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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO FACULDADE DE DIREITO RICARDO DIMITRI GONÇALVES KASAKEWITCH JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A FRONTEIRA ENTRE AS FUNÇÕES LEGISLATIVAS E JUDICIAIS Niterói Março de 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PRÓ-REITORIA DE … final... · Revolução 2 e o processo de transformação iniciado por esta começamos a rastejar em direção a democratização

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO

FACULDADE DE DIREITO

RICARDO DIMITRI GONÇALVES KASAKEWITCH

JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A FRONTEIRA ENTRE AS FUNÇÕES LEGISLATIVAS E JUDICIAIS

Niterói Março de 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO

RICARDO DIMITRI GONÇALVES KASAKEWITCH

JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A FRONTEIRA ENTRE AS FUNÇÕES LEGISLATIVAS E JUDICIAIS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

ao Curso de Direito da Universidade Federal

Fluminense como requisito parcial para a

obtenção do grau de Bacharel em Direito.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Gustavo Sampaio Telles Ferreira

Niterói Março de 2016

RICARDO DIMITRI GONÇALVES KASAKEWITCH

Universidade Federal Fluminense Superintendência de Documentação Biblioteca da Faculdade de Direito

K19

Kasakewitch, Ricardo Dimitri Gonçalves Judicialização da política e a fronteira entre as funções legislativas e judiciais / Ricardo Dimitri Gonçalves Kasakewitch. – Niterói, 2016. 45 f. TCC (Curso de Graduação em Direito ) – Universidade Federal Fluminense, 2016.

1. Direito Público. 2. Direito constitucional. 3. Democracia. 4. Separação de poderes. 5. Ativismo político. 6. Legitimidade. 7. Constitucionalização. I. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Direito, Instituição responsável II. Título.

CDD 341. 2

JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A FRONTEIRA ENTRE AS FUNÇÕES LEGISLATIVAS E JUDICIAIS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovado em Março de 2016.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Gustavo Sampaio Telles Ferreira – Orientador

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Prof. Dr. Cláudio Brandão de Oliveira

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Prof. Dr. Guilherme Braga Peña de Moraes

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

RESUMO Esta monografia analisa, embora sem pretensões ambiciosas, o nascimento e a evolução da teoria da separação dos poderes e do Estado Liberal. Sua aplicação no mundo contemporâneo e a influência que o processo de constitucionalização teve no estabelecimento de novos paradigmas para a nossa sociedade. Além de investigar a atividade das cortes constitucionais, em especial do Supremo Tribunal Federal de nosso país, e do impacto que o judicial review tem exercido para o delineamento de uma nova conjuntura política e uma releitura da Teoria Clássica da Separação dos Poderes. O objetivo deste trabalho é justamente compreender até onde se estende esta faixa cinza entre as funções legislativas e judiciais. Para tanto, faz-se uma rápida digressão pelos institutos clássicos que deram origem a tal teoria, perpassando brevemente pontos importantes no desenvolvimento do atual contexto, cujo processo de constitucionalização e seus reflexos criaram um ambiente favorável à judicialização de questões políticas. Este contexto por sua vez alimentado pela crescente crise de representatividade provocou um ativismo judicial exacerbado que vem substituindo em parte a atuação da invocada política majoritária. Palavras-chave: Princípio da Separação de Poderes. Judicialização da Política. Ativismo Judicial. Corte Constitucional. Constitucionalização. Legitimidade Democrática.

ABSTRACT This paper analyzes, but without bold pretensions, the very creation and development of the Principle of Separation of Powers and the foundatiom of the Liberal States. Its application in the contemporary world and the influence that the constitutionalization process had in the establishment of new paradigms for our society. The research of the interventionist activity of constitutional courts, especially the Supreme Court of our country, and the impact that the judicial review has played for the design of a new political situation and a rereading of Classical Theory of the Separation of Powers. The main purpose of this analyzes is to understand how far extends this grey strip standing between legislative and judicial functions. Therefore, it is a quick tour of the classical institutes that have given rise to such a theory, briefly permeating important points in the development of the current context, a process of writing a strong constitution and its effects have created a favorable environment for the Judicialization of Politic issues. This context in turn fueled by the growing crisis of representation caused an exaggerated judicial activism that is replacing in part the work of the majority policy invoked. Keywords: Principle of Separation of Powers. Judicialization of Politics. Judicial activism. Constitutional Courts . World Constitucionalism. Political Legitimacy and Democracy.

LISTA DE ABREVIAÇÕES Art. – Artigo. Arts. – Artigos. CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil. CF – Constituição Federal STF – Supremo Tribunal Federal n. – Número. p. – Página.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................8

CAPÍTULO 1 – A Separação dos Poderes como Teoria Clássica........................................9

1.1 Primeiros teóricos da Separação dos Poderes e o Advento do Estado Moderno...........10

1.2 Montesquieu e “O Espírito das Leis” (L’Esprit des Lois).............................................11

CAPÍTULO 2 – Aplicação Moderna da Separação dos Poderes no Direito Comparado e no

Brasil....................................................................................................................................14

2.1 – Separação dos poderes nos Estados Unidos da América............................................14

2.2 – Aplicação da Separação de Poderes na França e no Brasil.........................................15

2.3 – Da Divisão Horizontal: Funções típicas e atípicas.....................................................16

2.3.1 – Funções típicas.........................................................................................................16

2.3.2 – Funções atípicas.......................................................................................................17

2.4– Princípio da Independência entre os Poderes………………………………………………...18

2.5– Princípio da Harmonia entre os poderes......................................................................19

CAPÍTULO 3 – Acepções Contemporâneas e Críticas à Teoria Clássica frente ao processo

de Constitucionalização ......................................................................................................20

3.1 – Ativismo Judicial e Judicialização da política: limites e intersecções........................20

3.2 – Ameaça a legitimidade democrática e direito comparado..........................................25

3.3 - Fronteira entre direito e política..................................................................................27

3.4 – Poder Judiciário, capacidade institucional e releitura da Teorica Clássica de

Montesquieu……………………………………………………………………………….28

CAPÍTULO 4 – Cortes Constitucionais versus Tribunais Superiores………………….…32

CAPÍTULO 5 – Supremo Tribunal Federal e o Poder Legislativo:

atualidades e perspectivas...................................................................................................35

5.1 O mandado de injunção.................................................................................................35

5.2. A faixa cinza entre o STF e o legislativo nacional.......................................................38

CONCLUSÃO.....................................................................................................................42

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................44

8

INTRODUÇÃO

O movimento de avanço das Cortes Constitucionais sobre o espaço da política

majoritária, aquela realizada pelo Legislativo e pelo Executivo, é uma tendência

causada em grande parte pelo processo de constitucionalização desencadeado no fim

dos regimes totalitaristas que marcaram o século XX. O papel garantista e de

salvaguarda que esses tribunais guardiões da constituição tem desempenhado pelo

mundo é inegável. Tanto no sentido de proteção de direitos e garantias individuais

quanto de solução de grandes dissensos sociais a atuação dessas Cortes tem criado

novos paradigmas de como fazer justiça no delinear deste novo regime

neoconstitucionalista.

Contudo, tal atuação por vezes é tida como arbitrária, e não raro em tempos de

crise de representatividade oportunidades não tem faltado para que o Judiciário

chancele suas convicções superpondo-se aos demais Poderes. A esta expansão do

Poder Judiciário sobre políticas legislativas e executivas dá-se o nome de

Judicialização da Política. O movimento inverso e concomitante a este é o da

Politização da Justiça. Tal movimento vem mudando a configuração funcional do

Estado, cuja acepção clássica é aquela apontada pela Teoria Tripartite de

Montesquieu.

O juiz na sociedade atual não é mais mero agente técnico, hoje esse juiz

desempenha uma papel muito mais abrangente que a mera pacificação de conflitos.

Os juízes e ministros de nossas cortes estão à frente dos grandes dissensos morais e

éticos do país. Decidindo questões polêmicas, ações como as que tratam da

legitimidade da interrupção da gestação em caso de feto anencefálico, e da extensão

do regime da união estável às uniões homoafetivas.

A grande questão que procura-se analisar no presente trabalho é a definição de

até onde vai a legitimidade do Poder Judiciário em sua atuação na solução de grandes

controvérsias que caberiam ao legislativo a priori. Percorrendo para isso o

desenvolvimento do papel das Cortes Constitucionais no mundo e no Brasil, na figura

do Supremo Tribunal Federal, para enfim traçar um panorama desta faixa cinza entre

as funções Legislativas e Judiciais.

9

CAPÍTULO 1 – A Separação dos Poderes como Teoria Clássica

O mundo e a organização da civilização humana como a conhecemos hoje é

resultado do equilíbrio de uma constante luta entre duas forças, a força de

transformação e de conservação. Esta máxima se estende ao longo da história, e

repete-se desde a época de os servos e seus senhores, da nobreza e da plebe até depois

com o advento da burguesia e do proletariado, mas tal digressão já seria objeto para

um outro estudo com o enfoque próprio do materialismo histórico1. A partir da Dupla

Revolução2 e o processo de transformação iniciado por esta começamos a rastejar em

direção a democratização do direito e consequentemente do poder, o que culminou no

estabelecimento da Democracia representativa.

Houve, portanto, a institucionalização deste conflito e o Estado distribuiu seu

poder em funções (Legislativa, Executiva e Judiciária). Funções estas que hoje, cada

vez mais, mostram o reflexo deste modelo que através do conflito e da concorrência

de funções busca o equilíbrio das forças de nossa sociedade a fim de assegurar as

liberdades individuais e a consecução do bem comum. A este sistema que preza pela

comunicação e controle mútuo de um poder pelo outro dá-se o nome de “checks and

balances”, ou, Freios e Contrapesos.

Contudo, antes de adentrarmos as nuances da teoria de Freios e Contrapesos e

seu panorama atual em nossa sociedade, faz-se mister compreender a Teoria da

Separação dos Poderes em seu aspecto clássico e aquilo ao que ela se propõe.

Entendermos os obstáculos do exercício do Poder Estatal de forma a assegurar as

liberdades individuais e garantir um harmonioso funcionamento da máquina pública.

É imprescindível percorrer a teoria elaborada pelos filósofos políticos clássicos e a

evolução histórica dos Estados Modernos, sempre pautado pelos limites do que este

trabalho se propõe, mas sem olvidar nenhum detalhe que nos possa ser relevante.

1 Materialismo Histórico, é a abordagem metodológica ao estudo da sociedade, da economia e da história, que procura as causas de desenvolvimento e mudanças na sociedade humana 2 Dupla Revolução, é o termo que o maior historiador de nosso tempo, Eric Hobsbawm (1917-2012), fez uso ao referir-se à Revolução Industrial na Grã-Bretanha e à Revolução Francesa, ambas ocorridas na segunda metade do século XVIII cujos teóricos moldaram o alicerce organizacional da sociedade em que vivemos

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1.2 Primeiros teóricos da Separação dos Poderes e o Advento do Estado

Moderno

A teoria da separação dos poderes remonta aos tempos da antiguidade,

abarcando a obra de Aristóteles, “Política”, na qual o pensador por volta do século IV

a.C3 traçou características relativas ao desempenho do poder estatal semelhantes as

atribuições das atuais funções Legislativa, Executiva e Judiciária. Aristóteles

reconhecia três poderes do Estado, sendo eles: 1) Poder deliberativo, o qual

deliberava sobre todas as questões próprias do Estado; 2) Poder executivo, aquele

delegado aos magistrados e empregado conforme as deliberações tomadas pelo poder

deliberante. 3) Poder de fazer justiça, o qual versava sobre à jurisdição.

Contudo, para Aristóteles tais poderes não eram independentes e sim

subornados ao governo monocrático. Daí decorre a célebre frase de Luís XIV que

reflete tal descrição: “L’État c’est moi”, ou seja, “o Estado sou eu”. Nada obstante a

sociedade ocidental só veio a reconhecer a importância de tal teoria com o advento

dos Estados na Idade Moderna, consagrando-se no constitucionalismo incipiente.

A primeira tentativa efetiva de separar as atividades do Estado deu-se na

Inglaterra e foi tentada por Oliver Cromwell, o Lord Protector da Grã-Bretanha,

através do “Instrumento of Government 4 ” (v. Carl Schmitt, in “Teoria de la

Constitución”, trad. Espanhola, Introd. De Francisco Ayala, México, Ed. Nacional,

1966, pág. 212). A teorização desta doutrina deu-se por John Locke e pelo barão de

La Brède e de Montesquieu, este último passando a encabeçar a referência a tal teoria

pela alta divulgação que sua obra tivera, “O espírito das Leis” (L’Esprit des Lois).

John Locke, influenciado pelos eventos que se passavam no período,

especialmente a revolução gloriosa do século XVII, começou a tratar em sua obra

“Two Treatises of Government”, publicada em 1690, um ensaio sobre a separação das

funções do Estado. Em discordância com o absolutismo monárquico da época, Locke

se inspirou na ascenção do liberalismo político e discorreu sobre as necessidades do

3 Curso de Ciência Política, 2ª Edição, 2011. A contribuição do pensamento antigo e medieval. Marcelo da Costa Maciel. p. 10. 4 v. Carl Schmitt, in “Teoria de la Constitución”, trad. Espanhola, Introd. De Francisco Ayala, México, Ed. Nacional, 1966, p. 212.

11

homem em sair do estado de natureza e ir para um estado capaz de assegurar um certo

grau de previsibilidade e segurança para sua propriedade.

O pensador inglês na vanguarda do liberalismo político diz ainda que para

haver previsibilidade entre as relações do homem organizado em sociedade é

necessário que exista: primeiramente, leis, em segundo lugar um juiz imparcial e

conhecido que a faça valer, e por último mas não menos importante um poder para

apoiar e assegurar a sentença quando justa, dando-lhe a devida execução. Nas

palavras de Bonavides (ed. 2004: pág, 242) “Ali, Locke, com seus tratados,

consubstancia a primeira crítica séria e refutadora feita ao absolutismo”.

Contudo, John Locke difere de Montesquieu, uma vez que o primeiro confere

demasiado poder para a função legislativa em detrimento das demais. Em especial a

função judiciária, que era considerada praticamente como um poder nulo.

1.2 Montesquieu e “O Espírito das Leis” (L’Esprit des Lois)

Foi Montesquieu, que encabeçando a Revolução Política no contexto da Dupla

Revolução do século XVIII, identificou em sua obra “O Espírito das Leis” (L’Esprit

des Lois), publicada em 1748, as três principais funções distintas típicas da atividade

Estatal. Distinção essencial, em sua opinião, para que a liberdade seja assegurada.

“Tout serait perdu si le même homme, ou le même corps des principaux, ou des nobles, ou du peuple, exerçaient ces trois pouvoirs: celui de faire des lois, celui d`exècuter les résolutions publiques, et celui de juger les crimes ou les différends de particuliers”, (in “L’Esprit des Lois5”, Paris, Ernest Flammarion Editeur, s/d (texto reproduzido da edição de 1758), lib. XI, ch. VI, p. 170).

O pensamento de Montesquieu influenciou de tal maneira os entusiastas

iluministas que a vanguarda de juristas da Revolução Francesa assentaram no art. 16 5 “Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se ao mesmo homem ou ao mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos individuais.” (Montesquieu, 1979, p. 149).

12

da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que: “Toda a sociedade, onde a

garantia dos direitos não esteja assegurada nem a separação dos poderes determinada,

não possui Constituição”.

Cabe ressaltar que com o advento da separação dos poderes veio a necessidade

de criar-se mecanismos que garantissem a independência desses, evitando deste modo

a assimilação de um poder pelo outro. A preocupação dos europeus com o equilíbrio é

algo que remonta ao século XVI. Tal equilíbrio será apenas alcançado pela

instauração de mecanismos de defesa uns contra os outros.

“Pour qu’on en puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir.” (op. Cit. Lib. XI, ch. IV, p. 169).

Para Carl Schmitt na verdade foi Bolingbroke o verdadeiro autor da teoria do

equilíbrio entre os poderes através dos freios e dos controles recíprocos. Ainda infere-

se que ele descorda do termo “divisão de poderes”, cunhando a expressão “distinção

de poderes”. Já a teoria da divisão dos poderes em Montesquieu toma como ideia

central a harmonia e o controle de um poder em relação ao outro e não simplesmente

uma divisão ou distinção. Montesquieu chama à atenção para o fato de que cada poder

tem suas funções próprias e que somente daí, partindo-se de suas atribuições

constitucionais, todos desempenhariam suas funções visando um objetivo e bem

comuns. A partir daí, independentemente de qualquer mecanismo de direito, se daria a

harmonia e o controle entre um e outro por uma via natural. Deduz-se então o

pensamento de Montesquieu em “Esses três poderes deveriam originar um impasse,

uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, são compelidos a

caminhas, eles haverão em concerto”.

Em seus ensinamentos Montesquieu dividiu os poderes em: Legislativo,

aquele de ditar a lei; O Executivo como expressão daquele que depende do Direito

das Gentes, e o Executivo que depende do Direito civil, em uma clara referência ao

Poder Judiciário. O Legislativo, teria o poder de fazer a lei, o segundo o de celebrar a

paz ou a guerra, estabelecer missões diplomáticas e prevenir invasões, e o último

resolveria os conflitos entre os cidadãos. Atualmente ao poder legislativo são

conferidas pelo texto constitucional funções típicas ou próprias, sendo essas de fazer,

derrogar, ou ab-rogar lei; ao Poder Executivo, a aplicação das Leis e a Administração

Pública; e ao Poder Judiciário, o exercício da atividade jurisdicional, dirimindo os

13

conflitos entre os cidadãos ou entre estes e o Estado. Contudo, tais funções não são

exclusivas de cada poder, outrossim há além de uma função predominante em cada

poder, chamada de função típica ou própria, outra, chamada de atípica.

Na verdade equivocados estão aqueles que fazem referencia a tripartição do

poder estatal, pois o Poder do Estado, em si considerado é uma unidade. O que se

verifica é a repartição de funções a serem desempenhadas pelos órgãos deste Estado.

Como já apontado, mesmo na época dos estados monárquicos absolutistas em que o

poder se contentava nas mãos de um único déspota, Montesquieu já havia identificado

as diversas funções desempenhadas pelo Estado.

Aristóteles mesmo já falava das diversas funções dos estado, porém, como o

soberano detinha todo o poder em suas mãos comum era que tal governo se

deteriorasse e então viesse o reino da desigualdade, injustiça e despotismo.

Montesquieu inovou ao determinar que tais funções deveriam ser realizadas por um

sistema de órgãos distintos, desempenhando suas respectivas funções e assim

prevenindo que o governo se deteriore devido ao poder esta todo concentrado nas

mãos de apenas uma pessoa.

Desde sua delineação por Aristóteles no século V a.C. e sua sistematização no

século da luzes pelo pensador inglês John Locke e o francês Montesquieu, no

alvorecer do liberalismo político e consequente derrocada da monarquia absolutista, o

termo “separação” enfrentou ferrenhos questionamentos. Atualmente, a doutrina

majoritária entende que o termo “separação” não é adequado uma vez que o poder

Estatal é único e soberano, e seu titular é o povo. O poder como instrumento

coercitivo não se separa, outrossim o que se separam são as funções estatais, de tal

forma que as atribuições a serem executadas são desempenhadas por múltiplos

órgãos, resultando com isso, a limitação do poder estatal em si.

14

CAPÍTULO 2 – Aplicação Moderna da Separação dos Poderes no Direito

Comparado e no Brasil

Apesar da teoria da separação dos poderes ter tido berço comum, sua

aplicação se deu em tempos diferentes e de formas distintas pelos Estados Nacionais

da época. Recebeu tratamentos específicos pelos diferentes pensadores do período e

foi posta em prática na medida em que as monarquias absolutas caíam e davam lugar

ao Estado Democrático de Direito, cada qual ao seu tempo e modo. É certo que a

primavera dos povos6 fora um marco para o momento, mas não é possível precisar-se

quando ocorreu de fato a mudança de sistema. Mas se houve algo em comum a todos

esses processos espalhados pelo mundo foi a tentativa de criação de algum

mecanismo que assegurasse a independência entre os poderes e definisse suas

fronteiras.

2.1– Separação dos poderes nos Estados Unidos da América

Pode-se afirmar, contudo, que os Estados Unidos da América foram pioneiros

na aplicação consciente da teoria da separação dos poderes, momento em que

também fora celebrado pelos povos que compunham as antigas treze colônias o

chamado “Contrato Social”. A teoria fez-se presente na Constituição da Virgína,

1776, seguida pelas Constituições de Massachussets, Maryland, New Hampshire e

finalmente a própria Constituição dos Estados Unidos da América em 1787. Os

idealizadores de tal constituição adotaram a doutrina, difundida na Europa, da

Separação dos Poderes. Procuraram também proteger esta separação pela instauração

de meios de defesa contra a possibilidade de usurpação de um poder pelos demais.

Era o embrião da efetivação, em toda a operação governamental, do sistema de

Checks and Balances (freios e contrapesos).

6 Primavera dos Povos é o nome que se dá a uma série de movimentos revolucionários de cunho liberal que ocorreram por toda a Europa durante o ano de 1848. Com a Revolução Francesa de 1789, os ideais libertários espalharam-se por toda a Europa, assustando as monarquias absolutistas europeias que aos poucos davam lugar as Republicas. Como ocorrera na Franca no ano de 1848, o Rei Luís Felipe abdica em 1848 e a república é proclamada.

15

Forma-se, assim, a teoria dos freios e contrapesos na aplicação prática da

separação dos poderes, ou seja, na técnica de garantia da efetiva permanência de

poderes estatais distintos e independentes entre si. A teoria de freios e contrapesos, é

explicada pelo “The Federalist”, seu melhor expositor é Madison. Ele defende que

não pode ser garantida a separação dos poderes, como uma mera determinação dos

limites constitucionais sem que haja uma ingerência constitucional de um poder sobre

o outro. Essa interpenetração, outrossim, prevê meios de defesa de cada poder,

devendo estar em proporção a medida do perigo de usurpação. (in “The Federalist”,

Massachusets, Harvard Univ, Press, 1961, op. 48-51).

Nos Estados Unidos da América a aplicação da teoria foi toda pautada pelo

desenvolvimento em texto constitucional do sistema de freios e contrapesos, de modo

que o sistema de segurança e meio de defesa de um poder ser proporcional a

possibilidade de usurpação pelo outro. Deste modo não haveria nenhuma

preponderância de um poder em face de outro poder, não por haver nenhuma

determinação constitucional explicita na Lei fundamental, mas pelo fato de o simples

modo pelo qual as competências foram distribuídas entre cada um deles já instaurava

de maneira intrínseca ao sistema um modelo de limitações recíprocas.

O sistema de checks em balances norte-americano tem seu alicerce na

Suprema Corte. Esta desempenha desde os primórdios da República Americana um

papel crucial no sistema de controle judicial. Este pautando-se pela Constituição

determinam aqueles atos os quais não estão de acordo com a norma Fundamental,

fundamento de validade de todo o ordenamento.

2.2 – Aplicação da Separação de Poderes na França e no Brasil

Na França a aplicação prática da Teoria foi feita por meio da Declaração dos

direitos humanos. O enunciado presente primeiramente no art. 16 da Declaração é

incorporado ao texto constitucional francês em 1791 este diz:

“Toute societé dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs determinée n’a point de constitution”. (art. 16 – Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen”)

16

Por influência da matriz francesa, este enunciado foi repetido em inúmeras

constituições futuras pelo mundo, inclusive na Constituição Brasileira. Tendo sido

contemplado inclusive na Carta Imperial em seu art. 9º:

“A divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece”.

Este enunciado foi se aprimorando ao longo do tempo e das constituições, por

exemplo na constituição de 1891, já mais em sintonia com o modelo norte-americano

mas sem abandonar as raízes europeias, cunhou-se a expressão “independência e

harmonia” (art.15). A proposta era que por meio da interdependência dos poderes

chegaria-se a um equilíbrio entre eles, suas fronteiras seriam respeitadas e definidas

por mecanismos próprios, permitindo assim uma coexistência pacífica.

2.3 – Da Divisão Horizontal: Funções típicas e atípicas

Com a celebração do Contrato Social e o estabelecimento da Constituição,

houve a divisão dos poderes. A divisão em sentido estrito, qual seja a que se refere ao

Estado, subdivide-se em horizontal e vertical de poderes. A divisão horizontal de

poderes relaciona-se, de forma clássica, aos três poderes: Legislativo, Executivo e

Judiciário. A divisão vertical por sua vez é aquela que ocorre em âmbito estatal

correspondendo a divisão de poderes entre os entes da Federação, sendo estes no

Brasil: A União, os Estados membros, os Municípios e o Distrito Federal. O foco

deste estudo consiste na análise da divisão horizontal deste poder estatal.

2.3.1 – Funções típicas

Entende-se como funções típicas aquelas que são exercidas com

preponderância por uma categoria de órgãos estatais. É certo que como corolário até

mesmo do sistema de checks and balances, cada poder exerce uma pluralidade de

funções. A fim de se chegar ao equilíbrio e unidade do sistema por vezes é preciso

17

criar reentrâncias mútuas nesta fronteira, deste modo podemos dizer que a separação

absoluta é algo que de fato não ocorre.

Contudo, resta do mesmo modo certo que cada poder exerce uma função

preponderante. As funções preponderantes são aquelas que o identificam como tal.

Todos os poderes julgam, legislam e exercem funções administrativas, sendo que a

função típica de um corresponde a atípica do outro. Deste modo, para o Legislativo

cabem as funções de fazer, derrogar, ou ab-rogar normas. Ao Executivo as de

executar as normas e chefiar a máquina administrativa governamental. E para o

Judiciário, coube a função de dirimir conflitos entre os cidadão, entre estes e o Estado,

e entre os próprios entes do Estado.

Dentro da lógica de freios e contrapesos, em busca do equilíbrio entre as

forças do governo, a Constituição previu uma serie de mecanismos capazes de

promover uma controle e defesa de um pode frente ao outro. Por exemplo, o Poder

Legislativo que possui a função principal de editar normas poderá vir a ter uma norma

sua vetada pelo Executivo, se este não aquiescer com o seu teor. Por outro lado o veto

pode ser rejeitado pelo poder Legislativo, e a norma vindo assim a ser publicado

poderia ainda ter sua eficácia negada e ser declarada inconstitucional pelo Poder

Judiciário.

2.3.2 – Funções atípicas

As funções atípicas, por sua vez, são aquelas exercidas sem exclusividade.

Funções encontradas em todos os poderes, contudo predominantes em apenas um. É

correto portanto dizer que cada poder pode, portanto, atento as limitações

constitucionais, exercer atividades típicas de outros poderes. Nesse sentido disciplina

Nelson Nery Junior:

“O legislativo pode exercer jurisdição, quando julga o Presidente da República por crime de responsabilidade (CF 52, I); O Judiciário pode legislar, quando emite portarias e resoluções e pode administrar seu orçamento em virtude do autogoverno da Magistratura; o Executivo pode legislar editando Medidas Provisórias e Decretos, vide CF art. 60§4º III” (NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal Comentada e legislação comentada, 4ª edição, p. 195)

18

2.4– Princípio da Independência entre os Poderes

O princípio da independência dos poderes decorre de fácil exegese

constitucional acerca do tema, que assim dispõe em seu Art. 2º: “São Poderes da

União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o

Judiciário.”. Do mesmo modo ao enumerar a separação no rol de clausulas pétreas da

República, o constituinte originário determinou que não poderia ser objeto de

proposta deliberação a proposta de emenda que colocasse em risco a separação dos

poderes. Segue íntegra do art. 60, §4º e 5º da CRFB.:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

[...]

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

§ 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.”

Os poderes são independentes entre si, e, portanto, um poder não poderá

incumbir-se de funções de outro nem ter a soberania de suas decisões superposta pelas

de outro, em tese. A regra geral preza pelo princípio da indelegabilidade, corolário do

princípio da independência entre os poderes. Segundo este o titular da função típica

não poderá designar aos outros dois poderes que desempenhem seu papel. Nelson

Nery Junior, contudo aponta como exceção a tal principio: “As exceções ao princípio

19

da indelegabilidade7 estão previstas expressamente na Carta Política (v.g. CF 58 §2º, I

e 68).”

Como visto a separação dos poderes é protegida por cláusula pétrea e a forma

como esta separação foi concebida pelo constituinte é tão importante que a emenda

tendente a suprimir a independência de qualquer dos poderes é constitucionalmente

inadmissível8. Hipótese em que cabe ao STF, guardião de nossa constituição, fazer

valer a vontade do constituinte em defesa de da Carta Federal.

2.5– Princípio da Harmonia entre os poderes

Todas as ações dos poderes estatais no desempenho de suas funções devem

respeitar uns aos outros e orientar-se no sentido de que a função do Estado como um

todo deve se pautar pela consecução do bem comum agindo em respeito as normas e

princípios constitucionais. Neste sentido os poderes além de não intervirem na órbita

das funções uns dos outros devem agir de maneira conjunta na consecução das

necessidades da comunidade. Um exemplo dessa harmonia seria o mandado de

injunção9, que mais a frente será debatido. Nesta hipótese o judiciário não entraria em

cena para substituir o legislador naquilo que este fora falho e emitir lei ou ordem,

outrossim, resolve a forma e o modo pelo qual deve efetivamente ser exercido o

direito previsto pela Constituição, seja ela Federal ou Estadual.

7 NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal Comentada e legislação comentada, 4ª edição, p. 196.

8 “Em caso que motivou polêmica, o STF decidiu que a criação do Conselho Nacional de Justiça pela Emenda Constitucional n. 45/2004 não ofendeu a cláusula pétrea da separação dos Poderes, porque não afetado “o núcleo político do princípio, mediante a preservação da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente” (ADI 3.367, DJ de 13-4-2005, Rel. Min Cezar Peluso).” (MENDES, Gilmar Ferreira et alli. Curso de Direito Constitucional. 7ª Edição, 2012, p. 144, nota de rodapé)

9 “Harmonia entre os Poderes e mandado de injunção. Na falta de norma regulamentadora para o exercício de direito assegurado – por norma constitucional de eficácia limitada – pela CF ou pela CE, pode o impetrante dirigir-se ao Judiciário que, pela ordem de injunção, determinará a forma do exercício do direito. Não é função do juiz, ao julgar MI, emitir lei geral ou ordem ao Legislativo, mas sim resolver a forma e o modo pelo qual deve efetivamente ser exercido o direito previsto e garantido na CF ou CE (v. coments. CF 5º LXXI)” NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal Comentada e legislação comentada, 4ª edição.

20

CAPÍTULO 3 – Acepções Contemporâneas e Críticas à Teoria Clássica frente ao

processo de Constitucionalização

O quadro atual de constitucionalização do direito como um todo, no qual a

Magna Carta Federal pátria irradia valores constitucionais de modo a impregnar todo

o ordenamento jurídico com direitos e garantias, permitiu uma ascensão institucional

do poder Judiciário. Como o mestre Luís Roberto Barroso disciplinou em sua obra:

“Sob a Constituição de 1988, aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade brasileira. Em primeiro lugar pela redescoberta da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos. Em seguida, pela circunstância de haver o texto constitucional criado novos direitos, introduzindo novas ações e ampliando a legitimação ativa para tutela de interesses, mediante representação ou substituição processual.” (BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª tiragem 2012, pág. 407)

É inquestionável que recuperadas as liberdades e as garantias da magistratura

no processo de redemocratização houve um ganho substancial na atuação destes

agentes, tendo estes passado a desempenhar um papel muito mais político que

técnico. Deste modo, ocupando um espaço que antes era reservado somente ao

Legislativo e ao Executivo. Portanto, é inevitável que se faça uma releitura da

relações entre os poderes à luz do novo quadro constitucional, que pela judicializacao

das relações sociais redefiniu as fronteiras entre o legislativo e o judiciário.

3.1– Ativismo Judicial e Judicialização da política: limites e intersecções

Em razão de diversos fatores, dentre eles os supramencionados em tópico

anterior como a constitucionalização, a crescente demanda do povo por justiça e a

escalada institucional do poder judiciário, observamos no Brasil uma vivaz

judicializacao de questões políticas e sociais. Questões que antes eram atinentes aos

poderes Legislativo e Executivo passaram a encontrar nos tribunais a sua resposta

final.

21

Luís Roberto Barroso traz em sua obra alguns temas e casos que nos ajudam a

ilustrar este quadro de judicialização de questões políticas e sociais através de

exemplos de julgados importantes do Supremo Tribunal Federal, tais como:

“(i) Políticas públicas: a constitucionalidade de aspectos

centrais da Reforma da Previdência (contribuição dos inativos) e da

Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça);

(ii) Relações entre Poderes: determinação dos limites legítimos

de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebra de

sigilos e decretação de prisão) e do papel do Ministério Público na

investigação criminal;

(iii) Direitos fundamentais: legitimidade da interrupção da

gestação em certas hipóteses de inviabilidade fetal e das pesquisas

científicas com células-tronco embrionárias;

(iv) Questões do dia-a-dia das pessoas: legalidade da cobrança

de assinaturas telefônicas, majoração do valor das passagens de

transporte coletivo ou fixação do valor máximo de reajuste de

mensalidade de planos de saúde.” (BARROSO, Luís Roberto, Curso de

Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª tiragem 202, pág. 408)

A priori teríamos um poder judiciário técnico, cujas atribuições seriam

somente aquelas pertinentes a solução de conflitos entre os indivíduos, não devendo

este envolver-se em assuntos da seara política, tampouco deliberar sobre matérias de

índole eminentemente legislativa. Contudo, a partir dos exemplos trazidos por

Barroso, pode-se concluir que o judiciário não apenas tem desempenhado um papel

político muito relevante como o tem feito reiteradamente.

Há, contudo, uma ressalva que deve ser feita quanto a este desempenho de

poder político pelos magistrados. Esses não são investidos por critérios eletivos nem

processos majoritários. Motivo pelo qual grande parte da doutrina ainda questiona a

legitimidade democrática da função judicial, seus limites e atribuições. Como Barroso

assentou em sua obra “São amplos os espaços de interseção e fricção entre o

judiciário e os outros dois Poderes, potencializando a necessidade de se demarcar o

âmbito de atuação legítima de cada um”.

No que tange ao processo de judicialização e o impacto deste a fronteira entre

o legislativo e o judiciário Barroso ainda acrescenta dizendo que “Como intuitivo, não

22

existem fronteiras fixas e rígidas, havendo uma dinâmica própria e pendular nessas

interações”.

Um instituto próprio das atuais democracias e que dialoga com flexibilização

das fronteiras entre o legislativo e o judiciário é o controle de constitucionalidade

realizado pelas Cortes Constitucionais. Estas, normalmente realizam um papel

contramajoritário10, no qual segundo Barroso órgãos e agentes públicos não eleitos

têm o poder de afastar ou confrontar leis elaboradas por representantes escolhidos

pela vontade popular.

O papel das Supremas Cortes/Tribunais Constitucionais vem sendo

questionado desde o século passado, e duas vertentes tomaram corpo na doutrina no

decorrer dos anos. De um lado existem aqueles que acreditam que o papel destas é

garantir que a expressão máxima da vontade do povo, que é aquela expressa em texto

constitucional, seja observada. Devendo, por isso, suas decisões, assentadas na

soberania popular, prevalecer sobre o processo democrático exercido pelas

manifestações parlamentares em processo ordinário. A segunda vertente acredita que

a ascensão institucional do judiciário afetou a interpretação jurídica que passou a ter

maior responsabilidade política em suas mãos e suas atribuições não mais se

limitavam a compreensão formalista e técnica de antes, cabendo ao juiz

constitucional, nas palavras de Barroso “assegurar determinados valores substantivos

e a observância dos procedimentos adequados de participação e deliberação”.

Barroso afirma que o ativismo judicial nos Estados Unidos da América tem

sido muito conservador quando comparado a era de Warren11 na Suprema Corte

Americana, em que grandes decisões liberais foram obtidas. Contudo, ainda assim o

judicial review e o constitucionalismo democrático são as doutrinas dominantes do

pensamento progressista. Por sua vez Ronald Dworkin12 defende em sua obra “is

10 “A expressão “dificuldade contramajoritária” (the counter-majoritarian difficulty) foi cunhada por Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16, 1ª edicao é de 1962. 11 “Earl Warren presidiu a Suprema Corte de 1953 a 1969; Warren Burger, de 1969 a 1986. Algumas decisões emblemáticas desses períodos foram: Brown vs. Board of Education (1954). Que considerou inconstitucional a politica de segregação racial nas escolas publicas; Griswold vs. Connecticut (1965), que invalidou a lei estadual que incriminava o uso de pílula anticoncepcional, reconhecendo um direito implícito a privacidade.” (BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª tiragem 2012, pág. 412). 12 “V. Ronald Dworkin. Is Democracy possible here? Principles for a new political debate, 2006, p. 131, explorando a distincao entre democracia majoritária e democracia como uma parceria entre iguais, e defendendo esta última “Democracia signfica que o povo governa a si mesmo, cada individuo sendo um parceiro integral em um empreendimento politico coletivo, no qual as decisões da maioria somente são democráticas quando algumas condições são preenchidas, de modo a proteger o status e os

23

democracy possible here? Principles for a new debate”, uma atuação cada vez mais

ativa dos juízes.

Dworkin ressalta ainda que o judiciário americano passou por uma chamada

era dos princípios na qual os grandes dissensos sociais eram decididos no, por ele

chamado, “fórum dos princípios”. Contudo, alguns progressistas, seguindo o

intitulado “constitucionalismo popular 13 ” estariam defendendo a retirada da

constituição dos tribunais por acharem que estes tem ultrapassado suas atribuições

constitucionais invadindo a seara do legislativo ao decidir questões de ordem

manifestamente política. Por outro lado, em consonância com Dworkin estão aqueles

que defendem o “constitucionalismo democrático14”, que preza pela parceria entre as

funções representativas do governo, desempenhadas pelos poderes executivo e

legislativo, e o judiciário na implementação e certificação de direitos constitucionais.

É certo que o embate entre as ditas forças do constitucionalismo e democracia

está ligado ao binômio judicialização e auto-contenção judicial. Para Barroso, o

judicialização é produto lógico da constituição e a atuação do Judiciário atualmente

no Brasil, que vem ocupando espaços antes da esfera representativa de poder, não é

mais do que a expressão desta atribuição dada pela Magna Carta conforme afirma em

“A judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica,

filosófica ou metodológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu

papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente.”.

Enquanto a auto-contenção judicial traduz-se na não interferência do Judiciário em

interesses de cada cidadão como parceiro integral no empreendimento”. (BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª tiragem 2012, pág. 413). 13 Constitucionalismo popular é aquele que “têm defendido que a constituição deve ser retirada dos tribunais e restituida ao povo. Outros têm enfatizado a necessidade urgente de cautela judicial e de minimalismo.” (BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª tiragem 2012, pág. 413).

14 Constitucionalismo Democrático: “O constitucionalismo democrático (aqui defendido) afirma tanto o papel das instituições representativas de governo e da mobilização da cidadania no cumprimento da Constituição quanto, ao mesmo tempo, afirma também o papel dos tribunais e da argumentação jurídica na interpretação da Constituição. Diferentemente do constitucionalismo popular, o constitucionalismo democrático não procura retirar a Constituição dos tribunais. O constitucionalismo democrático reconhece o papel essencial do judiciário na implementação dos direitos constitucionais no Estado Americano. De outro lado, recusando um foco essecialmente jurisdictional (a juricentric focus on courts), o constitucionalismo democrático valorize o papel essencial que o engajamento popular desempenha ao direcionar e legitimar as instituições e as práticas do controle judicial.” (BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª tiragem 2012, pág. 413).

24

questões atinentes aos outros poderes, neste sentido e nas palavras de Barroso, juízes

e tribunais:

(i) “evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que

não estejam no seu âmbito de incidência expressa,

aguardando o pronunciamento do legislador ordinário;

(ii) “utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração

de inconstitucionalidade de leis e atos normativos;

(iii) abstem-se de interferir na definição das politicas publicas.

Até o advento da Constituição de 1988, essa era a

inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil. “

Barroso aponta que as duas posições se diferenciam metodologicamente, em

princípio, pois “o ativismo judicial procura extrair o máximo das potencialidades do

texto constitucional, sem contudo invadir o campo da criação livre do Direito. A auto-

contenção, por sua vez, restringe o espaço de incidência da Constituição em favor das

instâncias tipicamente politicas”.

A judicialização das relações sociais desembocou no binômio ativismo-

autocontenção judicial. Este por sua vez encontra-se presente na maior parte parte dos

países que adotaram o modelo das Supremas Cortes ou Cortes Constitucionais a fim

de solucionar matérias de controle de constitucionalidade de atos oriundos das outras

parcelas representativas do poder público, Legislativo e Executivo. O movimento

conforme aponta Barroso é pendular, e oscila segundo a popularidade de cada poder

nos Estados. Como o Brasil vive uma fase de instabilidade e “crise de

representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem

alimentado a expansão do Judiciário nessa direção”. E em nome da proteção à

Constituição, “por meio de prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes,

inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral”, o poder antes técnico e

limitado a solução de conflitos, agora encabeça o Ente estatal mais do que atendendo

as demandas sociais, mas representando-as.

25

3.2– Ameaça a legitimidade democrática e direito comparado

Se por um lado juristas de renome como o já invocado Ronald Dworkin, ou

mesmo John Hart Ely são a favor de um judiciário mais atuante e uma Suprema Corte

forte e engajada, por outro lado outras vertentes da doutrina veem neste processo de

constitucionalização um risco a legitimidade Democrática. Neste sentido temos o

mestre Alexander M. Bickel que em sua obra, The Least Dangerous Branch, trabalha

a chamada questão da dificuldade contramajoritária colocando em xeque a

legitimidade de agentes não eleitos (magistrados) anularem decisões de agentes que

exercem mandato popular, tais como parlamentares e chefes de estado.

É sabido que os membros de nosso poder Judiciário (ministros,

desembargadores e juízes) apesar de agentes públicos que desempenham funções,

cada vez mais, inegavelmente políticas, não são eleitos. É neste fato que reside a

crítica feita por Alexander Bickel em “The Counter-Majoritarian Difficulty15”:

“The root difficulty is that, judicial review is a conter-majoritarian force in our system. There are various ways of sliding over this ineluctable reality. Marshall did so when he spoke of enforcing, in behalf of “the people”, the limits that they have ordained for the institutions of a limited government. And it has been done ever since in much the same fashion by all too many commentators. Marshall himself followed Hamilton, who in the 78th Federalist denied that judicial review implied a superiority of the judicial over the legislative power-denied, in other words, that judicial review constituted control by an unrepresentative minority of an elected majority. “It only supposes,” Hamilton went on, “that the power of the people is superior to both: and that where the will of the legislature, declared in its statutes, stands in opposition to that of the people, declared in the Constitution, the judges ought to be governed by the later rather than the former.” But the word “people” so used is an abstraction. Not necessarily a meaningless or a pernicious one by any means; Always charged with emotion, but nonrepresentational – an abstraction obscuring the reality that when Supreme Court declares unconstitutional a legislative act or the action of an elected executive, it thwart the will of representatives of the actual people of the here and now; it exercises control, not in behalf of the prevailing majority, but against it. That, without mystic overtones, is what actually happens. It is an altogether diferente kettle of fish, and it is the reason the charge can be made that judicial review is undemocratic.” (Alexander M.

15 The Counter-Majoritarian Difficulty, (Alexander M. Bickel, The Least Dangerous Branch, The Supreme Court at the Bar of Politics, Second Edition, p.16)

26

Bickel, The Least Dangerous Branch, The Supreme Court at the Bar of Politics, Second Edition, p.16)

Alexander Bickel faz contundentes ressalvas aos contornos que a política do

judicial review tomaram na sociedade americana, em especial realizando críticas a

maneira como se fazia justiça na Corte de Warren. Sua principal alegação é consiste

no fato de que apoiar as arbitrariedades do judiciário na vontade popular expressa na

constituição é um equívoco, um artifício usado pelos juízes e cortes a fim de

contornar a vontade dos agentes eleitos do “aqui e agora”. Que não é fazer prevalecer

a vontade da maioria o que se faz em decorrência do judicial review, e sim ir de

encontro a ela na medida em que agentes não eleitos podem reformar decisões de

agentes eleitos por processo majoritário.

Segundo o conhecimento comum, os magistrados não tem vontade própria.

Outrossim, aplicam a lei conforme o caso concreto sem acrescentar nem retirar nada

do que foi vontade do legislador. Tal afirmativa certamente está de acordo com a

lógica estabelecida pela clássica teoria da Separação dos Poderes. Contudo, deve-se

ter em mente que magistrados não são máquinas de funcionamento absolutamente

técnico e que igualmente muitos dissensos sociais exigem certo grau de abstração

para além do que a letra da lei é capaz de conferir. Neste sentido Ronald Dworkin 16diz “The Constitution fuses legal and moral issues, by making the validity of law

depend on the answer to complex moral problems”.

Ademais, deve-se atentar para o fato de que a constituição desempenha dois

papéis fundamentais em nossa Democracia, segundo Barroso. Quais sejam estes, o de

estabelecer regras do jogo democrático e o de proteger valores e direitos

fundamentais, mesmo que contra a vontade daqueles que detém maior legenda

eleitoral no momento. Nesse mesmo sentido Barroso 17completa:

“O intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é

velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando

como um fórum de princípios – não de política – e de razão pública – não de

doutrinas abrangentes, sejam ideologias politicas oi concepções religiosas”. Luís

Roberto Barroso, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática).

16 Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, p. 185. 17 Luís Roberto Barroso, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática).

27

Deste modo resta como certo que a jurisdição constitucional vem como

garantia do sistema democrático. O Supremo Tribunal Federal, seu maior intérprete e

guardião da Constituição cidadã de 1988, é antes de mais nada o garantidor dos

direitos e garantias fundamentais cravados em clausulas pétreas na Magna Carta.

Deste modo deve agir de acordo com os princípios morais e éticos –segundo defende

Dworkin- ao julgarem deliberações vindas de outros poderes, sob pena de

corromperem o sistema e ao usurparem suas atribuições como na perspectiva de

Alexander Bickel, virem a comprometer a democracia e a legitimidade de sua

atuação.

3.3 - Fronteira entre direito e política

Antes de adentrar-se aos conceitos de direito e política e seus limites e

intersecções é mister que se ressalte que o direito é antes de mais nada produto da

política. O direito nasce do processo constituinte ou do processo legislativo, portanto,

vontade da maioria. Barroso inclusive elenca pontos que ilustram no que o direito se

aproxima da política:

“(i) sua criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituicao e nas leis;

(ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos;

(iii) juízes não são seres sem memoria e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia e, consequentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que formula.” BARROSO, Luís Roberto, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática), 2009, p. 13.

Por outro lado, o direito ao ser considerado em sua aplicação deve-se afastar

da política em nome do aclamado formalismo jurídico18. A jurisdição deverá devolver

ao jurisdicionado sua resposta a demanda de maneira imparcial e segundo o disposto

18 “O termo formalismo é empregado aqui para identificar posições que exerceram grande influência em todo o mundo, como a da Escola da Exegese, na França, a Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha, e o Formalismo Jurídico, nos Estados Unidos, cuja marca essencial era a da concepção mecanicista do direito, com ênfase na lógica formal e grande desconfiança em relação à interpretação judicial.” (BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª tiragem 2012, pág. 416)

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na lei, sem levar em consideração ponderações subjetivas e politicas sobre o objeto da

lide. Essa concepção formalista do fenômeno jurídico diz que direito não é política.

Inclusive, barroso aponta neste sentido que “Poucas críticas são mais desqualificantes

para uma decisão judicial do que a acusação de que é política e não jurídica”. Em

simetria às razões elencadas por Barroso para ilustrar a aproximação do direito com a

política, seguem as razões que ilustram o distanciamento destes em consonância com

o formalismo jurídico:

“Nessa linha, cabe reavivar que o juiz: (i) só deve agir em nome da Constituição e das leis, e não por vontade política própria; (ii) deve ser deferente para com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de validade das leis; (iii) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que exercer é representativo (i.e, emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão pela qual sua atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do possível.” BARROSO, Luís Roberto, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática), 2009, p 14.

Alinhando-se as duas abordagens acerca da fronteira entre direito e política

conclui-se que ambos são indissociáveis. O direito nasce da política, e ao mesmo

tempo essa está circunscrita aos valores e garantias fundamentais emanadas do

direito. A conservação e funcionamento do constitucionalismo democrático depende

muitas vezes da intervenção do Judiciário na esfera política. A fim de que o Judiciário

ao analisar os dissensos da sociedade possa invalidar uma deliberação que vá de

encontro aos princípios que regem nossa democracia, mesmo que isso signifique atuar

de modo contramajoritário por vezes.

3.4 – Poder Judiciário, capacidade institucional e releitura da Teorica Clássica

de Montesquieu

Conforme apontado ao longo desse estudo observamos que as sociedades do

mundo ocidental como um todo, inspiradas nos pensamentos de Locke e

Montesquieu, cada qual ao seu modo, aplicou a teoria da Separação dos Poderes na

constituição de suas Democracias. Neste sentido afirma Barroso:

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“A maior parte dos Estados democráticos do mundo se organizam em um modelo de separação de Poderes. As funções estatais de legislar (criar o direito positivo), administrar (concretizar o Direito e prestar serviços públicos) e julgar (aplicar o Direito nas hipóteses de conflito) são atribuídas a órgãos distintos, especializados e independentes.” BARROSO, Luís Roberto, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática), 2009, p.15.

Entretanto, resta por certo já a esta altura, que cada poder desempenha suas

funções típicas e atípicas. Ressalvando assim as rígidas fronteiras da Teoria Clássica,

e exercendo um controle mútuo, com o fito de evitar qualquer superposição entre as

funções do Estado. Nesta acepção “Legislativo, Executivo e Judiciário exercem um

controle recíproco sobre as atividades de cada um, de modo a impedir o surgimento

de instâncias hegemônicas19”.

Neste mesmo segmento, a teoria da capacidade institucional 20é aquela que

procura determinar qual é o poder que tem maior capacidade, está mais apto a

solucionar um problema ou realizar justiça no plano da realidade. A resposta que

temos encontrado ultimamente é a do poder Judiciário. Por outro lado é certo que

juízes não são especialistas em tudo. Determinadas questões que envolvem

conhecimento técnico ou especializado lhes excede a capacidade e por certo merecem

apreciação de outro segmentos do Poder Estatal mais qualificado para dar esta

resposta a sociedade. Contudo, é certo que o judiciário, especialmente no Brasil, é

aquele poder que guarda a competência para o pronunciamento definitivo.

Se por um lado o Judiciário é o poder com mais capacidade institucional entre

as funções típicas do Estado, por outro, ao observarmos o agente político por trás de

tal poder, o magistrado, veremos que este encontra certas limitações que devem ser

consideradas. O juiz, ao desempenhar o seu papel jurisdicional, está (ou deveria estar)

preocupado em atender o caso conforme a lei, a técnica, a idoneidade moral e a

razoabilidade, preocupando-se com a microjustiça do caso concreto. Nesta sequência,

resta claro que o magistrado não tem como medir os efeitos sistêmicos21 que tal

decisão poderá ter em todo um segmento econômico, ou viabilidade de prestação de

um serviço que esta confira novos contornos. Nesta perspectiva dispõe Barroso:

19 Luís Roberto Barroso, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática). 20 “capacidade institucional envolve a determinacao de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada material” Luís Roberto Barroso, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática). 21 Luís Roberto Barroso, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática)

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“Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados pode recomendar, em certos casos, uma posição de cautela e deferência por parte do Judiciário. [...] Tampouco é passível de responsabilização política por escolhas desastradas. Exemplo emblemático nessa matéria tem sido o setor de saúde. Ao lado de intervenções necessárias em matéria de medicamentos e terapias, que põe em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos.” BARROSO, Luís Roberto, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática), 2009, p. 16.

Em síntese, o fato de o Judiciário dispor de capacidade institucional para

responder em última instância aos dissensos sociais, aos conflitos entre poderes e

mesmo entre entes da Federação, não torna razoável que este deva exercer sempre tal

poder. Pois ao considerarmos os efeitos sistêmicos e repercussões que podem vir de

um ativismo exacerbado facilmente verifica-se o quão desastroso pode ser contornar o

processo político majoritário.

Não podemos olvidar, contudo, que é a Constituição que estabelece em:

“Art.2º: São Poderes da União22, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o

Executivo e o Judiciário” (Constituição Federal, 1988). É a mesma constituição que

elenca objetivos fundamentais da República Federativa em ao dispor:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Ao confrontarmos os dois artigos da Magna Carta podemos concluir que o

princípio da Tripartição dos Poderes pode ser relativizado haja visto que o Estado

pátrio definiu objetivos a serem alcançados e devem ser perseguidos senão por um

poder, pelo outro, haja visto que todos são integrantes de um mesmo poder uno. Os

riscos para a legitimidade democrática oriundos de um ativismo por parte do poder

Judiciário, cujos membros não são eleitos, se por um lado comprometem o equilíbrio

entre os Poderes, por outro fortalece a democracia na medida em que os magistrados

22 “Essas três funções, que se completam e se esgotam em extensão, são exercidas pelos órgãos estatais denominados Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário.” (Nelson Nery Junior, Constituição Federal Comentada e legislação comentada, 4ª edição).

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se apoiem somente na Constituição e nas leis - e o façam visando a tutela das

garantias fundamentais e não uma escalada desesperada ao poder a qualquer custo.

Logo, desde que pautado pelos objetivos do art. 3º da Magna Carta Federal

pátria e demais princípios constitucionais é possível dizer não apenas que o Judiciário

está agindo dentro de seus limites e respeitando as fronteiras entre os Poderes que

definem a nossa democracia, mas fortalecendo-a.

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CAPÍTULO 4 – Cortes Constitucionais versus Tribunais Superiores

Uma corte constitucional nos moldes das democracias europeias é aquela que

caracteriza-se por um órgão institucional que está a cargo do juízo responsável pela

conformação de leis e demais atos políticos com a Constituição. Esta não é órgão do

poder judiciário, outrossim situa-se ao lado deste e dos outros poderes no

organograma do Estado. O contencioso constitucional exerce uma jurisdição

concentrada e centralizada em um único Tribunal, segundo Louis Favoreu “as

questões constitucionais são de competência exclusiva de apenas um Tribunal, o qual

é especialmente designado para esta finalidade, cujas decisões tem força de coisa

julgada erga omnes”.

Considerando a separação de poderes, tratados como harmônicos e

independentes entre si, não poderia o Poder Judiciário anular, em abstrato, atos típicos

do Poder Legislativo. Por isso é que, em Estados que adotam o sistema de controle

abstrato de atos normativos, existe uma Corte Constitucional23 que não é órgão do

Poder Judiciário, única razão pela qual pode exercer o controle abstrato de atos dos

três poderes. Nesse sentido se posiciona o Ministro do Supremo Tribunal Federal

Celso de Mello:

“O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei - analisada sob tal perspectiva - constitui

23 “Kelsen defende, ardorosamente, o controle de constitucionalidade das leis pelo Tribunal

Constitucional, refutando as teses schmittianas de que assim a Justiça se politizaria e ficaria em perigo. Tanto o Tribunal Constitucional quanto o ordinário aplicam e geram Direito. Entretanto, este produz apenas normas individuais, enquanto aquele aplica a Constituição a um fato concreto de produção legislativa, podendo anular as leis inconstitucionais. O Tribunal Constitucional não gera, mas sim destrói uma norma geral, ou seja, age de modo contrário (actus contrarius) ao do Poder Legislativo, age como legislador negativo (Kelsen, Defensor, pp. 32/37). O exercício do poder é feito pelo Parlamento e pelo Governo e é desse embate que surgem as violações à Constituição, razão por que há vantagem em o Tribunal Constitucional ser o guardião da Constituição. Isto porque seria necessário um poder para resolver os conflitos entre Governo e Parlamento, poder esse realizado por órgão que nao tivesse participação no exercício do poder Executivo ou Legislativo, salvo o de controlar a constitucionalidade das leis. Essa seria a vantagem de o Tribunal Constitucional ser o guardião da Constituição, posto que desde o início ele não toma parte no exercício do poder e também não se encaixa no conflito entre Governo e Parlamento (Kelsen, Defensor, p. 54). Ao elaborar o anteprojeto que se converteu na Constituicao da Austria, Kelsen criou o sistema de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos por meio do Tribunal Constitucional, autônomo e independente relativamente aos três poderes do Estado.” (NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal Comentada e legislação comentada, 4ª edição. Comentários ao art. 102 da CF, ponto 4, p. 624).

33

postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes24.”

No Brasil, contudo, não há corte constitucional como nos moldes europeus.

Aqui o Supremo Tribunal Federal é, no organograma do Estado brasileiro, um órgão

do Poder Judiciário. E a Constituição Federal em seu art. 102, I prevê a competência

deste excelso tribunal para processar e julgar a ADIN (Ação Direto de

Inconstitucionalidade), ação que tem por objetivo o controle jurisdicional abstrato e

concentrado de atos normativos federais e estaduais contestados em face da

Constituição Federal, o que o assemelha, neste particular, às cortes constitucionais

europeias.

Neste mesmo diapasão, segundo os ensinamentos de Guilherme Pupe da

Nóbrega25:

“O STF, no Brasil, acumula as duas técnicas de controle de constitucionalidade consagradas pelos modelos europeus e americano: concentrado (abstrato) e difuso. Em decorrência deste perfil hibrido adotado, a Constituição reservou ao STF um feixe de competências, além de algumas estranhas ao próprio mecanismo de controle, que faz com que esse Tribunal tenha que conciliar duas funções: a de cúpula do poder Judiciário (funcionando como verdadeira Corte de Apelação, face à banalização de sua condição de instancia extraordinária) e a Corte Constitucional.” (Nóbrega, Guilherme Pupe da. O Supremo Tribunal Federal é uma Corte Constitucional?)

24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIN 2.075-MC Rel. Celso de Mello. Julg. 06.02.2011. Publ. DJ 27-06-2003 PP-00028 EMENT VOL-02116-02 PP-00251. Disponivel em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/778250/medida-cautelar-na-acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-mc-2075-rj. Acesso em: 9 de março de 2016. 25 Nóbrega, Guilherme Pupe da. O Supremo Tribunal Federal é uma Corte Constitucional? Parte II.

34

Por sua vez, o mestre da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

Nelson Nery Junior, advoga no sentido de ser o Supremo Tribunal Federal uma

legítima corte constitucional ao dispor que “no atual sistema constitucional brasileiro,

temos realmente uma Corte Constitucional Federal, consubstanciada no STF,

conclusão que se extrai da competência que o legislador constituinte conferiu àquela

corte de justiça.”. O doutrinador prossegue ao afirmar que:

“Verificamos, entretanto, que o perfil constitucional do nosso Tribunal Federal Constitucional não se nos afigura o melhor, porquanto não nos parece que o órgão do poder Judiciário possa apreciar, em último e definitivo grau, as questões constitucionais que lhe são submetidas de forma abstrata, cujos membros são nomeados pelo Presidente da República sem critério de proporcionalidade ou representatividade dos demais poderes.”

Constata-se pelo exposto que o nosso Supremo Tribunal Federal apresenta-se

como órgão com características próprias, assumindo uma forma híbrida que mescla

aspectos do modelo norte-americano, representado pelo sistema difuso de controle de

constitucionalidade, e do modelo europeu que apresenta-se em geral na forma de

sistema concentrado de controle de constitucionalidade, cujas cortes constitucionais

guardam atribuições muito bem definidas e exclusivas. Sendo assim nosso Supremo

Tribunal Federal, designado de Guardião da Constituição pelo art. 102 da Magna

Carta, não é nem Suprema Corte, tampouco Corte Constitucional. Outrossim, resta-

nos um modelo diferente que imprime natureza político-institucional autônoma e

própria ao órgão máximo do Poder Judiciário do Brasil.

35

CAPÍTULO 5 – Supremo Tribunal Federal e o Poder Legislativo: atualidades e

perspectivas

Como visto anteriormente, o STF não é apenas o órgão de cúpula do Poder

Judiciário, este também faz vezes de Corte Constitucional. Neste sentido afirma

veementemente o mestre Nelson de Nery 26“O STF é corte constitucional, intérprete

último e guardião da CF, exercendo essa função por meio do controle concentrado e

abstrato da constitucionalidade das leis e atos normativos.”. Seja como Corte

constitucional ou Suprema Corte, o que não resta dúvidas é que o STF tem se

agigantado nas últimas décadas de nossa Democracia. Neste sentido Barroso

disciplina:

“O segundo impulso natural é a expansão27. No caso brasileiro, esse movimento de ampliação do Poder Judiciário, particularmente do Supremo Tribunal Federal, tem sido contemporâneo da retração do legislativo, que passa por uma crise de funcionalidade e de representatividade. Nesse vácuo de poder, fruto da dificuldade de o Congresso Nacional formar maiorias consistentes e legislar, a corte suprema tem produzido decisões que podem ser reputadas ativistas [...] Ações como as que tratam da legitimidade da interrupção da gestação em caso de feto anencefálico 28 e da extensão do regime da união estável às uniões homoafetivas29 também envolvem uma atuação quase normativa do Supremo Tribunal Federal. Tudo sem mencionar a mudança jurispridencial em tema de mandado de injunção...” (BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 3ª edição 2011, 2ª tiragem 2012, p. 433)

5.1 O mandado de injunção

O mandado de injunção é previsto pela Constituição Federal em seu art. 5º,

LXXI. Sua função como remédio constitucional é assegurar o exercício de direitos e

garantias constitucionais ao sanar lacunas na lei, omissões do legislativo. É normal

que encontremos como objeto deste remédio diversas normas constitucionais de 26 NERY, Nelson, 2013, p. 196. 27 BARROSO, LuÍs Roberto, 2012, P. 433. 28 STF, ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio. 29 STF, ADPF 132, Rel. Min. Carlos Britto.

36

eficácia limitada. Uma vez que tais normas não produzem efeito até que o legislativo

edite lei dando trato ao tema. Contudo, se a tal omissão significar uma ameaça a

direitos e garantias constitucionais ou ainda prerrogativas inerentes à nacionalidade, à

soberania e à cidadania o indivíduo lesado poderá procurar auxilio da tutela

jurisdicional. Neste sentido dispõe Gilmar Mendes:

“Após essas considerações, deixou assente o Supremo Tribunal Federal que, consoante a sua própria natureza, o mandado de injunção destinava-se a garantir os direitos constitucionalmente assegurados, inclusive aqueles derivados da soberania popular, como o direito ao plesbicito, o direito ao sufrágio, a iniciativa legislativa popular (CF, art. 14, I, III), bem como os chamados direitos sociais (CF, art 6º), desde que o impetrante estivesse impedido de exercê-los em virtude da omissão do órgão legiferante.” (MENDES, Gilmar Ferreira et alli. Curso de Direito Constitucional. 7ª Edição, 2012, p. 1361)

Historicamente o STF entendia que o Mandado de Injunção era apenas uma

ferramenta para que se reconhecesse a mora do Poder legislativo em regulamentar a

norma constitucional. Entretanto, no ano de 2007 o STF mudou seu entendimento a

respeito do tema e passou a tomar uma posição mais concretista. Segundo essa nova

interpretação, na falta de norma regulamentadora, omissão do legislador, cabe ao

Tribunal editar o regulamento faltante para possibilitar a consecução dos direitos e

liberdades constitucionais. Min. Celso de Mello ainda aponta que a omissão deveria

ser entendida não só como ausência de normas, omissão absoluta, mas também a

omissão parcial, sendo esta observada quando há um cumprimento insatisfatório do

dever constitucional de legislar. Segue a íntegra do Acórdão30 do STF que decidiu

sobre o MI 670 relativo ao direito de greve dos servidores públicos:

MANDADO DE INJUNÇÃO. GARANTIA FUNDAMENTAL (CF, ART. 5º, INCISOLXXI). DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS (CF, ART. 37, INCISO VII). EVOLUÇÃO DO TEMA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). DEFINIÇÃO DOS PARÂMETROS DE COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL PARA APRECIAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL E DA JUSTIÇA ESTADUAL ATÉ A EDIÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PERTINENTE, NOS TERMOS DO ART. 37, VII, DACF. EM OBSERVÂNCIA AOS DITAMES DA SEGURANÇA JURÍDICA E À EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL NA INTERPRETAÇÃO DA OMISSÃO LEGISLATIVA SOBRE O DIREITO DE GREVE DOS

30 STF, DJ 6 nov. 2007, MI 670, Rel. Min. Maurício Corrêa.

37

SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS, FIXAÇÃO DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA QUE O CONGRESSO NACIONAL LEGISLE SOBRE A MATÉRIA. MANDADO DE INJUNÇÃO DEFERIDO PARA DETERMINAR A APLICAÇÃO DAS LEIS Nos7.701/1988 E 7.783/1989.

1. SINAIS DE EVOLUÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL DO MANDADO DE INJUNÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). 1.1. No julgamento do MI no 107/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 21.9.1990, o Plenário do STF consolidou entendimento que conferiu ao mandado de injunção os elementos operacionais: seguintes i) os direitos constitucionalmente garantidos por meio de mandado de injunção apresentam-se como direitos à expedição de um ato normativo, os quais, via de regra, não poderiam ser diretamente satisfeitos por meio de provimento jurisdicional do STF; ii) a decisão judicial que declara a existência de uma omissão inconstitucional constata, igualmente, a mora do órgão ou poder legiferante, insta-o a editar a norma requerida; iii) a omissão inconstitucional tanto pode referir-se a uma omissão total do legislador quanto a uma omissão parcial; iv) a decisão proferida em sede do controle abstrato de normas acerca da existência, ou não, de omissão é dotada de eficácia erga omnes, e não apresenta diferença significativa em relação a atos decisórios proferidos no contexto de mandado de injunção; iv) o STF possui competência constitucional para, na ação de mandado de injunção, determinar a suspensão de processos administrativos ou judiciais, com o intuito de assegurar ao interessado a possibilidade de ser contemplado por norma mais benéfica, ou que lhe assegure o direito constitucional invocado; v) por fim, esse plexo de poderes institucionais legitima que o STF determine a edição de outras medidas que garantam a posição do impetrante até a oportuna expedição de normas pelo legislador.

1.2. Apesar dos avanços proporcionados por essa construção jurisprudencial inicial, o STF flexibilizou a interpretação constitucional primeiramente fixada para conferir uma compreensão mais abrangente à garantia fundamental do mandado de injunção. A partir de uma série de precedentes, o Tribunal passou a admitir soluções "normativas" para a decisão judicial como alternativa legítima de tornar a proteção judicial efetiva (CF, art. 5o, XXXV). Precedentes: MI no 283, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.11.1991; MI no 232/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 27.

No momento em que decidiu por dar efeitos concretos ao Mandado de

injunção, deste modo suprindo a lacuna da norma a fim de proporcionar o efetivo

exercício dos direitos e liberdades constitucionais, o STF inovou sua jurisprudência

ao mudar seu entendimento de até então. À vista disso, o Tribunal acabou por

expandir o seu âmbito de atuação, e passou a realizar uma função tradicionalmente

própria do Legislativo, a de criar normas que conduzirão a vida em sociedade.

Contudo, ressalvadas as devidas ponderações, o fato de o STF exercer uma

função eminentemente política, não implica que o Tribunal tenha violado

38

necessariamente o princípio da separação dos poderes e a seus corolários da

independência e harmonia. Significativa parte da doutrina defende que ao conferir

efeitos concretos ao MI a Corte Constitucional não fez mais do que seguir o disposto

na própria Magna Carta. Deste modo, dando efetividade a um instrumento de

proteção previsto para produzir efeitos práticos, assegurando o pleno exercício dos

direitos e liberdades constitucionais.

5.2. A faixa cinza entre o STF e o legislativo nacional

O processo cada vez mais intenso de judicialização que experimentamos hoje

é uma realidade decorrente do modelo de Constituição analítica e do sistema de

controle de constitucionalidade que adotamos. Este modelo trouxe a possibilidade de

abarcarmos na seara de discussões judiciais grandes dissensos morais e políticos da

sociedade brasileira. Por outro lado, o ativismo judicial é fruto de outros fatores

conjecturais que envolvem não apenas as lacunas do Legislativo pátrio, mas uma

descrença progressiva do povo no processo legislativo que enfrenta forte crise de

representatividade.

Enfrenta-se também a falta de celeridade do Poder Legislativo em responder

aos grandes dissensos da sociedade brasileira. Fatos sociais e anseios que estão na

pauta do dia acabam por não encontrar a resposta que necessitam no congresso e

recorrem aos outros Poderes da República. Neste sentido dispôs o Ministro do

Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes em seu voto no julgamento cujo objeto era

a equiparação de direitos dos casais homossexuais aos heterossexuais, dizendo:

“Estamos aqui falando de direitos constitucionais básicos. Estamos a falar de dignidade de indivíduos. Se o judiciário é chamado para fazer algo que o setor político não faz, é obvio que devemos dar uma resposta positiva, mas me limito a reconhecer a existência dessa união, por aplicação analógica do texto constitucional, sem me pronunciar sobre outros desdobramentos31.”

Um caso mais recente é polêmica gerada pelo processo de impeachment da

presidenta Dilma Rousseff. A proposta inicial do julgamento do ADPF 378 e objetivo

do STF era analisar a compatibilidade do rito de impeachment de Presidente da 31 STF, julgamento conjunto da ADIN 4277 e ADPF 132.

39

República previsto na Lei n.1.079/1950 com a Constituição de 1988. A Suprema

Corte acabou por definir o rito para o processo de impeachment, uma atribuição que

em teoria deveria ser desempenhada pelo Poder Legislativo, por tratar-se de rito afeto

as atribuições desta esfera do poder Estatal. O STF decidiu que candidatos não podem

lançar candidaturas avulsas para fazer parte da comissão especial, devendo esta ser

composta apenas por parlamentares indicados pelos líderes partidários. O Supremo

também determinou que que a eleição da comissão de impeachment só poderia ser

feita em voto aberto e que o Senado tem o poder para rejeitar e arquivar o processo.

Esta atuação do STF foi tomado por muitos como arbitrário e um ataque ao

Legislativo, uma vez que o órgão de cúpula do judiciário teria desrespeitado a

separação entre os poderes. Neste contexto o Min. Luís Roberto Barroso defende a

atuação da Corte e ressalta aspectos acerca do papel do STF na definição do rito de

impeachment32:

ADPF 378 . PROCESSO DE IMPEACHMENT. DEFINIÇÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RITO PREVISTO NA LEI Nº 1.079/1950 ANOTAÇÕES PARA O VOTO ORAL DO MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO STF NA DEFINIÇÃO DO RITO DO IMPEACHMENT

1. Trata-se de ação de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de concessão de medida cautelar, ajuizada pelo Partido Comunista do Brasil, objetivando o reconhecimento da ilegitimidade constitucional de dispositivos e interpretações da Lei n. 1.079, de 1950 (a “Lei de Crimes de Responsabilidade”), assim como da legitimidade constitucional de outros dispositivos integrantes do mesmo diploma legal.

2. A ação pede a adoção de várias providências, sob o argumento de que seriam necessárias para sanar as lesões a preceitos fundamentais da Constituição Federal, decorrentes da manutenção na ordem jurídica de textos normativos e interpretações que regulam o 8 processo de impeachment do Presidente da República de modo incompatível com o texto constitucional vigente. Em outras palavras, o propósito da ADPF é a realização de uma filtragem constitucional da Lei n. 1.079/1950, de modo a tornar claro e estreme de dúvida quais de suas normas se mantêm em vigor e quais foram revogadas, bem como a forma pela qual as remanescentes devem ser interpretadas.

3. Antes de enfrentar, um a um, os pedidos cautelares formulados, entendo relevante que se fixe o contexto e o alcance da presente ADPF. A Constituição Federal exige lei específica para dispor sobre o rito do impeachment, lei esta que jamais veio a ser editada. No passado, mas já sob a égide da Carta de 1988, o Supremo foi chamado a manifestar-se sobre as normas aplicáveis ao processo de impedimento

32 STF, julgamento do ADPF 378, anotações para o voto oral do Min. Luís Roberto Barroso.

40

do então Presidente Fernando Collor de Mello. Assentou, na oportunidade, a recepção da Lei n. 1.079/1950, na sua maior parte, pela atual Constituição, e produziu uma síntese do procedimento a ser aplicado. Contudo, nem todas as disposições da lei foram filtradas à luz da nova ordem constitucional.

4. Nesse contexto, remanesce manifesta insegurança sobre o rito aplicável ao processo de impedimento da atual Chefe do Executivo federal, Presidente Dilma Rousseff. Tanto é assim que ao menos cinco mandados de segurança já foram impetrados sobre o assunto e alguns tiveram liminares deferidas pelo Supremo, sem que o feito tenha sequer ultrapassado sua fase inicial 33. A permanecer o atual estado de coisas, tal processo será objeto de múltiplas ações, decididas de forma pontual, casuística e assistemática, em evidente prejuízo à segurança jurídica. A discussão se alongará, agravando o já dramático quadro político e econômico. Daí a necessidade de intervenção desta Corte.

5. Antigas e novas questões se apresentam nesta ADPF. No meu voto, em relação às matérias que já tiverem sido apreciadas pelo STF, defenderei a manutenção do entendimento desta Casa, salvo alterações pontuais para adequação a normas editadas posteriormente, de modo a salvaguardar a segurança jurídica e a confiança suscitada nos atores políticos em relação ao procedimento aplicável. Já quanto às questões inéditas, ainda pendentes de apreciação, buscarei preservar, tanto quanto possível, o rito aplicado ao impeachment do ex-Presidente Collor, assim como adotarei uma postura de autocontenção, prestigiando a legítima margem de apreciação do Congresso Nacional sobre matérias interna corporis, desde que não haja conflito com a Constituição e a lei especial.

6. Entendo que o papel do Supremo Tribunal Federal neste processo é o de assegurar que ele transcorra de forma regular e legítima e em respeito às regras do jogo. Para tanto, deve-se definir, com clareza, o rito aplicável ao impeachment. Desse modo, evita-se que cada incidente e etapa de sua concretização seja judicializado, o que atravancaria o curso do julgamento e aumentaria a instabilidade política, econômica e social no país. Este é o alcance deste feito e objetivo do voto que proferirei.

Vive-se no Brasil uma quadro de profunda instabilidade política, e isso é

inegável. Um reflexo deste contexto é facilmente percebido ao observar a

controvérsia quanto ao rito do processo de impeachment da presidenta Dilma

Rousseff cujo desfecho do julgamento deu-se no mês de março de 2016, que teve

como relator o min. Luís Barroso. No dia 8 de março o STF publicou o acórdão,

seguido dos embargos de declaração da Câmara que analisados na quarta-feira, dia 16

de março, foram negados. Por 9 votos a 2, o STF entendeu que não havia obscuridade,

omissão ou contradição na decisão de seus ministro, prerrogativas para apreciar o

embargo de declaração.

33 MS 33.838 MC, Rel. Min. Rosa Weber, j. 13.10.2015; MS 33.837, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 12.10.2015, MS 33.920, Rel. Min. Celso de Mello, j. 03.12.2015, MS 33.920, Rel. Min. Celso de Mello, j. 03.12.2015; MS 33921 MC, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 03.12.2015.

41

A grande questão, que encontra desacordo mesmo na ampla doutrina, é se esta

atuação do Poder Judiciário tem sido legítima como fruto de uma judicialização

natural, decorrente do processo de constitucionalização. E sua atuação é pautada pelos

ditames constitucionais a fim de sanar a falta de um poder Legislativo flagrantemente

em crise. Ou se por outro lado nossos juízes e ministros tem agido ao arrepio de suas

atribuições e ocupado um espaço cada vez mais amplo nas grandes decisões políticas

de nossa sociedade. Espaço esse que cresce a cada dia e na medida em que se expande

põe em risco não apenas a divisão dos poderes, mas a própria democracia em si.

“O ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma politica. E essa não poder ser feita por juízes34.”

34 BARROSO, Luís Roberto, (Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática), 2008, p. 19.)

42

CONCLUSÃO

É certo que a trajetória histórica da Separação dos Poderes e os próprios

fatores que desencadearam o seu nascimento não permitiriam o acúmulo de funções

diversas em um mesmo poder, sob pena de implosão de sua própria sistemática de

aplicação, fundada no “Checks and Balances System”. Contudo, a sociedade

contemporânea não é mais a mesma que fez nascer o Estado Liberal, lastreado pelo

princípio da Separação de Poderes como protetor fundamental das liberdades

individuas. Com o advento do Estado Democrático de Direito vieram os direitos

difusos, transindividuais e coletivos, direitos de terceira geração abarcados pela

Constituição Cidadã de 1988 que também trouxe os mecanismo para assegurar que

tais direitos fossem efetivados.

Se por um lado temos aqueles que defendem uma judicialização lastreada pelo

processo de constitucionalização como um instrumento agregador ao processo

democrático. E consideram o alargamento das atribuições do Supremo Tribunal

Federal como uma resposta à crise das instituições democráticas. Por outro, existem

aqueles que enxergam no Judiciário atual um exacerbado ativismo que mina a

Democracia com seu autoritarismo ao desrespeitar o Princípio da Divisão dos

Poderes, invadindo a competência alheia e fazendo vezes de legislador. Suscita-se

ainda o risco sistêmico que um juiz pode causar ao julgar uma causa com efeitos

manifestamente políticos, podendo vir a desestruturar toda uma economia ou

dinâmica social existente.

Em verdade um dos fatores por trás deste ativismo judicial é a insatisfação da

população para com os seus representantes. Essa crise de representatividade e forte

demonização da política majoritária tem feito o povo buscar um herói quase que

apolítico, e não são poucos os segmentos que tem depositado sua fé de mudança e

combate a corrupção no poder judiciário e outras instituições, como o Ministério

Público e a Polícia Federal. Este é um movimento perigoso que temos trilhado e a

gravidade da conjuntura em que estamos vivendo fica evidente quando temos um juiz

de primeira instância que tem acesso a grampos telefônicos envolvendo a presidência

da República, Ministros da alta cúpula de governo e do Supremo Tribunal Federal

mostrando um trabalho conjunto com a própria polícia federal para se fazer a justiça a

todo custo.

43

Antes de mais nada temos que traçar prioridades e ver que se há algo mais

importante do que “fazer justiça” ou combater a corrupção é preservar a democracia.

Devemos lembrar que as instituições brasileiras tem uma histórica, e uma história de

uso arbitrário de suas atribuições. A constituição ainda é um projeto em pauta a ser

empregado e hoje mais do que nunca observamos uma crise institucional provocada

por setores que buscam paralisar o Estado devido a desacordos políticos. Gerando

ingovernabilidade e agravando não só a crise política que reflete na economia, como

também a crise da democracia representativa em si.

A atuação do Judiciário como um todo é de fundamental importância para a

consecução da proposta da Carta Cidadã de 1988, contudo esta deve ser sempre

pautada pelos princípios da Constituição Federal, e a esta servir. Contudo, a atuação

exagerada e uso exacerbado de suas atribuições tem efeito reverso, e por vezes

acabam contribuindo para o agravamento do quadro de instabilidade e sobressalto

paralisante o que prejudica todo diálogo. Como o mestre Luís Roberto Barroso disse:

“Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.”.

Deve-se fortalecer a democracia e se para isso significar em algum momento

uma atuação mais austera da Corte Constitucional, ou em outro de uma represália a

um ativismo antidemocrático e arbitrário de um magistrado local. Que assim seja,

desde que o caminho seja em direção a um ambiente de fortalecimento das

instituições democráticas. Para que por fim se possa erguer uma sociedade que luta

contra a corrupção e se identifica com seus representantes, mas sem deixar de lado o

respeito os princípios constitucionais, as instituições democráticas, as liberdades

individuais e os direitos e garantias do cidadão.

44

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