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1
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
ANA BEATRIZ ARENA
CONSTRUCIONALIZAO DO CONECTOR DA QUE EM PERSPECTIVA
FUNCIONAL CENTRADA NO USO
NITERI
2015
2
ANA BEATRIZ ARENA
CONSTRUCIONALIZAO DO CONECTOR DA QUE EM PERSPECTIVA
FUNCIONAL CENTRADA NO USO
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Estudos de Linguagem da Universidade Federal
Fluminense, como parte dos requisitos necessrios obteno do
ttulo de Doutor em Estudos de Linguagem. rea de
concentrao: Lingustica.
ORIENTADORA: Profa. Dr
a. MARIANGELA RIOS DE OLIVEIRA
NITERI
2015
3
ANA BEATRIZ ARENA
CONSTRUCIONALIZAO DO CONECTOR DA QUE EM PERSPECTIVA
FUNCIONAL CENTRADA NO USO
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Estudos de Linguagem da Universidade Federal
Fluminense, como parte dos requisitos necessrios obteno do
ttulo de Doutor em Estudos de Linguagem. rea de
concentrao: Lingustica.
Aprovada em 9 de maro de 2015.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________
Profa. Dr
a. MARIANGELA RIOS DE OLIVEIRA Orientadora
UFF
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Ivo da Costa do Rosrio
UFF
_________________________________________________________________ Prof
a. Dr
a. Maria Clia Lima-Hernandes
USP
_________________________________________________________________ Prof. Dr. Jos Carlos de Azeredo
UFRJ/UERJ
_________________________________________________________________ Prof
a. Dr
a. Priscilla Mouta Marques
UFRJ
_________________________________________________________________ Prof
a. Dr
a. Lygia Maria Gonalves Trouche Suplente
UFF
_________________________________________________________________ Prof. Dr. Diogo Pinheiro Suplente
UFRJ
4
Aos meus pais, Elza e Orlando (in memoriam), pelo amor
incondicional e eterno incentivo. Aos meus irmos,
Guilherme, Angela e Jos Roberto, pelo carinho,
acompanhamento e dedicao nos momentos mais difceis.
5
AGRADECIMENTOS
Aos espritos de luz que instrumentalizaram o Dr. Fulvio Toshio
Hara, permitindo-lhe devolver minha vida saudvel.
professora e orientadora Mariangela Rios de Oliveira, por sua
competncia, carinho e amizade ao longo de tantos anos.
Aos membros titulares e suplentes desta banca, que gentilmente
aceitaram participar deste momento to importante de minha
vida acadmica, bem como a todos os meus professores de
Mestrado e Doutorado.
Direo da Escola Municipal Debora Mendes de Moraes, por
compreender a importncia desta etapa acadmica.
Ao amigo Ivo da Costa do Rosrio, por seu saber instigante, que
me estimula a aprender sempre mais.
s amigas Alexsandra Ferreira, Ana Cludia Machado Teixeira,
Milena Aguiar e Rossana Rocha, pelas trocas de saberes que
tanto enriqueceram meu trabalho.
A todo o Grupo D&G-UFF, por tantos momentos de estudo e de
prazer inestimveis.
s amigas Paula Solano e Mnica Amim, pelo carinho e apoio
sempre e pela ajuda com a formatao da tese.
Ao amigo Reinaldo Souza Santos, pelo incentivo e auxlio com
os dados estatsticos.
A todos os meus amigos e amigas, por compreenderem minha
ausncia nos ltimos anos.
minha famlia, por acompanhar minha rota de evoluo e
estar ao meu lado em todos os momentos.
A todos vocs, muito obrigada!
6
EPGRAFE
A leitura do mundo precede a leitura da palavra, da que
a posterior leitura desta no possa prescindir da
continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade
se prendem dinamicamente. A compreenso do texto a ser
alcanada por sua leitura crtica implica a percepo das
relaes entre o texto e o contexto.
Paulo Freire, 1983
7
SUMRIO
INTRODUO 12
1 PERFIL ETIMOLGICO DE DA E QUE 16
2 REVISO DA LITERATURA: CONECTORES TEXTUAIS 19
2.1 PERSPECTIVA DA TRADIO GRAMATICAL 21
2.2 A DESCRIO PROPOSTA POR AZEREDO (2008) E 28
VILELA E KOCH (2001)
2.3 A PERSPECTIVA LINGUSTICA 35
3 PRESSUPOSTOS TERICOS 51
3.1 LINGUSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO 52
3.2 GRAMTICA DE CONSTRUES: O MODELO DE 61
CROFT (2001)
3.3 GRAMATICALIZAO DE CONTEXTOS: O MODELO DE 69
DIEWALD (2006)
3.4 A PERSPECTIVA CONSTRUCIONAL DE TRAUGOTT E 72
TROUSDALE (2013)
4 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS 88
4.1 FORMAO DO CORPUS DE PESQUISA 90
4.2 COLETA E ORGANIZAO DOS DADOS 90
4.3 ANLISE DE DADOS E REDAO DA TESE 96
5 ANLISE DE DADOS 100
5.1 CONTEXTOS ATPICO E CRTICO: OS MICROPASSOS 103
DA MUDANA
5.2 CONTEXTO DE ISOLAMENTO: CONSTRUCIONALIZAO 143
DO DA QUE
8
6. CONSIDERAES FINAIS 169
7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 175
8. ANEXOS 182
8.1 ENDEREOS E PERFIS DOS CORPORA ONLINE 182
8.2. CONTEXTOS ATPICOS E CRTICOS E DE ISOLAMENTO, 184
POR SEQUNCIAS TIPOLGICAS E GNEROS TEXTUAIS
8.3 OCORRNCIAS DE VERBOS E LOCUES VERBAIS: 185
CONTEXTO ATPICO.
8.4 OCORRNCIAS DE VERBOS E LOCUES VERBAIS: 186
CONTEXTO CRTICO.
9
LISTA DE QUADROS
Quadro 1. Definio de conjuno e classificao das consecutivas e conclusivas 22
Quadro 2. Semelhanas entre os nveis hierrquicos de Traugott (2008a) e 56
Croft (2001)
Quadro 3. Tipos de contextos em gramaticalizao como construes 69
Quadro 4. Correlao entre os micropassos da mudana e os estgios 76
de gramaticalizao de contextos.
Quadro 5. Grau de esquematicidade e caractersticas dos contextos iniciais 142
Quadro 6. Quadro sinptico dos contextos atpico, crtico e de isolamento 170
LISTA DE ESQUEMAS
Esquema 1. Rede taxonmica construcional das locues conjuntivas 67
Esquema 2. Estgios da construcionalizao do conector lgico-argumentativo 171
da que
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Nveis de esquematicidade construcional 57
Figura 2. A estrutura simblica de uma construo 62
Figura 3. Pareamento forma-significado do conector lgico-argumentativo da que 64
Figura 4. Cline de dependncia entre as pores textuais articuladas pelo da que 151
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Ocorrncias em contextos atpico, crtico e de isolamento e respectivas 100
frequncias totais por tipo de contexto e sculo
Tabela 2. Ocorrncias e respectivas frequncias de contextos atpico e crtico em 104
estrutura oracional, por sequncias tipolgicas e sculos
Tabela 3. Distribuio de da que por sequncia tipolgica e por sculo 152
Tabela 4. Nmero de ocorrncias dos padres de uso de da que segundo 153
sequncias tipolgicas
Tabela 5. Frequncia token de da que na expresso de consequncia e concluso, 159
em articulao intrafrsica e interfrsica, por sequncias tipolgicas
Tabela 6. Contextos atpicos e crticos e de isolamento, por sequncias tipolgicas 159
e gneros textuais
10
RESUMO
Na presente tese, investiga-se a rota de construcionalizao de da que em funo conectora.
Com base nos pressupostos tericos da Lingustica Funcional Centrada no Uso (LFCU),
numa perspectiva dialgica entre Gramtica de Construes, Gramaticalizao de
Construes e a abordagem construcional de Traugott & Trousdale (2013), entendem-se
construes como o pareamento forma-sentido de duas ou mais palavras. Compem o
corpus textos escritos a partir do sculo XVII at a sincronia contempornea (sculos XX e
XXI) da lngua portuguesa. Adotando-se metodologia pancrnica, prope-se que usos em
estruturas oracionais complexas, como da se infere que e Conclui-se da que, configurem-
se, diacronicamente, como a gnese do conector da que. Sincronicamente, aps passar por
mudanas construcionais, nosso objeto de estudo se consolida como conector lgico-
argumentativo, verificando-se perda de fronteira e de composicionalidade de seus
componentes: A leitura do mundo precede a leitura da palavra, da que a posterior leitura
desta no pode prescindir da continuidade da leitura daquele (Paulo Freire, 19811).
Assumimos que relaes metonmicas, presses pragmtico-discursivas, inferncias
sugeridas e subjetificao e intersubjetificao gradativas so fatores cruciais para o
processo de construcionalizao gramatical de da que como conector lgico argumentativo,
articulando relaes de consequncia e concluso. Aps extensas anlises, pode-se
confirmar a tese de que o conector da que um novo type no esquema [X-que], cujos
padres sinttico-semnticos e pragmtico-discursivos se forjaram em seus contextos de
mudana.
Palavras-chave Da que; Construcionalizao; Lingustica Funcional Centrada no Uso
1 Trabalho apresentado na abertura no Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, novembro, 1981.
11
ABSTRACT
In this thesis, we research the route of the constructionalization da que in a connective
function. Based on the assumptions of Usage Based Grammar theory, in a dialogical
perspective of construction grammar, grammaticalization of constructions and Traugott &
Trousdale (2013)s constructional approach, we understand constructions as the form-
meaning pairing of two or more words. The corpus is formed of Portuguese written texts from
the 17th
to the 21st centuries. By means of panchronic methodology, we propose that,
diachronically, uses in complex sentences, as da se infere que and Conclui-se da que, are the
genesis of da que as a connective. In a synchronic dimension, after successive constructional
changes, our object of study arises as an argumentative connective, and its components are no
more compositional: A leitura do mundo precede a leitura da palavra, da que a posterior
leitura desta no pode prescindir da continuidade da leitura daquele (Paulo Freire). We
assume that metonymic relations, pragmatic and discursive pressures, invited inferences and
gradual subjectification and (inter)subjectification are crucial factors in the process of
grammatical constructionalization of da que as a logical-argumentative connective, linking
onsequence and conclusion relations. After extensive data analysis, we can confirm our thesis
that da que connector is a new type in the schema [X-que], and its syntactic-semantic and
pragmatic-discursive patterns were raised in its changing contexts.
Key words Da que; Constructionalization; Usage-based Grammar Theory
12
INTRODUO
Desde que iniciamos os estudos de ps-graduao, as questes lingusticas envolvendo
a formao de conectores tm-nos despertado profundo interesse. No mestrado (Arena, 2008),
com base na teoria funcionalista de orientao norte-americana, apresentamos estudo sobre a
multifuncionalidade e a polissemia do ento, enfocando sua trajetria de gramaticalizao,
passando de advrbio a operador argumentativo de concluso. Nesta tese de doutorado,
ampliamos o olhar sobre conectores e um novo objeto de estudo tornou-se alvo do nosso
interesse: a microconstruo da que. Trata-se de novo objeto por ser no s uma expresso
diferente da anterior, com distintos padres de uso, mas tambm, conforme indicam os
corpora pesquisados e os dados coletados, uma expresso lingustica de uso bastante recente,
da qual s encontramos registro a partir da segunda metade do sculo XX.
Portanto, embora voltemos a tratar sobre conectores, a abordagem se d de forma
renovada, ampliada e aprofundada, suscitando duas questes:
1. Quais as motivaes para o surgimento do conector lgico-argumentativo da que?
2. Que relao essas motivaes tm com seus padres de uso?
Por esta ser uma estrutura complexa, exige que as mais recentes pesquisas e
publicaes relativas investigao da lngua em uso estejam na linha de frente desta tese,
como o caso da Lingustica Funcional Centrada no Uso (LFCU), que ancora todo este
estudo.
Ao longo dos ltimos quatro anos, profcuas discusses entre os membros do Grupo de
Estudos Discurso e Gramtica da Universidade Federal Fluminense (D&G-UFF) trouxeram
luz estudos sobre Gramaticalizao de Construes (Traugott, 2012; Bybee, 2009; Diewald,
2006) e Gramtica de Construes (Croft, 2001), alm da mais recente abordagem de
Traugott e Trousdale (2013) sobre mudanas construcionais e construcionalizao, esteios
tericos da LFCU. So perspectivas que consideram o uso lingustico e tm embasado as
13
pesquisas do grupo, incentivando o desenvolvimento de diferentes metodologias.
Apropriamo-nos, cada vez mais, da riqueza dos dados de uso real, e as anlises levam em
conta fatores morfossintticos, semnticos e pragmtico-discursivos em diferentes contextos
de mudana. Segundo Diewald (2006), as mudanas se do em trs estgios, ordenados
cronologicamente. O primeiro, atpico, caracteriza-se pelas implicaturas conversacionais; o
segundo considerado crtico, porque dispara o gatilho para a gramaticalizao e depois
desaparece, quando o terceiro, de isolamento, consolida o processo de gramaticalizao.
Uma vez que pesquisadores funcionalistas passaram a se dedicar mais intensamente ao
estudo da gramaticalizao de elementos no atmicos, a abordagem cognitivista no que se
refere pesquisa de construes veio se somar teoria da gramaticalizao. De fundamental
importncia para o desenvolvimento desta tese, so os pressupostos de Croft (2001), de
orientao cognitivo-funcional. O linguista prope um modelo de anlise construcional
baseado no uso, de forma contextualizada, pareando forma (propriedades sintticas,
morfolgicas e fonolgicas) e significado (propriedades semnticas, pragmticas e discursivo-
funcionais).
No entanto, no estamos diante de uma simples fuso de disciplinas, ou apenas dando
perspectiva histrica para a gramtica de construes. A investigao da gradincia
sincrnica, ao lado do estudo diacrnico, que flagra gradualmente os micropassos da mudana
lingustica, aponta para uma abordagem mais abrangente do desenvolvimento de funes
gramaticais: a construcionalizao. Segundo Traugott e Trousdale (2013), construcionalizao
a criao de (combinaes de) signos com formanova-significadonovo. Ela forma novos ns
(types), os quais apresentam nova sintaxe ou morfologia e novo significado codificado, na
rede lingustica de uma populao de falantes.
Portanto, com base nessa perspectiva terico-metodolgica, formulamos a seguinte
tese para o objeto de estudo desta tese: o conector da que um novo type no esquema [X-
que], cujos padres sinttico-semnticos e pragmtico-discursivos se forjaram em seus
contextos de mudana.
Como hiptese central, pressupomos que, as mudanas tenham se dado de forma
gradativa, em contextos em gramaticalizao, nos quais presses contextuais, pragmtico-
discursivas e metonmicas motivaram neoanlises de da e que em seus usos composicionais,
propiciando a construcionalizao do conector lgico-argumentativo da que. Com base nesta,
levantamos duas outras hipteses:
14
1) os contextos atpico e crtico e de isolamento configuram-se como a rota evolutiva de da
que;
2) sequncias tipolgicas e gneros textuais nos quais se expressem relaes de causalidade
exercem importantes presses contextuais sobre da que.
Para que tais hipteses possam ser testadas e os achados as confirmem, ou no,
traamos um objetivo geral: investigar o processo de mudana lingustica que leva
construcionalizao de da que como conector, considerando-se estudos relacionados
construcionalizao gramatical, com base na LFCU, em abordagem pancrnica. Assim, ao
longo de cada captulo, o objetivo geral desdobrado em objetivos especficos.
No captulo 1, apresentamos brevemente o perfil etimolgico da preposio de, do
pronome adverbial locativo da e da conjuno integrante que, com o intuito de demonstrar
como, de forma mais direta, ou mais indireta, apresentam condies de participar de um
processo de mudana lingustica que envolva movimento transferencial.
O captulo 2 uma reviso da literatura sobre conectores. Nele, dissertamos sobre
obras que tratam o tema, desde uma perspectiva normativa, tradicional, a uma abordagem
lingustica. Considerar tantos compndios e estudos caros lngua portuguesa objetiva
ampliar nosso olhar para o que buscamos descrever na presente tese e nos levar a conhecer
mais e melhor o objeto que aqui estudamos. Ao longo do captulo, estabelecemos relao
entre a literatura existente e o que propomos para o da que, delineando seu perfil, que se
caracteriza por ambiguidades sinttico-semnticas e pragmtico-discursivas. Em face de sua
vocao para conectar relaes mais factuais ou mais inferenciais, caracterizamos da que
como conector lgico-argumentativo.
No captulo 3, discorremos sobre os pressupostos tericos que fundamentam esta
pesquisa. Na seo 3.1, apresentamos a LFCU e detalhamos sua abrangncia, considerando
obras de cunho funcionalista, como as de Traugott (2008a e 2010b), sobre gradualidade e
gradincia em gramaticalizao, e as de Bybee (2010 e 2013), j apontando para uma
interface com o cognitivismo, alm de obras de cunho cognitivista, como a de Croft (2001),
que caracteriza as estruturas gramaticais supostamente representadas na mente do falante. Nas
sees que seguem, detalhamos cada modelo que seguimos. Em 3.2, apresentamos o modelo
de Croft e a estrutura simblica de uma construo, com pareamento forma (propriedades
sintticas, morfolgicas e fonolgicas) e significado (propriedades semnticas, pragmticas e
discursivo-funcionais). Em 3.3, o modelo de Diewald, com a caracterizao dos contextos
atpico, crtico e de isolamento. Por fim, em 3.4, dissertamos sobre o modelo terico de
15
Traugott e Trousdale (2013), conhecido como construcionalizao. Trata-se de perspectiva
para a qual convergem todas as outras, por propiciar que se enfoquem os passos graduais
envolvidos no surgimento das construes.
O captulo 4 apresenta o corpus formado para esta pesquisa, composto de textos
escritos coletados de fontes virtuais, como corpora histricos ou portais de domnio pblico, e
tambm os procedimentos metodolgicos para empreender a redao do texto e a anlise de
dados.
No captulo 5, procedemos anlise de dados. Por se tratar de pesquisa pancrnica,
dividimos em duas sees: na seo 5.1, analisamos os dados relativos aos contextos atpico e
crtico, na dimenso diacrnica. So interpretados os fatores pragmtico-discursivos e
sinttico-semnticos de cada instanciao apresentada, com vistas a destacar as mudanas
construcionais verificadas em cada estgio de mudana. Na seo 5.2, consideramos a
dimenso sincrnica, e nos detemos no contexto de isolamento, com o objetivo de detalhar os
padres de uso de da que j construcionalizado como conector lgico-argumentativo.
No captulo 6, fazemos as consideraes finais, em que sintetizamos os aspectos mais
importantes do trabalho desenvolvido. Destacamos a relevncia do presente estudo e
apontamos a necessidade de maior aprofundamento na pesquisa que aqui apenas iniciamos. O
conector da que merece estudo inserido na rede construcional a que pertence: o esquema [X-
que].
Por fim, apresentamos as referncias bibliogrficas e os anexos.
Passamos, a seguir, para o desenvolvimento da tese propriamente dita, esperando
contribuir para os estudos que tm como foco a lngua em uso.
16
1 PERFIL ETIMOLGICO DE DA E QUE:
Por motivaes pragmtico-discursivas e sinttico-semnticas, alvos de investigao
ao longo desta tese, o conector da que apresenta, em sua formao, trs elementos que,
conforme a tradio gramatical e considerando-se seus usos cannicos, classificam-se
morfologicamente como preposio de; advrbio locativo2 a; e conjuno integrante que.
Leoni (1858), na terceira parte de um estudo extenso sobre a lngua portuguesa, trata
das preposies. O autor apresenta as propriedades da preposio de, das quais destacamos as
que seguem:
DE
a mesma preposio que a latina de, a qual denota: movimento de um ponto de
partida, como o da pedra que despenhada do cume do monte rola pela encosta, pela
falda, pela plancie, e no se sabe quando e onde ha de parar. D'esta primitiva ida,
que a mesma, que a de afastamento, provm naturalmente a de diminuio,
privao e falta. A ida de movimento offerece a de modo, e esta a de meio. Da ida de movimento de um ponto de partida nasce tambem a de logar e parte
d'onde e a de origem e principio donde alguma coisa vem, ou procede. D'esta
ultima ida se deprehende a de causa. (...) (Leoni, 1858:44-45)
Como se pode verificar, a preposio de est, etimologicamente, vinculada
semntica de movimento a partir de um ponto de origem; nos usos mais lexicais, esse
movimento pode ser a partir de um ponto fsico, enquanto, nos contextos mais abstratos, essa
origem pode ser entendida como causa. Trata-se de semntica muito importante para as
hipteses que levantamos a respeito do conector da que, o qual, possivelmente, inscreve-se
em relaes de causalidade, na expresso de resultado, consequncia.
Em seguida, o foco recai no uso metaforizado do a, como elemento anafrico,
recuperador de pores do texto, em funo ditica textual, ou como um articulador de partes
2 Seguimos classificao de Cmara Jr. (1979).
17
do texto, em funo gramatical. Mesmo os dados coletados em textos mais antigos apontam
para a confirmao do que Braga e Paiva (2012) e Souza (2012) demonstram em seus estudos:
trata-se de um elemento polissmico e multifuncional, ora em funo textual anafrica, ora
em funo juntora intraoracional ou interoracional, estando, portanto, em processo de
gramaticalizao como conector.
De acordo com Tavares (2006), somente a partir do sculo XIV que se encontram
registros da preposio de contrada com o locativo a, formando o pronome adverbial da.
Nos dados que coletamos, verificamos a contribuio da preposio na expresso de
movimento textual, indicando a origem ou causa de um evento.
Por sua vez, o que, em consonncia com a nomenclatura da tradio gramatical
(Cegalla, 2000; Cipro Neto e Infante, 2003; Faraco e Moura, 1999; Cunha e Cintra, 2001),
conjuno integrante. Segundo Cmara Jr. (1979:184), em portugus, [o] fato primacial foi o
aparecimento da partcula que como conjuno subordinativa por excelncia, em homonmia
com o pronome relativo que. Supostamente, passa a fazer parte do conector da que em
contextos nos quais a estrutura oracional complexa no se apresenta mais como necessria.
Como este um estudo que compreende estgios mais antigos da lngua portuguesa,
os usos metaforizados dos constituintes de e a aparecem codificados de trs maneiras nos
dados: pela forma contrada da, a mais recente; pelo seu estgio anterior d ahi ou dahi,
provavelmente intermedirio; e por formas mais antigas ainda, em que cada elemento mantm
preservadas todas as suas propriedades gramaticais, como na locuo de ahi. Igualmente
importante para este estudo a formao etimolgica do pronome adverbial locativo da, que
conta com a preposio de, alm do advrbio locativo a, resultante da aglutinao, segundo
Nascentes (1966:23), do prefixo a- de valor intensivo ou enftico, com a forma arcaica i (ou
hi), originria do locativo latino ibi.
Ainda que de forma sucinta, o conhecimento da etimologia e da trajetria de evoluo
lingustica dos elementos constituintes do da que ajuda sobremaneira na compreenso dos
padres de uso do conector. Esta breve exposio serve tambm para justificar por que, ao
longo da presente tese, tratamos da como pronome adverbial locativo, e no como define o
Dicionrio Eletrnico Houaiss [s/d]: contrao, no obstante a existncia da preposio de
em sua formao. Muito mais do que uma contrao, da o elemento de maior teor lexical
do conector da que, e, nos ltimos sculos do perodo moderno da lngua portuguesa,
principalmente na sincronia contempornea, os elementos se fundiram de tal maneira, que a
composicionalidade de cada um vai se perdendo cada vez mais.
18
Por fim, os diferentes usos de da categorizado como pronome adverbial locativo em
funo conectora so alvos de investigao em vrios estudos sobre gramaticalizao, como o
de Tavares (2006), e a construcionalizao da locuo conjuntiva da que, na presente tese,
recebe sua primeira investigao, em dimenso histrica.
19
2 REVISO DA LITERATURA: CONECTORES TEXTUAIS
Em sentido lato, conector ou conectivo qualquer elemento lingustico que promova a
juno entre palavras ou pores de texto, participando da coeso (e coerncia) textual. Luft
(1990:124) tem compreenso bastante expandida sobre o significado de conectivo, visto que
inclui verbos de ligao: [h] quatro classes de palavras que fazem de conectivos (sic):
conjunes, pronomes relativos, preposies e verbos de ligao ou copulativos. Em outras
obras, preposies so tambm includas na abonao para conectivos, como na
Enciclopdia e Dicionrio Ilustrado Koogan/Houaiss (1997:421): Termo gramatical que
estabelece conexo entre palavras ou partes da frase: em portugus, as conjunes, os
pronomes relativos e as preposies so conectivos.
No nosso propsito discutirmos sobre quais categorias gramaticais contam com
elementos que podem atuar como conectores, mas, sim, antes de iniciarmos a reviso da
literatura propriamente, apresentarmos preliminarmente motivos para optarmos pelo termo
conector e no conectivo para o da que.
Apesar de ser um termo frequente em estudos lingusticos, ao buscarmos conector em
dicionrios, manuais de portugus e enciclopdias, ou no encontramos qualquer acepo
relacionada gramtica, como no Dicionrio de Portugus Online Michaelis [s/d] e no Novo
Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa (1986), ou somos direcionados para as acepes
referentes a conectivo. O Dicionrio Eletrnico Houaiss [s/d], por exemplo, apresenta cinco
abonaes para conectivo, das quais destacamos as que se aplicam ou podem ser aplicadas
lingustica:
s.m. 4 GRAM forma lingustica que estabelece ligao entre dois termos de uma
orao, ou entre oraes num perodo (so as conjunes e os advrbios ou pronomes relativos); conector 5 LG termo (p.ex., ou, e, no), ou smbolo dele, que
relaciona proposies de modo tal que a verdade ou inverdade da afirmao
resultante determinada pela verdade ou inverdade dos seus componentes
20
Como se pode confirmar pelo trecho citado, conector aparece como um sinnimo para
conectivo. No obstante essa constatao, nesta tese, no s optamos pelo termo conector,
mas tambm defendemos uma caracterizao no frequente, seja nos compndios de natureza
normativa, seja nos estudos lingusticos: lgico-argumentativo. Tais escolhas se justificam,
em primeiro lugar, para evitar eco com a nomenclatura que propomos para o da que:
conectivo lgico-argumentativo no nos parece soar bem. Em segundo lugar, a maior
frequncia de uso de conectivo acaba gerando maior associao com outro termo bastante
empregado, conjuno, normalmente presente em estudos gramaticais cujo tratamento para as
formas lingusticas que estabelecem elo entre oraes ou perodos dicotmico: as
conjunes ou so coordenativas ou so subordinativas. Embora nosso objeto de estudo
alinhe-se de maneira bem prxima s conjunes, ele apresenta traos morfossintticos,
semnticos e pragmtico-discursivos que dificilmente se enquadrariam em uma categorizao
discreta. Em adio, alinhamo-nos com o que defende Rosrio (2012:112) e igualmente
evitamos o termo conjuno para nos referirmos ao da que pelo fato de esse termo envolver
uma discusso terica, quanto sua conceituao, que excederia os propsitos desta
pesquisa.
Entendemos, portanto, que conector uma nomenclatura que contempla, seno todas,
pelo menos grande parte dessa diversidade, para a qual damos um tratamento bastante
diferenciado do que se encontra na literatura da tradio gramatical. At mesmo os estudos
lingusticos que revisamos, os quais apresentam propostas viveis de tratar o objeto de estudo
desta tese, no se mostram plenamente capazes de dar conta dos padres de uso que temos
flagrado para o da que como elemento de coeso textual.
Passamos, a seguir, a apresentar reviso da literatura sobre conectores e,
paralelamente, vamos justificando a escolha da caracterizao lgico-argumentativo para o
conector da que. Na seo 2.1, enfocamos o que a tradio gramatical denomina conjunes,
entre estas as locues conjuntivas. Ressaltamos que entendemos as gramticas normativas,
especialmente as pedaggicas, como representantes da tradio gramatical. Descrevemos o
tratamento que esses compndios do para as conjunes e destacamos alguns padres de uso
do conector da que, a fim de justificar por que no o consideramos uma conjuno
coordenativa conclusiva ou subordinativa consecutiva, nos moldes da tradio gramatical,
tampouco um dos elementos adverbiais no obstante a origem adverbial do a que
estabelecem coeso entre partes do texto, conforme ressalva Bechara (1999:322). Na seo
2.2, apresentamos as duas nicas gramticas, dentre o extenso material terico consultado,
21
que citam o da que. Pelo fato de ambas serem de orientao fronteiria entre os estudos
lingusticos e a tradio gramatical, optamos por descrev-las em seo prpria, neste
captulo. Na seo seguinte (2.3), resgatamos alguns estudos lingusticos sobre conectores e
apontamos recortes destes que podem justificar em grande parte o tratamento que damos ao
nosso objeto de estudo. Demonstramos, ainda, a necessidade de a abordagem que propomos
nesta pesquisa ser diferenciada, em alguns aspectos, at mesmo do que propem estudos de
base puramente lingustica, em face de o da que ser um conector de uso muito recente na
lngua nos dados que levantamos, o registro mais antigo data de meados da dcada de 1950
e requer, consequentemente, olhar atento e cuidadoso.
2.1 A PERSPECTIVA DA TRADIO GRAMATICAL
fato que a grande maioria das gramticas tradicionais brasileiras no explora as
semelhanas e diferenas entre os elementos coesivos, grupo no qual se inserem as
conjunes, as preposies e os pronomes, tampouco os denomina conectores. Normalmente,
esses elementos so apresentados em categorias discretas, sendo listados conforme
caractersticas, principalmente, morfossintticas, de maneira bastante sinttica, sem deixar
realmente claro o seu papel no texto. Seguem essa linha de abordagem gramticos como
Rocha Lima (1973), Cegalla (2000), Cunha e Cintra (2001), Terra (2002), Cipro Neto e
Infante (2003), para citar apenas alguns do perodo contemporneo. No que se refere s
conjunes, todos so unnimes em classific-las como coordenativas ou subordinativas,
numa definio apenas por referncia ao estatuto sinttico dos segmentos entre os quais
ocorrem: a conjuno coordenativa une elementos de igual estatuto sinttico, enquanto a
conjuno subordinativa une elementos de estatutos sintticos diferentes, sendo um
subordinado e o outro, subordinante. Essa taxonomia est associada aos modos de
organizao do perodo composto, respectivamente, por coordenao ou por subordinao, o
que compreensvel e esperado no que se refere tradio gramatical, j que questes
textuais esto fora do escopo dessa abordagem.
Como o da que transita entre consequncia e concluso, apresentamos, de forma
sinttica, como os autores de cinco compndios gramaticais definem conjuno e que
tratamento do para as consecutivas e conclusivas.
22
Quadro 1. Definio de conjuno e classificao das consecutivas e conclusivas
Autoria Definio Classificao
Consecutivas * Conclusivas**
Cegalla
(2000)
Conjuno uma palavra
invarivel que liga oraes
ou palavras da mesma orao.
Iniciam oraes que exprimem
consequncia: que (precedido
dos termos intensivos tal, to, tanto, tamanho etc.), de sorte
que, de modo que, de forma que,
de maneira que, sem que, que
(no).
Iniciam uma concluso:
logo, portanto, por
conseguinte, pois (posposto ao verbo), por isso.
Cipro
Neto e
Infante
(2003)
Conjunes so palavras
invariveis que unem termos
de uma orao ou unem
oraes.
Exprimem consequncia: que,
de sorte que, de forma que etc.
Exprimem concluso: logo,
portanto, por conseguinte,
pois (posposto ao verbo)
etc..
Cunha e
Cintra
(2001)
Conjunes so os vocbulos
gramaticais que servem para
relacionar duas oraes ou
dois termos semelhantes da
mesma orao.
Iniciam uma orao na qual se
indica a consequncia do que foi
declarado na anterior: que
(combinada com uma das
palavras tal, tanto, to ou tamanho, presentes ou latentes
na orao anterior), de forma
que, de maneira que, de modo
que, de sorte que etc.
Que servem para ligar
anterior uma orao que
exprime concluso,
consequncia. So: logo,
pois, portanto, por conseguinte, por isso, assim.
Rocha
Lima
(1973)
Conjunes so palavras que
relacionam entre si: a) dois
elementos da mesma
natureza; b) duas oraes de
natureza diversa.
As conjunes do primeiro
tipo chamam-se
coordenativas; as do segundo, subordinativas.
Que (relacionado com tal, to,
tanto, tamanho); de modo que,
de maneira que, de sorte que, de
forma que.
Relacionam pensamentos
tais, que o segundo encerra
a concluso do enunciado
no primeiro. So: logo, pois,
portanto,
consequentemente, por
conseguinte
Terra
(2002)
Conjuno a palavra
invarivel que liga duas
oraes ou dois termos que
exercem a mesma funo
sinttica dentro de uma
orao.
Exprimem resultado,
consequncia - que (precedida
de to, tal, tanto), de modo que,
de maneira que, etc.
Indicam concluso pois
(quando posposta ao verbo),
logo, portanto, ento, etc.
* Em todas as obras, so classificadas como subordinativas.
** Em todas as obras, so classificadas como coordenativas.
Esse quadro apenas uma amostra do universo de compndios gramaticais da lngua
portuguesa. Por meio dele, possvel confirmar o tratamento dicotmico destinado s
conjunes na perspectiva tradicional. Todavia, no podemos deixar de destacar que Rocha
Lima (1973:261), na classificao das conclusivas, e Cunha e Cintra (2001:588), na
classificao das consecutivas, so os nicos que, de alguma forma, apontam para o carter
textual das conjunes: as conclusivas [r]elacionam pensamentos tais, que o segundo encerra
a concluso do enunciado no primeiro e as consecutivas [i]niciam uma orao na qual se
indica a consequncia do que foi declarado na anterior, respectivamente.
23
Trazendo para a perspectiva tradicional alguns pressupostos lingusticos, Bechara
(1999:319-330), nico entre os gramticos consultados a usar o termo conector, apresenta o
captulo sobre conjuno apontando a diferena entre conector e transpositor. Vamos iniciar
abordando o conceito proposto pelo autor para conector.
Segundo Bechara, as unidades da lngua que renem oraes ao mesmo nvel sinttico,
isto , oraes independentes umas das outras, so exemplos de conectores, como o caso da
conjuno coordenativa e no exemplo: Pedro fez concurso para medicina e Maria se prepara
para a mesma profisso (Bechara, 1999:319).
Ainda conforme o gramtico, como a misso da conjuno coordenativa reunir
unidades independentes, pode tambm conectar duas unidades menores que a orao, desde
que de igual valor funcional dentro de um mesmo enunciado (Bechara, 1999:319). Este o
papel assumido novamente por e em um dos vrios exemplos apresentados pelo autor:
a) Pedro e Maria (dois substantivos) (Bechara, 1999:319).
Bechara defende, portanto, que a conjuno coordenativa um conector e, como tal,
refere apenas as aditivas (e, nem), alternativas (ou) e adversativas (mas, porm, seno).
Lembra que os outros elementos que a tradio gramatical chama de conjunes
coordenativas (pois, logo, portanto, entretanto, porquanto, ento, contudo, todavia etc.), na
verdade, so advrbios que estabelecem relaes interoracionais ou intertextuais. Trata-se de
lio antiga igualmente ensinada por outros estudiosos da lngua, como Cmara Jr. (1979) e
Dias (1970, apud Bechara, 1999). Bechara, ento, apresenta como argumento o fato de esses
elementos adverbiais poderem se compatibilizar com as conjunes, o que no seria possvel
se fossem conjunes stricto sensu, como se verifica no exemplo dado pelo autor (Bechara,
1999:322):
b) No foram ao mesmo cinema e, portanto, no se poderiam encontrar.
Temos, nesse ponto, orientaes diferentes entre essa abordagem e a estritamente
tradicional, que lista o portanto e ainda por isso ou por conseguinte entre as conjunes
coordenativas conclusivas. Todavia, no queremos estender esse debate, mas, sim, destacar
que o da que apresenta traos que o alinham a ambas as abordagens: embora no seja listado
nas gramticas tradicionais como conjuno conclusiva, tem funo conectora e pode
expressar valor conclusivo; embora no pertena ao rol de certos advrbios apresentado
pelo gramtico (Bechara, 1999:322), participa da coordenao de oraes, assemelhando-se,
em alguns casos, funcional e semanticamente ao portanto, ou ao ento, uma vez que
24
estabelece relaes interoracionais ou intertextuais, como se pode observar na instanciao3 a
seguir, retirada do corpus formado para esta pesquisa:
(1) (...) pois nada sobrou de Francisco de Assis Rodano, razo pela qual Corintho (com th) da
Fonseca, que acumulava a funo policial com a de escrivo juramentado do Cartrio da
Comarca de Vassouras (da qual Rodeio era distrito) e com a de principal colaborador do
semanrio A Voz da Serra, no teve fundamento jurdico para dar a competente baixa do
nome de Francisco de Assis Rodano no Registro Civil. Da que Francisco de Assis Rodano,
reduzido a tio, a cinzas ou a nada, continuou oficialmente vivo, tornando-se assim o nico fantasma da histria humana com existncia comprovada e legal.
(CP4 O Piano e a Orquestra. Carlos Heitor Cony, 1996)
Ademais, da que funciona de forma semelhante das conjunes stricto sensu, pois
no pode se compatibilizar com outras conjunes. Em uma parfrase do exemplo
apresentado anteriormente por Bechara, ao substituir-se o portanto pelo da que, teramos o
seguinte:
*No foram ao mesmo cinema e, da que, no se poderiam encontrar.
Percebe-se, claramente, que a coocorrncia do e com o da que na parfrase no
corresponde a um enunciado usual na lngua portuguesa. Por outro lado, certamente no
haveria estranhamento por parte do interlocutor se a parfrase fosse:
No foram ao mesmo cinema, da que no se poderiam encontrar.
Por fim, ainda que no seja um conector stricto sensu conforme define Bechara, da
que, diferentemente dos elementos coesivos entre os quais se alinha funcional e
semanticamente, assume posio fixa na frase, encabeando a orao que introduz, sem
possibilidade de ser deslocado:
*No foram ao mesmo cinema, no se poderiam, da que, encontrar.
*No foram ao mesmo cinema, no se poderiam encontrar, da que.
No que se refere ao outro conceito apresentado por Bechara (1999:319-320), o de
transpositor, o gramtico o associa ao papel das conjunes subordinativas. Em um
enunciado complexo do tipo: Soubemos que vai chover, a locuo vai chover perde a
caracterstica de enunciado independente, de orao, para exercer a funo de palavra, no
caso, objeto direto do ncleo verbal soubemos. A conjuno subordinativa integrante que
assume, dessa forma, o papel de transpositor de um enunciado que passa a uma funo de
3 Sempre que estivermos lidando com dados do corpus formado para esta tese, isto , com construtos,
empregamos o termo instanciao. 4 As siglas que antecedem os nomes das obras abaixo de cada instanciao referem-se aos corpus de onde cada
caso foi retirado. Assim, CP = Corpus do Portugus; DP = Domnio Pblico; PerB = Peridicos brasileiros
25
palavra, portanto de nvel inferior dentro das camadas de estruturao gramatical (Bechara,
1999:320).
Seguindo essa lgica, ainda com base em Bechara (1999:323-324), so transpositoras
tambm as conjunes se integrante, se condicional e o que pronome relativo, j que
igualmente transpem um enunciado (orao substantiva, orao adverbial e orao adjetiva)
ao nvel de uma palavra (substantivo, advrbio e adjetivo, respectivamente).
De especial interesse para este estudo, outro grupo de transpositores citado por
Bechara (1999:324-325) o das locues conjuntivas, as quais so formadas por advrbio
seguido do transpositor relativo que (logo que, sempre que, ainda que etc.). Cabe, a esse
respeito, um destaque: o autor no lista o da que nesse grupo de transpositores, ou porque
no o reconhece como tal, pois se trata de locuo conjuntiva relativamente recente na lngua
portuguesa, ou porque considera que, morfologicamente, o da que apresenta configurao
estrutural diferente daquela das locues exemplificadas. Ambas as possibilidades nos
parecem pertinentes, em especial a segunda, visto que, de acordo com o que temos observado,
historicamente, sobre os micropassos da mudana gramatical do conector em estudo, o
constituinte da h muito j havia se distanciado da sua funo adverbial ditica espacial.
Quanto ao constituinte que, este j se apresentava gramaticalizado como conjuno integrante
desde o portugus arcaico (Mattos e Silva, 2006:182) e, apesar de ser originrio do
esvaziamento semntico de pronomes latinos neutros (o indefinido-interrogativo quid e o
relativo quod) (Cmara Jr., 1979:184), seguiu trajetria diferente daquela do relativo que.
Nesse sentido, se considerarmos a forma como Bechara descreve as locues
conjuntivas, possivelmente, o da que no deva mesmo fazer parte desse grupo. Por outro
lado, Cmara Jr. (1979:184) destaca que, em portugus, houve uma remodelao profunda das
conjunes subordinativas, aparecendo a partcula que como conjuno subordinativa por
excelncia. Esta, alm de integrar uma orao outra, subordinar um termo a outro, introduzir
uma orao que expresse causa da outra, assinalar uma consequncia do que se comunica,
tambm figura como parte final de locues conjuncionais subordinativas ( medida que, ao
passo que, de modo que, de sorte que etc.). Na verdade, essa configurao que impossibilita
a mudana de ordenao das locues na estrutura frasal que integram, ocorrendo
obrigatoriamente antes da orao que encabeam. Diante do exposto, entendemos que o da
que rene as condies morfolgicas necessrias para fazer parte do paradigma das locues
conjuntivas, mas sem associao necessria quelas estritamente subordinativas, se que tal
26
restrio existe para os elementos de conexo textual, especialmente os derivados de
advrbios ou pronomes adverbiais.
Sendo assim, com base no que at aqui se apresentou, postulamos que o da que
alinha-se morfologicamente com as locues conjuntivas, porm, no eixo sintagmtico, no
corresponde plenamente ao que os gramticos denominam conjuno ou ao que Bechara
(1999:319-325) entende por conector e transpositor.
Como se pode verificar na instanciao (1), da que estabelece conexo entre perodos,
podendo relacionar at mesmo pargrafos. Ainda que atue de forma bastante aproximada
das conjunes, assumindo posio fixa na frase, o conector em estudo apresenta traos
sintticos e semnticos que o alinham tanto com as conclusivas, quanto com as consecutivas.
A comparao entre as instanciaes (2) e (3) esclarece parte dessa ambiguidade pragmtica5:
(2) Segundo a Comisso de Condminos, os andares, que adquiriram cerca de dez anos,
sofreram uma desvalorizao na ordem dos trs mil contos, j que a obra no respeita a
distncia que de lei entre dois edifcios, e a entrada para as garagens no tem em conta a
segurana e a privacidade dos moradores. A rampa de acesso s garagens fica a metro e meio
da janela do meu quarto, da que fico obrigado a ouvir os rudos qualquer hora do dia e da
noite e a receber os fumos dos escapes dos carros. Alm disso, os moradores com as janelas e varandas para o lado da rampa ficam sujeitos a ser assaltados.
(CP Acao em tribunal contra a Cmara da Guarda. Jornal da Beira, 29/4/1997)
(3) A poltica no desapareceu, mas seu campo de ao est se deslocando. As incontveis
comunidades criadas via redes sociais esto renovando a experincia da poltica. Focalizar o
debate sobre a exigncia por qualidade dos servios pblicos devolve-lhe a clareza.
A estrutura do poder reflete hoje somente um determinado modo de encaminhamento
das decises no labirinto organizacional da mquina pblica. Da que novas formas de corrupo podem florescer.
(PerB Sem Automatismo. Tarcsio Padilha Jr., Jornal do Brasil, 2013)
No trecho exemplificado em (2), encontramos, na mesma estrutura frasal, dois eventos
numa relao factual de causa (A rampa de acesso s garagens fica a metro e meio da janela
do meu quarto) e consequncia (fico obrigado a ouvir os rudos qualquer hora do dia e da
noite e a receber os fumos dos escapes dos carros), sendo a orao que codifica o segundo
evento introduzida pelo conector em estudo. Nesta instanciao, h dependncia
5 Empregamos o termo ambiguidade pragmtica, em vez de polissemia, seguindo orientao de Traugott e
Trousdale (2013:200). Ambiguidade pragmtica o caso em que uma construo tem um s valor semntico, que pragmaticamente aplicado de formas diferentes de acordo com o contexto pragmtico. Esse conceito ser
retomado no captulo sobre a fundamentao terica.
http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2013/07/04/sem-automatismo/http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2013/07/04/sem-automatismo/
27
relativamente forte entre as duas oraes unidas pelo da que, em uso aproximado ao das
conjunes subordinativas consecutivas.
Por sua vez, no fragmento (3), o conector empregado para introduzir um ponto de
vista do enunciador a respeito do que foi apresentado na poro textual antecedente. Em uma
relao sintaticamente mais frouxa com a orao anterior, reforada pela presena de um
ponto e o incio de novo perodo, o conector anuncia um fragmento marcado pela
subjetivao, papel alinhado com o dos operadores argumentativos de concluso.
A princpio, parece uma distino simples de se fazer, tendo, de um lado, relaes
mais factuais e mais dependentes e, de outro, relaes mais abstratas e mais independentes.
Contudo, o conector da que, como j foi antecipado, est em um contnuo entre dois
domnios consequncia e concluso , havendo diferentes sutilezas em seus usos, para as
quais h que se recorrer a outras abordagens tericas e diferentes estratgias de anlise. Uma
dessas sutilezas reside no fato de que, mesmo nas relaes mais factuais de causa-
consequncia, dificilmente a natureza de ambos os segmentos se afasta totalmente do nvel
epistmico. Na instanciao (2), por exemplo, a expresso da consequncia, embora se refira a
um estado de coisas, isto , a uma situao que ocorre no mundo real, traz concomitantemente
a perspectivao do enunciador6 (fico obrigado), numa atitude argumentativa. Por outro lado,
possvel reconhecer usos em que, mesmo iniciando perodos, o conector da que integra
pores textuais com forte vnculo sinttico-semntico entre si, conforme exemplificado a
seguir:
(4) Pelo que, inoque significou trampolineiro ou ladro dos finos. Mas como havia ainda os
ladres dos grossos, no foi difcil meter dentro da palavra mais um veneno. Como, porm,
as desgraas e a clera do povo pediam cada dia trmos novos para se exprimirem, "incuo"
foi inchando de mais significaes. Quando o Rainha deu um tiro de caadeira, num dia de
arraial, ao homem da amante, chamaram-lhe, evidentemente, inoque, por ser um devasso e um
assassino de caadeira. Da que fsse fcil meter tambm no inoque o assassino de faca e a cria de porta aberta.
(CP A Palavra Mgica. Verglio Ferreira, 1976)
Note-se que, neste caso, o da que sequer poderia ser substitudo por uma das
conjunes coordenativas conclusivas normalmente elencadas como tal (portanto, por isso ou
ento) em face da estrutura oracional na qual se encontra, com verbo no modo subjuntivo
6 Como o corpus desta pesquisa composto apenas de textos na modalidade escrita, optamos por empregar o termo enunciador, e no falante, para evitar ambiguidades com a modalidade falada. No entanto, sempre que
algum autor citado empregar falante, respeitamos esta escolha.
28
(fsse). Ademais, o uso apresentado em (4) partilha caractersticas tanto do uso instanciado
em (2) vnculo sinttico-semntico mais forte entre os dois perodos integrados pelo
conector , quanto do uso exemplificado em (3) ocorrncia em estruturas frasais diferentes.
Avanando na tentativa de lanar luz sobre a morfossintaxe, semntica e pragmtica
de conectores em geral e muito especialmente do da que, passamos para a reviso de duas
obras que esto na fronteira entre a tradio gramatical e os pressupostos lingusticos stricto
sensu.
2.2 A DESCRIO PROPOSTA POR AZEREDO (2008) E VILELA E KOCH (2001)
Anteriormente, alertamos que o da que no arrolado no grupo das conjunes nas
gramticas tradicionais ou nos dicionrios investigados. Na verdade, dentre a bibliografia
alinhada com o gnero gramtica, apenas dois compndios mencionam o da que: a
Gramtica Houaiss da Lngua Portuguesa (Azeredo, 2008), doravante Gramtica Houaiss, e
a Gramtica da Lngua Portuguesa (Vilela e Koch, 2001). Estas obras, no obstante serem
apresentadas como gramtica, no tm como objetivo listar categorias gramaticais
aristotelicamente, nem prescrever ou proscrever usos lingusticos. Ambas as obras descrevem
a lngua levando em conta as diferentes variedades, incluindo a padro, assumindo uma
orientao, at certo ponto, de natureza funcionalista.
A Gramtica Houaiss (Azeredo, 2008) aborda vrios aspectos conceituais da lngua,
entre eles variao e mudana; linguagem, discurso e texto. Somente essa abordagem j a
coloca em um rol bastante distinto do das gramticas tradicionais.
Por sua vez, a Gramtica da Lngua Portuguesa (Vilela e Koch, 2001) segue,
declaradamente, o caminho que todas as correntes lingusticas mais ou menos seguem. Com
foco na palavra, frase e texto/discurso, os autores deixam claro, ainda, que impossvel
encontrar fronteiras entre a gramtica da palavra e gramtica da frase e mesmo do texto
(Vilela e Koch, 2001:5-7).
Logo, no causa estranheza que, com tais perspectivas tericas, as quais do conta
tambm dos aspectos de ordem pragmtico-discursiva, ambos os compndios arrolem o
conector da que nos captulos destinados s conjunes, no caso de Azeredo (2008), ou entre
os elementos de coerncia e coeso textual, no caso de Vilela e Koch (2001).
Na Gramtica Houaiss, quando trata do perodo composto, Azeredo (2008:307-310)
apresenta o quadro de conjunes e adjuntos conjuntivos de concluso e de explicao. Em
29
captulo anterior, o autor havia definido que os adjuntos conjuntivos so sintagmas que
pressupem alguma poro de sentido precedente no discurso ou texto, em relao qual a
poro a que eles se unem expressa, entre outras possibilidades, uma concluso, uma
inferncia, um resultado (portanto, pois, por isso, por conseguinte, em consequncia)
(Azeredo, 2008:288). So listadas, ainda, mais cinco pores de sentido, que fogem ao escopo
desta pesquisa.
O autor apresenta trs grupos de adjuntos conjuntivos de concluso. No primeiro
grupo, descreve o funcionamento de portanto e logo, demonstrando que uma inverso na
ordem das oraes conectadas levaria a uma relao de explicao (Azeredo, 2008:308):
a) As guas baixaram um pouco; logo (ou portanto), j podemos atravessar.
b) J podemos atravessar, pois (ou porque) as guas baixaram um pouco.
Segundo Azeredo (2008:308), [p]ortanto (ou logo) introduz a concluso que se tira
de um fato ou ideia, enquanto pois/porque inicia um argumento para uma tese/opinio ou
uma atitude expressa na orao anterior:
c) Tnhamos obrigao de ganhar o jogo (opinio/tese), pois nossa equipe
estava mais preparada. (argumento)
d) Levem agasalhos (atitude), porque no alto da serra a temperatura muito
baixa. (argumento)
O segundo grupo de adjuntos conjuntivos de concluso descrito pelo autor formado
por por conseguinte, consequentemente, por isso e ento. Para Azeredo, a diferena entre os
quatro reside no grau de formalidade, sendo os dois primeiros mais formais e os dois ltimos
mais coloquiais. O autor destaca que por isso e ento so usuais no discurso narrativo
(Azeredo, 2008:308) e, semelhana de Bechara (1999:322), lembra que a natureza adverbial
dessas formas permite que a elas se junte uma autntica conjuno, como j exemplificado
anteriormente, com base em Bechara (1999:322): No foram ao mesmo cinema e, portanto,
no se poderiam encontrar.
Diante do que at aqui se exps sobre a descrio proposta na Gramtica Houaiss,
correto deduzir que, para o autor, o conceito de concluso engloba as noes de opinio/tese e
de atitude. Vejamos a confirmao dessa perspectiva ao invertermos a ordem das oraes e
substituirmos os conectores empregados por Azeredo (2008:308) pelo da que nas seguintes
parfrases dos dois ltimos exemplos apresentados:
Nossa equipe estava mais preparada (argumento), da que tnhamos obrigao
de ganhar o jogo (opinio/tese).
30
No alto da serra a temperatura muito baixa (argumento), da que devem levar
agasalhos (atitude).
Por termos lidado com o conector da que em dados de uso real que guardam grande
semelhana com os exemplos parafraseados, no nos parece que estes causem qualquer
estranheza ou soem pouco natural. Todavia, mesmo que essas interpretaes confirmem a
possibilidade de ocorrncia do da que no segundo grupo, somente no terceiro Azeredo
menciona o conector, conforme demonstramos na reviso a seguir.
O terceiro grupo de modo que, de sorte que, de maneira que, da que (negrito nosso)
o que nos interessa mais diretamente. Azeredo (2008:309) no mais os denomina adjuntos
conjuntivos, empregando o termo mais genrico conectivos. Alm disso, pela primeira vez,
desde que comeou a tratar do tema, assume que estes conectivos so de coordenao
quando, anunciando um efeito ou concluso do fato anterior, introduzem uma orao com
verbo no indicativo. Outra distino anunciada pelo autor, que confirma o que observamos
na reviso de Bechara (2009), que, diferentemente das formas que compem o segundo
grupo as quais, como advrbios, podem se deslocar e combinam livremente com e as deste
terceiro grupo so conectivos puros, ocorrendo obrigatoriamente antes da orao. A seguir,
o exemplo que o autor apresenta para o da que:
e) Empurradas para o mercado de trabalho, as mulheres no aceitavam mais ser
posse passiva de seus maridos, da que a primeira bandeira de sua luta foi contra
a violncia em casa. [Veja, 26/11/1977] (Azeredo, 2008:309)
Embora a descrio feita por Azeredo constitua um avano muito grande em relao
ao que se tem nas gramticas tradicionais, h ainda um longo caminho a percorrer at que o
conector da que tenha reconhecidos todos os seus traos sinttico-semnticos e pragmtico-
discursivos. Ao enquadr-lo como elemento daquilo que se reconhece como coordenao,
associando seu uso com verbos no modo indicativo, fica de fora da abordagem do autor
grande parte de outras sutilezas que o conector em estudo apresenta. O fragmento a seguir
instancia um uso efetivo do da que em estrutura frasal com verbo no subjuntivo (possa),
semelhante ao que j foi apresentado em (4), mas no nos parece que a diferena entre o
exemplo apresentado por Azeredo e os encontrados em nossos dados se deva s distines
entre coordenao e subordinao simplesmente. Trata-se, antes, de uma variao nos nveis
de subjetivao, portanto pragmtico-discursivos, apresentando relaes mais calcadas no
campo das ideias, com mais abstraes do que o fragmento apresentado pelo autor da
Gramtica Houaiss.
31
(5) (...) implica uma diferente compreenso da Histria. Implica entend-la e viv-la,
sobretudo viv-la, como tempo de possibilidade, o que significa a recusa a qualquer
explicao determinista, fatalista da Histria. Nem o fatalismo que entende o futuro como a
repetio quase inalterada do presente, nem o fatalismo que entende o futuro como algo pr-
dado. Mas o tempo histrico, sendo feito por ns e refazendo-nos enquanto fazedores dele.
Da que a Educao Popular, praticando-se num tempo-espao de possibilidade, por sujeitos conscientes ou virando conscientes disto, no possa prescindir do sonho.
(DP Educao de Adultos: algumas reflexes. Paulo Freire, 1993)
Ao associar o uso do modo indicativo coordenao, Azeredo demonstra que a sua
perspectiva sobre coordenao ancora-se, ainda, nas bases aristotlicas da tradio gramatical,
ao passo que, na abordagem que propomos para o tratamento do da que, consideramos, na
relao entre as oraes ligadas pelo conector, tanto o nvel de dictum, mais prximo das
relaes factuais e possivelmente com predomnio do modo indicativo, quanto o nvel de
modus7, alinhado com a atitude do falante ou com a emisso de sua concluso, possivelmente
com predomnio do modo subjuntivo. A modalizao epistmica intrnseca constituio de
conectores que se especializam no estabelecimento de relaes lgico-argumentativas, por
isso, ao lado de dados com verbos no indicativo, encontramos tantos dados com verbos no
subjuntivo nas estruturas frasais encabeadas pelo conector da que.
O outro compndio em anlise nesta seo, Gramtica da Lngua Portuguesa, de
Vilela e Koch (2001), apesar da organizao dos elementos gramaticais por categorias, ou
classes de palavras, prope um tratamento inovador para estas e tambm para os conectores
da lngua portuguesa. Apresentados na parte denominada Gramtica da Palavra, eles so
distribudos em quatro captulos diferentes: preposies; conjunes; partculas e partculas
modais; marcadores da coerncia/coeso discursiva. neste ltimo grupo que os autores
inserem o da que.
O simples fato de trazerem para discusso elementos lingusticos que, normalmente,
so omitidos das gramticas tradicionais, ou, quando so citados, aparecem em listas pouco
esclarecedoras, indicativo de uma abordagem realmente mais abrangente e detalhada dos
elementos de conexo. Trata-se de uma perspectiva preocupada com as relaes semnticas,
semntico-sintticas e tambm pragmtico-discursivas, desvelando uma srie de usos que
transitam por esses diferentes aspectos. Antes de discutirmos o que os autores apresentam
para o da que, vamos revisar o tratamento que do para as conjunes.
Ao abordarem as conjunes, Vilela e Koch (2001:259-268), primeiramente, enfocam
a natureza sinttica da relao estabelecida entre os membros ligados, de modo que temos as
7 Os conceitos de dictum e modus so retomados e ampliados na seo 2.3.
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conjunes coordenativas e as subordinativas. Em seguida, distinguem a sua constituio
quanto forma, como sendo conjunes simples (quando, pois, que, se, e, ou etc.),
conjunes compostas (se bem que, antes que, desde que etc.) e conjunes compostas de dois
membros (no s... mas tambm, ou...ou, quer...quer etc.). Por ltimo, a distino se d por
relaes semnticas ou semntico-sintticas, de acordo com diferentes valores, incluindo
elementos adverbiais que funcionam como conjunes. Dentre os valores semnticos
levantados pelos autores, destacamos os dois que so de interesse para este estudo: causa
(pois, ento, da, porque etc.) e consequncia (de tal modo, por conseguinte, portanto etc.)
(Vilela e Koch, 2001:259-260). nesse grupo, tambm, que se percebe tratamento para o
tema numa orientao muito prxima das vertentes lingusticas, pois os autores lembram
que advrbios, preposies e conjunes se misturam, se confundem, se servem dos mesmos
elementos, e, por vezes, no fcil distinguirmos se estamos numa classe ou noutra (Vilela e
Koch, 2001:267).
Entretanto, apesar desse alerta e do distanciamento da tradio gramatical, a
Gramtica da Lngua Portuguesa no se furta a apresentar um quadro de conjunes,
separando-as em coordenativas e subordinativas, ficando as conclusivas (logo, portanto, pois,
por conseguinte, por isso) no grupo das primeiras e as consecutivas (de tal modo/maneira
que, to/tanto...que) no grupo das segundas. Ou seja, elas deixam de ser consideradas em sua
semntica e voltam a ser categorizadas pelo seu carter apenas sinttico, semelhana do que
se faz nas gramticas normativas. O da, que havia sido mencionado no grupo das conjunes
que expressam causa, evidentemente numa relao de causalidade e no de causa stricto
sensu, no voltou a ser considerado no quadro das conjunes, seja entre as conclusivas, seja
entre as consecutivas, possivelmente porque os autores optaram, nesse ponto, por um
alinhamento mais prximo ao da norma gramatical.
O captulo destinado aos marcadores da coerncia/coeso discursiva , por si s, um
grande diferencial em se tratando de gramtica, mais ainda se considerarmos a presena do
da que nesse grupo, j que, como temos destacado, trata-se de um elemento lingustico de
uso recente na lngua portuguesa. Vilela e Koch (2001:272) assim caracterizam os marcadores
da coerncia e coeso textual:
elementos que se alimentam dos advrbios ou locues adverbiais, de conjunes,
de adjetivos, de verbos, de combinaes vrias, mas so sempre expresses que
funcionam em bloco, como expresses j (total ou parcialmente) lexicalizadas.
33
Como o tratamento que adotamos para o conector da que se d numa perspectiva
construcional funcionalista, essa definio dos autores alinha-se bem com os objetivos
terico-metodolgicos deste estudo, especialmente no que diz respeito a expresses que
funcionam em bloco, que, em termos funcionais, seria o que Traugott (2008a) denomina
microconstruo. Para Vilela e Koch (2001:273), [t]rata-se da gramaticalizao (e respectiva
dessemanticizao) de determinados elementos que perderam suas caractersticas funcionais,
valorizando apenas sua funo conectora. Dentre as formas que apresentam, mencionam o
que acontece com os diticos espaciais, entre eles o da, e os diticos temporais, entre eles o
ento. Ainda segundo os autores, [s]o elementos que perdem sua funo semntica
original que fica apenas reduzida funo de coordenao (Vilela e Koch, 2001:274).
Com relao a esta ltima descrio funcional dos elementos da e ento, podemos
falar mais diretamente sobre o segundo, j que foi nosso objeto de estudo em dissertao de
mestrado (Arena, 2008). Naquele trabalho, foi possvel reconhecer sua multifuncionalidade e
polissemia em perspectiva pancrnica. Os dados histricos e sincrnicos demonstraram que a
forma mais gramaticalizada do ento apresentava funes conectoras tanto nas relaes
lgicas, quanto nas relaes argumentativas, unindo estruturas frsicas no s em atos de fala
nicos, mas tambm em dois atos de fala. Isso incompatibilizaria um enquadramento
reducionista do ento funo de coordenao (Vilela e Koch, 2001:274), por ser esta
francamente associada s relaes estabelecidas em atos de fala distintos.
Apesar de deixarem claro que sua obra no o lugar para uma anlise mais
aprofundada dos valores fricos e coesivos desses elementos (Vilela e Koch, 2001:274), os
autores seguem com sua descrio e mencionam os conectores discursivos situados no plano
diretamente nocional. Dos seis grupos listados, destacamos aqueles que, segundo Vilela e
Koch (2001:275), se apresentam:
com pendor argumentativo (mas repara, por exemplo, alm disso, portanto, de fato,
etc.),
com incidncia no valor causal (por conseguinte, assim, pois, da que, de fato, ento,
etc. ) (Negrito nosso.)
Reiteramos a relevncia que tem para esta tese o fato de o da que ser arrolado em um
grupo de elementos que fogem ao escopo das gramticas normativas, recebendo, na obra de
Vilela e Koch, um tratamento que considera, de fato, os estudos lingusticos sobre o tema.
Ainda assim, percebe-se certa persistncia do hbito tradicional de se fazerem categorizaes
discretas, j que no vemos razo para que o da que no tenha sido arrolado, tambm, entre
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os conectores discursivos com pendor argumentativo. Conforme exemplificamos
anteriormente, nosso objeto de estudo apresenta espectro que cobre ambos os valores: causal e
argumentativo. Relembremos os seguintes fragmentos das instanciaes (2) e (3),
apresentadas na seo 2.1:
(2a) A rampa de acesso s garagens fica a metro e meio da janela do meu quarto, da que fico
obrigado a ouvir os rudos qualquer hora do dia e da noite e a receber os fumos dos escapes dos carros.
(CP Acao em tribunal contra a Cmara da Guarda. Jornal da Beira, 29/4/1997)
(3a) A estrutura do poder reflete hoje somente um determinado modo de encaminhamento das
decises no labirinto organizacional da mquina pblica. Da que novas formas de corrupo
podem florescer.
(PerB Sem Automatismo. Tarcsio Padilha Jr., Jornal do Brasil, 2013)
Para o que vamos discutir sobre esses dois casos nesta seo, recorremos ao
tratamento que os autores da Gramtica da Lngua Portuguesa do ao tema Conexo quando
abordam os processos de construo textual (Vilela e Koch, 2001:500-503).
No fragmento (2a), o uso do da que apresenta compatibilidade com o que os autores
chamam de relaes lgico-semnticas, estabelecendo, no caso, relao de causalidade (Vilela
e Koch, 2001:500-501). Causalidade, tal como compreendida pelos autores e que
encampamos nesta tese, encerra relao de causa-consequncia, podendo ser veiculada sob
diversas formas estruturais (Vilela e Koch, 2001:501):
a) O torcedor ficou rouco porque gritou demais.
b) O torcedor gritou tanto que ficou rouco.
c) O torcedor gritou demais; ento (por isso) ficou rouco.
d) Como tivesse gritado demais, o torcedor ficou rouco.
e) Por ter gritado demais, o torcedor ficou rouco.
Uma vez que so frases construdas especialmente para a Gramtica da Lngua
Portuguesa, e no dados de uso efetivo, poderamos perfeitamente incluir o conector da que
como alternativa para a terceira forma estrutural dessa sequncia de exemplos:
O torcedor gritou demais; da que ficou rouco.
Trata-se de um uso que compatvel com o trecho instanciado em (2a). Guardadas as
devidas diferenas no que se refere a questes epistmicas entre o exemplo criado e aquele
http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2013/07/04/sem-automatismo/
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que representa uso real, assumimos haver, em ambos os casos, um estreito elo estrutural entre
as oraes, prprio das relaes mais factuais de causa-consequncia.
No fragmento (3a), ainda que no se descarte a relao de causalidade, esta no
estrita, pois reconhecemos um uso muito prximo daquilo que os autores, anteriormente,
chamaram de funo de coordenao. Cada enunciado resultado de dois atos de fala
distintos, estando as oraes em duas estruturas frsicas igualmente distintas, sob a forma de
perodos (Vilela e Koch, 2001:503). Entendemos que se trata de um uso que estabelece
relaes discursivas ou argumentativas; que encerra uma opinio/tese do enunciador.
Diante do exposto nesta seo, no obstante todo o avano que as duas gramticas
aqui revistas representam em termos de descrio dos elementos de conexo, ainda
percebemos a necessidade que os autores das duas obras revisadas tm de enquadrar os
elementos conectores como sendo exclusivamente ou do domnio das relaes lgicas ou do
domnio das relaes argumentativas; ou do mbito da subordinao ou do mbito da
coordenao. Talvez, por serem obras que ainda guardam princpios da concepo clssica de
gramtica, os termos precisem ser alocados em categorias discretas. Nas pesquisas que
desenvolvemos, primeiro de mestrado e agora de doutorado, temos reconhecido usos para o
mesmo elemento, respectivamente ento e da que, que se distribuem funcionalmente num
espectro que abrange desde as relaes lgicas at as argumentativas, perpassando pelos
nveis sinttico-semntico e pragmtico-discursivo.
Portanto, a fim de no deixar de fora a descrio e a anlise de traos lingusticos
importantes do conector da que, apoiamo-nos em alguns pressupostos de natureza
eminentemente lingustica, que se apresentam como mais pertinentes ao que se prope nesta
pesquisa. Estes, se no nos do todas as respostas para o leque de sutilezas presentes no uso
do conector da que, subsidiam grande parte do estudo e abrem portas para nossas prprias
inferncias e proposta de anlise diferenciada em relao ao que se encontra na literatura.
2.3 A PERSPECTIVA LINGUSTICA
Em face do que at aqui discutimos, confirma-se que a dicotomia conjunes
coordenativas e conjunes subordinativas, conforme apresentada pela tradio gramatical,
no se aplica ao estudo do conector da que. Mesmo as duas gramticas apresentadas na seo
anterior, que tm abordagens preocupadas com o uso lingustico e reconhecem o da que
como conector, enfocam o uso deste apenas como operador do discurso, estabelecendo
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relao de semelhana com o papel exercido pelas conjunes coordenativas. No consideram
que, dependendo do contexto, o conector pode participar, tambm, da coeso de sentenas
mais integradas, numa relao de maior dependncia, de forma aproximada ao que fazem as
conjunes subordinativas.
Como a perspectiva que adotamos a respeito do da que mais ampla do que essa
dicotmica categorizao, voltamos o olhar para estudos de vertente lingustica, que procuram
abordar o uso de conectores de forma contextualizada e, sempre que possvel, apresentam
dados de uso efetivo. Alertamos que, salvo uma exemplificao entre os articuladores
enunciativos ou discursivo-argumentativos em obra de Koch (2005:135), sem que seja
apresentada qualquer discusso a respeito, nenhuma das obras que revisamos nesta seo
menciona o da que nos grupos de conectores avaliados; tampouco as anlises que so feitas
sobre estes podem ser estendidas para todos os traos sinttico-semnticos e pragmtico-
discursivos do conector. Por isso, tornam-se necessrios recortes do que se tem na literatura
que nos levem a uma abordagem mais completa e inovadora do nosso objeto de estudo.
Iniciamos por estudos no campo da Lingustica de Texto, que muito tm contribudo
para a compreenso e tratamento dos elementos de coeso textual em portugus. Em obras
sobre conectores interfrsicos, Koch (1987, 2001, 2004 e 2005) a linguista que mais tem se
debruado sobre o tema. Por terem abordagens bastante semelhantes, optamos por revisar o
trabalho de 1987.
Trata-se de um estudo com abordagem terica voltada para as questes relativas
construo textual dos sentidos, como, por exemplo, as estratgias de progresso textual. Em
seu trabalho, a autora distingue dois tipos bsicos de elementos de conexo interfrsica: os
conectores do tipo lgico e os encadeadores do tipo discursivo. Para Koch (1987:85-86),
a funo dos primeiros a de apontar o tipo de relao lgica que o locutor
estabelece entre o contedo de duas proposies. Trata-se, no caso, de um nico
enunciado, resultante de ato de fala nico, visto que nenhuma das proposies
constitui objeto de um ato de enunciao compreensvel independentemente da
outra.
J os segundos, ainda de acordo com a linguista (Koch, 1987:86),
so responsveis pela estruturao de enunciados em textos, por meio de
encadeamentos sucessivos, sendo cada um dos enunciados resultante de ato de fala
diferente. (...) Tal tipo de encadeamento pode, pois, ocorrer entre oraes de um
mesmo perodo, entre dois ou mais perodos e, tambm, entre pargrafos.
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Em seguida, a autora se dedica a examinar cada uma dessas possibilidades, iniciando
pelos conectores de tipo lgico, responsveis pelas relaes lgico-semnticas. Apresenta oito
tipos de relaes: condicionalidade, causalidade, mediao, disjuno, conformidade,
temporalidade, complementao, delimitao ou restrio. Conforme assinalamos na seo
anterior, a relao de causalidade a que nos interessa, j que expressa a combinao de duas
proposies, uma das quais encerra a causa que acarreta a consequncia expressa pela outra.
Mais importante a observao da autora de que tal relao pode ser veiculada de diferentes
maneiras, entre elas uma orao encabeada pelo conector por isso. Apresentamos o exemplo
dado pela linguista (Koch, 1987:87), mas no podemos deixar de lembrar que as gramticas
normativas consideram esse conector uma conjuno coordenativa conclusiva:
a) Choveu demais; por isso, o riacho transbordou.
Trata-se de uma relao em que, novamente, a parfrase com o conector da que
possvel:
Choveu demais; da que, o riacho transbordou.
Sendo assim, entendemos que da que faz parte de uma estrutura frsica que, de
acordo com a perspectiva da autora, estabelece relao lgico-semntica de causalidade,
encabeando orao que expressa a consequncia da anterior, cujas proposies fazem parte
de ato de fala nico.
Ao tratar dos encadeadores de discurso, Koch (1987:89-94) destaca que estes veiculam
relaes pragmticas ou retricas e que podem ser de duas espcies: operadores
argumentativos e operadores de sequencializao. Os primeiros, responsveis pela orientao
discursiva global dos enunciados que encadeiam (Koch, 1987:87), so o nosso foco de
interesse por reconhecermos no conector da que orientao argumentativa de valor
conclusivo, inferncia/deduo o mesmo se dando com os conectores apresentados pela
autora no grupo dos operadores de concluso: portanto, logo, pois, ento, por conseguinte
(Koch, 1987:92). Mais uma vez, lembramos que esses conectores tambm so arrolados pelas
gramticas tradicionais entre as conjunes coordenativas conclusivas. Um dos exemplos que
a autora apresenta para esse grupo (Koch, 1987:92):
b) O time jogou desentrosado. O novo atacante no poderia, pois, ter mostrado toda
sua classe.
novamente permite uma parfrase utilizando-se o da que como conector:
O time jogou desentrosado. Da que o novo atacante no poderia ter mostrado toda
sua classe.
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Em ambos os casos, os conectores participam da coeso de atos de fala distintos,
prprios das relaes pragmticas, independentemente da posio que cada um ocupa na
orao de que faz parte.
Fica claro, portanto, que o conector da que, alm de no se enquadrar somente no
mbito da coordenao ou no da subordinao, no expressar apenas relaes lgico-
semnticas ou apenas as argumentativo-discursivas, tambm no vincula proposies
exclusivamente em atos de fala nicos ou em atos de fala distintos. Por sua vez, as obras de
Koch sobre conectores inter ou intrafrsicos, especialmente a que acabamos de revisar,
contribuem grandemente para o reconhecimento do espectro de traos sinttico-semnticos e
pragmtico-discursivos que compe o perfil do da que, desde uso como conector lgico a
usos como operador argumentativo.
A seguir, passamos a revisar outros estudos lingusticos para que, paralelamente,
possamos, cada vez mais, refinar e justificar o tratamento que propomos para o da que.
Em abordagem funcionalista sobre as construes causais, Neves (1999:475-476)
considera que estas apresentam entre si uma relao lato sensu de causa a efeito, esclarecendo
que causa abrange causa real, razo motivo, justificativa ou explicao, e efeito abrange
consequncia real, resultado, concluso (negritos originais). Trata-se de abordagem
semelhante de Vilela e Koch (2001:501) e de Koch (1987), quando estes defendem,
conforme demonstramos anteriormente, que a relao causa-consequncia pode ser veiculada
sob diversas formas estruturais, uma delas possivelmente estabelecida pelo conector da que,
como nas parfrases que reapresentamos a seguir:
O torcedor gritou demais; da que, ficou rouco
Choveu demais; da que, o riacho transbordou.
Percebemos, em ambos os casos, que o conector opera na abrangncia do efeito,
simultaneamente no que a tradio gramatical chama de coordenao e subordinao: ao
mesmo tempo que sintaticamente liga oraes com vnculo mais frouxo, podendo at ser
separadas graficamente por pausa, semanticamente o nexo se d na seara da causalidade,
expressando consequncia real, j que se trata da codificao de dois eventos externos
lngua.
A esse respeito, Halliday e Matthiessen (2014:611), representantes da lingustica
sistmico-funcional, esclarecem que as relaes que se estabelecem na situao comunicativa
unem segmentos do texto, seja em blocos (chunk) de experincia, seja em blocos de interao.
Ainda segundo os autores,
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[r]elaes entre representaes de segmentos de experincia so chamadas relaes
externas, e as conjunes que marcam tais relaes so denominadas conjunes
externas. (...) Relaes que unem segmentos de texto no seu aspecto interpessoal
so chamadas de relaes internas internas ao texto como um evento de fala, e as
conjunes que marcam tais relaes so denominadas conjunes internas
(Halliday e Matthiessen, 2014:611).
De acordo com Neves (1999:473), relao externa pode ser chamada ainda de
experiencial, e interpretada como uma relao entre os significados no sentido de
representaes de contedos (ou experincias) da realidade externa. J a relao interna
aquela em que segmentos so relacionados como etapas em um argumento. Trata-se, pois, de
uma relao interna situao comunicativa, que se d entre significados, no sentido das
representaes das impresses particulares do falante acerca da situao. Desse modo, relao
interna corresponde ao domnio epistmico e aos nveis da proposio8. A autora chama o
primeiro tipo de relao entre eventos e o segundo de relao entre argumentos.
Entretanto, conforme Neves (1999:473) destaca em seguida, as construes causais
no se operam simplesmente entre predicaes, ou estado de coisas correspondente ao nvel
de contedo de Sweetser (1990, apud Neves, 1999:472) , situando-se, mais geralmente,
numa camada superior, no mnimo a proposio fato possvel, em correspondncia com o
nvel epistmico igualmente de Sweetser (1990, apud Neves, 1999:472). No que temos
observado para o conector da que, esse quadro pertinente, com certo predomnio na
expresso de relaes externas.
Portanto, a abrangncia da causa e do efeito nas construes causais, conforme
descritos por Neves (1999:475-476), contempla o que temos observado para o conector da
que, especialmente no que diz respeito abrangncia do efeito. Nos dados coletados,
encontramos usos em que o conector da que veicula:
I) consequncia real, como demonstrado na instanciao a seguir, que retoma a (2a); trata-se
de relao externa situao comunicativa, entre eventos, experiencial ou de contedos,
correspondendo ao que Halliday e Matthiessen (2014:611) denominam conjuno externa:
(2a) A rampa de acesso s garagens fica a metro e meio da janela do meu quarto, da que fico
obrigado a ouvir os rudos qualquer hora do dia e da noite e a receber os fumos dos escapes
dos carros.
8 Para Koch (1987), o termo proposio abrange indistintamente atos de fala nicos e atos de fala diferentes.
Para Neves (1999), proposio abrange relaes entre argumentos e valores epistmicos.
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II) concluso, como nos fragmentos (3a) e (4a), tambm instanciados anteriormente; trata-se
de relao interna situao comunicativa, entre argumentos, que veicula as impresses do
enunciador a respeito da situao, correspondendo ao que Halliday e Matthiessen (2014:611)
denominam conjuno interna:
(3a) A estrutura do poder reflete hoje somente um determinado modo de encaminhamento das
decises no labirinto organizacional da mquina pblica. Da que novas formas de corrupo
podem florescer.
(4a) Quando o Rainha deu um tiro de caadeira, num dia de arraial, ao homem da amante,
chamaram-lhe, evidentemente, inoque, por ser um devasso e um assassino de caadeira. Da
que fsse fcil meter tambm no inoque o assassino de faca e a cria de porta aberta.
Vale destacar que nem sempre as fronteiras entre esses usos so claramente
delimitadas. Na verdade, entre as oraes complexas que expressam causa-consequncia, h
predomnio de uma ou outra relao externa ou interna , mas, seja de forma mais explcita,
seja de forma mais desbotada, a presena de marcas lingusticas de ordem epistmica muito
frequente. Talvez por isso Neves (1999:473) afirme que as construes causais se situam mais
geralmente na camada da proposio.
Em outra obra de abordagem funcionalista, Gramtica de Usos do Portugus, Neves
(2000:913-924), alm de retomar as construes causais, trata especificamente das
construes consecutivas. Quanto ao modo de construo, a autora destaca que so dois os
tipos principais: construes consecutivas com antecedente (correlativas) e construes
consecutivas sem antecedente (no correlativas). So as segundas que nos interessam
diretamente:
So construes que tm a orao consecutiva iniciada pelo que tradicionalmente
se denomina locues conjuntivas consecutivas: DE (TAL) MODO QUE, DE
(TAL) MANEIRA QUE, DE (TAL) SORTE QUE, A TAL PONTO QUE. As oraes
desse tipo exprimem, mais especificamente, um resultado: (Neves, 2000:914)
(negritos originais)
Na sequncia, a autora apresenta uma srie de exemplos, dos quais destacamos os
seguintes9:
9 Entre parnteses, ao final de cada exemplo, a autora apresenta a sigla da obra examinada. Assim, G-O se refere
a Desenvolvimento e Independncia discurso; PE se refere a Prticas escolares. DAVILLA, A. So Paulo: Saraiva, 1954. 3v; CRE se refere a O crepsculo do macho. GABEIRA, F., 1980; e AC se refere a Auto da
compadecida. SUASSUNA, A. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1963.
http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2013/07/04/sem-automatismo/
41
a) Vamos mobilizar o povo para o desenvolvimento, DE MODO QUE ele tenha plena
conscincia da sua misso. (G-O)
b) Escola nica a organizao unitria das instituies educacionais de um povo,
DE SORTE QUE elas sejam acessveis a todos os seus membros. (PE)
c) A porta dos fundos ficava aberta para mim, DE MANEIRA QUE podia entrar e
sair vontade. (CRE)
d) O padeiro vive dizendo que amigo do homem, DE MODO QUE a diferena
muito pouca. (AC)
Apesar de no termos acesso aos contextos completos nos quais esses exemplos se
inserem, o que temos verificado para o conector da que nos permite fazer algumas
associaes com o que se tem na literatura. No exemplo a), no h qualquer possibilidade de
parfrase utilizando-se o da que:
*Vamos mobilizar o povo para o desenvolvimento, DA QUE ele tenha plena
conscincia da sua misso.
Trata-se de um indcio de que a predicao da orao antecedente quela introduzida
pelo conector da que no pode estar no modo imperativo, veiculando sugesto, pedido,
ordem em atos de fala semelhantes a esses. Tampouco a orao subsequente, encabeada pelo
da que, pode ter o valor de meta, finalidade. De fato, no encontramos esse tipo de relao
nos dados que investigamos.
Quanto aos exemplos b) at d), as parfrases so sintaticamente possveis, guardadas
as devidas diferenas entre as locues conjuntivas cujos ncleos so nomes (modo, maneira,
sorte) e a que representada pelo nosso objeto de estudo, cujo ncleo pronome adverbial
locativo (da). Aquelas so mais lexicais do que esta, e isso se reflete no mbito semntico-
pragmtico.
Escola nica a organizao unitria das instituies educacionais de um povo,
DA QUE elas sejam acessveis a todos os seus membros.
A porta dos fundos ficava aberta para mim, DA QUE podia entrar e sair vontade.
O padeiro vive dizendo que amigo do homem, DA QUE a diferena muito
pouca.
Em b) e sua respectiva parfrase, trata-se de uma relao interna situao
comunicativa, veiculando as impresses do enunciador a respeito da situao; tal subjetivao
confirmada pelo uso de forma verbal no subjuntivo na orao encabeada pelo conector. Em
c) e sua respectiva parfrase, encontra-se uma relao externa situao comunicativa,