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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE LUCIANO APARECIDO BORGES ALMEIDA GOD OF WAR DO GAME AO LIVRO: UM MITO PARA DUAS NARRATIVAS São Paulo 2016

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

LUCIANO APARECIDO BORGES ALMEIDA

GOD OF WAR – DO GAME AO LIVRO:

UM MITO PARA DUAS NARRATIVAS

São Paulo 2016

LUCIANO APARECIDO BORGES ALMEIDA

GOD OF WAR – DO GAME AO LIVRO:

UM MITO PARA DUAS NARRATIVAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras.

ORIENTADORA: Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez

São Paulo 2016

A447g Almeida, Luciano Aparecido Borges. God of war – do game ao livro: um mito para duas narrati-

vas / Luciano Aparecido Borges Almeida – São Paulo, 2017. 121 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade

Presbiteriana Mackenzie, 2017. Referência bibliográfica: p. 119-121.

1. Mitologia grego-romana. 2. Monomito. 3. Intertextualidade.

4. Game. 5. Romance. I. Título.

CDD 401.41

LUCIANO APARECIDO BORGES ALMEIDA

GOD OF WAR – DO GAME AO LIVRO:

UM MITO PARA DUAS NARRATIVAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovado em de de .

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Profª Drª Maria Luiza Guarnieri Atik Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________

Profª Drª Elaine Cristina Prado dos Santos Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Nivaldo Medeiros Diógenes Universidade de São Judas Tadeu

À minha esposa Andreza C. Santos Borges, pelo

constante incentivo e apoio; à minha mãe Diva Borges e

irmãos, pela confiança na realização deste trabalho. Ao

Senac e à Fundação Capes, por me ajudarem a custear

grande parte desta pesquisa. Aos meus amigos de todas

as horas, Luis Fernando e Carolina Beu, por seus

conselhos inestimáveis. À Patrícia Luissa Masmo, minha

coordenadora no Senac, cujo suporte me permitiu chegar

até aqui.

AGRADECIMENTOS

A Deus, fonte de toda sabedoria, pela força e pela coragem que nos concedeu,

permanecendo ao nosso lado em todo o percurso desta caminhada.

Ao Dr. Nivaldo Medeiros Diógenes, pelo muito que contribuiu com comentários e

sugestões apontadas no decorrer do exame de qualificação e defesa.

À Dra. Elaine Cristina Prado dos Santos pelas excelentes sugestões apresentadas

no momento do exame de qualificação e defesa.

À Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik que gentilmente presidiu a banca examinadora.

À Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez, minha orientadora, por compartilhar conosco seus conhecimentos.

RESUMO

O game God of war (parte 1), corpus desta pesquisa, é o ponto de partida desta

investigação, cujo objetivo é examinar a jornada do herói, o monomito proposto por

Campbell, e a sua aplicação como padrão narrativo estruturante do enredo também

para o romance homônimo, sem perder de vista o diálogo que os textos

estabelecem com a Mitologia Grega. A importância de realizar este estudo está na

contribuição que se pretende dar para o entendimento dos elementos narrativos

míticos que se configuram em mídias, como a digital e a impressa, que compartilham

uma mesma história, que encontra formas distintas de expressão, uma vez que os

elementos narrativos do game (a interatividade, a não linearidade, resultado da ação

do jogador e a imersão), em alguma medida, diferem dos tradicionais (personagens,

narrador, tempo e espaço) que caracterizam o romance. A perspectiva deste

trabalho é a da intertextualidade, em que se analisa a presença efetiva de um texto

em outro. Para realizar esta tarefa, os estudos de Gérard Genette, Joseph Campbell

e Junito de Souza Brandão oferecem a fundamentação teórica necessária para o

exame dos textos, que privilegiará tanto a análise de textos verbais quanto os textos

audiovisuais.

Palavras-chave: Mitologia greco-romana. Game. Romance. Intertextualidade.

Monomito.

RESUMEN

El juego Dios de la guerra (parte 1), corpus de este estudio, es el punto de partida de

esta investigación, cuyo objetivo es examinar el viaje del héroe, el monomito

propuesto por Campbell, y su aplicación como patrón narrativo estructural de la

trama también para la novela homónima, sin perder de vista el diálogo que los textos

establecen con la mitología griega. La importancia de la realización de este estudio

radica en la contribución que pretende dar para la comprensión de los elementos

narrativos míticos configurados en medios de comunicación digitales e impresos,

que comparten una historia común con distintas formas de expresión, ya que los

elementos de la narrativa del juego (interactividad, no linealidad, resultado de la

acción del jugador e inmersión) en cierta medida difieren de los tradicionales que

caracterizan la novela (personajes, narrador, tiempo y espacio). La perspectiva de

este trabajo es la intertextualidad, en la cual se examina la presencia efectiva de un

texto en otro. A fin de realizar esa tarea, los estudios de Gérard Genette, Joseph

Campbell y Souza Brandão Junito ofrecen la base teórica necesaria para el abordaje

de los textos, que privilegia el análisis de textos tanto verbales como audiovisuales.

Palabras clave: Mitología grecorromana. Game. Novela. Intertextualidad. Monomito.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1 Capa e contracapa do game God of war – parte 1................. 26

Imagem 2 Uma imagem do futuro………………………………………….. 30

Imagem 3 Capa do game God of war – parte 1....................................... 56

Imagem 4 A aventura do herói................................................................. 91

Sumário

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11

1. GOD OF WAR: A NARRATIVA DO GAME .................................................. 19

1.1 PALIMPSESTO DIGITAL ............................................................................. 19

1.2 ELEMENTOS DA HISTÓRIA ....................................................................... 25

1.3 O ENREDO .................................................................................................. 28

1.4 ELEMENTOS NARRATIVOS ....................................................................... 32

1.4.1 Personagens do game ................................................................................. 39

2. GOD OF WAR: A NARRATIVA DO ROMANCE ........................................... 56

2.1 ENREDO ...................................................................................................... 58

2.2 PERSONAGENS DO ROMANCE ................................................................ 77

3. GOD OF WAR: A JORNADA DO HERÓI ..................................................... 88

CONCLUSÕES FINAIS ........................................................................................... 113

ANEXOS ................................................................................................................. 117

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 119

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INTRODUÇÃO

Desde a pré-história o homem faz uso de imagens para contar histórias, como as

que se plasmam na arte rupestre. As primeiras civilizações já utilizavam um sistema

de escrita1 de natureza icônica, baseada em representações bastante simplificadas

dos objetos da realidade, dando início, há aproximadamente 16000 a.C., à tradição

da narrativa visual, até os meios de comunicação igualmente visuais da

contemporaneidade, como o cinema, a televisão, as artes plásticas e o

entretenimento interativo, entre os quais se incluem os jogos digitais, popularmente

conhecidos como videogames.

Segundo Jeannie Novak (2010, p. 122) “os games respondem por uma proporção

significativa do meio altamente visual do entretenimento interativo. Esse meio

incorporou a tradição à narrativa visual, mas também revolucionou a forma como as

histórias são contadas”. Todavia, analisar histórias na contemporaneidade,

principalmente aquelas que se propagam mediante jogos digitais, no âmbito do

entretenimento, demanda antes um olhar sobre o conceito de jogo.

O historiador Johan Huizinga (2001, p. 7), comenta que “as grandes atividades

arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo

jogo”. Huizinga, ao escrever o prefácio de Homo Ludens, obra publicada em 1938,

entende “a noção de jogo como um fator distinto e fundamental, presente em tudo o

que acontece no mundo”. Segundo ele,

[...] o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites das atividades puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa (HUIZINGA, 2001, p. 3-4).

Por que as pessoas jogam? Estaria Huizinga pensando naqueles que passam horas

diante de um videogame (crianças, jovens e adultos), nesta ação imbuída de sentido

para eles e, não raro, mesmo até negligenciando as necessidades imediatas da

vida? Certamente que não. Não obstante, aquele que adentra o mundo virtual deixa

1 A história da escrita passa por pelo menos quatro períodos: o das ideias (pictografia), o da escrita sintática, o da escrita das palavras e o da escrita dos sons.

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em suspenso o que comumente se entende por realidade, como estudar, trabalhar,

alimentar-se ou mesmo dormir. O autor não pensou neles quando escreveu o

recorte acima, no entanto, as suas palavras se aplicam também a eles. Afinal, as

criaturas, desde o início, jogam pura e simplesmente para se divertirem, embora se

saiba que o jogo pode ter funções que não atendam estritamente ao lúdico. Esses

desdobramentos, no entanto, não serão examinados neste estudo.

Ao se considerar um jogo na sua totalidade, entendendo-o como significante, pode-

se chegar à sua essência que é a de divertir o seu jogador. É o prazer, segundo

Huizinga (2001, p. 5), a alegria que se experimenta ao jogar, que precisamente

define a essência do jogo. Essa euforia que todos os jogadores experimentam não

difere da alegria que dois cachorrinhos sentem ao brincar um com o outro; mesmo

nesta circunstância há um jogo em cena, uma prática que culmina em bem-estar.

O jogo apresenta-se como “elemento, dado existente antes da própria cultura,

acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de

civilização em que agora nos encontramos”, como comenta Huizinga (2001, p. 6). O

que equivale a dizer que o jogo existe a despeito da civilização e de uma concepção

de mundo, posto que, se por um lado a sua natureza não é material, por outro ela é

irracional. Segundo esse mesmo autor,

O que importa é justamente aquela qualidade que é característica da forma de vida a que chamamos “jogo”. O objetivo de nosso estudo é o jogo como forma específica de atividade, como “forma significante”, como função social. [...] Procuraremos considerar o jogo como o fazem os próprios jogadores, isto é, em sua significação primária (HUIZINGA, 2001, p. 6).

Huizinga, ao compreender o jogo como um fator cultural da vida, procura captar o

seu valor e significados, por meio da ação do próprio jogo, quer nas imagens que

apresenta, quer na “imaginação” da realidade em que se baseia.

O jogo é, portanto, nas palavras do historiador holandês:

Uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana” (HUIZINGA, 2011, p. 33).

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Assim é definida a noção, segundo Huizinga, capaz de abranger tudo aquilo a que

se denomina jogo, incluindo aqueles nomeados como jogos digitais – novas

tecnologias que, a despeito da complexidade que lhes são inerentes, têm lastro nos

conceitos básicos e teorias clássicas dos jogos.

Segundo Katie Salen e Eric Zimmerman (2012, p. 22. v.1), os jogos, como produtos

da cultura humana, revelam sua complexidade ao atenderem “a uma série de

necessidades, desejos, prazeres e usos [...] refletem uma série de inovações

tecnológicas, materiais, formas e interesses econômicos”.

Um jogo é um sistema no qual os jogadores se envolvem em um conflito artificial, definido por regras, que resulta em um resultado quantificável. Os elementos-chave dessa definição são o fato de que um jogo é um sistema, os jogadores interagem com o sistema, um jogo é um exemplo de conflito, o conflito nos jogos é artificial, as regras limitam o comportamento dos jogadores e definem o jogo, e cada jogo tem um resultado quantificável ou objetivo (SALEN; ZIMMERMAN, 2012, p. 99. v. 1).

A definição proposta acima corrobora a afirmação de Salen e Zimmerman (2012, p.

102. v. 1): “os jogos digitais têm a sua tessitura construída nas teorias clássicas,

uma vez que as qualidades que definem um jogo em uma mídia também o definem

em outra”. Segundo esses mesmos autores, o videogame é uma parte importante da

“paisagem do jogo”, isto é, uma entre as representações possíveis, por trazer uma

série de qualidades únicas, tais como: a interatividade imediata, mas restrita;

manipulação da informação; sistemas complexos e automatizado; e comunicação

em rede (SALEN; ZIMMERMAN, 2012, p. 107. v. 1).

Os jogos digitais, doravante referenciados como games, nas palavras de Salen e

Zimmerman, ao atuarem como importante “paisagem do jogo”, promovem a

interação (sistema-jogadores) por meio de um conflito artificial, em que a leitura que

o jogador faz do game é narrada enquanto ele joga, desde que ele aceite as regras

que, como já dito, definem o comportamento do jogador e o próprio jogo. Este

conflito artificial em que se desenha a história do game, assim como a narrativa que

o jogador experimenta ao jogar, é o cerne do estudo que nesta dissertação se

empreende.

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Esta pesquisa, ao partir do estudo de uma narrativa composta, a princípio para um

game, God of war, examina a história que motiva o jogador a interagir com o

sistema, ao apresentar um conflito artificial ambientado no mito grego.

A Grécia antiga foi o berço de um mundo vivo e religioso, que ainda se comunica

com a contemporaneidade por meio do seu legado cultural, manifesto nos discursos,

especialmente, na cultura do ocidente, a Mitologia Grega. De natureza politeísta, ela

concebia que cada deus ou deusa tinha uma identidade, uma história, bem como

exercia um determinado poder no mundo.

É sobre este plano de fundo que a narrativa do game God of war – parte 1, objeto

primeiro deste estudo, vem à luz como produto de entretenimento. Assim, situado no

mito, este game, à luz dos estudos de Huizinga (2001, p. 7) trabalha “em todas as

caprichosas invenções da mitologia”, em que “há um espírito fantasista que joga no

extremo limite entre a brincadeira e a seriedade”.

Lançado em julho de 2005, nas palavras de Novak (2010, p. 101), “God of war –

parte 1 revolucionou o gênero ação-aventura ao incorporar sofisticados elementos

de narrativa”. Em 2004, na E32, recebeu a indicação de “Melhor Jogo Original”,

“Melhor Jogo de Ação-Aventura”, “Melhor Jogo de Videogame” e “Melhor Jogo de

Ação-Aventura”, pela Game Critics Award; ganhou como “Melhor Jogo de PS2”, pela

Gamespot e ganhou como o “Melhor Jogo da E3 2004”, “Melhor Game do PS2” e

“Melhor Jogo de Todos”, pela GameSpy; considerado pela Newsweek o “Jogo Mais

Impressionante do PS2”.

Segundo a sua roteirista Marianne Krawczyk (apud NOVAK, 2010, p. 124), God of war

apresentou-se como um desafio totalmente novo, uma vez que demandava “a

incorporação do projeto de um game à construção de uma narrativa”. No

entendimento de Krawczyk, a inserção de uma história simples e direta em um

mundo projetado para mover-se lateralmente, ainda que difícil, mostrou-se o melhor

caminho a seguir na escrita do roteiro. Com essa proposta em mente, colocou-se à

narrativa de God of war um fio de história cujo percurso se estrutura a partir de uma

sequência de incidentes, dentro do que Flávio Campos (2007, p. 20) chama de

2 Electronic Entertainment Expo – o maior evento sobre games de todo o mundo. Durante o período da feira, várias empresas do setor tentam capturar a atenção dos jogadores e imprensa apresentando novos jogos e falando sobre novidades nesse gigantesco mercado de entretenimento, conforme o site Tecmundo. Disponível em: <http://www.tecmundo.com.br/e3-2015/82115-resumo-jogos-datas-lancamentos-tudo-sobre.htm>. Acesso em: 12 set. 2016.

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“massa de estórias3”, isto é, o incidente ou o conjunto deles imaginados, em que a

“narrativa é o produto da percepção, interpretação, seleção e organização de alguns

elementos de uma estória”.

Os games, que ora utilizam a palavra digital como linguagem e meio de expressão,

fazem parte de uma indústria que crescerá 6,6% entre 2016 e 2019 e que já

ultrapassa as da música e do cinema (NEWZOO GAMES, 2016). Esta visão do

mercado tem demandado das equipes de criação atenção e cuidado com a

construção de enredos cada vez mais sofisticados que se estruturam em espaços

riquíssimos em detalhes. Se antes, na criação de um game, a preocupação girava

em torno da jogabilidade, na última década, dados os avanços da tecnologia, ela

agora se estende também às narrativas, capazes de imprimir à experiência do

usuário não apenas a imersão em um mundo ficcional como também certa tensão

dramática, características essas antes exclusivas da literatura. Se por um lado, a

história passa a ser relevante na elaboração de um roteiro para games, ela sempre

foi o que levava um leitor a adquirir um livro. Tal relação nos leva a pensar a

adaptação de uma história de uma mídia a outra e, por conseguinte, a análise da

obra literária God of war, lançada em 2012, pela editora Leya Brasil, com tradução

de Flávia Gasi4. O livro, que também narra a primeira parte da saga God of war, foi

escrito pelos norte-americanos Mathew Stover5 e Robert E. Vardeman6. Esta

adaptação da história do game, transposta para a linguagem impressa será

analisada no segundo capítulo deste estudo, cotejando a narrativa desta em relação

àquela.

A adaptação de uma mídia a outra implica conferir várias soluções estéticas ao novo

suporte, uma vez que o criador vai lidar com um novo código e os meios próprios de

expressão dessa outra linguagem. O problema que se coloca nesta dissertação é o

da adaptação de um game para um romance. Como transpor a estrutura do game,

que nos lembra um tabuleiro de xadrez – pela oferta de várias opções a serem

realizadas na atividade lúdica – para o texto literário? Além dessa questão

3 Entendemos também por massa de histórias obras como a Odisseia e a Ilíada. 4 Flávia Gasi, escritora, jornalista, doutoranda e mestre pela PUC-SP no programa de Comunicação e Semiótica (http://www.flaviagasi.com.br/). 5 Matthew Woodring Stover nasceu em 1962. É romancista nos gêneros fantástico e de ficção científica. Escritor da série Guerra nas estrelas, incluindo a dramatização do Episódio III desta saga: A Vingança dos Sith. Escreveu, entre outras obras, Iron dawn e Jericho moon. 6 Robert Edward Vardeman nasceu em 1947. Entre seus trabalhos, escreveu fanzines de ficção científica, vindo a ganhar o Hugo Award como melhor escritor do gênero.

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arquitetônica, surge a da construção do herói. No game, a escolha de suas ações

dá-se a partir de um leque de opções que o jogador encontra no processo; no

romance, via de regra, é o escritor quem delineia um percurso para o herói que o

leitor acompanhará ao longo da diegese. Outras questões: como a narrativa de God

of war dialoga com a mitologia clássica em cada linguagem? Há um padrão narrativo

que estrutura o enredo de God of war, tanto no game quanto no livro? Como se dá o

processo de adaptação da narrativa de uma mídia a outra?

Linda Hutcheon (2011, p. 58) pensa a adaptação

Em termos de permanência de uma história, seu processo de mutação ou adequação (através da adaptação) a um dado meio cultural. As histórias não são imutáveis; ao contrário, elas também evoluem por meio da adaptação ao longo dos anos [...] A adaptação cultural conduz a uma migração para condições mais favoráveis: as histórias viajam para diferentes culturas e mídias. Em resumo, as histórias tanto se adaptam como são adaptadas.

A adaptação representa o meio como as histórias se transformam e evoluem,

segundo Hutcheon (2011, p. 234), para se ajustar a novos tempos e a diferentes

lugares.

O que nos leva a formular três hipóteses:

a narrativa de característica palimpséstica, enquanto hipertexto, abre

importantes reflexões sobre o hipotexto a que remete. Neste sentido,

constitui-se terreno profícuo para o estudo de temas culturalmente relevantes;

a narrativa, ao ser adaptada para outro suporte, permite acréscimos,

supressões, inversões, deslocamentos, dentre outros procedimentos de

relação intertextual possíveis de serem efetuados em razão das propriedades

visuais, auditivas, cinéticas, performáticas, entre outras, da nova mídia;

a narrativa criada como entretenimento atualiza também o diálogo entre a

tradição, a mitologia grega, e a contemporaneidade.

Partindo das hipóteses e das questões formuladas acima, os objetivos deste estudo

são: analisar a história de Kratos, mais especificamente explorar como ela se

constrói como narrativa em diferentes suportes: no game God of war7 – parte 1 e na

7 O game God of war – parte 1 foi desenvolvido para maiores de dezoito anos, pela Santa Mônica Estúdios, distribuído pela Sony e lançado em março de 2005. A adaptação foi lançada em livro no Brasil em 2012.

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adaptação para o romance homônimo, a partir da perspectiva da teoria das relações

intertextuais de Genette – em que ocorre o processo duplo de interpretação e

criação do novo, na medida em que reavalia e transcreve o sistema narrativo do

game para as estruturas simbólicas do livro; examinar o percurso do herói a partir do

monomito proposto por Campbell, na sua aplicação como padrão narrativo

estruturante do enredo mítico; explorar a relação que a narrativa, baseada na

“jornada do herói”, estabelece com o mito e o sagrado; investigar, com base nos

trabalhos de Mircea Eliade e Junito de Souza Brandão, o caráter vivo do mito, sua

mobilidade e natureza ontológica.

Espera-se oferecer, com esta pesquisa, algumas ideias – contudo, sem apontar

metodologias – acerca da utilização, em sala de aula, de narrativas compostas para

uma dada mídia e transpostas a outras. Compreende-se que, a partir dessas

reflexões, o professor possa alinhar o interesse dos alunos pelos games aos temas

culturalmente relevantes, como é o caso da Mitologia Grega, presente na história de

God of war.

A importância de realizar este estudo se encontra na contribuição que se pretende

dar para o entendimento dos elementos narrativos que se verificam em mídias,

como a digital e a impressa, que compartilham uma mesma história. Para realizar

essa tarefa, constituiu-se esta dissertação em três capítulos, os quais têm como

título God of war e subtítulos: a narrativa do game, a narrativa do romance e a

jornada do herói, respectivamente. O primeiro capítulo analisa a narrativa contada

por meio do game, entendendo-a como um hipertexto que contém outros textos

oriundos da mitologia grega. O segundo capítulo estuda a narrativa contada por

meio do romance, considerado como um texto que deriva de outro (a narrativa do

game) que lhe é anterior. O terceiro capítulo examina a jornada do herói, o

monomito proposto por Campbell, entendido como construto estruturante do enredo

de God of war. A perspectiva deste trabalho é a da intertextualidade, em que se

analisa a presença efetiva de um texto em outro. Os estudos de Gérard Genette,

Joseph Campbell e Junito de Souza Brandão ofereceram a fundamentação teórica

para esta dissertação.

Esta pesquisa, por fim, procura desmistificar a ideia corrente, em meio ao senso

comum, de que o game, como entretenimento ou mesmo fonte de informação, é

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uma atividade humana menor. Ademais, tenciona verificar a hipótese de que o

enredo, a narrativa elaborada para um game, mesmo tendo uma arquitetura

complexa, é passível de ser transposta para outra mídia, sem que esse processo

implique comprometer o estatuto artístico de cada texto, quer o hipotexto, quer o

hipertexto.

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1. GOD OF WAR: A NARRATIVA DO GAME

1.1 PALIMPSESTO DIGITAL

Contos sobre os deuses do Olimpo foram passados adiante por contadores. Essas

histórias, reelaboradas, modificadas ao longo dos tempos e fundadas em mitos,

muitos dos quais conservavam a tradição de cultos locais, propiciaram epopeias

como a Ilíada e a Odisseia.

Marcus Reis Pinheiros, em sua “Nota”, como revisor da Odisseia, de Homero,

publicada pela Brasiliense, comenta:

A Odisseia na sua forma atual, segundo a maioria dos estudiosos, é um agrupado de poemas de várias épocas diferentes [...] sendo organizados em um único poema muito posteriormente da criação original [...] Assim, o que nós temos em mãos é, além de uma obra do próprio Homero, uma obra produzida por séculos de publicações que alteraram a sua organização. Os poemas originais tinham apenas a forma oral de expressão, e não a escrita como nos chegou o todo do poema (NUNES, p. 24-25).

A narrativa de God of war – parte 1, doravante referenciado neste estudo apenas

como God of war, ganha forma a partir da percepção, interpretação, seleção e

organização dos mitos gregos. Ou seja, a partir dessa “massa de estórias”, desse

conjunto de “narrativas”, que é a Mitologia Grega, a aventura para o game foi

imaginada, o que proporcionou a composição de uma nova narrativa. Esta outra

narrativa, à margem do cânone, ao manter os personagens clássicos do mito grego

e inserir um novo protagonista à trama criou uma “nova mitologia”, circunscrita ao

universo do game.

O crítico literário Gérard Genette considera que, por vezes,

A arte de “fazer o novo com o velho” tem a vantagem de produzir objetos mais complexos [...] do que os produtos “fabricados”: uma função nova se superpõe e se mistura com uma estrutura antiga, e a dissonância entre esses dois elementos co-presentes (sic) dá sabor ao conjunto (GENETTE, 2006, p. 45).

God of war assim surge como um hipertexto ficcional, ou seja, ficção derivada de

outra, cuja origem, a Mitologia Grega, é entendida como hipotexto em razão de seu

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caráter preliminar. Segundo Genette (2006, p. 19), a derivação do hipotexto ao

hipertexto é ao mesmo tempo maciça e explícita de maneira mais ou menos oficial,

em que se percebem elementos da hipertextualidade. Genette (2006, p. 40) ainda

nos diz que ela deve ser entendida como “toda situação redacional que funciona

como um hipertexto em relação à precedente, e como um hipotexto em relação à

seguinte”. Ele também adverte que “quanto menos a hipertextualidade de uma obra

é maciça e explícita, mais sua análise depende de um julgamento constitutivo, até

mesmo de uma decisão interpretativa do leitor” (GENETTE, 2006, p. 18). Por outro

lado, o jogador ou player, aquele que utiliza como entretenimento jogos eletrônicos e

os “lê”, doravante chamado leitor-jogador neste estudo, caso seja conhecedor da

“massa de estória”, percebe-a de forma diferente daquele que não teve acesso aos

contos sobre os deuses e deusas da antiga Grécia. Não obstante, para se

compreender a aventura de God of war não se necessita recorrer ao seu hipotexto,

ou seja, ela pode ser lida por si mesma. O que não é o caso deste estudo em que se

pretende a análise da relação com o seu hipotexto.

Segundo o quadro geral das práticas hipertextuais formulado por Genette, este

estudo entende que God of war, como narrativa, melhor se enquadra como uma

transformação séria ou transposição. A transformação séria, ou transposição,

conforme Genette (2006, p. 27-28) é a mais importante de todas as práticas

hipertextuais, principalmente “pela importância histórica e pelo acabamento estético

de certas obras que dela resultam”. Segundo esse mesmo estudioso, outras práticas

hipertextuais, como a paródia, o travestimento, o pastiche, a charge, “procedem

todas de inflexões funcionais conduzidas por uma prática única (a imitação),

relativamente complexa, mas quase inteiramente prescrita pela natureza do

modelo”, resultam em textos breves.

Como já dito acima, a narrativa de God of war, não demanda a leitura dos mitos

gregos para que seja compreendida, pois sendo uma transposição, texto que se

classifica como não breve, tem o seu caráter hipertextual mascarado, uma vez que o

leitor-jogador, quando muito jovem, ao jogar segue conhecendo os personagens à

medida que a narrativa os vai apresentando.

Acerca da Transposição, como texto não breve, cuja hipertextualidade pode chegar

a ser mascarada pela amplitude textual, Genette (2006, p. 28) afirma:

21

A transposição, ao contrário, pode se aplicar a obras de vastas dimensões, como Fausto ou Ulisses, cuja amplitude textual e a ambição estética e/ou ideológica chegam a mascarar ou apagar seu caráter hipertextual, e esta produtividade está ligada, ela própria, à diversidade dos procedimentos transformacionais com que ela opera (GENETTE, 2006, p. 28).

Contudo, não se pode negar que o leitor-jogador que conhece o hipotexto de God of

war, certamente, valoriza a experiência do jogo em nível diferente em relação àquele

que desconhece o texto-fonte, ao dotá-lo de plurissignificação e atribuir-lhe um valor

estético acentuadamente mais positivo. Aliás, conforme Genette (2006, p. 42) “a

transposição, e talvez mais genericamente a hipertextualidade, responde certamente

mais a uma atitude estética ao mesmo tempo clássica e moderna”.

Essa duplicidade do objeto, na ordem das relações textuais, pode ser figurada pela velha imagem do palimpsesto, na qual vemos, sobre o mesmo pergaminho, um texto se sobrepor a outro que ele não dissimula completamente, mas deixa ver por transparência. (GENETTE, 2006, p. 45).

Há em God of war, como hipertexto, o que Genette chamou de duplicidade do

objeto, em que se pode apreender, enquanto se experiencia o game, um texto se

sobrepor a outro, uma vez que não se pode ocultar o hipotexto, os mitos gregos,

calá-los ou disfarçá-los. Eles estão lá figurados, como diz Genette, como em um

palimpsesto, duas histórias (ou um conjunto delas) que se pode perceber sobre o

mesmo pergaminho.

As novas tecnologias de comunicação e de informação, segundo Vicente Gosciola

(2003, p. 19), as assim chamadas novas mídias, abriram também as possibilidades

de contar histórias, por meio de narrativas audiovisuais, não lineares e interativas

que são disseminadas por meio de uma mídia física, como os discos que contêm

games completos jogados em consoles. Essa mídia, o jogo em DVD, com imagem,

som e texto verbal, é tanto o meio quanto o processo comunicacional, conforme

Gosciola (2003, p. 23). Acerca do sentido da palavra “mídia”, ele conceitua:

O termo mídia é utilizado para identificar o recurso pelo qual uma informação é transmitida, ou seja, o canal ou o meio de comunicação através do qual se desenvolve uma comunicação [...] No mercado e no dia a dia do usuário de novas tecnologias utiliza-se o termo mídia para identificar o suporte onde será replicado um conteúdo ou toda uma hipermídia (GOSCIOLA, 2003, p. 27).

22

O filósofo, sociólogo e pesquisador em ciência da informação Pierre Lévy (2010, p.

64), situa esse termo também como meio e processo comunicacional: “A mídia é o

suporte ou veículo da mensagem. O impresso, o rádio, a televisão, o cinema ou a

internet, por exemplo, são mídias”.

Para Lévy (2010, p. 264), “a hipermídia integra texto com imagens, vídeo e som,

geralmente vinculados entre si de forma interativa”. No entendimento de Gosciola

(2003, p. 17), as novas mídias figuram na contemporaneidade como “o vasto campo

delimitado pelas tecnologias digitais” e conceitua hipermídia como “o meio e a

linguagem em que esse campo se encontra.” Consoantes a esses conceitos

enunciados, entendemos que um novo pergaminho surge, o palimpsesto digital,

sobre o qual um hipotexto, assim como ocorre no meio não digital, é derivado para

um hipertexto, em que há uma relação de hipertextualidade unindo um texto B a um

texto anterior A.

Ainda de acordo com Lévy (2010, p. 264), o hipertexto pode ser compreendido

como:

Uma forma não linear de apresentar e consultar informações. Um hipertexto vincula as informações contidas em seus documentos (ou “hiperdocumentos”, como preferem alguns) criando uma rede de associações complexas através de hyperlinks ou mais simplesmente, links.

Segundo Laufer e Scavetta (apud Gosciola, 2003, p. 30) “o hipertexto é um

agrupamento de textos em meio digital, ligados por elos semânticos ancorados em

uma palavra ou uma frase promovendo uma leitura não linear”. Consoante Crowford

Kilian (apud Gosciola, 2003, p. 30) o “hipertexto é um texto que faz referência a

outros textos e que possibilita ir ao encontro deles, texto, gráfico, áudio, vídeo ou

uma combinação desses quatros elementos ligados a outros documentos

eletrônicos”. Já George P. Landow (apud Gosciola, 2003, p. 32) situa o termo

hipertexto em um campo maior, em que a palavra na sua forma digital pode assumir,

dentre elas, o texto não linear, como os jogos de computador, uma vez que eles não

permitem, como hipertexto, a leitura multissequencial.

O game God of war é uma obra hipermidiática que possui textos, imagens, músicas,

todos interagindo de forma harmônica e é a lexia o elemento que liga todos esses

conteúdos. Segundo Lucia Leão (2005, p. 27), “o termo lexia foi empregado

23

anteriormente por Barthes para designar blocos de textos significativos”, isto é,

unidades básicas de informação.

O hipertexto, em geral, é composto por blocos de informações e vínculos eletrônicos (links) que ligam esses elementos. Os blocos de informações costumam ser denominados lexias [...] uma lexia pode ser formada por diferentes elementos, tais como textos, imagens, vídeos, ícones, botões, sons, narrações, etc. (LEÃO, 2005, p. 27)

O conceito de lexia importa para este estudo, ao considerar que o leitor-jogador de

God of war não consegue seguir em seu percurso, ou seja, completar uma dada

missão ou etapa, ou mesmo ler a narrativa, sem antes interagir com algum tipo de

lexia − um item que deve ser recolhido durante a aventura, como chave para uma

nova porta, etc. O que revela ser a lexia um constituinte do enredo não linear ao

funcionar como facilitador da leitura, não apenas no tocante aos saltos que

possibilita de um texto a outro, mas à interação em grande escala que propicia entre

o leitor-jogador e o mundo projetado que se abre, como quem folheia um livro atrás

de uma informação, dentro do universo do game. Esclarece-se que ainda que o

conceito de lexia não seja de todo claro para o leitor-jogador, este estudo entende

que ele é pura linguagem no sentido que se faz meio para a interação, ora nas

relações que estabelece, ora nos efeitos que atua como causa, levando o leitor-

jogador a desencadear comportamentos e mesmo até a procurá-lo. Encontrar uma

lexia equivale a responder a perguntas tais como: onde está a saída desta fase?

Que dispositivo devo acionar para abrir esta porta? e outras mais, posto que há

sempre uma lexia que aponta para o próximo nível, ao próximo texto. E se uma nova

fase em um game equivale ao cumprimento de um dado trecho do roteiro, do

percurso que se tem de cumprir, o conceito de lexia, como texto no qual o leitor-

jogador percebe, lê e interage, é a noção que o orienta. Mas, falar de texto e

entender a lexia como tal, é antes falar de sentido, de uma produção que se constrói

na relação entre o trinômio autor, texto e leitor.

Segundo Gosciola (2003, p. 23) a hipermídia como um processo comunicacional

depende do relacionamento entre seus diversos conteúdos e seu leitor-jogador. Ele

também afirma que o processo de comunicação “é um ato social que recorre à

linguagem, como um suporte ordenador de conteúdos, para atender à necessidade

humana de representação e troca de informações, de narrar fatos, de contar

histórias (GOSCIOLA, 2003, p. 29). Nesta linha de pensamento, pode-se

24

compreender a história do game God of war como processo comunicacional

hipermidiático – que congraça diversos conteúdos e os disponibiliza para leitura em

um mundo projetado –; é uma ocorrência comunicativa que utiliza os muitos textos

que a palavra digital pode assumir para representação e troca de informação.

Entendendo “muitos textos”, todos os elementos que, expressos em diferentes

linguagens, comunicam ao representar uma informação ao leitor-jogador,

possibilitando a este interagir com o dado e interpretá-lo. A reação do leitor-jogador

a esses textos, ainda que veiculados em um mundo virtual8 é concreta, tanto quanto

o próprio texto o é como unidade que se atualiza ao ser acessada. Em um game, o

leitor-jogador está “confrontando” o caráter virtual da informação, em todas as vezes

que joga e atualiza uma nova partida, como comenta Lévy (2010, p. 77).

O virtual aqui entendido como toda entidade desterritorializada é “capaz de gerar

diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados,

sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular”, como

comenta Pierre Lévy (2010, p. 49). O mundo virtual dos games pode ser entendido

como uma entidade desterritorializada, uma vez que se manifesta concretamente em

qualquer local (casa) e momento (dia) que o leitor-jogador quiser jogar, não estando

o game, portanto, preso a um lugar ou tempo em particular. Contudo, a

interatividade em um jogo se evidencia no momento em que é “fruída” pelo leitor-

jogador.

Nas palavras de Luiz A. Marcushi (2012, p. 29), entretanto, “o texto não é uma

unidade virtual e sim concreta e atual”. Ele também aponta que “o texto forma uma

rede em várias dimensões e se dá como um complexo processo de mapeamento

cognitivo de fatores a serem considerados na sua produção e recepção”

(MARCUSHI, 2012, p. 30). Dito de outro modo, o leitor-jogador, na relação que

estabelece com os textos nas várias dimensões que assume em um game, vai

instituindo conexões enquanto os lê de forma não linear, apreendendo os seus

argumentos e reagindo a partir deles.

8 Mundo virtual no sentido do dispositivo informacional é um espaço de interação por proximidade dentro do qual o explorador [leitor-jogador] pode controlar diretamente um representante de si mesmo (LÉVY, 2010, p. 76). Também considerado como um conjunto de códigos digitais – é um potencial de imagens, enquanto uma determinada cena, durante uma imersão no mundo virtual, atualiza esse potencial em um contexto particular de uso (LÉVY, 2010, p. 51).

25

Em God of war, o leitor-jogador ao ler uma informação em um livro ou escrita como

uma pintura em uma parede reage àquelas informações recebidas. À medida que o

leitor-jogador vai formando conexões em sua recepção, a narrativa vai se

construindo, ou seja, o enredo ganha sentido de ser – todo o percurso, o objetivo a

se alcançar e as dificuldades a ultrapassar justificam-se. God of war é, como já dito,

uma obra hipermidiática, constrói-se como um palimpsesto digital, uma história que

conta um texto B (hipertexto) na superfície, mas que também recupera um texto A

anterior (hipotexto) em várias camadas, todas elas oriundas de interdiscursos; como

narrativa ganha concretude por meio da palavra digital como hipertexto informativo

que é essencialmente virtual, também universo onde o enredo é tecido pela

hipertextualidade, cujo elemento digital, uma lexia, orienta uma narrativa que é

marcadamente não linear e orientada pelo percurso interativo de um herói que

representa o leitor-jogador.

1.2 ELEMENTOS DA HISTÓRIA

Novak (2010, p. 131) comenta que um game começa a se estruturar segundo alguns

elementos da história, tais como: premissa, história anterior, sinopse, tema e

cenário. Faremos doravante uma análise dos elementos apontados por Novak, com

o intuito de verificar como eles se apresentam em God of war.

A premissa, isto é, o conceito geral, em God of war está presente na contracapa do

game, conforme ilustra a figura abaixo, em que se pode ler (tradução nossa): “Você

é Kratos e você irá matar o Deus da Guerra – Uma aventura épica de conquista,

destino e vingança.” A perspectiva está na segunda pessoa do tempo verbal, de

maneira a estabelecer um primeiro diálogo com o leitor-jogador do game acerca do

que trata à narrativa. Assim a questão mais básica sobre uma obra, se deve ser lida

ou não, é atendida no que se refere ao cuidado com a “capa” do game. A capa e a

contracapa de uma obra hipermidiática recebe atenção de uma equipe de criação

(tal como um livro) para que haja interesse pelo texto por parte do leitor-jogador.

26

Imagem 1 – Capa e contracapa do game God of war – parte 1

Fonte: God of war, Santa Mônica, 2005.

O segundo elemento da história de um game para Novak (2010, p. 132) é a “história

anterior”, que “fornece informações sobre o que aconteceu antes do início do game”.

Geralmente consiste em um parágrafo breve no manual de instruções ou aparece como um bloco de texto (muitas vezes acompanhado de narração) no início do game. Isso ajuda a orientar o jogador quanto à finalidade e ao tipo de ação existentes no game, em certos casos permite que ele estabeleça vínculos iniciais com certos personagens (NOVAK, 2010, p. 132).

Em God of war, a “história anterior” é narrada no transcorrer do próprio game tal

como fosse uma sinopse. A partir da “história anterior” de God of war, o leitor-

jogador passa a entender o que motivou o protagonista a agir, todo o seu ódio e

sede por vingança, a abandonar os anos de servidão ao deus da guerra Ares para

se juntar à deusa Athena.

O terceiro elemento da história de um game é a sinopse, que como já dito, refere-se

à narrativa que existe no transcorrer do próprio game. Segundo Novak (2010, p.

133) essa narrativa em construção “também pode ajudar o jogador a escapar da

realidade para imergir no mundo “artificial” do game e, nesse processo, envolver-se

emocionalmente com os personagens”. Em God of war, o leitor-jogador começa o

percurso como sendo o herói do jogo, ora vivenciando suas memórias, ora

percorrendo o enredo da história principal. A sinopse como elemento narrativo no

27

game traz o leitor-jogador para a causa do protagonista, justificando em certa

medida as suas ações, sua brutalidade e violência.

O quarto elemento da história de um game é o seu tema. Consoante Novak (2010,

p. 133) “o tema representa o sentido real da história. Os temas geralmente estão

relacionados ao primeiro obstáculo enfrentado pelo personagem principal no game”.

O obstáculo é um inimigo (vilão), a natureza, a sociedade, o destino ou os próprios personagens? Qual é o conceito filosófico em que a história se baseia? O tema pode ser esclarecido por uma pergunta? Por exemplo: “O assassinato é justificável?” ou “O amor pode vencer?”. Que tema você gostaria de explorar em uma história? (NOVAK, 2010, p. 133).

O tema central de God of war é a vingança de um mortal contra um deus. O

personagem central do game é Kratos, um guerreiro oriundo da cidade de Esparta,

que foi servo de Ares até ser enganado pelo Deus da Guerra. Todo o ódio que

surgiu da relação desastrosa entre o mortal e o deus, e que configura a “história

anterior” à narrativa principal do game, é corroborada por meio da “premissa inicial”

que, como já dito, pode ser encontrada na capa elaborada para a mídia física do

game: “Você é Kratos e irá matar o Deus da Guerra”.

O quinto elemento de história de um game é o cenário. De acordo com Novak (2010,

p. 133) “o cenário ou contexto representa o mundo que está sendo explorado pelo

usuário e personagens do game”. Em God of war, o cenário está vinculado a uma

narrativa que se mostra ao leitor-jogador por meio do gênero épico, isto é,

concernente à epopeia e aos heróis. Assim, a história do game se passa em um

mundo antigo, de uma Grécia anterior ao tempo bíblico, em que deuses, deusas,

homens e monstros, os mais estranhos, segundo o estatuto ficcional do jogo, viviam

e interagiam. O game pelo gênero que adota, não de outro modo, mostra-se

grandioso, com cenas no mar, na terra, seja em grandes altitudes, seja embrenhado

no interior do próprio inferno grego. O cenário de God of war chega a reproduzir

palácios, templos, casebres, prédios, pontes, incluindo os esgotos de uma Grécia

arcaica.

28

1.3 O ENREDO

Para Novak (2010, p. 134), o enredo9 “refere-se mais a como a história se desenrola

do que ao que ela significa”.

Cada estrutura contém elementos de enredo que orientam o desenrolar da história [...] O enredo de um game pode fazer parte da sua estrutura narrativa, mas também pode ser determinado pela forma como o game é jogado [...] o modo de jogar, que envolve a forma como um jogador pode reagir aos desafios proposto pelo game. Isso não lhe parece semelhante ao herói clássico, que deve tomar decisões relacionadas aos testes e obstáculos que encontra durante a jornada? Nesse contexto, o enredo e o modo de jogar são interligados. A chave para tornar esses desafios e obstáculos interessantes para o jogador é associá-los à história por meio de diferentes efeitos narrativos que otimizam a tensão dramática (NOVAK, 2010, p. 134-135).

Em God of war, o enredo e o modo de jogar estão interligados, sendo percebidos:

seja nos desafios introduzidos pelo game e que forçam o leitor-jogador a tomar

decisões relacionadas aos testes que vai encontrando, implicando assim no modo

de jogar, seja na própria jornada do herói cujos elementos do enredo (recusa do

herói, aceite ao chamado, aparição do mentor) caracterizam uma narrativa que vai

se estruturando durante e conforme a jornada do herói proposto por Campbell.

Discutiremos no capítulo terceiro deste estudo como essa jornada do herói é

relevante para a construção de sentido em God of war, em razão dos seus

elementos de enredo.

A chave para tornar interessantes os desafios e obstáculos que o enredo propicia ao

leitor-jogador, segundo Novak (2010, p. 135) é “associá-los à história por meio de

diferentes efeitos narrativos que otimizam a tensão dramática”.

São exemplos de efeitos narrativos: a tensão dramática, a mudança de foco, o

prenúncio de eventos, a suspensão da descrença, o realismo. Todos eles podem ser

usados em uma narrativa como forma de criar um conteúdo convincente, segundo

entendimento de Novak (2010, p. 135-136).

9 Para um leitor-jogador, o que ele faz no jogo, o modo de jogar que se evidencia em todas as interações (combates, escaladas, mergulhos, etc.) significa mais do que a própria história em si. O que não ocorre com o leitor de um livro, por exemplo, em que a história e o que ela significa tem o seu lugar de destaque. Portanto, se compararmos um game em relação a um livro, a avaliação desta ou daquela obra tem o seu início a partir do exame da mídia em que a narrativa se inscreve.

29

A tensão dramática diz respeito ao equilíbrio que a narrativa impõe ao conflito que o

leitor-jogador experiencia ao sentir que “parece estar à beira do desastre, mas

consegue escapar repetidamente dessa situação por um fio”. Em God of war, a

tensão dramática pode ser sentida pelo leitor-jogador, seja pela grandiosidade dos

cenários, sobretudo dos monstros, verdadeiros gigantes, os quais o herói tem de

derrotar, seja pelos testes, muitos deles necessitam ser cumpridos dentro de um

tempo determinado.

A mudança de foco é colocada em um enredo como uma maneira de atrair o leitor-

jogador de volta à narrativa principal. Para Novak (2010, p. 135),

Essa técnica narrativa eficaz é implementada desviando o foco do jogador e atraindo simultaneamente o seu interesse, por exemplo, ao expandir a abrangência do game com o fornecimento de novas missões secundárias ou ao introduzir novos personagens ou objetos que conduzem o jogador rumo a áreas inexploradas.

O leitor-jogador em God of war, embora possa escolher cumprir um ou outro teste

primeiro, logo percebe que suas escolhas são visivelmente mínimas a esse respeito.

No entanto, essa é uma relação complexa que expõe o leitor-jogador a um efeito de

liberdade aparente. Há uma fase em especial no game que tal condição pode ser

constatada, na forma de dois caminhos que se apresentam ao herói. Caso o leitor-

jogador opte pelo caminho da esquerda, logo perceberá, após vencer alguns

minotauros, que não é possível se pendurar numa corda e atravessar um abismo

que se projeta adiante e o impede de continuar a jornada. Pois, do outro lado há um

grupo de arqueiros que facilmente causaria a sua morte. Assim, o leitor-jogador é

forçado a retornar, a fim de pegar o caminho da direita, vencer os arqueiros (missão

secundária) e só então retornar ao percurso principal que o fará alcançar o próximo

nível. A narrativa principal não permite outro acesso a uma próxima fase do game

senão pelo único caminho idealizado no roteiro. No entanto, cabe leitor-jogador

encontrar qual é esse caminho único, quase sempre atrelado a um teste, para então

dar a fase como concluída. Essa forma de roteirização expande o efeito de liberdade

aparente enquanto se joga, mencionada por Novak (2010, p. 135), ao produzir a

ilusão de que a escolha do caminho está nas mãos do leitor-jogador.

O prenúncio de eventos, como estrutura inserida em um roteiro, trata-se de um

alerta ao leitor-jogador sobre uma ocorrência importante que acontecerá no futuro.

30

Geralmente, comenta Novak (2010, p. 135), “nem o personagem nem o jogador

sabem disso quando essas imagens poderosas aparecem”. Em God of war, há uma

imagem em particular pintada no chão de uma antessala que dá acesso à Caixa de

Pandora, que retrata Zeus, o deus da luz, lutando com um mortal. A referida imagem

funciona para o leitor-jogador como “informação”, um vislumbre do futuro, uma vez

que a cena encontrada se materializa no futuro, na medida em que se torna o plano

de fundo dos games God of war II e III. Nessas sequências, Kratos, o mortal se volta

contra Zeus. No entanto, como apontou Novak, tanto o personagem quanto o leitor-

jogador veem a imagem sem, contudo, entender o quão “poderosa” ela é. Não

obstante, a imagem, como já dito, um prenúncio de eventos futuros, pode ser

percebida de outras duas formas: como um easter egg10, termo comum no mundo

dos games, porque se pode mesmo afirmar que sendo uma projeção de um futuro

de difícil leitura, por essa especificidade, ganha contornos de “segredo escondido”

na tessitura da narrativa; como lexia, porque o leitor-jogador ao passar pela imagem

tem a possibilidade de interagir com a pintura. Caso ele aceite a interação por meio

de um comando, o acesso tanto a um close da imagem quanto a um texto

explicativo (bloco de informações) é liberado para o leitor-jogador. Na mensagem

que segue pode-se ler (tradução nossa): “É uma imagem do homem lutando contra

Zeus. É uma imagem do futuro”.

Imagem 2 – Uma imagem do futuro

Fonte – God of war, Santa Mônica, 2005.

10 O termo easter egg significa “ovo de páscoa”, em inglês. Mas também é o nome dado a segredos escondidos em programas, sites ou jogos eletrônicos. Disponível em: <http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2013/09/o-que-sao-easter-eggs-e-quais-sao-os-mais-famosos-do-google.html>. Acesso em: 06 abr. 2016.

31

Ainda, acerca do acesso à imagem e texto em um game por meio de uma lexia,

podemos aferir que

O nosso mundo cotidiano começa a se povoar dessas estranhas criatura, quimeras modernas: ícones de menus de computadores regulando a composição de textos virtuais (imagens que não são feitas para serem vistas, mas para encadearem-se na ação), mouse [joystick11 no caso dos games] cujo deslocamento físico manipula objetos imateriais (texto, imagem etc.) (WEISSBERG, 1996, p. 118).

A suspensão da descrença quando utilizada em um roteiro tem por objetivo fazer,

nas palavras de Novak (2010, p. 136) “o jogador esquecer a vida real e aceitar a

realidade artificial”.

Isso está relacionado à imersão, mas refere-se mais especificamente à aceitação, pelo jogador, de regras e experiências que podem não fazer sentido no mundo real. Qualquer filme ou livro ambientado no futuro – ou qualquer história que envolva monstros ou alienígenas – precisa levar o leitor ou espectador a acreditar que o que está acontecendo na história é importante... e “real”. E se as pessoas em um game pudessem voar com a ajuda de dispositivos de transporte aéreo? E se o mundo do game incluísse uma regra indicando que todos os personagens com aparência humana são maus e todos os demônios assustadores são bons? Se for envolvido pela história que permeia o game, o jogador ignorará o mundo real enquanto estiver jogando e habitará o mundo artificial durante algum tempo (NOVAK, 2010, p. 136).

O game God of war induz à suspensão da descrença, ao situar o leitor-jogador em

um tempo e espaço cujos sujeitos fazem sentido serem da forma como são

apresentados pela narrativa. Como foi exposto, a história é baseada na Mitologia

Grega e esta informação por si só instaura no game as categorias de sujeito, espaço

e tempo em que a narrativa transcorre. Faz todo o sentido, Kratos, o protagonista,

um herói grego, conviver com os deuses do Olimpo. E, por conviver, entenda-se na

sua forma literal, ou seja, em alguns momentos estar mesmo na presença deles,

falando com eles. O leitor-jogador do God of war ignora o mundo real passando a

“habitar”, enquanto conectado, o mundo projetado pelo game. Seja navegando no

mar Egeu, seja correndo pelas ruas de uma cidade como Atenas, devastada pela

guerra, ora enfrentando monstros colossais, ora escapando de armadilhas mortais.

Assim, pelo tempo em que joga, o leitor-jogador suspende a descrença e passa a

11 Periférico ou dispositivo de videogame utilizado para controlar as ações e interações entre personagens e objetos em um game.

32

aceitar aquela realidade artificial, em que se torna crível até mesmo um mortal matar

um deus.

O realismo, conforme Novak (2010, p. 136), “ao contrário do efeito de suspensão da

descrença, pode ser usado nos games para imitar o mundo real com o máximo de

fidelidade.” O equivalente no romance é o estatuto ficcional, que faz um contrato

com o leitor acerca da verdade ficcional.

A aplicação de regras do mundo real a esses games frequentemente é o elemento mais significativo para os jogadores. Nesses casos, os jogadores querem realismo e autenticidade. Essas histórias podem incluir o realismo visual de um ambiente real do mundo contemporâneo [...] A harmonia está relacionada ao realismo. Em um game harmonioso, nada deve parecer fora de lugar ou incongruente. Por exemplo, os personagens de uma história ambientada na Idade Média não devem usar relógios de pulso. Esses tipos de inconsistências temporais são conhecidos como anacronismos (NOVAK, 2010, p. 136).

God of war não utiliza em sua narrativa as regras do mundo real, por tratar-se de um

game de fantasia, cuja substância é a mitologia grega. Porém, os seus personagens,

o tempo em que a história acontece e o espaço em que se desenrola não dá

margens a incongruências. Cada aspecto foi cuidado na criação. Isto é, o leitor-

jogador ao jogar não encontra o que Novak chama de anacronismos enquanto faz a

sua jornada pelos ambientes do game. Essa harmonia entre as categorias de

sujeito, tempo e espaço, certamente fazem de God of war um exemplo de como se

construir uma narrativa condizente a um enredo igualmente épico. Não obstante,

ainda que vários elementos narrativos da literatura e cinema possam ser utilizados

na constituição de um game, há aqueles que são específicos dessa nova forma de

contar histórias.

1.4 ELEMENTOS NARRATIVOS

Alguns elementos narrativos são específicos dos games, como considera Novak

(2010, p. 139). Segundo ela, entre esses elementos específicos estão a

interatividade, a não linearidade, o controle pelo jogador, a colaboração e a imersão.

Faremos doravante uma análise dos elementos apontados por Novak, com o intuito

de verificá-los em God of war.

33

Segundo Novak (2010, p. 139), “os games têm um nível de interatividade superior ao

de outras mídias”. O que é compreensível porque o game não oferece apenas uma

história, como ocorre em um filme ou mesmo com um livro. A esse respeito Novak

afirma

Por sua natureza, as histórias não são interativas. Elas surgem na mente do narrador e devem ser recebidas passivamente pela audiência (que não dispõe de qualquer maneira de manipulá-las ativamente). Nos games, jogadores não estão limitados a desempenhar o papel da audiência tradicional. Eles também podem colaborar na narrativa e, às vezes, até podem ser os únicos

narradores (NOVAK, 2010, p. 139).

Em God of war, a interatividade com o ambiente é percebida já nos primeiros

minutos. Tão logo o leitor-jogador tenha vencido os primeiros inimigos que surgem

em um convés de navio, ele precisa se aproximar da primeira lexia, que se

apresenta sob a forma de um alçapão. Este elemento funciona no jogo como um

acesso a um novo “bloco de informações”, pois uma vez aberto leva a uma nova

área do game, o interior do barco, por meio da interação que se estabelece (que

consiste em aproximar Kratos de um dado ponto próximo ao alçapão e, uma vez lá,

o game mostra um botão “X” que deve ser pressionado para que a ação seja

concluída por vontade do usuário). O leitor-jogador ao interagir com essa primeira

lexia, que se apresenta na forma de um alçapão, assume diante do game uma

atitude de ação, posto que há um fazer que o obriga a agir, como condição sine qua

non para a continuidade da narrativa.

A interação entre o leitor-jogador e a narrativa de God of war, na maioria dos casos,

se dá por meio das lexias, que exibem inúmeras formas, podem ser baús que devem

ser abertos como os alçapões, livros que devem ser lidos, paredes que devem ser

investigadas, dispositivos, como alavancas, que devem ser acionados, etc. Todas

essas lexias propiciam a interatividade entre o leitor-jogador e o game, bem como

um fazer, como se mencionou, por parte deste em relação à narrativa, isto é, a

história que ele ajuda a construir, na medida em que a lê enquanto a experiencia.

As histórias, por sua vez, quando lineares “seguem uma linha reta em termos tanto

físicos quanto temporais, começando pelos eventos mais distantes e terminando nos

mais recentes”, como assevera Novak (2010, p. 140).

34

Em God of war, o leitor-jogador, sob o efeito de liberdade aparente, como já se

considerou neste estudo, ainda assim segue um percurso idealizado pelos criadores

que garante a progressão no jogo de uma fase a outra e é, em toda a sua extensão,

pré-determinado. O que equivale a dizer que o leitor-jogador segue um mapa do

qual não se pode desviar, há sempre uma lexia específica com o qual ele deve

interagir, seja uma porta, seja um item a conseguir ou até mesmo um vilão que deve

ser derrotado. Mas, sobretudo, há sim um controle que é de competência única do

leitor-jogador: escolher se uma dada ação irá acontecer mais cedo ou mais tarde

enquanto ele joga (ideia de enredo personalizado). Está aí também a não

linearidade, que é característica dos games, em que o leitor-jogador a cada vez que

recomeça um game, cada fase, ele pode sim optar por fazer escolhas diferentes

dentre aquelas propostas pelo desenvolvedor. Esta possibilidade de eleição de

percurso cria a ilusão de liberdade aparente. O leitor-jogador pode escolher, em uma

dada fase, primeiro pegar um item que abrirá uma passagem à frente e só depois

enfrentar os inimigos. Caso ele falhe e reinicie o game, ele pode optar por se livrar

dos inimigos e só então pegar o item, formando assim uma nova estratégia, em que

cada experiência semelha ao do viajante que pode aventurar por distintos roteiros.

Acerca da experiência e possíveis caminhos que um game oferece, Novak (2010, p.

141) comenta:

Os jogadores também podem escolher os caminhos a serem trilhados na história. Embora haja um número finito de ramificações possíveis nos caminhos de um game, o mero fato de o jogador poder fazer essa escolha significa que ele está envolvido na criação de um enredo personalizado [...] A narrativa no sentido tradicional pode ser encarada como um pano de fundo ou estrutura básica associada ao game, enquanto todos os detalhes são fornecidos pelos jogadores. Essa ideia torna-se mais perceptível quando o game é jogado novamente. Os games podem ser jogados mais de uma vez, ou seja, podem ser jogados até o fim e repetidos (em geral muitas vezes), mantendo suas características de experiência agradável (e única) a cada repetição.

A respeito do controle do jogador como elemento narrativo específico dos games,

Novak considera que “os jogadores têm a capacidade de manipular o game de

alguma maneira, ao contrário dos espectadores de um filme ou programa de

televisão”. Ela afirma também que

35

A história do game pode mudar de acordo com quem está jogando. Nesse sentido, os jogadores podem ser narradores nos games, o que não é possível nos livros e filmes. Uma forma comum de controle pelo jogador é a personalização dos personagens [...] na qual os jogadores criam seus próprios personagens com características únicas. [...] O gênero de aventura tem baixo valor de repetição, em parte porque é altamente dependente de procedimentos tradicionais de narrativa e solução de enigmas (para os quais só pode haver uma solução) (NOVAK, 2010, p. 142).

God of war é um jogo cujo personagem não é criado pelo leitor-jogador. Isto é, a

imagem digital que o leitor-jogador assume no jogo é pré-determinada pelo game.

No entanto, após o leitor-jogador concluir o game em um nível mais fácil, ele tem a

opção de iniciar um novo jogo utilizando desta vez uma armadura que incrementa as

suas habilidades. A armadura que Kratos/leitor-jogador recebe, uma vez concluído o

game, torna-o menos vulnerável, enquanto os seus ataques se tornam mais

vigorosos. Em God of war, outro elemento que é controlado pelo leitor-jogador diz

respeito à maneira como o jogador confere resistência ao personagem, isto é, à

maneira como revigora as suas magias, atribuindo-lhe lâminas poderosas, por

exemplo, elementos que quanto mais fortes forem, tanto mais serão os danos

infligidos aos inimigos. Neste quesito, God of war possui elementos de RPGs (role-

playing games), em que o combate é também uma maneira de o herói progredir, na

medida em que adquire força e experiência ao vencer os inimigos.

A colaboração como elemento narrativo específico dos games, como considera

Novak (2010, p. 143), “é semelhante a que ocorre no teatro interativo, com os

jogadores assumindo o papel de atores que improvisam entre si e com a plateia”. A

esse respeito ela considera que

Uma narrativa colaborativa poderia ser iniciada pela equipe de desenvolvimento do game e as ramificações da história adicionadas pelos próprios jogadores. Com o aumento da participação dos jogadores na função de narradores, a linha que separa desenvolvedores e jogadores tende a tornar-se difusa. Esse fenômeno assemelha-se ao efeito de prossumidor (um termo cunhado por Alvin Toffler), em que os consumidores (jogadores) e os produtores (desenvolvedores) tornam-se uma única pessoa. Um modelo simples de ficção colaborativa é uma árvore narrativa (NOVAK, 2010, p. 144).

Ainda que o mundo digital seja um ótimo lugar para encontrar incontáveis exemplos

de narrativas colaborativas, God of war não se trata de um game colaborativo, pois é

36

jogado por uma única pessoa que encontra no herói Kratos a sua personagem para

interagir com a narrativa, ajudando a “escrevê-la” nesse que é um ambiente

simulado, em que todos os objetos simbolizam uma realidade inspirada tanto num

mundo arcaico, o da Grécia Antiga, quanto no literário, em que heróis, deuses e

monstros conviviam. Todo esse ambiente ajuda na imersão do leitor-jogador.

A narrativa de um game, de acordo com (Novak, 2010, p. 144) desempenha um

papel importante naquilo que é conhecido como imersão: “situação em que a

história, os personagens e o modo de jogar são tão poderosos e absorventes que os

jogadores envolvem-se profundamente no mundo do game”. Em God of war, o

leitor-jogador se vê imerso em uma narrativa baseada na mitologia grega (que

modela as situações) em que os personagens da literatura, sejam eles deuses ou

monstros, ganham cada qual o seu modelo digital, com o qual o herói Kratos terá

que interagir. Contudo, o modo de jogar, como elemento narrativo específico dos

games, em God of war, foi trabalhado pela equipe de criação de maneira eficiente.

No que se refere aos personagens e ao diálogo que o game estabelece com a

mitologia, trataremos mais adiante.

O modo de jogar, conforme Novak (2010, p. 150), “é o componente essencial da

narrativa em um game; trata-se de um elemento narrativo não tradicional que

permite ao jogador assumir o papel do narrador”. A assunção dessa instância

narrativa ocorre porque no game, assim como se encontra em God of war, é o leitor-

jogador que “como um explorador controla os efeitos e gestos do modelo que o

representa na simulação”, conforme Lévy (2010, p. 75). Essa experiência de jogar o

game é o que, segundo Novak (2010, p 185), realmente permite que a história se

desenrole. É a jogabilidade12 do game que cria a experiência. Dito de outro modo:

Pense em como os desafios em um game geralmente estão interconectados, quase como se representassem diferentes eventos da narrativa de uma história. Para cada desafio (ou evento da narrativa), considere as muitas estratégias que podem ser utilizadas por um jogador (ou personagem da história) para superá-lo. Pode-se argumentar que a jogabilidade é o que torna um game verdadeiramente interessante (NOVAK, 2010, p. 186).

12 A jogabilidade (game play) é a interação formalizada que ocorre quando os jogadores seguem as regras de um jogo e experimentam seu sistema através do jogo (SALEN; ZIMMERMAN, 2012, p. 25).

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A jogabilidade de God of war, como game para apenas um leitor-jogador, a todo o

momento força-o a escolher uma das estratégias disponíveis, criadas pelo

desenvolvedor, como meio para vencer os inúmeros desafios épicos que lhe são

apresentados. O leitor-jogador, ao exercer esse controle sobre o protagonista do

game, tem à sua disposição: duas espadas presas em cada um dos seus

antebraços, que lhe permitem atingir mais de um inimigo, o que amplia a sua área

de dano; uma força incrível, digna de um semideus, o qual move pedras, estátuas,

seja para a desobstrução de uma passagem, seja para utilizar como escada; armas

mágicas, dadas ao protagonista pela graça dos deuses (a cólera de Poseidon, na

forma de descargas elétricas; o olhar da Medusa, que a tudo petrifica; a fúria de

Zeus, que fulmina um inimigo distante por meio do raio; o exército de Hades, almas

penadas que lutam ao lado do herói Kratos); fôlego eterno debaixo d’água, uma vez

que o protagonista em dado momento adquire o tridente de Poseidon. O leitor-

jogador também, ao controlar Kratos, pode rolar em todas as direções, saltar,

agarrar inimigos e matá-los com as próprias mãos, escalar paredes, subir ou se

balançar em cordas, nadar em grandes profundidades; todas essas ações

caracterizam a jogabilidade do game. Essa jogabilidade, todo esse fazer que se

traduz em numerosos possíveis feitos dentro do universo do jogo é o que tanto o

torna interessante, quanto ajuda o leitor-jogador a “escrever” a história.

Outro elemento de narrativa específico dos games que também ajuda na imersão,

ou seja, faz com que o leitor-jogador mergulhe no mundo do game, são os assim

chamados efeitos cinemáticos.

Efeitos cinemáticos são sequências exibidas como se fossem filmes, geralmente no começo ou no fim de um game. Cenas de corte (cut-scenes) são minifilmes exibidos dentro do game. O objetivo de uma cena de corte é desenvolver os personagens, introduzir novos ambientes, avançar a trama ou definir metas para uma nova seção do game (NOVAK, 2010, p. 145-146).

No início de God of war, o primeiro contato do leitor-jogador com a narrativa se dá

por meio de uma cutscene13. Esse minifilme inicial mostra a agonia do protagonista

13 Cutscene é uma técnica narrativa comum usada em jogos digitais. Elas ajudam a definir o mundo fictício de um jogo, bem como assumem uma série de funções do jogo, conforme Salen e Zimmerman (2012, p. 140, v.III). Para o Dicionário Oxford, cutscene “(Em um jogo de vídeo) uma cena que desenvolve o enredo e é muitas vezes mostrado na conclusão de um determinado nível, ou quando o personagem do jogador morre. Entre cada poucas missões há um cutscene longo que preenche as

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que tem a sua frente um abismo. O cenário é o de uma montanha. O personagem se

mostra consternado, porque tanto sua expressão quanto suas palavras manifestam

decepção. E ele diz, antes de se atirar rumo à morte: “Os deuses do Olimpo me

abandonaram. Não há mais esperança”. Essa cutscene em particular, na verdade, é

o fim da narrativa, mas foi colocada no início como forma de suscitar no leitor-

jogador o interesse pela história. Todas as demais cutscenes atuam como

flashbacks, momentos em que há uma suspensão da narrativa principal para que

seja inserida uma memória de Kratos sobre o passado. Tal memória, uma cutscene,

relata acontecimentos passados da vida do protagonista. Esta é uma técnica

tradicional de narrativa, que tem por objetivo criar um efeito dramático na história, o

que contribui para a imersão do leitor-jogador. Não obstante, como já dito, também

desenvolve o protagonista como personagem.

Na indústria cinematográfica, presume-se [...] que aumentam a imersão dos jogadores no game, exatamente como os espectadores tendem a se envolver emocionalmente com um filme. Entretanto, isso não é necessariamente verdadeiro. Quando os jogadores estão envolvidos com o game – tomando decisões, solucionando problemas, comunicando-se com outros personagens ou executando alguma ação relacionada ao game –, a introdução de uma cena de corte no momento errado (por exemplo, bem no meio de um combate em tempo real) pode ser desastrosa para a satisfação proporcionada pelo game ao jogador. Em vez de estimular o envolvimento emocional completo que a mesma cena geraria em um filme, ela pode, ironicamente, produzir o efeito contrário (NOVAK, 2010, p. 146).

Em God of war, as cutscenes não atrapalham o envolvimento do leitor-jogador com

o game, em razão de ser um mundo digital ambientado na Grécia antiga, cujos

cenários, ou fases, são imensos, repletos de inimigos e quebra-cabeças. As

cutscenes sempre surgem ou para desenvolver os personagens ou para introduzi-

los em um novo ambiente do game. Assim, a jogabilidade, o divertimento do leitor-

jogador não é comprometido pelo excesso de minifilmes, como recurso narrativo. No

entanto, há outro elemento constitutivo de um game que está ligado às cutscenes,

trata-se do ponto de vista do leitor-jogador:

Os games geralmente têm pontos de vista (point-of-view ou POV) de jogador específicos. Alguns POVs são exibidos por meio do olhar do

lacunas na história” (OXFORD, 2016, tradução nossa). Disponível em: <https://en.oxforddictionaries.com/definition/cutscene>. Disponível em: 27 nov. 2016.

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avatar do jogador, na perspectiva em primeira pessoa, e alguns, na perspectiva em terceira que, permitem que o jogador observe o avatar (NOVAK, 2010, p. 166).

Em God of war o ponto de vista é em terceira pessoa, o leitor-jogador tem a

possibilidade de ver o herói Kratos e de estabelecer à medida que a narrativa se

desenrola uma conexão com o protagonista. Sendo um game de ação-aventura há

inúmeras cutscenes que permeiam a narrativa e que senão explicam a história do

personagem, transportam o leitor-jogador para o universo dos mitos, em que a visão

do titã Khronos carregando uma montanha inteira nas costas é totalmente crível, o

que imprime uma visão épica em uma paisagem cinematográfica que existe apenas

nesse mundo digital e simulado. Trataremos a seguir do desenvolvimento dos

personagens como forma de criar identidades.

1.4.1 Personagens do game

Segundo Novak (2010, p. 156), “há cinco tipos de personagem comuns usados em

games: animais, fictícios, históricos, licenciados e míticos”. Nesta parte do estudo

iremos nos deter e comentar tão somente o tipo mítico de personagens, em razão do

foco de nossa pesquisa. A respeito do personagem mítico, Novak afirma que

Os personagens de categoria mítica possuem equivalentes na mitologia de todo o mundo. Muitos RPGs14, como Neverwinter Nights e EverQuest, usam personagens míticos convencionais como ogros e trolls. Age of Mithology, um game de estratégia voltado especificamente para a mitologia, contém ciclopes, a Medusa e outros personagens das mitologias grega, egípcia, nórdica (NOVAK, 2010, p. 157).

Os personagens de God of war são, na sua maioria, do tipo mítico, mais

precisamente inscritas na mitologia grega. O conceito de mito, contudo, no sentido

lato do termo e suas implicações em relação à narrativa, ganhará exame minucioso

no segundo capítulo deste estudo. Sendo assim, doravante prosseguimos com a

investigação dos personagens que compõem a narrativa de God of war.

Carl Gustav Jung (2000), no ensaio Os arquétipos e o inconsciente coletivo,

desenvolve a ideia de que no inconsciente coletivo se encontram arquétipos, ou

14 Tipo de jogo em que os leitores-jogadores assumem personagens e criam narrativas de maneira colaborativa.

40

seja, “representações primordiais”, arquetípicas, transmitidas pela cultura (JUNG,

2000, p. 53). A partir deste conceito básico, o psiquiatra suíço defende que esses

fenômenos residem na psique do ser humano e permitem que o indivíduo identifique

modelos de seres, ou tipos universais. Refletindo sobre a importância desse

conceito desenvolvido por Jung, Novak (2010, p. 157) comenta que os seres

arquetípicos, isto é, modelares, se inscrevem nos games para reforçar a conexão do

público com a história”. Conforme o pensamento do psiquiatra suíço, são num total

de seis os arquétipos universais, a saber: herói, sombra, mentor, aliados, trapaceiro

e mensageiro (NOVAK, 2010, p. 157). A esse respeito Novak (2010, p. 160)

considera que “além dos arquétipos junguianos, existem outros tipos clássicos de

personagens que estão associados a qualquer história, como o protagonista, o

antagonista e os coadjuvantes”.

Nesta linha de pensamento, a análise dos personagens de God of war delineia como

objetivo verificar em que arquétipo cada qual se enquadra. São num total de onze

raças (sátiros, ciclopes, minotauros, cérberus, górgonas, sereias, harpias,

fantasmas, arqueiros mortos-vivos e legionários mortos-vivos) e quatro chefes (a

Hidra, a Medusa, um Guardião da Caixa de Pandora e o deus da guerra Ares).

Seguindo a ordem proposta por Jung, o primeiro que chamamos à análise é a figura

do herói. No caso do game em estudo, esse herói é Kratos, que como protagonista

de God of war, é o personagem que será controlado pelo leitor-jogador no universo

do game. À medida que o game se desenrola, em meio a conflitos de ordem física, o

herói se mostra também como aquele que será responsável pela ação, pela

continuidade da história, cena a cena. Será ele também quem correrá todos os

riscos, que enfrentará todos os inimigos, sejam aqueles que carrega em seu interior

e o atormentam, sejam aqueles que se apresentam fisicamente na forma dos

monstros eternizados pelos mitos gregos, em razão de sua condição como

personagem de jogador. O personagem de jogador “são personagens ou outras

entidades no mundo do game que são controlados pelos jogadores”, como comenta

Novak (2010, p. 154).

A ambição de Kratos pelo poder, em se tornar um general invencível, capaz de tudo

pela glória em batalha, levou-o à ruína como homem e tornou-o escravo do ódio e

sedento por vingança. Ele é aquele, no universo do game, cuja força a nada se

iguala e cuja persistência é tenaz. Logo, nada e ninguém é capaz de atravessar o

41

seu caminho e sobreviver. Ele é o herói, aquele que é sempre, como comenta Novak

(2010, p. 157) acerca dessa entidade da narrativa: “apresentado com um problema

no começo da história e embarca em uma jornada física e emocional para,

finalmente, solucionar esse problema. O herói é responsável pela maior parte da

ação em uma história”. Mas, não é necessariamente “bom”.

O protagonista é o personagem principal. Um game para um único jogador é centrado nesse personagem, e a história do game é contada do seu ponto de vista, mesmo que ele não seja jogado em primeira pessoa [...] Quem conduz a história é sempre o protagonista, – agindo em vez de reagir, fazendo as coisas acontecerem em vez de esperar que aconteçam (NOVAK, 2010, p. 160).

O protagonista é extraordinariamente forte tanto física quanto moralmente, mas nem sempre é “bom”. De fato é comum que o protagonista tenha um defeito fatal (ou trágico, algo que é universal e indica vulnerabilidade. Isso o torna acessível e humano, permitindo que o público se identifique e simpatize com um personagem que, de outra maneira, seria incomodamente perfeito. O defeito pode ser físico (por exemplo, paralisia, cicatriz, gagueira) ou de personalidade (por exemplo, ambição, teimosia, inveja) (NOVAK, 2010, p. 161).

Kratos é por muitos leitores-jogadores, assim como pela indústria dos games, tido

como o anti-herói, valoração que ganhou por não ser necessariamente bom. O

equívoco de o considerarem anti-herói, e não do que ele realmente é, um agente

que protagoniza a ação, deve-se ao fato de que em várias passagens a narrativa

revela que, tanto no presente – no decurso dos acontecimentos do game – quanto

no passado, Kratos nunca se mostrou preocupado com o próximo, com o outro, mas

sim apenas com os seus objetivos. Voltaremos a essas questões e as ampliaremos

no terceiro capítulo, em que conceituaremos melhor o termo herói.

O segundo arquétipo de personagem é o sombra:

O sombra é um personagem extremamente importante porque representa o oposto do herói, sendo geralmente o maior vilão da história. O sombra pode ser o adversário responsável pelo problema do herói. Às vezes, ele permanece oculto até o clímax da história, o que pode intensificar a tensão dramática. Outras, ele representa o lado negro do herói. Isso é explorado simbolicamente no clássico O médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Darth Vader é outro exemplo de um sombra (NOVAK, 2010, p. 158).

42

O antagonista de uma história é o oposto do protagonista. O arquétipo junguiano que descreve o antagonista é conhecido como a sombra (ou o oposto). Isso não significa que o antagonista é “mau”. O protagonista e o antagonista podem simplesmente ter opiniões opostas: políticas (liberal versus conservador), éticas (privacidade versus segurança) ou existenciais (negócios versus família) [...] as histórias extraem tensão dramática do conflito, e essa oposição entre o protagonista e o antagonista é uma forma de conflito (NOVAK, 2010, p. 161).

O oposto do herói e mortal Kratos em God of war é o olimpiano e deus Ares, senhor

da guerra. Ares é, portanto, o antagonista, aquele cujas maldades devem ter um fim

pelas mãos (ações) do protagonista. Não obstante, as opiniões opostas entre o deus

vilão imortal e o herói mortal são reveladas pela narrativa por forças existenciais

(negócios versus família). Pois se de um lado Ares é o deus cujo negócio é a guerra,

já que ele a personifica, por outro ele nutre grande rancor por sua irmã, Athena, por

acreditar que Zeus a cobre de favores, motivo pelo qual ele decide lançar suas

forças na narrativa do game contra a cidade da deusa. Está aí estabelecido o

conflito, a oposição entre o protagonista e o antagonista, na medida em que a deusa

Athena chama Kratos para salvar a sua cidade e assim frustrar os sonhos de

conquista do seu incauto irmão. Ares, como o maior vilão da história do game, o

oposto do herói, também é o responsável pelo problema de Kratos, uma vez que na

história do game é o deus que arma uma cilada a Kratos e o faz matar a própria

família. A culpa que Kratos sente pelo terrível crime que cometeu é o que motiva

toda a jornada emocional e física que ele empreende em busca de redenção. Ao

término do game, Kratos enfrentará Ares em uma batalha de morte, tomando o seu

lugar como o novo deus da guerra no monte Olimpo.

O deus Ares do game evoca em sua representação as características do

personagem consagrado pela mitologia, segundo o Guia Oficial de God of war:

Ares, o deus grego da guerra, é alto e bonito, mas vão e tão cruel quanto seu irmão Hefesto foi gentil. Sua irmã Eris, a deusa da luta, é sua constante companheira, mas também é atendido por seus filhos Deimos e Phobos, bem como por Enyo, uma antiga deusa da guerra. Quando Ares ouvia o choque de armas, ele sorria com alegria, vestia o capacete reluzente e saltava em seu carro de guerra. Brandindo sua espada, ele corria para o meio da batalha sem se importar com quem ganhava ou perdia enquanto sangue fosse derramado (GOD OF WAR, 2005, p. 154, tradução nossa).

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Junito de Souza Brandão no segundo volume de sua obra Mitologia Grega comenta,

acerca do deus Ares:

O flagelo dos homens, o bebedor de sangue, como lhe chama Sófocles, nem mesmo entre seus pares encontra simpatia [...] Ares não está preocupado com a justiça da causa que defende. Seu prazer, seja de que lado combata, é participar da violência e do sangue. De altura gigantesca, coberto com pesada armadura, com um capacete coruscante, armado de lança e escudo, combatia normalmente a pé, lançando gritos medonhos. Seus acólitos nos sangrentos campos de batalha eram: Éris, a Discórdia, insaciável na sua fúria; Quere, com a vestimenta cheia de sangue; os dois filhos, que tivera com Afrodite, cruéis e sanguinários, Deîmos, o Terror, e Phóbos, o Medo, e a poderosa Enio, a devastadora”. (BRANDÃO, 2013, p. 40-41, v. II).

Há similaridades nas descrições do deus Ares, realizadas tanto pelo Guia Oficial do

Game quanto pelos estudos de Brandão. Ambos referenciam Ares como um deus

alto, vestido em armadura e viciado em estar no campo de batalha, sempre seguido

por seus asseclas.

O deus da guerra é persona non grata tanto na história do game quanto na

mitologia. Em ambas as histórias, Ares é o “flagelo dos homens”, ele próprio ataca a

cidade de Atenas, liderando um exército de monstros os quais o herói terá de

enfrentar. Assim como na mitologia Ares tem ciúmes de sua irmã Athena, ela é

também a preferida de Zeus no game. Em analogia, poderíamos dizer que assim

como na mitologia Athena fere Ares afligindo-lhe com uma pedra, no game ela é a

responsável por lançar Kratos contra o deus.

O terceiro arquétipo de personagem é o mentor:

O mentor é um personagem que geralmente guia o herói rumo à ação [...] o personagem mentor fornece ao herói as informações de que ele necessita para partir para sua jornada. O personagem mentor é um conselheiro mais velho – alguém que pode já ter estado na mesma situação do herói em algum momento e que pode transmitir-lhe a sabedoria adquirida em sua experiência de uma jornada semelhante (NOVAK, 2010, p. 158).

O mentor do herói em God of war é uma mulher, a deusa Athena. É ela quem o

chama para a aventura e o guia em sua jornada. Também é a ela que o herói

recorre em seus momentos de dúvida por qual caminho seguir. Athena orienta-o a

quem deve procurar e mais tarde sobre o que deve conseguir para vencer Ares.

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A deusa Athena do game evoca em sua representação as características da

personagem consagrada pela mitologia, segundo o Guia Oficial de God of war:

Deusa grega da sabedoria, da guerra das artes, indústria, justiça e habilidade. Ela era a filha favorita de Zeus, tendo saído da cabeça de seu pai [...] Zeus teve grande dor de cabeça. Hefesto correu para ajudar o pai e abriu seu crânio, de onde nasceu Atena, completamente crescida, vestindo armadura [...] Atena e seu tio Poseidon gostavam muito de uma certa cidade na Grécia. Ambos a reivindicaram. Aquele que desse o melhor presente ficaria com a cidade. Poseidon presenteou o povo com uma fonte de água salgada, o que não foi muito útil O presente de Atena foi uma oliveira, que era melhor porque dava ao povo comida, óleo e madeira. Atena nomeou sua cidade de Atenas [...] O seu símbolo é a coruja. Atena possui um escudo (GOD OF WAR, 2005, p. 49, tradução nossa).

Junito de Souza Brandão no terceiro volume de sua obra Mitologia Grega comenta,

acerca da deusa Atena:

Deusa guerreira, na medida em que defende “suas Acrópoles”, deusa da fertilidade do solo, enquanto Grande Mãe, Atenas (Atená) é antes do mais a deusa da inteligência, da razão, do equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como tal, preside às artes, à literatura e à filosofia de modo particular, à música e a toda e qualquer atividade do espírito (BRANDÃO, 2013, p. 26-27, v. III).

Há similaridades nas descrições da deusa Atena, realizadas tanto pelo Guia Oficial

do Game quanto pelos estudos de Brandão. Ambos referenciam a deusa como

patrona da guerra, da sabedoria e das artes. Mas, enquanto o recorte selecionado

do estudioso é sucinto, o Guia aprofunda-se no mito reunindo em um mesmo texto

alguns momentos que a caracterizam, tais como seu nascimento pouco tradicional,

estendendo-se à contenda com o seu tio Poseidon a respeito da cidade, que mais

tarde recebeu o nome da deusa.

Na história do game, Athena, mesmo sendo uma deusa guerreira não pode se

levantar contra o seu irmão Ares e defender ela própria a sua cidade. Pois há um

impedimento, uma ordem dada a todos os olimpianos por Zeus. O senhor do Olimpo

proibiu sumariamente a luta física entre os deuses, sob pena de o agressor ser

fulminado por seus raios. Por essa razão, Athena recorre a Kratos e envia-o contra o

próprio irmão, também sob as graças dos demais olimpianos, que reconhecem que

Ares está fora de controle e que visivelmente oferece perigo a todos, já que ele

pessoalmente se encarregou da destruição da grande cidade de Atenas.

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O quarto arquétipo de personagem é o mensageiro. Segundo Novak (2010, p. 160),

“o mensageiro propicia mudanças na história e fornece orientação ao herói”. Em

God of war temos na figura do Oráculo o personagem que junto à deusa da

sabedoria também orienta Kratos em sua jornada. É ela também quem direciona o

guerreiro a um novo objetivo, já que o primeiro era o de encontrá-la. Assim, ela é

também na história um agente de mudança. Athena é a mentora do protagonista e

guia-o até o templo do Oráculo, atuando de forma indireta para a derrocada de Ares;

ela o leva até a sua mensageira. Estando Kratos na presença do Oráculo, ela lhe dá

informações importantes sobre a arma capaz de ajudar um mortal a matar um deus,

a Caixa de Pandora.

A Caixa de Pandora do game evoca em sua representação as características do

item consagrado pela mitologia, segundo o Guia Oficial do Game:

Na mitologia grega, Pandora era a primeira mulher na terra. Zeus ordenou a Hefesto, o deus do artesanato, para cria-la e ele a fez, usando água e terra. Os deuses a dotaram de muitos talentos: Afrodite deu sua beleza; Apolo, sua música [...] Daí o nome dela: Pandora, “toda dotada” [...] Pandora tinha uma caixa que ela não deveria abrir sob nenhuma circunstância. Impelida por sua curiosidade, a abriu. Todos os males contidos escaparam e se espalharam. Ela apressou-se a fechar a tampa, mas todo o conteúdo da caixa escapou, exceto por uma coisa que estava no fundo: a esperança (GOD OF WAR, 2005, p. 141, tradução nossa).

Junito de Souza Brandão no terceiro volume de sua obra Mitologia Grega comenta,

acerca de Pandora:

Pandora provém, em grego, de pân, todo, e dóron, don, presente, e significa “a detentora de todos os dons”, um presente de todos os deuses. Do ponto de vista religioso, Pandora é uma divindade da terra e da fecundidade. [...] Pandora simbolizando todas as mulheres, é um mal tão belo, reverso de um bem. Flagelo terrível instalado no meio dos mortais, mas algo maravilhoso, revestido pelos deuses de atrativos e de graça. Raça maldita, mas imprescindível ao homem (BRANDÃO, 2015, p. 176-177, v. I).

A raça humana vivia tranquila, ao abrigo do mal, da fadiga e das doenças, mas quando Pandora, por curiosidade feminina, abriu a jarra de larga tampa, que trouxera do Olimpo, como presente de núpcias a Epimeteu, dela evolaram todas as calamidades e desgraças que até hoje atormentam os homens. Só a esperança permaneceu presa junto às bordas da jarra, porque Pandora recolocara rapidamente a tampa, por desígnio de Zeus, detentor da

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égide, que amontoa as nuvens. É assim, que, silenciosamente, porque Zeus lhes negou o dom da palavra, as calamidades, dia e noite, visitam os mortais. Foi, pois, com Pandora que se iniciou a degradação da humanidade (BRANDÃO, 2015, p. 177, v. I).

Há similaridades nas descrições de Pandora, realizadas tanto pelo Guia Oficial do

Game quanto pelos estudos de Brandão. Ambos referenciam a mulher que foi

agraciada com muitos dons dos deuses, mas que fracassou em manter fechada a

caixa conforme lhe ordenaram.

A Caixa de Pandora, tanto na história do game quanto na mitologia ela é o recipiente

onde estão guardadas todas as calamidades, um poder tal que pode corromper e

atormentar, porque essas desgraças resultam de ações que foram proibidas. Se na

mitologia esse poder nefasto (do lat. nefas = o que não é lícito) leva o mal, a fadiga e

a doença aos homens, na história do game, tais males, uma vez liberados pelo

herói, tornam-no um gigante, igualando-o em tamanho e força ao deus Ares, no

momento em que a batalha final em igualdade de condições entre o protagonista e o

seu antagonista se inicia. Esse encontro de gigantes só tem lugar na história de God

of war, porque Kratos como personagem criado para o game só pertence a esse

universo. Se a mitologia grega não registra em suas páginas tal encontro, ao menos

o deus Ares, filho de Zeus, coabita ambos os textos, desfilando em sua armadura e

personificando a guerra. Avançando as reflexões sobre a Caixa de Pandora, este

elemento não é só portador de infelicidade, mas também de esperança. Conforme

Brandão, “só a esperança permaneceu presa junto às bordas da jarra”, quando esta

foi destampada. A esse respeito, importa dizer, que em God of war, a narrativa do

primeiro game limita-se a esclarecer ao leitor-jogador sobre o grande poder que há

na Caixa de Pandora; que, de fato, agiganta o herói.

A história só irá receber adições sobre o conteúdo da caixa aberta por Kratos nos

games que dão continuidade à saga. Em God of war, partes 2 e 3, é que a história

seguirá o mito e abordará a “esperança” e o “medo”. No entanto, pode-se afirmar

que a esperança de se vingar de Ares é o que nutre Kratos a seguir a sua jornada.

Pandora não é só a introdutora dos males no mundo, mas também é a que dá força,

com a “esperança”, para que o homem possa enfrentar as adversidades. O “medo”,

por sua vez, é o que segue ao lado da “esperança”. Ele, em certa medida, relaciona-

se com a prudência que orienta o herói a tomar certas cautelas no enfrentamento de

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tão poderoso inimigo. É do equilíbrio dessas duas forças (esperança e medo) que

Kratos se erige enquanto herói.

O quinto arquétipo de personagem é o do guardião:

O guardião bloqueia o progresso do herói por todos os meios necessários até que ele tenha provado seu valor. Um personagem guardião clássico é a esfinge que guarda os portões de Tebas na tragédia grega Édipo Rei [...] Às vezes, o personagem guardião é um servo do sombra. O guardião pode ser um “bloqueio” existente na mente do herói – como indecisão, medo ou desconforto –, que o leva a hesitar em prosseguir na jornada. (NOVAK, 2010, p. 159)

Em God of war o personagem guardião, aquele que tenta impedir Kratos de chegar

ao seu objetivo, recai sobre a figura de um minotauro gigante. Esse monstro defende

a última “chave” que dá acesso ao templo de Zeus, local onde está guardada a

Caixa de Pandora. Para se ter acesso à “chave” para este nível, o herói tem que

derrotá-lo. O Minotauro guardião é também um chefe no game, não é

necessariamente um auxiliar de Ares, uma vez que o seu dever é guardar a Caixa

de Pandora, seguindo as ordens do próprio Zeus. Foi o pai dos deuses que mandou

construir o Templo de Pandora, para que a caixa fosse encerrada nele, em meio a

armadilhas tais que nenhum homem pudesse alcançá-la e utilizar o poder do seu

conteúdo.

O Minotauro no game surge para o herói trajando uma armadura semelhante a que

os homens em batalha utilizam, característica essa que o humaniza. O monstro do

game, meio homem meio touro é também similar ao da mitologia. Nesta, ele é fruto

do conúbio entre Pasífae e Minos, que sofre a vingança de Poseidon, por ter faltado

com a palavra com o deus do mar:

O grande mitolegema cretense do rei Minos está indissoluvelmente ligado ao palácio de Cnosso e a seu labirinto, bem como ao Minotauro. [...] Um dia, quando (Minos, governante de Creta) sacrificava a Poseidon, solicitou ao deus que fizesse sair um touro do mar, prometendo que lhe sacrificaria em seguida o animal. O deus atendeu-lhe o pedido, o que valeu ao rei o poder, sem mais contestação... Minos, no entanto, dada a beleza extraordinária da rês e desejando conservar-lhe a raça, enviou-a para junto de seu rebanho, não cumprindo o prometido a Poseidon. O deus, irritado, enfureceu o animal. [...] A ira divina, todavia, não parou aí, como se verá. Minos se casou com Pasífae, filha do deus Hélio, o Sol, da qual teve vários filhos. [...] Para vingar-se mais ainda do rei perjuro, Poseidon fez que a esposa de Minos concebesse uma paixão fatal e

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irresistível pelo touro. Sem saber como entregar-se ao animal. Pasífae recorreu às artes de Dédalo, que fabricou uma novilha de bronze tão perfeita, que conseguiu enganar o animal. A rainha colocou-se dentro do simulacro e concebeu do touro um ser monstruoso, metade homem, metade touro, o Minotauro (BRANDÃO, 2015, p. 64-65, v. I).

O trecho acima nos dá conta do mito, e de onde certamente advém a raça de

minotauros, homens-touros, asseclas de Ares, que por todo o game, se de um lado

atrapalham a progressão do herói, por outro, ajudam a melhorar a experiência para

o leitor-jogador. A origem de tantos minotauros não é, em termos narrativos, cuidada

pelos desenvolvedores, que criam essas figuras para atuar no contexto ficcional do

game, sem pretensão de seguir estritamente as fontes dos estudos da mitologia

grega, como o faz, Junito de Souza Brandão, conforme exposto acima.

O sexto arquétipo de personagem são os aliados do herói. Segundo Novak (2010, p.

159), “aliados são os personagens que ajudam o herói a avançar em sua jornada e

também o auxiliam em tarefas que podem ser difíceis ou impossíveis de executar

por conta própria”. Podemos chamá-los também de coadjuvantes:

Os personagens coadjuvantes – também conhecidos como personagens focais – existem basicamente para impedir que o protagonista deixe o problema de lado. Um exemplo de personagem coadjuvante é o mentor no monomito da jornada do herói de Joseph Campbell. Os personagens coadjuvantes frequentemente dão início à ação na história, às vezes até executando alguma tarefa para o antagonista. Pense nos coadjuvantes como os conjuntos de tropas comandadas por você (o protagonista) e pelo seu inimigo (o antagonista) durante um game de estratégia militar. Esses personagens incorporam diferentes pontos de vista à história. Podem ser seus aliados ou os capangas do antagonista (NOVAK, 2010, p. 163-164).

A lista de aliados do herói em God of war não é tão grande quanto os números de

auxiliares que o vilão dispõe no game. No entanto, os aliados fornecem toda a ajuda

necessária para que a tarefa de Kratos se cumpra: encontrar a Caixa de Pandora e

então abri-la para liberar o seu poder como meio para vencer o deus da guerra Ares.

Os aliados do herói vão surgindo ao longo de sua jornada, cada qual o estimulando

a seguir na medida em que o fortalece física e emocionalmente. Os aliados do herói,

em nada comuns, são os deuses que habitam o Olimpo, também aqueles que se

ocupam em auxiliar Kratos em sua Jornada.

49

O primeiro que vai ao auxílio de Kratos é o deus Poseidon, ainda no caminho da

cidade de Athena, em pleno mar Egeu. O herói dele recebe uma pequena fração do

seu poder, a arma capaz de conjurar tempestades elétricas, a Cólera do senhor dos

mares. De acordo com Junito Brandão,

Posídon, em grego Poseidôn15, é o deus das águas. [...] Percorria as ondas sobre uma carruagem tirada por seres monstruosos, meio cavalos, meio serpentes. Seu cortejo era formado por peixes, delfins e por criaturas marinhas de todas as espécies, desde Nereidas até gênios diversos, como Proteu e Glauco. Eis as facetas mais conhecidas do grande deus do mar, desde Homero (BRANDÃO, 2015, p. 341-342, v. I).

O deus Poseidon do game evoca em sua representação as características do

personagem consagrado pela mitologia, segundo o Guia Oficial de God of war:

Poseidon é um deus de muitos nomes. Ele é mais famoso como o deus do mar. Filho de Cronos e Rea, Poseidon é um de seis irmãos que dividiram o poder do mundo. Seus irmãos e irmãs são: Hestia, Demeter, Hera, Hades e Zeus. Dividiram o universo em três. Poseidon tornou-se governante do mar, Zeus passou a governar o céu, e para Hades coube o submundo. Outros nomes atribuídos a Poseidon são: Deus dos Terremotos, Deus dos Cavalos. Entre os símbolos associados à Poseidon incluem o tridente e golfinhos (GOD OF WAR, 2005, p. 39, tradução nossa).

Há similaridades nas descrições do deus Poseidon, realizadas tanto pelo Guia

Oficial do Game quanto pelos estudos de Brandão. Ambos referenciam Poseidon

como o senhor dos mares, que domina as profundidades e faz tremer as terras.

O segundo aliado que vai ao auxílio de Kratos é a deusa Afrodite16, já às portas de

Atenas. O herói recebe da deusa do amor a orientação sobre como petrificar os

15 Sobre o deus Poseidon, conforme Brandão (2015, p. 341-342, v. I): “Casou-se com Anfitrite, que foi mãe do imenso Tritão, divindade terrível e de grandes forças, que habita com sua mãe e seu ilustre pai um palácio de outro nas profundezas das águas marinhas. Reina em seu império líquido, à maneira de um “Zeus marinho”, tendo por cetro e por arma o tridente, que os poetas dizem ser tão terrível quanto o traio. Seu palácio faiscante de ouro e indestrutível ficava nas profundezas de Egas, cidade na costa norte da Acaia, onde estava localizado um de seus principais santuários”. 16 Do ponto de vista etimológico, no entanto, Afrodite nenhuma relação possui com aphrós. Trata-se de uma divindade obviamente importada do Oriente. Afrodite é a forma grega da deusa semítica da fecundidade e das águas fertilizantes, Astarté. Na Ilíada, a deusa é filha de Zeus e Dione, daí seu epíteto de Dioneia. Existe, todavia, uma Afrodite muito mais antiga, cujo nascimento é descrito na Teogonia, 188-198, consoante o tema de procedência oriental da mutilação de Úrano. Esta origem dupla da deusa do amor não é estranha à diferenciação que se estabeleceu entre Afrodite Urânia e Pandêmia, significando esta última, etimologicamente, “a venerada por todo o povo”, Pándemos, e, posteriormente, com discriminação filosófica e moral, “a popular, a vulgar”. Platão, no Banquete, estabelece uma distinção rígida entre a Pandêmia, a inspiradora dos amores comuns, vulgares,

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inimigos a partir do olhar da Medusa, depois que ele arrancou com as próprias mãos

a cabeça da rainha das górgonas. No game não é possível saber as motivações de

o porquê a deusa Afrodite demanda do herói que matasse a górgona. O leitor-

jogador apenas, caso seja conhecedor do mito, recorda-se de que o monstro foi

mesmo morto por outro herói.

Em tese, apenas Medusa é Górgona. As duas outras, Ésteno e Euríale, somente lato sensu é que podem ser assim denominadas. Das três só Medusa era mortal. Habitava, com suas irmãs, o extremo Ocidente, junto ao país das Hespérides. Estes monstros tinham a cabeça enrolada de serpentes, presas pontiagudas como as do javali, mãos de bronze e asas de ouro, que lhes permitiam voar. Seus olhos eram flamejantes e o olhar tão penetrante, que transformava em pedra quem as fixasse. Eram espantosas e temidas não só pelos homens, mas também pelos deuses [...] Tendo, porém, ousado competir em beleza com Atena, esta eriçou-lhe a cabeça de serpentes e transformou-a em Górgona (BRANDÃO, 2015, p. 251-252, v. I).

A deusa Afrodite do game evoca em sua representação as características da

personagem consagrada pela mitologia, segundo o Guia Oficial de God of war:

Afrodite é a deusa do amor, da beleza e do arrebatamento sexual. De acordo com Hesíodo, ela nasceu quando Urano (o pai dos deuses) foi castrado por seu filho Cronos, que jogou os genitais no oceano. Da espuma surgiu Afrodite [...] Depois de seu nascimento, Zeus temeu que os deuses lutassem pela mão de Afrodite. Então ele a casou com o deus Hefesto, o mais estável dos deuses. Hefesto mal podia acreditar em sua boa sorte e usou todas as suas habilidades para fazer as mais luxuosas joias para ela [...] Afrodite amava e era amada por muitos deuses e mortais (GOD OF WAR, 2005, p. 54, tradução nossa).

Junito de Souza Brandão no segundo volume de sua obra Mitologia Grega comenta,

que Afrodite é a deusa da beleza e do amor, cuja função arquetípica mostra-se

como uma mulher criativa, sensual, mas, sobretudo, amante (BRANDÃO, 2013, p. 371,

v. III).

carnais, e a Urânia, a deusa que não tem mãe, amétor, e que, sendo Urânia, é ipso facto, a Celeste, a inspiradora de um amor etéreo, superior, imaterial, através do qual se atinge o amor supremo, como Diotima revelou a Sócrates. Este “amor urânico”, desligando-se da beleza do corpo, eleva-se até a beleza da alma, para atingir a Beleza em si, que é partícipe do eterno. [...] sua hierofania voluptuosa transforna até os animais, que se recolhem à sombra dos vales, para se unirem no amor que transborda de Afrodite (BRANDÃO, 2015, p. 226-227, v. I).

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O terceiro aliado que vai ao auxílio do protagonista é o deus supremo do Olimpo,

Zeus17. O encontro entre o mortal e o pai dos deuses ocorre em um templo na

estrada para a cidade de Atenas. Como já mencionado, o game não se ocupa de

comunicar ao leitor-jogador sobre os motivos pessoais que movem os deuses a

ajudar o herói. Ocupa-se tão somente a explicitar de que há um esforço olímpico

para que o deus Ares seja vencido, e assim a guerra deflagrada por ele contra

Atenas chegue a término. A aparição de Zeus a Kratos, que o leitor-jogador assiste

por um cutscene, em que o deus oferta ao mortal uma fração de seu poder, o raio,

tem mais relevância do que o fio da história que explica o ato. Uma vez que, em um

game, a obtenção de mais uma arma fortalece o personagem, o que implica numa

melhora, aos olhos do leitor-jogador, tanto da jogabilidade quanto da imersão.

Junito de Souza Brandão no segundo volume de sua obra Mitologia grega comenta

que Zeus, por vezes, era autoritário e cruel. Inflamava-se com facilidade e, ainda

que demonstrasse certa imaturidade emocional, era hábil no uso do poder, na

medida em que atuava de maneira resoluta em toda sorte de questões (BRANDÃO,

2013, p. 278, v.II). O estudioso ainda acrescenta:

As lutas de Zeus contra os Titãs (Titanomaquia), contra os Gigantes (Gigantomaquia), episódio desconhecido por Homero e Hesíodo, mas abonado por Píndaro, e contra o horrendo Tifão, essas lutas, contra forças primordiais desmedidas, cegas e violentas, simbolizam também uma espécie de reorganização do Universo, cabendo a Zeus o papel de um “recriador” do mundo. E apesar de jamais ter sido um deus criador, mas sim conquistador, o grande deus olímpico torna-se, com suas vitórias, o chefe inconteste dos deuses e dos homens, e o senhor absoluto do Universo (BRANDÃO, 2015, p. 358, v.I).

O Senhor Zeus do game evoca em sua representação as características do

personagem consagrado pela mitologia, segundo o Guia Oficial de God of war:

Zeus, o filho mais novo de Cronos e Rhea era o supremo governador do Monte Olimpo e do panteão dos deuses que residia lá. Sendo o supremo governador ele sustentou a lei, a justiça e a moral. Isso fez dele o líder espiritual dos deuses e dos homens [...] O principal atributo de Zeus é o seu raio. Ele controla a chuva, trovões e relâmpagos (GOD OF WAR, 2005, p. 73, tradução nossa).

17 Os inúmeros epítetos gregos de Zeus atestam ser ele um deus tipicamente da atmosfera: ómbrios, hyéticos (chuvoso); úrios (o que envia ventos favoráveis); astrápios ou astrápaîos (o que lança raios); brontaîos (o que troveja) (BRANDÃO, 2015, p. 351).

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Há similaridades nas descrições de Zeus, realizadas tanto pelo Guia Oficial do

Game quanto pelos estudos de Brandão. Ambos referenciam Zeus como aquele que

é o pai não apenas dos deuses e dos homens, como o senhor do universo.

O quarto aliado que vai ao auxílio de Kratos é a deusa Ártemis18. O encontro entre o

mortal e a deusa da natureza ocorre no Templo de Pandora, cujo interior é perigoso

e repleto de armadilhas. Ali o herói recebe das mãos da deusa a lâmina que ela

utilizou para matar um titã.

Junito Brandão apresenta a deusa Ártemis como

Tendo nascido antes do irmão e ajudado a mãe nos trabalhos de parto, ficou tão horrorizada com o que sofreu Leto, que pediu a seu pai Zeus o privilégio de permanecer para sempre virgem. Iconograficamente é representada com vestes curtas, pregueadas, com os joelhos descobertos, à maneira das jovens espartanas. Semelhantemente a seu irmão, a quem está muitas vezes associada no mito e no culto, carrega o arco e a aljava cheia de setas temíveis e certeiras (BRANDÃO, 1991, p. 119, v. I).

A deusa Ártemis do game evoca em sua representação as características da

personagem consagrada pela mitologia, segundo o Guia Oficial de God of war:

A filha de Leto e de Zeus, e irmã gêmea de Apollo, Ártemis é a deusa da caça, dos animais selvagens e da fertilidade. (Ela se tornou uma deusa da fertilidade [...] Ártemis é a deusa virgem. Sua vocação principal era vagar por florestas, montanha e terras não cultivadas, em meio aos leões, panteras, cervos e veados. Ela que os protege e zela pelo seu bem-estar. Ela carrega arco e flechas que foram feitas por Hefestos e os ciclopes (GOD OF WAR, 2005, p. 98, tradução nossa).

Há similaridades nas descrições de Ártemis, realizadas tanto pelo Guia Oficial do

Game quanto pelos estudos de Brandão. Ambos referenciam Ártemis a deusa

virgem, protetora dos animais e das florestas.

O quinto aliado que vai ao auxílio de Kratos é o deus Hades. O encontro entre o

mortal e o deus do submundo ocorre em meio a um desafio de sangue, na área

18 Ártemis era cultuada em todo o mundo grego, de Atenas a Éfeso. Na Grécia continental, a deusa da natureza, a senhora dos animais era venerada não só nas cidades, mas também e sobretudo nas regiões selvagens e montanhosas, na Arcádia, em Esparta, na Lacônia, nas montanhas do Taígeto e na Élida. O mais célebre e grandioso de seus santuários era o de Éfeso, onde o culto de Ártemis-Diana se confundia com o de uma antiga deusa asiática da fecundidade. Seus animais prediletos eram a corça, o javali, o urso e o cão, e, entre as plantas preferidas, estavam o loureiro, o mirto, o cedro e a oliveira (BRANDÃO, 1991, p. 122, v. I).

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conhecida como o segundo anel de Pandora. Ali o herói recebe o poder de conjurar

as almas da morte para lutarem ao seu lado.

Junito Brandão apresenta o deus Hades cujo imenso império é

Localizado no “seio das trevas brumosas”, isto é, nas entranhas da Terra e, por isso mesmo, denominado etimologicamente Inferno, abstração feita de “local de sofrimento”. Por significar, em etimologia popular, o Invisível, o nome Hades (que também lhe significa o reino) é raramente proferido: o deus era tão temido, que não o nomeavam por medo de lhe excitar a cólera (BRANDÃO, 1991, p. 475, v. I).

O deus Hades do game evoca em sua representação as características do

personagem consagrado pela mitologia, segundo o Guia Oficial de God of war:

Hades é o senhor dos mortos e governador do mundo inferior, que também recebe o seu nome. Ele é filho de Cronos e Rhea [...] possui um capacete ofertado pelos ciclopes, que pode deixá-lo invisível. Hades governa os mortos assistido por vários ajudantes, entre os quais Tânatos, Hipnos, o barqueiro Caronte, assim como o cão Cerberus. Muitos heróis da mitologia grega desceram ao submundo, seja para questionar as “sombras” seja para tentar libertá-las [...] Hades é aquele que é menos amado, até mesmo pelos próprios deuses têm a aversão dele. Os homens evitavam falar o seu nome para não atrair sua atenção indesejada. (GOD OF WAR, 2005, p. 128, tradução nossa).

Há similaridades nas descrições do deus Hades, realizadas tanto pelo Guia Oficial

do Game quanto pelos estudos de Brandão. Ambos referenciam Hades como o deus

do mundo subterrâneo, aquele exerce domínio sobre as almas. Recluso, não é

amado.

A análise agora recai sobre os aliados do antagonista, ou do personagem sombra.

Os auxiliares do deus Ares em God of war são num total de dez raças, porque no

universo do game o minotauro não é apenas um indivíduo, mas inúmeros que lutam

a serviço do deus da guerra. O cão de três cabeças é outro exemplo da opção no

game por utilizar não um único animal, conforme a mitologia, mas muitos, que são

lançados contra o herói em mais de um momento enquanto a narrativa se desenrola.

Cérbero19, apesar de aparecer no game como uma raça, mantém as características

relatadas na mitologia:

19 Um dos trabalhos impostos por Euristeu a Héracles foi o de ir ao Hades e de lá trazer o monstro. Após iniciar-se nos Mistérios de Elêusis, o herói desceu à outra vida. Plutão permitiu-lhe cumprir a tarefa, desde que dominasse Cérbero sem usar de armas. Numa luta corpo a corpo, o filho de

54

Filho de Équidna e de Tifão, tinha por irmãos a outros monstros como a Hidra de Lerna, o Leão de Nemeia e Ortro, o cão de Gerião. Cérbero é o cão do Hades, um dos monstros que guardava o império dos mortos e lhe interditava a entrada dos vivos, mas, acima de tudo, se entrassem, impedia-lhes a saída. Segundo Hesíodo, o espantoso animal possuía cinquenta cabeças e voz de bronze. A imagem clássica, porém, o apresenta como dotado de três cabeças, cauda de dragão, pescoço e dorso eriçados de serpentes (BRANDÃO, 1991, p. 202, v. I).

Há ciclopes no game, assim como sátiros, centauros, sereias, hárpyas, todos eles

monstros da mitologia grega que adensam no game o séquito de aliados de Ares.

Em God of war há também, monstros chefes como a Hidra e a Medusa. Na história

do game a Hidra é um monstro que infesta os mares do deus Poseidon e ele próprio

solicita a Kratos que o mate em seu nome. No game, a Hidra evoca em sua

representação as características da personagem consagrada pela mitologia:

A Hidra de Lerna é um monstro horripilante, gerado pela deusa Hera, para “provar” o grande Héracles (Hércules). Criada sobre um plátano, junto da fonte Amimone, perto do pântano de Lerna, na Argólida, a Hidra é figurada como uma serpente descomunal, de muitas cabeças, variando estas, segundo os autores, de cinco ou seis, até cem, e cujo hálito pestilento a tudo destruía: homens, colheitas e rebanhos. (BRANDÃO, 2015, p. 256-257, v. I).

Ao concluir o primeiro capítulo deste estudo entendemos que Kratos, pelo seu

percurso no game, deixa entrever o conceito de monomito proposto por Campbell,

que segundo Novak equivale a

Um padrão narrativo específico que é compartilhado pelas lendas e mitos de todas as culturas do mundo. Campbell chama esse monomito de “jornada do herói”, na qual um herói ficcional deve deixar sua comunidade e partir em uma jornada perigosa, geralmente para recuperar algo (ou alguém) valioso (NOVAK, 2010, p. 126).

Esse padrão a que se refere Novak, proposto por Joseph Campbell, também será

examinado no terceiro capítulo deste estudo. Uma vez que esta pesquisa acredita

Alcmena o venceu e o trouxe meio sufocado até o palácio de Euristeu, que, apavorado, ordenou a Héracle que o levasse de volta ao Hades. O cão do Hades representa o terror da morte, simboliza o próprio Hades e o inferno interior de cada um. É de se observar que Héracles o levou de vencida, usando apenas a força de seus braços e que Orfeu “por uma ação espiritual”, com os sons irresistíveis de sua lira mágica o adormeceu por instantes. Estes dois índices militam em favor da interpretação dos neoplatônicos que viam em Cérbero o próprio gênio do demônio interior, o espírito do mal. O guardião dos mortos só pode ser dominado sobre a terra, quer dizer, por uma violenta mudança de nível e pelas forças pessoais de natureza espiritual. Para vencê-lo, cada um só pode contar consigo mesmo (BRANDÃO, 1991, p. 202, v. I).

55

que seja mesmo o monomito, o padrão que estrutura o enredo e, por conseguinte, o

percurso do herói pelo game.

A história em God of war narra uma fatia da vida do herói/protagonista Kratos,

sobretudo revelando como um incidente leva a outro. Tudo a partir de um problema

que foi introduzido naquele universo e que clama por solução conforme aquela

realidade, ponto de partida para a relação entre o leitor-jogador e o personagem20,

esses que numa primeira partida não se conhecem, mas que em meio às surpresas

e reviravoltas do enredo criam a ilusão de liberdade, tal é a imersão conseguida e

que se constrói ao longo da narrativa. Este efeito de liberdade constrói-se porque em

um game é o leitor-jogador quem ajuda a atualizar a história enquanto experimenta o

enredo e interage com ele. Ela, a história em um game, não é maior em termos de

importância que a jogabilidade, sobretudo no que se refere às capacidades que

estão à disposição do leitor-jogador – se ele pode rolar, saltar, pendurar-se, lançar

magias, lutar com as mais variadas armas, todos esses elementos criam a

jogabilidade. Esse aspecto, o da jogabilidade, é o que diferencia um livro de um

game que também tem história.

Assim, God of war como game é entendido por este estudo como um palimpsesto

digital, um texto que assume o sentido do seu hipotexto, os mitos gregos, revelando

na sua leitura um caráter, como nos diz Genette (2006, p. 29), “manifesto e

assumido desta intervenção”.

Por fim, parafraseando Lévy (2010), concluímos que os games como novas formas

de apresentação de uma narrativa nos interessam porque permitem vivenciar outras

experiências (conexões) de leitura.

20 Todo leitor-jogador, ao iniciar um game, desconhece a história do personagem a quem controla. Mas, à medida que o leitor-jogador e seu personagem seguem pela jornada do game, um vínculo se forma de maneira que a pessoa real assume integralmente os objetivos do personagem fictício, tal é a imersão que se estabelece.

56

2. GOD OF WAR: A NARRATIVA DO ROMANCE

Este capítulo dedica-se à análise da narrativa do romance God of war, entendendo-o

como um palimpsesto, em que há certa duplicidade do objeto na ordem das relações

textuais (GENETTE, 2006, p. 45). Essa metáfora da duplicidade do objeto se funda

na ideia do romance como um pergaminho em que se podem desvelar as camadas

de outras escritas; em outros termos, um texto é sobreposto a outro. A provável

apreensão desse intertexto surge no repertório do leitor enquanto percepção da

existência desse palimpsesto, que manifesta a “copresença” dos dois textos e, ao

mesmo tempo, também os distingue ao relacioná-los. Do ponto de vista da

linguagem, God of war apresenta uma diferença importante em relação ao game,

pois enquanto este se constrói por meio da palavra digital, aquele é tecido,

unicamente, pela palavra verbal.

Enquanto objeto cultural, esse romance preserva o diálogo do “novo com o velho”,

nas palavras Genette (2006, p. 45). O que equivale a dizer que ele surge como um

hipertexto ficcional, isto é, ficção de outra obra, cuja origem é o game, entendido

assim como o hipotexto em razão do seu caráter preliminar. Neste sentido, Genette

(2006, p. 19) comenta que “a derivação do hipotexto ao hipertexto é ao mesmo

tempo maciça e explícita, mais ou menos oficial, em que se percebem elementos da

hipertextualidade”. Essa oficialidade a que Genette se refere materializa-se na capa

do romance, onde se lê, encimando o título: “A história oficial que deu origem ao

jogo”, como ilustra a figura abaixo:

Imagem 3 − Capa do romance God of war – parte 1

Fonte: Leya, 2012

57

O enunciado acima, além de atestar a oficialidade da história veiculada pelo

romance enquanto narrativa, depreende a importância de se destacar neste estudo

os aspectos da realidade narrativa, isto é, diferenciar história de narrativa. Segundo

Genette (1995, p. 25) a história é “o significado ou conteúdo narrativo” enquanto que

a narrativa pode ser compreendida como o “significante, o enunciado, o discurso ou

texto narrativo”.

A narrativa no sentido restrito que passamos a atribuir a este termo [...] o discurso narrativo é o único que se oferece diretamente à análise textual, que é por sua vez o único instrumento de estudo de que dispomos no campo da narrativa literária, e, especialmente, da narrativa de ficção (GENETTE, 1995, p. 25).

God of war reúne, na sua composição, elementos oriundos das antigas epopeias,

uma vez que o eixo narrativo gravita em torno de deuses, heróis, lendas e mitos.

Nessa narrativa, o herói ocupa-se com um propósito coletivo, embora ele,

diferentemente do herói das antigas epopeias, também tenha uma motivação

particular.

A história de God of war, seja a que se depreende do game, seja a que se lê no

romance, apresenta características que podem ser verificadas no gênero épico, tais

como: personagem heroico, assunto grandioso, caráter maravilhoso. Além de uma

narrativa que é iniciada, nas palavras de Coutinho (1978, p. 57) “no meio do

assunto, enquanto a primeira parte é relatada indiretamente e em retrospectiva”.

Segue, desse modo, as convenções da in media res, isto é, a narrativa inicia-se

focalizando o herói em plena ação, para logo em seguida surgirem os primeiros

obstáculos, interpostos quase sempre por deuses, que o herói tem que superar.

Acerca do épico, Coutinho (2015, p. 73) comenta que

A essência da epopeia não é aparecer em verso ou prosa, mas ser uma narrativa, de caráter heroico, diversamente da ficção, que é narrativa de cunho não heroico envolvendo fatos e pessoa da vida comum e média. Portanto, define-se a epopeia como uma composição literária de natureza narrativa, com acontecimentos em que se misturam fatos comuns, heróis e deuses, numa atmosfera de maravilhoso.

58

No entendimento desse estudioso (1978, p. 32), há três perguntas que se pode fazer

diante de uma narrativa: “Quem participa nos acontecimentos? Que acontece? Onde

acontece e em que circunstâncias?”.

O exame do romance God of war, agora expresso pela palavra verbal, focalizará os

elementos narrativos básicos, eleitos da conceituação tradicional e que lhe dão

estrutura. A análise utilizará o procedimento indutivo, partindo da narrativa da obra

impressa e comparando-a com a que nos oferece o game − um suporte diferente

que se encarrega de transmitir outra manifestação da história do herói Kratos.

Passaremos, doravante, ao exame da narrativa do romance God of war, observando

os seguintes elementos componentes da estrutura da ficção: os personagens da

obra e o enredo.

2.1 ENREDO

O enredo do romance God of war possui em sua urdidura o esquema estrutural

clássico: apresentação, complicação, clímax e conclusão. Não obstante, pode-se

entrever o monomito21, um conceito proposto por Joseph Campbell, em sua obra O

herói de mil faces. O monomito como elemento estruturante do enredo de God of

war será analisado mais à frente, no terceiro capítulo deste estudo. Com efeito,

trataremos de ver doravante o enredo, entendido por Coutinho (2015, p. 58), como

“um artifício estruturado por um nexo de causa e efeito, com acontecimentos inter-

relacionados num todo e numa união estrutural”, que implica a noção de mudança e

desenvolvimento. Neste sentido, o enredo se apresenta ao leitor de maneira

orgânica, uma vez que os eventos “não podem ser retirados do conjunto sem

prejuízo da unidade lógica”, conforme Coutinho (2015, p. 60). Assim, este estudo

compreende o enredo como o resultado da ação dos personagens de God of war,

portanto, não se confunde com a sua história, porque se organiza como discurso

narrativo que orienta os acontecimentos de um modo particular.

21 A jornada do herói de Joseph Campbell é um monomito que os estudiosos encontraram em todas as lendas e mitos. Em resumo, compreende, enreda: o mundo comum; o chamado à aventura; a recusa ao chamado; o encontro com o mentor; superando testes e obstáculos; o confronto final; a recompensa; o caminho de volta; ressurreição; e, o retorno com o elixir.

59

A história, afirma Tzvetan Todorov (2013, p. 222), “é, pois, uma convenção, ela não

existe no nível dos próprios acontecimentos [...] A história é uma abstração, pois ela

é sempre percebida e narrada por alguém, não existe ‘em si’”.

Apreender este modo particular sobre como os acontecimentos em God of war são

organizados (o seu enredo) importa para este estudo porque a história de Kratos se

constrói como narrativa em diferentes suportes (game e romance).

Daremos início propriamente à análise do enredo de God of war, cotejando as duas

narrativas.

O romance inicia com o protagonista em pé, à beira de um penhasco. Sua

expressão é de cansaço e suas palavras, amargas e sem esperança. Afinal, os

deuses do Olimpo o abandonaram, conforme a sua percepção acerca de sua

existência. Este início é comum às narrativas do romance e do game. Neste a

narrativa é lida pelo leitor-jogador por meio de um cutscene22 cuja função é introduzir

o fio da história e apresentar o protagonista; naquele, em que a linguagem não é a

audiovisual, mas sim a verbal, o leitor é apresentado ao herói pelo narrador no

prólogo, que circunstancia a história, oferecendo algumas informações anteriores à

narrativa que vai se desenvolver e situa o estágio em que ela se situa nesse

momento.

A narrativa do romance, a partir do prólogo, abre-se para um total de trinta e um

capítulos, que se alternam, no que este estudo entende como “plano dos homens”

(Cf. Tabela 1, Anexo A) e “plano dos deuses” (Cf. Tabela 2, Anexo B). Enquanto

este tem como personagens os deuses gregos, não necessariamente referenciando

apenas à morada (o Olimpo) de onde eles veem e interferem nos assuntos dos

mortais, aquele é o mundo terreno propriamente dito, cujos personagens são todos

aqueles que não sejam propriamente olimpianos. Com essa configuração, o leitor

tem acesso ao fio da história, assim como às relações de causa e efeito, em que os

acontecimentos vão se conectando e, do mesmo modo, gerando mudança.

A alternância de planos (homens/deuses) é um procedimento narrativo que o leitor

experiencia apenas no enredo do romance. O que significa que no game o leitor-

jogador acessa tão somente as ações dos personagens no plano dos homens. Não

há, portanto, acesso daquele que joga e lê a narrativa aos diálogos entre os deuses.

22 Ver nota de rodapé número 13.

60

Esse procedimento narrativo em God of war tem implicações importantes no modo

de contar a história em suportes diferentes. Aprofundando a reflexão, e como já

mencionado no capítulo um deste estudo, no que se refere à aparição dos deuses a

Kratos, uma arma qualquer que lhe oferecida tem mais relevância para o leitor-

jogador no game do que o fio da história que explica o ato. No entanto, para o leitor

do romance, o fio da história é que tem relevância e não a arma que é ofertada,

razão pela qual as intenções por trás do ato são, ao longo da narrativa, reveladas.

Com respeito ao que se afirma acima, é possível dizer que ao leitor-jogador

importam menos os motivos que colocam os deuses diante do herói que a arma que

lhe é dada, porque ele a usará dali por diante. Razão pela qual, na narrativa do

game, os autores se limitam a introduzir apenas um fio de história (a união dos

olimpianos contra Ares). Esse fio de história já é suficientemente crível na narrativa

do game para explicar o porquê de os deuses auxiliarem o herói. Por outro lado, ao

público da narrativa do romance, em parte em razão do suporte, os autores ampliam

a história, na medida em que os faz entender as razões que movem os

personagens, assim como as inter-relações que daí se depreendem.

No romance os diálogos inscritos no plano dos deuses dão nexo de causa e efeito à

medida que se sucedem na narrativa, inter-relacionando os acontecimentos. O plano

dos deuses está presente em nove dos trinta e um capítulos, conforme se verifica

nos dados da Tabela 2, Anexo B. Com relação ao plano dos homens, é nele em que

o herói atua, enquanto a narrativa sofre mudanças e ganha movimento em 22

capítulos, como se pode verificar na Tabela 3, Anexo C.

No plano dos homens, o herói percorre um espaço e um tempo determinados na

narrativa. Cumpre dizer que as categorias espaço e tempo não serão aprofundadas,

em razão dos objetivos deste estudo. Contudo, faz-se necessário desvelar alguns

pontos importantes com relação a essas categorias, que se podem verificar em God

of war.

No romance, a narrativa indica, por meio de alguns enunciados (pensamentos e

diálogos) o tempo aproximado dos acontecimentos de God of war. Característica

essa não encontrada no game, uma vez que o plano dos deuses inexiste naquela

narrativa.

No capítulo dois do livro, o leitor pode observar o seguinte trecho:

61

Atena esperou. Seria um insulto deliberado? Poseidon ainda estaria chateado com ela por conta da destruição de Troia? Ela nunca se dará particularmente bem como o Rei do Oceano, desde que rivalizaram pela nomeação do que era hoje a cidade de Atenas (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 40).

No trecho acima, o leitor é levado a entender que já se encontra concluída a Guerra

de Troia, uma vez que se infere, a partir dos questionamentos da deusa, que os

acontecimentos de God of war se dão após a “destruição de Troia”. Com esse dado

o trecho acima estabelece clara relação de copresença do texto a Ilíada, de Homero.

Ou seja, a “presença efetiva de um texto em um outro”, conforme Genette (2006, p.

14). O estudioso entende essa alusão como menos literal por se tratar de “um

enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e

um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete”. Assim, a alusão

que nos fornece o pensamento de Atena, marca o tempo aproximado dos

acontecimentos de God of war, alguma época depois que a história da Ilíada, a

epopeia em que se narra a queda da cidade de Troia, se concluiu, do ponto de vista

do discurso da deusa. O que também se constata a partir da leitura do trecho

abaixo, em que Zeus fala a Deusa da Guerra, do massacre porque passa Atenas

nas mãos de Ares e seus asseclas, comparando a destruição com a da cidade de

Troia:

“Você sabe, o saque de Atenas está se consolidando para se tornar um poema épico. Você devia pedir a Apolo que componha uma ode, talvez. Comemore a ocasião. Não tem de ser nada tão elaborado como o conto de Homero sobre Troia; afinal, Troia opôs-se contra toda a Grécia durante dez anos.” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 164).

Com relação ao espaço, ele é comum às narrativas (verbal e digital). Com efeito, a

Grécia é o lugar dos acontecimentos, mais precisamente a cidade de Atenas, cujo

protagonista de God of war é chamado a defender. Além de outros quatro espaços

“circundantes”, pelos quais o herói se vê obrigado a passar em sua jornada. São

eles: o Penhasco Sem Nome; o Túmulo dos Navios, localizado em algum lugar no

mar Egeo; o Deserto das Almas Perdidas; e, o Templo de Pandora.

O percurso de Kratos em tais espaços termina não apenas por organizar os

acontecimentos da narrativa como também vai constituindo o herói. Pois, conforme

avança por esses espaços, mais forte vai se tornando.

62

O primeiro espaço do romance não é o Penhasco sem nome, como inicialmente o

leitor é levado a acreditar no prólogo da narrativa, mas sim o Túmulo dos navios. É

neste espaço que o herói também enfrenta a Hidra, como se pode ler no trecho

abaixo:

“Sempre que o vento se acalmava por um momento, Kratos escutava claramente os gritos e brados de guerra da tripulação do navio mercante, que freneticamente cortava o pescoço da Hidra com espadas curtas e machados. Mas cabeças despontavam das profundezas do mar” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 21).

O trecho acima remete à Hidra de Lerna, monstro que no mito grego foi morto por

Héracles, em razão de seus doze trabalhos: “provas a que o rei de Argos, o covarde

Euristeu, submeteu seu primo.” (BRANDÃO, 2013, p. 101, v. III). Contudo, em God

of war, o monstro é morto pelo espartano não por um rei, mas a pedido de um deus,

o rei dos mares Poseidon. Aos motivos desse pedido voltaremos a tratar quando

formos analisar os deuses que foram persuadidos pela deusa Atena a prestarem

auxílio a Kratos.

O Túmulo dos navios é também o lugar onde Kratos é chamado para a aventura

pela deusa Atena. Após o chamado, o herói passa por um treinamento cujo objetivo

é fortalecê-lo ao longo da jornada, para que, próximo ao desfecho da narrativa, o

herói possa vencer em combate o deus Ares, como se lê no recorte abaixo:

[...] Atena contou isso como uma vitória parcial. Ela ganhou uma potente aliada [Ártemis], mas Atenas – e mesmo o Olimpo – nunca estaria segura enquanto Ares vivesse. Era hora de começar a próxima fase de seu plano. Kratos deve ser treinado. Ele deve ser testado. E, acima de tudo, deve ser devidamente armado (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 73).

Atena usa o ódio comum entre Ares e Kratos a seu favor: se por um lado, não

haveria maior vergonha para Ares ser vencido pelo mortal Kratos, por outro, vingar-

se do deus da Guerra é o que mantém o espartano lutando. A locução verbal “deve

ser” presente e repetida por mais duas vezes no trecho acima, marca a dependência

de Kratos a Atena. Há sim um estado de sujeito submetido a um determinismo

existencial, que lhe confere a perda de seu livre arbítrio. A ideia de fado imposto

63

pelos deuses presente nos mitos gregos23 é atenuada no romance God of war. A

ideia de destino, em que o herói já tem o seu futuro todo escrito, desenvolve-se não

no primeiro game, objeto deste estudo, mas sim nos demais que dão

prosseguimento a história da Saga24.

Após Kratos vencer a Hidra no Túmulo dos Navios, Atena chama o espartano para a

aventura. Assim tem início a jornada do herói, como se pode ler no trecho abaixo:

“Dez anos, Atena! Eu tenho servido fielmente os deuses por dez anos! Quando você vai banir os meus pesadelos? Quando? As visões me assombram até mesmo nas minhas horas de vigília!”. [...] “Requeremos uma tarefa final de você, Kratos. Seu maior desafio o espera em Atenas, onde agora, o meu irmão Ares estabelece seu cerco.” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 77).

Verifica-se no trecho acima uma tensão no diálogo entre Kratos e Atena, em que se

nota clara relação de subserviência do mortal para com a deusa. Ela é quem o

comanda. Neste sentido, Atena se revela como sua mentora, aquela que o orienta,

fornecendo-lhe informações, quando possível respondendo seus questionamentos, a

exemplo: sobre o porquê de os deuses não poderem intervir diretamente nas ações

de Ares.

Atena também, ao longo da jornada de Kratos, incentiva-o a continuar seguindo a

despeito das dificuldades, como pode ser visto nos diálogos abaixo:

“Zeus proibiu a guerra entre os deuses.” [...] “É por isso que deve ser você, Kratos. Apenas um mortal treinado por um deus tem uma chance de derrotar Ares.” [...] “Complete essa tarefa final e o passado que o consome será esquecido. Tenha fé, Kratos. Os deuses não esquecem aqueles que vêm ao seu auxílio.” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 78, grifo nosso).

A sabedoria de Atena coloca-a como alguém que cria discursos persuasivos

capazes de manipular homens e deuses para atingir seus propósitos. Pode-se notar

que nesse diálogo há uma tentação (vide grifo em itálico). Kratos só pode ser

23 Ver Édipo Rei, peça de Sófocles, em que a vida é determinada desde o seu nascimento e cujo destino pesa a inexorabilidade do Fatum. 24 Na saga God of war, há uma profecia que diz de um mortal cujo destino é destruir o Olimpo. Na Ilíada, tradução de Carlos Umberto Nunes, comenta-se que “na época de Homero, foram consideradas uma única Moira, que nem os deuses podiam desobedecer, mas gradualmente se transformaram em três mulheres, que tecem o fio do destino”. (HOMERO, 2009, p. 562-563). A esse respeito Junito de Souza Brandão (2015, p. 148, v.I) acrescenta que “a Moira, o destino, em tese, é fixo, imutável, não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses”.

64

favorecido se ajudar a atingir os propósitos dela – estabelecer outra ordem no

Olimpo, sem a presença inconveniente de Ares, segundo consideração da deusa.

As provas pelas quais terá que passar Kratos, ocorrem, como já mencionado, em

espaços específicos tão logo o espartano desembarca na cidade de Atenas sitiada

por Ares. Todos os espaços pelos quais passa o herói, reitera-se, servem de

treinamento para o espartano. E, assim como na narrativa do game, o romance

possui os mesmos desafios, entre os quais: obter a cabeça da medusa; encontrar o

Oráculo de Atenas e dele obter o conhecimento que levará ao Templo de Pandora,

passando antes, nesta jornada, pelo Deserto das Almas Perdidas, lar de sereias e

minotauros; escalar a montanha sobre as costas do titã Crono; sobreviver aos

desafios e armadilhas espalhados pelos três níveis do Templo de Pandora, entre

outras provas mais. A cada ingresso do herói em um novo espaço, tanto no game

quanto no romance, coloca-o diante não apenas de provas e inimigos, como

também dos deuses.

O Oráculo de Atena é a vidente, tanto no game quanto no romance, capaz de indicar

a Kratos a maneira de se matar um deus. Ela é a primeira missão de Kratos e deve

ser encontrada no segundo espaço da narrativa, a cidade de Atenas. Encontrá-la é a

primeira orientação dada a ele por Atena, como pode ser lido no recorte abaixo:

E enquanto Kratos escapava do navio na escura madrugada, a estátua de Atena na proa falou com ele mais uma vez – para lembrá-lo de que a morte de Ares lhe renderia o perdão por seus crimes. Como se ele precisasse ser lembrado. Atena também lhe falou de seu Oráculo em Atenas; o Oráculo diria a ele como derrotar o Deus da guerra (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 92, grifo nosso).

A tentação que Atena submete Kratos pode também ser inferida no recorte acima.

Este ato, que se reproduz constantemente na narrativa, presta-se a não

desmobilizar o herói da necessidade de ele a ajudar a alcançar o seu fim. A

repetição insistente funciona como uma espécie de “lavagem cerebral”, em que se

eliminam possíveis ideias da mente de Kratos que possam dissuadi-lo de submeter-

se à deusa.

A vidente, o Oráculo de Atenas, em God of war consegue ver mesmo além do que

os deuses alcançavam. Por essa razão, a Deusa da Sabedoria orientou Kratos que

65

em primeiro a procurasse. Acerca do dom de visão do Oráculo, pode-se ler no

trecho abaixo:

Se ela [Atena] não podia matar Ares, Kratos devia. Mas como? Como poderia qualquer mortal assassinar um deus? Kratos tinha de chegar ao Oráculo. Era a única maneira pela qual a resposta seria revelada, pois o poder do Oráculo era tal que ele poderia dar a Kratos o conhecimento escondido até mesmo dos deuses (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 111).

Atena é conhecida pelos estratagemas. Sua inteligência é capaz de descobrir

soluções com vistas a superar os obstáculos que advirão a Kratos. Assim, ela em

God of war empreende reuniões com os olimpianos, como forma de viabilizar

recursos, conjugando esses poderes naquele que luta em nome de seus interesses.

Abaixo, analisam-se os diálogos desses encontros entre a deusa e os olimpianos,

escolhidos por ela como auxiliares do herói que está a seu serviço.

O primeiro encontro é entre Atena e o seu tio, o rei dos mares, o Senhor Poseidon.

“Não é vergonha em ser superado pelo grande Poseidon, imperador de dois terços de tudo o que existe. Nenhum deus menor pode enfrentar qualquer um dos reis irmãos. Se você [Poseidon] realmente deseja punir Ares, você deve ferir seu orgulho.” Os tremores desapareceram. “Há verdade nisso” – admitiu Poseidon. “Mas qual é a melhor forma de fazê-lo? “Mostre a todos os deuses que até mesmo um mero mortal pode superar os planos de Ares e derrotar seus desejos.” – Atena disse com casualidade estudada (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 43).

Poseidon é o primeiro deus na narrativa do romance que é procurado por Atena e

persuadido a ajudar o espartano. No recorte acima, ele claramente pergunta à deusa

sobre a melhor maneira de punir Ares por ter infestado um dos seus mares com a

Hidra sem o seu consentimento – ato que o ofendeu. No recorte acima, ela

convence Poseidon ao dizer qual seria a melhor maneira de humilhar Ares:

derrotando os seus desejos por meio de um mortal. A deusa assim fortalece Kratos,

porque Poseidon o presenteia com uma fração de seu poder. Ela também, no

processo, treina e lapida o herói em batalha, que tem de vencer a Hidra.

Atena enxerga nas animosidades instaladas entre os deuses o meio de conseguir os

adeptos mais poderosos à sua causa. Com efeito, ela se move entre os espaços

presentes na narrativa do romance, dizendo aos deuses com todo o cuidado,

66

exatamente, aquilo que irá fazê-los querer ajudá-la; ela que é a deusa da

inteligência, da razão, da criatividade, assim como de toda e qualquer atividade do

espírito (BRANDÃO, 2013, p. 26-27, v. II).

O espaço agora muda para Atena, que deixa os mares de Poseidon para ir visitar a

câmara da deusa Afrodite no Olimpo. No trecho abaixo se pode ler um fragmento do

diálogo que se dá entre as deusas:

“A Medusa tem inveja da sua beleza”– Atena disse. “Ela anseia por um amante – qualquer amante – tão hábil quanto um que você possa aceitar em sua cama por uma noite apenas” – Atena baixou a voz em um sussurro conspirador. – “Ela acha que você roubou Hermes dela” [...] “E eu não posso aguentar por mais um momento o conhecimento de que Medusa conspira contra você, querida Afrodite. Deixe-me dizer o que podemos fazer...” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 115-116).

Atena, por meio de uma intriga, joga a deusa Afrodite contra a górgona Medusa,

fazendo a Deusa do Amor acreditar que o seu amado Hermes corre perigo.

Observe-se que Atena usa como estratégia discursiva o valor maior de Afrodite: a

vaidade de saber-se a mais bela e sedutora das deusas. A princípio, Atena, valendo-

se de um tratamento afetivo, faz-se solidária a Afrodite. Esta cumplicidade

arquitetada por Atena materializa-se não só no afeto que ela supostamente afirma

sentir pela deusa da beleza, mas também na proposta de ação conjunta de ambas,

como se concretiza na locução verbal (“podemos fazer”).

Há que se notar também, no diálogo acima, que neste encontro não é o procurado

quem solicita o conselho de Atena, mas a própria deusa é quem sugere o que se

deve fazer com relação ao problema. Assim, Atena persuade Afrodite a dar a tarefa,

esse desafio – matar a górgona – a Kratos, o que também seria do seu ponto de

vista uma espécie de treinamento para o espartano, como se lê no desfecho abaixo:

Atena deixou Afrodite logo depois, certa de que a natureza de Kratos seria ainda mais temperada e suas habilidades afiadas à perfeição antes da batalha com Ares – se ele conseguisse chegar ao Oráculo e descobrisse o método para matar um deus (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 116).

O espaço da narrativa ainda é o Olimpo. Atena busca auxílio para Kratos naquele

que é o pai dos olimpianos, o Senhor Zeus. E ele concede ao espartano, assim

67

como o seu irmão Poseidon também o fez, uma fração de seu poder, como pode ser

lido no trecho abaixo:

“Kratos, você fica mais forte conforme sua jornada continua. Mas, se quer ter sucesso em sua busca, você precisará da minha ajuda.” “Qual é a sua vontade, Senhor Zeus?” “Eu trago a você o poder de Zeus!” O reio do Olimpo estendeu a mão e disse: “Dê-me suas mãos, filho.” [...] “Pegue minha arma, Kratos” – exclamou Zeus. “Tome meu poder e destrua seus inimigos!” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 116).

Zeus concede o poder do raio a Kratos. Tal auxílio permitiu ao espartano fulminar os

seus inimigos a distância, sejam os do game, sejam os do romance. Além disso, o

diálogo acima ocorre em ambas as narrativas, mas apenas o romance explicita as

razões que levaram Zeus a auxiliar o protagonista nos momentos finais. Atena, por

sua vez, estava feliz pelo auxílio de Zeus em favor a Kratos, como pode ser visto no

trecho abaixo:

Ela sabia que ele [Zeus] não podia favorecer abertamente o espartano, por causa de seu próprio decreto [...] Ela regojizou-se. Zeus tinha auxiliado Kratos de uma forma que ela desconhecia, mas, ainda assim, tinha ajudado-o [...] Zeus havia concedido o poder do relâmpago a seu Kratos secretamente. (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 359-360).

O gesto secreto de Zeus é decisivo para compreender o seu comportamento. Ele

ajuda Kratos, mas simula não o fazer. Este jogo de manipulação só será conhecido

no desfecho da narrativa, quando se revelará que ele manobra as ações de Atena

para atender também ao seu interesse de eliminar Ares, o filho insurreto. Ainda

acerca das maquinações de Zeus, mesmo Kratos, quando termina por cumprir um

dos desafios dentro do Templo de Pandora, questiona-se:

“Zeus tinha ordenado ao Arquiteto que projetasse o templo [de Pandora] para que um mortal pudesse ter sucesso e pudesse reivindicar o poder da arca”. Ele lembrou-se das palavras de Atena: “Zeus proibiu os deuses de guerrearem uns contra os outros. Tal decreto devia ser compulsório, mesmo sobre o próprio Zeus” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 333).

Neste ponto, mostra-se oportuna uma reflexão sobre a posição dos deuses como

mentores ou ajudantes do herói. A atitude de Zeus, em uma primeira instância,

parece contraditória. Ele ordenara que não mais poderia haver guerra entre os

68

deuses, mas não vê impedimentos que estes deem poderes a um mortal para atingir

os seus desafetos. A posição de mentor ou de ajudante do ato de destruição de um

deus ou de outra entidade não implica a responsabilidade do ato em si, como ocorre

nas duas narrativas.

“Será que Zeus ordenou que um único caminho tivesse que ser deixado em aberto, porque, mesmo mil anos atrás, ele havia previsto que um dia um deus deveria ser morto?” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 333).

Esses questionamentos de Kratos importam porque revelam uma faceta do próprio

Zeus, de que lhe era cara a ideia de autopreservação. Isto é, ainda que tenha

decretado a lei que proibia conflito entre os deuses, o pai do Olimpo necessitava de

uma alternativa, um meio de punir ou mesmo matar qualquer “filho” que desafiasse

sua autoridade.

O espaço da narrativa muda do Olimpo para uma grande floresta nas imediações da

cidade de Atenas, quando a Deusa da Sabedoria procura sua irmã Ártemis. É neste

cenário que Atena persuade Ártemis, a Deusa da Caça, a lhe dar algum auxílio

contra Ares e seus asseclas, como se pode ler no recorte abaixo:

“Nenhum de nós pode lutar contra Ares, por decreto de nosso pai. Isso não impede nosso irmão de destruir aqueles que nos adoram “Você [Atena] jura que minhas florestas serão sacrossantas?” “Faça com que suas criaturas da floresta se voltem contra os servos de Ares e meu juramento está feito. Vou me certificar que toda Atenas honre seu templo bucólico” – Atena disse, a paixão tingindo suas palavras. “Nós não devemos permitir que ele atropele o relicário que você [Ártemis] mantém como o mais sagrado: os bosques repletos de criaturas de cascos e asas.” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 72).

No trecho acima, Atena tenta estabelecer com sua irmã uma relação empática,

como quem aponta um problema e se solidariza por estar vivenciando uma situação

de igual monta. Além disso, as palavras da Deusa da Sabedoria pesam sobre a

irmã, porque sugerem que Atena está desgostosa, como se o problema também

fosse dela. Assim, tendo a conexão empática sido estabelecida, Atena “sugere”

então que Ártemis envie suas criaturas contra os exércitos de Ares, em troca daquilo

que a Deusa da Caça mais almeja: que suas florestas e animais sejam

sacrossantos, ou seja, intocáveis.

69

A persuasão de Atena tem grande efeito em Ártemis, que vai ao auxílio de Kratos

em um novo espaço na narrativa, o Templo de Pandora. A Deusa da Caça, do

mesmo modo que os seus pares antes dela, termina por influir nos acontecimentos

da narrativa, tanto do game quanto do romance, uma vez que ela fortalece o herói,

dando-lhe mais uma arma com que afligir os seus inimigos, como pode ser visto no

trecho abaixo:

“Senhora Ártemis.” “Kratos, os deuses exigem mais de você!” [...] “Muito depende de sua habilidade” – disse a Caçadora do Olimpo. “Você aprendeu a usar as Lâminas do Caos bem, mas elas sozinhas não vão levá-lo até o fim de sua jornada. Eu ofereço-lhe a lâmina que eu mesma utilizei para matar um Titã. Tome este dom e use-o para completar a sua busca.” [...] “Vá com os deuses, Kratos.” – a imagem de Ártemis disse. “Vá em frente, em nome do Olimpo!” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 238).

Hades, o Senhor do Inferno, é o último deus que corre em auxílio a Kratos, mas

apenas na narrativa do game. Na narrativa digital, o deus Hades concede a Kratos

um pequeno exército de almas guerreiras, que quando convocadas lutariam ao lado

do herói. No romance Hades é apenas um personagem citado, que também

empresta o nome ao seu domínio, o Inferno. Esta é uma diferença significativa entre

as narrativas.

Aprofundando a reflexão, este estudo acredita que a decisão dos autores do

romance em utilizar o deus Hades apenas como personagem citado se deva ao fato,

constantemente reiterado, que o exército de Ares é cria do Hades. Seria

inverossímil, portanto, o deus Hades auxiliar o herói, uma vez que os asseclas de

Ares são gerados em seus domínios, como se pode ler nos trechos abaixo:

Atena lhe confiara a missão de salvar Atenas do exército de Ares, de soldados brotados do Hades [...] Contra as hordas de Ares de harpias, legionários mortos-vivos, ciclopes e sabes que outras monstruosidades rastejavam das profundezas de Hades [...] Os soldados mais próximos puseram-se contra a brecha, fazendo uma parede com seus escudos e seus próprios corpos para deter as hordas geradas no Hades (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 79; 90; 100).

Importa dizer que na mídia digital, o fato de o deus Hades auxiliar Kratos, como

personagem, dando-lhe uma fração de seu poder, é verossímil já que a origem dos

monstros de Ares não é clara para o leitor-jogador, ainda que Kratos no início do

70

game esbraveje que irá mandar todos os inimigos para o Hades. O leitor-jogador

comum, na verdade, entende os monstros, que atacam Kratos em hordas, tão

somente como inimigos que devem ser sumariamente retalhados para que se evite

com isso qualquer dano, ou o menor possível, à saúde do herói.

Ao término das incursões da deusa Atena pelos planos dos homens e dos deuses, e

de Kratos pelo Templo de Pandora, um novo espaço é introduzido na narrativa: o

inferno.

O Hades sobrevém ao herói, quando este é morto por Ares, como se pode ler no

recorte abaixo:

Com um instante de um relampejar branco, seu peito foi atingido por um martelo invisível, manejado por um Titã invisível [Ares]. Nada em todas as suas décadas de batalha o tinha atingido tão duramente [...] Fixado à porta de pedra, piscando os olhos em sua incompreensão para com a imensa coluna de mármore branca saindo de seu peito, Kratos lutou para respirar (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 339).

Kratos não vê o perigo até ser tarde demais e então ele é lançado no Hades,

momento em que performatiza o descensos ad ínferos, ou a descida ao inferno.

Segundo Junito de Souza Brandão (2013, p. 170, v. II), há mais de uma descrição

para o Hades: se em Hesíodo já existe uma topografia que o divide em três regiões

(Tártaro, Érebo e Elísion), em Homero “é um imenso abismo, onde após a morte,

todas as almas são lançadas”. God of war, em suas narrativas (game e romance)

incorporam o mito, como se pode ler no trecho abaixo:

Kratos caiu, caiu e caiu, ao lado de centenas de outros homens e mulheres caindo ao lado dele. Ele mergulhou através do nevoeiro de sangue sombrio e melancólico do Hades, descendo em direção às margens do rio Estige (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 343, grifo nosso).

A descida ao Hades que Kratos experimenta, nas palavras de Junito de Souza

Brandão (2013, p. 119, v. III), equivale ao “supremo rito iniciático, a catábase, a

morte simbólica, é a condição indispensável para uma anábase, uma subida, uma

escalada definitiva na busca da anagnórisis, do autoconhecimento, da

transformação do que resta do homem velho no homem novo”.

A morte e queda de Kratos, narradas nos dois trechos mencionados acima,

extraídos do capítulo vinte e oito do romance, são em certa medida fiéis à narrativa

71

do game, em que o leitor-jogador as experiencia por meio de uma longa cutscene. A

descrição verbal do romance faz jus às imagens do game. Kratos, literalmente, cai,

como inúmeros outros em iguais condições também caindo ao seu lado rumo ao

Estige25. A repetição do verbo “cair” enfatiza o movimento vertiginoso que se encerra

com o verbo antecedido por uma conjunção aditiva, que fecha a ação da queda. Já o

uso do verbo no gerúndio (“caindo”) sugere um movimento de os outros seres

realizarem o descensos concomitante à queda do herói. A catábase ao Hades não é

um percurso singular no mundo mítico, realizado apenas por Kratos. Essa morte

simbólica, está presente em inúmeras obras da tradição, permeando o caminho de

heróis, a exemplo de Héracles, Odisseu e Aquiles.

Como já comentado neste estudo, o Coveiro, personagem mais enigmático no game

do que no romance, é quem auxilia Kratos a sair do Hades ao lhe enviar uma corda

– em cuja extremidade amarrara um pesado bloco em pedra – a partir do túmulo que

ele próprio cavara:

“Ah, Kratos, bem a tempo. Terminei de cavar apenas um instante atrás.” [...] Atrás dele estava apenas o velho coveiro [...] “Atena não é a única divindade que está tomando conta de você, espartano. Você chegou longe para provar o seu valor, mas a sua tarefa final está diante de você” [...] “Complete sua tarefa, Kratos... e os deuses perdoarão os seus pecados.” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 351).

Ambos os recortes acima têm as suas “versões” para o game na forma de

cutscenes, que permitem infundir na experiência do leitor-jogador um fio da história,

isto é, chamar-lhe a atenção para um acontecimento específico, o que o dota de

certa importância. Caso o herói, no game, simplesmente saísse do Hades subindo

por uma corda, essa que o faz emergir no mundo dos vivos em uma cova, sem o

recurso da cutscene, seria simplesmente mais um caminho a se passar, rumo à

próxima fase. Essa ênfase em dada parte da história é fluida para romance, dada a

especificidade do suporte em que a narrativa se inscreve. Por outro lado, o game

necessita de cutscenes para que a ênfase efetivamente ocorra, impactando o leitor-

jogado para um acontecimento específico no fluxo da narrativa.

25 Estige é uma Oceânida, uma divindade unida à água. Com os filhos ajudara Zeus na luta contra o Titãs e recebeu como privilégio que em seu nome jurassem solenemente os deuses. Como havia uma fonte na Arcádia com o mesmo nome e cujas águas tinham a propriedade de envenenar, o rio do Hades (o rio do inferno), que também se chamava Estige, e que por ela era formado, passou a ser aquele por cujas águas mágicas se faziam terríveis juramentos (BRANDÃO, 2015, p. 164).

72

O espaço que precede a anábase de Kratos para o Olimpo, e que influi nos

acontecimentos na narrativa, diz respeito à batalha final. O confronto entre Kratos e

Ares, no romance, inicia-se a partir do regresso do herói do Hades, como se pode ler

no recorte abaixo:

Ares não parecia surpreso, parecia estar satisfeito. Ele ergueu o rosto para o céu de novo e jogou os braços largos na direção do Olimpo. “Isso é o melhor que você pode fazer, paí? Você envia um mortal alquebrado para me derrotar, o Deus da Guerra? [...] Kratos não se sente alquebrado. Ele ergueu a mão direita, sentiu o poder do raio de Zeus surgindo de dentro dele enquanto dava um passa a frente, e desencadeou a guerra sobre um deus (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 358).

O intervalo entre o lançamento do relâmpago e o encontro com o alvo estendeu-se mais do que toda a vida de Kratos [...] O relâmpago tinha atingido seu alvo e feito o seu trabalho, rompendo a corrente que unia a Caixa à mão do deus [...] Kratos calculou onde a arca iria pousar e correu para o local com toda a sua velocidade [...] Alcançando-a, Kratos agarrou a tampa [...] Ele nunca tinha imaginado tal poder [...] Ele havia crescido. Antes, Kratos tinha uma altura que batia no tálus de Ares, agora ele olhava o deus bem no meio dos olhos. E, naqueles olhos, ele viu medo (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 362, grifo nosso).

No primeiro recorte acima, a ausência de surpresa de Ares no retorno de Kratos só

faz realçar na narrativa as capacidades do herói épico, o qual é capaz de façanhas

incríveis como retornar do Hades, mesmo com a intercessão de Zeus. O segundo,

por sua vez, informa ao leitor qual era o poder que a Caixa abrigava. Poder esse que

possibilita ao herói, mortal, enfrentar Ares, que se intimida diante dessa

manifestação extraordinária. Os acontecimentos acima também são narrados no

game por meio de uma longa cutscene que, como já dito, empresta relevância, isto

é, acentua para o leitor-jogador um dado específico no fio da história.

O que se segue é uma luta brutal entre o herói e seu antagonista que culmina na

morte de Ares, como se lê no trecho abaixo:

Kratos empurrou a própria espada de Ares no peito do deus. Enquanto ele mancava para longe do cadáver, o corpo sem vida começou a piscar com miríades de luz. As luzes se transformaram em partículas de dança que afastaram-se do cadáver e rodopiaram para cima, para o céu, até que, com um clarão ofuscante e um trovão como o fim do mundo, nada de Ares permaneceu (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 376).

73

Na conclusão da batalha entre um mortal que ousou desafiar um deus há, como se

espera de uma história épica, uma conclusão heroica, em que o protagonista passa

por inúmeras adversidades até vencer o vilão. O desfecho acima é comum em

ambas as narrativas, seja para o game, seja para o romance. Esclarece-se ainda

que, assim como no trecho acima, o mencionado “clarão ofuscante e um trovão

como o fim do mundo” também é visto pelo leitor-jogador ao final do game.

A manifestação da morte de Ares em meio a uma miríade de luzes, clarões

ofuscantes e trovões, simboliza uma transformação profunda, o processo de morrer.

Na Grécia, segundo Brandão (2015, p. 237, v.I), morrer “significa ocultar-se, ser

como sombra”, tornar-se um eídolon, um corpo insubstancial. A morte de um deus

do Olimpo manifesta pelo clarão ofuscante, que para o leitor lembra uma

manifestação apocalíptica, alude à evolução fatal que decorre do embate entre duas

forças, em que uma vida termina por desencadear sobre a outra, do ponto de vista

simbólico, o seu aspecto perecível e destruidor.

Concluída a tarefa, Kratos volta ao barco onde se encontra a estátua de Atena, com

um único objetivo em mente que é o de receber o que haviam lhe prometido, como

pode ser visto no trecho abaixo:

“Atena” – disse ele –“, a cidade está salva. Ares está morto.” – Ele [Kratos] olhou atento para os olhos [da estátua de Atena] de mármore branco. “Eu já fiz a minha parte. Agora, faça a sua. Limpe esses pesadelos para sempre” [...] Os olhos [da estátua] se ascenderam, e os lábios se moveriam quando Atena falou. “Embora lamentemos a morte de nosso irmão, os deuses estão em dívida com você.” [...] Prometemos que seus pecados seriam perdoados, e assim será. Mas nós nunca prometemos apagar seus pesadelos. Nenhum homem, nenhum deus, jamais poderia esquecer os atos terríveis que você cometeu.” “Você não pode Atena, eu fiz tudo que você pediu! Você não pode!”. “Adeus, Kratos. Seu serviço aos deuses chegou ao fim. Vá adiante em sua nova vida e saiba que você ganhou a gratidão do Olimpo.” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 377).

Nota-se no recorte acima, uma Atena de natureza invulnerável, que se mostra

distante emocionalmente daquele ao qual manteve uma sólida aliança. Apesar dos

protestos de Kratos, a deusa, utilizando-se de objetividade na solução daquele

problema que se apresenta (não conceder aquilo que havia prometido por ordem de

seu pai, Zeus), recorre a um sofisma (argumento aparentemente válido) ao

comunicar ao espartano que os deuses nunca prometeram apagar os seus

74

pesadelos, apenas perdoar os seus pecados. O argumento demonstra o pensar ágil

da deusa, que levando adiante o engano, incute em Kratos o sentimento daquele

que se vê trapaceado em um jogo de palavras. A Deusa da Inteligência finaliza o

diálogo com astúcia, ao oferecer ao espartano algo que ele jamais irá voltar a ter:

liberdade. No entanto, ainda que esteja dispensado de sua servidão aos deuses,

Kratos jamais estará livre dos pesadelos que o atormentam.

Terminado o diálogo entre Kratos e Atena, a narrativa em ambas as mídias (game e

romance), retorna ao “início”: de um lado, o game volta a exibir a primeira cutscene

que o leitor-jogador assistiu logo no início, de outro, o romance que retoma no

epílogo, o mesmo discurso que o leitor experiencia no prólogo. Esta é uma

característica comum em histórias épicas, repletas de monstros e deuses, em que a

narrativa pode ser iniciada pelo meio, ou como é o caso de God of war, pelo fim.

“Os deuses do Olimpo me abandonaram.” Ele [Kratos] pisa nos últimos centímetros do penhasco, suas sandálias raspam no cascalho da beirada esfarelada. Trezentos metros abaixo, bocados de nuvens giravam e trançavam uma malha de névoa entre ele e as pedras pontiagudas pelo mar Egeu (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 379-380).

As narrativas de God of war, game e livro, iniciam pelo fim. O leitor-jogador se

depara ao iniciar o game assistindo a uma cutscene em que um guerreiro está em

pé a beira de um penhasco e, decepcionado com os deuses, claramente atenta

contra a própria vida. A mesma “cena” pode ser “vista” no trecho acima.

Tanto o leitor-jogador quanto aquele que lê o romance, ao ver que o herói ao final da

história tenta o suicídio, é levado a acreditar que de fato os deuses abandonaram

Kratos, mais diretamente Atena, pelo modo incisivo com que a ela dá a notícia ao

herói, ao dizer que os deuses são sim gratos a ele, mas que não irão apagar os seus

pesadelos.

A narrativa segue (game e livro, cada qual de acordo com as características

intrínsecas de seu suporte) contando aos “leitores”, que na realidade os deuses

tinham outros planos para o espartano, já que há um trono vago no Olimpo com a

morte de Ares. Como pode ser lido no trecho abaixo, extraído do prólogo do

romance, após Atena salvar Kratos da morte por afogamento:

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“Você não vai morrer hoje, meu espartano” – diz ela, e sua voz soa como música marcial de flauta e tambores. “Os deuses não podem permitir, eu não posso permitir... que alguém que tenha realizado tal serviço pereça por sua própria mão” [...] “Zeus declarou-o digno, e você não irá negá-lo. Existe agora um trono vazio no Olimpo, meu Kratos, e eu tenho um último serviço para exigir de você. Tome essas escadas. Elas levam àquele trono vazio [no Olimpo]. Para o seu trono.” [...] “Você não deve morrer por sua própria mão e manchar o Olimpo com o seu sangue. E, assim, você está aqui. Conosco. Para sempre. É o desejo de Zeus.” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 381).

A decisão a que se refere Atena, no recorte acima, foi mesmo do Senhor do Olimpo,

do próprio Zeus, que a todo tempo esteve a um passo, manipulando, inclusive a sua

filha preferida, a Deusa da Sabedoria. Essa atitude, como explica Brandão (2015, p.

365, v. I), é conhecida como Complexo de Zeus:

Trata-se de uma tendência a monopolizar a autoridade e a destruir nos outros toda e qualquer manifestação de autonomia, por mais racional e promissora que seja. Descobrem-se nesses complexos as raízes de um manifesto sentimento e inferioridade intelectual e moral, com evidente necessidade de uma compensação social, através de exibições de autoritarismo. O temor de que sua autocracia, sua dignidade e seus direitos não fossem devidamente acatados e respeitados tornaram Zeus extremamente sensível e sujeito a explosões colérica, não raro calculadas.

O Complexo de Zeus é de tal forma evidente, como se pode entrever no trecho

abaixo:

Os outros deuses iriam protestar. Com tanta confusão no Olimpo, graças a Ares e sua desobediência, Zeus caminhava com cuidado. Ele era o Rei dos Deuses, mas nunca poderia suportar uma rebelião aberta encetada entre todos os outros deuses (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 359).

Esta tendência de monopolizar a autoridade, que caracteriza Zeus não se revela no

game, no qual o pai dos deuses figura apenas como mais um olímpico que vai em

determinado momento ao auxílio do espartano, dando-lhe mais uma arma que possa

utilizar em sua jornada. Diferentemente do que ocorre na narrativa do romance, em

que Zeus destrói qualquer manifestação de autonomia de seus “filhos”, como pode

ser visto nos dois trechos que se seguem:

“Se ele [Kratos] cuidar de Ares, pelo menos não terá mais de se preocupar com sua maldição por ter matado parentes. Se ele

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derrotar Ares, seus crimes serão perdoados. Eu [Zeus] decretei que seria assim”. “É tudo o que ele espera” – Atena disse. “Com o perdão, a sua loucura, as visões, os pesadelos vão finalmente acabar”. Zeus olhou de soslaio. “Quem lhe falou sobre seus pesadelos?” Ela olhou para seu pai. Um choque de pavor percorrer seu coração e expandiu-se para seus membros. “Pai, o fim dos seus pesadelos... é por isso que ele vem trabalhando [lutando] todos esses anos” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 371).

O fragmento acima, claramente, revela o quanto a última palavra sob quaisquer

assuntos era a de Zeus. Portanto, não foi Atena quem estava à frente da decisão de

se apagar ou não os pesadelos da mente de Kratos, livrando-o de suas terríveis

visões, ainda que a deusa, como auxiliar do herói, apareça na narrativa do game

muito mais que Zeus. Tal característica torna-se mais evidente à medida que o

diálogo entre pai e filha evolui:

“E para vingar a morte de sua família” – Zeus apontou [para a luta que ocorria entre Kratos e Ares]. “O que ele está prestes a fazer, pelo jeito que as coisas estão indo.” “A vingança é apenas uma parte da sua jornada” – Ela insistiu. “Para que serve o perdão? Ele não precisa ter seus pecados lavados, ele precisa de uma noite de sono decente!” “Talvez” – Zeus disse. “Mas o que ele precisa e o que merece não são a mesma coisa.” “Pai, você não pode balançar essa esperança na frente dele para ganhar dez anos de serviço e depois arrancá-la fora!” “Eu não balancei nada, como você diz. O que quer que tenham pechinchado entre vocês dois não é da minha conta. Há mais importância nessa luta do que você imagina (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 371).

A última frase do trecho acima cria um impasse que desestabiliza o leitor. Este que,

ao longo da narrativa, cria que a manipulação estivesse sendo desempenhada por

Atena, que parecia trazer todos à rédea de seu discurso envolvente. Entretanto esse

enunciado desvela o quanto Atena foi manipulada por Zeus para que preparasse a

morte de Ares, seu filho rebelde, aquele que não estava acatando mais o seu

comando; que ameaçava a sua dignidade, o seu direito de reinar, com poderes

ilimitados e absolutos. Assim, Zeus, extremamente sensível à questão, manipulou

Atena para que soltasse Kratos contra Ares. Ainda, Zeus aguardava o desfecho do

embate. Pois se o espartano se mostrasse digno, poderia tomar o lugar de Ares,

como se pode ler no diálogo que se segue entre Atena e Zeus:

Tudo se encaixou. A complexidade roubou-lhe o fôlego. Zeus tinha manobrado-a para que ela guiasse Kratos onde ele, o Senhor do Olimpo, pudesse provocar a morte de Ares. “O que mais, pai? O que

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mais, além de matar Ares, você planeja para ele?” “Você pensou em usar o seu mortal para realizar o seu objetivo, mas eu previa fracasso. Agora, há uma chance de que Kratos mate um deus e... realize mais.” “Uma chance” – Atena disse –, “mas não uma certeza.” Zeus não respondeu (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 360).

O enredo de God of war estrutura-se em um nexo de causa e efeito, numa linha

cujos acontecimentos vão se sucedendo em locais pré-determinados pela urgência

do que o herói tem que passar, a fim de cumprir a sua tarefa. Os espaços, portanto,

são os lugares onde os personagens agem, em que os diálogos, entendimentos e

conflitos seguem encadeando novos acontecimentos.

2.2 PERSONAGENS DO ROMANCE

Stover e Vardeman, ao transporem para a literatura a história de God of war,

apresentam ao leitor os arquétipos de personagens clássicos26 (herói, antagonista,

mentor, aliados, guardiões, etc.). A leitura do romance, em suas 383 páginas, tem no

espartano Kratos aquele que protagoniza o percurso do herói na história, o deus

Ares como seu antagonista e um sem número de personagens secundários, que se

acotovelam em 31 capítulos27, desempenhando papeis de diferentes relevos. Neste

trabalho daremos atenção ao herói e aos personagens principais da narrativa.

Os personagens, essas “massas verbais” como refere Edward M. Forster (1998, p.

44) em sua obra Aspectos do romance, não chegaram “assim frias à mente” de seus

inventores. Não foram “criadas em delirante excitação”, ao contrário, elas pertencem

aos mitos gregos, à cultura do ocidente, foram reatualizados no game e,

posteriormente, retomados pelo romance. Assim, não coube aos escritores imaginar

os personagens “do zero”, dar-lhes nomes, desse modo escolhendo também o sexo

de cada um, além de seus traços psicológicos e comportamentais. A partir dos

traços constitutivos de cada personagem mitológica, os criadores moldaram

acontecimentos da narrativa, em que esses personagens passaram a interagir entre

si e com o protagonista Kratos, em torno do qual se construiu a trama.

26 Segundo Jeannie Novak (2010, p. 157), tais arquétipos são usados em todos os meios de entretenimento para reforçar a conexão do público com a história. Ver o capítulo 1 deste estudo, item 1.4.1. 27 Não se somou ao número de capítulos mencionados, o prólogo e o epílogo, que iniciam e finalizam o romance.

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Em God of war há certos personagens que agem como aliados, ainda que o auxílio

se dê de forma velada. É o caso de alguns deuses do panteão olímpico que ajudam

o herói Kratos a cumprir a sua tarefa ao fornecer meios e armas para que ele

consiga sempre prosseguir em sua jornada a despeito das adversidades. Há

também aqueles que são facilmente identificáveis como coadjuvantes do

antagonista, razão pela qual tentam de toda sorte atrapalhar o herói. Eles antes

atuam como atores de papeis já preestabelecidos, que como personagens densos e

com desígnios próprios.

Segundo Forster (1998, p. 69) “um romance que tem alguma complexidade requer

com frequência gente plana, tanto quanto redonda”. No entanto, tal complexidade

não pode ser verificada em God of war, pelo fato de que não se encontram

personagens com sondagem psicológica, seja no game, seja no romance.

As personagens planas eram chamadas “humorous” no século XVII; às vezes, chamam-nas tipos, às vezes caricaturas. Em sua forma mais pura são construídas ao redor de uma única ideia ou qualidade: quando há mais de um fator, atingimos o início da curva em direção às redondas (FORSTER, 1998, p. 66).

Em God of war (livro/game) as personagens são urdidas em torno de traços

caracterológicos previamente apresentados ao leitor-jogador e deste pacto feito no

início das narrativas, os personagens agem na trama, conforme os papéis

estabelecidos para a moldura de cada um deles. No tocante ao romance, os

personagens planos mais importantes são: Atena, deusa da sabedoria e da

estratégia; Hermes, o mensageiro dos olimpianos; Zeus, o grande pai e senhor dos

deuses gregos; Ares, o deus da guerra; Poseidon, o deus e senhor dos mares;

Ártemis, a deusa caçadora; Oráculo, serva de Atena, senhora das visões; Afrodite, a

deusa do amor; as gêmeas Lora e Zora, filhas de Afrodite e amantes de Kratos, em

um trecho de sua jornada.

Os personagens de God of war se mostram mais alinhados com os seus próprios

interesses no romance do que no game. Aliás, na narrativa digital, os deuses, nas

vezes que interferem nos assuntos dos mortais, o fazem sempre amparados na

justificativa do bem coletivo, de um propósito partilhado que os congrega a uma

união de esforços, cujo objetivo é a continuidade da ordem instaurada, a prevalência

do Olimpo. Já na narrativa verbal, os deuses revelam as razões pessoais que os

79

movem, que os fazem interagir com outros personagens, igualmente deuses,

semideuses ou meros mortais, com a firme intenção de persuadi-los para influenciar

atitudes e, desse modo, intervir no curso dos acontecimentos em proveito próprio. O

que nos leva a refletir que, se por um lado um personagem do romance influencia o

curso dos eventos na narrativa, também ele é influenciado por tais eventos. No

game este fato não ganha todas as cores que encontramos no trecho abaixo,

extraído de um diálogo entre Zeus e sua filha, a deusa Atena, capítulo 18 do livro

(STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 246-247):

“Estou curioso, filha amada, Tenho visto você se esforçar consideravelmente para apoiar e proteger o seu animal de estimação espartano28.” “Ele é a última esperança de Atenas.” “É mesmo? E, mesmo assim, quando você intercede comigo e com os outros deuses, você nunca pede ajuda pra seus adoradores. Você diz que Kratos é a sua esperança, como ele parece ser, mas os seus poderes de persuasão e manipulação não teriam melhor uso, se você pedisse ajuda diretamente? Hefesto, por exemplo, poderia ter apagado todo o fogo com um único aceno de sua mão. Apolo poderia ter curado os seus feridos. Eu mesmo...”.

No trecho acima, dois personagens, Zeus e Atena, articulam seus discursos,

estimulados pela sequência de eventos que abatem sobre eles. Atena, sentindo-se

pressionada, decide contar a verdade a seu pai. A deusa da sabedoria, claramente

reconhecida pelos seus pares como aquela que detém os “poderes de persuasão e

manipulação”, à medida que os eventos se sucedem, ela elabora estratégias de

confrontação a Ares e discursos, como o trecho acima referido e o que segue, em

que intercede junto a Zeus, para conquistar a adesão dele à sua causa:

“Sim, pai, eu sei. Eu entendo. Como sempre, você vê mais profundamente do que qualquer outro”. Atena respirou fundo e decidiu que, nesse caso, a sua causa estaria mais bem fundamentada se, finalmente, falasse a verdade. “Meu pai e senhor, o verdadeiro alvo de Ares não sou eu, nem é a minha cidade.” Zeus olhou para ela, seus pensamentos encobertos por uma face sem

expressão. “Pai, o alvo é o seu trono!” (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 246-247).

De acordo com o que postula Forster (1998, p. 66) acerca dos personagens planos,

como se comentou, eles são construídos “ao redor de uma única ideia ou

qualidade”. Assim posto, pode-se dizer que Atena se erige a partir de sua principal

28 Zeus refere-se a Kratos, quando diz a Atena: “o seu animal de estimação espartano”.

80

qualidade, a sabedoria; em torno dessa ideia, seu traço identitário, gravita a sua

capacidade de apreender as verdadeiras intenções de Ares e construir as suas

réplicas, mediante discursos (como este que ela estabelece com Zeus) e ações – é

ela quem manipula as ações de Kratos a investir contra o deus da guerra e outros

seres mitológicos que se lhe apresentam como obstáculo aos seus planos.

Atena, na narrativa do romance, persuade vários deuses a ajudarem Kratos, e,

aparentemente, o próprio Zeus a ser-lhe solidário. Isto é, a deusa ao influenciar

certos personagens, impulsiona a ação da narrativa. Para isso, ela tece intricados

estratagemas que impactam no desenrolar da história, ajustando as ações em

acordo com a sua vontade.

O primeiro deus que ela convence é Poseidon, que presenteia Kratos, com uma

fração do seu poder, que passa a comandar as tempestades. Em seguida, Atena

também persuade Afrodite a favorecer o seu herói, por meio de um boato, que leva a

górgona Medusa à morte pelas mãos de Kratos, que em seguida utiliza a cabeça

decepada do monstro como arma. O próprio Zeus auxilia Kratos em dois momentos

da narrativa. Atena ganha também a adesão de Ártemis para a sua causa. A deusa

caçadora empresta a Kratos uma arma sem igual, a espada que Ártemis utilizou

para matar um titã.

Toda esta sequência de eventos arquitetados por Atena não ocorre na narrativa do

game. Neste ela se mostra mais prontamente como uma mentora do herói, aquela

que o guia durante a sua jornada. No romance, entretanto, ela orienta as ações de

Kratos e também age, mobilizando-se junto aos olimpianos. Como deusa da

sabedoria, aquela que conhece as estratégias de convencimento, “luta” para

persuadir outros deuses a convergir esforços para a sua causa. Ainda se observa

que no game, a narrativa conduz o leitor-jogador a imaginar que todos os deuses

que aparecem a Kratos e o assistem, assim agem porque antes houve um acordo

nesse sentido entre os olimpianos. A narrativa do romance, no entanto, desvela que

a ajuda foi construída em diferentes momentos por Atena, em conversas individuais

com os deuses Poseidon, Ártemis e Afrodite.

Este estudo entende que os personagens do romance God of war, como já dito,

considerados como planos pela forma como existem na história, podem ser

classificados em três ordens em relação à causa do herói: aqueles que são

simpáticos, aqueles que são contra, ou, ainda, aqueles que são neutros.

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Em primeiro, esta análise destaca os personagens que se mostram neutros à causa

de Kratos: o capitão do navio, personagem caricato, que de maneira mais explícita

se configura perfilado pelo humor no game, diferentemente do que acontece no livro;

as Náiades, filhas do deus Poseidon, do mesmo modo presentes nas narrativas do

game e do romance; os dois servos da Medusa, o corcunda e o cego, personagens

que aparecem na narrativa do romance, mas que foram suprimidos na do game; os

adoradores dos deuses, personagens que, se por um lado desempenham um papel

relevante nos projetos29 do deus Ares no romance, por outro, no game não passam

de vítimas que hora ou outra são mortas por Kratos, cujas espadas lhes drenam a

vida, para fortalecer o herói; função esta que o romance mantém, conforme os

trechos abaixo dele retirados:

Kratos queimava com o mesmo fogo. Cada pedaço de vida de qualquer criatura que as Lâminas retalhavam corria de volta para as correntes fundidas com os ossos de seus pulsos. As vidas roubadas carregavam o seu corpo e inundavam a sua mente com inesgotável fúria (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 45).

Ele [Kratos] voltou para a estrada até o Pártenon, cada passo mais forte que o anterior. As Lâminas do Caos, ao tomar vidas, nutriam-no e permitiam sua regeneração (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 127).

Kratos deslizou entre os ciclopes e desferiu um poderoso golpe de lâmina dupla no peito do minotauro mais próximo. Uma nova força e novo poder fluíram das correntes para seu corpo, quando as Lâminas beberam a vida do homem-touro (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 155).

Destas citações depreende-se que esses personagens têm papéis distintos nas

duas obras em exame (game e romance), no que tange ao andamento dos

acontecimentos nessas narrativas, contudo se percebe a convergência no tocante à

natureza das personagens que estão a serviço da vontade dos deuses, ou dos

propósitos do herói. No game, como se discutiu, os adoradores são manipulados

com o propósito de Ares atingir os seus fins, no romance, eles funcionam como

instrumentos para Kratos desenvolver seus superpoderes. Em ambas as situações

esses personagens estão inscritos na narrativa apresentando um comportamento

29 Ares, quando declara guerra à deusa Atenas, atacando a sua cidade, também confronta indiretamente a Zeus e assim ao próprio Olimpo.

82

neutro. Eles não agem por suas motivações, mas para atender interesses de outros

(Ares ou Kratos).

Já os personagens cuja função é existir para impedir que Kratos concretize a tarefa

que os deuses lhes deram, portanto atuam contra o herói; entre eles figuram: as

harpias; a hidra, que a contragosto do deus Poseidon em God of war aterroriza um

dos seus mares; os ciclopes, os minotauros30, os centauros, as górgonas (entre as

quais, tanto no livro quanto no game, salienta-se a Medusa); os espectros, as

sereias; e, os odiosos legionários mortos-vivos (lanceiros, espadachins, arqueiros)

asseclas implacáveis do deus Ares.

Acerca do Minotauro, assim como no game, o romance atualiza o mito

acrescentando uma diferença decisiva, pois converte o monstro em uma raça, isto é,

em um conjunto de indivíduos, a exemplo das górgonas, centauros e ciclopes,

aumentando assim a dificuldade para o herói em ambas as narrativas, como pode

ser visto no trecho abaixo:

Kratos não estava ali para salvar o povo, ele não conseguia nem olhar para eles. Antes de chegar à esquina, no entanto, ele descobriu que havia cometido um erro. Aquele não era o Minotauro; mas apenas um minotauro. A verdade lhe foi revelada pelo aparecimento de mais três imponentes homens-touro, trovejando em direção a ele com os machados em punho (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 122-123).

Por último, temos os personagens que lutam em algum momento lado a lado com o

herói, auxiliando-o em algum momento de sua jornada, entre os quais, este estudo

distingue: os guerreiros atenienses, que defendem a cidade de Atenas; os escravos

do navio que após serem salvos por Kratos passam a compor a sua tripulação; o

velho capitão ateniense que lhe indica o caminho até o ponto da cidade de Atenas

onde o herói poderia encontrar o Oráculo; o guerreiro imortal, guardião do fogo que

fica às portas do Templo de Pandora; o homem preso na gaiola, personagem

presente em ambas as narrativas, digital e verbal, que Kratos utiliza como sacrifício,

como tributo e maneira de agradar a Zeus (não antes de ouvir o que o aprisionado

tinha a dizer sobre as armadilhas espalhadas pelo interior do Templo de Pandora); o

30 Na história de God of war os minotauros são uma raça, como são os ciclopes, centauros, entre outros, divergindo assim do mito neste aspecto.

83

coveiro, Zeus disfarçado, que ajuda o herói a sair do Hades e o traz novamente à

cidade de Atenas, como se constata no recorte abaixo:

Atena escondeu o início de um sorriso. As palavras do Pai dos Céus levaram-na a uma conclusão inevitável: o próprio Zeus tinha sido o coveiro, e ele apoiou Kratos. Ela sabia que ele não poderia favorecer abertamente o espartano, por causa de seu próprio decreto. Os outros deuses iriam protestar. Com tanta confusão no Olimpo, graças a Ares e sua desobediência, Zeus caminhava com cuidado. Ele era o Rei dos deuses, mas nunca poderia suportar uma rebelião aberta encetada entre todos os outros deuses (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 359).

Mesmo Zeus correu em auxílio a Kratos, “dobrando-se” à persuasão de sua filha

Atena. Há uma diferença entre as narrativas do game e do livro em relação à

passagem apresentada acima. Na narrativa do game, fica ambígua a possível

manifestação de Zeus disfarçado de coveiro para ajudar Kratos, isto é, o leitor-

jogador não tem certeza de que é mesmo o Pai dos deuses que atua nessa ação. A

dúvida para o leitor-jogador só se dissipa em God of war: Ghost of Sparta31, quando

o coveiro é desbloqueado como personagem na arena de combate, ele se

transforma em Zeus, revelando a sua identidade. Entretanto esse mistério se dissipa

para o leitor do romance, como bem ilustrou o recorte acima, retirado do capítulo

trinta do livro.

Os personagens do romance são em número superior aos da narrativa do game, se

levados em conta ainda aqueles que não agem efetivamente na narrativa. Esses

personagens, aqui classificados como citados, assumem o papel de povoar os

diálogos, para esclarecer melhor as circunstâncias da história.

Os personagens citados comparecem nos enunciados, seja em um pensamento,

uma reflexão, seja servindo de assunto ao diálogo de terceiros. Contudo, se no

momento da leitura o personagem citado é “reconhecido” de outro texto que elucida

a sua origem, ele pode ganhar novos sentidos, graças ao repertório de quem lê.

Como é o caso de um trecho do romance, conforme abaixo:

A Deusa Atena se postou em armadura completa defronte a seu espelho de bronze polido, encaixou uma flecha em seu arco e retesou a corda vagarosamente [...] ela mirou a flecha através de sua câmara em uma tapeçaria enorme que mostrava a Queda de Troia. A

31 Outro game da Saga de Kratos, cuja história ocorre após os eventos do primeiro aqui em estudo.

84

flecha deslizou dos seus dedos e voou direta e certeira para afundar-se na figura entrelaçada de Páris. “Que herói cheio de falhas”, meditou. Ela não havia feito uma escolha tão pobre. Ela arriscou muito porque o destino do Olimpo suspendeu-se de seu equilíbrio, quando seu irmão Ares ficou fora de controle (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 10).

Pode-se inferir no recorte acima, que o herói Páris em God of war exerce a função

de personagem citado, uma vez que não tem relevância na narrativa. Aliás, ele

participa como sujeito de um pensamento que passou pela mente de Atena. No

entanto, o leitor pode vir a reconhecê-lo, como um entre os heróis da epopeia Ilíada,

onde é narrada que a sua história de amor a Helena, esposa do rei Menelau,

desconsidera a razão, negligencia o seu dever de guerreiro, de salvaguardar Troia,

ou mesmo, o leitor pode resgatar a famosa história O pomo da discórdia32. O

comentário de Atena de que Páris é “cheio de falhas” é fruto de uma avaliação da

conduta desse herói nos dois episódios. Se o fruidor lançar mão desse repertório de

leitura, o personagem Páris então ganha outra interpretação, em razão de o leitor

conhecer o hipotexto da citação e conseguir estabelecer relação entre os dois

textos. Mas se ele não decodificar a que se refere o comentário de Atena, é possível

que esse resíduo de leitura não decifrado o instigue a um movimento extratexto,

para pesquisar o significado desse juízo de Atena sobre Páris.

Genette (2006, p. 8) entende a intertextualidade como “uma relação de co-presença

(sic) entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente,

como presença efetiva de um texto em outro. Sua forma mais explícita e mais literal

é a prática tradicional da citação”.

Em um trecho do romance33, precisamente no capítulo dezoito, já comentado,

recortamos para análise um diálogo entre Zeus e Atena, em que o senhor do Olimpo

cita dois deuses, Hefesto e Apolo, que poderiam tê-la ajudado caso pedisse que

dirimissem as aflições porque passavam os adoradores da deusa em Atenas. Os

deuses Hefesto e Apolo participam do discurso entre pai e filha, como personagens

32 O pomo da discórdia é a história que dá início à guerra de Tróia. Quando os deuses se encontraram para o casamento dos pais de Aquiles, Peleu e Tétis, Éris (a Discórdia) jogou uma maçã para as deusas Atena, Hera e Afrodite, dizendo “Para a mais bela”. Ninguém queria ser o juiz, e então Zeus manda Hermes enviar as três para o Monte Ida, para que Páris o seja. Cada deusa lhe oferece um dom: Hera lhe diz que será rei de toda a Ásia, Atena lhe promete sabedoria e vitória sobre todas as guerras e Afrodite lhe oferece o amor de Helena de Esparta. Páris escolhe Afrodite (HOMERO, 2009, p. 565). 33 STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 246-247.

85

citados, enquanto que no game não há qualquer menção a eles. Hefesto e Apolo

também podem receber certa ampliação de interpretação, caso o leitor reconheça,

na leitura do referido diálogo, que há uma relação de intertextualidade com outros

discursos, como os dos mitos gregos, com os quais God of war dialoga. Nesse

processo palimpséstico, os personagens citados podem receber novos

desdobramentos de sentido.

O romance God of war é, portanto, terreno profícuo para os personagens

classificados como citados. Este estudo elenca os seguintes personagens mais

recorrentes nessa obra: os mortais Páris, Sísifo, Pirítos, Teseu e Odisseu; o

barqueiro Caronte; as górgonas Esteno e Euríale; os semideuses Hércules34 e

Perseu; as moiras; a deusa Hera; os deuses Hefesto, Hélio e Apolo; os titãs Uranos,

Atlas, Prometeu, Japeto e Epimeteu, que não cabem aqui ser desenvolvidos, para

não se distanciar do foco deste estudo.

O antagonista, Ares, no game é o deus grego que personifica a guerra. É aquele que

ataca e tenta destruir a cidade da deusa Atena, ajudado pelos seus asseclas,

criaturas geradas no próprio Hades35. Contudo, há uma importante diferença entre o

Ares do romance e o do game. Enquanto este lembra o deus imortalizado na

epopeia Odisseia, “mais bruto que inteligente”, ver Homero (2009, p. 553), aquele

utiliza uma astuta estratégia a fim de enfraquecer tanto a deusa Atena quanto Zeus,

o pai dos deuses, ao matar os seus adoradores, conforme pode ser lido nos trechos

abaixo, retirados do romance:

No passado, Ares sempre escolhera a força bruta em vez de sutileza, mas talvez ele tenha aprendido a lição. Enquanto o cerco de Atenas mostrava a raiva antiga de Ares, ele podia ter uma nova estratégia em mente. Mate os atenienses e Atenas perde seguidores. Mate o suficiente e seus adoradores a abandonarão em favor de outros deuses – e que melhor para adorar do que o Deus da Guerra, que derrotou sua deusa? (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 136).

[...] os deuses tinham necessidade de culto humano como uma árvore precisa do sol. Poderia existir um deus sem adoradores? Pelo jeito que as coisas estavam em Atenas, Kratos supôs que ele iria descobrir. O poder de Atena decairia? Será que ela simplesmente desapareceria? (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 135-136).

34 Em God of war, os autores optaram pela alcunha latina, em lugar do nome grego Héracles. 35 O nome Hades designa o deus grego, como também o seu reino. Nas palavras de Brandão (2015, p. 330, v. I), o imenso império localizado no “seio das trevas brumosas”, nas entranhada Terra, e por isso mesmo, denominado “etimologicamente” inferno.

86

Brandão (2013, p. 40, v. II) define o deus Ares como “o espírito da batalha, que se

rejubila com a carnificina e o sangue”. Mas, o antagonista do romance aqui em

estudo não luta movido apenas pela coragem cega e brutal, como lhe é a natureza.

Ao contrário, ele vai sim à guerra, enviando seu exército contra Atenas sob um

estratagema: matar o maior número possível de adoradores da deusa da sabedoria.

Assim, tanto a cidade cairia quanto ficaria enfraquecida a deusa que lhe empresta o

nome.

Kratos, por sua vez, é o protagonista, aquele incumbido pelos deuses de uma tarefa

aparentemente impossível, vencer o deus da guerra Ares. No romance ele não

apresenta diferenças sensíveis se comparado ao personagem que nos apresenta a

narrativa do game. O espartano não se desenvolve psicologicamente ao longo da

narrativa de God of war, ainda que ele seja capaz de grandes proezas, alguém

dotado de dons excepcionais, razão pela qual empresta à narrativa o seu caráter

heroico.

Kratos fez uma careta enquanto lia as palavras esculpidas. O arquiteto realmente projetou o Templo de Pandora, deliberadamente, para ter seus enigmas resolvidos pelo “mais valente herói”? Kratos bufou em desgosto. Ele não era nenhum herói, tendo cometido tantos assassinatos sangrentos, mas não encontraria sua condenação ali. Seu ódio por Ares e a promessa de os deuses apagarem seus pesadelos o levariam à vitória (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 234).

Kratos não surpreende o leitor porque é o típico herói épico, que se mantém

inalterado como personagem em ambas as narrativas, quer no game, quer no

romance. Ele é o espartano que não conhece o medo e que anseia pelas batalhas,

alguém que vive tanto pelo aço quanto pela glória. Todavia, é um herói que se move

pela raiva que o seu antagonista lhe causou e pela graça dos deuses. Kratos, por

essas razões, sabe que sem ajuda não há como cumprir sua tarefa e alcançar no

processo também a sua vingança, como se lê o recorte abaixo:

[...] um deus sem adoradores simplesmente murchava como névoa ao sol da manhã. Se tal destino se abatesse sobre Atena, a única chance de Kratos se vingar de seu antigo mestre [Ares] iria evaporar com ela. E os pesadelos continuariam, sem pausas, a despedaçar sua sanidade (STOVER; VARDEMAN, 2012, p. 136).

87

Os pesadelos, a que se refere o trecho acima, têm origem na vergonha máxima do

herói, que ludibriado por Ares, em um odioso estratagema, foi movido a matar sua

esposa e filha. Desde então, ele tem servido aos deuses do Olimpo, com o objetivo

de livrar-se dessas pesarosas lembranças. A vingança o move. Ela o fortalece assim

como mantém momentaneamente os pesadelos distantes.

Em suma, os personagens de God of war são planos e não se desenvolvem ao

longo da narrativa tanto do romance quanto do game. Conforme considerações de

Forster (1998, p. 67), eles “permanecem inalteráveis em sua mente pelo fato de não

terem sido transformados pelas circunstâncias, movendo-se através delas”. Eles não

apresentam complexidade psicológica; ao contrário, mantêm os seus traços

identitários no enfrentamento dos acontecimentos: Ares, fazendo guerra a Atena até

ser vencido pelo irascível e atormentado Kratos e este, orientado pela deusa da

sabedoria, faz o seu percurso de herói épico.

Com efeito, procuramos neste primeiro componente da ficção, os personagens do

livro, não apenas responder à primeira questão que nos coloca Coutinho (2015, p.

52) sobre quem participa dos acontecimentos em God of war, como também tecer

comparações a esse respeito entre as narrativas digital e verbal, tentando verificar

em que elas se aproximam ou se distanciam.

88

3. GOD OF WAR: A JORNADA DO HERÓI

No mundo antigo, um herói36 ganhava notoriedade e tornava-se uma lenda por meio

da tradição oral, ou seja, pelo ato de se contar histórias. Com o passar do tempo,

tais relatos prescindiram de que alguém os contasse a outros, pois a tecnologia dos

livros permitiu ao leitor ter acesso a eles por si mesmo. Atualmente, com o advento

das novas mídias37 e hipermídias38, as histórias passam, então, a ser contadas de

forma não linear, com a possibilidade de ambientes interativos, em que o ouvinte do

passado dá lugar a um jogador que interage com a narrativa. É nesse novo

ambiente, em que as novas tecnologias de comunicação e de informação também

se abrem para as possibilidades de se narrar histórias, que o Mito de Kratos39 surge,

na medida em que também narra façanhas e conta uma origem.

Há mais de meio século os eruditos ocidentais designam o conceito de mito como

uma “história verdadeira” e, não obstante, extremamente preciosa por seu caráter

sagrado, exemplar e significativo. Tal conceito é muito importante para esta

pesquisa, na medida em que, consoante Mircea Eliade (1972, p. 6), o mito é uma

realidade ‘viva’ no sentido em que fornece os modelos para a conduta humana,

conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência.

O conceito de mito neste capítulo, portanto, difere do sentido mais usual na

linguagem contemporânea que o compreende como ficção, ilusão, e, no caso da

narrativa de God of war, uma história de herói escrita como fábula, a princípio, para

um jogo de videogame que tão somente entretém o leitor-jogador.

Neste terceiro e último capítulo, o estudo irá tratar a história de God of war sem se

prender às amarras impostas pelas características das mídias em que duas

narrativas, game e livro, vieram a público. Pretende-se, portanto, verificar no fio da

história, se o caráter sagrado, exemplar e significativo que um mito encerra, pode

ser mesmo encontrado em God of war. Além disso, comparar a história,

questionando se se pode atribuir a ela, como mito, a ideia de modelo, que conduz as

36 Todo aquele que se mostra capaz de grandes feitos, não necessariamente bons. 37 O vasto campo delimitado pelas tecnologias digitais. 38 O meio e a linguagem em que esse campo se encontra. 39 Kratos, o espartano, semideus, filho de Zeus com uma mortal, é uma personagem criada para o universo do jogo God of War. Não se trata de Cratos (Poder), que na Mitologia grega é filho de Palante com Estige, cujas irmãs são: Zelo, Ciúme; Nique, Vitória; Bia, Força (BRANDÃO, 2015, p. 286, v. I).

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ações dos personagens, na medida em que lhes confere verossimilhança,

significado e valor de existência.

A respeito do mito, Joseph Campbell (2007, p. 255) afirma que ele é elaborado nos

mais amplos termos, como um modo de se olhar e perceber a vida, isto é, facilitar “o

salto” por analogia. Leia-se, como tal, a exemplo, liberar a mente para o

entendimento de eufemismos, idiossincrasias, ou ainda para a leitura e a

interpretação de metáforas complexas. Até porque as concepções conscientes dos

homens a respeito do que a vida deve ser, raramente, correspondem àquilo que a

vida de fato é (CAMPBELL 2007, p. 121). Aliás, o mito, a literatura, a arte e o culto

são instrumentos destinados a auxiliar o indivíduo a ultrapassar os próprios

horizontes, em face à agonia que experimenta ao reconhecer em vida as limitações

pessoais (CAMPBELL, 2007, p. 177).

O mito, portanto, é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser

analisada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares,

inclusive, a de explicar a “atual” ordem do mundo, uma vez que os grandes temas,

os arquétipos intemporais, assim como sua ação sobre as almas, permanecem os

mesmos (CAMPBELL, 2007, p. 137).

Acerca do conceito de mito, Mircea Eliade assim afirma:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. [...] O mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade [que] passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento [...] Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje [...] Pelo fato de relatar a gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus poderes sagrados, o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas (ELIADE, 2013, p. 11-12).

O mito de Kratos em God of war conta uma história que ocorreu num tempo

inaugural, “in illo tempore”, um tempo fabuloso em que homens viviam em meio a

monstros e deuses. É, especialmente, a narrativa de uma “criação”, conforme a

concepção de mito de Eliade que estendemos para a narrativa em exame. Esta

relata o modo como o herói Kratos, sob as graças dos deuses gregos, se tornou o

90

novo deus da guerra (passou a ser); trata do seu percurso, de um herói entre os

homens a deus do Olimpo. Na relação intertextual que se estabelece entre a

natureza exemplar do mito e a sua reatualização na história de Kratos,

observaremos que se procederá a uma subversão de conceitos míticos, como por

exemplo, um semideus, um ser não modelar, dado o componente humano que o

constitui, ser alçado à natureza divina. Este é o primeiro confronto que se instaura já

na sinopse do game.

O mito de Kratos também dá conta dos entes sobrenaturais e o que fizeram na

história; revela sua atividade criadora, na medida em que as suas obras

transformam a realidade; descreve, sobretudo, as diversas manifestações do

sagrado, isto é, as intervenções dos deuses no mundo. São mesmo as ações

impetradas pelos deuses do Olimpo em God of war que realmente fundamentam a

narrativa, criando e convertendo o mundo à semelhança do que há de ser, por meio

de seus poderes sagrados.

Um mito vem à luz a partir das aventuras de um herói. Segundo Campbell (2007, p.

40), a aventura do herói “costuma seguir o padrão da unidade nuclear”, em que há

um afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno

que enriquece a vida.

Etimologicamente, o vocábulo herói aproxima-se do indo-europeu serva, da raiz ser, de que provém o avéstico haurvaiti, “ele guarda” e o latim seruare, “conservar, defender, guardar, velar sobre, ser útil”, donde herói seria o “guardião”, o defensor, o que nasceu para servir” (BRANDÃO, 2013, p. 13).

Enquanto o herói é aquele que serve, que guarda, que defende, que vive para ser

útil, o ato de servir em si só reclama um percurso. Percurso esse que dá início às

aventuras do herói Kratos em uma época primordial, que acompanha a cosmogonia

e o triunfo de Zeus, um período de “começos”, o tempo das “origens”. Segundo

Mircea Eliade (2013, p. 21) o tempo mítico das origens é um tempo “forte”, porque

foi transfigurado pela presença ativa e criadora dos Entes Sobrenaturais, deuses.

O herói inicia suas aventuras, segundo Junito de Souza Brandão:

A partir de proezas comuns num mundo de todos os dias, até chegar a uma região de prodígios sobrenaturais, onde se defronta com forças fabulosas e acaba por conseguir um triunfo decisivo. Ao

91

regressar de suas misteriosas façanhas, ao completar sua aventura circular, o herói acumulou energias suficientes para ajudar e outorgar dádivas inesquecíveis a seus irmãos (BRANDÃO, 2013, p. 22).

Kratos, o protagonista de God of war, objeto deste estudo, atualiza o mito do herói

grego, que inicia as suas aventuras a partir de proezas comuns. A narrativa, a

princípio nos mostra um guerreiro, um capitão do exército espartano, que começa

seu comando com apenas cinquenta soldados, mas que em pouco tempo o

multiplica para milhares. Assim, ele dá início às suas proezas, a princípio comuns:

como herói de Esparta, um capitão brutal, cujas táticas eram, por essa mesma

razão, devastadoras. Logo, ele chega a uma “região de prodígios”, em que passa a

trabalhar a serviço dos deuses olimpianos, sendo que o seu triunfo decisivo foi

causar a morte de um deus e tomar-lhe o lugar no Olimpo, como o novo deus da

guerra, como será visto na análise.

De acordo com Joseph Campbell pode assim ser resumida a aventura ontológica de

um herói:

O herói mitológico, saindo de sua cabana ou castelo cotidianos, é atraído, levado ou se dirige voluntariamente para o limiar da aventura. Ali, encontra uma presença sombria que guarda a passagem. O herói pode derrotar essa força, assim como pode fazer um acordo com ela, e penetrar com vida no reino das trevas (batalha com o irmão, batalha com o dragão; oferenda, encantamento); pode, da mesma maneira, ser morto pelo oponente e descer morto (desmembramento, crucifixão) (CAMPBELL, 2007, p. 241-242).

Imagem 4 – A Aventura do Herói

Fonte: CAMPBELL, 2007, p. 241.

92

Tal como o herói mitológico formulado por Campbell (2007, p. 241) Kratos primeiro

recebe o chamado da aventura, que se segue a uma recusa até culminar no aceite.

Em seguida, ele recebe ajuda não apenas de seu auxiliar sobrenatural (Atena) bem

como de mais alguns agentes que também o auxiliam no percurso. Logo, o herói

cruza o limiar rumo a provas incontáveis, uma seguida da outra, do ventre da baleia

(a Hidra) a uma surpreendente fuga da caverna oculta (o Hades), passando por um

combate final no limiar do retorno após ter conseguido o elixir (a Caixa de Pandora).

Ele cumpre a tarefa, tornando-se então merecedor do prêmio: a sua apoteose.

Como se pode perceber, conforme exposto no parágrafo anterior, a aventura de

Kratos, o herói de God of war, segue o conceito de monomito, criado por Joseph

Campbell em sua obra O herói de mil faces. O conceito de monomito40 trata de um

padrão narrativo específico que é compartilhado pelas lendas e mitos de todas as

culturas do mundo. Campbell chama esse monomito de jornada do herói. É sobre

essa jornada empreendida pelo herói mitológico, nos moldes do monomito proposto

por Campbell, que nossas análises doravante terão como alicerce teórico.

Seguiremos essa metodologia, de que trata Campbell, no exame da narrativa do

game God of war. Nossa intenção é evidenciar que esse modelo narrativo,

compartilhado pelas lendas e mitos de todas as culturas, portanto, pode estar

presente nas obras literárias e cinematográficas e, mais especificamente, na

estrutura que dá forma aos enredos para videogames.

Jeannie Novak em sua obra Desenvolvimento de games, em seu capítulo quarto,

“Enredo: a criação de um conteúdo convincente”, dedica uma explicação minuciosa

das etapas que constituem a jornada do herói de Campbell e oferece-nos um

interessante comentário acerca do uso da sistematização do percurso do herói,

preconizado por Campbell.

Embora seja importante adotar uma estrutura tradicional para contar uma história, o uso de estruturas narrativas rígidas pode resultar em histórias tediosas e repetitivas. Em vez disso, tente encará-las como diretrizes básicas que podem ser enriquecidas (NOVAK, 2010, p. 129).

40 O termo monomito é de James Joyce, Finnegans Wake, Nova York, Viking Press, Inc., 1939, p. 581. Para Campbell, como conceito, significa a ideia de “único mito”, um modelo universal que ocorre em todas as culturas de todas as épocas. O modelo de mito cuja forma básica permanece constante.

93

Tendo como base o pensamento de Novak sobre o emprego de “estruturas

narrativas rígidas” na análise de textos, podemos dizer que God of war enriquece a

sua narrativa não seguindo apenas a estrutura tradicional como também trazendo

elementos narrativos exclusivos dos games, aspectos que iremos analisar mais à

frente. É pertinente dizer que a nossa análise ao se fundamentar no percurso do

herói proposto por Campbell, depreende do seu monomito a estrutura nos jogos.

A primeira etapa do percurso do herói em God of war é o chamado à aventura. Tal

chamado na narrativa do game ocorre em algum lugar do mar Egeo, em um barco

grego. A história anterior41, que em God of war é apresentada no início do game,

informa ao leitor-jogador que Kratos serve há dez anos aos deuses do Olimpo com o

único objetivo de que algumas lembranças terríveis de seu passado sejam apagadas

de sua memória. Esse é o seu anseio, o que o move. Cansado de tantas lutas e

tendo Kratos acordado de uma longa noite com duas mulheres à cama, em meio aos

pesadelos que o afligem, ele clama a ajuda da deusa Athena.

Ao apelar para a Athena, para que o livre de seus pesadelos, Kratos se dirige

voluntariamente para o limiar da aventura. Diante do seu pedido, a deusa da

sabedoria lhe diz que os seus pecados serão perdoados na condição de que ele

cumpra mais uma tarefa para o Olimpo: matar o deus da guerra, Ares, que está

destruindo a cidade de Atenas. Este ato tem que ser realizado por um mortal, uma

vez que Zeus havia proibido lutas entre os deuses. Tendo aceitado o chamado da

deusa da sabedoria, o herói parte para a cidade de Atenas, dando início à sua

jornada.

A cidade da deusa guerreira se configura na narrativa como o limiar da aventura de

Kratos. A cidade também é o acesso à aventura, pois é o lugar de início, de um novo

ciclo cosmogônico, que deve prosseguir não pela ação dos deuses propriamente,

que hão de se tornar visíveis durante a narrativa42, mas pela ação do herói mítico, de

caráter mais ou menos humano, por meio do qual o destino do mundo irá se cumprir

(CAMPBELL, 2007, p. 306). Em outras palavras, Kratos é o herói no universo de

41 A história anterior fornece informações sobre o que aconteceu antes do início do game. Geralmente consiste em um parágrafo breve no manual de instruções ou aparece como um bloco de texto (muitas vezes acompanhado de narração no início do game. Isso ajuda a orientar o jogador quanto à finalidade e ao tipo de ação existentes no game, em certos casos, permite que ele estabeleça vínculos iniciais com certos personagens (NOVAK, 2010, p. 132). 42 Tal como o Deus dos cristãos: “O Senhor falava com Moisés face a face, como quem fala com seu amigo.” (Exôdo 33.11).

94

God of war, um semideus chamado à aventura pela deusa Athena, portanto, aquele

que pelas ações cria uma nova realidade ao completar sua jornada. Não obstante, é

certo que Athena, sendo a deusa da sabedoria conhecia a descendência de Kratos,

uma vez que o espartano era filho de Zeus com uma mortal. Tal fato, verificado na

narrativa, não foge à tendência de se dotar o herói de poderes extraordinários desde

o momento de seu nascimento. Segundo Campbell (2007, p. 311), toda a vida do

herói é apresentada como uma grandiosa sucessão de prodígios. Isto é, parte da

concepção daquilo que o herói está predestinado a se tornar após retornar da

aventura com o elixir que restaura o mundo.

Kratos após ouvir que seus pecados serão perdoados, aceita o chamado para a

aventura.

O chamado sempre descerra as cortinas de um mistério de transfiguração, um ritual, ou momento de passagem espiritual que, quando completo, equivale a uma morte seguida de um nascimento. O horizonte familiar da vida foi ultrapassado; os velhos conceitos, ideais e padrões emocionais, já não são adequados; está próximo o momento da passagem por um limiar (CAMPBELL, 2007, p. 61).

Em God of war, Kratos é chamado à aventura e a partir do momento em que aceita

também concorda em participar de um ritual. Esse ritual dura o tempo da jornada,

equivale a uma passagem espiritual, uma vez que o homem do início terá mudado

ao final. Ao aceitar o chamado da deusa, Kratos logo enfrenta o desconhecido,

deixando para trás tudo o que lhe é familiar na vida. Ao aportar na cidade de Atenas,

o herói cruza o limiar e inicia a sua jornada rumo a uma grande mudança, pois tão

logo a tarefa dada seja completada, ele ganhará uma nova vida, ou seja, uma nova

forma de ser no mundo.

A segunda etapa do percurso do herói é a recusa ao chamado à aventura, que pode

ocorrer por motivações diversas, como o receio do enfrentamento do desconhecido,

a dor da separação do contexto familiar, entre tantas razões. Campbell aponta:

A recusa é essencialmente uma recusa a renunciar àquilo que a pessoa considera interesse próprio. O futuro não é encarado em termos de uma série incessante de mortes e nascimentos, e sim em termos da obtenção e proteção do atual sistema de ideais, virtudes, objetivos e vantagens (CAMPBELL, 2007, p. 67).

95

No seu diálogo com a deusa, o herói deixa claro a sua recusa: não propriamente ao

chamado para batalha contra um deus, mas à condição atual em que vivia. Pois,

após deixar de servir o deus Ares, Kratos passou a servir os demais deuses do

Olimpo, sob a tutela da deusa Athena, esperando algum dia que os seus pecados

fossem perdoados, de maneira que ele encontrasse a paz. Mas, passados dez anos

de servidão aos deuses, Kratos ainda tinha pesadelos horríveis. Ele não vê mais

sentido em continuar a servir sem que possa se libertar dos pesadelos que o

perseguem sem lhe dar trégua. Desse modo, a recusa é de outra ordem. Ela é

essencialmente uma recusa a renunciar ao que Kratos almeja: não sofrer mais com

os pesadelos oriundos do fato de ter matado a própria família.

A recusa de Kratos em continuar a servir aos deuses olímpicos faz com que Athena

lhe prometa o perdão para os seus pecados, conquanto ele leve a termo mais uma

tarefa, matar Ares, o deus da guerra, que não apenas representava um perigo à

cidade de Atenas, como também à soberania do próprio Zeus, o pai dos homens e

dos deuses, o senhor do Olimpo. Portanto, pode-se dizer que ainda que no

monomito proposto por Campbell a recusa do herói à aventura venha depois do

chamado, em God of war ela ocorre antes. Tal alteração da sequência da disposição

dos elementos constitutivos da jornada do herói, mostra-nos que o monomito ainda

que tenha uma forma básica, com suas etapas, ainda assim pode, cada história na

sua peculiaridade, apresentar variantes.

A jornada do herói inicia-se com o chamado para a aventura, mas após o herói ser

comunicado de sua tarefa, ele se retira da “cena mundana”, isto é, dos afazeres do

dia a dia e penetra nos domínios do desconhecido, como antídoto ao mal que se

apresenta “em favor de si mesmo” (CAMPBELL, 2007, p. 27). Em God of war, Kratos

ao adentrar a cidade de Atenas, não apenas cruza o limiar, como também, mediante

essa ação, aproxima-se do Centro do Mundo, do início da aventura – do seu ritual

de iniciação. Este centro é o lugar onde energias da eternidade (dos deuses) se

colocam em movimento no plano temporal (dos homens), para dar início ao seu

ritual de iniciação, como considera Campbell acerca do centro cósmico:

[...] o Centro do Mundo é o símbolo da contínua criação: o mistério da manutenção do mundo através do contínuo milagre de vivificação que brota no interior de todas as coisas (CAMPBELL, 2007, p. 46).

96

O herói, ao dirigir-se ao Centro do Mundo, expõe-se à força criativa de novos

acontecimentos, à causa de inúmeras e impensáveis consequências, ao lugar do

milagre da vivificação, pois a vida que há de transbordar no novo, para o bem ou

para o mal, seja de uns ou de outros, essa assim chamada vivificação, não apenas

correrá livre por todo o percurso enquanto se desenrola a narrativa, como também

terá o seu lugar no final da aventura, quando Kratos completar a sua tarefa e

“nascer” de novo.

A possibilidade da morte do Deus da Guerra, que será mais adiante discutida, tem

dupla função: de um lado liberta Kratos de sua prisão, de outro, extingue Ares e todo

o seu séquito, desencadeadores de sofrimentos humanos. Elemento que é presente

tanto no mito de Ares quanto na narrativa do game é o séquito que acompanha o

deus nas batalhas, como se pode ler no trecho abaixo:

Seus acólitos nos sangrentos campos de batalha eram: Éris, a Discórdia, insaciável na sua fúria; Quere, com a vestimenta cheia de sangue; os dois filhos, que tivera com Afrodite, cruéis e sanguinários, Deimos, o Terror, e Phobos, o Medo, e a poderosa Enio, “a devastadora” [...]. Seus demais filhos foram quase todos violentos ou ímpios devotados a uma sorte funesta (BRANDÃO, 2013, p. 4).

O caráter cíclico, a manutenção que recria o mito se manifesta na narrativa de God

of war na medida em que Kratos se aproxima do “centro vivificador” como meio de

se afastar do mundo das sombras, qual seja o terror que experiencia com os seus

constantes pesadelos, do caos em que vive, para logo renascer livre da culpa que

carrega e comungar a paz cósmica. Com a sua adesão ao ritual iniciático, Kratos é

ungido com a energia criativa e a deusa Athena, por sua vez, passa a representar a

presença que guarda “a passagem”, a figura que o tira do mundo comum para lançá-

lo no sobrenatural. Cabe a ela lhe apresentar os fatos e os perigos que enfrentará no

percurso, como também o que deve conquistar. Ela é, portanto, o “arauto”, e,

conforme Campbell (2007, p. 60), aquela cuja “crise do seu aparecimento é o

‘chamado da aventura’”, uma vez que tal fato na narrativa se manifesta de certa

maneira violenta e repentina, porque traz consigo a ruptura do equilíbrio, uma vez

que altera a realidade do herói impulsiona-o a se embrenhar em uma jornada em

razão de uma crise.

97

Se a deusa Athena é o “arauto”, aquela que conclama o herói à aventura, é também

aquela que irá ao seu auxílio, acompanhando-o em toda a jornada. Segundo Joseph

Campbell, o auxílio sobrenatural advém

Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da jornada do herói se dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião), que fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele está prestes a deparar-se (CAMPBELL, 2007, p. 74).

A narrativa de God of war mostra-nos que a deusa Athena dá a Kratos um objetivo

primeiro: encontrar o Oráculo, a vidente que lhe contará o meio para matar um deus.

Há aí um auxílio, ainda que compartilhando razões distintas, pois Kratos deseja se

ver livre dos seus pesadelos, enquanto os deuses do Olimpo, especialmente Athena,

querem a morte de Ares.

As motivações de Athena para atuar como auxiliar de Kratos não se fundam apenas

no desejo de ajudar um ser dileto. Ela é orientada principalmente pelo fato de que o

seu odiado irmão, na narrativa, está destruindo a cidade que leva o seu nome.

Situação que a deusa da sabedoria não pode permitir. Rainha das maquinações, por

isso considerada na mitologia clássica a Deusa da Sabedoria, a Athena de God of

war é igualmente ardilosa, e como não pode agir diretamente contra o irmão, envia

Kratos para combatê-lo, agindo, portanto, de forma encoberta:

O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nesta região. Ou, talvez, ele aqui descubra, pela primeira vez, que existe um poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre-humana (CAMPBELL, 2007, p. 102).

Ao se tornar a auxiliar de Kratos, a deusa treina-o, molda-o e à medida que ela o

inicia na jornada, uma relação se estabelece entre eles. Ela o atrai e o guia,

fazendo-o acessar forças que julgava não ter, sem, contudo, dar-lhe todas as

informações, dados que caberá ao herói ir descobrindo ao longo de sua jornada pela

aventura. Não obstante, a deusa é antes uma mulher:

A mulher representa, na linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que aprende. À medida que ele progride, na lenta iniciação que é a vida, a forma da deusa passa, aos seus olhos, por uma série de transfigurações:

98

ela jamais pode ser maior que ele, embora sempre seja capaz de prometer mais do que ele já é capaz de compreender. Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o prendem. E se ele puder alcançar-lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e o seu objeto, serão libertados de todas as limitações (CAMPBELL, 2007, p. 117).

Athena quando propõe a aventura a Kratos, matar um deus, termina por prometer

mais do que ele era capaz de compreender. Afinal, como poderia um mortal matar

um deus? Sob a orientação e treinamento de um deus, tal tarefa poderia ser

cumprida. A deusa da inteligência e o herói (o escolhido), juntos conseguem

alcançar o objeto de importância, a Caixa de Pandora, que contém o poder para

matar um deus e os expedientes para se libertarem de todas as limitações.

Mito ou sonho? Todo o auxílio e diálogos que Athena compartilha com Kratos, em

vários momentos da narrativa em God of war, sempre se dá por meio de uma

estátua da própria deusa. Sobre ocorrências como essa, Campbell comenta que a

manifestação do mentor ganha vida em

[...] uma atmosfera de irresistível fascínio em torno da figura que aparece subitamente como guia, marcando um novo período, um novo estágio, da biografia. O elemento que tem de ser encarado, e que, de alguma forma, é profundamente familiar ao inconsciente, apesar de desconhecido, surpreendente e até assustador para a

personalidade consciente (CAMPBELL, 2007, p. 64).

A cada aparição da deusa da sabedoria, uma nova etapa surge para Kratos, que

passa a conhecer mais do próprio percurso ainda por trilhar e como nele sobreviver.

Athena é estranhamente familiar ao herói, sem que ele saiba ao menos o porquê,

como se o seu inconsciente a conhecesse, enquanto que a sua consciência não;

esta ainda engatinha no desconhecido. Ainda assim, explica Campbell (2007, p. 76),

o herói, que estiver sob a proteção da Mãe Cósmica nada sofrerá, pois tal é o seu

poder orientador.

Tendo o herói ouvido o chamado e o aceitado, tendo conhecido o problema que

motiva a sua ação do mundo por meio do seu auxiliar, a próxima etapa no monomito

proposto por Campbell tem a ver com o enfrentamento das provas. Pois, ao cruzar o

limiar, a “soleira da porta” entre os mundos comuns e o de aventuras, a que se

refere Campbell (2007, p. 102), o herói “caminha por uma paisagem onírica povoada

99

por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve superar uma sucessão

de provas”.

Essa é a fase favorita do mito-aventura. Ela produziu uma literatura mundial plena de testes e provações miraculosas. O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região (CAMPBELL, 2007, p. 12).

O mesmo universo de intercessões do sobrenatural descrito por Campbell está

presente em God of war. Kratos desde o momento em que chega à cidade de

Atenas, caminha por um mundo de sonhos, em que o comum, o rito do dia a dia não

tem lugar. Aliás, esse novo mundo é o do sobrenatural, em que o ser não é bem o

que parece e o belo por vezes assume a forma do fatal; as mulheres tornam-se

monstros (metamorfose), os homens são como mortos-vivos ou surgem como

híbridos, metade homem e metade animal, há fantasmas e monstros, como gigantes

de um olho só. Quanto aos lugares pelos quais passa o herói, nem sempre são

cidades; a paisagem muda em meio à sucessão das horas. Em um tempo é mar de

onde emerge a Hidra; em outro, é deserto, por onde andam sem destino minotauros

e sirenes; por vezes é um colosso em pedra, um templo prodigioso alocado às

costas de um titã, cujo conjunto arquitetônico desse monumento é um emaranhado

de paredes, escadas, túneis, fossos, muros, telhados, todos partes de um lugar onde

o aparente camufla a armadilha e a morte respira em silêncio. Diante de tais provas,

animadas ou inanimadas, o herói Kratos só tem a favor o seu auxiliar sobrenatural (a

deusa Athena), que, veladamente, o ajuda por meio de conselhos, seja pelos objetos

que ela lhe dispõe (colares, chaves, alavancas, armas, etc.) ao longo do percurso,

seja pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural (o Oráculo, assim como os

demais deuses do panteão grego), que o ajudam a penetrar nas regiões mais

inóspitas e, assim, com tais recursos, sobreviver a elas.

Campbell considera que a aventura do herói tem o propósito de

chegar ao “Guardião do Limiar” na porta que leva à área da forma

ampliada. Esses defensores guardam o mundo nas quatro direções –

assim como em cima e embaixo –, marcando os limites da esfera ou

horizonte de vida presente do herói. Além desses limites estão as trevas o desconhecido e o perigo, da mesma forma como, além da proteção da sociedade, perigo para o membro da tribo. A pessoa comum está mais do que contente, tem até orgulho, em permanecer

100

no interior dos limites indicados, e a crença popular lhe dá todas as razões para temer tanto o primeiro passo na direção do inexplorado (CAMPBELL, 2007, p. 82).

Kratos também caminha nas zonas limítrofes entre a proteção e o perigo, assim

como Campbell apresenta a jornada do herói. Longe de ser um homem comum,

Kratos é recebido em Atenas e tem que superar a primeira prova: passar pelo

séquito de Ares para chegar ao Oráculo. Em seguida, ele precisa enfrentar os

perigos do Deserto das almas perdidas, que o levam a uma montanha presa às

costas do titã Khronos. Nesta montanha, um magnífico templo foi erigido para

guardar a Caixa de Pandora. O Templo de Pandora está povoado de desafios de

morte construídos pelo arquiteto dos deuses Pathos Verdes III, sob as ordens dos

três deuses irmãos: Zeus, Poseidon e Hades.

Campbell comenta que para o herói

É melhor não desafiar o vigia dos limites estabelecidos. E, no entanto, somente ultrapassando esses limites, provocando o outro aspecto, destrutivo, dessa mesma força, o indivíduo passa, em vida ou na morte, para uma nova região da experiência (CAMPBELL, 2007, p. 85).

Não bastassem as provas por que Kratos tem que passar no interior do Templo de

Pandora, enfrentar os Anéis de Pandora, espalhados na forma de armadilhas em

três níveis, cada qual com o seu desafio de morte, o herói tem ainda que oferecer

aos deuses Poseidon e Hades, sacrifícios de sangue em dois momentos da

narrativa.

Em mais de um momento, Kratos enfrenta um “Guardião do Limiar” diferente. No

mar de Poseidon, é a Hidra; no Deserto das almas perdidas, as sereias; em meio ao

desafio de Ares, o minotauro. Cada guardião defende um local, marcando o ponto

onde se encontra o herói em sua vida. Não obstante, os guardiões, a partir do ponto

onde estão, marcam também um novo horizonte a ser buscado pelo herói, na

medida em que os segue derrotando.

As provas, representadas por monstros ou armadilhas, que vão surgindo no

caminho, uma vez transpostas, permitem ao herói prosseguir em sua jornada: o

primeiro, o desafio de Poseidon, em que Kratos sacrifica um soldado enjaulado; o

101

segundo, o desafio de Hades, em que o herói oferece o sangue de centauros em

dois altares erigidos ao senhor do submundo. Estes são exemplos de tais provas.

Acerca dos sacrifícios de sangue de humanos ou animais, Eliade afirma:

Os sacrifícios humanos ou sacrifícios animais são apenas a rememoração solene do assassínio primordial [...]. As cerimônias religiosas são, por conseguinte, festas comemorativas. “Saber” significa aprender o mito central (o homicídio da divindade e suas consequências) e esforçar-se por jamais esquecê-lo. O verdadeiro sacrilégio é o esquecimento do ato divino. A “falta”, o “pecado”, o “sacrilégio” consistem em “não haver lembrado” que a forma atual da existência humana é o resultado de uma ação divina (ELIADE, 2013, p. 97).

Em dois momentos da narrativa, Kratos é levado a sacrificar humanos e centauros

(meio homens, meio cavalos) como expediente para continuar o seu caminho. Tais

sacrifícios de sangue, apresentados ao herói na forma de provas, como assevera

Mircea Eliade, são em verdade cerimônias religiosas, em que o ato em si lembra

com “especial intensidade”, o assassínio primordial. Isto é, a morte violenta de uma

divindade que, por conseguinte, se faz criadoura. Neste sentido, e imbuído desse

saber, Kratos não infringe regras desse estatuto ao produzir sacrifícios de sangue

aos deuses Poseidon e Hades. Ao contrário, ele celebra o saber de que só pode

haver vida como resultado de uma ação divina. Dito de outro modo, Kratos só pode

avançar de forma criativa de um lugar a outro, transformando acontecimentos e a

própria realidade, por intermédio de “seus sacrifícios”. Tais sacrifícios de sangue

agradam aos deuses e provam que ele não comete o pecado de “não haver

lembrado”, durante o seu percurso, que a existência humana se deve pela ação

divina e favor dos deuses a quem honra. No entanto, Kratos também subverte o

ritual iniciático previsto no universo mítico, a que comenta Eliade no recorte acima,

uma vez que ao final de sua jornada, de fato, ele irá assassinar um deus.

Campbell tece as seguintes considerações acerca das provas:

A partida original para a terra das provas representou, tão somente, o início da trilha, longa e verdadeiramente perigosa, das conquistas da iniciação e dos momentos de iluminação. Cumpre agora matar dragões e ultrapassar surpreendentes barreiras – repetidas vezes. Enquanto isso, haverá uma multiplicidade de vitórias preliminares, êxtases que não se podem reter e relances momentâneos da terra das maravilhas (CAMPBELL, 2007, p. 110).

102

Há também provas para Kratos enfrentar no “inferno grego”, quando na narrativa o

herói é enviado ao Hades por Ares, após ter vencido os perigos do Templo e

conseguido a Caixa de Pandora.

Mesmo no Hades, assim como foi no interior do Templo de Pandora, as provas

infernais obrigam o herói a concluí-las como forma de seguir o seu percurso, a fim

de chegar à Caixa de Pandora. Essas provas, por vezes, demandam que Kratos vá

ao encontro de chaves, colares, alavancas, talismãs que, uma vez recuperados ou

acionados, abrem portas, que lhe permitem avançar cada vez mais rumo ao seu

objetivo. Não obstante, enquanto Kratos avança, ele continua conquistando uma

multiplicidade de vitórias preliminares, que não apenas o fortalecem como também

fomentam a sua fúria e determinação em completar a tarefa que lhe foi dada.

Kratos, tendo aceitado o chamado de Athena para salvar a cidade da deusa faz todo

o percurso da aventura recebendo ajuda divina, dos deuses do Olimpo contrários a

Ares. E, como declara Joseph Campbell (2007, p. 71), se a personalidade for capaz

de absorver e integrar as novas forças experimentará um grau quase sobre-humano

de autoconsciência e de autocontrole superiores. E, a cada auxílio, seu poder (o

Mana) é aumentado, tornando-o quase imperecível. A esse respeito Campbell

assevera:

Os deuses e deusas devem ser entendidos, em consequência, como encarnações e guardiães do elixir do Ser imperecível, mas não são em si mesmos, o último em seu estado essencial. Assim, o herói busca, por meio do seu intercurso com eles, não propriamente a eles, mas a sua graça, isto é, o poder de sua substância sustentadora. Essa miraculosa energia-substância, e só ela, é o Imperecível; os nomes e formas das divindades que, em todos os lugares, as encarnam distribuem e representam, vem e vão. Essa é a

energia miraculosa dos relâmpagos de Zeus (CAMPBELL, 2007, p. 169).

O ritual de ofertas dadas pelos guardiões ao herói encontra-se em God of war. Um a

um, os deuses do Olimpo presenteiam Kratos com uma porção de seu próprio poder

enquanto o herói, por meio desse intercurso com os deuses, faz o seu percurso e

trilha os caminhos perigosos da aventura. Os olimpianos compartilham com o

espartano a própria essência, a “energia-substância” que os sustentam e os tornam

imperecíveis, o milagre da graça que dá forma a todas as divindades.

103

Poseidon, o deus dos mares, concede ao Espartano a sua cólera, que se manifesta

na forma de tempestades elétricas, com as quais pode eletrocutar os seus inimigos.

O deus também lhe outorga o próprio tridente, possibilitando ao herói a habilidade

de respirar indefinidamente debaixo d’água; Afrodite, a deusa do amor, que lhe

confia o poder da medusa, o que lhe permite petrificar os inimigos; Ártemis, a deusa

da natureza, concede a Kratos a sua própria espada, a lâmina que matou um titã; e,

Hades, o deus do submundo e do rio infernal, deixa a serviço do espartano um

exército de almas, um auxílio que se junta a ele e luta ao seu lado em toda a sua

jornada.

O Oráculo de Atenas também serve como aliado no percurso de Kratos, ao lhe

revelar a arma que pode matar um Deus e como consegui-la. Ele (que na verdade é

ela) atua como o “Velho sábio”, que segundo Campbell, essa entidade é

presença constante nos mitos e contos de fadas, cujas palavras ajudam o herói nas provas e terrores da fantástica aventura. É ele [o Oráculo) que aparece e indica a brilhante espada mágica [a Caixa de Pandora] que matará o dragão-terror [Ares, o deus da guerra, no caso da narrativa em exame] (CAMPBELL, 2007, p. 19).

Em síntese, o ritual de iniciação de Kratos representa, portanto, que quase todo o

panteão do Olimpo auxilia o herói e este, por sua vez, luta em nome deles.

De acordo com Campbell, os poderes divinos, procurados e perigosamente obtidos,

[...] sempre estiveram presentes no coração do herói. Ele é “o filho do rei” que veio para saber quem é e assim passou a exercitar o poder que lhe cabe – “filho de Deus”, que aprendeu a saber o quanto esse título significa. A partir desse ponto de vista, o herói simboliza aquela divina imagem redentora e criadora, que se encontra escondida dentro de todos nós e apenas espera ser reconhecida e transformada em vida (CAMPBELL, 2007, p. 42).

Kratos sempre carregou poderes divinos em seu coração, ainda que os tenha

aumentado enquanto enfrentava perigos: seja lutando contra o exército de Ares, seja

escapando das numerosas armadilhas ao longo de seu percurso heroico rumo à

Caixa de Pandora. Não obstante, como filho do rei do Olimpo, no decurso da

aventura Kratos ainda assim exercita todo o Poder que lhe é colocado nas mãos,

como fosse uma segunda natureza, personificando em seu total esplendor: a

104

imagem divina redentora e criadora, já que é seu destino salvar a cidade de Atenas

e redimir-se de sua culpa e cria-se para uma nova vida.

Ainda sobre provas e tarefas, Joseph Campbell salienta as duas mais importantes, a

saber:

A primeira tarefa do herói consiste em passar pela experiência consciente dos estágios antecedentes do ciclo cosmogônico, em percorrer retroativamente, as épocas de emanação. Sua segunda tarefa é, então, retornar do abismo para o plano da vida contemporânea, para servir na qualidade de transformador humano dotado de potências demiúrgicas (CAMPBELL, 2007, p. 311-312).

O herói que irá salvar Atenas da destruição de Ares cumpre essas empreitadas

citadas por Campbell. No que concerne à primeira tarefa, Kratos tanto passa pela

experiência de viver as provas do percurso da aventura, quanto pela sua escolha

consciente em colocar em movimento o ciclo cosmogônico, na medida em que cria

no presente, graças a sua ação, fatos que irão culminar em um futuro; e, no que se

refere à segunda tarefa, ele retorna do abismo, do inferno, para o plano da vida

transformado; ressurge fortalecido e, por esta razão, decidido a organizar os

acontecimentos, a fim de criar uma nova realidade. Afinal, do ponto umbilical,

conforme Campbell (2007, p. 323) o herói parte para realizar seu destino. Suas

façanhas fazem jorrar força criativa sobre o mundo.

Assim, Kratos, após vencer todos os desafios e cumprir as provas impostas a ele no

Templo de Pandora, chega à Caixa de Pandora, aquela que será arma definitiva.

Estando ele sob o conselho da deusa Athena, move a Caixa para fora do Templo.

Seu objetivo é levá-la até a cidade de Atenas e usá-la como arma contra Ares. No

entanto, o deus da guerra percebe que Kratos vence os horrores do Templo e que

está de posse da Caixa de Pandora. Ares, então, apanha uma coluna entre os

destroços da cidade de Atenas e arremessa-a contra o peito de Kratos, que

aparenta morrer no local. O herói é jogado no Hades pelos vários braços da morte e

antes que caia no rio Estige, consegue interromper a queda. Notemos que Kratos já

detém “forças criativas” capazes de salvá-lo. A esse respeito Campbell (2007, p.

343) afirma que o herói, sempre ávido por vida, pode resistir à morte, e adiar seu

destino por certo período. E não importa que ele seja jogado no desconhecido ou

que simule estar morto:

105

A ideia de que a passagem do limiar mágico é uma passagem para uma esfera de renascimento é simbolizada na imagem mundial do útero, ou ventre da baleia. O herói, em lugar de conquistar ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu (CAMPBELL, 2007, p. 91).

A passagem entre a vida e a morte, essa “revificação”, ocorre na narrativa quando o

espartano aplaca a força do limiar, que se apresenta a ele na forma do monstro

Hidra. Kratos mata a fera e literalmente percorre o seu ventre em busca da chave

presa ao pescoço do capitão. Ao tomá-la para si, Kratos escapa do ventre do

monstro de certo modo “renascido”, uma vez que agora é portador da chave que lhe

permite continuar o seu percurso. Em seguida a narrativa nos mostra que a queda

de Kratos rumo ao rio Estige não se conclui, porque o herói se agarra às pernas do

mesmo capitão que ele encontra no interior da Hidra e, usando-o como escada,

projeta-se para uma área segura no Hades, momento em que ele dá início à sua

fuga do inferno.

Estas façanhas heroicas levam o leitor-jogador à crise final do percurso, que

consoante Campbell

Trata-se da paradoxal e supremamente difícil passagem do herói pelo limite do retorno, que o leva do reino místico à terra cotidiana. Seja resgatado com ajuda externa, orientado por forças internas ou carinhosamente conduzido pelas divindades orientadoras (CAMPBELL, 2007, 213).

A fuga do inferno, o renascer do herói, só é possível graças à ajuda de Hades, o

deus do submundo, que o auxilia e à inestimável ajuda do coveiro, Zeus, como já

mencionado. Kratos vale-se desses auxílios na fuga de Hades, como forma de

escapar do reino mítico e retornar ao mundo dos homens.

Zeus é aquele que ajuda Kratos em sua hora de mais necessidade. Ademais,

conforme Junito de Souza Brandão (2013, p. 61, V.II), o divino se manifesta por

hierofania, isto é, camuflado, disfarçado, metamorfoseado.

No auxílio de Zeus a Kratos, há uma alusão clara à sintonia entre o herói e seu pai

divino. Pois o espartano, mesmo sem o saber, testemunha a hierofania de Zeus, a

manifestação de um deus. Ali, Zeus se coloca na narrativa transformado em um

“humilde” coveiro, de livre vontade, e com o firme propósito de auxiliar a Kratos em

sua hora mais escura. Neste momento, pode-se a aferir pela narrativa que Zeus não

106

se mostra como um deus atormentador, mas ao contrário, compassível à situação do

filho, jogado no inferno por Ares, ele o ajuda a libertar-se da morte.

Manipulando a magia, esses imortais soberanos [no caso Zeus] dispõem de outros meios mais eficazes: o dom da ubiquidade ou, quando não, do transporte imediato, a arte e a astúcia de metamorfoses ilimitadas, a capacidade de cegar, ensurdecer, paralisar os adversários e arrebatar toda e qualquer eficácia de suas armas. Daí a oposição entre deuses soberanos e deuses guerreiros [...] Zeus, desde as epopeias homéricas, opõe-se a Ares. (BRANDÃO, 2013, p. 50 v.II).

Zeus ao manipular a magia pode praticar a metamorfose quantas vezes deseja. E

por essa razão a narrativa credita a Zeus, e não a outro deus do Olimpo, a

identidade do coveiro; aquele que, por metamorfose, se apresenta a Kratos com o

firme propósito de ajudá-lo a sair do submundo. Aliás, Zeus, como afirma Junito de

Souza Brandão, menção acima, é o deus supremo que se opõe, desde as epopeias

homéricas, ao deus guerreiro Ares. Logo, é essa rivalidade que seguramente leva o

deus supremo a auxiliar Kratos contra o deus guerreiro.

Outro ponto digno de análise recai sobre a obra empreendida pelo “coveiro” na

narrativa. Afinal, um homem comum não conseguiria cavar uma cova tão funda,

desde o mundo dos homens, mais precisamente os jardins do Templo do Oráculo,

até o submundo, o reino de Hades, também conhecido como o inferno grego. Sem

dúvida, proeza digna de um deus supremo, que opera com a potência do espírito. O

ato em si é um fato inconteste de sintonia entre Kratos e seu pai.

No “limiar do retorno”, as forças transcendentais devem ficar para trás e o herói

reemerge do reino do terror (retorno). Kratos retorna do inferno, do submundo do

deus Hades, nesse ponto sem o elixir, ou mais precisamente, a Caixa de Pandora.

Mas, o retorno, a sua ressurreição, o aproxima do artefato, da arma capaz de matar

um deus. Este é o momento crucial da narrativa, em que a tensão atinge seu ponto

maior.

Preso à mão direita de Ares, que pragueja contra o Olimpo, está “o elixir” que Kratos

precisa “beber”. O herói, então, levanta a sua mão direita, que produz um raio, a

fúria de Zeus personificada, e atira-o como fosse uma lança contra as correntes que

mantêm a Caixa de Pandora em posse do deus da guerra. Com esta ação Kratos

107

consuma o seu objetivo: libera as sementes de todos os problemas e bênçãos da

existência.

O poder da Caixa de Pandora traz a benção do Olimpo, transformando Kratos em

um gigante, tornando-o mais que um mortal. A luta tem início, a batalha é difícil, mas

Kratos atravessa o peito de Ares com uma espada.

A Caixa de Pandora – essa divina dádiva dos deuses à bela mulher, preenchida com as sementes de todos os problemas e bênçãos da existência, mas que também conta com a virtude que sustenta, a esperança (CAMPBELL, 2007, p. 30).

Segundo Campbell (2007, p. 170) os mais elevados deuses podem surgir como

malignos ogros que ocultam a vida, e o herói que os engana, mata ou aplaca é

honrado como o salvador do mundo.

A figura do monstro-tirano [...] familiar às mitologias, tradições folclóricas, lendas e até pesadelos do mundo; e suas características, em todas as manifestações, são essencialmente as mesmas. Ele é o acumulador do benefício geral. É o monstro ávido pelos vorazes direitos do “meu e para mim”. A ruína que atrai para si é descrita na mitologia e nos contos de fadas como generalizada, alcançando todo o seu domínio [...] reflexos dos incontroláveis impulsos de aquisição [...] o gigante da independência autoconquistada é o mensageiro do desastre do mundo (CAMPBELL, 2007, p. 25).

Ares, portanto, erige-se na narrativa em God of war como o acumulador do benefício

geral. Assim, ele ataca a cidade de Atenas, tal como um monstro ávido por

conquistar e exigir o seu direito. O deus da guerra enxerga na conquista de uma

cidade como Atenas, o meio para acumular e expandir o seu domínio. Aliás, nada

mais caro a ele do que o deleite de se render ao frenesi da batalha, ao paroxismo

que lhe é inerente, seja pela guerra insana, seja pela oportunidade de levar guerra a

alguém. Aliás, Ares leva a ruína aonde quer que vá, tal é a sua natureza. Ele

personifica em God of war, o Ogro, o gigante e ao mesmo tempo o mensageiro do

desastre.

O tirano é soberbo, e aí reside seu triste fado. Ele é soberbo porque pensa ser sua a força de que dispõe; assim sendo, exerce o papel de palhaço, daquele que confunde sombra e substância; seu destino consiste em ser enganado. O herói mitológico, ressurgindo das trevas que constituem a fonte das formas visíveis, traz o conhecimento do segredo do triste destino do tirano. Com gesto

108

simples [...] ele aniquila essa impressionante configuração. A façanha do herói é um constante abalar das cristalizações do momento [...] A grande figura do momento existe, tão somente, para ser derrubada, cortada em pedaços e espalhada pelos quatro cantos do mundo. Em suma, o ogro-tirano é o patrono do fato prodigioso; o herói patrocina a vida criativa (CAMPBELL, 2007, p. 324-325).

Ares, como filho de Zeus, é um deus tirano por excelência e, por essa razão carrega

sem o saber o triste fado da soberba. Tal é o seu orgulho excessivo, sua arrogância

marcante, que o deus da “desgraça, violência, destruição”, também conhecido como

“o flagelo dos homens”, não encontra simpatia nem mesmo entre seus pares, como

afirma Junito de Souza Brandão (2013, p. 40-41, v. II). A deusa Hera se irrita com

ele e Athena o odeia. Quanto ao próprio Zeus, seu pai, o chama de “o mais odioso

de todos os imortais que habitam o Olimpo”. Ares figura então como o ogro-tirano,

aquele a ser destruído.

Com a morte de Ares, Kratos restaura o mundo; ao se tornar o novo deus, ele

patrocina a vida criativa. Desta forma, o ciclo da aventura se fecha sob uma

narrativa em que os mais elevados deuses do Olimpo comparecem para ajudar

Kratos contra o deus Ogro, Ares, aquele que está “ocultando a vida” da cidade de

Atenas.

Kratos, o herói que mata o Ogro, é honrado como o salvador. Segundo Campbell

(2007, p. 318) é também um momento de insuspeita glória, em que o massacre

diuturno agora é passado e o mundo entra em forma outra vez, ou seja, sai do caos

e vive sob os auspícios da paz cósmica.

Kratos faz o que parece ser o impossível, ele derrota um deus. Com a morte de

Ares, a cidade de Athenas volta a se reerguer. Mas, e quanto ao herói? O mesmo

pode ser dito dele? Conseguirá ele se reerguer? Neste ponto, a narrativa caminha

para a autoavaliação do herói. A verdade de sua condição, depois de concluída a

aventura, no entanto, faz acreditar que os deuses do Olimpo o abandonam.

Ao procurar Athena para que o livre de suas dolorosas memórias, a verdade lhe é

revelada: os seus pecados foram perdoados, mas os deuses não o libertam de seus

pesadelos, pois é vontade do Olimpo que ninguém, homem ou deus, se esqueça

das terríveis mortes que ele causou.

Ciente de que as visões de seu passado jamais o deixarão enquanto viver, Kratos

toma a decisão que o leva até o mais alto penhasco da Grécia.

109

O último ato da biografia do herói é a morte ou partida. Aqui é resumido todo o sentido da vida. Desnecessário dizer, o herói não seria herói se a morte lhe suscitasse algum terror; a primeira condição do heroísmo é a reconciliação com o túmulo (CAMPBELL, 2007, p. 339).

Tal é o seu desapego à vida, naquele momento de miseração, que o herói se atira

para uma morte certa nas águas frias do mar Egeu. Este é o caminho escolhido para

se libertar de dez anos de sofrimento, dez anos de pesadelos, reconciliando-se com

o túmulo. Com este ato ele resume a falta de sentido que a sua vida assumira até

ali; a morte é o meio para fugir à loucura.

O desfecho que parece ser inevitável, entretanto, a morte por afogamento, desvia-se

de sua fatalidade por intervenção dos deuses. Ele é resgatado das águas por uma

força que o retira dali, fazendo-o subir pelos céus, levitar como fosse uma pluma até

chegar à presença da deusa Athena.

Athena revela que os deuses têm outros planos para Kratos. Eles não podem

permitir que quem realizou tanto morra por suas próprias mãos. Afinal, com a morte

de Ares há um trono vazio no Olimpo e é preciso um novo deus da guerra.

Diante dessa revelação, as portas do céu se abrem e ele é convidado a subir as

escadas de um portal que o leva ao seu prêmio final, ao seu lugar de direito junto ao

panteão grego, como o novo deus da guerra. Mas, antes de cruzar o portal entre os

mundos dos homens e dos deuses, entre a terra e o Olimpo, Kratos recebe das

mãos da deusa da sabedoria as lâminas de Athena.

Campbell tece as seguintes considerações sobre a dádiva recebida no ritual de

passagem, asseverando que ela representa

[...] o divino relâmpago do conhecimento do princípio transcendente, que está além do reino fenomênico dos nomes e formas. Nesse momento, a situação muda. Ele [o herói] já não está preso, mas liberto, pois aquele que ele lembra ser está para sempre livre [...]. Assim ele assume um caráter divino (CAMPBELL, 2007, p. 90).

O herói que havia sido desarmado, privado de suas Lâminas do Caos, agora recebe

uma nova arma das mãos da deusa Athena, como símbolo de um novo poder, de

um conhecimento que o irá transcender em sua revelação. Ao receber as novas

espadas gêmeas, Kratos entende que a sua situação muda. Ele que se encontrava

110

preso em um estado de comiseração, agora se vê livre para assumir um caráter

divino, ser o novo deus da guerra – não sem antes passar por um rito de passagem.

Acerca dos ritos de passagem, Joseph Campbell comenta:

Os chamados ritos, ou rituais, de passagem, que ocupam um lugar tão proeminente na vida de uma sociedade primitiva (cerimônias de nascimento, de atribuição de nome, de puberdade, casamento, morte, etc.), têm como característica a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio que ficou para trás (CAMPBELL, 2007, p. 21).

Kratos ao passar pelo portal entre os mundos, leva a termo um rito de passagem,

que na prática caracteriza o seu rompimento com a sua condição mortal. Não

obstante, ele próprio, filho de um deus com uma mortal, vinha de uma “infância

miraculosa”, cercado da manifestação do divino em toda a sua trajetória. Aliás, a sua

história até o momento da sua apoteose é em verdade um símbolo do mistério

metafísico, transcendente, de redescoberta e revelação.

Essa aventura transforma-se em símbolo do mesmo mistério metafísico cuja redescoberta e revelação constituíram a própria façanha do herói [...] A infância miraculosa, por meio da qual é demonstrado o fato de uma manifestação do princípio divino imanente ter-se tornado carne no mundo e, em seguida, em sucessão, os vários papéis por meio dos quais o herói pode representar, em sua vida, o trabalho de realização do destino (CAMPBELL, 2007, p. 311).

O herói tendo sido alçado à sua nova condição divina é afastado de maneira radical

do convívio humano, de suas atividades, ou seja, dos padrões da vida mortal, de

maneira análoga a um estágio que termina e já fica para trás. Tal é o ato de se

cruzar o limiar, o umbral, que limita o antes e se abre para o que está por vir.

Ainda sobre os rituais de passagem, Joseph Campbell (2007, p. 25) considera que

as cerimônias de passe costumam ensinar que o indivíduo, efetivamente, morre para

o seu passado, vindo a renascer para um futuro nunca antes sonhado. O que

equivale a dizer que uma vez concluído o rito, o indivíduo que faz a passagem é

então privado do seu caráter de pessoa comum.

111

O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que conhecemos. E a exploração dessa dimensão, voluntária ou relutante, resume todo o sentido da façanha do herói. Os valores e distinções que parecem importantes na vida normal desparecem com a terrificante assimilação do eu naquilo que antes não passava de alteridade (CAMPBELL, 2007, p. 213).

Kratos vislumbra uma nova realidade após ter feito a passagem, pois abre-se diante

dele a visão do monte Olimpo. Nele, o céu é de um infinito azul entrecortado por

nuvens brancas, a atmosfera é de paz – muito diferente do mundo constantemente

atribulado dos homens.

O herói se detém por um instante ante a belíssima construção grega, na verdade um

palácio dourado que se agiganta bem diante dos seus olhos. Ele se sente vivo como

nunca antes, talvez porque agora pode mesmo reconhecer a própria essência.

Cada pessoa traz dentro de si mesma o todo; por conseguinte, é possível procurá-lo e descobri-lo no próprio íntimo [...] A imagem do homem que se acha no interior não deve ser confundida com as vestes que o envolvem [...] tendo descoberto o seu potencial, volta-se para dentro de si [...] O alvo não consiste em ver, mas em realizar aquilo que se é, a essência; e assim ficamos livres para vagar, como essa essência [...] Aonde quer que se vá e o que quer que possa fazer, o herói sempre se acha na presença de sua própria essência (CAMPBELL, 2007, p. 370-371).

Ao final da longa escadaria que o leva à porta principal, e depois dela, Kratos pode

sentar-se ao trono, como o novo deus da guerra. Esta é a sua essência, a do herói

beligerante, que ao viver a batalha também a personifica, já que ele próprio, a sua

essência, é a guerra.

A aventura do herói marca o momento em que este, embora ainda esteja vivo, descobriu e abriu o caminho da luz, para além dos sombrios limites da nossa morte em vida [...] O herói é aquele que desperta a própria alma [...] [em que] o sentido é a passagem do herói fenomênico para a supraconsciência (CAMPBELL, 2007, p. 256).

Kratos era dali em diante um deus, alguém que fez a passagem do fenomênico para

a supraconsciência, também uma personificação simbólica das leis que governam o

mundo. A esse respeito Campbell (2007, p. 257) comenta que eles, os deuses, vêm

à existência com a madrugada e se dissolvem com o crepúsculo. Não são eternos

no mesmo sentido em que é eterna a noite. Porém, no que concerne ao caráter

112

recriador do mito, consoante Mircea Eliade (2013), pode-se dizer que Kratos

continuará a existir enquanto mito, em todas as vezes que alguém recontar as suas

aventuras, sobre como um mortal derrotou um deus e tomou o seu lugar. Tanto o

leitor-jogador do game quanto o leitor do romance procedem à reatualização do

mito, ao ato de recontar a aventura de Kratos.

Termina assim o mito de Kratos, um registro contemporâneo, com modificações

sensíveis de um texto preexistente (ELIADE, 2013, p. 128). Esta reatualização de

uma narrativa em que o herói dotado de poderes extraordinários é modelarmente,

como assevera Campbell (2007, p. 352), como cada um de nós: não o eu físico, que

podemos ver no espelho, mas a expressão divina que se encontra em nosso íntimo.

113

CONCLUSÕES FINAIS

Uma história ao ser contada, não importa qual seja, naturalmente segue a maneira

como o seu criador decidiu organizar os acontecimentos. Os personagens

envolvidos nos eventos narrados, ao agirem e interagirem na narrativa, o fazem em

um tempo e lugar, respondendo por um determinado contexto. No corpus

examinado, essas categorias narrativas vinculam-se ao universo da mitologia grega,

relida e atualizada nas narrativas do game e do romance. Cada um desses objetos

estabelece o seu enredo e orienta-se por uma estrutura que atende às convenções e

aos meios da mídia em que foram forjados.

God of war, o game, oferece ao leitor-jogador uma narrativa palimpéstica − uma

história derivada de outra que lhe é anterior. Aquele que lê e joga God of war

percebe que a narrativa se estrutura em um nexo de causa e efeito, que gera

mudança e desenvolvimento. O leitor-jogador experiencia a história de Kratos

comandando o protagonista, que age na Grécia antiga e interage com outros

personagens da mitologia. Desta, mitos e lendas jazem em camadas sob a história

do game, ficando relegado ao conhecimento do leitor-jogador perceber esses outros

textos; verificar em que essa gama de histórias anteriores se aproxima ou se

distancia da narrativa, que é recriada enquanto o game transcorre.

Não é necessário que já se saiba dessas lendas e mitos, isto é, conhecer os

personagens, o que eles fizeram ou o que foi feito deles em outros textos para se

jogar God of war. No entanto, caso o leitor-jogador reconheça os personagens e

narrativas míticas que a tradição elaborou, a imersão, o envolvimento na história,

claramente, se dá em um nível mais profundo.

Dado o interesse do público infantil e juvenil em geral pelo modo envolvente de

apresentar o enredo no game, este se abre à possibilidade de ser bem acolhido nas

escolas, como ferramenta importante de ensino-aprendizagem, que favorece o

trabalho com essas novas conexões de leitura, tomadas como elementos de

comparação com os textos literários do cânone.

O primeiro capítulo deste estudo pautou o seu objetivo para esse fim, operando o

cotejo entre textos, e entendeu God of war como um hipertexto que tem nos textos

da mitologia grega o seu hipotexto. Da análise, constatou-se que a narrativa do

114

game God of war constitui terreno profícuo para o estudo comparado, passível de

ser reproduzido em sala de aula. Como se mostrou no exame do corpus, um texto

familiar aos alunos pode ser aproximado a outro, culturalmente relevante, como o

são os mitos gregos.

God of war, o romance, oferece ao leitor uma narrativa, do mesmo modo,

palimpéstica, em que se nota a presença de outros textos. No entanto, a análise não

apenas procurou pelas relações que a narrativa do romance estabelece com a

mitologia grega, como também entendeu e definiu como hipotexto do romance a

narrativa do game.

Aquele que lê God of war percebe que a narrativa do romance se estrutura, assim

como o game, em um nexo de causa e efeito, que gera mudança e

desenvolvimento. O leitor experiencia a história de Kratos nesse suporte tão

somente como atividade mental que recria o universo da fábula ao longo da leitura,

sem a possibilidade de intervir no andamento da história, cujo protagonista também

tem a Grécia antiga como lugar de transcurso de suas ações. Portanto, o leitor do

romance acompanha o herói interagindo com outros personagens da mitologia, mas

sem qualquer meio de interferir na arquitetura da narrativa. Eis aí o aspecto que

diferencia o game do livro, o aspecto da jogabilidade.

Assim como no game, o romance possui um sem número de mitos e lendas, que

estão em camadas sob a história, o que também é exposto ao crivo analítico do

leitor que, eventualmente, pode identificar esses outros textos e relacionar em que

esse espectro de histórias anteriores se aproxima ou se distancia da narrativa, que é

atualizada enquanto o leitor a assimila.

Do mesmo modo, não é imprescindível que se saiba dessas lendas e histórias da

mitologia grega, ou ainda, ter jogado God of war no Playstation, para se começar a

ler o romance God of war. No entanto, caso o leitor conheça os personagens e as

lendas gregas, ou mesmo tenha tido a experiência de se entreter com o game, em

uma ou várias partidas, ele entra em contato com variadas maneiras de contar uma

mesma história, interagindo de modo diverso em cada suporte.

Esta pesquisa, portanto, ao partir do estudo de uma narrativa composta a princípio

para um game, examina no segundo capítulo o romance. Depreende-se da análise

115

que este se distancia do game com relação ao número de diálogos, bem como aos

espaços em que ocorrem as ações da narrativa.

Os diálogos no game são, em razão do aspecto da jogabilidade, encontrados em

menor número se comparados com os do romance. Há no romance, portanto, a

presença de um recurso de oralidade que o game não supera, os seus diálogos, o

que consideravelmente impacta de maneira importante no aprofundamento das

informações disponíveis ao leitor a respeito da história. A exemplo, temos no game e

no livro um momento comum que é quando Zeus procura Kratos para lhe dar o

poder do raio. No romance, por meio dos diálogos, o leitor termina a narrativa

sabendo os motivos que levaram o deus a agir, no game não. Há no game apenas a

informação de que os deuses irão ajudar Kratos, porque Ares se tornou uma

ameaça. Desse recurso mais amplamente trabalhado no romance resulta uma

narrativa mais rica em informação, que propicia que o leitor se muna de mais

elementos para a recriação da história. Já no game, o diálogo atua como recurso

mínimo imprescindível para o jogador operar no sistema; a jogabilidade é o fim

último deste suporte. Entretanto, nos dois casos, não se descarta a possibilidade de

que esses leitores decifrem a relação intertextual tecida na narrativa ou que a

busquem em pesquisa no hipotexto, ou que se bastem com o que lhe é oferecido.

No que diz respeito à categoria espaço, há uma a mais na narrativa do romance, o

Olimpo. Este local, distante do plano dos homens, é fértil em diálogos, cuja

característica digna de nota tem no recurso intertextual uma constante na

construção dos sentidos em God of war, conforme referido acima.

O interesse de jovens e adultos por livros que são oficialmente adaptações de

games, do mesmo modo pode contribuir para o ensino-aprendizagem nas escolas.

Pois, como já mencionado, God of war constitui um objeto proveitoso para o estudo

da literatura comparada, em que se pode partir, em sala de aula, do conhecimento

prévio do aluno, a fim de ampliá-lo com relação a temas culturalmente relevantes,

bem como mostrar a possibilidade de conhecer como trabalhar, criticamente,

diferentes linguagens.

Por fim, ao se pensar a maneira como a mitologia grega foi reapropriada em God of

war, sobretudo, como a sua história foi adaptada de um suporte a outro, na medida

em que reavalia e transcreve o sistema narrativo do game para as estruturas

116

simbólicas do romance, provou-se nessa análise, que o monomito proposto por

Cambell está presente em ambas as narrativas aqui em estudo. Esse “único mito”, a

jornada do herói, é o que mantém inter-relacionada a linha de acontecimentos em

God of war, tanto na mídia digital quanto na verbal.

O monomito, compartilhado pelas lendas e mitos de todas as culturas do mundo,

razão pela qual é tão comum em histórias de aventura, com o desenvolvimento dos

games, passa hodiernamente a estruturar também as narrativas especialmente

criadas para esse suporte, cujo estado constante de evolução tanto se configura

quanto se inscreve por meio da palavra digital. O que desta reflexão se depreende,

que a despeito do avanço da tecnologia, que faz evoluir elementos que ajudam a

compor a narrativa de um game, como os gráficos e a jogabilidade, o modo de se

contar a história, de se urdir os acontecimentos, ainda segue a maneira clássica dos

livros.

Em suma, God of war, seja o game ou o romance, utiliza o que Huizinga (2001, p. 7)

chamou de as “caprichosas invenções da mitologia”, de uma maneira envolvente, na

medida em que recupera a tradição e proporciona àquele que experiencia a sua

história notar que nela “há um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a

brincadeira e a seriedade”.

117

ANEXOS

ANEXO A

Tabela 1 – Sumário dos planos narrativos em God of war

Fonte: elaborada pelo autor

ANEXO B

Tabela 2 – Plano dos deuses

Fonte: elaborada pelo autor

118

ANEXO C

Tabela 3 – Plano dos homens

Fonte: elaborada pelo autor

119

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