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UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO
ENOQUE: UM LIVRO PROFTICO PARA O CRISTO
POR
FILIPE DE OLIVEIRA GUIMARES
SO BERNARDO DO CAMPO
2015
FILIPE DE OLIVEIRA GUIMARES
ENOQUE: UM LIVRO PROFTICO PARA O CRISTO
Tese apresentada em cumprimento s exigncias do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo, para obteno do grau de Doutor. rea de Concentrao: Linguagens da Religio Orientador: Prof. Dr. Trcio Machado Siqueira
SO BERNARDO DO CAMPO
2015
A tese de doutorado sob o ttulo ENOQUE: UM LIVRO PROFTICO PARA O CRISTO, elaborada por FILIPE DE OLIVEIRA GUIMARES, foi defendida e aprovada em 17 de abril de 2015, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Trcio Machado Siqueira (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg (Titular/UMESP), Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (Titular/UMESP), Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari (Titular/UNICAMP) e Prof.a Dr.a Eunice Simes Lins Gomes (Titular/UFPB).
________________________________________ Prof. Dr. Trcio Machado Siqueira
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa do PPGCR
Programa: Cincias da Religio rea de Concentrao: Linguagens da Religio Linha de Pesquisa: Literatura e Religio no Mundo Bblico
A minha esposa Raquel e filhos Davi e Sarah,
razo de todas as minhas conquistas.
AGRADECIMENTOS
O doutorado foi um perodo intenso. Foram trs anos de extraordinrias experincias
acompanhadas de uma alternncia de sensaes. Experimentamos a emoo de ver a famlia
aumentar, mas tambm a tenso angustiante de quase ver a famlia diminuir, vivenciamos a
alegria de fazer novos amigos e conviver com indivduos maravilhosos, acompanhado da
saudade do aconchego de pessoas especiais que fazem parte da nossa histria, porm,
encontram-se geograficamente distantes.
No mbito acadmico desfrutamos da alegria e satisfao de experimentar progresso.
Acima de tudo, sou grato a Deus pelas grandes conquistas que j integram a nossa vida
profissional e fazem parte do nosso ser. Tambm sou imensamente grato minha esposa
Raquel que me apoiou de uma forma preciosa ao permitir sobrecarregar-se por entender a
minha necessidade de muitas vezes estar em um ambiente isolado, viajar, estar junto da
academia ao invs da famlia, para que pudssemos dar conta de toda a demanda que um
doutorado exige. Meu desejo que esta tese se converta em todo bem que ela merece.
Tambm sou imensamente grato aos meus filhos, Davi e Sarah, por darem aos meus
dias de tenso a leveza que s os limpos de corao so capazes de oferecer, que nos atingia
atravs de um sorriso, do convite a uma brincadeira, ao pronunciarem um papai cheio de
euforia quando eu chegava ao nosso domiclio. Recentemente, enquanto eu andava um pouco
sobrecarregado na construo deste trabalho, desfrutei de uma sensao de suavidade ao ouvir
a pequena, que est aprendendo a falar, pronunciar tese! O que me fez constatar que a
profisso de docente continua tendo futuro no Brasil.
Tenho especial gratido FAPESP por ter-me dado asas para voar! (literalmente
utilizei aeronaves dezenas de vezes procura de bibliotecas especializadas). Por causa do
importante investimento que a instituio faz em seus bolsistas, pude participar de congressos
nacionais e internacionais e realizar pesquisas em vrias universidades, tais como: Oxford,
Harvard, Cambridge, Edimburgo, Chicago, Boston, Notre Dame, Glasgow, Brandeis,
McGill, Concordia, Toronto e Hebraica de Jerusalm, alm de fazer um curso de Arqueologia
nesta ltima. Porm, sou grato, principalmente, porque a FAPESP me garantiu condies de
cuidar da minha famlia durante todo o doutorado.
Sou grato ao IEPG, que durante trs anos investiu em nossas pesquisas. Desejo
destacar a pessoa do Prof. Dr. Jung Mo Sung pela grande colaborao (tanto atravs do IEPG
como acadmica) e Ana Maria Fonseca que se tornou uma amiga, alm de ser uma excelente
profissional junto ao IEPG.
Agradeo ao meu orientador Prof. Dr. Trcio Machado Siqueira, que participou
ativamente de toda a minha vida acadmica. Tambm sou grato queles que considero
coorientadores desta tese. Os professores: Vanderkam, James Charlesworth, Christopher
Rowland, Gabriele Boccaccini, Lorenzo DiTommaso, Pierluigi, Loren Stuckenbruck,
professores distintos com quem tive a oportunidade de conviver e que deram grandes
contribuies para o resultado final deste trabalho.
Tambm desejo registrar neste espao minha gratido ao amigo fillogo Bronson
Brown-de Vost, que nos convidou a ficar hospedado em sua casa, junto sua maravilhosa
famlia, durante minha passagem por Boston. Sou-lhe grato por todo bem que nos fez, pelas
preciosas conversas que tivemos, pelos momentos de descontrao e por ter nos auxiliado
junto s universidades de Brandeis e Harvard.
Finalizo agradecendo a todos os amigos e familiares que direta ou indiretamente se
fizeram presentes na concretizao deste trabalho. Destaco em especial minha me Jairene e
minha sogra Carmlia que vrias vezes vieram a So Paulo para ajudar com a famlia durante
os momentos em que tive que ausentar-me semanas viajando para realizar pesquisas.
A Deus toda Honra, Glria e Louvor!
http://apps.brandeis.edu/directory/run_query?attr=mailAcceptingGeneralId&clause=is&query=bronson&limit=Anyonehttp://apps.brandeis.edu/directory/run_query?attr=mailAcceptingGeneralId&clause=is&query=bronson&limit=Anyone
Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino
e a sua justia, e todas estas coisas vos sero
acrescentadas. Mt 6:33
Jesus Cristo
RESUMO
At o sculo IV d.C. era comum, entre os cristos, a leitura do livro pseudepgrafo de
I Enoque. O embrio da rejeio comeou no sculo II, com Jlio Africano, e atingiu o seu
auge no sculo IV com Agostinho de Hipona. Porm, o posicionamento oficial, no
cristianismo ocidental, que descredenciou o escrito de I Enoque como uma literatura til f,
deu-se no Conclio de Laodiceia (Sc. IV) que afirmou que os nicos nomes de anjos
autorizados pelas Escrituras seriam o de Miguel, Gabriel e Rafael, afastando I Enoque (que
cita vrios nomes de anjos) do cenrio teolgico, at pocas recentes no Ocidente. O grande
personagem do cristianismo foi um homem reconhecido na Palestina como Rabi, ttulo que
pressupunha o conhecimento das principais literaturas apreciadas pelos judeus. consenso
entre a maioria dos estudiosos do Segundo Templo que o escrito de I Enoque ocupava um
lugar distinto no cenrio literrio daquela poca. A presente tese nasceu de uma desconfiana
plausvel, inserida dentro do contexto cultural do I sculo da era crist, de que Jesus Cristo
conhecia o livro de I Enoque. Mas, no somente isso, a desconfiana evoluiu para a
possibilidade de que ele tenha feito uso do escrito construindo ensinos embasados no mesmo.
A pesquisa teve como objetivo geral: Pesquisar a relao entre Jesus de Nazar e o Escrito
de I Enoque. No que se refere aos seus procedimentos tcnicos, a pesquisa de natureza
bibliogrfica, exploratria e documental. Para que esta pesquisa ganhasse forma, fizemos uso
da proposta historiogrfica do Jesus Histrico, bem como desenvolvemos uma metodologia
chamada Anlise dos Ditos de Jesus (ADJ), para ser utilizada na investigao de ditos
atribudos a Jesus contidos nos evangelhos. O primeiro captulo, alm de ser uma anlise do
livro de I Enoque abordando o escrito sobre vrias perspectivas, foi construdo objetivando
trazer academia brasileira as informaes mais recentes sobre as pesquisas relacionadas a
I Enoque, em dilogo com os principais pesquisadores da obra. O segundo captulo foi
desenvolvido com vistas a examinarmos, pela historiografia, o potencial de alguns ditos, de
serem originrios da pessoa de Jesus. O terceiro e ltimo captulo apresenta uma aproximao
entre os ditos trabalhados e o livro de I Enoque. O resultado final indica que a literatura
enoqueana pode ter ocupado um lugar de destaque entre os escritos estimados por Jesus
Cristo.
Palavras-chaves: Jesus Histrico. I Enoque. Enoque. Cristianismo Primitivo. Segundo
Templo. Evangelhos. Memria. Tradio Oral.
ABSTRACT
Until the fourth century AD, was common among Christians, to read the book of I Enoch. The
embryo of rejection began in the second century, with Julius Africanus, and reached its peak
in the fourth century with Augustine of Hippo. However, the official position, in Western
Christianity, which rejected the writing of I Enoch as a useful literature to faith, happened at
the Council of Laodicea (century IV) who said that the only names of angels authorized by
the Scriptures would be the Miguel, Gabriel and Raphael. this position deleted the book of
Enoch (book that makes reference to several names of angels) from the books useful for
theological research, until recent times in the West. The great character of Christianity was a
man recognized in Palestinian as Rabbi. This title presupposes knowledge of the main
literature enjoyed by the Jews. The consensus among most of the Second Temple scholars, is
that the writing of I Enoch occupied a distinct place in the literary scene of that time. This
thesis was born from a plausible suspicion, which is embedded within the cultural context of
the I century AD, that Jesus knew the Book of I Enoch. But not only that, distrust develops in
the possibility that he has studied the writing and he built teachings based on that text. The
research had as general objective: Find the relationship between Jesus of Nazareth and the
Written I Enoch. With regard to its technical procedures, research is bibliographic,
exploratory and documentary. For this research to gain form, we used the historiographical
proposal of the Historical Jesus, and have developed a methodology called Analysis of the
Sayings of Jesus (ASJ), for use in the investigation of sayings attributed to Jesus contained in
the Gospels. The first chapter, besides being a book review of I Enoch addressing the book on
various perspectives, was built aiming to bring the Brazilian Academy the latest information
on research related to I Enoch, in dialogue with the principal investigators of this literature.
The second chapter was developed in order to examine by historiography, the potential of
some words recorded in the Gospels in being originates from the person of Jesus. The third
and last chapter presents an approach among words that were examined and the Book of I
Enoch. The end result indicates that the literature of Enoch may have occupied a prominent
place among the estimated written by Jesus Christ.
Key Words: Historical Jesus. I Enoch. Enoch. Early Christianity. Second Temple. Gospels.
Memory. Oral Tradition.
RESUMEN
Hasta el siglo IV dC fue comn entre los cristianos, la lectura del libro de Enoc. El embrin
de rechazo se inici en el siglo II, con Julio Africano, y alcanz su apogeo en el siglo cuarto
con Agustn de Hipona. Sin embargo, la posicin oficial, en el cristianismo occidental, que
descredenciou la escritura de I Enoc como una literatura til a la fe, sucedi en el consejo de
Laodicea (siglo. IV). Este consejo afirm que los nicos nombres de ngeles autorizados por
las Escrituras sera el Miguel, Gabriel y Rafael. Esta posicin fue responsable de excluir Enoc
(este libro cita varios nombres de ngeles) la escena teolgica, hasta tiempos recientes en el
Oeste. El gran personaje del cristianismo era un hombre conocido como Rab en Palestina.
Este ttulo presupone el conocimiento de la literatura principal gozan los Judios. El consenso
entre la mayora de los estudiosos del Segundo Templo, que la escritura de I Enoc ocupaba un
lugar distinto en la escena literaria de la poca. Esta tesis nace de una sospecha plausible, que
se inscribe en el contexto cultural del siglo I, que Jess saba da existencia de Enoc. Pero no
slo eso, la desconfianza se convierte en la posibilidad de que l ha estudiado el escrito y
construido enseanzas basado en el libro. La investigacin tuvo como objetivo general:
Encontrar la relacin entre Jess de Nazaret y el I Escrito Enoc. En relacin con sus
procedimientos tcnicos, la investigacin es bibliogrfica, exploratoria y documental. Para
esta investigacin ganar forma, utilizamos la propuesta historiogrfica del Jess histrico, y
hemos desarrollado una metodologa denominada Anlisis de los Dichos de Jess (ADJ), para
su uso en la investigacin de dichos atribuidos a Jess contenida en los Evangelios. El primer
captulo es una resea del libro de Enoc y direcciones escritas en diversos puntos de vista, fue
construido con el objetivo de llevar la Academia Brasilea de la informacin ms reciente
sobre las bsquedas relacionadas el libro de I Enoc, en dilogo con los investigadores
principales del libro. El segundo captulo fue desarrollado con el fin de examinar con la
historiografa, el potencial de algunos dichos registra en los Evangelios, proceden de la
persona de Jess. El tercer y ltimo captulo presenta un enfoque trabajado entre los dichos y
el libro de Enoc. El resultado final indica que el libro de Enoc pudo haber ocupado un lugar
destacado entre los libros importante para Jess.
Palabras clave: Jess histrico. I Enoc. Enoc. El cristianismo primitivo. Segundo Templo.
Evangelios. Memoria. Tradicin Oral.
SIGLAS E ABREVIATURAS
LIVROS DA BBLIA
Gn
Gnesis
Lv Levtico
I Rs Primeiro Reis
Sl Salmos
Is Isaas
Ez Ezequiel
Dn Daniel
Mt Mateus
Mc Marcos
Lc Lucas
Jo Joo
At Atos
I Pe Primeiro Pedro
Jd Judas
DOCUMENTOS ANTIGOS
Ena
Primeira cpia do livro de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Enb Segunda cpia do livro de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Enc Terceira cpia do livro de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
End Quarta cpia do livro de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Ene Sexta cpia do livro de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Enf Sexta cpia do livro de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Eng Stima cpia do livro de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Enastra Primeira cpia do livro astronmico de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Enastrb Segunda cpia do livro astronmico de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Enastrc Terceira cpia do livro astronmico de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
Enastrd Quarta cpia do livro astronmico de Enoque encontrada na caverna 4 de Qumran
4QEna 1iii Caverna IV, primeira cpia do livro de Enoque, fragmento 1iii
OUTRAS ABREVIAES E SIGLAS
a.C.
Antes de Cristo
ADJ Anlise dos Ditos de Jesus
A.T.
Cap.
Antigo Testamento
Captulo
C.R. Cincias da Religio
d.C.
DJD
Depois de Cristo
Discoveries in the Judaean Desert
EOTC Ethiopian Orthodox Tewahedo Church
I En Primeira Enoque
II En Segunda Enoque
III En Terceira Enoque
IAA Israel Antiquities Authority
Ibid.
Id.
loc. cit.
N.T.
op. cit.
Ibidem (do mesmo autor e do mesmo livro)
Idem (do mesmo autor)
lugar citado
Novo Testamento
obra citada
OTA Old Testament Apocrypha
OTP Old Testament Pseudepigrapha
Sc. Sculo
A.T.
VTP
Velho Testamento
Velho Testamento Pseudoepigrfico
http://en.wikipedia.org/wiki/Ethiopian_Orthodox_Tewahedo_Church
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 - Cesareia Martima........................................................................................... 31
Figura 2 - Arena de jogos em Cesareia Martima............................................................ 31
Figura 3 - Fortaleza de Massada...................................................................................... 32
Figura 4 - Stio arqueolgico de Qumran........................................................................ 33
Figura 5 - Miqv em Qumran.......................................................................................... 34
Figura 6 - Cemitrio em Qumran..................................................................................... 35
Figura 7 - Refeitrio em Qumran.................................................................................... 36
Figura 8 - Curral em Qumran.......................................................................................... 37
Figura 9 - Santurio do Livro localizado no Museu de Israel......................................... 39
Figura 10 - Caverna IV em Qumran.................................................................................. 40
Figura 11 - Fragmento Aramaico 1................................................................................... 44
Figura 12 - British Library................................................................................................. 49
Figura 13 - Muralhas no topo de Massada......................................................................... 85
Figura 14 - Cisterna no interior de Massada...................................................................... 86
Figura 15 - Dispensa em Massada..................................................................................... 86
Figura 16 - Terraos encontrados no topo de Massada..................................................... 87
Figura 17 - Sauna em Massada.......................................................................................... 87
Figura 18 - Runa de acampamento construdo pelos romanos em Massada.................... 88
Figura 19 - Rampa construda pelos romanos................................................................... 88
Figura 20 - Runas de Cafarnaum...................................................................................... 90
Figura 21 - Mosaico em antiga sinagoga de Sforis.......................................................... 90
Figura 22 - Mateus como fonte primria........................................................................... 101
Figura 23 - Marcos como fonte primria........................................................................... 101
Figura 24 - Tribo na Amaznia......................................................................................... 123
Figura 25 - Fragmento aramaico 2..................................................................................... 145
Figura 26 - Fragmento Aramaico 2.1................................................................................ 145
Figura 27 - Fragmento Aramaico 2.2................................................................................ 146
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Livro dos Vigilantes (Cap. 1-36).................................................................. 40
Tabela 2 - Livro das Parbolas (Cap. 37-71)................................................................. 40
Tabela 3 - Livro Astronmico (Cap. 72-82).................................................................. 41
Tabela 4 - Livro dos Sonhos (Cap. 83-90)..................................................................... 41
Tabela 5 - Epstola de Enoque (Cap. 91-108)................................................................ 41
Tabela 6 - Primeiro Dito................................................................................................ 136
Tabela 7 - Segundo Dito................................................................................................ 137
Tabela 8 - Terceiro Dito................................................................................................. 138
Tabela 9 - Quarto Dito .................................................................................................. 139
Tabela 10 - Quinto Dito .................................................................................................. 140
Tabela 11 - Sexto Dito .................................................................................................... 141
Tabela 12 - Traduo de 4QEnc 1i.................................................................................. 146
Tabela 13 - Expresso Filho do Homem na Bblia.......................................................... 153
Tabela 14 - Filho do Homem: Significado em Ezequiel, Daniel e Parbolas................. 156
Tabela 15 - Significados para a expresso Filho do Homem.......................................... 157
Tabela 16 - Os ais nos evangelhos............................................................................... 165
Tabela 17 - Os ais no Antigo Testamento e no livro de I Enoque............................... 166
SUMRIO
INTRODUO...................................................................................................................... 16
1 SOBRE I ENOQUE: ENTRE O CONTEXTO REDACIONAL E A
ATUALIDADE....................................................................................................................... 23
1.1 Enoque: um escrito proeminente ................................................................................. 23
1.2 O Perodo do Segundo Templo e o helenismo: um breve esboo ............................. 25
1.3 O livro aramaico de I Enoque e sua relao com Qumran ....................................... 33
1.4 O Livro grego de I Enoque ........................................................................................... 45
1.5 O livro etope de I Enoque ............................................................................................ 46
1.6 O livro eslavo de Enoque ou II Enoque ....................................................................... 50
1.7 O livro hebraico de Enoque ou III Enoque ................................................................. 52
1.8 Origem redacional de I Enoque ................................................................................... 53
1.9 O gnero literrio de I Enoque .................................................................................... 55
1.10 I Enoque: apcrifo ou pseudoepgrafo? ...................................................................... 58
1.11 I Enoque: um registro de tradies orais .................................................................... 62
1.12 O contedo do livro pseudoepgrafo de I Enoque ...................................................... 67
1.12.1 Livro dos Vigilantes (1-36) .......................................................................................... 69
1.12.2 Livro das Parbolas (37-71) ......................................................................................... 71
1.12.3 Livro Astronmico (72-82) ........................................................................................... 71
1.12.4 Livro dos Sonhos (83-90) ............................................................................................. 71
1.12.5 Epstola de Enoque (91-105) ....................................................................................... 72
1.12.6 O Nascimento de No (106-107) .................................................................................. 72
1.12.7 O Livro Final de Enoque (108)..................................................................................... 72
1.13 Seminrio de Enoque ................................................................................................... 72
2 DITOS HISTORIOGRFICOS DE JESUS DE NAZAR ...................................... 75
2.1 Fases da pesquisa histrica da vida de Jesus .............................................................. 75
2.1.1 Primeira fase da pesquisa historiogrfica da vida de Jesus ............................................. 76
2.1.2 Segunda fase da pesquisa historiogrfica da vida de Jesus ............................................ 77
2.1.3 Terceira fase da pesquisa historiogrfica da vida de Jesus ............................................. 77
2.1.4 Quarta fase da pesquisa historiogrfica da vida de Jesus ............................................... 80
2.1.4.1 Grego: uma lngua utilizada por Jesus em seu ministrio ........................................... 82
2.1.5 Quinta fase da pesquisa historiogrfica da vida de Jesus ................................................ 94
2.1.5.1 O lugar do documento Q no estudo do Jesus Histrico ............................................... 99
2.2 O calcanhar de Aquiles da metodologia do Jesus Histrico ................................ 102
2.3 Histria das Religies: proposta metodolgica de Mircea Eliade .......................... 106
2.4 Tillich: ponderaes sobre o Jesus Histrico ........................................................... 116
2.5 Memria nos Evangelhos: entre a preservao e transmisso de ditos ................. 121
2.6 Anlise dos Ditos de Jesus (ADJ): Proposta metodolgica brasileira para a
investigao historiogrfica dos ditos de Jesus .................................................................. 131
2.6.1 Etapas da ADJ ............................................................................................................... 132
2.6.2 Analisando os ditos de Jesus ........................................................................................ 135
2.6.2.1 Primeiro dito .............................................................................................................. 136
2.6.2.2 Segundo dito ............................................................................................................... 137
6.2.2.3 Terceiro dito ............................................................................................................... 138
2.6.2.4 Quarto dito ................................................................................................................. 139
2.6.2.5 Quinto dito .................................................................................................................. 140
2.6.2.6 Sexto dito .................................................................................................................... 141
3 RELAO DO JESUS HISTRICO COM O LIVRO DE I ENOQUE .............. 142
3.1 O Livro dos Vigilantes (1-36) e sua relao com o Jesus Histrico ........................ 142
3.2 O Livro das Parbolas (37-71) e sua relao com o Jesus Histrico ...................... 147
3.3 O Livro Astronmico (72-82) e sua relao com o Jesus Histrico ........................ 157
3.4 O Livro dos Sonhos (83-90) e sua relao com o Jesus Histrico ........................... 160
3.5 A Epstola de Enoque (91-105) e sua relao com o Jesus Histrico ...................... 162
CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................. 166
REFERNCAS..................................................................................................................... 172
APNDICE A ....................................................................................................................... 181
APNDICE B ....................................................................................................................... 182
APNDICE C ....................................................................................................................... 190
16
INTRODUO
I Enoque uma das literaturas mais fascinantes redigida na poca do Segundo
Templo. O fascnio reside na constatao de que este escrito uma chave capaz de abrir
portas para a compreenso de escritos cannicos, o que tambm significa compreenso das
crenas presentes na cultura relacionadas ao Antigo Testamento e outras ao Novo Testamento
(N.T.). Ele uma espcie de pedra literria que os telogos posteriores a Agostinho
rejeitaram, e que veio a ser a principal pedra angular para compreenso de algumas crenas
relevantes que marcaram o judasmo e o cristianismo primitivo.
O nosso interesse em pesquisar a literatura enoqueana comeou no ano de 2002,
quando estudava o livro de Judas e nos deparamos com a seguinte passagem: e a anjos, os
que no guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu prprio domiclio, ele tem
guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juzo do grande Dia (Jd 6). Um pouco mais
adiante lemos:
Quanto a estes foi que tambm profetizou Enoque, o stimo depois de Ado, dizendo: Eis que veio o Senhor entre suas santas mirades, para exercer juzo contra todos e para fazer convictos todos os mpios, acerca de todas as obras mpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes que mpios pecadores proferiram contra ele (Jd 14,15).
Procuramos entre os livros veterotestamentrios textos que fizessem conexo com as
palavras de Judas sobre os anjos que no guardaram o seu estado original, abandonaram o
seu domiclio, esto guardados em trevas, bem como a profecia que Judas atribui a
Enoque, mas no encontramos nada nos textos bblicos, acentuando ainda mais nossa
curiosidade. E por que no os encontramos? Naturalmente, porque esta citao textual e
crenas no se encontram l! Esto em I Enoque. Porm, naquela ocasio nunca tnhamos
ouvido falar do livro de Enoque.
Nos anos que se seguiram, por causa do labor acadmico relacionado aos cursos de
Teologia e Administrao de Empresas, no tivemos tempo de nos dedicarmos a essa
investigao. Vez por outra pensvamos no assunto, mas ainda no era chegada a hora de o
mesmo ocupar a nossa escrivaninha.
Em 2009 chegou o momento de iniciar a investigao, no de uma forma acadmica,
mas autodidata. O primeiro escrito com que tivemos contato, na literatura brasileira,
relacionado ao assunto foi o livro de Caio Fbio chamado Nephilim, que uma literatura
17
ficcional que se utiliza de I Enoque. A partir de ento, aos poucos comevamos a adentrar ao
mundo literrio do Segundo Templo.
Em 2010 tivemos a oportunidade de, finalmente, levar o nosso anseio investigativo
para o ambiente acadmico. Ingressamos no Programa de Ps-Graduao em Cincias das
Religies (PPGCR) da Universidade Federal da Paraba (UFPB), para fazer o mestrado,
desenvolvido em parceria com a UMESP (sanduche) e concludo em 2011 com a defesa da
dissertao: Enoque: nos bastidores de crenas angelolgicas no cristianismo primitivo.
Finalizamos o mestrado com uma plausvel desconfiana de que existiam provveis
relaes entre I Enoque e os Evangelhos. Em dezembro de 2011 recebemos a notcia que
havamos passado no processo seletivo da UMESP e em maro de 2012 iniciamos o
doutorado com o objetivo de investigar se o Jesus Histrico conheceu e utilizou o livro de
I Enoque na construo de alguns dos seus ensinamentos.
At o sculo IV d.C. era comum, entre os cristos, a leitura do livro pseudepgrafo de
I Enoque. O embrio da rejeio comeou no sculo II, com Jlio Africano, e atingiu o seu
auge no sculo IV com Agostinho de Hipona. Porm, o posicionamento oficial, no
cristianismo institucionalizado, que descredenciou o escrito de I Enoque como uma literatura
til f, deu-se no Conclio de Laodiceia (Sc. IV) que afirmou que os nicos nomes de anjos
autorizados pelas Escrituras seriam o de Miguel, Gabriel e Rafael, afastando I Enoque (que
cita vrios nomes de anjos) do cenrio teolgico, at pocas recentes no Ocidente.
Os ciclos protestantes foram bastante eficazes em evitar obras semelhantes aos livros
de Enoque, desenvolvendo slogans que rebaixassem literaturas produzidas no Perodo
Interbblico1. Telogos, falaram desse perodo como o perodo dos 400 anos do silncio
divino ou 400 anos do silncio proftico. Estas frases de efeito tinham a inteno de
desviar o olhar exegtico de obras no cannicas que se acreditava no ter algo de muito
positivo a oferecer.
Porm, desde o sculo XVIII, quando o Ocidente voltou a ter contato com o Livro de
I Enoque, um processo investigativo exegtico de literaturas produzidas na poca do Segundo
Templo passou a fazer parte dos anseios da comunidade cientfica interessada em conhecer o
cristianismo primitivo, bem como o judasmo desenvolvido naquele perodo.
Nomes como J. B. Migne, R. Laurence, R. H. Charles, foram basilares na investigao
de Enoque, principalmente nos sculos XIX e XX, revelando a importncia desse escrito para
a investigao teolgica. Com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, em meados do
1 O perodo de 400 anos anteriores era crist.
18
sc. XX, o interesse pela literatura ampliou-se, aps a constatao arqueolgica de que este,
de fato, era um escrito anterior era crist, ao ponto de que hoje grandes estudiosos
consideram I Enoque a mais importante obra literria produzida na poca do Segundo
Templo.
Estamos convencidos de que todos os interessados em conhecer o cristianismo
primitivo e entender melhor o texto neotestamentrio, ou mesmo o judasmo daquele perodo,
deveriam interessar-se por I Enoque. A presente investigao constatou que este escrito pode
estar presente no N.T. mais do que se pensava, posto que muito provavelmente foi um escrito
apreciado e estudado por Jesus de Nazar.
Baseado na hiptese de que Jesus conhecia o Livro de Enoque, a pesquisa teve como
objetivo geral: Pesquisar a relao entre Jesus de Nazar e o Escrito de I Enoque. Este est
formulado nas seguintes constataes:
1 - I Enoque citado explicitamente em textos cannicos.
2 - Os evangelhos descrevem Jesus como Rabi, o que pressupunha amplo conhecimento da
literatura judaica.
3 - Distintos escritos judaicos anteriores era crist, como por exemplo, o Livro dos
Jubileus, Testamento dos 12 Patriarcas, Testamento de Naftali, Orculos Sibilinos e
Documento de Damasco, citam I Enoque.
4 - Diversos Pais da Igreja utilizaram Enoque, a exemplo de Justino o Mrtir, Atengoras,
Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria e Cipriano de Cartago, o que mostra a importncia
da literatura enoquiana no cristianismo primitivo.
Em relao aos objetivos especficos a pesquisa buscou:
1 - Apresentar a importncia do Livro de I Enoque no judasmo do Segundo Templo.
2 - Comprovar, pela cincia historiogrfica, que alguns ditos que os evangelhos atribuem a
Jesus possuem elevadas chances de serem autnticos.
3 - Verificar se h relao entre o Livro de I Enoque e provveis ditos do Jesus Histrico
presentes nos evangelhos cannicos.
No que se refere aos seus procedimentos tcnicos, a pesquisa de natureza
bibliogrfica, exploratria e documental. A pesquisa bibliogrfica procura auxiliar na
compreenso de um problema a partir de referncias publicadas em documentos. Ela se
caracteriza pela leitura, anlise e interpretao de livros e artigos visando ao conhecimento
das diferentes contribuies cientficas disponveis sobre determinada temtica, alm de
buscar conhecer e analisar contribuies culturais, ou cientficas, do passado sobre
19
determinado assunto, tema ou problema2. A pesquisa tambm de natureza documental, posto
que analisou fontes originais, a saber: fragmentos de manuscritos encontrados em Qumran.
O procedimento exploratrio busca maiores informaes sobre o assunto investigado.
Tem como caractersticas principais a busca por familiarizar-se ou obter nova percepo do
fenmeno e descobrir novas ideias ou identificar as relaes existentes entre os elementos
componentes do fenmeno. Sua metodologia bastante flexvel para analisar diversos
aspectos do problema, recomendada quando se detectam poucos conhecimentos sobre a
questo a ser investigada3.
Fizemos uso do mtodo qualitativo que , basicamente, aquele que busca entender um
fenmeno em profundidade. Diferente da quantitativa que se utiliza de estatsticas, regras e
outras generalizaes, a pesquisa qualitativa trabalha com descries, interpretaes e
comparaes. Ela possui um carter mais aberto e, portanto, menos controlvel, concedendo
ao pesquisador mais subjetividade na anlise. A pesquisa qualitativa tambm envolve a
interpretao, anlise de dados, utilizao de descries e narrativas4.
Procedemos metodologicamente da seguinte forma:
1 - Selecionamos textos nos evangelhos em que percebemos potencial relacional com o livro
de I Enoque.
2 - Aplicamos uma metodologia que desenvolvemos com base nas pesquisas do Jesus
Histrico, visando atestar a capacidade de historicidade do material selecionado.
3 - Aps comprovao que o material (ditos de Jesus) carregava grande potencial
historiogrfico no que tange ligao com Jesus de Nazar, passamos para a etapa seguinte
que era fazer comparaes entre os ditos evanglicos e o material selecionado em I Enoque,
buscando averiguar semelhanas que indicassem a possibilidade de Jesus ter utilizado o livro
de I Enoque.
Quando comeamos a refletir sobre a melhor alternativa cientfica para
desenvolvermos esta tese, deparamo-nos com o primeiro problema para resolvermos a fim de
validarmos a nossa pesquisa no meio acadmico, que era: como provar que os ditos que
desejaramos trabalhar nos evangelhos poderiam ser palavras de Jesus? Como Jesus no
deixou nada escrito, tnhamos um grande desafio pela frente.
Em um primeiro momento entendemos a necessidade de fazer os 400 anos de
silncio falarem, tendo em vista que esta voz muito preciosa por trs motivos 2 CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia cientfica: para uso dos estudantes universitrios. 3.ed. So
Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1983, p. 55. 3 RICHARDSON, R. J. Pesquisa social: mtodos e tcnicas. So Paulo: Atlas, 1989. 4 Id. Pesquisa Social. 5. ed. So Paulo: Atlas, 1999.
20
principais: oferece compreenses mais ntidas do mundo sociopoltico que j se encontrava
desenvolvido na poca da redao dos evangelhos, apresenta o nascedouro literrio de
I Enoque e a grande influncia desse escrito naquele momento histrico que antecedeu o
incio do Cristianismo.
Assim, a resultante desta primeira fase foi o primeiro captulo, que entendemos ser o
background da tese. Nele trabalhamos elementos que julgamos ser de grande importncia para
esta pesquisa, pois ajudam a ampliar o nosso entendimento sobre acontecimentos histricos
relacionados ao perodo do Segundo Templo, alm de nos atualizar sobre as pesquisas que
envolvem a literatura enoquita.
O primeiro captulo, denominado Sobre I Enoque: entre o contexto redacional e a
atualidade, apresenta-nos, entre outras coisas, a relao do perodo do Segundo Templo e o
helenismo, fala-nos da Palestina na poca dos romanos, o pensamento dos principais
estudiosos acerca de I Enoque, o direcionamento que as pesquisas tm tomado e nossas
consideraes sobre questes tcnicas relacionadas ao escrito.
O segundo captulo o corao da tese. Quando avalivamos o melhor caminho
metodolgico para resolver o problema de comprovar para a academia que os ditos que
desejvamos estudar tinham potencial de serem palavras originrias em Jesus, entendemos
que a melhor alternativa cientfica era utilizar a proposta historiogrfica do Jesus Histrico.
Iniciava-se, ento, o nosso labor rumo constatao, pela historiografia, da probabilidade de
relao dos ditos presentes nos evangelhos e a pessoa de Jesus5.
Inicialmente apresentamos as vrias fases da pesquisa do Jesus Histrico buscando
visualizar os principais pontos fortes e fracos da pesquisa, bem como os principais estudiosos
do assunto e suas propostas metodolgicas. Apresentamos, tambm, uma teoria acerca dos
idiomas falados por Jesus, onde defendemos que eram trs, sendo que o grego tem grandes
chances de ter sido o mais utilizado.
Aps resolvermos o problema da escolha Campo cientfico para desenvolvermos
nossas pesquisas, entendemos a necessidade de darmos mais sustentao metodologia,
abordando a temtica da tradio oral. No h dvidas de que no mnimo se passaram vinte
anos entre as palavras proferidas por Jesus e a redao dos evangelhos, o que gera o seguinte 5 O estudo do Jesus Histrico, em solo brasileiro, pode ser considerado relativamente novo, apesar de ter
alcanado maturidade. As propostas, pouco a pouco, esto saindo do casulo e ganhando asas no s nos ciclos acadmicos, mas tambm nos populares. Atualmente, j possvel encontrarmos revistas sobre o assunto em bancas de jornal, como o caso da revista Jesus: o homem que mudou a histria, publicada pela editora On line e que foi para as bancas em dezembro de 2013, apresentando uma construo do Jesus Histrico acessvel sociedade. Somem-se a isto os documentrios produzidos sobre o tema e reportagens dedicadas ao assunto.
21
questionamento: ser que o registro de palavras aps dcadas do seu pronunciamento
confivel? A pesquisa demonstra que existe a possibilidade da autenticidade.
Durante a construo da tese constatamos a realidade de que o cenrio das pesquisas
do Jesus Histrico no Brasil j estava amadurecido, porm no existia nenhuma metodologia
proposta por pesquisadores brasileiros para investigao dos ditos de Jesus, o que nos
conduziu ao desafio de construir uma metodologia para este fim, que chamamos Anlise dos
Ditos de Jesus (ADJ), atravs da qual pudemos analisar, dentro de parmetros de natureza
mais cientfica, os ditos necessrios a esta investigao.
Um nome fundamental para desenvolvermos a metodologia ADJ foi o do geneticista
Newton Maia, pertencente a uma rea cujo entendimento do que seja cincia de natureza
menos flexvel, ou, como diria Eliade, mais duro. Seu livro Verdades da cincia e outras
verdades: a viso de um cientista deu-nos a segurana de construir um modelo metodolgico
que esteja adequado s expectativas da cincia.
O terceiro e ltimo captulo entendemos ser os culos embaados da tese. Atravs
desta expresso, referimo-nos capacidade de enxergar, porm sem tanta nitidez. Como
explicamos com mais riqueza de detalhes no trabalho, cientificamente, seria um erro
construirmos uma tese, da natureza da nossa, baseada na metodologia do Jesus Histrico, e
apresentssemos resultados que afirmem certezas sobre a pessoa de Jesus. A metodologia
historiogrfica no nos d condies de atingir este nvel.
A linguagem que ela nos permite falar : existe grande probabilidade de..., as
evidncias apontam para uma possvel, existem grandes chances de..., existe um alto grau
de probabilidade etc. S atravs desta linguagem no incorremos no erro que Tillich apontou
como sendo o fracasso da pesquisa do Jesus Histrico. Ou seja, afirmar certezas, quando a
historiografia s possui condies metodolgicas, ou aporte metodolgico, suficientes para
gerar resultados que indiquem possibilidades.
nestes termos que, no terceiro captulo, fizemos anlises comparativas entre textos
selecionados em I Enoque e textos selecionados nos evangelhos, atestados pela ADJ como
tendo grande potencial de pertenceram ao Jesus Histrico, o que nos conduziu concluso de
que possivelmente Jesus tenha estudado o livro de I Enoque e construdo alguns dos seus
ensinos baseados nesse escrito.
Registramos que a maioria dos textos utilizados nesta investigao est originalmente
em ingls e que todas as citaes so resultantes de tradues realizadas pelo autor da tese.
Evitando ser repetitivo tendo que escrever notas do tipo traduo do autor, o que
22
aconteceria frequentemente no trabalho, achamos conveniente registrar este fato na introduo
da tese ao invs de notificar na redao dos captulos.
23
1 SOBRE I ENOQUE: ENTRE O CONTEXTO REDACIONAL E A ATUALIDADE
Este captulo, alm de ser uma anlise do livro de I Enoque abordando o escrito sobre
vrias perspectivas6, foi construdo objetivando trazer academia brasileira as informaes
mais recentes sobre as pesquisas relacionadas a I Enoque, em dilogo com os principais
pesquisadores da obra.
Iniciamos com uma seo que descreve sobre a importncia da pesquisa de
I Enoque para o estudo do cristianismo primitivo e pesquisa bblica. Na sequncia trazemos
um breve estudo sobre o perodo do Segundo Templo, visando ao entendimento do contexto
histrico judaico em que a obra foi redigida. Tambm abordamos a relao I Enoque com
Qumran, bem como trouxermos informaes sobre as principais tradues do escrito, a saber:
aramaica, grega e etope (principalmente esta ltima). A ttulo informativo comentamos
brevemente os livros de II Enoque e III Enoque.
As outras sees nos ajudaro a obter noes sobre a geografia redacional de I Enoque
e antiguidade do escrito. Tambm apresentamos uma nova percepo para classificarmos o
gnero literrio de I Enoque baseado em novas abordagens sobre o assunto. Na tentativa de
diluir um pouco da confuso sobre a diferena entre livro apcrifo e livro pseudoepgrafo,
escrevemos uma seo sobre esta temtica.
As ltimas sees so destinadas a uma compreenso interna do escrito. Uma foi
construda para demonstrar que I Enoque faz uso de tradies orais anteriores ao seu perodo
redacional, outra se destina a apresentar um breve resumo do seu contedo e por ltimo
ltimo apresentamos comentrios sobre o principal evento mundial voltado ao estudo da obra
enoquita. Ensejando dar maior dinmica nossa redao, selecionamos uma srie de imagens,
fruto do nosso trabalho de campo, que ajudaro na visualizao do contedo.
1.1 I Enoque: um escrito proeminente
Resgistros dos sculos XIX e XX, anteriores descoberta dos manuscritos de Qumran,
revelam a percepo de especialistas, a exemplo de Laurence, acerca da importncia deste
escrito:
6 Alguns termos sinnimos de Livro de I Enoque que utilizamos na construo da tese so: Livro de Enoque,
Livros de Enoque, Livros de Enoch, I Enoque, I Enoch, tradio enoqueana, tradio enoquiana, literatura enoquiana e tradio enoquita.
24
No iremos questionar aqui o fato de que o autor foi sem inspirao; mas, apesar de sua produo como apcrifo7 [...], contm muita verdade moral, bem como religiosa; e pode ser justamente considerado como um padro correto da doutrina da poca em que foi composto8.
No ano de 1858, Migni afirmou que I Enoque um dos mais clebres livros
apcrifos9. Para R. H. Charles, a influncia que I Enoque possui na redao do Novo
Testamento bem maior do que a de todos os outros livros apcrifos e pseudoepgrafos
tomados em conjunto10. O mesmo tambm afirmou que o livro de Enoque para a histria
do desenvolvimento teolgico o mais importante escrito desenvolvido nos dois sculos antes
de Cristo11.
Esperava-se que, com a disponibilizao de partes do texto aramaico de Qumran em
1950, os especialistas no estudo do Segundo Templo e origens crists daquele perodo se
tornassem mais estimulados no estudo de I Enoque, porm grande parte no deu a ateno
devida ao escrito. S rescentemente o estudo de I Enoque comeou a ganhar notoriedade e
abrangncia na academia.
Nas ltimas dcadas, os principais estudiosos tm se mostrado dispostos a afirmar que
os livros de Enoque so os mais importantes documentos redigidos durante o perodo do
Segundo Templo. Sachi partidrio de que juntamente com os Jubileus e os Testamentos
dos Doze Patriarcas [...] o Livro de Enoque compe uma tima trilogia para o conhecimento
do mundo judaico anterior ao cristianismo12.
O interesse em estudar os livros de Enoque tem crescido no s entre os telogos
cristos, mas tambm entre os telogos judeus. Esta realidade tem unido estudiosos das duas
religies que, juntos, tm aprofundado o conhecimento desta coletnea de escritos que est se
destacando no cenrio acadmico como uma relevante fonte de informaes para o
entendimento do perodo do Segundo Templo:
Enquanto apenas alguns judeus foram dedicados, anteriormente, ao estudo dos chamados Pseudepgrafos, agora muitos estudiosos judeus esto ativos, principalmente, nesta rea de pesquisa. Este espao permitir mencionar apenas um nmero seleto, como: Alan Segal, Michael Stone, Devorah Dimant, Albert Baumgarten, etc13.
7 Nota-se que, naquela poca (1833), a distino entre apcrifo e pseudoepgrafo no estava ainda clara na
academia, por isso I Enoque era chamado de apcrifo. 8 LAURENCE, R. The Book of Enoch the Prophet. Oxford: JH Parker, 1821, p. xlvi. 9 MIGNE J. B. Dictionnaire des apocryphes or collection de tous les livres apocryphes. Paris, 1858, p. xi. v. 2. 10 CHARLES R. H. The book of Enoch or 1 Enoch. Oxford: Clarendon Press, 1912. 11 Id., The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament. Oxford: Clarendon Press, 1913, p. 2.163. v. 2. 12 SACCHI, P. Apocrifi dellAntico testament. Turin: Unione Tipografico-Editrice, 1981, p. 423. 13 CHARLESWORTH, J. H. apud BOCCACCINI, G. Enoch and Qumran origins: new light on a forgotten
connection. Cambridge: Wm. B. Eerdmans Publishing, 2005, p. 441.
25
Black, comparando o livro de I Enoque e o de Daniel diz:
Certamente, se Daniel pode ser considerado um clsico da apocaliptica judaica, I Enoque no fica muito atrs, e pode at ter igual direito ao status de clssico na literatura intertestamental; principalmente se assumirmos que as chamadas Parbolas de Enoch precedem os Evangelhos como um notvel pano de fundo para os evangelhos14.
Charlesworth chega a afirmar que os livros de Enoque, possuem um peso maior do
que o livro cannico de Daniel:
Em minha opinio os livros de Enoch, de certa forma, parecem ainda mais importantes do que Daniel. Este texto cannico certamente extremamente importante, mas basicamente um texto annimo, composto e dividido em duas sees mal relacionadas (com sees contendo misturas de hebraico earamaico) [...]. O mais provvel, em minha opinio, que eles (livros de Enoque) so a mais importante coleo de documentos criativos produzidos no Perodo do Segundo Templo do Judasmo. Existe uma coeso nesta coleo de pensamentos complexos, desenvolvimento de tradies anteriores, que a distinguem de todas as outras composies da poca. O corpus importante porque cheio de ideias e reflexes brilhantes. um dos principais apocalipses j escritos15.
Segundo Nickelsburg, 1 Enoque [...] sem dvida o texto mais importante no corpus
da literatura judaica nos perodos helenstico e romano16. Fato que a tradio enoquita tem
se apresentado como uma fonte de inestimvel valor para compreenso do cenrio literrio
judaico-cristo do cristianismo primitivo, o que uma boa indicao para buscarmos uma
aproximao com Jesus de Nazar17.
1.2 O Perodo do Segundo Templo e o Helenismo: um breve esboo
Esse perodo se inicia com o fim do cativeiro babilnico e inaugurao do Segundo
Templo judaico em 515 a.C. e se finda em 70 d.C. com a destruio desse mesmo Templo em
Jerusalm. O imprio responsvel em inaugurar esse perodo se chama persa. Aquela foi uma
poca de intensas transformaes na cultura judaica em que se originaram, alm de novas
prticas, diversos grupos dentro do judasmo, tais como fariseus, saduceus, essnios e zelotas.
Grandes transformaes aconteceram no mapa geopoltico da Antiguidade. Poderosos reinos
14 BLACK, M. The Book of Enoch of I Enoch. SVTP7. Leiden: Brill, 1985, p. 1. 15 CHARLESWORTH apud BOCCACCINI, 2005, p. 440-441. 16 NICKLSBURG, G. W. E.; VANDERKAM, J. C. 1 Enoch: a new translation. Minneapolis: Fortress,2004, p. 1. 17 UHLIG, S. Das thiopisch Henochbuch. JSHRZ 5.6. Gtersloh: Gerd Mohn, Gtersloher Verlagshaus, 1984,
p. 547.
26
se ergueram e foram rebaixados, imprios tidos como imbatveis foram arruinados, fortalezas
tidas como indestrutveis desapareceram sem deixar rastros na histria.
Aps conquistar a Babilnia, o governante persa permitiu os judeus regressarem s
terras dos seus ancestrais. Os repatriados, que voltaram em diversas levas, encontraram a
Judeia arruinada. Some-se a isto a inimizade dos povos vizinhos, que alm de rivalidades
antigas, tinham aproveitado o vazio deixado pelo exlio para repartir entre si o territrio judeu,
mas, por fora do decreto de Ciro, tiveram que aderir ao projeto de ter a presena dos seus
antigos rivais novamente naquele cenrio, alm da desconfiana dos prprios judeus que no
haviam sido deportados e naquelas circunstncias acostumados ao status quo, que se sentiam
ameaados com a presena dos pomposos recm-chegados.
O perodo persa chegou ao fim no ano de 332 a.C. quando Alexandre, o Grande,
conquistou o territrio judaico das mos dos persas. Iniciava-se, ento, o perodo
helenstico18. a partir desse momento, com a conquista da Judeia, que o idioma grego se
introduz na cultura judaica, ento familiarizada com o hebraico e aramaico19.
Alexandre o Magno, frente de um poderoso exrcito com 35 mil soldados, conquistou a Judeia at ento parte do imprio persa, no seu caminho em direo ao Oriente. Este evento vem acentuar o conceito da terra de Israel como ponte geopoltica entre o Leste e o Oeste20.
Aps a morte de Alexandre o imprio grego foi dividido e a Judeia ficou sob o
domnio da dinastia ptolomaica, cuja capital situava-se em Alexandria. O domnio, que durou
cerca de 100 anos, chegou ao fim no ano 200 a.C. com a batalha de Panias quando os
selucidas venceram os ptolomeus e a Judeia transferida para outro domnio grego. Segundo
Rushansky,
Este fato poderia ter passado despercebido entre tantas conquistas e mudanas de governo que conheceu a Terra de Israel, se o rei Antiocus IV, denominado pelos judeus de o Ruim, no se propusesse a homogeneizar a cultura de todo o reino, destruindo as particularidades culturais e religiosas de cada um dos povos que formavam o imprio selucida [...]. O imprio selucida via na imposio da cultura helnica algo absolutamente imprescindvel para o bom desempenho e desenvolvimento do reino21.
18 Apesar de este ser o grande marco da aproximao da cultura grega do judasmo, o contato dos judeus com os
gregos anterior a esse perodo, o que comprovado por estatuetas, moedas atenienses e objetos de decorao presentes em territrio judeu, que so datados de pocas mais antigas.
19 Segundo Cohen, todos os judeus da Antiguidade, de alguma maneira chegaram a ser helenizados. Cf.COHEN, S. J. D. From the Maccabees to the Mishnah. Philadelphia: The Westminster Press, 1987, p. 40-41.
20 RUSHANSKY, E. O Palco da Histria: As razes judaicas e o cristianismo. Jerusalm: T- Land, 2013, p. 38. 21 RUSHANSKY, loc. cit.
27
Ocorreu que os judeus, j em um processo natural de adaptao cultura helnica,
nessa fase, entraram em um processo acelerado de assimilao da cultura grega, em todos os
nveis da sociedade, que se enraizou profundamente no estilo de vida judaico, cujos resultados
puderam ser claramente percebidos mesmo sculos aps sarem do domnio poltico dos
gregos22.
O primeiro escrito da tradio judaica a registrar o termo helenismo o segundo
livro dos Macabeus. No captulo quatro, nos versos 13 e 14 lemos:
Verificou-se, desse modo, tal ardor de helenismo e to ampla difuso de costumes estrangeiros, por causa da exorbitante perversidade de Jaso, esse mpio e de modo algum sumo sacerdote, que os prprios sacerdotes j no se mostravam interessados nas liturgias do altar! Antes, desprezando o Santurio e descuidando-se dos sacrifcios, corriam a tomar parte na inqua distribuio de leo no estdio, aps o sinal do disco23.
Outro fator que gerou a consolidao do helenismo, principalmente nos sculos II e III
a.C., foi a oportunidade que ele trouxe para o desenvolvimento comercial. Vrias famlias
judaicas, que eram dadas ao comrcio, viram no helenismo uma porta de entrada para a
conquista de melhores condies de vida, atravs de um amplo comrcio com as vrias naes
que estavam sob o domnio da cultura grega. Informaes contidas no Papiro de Zeno falam
que a vida comercial nesse perodo era intensa24.
Produziam-se, em grande escala, cereais, olivas, vinhos, frutas, verduras, temperos,
madeira e especialmente blsamo destinado produo de perfumes e medicamentos25. O
aumento da cunhagem de moedas nesse perodo, a que temos acesso em nossos dias devido ao
trabalho arqueolgico, o principal fator que comprova a intensa atividade comercial daquele
momento.
Em 175 a.C., com a ascenso do novo rei Antoco IV Epifanes, um grupo de judeus
helenistas entendeu que aquele seria um momento oportuno para intensificar as
transformaes no judasmo, na direo de aproximao com a cultura grega, em Jerusalm.
Naturalmente, tambm existiam vrias famlias que no concordavam com esta aproximao.
A vivncia como nao subjugada nunca foi um estilo de vida que agradou muito a maioria
22 O helenismo (alm da disseminao da lngua grega) implicava na adoo de nomes e vesturios gregos e a
prtica de participar nos jogos e festivais oferecidos pelos gregos. 23 Texto extrado da Bblia de Jerusalm. 24 HENGEL, M. Judaism and Hellenism, Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic
Period. Oregon: Wipf & Stock Pub, 2003, p. 43. 25 STEGEMANN, E.; STEGEMANN W. Histria social do protocristianismo: os primrdios do judasmo e as
comunidades de Cristo no mundo mediterrneo. So Leopoldo/So Paulo: Sinodal/Paulus, 2004, p. 128.
28
dos judeus, por mais que, naquele contexto, vissem no helenismo grandes possibilidades de
progresso.
Com o favor do rei selucida, e aliado a ele, Jaso constitudo sumo sacerdote em
Jerusalm. Ele tem como objetivo transformar Jerusalm em uma plis grega, desfazendo as
tradies religiosas observadas pelos grupos mais conservadores, buscando superar o
isolamento religioso, econmico e poltico da aristocracia de Jerusalm.
O novo lder religioso introduz instituies gregas educacionais, com vistas
educao intelectual e fsica dos jovens judeus, objetivando a integrao dos mesmos na vida
civil. Obviamente essas instituies eram voltadas para a classe mais rica da sociedade. A
inteno dos reformadores era assegurar a situao econmica do estrato superior por meio da
introduo do direito de cidadania helenista26.
Como resultado das reformas realizadas por Jaso e seus aliados, novos costumes,
considerados contrrios Tor so introduzidos, a Lei mosaica relativizada e o Templo
passou a fazer parte da nova ordem. Porm, mesmo com toda a abertura de Jaso ao
helenismo, Antoco IV nomeia outro indivduo para o cargo de sumo sacerdote, Menelau,
gerando guerrilhas internas entre o grupo de Jaso e o do novo sumo sacerdote, tidas por
Antoco como uma afronta sua autoridade. O rei tomou a cidade de Jerusalm mo
armada, matando diversos judeus e recolocando Menelau em seu posto.
E ordenou aos soldados que matassem sem piedade os que lhes cassem nas mos e trucidassem os que tentassem subir para suas casas. Houve assim um extermnio de jovens e de ancios, um massacre de rapazes, mulheres e crianas, imolaes de moas e de criancinhas27.
Menelau, na mesma direo de seu antecessor que buscava adaptar o judasmo nova
cultura, aprovou o porco como animal sagrado para o sacrifcio e introduziu o culto a Zeus
Olmpico no Templo de Jerusalm, que no aramaico provavelmente significa Baal Shamin,
ttulo usado pelo povo da Sria28. O clmax desta situao, geradora de uma grande revolta por
parte dos judeus, acontece quando Antoco IV probe a prtica do judasmo, acentuando a
insatisfao de grande parte da nao judaica:
Quanto aos livros da Tor, os que lhes caam nas mos eram rasgados e lanados ao fogo. Onde quer que se encontrasse um livro da Aliana, em casa de algum ou se algum se conformasse Tor, o decreto real o condenava morte. Na sua
26 STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p. 133. 27 II MACABEUS 5:12-13. 28 BICKERMAN, E. From Ezra to the Last of the Maccabees: Foundations of Post-Biblical Judaism. New York:
Schocken Books, 1947, p. 109.
29
prepotncia assim procediam contra Israel, com todos aqueles que fossem descobertos, ms por ms, nas cidades. No dia vinte e cinco de cada ms ofereciam-se sacrifcios no altar levantado por sobre o altar dos holocaustos. Quanto s mulheres que haviam feito circuncidar seus filhos, eles, cumprindo o decreto, as executavam com os mesmos filhinhos pendurados a seus pescoos, e ainda com seus familiares e com aqueles que haviam operado a circunciso. Apesar de tudo, muitos em Israel ficaram firmes e se mostraram irredutveis em no comerem nada de impuro. Eles aceitaram antes morrer que contaminar-se com os alimentos e profanar a aliana sagrada, como de fato morreram. Foi sobremaneira grande a ira que se abateu sobre Israel29.
O sacerdote Matatias e seus cinco filhos aproveitando a reao espontnea resultado
de uma prtica ofensiva contra a Lei judaica o sacrifcio de um porco em honra ao
imperador no templo iniciaram uma guerrilha, que se transformou posteriormente em uma
guerra geral. O ponto culminante desse conflito dar-se-, anos mais tarde, com a criao do
estado judeu helenstico asmoneu.
Judas, o Macabeu, um dos filhos do sacerdote Matatias, aps a morte de seu pai,
assumiu a liderana da revolta. Lder carismtico agregava sua coragem um genioso senso
diplomtico, organizando um forte exrcito que, utilizando-se de locais onde a topografia lhes
favorecia, derrotou em diversas ocasies foras selucidas, geralmente, numericamente
superiores30.
Diante da ofensiva judaica, tentando dissolver o tumulto, Antoco IV resolveu revogar
seu decreto de proibio da religio judaica, contudo, sem retirar a autoridade sobre o templo
das mos de Menelau, porm j era tarde demais. No final de 164 a.C., o Macabeu rene seu
exrcito e invade Jerusalm, tirando-a do poder de Menelau, purifica o Templo31, restaura o
culto e institui aquela que conhecida como Festa da Dedicao, ou Hanuk: E Judas, com
seus irmos e toda a assembleia de Israel, estabeleceu que os dias da dedicao do altar
fossem celebrados a seu tempo, cada ano, durante oito dias, a partir do dia vinte e cinco do
ms de Casleu, com jbilo e alegria32.
Paralelamente o imprio selucida passa a se enfraquecer frente ao avano dos
romanos, com suas ambies imperiais em direo ao leste. Este movimento geopoltico criou
um novo balano de foras na regio que obrigou os selucidas a levarem em conta os
interesses do emergente estado judeu. Seguem-se, ento, 25 anos de independncia judaica.
29 I MACABEUS 1:56-64. 30 RUSHANSKY, 2013, p. 40. 31 GOTTWALD, N. K. Introduo socioliterria Bblia Hebraica. So Paulo: Paulinas, 1988, p. 417. 32 I MACABEUS 4:59.
30
Por volta do ano 140 a.C. o Estado judaico asmoneu33 reconhecido oficialmente
pelos romanos. Esse perodo de independncia vai at o ano 37 a.C.34 quando Herodes35
nomeado rei cliente pelos romanos, aps Marco Antnio e Otaviano dominarem a Judeia e
subjugarem o ltimo rei asmoneu, Matitiahu Antigonus36, inaugurando ento o perodo
herodiano.
Mesmo entre os asmoneus percebemos que a influncia helnica deixou suas marcas.
Os filhos do rei asmoneu Joo Hircano I, neto de Matatias, colocou nomes gregos em seus
filhos, a saber: Antgono, Jud Aristbulo I e Alexander Jannaeus. Depois deles, h pelo
menos um Alexander (filho de Aristbulo II), dois homens chamados Aristbulo (um era filho
de Alexander Jannaeus), e um Matatias Antgono (filho de Aristbulo II)37. A populao em
geral, naquela poca, utilizava nomes gregos em seus filhos, o que reflete uma mentalidade j
acostumada ao helenismo. Nomes como estes aparecem tambm em moedas do perodo
asmoneu38.
Alm disso, parece que os reis asmoneus tinham o costume de usar seus nomes gregos
em pblico como parte de seus ttulos oficiais. O uso de tais nomes, que lembram os
governantes gregos famosos do passado, como Alexandre, o Grande, foi um movimento
consciente dos asmoneus buscando situar-se dentro do ambiente da realeza helenstica e
defender a incluso da dinastia asmoneia dentro da grande mundo grego39.
A poca herodiana foi uma fase de grandes construes, fortificaes e reformas no
territrio judaico. Entre elas destacamos as reformas feitas no templo de Jerusalm40,
construo da Fortaleza Antnia, a fortificao de Massada, construo de Cesareia Martima,
que na poca era o mais moderno porto do mundo e a cidade de Sebastos na Samaria. Nos
dias de Herodes Jerusalm passou a ter um teatro e um hipdromo nos moldes helensticos.
Em relao aos idiomas presentes na sociedade naquele momento os exemplos que
sobreviveram da escrita na Palestina na poca herodiana e as referncias literrias disponveis
33 Este nome, de acordo com Flvio Josefo, no livro Antiguidades Judaicas, vem do pai de Matatias que era
chamado Asamonaios. 34 No ano 63 a.C. Pompeus conquistou Jerusalm impondo pesados impostos sobre a populao alm de destruir
as muralhas da cidade. Contudo, no destruiu o reino asmoneu, ao contrrio, resolveu o conflito entre dois irmos asmoneus que disputavam a herana do reino, nomeando Hurcano II como rei cliente de Roma.
35 Herodes foi um homem de origem edumeia, cultura helnica, religio judaica e cidadania romana. 36 RUSHANSKY, 2013, p. 43. 37 ILAN, T. The Greek Names of the Hasmoneans. JQR, Philadelphia, v. 78, p. 1-20, 1987. 38 YAAKOV, M. Jewish Coins of the Second Temple Period. Chicago: Argonaut, 1967, p.52-55. 39 GRUEN, E. S. Heritage and hellenism: the reinvention of Jewish tradition. Hellenistic culture and society 30.
Berkeley, Calif.: University of California Press, 1998, p. 32-33. 40 Essa reforma durou cerca de 80 anos e s foi concluda por volta do ano 62 d.C.
31
mostram que a escrita em grego, aramaico e hebraico era generalizada e podia ser encontrada
em todos os nveis da sociedade41.
Figura 1 - Cesareia Martima
Fonte: Acervo do autor. Novembro de 2013.
Figura 2 - Arena de jogos em Cesareia Martima
Fonte: Acervo do autor. Novembro de 2013.
41 MILLARD, A. R. Reading and writing in the time of Jesus, NY: University Press, 2000, p. 210.
32
Figura 3 - Fortaleza de Massada
Fonte: Acervo do autor. Novembro de 2013.
Durante os 33 anos em que Herodes reinou sobre o reino da Judeia, a nao viveu um
perodo de paz e prosperidade. No ano 4 a.C. Herodes faleceu. Em seu testamento poltico,
escrito enquanto o monarca agonizava em seu leito de morte, ele decidiu que o reino seria
dividido entre trs dos seus filhos: Herodes Antipas, Herodes Filipe e Herodes Arquelau42.
Uma das provas que nos fazem perceber o avano da influncia grega, ou greco-
romana, na cultura judaica na poca dos Herodes, so as moedas cunhadas por Herodes Filipe
contendo figuras humanas, bem como por Herodes Arquelau, contrariando o mandamento
judaico de no fazer imagens43.
Por no terem herdado a capacidade diplomtica e administrativa do pai, ao longo dos
anos, os filhos de Herodes so depostos pelos romanos. O primeiro sucessor a perder o
privilgio foi Herodes Arquelau no ano 6 d.C.; o segundo, em 39, foi Herodes Antipas;
Herodes Filipe morreu em 34, sem deixar herdeiros.
Em 39, aps ser deposto o ltimo Herodes, o territrio judeu unifica-se novamente,
por um breve perodo, sob a liderana de um novo rei, nomeado pelos romanos, chamado
Agripa I, que morreu em 44. Seguiu-se, ento, o desmembramento do territrio judeu. O
controle do pas passou a estar nas mos dos romanos que nomearam uma srie de
procuradores ineptos, corruptos e violentos que, segundo Flvio Josefo, sero a principal
causa da insatisfao da populao judaica que culminar com a Guerra dos Judeus entre os
42 RUSHANSKY, 2013, p. 56. 43 Ibid., p. 57.
33
anos de 66 e 73 d.C. e a destruio do Segundo Templo, em 70, encerrando assim o chamado
perodo do Segundo Templo44.
Foi no contexto de aproximao do helenismo que, por volta do sculo II a.C., um
grupo de judeus, insatisfeitos com o rumo poltico-religioso da nao, entendendo que o
Segundo Templo estava corrompido, decidiu criar uma nova comunidade em que pudessem
praticar a lei judaica, cumprir seus rituais, meditar, dedicar-se ao estudo, escrita e esperar o
messias. Seu nome era Essnios.
1.3 O livro aramaico de I Enoque e sua relao com Qumran
Depois da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, a partir 1947, foi iniciada uma
corrida na construo de teorias, voltadas compreenso do Judasmo e do Cristianismo em
sua fase inicial ou o chamado Perodo do Segundo Templo. Segundo o Prof. Roitman,
especialista na investigao de Qumran, mais de 20.000 artigos foram escritos s sobre essa
descoberta45. O acmulo de informaes gerou diferentes teorias acerca desse achado.
Figura 4 - Stio arqueolgico de Qumran
Fonte: Acervo do autor. Novembro de 2013.
Uma das mais recentes teorias, elaborada por Boccaccini, defende que as origens da
comunidade essnica em Qumran podem ser atribudas a grupos judaicos anteriores
44 RUSHANSKY, 2013, p. 58 45 Informao contida em uma palestra do mesmo junto s grutas de Qumran, gravada em novembro de 2013.
34
comunidade qumranita. Ele sugere que existiu um tipo especial de judasmo, ligado ao Livro
de Enoque, oriundo de uma poca anterior aos Macabeus, chamada por Boccaccini de
judasmo enoquita.
Segundo ele, este tipo de judasmo pode esclarecer as origens da comunidade de
Qumran. Alm disso, ele postula que, aps a revolta dos Macabeus, sem perder a sua
identidade como um grupo social, esta forma de judasmo se transformou em um movimento
maior que os autores antigos chamam de "os Essnios"46.
Figura 5 - Miqv em Qumran
Fonte: Acervo do autor47. Novembro de 2013.
Alguns estudiosos falam sobre dois tipos de essnios: aqueles que se casaram
(representado pelo Documento de Damasco) e os que desenvolviam uma vida mais dedicada
ao ascetismo (representada pela Regrada Comunidade) que, em sua maioria, nunca casaram.
Esses historiadores se utilizam do comentrio de Josefo que diz que existiam dois ramos, ou
bifurcaes, de essnios48.
46 CHARLESWORTH apud BOCCACCINI, 2005, p. 449. 47 Em Qumran foram achadas diversas Miqv como esta, que serviam para purificao ritual. 48 CHARLESWORTH apud BOCCACCINI, op. cit., p. 449.
35
Figura 6 - Cemitrio em Qumran
Fonte: Acervo do autor49. Novembro de 2013.
Boccaccini buscou aprofundar mais essa ideia. Ele argumenta que a comunidade
enoquita, representada pelos pergaminhos de Qumran (a prpria comunidade de Qumran),
rompeu com os essnios que viviam em cidades e aldeias e, tambm, com um grupo
dominante do judasmo enoquita. Ou seja, sua ideia que existiram trs grupos: Essnios de
Qumran (enoquitas de Qumran), Essnios urbanos e os Enoquitas. A principal diferena,
segundo ele, que os judeus representados pela categoria Essnios urbanos e Enoquitas
tendiam a acreditar no livre-arbtrio, enquanto os enoquitas de Qumran acreditavam no s no
determinismo histrico, mas tambm na predestinao do indivduo50.
Boccaccini argumenta que, fiel s suas razes respaldadas em I Enoque, os qumranitas
desprezavam tudo que tinha ligao histrica com os zadoquitas51. Assim, ele supe que a
expresso "filhos de Zadoque", que, segundo ele, os qumranitas utilizavam como referncia a
eles mesmos, pode ter se originado de uma leitura do livro de Ezequiel, portanto, no tendo
nenhuma ligao genealgica com os filhos de Zadoque.
Ele segue seu raciocnio imaginando que o embrio do pensamento de Qumran pode
ser visualizado em um perodo anterior ao movimento de Qumran, ou seja, antes da ciso com
o majoritrio movimento enoquita-essnico (representado pelos essnios urbanos e o grupo
enoquita).
49 Cemitrio dos essnios. Mais de 95% das ossadas encontradas eram de homens. 50 BOCCACCINI, G. Beyound the Essene Hypothesis, Grand Rapids and Cambridge.Grand Rapids and
Cambridge: Eerdmans, 1998, p. 170. 51 Dinastia de sumos sacerdotes que governou o templo at a vspera da revolta dos Macabeus.
36
Figura 7 - Refeitrio em Qumran
Fonte: Acervo do autor. Novembro de 2013.
Charlesworth esclarece que a evidncia que pode sugerir (no provar) tal movimento,
so os numerosos textos pr-qumrnicos a exemplo de Jubileus, Rolo do Templo, o Proto-
Epstola de Enoch (incluindo o Apocalipse das Semanas), Carta Halakhic e a produo de
textos no qumrnicos, a exemplo da Epstola de Enoch, que abrem espao para se falar da
influncia de supostas comunidades em torno do Livro de Enoque.
Outro estudioso a usar o termo judasmo enoquita David R. Jackson. Ele utiliza
esta expresso para se referir queles que compuseram, compilaram e editaram os livros de
Enoque encontrados na caverna de Qumran. Para ele, tambm fazem parte dessa categoria os
indivduos que aceitaram essa tradio52.
Charlesworth no est convencido das hipteses levantadas por Boccaccini e Jackson.
Ele acredita que os livros de Enoque foram produzidos em um perodo de trs sculos.
Segundo o mesmo, I Enoque foi responsvel em influenciar a redao de novos textos, em
dcadas e sculos posteriores, como 2 Enoque, os textos coptas, a Viso Armnia de Enoque
o Justo e 3 Enoque53. Charlesworth acredita que devemos evitar rotular todos estes textos
como representantes de algo como um movimento, eles representam um ciclo de pensamento
que se dedicava a reflexes fundamentadas e atribudas a Enoque54.
52 JACKSON, D. Enochic Judaism, Library of Second Temple Studies. London and New York: T. & T. Clark
International, 2004, p. 49. 53 CHARLESWORTH, J. H. The Pseudepigrapha and Modern Research with a Supplement. SBLSCSS, 7S.
Michigan: Scholars, 1981, p. 98-99. 54 CHARLESWORTH apud BOCCACINE, 2005, p. 451.
37
Figura 8 - Curral em Qumran
Fonte: Acervo do autor. Novembro de 2013.
Outro estudioso que discorda da teoria de Boccaccini M. Knibb. Segundo ele,
Boccaccine est envolvido em um projeto maior que tem como objetivo mudar as percepes
comuns do desenvolvimento do judasmo da poca do exlio at o surgimento do judasmo
rabnico55. Knibb argumenta que se deve duvidar de uma tese que aborda o desenvolvimento
de todo o judasmo no perodo do Segundo Templo em termos de um conflito entre o
judasmo zadoquita e o judasmo enoquita. Segundo o mesmo, a realidade do perodo do
Segundo Templo bem mais complexa e as tendncias das pesquisas nos ltimos 20 anos
apontam para essa complexidade56.
Conquanto as hipteses de Gabriele e Jackson sejam vlidas e plausveis entendemos
que os posicionamentos de Charlesworth e Knibb so mais coerentes, uma vez que no temos
tantas evidncias, no mbito histrico-arqueolgico, que sustentem as teorias daqueles
estudiosos, porm admitimos que os argumentos so cabveis e tm o seu espao nesse campo
aberto a novos testes hipotticos.
Certamente podemos defender a existncia de um crculo ou grupo de judeus no
judasmo do Segundo Templo dedicados e, significativamente, influenciados por reflexes
oriundas do escrito de I Enoch. As principais evidncias desse perodo so os escritos que
55 KNIBB, M. A. Essays on the Book of Enoch and Other Early Jewish Texts and Traditions (Studia in Veteris
Testamenti Pseudepigrapha). London: Brill Academic Pub, 2008, p. 18. (O principal livro escrito por Boccaccini abordando essa temtica se chama Roots of Rabbinic Judaism. An Intellectual History from Ezekiel to Daniel).
56 KNIBB, 2008, p.23
38
absorveram tradies oriundas dos livros de Enoque tais como, por exemplo, o Livro dos
Jubileus e os Testamentos dos Doze Patriarcas.
Por outro lado, no podemos descartar a hiptese de que existiu um crculo de judeus
interessados nos livros de Enoque, porm, admitir que se tratava de um movimento totalmente
independente, exclusivamente dedicado ao escrito enoquita; uma sociedade separada, como
sugere Boccaccine, um passo mais ousado. Alguns estudiosos do palpites sobre a extenso
desse crculo. Herr, por exemplo, fala de "um pequeno crculo dentro do Judasmo do
Segundo Templo"57. Sobre esta matria Charlesworth comenta:
Embora eu gostasse de delegar para outros a avaliao do tamanho do grupo ou crculo Enoch, e enquanto eu ainda no possa julgar sua influncia, eu no tenho nenhuma dvida sobre a sua importncia para o desenvolvimento do pensamento judaico dentro do judasmo do Segundo Templo58.
O ecltico Seminrio de Enoch tem demonstrado que a presena dos livros de Enoque
encontrados prximo ao Mar Morto nos ajuda a entender as origens e o desenvolvimento da
comunidade de Qumran. Ainda no est claro quo significativos e influentes foram os grupos
judaicos que tinham em estima os livros de Enoque.
Diferente do que acontece em relao comunidade de Qumran, cuja localizao
topogrfica conhecida e informaes do estilo de vida da comunidade e de sua teologia nos
so acessveis, em relao existncia do judasmo enoquita, se que houve algum, ainda
permanece uma icgnita. No conhecemos nada relacionado aos grupos de Enoque. Ou seja,
no temos nenhuma definio clara do estilo desses judeus, localizao geogrfica e sua
influncia no judasmo antigo.
Dos aproximadamente 930 textos identificados em Qumran, a grande maioria, cerca
de 750 textos, foram escritos em hebraico, outros 150 em aramaico e 27 textos em grego.
Apesar da presena minoritria de textos em grego, tal constatao de extrema importncia,
pois refora nosso argumento da forte presena do idioma na Palestina. O fato de a quantidade
de manuscritos em grego ser minoritria no deve surpreender-nos, uma vez que estamos
analisando uma comunidade fechada, isolada, dada a rituais de purificao e que desejava ao
mximo preservar-se de influncia mundanas (helnicas). A presena desses manuscritos
nos diz que mesmo em Qumran a influncia grega (ainda que seja idiomtica) esteve presente.
57 HERR, M. D. The Calendar. In: SAFRAI, S.; STERN, M. (Ed.). The Jewish People in the First Century.
CRINT 1.2. Assen and Amsterdam: Van Gorcum, 1976, p. 834-64. 58 CHARLESWORTH apud BOCCACINE, 2005, p. 451.
39
Em Qumran, ao lado das runas onde viviam os essnios, foram encontradas 11
cavernas entre os anos 1947 e 1956. Nelas descobriu-se um verdadeiro tesouro
manuscritolgico. Acharam-se centenas de milhares de fragmentos, alm de uns poucos
manuscritos intactos que estavam guardados em jarros. Alguns dados relevantes sobre o
achado so:
1 - 21 manuscritos de Isaas foram achados em Qumran.
2 - S foi encontrado um rolo de Isaas completo (texto datado do sculo I a.C.).
3 - Foram encontrados fragmentos de todos os livros da Bblia Hebraica, com exceo de
Ester.
4 - As centenas de milhares de fragmentos representam 930 manuscritos, sendo que 200 so
bblicos.
5 - Os oito manuscritos mais completos encontrados em Qumran se encontram no Santurio
do Livro em Israel.
Figura 9 - Santurio do Livro localizado no Museu de Israel
Fonte: Acervo do autor. Novembro de 2013.
Entre todas as 11 cavernas de Qumran a principal para a nossa pesquisa a caverna
quatro. Nela foram encontrados cerca de 15.000 fragmentos de manuscritos, que, na verdade,
so restos de 530 manuscritos diferentes. L foram encontrados mais de 140 fragmentos de
Enoque, sendo que 138 foram identificados e estudados por Milik59, que representam 11
59 No ano 2000 Stuckenbruck, Tigchelaar e Garcia publicaram no DJD nmero 36, intitulado Qumran Cave 4.
XXVI. Cryptic Texts and Miscellanea, part 1, que contm comentrios sobre fragmentos encontrados em
40
manuscritos de Enoque. Ou seja, dos 530 manuscritos que existiam ali pelo menos 11 eram de
I Enoque.
Figura 10 - Caverna IV em Qumran
Fonte: Acervo do autor. Novembro de 2013.
Milik acreditava que I Enoque era um agrupamento de cinco livros diferentes, a saber:
Livro dos Vigilantes (Cap. 1-36), Livro das Parbolas (Cap. 37-71), Livro Astronmico (Cap.
72-82), Livro dos Sonhos (Cap. 83-90) e Epstola de Enoque (Cap. 91-108). Esta
considerada a diviso mais tradicional do livro na atualidade, porm no a nica. Ele
identificou fragmentos de cada um deles, exceto do Livro das Parbolas60.
A publicao de um volume intitulado The Books of Enoch: Aramaic Fragments of
Qumran Cave 4, por Milik, em 1976, foi de inestimvel valor. Este contm no s uma edio
dos fragmentos aramaicos e um comentrio textual detalhado, mas tambm uma longa
introduo na qual estabelece seus pontos de vista sobre a gnese do Livro de Enoque. Esse
livro tem sido extremamente influente, embora tambm tenha sido alvo de crticas
considerveis, pelo fato de Milik no ter encontrado, ou identificado, nenhum fragmento do
Livro das Parbolas em Qumran. Milik defende que tal escrito um trabalho cristo datado do
final do sc. III61. Independente desse posicionamento, que no reflete o que as pesquisas
Qumran, no publicados por Milik, principalmente fragmentos que falam de um calendrio das fases da lua e do sol pertencente ao Livro Astronmico.
60 Fragmentos aramaicos de um trabalho relacionado, o Livro enoquita dos Gigantes, tambm foram encontrados entre os rolos, porm, ele no considerado pela maioria dos estudiosos um livro pertencente ao livro original de I Enoque, mas uma composio distinta derivada de I Enoque. Maiores detalhes ver: STUCKENBRUCK, L. T. The Book of Giants from Qumran.Tbingen: Mohr Siebeck, 1997.
61 KNIBB, 2008, p. 10.
41
modernas dizem sobre o Livro das Parbolas, esta obra singular desencadeou um crescente
interesse acadmico no Livro de Enoque.
O Livro das Parbolas de grande interesse acadmico porque contm tradies sobre
o Filho do Homem. Mesmo no sendo achado nada relacionado a ele em Qumran, a maioria
dos eruditos entende que o escrito judaico, pr-cristo e provavelmente escrito
originalmente em aramaico ou em hebraico (esta tem sido a tendncia no Enoch Seminar) no
sc. I a.C. Porm, como no foram achados fragmentos em Qumran, no possvel ser
preciso em relao sua origem62.
Baseado nos fragmentos descobertos em Qumran, hoje, os pesquisadores so
unnimes em defender que o livro foi escrito originalmente em aramaico, ou pelo menos a
maior parte dele63. Antes de Qumran, a posio era que os livros tinham sido escritos
originalmente em grego. Aps Qumran ficou claro que o grego era uma traduo do aramaico.
Os fragmentos em aramaico, que equivalem a 2 ou 3% da obra64, so as evidncias
mais antigas de I Enoque. Segundo Milik as mais antigas partes (ou livros) presentes em I
Enoque so: o Livro dos Vigilantes e o Livro Astronmico, ambos pertencentes ao perodo
pr-macabaico65. A paleografia datou os fragmentos do Livro dos Vigilantes e do Livro dos
Sonhos como sendo os mais antigos, redigidos no final do III sculo a.C. Os fragmentos do
Livro da Epstola foram datados no perodo pr-Macabeu, por volta do incio do sc. II a.C.
Por fim, os fragmentos do Livro dos Sonhos foram datados no perodo Macabeu, por volta do
ano 165 a.C.66
Como expomos, Milik identificou fragmentos pertencentes a 11 manuscritos, o que
prova a autoridade que o livro (ou os livros) tinha em crculos judaicos67. Os manuscritos so
identificados pelas seguintes siglas: Ena; Enb; Enc; End; Ene; Enf; Eng; Enastra; Enastrb;
Enastrc; Enastrd. Todos eles foram escritos em aramaico e o material mais antigo que
possumos acerca de I Enoque. A seguir, tabelas que desenvolvemos para facilitar a
62 NICKELSBURG, G. W. E. Jewish Literature between the Bible and the Mishnah. Minneapolis: Fortress
Press, 2005, p. 254, 256. Ver tambm: KNIBB, M. A. The Date of the Parables of Enoch: A Critical Review. New Testament Studies, v. 25, p. 345-59, 1979.
63 KNIBB, M. A. The Ethiopic Book of Enoch. A New Edition in the light of the Aramaic Dead Sea Fragments. v. 1: Text and Apparatus; v. 2: Introduction, Translation and Commentary. Oxford: Clarendon Press, 1978, p. 6-15.
64 A informao nos foi transmitida pelo Prof. Vanderkam em entrevista na Universidade de Notre Dame, gravada em 27/05/2014.
65 REED, A. Y. Fallen Angels and the History of Judaism and Christianity. The Reception of Enochic Literature. New York: Cambrigde University Pre