fatos e gestos de seres do mundo, visto que circulam em uma dada comunidade e

se tornam objeto de partilha entre os indivíduos que fazem parte dessa comunidade, passando,

desse modo, a constituir um saber comum e, particularmente, um saber de crença. Dito de

outro modo: as representações são sócio-discursivas quando implicam o sujeito em uma

tomada de posição no que diz respeito aos valores. Em contraposição, há aos saberes de

conhecimento que lhe são exteriores, logo, não lhe pertencem, apenas vêm até esse sujeito,

mas não o implicam.

Segundo Charaudeau (2010a), elas, as representações sociodiscursivas, são uma

espécie de mini-narrativas do mundo, que revelam sempre o ponto de vista de um

determinado sujeito cujos enunciados circulam na comunidade social, criando uma rede

complexa e vasta de intertextos que se agrupam e reagrupam, formando o que se

convencionou chamar de imaginários sócio-discursivos, dentro dos quais figuram,

reproduzem-se e são criados os estereótipos. Tais imaginários são considerados sintomas

desses universos de crenças partilhados que contribuem para a construção concomitante de

um ele social e um eu indivíduo.

Imaginários sociodiscursivos podem ser definidos, então, como sendo o lugar onde se

estruturam essas diversas representações sociais que, por sua vez, também são sócio-

discursivas, visto que são construídas pelo dizer. Além disso, são percebidas e identificadas

nos e pelos discursos que circulam em diferentes grupos sociais e resultam de uma miscelânea

de saberes – de crença, de conhecimento, de erudição etc. Dentre essas representações, e, sem

que se possa distinguir com clareza, há representações de ordem social, outras, de ordem

cultural, outras, ainda, de ordem comunitária. Na realidade, a apreensão e compreensão desses

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imaginários sociodiscursivos exigem uma competência semântica para que o sujeito seja

capaz de dar conta de toda a carga de significados e sentidos que os imaginários trazem

consigo.

Os sistemas de representação refratam e refletem os imaginários, interpretando a

realidade circundante e mantendo, com essa mesma realidade, relações simbólicas, por um

lado, e lhe atribuindo significações, por outro. Assim sendo, é possível estabelecer que os

imaginários referem-se à capacidade de simbolização da realidade por um determinado

domínio de prática social por um grupo, também ele, social. Recorremos, pois, a Monnerat

(2012) para compreender melhor a questão:

De natureza cognitivo-discursiva, portanto, os imaginários

sociodiscursivos veiculam imagens mentais pelo discurso, configurando-se

explicitamente (palavras ou expressões) ou implicitamente (alusões). Dessa forma,

os imaginários – imersos no inconsciente coletivo tecido pela história – podem

contribuir para o estabelecimento de crenças numa determinada sociedade,

orientar as condutas aceitas numa dada época e desempenhar o papel de

responsáveis pela constituição do sujeito com fins de adaptação ao meio ambiente

e de comunicação com o outro. Podem, ainda, concorrer para o estabelecimento

de visões estereotipadas do sujeito, como ser individual e coletivo.

Assim, o real não é apresentado a partir de uma descrição objetiva, mas

por meio de representações veiculadas pelo enunciador a fim de induzir o leitor a

construir, a partir dos fragmentos dados, um mosaico que ele tomará como

verdade, sendo todo esse processo intermediado pela linguagem (MONNERAT,

2012: p. 309).

De acordo com Amossy e Pierrot (2004), muitas vezes, as noções de estereótipo e

representação social confundem-se, entretanto, recorrendo a Jodelet (1989, apud AMOSSY e

PIERROT, 2004), as autoras estabelecem que, enquanto a representação social designa um

universo de opiniões, o estereótipo é a cristalização de um elemento e serve, apenas, como seu

indicador. Na realidade, é necessário esclarecer que, numa perspectiva interessada no

imaginário social e na lógica das representações coletivas, por meio da qual um grupo social

percebe e interpreta o mundo, a expressão “representação social” diz respeito ao termo

“estereótipo”, tendo a vantagem de não carregar consigo conotações negativas.

O termo “estereótipo”, assim como o termo “clichê”, tem sua origem na tipografia,

uma vez que a imprensa criou um novo procedimento de reprodução em massa de um modelo

fixo, substituindo a composição feita a partir de caracteres móveis. É daí que vem o

significado do vocábulo, tomado de empréstimo da linguagem corrente, que define estereótipo

como sendo as imagens mentais que os indivíduos carregam consigo e que mediam suas

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relações com a realidade. Trata-se de representações cristalizadas, esquemas culturais pré-

existentes, por meio dos quais cada indivíduo filtra a realidade de seu entorno.

O estereótipo, como bem se sabe, caracteriza e esquematiza o mundo, contudo, esses

procedimentos são indispensáveis para a cognição, ainda que conduzam a uma simplificação e

a uma generalização, por vezes, excessiva. Enquanto indivíduos, necessitamos relacionar

aquilo que vemos a modelos pré-existentes para podermos compreender o mundo, realizarmos

previsões e regularmos nossas condutas.

Se não fossem os estereótipos, como nos adverte Lippmann (1922, apud AMOSSY e

PIERROT, 2004), não haveria tempo hábil nem mesmo a possibilidade de as pessoas

conhecerem umas às outras, de maneira íntima, logo, é necessário recorrer a características

comuns a um grupo de indivíduos para representá-los e para que os outros possam identificá-

los, por exemplo, como publicistas, judeus, negros, ricos etc. Entretanto, à medida que os

estereótipos respondem a um processo de categorização e de generalização, recortam e

simplificam o real, podendo provocar uma visão esquemática e deformada do outro, o que

gera preconceitos.

É importante estabelecer que, muitas vezes, a noção de estereótipo carrega uma carga

tão negativa que é confundida com a noção de preconceito. Todavia, Amossy e Pierrot (2004)

diferenciam, à luz da psicologia social, o estereótipo como sendo uma crença, uma opinião,

uma representação relativa a um grupo e seus membros, enquanto o preconceito designa a

atitude adotada pelos membros de um grupo em relação a outros indivíduos de grupos

diferentes. Esse mesmo estereótipo que desvaloriza um grupo aparece como um instrumento

de legitimação em diversas situações de dominação, propiciando a subordinação de um grupo

com relação a outro. As autoras (op. cit.) alertam, ainda, para o fato de que os meios de

comunicação são grandes divulgadores de estereótipos, fazendo com que os indivíduos

tenham uma visão, muitas vezes, distorcida, de grupos sociais distintos, reforçando

preconceitos e julgamentos infundados.

Ferrés (1998), por sua vez, define os estereótipos como sendo representações sociais

institucionalizadas, reiteradas e reducionistas, haja vista que pressupõem uma visão

compartilhada que um coletivo social possui acerca de outro coletivo. É mister ressaltar que

os estereótipos, conforme dito, têm como base a rigidez e a repetição, o que faz com que

pareçam naturais, já que seu objetivo é ser – ou, pelo menos, parecer – a própria realidade.

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Nesse sentido, os estereótipos assemelham-se aos processos de sedução, haja vista que

fazem uso de uma percepção seletiva, posto que, como o próprio nome sugere, selecionam, de

maneira intencional, uma dimensão isolada da realidade, polarizando a atenção do destinatário

para que ele realize um processo de globalização, transferindo a parte negativa para o todo,

tornando essa dimensão negativa a própria realidade. Muitas vezes, é o estereótipo que faz

com que os indivíduos sejam preconceituosos em relação a uma pessoa pelo simples fato de

ela pertencer a um coletivo que, por sua vez, também é vítima de rejeição.

Os estereótipos são entendidos, por Ferrés (op. cit.), como representações legítimas

da(s) ideologia(s) dominante(s) latente(s) em um discurso, cumprindo a função de justificar a

conduta do grupo que os estabeleceu ou que se solidariza com eles. Os estereótipos

organizam-se, então, em função de uma série de variáveis, como sexo, classe social,

ideologia, idade, atividade profissional, raça, religião, entre outros, e se manifestam mediante

a associação de características simples, positivas ou negativas – embora as últimas sejam

maioria –, a cada um dos estratos estereotipados.

Isso posto, é possível pensar que os estereótipos podem ser analisados a partir da

dupla ótica da causa que os justifica e dos efeitos que produzem. Do ponto de vista da causa,

pretendem reduzir e simplificar a realidade por meio da seleção de algumas características e

do esquecimento ou da escamoteação de outras. Esse jogo de luz e sombra empreendido com

relação às características é feito com o objetivo de gerar os seguintes efeitos: facilitar a

interpretação da realidade, reduzindo sua complexidade e até mesmo sua ambiguidade e,

ainda, oferecer um recorte da realidade, marcado ideologicamente, em função dos interesses

do locutor, possibilitando, dessa forma, possíveis processos de envolvimento emocional dos

protagonistas do ato de linguagem.

Os indivíduos recorrem, frequentemente, de maneira consciente ou inconsciente, aos

estereótipos, uma vez que esses representam certa economia de energia – a mesma de que fala

Freud (1996) com relação aos chistes – quando se é necessário interpretar uma realidade

complexa que mostra resistência para ser compreendida. Portanto, no princípio, os

estereótipos são aceitos, pois respondem às necessidades primárias, tanto cognitivas, quanto

emotivas, dos referidos indivíduos. Depois, acabam contribuindo para criar ou reforçar ideias

e valores, já que incidem sobre mapas mentais com os quais se interpretará a realidade.

Assim sendo, é possível estabelecer que os estereótipos se aproveitam de algumas

necessidades primárias das pessoas, como é o caso do prazer imediato, da economia de

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esforço e da necessidade de emoções elementares, a fim de exercer uma influência ideológica

ou ética, legitimadora do status social, político, econômico e cultural, o que pode ser

intencional ou involuntário. Os efeitos dessa prática parecem, também, eliminar a

complexidade, as contradições – pessoais ou sociais –, tornando-se um recurso eficaz para o

processo de homogeneização na interpretação da realidade e de homogeneização de ideias,

princípios, valores, preferências e comportamentos.

Cabe esclarecer que o estereótipo é, sempre, reflexo da ideologia dominante, já que é

um princípio organizador da realidade que tende a conservá-la, perpetuá-la, petrificá-la, sob a

aparência de poder contribuir para a compreensão dela. No entanto, segundo Ferrés (1998),

acabam contribuindo para uma espécie de confusão da realidade, perpetuando, assim,

equívocos, posto que se apresentam como uma consequência da ordem natural das coisas,

porém, nada mais são do que uma generalização simplificadora do real.

Os estereótipos funcionam, ainda, como mecanismos de pressão social para que os

indivíduos não se sintam privados de uma identidade cultural e de um universo simbólico de

referências. Diante disso, é possível dizer que aqueles que não se enquadram em algum desses

grupos acabam por ser marginalizados, correndo o risco de serem isolados socialmente e até

mesmo de serem postos de lado pelo coletivo e expulsos da tribo.

Assim como as publicidades canônicas, o Desencannes também faz uso dos

estereótipos para compor suas peças, haja vista que o discurso publicitário precisa sempre

recorrer a mecanismos simplificadores, economizando o máximo de energia possível de seus

destinatários, causando um impacto emocional e a satisfação das expectativas que eles possam

vir a ter. Todas essas estratégias têm por objetivo, na realidade, ativar, nos destinatários,

mecanismos de identificação que podem ser negativos ou positivos.

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Figura 5 – Peça publicitária do Governo Federal, publicada pelo Desencannes

É o que acontece na peça publicitária, presente na figura 5, que recorre ao estereótipo

de que mulheres dirigem mal, apesar de uma pesquisa recente do DETRAN, realizada em

2011, apontar o fato de que a maior parte do número de acidentes, inclusive, os fatais, é de

responsabilidade dos homens e não das mulheres. A peça publicitária, por meio de uma

comparação, afirma que aqueles que ingerem álcool dirigem tão mal quanto mulheres

dirigindo sóbrias, igualando os efeitos prejudiciais que o álcool causa, ao modo como as

mulheres dirigem. Logo, os estereótipos parecem ser representações sociais que reiteram e

reduzem a complexidade da realidade, ainda que não correspondam, necessariamente, a ela.

Voltando, agora, a falar sobre emoções, a fim de retomar o que foi anteriormente dito,

é possível dizer que essas se resumem da seguinte maneira:

● (...) advêm de um “estado qualitativo” de ordem afetiva, em razão de um

sujeito que vivencia e sente estados eufóricos/disfóricos numa relação com a sua

fisiologia e suas pulsões.

● mas advêm, ao mesmo tempo, de um “estado mental intencional” de ordem

racional, enquanto visam um objeto que é figurado por um sujeito que tem uma visão

do mundo, que julga esse mundo por meio de valores, os quais são objeto de um

consenso social, constituem saberes de crença por meio de imaginários

sociodiscursivos que servem de suporte desencadeador ao mesmo tempo de um estado

qualitativo e de uma reação comportamental.

● as emoções são, desse modo, ao mesmo tempo, origem de um

“comportamento, enquanto se manifestam por meio das disposições de um sujeito, e

controladas (até mesmo, sancionadas) pelas normas sociais advindas dessas crenças.

(CHARAUDEAU, 2010a: pp. 32-33)

É importante salientar, mais uma vez, que não há uma relação entre um efeito

patêmico visado e um efeito patêmico produzido, ou seja, não há relação de causa e efeito

entre exprimir ou descrever uma emoção e provocar um estado emocional no outro

(CHARAUDEAU, 2010a: p. 34). A análise do discurso, a seu turno, deve restringir-se à

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análise do processo discursivo pelo qual a emoção pode ser estabelecida, tratando-a como um

efeito visado, mas não como um efeito, de fato, produzido. Dessa forma, é possível

estabelecer que determinados tipos de discurso têm por objetivo causar um efeito patêmico

em seus destinatários, mas nunca se saberá se o efeito visado foi o obtido. Dito de outro

modo: o efeito patêmico produzido no e pelo discurso é diferente das emoções reais que um

sujeito sente em sua vida, afinal, a emoção instaurada pelo processo discursivo não é,

necessariamente, aquela sentida e vivida pelos sujeitos sociais no mundo extralinguístico.

Assim sendo, fica claro que a organização do universo patêmico depende da situação social e

sociocultural na qual se inscreve a troca comunicativa (CHARAUDEAU, 2010a: p. 37).

A patemização pode, ainda, ser tratada discursivamente como uma categoria de efeito

que depende das circunstâncias nas quais surge. Os casos de ausência de emoção podem ser

explicados pelas expectativas que estão em jogo em toda atividade linguageira: pode ser que a

expectativa, empreendida por um sujeito, em uma situação de comunicação, não coincida com

o que, de fato, ele encontra quando coconstrói o sentido de um texto.

Para Charaudeau (2010a), o estudo do discurso patêmico depende de três tipos de

condição: a primeira refere-se ao fato de o discurso produzido se inscrever em um dispositivo

comunicativo cuja finalidade e lugares são atribuídos de maneira prévia aos parceiros da

troca, o que predispõe à ocorrência de efeitos patêmicos. Assim sendo, existem dispositivos

que propiciam o surgimento de efeitos patêmicos, já que sua finalidade tem como base

predominantemente uma estratégia captadora e os parceiros estão “envolvidos” nos saberes de

crença, contudo, há dispositivos que não propiciam os efeitos patêmicos, já que têm como

traço dominante a existência da credibilidade e o fato de os parceiros serem colocados “à

distância” dos saberes de crença.

A segunda condição diz respeito à tematização sobre a qual se apoia o dispositivo

comunicativo e pode prever a existência de um universo de patemização e propor certa

organização dos imaginários sociodiscursivos mais suscetíveis de produzir os efeitos

patêmicos. A terceira condição, por sua vez, diz respeito ao espaço de estratégias que foi

disponibilizado por restrições impostas pela situação de comunicação que, junto com a

enunciação, fazem uso da cena enunciativa cuja visada é a patemizante.

Torna-se possível dizer que a patemização do discurso é uma resultante do jogo de

restrições e liberdades existentes na cena enunciativa, afinal, as trocas comunicativas

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precisam carregar consigo condições específicas para a existência de possíveis visadas

patêmicas.

Os lugares que o dispositivo da comunicação televisiva, por exemplo, atribuem a seus

parceiros são favoráveis ao surgimento de efeitos patêmicos que se apoiam em crenças, na

tensão entre “credibilidade” e “captação”, e na tensão relativa ao lugar que ocupa cada um dos

parceiros, que pode ser o de “implicamento” ou o de “distância”. Segundo o teórico, o mesmo

não acontece com o dispositivo publicitário que, conforme ele nos diz, não comove seu

público-alvo, porém, utiliza-se de estratégias de captação que vêm acompanhadas da

necessidade de credibilidade. Na realidade, o sujeito destinatário sabe que não deve acreditar

no spot publicitário, já que é pura invenção, diferente do contrato da ficção romanesca, porque

a visada sedutora da publicidade é colocada a serviço de outra visada, a pragmática, que tem

por objetivo incitar o destinatário a adquirir uma marca.

Pensando no que foi anteriormente escrito, é importante esclarecer, mais uma vez, que

as emoções discursivas inscrevem-se em certa racionalidade, visto que são fruto da intenção

de sujeitos discursivos que visam a atingir um determinado objetivo, proveniente do desejo

desses sujeitos quando fazem uso de estratégias patêmicas. Todas essas emoções são inscritas

em saberes de crença, haja vista que o sujeito precisa estabelecer um juízo de valor acerca

daquilo que lhe é transmitido e tal juízo de valor só pode ser construído coletivamente, uma

vez que todo sujeito é, por excelência, um ser social que só existe enquanto indivíduo único

quando percebe que o outro é diferente de si mesmo. Esses valores de crença não devem,

desse modo, ser considerados melhores ou piores, verdadeiros ou falsos, mas sim capazes de

criar uma empatia entre aquele que os veicula e aquele que os recebe; empatia essa

sobredeterminada pelos referidos valores de crença que um mesmo grupo social determina,

partilha, respeita ou desrespeita.

Pensando, justamente nas estratégias patêmicas elencadas para fazer parte do discurso

desencannado e nos valores de crença que circulam em nossa sociedade, pode-se estabelecer

que a propaganda seguinte acaba por ferir um dos valores de crença que um mesmo grupo

social partilha, nesse caso, o de que todas as religiões devem ser respeitadas, assim como as

pessoas que praticam essas religiões. Dessa forma, dizer que uma igreja protestante, por

exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus, assemelha-se a um banco é desrespeitar os

indivíduos que dela fazem parte, assim como desrespeitar a própria instituição que,

teoricamente, pratica o bem e incentiva que seus fiéis assim o façam.

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Portanto, ainda que de maneira implícita, embora chocante, a peça publicitária aqui

destacada diz que a Igreja Universal faz o mesmo que um banco faz, ou seja, preocupa-se com

o dinheiro em vez de se preocupar com a caridade, já que seu objetivo primeiro, segundo o

Desencannes, é o lucro e não a ajuda que poderia dar aos integrantes da igreja. Logo, a Igreja

Universal não parece ser um banco, porque parece ser uma igreja, ainda que, na visão do site,

não seja. A referência às instituições bancárias fica ainda mais evidente quando, por

conhecimentos de mundo partilhados, entendidos, aqui, como saberes de crença, percebe-se

que a propaganda faz uso do slogan do Banco Bradesco que é Nem parece banco.

Dessa forma, é possível estabelecer que, assim como o Bradesco não parece banco, a

Igreja Universal também não, afinal, o primeiro explora seus clientes, no sentido de lucrar em

cima deles e obter seu dinheiro, assim como faz aquela com seus fiéis que, por meio do

dízimo e de doações, permitem que, de acordo com o Desencannes, a igreja enriqueça.

Também é possível estabelecer que ressoa outra crença nessa propaganda a qual, por sua vez,

pertence a outro grupo social: a de que a Igreja Protestante Universal do Reino de Deus

explora seus fiéis, em vez de ajudá-los e de levar a palavra de Deus até eles.

Figura 6 – Peça publicitária da Igreja Universal, publicada pelo Desencannes.4

As emoções inscrevem-se, ainda, em uma problemática de simbolização e de

autorrepresentação: simbolização, quando simbolizam, por meio do discurso, o mundo

extralinguístico, e autorrepresentação quando dizem mais a respeito de quem fala do que

sobre o que se fala: o sujeito discursivo que faz uso do discurso patêmico revela mais sobre si

4 Texto da imagem: Nem parece banco.

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próprio, nesse discurso, do que sobre aquilo que diz quando é protagonista da atividade

linguageira.

Logo, as relações patêmicas parecem engajar um sujeito em um determinado

comportamento racional – racional, pois está ligado à intencionalidade –, que é, por sua vez,

regulado pelo social por meio de seus valores morais e saberes de crença que povoam os

discursos intencionais dos sujeitos discursivos e acabam por revelar muito sobre quem fala,

em vez de revelar nuances sobre a temática trazida por esses discursos. Se não há

engajamento por parte do sujeito, não há, também, tomada de posição e é possível estabelecer

que a relação patêmica não se deu, pelo menos não no viés visado pelo sujeito enunciador.

O discurso publicitário recorre, frequentemente, às noções de ethos e pathos, já que

seu enunciador precisa, por exemplo, fazer com que a imagem que cria para si seja mais uma

forma de captar esse leitor, engajando-o no discurso produzido, tentando causar, nele,

efeito(s) patêmico(s) capazes de incitá-lo a comprar determinada marca. Dessa forma, é

possível perceber que a publicidade canônica, para atingir seu fim último, que é vender uma

marca, elenca inúmeras estratégias para convencer seu destinatário. Diante disso, torna-se

necessário falar um pouco mais sobre o discurso publicitário e todas as particularidades que

ele carrega consigo.

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5 Persuasão: a publicidade que vende

O mundo no qual vivemos parece não mais existir sem a publicidade, no entanto, nem

sempre foi assim. É apenas a partir do século XX que a publicidade começa a ganhar força,

com a criação de um mercado consumidor maior, fruto da irrupção da produção de massa, que

precisava, de alguma maneira, ser absorvida, ou seja, ser oferecida e, consequentemente,

comprada e vendida – daí vem a inserção da classe média nesse universo de consumo. Pinto

(1997) alerta para o fato de que a publicidade funciona como espécie de fiel da balança, já que

é ela que zela pela sobrevivência do sistema ao assegurar que tudo aquilo que é produzido

seja, também, consumido.

É necessário explicitar que, sem o surgimento e a expansão da imprensa, nada disso

seria possível: é somente por causa dos meios de comunicação, nesse caso, especificamente

graças aos jornais, que as propagandas podiam ser veiculadas e, por isso mesmo, podiam

chegar às casas de seus consumidores que, seduzidos pelos produtos e suas propagandas,

acabavam por adquiri-los.

Vestergaard e Schoder (2000) chamam a atenção para o fato de que para haver

publicidade, é imprescindível que uma parte da população viva acima do nível de subsistência

a fim de que possam adquirir bens de consumo “desnecessários”. A publicidade engendra,

então, nas pessoas, a vontade de adquirir esses bens de consumo, não sem antes se apropriar

da existência de um mercado consumidor em massa e da imprensa, que funciona como

comunicação para se chegar até o comprador das marcas.

Atualmente, não parece haver distinção entre os termos publicidade e propaganda,

contudo, os referidos vocábulos são fruto de uma etimologia diversa: publicidade diz respeito

a tornar público ou, em outros termos, tirar do anonimato um produto ou até uma ideia;

propaganda, por sua vez, como o próprio nome sugere, tem a ver com a propagação de um

conteúdo, o que geralmente se dá com a ajuda dos meios de comunicação. No Português do

Brasil, no entanto, o vocábulo propaganda é um termo mais amplo que publicidade, por

englobar a comercial e a de ideias.

Tanto publicidade quanto propaganda parecem estar a serviço de uma empresa que

encontra o eco de seus anseios na figura do publicista, que é capaz de vender uma marca, uma

ideia ou conceito para os consumidores que se encontram em posição de recusar tal oferta,

mas são captados por essas propagandas e colocam-se em posição de busca por um ideal,

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afinal, passam a precisar dos produtos que são vendidos, bem como das noções de bem-estar e

satisfação que eles carregam consigo.

Logo, o fazer publicitário torna-se necessário no mundo capitalista onde vivemos, uma

vez que a lógica do capital acaba por determinar a maneira como os indivíduos vivem suas

vidas: sempre querendo ter mais e mais. A compra de uma determinada marca acaba por

conferir a quem o possui uma espécie de status e de prestígio social que são explorados pela

propaganda: cria-se uma necessidade – que beira a compulsividade – do ter para ser e todos

precisam estar inseridos, fomentando esse universo de consumo do qual são massa de

manobra, princípio, meio e fim.

A publicidade, ao contrário do que pensa o senso comum, não cria necessidades

artificiais na vida das pessoas, mas se apropria das necessidades reais e, principalmente, das

simbólicas, daqueles desejos originais de homens e mulheres e os desvirtua, fazendo parecer

que esses desejos mais íntimos só serão plenamente atendidos por meio da compra de

produto(s) da marca x ou y. O indivíduo parece, então, ser tragado de maneira irreversível

para o mundo do consumo, uma vez que cabe a ele escolher que produtos e que marcas

adquirirá, entretanto, a ele, não é permitido escolher não comprar e não fazer parte desse rito,

que estabelece que para ser é preciso, antes de mais nada, ter. Existe, portanto, uma lacuna

entre o que a publicidade realmente oferece e o futuro que promete, [o que] corresponde à

lacuna entre o que o espectador/comprador sente que é e o que ele gostaria de ser (PINTO,

1997: p. 42).

A propaganda apela para o lado sensível de seu consumidor, haja vista que deixa de

explorar apenas aquilo que ele precisa saber e passa a explorar aquilo que ele quer ouvir,

criando-se, dessa forma, um apelo a que o indivíduo deve responder de maneira cúmplice.

Esse viés do sensível só consegue ser explorado pela publicidade, uma vez que ela faz uso de

mecanismos discursivos que criam certos efeitos patêmicos os quais, por meio das emoções –

daí vem a relação com o sensível –, conseguem captar seus consumidores para o discurso que

está sendo empreendido, afinal, esses consumidores se deixam seduzir pelas propagandas,

posto que elas trazem para seus textos apenas aquilo que eles querem ouvir. Logo, é possível

estabelecer que, se as estratégias de sedução/patemização forem bem sucedidas, haverá a

compra de determinado produto, ou melhor, haverá a compra de uma marca, já que os

consumidores, quando compram, escolhem a marca de um produto e não o produto em si.

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Segundo Leduc (1976) (apud MONNERAT, 2003), o conteúdo psicológico de um

sujeito com relação a um objeto pode ser segmentado em três forças: os móbeis

impulsionadores, as atitudes e os comportamentos. Por móbeis impulsionadores entendem-se

os motivos que levam o sujeito a agir, fazendo-o adquirir e utilizar uma marca. As motivações

se subdividem em econômicas, egoístas e altruístas.

Durante muito tempo, pensou-se que as motivações econômicas eram as únicas

responsáveis por fazer o consumidor adquirir uma marca, já que ele teria o desejo de ganhar

dinheiro ou de pagar o menos possível por essa marca. A teoria da oferta e da procura

centrou-se – e talvez ainda se centre – na suposição de que o consumidor é, ao mesmo tempo,

um ser egoísta, racional e informado. As motivações de ordem egoísta têm a ver com o fato de

o consumidor querer preservar a si e ao seu próprio corpo, elencando, para fazer parte de sua

vida, produtos, por exemplo, que lhe garantam saúde. Por fim, as motivações de ordem

altruísta consistem na simpatia, ou seja, no poder de participar do prazer ou da alegria de

alguém e no desejo de se proteger e de se devotar.

As motivações acima mencionadas, assim como seus “freios”, concretizam-se em

atitudes e comportamentos. Atitudes são entendidas, aqui, como predisposições interiores em

relação a um produto e como resultantes do conteúdo de motivações para um dado indivíduo,

num determinado momento, fazendo com que se prefigure um comportamento. Essas atitudes

podem variar numa espécie de escala que comporta o positivo, marcado por diferentes

intensidades, podendo chegar até à convicção, o que configura a compra; o negativo que diz

respeito aos preconceitos; e o neutro, marcado pela indiferença ou pela ignorância acerca de

uma marca. Os comportamentos concretizam-se, por outro lado, em maneiras de se conduzir

face a uma marca.

Para que o referido processo de persuasão/sedução seja bem sucedido, de acordo com

Pinto (1997), é necessário que a publicidade envolva o consumidor num feixe simbólico que

ajude os objetos mais ordinários a se tornarem extraordinários, uma vez que se cria, para eles,

um valor, também este simbólico, fazendo com que deixem de ser meros objetos e se tornem,

na realidade, objetos de valor para o consumidor que, por sua vez, passará a buscá-los, visto

que essas coisas representam a satisfação das necessidades humanas mais básicas, como

amor, felicidade, prazer, entre outros. Tudo isso só é possível uma vez que a publicidade é

também uma linguagem propriamente dita, feita de palavras que seduzem ou devem seduzir,

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pelas combinações em que se apresentam, pelas desconstruções que praticam, pelos ecos que

despertam, pelos implícitos que activam, por uma série de jogos (...) (PINTO, 1997: p. 11)

Dessa forma, é possível estabelecer que o processo semiótico da publicidade reside na

própria simbolização dos produtos e, consequentemente, das marcas: essa simbolização será a

responsável por criar uma identidade para quaisquer que sejam os produtos, estabelecendo,

portanto, uma espécie de personificação para eles, que passam a se comportar como seres

humanos, uma vez que possuem uma personalidade típica de homens e mulheres: são vivos,

alegres, confiáveis, amigos etc. As identidades assumidas por esses produtos fazem com que

eles passem a valer mais pelas imagens de si que projetam no mercado e na vida dos

consumidores do que pelas suas qualidades e propriedades físicas, criando, assim, um hall de

qualidades simbólicas.

É possível afirmar, então, que adquirir uma determinada marca faz com que os

indivíduos que o comprem alcancem, ainda, outros bens que não são materiais, mas sim,

indispensáveis à vida humana, nesse caso, trata-se da aceitação, prestígio social, beleza, amor,

bem-estar. Por isso, quando as vendas de uma marca fracassam não quer dizer,

necessariamente, que ele não tem qualidade: quer dizer que o referido produto dessa marca

não se encaixou no universo de valores e desejos do consumidor que poderia escolhê-lo no

lugar de tantos outros disponíveis no mercado.

Em verdade, de acordo com Vestergaard e Schoder (2000), a publicidade tende a

deixar de lado as informações concretas sobre determinados produtos quando faz uso do viés

da persuasão, menosprezando, por completo, o valor material dessas mercadorias, invocando,

de maneira real ou exagerada, o valor de uso primordial de seu produto – ou valor simbólico

no dizer de Pinto (1997) –, uma vez que promete ao consumidor que a aquisição e o consumo

de determinado produto/marca lhe dará juventude, beleza, amor, convívio social, entre outros.

Segundo Farias (1993) (apud MONNERAT, 2005), os leitores de publicidade

subdividem-se em três categorias distintas que são o leitor conquistado, aquele que foi

“vítima” da sedução empreendida pelo discurso publicitário, uma vez que não tinha nenhuma

intenção de ler anúncios publicitários, mas acabou sendo cooptado por um deles ao folhear

uma revista, por exemplo; o leitor motivado, que se configura como sendo um comprador em

potencial, haja vista que tem a intenção de comprar uma marca que seja compatível com seu

objeto de desejo; e o leitor espontâneo, que é aquele que se interessa por ler publicidades e

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acaba, vez ou outra, a depender da publicidade em questão, comprando o produto de uma

marca.

Muitos teóricos, de acordo com Monnerat (2003), postulam que a linguagem

publicitária é puramente conotativa, pois as palavras têm seu campo de significação ampliado,

desenvolvendo, ao lado do sentido literal, outro, conotado, visto que o sentido denotativo não

detém todo o significado da já citada linguagem publicitária. Em outras palavras: há um

segundo grau de significação, o conotativo, que introduz a subjetividade no texto publicitário,

evocando a emoção, a afetividade e as motivações inconscientes de seus destinatários. A

“publicidade denotativa”, por outro lado, apela à razão dos indivíduos, utilizando-se de

argumentos mais ou menos comprováveis para fazer com que os destinatários adquiram tal ou

qual marca.

Para Pinto (1997), o componente linguístico do discurso publicitário é co-responsável

pelo seu poder de persuasão. Explica-se: é co-responsável, uma vez que, para a autora, o

componente gráfico e o imagético são os principais responsáveis pelo processo de

convencimento de consumidores empreendido pelo fazer publicitário, já que, sem a parte

gráfica e a imagética, a publicidade não pode ser considerada como tal, ainda que a linguagem

verbal esteja presente em quase todas as propagandas.

Carvalho (1996) chama a atenção para o fato de que a linguagem da publicidade

utiliza-se de recursos estilísticos e argumentativos da linguagem cotidiana, capazes de

informar o destinatário e, além disso, manipulá-lo, fazendo-o tomar certa atitude em relação à

compra de uma marca. Na realidade, de acordo com a autora, todos os discursos, como é o

caso do jornalístico, por exemplo, transmitem algum tipo de informação e querem convencer

o destinatário acerca de algo, no entanto, apenas em relação à publicidade há a consciência,

por parte dos consumidores, de que se trata de um processo claro de manipulação. Dessa

forma, o jargão jornalístico, parece ser imparcial, ao passo que o jargão publicitário é,

claramente, parcial.

A palavra, utilizada pelo discurso publicitário, deixa, então, de ser meramente

informativa, uma vez que surge carregada de significados que, a seu turno, reforçam a força

sedutora e persuasiva dessas palavras, fazendo com que elas, de maneira clara ou dissimulada,

consigam captar seu destinatário para que ele não só compre uma marca, mas também se

integre à sociedade de consumo. A mencionada integração à sociedade, na realidade, não

ocorre de maneira plena, haja vista que, assim que adquire um bem de consumo, o

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consumidor continua frustrado, pois sua vida é a mesma de sempre, embora tenha aderido ao

que foi trazido como solução para todos os seus problemas e mazelas pelo próprio discurso

publicitário.

Citamos, pois, Carvalho (1996), na tentativa de amarrar a questão: As palavras, em

resumo, não exprimem as coisas, mas a consciência que temos delas (...) no caso da

publicidade, a palavra não leva à descoberta do eu interior, mas à descoberta dos desejos e

aspirações de um tu novo, que ela sedutoramente se propõe a realizar (ANDRADE, 1992,

apud CARVALHO, 1996: p. 22)

Como dito, a persuasão parece ser o mecanismo no qual se centra o discurso

publicitário, afinal, pretende gerar no consumidor uma mudança de atitude, tirando-o de um

estado de inércia, fazendo-o adquirir um comportamento que o predisponha à compra. São

três os mecanismos de persuasão: mecanismos automáticos, de racionalização e de sugestão.

Os mecanismos automáticos são aqueles que se limitam a agir sobre a memória dos

indivíduos, criando uma espécie de reflexo mental próprio, capaz de fazer com que a compra

de um produto de uma marca se realize. Podemos citar, como exemplo de mecanismos

automáticos, os slogans que fazem com que o nome de determinada marca seja memorizado

por um sujeito, destacando-a no meio de uma infinidade de marcas e produtos existentes.

Os mecanismos de racionalização são utilizados quando a publicidade, tida como

argumentativa, fundamenta-se no raciocínio para mostrar as qualidades de uma determinada

marca que se quer vender, mostrando, inclusive, seus benefícios. Os mecanismos de sugestão,

por sua vez, consistem em incitar, no destinatário, o desejo pela compra do produto, tentando

induzir os compradores de uma marca a aceitá-la, sem que haja qualquer explicação racional

para que isso ocorra. Essas motivações baseiam-se na aceitação de uma crença específica: o

enunciador é hábil em dar a impressão de que aquilo que ele defende está de acordo com as

crenças trazidas pelo destinatário, não havendo, portanto, quaisquer ameaças às convicções

desse público.

De acordo com Charaudeau (1983), todo o discurso publicitário é atravessado por dois

tipos de contrato, levando em conta as condições de produção desse discurso. Trata-se do

contrato do sério e do contrato do maravilhoso. No primeiro caso, supõe-se que se está diante

de um público racionalista, por isso, será necessário desenvolver uma argumentação mais

racional, mostrando que o produto é um auxiliar eficaz, como acontece nas propagandas de

revistas especializadas.

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Já no contrato do maravilhoso, parte-se do pressuposto de que se está de frente a um

público menos racionalista, mais inclinado ao sonho, portanto, será necessário desenvolver

uma argumentação mais centrada no aspecto narrativo dessa propaganda, atribuindo ao

produto de determinada marca que se anuncia um aspecto quase mágico. No contrato do

maravilhoso, adota-se uma estratégia que consiste em fazer crer ao sujeito interpretante que

há uma carência e que se deve suprir tal carência – o que desencadeia um querer-fazer -, que

pode ser solucionada por conta de um auxiliar – o que engendra um poder-fazer. Logo, o

sujeito interpretante é impelido a querer satisfazer seus desejos, o que gera, finalmente, um

dever-fazer.

A publicidade se utiliza, ainda, de esquemas básicos para captar seus receptores,

convencendo-os daquilo que está sendo dito:

Trata-se não só do uso de estereótipos – esquemas, fórmulas já consagradas que

impedem qualquer questionamento acerca do que está sendo enunciado, visto ser

algo de domínio público, uma verdade consagrada – como também de substituição

de nomes, com o intuito de influenciar positiva ou negativamente certas situações,

como ocorre com os eufemismos. Outros tipos de esquemas utilizados são a

criação de inimigos – o discurso persuasivo costuma criar inimigos mais ou menos

imaginários (o sabão se justifica contra a sujeira; o creme dental, contra as cáries

etc.); o apelo à autoridade – o chamamento a alguém que dê validade ao que está

sendo afirmado (uso que a publicidade faz do dentista, do médico, do atleta, para

tornar mais verídica a mensagem); e, ainda, a técnica de todo mundo, segundo a

qual se todo o mundo está fazendo isso, então vamos fazer também. Além desses, a

afirmação e a repetição são também estratégias largamente utilizadas no texto

publicitário: no primeiro caso, tem-se a certeza, o imperativo, já que a vacilação e

a dúvida são inimigas da persuasão; no segundo, a possibilidade de aceitação,

pela reiteração constante. Uma variação dessa técnica é o uso de “slogans” e

palavras-chave (BROWN, 1976) (apud MONNERAT, 2003: pp. 39-40).

Parece ponto pacífico que o discurso publicitário traz consigo um “jogo de máscaras”

que se dá na interação entre os parceiros do ato de linguagem, implicados pelo contrato de

comunicação que se estabelece entre eles a partir da propaganda criada. Ou seja, um desses

parceiros é encarregado de exaltar um produto de uma marca x, tendo como objetivo seu êxito

no circuito comercial; o outro, por sua vez, tem conhecimento claro de que o sujeito

comunicante tem por objetivo suscitar nele, no sujeito interpretante, o desejo de se apropriar

do produto anunciado. Desse modo, é possível dizer que os dois parceiros estão implicados

num tipo de ritual conhecido como “falso/aparência” (MONNERAT, 2003).

É necessário salientar que as propagandas não veiculam nenhuma informação falsa,

sob pena de serem consideradas como enganosas e, por isso, responsabilizadas e punidas

juridicamente por dizer as mentiras que dizem. No entanto, a propaganda revela apenas uma

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parte da verdade que favorece o anunciante, mascarando, assim, o real custo do produto,

ressaltando apenas o valor benéfico que ele possui, afinal, anunciar é seduzir.

É possível, ainda, estabelecer que o sedutor – ou aquele que produz o discurso

publicitário – não trabalha com uma verdade – haja vista que a verdade é sempre relativa e

produto de uma construção –, mas sim com um construto que se aproxima de certa

verossimilhança. Dito de outro modo: o leitor de um anúncio sabe que o conteúdo enunciado

pela propaganda pode não ser verdadeiro, porém, entende-o como sendo verossímil, já que

aquele se aproxima de uma verdade, ou melhor, veicula uma verdade possível, constituída a

partir de sua própria lógica, dentro da visada comunicativa do discurso publicitário que é fazer

comprar ou, até mesmo, fazer seduzir.

Porém, mais do que a necessidade de parecer verossímil, a publicidade precisa tornar a

marca o mais atraente possível para os consumidores, fazendo com que a referida marca não

pareça ter características indesejáveis, embora as tenha, reforçando a ideia de que os demais

produtos de outras marcas possuem-nas. Do lado oposto, pode-se deduzir que, quando uma

propaganda faz alegações positivas sobre determinado produto, é apenas esse produto, de uma

marca específica, que carrega consigo essas características positivas, o que o singulariza,

conforme mencionado, com relação aos demais produtos de outras marcas.

Torna-se imprescindível, nesse ponto do trabalho, recorrer a Monnerat (2003).

Citamos, pois:

Na publicidade comercial, o fim primeiro é a persuasão, que é desenvolvida

dentro de uma prática que se pode chamar de autoritária, já que não há diálogo

entre enunciador e destinatário. Pretende-se a inserção num quadro pragmático

(o consumo), que requer um fundo ideológico já pré-constituído e conhecido do

destinatário. A ideologia evocada pelo discurso publicitário é a do capitalismo, do

consumo. É a ideologia euforizante da felicidade pelo consumo e para o consumo,

condicionando pessoas, impondo hábitos e gostos, forçando, ou sugerindo, a

adoção de atitudes que induzem à ação de comprar. (MONNERAT, 2003: p. 43)

A ideologia parece, então, ser mola propulsora e ponto de partida para a constituição

do discurso publicitário, já que a necessidade da compra e, consequentemente, da venda é

fruto de um sistema econômico que visa, em primeiro lugar, ao capital. As ideologias são,

então, diferentes visões de mundo, capazes de representar aquilo que pensam todas as classes

sociais existentes, contudo, é importante salientar que existe uma ideologia dominante, que é

a da classe também dominante, nos âmbitos econômico, social e político. Pode-se dizer que há

uma operação intelectual da ideologia com a criação de verdades universais abstratas que

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nada mais são do que a transformação de uma visão de mundo particular, obviamente, a da

classe dominante, em ideias universais de todos e para todos os indivíduos que convivem em

sociedade (CHAUÍ, 1996) (apud MONNERAT, 2003).

Vestergaard e Schoder (2000) apontam que o discurso publicitário leva ao extremo as

ideologias às quais recorre, uma vez que apresenta o fenômeno do consumo como algo tão

evidente e natural que obriga o público-alvo a comprar determinadas marcas, sem que haja

qualquer exame crítico acerca dessa ação, tornando-a, desse modo, inevitável e inquestionável

para as pessoas. A publicidade faz, portanto, questão de manter a ordem social vigente, posto

que dela se beneficia.

Ideologia e senso comum andam lado a lado, tanto na visão dos autores alemães

quanto na de Chauí. Explica-se: a ideologia pertence ao domínio do senso comum, pois traz à

tona crenças, modos de viver e de pensar da classe dominante, ou seja, daquela parcela da

população que serve como modelo e serve até mesmo de exemplo do que deve ser alcançado.

A ideologia, então, tem como essência o que é, simultaneamente, visível para todos e invisível

por conta de seu caráter óbvio.

No discurso da propaganda, encontram-se imaginários coletivos do público a que se

destina tal discurso, já que a linguagem publicitária mostra a maneira como a sociedade vê o

mundo, sendo, dessa forma, reflexo, como dito, da ideologia dominante, que é tida como uma

verdade incontestável e uma espécie de modelo a ser seguido: torna-se imprescindível viver –

e até mesmo ser – como manda a ideologia dominante, a qual acaba por atribuir e criar

valores que são perseguidos e se tornam objetos de desejo por parte dos sujeitos.

Para Pinto (1997), a publicidade vende, para o consumidor, não só bens de consumo,

mas também as próprias identidades que carregam consigo, uma vez que são seres ideológicos

por natureza e acabam por ter necessidade das marcas que são vendidos e da própria

simbologia que lhes é imputada pela publicidade.

Carvalho (1996), por sua vez, alerta para o fato de que a publicidade cria e exibe um

mundo ideal, onde tudo são luzes e cores, que só será conquistado pelos consumidores caso

adquiram determinados produtos de determinadas marcas. Desse modo, é possível perceber

que o mundo ideal construído pelo fazer publicitário funciona como uma norma a ser seguida,

afinal, sem fazer o que determina a publicidade, o consumidor jamais encontrará a felicidade

plena.

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Essa ideologia criada e reforçada pela classe dominante parece atenuar as diferenças

entre as castas de nossa sociedade tão estratificada, uma vez que coloca as pessoas no mesmo

patamar de consumo, já que todos os produtos estão disponíveis para aqueles que podem

pagar o preço de cada uma deles. Na realidade, essa liberdade é falaciosa, pois os indivíduos

que ganham menos dinheiro têm menos chances de consumir determinados produtos, apesar

de esses estarem à disposição em todas as vitrines e lojas. Assim sendo, é possível estabelecer

que a liberdade de consumo nada mais é do que uma maneira, ainda que velada, de excluir

uma parcela da população desse universo de consumo, afinal, só pode adquirir um de uma

marca x ou y quem tem dinheiro para pagar por ele.

É necessário notar, ainda, que o discurso publicitário, em um primeiro momento, faz

com que os indivíduos pensem que são únicos e singulares, visto que detêm determinados

produtos. Contudo, quando muitas pessoas passam a consumir uma marca específica,

principalmente, se elas pertencerem à classe dominante, essa adulação individualista é posta

de lado para dar lugar a uma identidade de classes, enfatizando a propriedade comum do

produto, seu consumo e o estilo de vida daqueles vierem a consumi-lo.

Na realidade, é importante esclarecer que as propagandas, a princípio, não criam novas

ideologias, mas, ao contrário, apropriam-se de ideologias e sub-ideologias que já estavam

estabelecidas antes da própria criação das propagandas, utilizando-as como sistemas

referenciais. Esses modelos de referência são utilizados pelos anunciantes para dar à marca

que vendem uma imagem simbólica, destinada a possibilitar a ela, à marca, uma vantagem

extra dentro do mercado, onde é preciso que seja diferente dos demais, de alguma maneira

para, com isso, captar seu destinatário para o que diz.

Em termos ideológicos, o discurso publicitário pode funcionar em três dimensões

distintas: na construção das relações entre produtor/anunciante e o público; na construção da

imagem do produto; e na construção do consumidor como membro de uma comunidade de

consumo, que é o maior empreendimento da publicidade: cativar seu público consumidor

atingindo suas expectativas por meio da construção de um tipo ideal de consumidor definido

pelos comportamentos consumistas típicos, divulgados e baseados em informações do senso

comum.

Essa construção de um perfil idealizado de consumidor torna-se necessária, uma vez

que o público é atraído pela publicidade que lhe interessa e lhe chama a atenção, levando em

consideração as ideias de mundo que essas pessoas têm, o que é influenciado pela educação

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que receberam, seu nível de instrução, suas aspirações sociais, o meio em que vivem, entre

outros. Contudo, não se pode afirmar, com absoluta certeza, que o leitor só se deterá em

propagandas que lhe interessem, o que constitui, justamente, o grande desafio da publicidade:

transformar consumidores em potencial, por meio da publicidade inteligente, em

consumidores de fato. O fenômeno publicitário não deve ser considerado apenas em seu viés

econômico, ou seja, atuando apenas, a curto prazo, para fazer com que um consumidor

compre uma marca, já que, a longo prazo, visam à formação de uma atitude por parte desse

indivíduo em relação a determinadas marcas, produtos e objetos.

É o que acontece, por exemplo, com a Coca-Cola. Há, por meio de uma espécie de

causa defendida, a fidelização de um consumidor em potencial que se torna consumidor de

fato, a partir do momento em que, dentro de uma enorme gama de possibilidades, escolhe

tomar Coca-Cola em detrimento de outros tantos refrigerantes existentes no mercado, uma

vez que, como se sabe, não é o produto o escolhido na hora da compra, mas, sim, sua marca.

Há alguns anos, precisamente em 1993, o slogan trazido por essa marca era Sempre

Coca-Cola, o que reforça a ideia de fidelização que todo o discurso publicitário almeja,

quando se esmera em construir a imagem de um produto que seja atrativo aos olhos do

público. Em outro ano, especificamente o de 2005, o slogan escolhido foi um enunciado com

verbo no imperativo afirmativo: viva o que é bom. O referido slogan é uma espécie de causa

defendida, quando diz que os consumidores precisam se divertir para ter uma vida mais leve e

melhor, por isso, precisam tomar Coca-Cola, ao mesmo tempo em que parece referir-se a um

tema tabu na sociedade contemporânea: o da qualidade de vida.

Com as preocupações crescentes em torno da qualidade de vida e do bem-estar dos

indivíduos, é no mínimo interessante notar que viver o que é bom, na realidade, é tomar um

refrigerante com altos níveis de açúcar, o que não faz bem à saúde, se ingerido em grandes

quantidades, havendo, assim, a quebra de um tabu: o de que tomar refrigerantes faz mal à

saúde. Com esse slogan, fica implícito que a Coca-Cola faz bem à saúde e torna melhor a

vida das pessoas. A grande questão que se coloca, portanto, é: viver o que é bom é tomar

Coca-Cola?

É interessante notar, ainda, que a Coca-Cola no Brasil é coca, que os portugueses

associam imediatamente a cocaína. Em Portugal, bebe-se cola, que os brasileiros associam a

“cheirar cola” (CARVALHO, 1996: p. 50), mostrando, dessa forma, que a publicidade e até

mesmo a escolha do nome das marcas acaba por respeitar as idiossincrasias culturais de cada

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povo, posto que quer tornar os consumidores cúmplices do que está sendo dito e não

adversário, sob o risco de perder um cliente e, sobretudo, de ofender o consumidor, suas

crenças e seus valores.

Pensando, também, nos recursos linguísticos usados pela publicidade, pode-se

perceber que a mensagem publicitária manifesta-se por três atos fundamentais: nomear, que é

engendrar uma identidade por meio de um nome; qualificar, que é estabelecer uma

personalidade por meio de características; e exaltar, que é garantir a promoção de uma marca,

elevando suas qualidades. A ação de nomear, na realidade, requer o uso obrigatório da

denotação, uma vez que é ela que ancora o texto à realidade. A ação de exaltar, por sua vez,

está ligada à de qualificar, já que não há a possibilidade de celebrar as qualidades de um

produto sem, obviamente, qualificá-lo (PÉNINOU, 1971) (apud, MONNERAT, 2003).

Qualificar e exaltar não exigem, necessariamente, o uso da denotação: pelo contrário,

podem utilizar a conotação, haja vista que, como bem nos lembra Charaudeau (1992),

qualificar é tomar partido, logo, a qualificação reflete um olhar judicativo e subjetivo do

sujeito enunciador, quando este singulariza e especifica o mundo, atribuindo-lhe sua própria

maneira de ver esse mundo, a qual é determinada pela razão, pelos sentidos e até pelos

sentimentos.

A linguagem publicitária é construída em torno de dois grandes princípios, que são o

princípio da economia e o da proximidade. O primeiro diz respeito às noções de economia

lexical e sintática que são comuns ao discurso publicitário, pois tem como característica uma

espécie de discurso quase telegráfico em que são omitidas unidades lexicais, gramaticais e até

mesmo sintáticas, havendo, portanto, uma justaposição de palavras, já que há a preocupação

com a expressividade do discurso.

A linguagem publicitária é, também, comandada por uma preocupação tripla,

obedecendo, assim, ao princípio da economia. Trata-se da preocupação com a eficácia dos

recursos, com seu rendimento semântico e com sua capacidade de transmissão, havendo um

descarte dos mecanismos linguísticos que podem sobrecarregar ou retardar a compreensão da

mensagem, o que explica a tendência à elipse e à aglutinação, já que se quer tornar o texto

dinâmico e conciso. Cria-se, portanto, um texto com artigos, verbos e possivelmente

enunciados omitidos.

A mensagem publicitária, apesar de curta, é densa, já que reúne um mínimo de

palavras agrupadas para gerar o máximo de eficácia possível, apelando para relações de

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polissemia, duplo sentido, ressignificação de um termo, a fim de cooptar seu público leitor,

fazendo-o comprar aquilo que está sendo vendido e, consequentemente, promovido.

O princípio da proximidade, por sua vez, mobiliza recursos de ordem semântica e

semiológica, já que tem por objetivo a aproximação da informação àquele que deve ser

informado. A publicidade faz uso de uma língua dinâmica, voltada para o engajamento e

para a ação, em que a construção ativa de interpelação é privilegiada (MONNERAT, 2003:

p. 55).

Não há como falar de publicidade sem falar de slogans e clichês. O slogan é um

recurso técnico que assegura certa perenidade às asserções publicitárias e aos grandes

predicados das marcas, explorando sistematicamente as chamadas fórmulas fixas que

carregam consigo um apelo à memória individual e até à coletiva, porque dão ao leitor a

oportunidade de reconhecer um conhecimento partilhado entre ele e o autor.

Assim como a utilização de fórmulas fixas é uma das estratégias elencadas pelo

discurso publicitário, também é a desmontagem de clichês e dessas mesmas fórmulas fixas.

Na realidade, tal (des)construção ocorre por empréstimos de uma herança cultural - como é o

caso dos provérbios, alusões, citações, máximas ou acontecimentos célebres -, cujo objetivo é

conferir ao próprio discurso publicitário um estatuto de discurso de autoridade.

Como bem nos lembra Monnerat (2003),

nos casos mais difíceis, a argumentação publicitária muda de natureza, procura

fazer uma representação psicológica original do produto, criando uma imagem

que o distinga dos outros, dando-lhe uma personalidade que já não é racional,

objetiva, mas afetiva e subjetiva. A construção de uma imagem original e vigorosa

confere uma nova dimensão ao produto: à sua realidade física, acrescenta-se uma

realidade psicológica, que o desbanaliza e enriquece. É esse conteúdo afetivo que

construirá o elemento de diferença e, portanto, de escolha do consumidor

(MONNERAT, 2003: pp. 56-57)

Pensando, ainda, na desconstrução ocasionada pelo discurso publicitário, é possível

perceber que há anúncios que rompem com certas normas pré-estabelecidas, causando um

forte impacto no consumidor, por meio de mecanismos de estranhamento e situações

incômodas, que levam, muitas vezes, à reflexão ou à indignação, fazendo com que o

destinatário se torne adversário e não cúmplice daquilo que está sendo enunciado.

Antes mesmo de serem criadas, as propagandas escolhem um segmento da população

para ser seu público-alvo – target-groups – e toda mensagem publicitária será produzida

levando em consideração a referida segmentação de mercado – market segmentation. O

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público-alvo pode ser definido por meio de uma estratégia de marketing, conhecida como

psychographics ou lifestyle analisys, em que se traça um perfil do consumidor: idade,

educação, localização geográfica, atividades, interesses, opiniões, hobbies, entre outros. A

escolha do público-alvo, considerando a segmentação de mercado e a análise do estilo de vida

dos consumidores, pretende, como nos lembram Vesterdaard e Schoder (2000), não apenas

incrementar as vendas imediatas de um produto de uma marca, mas também criar uma

receptividade duradoura junto ao público a que se destina.

Talvez o ponto mais importante de toda a criação publicitária seja a escolha do nome

do produto, o qual deve dar a este certo status, inserindo-o no mundo real e, ao mesmo tempo,

identificando-o e diferenciando-o dos demais produtos. A função primordial da publicidade

centra-se tanto na cronologia de seus esforços quanto na perenidade de seus resultados, por

isso, deve visar à imposição de um nome que dê ao produto uma identidade psicológica e

social para que os consumidores o tenham sempre em mente. O nome de um produto deve ser

curto, eufônico, apropriado ao produto, evocando associações agradáveis ou relacionadas a

ele. O logotipo, por outro lado, tem por objetivo uma espécie de tradução gráfica do nome, já

que representa visualmente o nome dado ao produto, evocando a própria empresa que o criou.

É justamente o nome que dá notoriedade a um produto: produtos com marca são muito

mais vendidos do que produtos anônimos, posto que a ausência de uma marca, que situe, no

mundo, um produto, torna-o sem valor. A publicidade pode ser entendida, então, como um

catalisador, capaz de acelerar a notoriedade de um produto/marca e até mesmo suas

qualidades.

A marca confere ao produto/marca uma forma de ser no mundo, já que cria, para ele,

um valor de referência por meio de comparações; confere, ainda, uma realidade psicológica –

além daquela material que esse produto/marca já possui –, uma imagem formada de conteúdo

e carregada de afetividade. A primeira função da marca é, então, particularizar o produto e a

segunda, mobilizar conotações afetivas por parte dos leitores, tentando estabelecer, entre eles

e a marca, um vínculo de fidelidade. Acontece que o próprio nome se superpõe à

generalidade do nome comum, não apenas pela passagem do não-nomeado (no sentido do

anônimo) ao nomeado, mas, sobretudo, pela passagem do realismo da matéria (nome

comum) ao simbolismo da pessoa (nome próprio) (MONNERAT, 2003: p. 60).

A mensagem publicitária além de se ancorar no aspecto verbal, também se ancora no

não-verbal, já que é fruto da junção de headline, bodycopy e signatureline (LEECH, 1996)

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(apud MONNERAT, 2003: p. 62) ou título, texto e assinatura, com argumentação icônica,

como é o caso, por exemplo, da distribuição das palavras do anúncio. A imagem, então,

guarda em si outras duas imagens, sendo uma literal, reprodução do real, puramente

denotativa, como é o caso do uso dos objetos, personagens, ambiente e ações; e outra,

simbólica e conotativa, visto que, em publicidade, é impossível se obter uma imagem

absolutamente desprovida de conotação, já que, nesse discurso, a própria simplicidade e a

própria ausência constituem-se como sendo simbólicas.

Vestergaard e Schoder (2000) flagram a importância de se perceber o discurso

publicitário como sendo um amálgama de texto verbal e não-verbal. O texto verbal, segundo

os autores, possui um tempo definido para sua veiculação, como é o caso do enunciado, por

exemplo, do filme da marca Pepsi, em que o garçom pergunta Só tem Pepsi, pode ser?, no

entanto, a imagem é atemporal, podendo ser inserida em diversos contextos e,

consequentemente, compreendida e interpretada de diversas formas. Nesse sentido, é possível

estabelecer que a parte verbal de qualquer publicidade possui um viés dêitico já que o ancora

no tempo e no espaço, o que não acontece com a imagem veiculada pelo discurso publicitário.

As imagens são, portanto, mais ambíguas e polissêmicas, já que não carregam consigo

o viés dêitico que mencionaram os autores, sendo necessário, então, que sejam ancoradas no

mundo extralinguístico por meio do enunciado verbal. O discurso publicitário, ainda que a

imagem seja vaga em termos de recepção, recorre a ela, haja vista sua riqueza de informação

e sua comunicação imediata que seduz – e por que não dizer traga – o leitor para o que é

enunciado, pois exige dele uma participação ativa e imediata.

Citamos, pois, Monnerat, a fim de elucidar de vez a questão:

A imagem publicitária comporta mensagens de primeiro plano – simples

denotação – e de segundo plano (superpostas à primeira) – de conotação. Nas

primeiras, o representado e o significado coincidem nas segundas, a mensagem

transcende o que a imagem representa, pois a representação é apenas a figura de

uma intenção significante, que transparece através da imagem, trespassando-a e

ultrapassando-a. É na conotação (lugar dos sentidos), e não na denotação (lugar

das figuras), que a imagem faz a disjunção de significação e representação

(MONNERAT, 2003: p. 62).

Não há, no entanto, como falar de publicidade, principalmente, no que tange ao

aspecto icônico e não-verbal que ela carrega consigo, sem mencionar o papel que as cores

exercem dentro do discurso publicitário. Para Guimarães (2003), as cores desempenham

funções específicas que podem, por sua vez, ser separadas em dois grandes grupos: um que

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compreende as sintaxes e as relações taxionômicas, cujos princípios de organização são

chamar a atenção, destacar, criar planos de percepção, hierarquizar informações, direcionar

leituras etc; e outro, que diz respeito às relações semânticas, já que as cores denotam, conotam

e/ou simbolizam relações de sentido.

As cores, para o autor, formam, então, um construto de cor mais informação. Explica-

se: as cores são chamadas de cor-informação quando são as responsáveis por mobilizar,

organizar e hierarquizar informações ou lhes atribuir significado, seja com relação à sua

atuação individual e autônoma, seja com relação à sua ligação com outros elementos que

compõem o texto do qual faz parte, como é o caso das figuras e/ou dos textos verbais. Assim,

a cor-informação se refere a um determinado conceito de cor que a considera, na

sua dimensão pragmática, como informação atualizada de signo, e, na sua

dimensão semântica, como componente de complexos significativos (os textos)

organizados por sistemas de regras (os códigos) e que, sendo necessariamente um

dos elementos da sintaxe visual, é responsável pela construção de significados, em

caráter informativo (GUIMARÃES, 2003: p. 32).

Uma cor pode, ainda, informar, ao leitor de determinados textos, inúmeros fatos,

contudo, a precisão da informação dada dependerá da história dessa cor e, consequentemente,

do valor simbólico que ela carregará consigo, do conhecimento do destinatário sobre a

informação da referida história e do contexto criado pelo gênero textual em questão para unir

a cor e o significado que se espera que seja formado.

É interessante notar que os comentários que faz Guimarães (2000; 2003) acerca do

papel que as cores ocupam referem-se ao domínio jornalístico e não ao domínio publicitário.

Entretanto, as observações cabem também à publicidade, uma vez que ambos fazem parte de

uma esfera maior: a mídia. O teórico alerta para o fato de que a primeira leitura que se faz da

capa de um jornal, por exemplo, foca-se, sobretudo, na comunicação não-verbal ou mesmo na

pré-verbal, haja vista que as cores antecipam-se às formas e até aos textos.

É o que acontece, por exemplo, com as propagandas da Coca-Cola, cuja cor

representativa da marca carrega consigo um valor informacional tão grande, unindo força

semântica e clareza na identificação dos matizes, que haverá a antecipação da informação

cromática em relação aos outros elementos figurativos e discursivos que fazem parte da

propaganda. É por isso, então, que, mesmo não estando explícito o nome da marca, na

propaganda que compõe o corpus do presente trabalho, o destinatário consegue recuperá-lo: o

vermelho vivo tornou-se símbolo da marca de refrigerantes que mais investe em propaganda

no mundo, o que nos mostra que o repertório [de cores] é primeiramente adquirido por

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aprendizagem, principalmente nesse caso em que as cores utilizadas têm forte caráter

simbólico (GUIMARÃES, 2003: p. 38).

É importante lembrar que as cores, seus significados e informações podem variar de

acordo com a passagem do tempo e, até mesmo, da sua utilização por diferentes culturas,

formando uma espécie de ideologia das cores, já que se colocam em jogo crenças e valores,

representados por algumas dessas cores, geralmente pautados pelas classes dominantes. Dito

de outro modo: as cores podem reunir valores diferentes dependendo da época em que estão

sendo usadas, como é o caso, por exemplo, do rosa que, na época do Nazismo, possuía um

viés discriminatório, ao marcar, com um triângulo dessa cor, os prisioneiros homossexuais

dos campos de concentração, mas, há algum tempo, essa mesma cor serve como reafirmação

– por isso a valoração positiva – da identidade sexual e de gênero de algumas pessoas.

Na realidade, torna-se fundamental enquadrar as cores dentro de um viés cultural, já

que por cultura entende-se a memória não-hereditária da coletividade (LOTMAN,

USPENSKIJ et all, 1981: p. 40, apud GUIMARÃES, 2000: p. 85), estabelecendo, assim, que

as cores possuem significados culturais que variam, obviamente, de cultura para cultura, como

é o caso, por exemplo, das cores preta e branca – as quais formam uma correspondência

cromática binária – que significam, respectivamente, morte e vida para a cultura ocidental,

cabendo a elas, então, obviamente, conotações negativa e positiva. Uma vez que têm

significação oposta na cultura oriental – vida e morte –, a simbologia que possuem é diferente,

haja vista que a maneira como os orientais veem a morte é bastante diversa da nossa: para

eles, a morte é elevação espiritual.

Logo,

a simbologia das cores dependerá do armazenamento e da transmissão do seu

conteúdo que pode, afinal, transpor períodos de tempos maiores ou ter validade

por um período menor, assim como pode variar em relação ao repertório

compartilhado, por aqueles que participam do processo de comunicação

(GUIMARÃES, 2000: p. 87)

As cores podem, ainda, ter sua significação cultural modificada, como é caso do

amarelo, que já teve uma carga simbólica considerada boa, pois representava a cor do ouro,

porém, em contraposição, representou, também, os judeus, haja vista que o amarelo era a cor

da estrela de Davi, o que, para os nazistas, na época da Segunda Guerra Mundial, tinha um

significado bastante nefasto. As cores são, então, produtos culturais que têm seus significados

modificados, ampliados, reduzidos ou tornados polissêmicos por conta de condições

temporais, espaciais e/ou culturais e sociais.

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É necessário mencionar, também, o fato de que as cores podem trazer mais de uma

carga simbólica, como dito, já que são, de certa forma, polissêmicas. Isso acontece com a cor

vermelha que, em determinados contextos, pode representar a cor do fogo, em oposição ao

verde que representa a cor da água, como acontecia na mitologia grega. Portanto, é possível

estabelecer que a cor vermelha traz certa agressividade, enquanto a cor verde apresenta certo

equilíbrio e sorte.

A cor vermelha pode, inclusive, representar tanto morte quanto vida. Explica-se:

vermelho é a cor do sangue que, dependendo do contexto em que estiver sendo usado,

carregará consigo o significado daquilo que gera e salva vidas ou daquilo que extingue a vida,

no sentido de ter o sangue derramado. Enfim, são vários os matizes que assume a cor

vermelha e, no caso específico da Coca-Cola, representa o glamour do tapete vermelho, de

uma cor que impõe status, por isso, o cliente não pode escolher Pepsi, sob risco de não ter o

status do produto associado a si próprio.

Assim sendo, é possível estabelecer que a publicidade, ou melhor, que o discurso

publicitário tem como objetivo engendrar em seus destinatários um desejo de compra, que,

mais tarde, poderá culminar em um processo de fidelização, seduzindo-o e captando-o por

meio de um texto misto: linguístico e, também, icônico. A publicidade joga com seu público-

leitor, apelando para as ideologias que o representam, seja para reconstruí-las, seja para

desconstruí-las, seja para reproduzi-las, afinal, o importante é criar uma espécie de discurso

patêmico capaz de tragar o consumidor não só pelo que, de fato, o produto pode lhe oferecer,

mas também pelo viés simbólico que esse mesmo produto carrega consigo, já que lhe é

conferido um status que é repassado para aquele que adquire o produto de determinada marca.

O sujeito, na visão de Pinto (1997), deixa de ser ele mesmo e passa a ser o produto ou

a marca do produto que adquiriu, estabelecendo-se, assim, uma forma de alienação. Isso tudo

porque a publicidade conflui dois mundos: o das necessidades reais dos indivíduos, que faz

com que eles se relacionem com os objetos de maneira natural e o da necessidade de pertencer

socialmente a um determinado grupo, que os impele a investir em objetos de valor simbólico

que funcionam como uma espécie de porta de entrada para sua aceitação social.

Para Vestergaard e Schoder (2000), as propagandas conferem uma ideologia ao

produto/marca que vendem, situando-o num contexto ideológico, o que faz com que esse

produto/marca apele para valores conscientes ou subconscientes do consumidor. Logo, ao

associar sentimentos pessoal e socialmente desejáveis a mercadorias, a publicidade faz com

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que coisas intangíveis tornem-se tangíveis, possibilitando que elas estejam ao alcance do

comprador de tal produto e de tal marca.

Assim sendo,

os anúncios (ideologias) são capazes de incorporar tudo e até de reabsorver as

críticas que lhes são feitas, porque se referem a elas como se fossem vazias de

conteúdo. Considerado em seu conjunto, o sistema da propaganda é um grande

recuperador: trabalha sobre todo e qualquer material, passando incólume tanto

pelas leis reguladoras da propaganda como pelas críticas à sua função básica

(WILLIAMSON, 1978: p. 167, apud VESTERGAARD E SCHODER, 2000: p.

188)

O já citado status repassado do produto e da marca ao consumidor também integra as

estratégias discursivas de que fazem uso o(s) sujeito(s) enunciador(es) do site Desencannes,

como se pode perceber se se observar a figura a seguir: a peça publicitária em questão é uma

propaganda fictícia do remédio Viagra, responsável, como se sabe, por permitir que homens

impotentes sejam capazes de ter ereções. Ela engendra esse processo de passagem de status de

uma maneira curiosa: primeiro, esse status é repassado à Torre de Pisa para, depois, ser

repassado àquele que faz uso do produto. Explica-se, a Torre de Pisa, como se sabe, ameaça

cair há algum tempo, no entanto, se, metaforicamente, a torre fizer uso do Viagra, não cairá

mais, ou seja, deixará de ser impotente a fim de se tornar imponente. O mesmo acontecerá

com o órgão sexual daquele que consumir a pílula azul: deixará de ser impotente para se

tornar imponente, o que refletirá, imediatamente, no estereótipo de homem másculo e viril

que o indivíduo quer ter para si e que quer mostrar ao outro que tem.

Figura 7 – Peça publicitária do Viagra, publicada pelo Desencannes.

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O discurso publicitário tem, portanto, um grande desafio: tirar o consumidor de sua

mesmice cotidiana, incutindo nele a necessidade de adquirir uma marca, mas não se trata de

qualquer marca, trata-se de um produto singularizado, capaz de mudar a vida de seus

consumidores por suas qualidades intrínsecas – contrato do sério – ou por suas qualidades

quase que mágicas que realizarão seus sonhos – contrato do maravilhoso.

Tudo isso se torna possível porque a publicidade, além de atribuir um nome ao

produto, joga, justamente, com os aspectos linguísticos, visando a persuadir seu destinatário,

afinal, apesar de ser econômica e concisa, é capaz de (re)estabelecer novos padrões de

comportamento, mudanças nos antigos, criando novas formas de ver a vida que serão

reproduzidas, buscadas e atingidas por aqueles que forem cooptados por esse discurso que

desperta paixões, ambições e suscita todo tipo de reações: o único resultado que a publicidade

não pode nem deve aceitar é a indiferença por parte de seus consumidores – fiéis, potenciais

ou eventuais.

Portanto, é possível estabelecer que

a publicidade induz a uma visão dinâmica do social, privilegiando implicitamente

as ideias mais atuais, os fatos em emergência, as inovações tecnológicas, as

correntes de última hora. O texto publicitário, qualquer que seja a mensagem

implícita, é o testemunho de uma sociedade de consumo e conduz a uma

representação da cultura a que pertence, permitindo estabelecer uma relação

pessoal com a realidade particular. Sua mensagem primeira e explícita é o

estímulo ao consumo de um produto, mas ele põe em destaque determinado

aspecto de uma cultura, como um projetor poderoso, sem deixar de criar em torno

de si algumas zonas de sombra (CARVALHO, 1997: p. 106).

Uma vez que já se falou sobre a publicidade canônica, torna-se necessário, nesse

momento, falar um pouco mais sobre uma das principais estratégias de captação, elencada

pelo Desencannes, para cooptar seu destinatário: o humor.

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6 Amor: Humor

Parece que a questão humor sempre foi bastante produtiva no que tange aos estudos

linguísticos, uma vez que suscitou discussões de importantes teóricos, como é o caso de Freud

(1996), Bergson (2001) e Bakhtin (2013). Ainda que esses três autores tenham concepções

bastante diferentes acerca do que seria o humor – ou sobre quaisquer outros nomes que o

termo possa ter –, todos parecem dialogar em um único aspecto: para que, de fato, aconteça o

humor e o riso seja produzido, é necessário haver um desprendimento daquilo que é

considerado sério. Logo, é possível estabelecer que o humor só se dará a partir do momento

em que o sério for deixado de lado, uma vez que esse se constrói em oposição ao riso.

Freud (1996) postula haver diferenças entre o que chama de chiste e o cômico em

geral, assim como diz haver dessemelhanças entre esses dois conceitos e o de humor. No

entanto, parece haver um ponto de ancoragem, dentro da teoria freudiana, para esses três

conceitos, que é o fato de que, para haver produção chistosa, cômica e humorística, é

necessário ocorrer uma economia da descarga mental que será, invariavelmente, deslocada

para a produção do riso.

O chiste restringir-se-ia, então, de certa forma, ao campo do linguístico, já que se

estabelece na e pela linguagem, possuindo duas características básicas: é econômico, uma vez

que se utiliza de uma quantidade de palavras que é tida como pouca, ou do ponto de vista da

lógica, ou dos modos de pensamento e expressão – daí resulta a já citada economia de

pensamento – e, também, acaba por ocultar e esconder alguma coisa.

Distinguindo chiste, do cômico, Freud (1996) postula que este precisa de apenas duas

pessoas para se realizar, ao passo que aquele precisa, necessariamente, de pelo menos três.

Explica-se: no que tange ao social, o cômico pode se contentar com duas pessoas: uma que

produz o cômico e outra que o recebe, haja vista que reside nos próprios sujeitos e pode ser

constatado por eles. O chiste, contudo, precisa de uma terceira pessoa, diferente daquela que o

produz e daquela que o recebe, conforme nos lembra Freud (op. cit.):

pode-se descrevê-lo como um processo psíquico entre três pessoas, as mesmas que

participam no caso do cômico, embora seja diferente a parte desempenhada pela

terceira pessoa; o processo psíquico nos chistes se cumpre entre a primeira

pessoa (o eu) e a terceira (a pessoa de fora) e não, como no caso do cômico, entre

o eu e a pessoa que é objeto (FREUD, 1996: p. 139).

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Há, ainda, de acordo com Freud (1996), uma espécie de impulso que faz com que

aqueles indivíduos que produzem o chiste decidam-se por contá-lo a outras pessoas, visto que

o processo psíquico de construção chistosa não parece terminado quando aquele ocorre a

alguém, pois continua havendo uma procura para levar o chiste a uma conclusão, por isso, a

necessidade de compartilhá-lo com outrem. Outro ponto que distingue o chiste do cômico é o

fato de que quem o produz não pode rir de si mesmo nem do próprio chiste, o que não ocorre

com o cômico. Talvez, seja por isso que existe a necessidade de contar o chiste a uma terceira

pessoa, o que pode nos levar a dizer que, no ouvinte, uma despesa catéxica5 foi suspensa e

descarregada, enquanto na construção do chiste também encontramos obstáculos tanto à

suspensão quanto à possibilidade de descarga (FREUD, 1996: p. 142).

O cômico aparece, portanto, como uma descoberta involuntária, derivada das relações

sociais humanas, constatado nas pessoas, movimentos, formas, atitudes e traços de caráter

delas, provavelmente, no que concerne às características físicas, em um primeiro momento,

mas, depois, também, às características mentais ou naquilo em que possam se manifestar. Por

meio de personificação, animais e objetos inanimados tornam-se, também eles, cômicos.

É possível dizer, ainda, que o cômico pode ser destacado nas pessoas e reconhecido

nelas, o que traz a possibilidade de tornar uma pessoa cômica, colocando-a em situações nas

quais o cômico apareça. Isso acontecerá quando, em comparação conosco mesmos, a pessoa

gastar energia demais em suas funções corporais e energia de menos em suas funções mentais,

originando, desse modo, um riso gratificante, pois traz uma sensação de superioridade nossa,

em relação a quem achamos cômico.

Pode ser, também, que o cômico não se encontre em uma pessoa, mas sim em uma

situação – espécie de cômico conhecida como cômico de situação –, extraindo-se o cômico da

relação dos seres humanos com o mundo externo que compreende, também, as convenções e

as necessidades sociais e mesmo nossas próprias necessidades corporais. A pessoa, colocada

numa situação cômica, por sua vez, parece-nos ainda mais cômica por sua inferioridade, não

em relação a nós mesmos, mas em relação à maneira como se teria comportado em condições

normais. É o caso, por exemplo, de alguém que tem sua fala interrompida por conta de uma

dor.

5 Chama-se catéxica o processo pelo qual a energia libinal é vinculada à representação mental de uma pessoa,

ideia ou coisa ou investida nesses mesmos conceitos.

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Como dito, outras pessoas podem ser tornadas cômicas e a principal forma de fazer

isso é colocando-as em situações nas quais se tornem cômicas em consequência da

dependência a eventos externos, particularmente fatores sociais, sem que se respeitem as

características do envolvido, criando, assim, um cômico de situação que pode ser, a seu turno,

vivido numa situação real ou simulado por vocábulos e pelo jogo de palavras.

Há uma similaridade entre o chiste – vide figura 14, que está adiante – e o cômico que

consiste na maneira como são produzidos. A técnica de produção de chistes e do cômico

consiste em dar livre trânsito a modos de pensamento, usuais no inconsciente, que, por outro

lado, podem ser julgados apenas como exemplos de raciocínios falhos no consciente. O

destinatário, ao se deparar com um raciocínio aparentemente produzido no inconsciente,

compara-o com a correção desse raciocínio, gerando uma diferença na despesa, atribuída,

esta, ao pré-consciente, da qual pode surgir o prazer cômico. Citamos, pois, Freud (1996) para

elucidar de vez a questão: (...) a origem do prazer cômico está na comparação da diferença

entre duas despesas. O prazer cômico e o efeito pelo qual é conhecido – o riso – só se

manifestam se essa diferença não é utilizável e, pois, capaz de descarga (FREUD, 1996: p.

203).

Essa terceira pessoa, que faz parte do chiste, não pode estar dominada por uma

disposição, voltada para pensamentos sérios, uma vez que, desse modo, não será capaz de

confirmar o sucesso do chiste: é necessário que esteja em um estado de ânimo eufórico ou, no

mínimo, indiferente para que possa agir como a terceira pessoa que comprovará a eficiência

de um chiste, desde que disponha de algum grau de benevolência ou certa dose de indiferença

ou, ainda, de uma ausência de qualquer fator que possa provocar uma disposição contrária ao

propósito do chiste.

O indivíduo que produz chistes, entendidos, aqui, como métodos que derivam prazer

por meio de processos psíquicos, só é capaz de fazê-lo, uma vez que se encontra em certa

disposição para tal. Logo, pode ser considerado como uma pessoa que é dotada de um

espírito, ou seja, uma pessoa espirituosa que carrega consigo disposições especiais herdadas

de determinantes psíquicos, que permitem ou favorecem a elaboração do referido chiste.

Pode ser, no entanto, que o chiste perca seu poder de riso, mesmo em se tratando de

uma terceira pessoa, tão logo seja requerido a essa terceira pessoa uma despesa de

pensamento ou um trabalho intelectual conexo que provocaria, então, a não economia de

pensamento. Por esse motivo, as alusões feitas em um chiste devem ser óbvias, assim como as

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omissões devem ser facilmente preenchidas, sem que haja um despertar do interesse

intelectual consciente que impossibilitaria o efeito do chiste.

É por causa disso que a produção chistosa se utiliza de alguns métodos: tenta-se

abreviar sua expressão tanto quanto possível e tenta-se, ainda, tornar seu entendimento fácil,

sob pena de requerer um trabalho intelectual que demande um inevitável dispêndio de

pensamento. Torna-se, portanto, necessário distrair a atenção dessa terceira pessoa,

apresentando o chiste como meio de captá-la, de modo que a liberação da catéxia inibitória e

sua descarga completem-se, sem interrupção. Assim sendo,

do mesmo modo, as economias na despesa psíquica inibitória operadas pelo chiste

– embora pequenas comparativamente à totalidade de nossa despesa psíquica –

permanecerão para nós uma fonte de prazer porque nos poupam uma despesa

particular a que estávamos acostumados e que já nos preparávamos para fazer

também naquela ocasião (FREUD, 1996: p. 150).

É importante salientar que, diferentemente de Freud, muitos autores encaram o chiste

como sendo sinônimo do cômico de palavras, em oposição ao cômico de situações,

reduzindo, na concepção freudiana, um mecanismo singular de produção de humor e,

consequentemente, de riso, a um mero jogo de palavras. Freud (op. cit.), então, tenta, por

meio de diversos estudos, comprovar que se trata de duas atividades distintas, sendo o cômico

mais abrangente e, por isso, mais fácil de ser produzido/encontrado do que o chiste.

O prazer cômico parece ocorrer por conta de uma condição mais favorável,

geralmente, uma disposição eufórica, em que o destinatário está inclinado a rir, o que é

ocasionado por uma diferença de despesa psíquica com relação às atividades normais. Há,

ainda, uma expectativa cômica que faz com que a pessoa esteja disposta a rir em e de

situações que pareceriam normais caso não houvesse essa disposição. Por outro lado, existem

condições que são desfavoráveis à realização do cômico, como é o caso do indivíduo que,

envolvido nesse processo, pode se distrair e ocupar sua despesa mental com outra situação,

fazendo com que o humor deixe de ser produzido. Também é exemplo dessa mesma condição

desfavorável o fato de o destinatário, por qualquer motivo que seja, demonstrar certa

afetividade com relação àquilo ou àquele que seja motivo do cômico, havendo, assim, o que

se convencionou chamar de empatia pela “vítima” da produção cômica.

Como dito, o cômico, para se realizar, necessita de duas pessoas, ao contrário do chiste

que necessita de, pelo menos, três. O humor, por sua vez, pode completar seu curso por meio

de uma única pessoa. Na realidade, na concepção freudiana, o humor pode ocorrer

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independente dos afetos dolorosos que interferem em sua produção, já que a pessoa que é

vítima de ofensa ou dor, por exemplo, pode ser capaz de rir de si mesma e não se deixar

atingir por essa comicidade, o que acontece graças a uma economia, nesse caso, a da despesa

de afeto que não ocorre. Se uma segunda pessoa estiver envolvida nessa situação cômica, será

levada a rir por perceber que a “vítima” dessa situação não se preocupou consigo, gerando,

assim, uma economia da despesa com relação à compaixão que será inutilizada e poderá,

portanto, ser descarregada por meio do riso. O humor, assim como o cômico, tem como

localização psíquica o pré-consciente, enquanto o chiste, conforme dito, é formado com uma

espécie de compromisso entre o inconsciente e o pré-consciente.

Bergson (2001), por sua vez, alerta para o fato de que não há comicidade fora daquilo

que é humano, afinal, o homem é o único animal capaz de rir e também o único que pode

fazer rir. No entanto, para que o cômico ocorra, é primordial que os indivíduos desse processo

não estejam envolvidos emocionalmente, visto que é muito raro alguém rir de outro alguém

que lhe inspire piedade ou mesmo afeição: (...) a comicidade exige enfim algo como uma

anestesia momentânea do coração (BERGSON, 2001: p. 4).

A função social do riso é, também, levantada pelo autor, posto que, para ele, o riso de

uma pessoa é sempre o riso de um grupo de que faz parte, o qual apenas acontece quando há

uma espécie de cumplicidade entre os ridentes, reais ou imaginários, que resolvem partilhar o

que está sendo dito, criando um lugar propício onde o riso encontra eco. Portanto, é possível

estabelecer que o riso, a fim de que seja compreendido, deve ser colocado em seu meio

natural, que é o social, já que surge, no dizer do autor, quando alguns homens reunidos em

grupos dirigem, todos, a atenção para um deles, deixando de lado sua própria sensibilidade e

exercendo apenas a inteligência que possuem.

O riso pode, ainda, surgir de um efeito de rigidez. Explica-se: em uma situação que

exigia maior flexibilidade, distração e/ou até mesmo uma obstinação do corpo, o indivíduo,

envolvido nesse processo, permanece com a mesma atitude anterior, realizando o mesmo

movimento, quando as circunstâncias exigiam que ele o fizesse diferente. A comicidade,

causada por certa rigidez cotidiana, residiria, então, em algo que é exterior ao indivíduo.

Contudo, é possível haver uma comicidade que é intrínseca à própria pessoa a qual

fornecerá, ao riso, matéria, forma, causa e ocasião (BERGSON, 2001: p. 8): trata-se do

distraído que apresenta seus “defeitos” sem saber que os apresenta e faz seu destinatário rir. É

necessário notar que, se não se distraísse, corrigiria o que tem de “defeitos” e não daria mais

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motivo para que os outros rissem dele. Uma personagem é cômica, portanto, na medida que se

ignora, já que, na visão do autor (op. cit.), o cômico é inconsciente.

A mencionada rigidez do cotidiano, do caráter, do espírito e até mesmo do corpo

parecerá suspeita à sociedade por ser sinal de uma atividade adormecida e, também, de uma

atividade que se isola e tende a se afastar do centro no qual gravita, pretendendo intervir nessa

situação, uma vez que se sente materialmente afetada. Ora, a única maneira de se romper com

toda essa rigidez será por meio do riso que funcionará como um gesto social que flexibilizará

enfim tudo o que pode restar de rigidez mecânica na superfície do corpo social (BERGSON,

2001: p. 15).

A comicidade parece surgir, ainda, da imitação, seja ela qual for, já que, quando

alguém imita alguém e/ou alguma coisa, já não é a vida que está ali, presente, mas um

automatismo instalado na vida, mimetizando-a. Por isso, gestos dos quais não se pensa em rir

tornam-se motivo de riso quando imitados por um indivíduo: aí, instala-se uma forma

primária de automatismo. Muitas vezes, é a lógica da imaginação a responsável pela produção

de humor, posto que é aquilo que se imagina como sendo cômico que torna algo ou alguém,

de fato, risível, uma vez que referida lógica da imaginação é bastante diversa da da razão.

Risível será, ainda, uma imagem que sugira a ideia de uma sociedade fantasiada e, por

assim dizer, mascarada socialmente, o que faz com que o destinatário perceba o que há de

inerte, de pronto, de confeccionado na superfície de uma sociedade viva: é, outra vez, a

rigidez do cotidiano que destoa da flexibilidade característica da vida. Em resumo, é possível

dizer que o cômico produzirá o mesmo efeito, desde a ideia de mecanização artificial do

corpo humano, se assim pudermos nos expressar, até a de uma substituição qualquer do

natural pelo artificial (BERGSON, 2001: p. 37).

O corpo, a partir do momento em que funciona como máquina, tende a ser motivo de

riso, já que se enrijece e perde a flexibilidade perfeita, a atividade sempre alerta de algo em

ação. Caso o foco se estabeleça apenas com relação à materialidade do corpo, esse perderá sua

vitalidade, afinal, será apenas uma matéria inerte posta sobre uma energia viva, o que

provocará o riso, posto que rimos sempre que uma pessoa assume a aparência de coisa, ou

seja, torna-se maquinal, automática e rígida.

Outra maneira de se obter o cômico, nesse caso, de se obter o cômico de palavras, é

por meio da repetição de vocábulos. A repetição em si mesma não é risível, só o é porque

simboliza certo jogo particular de elementos morais, símbolo por sua vez de um jogo material

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(BERGSON, 2001: p. 53). Nela, geralmente, encontram-se dois termos: um sentimento

comprimido que se assemelha a uma mola que se estica e outro, que é uma ideia a qual se

diverte comprimindo, de novo, o sentimento. Por detrás dessa palavra repetida, então, é

possível perceber que há um retorno ao automático, já que ela volta, por meio de um

mecanismo de repetição calcado numa ideia fixa.

Bergson (op. cit.) postula, ainda, que toda a seriedade da vida provém da liberdade;

liberdade essa que diz respeito aos sentimentos aprimorados, às paixões nutridas, às ações

realizadas pelos seres humanos, enfim, é livre tudo aquilo que tange ao homem e é próprio do

humano e é isso que confere à vida certa carga dramática e séria. No entanto, os indivíduos

são capazes de transformar tudo isso em comédia, a partir do momento em que imaginam que

a referida liberdade encobre uma trama de cordões que faz com que todos nós sejamos apenas

marionetes manipuladas por uma força maior. Ora, toda essa manipulação traz à tona a ideia

de que o ser humano funciona no automático, deixando de ser livre para se subjugar aos

cordéis que o manipulam, reforçando, dessa maneira, a ideia de automatismo e,

consequentemente, de fixidez.

O já citado mecanismo rígido que, vez ou outra, é percebido pelos indivíduos como

um intruso na vida humana, tornando-a menos livre e, portanto, menos viva, engendra nessas

pessoas um interesse ainda maior, haja vista que funciona como uma espécie de distração da

própria vida. Na realidade, se os acontecimentos pudessem estar atentos ao seu próprio curso,

de maneira ininterrupta, não existiriam coincidências, ocorrências fortuitas e séries circulares,

por exemplo, afinal, tudo ocorreria de maneira linear e progrediria sempre.

O mesmo aconteceria caso os homens permanecessem atentos à vida e retomassem ou

mantivessem contato com o próximo e consigo mesmos: nada pareceria manipulá-los e

determinar o curso de suas existências. A comicidade é, portanto, o que torna possível que os

homens pareçam coisas, reforçando a ideia de que eles e os acontecimentos da vida humana,

em virtude de sua rigidez, mimetizam o que é mecânico, o movimento sem vivacidade. Desse

automatismo patente, exige-se uma correção que só é possível por meio do riso que ressalta e

reprime certa distração especial dos homens e dos acontecimentos (BERGSON, 2001: p. 65).

A comicidade pode ser gerada por meio de três procedimentos que transformam o que

é vivo em mecânico e, por isso, geram humor. Trata-se da repetição, da inversão e da

interferência das séries. A repetição, aqui, não é mais uma repetição pura e simples de

palavras ou frases, mas sim uma repetição de uma situação, ou seja, de uma combinação de

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circunstâncias que vai e volta e se repete muitas vezes, contrastando com o curso natural e

mutável da vida.

A inversão que produz o cômico só ocorrerá, como o próprio nome sugere, quando

uma situação for invertida e os papéis forem trocados, criando um mundo cunhado sob a

rubrica do às avessas. Esse procedimento parece ser o que funciona como mola propulsora do

corpus que compõe o presente trabalho, uma vez que é exemplo de publicidade às avessas,

nas quais a situação de comunicação é modificada e os papéis desenvolvidos pelos sujeitos do

ato de linguagem são diferentes dos que usualmente exercem, quando se trata de construir e

co-construir a atividade linguageira, típica do domínio publicitário.

A interferência de séries, por sua vez, nada mais é do que uma situação, sempre

considerada cômica, pois pertence, concomitantemente, a duas séries de acontecimentos

bastante independentes, que podem, dessa forma, ser interpretadas e compreendidas, ao

mesmo tempo, em dois sentidos diferentes. Geralmente, parece que, a todo momento, tudo irá

desfazer-se para, no momento seguinte, voltar ao seu lugar: é esse “jogo de gato e rato” que

provoca o riso em seu destinatário.

A fim de tentar elucidar a questão, citamos, pois, Bergson (op. cit.):

Quer haja interferência de séries, inversão ou repetição, vemos que o objetivo é

sempre o mesmo: obter o que chamamos de mecanização da vida. Um sistema de

ações e de relações é tomado e repetido tal qual, ou então radicalmente invertido,

ou transportado em bloco para um outro sistema com o qual coincide em parte –

operações estas que consistem em tratar a vida como um mecanismo de repetição,

com efeitos reversíveis e peças intercambiáveis (...) Por isso, a comicidade dos

acontecimentos pode ser definida como uma distração das coisas, assim como a

comicidade de um caráter individual sempre tem a ver (...) com certa distração

fundamental da pessoa (BERGSON: 2001: p. 75).

Há que se diferenciar, ainda, o cômico que a linguagem exprime, da comicidade que

ela cria; cria, porque esse tipo de cômico deve toda a sua ocorrência à estrutura da frase ou à

escolha das palavras e, também, não constata, por meio da linguagem, certas distrações

particulares dos homens ou dos acontecimentos, mas destaca as distrações da linguagem em

si, já que é a própria linguagem que se torna cômica. Isso acontece, por exemplo, quando se

obtém uma frase cômica ao se inserir uma ideia absurda num molde frasal consagrado, ou

seja, numa fórmula fixa ou numa frase estereotipada. A linguagem, dessa maneira, é tomada

de um automatismo ou de uma rigidez ela própria e isso a torna risível, assemelhando-se ao

que ocorre quando um indivíduo, por um efeito de rigidez ou de velocidade adquirida, diz o

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que não queria dizer ou faz o que não queria fazer. Obviamente, isso produz um efeito

cômico.

O cômico criado pela linguagem pode ser obtido se o destinatário entender uma

expressão no sentido próprio, quando ela é empregada no sentido figurado; ou, quando a

atenção dele se concentra na materialidade de uma metáfora; ou, então, quando uma série de

acontecimentos, repetida em novo tom ou invertida, conserva, ainda, um de seus sentidos, ou

esses são misturados de tal modo que seus respectivos significados passam a interferir uns nos

outros, tornando-se a própria linguagem cômica, uma vez que consegue tratar a vida

mecanicamente, havendo, assim, o que se convencionou chamar de transformação cômica

das frases.

Figura 8 – Peça publicitária do absorvente Sempre Livre, publicada pelo Desencannes.

A peça publicitária desencannada do absorvente Sempre Livre foi criada apropriando-

se da materialidade de uma metáfora, haja vista que o termo livre foi usado em sua acepção

primeira: mostrar que alguém não está preso em um lugar, nesse caso, a cadeia. No entanto, o

termo livre, no que tange à ideia vinculada ao nome da marca, representa as possibilidades

que uma mulher tem, mesmo menstruada, de viver uma vida normal, desde que use um

absorvente específico: o da marca Sempre Livre.

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Figura 9 – Peça publicitária do dicionário Aurélio, publicada pelo Desencannes

Na publicidade da figura 8, o cômico reside no fato de a palavra trema ter dois

significados distintos, como aquele que diz respeito ao verbo tremer ou aquele que representa

um sinal diacrítico, usado em algumas línguas para indicar que a vogal que recebe esse sinal

deve ser pronunciada, não constituindo um caso de dígrafo. A peça apropria-se, então, do fato

de que outra palavra, linguiça, recebia esse sinal, colocado em cima da vogal “u”, antes de o

acordo ortográfico ter sido assinado, a fim de dar ao enunciado Jamais trema em cima da

linguiça uma conotação sexual: mulheres e até mesmo homossexuais não podem demonstrar

medo ou insegurança quando se depararem com o órgão sexual de seu(s) parceiro(s).

Figura 10 – Peça publicitária do laxante Lactopurga, publicada pelo Desencannes.

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O enunciado da peça publicitária do Lactopurga, pede pra sair 02, tem como origem

um filme brasileiro, intitulado Tropa de Elite, e foi pronunciado pela personagem do Capitão

Nascimento, que tinha como objetivo fazer com que um dos aspirantes a soldado do BOPE –

Batalhão de Operações Policiais Especiais do Estado do Rio de Janeiro – desistisse de integrar

o corpo de policias militares. No entanto, tal enunciado foi transportado para um ambiente

novo, usando-se, para isso, um tom diferente do usual, mas mantendo os nexos que têm entre

si, representando, agora, o que se espera quando se faz uso do remédio que é um laxante. Vale

lembrar que, na linguagem popular, o termo número 2 refere-se às fezes.

Diante dos três exemplos acima, é possível perceber como o humor é socialmente

construído, por isso, torna-se imprescindível haver uma série de conhecimentos partilhados,

conforme diz Possenti (2010), sobre fatos recentes e sobre fatos mais distantes acontecidos no

mundo real para que o riso, de fato, se dê, pois, para o linguista, o humor só possível quando

acontecimentos sérios deixam de ser sérios e passam a ser populares e controversos. Dito de

outro modo: o riso faz sempre um apelo à memória, a um saber para poder concretizar-se.

Devem-se, também, considerar questões como identidade e estereótipos, além de

conhecimentos de mundo partilhados, a fim de que o efeito de humor seja produzido, porque,

para que se entenda uma piada, é preciso produzi-la e interpretá-la a partir do contexto social

no qual se insere, resgatando, desse modo, mitos e crenças que permeiam o discurso

humorístico em questão. Citamos, pois, Silva (2012):

Toda a matéria-prima necessária à produção do humor encontra-se na memória

coletiva, à qual o humorista recorre para provocar o riso. Toda sociedade possui

imagens de si mesma e imagens das outras sociedades, como verificamos em

muitas piadas (...) (SILVA, 2012: p. 54).

Almeida (1999) também reforça o fato de que o humor se assenta sobre

conhecimentos partilhados, já que se apoia em implícitos, subentendidos e alusões, cuja

apreensão depende tanto do conhecimento de proibições e de padrões comportamentais,

quanto de uma capacidade interpretativa satisfatoriamente produzida que seja capaz de fazer

associações, deduções e de perceber desvios e contradições. O destinatário terá ainda mais

prazer na apreensão do cômico quando perceber que se deu conta da existência do

materialmente invisível e compreendeu aquilo que não foi dito e que está fora dos indivíduos

cômicos.

Bergson (op. cit.), no terceiro capítulo do seu livro, de nome O riso, volta a falar sobre

o fato de ele, o riso, ter significado e alcance sociais, já que a comicidade exprime certa

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inadaptação de uma pessoa à sociedade da qual faz parte, afinal, não há comicidade fora do

homem. Por outro lado, não haverá a produção do riso caso o alvo da comicidade cause, no

seu destinatário, certa empatia, haja vista que não se pode rir de alguém que nos comova,

havendo, portanto, um enrijecimento para a vida social por parte de quem ri. Na realidade, o

riso funciona como uma forma de humilhação – daí vem seu caráter ambivalente, de que fala

Bakhtin (2013) e sobre o qual falaremos mais tarde –, uma espécie de trote social para quem

se torna alvo da comicidade, da burla, do escárnio.

Logo, aquele que empreende o discurso cômico possui uma inconfessa intenção de

humilhar a personagem cômica, tentando corrigi-la, pelo menos, exteriormente, posto que

essa personagem deve, de alguma maneira, algo para a sociedade que lhe cobra a dívida. São,

portanto, os defeitos de alguém que fazem o destinatário rir, mas não são quaisquer defeitos:

servem de motivo para a piada apenas aqueles que flagrarem uma espécie de “incompetência

social”, o que não acontece se o defeito de um indivíduo despertar, no destinatário, algum tipo

de compaixão. Pode ser que tenha surgido daí, então, o fato de que a comicidade é,

predominantemente, proveniente dos costumes, das ideias e, até mesmo, dos preconceitos que

têm uma sociedade. Resumindo: pouco importam os defeitos morais da personagem cômica:

para que o riso, de fato, dê-se, é necessário haver uma insociabilidade da personagem e uma

insensibilidade do expectador.

O autor volta, ainda, a falar sobre o automatismo, destacando a questão de que só é

risível aquilo que é automática e mecanicamente realizado. Não é à toa que os tipos gerais

são, via de regra, objeto do discurso cômico que se apropria, então, do caráter dos indivíduos,

entendido, aqui, como sendo o que há de pronto neles e que está em nós como sendo capaz de

funcionar automaticamente, já que se encontra na forma de um mecanismo montado. É graças

a esses modos de ser típicos que o indivíduo pode imitar a si mesmo e ao outro, provocando,

desse jeito, o riso. A comédia pode, portanto, ser considerada como a arte de criar tipos, já

que trabalha com a generalidade e, muitas vezes, com a obviedade, contudo, não trabalha

apenas com a criação, mas sim com a manutenção dos tipos já existentes, repetindo esses

modos de ser em outras personagens que se tornam visíveis pela semelhança exterior que

possuem com relação à original.

A fim de amarrar as arestas do que foi dito, citamos, pois, Bergson (2001):

[Uma disposição de caráter cômico] deverá ser profunda, para fornecer à

comédia um alimento duradouro, mas também superficial, para permanecer no

tom da comédia, invisível para quem a possui, pois a comicidade é inconsciente,

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visível para o restante do mundo a fim de provocar o riso universal, cheia de

indulgência para consigo mesma a fim de ostentar-se sem escrúpulo

constrangedoramente para os outros a fim de que eles a reprimam sem piedade,

corrigível imediatamente para que não seja inútil rir dela, segura de renascer sob

novos aspectos para que o riso sempre tenha o que trabalhar, inseparável da vida

social, para assumir maior variedade imaginável de formas, de somar-se a todos

os vícios e mesmo a algumas virtudes (BERSON, 2001: p. 128)

Para Bakhtin (2013), o riso só se estabelece em oposição ao sério, o que ocorre,

principalmente, na obra de Rabelais, já que este autor tentou romper com a ordem social

vigente na época, em sua obra, por meio da presença de um riso popular, carnavalesco, capaz

de metamorfosear o temível em risível, o sério em cômico. Essa dualidade da vida,

estabelecida, aqui, pelo binômio sério/cômico, já existia antes mesmo das civilizações

primitivas, uma vez que no folclore dos povos primitivos encontrava-se, paralelamente, um

culto ao sério e, também, um, ao cômico. Como esses povos não conheciam e não dispunham

de uma ordem social vigente nem de classes nem do próprio Estado, o culto ao sério era

considerado “sagrado”, assim como o culto ao cômico.

Todavia, com o estabelecimento do regime de classes e do aparelho estatal, tornou-se

impossível outorgar direitos iguais ao cômico e ao sério, de modo que as formas cômicas,

umas mais cedo, outras, mais tarde, adquiriram um caráter não oficial e seu sentido foi

modificado: elas, as formas cômicas, complicaram-se e se aprofundaram para, enfim,

transformarem-se em modos fundamentais de expressão da cultura popular, mundo afora.

É, justamente, com relação à expressão da cultura popular que o riso parece

estabelecer-se, posto que funciona como um princípio cômico que preside os ritos do

carnaval, que, por sua vez, mostram-se libertos de qualquer dogmatismo religioso ou

eclesiástico, do misticismo, da piedade, enfim, funcionam como uma verdadeira paródia ao

culto religioso: pertencem à esfera da vida particular e cotidiana dos cidadãos.

Há, então, uma carnavalização da vida, baseada no princípio do riso, que estabelece

que o carnaval é uma forma concreta da própria vida que deixou de ser representada nos

palcos e passou a ser vivida enquanto durava o carnaval. A vida era, desse modo, representada

na sua forma mais livre, o que designava seu renascimento e sua renovação e constituía a festa

como sendo uma propriedade fundamental de todas as formas de ritos e espetáculos durante a

Idade Média.

As festas oficiais, contudo, ainda que não tivessem essa intenção, tendiam a consagrar

a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regem o mundo, mantendo,

portanto, a ordem social vigente, seus valores, normas e tabus, sejam religiosos, sejam morais,

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sejam políticos. Mas o carnaval, ao contrário, era o triunfo de uma libertação temporária da

verdade dominante, do regime social vigente e de todas as relações hierárquicas, visto que

abolia privilégios, regras e tabus: era, enfim, a liberdade total das pessoas em plena praça

pública. Lá, durante os ritos carnavalescos, as relações hierárquicas perdiam o sentido, porque

todos eram iguais e o contato entre eles era familiar e livre, já que deixavam de ser separados,

como na vida cotidiana, pelas barreiras intransponíveis de sua condição, fortuna, emprego,

idade, situação familiar e classes.

A visão que se tinha acerca do carnaval era que este se caracterizava, principalmente,

por apresentar toda a lógica original das coisas ao avesso, tornando o alto, baixo e a face, o

traseiro. Na realidade, esse rebaixamento, o fato de se trazer tudo para o rés do chão, é uma

característica do realismo grotesco que transforma o espiritual e elevado em plano material e

corporal. Talvez, resida daí a importância de Rabelais para a construção do cômico, já que é

ele o principal porta-voz do realismo grotesco quando se utiliza, em suas obras, do princípio

da vida material e corporal, em vez de usar temas e motivos canônicos dentro da literatura.

Torna-se imprescindível falar, ainda, sobre a linguagem familiar da praça pública que

se caracteriza, obviamente, pelo uso predominante de expressões grosseiras e injuriosas e até

mesmo de palavrões, o que servia para representar a liberdade adquirida pelo povo durante

esses festejos: no carnaval, tudo era permitido, a começar pelo uso da linguagem popular que,

muitas vezes, era coibida – e por que não dizer proibida?

Bakhtin (op. cit.) alerta para o fato de que o riso possui um caráter ambivalente.

Explica-se: o riso apresenta-se, ao mesmo tempo, como burlador, sarcástico, mas cheio de

alegria e alvoroço; como denegridor e, concomitantemente, como forma de cobrar

transformações sociais dentro da sociedade na qual ocorre. Essa ambivalência do riso é uma

característica que ele possui no Renascimento e na Idade Média, haja vista que o grotesco

romântico faz com que o riso deixe de ser jocoso e alegre, perca seu aspecto regenerador, e o

viés positivo do riso reduza-se ao mínimo.

Pode ser, ainda, que o riso promova transformações, uma vez que mobiliza as pessoas

por meio de sua capacidade de criticar a realidade vigente, apontando as falhas, incoerências,

injustiças e erros que nela existem. Desse modo,

o riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem

a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e

liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim

disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. Daí que uma certa

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“carnavalização” da consciência procede e prepara sempre as grandes

transformações, mesmo no domínio científico (BAKHTIN, 2013: p 43)

O período do Renascimento teve grande importância na história do riso, já que,

durante essa época, ele passou a ser caracterizado por engendrar um novo valor de concepção

do mundo, haja vista que era entendido como sendo uma das formas pelas quais se exprimia a

verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre sua história e sobre o homem. O riso torna-se,

então, um ponto de vista sobre o mundo, que o percebe de maneira bastante diferente da do

ponto de vista do sério, posto que reconhece, no cômico, uma capacidade regeneradora e

criadora, estabelecendo, sobre ele, uma acepção positiva.

Durante a Idade Média, no entanto, o festivo e, consequentemente, o riso foram

relegados a um espaço extra-oficial, o que fez com que se distinguisse ainda mais por seu

radicalismo e sua liberdade excepcionais e por sua implacável lucidez. Entretanto, quando o

riso foi banido do domínio oficial da vida e das ideias, a Idade das Trevas lhe conferiu

privilégios excepcionais de licença e impunidade fora desses limites, na praça pública,

durante as festas. Assim sendo, é possível estabelecer que, como os festejos populares e

carnavalescos passaram a ser “clandestinos”, houve uma mescla entre o que era oficial e o que

não era. Talvez, por isso, a literatura e as outras formas de arte, consideradas superiores,

tenham sido influenciadas pela carnavalização. Assim sendo, ao universalismo e à liberdade

do riso da Idade Média liga-se a sua terceira característica marcante: sua relação com a

verdade popular não-oficial (BAKHTIN, 2013: p. 78).

Citamos, então, Bakhtin (2013) para sanar a questão:

À guisa de conclusão, podemos dizer que o riso, separado na Idade Média do

culto e da concepção do mundo oficiais, formou seu próprio ninho não oficial,

mas quase legal, ao abrigo de cada uma das festas que, além de seu aspecto

oficial, religioso e estatal, possuía um segundo aspecto popular, carnavalesco,

público, cujos princípios organizadores eram o riso e o baixo material e corporal

(BAKHTIN, 2013: p. 71).

O riso, na Idade Média, representava, também, a vitória sobre o medo, não somente

uma vitória sobre o terror divino, mas também uma vitória sobre o medo que tinham da

natureza e o medo moral que paralisava, oprimia e obscurecia a consciência do homem, já que

o riso era capaz de dominar o medo e a intimidação, trazidos pela seriedade. Essa sensação de

dominação do medo não era particular a apenas um indivíduo, era, ao contrário, símbolo da

universalidade do riso, visto que o homem se sentia como pertencente a uma comunidade que

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vivia dentro da praça pública, durante os festejos carnavalescos, mostrando, assim, por que o

riso carregava consigo um caráter social.

Dessa forma,

o verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o e

completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose, do

fanatismo e do espírito categórico, dos elementos de medo ou intimidação, do

didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta fixação sobre um plano

único, do esgotamento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da

integridade inacabada da existência cotidiana. Ele restabelece essa integridade

ambivalente. Essas são as funções gerais do riso na evolução histórica da cultura

e da literatura (BAKHTIN, 2013: p. 105).

Almeida (1999), por sua vez, começa seu estudo indagando qual seria o lugar que o

humor ocupa enquanto particularidade do comportamento social dos seres humanos e diz que

o riso surge de um deslocamento, haja vista que o sujeito abandona a posição que ocupa de

envolvimento diante de algo ou de alguém em favor de um ponto de vista mais distanciado.

Ponto de vista distanciado esse que permite que o humor seja instrumento de crítica, posto

que redimensiona o rigor social e a transcendência.

Como dito, os indivíduos possuem um dispositivo dedutivo que intervém na

interpretação dos enunciados, sejam eles humorísticos, sejam eles sérios, recorrendo a um

conjunto de hipóteses presentes na memória conceitual. Essas hipóteses são fruto, sobretudo,

de quatro fontes: a percepção, que permite a apreensão, pelos sentidos, de informações não-

codificadas; a decodificação, que faz a correspondência entre sinais e significados; a memória

enciclopédica, que conserva, à disposição das pessoas, os conhecimentos que foram

adquiridos por meio das experiências e do processo dedutivo em si (ALMEIDA, 1999: p. 21).

Vale ressaltar que duas pessoas nunca compartilham exatamente o mesmo ambiente

cognitivo global: essa partilha é apenas parcial. Também é importante estabelecer que,

embora as pessoas sejam capazes de fazer as mesmas hipóteses, isso não significa que as

façam e/ou que as façam com a mesma intensidade. Nisso reside, por exemplo, a

possibilidade de dois indivíduos interpretarem de maneiras diferentes, por exemplo, um

enunciado ambíguo e até mesmo não perceber que se trata de uma ambiguidade.

Almeida (op. cit.) também nos faz recordar as distinções que Freud (1996) estabelece

para os chistes. Quando este se baseia no tipo de desvio que o propósito espirituoso

estabelece, são chamados de chiste de palavras e de chiste de pensamento. Por chiste de

palavras, entende-se aquele que é fruto de uma habilidade na organização do material verbal

empregado, a fim de se expressar um pensamento. Esse processo, de natureza linguística,

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fornece, ao enunciado, ambiguidade, fazendo com que existam duas possibilidades

interpretativas distintas para o que foi dito. Geralmente, a técnica utilizada por esse chiste é a

condensação – figura 15, que está adiante. É importante lembrar que, embora todo enunciado

possa ser expresso de maneira espirituosa, desde que encontre uma forma adequada para fazê-

lo, o chiste de palavras pode ser desfeito caso se elimine a ambiguidade.

O chiste de pensamento – figura 11, também adiante – por outro lado, ocorre

independentemente da forma como é expresso, já que seu desvio apresenta-se com relação

não a um padrão verbal, mas a um padrão lógico-comportamental. A principal técnica de

realização desse chiste é o deslocamento – uma inadaptação, um erro de raciocínio, um

contra-senso, um disparate, por exemplo –, que causa, em seu destinatário, um estranhamento,

proveniente do surpreendente e incomum, presentes no chiste. Outra técnica utilizada pelo

chiste de pensamento é a representação indireta, que ocorre quando se associa, à expressão de

uma ideia, outra. É o caso da alusão, da comparação, da metáfora, da omissão.

Depois de classificar os chistes segundo as técnicas empregadas em sua formação,

Freud (1996), começa a analisar as tendências seguidas por esse discurso espirituoso e as

distingue em dois tipos, sendo o primeiro o chiste inofensivo e o segundo, o tendencioso. O

chiste é considerado inofensivo quando não tem outra intenção que não suscitar o riso, logo,

não se percebe uma segunda intenção em sua realização. O chiste tendencioso, por sua vez,

revela uma segunda intenção e pode ser usado para atacar pessoas, criticando-as ou

satirizando-as e, também, para desnudá-las. O primeiro caso é um exemplo de espírito hostil e

viabiliza uma tendência à agressividade, ao passo que o segundo é exemplo de espírito

obsceno, que procura provocar a excitação sexual do destinatário.

Almeida (1999) esclarece, ainda recorrendo a Freud (1996), que o chiste tendencioso

tende a provocar mais prazer que o inofensivo, pois proporciona uma economia originada da

própria técnica utilizada e, além disso, proporciona uma satisfação de uma tendência hostil ou

obscena que, até então, fora reprimida e que, graças ao espírito, pôde superar os obstáculos

relativos à sua expressão. A recíproca, contudo, não é verdadeira: quando o chiste tendencioso

esbarra em inibições, sem conseguir anulá-las, pode chocar e, consequentemente, provocar

uma reprovação por parte do destinatário, tornando-o adversário e não cúmplice do que está

sendo dito.

Assim sendo, segundo Almeida (1999),

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sob suas várias formas, o espírito esconde um luta em que se tenta proteger do

julgamento, da crítica e da repressão, duas fontes de prazer por elas atacadas: a

primeira é a liberdade primitiva, que se conheceu durante a infância e que se

resgata ao se abolir o domínio da lógica e do racional sobre o pensamento do

indivíduo, como ocorre com o espírito inofensivo; a segunda é a satisfação de

tendência (sexuais e agressivas) reprimidas, que se obtém quando os obstáculos

que impediam sua manifestação são contornados, através do espírito tendencioso

(ALMEIDA, 1999: p. 48).

Torna-se imprescindível estabelecer que o indivíduo espirituoso, ao relatar uma

situação qualquer, procurará fazer com que ela se torne cômica, suscitando prazer em seu

destinatário, criando, assim, um clima de cumplicidade, que pode ocorrer por meio da

depreciação de uma pessoa que, nesse caso, tornar-se-á cômica e cada vez mais cômica à

medida que não perceber seu próprio ridículo.

É o que acontece, por exemplo, com a peça publicitária, exposta abaixo, que

ridiculariza o ex-jogador de futebol Ronaldo, ressaltando o que, para o sujeito enunciador do

Desencannes, é um ponto negativo no que concerne ao desempenho de Ronaldo como atleta:

o sobrepeso. Dessa forma, o ridículo das formas disformes, nesse caso, exageradas, suscita o

ridículo no próprio jogador, que ainda insiste em jogar futebol, embora esteja gordo,

ressaltando o que há de grotesco no mundo dos esportes: desportistas que não têm um corpo

perfeito, dentro dos padrões impostos pela sociedade.

Figura 11 – Peça publicitária do Guaraná Antarctica, produzida pelo Desencannes.

Pertence a Charaudeau (2006) a afirmação de que o ato humorístico é um ato de

enunciação que tem como finalidade e estratégia tornar o destinatário cúmplice do sujeito

enunciador e, até mesmo, da própria enunciação. Para o teórico, a análise do enunciado

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humorístico deve ir além do jogo de palavras, levando-se em consideração, por outro lado, a

situação de comunicação, o propósito comunicativo – entendido, aqui, como temática –, os

procedimentos linguageiros que foram colocados em prática e os possíveis efeitos de sentido

que podem ser produzidos pelo enunciado cômico.

Vale e Mello (2010) chamam-nos atenção para o fato de que

Charaudeau (2006) sugere uma distinção simples no interior desses (sic) com a

finalidade de determinar quais são os domínios de discurso partilhados pelos

protagonistas do ato humorístico. Isso porque é sobre essa distinção que

repousam os tipos e os possíveis efeitos de humor baseados em visões decalcadas

de mundo. O locutor do ato humorístico “joga” com essas visões, esperando que

elas sejam partilhadas pelo seu destinatário. Disso resulta a questão de saber se

se pode fazer humor sobre tudo, ou seja, determinando-se a temática, vislumbrar-

se-ão as possíveis coerções impostas ao locutor (VALE E MELLO, 2010: p. 4)

Em consonância com o que postulam alguns dos autores acima mencionados,

Charaudeau (2006) diz que o ato humorístico deve ser considerado como uma “mise-en-scène

triádica”, caracterizada pela presença de três sujeitos: o enunciador, o destinatário e o alvo. O

enunciador, como se sabe, é o sujeito que empreende todo o discurso, dentro do circuito

interno do ato de linguagem; o destinatário, por sua vez, é aquele que compreende/interpreta o

enunciado produzido, também dentro do circuito interno do ato de linguagem, e pode ser, ora

cúmplice, ora adversário do discurso produzido; já o alvo seria uma pessoa – individual ou

coletiva – que ocupa a posição de terceiro protagonista da cena humorística, tornando-se

“vítima” do olhar do outro que o julga, procurando atingi-lo e, consequentemente, modificá-

lo.

Pode ser, no entanto, que alvo e destinatário coincidam – o que aconteceria, por

exemplo, caso a peça publicitária acima tivesse como interlocutor o próprio Ronaldo. Quando

isso ocorre, o alvo/destinatário pode assumir três posições: ou ele aceita rir de si mesmo, ou

faz “ouvidos de mercador”, ou responde, de maneira semelhante à agressão sofrida, àquele

que o importunou.

Para o criador da semiolinguística (2006), a visada, colocada em jogo dentro do

Contrato de Comunicação estabelecido entre os sujeitos do ato de linguagem, determinará o

tipo de chamado que o sujeito enunciador direcionará para seu destinatário, no ato

humorístico. Explica-se: se o possível efeito de sentido pretendido for a derrisão, que objetiva

desqualificar o alvo, sem a possibilidade de uma contra-argumentação, será utilizada uma

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visada também ela de derrisão, a qual procurará fazer com que o sujeito destinatário partilhe

do desprezo que o enunciador tem pelo alvo.

Portanto, diante do exposto, é bastante pertinente pensar que o riso ocupa um lugar de

destaque com relação às atividade linguageiras, visto que é capaz de proporcionar, acima de

tudo, prazer aos indivíduos envolvidos no ato humorístico. Esse prazer decorre, no dizer de

Freud (1996), de uma economia de pensamento que é proporcionada pela brevidade dos

chistes e sua fácil compreensão. Para Bergson (2001), contudo, o riso só acontece quando se

quebra o automatismo e a rigidez da vida cotidiana que se torna, por conta dessa ruptura, de

fato, viva, o que gera prazer. Bakhtin (2013) alerta, ainda, para o fato de que o riso é

originário dos espaços públicos e só se realiza em oposição ao sério. Na realidade, o riso,

dentro da concepção bakhtiniana, possui um caráter ambivalente, posto que é, ao mesmo

tempo, não só irreverente e burlador, como também alegre e cheio de alvoroço. O cômico

deixa de ser, então, um simples procedimento linguístico que gera humor para se tornar um

procedimento discursivo, capaz de fazer com que o outro não apenas ria, mas também reflita

acerca de sua realidade e de suas relações sociais que são, muitas vezes, colocadas em xeque

quanto se tem um alvo para o discurso cômico. Assim sendo,

o humor condensa as representações sociais, possibilitando que assuntos

proibidos, tabus, determinadas formas de pensar tomadas como inconvenientes

por um grupo etc., venham à tona sem serem reprimidos ou repreendidos. Como

postula Bakhtin (idem), o riso simboliza a liberdade, o não sério, o não

institucional, o popular, a festividade, enfim, tudo aquilo que o homem vivencia de

modo descontraído em um ambiente não oficial. Logo, o humor é um das formas

encontradas para fazer viver essa liberdade, de ativar esse riso por meio de

técnicas que acendam a memória social, libertando-a do automatismo e

possibilitando uma economia intelectual (SILVA, 2012: p. 54).

O presente trabalho parece ter dado conta de toda a fundamentação teórica necessária

para que o corpus seja analisado, por isso, torna-se imprescindível analisá-lo sob os vieses das

teorias até aqui apresentadas.

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7 Análise do corpus

Proceder-se-á, agora, à análise do corpus que conta com quatro peças publicitárias.

7.1 Desencannes: a publicidade que não vende

Como bem se sabe, a publicidade tem, via de regra, como principal objetivo, a venda

de uma marca. No entanto, quando se trata das peças publicitárias veiculadas pelo site

Desencannes, o consumidor parece se deparar com uma espécie de publicidade às avessas, já

que a finalidade dessas propagandas não é a venda de uma marca: tais peças, muitas vezes,

ofendem seu destinatário, causando-lhe certo desconforto, afinal, trazem temas tabus que só

poderiam estar na superfície de um texto por meio do viés do humor que, no caso das

referidas propagandas, pode ocorrer pelo choque e pelo estranhamento.

Acontece que o Desencannes cria um mundo novo, extremamente desencannado,

onde se é capaz de lidar com temas controversos, desconstrução de estereótipos, ofensas ao

público-leitor, uma vez que recorre ao processo de semiotização do mundo, em que se realiza

a construção psico-sócio-linguageira do sentido, com a intervenção de sujeitos intencionais.

Trata-se de peças publicitárias impublicáveis, já que não tornam o leitor cúmplice do discurso

publicitário, mas, sim, adversário. Essa construção de um mundo novo só é possível porque,

segundo Charaudeau, a atividade linguageira, seja ela qual for, cria um novo universo em que

podem acontecer situações surreais para aqueles que habitam o mundo extralinguístico, como

é o caso de uma propaganda que não quer vender uma marca.

Os sujeitos do ato de linguagem, empreendido pelo Desencannes, por causa do poder

que lhes é conferido pela palavra, constroem um universo particular, uma vez que o mundo a

significar passa a ser um mundo significado, por meio do processo de transformação e, por já

ter-se tornado um mundo significado, pode ser objeto de troca linguageira. Ou seja, pode

servir de mote para a comunicação entre dois sujeitos, também eles, psico-sócio-linguageiros,

no chamado processo de transação. Dito de outro modo: é a partir da criação de um espaço

desencannado que esse tipo de discurso pode ganhar voz e vez, por meio de peças

publicitárias singulares, tornando o mundo caótico da pré-linguagem um mundo significado,

capaz de servir como texto e de ser pretexto para a realização da atividade comunicativa entre

os sujeitos do ato de linguagem.

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O processo de semiotização do mundo, conforme mencionado, ocorre em duas frentes,

a saber, o processo de transformação e o de transação. Uma dessas frentes, a de transação,

subdivide-se em quatro princípios: o de alteridade, pertinência, influência, regulação. O

princípio de alteridade do Desencannes ocorre quando um sujeito comunicante cria as peças

publicitárias e as disponibiliza para que os sujeitos interpretantes possam recebê-las, o que

ocorre pelo fato de esses sujeitos se reconhecerem enquanto seres diferentes e semelhantes:

semelhantes, pois compartilham saberes e motivações comuns, embora não seja possível

precisar se assim acontece sempre; e diferentes, porque só se reconhecem enquanto eu por

serem dessemelhantes ao tu.

O princípio da pertinência, como o próprio nome sugere, tem a ver com o fato de se

julgar pertinente aquilo que está sendo dito pela peça publicitária em questão, logo, é

necessário que os protagonistas do ato de linguagem reconheçam os saberes de mundo

implicados na troca comunicativa, seja para aceitá-los, seja para repeli-los. É o caso, por

exemplo, do enunciado trazido por uma das propagandas aqui destacada: não, não pode. O

possível efeito de sentido engendrado por essa peça só será produzido se o receptor ativar seus

conhecimentos de mundo e perceber o diálogo que existe entre o referido enunciado e outro,

veiculado pela marca de refrigerante Pepsi. Ou seja, o não, não pode é uma resposta à

pergunta: Só tem Pepsi, pode ser?

O princípio da influência tem a ver com o fato de que toda troca linguageira traz como

objetivo a persuasão, afinal, aquele que enuncia quer convencer seu parceiro de que o que fala

é, realmente, crível, o que acontece com o fato de se querer persuadir um possível consumidor

de que o preservativo da marca Prudence, por exemplo, é melhor que todos os outros, apesar

de, nesse caso, a propaganda ser fictícia, ainda que verossímil. É importante salientar que o

leitor poderá repelir o que está sendo dito ou poderá, ainda, aceitar, concordando com o que

foi falado pela propaganda às avessas.

O princípio da regulação está intimamente ligado ao da influência, uma vez que toda

influência gera uma contra-influência. Como estamos falando de dois sujeitos intencionais –

aquele que produz e aquele que recebe a peça publicitária –, para que a troca linguageira não

termine em agressão física ou verbal, é necessário que os parceiros regulem – daí o nome

princípio de regulação – aquilo que pode, ou não, ser enunciado, sem que haja qualquer tipo

de atrito entre eles.

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O sujeito, na Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, tem um papel de

destaque, visto que, para Charaudeau, é dotado de intencionalidade. Logo, a intenção de um

sujeito, ao criar uma peça no site Desencannes, é chocar seu destinatário, fazendo-o rir ou

mesmo fazendo-o refletir sobre questões trazidas pelo próprio fazer publicitário, afinal, como

é dito no Manifesto Desencannes – anexado ao final do trabalho –, ali, a publicidade pode rir

de si mesma e de todo seu caráter de originalidade e credibilidade, uma vez que se cria um

espaço onde é possível desconstruir toda a seriedade conferida ao discurso publicitário.

Assim, pode-se pensar que o publicista é aquele sujeito de carne e osso que cria as

peças publicitárias do Desencannes e, por isso, assume o papel de comunicante, dando voz a

um enunciador que cria enunciados, como é o caso do não, não pode e do #ogiganteacordou

– presentes em peças publicitárias que serão, posteriormente, analisadas –, visando a persuadir

seu destinatário, cuja voz é dada pelo sujeito interpretante, a escolher o refrigerante Coca-

Cola e o preservativo Prudence, em detrimento de qualquer outra marca, por exemplo. Os

sujeitos interpretantes seriam, então, todos os leitores em potencial dessa propaganda que

podem, dentro de seu universo de escolha, querer comprar Coca-Cola em vez de comprar

qualquer outra marca de refrigerante, assim como ocorre com os consumidores do

preservativo da marca Prudence.

No entanto, no que tange às peças publicitárias do macarrão fusilli, da marca Barilla, e

do leite condensado Itambé, o sujeito adota uma posição diferente daquela adotada pelos

sujeitos enunciadores das publicidades da Coca-Cola e da Prudence, embora o comunicante

continue sendo o publicista, responsável por criar as peças publicitárias em questão. Isso

ocorre, uma vez que os enunciadores empreendem enunciados do tipo Líder das massas

italianas e Glória adeus. Itambé, vice-líder na produção de leite condensado que subvertem a

lógica da propaganda canônica, já que denigrem os produtos, associando o macarrão de tal

marca ao ditador italiano Benito Mussolini e aludindo ao fato de que há um leite condensado

de uma marca melhor que o Glória, nesse caso, o Leite Moça, da marca Nestlé.

Os sujeitos interpretantes, por sua vez, seriam os consumidores em potencial desses

produtos, o que também acontece com a Coca-Cola e a camisinha Prudence, entretanto, esses

sujeitos, para se tornarem cúmplices do discurso desencannado, precisam escolher não

comprar o leite condensando Glória e o macarrão da marca Barilla. Esses mesmos sujeitos

interpretantes dão voz e vez a sujeitos destinatários que só existem dentro do discurso

empreendido pelo site Desencannes.

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Os parceiros da atividade linguageira, eu comunicante e tu interpretante, acabam por

criar uma espécie de perfil ideal para os protagonistas da cena enunciativa, que são o eu

enunciador e o tu destinatário, que pode coincidir ou não com o perfil real desses sujeitos.

Dessa forma, é possível estabelecer que o sujeito comunicante idealiza um perfil de

destinatário capaz de identificar que as peças publicitárias produzidas pelo Desencannes são,

na realidade, fictícias, uma vez que não têm por objetivo a venda de determinada marca. O

sujeito interpretante, por sua vez, idealiza um sujeito enunciador que não tem credibilidade

nem legitimidade para fazer uma propaganda real, já que é um sujeito enunciador que quer

provocar reflexão, desconforto e/ou riso em seu sujeito destinatário, haja vista que sai do

universo real da publicidade e deixa de lado a persuasão empreendida para convencer o

sujeito destinatário com relação ao fato de ele adquirir certo produto de certa marca.

Toda troca linguageira é sobredeterminada por um contrato de comunicação que nada

mais é do que um acordo mútuo e prévio do qual fazem parte os parceiros e os protagonistas

do ato de linguagem. O Contrato de Comunicação do Desencannes postula que as peças

publicitárias não podem ser entendidas como peças com as quais o leitor está acostumado a

lidar, posto que foram criadas com o intuito de causar, em primeiro lugar, um efeito patêmico

em seu destinatário, diferente daquilo que é pretendido por uma publicidade comum, a qual

tem por objetivo primordial a venda de determinada marca. Dito de outro modo: o objetivo do

Desencannes não é aumentar a venda de determinada marca, mas, sim, fazer com que o leitor

ria ou mesmo se choque ao ler a peça publicitária desencannada, quebrando, assim, a

expectativa ou enjeu, no dizer de Charaudeau, daquele que se prepara para ser destinatário de

uma propaganda, qualquer que seja ela.

Logo, quando um sujeito credita um status de verdade a uma publicidade

desencannada, quebra o Contrato de Comunicação que foi previamente estabelecido pelo

sujeito comunicante, uma vez que se reporta a outro quadro de referência, diferente daquele

pretendido pelo parceiro da atividade linguageira. Dessa forma, é possível dizer que o acordo

foi rompido, já que não houve o ajuste da margem de manobra, a qual delimita todo esse

contrato.

Atrelando a perspectiva dos gêneros textuais à definição de Contrato de Comunicação,

é possível pensar que, a priori, o conceito de gênero textual é similar ao de contrato de

comunicação, haja vista que os dois parecem assumir o papel de quadro de referência ao qual

se reportam os falantes quando fazem uso das atividades linguageiras.

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Pode-se estabelecer que as peças publicitárias do Desencannes inscrevem-se, então,

em um lugar diferente daquele onde são postas as publicidades tradicionais, pois é apenas

pelo viés do humor, causando, muitas vezes, o estranhamento, que podem existir propagandas

que mostram, por exemplo, a resposta de uma marca ao filme publicitário de seu concorrente.

É somente ocupando o lugar de peça publicitária fictícia que o Desencannes torna-se,

portanto. capaz de estabelecer um diálogo simples e claro, mas, ao mesmo tempo, incisivo

com relação à pergunta feita no comercial da marca concorrente, o que não seria possível caso

estivéssemos falando do discurso publicitário de nosso dia a dia, que segue uma espécie de

conduta moral que, de forma alguma, pode agredir seu “adversário”.

Pode ser, ainda, que os destinatários das propagandas do Desencannes sintam-se

ofendidos pelo que o site traz, afinal, desrespeitam os paradigmas que povoam a mente do

sujeito destinatário, já que subvertem as normas de comportamento linguageiro e de uso,

típicas de determinados gêneros discursivos, como é o caso dos que fazem parte do domínio

publicitário.

A situação de comunicação, por sua vez, é o lugar onde se estabelecem as restrições e

se criam as possibilidades que ocorrem dentro da troca linguageira que podem, ou não,

coincidir em termos de sujeitos sociais e discursivos. É o que pode acontecer, por exemplo,

caso um destinatário se ofenda com uma propaganda do Desencannes, sem perceber que se

trata de uma peça publicitária fictícia, que não tem outro objetivo principal que não causar um

efeito patêmico em seu leitor. Dessa forma, é possível dizer que houve uma assimetria entre a

expectativa criada pelos sujeitos da instância da produção e a criada pelos sujeitos da

instância da recepção.

Na realidade, em termos de situação de comunicação, é possível estabelecer que o

Desencannes veicula peças publicitárias que transgridem um dos componentes da referida

situação, nesse caso, trata-se da finalidade, entendida, aqui, como visada, já que a peça

publicitária em questão não é uma peça publicitária prototípica, mas sim uma peça de humor.

Cria-se, então, uma espécie de jogo de luz e sombra, já que há uma mudança no que tange à

escolha de visada: deixa-se de lado, em um primeiro momento, a visada de incitação, que

tinha como objetivo fazer fazer, para se fazer uso da visada de efeito, que tem como objetivo

fazer rir ou fazer chocar. Portanto, a segunda visada elencada pelo discurso publicitário

tradicional, a de efeito, ora passa a ser a primeira escolhida pelo sujeito enunciador do

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Desencannes, ora se mantém sendo a segunda, ocorrendo, portanto, uma mudança na

expectativa – ou enjeu – da troca comunicativa.

Dessa maneira, pode-se estabelecer que o Desencannes quer provocar um efeito

patêmico em seu leitor, entretanto, trata-se de um efeito patêmico diferente daquele que

provocam as propagandas tradicionais, já que o destinatário deixa de ser captado no sentido

de ser estimulado a comprar um produto de uma marca e passa a ser captado para que ria, ou

até mesmo estranhe e se choque com o que está sendo veiculado pelo site, como acontece, por

exemplo, quando o leitor se depara com uma propaganda que responde à outra, já que isso

não ocorre comumente no Brasil, e quando está diante de uma peça publicitária que denigre

uma marca, o que é impensável no mundo todo.

Segundo Charaudeau (2001), os sujeitos do ato de linguagem, divididos em suas

identidades social e discursiva, possuem, todos, competências capazes de fazê-los depreender

os efeitos de sentido pretendidos pelos sujeitos do pólo da produção, afinal, não há,

necessariamente, uma coincidência entre efeito de sentido visado e efeito de sentido obtido.

Assim sendo, é possível pensar que os sujeitos destinatários do discurso desencannado

precisam fazer uso de suas competências a fim de que os possíveis efeitos de sentido,

pretendidos pelo enunciador, de fato, realizem-se na instância da recepção.

Levando em conta a competência situacional, pode-se dizer que o sujeito falante

precisa saber que não está diante de uma peça publicitária qualquer, afinal, a visada ou a

finalidade dessa troca comunicativa foi modificada: deixou de ser, a priori, a de incitação e

passou a ser a de efeito, o que somente se estabelecerá caso os sujeitos destinatários

reconheçam que estão diante de peças publicitárias fictícias.

As identidades desses sujeitos do ato de linguagem, por sua vez, também sofrem

variações: o destinatário não lida mais com um eu comunicante publicista, que dá voz a um

sujeito enunciador passível de credibilidade: está, na realidade, diante de um sujeito

enunciador que escarna do fazer publicitário tradicional a partir do momento em que cria

peças que mais parecem humorísticas, capazes de fazer seu leitor rir, refletir ou, ainda, se

chocar, mas que não são, à primeira vista, capazes de vender uma marca. Logo, o sujeito

enunciador da peça publicitária em questão utiliza-se das possibilidades e até mesmo das

restrições, transgredindo-as, que estabelecem o Contrato de Comunicação ao qual se reporta,

assim como fazem os demais sujeitos do ato de linguagem. Em termos de competência

situacional, o fazer desencannado, usa a mesma tematização e as mesmas circunstâncias

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materiais que usam as peças publicitárias tradicionais para que a referida troca linguageira

ocorra.

No que se refere à competência discursiva, é necessário que o sujeito enunciador

manipule as estratégias discursivas colocadas em prática na cena enunciativa, assim como é

necessário que o sujeito destinatário as reconheça. O sujeito enunciador do Desencannes

elenca, como estratégia discursiva, por exemplo, a incitação, já que coloca o tu destinatário na

posição de dever crer que deve agir como quer o eu enunciador.

Poder-se-ia pensar, então, que, nesse ponto, as propagandas tradicionais e as do

Desencannes utilizam-se das mesmas estratégias discursivas, todavia, a propaganda

desencannada não quer fazer seu destinatário crer que precisa de um produto qualquer que lhe

trará felicidade e lhe proporcionará bem-estar: quer, na realidade, fazer seu destinatário crer

que precisa rir e achar graça daquilo que é veiculado, tornando-o seu cúmplice e não seu

adversário.

Tem-se, ainda, a competência semiolinguística, que diz respeito à manipulação e ao

reconhecimento das formas que assumem os signos linguísticos, bem como de suas

combinações. É por conta dessa competência, por exemplo, que o destinatário do

Desencannes percebe que a repetição do não, no enunciado não, não pode¸ é atípica, uma vez

que não é comumente usada na fala coloquial, tão comum à situação prototípica de diálogo

entre um garçom e um cliente. A combinação dessas duas palavras repetidas reforça a

negação, enfatizando que não há a possibilidade de se escolher Pepsi no lugar da Coca-Cola.

Em texto de 2009, Charaudeau refere-se a um desdobramento de uma das

competências que se subdivide em discursiva e semântica. É essa competência, a semântica,

que faz alusão aos diferentes tipos de saberes tematizados pelos sujeitos do ato de linguagem

e transformados, por eles, em referência. É justamente essa competência que faz o sujeito

destinatário da peça publicitária em questão – figura 12, exposta adiante –, sem que haja

qualquer menção ao nome de uma marca, reconhecê-la como sendo parte de uma campanha

imaginária criada pela Coca-Cola. É, também, a competência semântica que faz com que o

sujeito destinatário ative seus conhecimentos de mundo e infira que o refrigerante de cola

mais vendido no país é a Coca-Cola, concorrente direta da Pepsi, marca nacional, mas, nem

por isso, mais prestigiada.

É, ainda, essa mesma competência semântica que torna o sujeito destinatário capaz de,

por meio de seus conhecimentos enciclopédicos, perceber que a imagem do general, presente

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na propaganda do macarrão fusilli, da marca Barilla, faz referência ao ditador fascista Benito

Mussolini, responsável por um dos períodos ditatoriais mais sangrentos e repressores da

história da Itália, assim como é essa competência que faz com que o destinatário estabeleça

que o leite condensado mais vendido no Brasil é o leite moça, da marca Nestlé, cabendo ao

leite condensado da marca Itambé o segundo lugar, daí ser vice no ranking de vendas.

Torna-se necessário, nesse ponto da análise, falar de dois conceitos trazidos pela

tradição aristotélica, a saber, os conceitos de ethos e pathos, aplicando-os ao corpus do

presente trabalho. Pensando no conceito de ethos como sendo, grosso modo, uma imagem que

um sujeito quer passar e, consequentemente, passa de si, pode-se perceber que há uma ruptura

com o ethos de um publicista tradicional, afinal, o publicista do Desencannes não está

preocupado em parecer passível de credibilidade e legimitidade, logo, não precisa parecer

sério ou honesto, só precisa fazer com que seu público-alvo ria e se divirta com as peças

humorísticas que veicula.

Dessa forma, é possível estabelecer que o publicista do Desencannes não tenta parecer

crível e legítimo por meio de seu discurso, veiculado por um sujeito enunciador, e, também,

não tenta fazer com que seu discurso pareça verossímil, transgredindo, assim, o contrato do

semi-engano, já que o destinatário aceita estar diante de uma publicidade que o engana de

maneira escancarada e que não apresenta o produto como sendo o melhor que o consumidor

pode adquirir.

As propagandas prototípicas estão, todas, no entanto, vinculadas ao contrato do semi-

engano, já que o publicista, sedutor, procura ressaltar as características positivas de um

produto, omitindo seu custo real. Não se pode dizer que ele trabalha com mentiras, pois seria

responsabilizado por isso: na realidade, pode-se dizer que esse sujeito constrói sua

propaganda calcada na verossimilhança, que faz parecer verdadeiro tudo aquilo que está

sendo dito por ele. O destinatário dessa propaganda, por sua vez, sabe que está diante de um

discurso sedutor e verossímil – mas não verdadeiro – e, mesmo assim, resolve se engajar no

que está sendo dito.

Quando nos deparamos com as propagandas trazidas pelo Desencannes, percebemos

que não há um contrato do semi-engano por um simples motivo: o destinatário não está diante

de uma peça publicitária comum, mas sim de uma peça que parece humorística. Justamente

por parecer humorística é que pode veicular tanto verdades quanto mentiras, apesar de parecer

bastante verossímil, ao responder, por exemplo, a uma pergunta feita no filme da concorrente,

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ou ao fazer uso de expressão, praticamente cristalizada nas redes sociais, como é o caso da

hashtag #ogiganteacordou.

Segundo Charaudeau (1983), toda propaganda acaba por ser atravessada pelo contrato

do sério ou pelo contrato do maravilhoso. Nas propagandas tradicionais da Coca-Cola e de

muitos outros produtos, de outras marcas, está-se diante do contrato do maravilhoso, haja

vista que o publicista lida com um público menos racionalista e atribui, ao produto de

determinada marca, um aspecto quase mítico. Tal contrato faz com seu consumidor perceba

estar diante de uma busca que só será terminada quando ele adquirir o produto da marca em

questão, o que lhe faz crer que ele precisa querer tal produto. Essa busca será solucionada e,

então, haverá um querer fazer para, por fim, haver um dever fazer numa espécie de viés mais

pragmático da publicidade.

Essas características poderiam, por associação, ser transferidas para a publicidade do

Desencannes, entretanto, como o site faz propagandas falsas, não se estabelece entre

enunciador e destinatário o contrato do maravilhoso, como fazem as propagandas canônicas

da Coca-Cola, cujo slogan já foi, por exemplo, Abra sua felicidade, o que nos faz crer que a

felicidade do destinatário estava condicionada ao fato de ele tomar esse refrigerante. O

contrato do maravilhoso também parece ser o eleito pelo(s) publiscita(s) que cuida(m) da

propagação da marca Prudence. Explica-se: atualmente, o slogan da marca é Use Prudence

por um mundo melhor, em que a camisinha da marca Prudence parece ser a solução para

todas as mazelas do mundo contemporâneo, sendo confirmado, então, o aspecto quase mítico

dessa marca de preservativos, assim como acontece com a Coca-Cola.

Não há, portanto, preocupação alguma em se construir um ethos de um sujeito

honesto, com qualidades morais bastante perceptíveis em seus discursos, pois o objetivo do

Desencannes é justamente fazer com que a própria publicidade ria de si mesma, quebrando,

assim, a rigidez típica desse discurso, proporcionando uma nova forma de estar no mundo em

termos de discurso publicitário.

O orador, além de criar uma imagem de si e tentar difundi-la para seu público, cria,

também, uma imagem de seu auditório, levando em conta expectativas e características do

referido público; imagens essas que podem, ou não, corresponder aos sujeitos de carne e osso,

seres do mundo real. É a partir dessa possível assimetria que as peças publicitárias do

Desencannes podem deixar de produzir o efeito patêmico do riso para produzir o efeito

patêmico da ofensa: o interpretante que não coincidir com a imagem pretendida pelo

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orador/enunciador do discurso e não entender que as peças desencannadas parecem ser

humorísticas acabará por adotar uma postura reticente ao que está sendo dito, reprovando,

assim, a publicidade do Desencannes.

Aristóteles postula, ainda, a existência de um triângulo que distingue orador, ouvinte e

discurso, mostrando que as provas fornecidas por essas três instâncias são de três espécies. A

primeira delas centra-se no seu orador e, por isso, relaciona-se ao ethos; a segunda diz

respeito à captação de seu ouvinte, o que se dá por meio do pathos; e a terceira tem a ver com

o próprio discurso empreendido por um enunciador para o seu destinatário. Como já se falou

sobre ethos, torna-se imprescindível falar sobre o pathos.

Para que o efeito patêmico seja produzido, é necessário que se mobilize uma espécie

de afetividade do destinatário em relação ao seu enunciador, o que se dá por meio do próprio

discurso – logos – e por meio do ethos que o enunciador demonstra ter, afinal, a imagem que

o enunciador faz de si mesmo é uma imagem construída que pode, ou não, corresponder ao

sujeito real, habitante do mundo extralingüístico.

Passemos, agora, à análise de algumas peças publicitárias desencannadas, levando em

conta o que elas têm de peculiar no que tange aos procedimentos linguísticos e discursivos

que empreendem, uma vez que os aspectos e características, comuns a todas elas, já foram

previamente analisados.

7.1.1 Tomando uma Coca-Cola com o Desencannes

Figura 12 – Peça publicitária da Coca-Cola, publicada pelo Desencannes.

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Como bem se sabe, o Desencannes é responsável por veicular peças publicitárias

fictícias que, via de regra, chocam-se com muitos dos pressupostos trazidos pelo discurso

publicitário como um todo. É claro que não seria diferente com a publicidade exposta acima

que, em um primeiro momento, mostra-se similar às publicidades canônicas, entretanto, um

exame um pouco mais atento demonstra de que maneira ela rompe alguns dos padrões dos

anúncios publicitários.

Em relação ao circuito interno do ato de linguagem, a peça publicitária é bastante

simples, uma vez que veicula apenas um único enunciado, também bastante simples: não, não

pode, que parece ser uma resposta a alguma pergunta feita por alguém que está no circuito

externo ao ato de linguagem. É apenas pensando no circuito externo que se podem estabelecer

efeitos de sentido para a peça publicitária em questão: levando-se em conta o mundo

extralinguísitco no qual tal texto está inserido, bem como sua incursão sócio-histórica, é que

se chega à conclusão de que a referida propaganda faz uma alusão à marca Coca-Cola.

Os possíveis efeitos de sentido só serão produzidos a partir da relação de troca

dialógica que pode vir a existir entre os sujeitos do ato de linguagem, haja vista que eles

partilham conhecimentos de mundo. Conhecimentos de mundo esses que fazem com que os

sujeitos percebam, sem que haja nenhuma menção ao nome da marca, que se trata de uma

peça publicitária da Coca-Cola, pois relacionam a cor vermelha e o formato da garrafa ao

refrigerante símbolo do capitalismo. A cor vermelha, de acordo com Guimarães (2000; 2003),

assume diversos matizes, quando entendida como cor-informação. No caso da Coca-Cola, a

cor representa o glamour, por exemplo, do tapete vermelho, carregando consigo um status que

é, também, repassado a quem consumir o produto daquela marca, por isso, é que não, não

pode [ser Pepsi].

Logo, se o leitor se ativer apenas ao aspecto linguístico do texto, compreendê-lo-ia de

maneira rasa, visto que deixaria de lado o mundo extralinguístico no qual tal anúncio está

inserido, onde a cor vermelha diz respeito à Coca-Cola, assim como o formato da garrafa que

aparece centralizada, no final do anúncio. Também não interpretaria o enunciado da maneira

correta, posto que não faria referência ao diálogo que parece existir entre essa propaganda e a

da Pepsi.

É apenas ativando um conhecimento de mundo partilhado, conforme dito, que se pode

interpretar o enunciado como sendo uma resposta à pergunta veiculada no comercial da Pepsi:

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Só tem Pepsi, pode ser? Aliás, é somente sabendo em que época essas duas propagandas

foram veiculadas que se pode estabelecer essa relação entre elas, o que não seria possível se

se desprezasse o viés sócio-histórico no qual estão inseridas. Ressoa, então, no imaginário

desses sujeitos uma crença de que o refrigerante da marca Coca-Cola só deixa de ser

preferido quando não há a possibilidade de escolhê-lo e, por isso, escolhe-se um similar, nesse

caso, o da marca Pepsi.

O comercial da Pepsi reproduz uma fala ou uma situação de comunicação bastante

comum em bares e restaurantes brasileiros: o cliente pede uma Coca-Cola, mas o

estabelecimento não vende, ao que o garçom responde dizendo que não há o refrigerante de

tal marca, oferecendo, então, um outro, similar, o da marca Pepsi, argumentando Só tem

Pepsi, pode ser? É justamente nesse lugar que se inscreve a propaganda da Pepsi, veiculada

em forma de filme, na TV aberta brasileira. O Desencannes, portanto, aproveita-se dessa

propaganda e cria uma peça falsa para responder negativamente, de maneira assertiva, ao

garçom que enuncia Só tem Pepsi, pode ser?

A identidade discursiva dos falantes é construída para responder à pergunta estou aqui

para falar como? e é por esse motivo que depende de estratégias de credibilidade e de

captação para, de fato, se concretizar. O sujeito enunciador da peça publicitária do

Desencannes adota uma atitude de engajamento por querer cooptar seu destinatário para que

confie naquilo que está sendo dito, dando, portanto, credibilidade ao próprio sujeito

enunciador e àquilo que ele enuncia.

Por outro lado, a estratégia da captação tem a ver com o fato de o sujeito enunciador

querer persuadir seu destinatário a adotar o discurso trazido, fazendo-o partilhar de suas

ideias, crenças e do próprio discurso. Dito de outro modo: o sujeito enunciador da peça do

Desencannes quer que seu destinatário partilhe das opiniões trazidas por ele, concordando que

não é possível escolher outro refrigerante que não a Coca-Cola. Caso os protagonistas do ato

de linguagem tornem-se cúmplices, não haverá outra escolha possível que não a Coca-Cola,

no entanto, se eles se tornarem adversários, outro refrigerante poderá ser escolhido, como é o

caso da Pepsi.

A referida estratégia de captação também se dá pelo fato de o sujeito enunciador

desencannado assumir uma máscara, escolhendo, para si, uma espécie de segunda identidade

social, a de publicista. Não importa, então, qual é a identidade social real do sujeito

enunciador do Desencannes, o que, de fato, faz diferença é que ele pareça ser um publicista,

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mas um publicista diferente, já que assume a necessidade de ser um sujeito desencannado que

também dá voz a um discurso desencannado. Vale lembrar que as máscaras, quando são

utilizadas, acabam por revelar, muito mais do que esconder, as reais intenções de um

indivíduo – social ou discursivo – que delas faz uso, como é o caso do publicista aqui

referido.

Os sujeitos parecem, também, ser permeados por três memórias que testemunham as

maneiras de dizer de certa comunidade discursiva, como é o caso daquela que constrói para a

Coca-Cola a imagem de melhor refrigerante que existe, não podendo ser substituído por

nenhum outro. Trata-se das memórias dos discursos que criam saberes de crença e de

conhecimento, entretanto, apenas o saber de crença pode ser aplicado a essa peça publicitária,

pois é um saber construído coletivamente, que permeia a memória dos destinatários e não

pode ser comprovado pela observação dos fatos, já que não acontece de maneira objetiva,

como é o caso dos saberes de conhecimento.

Há, ainda, a memória das situações de comunicação, que cria as comunidades

comunicacionais: é ela que instaura uma espécie de ritual linguageiro a ser seguido nas

situações de comunicação, estabelecendo quais comportamentos linguageiros um sujeito deve

adotar em determinados atos de fala. É essa memória que afirma que uma propaganda não

pode tornar seu destinatário um adversário, posto que tem como objetivo vender uma marca,

ao contrário do que acontece com as peças publicitárias do Desencannes que, muitas vezes,

agridem seu destinatário ou apresentam uma resposta desaforada para o filme da concorrente,

sendo esse o caso aqui.

A memória da forma dos signos é aquela responsável pelas formas de dizer de

determinado gênero, como é o uso, por exemplo, do nome da marca que, via de regra, está

presente em todas as propagandas, o que, no entanto, não acontece na peça publicitária aqui

analisada.

Há, ainda, um signo não-verbal presente no formato da garrafa que, por sua vez,

possibilita a incorporação símbolo do refrigerante ao próprio texto do site do Desencannes,

uma vez que é resultado da concretização de uma imagem, nesse caso, da imagem-símbolo do

refrigerante da marca Coca-Cola, afinal, apenas a garrafa desse refrigerante possui esse

formato e essa cor, havendo, portanto, um processo de associação de ideais que materializa o

nome da marca em uma realização concreta, nesse caso, a própria garrafa aqui referida. É

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apenas por meio da garrafa e da cor vermelha que o nome da marca é invocado no imaginário

dos destinatários dessas peças publicitárias.

É possível, então, estabelecer que há a reprodução de, pelo menos, dois imaginários

sociodiscursivos nessa peça publicitária: primeiro, ressoa um imaginário, entendido, aqui,

como uma representação social oriunda de saberes de conhecimento e de crença que são

partilhados, de que não se pode escolher outro refrigerante de cola que não a Coca. Por

consequência, pode-se pensar que há a presença de outro imaginário sociodiscursivo que

postula que o refrigerante da marca Pepsi só deixará de ser preterido, caso não haja essa

possibilidade, ou seja, caso não haja Coca-Cola à disposição do consumidor.

Torna-se imprescindível, nesse ponto da análise, recorrer aos modos de organização

do discurso para dar conta da peça publicitária em questão. Como bem se sabe, o modo

enunciativo trata do enunciador com relação ao seu destinatário, a si mesmo e aos outros,

criando um aparelho enunciativo, engendrando, assim, os outros três modos de organização

do discurso, a saber, o narrativo, o descritivo e o argumentativo.

O modo enunciativo tem como foco os protagonistas do ato de linguagem, afinal,

postula a posição que o enunciador assume frente ao seu destinatário dentro da cena

enunciativa. No caso da peça humorística em questão, não há nenhuma marca explícita da

presença do eu, como é o caso, por exemplo, dos verbos de primeira pessoa, entretanto, por

meio de inferências é possível estabelecer um implícito [eu acho que] não, não pode [ser

Pepsi]6, havendo, assim, a presença de um eu que está por trás de toda a enunciação,

ocorrendo o que se convencionou chamar de modalização elocutiva, já que esse sujeito

expressa uma opinião.

É importante salientar que, nas propagandas prototípicas, a modalização dentro do

modo enunciativo, acontece de maneira diversa: geralmente, o eu enunciador tenta implicar o

tu destinatário na cena enunciativa, tentando captá-lo, convencendo-o a adquirir determinada

marca, estabelecendo, para ela, determinado comportamento, numa modalização conhecida

como alocutiva. Logo, pode-se notar uma mudança nos paradigmas das modalizações dentro

do modo enunciativo: na peça humorística do Desencannes, há a elocução, ao passo que, nas

6 Optamos pela modalização elocutiva , embora não haja codificações linguísticas prototípicas dessa modalidade,

por entendermos que tal enunciado não se enquadraria na modalidade delocutiva da asserção, já que,

implicitamente, veicula a voz do enunciador.

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peças publicitárias canônicas, há a alocução, ainda que a peça humorística também queira

cooptar seu destinatário para o que diz, mesmo não pretendendo vender, de fato, uma marca.

O outro modo, subentendido na peça, aqui, examinada, é o argumentativo, já que a o

anúncio em questão visa a captar seu destinatário, fazendo com que ele responda, também de

maneira enfática, à pergunta Só tem Pepsi, pode ser?, que não, não pode, só pode ser Coca,

refutando, assim, a sugestão do filme da Pepsi. Não há, portanto, nenhuma descrição, nem

narração dentro desse texto, que traz um enunciado bem simples, mas assertivo e enfático, o

que se pode observar pela repetição do não: o destinatário da pergunta do filme da Pepsi, em

vez de responder apenas não, duplica sua negação, enfatizando que, definitivamente, não

pode ser Pepsi. Vale lembrar que essa dupla negação é típica de enunciados mais formais, em

que respostas completas são dadas numa situação de comunicação também ela formal, apesar

de esse não ser o caso de uma conversa entre um cliente e um garçom em um restaurante.

Assim sendo, é possível estabelecer que não há argumentos que sustentem o não, não pode:

apenas a marca se impõe, já que não como concorrer com o status que possui a Coca-Cola e

que, consequentemente, transfere aos seus consumidores.

Já que se falou sobre a alocução e a necessidade de fazer o outro aderir ao discurso

empreendido, é necessário falar, também, sobre as relações patêmicas construídas no e pelo

discurso que têm por objetivo engajar um sujeito numa tomada de posição, que é o que

acontece com o Desencannes: é necessário que o sujeito destinatário entenda que se trata de

uma peça humorística e não de uma publicidade tradicional e é justamente esse engajamento

que o fará rir do que está sendo propagado, afinal, estabelece-se um juízo de valor positivo

acerca do que veicula o Desencannes.

É, então, esse engajamento que, além de provocar o riso no leitor desencannado, é

capaz de fazê-lo concordar com o que está sendo dito; nesse caso, concordando que não há

substituto para a Coca-Cola: quando um cliente faz esse pedido, o refrigerante em questão

não pode ser permutado por outro, ainda que os dois sejam refrigerantes de cola – daí vem a

importância da marca e do nome de um produto.

Como dito, a escolha por uma marca específica de refrigerantes está ligada a saberes

de crença, já que as qualidades da Coca-Cola não são exaltadas nessa propaganda: parece

haver uma crença de que essa marca é melhor e, por isso, não pode ser posta de lado por conta

de outra. Logo, os saberes de crença, por serem construídos e compartilhados socialmente,

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acabam sendo evocados quando se quer estabelecer um juízo de valor acerca de determinada

marca, como se faz quando se diz que não, não pode ser Pepsi.

Portanto, o sujeito é engajado em um comportamento reacional – reage afirmando de

maneira veemente que só tomará Coca-Cola –, de acordo com um consenso vigente que

estabelece que não se pode escolher outro refrigerante que não a Coca-Cola, fazendo com que

esse efeito patêmico ingresse num quadro de racionalidade, haja vista o axioma que se

estabelece com relação ao produto e à marca em questão.

A escolha desse sujeito destinatário, que é favorável à Coca-Cola, inscreve-se num

quadro de auto-representação, já que diz mais sobre quem faz a escolha do que sobre o

próprio produto e sobre a própria marca. Explica-se: como se estabelece um juízo de valor

positivo acerca da Coca-Cola, considerada por muitos o melhor refrigerante que existe, esse

juízo de valor positivo é estendido àqueles que a consomem, conferindo, assim, certo status a

quem faz uso desse produto e dessa marca, em vez de consumir, por exemplo, Pepsi.

Apesar de ser uma publicidade às avessas, é necessário estabelecer que as

propagandas do Desencannes ainda exploram, como dito, o status que uma marca confere a

quem o consome, como é o caso daqueles que escolhem Coca-Cola, em vez de escolherem

outro refrigerante, já que vivem em um mundo capitalista, onde a lógica do ter impera com

relação à lógica do ser. Nesse caso, acontece a fidelização do consumidor, que deixa de ser

um consumidor em potencial, motivado pela publicidade – nomeado, assim, por já ter a

intenção de adquirir determinada marca – e passa a ser um consumidor fiel que só opta por

produtos de determinada marca.

Ao contrário do que se estabelece na maioria das propagandas, aquela escolhida para

compor o corpus do presente trabalho não traz consigo uma mensagem conotativa, haja vista

que é literal e veemente, quando diz que não se pode escolher outro refrigerante que não a

Coca-Cola. Tal enunciado dá margem a outros possíveis efeitos de sentido que reiteram o que

está sendo dito por tal peça humorística: não há outro refrigerante tão bom quanto Coca-Cola,

não há nada de similar entre ela e qualquer refrigerante de outra marca, aquele que escolhe

outro refrigerante faz uma escolha errada, entre outros.

A persuasão, como bem se sabe, é a tônica de todo discurso publicitário e, para

convencer seu leitor a aderir ao discurso que veicula, os publicistas utilizam-se de

mecanismos específicos, como o caso dos mecanismos de sugestão – presentes na peça

humorística da Coca-Cola – que consistem em incitar, no destinatário, o desejo de ter

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determinado produto,,de determinada marca, sem que haja qualquer explicação para que isso

ocorra, o que fica ainda mais reforçado com a negativa em se adquirir produto similar, mas de

outra marca.

Os consumidores passam, então, a ser motivados a adquirir determinada marca por

conta da habilidade que o enunciador tem em mostrar que a crença por ele trazida é partilhada

pelo destinatário, ou seja, enunciador e destinatário do Desencannes partilham a crença de que

Coca-Cola é o melhor refrigerante do mercado, não havendo, portanto, nenhuma disjunção

entre as crenças que carregam.

Pensando, agora, em ideologias como sendo diferentes visões de mundo, capazes de

representar o que pensam todas as classes sociais, mas sendo uma dessas visões a da classe

dominante, é possível estabelecer que a Coca-Cola é o refrigerante preferido das elites e, caso

assim não fosse, essa marca não seria considerada como um objeto de valor a ser buscado por

outros sujeitos. Isso fica evidenciado, por exemplo, quando se percebe que a Coca é um dos

refrigerantes mais caros existentes no mercado, ou seja, não são todas as pessoas que podem

se dar ao luxo de, sempre que quiserem, optarem por essa marca, no entanto, escolheriam

tomar Coca-Cola, caso pudessem, deixando de lado produtos similares, como é o caso da

Pepsi.

Assim sendo, é possível estabelecer que há uma ideologia que ressoa nessa peça

humorística: trata-se do fato de que a Coca-Cola é o melhor refrigerante que existe, ao qual se

estabelece um valor concreto, o preço mais alto, e ao qual se dá um status, posto que se atribui

um juízo de valor positivo não só à marca em questão, mas também àquele que o adquire e

escolhe tomar Coca-Cola sempre que possível. Dessa forma, cria-se uma verdade universal e

incontestável, transformando a visão de mundo particular da classe dominante em visão de

mundo de todas as pessoas que desejam ser, de alguma maneira, parte dessa classe dominante.

Apesar de ser uma publicidade às avessas, a peça humorística em questão utiliza-se de

uma das estratégias argumentativas do discurso publicitário, a saber, a singularização de um

produto para construir seu fazer persuasivo. Transformando, também, o ordinário em

extraordinário, o Desencannes postula que não há outro refrigerante como a Coca-Cola dentro

do mercado, já que o destinatário não pode escolher nenhuma marca que não seja ela, o que,

obviamente, singulariza essa marca no meio das demais e torna seu público-alvo cativo.

Pensando, justamente, nessa peça humorística, pode-se estabelecer que a publicidade

tradicional, assim como a desencannada, vende marcas e não produtos.

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As mensagens publicitárias prototípicas, por sua vez, são manifestadas por três atos

fundamentais: nomear, qualificar e exaltar, no entanto, a peça que compõe o corpus deste

trabalho acaba por fazer uso apenas da ação de qualificar e da de exaltar, porém, de maneira

implícita, quando deixa subentendido que não pode ser escolhida nenhuma outra marca que

não a Coca-Cola. Não há a ação de nomear, já que o nome da marca não aparece na peça,

logo, a ancoragem no mundo real é feita por meio de conhecimentos de mundo que os sujeitos

partilham, como é o caso da cor típica dessa marca e do formato de sua garrafa.

O princípio da economia, tão comum no discurso publicitário, não é utilizado pelo

sujeito enunciador do Desencannes, posto que ele, por exemplo, repete o advérbio de negação

não, o que seria desnecessário, já que o sujeito com quem fala entenderia perfeitamente que

não se pode escolher outro refrigerante que não a Coca-Cola. Entretanto, com a quebra dessa

economia, o enunciado ganha ênfase, já que a escolha de outra marca é duplamente negada,

estabelecendo, assim, um enunciado menos enxuto, mas mais incisivo em termos de escolha.

O princípio da proximidade, por sua vez, aparece nessa peça publicitária, já que são

aproximadas as informações, por meio do enunciado não, não pode, àquele que deve ser

informado do que está sendo veiculado.

Vale esclarecer que não há, como em todas as outras publicidades, a presença de

slogan nem de clichês e fórmulas fixas, tão comuns ao discurso publicitário, rompendo, dessa

forma, com certas normas pré-estabelecidas, como é o caso do uso de slogans, que é um lugar

comum da propaganda. Tal rompimento é explicável por essa propaganda, na realidade, não

ter por finalidade vender uma marca, logo, não precisa mencionar o nome da marca nem criar

um slogan para ela.

Pode-se, contudo, estabelecer outra hipótese para o fato de o nome não ter sido usado

na propaganda: a marca Coca-Cola é tão forte no imaginário dos destinatários que não

precisou ser mencionada, afinal, os leitores já sabiam se tratar desse refrigerante específico,

por isso, não se precisou recorrer ao nome da marca para que integrasse a peça humorística

em questão.

O ponto alto do discurso publicitário talvez seja a escolha do nome do produto, o que

não fica evidenciado na peça do Desencannes: o nome Coca-cola, eufônico e curto, impõe

certa identidade – psicológica e social – ao produto para que os consumidores o tenham

sempre em mente, que é o que acontece quando um sujeito se depara com a cor vermelha e o

formato da garrafa desse refrigerante e logo associa o nome Coca-Cola a esses dois símbolos.

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É possível se pensar, então, que as outras marcas de refrigerante não são identificadas pelo

que são, pois não possuem a notoriedade do refrigerante de cola mais vendido do país, mas

sim por aquilo que não são: Coca-Cola.

A marca confere ao produto uma forma de ser no mundo por criar, para ele, um valor

de referência por meio de comparações, que é o que acontece, por exemplo, na peça

humorística destacada: comparado ao refrigerante da marca Pepsi, pode-se dizer que o da

marca Coca-Cola é muito superior, evocando uma imagem bastante afetiva, já que é o

refrigerante preferido pelos consumidores e não pode ser substituído por nenhum outro.

Muito se falou sobre o humor como uma das estratégias de captação posta em prática

pelo Desencannes. Portanto, torna-se necessário explicar de que maneira a produção do

humor acontece no que diz respeito à peça publicitária destacada acima. Pensando em

algumas das concepções teóricas trazidas por autores como Bergson (2001), Freud (1996) e

Bakhtin (2013), é possível estabelecer que o cômico produz-se a partir do momento em que se

quebra a rigidez cotidiana do discurso publicitário, com a utilização de um enunciado que

rompe com uma das regras clássicas no que diz respeito ao fazer dos publiscitas: responder

diretamente a uma propaganda da marca concorrente. O riso produz-se, então, pelo fato de ter

havido a quebra de um automatismo presente no dia a dia dos sujeitos que fazem propaganda,

já que parece existir um modus operandi, o qual todos seguem, com exceção daqueles que

produzem as peças publicitárias desencannadas.

A produção do chiste pode ser explicada, ainda, pela economia na descarga de

pensamento resultante do fato de o destinatário perceber a conexão que há entre a propaganda

da Coca-Cola e o filme da Pepsi e não precisar interpretá-los como se fossem enunciados

díspares, posto que se apresentam interligados, por meio de duas publicidades, sendo uma

delas às avessas. De acordo com Bakhtin (2013), no entanto, o cômico é produzido quando a

publicidade é trazida para o rés do chão, deixando de ser encarada como um gênero sério,

capaz de realizar milagres no que diz respeito ao número de vendas de um determinado

produto de uma determinada marca: aqui, a publicidade é uma piada que faz rir e, acima de

tudo, faz refletir sobre aquilo que enuncia, afinal, só o humor é capaz de ajudar a perceber o

quão frágil e ridículo é a existência humana.

Parece que já nos ativemos o suficiente na peça publicitária desencannada da Coca-

Cola, por esse motivo, torna-se imprescindível proceder à análise de uma nova peça, nesse

caso, a da Prudence.

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7.1.2 Prudence: o trabalho é nosso – do Desencannes – e o prazer é seu.

Figura 13 – Peça publicitária do preservativo Prudence, publicada pelo Desencannes.

A peça publicitária criada pelo site do Desencannes para promover, ainda que

ficticiamente, a marca Prudence centra-se, apesar de ser uma publicidade às avessas, numa

das principais estratégias elencadas pelo discurso publicitário tradicional, isto é, a exaltação

do produto que, automaticamente, é transferida para aqueles que fazem uso e consomem essa

marca de preservativo. A referida exaltação ocorre a partir do momento em que se usa a

hashtag #ogiganteacordou para se referir ao órgão sexual masculino e a quem usa Prudence;

ou seja, todos aqueles que se utilizam de camisinhas dessa marca são homens que possuem

um órgão sexual de tamanho acima da média ou são homens com qualidades bastante

louváveis, afinal, são gigantes.

No que tange ao circuito interno ao ato de linguagem, a peça publicitária traz um

enunciado verbal bastante simples, resumido na hashtag #ogiganteacordou, que mostra quais

são as três palavras-chave – daí vem o conceito de hashtag – que resumem a intenção

daqueles que produziram a peça. Contudo, esse enunciado ganha outra configuração se o

inserirmos no circuito externo ao ato de linguagem, o que produzirá diferentes efeitos de

sentido possíveis para a hashtag em questão, já que o referido enunciado possui uma

ancoragem no mundo extralinguístico e até mesmo uma incursão sócio-histórica.

A ancoragem no mundo biopsicossocial mostra que a utilização da hashtag, no lugar

de um enunciado tradicional, diz respeito a um momento muito particular da história do

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Brasil, que são as Manifestações de Junho de 2013, por conta do aumento do valor da

passagem de ônibus. Explica-se: essa hashtag foi bastante utilizada, fazendo ela mesma uma

referência a alguns trechos do hino nacional, a fim de flagrar que o povo brasileiro, enfim,

tinha acordado de sua inércia política e, por isso, começado a lutar por seus direitos: tinha,

então, deixado de estar deitado eternamente em berço esplêndido e teria assumido para si que

é gigante pela própria natureza, afinal, finalmente, engajou-se no sentido de mudar o cenário

político brasileiro.

Quando o site do Desencannes se apropria desse enunciado, descontextualiza-o para

contextualizá-lo novamente, fazendo com que o efeito de sentido produzido pela utilização da

hashtag, nos Protestos de Junho de 2013, ganhe outro significado que, nesse caso, diz

respeito, conforme dito, ao órgão sexual masculino, ao próprio homem e ao fato de o pênis

ficar ereto quando há a possibilidade iminente de uma relação sexual. O cenário de uma

possível relação sexual está presente nos signos não-verbais do anúncio, como é o caso do

lençol bagunçado, o que indica que alguém está fazendo uso da cama e da foto da própria

embalagem do preservativo que está sobre a cama, apenas esperando que o gigante acordasse.

Pode ser, também, que o termo gigante designe o homem que acordou, no entanto, a

conotação sexual mantém-se por conta dos signos não-verbais presentes no anúncio – o lençol

e o pacote de camisinhas – que induzem o leitor a achar que, em breve, alguém fará sexo.

Logo, é necessário, para que as nuances de sentido, trazidas pelo sujeito enunciador do

Desencannes, sejam entendidas, que conhecimentos de mundo sejam partilhados entre o

sujeito enunciador e o destinatário de tal peça: se o receptor não fizer ideia de que essa

hashtag era usada como uma forma de conclamar as pessoas a irem às ruas para manifestar

sua insatisfação com relação ao aumento da passagem e ao cenário político brasileiro,

perceberá somente a conotação sexual presente no enunciado, deixando de lado sua incursão

sócio-histórica, por exemplo. Assim sendo, apenas aqueles indivíduos que viveram e que, de

alguma maneira, tomaram conhecimento dos Protestos de Junho de 2013 são capazes de

perceber que essa propaganda foi produzida em um período bastante próximo a esse mês e a

esse ano, ampliando, assim, os possíveis efeitos de sentido que esse enunciado verbal e até o

não-verbal podem vir a assumir.

O ato de linguagem é, então, ao mesmo tempo, implícito e explícito, já que veicula um

conteúdo que pode ser entendido apenas em seu viés linguístico e outro que pode ser

entendido em seu viés discursivo. É o que acontece, por exemplo, com o enunciado que, se se

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levar em conta apenas o sentido de língua, poderá ser compreendido como se um observador

estivesse afirmando que alguém acordou. Contudo, se se ativer ao sentido de discurso, ou

seja, ao implícito do enunciado, o destinatário perceberá que o gigante não faz referência ao

homem, mas sim ao pênis desse homem, o que ficará ainda mais claro com a observação do

icônico da peça: um lençol amarrotado e o pacote de camisinha. Vale lembrar que é esse

mesmo sentido de discurso o responsável por possibilitar que haja uma inferência do receptor,

a fim de que compreenda estar diante de um enunciado que, originalmente, possuía outro

efeito de sentido.

A atitude discursiva do falante constrói-se, portanto, para responder à pergunta estou

aqui para falar como? Logo, a maneira como o enunciado será produzido determinará as

estratégias de captação colocados em jogo para persuadir o destinatário. Diante disso, é

possível estabelecer que o sujeito enunciador da peça publicitária da Prudence adota uma

atitude de engajamento, afinal, quer cooptar seu destinatário para aquilo que enuncia, fazendo

com que ele entenda, por exemplo, que só os grandes – homens e pênis – fazem uso de uma

marca tão especial e único, como é o caso do preservativo em questão.

Há, então, ressoando na peça em tela, uma crença de que apenas os gigantes pela

própria natureza escolhem usar Prudence, em vez de escolher usar preservativos de quaisquer

outras marcas. É necessário que esse sujeito destinatário compartilhe dessa crença, caso

contrário, como é livre para comprar qualquer marca, poderá escolher, por exemplo,

camisinhas da Jontex, o que não representará uma fidelização por parte desse receptor: na

realidade, se consumir o produto de outra marca, tornar-se-á adversário do discurso veiculado

pelo Desencannes.

Os sujeitos, a seu turno, também são permeados por três memórias que testemunham

as formas de dizer de uma comunidade. É uma dessas memórias, a memória dos discursos,

que tece, para a Prudence, a imagem de melhor preservativo que existe, não podendo ser

substituído por nenhum outro. A memória dos discursos é constituída por saberes de

conhecimento e de crença, contudo, no que tange à peça destacada acima, só há a presença de

saberes de crença, haja vista que a peça é fruto de um saber construído coletivamente, que

não tem nenhuma base científica ou empírica que o comprove: as camisinhas da marca

Prudence são as melhores do mercado.

Há, ainda, a memória das situações de comunicação, responsável por criar

comunidades comunicacionais, estabelecendo rituais e comportamentos linguageiros que

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devem ser seguidos pelos protagonistas do ato de linguagem. É essa memória, por exemplo,

que instaura a impossibilidade de uma propaganda falar mal do produto que vende, sob risco

de tornar seu destinatário adversário do que diz, e não cúmplice, inviabilizando, dessa forma,

o consumo dessa marca. Pode-se perceber, então, que a peça em análise não rompe com essa

memória, haja vista que constrói seu discurso a fim de tornar sua marca única, inigualável e

insuperável.

A terceira delas é a memória da forma dos signos, responsável pelos modos de dizer

de determinado gênero discursivo, como é o caso de se utilizar, por exemplo, um slogan que

visa a promover a marca e, consequentemente, a venda dos produtos, o que, via de regra, está

presente em todas as propagandas, porém, não é o que acontece na peça publicitária aqui

analisada.

Já que se falou acerca de saberes de conhecimento e de crença, torna-se importante

discorrer sobre os imaginários sociodiscursivos que, aqui, são tidos como representações

sociais que engendram, por sua vez, dois sistemas de saber. Assim, estabelece-se que, na peça

publicitária em questão, coexistem dois imaginários: o primeiro deles diz respeito ao fato de

que a satisfação sexual e o prazer só acontecem quando homens e/ou mulheres relacionam-se

sexualmente com quem tem um pênis grande, e o segundo, no entanto, parece advir do fato de

que só é gigante pela própria natureza aquele que nasceu com o órgão sexual masculino com

um tamanho acima da média. Todas essas crenças, portanto, giram em torno do tamanho do

pênis de um homem.

Em verdade, é como se se criasse um círculo vicioso: só os gigantes podem usar

Prudence, ao mesmo tempo em que aquele que usa Prudence é alçado à categoria de gigante.

Assim sendo, é possível estabelecer que há uma ambiguidade com relação ao vocábulo

gigante: seriam grandes os homens que nascem com o órgão sexual também grande e/ou que

possuem qualidades louváveis ou a palavra corresponderia, unicamente, ao tamanho da

genitália masculina? Advém daí, então, os dois imaginários, mencionados acima.

Pensando, agora, nos modos de organização do discurso, no que diz respeito ao modo

enunciativo e, consequentemente, à posição que o enunciador assume com relação ao

destinatário, é possível estabelecer que a peça publicitária da Prudence, diferente das

publicidades tradicionais, não faz uso da modalização alocutiva, já que não tem por objetivo

primeiro o engajamento desse sujeito numa determinada tomada de posição. Na realidade, a

modalização adotada é a elocutiva, uma vez que o enunciado constitui-se como sendo uma

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afirmação bastante assertiva, em que a presença do eu pode ser recuperada da seguinte

maneira: [eu afirmo que] #ogiganteacordou.

Parece, ainda, que um actante está contando um fato a outro actante: é como se, no

meio de uma conversa mais íntima e informal, ele se desse conta de que está ficando excitado

ou de ter acordado e decidisse, por sua vez, contar ao seu/sua parceiro(a) o que está

acontecendo. Por isso, é possível dizer que o enunciado utiliza-se do modo narrativo. Porém,

quando o actante resolve narrar um acontecimento para seu interlocutor, espera que este tome

certa atitude com relação ao que foi dito, ou melhor, parece que decide alertar seu receptor

para o que ainda acontecerá: nesse caso, trata-se de sexo. Dessa forma, é possível afirmar que

o actante faz uso do modo argumentativo, visto que quer persuadir o outro actante sobre

aquilo que enuncia. Contudo, no que tange ao sujeito enunciador, pode-se afirmar que ele se

utiliza do modo argumentativo com o objetivo de convencer seu destinatário a comprar um

produto de uma determinada marca específica, como é o caso do preservativo da marca

Prudence.

A peça publicitária da Prudence empreende, ainda, relações patêmicas construídas

discursivamente com o intuito de cooptar o destinatário para que ele adira ao enunciado

produzido, pois só assim perceberá, por exemplo, que está diante de uma peça humorística e

não de uma peça publicitária tradicional com a qual está acostumado a lidar em seu dia a dia.

Assim sendo, é a atitude de engajamento, propiciada por um efeito patêmico, que fará com

que o sujeito destinatário ria do que está sendo dito, ainda mais se o fizerem inferir que o

enunciado verbal da peça diz respeito à hashtag usada durante os Protestos de Junho de 2013.

É, também, essa mesma atitude de engajamento que fará com que o destinatário torne-

se cúmplice do que está sendo dito, escolhendo usar Prudence em vez de usar qualquer outra

marca de preservativo, afinal, apenas os grandes homens, com grandes falos, tomam essa

decisão. Na realidade, essa escolha está pautada em um juízo de valor positivo acerca do que

é ser um grande homem e do que representa ter um órgão sexual de tamanho acima da média;

tudo isso é engendrado por saberes de crença e não de conhecimento, conforme dito

anteriormente, já que não há nenhuma objetividade em se estabelecer tal axioma: existe uma

crença que determina que ser um grande homem e ter um grande pênis é bom, o que só se

tornará possível caso o destinatário faça uso do preservativo da Prudence.

Assim sendo, ao sujeito, caberá se engajar em um comportamento reacional, que

determinará que ele escolha ser grande ao resolver consumir Prudence, levando-se em conta

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uma espécie de consenso vigente que determina que ele não pode resolver escolher outro

preservativo de outra marca, sob pena de ser um homem pequeno que tem, também, um órgão

sexual pequeno que, consequentemente, não será capaz de proporcionar prazer à sua parceira

ou ao seu parceiro, segundo um imaginário que ressoa em nossa sociedade.

A escolha desse mesmo sujeito destinatário inscreve-se num quadro de auto-

representação, afinal, quando alguém escolhe obter um produto dessa marca, a escolha diz

mais sobre a pessoa do que sobre a marca que ela adquire. Isso acontece, porque o juízo de

valor positivo que estabelecemos para a marca acaba sendo transferido para os consumidores

dessa marca. Assim sendo, o status que é conferido à marca passa a ser conferido, também, a

todos aqueles que fazem uso do preservativo da marca Prudence. A transferência de status é o

que possibilita, por sua vez, a passagem do consumidor de motivado, já que ele se interessou

pela propaganda em questão, a um consumidor em potencial que, provavelmente, escolherá

Prudence toda vez em que houver a oportunidade.

A peça publicitária em análise também se utiliza de uma das estratégias da publicidade

canônica, que é a de ancorar o produto no mundo real, por isso, o nome da marca no canto

inferior direto da peça e também a imagem do pacote de preservativo. O viés conotativo

estabelece-se, a seu turno, por conta do enunciado #ogiganteacordou, em que o termo gigante

é usado em sua acepção figurada, posto que não se está referindo a alguém que sofre de

gigantismo. Em verdade, quando se escolhe o vocábulo gigante, quer-se ressaltar qualidades

importantes que um homem pode vir a ter, o que vai desde seus valores morais até o tamanho

do seu órgão sexual.

A publicidade da Prudence recorre a outra estratégia empreendida pelo discurso

publicitário tradicional: trata-se dos mecanismos de sugestão que persuadem e até mesmo

incitam o destinatário a consumir determinada marca de um determinado produto, incutindo-

lhe o desejo de compra, sem que haja qualquer explicação racional para isso. O uso do termo

gigante, em seu sentido conotativo, exemplifica uma atribuição positiva, de valor subjetivo,

com relação à marca em questão, reforçando, assim, a ideia de que a escolha dessa marca em

nada está relacionada a suas qualidades intrínsecas, como o fato de ser a mais resistente do

mercado ou a que causa menos desconforto quando do ato sexual, por exemplo.

Dessa forma, é possível estabelecer que os destinatários de determinada peça

publicitária, nesse caso, os pseudo-consumidores, são cooptados pelo fato de o enunciador ser

hábil o suficiente para mostrar que ambos compartilham da mesma crença. Assim, quando o

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enunciador insinua que são gigantes os homens e/ou os pênis que usam Prudence, confirma a

crença de que quem não usa não é gigante e, consequentemente, não é feliz. Se o destinatário

for seduzido a acreditar nessa insinuação, inferindo que é gigante quem usa Prudence,

automaticamente, escolherá, entre uma gama enorme de possibilidades, usar o preservativo

dessa marca específica.

Pensando, agora, no conceito de ideologia e nas diferentes visões de mundo que ela

representa, sendo a principal a da classe dominante, pode-se considerar que, na peça da

Prudence, há a presença de pelo menos uma ideologia. Nesse caso, não se trata da ideologia

da classe dominante, economicamente falando, mas, sim, da ideologia dos gigantes que, para

serem ou continuarem sendo vistos dessa forma, escolhem usar preservativos da marca

Prudence. Em verdade, talvez, a escolha da marca, nesse contexto, tenha mais a ver com a

imagem que o indivíduo quer ter si do que com a imagem que ele quer passar para o outro

com quem convive – ethos: parece, então, que ser gigante contribui para a auto-estima dos

sujeitos que fazem uso das camisinhas de tal marca.

Talvez, numa propaganda canônica tradicional, esse viés da grandeza fosse ser

explorado pela inovação, já que a marca Prudence parece estar à frente de seus concorrentes

no que tange à experimentação de novos produtos: foi ela quem lançou, por exemplo, no

Brasil, a camisinha que brilha no escuro. A empresa, então, explora um ramo de mercado que

tem a ver com a diversão e com a inovação, o que encontra eco em outro imaginário

sociodiscursivo que povoa a mente dos brasileiros: o sexo não pode cair na rotina, logo, é

preciso, sempre, haver diversão, inovação e experimentação.

A singularização de um produto – outra estratégia usada pela publicidade tradicional –

também está presente na peça publicitária, visto que apenas o preservativo da marca Prudence

pode dar a característica de grandeza ao seu consumidor e/ou ao pênis desse consumidor.

Assim sendo, o destinatário só tem uma opção de compra: a camisinha da marca Prudence,

afinal, não quer correr o risco de parecer pequeno ou de fazer seu órgão sexual parecer

pequeno, tentando melhorar a imagem que tem e que passa de si mesmo – ethos.

As mensagens publicitárias canônicas seguem uma espécie de ritual: precisam

nomear, qualificar e exaltar os produtos dos quais fazem propaganda. Com relação à peça da

Prudence, é possível identificar que há a nomeação, visto que o nome do produto que se

vende – e é isso que ancora a propaganda no mundo real – está exposto no anúncio, assim

como a exaltação, uma vez que, por meio da propaganda, o produto passa a ser visto como

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único, já que lhe são dadas características inigualáveis, como tornar o medíocre, grandioso. É

possível notar, ainda, que não há nenhuma qualificação explícita: na realidade, o produto de

determinada marca é qualificado por associação aos seus usuários, numa relação lógica que

diz que, se seus usuários são gigantes, o produto de tal marca também o é.

O princípio da economia, tão comum nas publicidades canônicas, foi usado pelo

sujeito enunciador da peça em questão, uma vez que fez uso de um enunciado bastante

simples e enxuto, em que não há como excluir qualquer uma das três palavras, sob o risco de

fazer com que perca seu sentido, afinal, é composto, apenas, de um artigo, um substantivo e

um verbo que é intransitivo, logo, não precisa de nenhum complemento. O princípio da

proximidade faz-se presente nessa propaganda, uma vez que são aproximadas, do destinatário,

informações necessárias para que ele escolha consumir Prudence.

A publicidade em questão faz uso de uma fórmula fixa, nesse caso, de uma hashtag

que, como dito, foi muito usada por internautas nas redes sociais durante as Manifestações de

Junho de 2013. Essa forma cristalizada era utilizada para conclamar as pessoas a fim de que

fossem mostrar seu descontentamento com o aumento do valor da passagem e com as

decisões tomadas pelo governo brasileiro, nas ruas, visto que tinham acordado de uma espécie

de apatia política. Essa mesma fórmula fixa representa, a seu turno, um interdiscurso, já que

constitui um discurso em relação a outro já existente, apropriando-se das ideias de outrem.

A propaganda não faz uso de slogans, como todas as outras costumam fazer, o que é

explicado, uma vez que não foi feita para vender um produto de uma marca, por isso, serve a

outros propósitos que não levar o consumidor a comprar uma determinada marca, como é

caso, por exemplo, de fazer seu destinatário rir. Diferentemente do que ocorreu com a peça da

Coca-Cola, analisada anteriormente, o nome da marca do produto foi mencionado, assim

como havia uma foto desse mesmo produto reproduzida no anúncio, conferindo-lhe uma

forma de ser e de estar no mundo em que vivemos. Talvez isso tenha ocorrido, porque a

marca mais vendida, no que diz respeito a preservativos, no mundo real, não é a Prudence,

portanto, o primeiro nome que viria à mente de um destinatário seria outro, o que,

obviamente, atrapalharia a produção dos possíveis efeitos de sentido pretendidos pelo

enunciador do Desencannes.

O humor também funciona como uma das estratégias de captação adotadas pelo

sujeito enunciador do Desencannes para tornar seu destinatário cúmplice do que diz: caso

contrário, o destinatário tornar-se-ia seu adversário e o humor, consequentemente, não seria

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produzido. O cômico, na realidade, também é fruto de conhecimentos enciclopédicos

compartilhados, visto que, para que o riso aconteça, é necessário que o sujeito destinatário

ative em sua memória o contexto anterior em que se usou a hashtag #ogiganteacordou para,

assim, poder rir desse enunciado que, agora, produzirá um novo efeito de sentido.

Pensando no que diz Bakhtin (2013) acerca do humor, é possível afirmar que essa

peça publicitária traz para o rés do chão as Manifestações de Junho de 2013, desconstruindo a

ideia de que o brasileiro tinha, enfim, saído de sua apatia política, transformando aquela frase

feita que conclamava os indivíduos a irem às ruas em declarações do tipo alguém acordou ou

alguém está excitado. Diante disso, o humor transforma tais protestos, que tinham uma

intenção sublime em algo grotesco, assim como acontecia, por exemplo, nas festas

carnavalescas da Idade Média.

Esse enunciado, como bem se sabe, era reproduzido, automaticamente, nas redes

sociais para expressar uma espécie de imaginário coletivo acerca do fato de que os brasileiros,

enfim, voltariam a lutar, nas ruas, por seus direitos. Quando, então, o sujeito enunciador do

Desencannes usa a hashtag como forma de persuadir, ainda que de maneira fictícia, os

possíveis consumidores a comprar Prudence, acaba por quebrar esse automatismo, fazendo

com esses mesmos consumidores saiam do curso normal de suas vidas – lendo a replicação

dessa hashtag nas redes sociais – e riam do que está sendo veiculado.

O humor foi, de acordo com Freud (1996), possivelmente, produzido por conta da

economia de descarga de pensamento empreendida pelo destinatário do texto que,

teoricamente, correspondeu ao perfil idealizado pelo enunciador e pôde perceber que estava

diante de enunciado re-contextualizado e não de dois enunciados independentes, o que,

obviamente, despenderia um gasto maior de energia para ser compreendido. Nesse caso,

ocorre o chiste de palavras, já que a produção de humor é engendrada por meio de uma

ambiguidade, fruto de uma habilidade na organização do material verbal empregado.

Muito se falou acerca da peça publicitária desencannada da marca Prudence, por esse

motivo, empreenderemos, a seguir, a análise da peça publicitária, também ela desencannada,

da marca Barilla.

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7.1.3 Barilla: onde tem fusilli, tem Itália

Figura 14 – Peça publicitária do macarrão Barilla, publicada pelo Desencannes.

A peça publicitária, criada pelo site do Desencannes, justamente por ser fictícia,

subverte a principal estratégia usada pelo discurso publicitário: a exaltação de um produto e,

consequentemente, de uma marca. Na publicidade destacada, isso acontece pela associação da

marca à figura do ditador italiano Benito Mussolini, responsável pela implementação de um

dos regimes ditatoriais mais radicais de todos os tempos. Essa associação, caso fosse

empreendida pela publicidade canônica, seria, automaticamente, rejeitada pelos donos da

empresa, afinal, não iriam querer que a marca “tivesse a cara” de um ditador fascista.

Portanto, é apenas por meio de uma propaganda que não se dobra às regras da publicidade

tradicional que se torna possível estabelecer que uma marca pode ser representada pela figura

de um ditador.

No que tange ao circuito interno do ato de linguagem, a peça traz um enunciado

bastante simples que, em poucas palavras, empreende o que, à primeira vista, seria uma forma

de exaltar uma marca. Utiliza-se, então, de um substantivo e de um complemento que

especifica de quem alguém seria líder, nesse caso, das massas italianas. Esse tipo de

enunciado é bastante corriqueiro dentro do discurso publicitário, haja vista que é comum que

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as marcas, ao fazerem propagandas de seus próprios produtos, digam que aquele produto,

daquela marca, é líder de vendas no mercado. Contudo, em vez de usar uma frase feita, do

tipo líder em vendas, o sujeito enunciador do Desencannes opta por modificar um pouco esse

enunciado, substituindo um complemento prototípico por outro, nesse caso, de massas

italianas, que modifica o possível efeito de sentido produzido a partir desse enunciado.

Logo, se o sujeito se ativer apenas ao que diz respeito ao aspecto puramente

linguístico, não perceberá que, na realidade, o anúncio denigre a imagem de seu produto ao

promover uma comparação implícita entre a marca Barilla e o ditador Benito Mussolini. Tal

comparação poderia ser recuperada, por exemplo, por um enunciado verbal: assim como

Barilla é líder no que se refere à venda de alimentos feitos com massa, logo, pratos típicos da

Itália, Mussolini é líder do povo italiano.

Na realidade, o sujeito enunciador desencannado apropria-se da ambiguidade trazida

pelo vocábulo massa – para os italianos, pasta –, que significa tanto alimentos feitos com

farinhas, como a de trigo, quanto um aglomerado de pessoas que partilha algo em comum –

no caso da propaganda, são cidadãos nascidos ou viventes em uma mesma nação, a Itália. É

possível perceber, então, que o enunciado, entendido apenas em seu sentido de língua, será

compreendido como sendo uma propagando prototípica de pasta, no entanto, se for levado em

consideração seu sentido de discurso, o destinatário poderá perceber que a palavra massa foi

utilizada em sentido figurado e significa povo.

Vale lembrar que, possivelmente, o aspecto icônico do anúncio, a imagem de um

militar, chamaria a atenção do receptor e, provavelmente, provocaria nele um estranhamento.

Assim sendo, para que, de fato, se produzisse o efeito de sentido pretendido pelo enunciador,

seria necessário que o destinatário acionasse seus conhecimentos de mundo e se recordasse

que a Itália viveu o regime do fascismo e, num insight, percebesse que a figura, na realidade,

é um retrato de Mussolini, quando jovem. Seria exigido, portanto, desse destinatário, que ele

partilhasse os saberes enciclopédicos trazidos pelo enunciador da peça, a fim de que, assim, o

sentido de efeito visado correspondesse ao produzido.

Ainda que óbvio, é importante ressaltar que, se o destinatário não fizer uso dessa rede

de inferências, a propaganda “passará batida” por ele, como sendo apenas mais uma

propaganda do ramo alimentício, tão comum no dia a dia do mundo capitalista em que

vivemos. Logo, é possível estabelecer que o diferencial da peça publicitária do Desencannes

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está em todos os conhecimentos partilhados que ela carrega consigo e que, de certa forma,

exige que seus receptores compartilhem e interpretem.

Há outro detalhe, presente no anúncio, que nos chama atenção: o tipo de massa

escolhido. Popularmente conhecido como parafuso, o fusilli não foi escolhido inocentemente

pelo enunciador – sujeito intencional – do Desencannes, afinal, é bastante provável que a

escolha tenha se dado pelo fato de haver uma aproximação sonora entre o tipo de macarrão e a

palavra fuzil que, por sua vez, faz referência à violência e à repressão, empreendidas pelo

regime fascista de Mussolini.

A importância do icônico na peça em tela parece já ter ficado clara, todavia, torna-se

imprescindível comentar a respeito das cores que compõem o anúncio. Pensando no conceito

de cor como informação (GUIMARÃES, 2000; 2003), percebe-se que a cor azul e a vermelha

deveriam predominar na publicidade, posto que são as cores representativas da marca Barilla

– daí a faixa vermelha, horizontal, presente na parte de baixo do anúncio –, porém, a cor

predominante é a verde, cor típica dos uniformes militares, como forma de camuflá-los, por

exemplo, em meio à selva e também, ao lado do vermelho, uma das cores da bandeira italiana.

Essa quebra de paradigma, além de comprovar que o leitor está diante de uma publicidade às

avessas, flagra a importância das cores dentro do texto publicitário.

A atitude discursiva do enunciador, por sua vez, responde, sempre, à pergunta: estou

aqui para falar como? Assim sendo, é possível estabelecer que as estratégias de captação são

postas em prática por parte do enunciador para persuadir ou, nesse caso, dissuadir seu

destinatário a adotar determinada postura. A peça acima utiliza-se de uma espécie de atitude

de engajamento às avessas: em verdade, quando se faz a associação da marca Barilla a

Mussolini, denigre-se a marca, o que fará com que o consumidor deixe de comprá-la, pois ela

representa o que há de pior no fascismo: violência, autoritarismo, totalitarismo etc. A atitude

de engajamento, então, é adotada no sentido de fazer com que o destinatário não compre o

produto da marca anunciada, ainda que ele seja líder em massas italianas.

Na propaganda acima, na realidade, ressoam duas crenças que se chocam: a primeira

diz respeito à superfície textual e reafirma a qualidade da marca que é líder no ramo de

massas italianas; a segunda delas, entretanto, compara essa qualidade de liderança àquela que

possuía Mussolini quando era governante do país. Assim, ao fazer coexistirem essas duas

crenças, parece que o sujeito enunciador quer alertar para a existência de uma terceira crença

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que, implicitamente, afirma que ser líder das massas italianas – macarrão ou povo – não é

uma característica digna de apreciação.

Os sujeitos, por sua vez, são permeados por três memórias que testemunham as

maneiras de dizer de uma dada comunidade. É justamente uma dessas memórias, a do

discurso, que diz que a marca Barilla é tão ruim quanto foi Mussolini, logo, o consumidor

não deve comprar nenhuma massa dessa marca. A memória dos discursos é fruto da junção de

saberes de conhecimento e saberes de crença. A peça em análise é exemplo dos chamados

saberes de crença e de conhecimento. Por saber de crença, entende-se uma saber que não tem

nenhuma base objetiva ou facilmente comprovável: é fruto de um “achismo” compartilhado

pelos membros de uma comunidade que postula que o Barilla é tão ruim quanto Mussolini,

posto que ser líder das massas italianas não é um bom negócio. No entanto, é um saber de

conhecimento que causa toda essa aversão a Mussolini e, consequentemente, à marca, haja

vista que grande parte das pessoas tem conhecimento sobre o que aconteceu na Itália, na

época em que a nação vivia sob regime fascista, o que é um fato histórico comprovado e

documentado.

A memória das situações de comunicação, por sua vez, cria comunidades

comunicacionais capazes de estabelecer rituais e comportamentos linguageiros que devem ser

seguidos pelos sujeitos responsáveis pelo ato de linguagem. É essa memória, por exemplo,

que determina a impossibilidade de falar mal de um produto quando se quer vendê-lo.

Contudo, já que se está diante de uma publicidade às avessas, fictícia, feita para divertir e não

para vender, pôde-se transgredir essa memória, já que as qualidades do macarrão fusilli, da

marca Barilla, foram postas em xeque, a partir do momento em que o produto foi comparado

e igualado a Mussolini.

Parece, também, que a memória das formas dos signos foi subvertida pelo sujeito

enunciador do Desencannes, haja vista que os modos de dizer, tão comuns ao gênero peça

publicitária, foram postos de lado quando se resolveu modificar uma expressão cristalizada

em nossa língua. Explica-se: geralmente, em termos de propaganda, quando se fala acerca da

liderança de uma marca em termo de vendas, usa-se a expressão líder em vendas, a qual foi

substituída por líder das massas italianas. Na realidade, essa mudança engendra o

aparecimento de um viés de sentido que faz com que a marca se aproxime ainda mais da

figura do ditador, por conta da veiculação da ideia de posse, trazida pela preposição de.

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Os imaginários sociodiscursivos, por sua vez, também se fazem presentes no anúncio

destacado, já que este veicula representações sociais que engendram saberes de conhecimento

e de crença. Ressoam, então, no referido anúncio, dois imaginários conflitantes: o primeiro

diz respeito à excelência do povo italiano na preparação de massas. Assim sendo, se se

considerar o vocábulo em seu viés denotativo, parecerá que se faz uma ode à aquisição dos

produtos da marca Barilla, como é o caso do fusilli, já que ninguém seria responsável por

fazer massas melhores do que uma marca italiana. O segundo imaginário evoca o quanto o

regime ditatorial fascista foi prejudicial aos italianos e, até mesmo, ao resto do mundo, por

esse motivo, quando a massa Barilla assemelha-se a esse tipo de líder, deve ser descartada

como possibilidade de consumo, afinal, ninguém quer consumir um produto/marca com a cara

de Mussolini.

Os modos de organização do discurso também se fazem presentes na peça publicitária

da marca Barilla. O modo enunciativo, que engendra os outros três modos, narrativo,

descritivo e argumentativo, aparece sob a forma da modalização elocutiva, já que escolhe

privilegiar o ponto de vista do eu, o que não é comum na publicidade canônica que,

geralmente, procura implicar o tu naquilo que é enunciado. Aqui, as marcas da modalização

elocutiva podem ser recuperadas por inferência, já que sua menção na frase seria prejudicial

ao princípio da economia – do qual trataremos a posteriori –, o que ocorre por meio de

enunciado igual ou parecido com este: [eu digo que Barilla] é líder das massas italianas. Isso

mostra que a mensagem provém de uma afirmação feita por um – ou vários – enunciador(es)

que se responsabilizam por aquilo que afirmam.

A peça publicitária, também, traz outro modo de organização do discurso, nesse caso,

o argumentativo. Embora não haja uma implicação explícita do destinatário por meio do

modo enunciativo e da modalização alocutiva, o discurso pretende dissuadir seu receptor com

relação à compra da massa da marca em questão, afinal, diz que tem as mesmas qualidades

que Mussolini, utilizando-se, dessa forma, de um argumento, bastante contundente, aliás, para

que essa dissuasão se dê: a semelhança entre a marca e o ditador. Nesse sentido, é possível

estabelecer que a publicidade às avessas encontra sua forma mais radical de expressão em

propagandas como essa, que querem, ao contrário de todas as outras peças canônicas, deixar

de vender uma determinada marca e, consequentemente, um determinado produto.

Cabe, agora, falar das estratégias de patemização empreendidas pelo sujeito

enunciador do Desencannes, as quais têm por objetivo cooptar o destinatário para o que está

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sendo dito, afinal, só assim ele se dará conta de que está diante de uma publicidade às avessas

e não de uma publicidade tradicional que quer vender uma marca a qualquer custo. Na

realidade, as estratégias de patemização empregadas no anúncio foram utilizadas no sentido

de inviabilizar a compra por parte do consumidor, haja vista a depreciação do produto de

determinada marca, empreendida pelo sujeito enunciador desencannado.

Assim, a atitude de engajamento, pretendida pelo enunciador, espera que o destinatário

torne-se cúmplice do discurso, acreditando no que está sendo dito e escolhendo não comprar o

macarrão da massa Barilla. Essa atitude de engajamento, obviamente, é a oposta daquela

esperada por uma propaganda canônica, ainda que a peça desencannada também se utilize de

argumentos e saberes de crença que possibilitariam a aderência ao discurso em questão.

Portanto, apesar de ambos os sujeitos enunciadores fazerem uso de estratégias de patemização

e até mesmo de argumentos e saberes de crenças similares, os objetivos com que se põem em

jogo essas maneiras de se cooptar o adversário são contrários: um sujeito, o enunciador do

discurso canônico, quer persuadir seu destinatário a comprar determinados produtos; o outro,

por sua vez, quer dissuadir seu destinatário no que tange a adquirir um produto de uma marca.

Dessa forma, é possível estabelecer que cabe ao sujeito se engajar num

comportamento reacional em que sairá da inércia e tomará uma atitude com relação ao

produto alvo da publicidade. Se as estratégias empreendidas pelo sujeito enunciador do

Desencannes forem bem sucedidas, o consumidor repelirá a massa da marca Barilla e optará

por outra marca. Todavia, se o consumidor não se deixar levar pela propaganda, escolherá

adquirir a marca, ainda que corra o risco de ter sua imagem ligada à de Mussolini e,

consequentemente, à do fascismo.

A escolha desse sujeito destinatário inscreve-se, também, num quadro de auto-

representação, em que o ato de escolher diz mais sobre quem escolhe do que sobre a marca

escolhida. Explica-se: a partir do momento em que se estabelece um juízo de valor acerca de

uma marca, todo esse status que o produto possui acaba por ser, automaticamente, transferido

para quem dele faz uso. O contrário também se dá: aqueles que não adquirirem determinados

produtos serão, via de regra, excluídos desse universo de consumo e marginalizados por conta

dessa impossibilidade de comprá-los.

Porém, no que tange à peça publicitária em análise, a escolha em não consumir o

marca faz com que o destinatário assuma um status favorável a si mesmo, ainda que tenha

deixado de consumir – o que é praticamente imperdoável no mundo capitalista de hoje –, pois

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o axioma relativo à massa Barilla apresenta-se como desfavorável à compra, afinal, trata-se

de uma marca que teve seu lugar no mundo relacionado à figura de um ditador e, obviamente,

não são muitos os que escolhem ter a imagem associada à referida figura.

A peça publicitária, ainda que seja uma publicidade às avessas, precisa, assim como

fazem as publicidades canônicas, ancorar o produto no mundo real, uma vez que o

consumidor precisa estar ciente do que está sendo propagado. Tal ancoragem acontece a partir

do momento em que o nome da marca, bem como a foto de sua embalagem, são usados pelo

sujeito enunciador desencannado para dizer de que trata a propaganda acima destacada. Caso

não fosse mencionado o nome da marca, nem exposta sua embalagem, a publicidade não faria

sentido, afinal, o destinatário não saberia que marca é líder de massas italianas, muito menos

quem é o representante da marca.

A peça transgride, ainda, outra estratégia da qual faz uso o discurso publicitário

tradicional, que é a utilização dos mecanismos de sugestão, os quais servem para persuadir e,

até mesmo, incitar alguém a adquirir determinado produto de determinada marca, ainda que

não haja uma explicação racional e objetiva para isso.

Assim sendo, é possível estabelecer que os destinatários dessa peça são cooptados a

não consumir a marca em questão, haja vista que isso não lhes renderá nenhum benefício,

pelo contrário: resultará em perda de status por conta da referida associação de imagens. No

entanto, em contraposição, é possível estabelecer que, por meio do discurso empreendido na

peça publicitária, o consumidor se vê impelido a consumir o mesmo produto, apenas dispondo

de diferentes marcas, uma vez que consumi-las não representaria nenhuma perda: apenas

ganhos.

Recorrendo, agora, ao conceito de ideologias, pensando que estas são diferentes visões

de mundo, sendo a da classe dominante a principal, pode-se estabelecer que há, pelo menos,

uma visão ideológica nessa propaganda, que consiste numa aversão que se criou no mundo

contemporâneo aos regimes totalitários de uma maneira geral, ainda mais àqueles que

flertaram com o nazismo, como foi o caso do fascismo. Os indivíduos, talvez, sua maioria

esmagadora, não querem estar, de alguma forma, ligados às imagens de horror empreendidas

antes, durante e logo depois da 2º Guerra Mundial, por conta de governos ditatoriais que

implementaram regimes sangrentos.

Talvez, apenas um pequeno grupo de pessoas, aqueles aos quais se dá a alcunha de

neonazistas, se identificasse com a imagem de Mussolini e quisesse adquirir esse produto

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dessa marca. Em verdade, a escolha com relação à compra dessa marca tem mais a ver com a

imagem que o indivíduo quer ter de si mesmo e com a que quer mostrar ao outro com quem

convive, do que com a qualidade ou a falta de qualidade do produto. Por isso, torna-se

possível afirmar que apenas os que se vêem como semelhantes ao ditador fascista é que

fariam uso do fusilli, da marca Barilla, equiparando-se a Mussolini.

Assim sendo, a escolha dessa marca revelaria muito acerca de seu consumidor:

mostraria suas inclinações políticas, suas convicções ideológicas, suas posturas com relação

às minorias, enfim, flagraria sua maneira de ver, de estar e de ser no mundo, o que,

obviamente, provocaria um choque naqueles que não concordassem com tudo isso, uma vez

que assumem um posicionamento contrário ao autoritarismo, ao totalitarismo, enfim, ao

fascismo.

A singularização do produto, outra estratégia escolhida pela publicidade canônica,

também foi usada na peça acima, haja vista que o produto é destacado como se fosse o único

capaz de ser líder das massas italianas. No entanto, essa singularização serve a outro

propósito que não a exaltação e a consequente compra de um produto de uma marca: é, na

realidade, empreendida para denegrir a imagem do fusilli, da marca Barilla, visto que a

equipara a um ditador e toda a carga significativa que essa figura carrega consigo. Logo, caso

a propaganda tenha atingido seu objetivo, o produto, apesar de singular, não cairá nas graças

do público.

O discurso publicitário, tradicionalmente, segue uma espécie de postulado que diz que

é necessário nomear, qualificar e exaltar um produto. No que tange à peça publicitária em

tela, acontece a nomeação do produto e de sua marca, como se vê por meio da reprodução da

embalagem do fusilli, da marca Barilla, assim como sua qualificação e sua exaltação. A

nomeação do produto e da marca, nesse caso, não é facultativa, como foi com a peça da Coca-

Cola, pois não há uma alusão ao nome da marca ressoando em nosso inconsciente, como

acontece com o refrigerante. Ou seja, a marca Barilla não é tão forte no mercado, como é a

Coca-Cola, por isso, é necessário nomeá-la e não deixar que o leitor infira de que marca se

trata.

Em verdade, é possível afirmar que essa (des)qualificação ocorre de maneira implícita

e pode ser inferida pelo destinatário que atentar para o fato de que a fotografia, presente na

publicidade, é a de Mussolini quando mais jovem. Há, então, um adjetivo, recuperado pelos

conhecimentos de mundo do destinatário, que diz que o fusilli, da marca Barilla, é fascista.

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Na realidade, também é importante esclarecer que ocorre, com a marca Barilla, uma

exaltação às avessas, já que o produto de determinada marca é denegrido e rechaçado e

contra-indicado para aqueles que não querem ser ou parecerem ser fascistas.

Consequentemente, de maneira indireta, ocorre a exaltação de todos os outros produtos de

marcas diferentes, afinal, nenhum deles pode ser classificado como sendo fascista, posto que,

não são líderes das massas italianas. Nesse caso, ser líder é um defeito.

O princípio da economia, tão comum ao discurso publicitário, também foi utilizado

pelo sujeito enunciador da peça, haja vista que, para criá-la, fez uso de um slogan, bastante

simples, para (des)qualificar, ainda que de maneira implícita, o produto e para realizar um tipo

de exaltação às avessas, já que foram exaltados, indiretamente, produtos de outras marcas, que

não os da Barilla. O princípio da proximidade também foi escolhido para fazer parte dessa

propaganda, posto que são aproximadas, do destinatário, informações necessárias para que ele

deixe consumir o fusilli, da marca Barilla.

A peça publicitária apropria-se de um enunciado cristalizado líder em vendas e

modifica-o para obter o possível efeito de sentido pretendido. Isso acontece a partir do

momento em que a preposição em é substituída pela preposição de, trazendo, para o texto,

uma ideia de posse que, automaticamente, remeterá o destinatário ao tipo de governo

implementado por Mussolini: autoritário e cerceador. Logo, a mudança do referido enunciado

cristalizado atende aos objetivos do sujeito enunciador: comparar a massa ao ditador.

É importante notar que a peça da massa Barilla faz uso de um slogan que, na

realidade, compromete a aceitação do público com relação à marca. Esse slogan, então, ao

contrário do que ocorre com as demais peças publicitárias, mancha a imagem do produto e da

marca, o que não aconteceria no mundo real, obviamente. É claro que o uso de um slogan, no

mínimo, comprometedor, só é possível, pois o Desencannes encarrega-se de criar peças

publicitárias fictícias, que não têm por objetivo primeiro vender uma marca, logo, não

precisam fazer com que a marca oferecida seja a melhor dentre todas as outras.

As outras peças, aqui analisadas, possuíam, todas, um viés de humor. À primeira vista,

o mesmo não acontece na peça em destaque, mas, observando melhor, é possível afirmar que

o humor é produzido por meio do choque. Explica-se: em um primeiro momento, o

destinatário ficaria em choque por conta da reprodução da imagem de Mussolini e, só depois,

perceberia que se trata de uma peça publicitária falsa e, então, riria. Na realidade, o choque

seria produzido por meio de uma quebra da rigidez do cotidiano e do automatismo com que se

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vive, os quais postulam que as publicidades precisam, necessariamente, exaltar um produto e

uma marca. Logo, quando o destinatário se depara com essa quebra de rigidez e automatismo,

choca-se com ela para, a posteriori, rir.

A produção de humor também pode ser explicada pela tentativa de se carnavalizar a

figura de Mussolini, que foi trazida ao rés do chão. Dito de outro modo: quando uma

personalidade histórica que impunha medo e respeito, enquanto ditador e governante da Itália,

é carnavalizada e, portanto, serve de alvo para o riso, o humor acaba sendo produzido pela

ambivalência, já que o sério tornou-se cômico, o que é típico, por exemplo, da utilização do

grotesco, tão comum na Idade Média.

O cômico, nesse caso, também pode ser explicado pela concepção de chiste, pois,

provavelmente, houve uma economia de energia quando o sujeito destinatário fez as

associações e inferências necessárias para que compreendesse e interpretasse a peça, a qual

acabou sendo descarregada a partir do momento em que se produziu o riso. O chiste, presente

na peça acima, é o de palavras, posto que o humor também é produzido por uma

ambiguidade, nesse caso, com relação à palavra massa; ambiguidade essa resultante de uma

habilidade do enunciador em organizar o material verbal empregado com esse propósito.

Muito já foi explanado acerca da peça publicitária do fusilli, da marca Barilla, por esse

motivo, cabe, nesse momento, proceder à análise da peça do leite condensado Itambé.

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7.1.4 Ei, moça, você prefire o Itambé?

Figura 15 – Peça publicitária do leite condensado Itambé, publicada pelo Desencannes.

Novamente, uma peça publicitária, criada pelo site do Desencannes, vai de encontro à

principal estratégia usada pela publicidade canônica para captar seus consumidores em

potencial: trata-se da exaltação de um produto de uma marca para que ele pareça ser a melhor

escolha, dentro do hall de possibilidades de consumo que povoam o mundo capitalista em que

vivemos. Na realidade, o anúncio denigre a imagem da marca Itambé, ao dizer que ela é a

vice-líder na produção de leite condensado, logo, não é a líder no que tange às vendas.

A propaganda, então, evoca toda a carga negativa que um segundo lugar traz consigo

dentro da cultura brasileira. Na realidade, quando há uma competição e algo ou alguém fica

em segundo lugar, essa posição não é vista como uma conquista: é, no entanto, vista como

uma derrota, logo, no Brasil, ser vice não é motivo de orgulho. Assim sendo, a publicidade da

Itambé, ainda que seja do tipo publicidade às avessas, acaba por propagar outra marca de leite

condensando, a Nestlé, quando diz que essa é líder na produção e, consequentemente, nas

vendas, assumindo, portanto, a liderança em termo de mercado, sendo a marca número um.

No que tange ao circuito interno do texto, a peça é composta por dois enunciados:

glória adeus e itambé, vice-líder na produção de leite condensado. O primeiro deles está na

ordem inversa, já que, normalmente, o vocativo é colocado depois do vocábulo que introduz a

ideia de despedida, o que faria ainda mais sentido se se pensasse no anúncio como um todo, já

que se está chamando a atenção para o fato de o leite condensado Glória ter pedido seu

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espaço para o Itambé. Todo esse empreendimento, junto com o uso do nome da marca Glória,

foi intencionalmente realizado para que houvesse uma aproximação sonora entre glória a

Deus e adeus, glória. A intenção do sujeito de denegrir o produto fica ainda mais clara se o

destinatário estiver atento a dois detalhes: o nome da marca foi escrito com letra minúscula e,

antes do vocativo, não se usou vírgula, contrariando o que postula a norma-padrão da língua,

mas fazendo jus à intenção do enunciador.

Esse primeiro enunciado parece, então, ser um discurso citado: é como se alguém,

algum funcionário da empresa, por exemplo, dissesse a frase adeus glória para comemorar a

passagem do segundo ao terceiro lugar na produção e na venda de leite condensado. Contudo,

como essa expressão adquire um duplo sentido, por conta da aproximação sonora acima

mencionada, fica difícil precisar se o actante que a enuncia está dando adeus ao leite

condensado da marca Glória ou se está agradecendo a Deus por mais uma vitória no que

tange à ascensão da marca.

Logo, se o ouvinte se ativer apenas ao aspecto linguístico do texto, observando

somente o que está na superfície dele, não apreenderá de maneira completa o que o

enunciado, de fato, traz de inovador. Portanto, é necessário que o destinatário perceba que

precisa ir além do sentido de língua para interpretar e não só compreender o enunciado em

questão, recorrendo, pois, ao sentido de discurso do texto, ou ao que traz de implícito. O

implícito, desse modo, tem a ver com a possibilidade de o enunciado ser entendido de duas

maneiras, como dito acima, já que se trata de uma ambiguidade, produzida por uma

aproximação sonora entre duas expressões distintas: glória adeus e glória a Deus.

O segundo enunciado, por sua vez, também traz uma ruptura: nesse caso, trata-se da

mudança de uma fórmula fixa bastante comum em publicidade, líder em vendas. Ainda que o

complemento para o substantivo líder tenha sido mudado, o que chama a atenção é a inserção

do substantivo vice antes do vocábulo líder, tornando-o uma palavra composta. Isso acontece,

pois o novo complemento que recebe líder, na produção de leite condensado, faz parte do

mesmo universo de sentido que o anterior, cabendo, portanto, à palavra vice, o papel de

denegridor. Explica-se: se não tivesse sido usado o substantivo vice, antes de líder, o

enunciado passaria despercebido como sendo um chavão bastante comum no jargão

publicitário, no entanto, nenhum publicista do mundo extralinguístico diria que sua marca é

vice-líder de mercado, pelo contrário, exaltaria as qualidades que sua marca possui para tentar

torná-lo o líder.

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O aspecto icônico do enunciado também reforça a ideia de vice-liderança, trazida pelo

texto verbal, a partir do momento em que representa, por meio de imagens, um pódio das

marcas de leite condensando, colocando suas embalagens uma em cima da outra, cabendo, ao

leite condensado da Nestlé, o primeiro lugar, ao da Itambé, o segundo e ao Glória, o terceiro.

Embora tenha havido uma transposição de lugar entre o segundo e o terceiro colocados, os

conhecimentos enciclopédicos dos leitores logo reconhecerão que ser o segundo lugar não é

satisfatório: o importante mesmo é ser o primeiro no que tange à produção e à venda de

determinada marca.

Os motivos florais, estampados em cima dessa espécie de tecido azul, fazem com que

a imagem pareça ser a de uma toalha de mesa, nesse caso, da mesa da cozinha, dessas que

compõem o cenário dos lares brasileiros. Outro detalhe que faz parecer que se trata de uma

toalha de mesa são os pequenos vincos, quase imperceptíveis, do lado direito da imagem.

Pensando, agora, no conceito de cor como informação (GUIMARÃES: 2000; 2003), percebe-

se a predominância da cor azul, num tom médio, entre o claro e o escuro, o que, obviamente,

remete à cor da marca que serve de mote para a peça publicitária: a Itambé.

Por mais que pareça óbvio, é importante esclarecer que, se o destinatário não fizer uso

de uma rede de inferências, a qual compartilha com o enunciador, a propaganda parecerá, para

ele, apenas uma daquelas tão comuns em nosso dia a dia. Por conseguinte, é possível afirmar

que o sujeito destinatário precisa se tornar cúmplice daquilo que está sendo dito, indo além da

superficial textual, caso contrário, os possíveis efeitos de sentido, pretendidos pelo

enunciador, deixarão de ser produzidos por uma falta de competência dos destinatários.

A atitude discursiva do enunciador determina, então, a maneira como ele constrói seu

discurso, respondendo, sempre, à pergunta estou aqui para falar como? Dessa maneira, torna-

se possível perceber quais são as estratégias de captação colocadas em jogo dentro da cena

enunciativa para dissuadir o destinatário de comprar uma marca. Nesse exemplo, estamos

diante da dissuasão, haja vista que o anúncio reforça o fato de que outra marca, que não a

Itambé, é líder no ramo de leite condensando, logo, o consumidor deveria escolher a melhor

marca, aquela que ocupa o primeiro lugar na preferência das pessoas, por esse motivo é

possível afirmar que se empreende, ainda que indiretamente, uma tentativa de fazer com o

consumidor continue escolhendo o leite moça.

A atitude de engajamento adotada parece funcionar de modo diverso daquelas

adotadas pela publicidade canônica, haja vista que pretende fazer com que o destinatário se

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engaje e saia de sua inércia, entretanto, não quer vender a marca da qual faz propaganda, mas

uma marca concorrente que ocupa uma posição superior que parece ser imbatível, por isso, o

segundo lugar pode parecer satisfatório.

Talvez, essa espécie de satisfação pelo segundo lugar decorra do fato de que a

preferência pelo leite condensado da marca Nestlé é tão forte que o nome do produto, dado

pela multinacional, leite moça, é estendido a todas as marcas de leite condensado, num

processo metonímico em que o nome da marca substitui o nome do produto, ainda que não

esteja em questão comprar o leite condensado da marca Nestlé. Dessa forma, é bastante

comum que as pessoas se refiram ao leite condensado de todas as outras marcas como se

fossem leite moça.

Parece, então, ressoar, na peça, uma crença segundo a qual consumir uma marca que

está em segundo lugar no ranking de produção e, consequentmente, de vendas não é uma

decisão acertada. Para a publicidade canônica brasileira, o único intuito que seus discursos

devem possuir é transformar as marcas que estejam em segundo lugar nas mais vendidas e

desejadas do mercado, afinal, se a marca for a vice-líder quer dizer que ela é preterida em

relação à outra e apenas a publicidade pode ser capaz de mudar isso.

Os sujeitos, por sua vez, são permeados por três memórias enquanto seres sociais e

discursivos, as quais testemunham suas maneiras de dizer. A primeira delas é a memória dos

discursos, que aponta o fato de que ser o segundo lugar não pode ser considerado satisfatório,

ainda que a marca, por exemplo, esteja à frente da terceira colocada. Essa memória é

produzida a partir da soma de saberes de conhecimento e de saberes de crença. Saberes de

crença seriam, então, aqueles saberes socialmente partilhados, cuja comprovação científica e

empírica não se realiza. É, portanto, esse saber que designa que ser o segundo lugar, dentro do

universo de consumo dos brasileiros, significa fracasso, afinal, o que importa é ser o primeiro.

No entanto, é por meio do saber de conhecimento, o qual pode ser comprovado por causa de

fatos concretos, que se estabelece que subir uma posição do ranking das marcas de leite

condensado é um passo importante, ainda que o saber de crença estabeleça o contrário.

A memória das situações de comunicação, a seu turno, é a responsável por criar

comunidades comunicacionais, capazes de engendrar rituais e comportamentos linguageiros

que devem ser seguidos à risca pelos sujeitos sociais e discursivos do ato de linguagem. É

essa memória, por exemplo, a responsável por incutir no histórico comunicacional dos

indivíduos a impossibilidade de existir uma propaganda que denigra a marca que vende. O

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sujeito enunciador do Desencannes, no entanto, rompe com essa memória a partir do

momento em que menciona haver uma marca melhor que a Itambé, afinal, é ela que ocupa o

primeiro lugar na produção de leite condensado e até mesmo das vendas.

A memória das formas dos signos também foi subvertida pelo sujeito enunciador do

Desencannes quando este se apropriou de uma expressão cristalizada, de cunho religioso, de

nossa língua, Glória a Deus, para transformá-la numa despedida da marca que antes era a

segunda colocada e que, agora, passa a ocupar o terceiro lugar. Também há a mudança da

expressão cristalizada líder em para vice-líder na. Vale lembrar que não ocorre uma mudança

substancial quando se permuta a preposição em pela contração na, porque essa é, na realidade,

a junção de em + a: em verdade, a mudança toda é empreendida pelo acréscimo de vice à

líder, que modifica complemente os possíveis efeitos de sentido que seriam produzidos.

Os imaginários sociodiscursivos também estão presentes no anúncio, uma vez que

veicula representações sociais que dão existência a saberes de conhecimento e de crença. Há

pelo menos um imaginário sociodiscursivo que ressoa na peça publicitária em destaque: trata-

se daquele que diz que ser o segundo lugar é algo ruim, ainda que o segundo lugar, ao qual se

refere o sujeito enunciador da peça, possa ser encarado como um progresso, visto que houve

um salto no ranking das marcas produtoras de leite condensado. O brasileiro parece, portanto,

apenas se contentar com o primeiro lugar, afinal, para ele, ser o segundo lugar é irrelevante.

Nesse ponto da análise, torna-se imprescindível falar dos modos de organização do

discurso. No que diz respeito ao modo enunciativo, no qual se estabelece a posição do

enunciador com relação ao seu destinatário, a ele próprio e aos outros, possível estabelecer

que faz uso da modalização elocutiva, já que centra seu discurso em si mesmo, diferentemente

do que ocorre na publicidade canônica que, via de regra, utiliza-se da modalização alocutiva

para implicar o tu no discurso produzido. As marcas de primeira pessoa não se fazem

presentes de maneira explícita no enunciado, no entanto, são facilmente recuperáveis por

meio de inferências. É, então, pertinente pensar que alguém, um actante, profere a frase glória

adeus, assim como um enunciador diz que a marca Itambé é vice-líder na produção de leite

condensando: [eu afirmo que] Itambé [é] vice-líder na produção de leite condensado.

É patente, ainda, a presença do modo narrativo, já que, dentro da peça publicitária,

parece haver um actante que diz glória adeus, como se conversasse com alguém a respeito do

desempenho da marca em questão. A intenção, ainda que implícita, por parte do enunciador,

em dissuadir a compra do leite condensado da marca Itambé explica a presença do modo

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argumentativo no anúncio acima, afinal, são colocadas em prática estratégias de captação que

podem fazer com que o destinatário desista da compra, haja vista que não quer parecer,

também ele, um fracassado como a marca em questão. Em verdade, parece que a persuasão

ocorre com relação à marca concorrente, já que é ela a melhor e mais consumida entre todas,

portanto, é ela que deve ser a escolhida pelos consumidores, sob pena de parecerem tão

derrotados quanto o produto e as marcas vice-líderes na produção e na venda de leite

condensado.

Cabe, agora, falar um pouco sobre as estratégias de patemização elencadas para fazer

parte do discurso do sujeito enunciador do Desencannes, na tentativa de cooptar seu

destinatário para o que está sendo dito, tornando-o cúmplice do enunciado e não apenas

adversário, fazendo, por conseguinte, com que ele perceba estar diante de publicidades às

avessas e não de publicidades tradicionais, tão difundidas em nosso dia a dia. Na realidade,

essas estratégias de patemização foram utilizadas com o intuito de impossibilitar a compra do

leite condensado Itambé, já que ele carrega consigo a imagem estigmatizada de fracasso, e,

consequentemente, ainda que de maneira indireta, incrementar as vendas da marca

concorrente, afinal, ela é a única capaz de ocupar o primeiro lugar, ou seja, de ser vitoriosa e

líder de vendas.

Logo, a atitude de engajamento foi posta em prática pelo sujeito enunciador com o

objetivo de tornar seu destinatário conivente com o enunciado veiculado, fazendo com que

ele, então, escolhesse não comprar o leite condensado da marca Itambé, já que o status que a

marca possui não é considerado satisfatório. Dessa forma, o sujeito enunciador do

Desencannes adota uma atitude de engajamento oposta àquela que empreendem as peças

publicitárias canônicas, que visam, sempre, à exaltação de um produto. É importante ressaltar

que, muitas vezes, publicidades às avessas e publicidades canônicas fazem uso das mesmas

estratégias de captação e patemização, embora os objetivos que tenham sejam distintos: uma

quer vender uma marca a qualquer custo, outra quer deixar de vender a marca da qual faz

propaganda a qualquer custo, incentivando até mesmo que se compre o produto da marca

concorrente.

Assim sendo, cabe ao sujeito destinatário engajar-se em um comportamento reacional,

a fim de que saia da inércia e assuma uma posição com relação ao produto e à marca cuja

propaganda quer vender. Se as estratégias de captação do enunciador da peça da Itambé forem

bem sucedidas, é bastante provável que o destinatário não escolha consumir a marca em

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questão, já que parece uma escolha mais acertada optar pelo Leite Moça. Contudo, pode ser

que o sujeito destinatário torne-se adversário do que está sendo dito e resolva, ainda que a

publicidade denigra a marca e ele tenha sido alertado sobre a posição secundária assumida

pelo leite condensado Itambé, comprá-lo.

A possível escolha do sujeito destinatário inscreve-se, também ela, num quadro de

autorrepresentação, afinal, essa escolha acaba falando mais sobre o sujeito que a empreende

do que sobre a própria marca que foi comprada. Isso quer dizer que se estabelece um juízo de

valor acerca do produto de determinada marca que, automaticamente, parece receber um

status que, por sua vez, é transferido para aqueles indivíduos que fazem uso da marca em

questão. É importante ressaltar que o contrário também acontece, uma vez que, quando

alguém resolve não consumir determinada marca, perde o status que adquiriria caso viesse a

comprá-lo.

Todavia, no que diz respeito a esta peça publicitária, não consumir a marca, o leite

condensado Itambé, faz com que se crie um axioma positivo com relação ao sujeito que

tomou essa atitude. Em verdade, escolher não consumir, o que é uma falta muito grave nos

dias de hoje, no mundo capitalista em que vivemos, parece ser uma boa saída, já que, dessa

maneira, o sujeito não confere a si mesmo a posição de fracassado que assumiu a Itambé, a

partir do momento em que se auto-intitulou vice-líder na produção de leite condensado,

demonstrando, assim, sua inferioridade com relação à concorrente.

Assim como a publicidade tradicional, a peça publicitária em análise, ainda que seja

uma publicidade às avessas, precisa ancorar o produto no mundo real, o que só se dá a partir

do momento em que o sujeito enunciador menciona o nome do produto do qual faz

propaganda. Essa ancoragem acontece de maneira dupla, haja vista que o nome da marca é

mencionado em uma espécie de balão, no canto superior e direto do anúncio, assim como há

uma reprodução de sua embalagem, nesse caso, uma lata de leite condensado, onde,

obviamente, lê-se Itambé.

Caso não fosse mencionado o nome, o destinatário não poderia saber de que produto

trata a peça publicitária, afinal, nada a respeito da marca estava sendo dito. Parece claro que,

por conta de seus conhecimentos de mundo, o sujeito destinatário logo saberia que a segunda

colocação não poderia ser ocupada pelo Leite Moça, da marca Nestlé, pois, intuitivamente,

compreenderia que, a esse produto, dessa marca, cabe a primeira colocação no ranking das

melhores marcas de leite condensado. Por isso, para que houvesse uma marcação explícita de

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que marca ocuparia cada posição, precisou-se recorrer à nomeação e à reprodução de suas

embalagens.

Os sujeitos destinatários dessa peça são, portanto, cooptados para que não consumam a

marca em questão, sob pena de terem sua imagem associada a uma marca que não se mostra

competente o suficiente para assumir o primeiro lugar na produção e na venda de leite

condensado. Pode ser, entretanto, que o sujeito destinatário não se dê conta dessa associação

com o fracasso ou que não tenha dinheiro suficiente para recorrer a uma marca que,

teoricamente, seria melhor e, portanto, custaria mais. Na realidade, uma marca cujo status é

de primeira linha, provavelmente, será preterida apenas se o consumidor não tiver dinheiro

suficiente para comprá-la, ou se o receptor não der importância ao status que lhe será imposto

se vier a consumir uma marca de segunda linha.

Há que se estabelecer, ainda, que a peça traz consigo uma visão ideológica. Ideologias

são, na realidade, diferentes visões que se sustentam no mundo linguístico e no

extralinguístico, sendo a da classe dominante a principal. Essa visão ideológica diz respeito a

uma espécie de aversão que existe em se estar em segundo lugar, dentro da cultura brasileira.

Ora, isso acontece, pois a principal ideologia que ressoa em nosso imaginário é a da classe

dominante que, como o próprio nome sugere, domina o mundo e faz com que os indivíduos

busquem-na como um ideal de vida. Diante disso, é possível afirmar que estar em segundo

lugar significa não pertencer à classe dominante, logo, significa não ter conquistado, ainda,

uma posição de prestígio.

Na realidade, quando se diz respeito ao modelo econômico do capital, a lógica do ter

impera sob a lógica ser, o que condiz com a visão ideológica de mundo apresentada acima,

afinal, não importa o que se é, mas sim o que se tem e o poder de compra que se possui. Poder

de compra esse que não tem, necessariamente, a ver com quantidade: pode ser que alguém,

por exemplo, vá ao mercado e compre três latas de leite condensado, no entanto, a marca

desses produtos, na realidade, é o que fará com que esse indivíduo ganhe status. Vale lembrar

que produtos sem marca vendem muito menos que produtos com marca.

Portanto, poder comprar vai além da quantidade a qual se tem acesso como

consumidor, afinal, deve-se privilegiar produtos de determinadas marcas, sob risco de não

parecer pertencer à classe social dominante. Nesse sentido, é possível afirmar que aqueles

consumidores que apenas fizerem uso do leite condensado Itambé serão colocados, via de

regra, à margem, uma vez que não partilham do mesmo universo de consumo da classe social

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mais abastada que serve de modelo a ser seguido e de objetivo a ser alcançado por meio,

principalmente, do consumo que representa, nesse caso, uma ascensão social.

A propaganda acima também se utiliza de uma das estratégias de captação da

publicidade canônica que é a singularização de um produto. Contudo, não se trata da

singularização do produto que é alvo da propaganda, mas, sim, de outro: o Leite Moça da

marca Nestlé. Explica-se: a partir do momento em que esse produto, dessa marca específica, é

colocado como sendo o primeiro dentro do universo de consumo e, consequentemente, como

ideal a ser alcançado, é esse produto o singularizado dentro da peça publicitária, uma vez que

é ele o melhor produto de todos, o número um em vendas.

Já que outro produto, de outra marca, é singularizado, cabe afirmar que o leite

condensado Itambé é desprestigiado por essa mesma propaganda, visto que, a ele, cabe ser

apenas o segundo colocado, não havendo, desse modo, o processo de singularização do

produto, apesar de ele ser o alvo da peça publicitária destacada anteriormente, o que subverte

toda a lógica empreendida pela publicidade canônica.

O discurso publicitário, via de regra, segue uma espécie de modos operandi, que diz

que é preciso nomear, qualificar e exaltar um produto. A propaganda destacada nomeia o

produto a fim de que ele seja ancorado no mundo real, utilizando-se, para isso, de um balão,

colocado no canto superior e direito da peça, e de uma imagem da embalagem do produto que

ocupa o segundo lugar no pódio das melhores marcas de leite condensado do mercado. Houve

necessidade, então, de se nomear a marca, ao contrário do que aconteceu com a peça da Coca-

Cola, haja vista que essa marca não é tão forte no mercado a ponto de os destinatários

inferirem que se trata da referida marca.

No que tange à qualificação, é possível estabelecer que houve uma desqualificação da

marca, empreendida, principalmente, pelo uso do vocábulo vice, acrescido à palavra líder, que

dá a essa última uma conotação negativa, reforçando o fato de que o leite condensado Itambé

é o segundo colocado na produção e, também, nas vendas do produto. Talvez, em outro

circuito externo ao ato de linguagem, essa aparente desqualificação pudesse ser entendida

como sendo uma conquista, já que a marca pulou do terceiro para o segundo lugar, todavia,

dentro da cultura brasileira, ser o vice em algo é considerado insatisfatório e até mesmo ruim.

É possível dizer, ainda, que ocorre uma exaltação na peça acima, entretanto, não é o

leite condensado Itambé o exaltado, posto que é relegado à segunda posição. Em verdade, a

marca que, indiretamente, é exaltado é o leite condensado da marca Nestlé, posto que ela foi

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colocada em destaque e a ela foi dada a posição de líder de produção e de vendas. A

exaltação, então, é às avessas, afinal, o concorrente da marca Itambé foi exaltado, enquanto a

própria marca que deveria ter sido engrandecida não foi.

A peça publicitária em questão, a seu turno, parece não ferir o princípio da economia,

haja vista que é composta, basicamente, por um enunciado de um terceiro, ou seja, de um

actante, e por um slogan, sobre o qual falaremos a posteriori. Pode ser, no entanto, que, em

termos de publicidade canônica, o enunciado glória adeus seja considerado desnecessário, já

que a propaganda apresentou um slogan bastante contundente, mas, como um dos objetivos

principais do Desencannes é fazer seu destinatário rir, o referido enunciado é fundamental,

ainda mais porque traz à tona uma expressão bastante usada por pessoas religiosas, fazendo

com que o destinatário escolha rir a partir do momento em que entende o jogo de palavras

empreendido pelo sujeito enunciador do site.

O anúncio também se apropria de uma expressão cristalizada, líder em, imputando-lhe,

no entanto, outro adjetivo, vice, que desconstrói toda a expressão, dando, a ela, um caráter de

ofensa. Apesar de o uso de formas fixas e clichês ser um procedimento bastante comum nas

publicidades tradicionais, nesse caso, a utilização da forma fixa é escolhida com outro

propósito: trata-se da tentativa de provocar o riso em seus destinatários, além, de claro,

denegrir a marca em questão.

Torna-se importante lembrar que esta peça, a exemplo do que faz o discurso

publicitário de nosso cotidiano, escolhe um slogan para falar sobre a própria marca. No

entanto, a utilização desse slogan acaba comprometendo a aceitação por parte de seus

possíveis consumidores, uma vez que, entre uma gama de possibilidades, o sujeito enunciador

escolhe destacar que a marca está em segundo lugar no ranking de produção e consumo

dentro do mercado. Ainda que óbvio, é importante esclarecer que essa subversão na

construção do slogan seria impensável dentro das publicidades tradicionais, todavia, como se

trata de uma publicidade fictícia, tudo se torna possível.

Como dito, a peça produz um efeito de humor, o que pode ser explicado, levando-se

em conta o que postula Bergson (2001): o riso é, então, gerado, uma vez que se quebra a

rigidez e o automatismo do cotidiano do discurso publicitário que não pode, sob hipótese

alguma, denegrir a marca que quer vender, porém, como se trata de um anúncio fictício, esse

denegrimento torna-se possível e até mesmo viável, já se quer fazer humor a partir do

discurso produzido. Talvez, o humor produza-se, portanto, por meio do nonsense, posto que, à

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primeira vista, não parece fazer sentido que uma empresa contrate um publicista que fale mal

da marca para a qual trabalha.

Dentro da concepção de humor de Bakhtin (2013), o riso acontece a partir do

momento em que a própria marca e o próprio produto são colocados no rés do chão, posto que

se tornam vítimas desse humor desenfreado, feito pelo Desencannes. É, portanto, dessa

ambivalência do riso que, nesse caso, é burlador e sarcástico com o leite condensado Itambé,

mas, ao mesmo tempo, elogioso e exaltador do Leite Moça da Nestlé que nasce o cômico,

ressaltando o grotesco que existe na atitude de falar mal de uma marca que, teoricamente, o

sujeito enunciador deveria engrandecer.

A produção do efeito de humor também pode ser explicada por meio da economia de

descarga de energia do pensamento da qual fala Freud (1996), já que o sujeito,

provavelmente, utilizou-se de seus conhecimentos de mundo para fazer inferências e

associações, percebendo, desse modo, as reais intenções do sujeito enunciador. Pode-se dizer,

ainda, que, na publicidade destacada, houve o que Freud (1996) chama de chiste de

pensamento com o enunciado glória adeus, já que ele se assemelha a uma expressão fixa na

língua, que funciona como uma espécie de interjeição. O chiste de palavras, então, é fruto de

uma aproximação sonora que é resultante de uma habilidade do sujeito enunciador em

organizar o material verbal empregado com esse objetivo.

Parece que já se falou o suficiente, por hora, sobre a peça publicitária do Desencannes,

feita para denegrir o leite condensado da marca Itambé. Por esse motivo, torna-se importante

alinhavar não só todas as análises feitas até aqui, como também os conceitos trazidos ao longo

de toda a fundamentação teórica. Procederemos, pois, às considerações finais do presente

trabalho.

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8 Considerações Finais

Pode-se pensar, em primeiro lugar, que os diferentes efeitos de sentido, produzidos a

partir do discurso veiculado pelo site Desencannes, estão intimamente ligados à quebra do

Contrato Comunicação existente, quando estão em jogo publicidades tradicionais. Explica-se:

quando se trata do discurso desencannado, esse Contrato de Comunicação é posto em xeque,

uma vez que há uma espécie de flutuação entre as visadas dominantes nessas peças

publicitárias: ora a de efeito, ora a de incitação.

Desse modo, é possível estabelecer que a visada de incitação é, por hora, deixada de

lado, já que o primordial desse discurso não é, em um primeiro momento, fazer seu leitor

perceber que precisa de tal ou qual produto de determinada marca, mas sim fazê-lo refletir

acerca do próprio fazer publicitário, que dá a si mesmo um status de credibilidade e de

legitimidade incontestáveis, porém, questionáveis dentro do discurso do Desencannes. É

como se houvesse, portanto, uma espécie de jogo de claro e escuro que, ora ilumina uma

visada, ora deixa outra na escuridão. A finalidade de tal atividade linguageira é, então, causar

um efeito patêmico em seu leitor, fazendo-o rir, muitas vezes por meio do estranhamento de

peças humorísticas, que seriam impensáveis dentro de um discurso publicitário prototípico,

tão comum em nosso dia a dia.

Isso posto, torna-se evidente que, sem a criação de um mundo novo, por meio do

Processo de Semiotização, esse discurso desencannado não seria possível. Logo, é apenas

através desse novo mundo significado por meio da linguagem que se pode reconhecer a

existência de um objeto que servirá como mote para a troca linguageira entre os sujeitos do

ato de linguagem que serão os responsáveis pela co-construção de diferentes efeitos de

sentido para o chamado discurso desencannado.

Sujeitos esses que, se coincidirem com os perfis idealizados que deles fazem os

parceiros no circuito externo ao texto, serão capazes de perceber que estão diante de peças

que mais parecem humorísticas e não de peças publicitárias canônicas, já que perceberão as

reais intenções do sujeito enunciador do Desencannes: questionar o próprio fazer publicitário,

levando seu destinatário ao riso e à reflexão, por meio, por exemplo, da percepção dos

implícitos, das estratégias argumentativas das quais se utiliza e da maneira como a

transgressão do discurso publicitário tradicional é feita.

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Esse processo de idealização corresponde, portanto, a uma imagem que o sujeito

comunicante faz, por exemplo, de seu destinatário, já que tenta, a partir dessa imagem, atingir

seu auditório, persuadindo-o do que está sendo dito, o que ocorrerá não só por meio do

discurso que empreende, mas também por meio da imagem de si que mostra ao outro,

utilizando-se de meios linguísticos e extralinguísticos. Ora, essa imagem que o outro tenta

mostrar de si nada mais é do que comumente se convencionou chamar de ethos, dentro da

tradição aristotélica.

A percepção do ethos desencannado, construída por meio do discurso, acaba por ser a

responsável por diversas transgressões empreendidas pelas publicidades do Desencannes.

Explica-se: por serem publicidades às avessas podem não fazer, sequer, alusão à marca do

produto que vendem, muito menos reproduzir o slogan o qual tem por objetivo identificar

uma marca específica no meio das demais. Dito de outro modo: são apenas os conhecimentos

de mundo, partilhados entre os protagonistas da cena enunciativa, que fazem, por exemplo,

com que o destinatário perceba estar diante de uma propaganda da Coca-Cola, pelo fato de

toda a peça ser grafada em vermelho e trazer, centralizada, na parte debaixo, uma garrafa do

formato tradicional das garrafas de Coca-Cola.

É possível notar, também, como forma de transgressão ocasionada por essa

necessidade de desencannar o discurso publicitário tradicional que o modo de organização do

discurso, conhecido como enunciativo, sofre uma mudança no que tange à sua modalização:

não há mais lugar para a alocução, já que, nas peças publicitárias analisadas, o destinatário

não precisa ser implicado pelo ato de linguagem – pois a publicidade não quer mais vender

uma marca –, para se trazer à tona do texto a modalização elocutiva, implícita na maioria dos

enunciados, como é o caso do [eu afirmo que] #ogiganteacordou. O sujeito, agora, deixa

clara sua posição ao escolher ou não a marca exposta pelo Desencannes, tentando, inclusive,

fazer com que seus destinatários sigam seu exemplo, o que resultará na utilização do modo

argumentativo para persuadi-los ou dissuadi-los, como no caso dos anúncios que falam mal

da marca propagada.

As peças impublicáveis aproveitam-se, portanto, das estratégias publicitárias

canônicas, reproduzindo-as, transgredindo-as ou mesmo extinguindo-as a seu bel prazer,

afinal, como essa publicidade ri de si mesma, acaba por construir um discurso que pode tudo,

menos deixar seu leitor naquela zona de conforto costumeira quando se trata de ler e consumir

propagandas tradicionais, sejam elas quais forem.

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É por isso, por exemplo, que o site pode veicular uma peça que fala mal da marca que

“vende”, como acontece com a do leite condensado Itambé. A marca é relegado à posição de

segundo lugar, posto que, a ela, cabe apenas ser vice-líder na produção e na venda do leite

condensado, o que não é possível dentro das publicidades tradicionais que devem mostrar ao

consumidor que não existe melhor marca do que aquela anunciada. Na realidade, essa peça

faz, de maneira implícita, a exaltação do leite condensado do concorrente, o da marca Nestlé,

quando mostra, por conta do pódio que reproduz, que essa é a marca campeã de vendas, logo,

é o que deve ser escolhido por todos os consumidores.

Nas publicidades às avessas ressoam imaginários e representações sociais, além de

saberes de conhecimento e, principalmente, de crença. Logo, é possível estabelecer que o

sujeito enunciador do Desencannes apropria-se, muitas vezes, de imaginários

sociodiscursivos de nosso mundo real para, assim, estruturar seu próprio discurso. É o que

ocorre, por exemplo, na peça publicitária do macarrão da marca Barilla, que tem sua imagem

denegrida quando esta é associada à do ditador italiano Benito Mussolini. Ora, é apenas

porque o destinatário tem um saber de conhecimento, aliado a um de crença, que essa

associação é considerada ofensiva à marca, já que o leitor sabe que o fascismo foi um dos

regimes ditatoriais mais nocivos já vistos no mundo.

O humor parece ser a estratégia primordial de captação utilizada pelo Desencannes,

haja vista que seu principal objetivo é fazer seu destinatário rir ou se chocar, o que pode

ocorrer no momento em que se quebra a rigidez do cotidiano da publicidade canônica,

quando, por exemplo, uma peça desencannada fala mal da marca que tenta vender; ou uma

economia de energia na descarga de pensamento gerada por conta de uma ambiguidade; ou

seja, por conta de um chiste de palavras: é o caso da palavra gigante, na peça publicitária da

Prudence; ou pelo fato de se trazer, ao rés do chão, temas sérios, como o do regime ditatorial

fascista; ou, ainda, por se colocar em prática aquele riso ambivalente, típico da Idade Média,

que se apresenta como denegridor com relação ao leite condensado Itambé, mas como

engrandecedor do leite condensado Nestlé.

As peças publicitárias aqui analisadas podem ser divididas em dois grandes blocos, já

que duas delas enaltecem marcas, nesse caso, o refrigerante da marca Coca-Cola e o

preservativo da marca Jontex, ao passo que outras duas denigrem as marcas as quais

propagam: trata-se da massa Barilla e do leite condensado Itambé. Na realidade, pode-se

afirmar que a intenção que possuem os sujeitos enunciadores de tais peças é bastante diversa,

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uma vez que dois deles, ainda que as publicidades sejam fictícias, pretendem singularizar os

produtos, deixando claro que não há melhor escolha a ser feita por parte do consumidor, assim

como fazem as publicidades canônicas. No entanto, os outros dois sujeitos enunciadores

acabam cometendo o que seria um deslize imperdoável quando colocam em xeque as

qualidades de seus produtos, afirmando, ainda que implicitamente, que há opções melhores do

que aquelas que foram oferecidas.

A peça publicitária da Coca-Cola, ainda que engrandeça a marca que quer vender, é a

mais peculiar no que tange aos procedimentos linguístico-discursivos adotados, haja vista que

não menciona, por exemplo, o nome do produto que vende, o que seria impensável dentro do

rol das publicidades tradicionais. Só faz referência a ele, ao nome, por meio de símbolos: a

garrafa que mimetiza o formato da de Coca-Cola e a cor vermelha que preenche praticamente

todo o anúncio. Além desses símbolos, essa mesma publicidade responde à da concorrente, o

que também seria impensável em termos de publicidade tradicional.

No que se refere à publicidade da Prudence, o viés de criatividade tem a ver com o

fato de o sujeito enunciador da peça escolher como único enunciado uma hashtag que fez

parte das Manifestações de Junho de 2013 nas redes sociais – #ogiganteacordou – deslocando

tal enunciado e dando, a ele, um novo significado: os gigantes, agora, não são mais todos os

brasileiros que estavam lutando por seus direitos, mas, sim, os grandes homens que só podem

ser assim chamados porque têm pênis grandes ou grandes qualidades, fazendo ressoar,

portanto, na publicidade, uma crença de que ter um membro sexual de tamanho acima da

média é bom.

O anúncio da massa Barilla surpreende ao escolher como garoto-propaganda da marca

o ditador Benito Mussolini, o que acaba por denegrir a marca, uma vez que, por meio de

conhecimentos de mundo partilhados, enunciador e destinatário sabem que associar uma

figura como a do fundador do fascismo a uma marca não aumentará em nada suas vendas,

afinal, é bastante provável que os consumidores se sintam impelidos a rejeitar uma marca que

seja “a cara” de um governo ditatorial tão nefasto quanto foi o vivido pela Itália.

A peça publicitária do leite condensado Itambé chama a atenção do leitor por ressaltar

uma espécie de qualidade às avessas da marca, que é o fato de ele ter conquistado o segundo

lugar no número de vendas. Tudo isso porque ressoa no imaginário dos brasileiros uma crença

de que ser o segundo colocado não deve ser considerado satisfatório, logo, essa associação

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repeliria o consumidor que, obviamente, quer fazer uso, apenas, de produtos que são os

melhores e mais vendidos do mercado.

Assim sendo, por tudo dito anteriormente, é possível estabelecer que as peças

publicitárias do Desencannes possuem um viés de originalidade que lhes confere uma posição

de destaque dentro do discurso publicitário às avessas, posto que são capazes de trazer à tona

peças que seriam, dentro de agências publicitárias tradicionais, impensáveis por todos os

motivos aqui expostos. Portanto, cabe ao sujeito enunciador desencannado os louros de

tamanha ousadia iconoclasta: só o Desencannes é capaz de tornar o impublicável, publicável e

o ordinário, extraordinário.

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ANEXOS

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar algumas peças publicitárias fictícias, disponíveis

em um site de humor, intitulado Desencannes, discutindo de que maneira as referidas peças

subvertem muitas das estratégias de captação usadas pela publicidade canônica, assim como

se valem de outras. Na realidade, a principal finalidade do discurso desencannado é

desconstruir toda a seriedade do fazer publicitário tradicional, provocando, assim, o riso em

seus destinatários. Para que tais análises fossem, de fato, empreendidas, recorreu-se a alguns

pressupostos da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, cunhada por Patrick

Charaudeau, como é o caso dos conceitos de sujeitos do ato de linguagem, Processo de

Semiotização do Mundo, Contrato de Comunicação, Visadas Discursivas e Competências

Comunicacionais, haja vista que todos esses anúncios só são possíveis dentro de um novo

universo criado na e pela linguagem, posto que subvertem o quadro de referência tradicional

ao qual se reportam os sujeitos do ato de linguagem, principalmente, no que tange às visadas

discursivas, escolhidas para fazer parte do discurso desencannado. As noções de ethos e

pathos também foram resgatadas, afinal, a imagem que o sujeito enunciador quer passar de si

no discurso, bem como as estratégias de patemização que escolhe para fazer parte desse

discurso, são fundamentais na compreensão e na interpretação dos textos desencannados.

Recorreu-se, ainda, aos estudos de alguns autores sobre publicidade canônica para que se

pudesse estabelecer quais das estratégias foram utilizadas, quais, no entanto, foram deixadas

de lado e quais, por sua vez, foram subvertidas. Por fim, como a intenção primeira do sujeito

enunciador do Desencannes é fazer seu destinatário rir, tornou-se preciso explorar as

concepções de humor de Freud (1996), Bergson (2001), Bakhtin (2013) e Almeida (1999) a

fim de que se pudesse entender por que e como o riso foi produzido. Assim sendo, torna-se

possível estabelecer que as peças publicitárias do Desencannes são, na realidade, publicidades

às avessas, já que não têm a intenção de vender uma marca, mas, sim, de colocar em xeque

toda a rigidez do discurso publicitário canônico, afirmando que publicidade “boa de verdade”

é aquela que faz seu destinatário rir e não aquela que se prende a paradigmas e modelos

engessados.

Palavras-chave: Semiolinguística, publicidade, Desencannes.

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ABSTRACT

The present work aims at analizing some fictional works of publicity, available in a comedy

website named Desencannes, which discusses how the referred works subvert the catchy

strategies used in the mainstream publicity, as well as how they use other ones. In fact, the

main aim of the Desencannes speech is to deconstruct the serious tone of the traditional

publicity and make the audience laugh. In order to make the analisis we used the Theory of

the Semiolinguistic Speech Analisis, coined by Patrick Charaudeau, for instance, using its

concepts of language act subjects, World Semiotization Process, Communication Contract,

Discursive Target and Communication Competencies, given the fact that these advertisements

are only possible in the new linguistic universe created by the language and in it because they

subvert the traditional reference board to which the subjects of the linguistic act refer,

especially in relation to the discursive targets, chosen to be part of the desencannado speech.

The notions of ethos and pathos have also been used, as the image wished to be transpassed

by the subject, as well as the patemization strategies chosen to be part of this speech, are

fundamental in the comprehension and interpretation of the desencannados texts. We have

also used some works about canonical publicity so as to establish which strategies have been

used, the others that have been put aside, and finally the subverted ones. Finally, because the

intentions of the Desencannes subject is to make the audience laugh, it was necessary to

exploit the concepts of humor of Freud (1996), Bergson (2001), Bakhtin (2013) and Almeida

(1999) to understand how laughter is produced. Therefore it is possible to establish that the

advertisements of the Desencannes are, in fact, inverted, as there is no intention of selling a

product but to put into question the rigidity of the canonical publicist speech, showing that

“good publicity” is the one that makes the audience laugh and not the ones stuck to paradigms

and models.

Key-Words: Semiolinguistic, publicity, Desencannes.