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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES URI - CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA MÁSCARAS LÍQUIDAS, VIDAS FRAGMENTADAS: MARGINALIZAÇÃO DO SUJEITO NO ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ SARAMAGO, E HOTEL ATLÂNTICO, DE JOÃO GILBERTO NOLL Mestrando: Girvâni José Sulzbacher Seitel Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula Teixeira Porto Frederico Westphalen, agosto de 2013.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

URI - CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

MÁSCARAS LÍQUIDAS, VIDAS FRAGMENTADAS:

MARGINALIZAÇÃO DO SUJEITO NO ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ

SARAMAGO, E HOTEL ATLÂNTICO, DE JOÃO GILBERTO NOLL

Mestrando: Girvâni José Sulzbacher Seitel

Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula Teixeira Porto

Frederico Westphalen, agosto de 2013.

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MÁSCARAS LÍQUIDAS, VIDAS FRAGMENTADAS:

MARGINALIZAÇÃO DO SUJEITO NO ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ

SARAMAGO, E HOTEL ATLÂNTICO, DE JOÃO GILBERTO NOLL

POR

GIRVÂNI JOSÉ SULZBACHER SEITEL

Dissertação de Mestrado em Letras - Área de Concentração Literatura Comparada, apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, sob a orientação da Profª Drª Ana Paula Teixeira Porto.

Banca examinadora

________________________________

Profª Drª Ana Paula Teixeira Porto (orientadora)

_________________________________

Profª Drª Luana Teixeira Porto

________________________________

Profª Drª Rosani Umbach

Frederico Westphalen, agosto de 2013.

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Flávio,

Se um dia a gente se encontrar e eu confessar que vi um filme tantas vezes para desvendar os olhos teus E se a gente se falar contar as coisas que viveu o que esperamos do amanhã será que pode acontecer? Pois, paralelo ao personagem, eu quis saber mesmo é de ti

Queria que fosses feliz uma água calma a inundar a sua margem de carinho um peito aberto a quem chegar

(River Phoenix, Milton Nascimento)

À memória de Flávio, meu pai. Os frutos dessa “árvore do conhecimento” são teus

também!

À minha mãe, Hedi; aos meus irmãos e às minhas irmãs; aos meus sobrinhos e

sobrinha; aos meus cunhados e cunhadas.

DEDICO

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É PRECISO AGRADECER...

À minha orientadora, profª Drª Ana Paula Teixeira Porto, pelos ensinamentos e pelo acolhimento das minhas ideias, como também pela liberdade outorgada para que eu seguisse meu caminho. Às professoras, aos professores e às colegas de turma do Mestrado em Letras pelas efetivas e oportunas contribuições para meu “amadurecimento” intelectual. À CAPES pela bolsa concedida, possibilitando a conclusão deste trabalho. À minha esposa, Letícia, pela paciência e compreensão na longa travessia da dissertação. Ao meu pai, Flávio (in memorian). Grato pelo teimoso que sou e por semear e colher comigo os meus ideais. À minha mãe, Hedi, pela serenidade no olhar e pelas palavras que me são colo. Aos irmãos e irmãs, Jair, Maicon, Lourdes e Loreci, pelo apoio e compreensão no período de afastamento em que desenvolvi esse estudo. Aos amigos-irmãos, Iader e Daiane, pelas acolhidas em sua residência. Pelos diálogos frutíferos à mesa. Pela confiança, ternura e palavras encorajadoras. À amiga e professora Nelci Müller, encorajadora persona; farol intelectual. À amiga e professora Dinalva Agissé Sousa pelo zelo, confiança e “palavras de lã”. Ao amigo Gerson Pereira pelo incentivo e confiança.

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“Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma” (In: Ensaio sobre a cegueira). “Eu não guardo nada comigo” (In: Hotel Atlântico).

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RESUMO

O estudo investiga duas narrativas da literatura de língua portuguesa, produzidas no decorrer da segunda metade do século XX, que permitem, por meio de uma leitura comparatista, o encontro de imaginários e discursos sobre a representação do sujeito. Tendo como eixos a alteridade, a fragmentação e a marginalização, a dissertação tem por objetivo analisar como se dá a representação desses elementos em Ensaio sobre a cegueira (1995), do escritor português José Saramago, e Hotel Atlântico (1989), do escritor brasileiro João Gilberto Noll. A partir de uma abordagem bibliográfica e do método da Literatura Comparada, as reflexões levam em conta textos críticos de autores que leem as obras de Saramago e Noll, bem como de críticos das áreas da sociologia, da filosofia e da literatura brasileira e portuguesa contemporânea, como Antonio Candido, Stuart Hall, Zygmunt Bauman, Terry Eagleton, David Harvey, Marc Augé, Fredric Jameson, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Alain Touraine, Nelson Brissac Peixoto, Renato Cordeiro Gomes, André Bueno, Tânia Pellegrini, Ângela Maria Dias, Regina Dalcastagnè, Lucia Helena,Silviano Santiago, Maria Alzira Seixo, Carlos Reis, Jaime Ginzburg, Sergio Paulo Rouanet, entre outros. Ainda que inscritos em culturas distintas, os textos literários de Saramago e de Noll possibilitam uma aproximação com condicionamentos de ordem social, política, econômica e cultural num contexto mais amplo, que é a globalização e suas consequências. Salienta-se que as narrativas saramaguiana e nolliana, seja na representação crítica e fragmentária de condicionamentos sócio-históricos no texto e no enfoque temático quanto nas opções estéticas, desbravam a difícil tarefa de pensar a civilidade quando se tem um mal-estar coletivo que fragmenta o sujeito em sua constituição, a ponto de marginalizá-lo. Nesse contexto, a literatura possibilita discutir e refletir acerca de como experiências sociais podem ser exploradas esteticamente pelos escritores e como estratégias artísticas podem colaborar na representação de um determinado contexto social.

Palavras-chave: Narrativas contemporâneas. Ensaio sobre a cegueira. Hotel Atlântico. Sujeito. Alteridade. Fragmentação. Marginalização.

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ABSTRACT

The study investigates the two narratives of the Portuguese Language literature, produced during the second part of the 20th century, which permit, due to a comparative reading, the meeting of imaginary as well as speeches about the representation of the subject. Having as axis the otherness, the fragmentation and the marginalization, the main goal of this dissertation is to analyze how it is the representation of these elements in Ensaio sobre a cegueira (1995), written by the Portuguese writer called José Saramago, and Hotel Atlântico (1989), written by the Brazilian writer João Gilberto Noll. From a bibliographic approach and from the Compared Literature method, the reflections take into account critical texts from authors who have read the books written by Saramago and Noll, as well as critical from the Sociology, Philosophy and Brazilian Portuguese literature areas, as Antonio Candido, Stuart Hall, Zygmunt Bauman, Terry Eagleton, David Harvey, Marc Augé, Fredric Jameson, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Alain Touraine, Nelson Brissac Peixoto, Renato Cordeiro Gomes, André Bueno, Tânia Pellegrini, Ângela Maria Dias, Regina Dalcastagnè, Lucia Helena,Silviano Santiago, Maria Alzira Seixo, Carlos Reis, Jaime Ginzburg, Sergio Paulo Rouanet, among others. Though they are in different cultures, the literary texts written by Saramago and Noll may give an approach with conditioning of a social, political, economical and cultural order in a very wide context, which are globalization and its consequences. It is important to emphasize that the saramaguiana and nolliana narratives, whether in critical or fragmentary representation of social – historical conditioning in the text and in the thematic focus as well as in the aesthetics options, grub the hard task of thinking about civility when there is a collective malaise which fragments the subject in his /her constitution, to the point of marginalizing it. In this context, literature gives the possibility of discussing and thinking in relation to how social experiences can be explored in an aesthetics way by writers and how the artistic strategies can collaborate in the representation of a determined social context.

Key-words: Contemporary narratives. Ensaio sobre a cegueira. Hotel Atlântico. Subject. Otherness. Fragmentation. Marginalization.

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SUMÁRIO

ALTERIDADES LITERÁRIAS, REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO........................09 1. TUDO QUE É SÓLIDO, DERRETE.......................................................................19

1.1 Olhares à modernidade e à pós-modernidade......................................22 1.2 Identidades movediças na modernidade líquida...................................33 1.3 Sujeito e espaço urbano: da alteridade à marginalização.....................42

2. A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO EM TEMPOS LÍQUIDOS..................................49

2.1 Como andar na cidade movediça? fragmentação e marginalização do sujeito na narrativa pós-moderna....................................................................52 2.2 O dilema da alteridade: pensar, sentir, tocar o outro.................................58

3. OS SUJEITOS FRAGMENTADOS DE ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA E HOTEL ATLÂNTICO...............................................................................................................69

3.1 José Saramago e os romances da “fase pedra”........................................72 3.1.1 Ensaio sobre a cegueira: quero ver, mas não posso.............................81 3.2 João Gilberto Noll e as narrativas líquidas..............................................105 3.2.1 Hotel Atlântico: vejo, mas não quero ver..............................................115

COMO NARRAR O OUTRO? POR UMA CONCLUSÃO DE OLHOS ABERTOS.139 REFERÊNCIAS........................................................................................................151

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ALTERIDADES LITERÁRIAS, REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO

Nu descendant un escalier nº. 2 (1912). Marcel Duchamp. Disponível em: http://www.revista. art.br/site-numero-08/trabalhos/01.htm. Acesso em: 23 ag. 2013.

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A literatura é um processo dialógico em que autor e leitor interagem a partir

do objeto-texto, possibilitando a interação de diversas e variadas vozes sociais. Ao

se referir ao contexto dialógico e polifônico sobre o qual o romance é tecido, Mikhail

Bakhtin (1988, p. 106) expressa que “todas as palavras e formas que povoam a

linguagem são vozes sociais e históricas”, sendo que até mesmo “o sujeito que fala

no romance é um homem essencialmente social, historicamente concreto”, cujo

“discurso é uma linguagem social” (BAKHTIN, 1988, p. 135).

Em Questões de literatura e de estética (1998, p. 106), o formalista russo

afirma que “o discurso romanesco reage de maneira muito sensível ao menor

deslocamento e flutuação da atmosfera social”. O discurso literário deve ser

entendido como um fenômeno social em todas as esferas da sua existência e em

todos os seus momentos (BAKHTIN, 1988, p. 71). No caso do romance, esse “deve

ser o reflexo completo e multilateral da época”, entende Bakhtin (1988, p. 201).

Assim, todos os elementos do romance, tanto em relação à “forma” quanto no que

se refere ao “conteúdo” da obra, são aspectos que acabam por ressoar o contexto

social.

Os postulados de Bakhtin servem de referência nesse estudo, pois para o

teórico russo o contexto narrativo não pode ser desassociado do discurso do “outro”.

O texto literário é uma construção dialógica, haja vista que há um cruzamento de

vozes na construção discursiva literária que sinaliza um diálogo entre a obra, a

história e a sociedade. No que abarca o romance contemporâneo1, constata-se em

sua tessitura um diálogo em que as “marcas” das experiências sociais do homem no

vórtice da sociedade globalizada não são mais que a representação de uma

realidade em que a memória e a história do sujeito não mais são valorizadas, e sim

narrativas que dão vazão a uma narrativa de um presente precário e instável e a um

futuro incerto e imprevisível.

Nesse contexto, o pensamento de Antonio Candido, em sua obra Literatura e

Sociedade (1967), faz-se necessária e oportuna. Em sua tese de cunho sociológico

a respeito da obra de arte, o crítico tece considerações sobre a crítica literária

sociológica e o modo como esta reflete na análise da obra. Candido (1967) defende

uma crítica literária que possa verificar como a realidade social se transforma em

1 O contemporâneo, nesse estudo, segue o pensamento de Karl Erik Schollhammer, que na obra Ficção brasileira contemporânea (2009), delibera sobre o termo. O contemporâneo, segundo o crítico, é uma narrativa alicerçada num “novo realismo”, com traços pós-modernistas.

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componente de uma estrutura literária, a ponto de ela poder ser estudada em si

mesma, e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função

que a obra exerce sobre o homem em sociedade.

Candido reflete sobre a relação entre sociedade e vida artística e literária por

um viés histórico. Para o autor, tanto a estrutura da obra como o contexto

sociocultural interfere no momento em que o escritor produz seu texto literário, pois

a sua busca pela “unidade” somente pode-se entender fundindo texto e contexto

(CANDIDO, 1967, p. 5-6). Isso se explica, afirma Candido (1967, p. 5-6), porque “a

arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio” e porque pode

produzir “sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e

concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais"

(CANDIDO, 1967, p. 19).

Nesse sentido, toma-se emprestada a expressão “alteridades literárias” de

Cristina Maria da Silva, que em sua tese Rastros das socialidades: conversações

com João Gilberto Noll e Luiz Ruffato (2009, p. 241), pensa como as narrativas

desses escritores vêm marcadas pelo espaço onde se configuram, bem como são

marcadas pelas temporalidades que as tornam possíveis e que de alguma maneira

exprimem. Segundo Silva (2009), as “alteridades literárias”’ são os confrontos do

cotidiano e que auxiliam a pensar que nos rastros da literatura se esboça uma

“leitura” do homem e seu contexto social.

Consoante isso, muitas das narrativas produzidas nas quatro últimas décadas

no Brasil e em Portugal vêm percorridas pelas incertezas do cotidiano, propondo ao

leitor uma viagem sem destino certo, em que as incertezas se acentuam quando o

que se tenta realizar é uma cartografia do homem e do espaço que habita. Nessa

perspectiva, o estudo investiga duas narrativas da literatura de língua portuguesa,

produzidas no decorrer da segunda metade do século XX, que permitem, por meio

de uma leitura comparatista, o encontro de imaginários e discursos sobre a

representação do sujeito2 nos dois romances, escolhendo-se como eixos: alteridade,

fragmentação e marginalização.

Para tanto, toma-se como corpus de análise os romances Ensaio sobre a

cegueira, publicado pelo escritor português José Saramago em 1995, e Hotel

2 Consoante ao sujeito no cenário social, cultural, econômico e político da contemporaneidade, usa-se no estudo o pensamento de Alain Touraine, que em Crítica da modernidade (2002, p. 244), lembra que “a crise da modernidade marca a separação daquilo que estivera tanto tempo unido, o homem e o universo, as palavras e as coisas, o desejo e a técnica”.

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Atlântico, de 1989, publicado pelo escritor brasileiro João Gilberto Noll. As obras

procedem uma leitura do homem contemporâneo. E, assim, pelos meandros da

literatura, leem, também, a face da História recente contemporânea, uma vez que o

homem é um ser social, e o romance é um produto estético que dele emana.

Na literatura portuguesa, o conjunto da obra de José Saramago (1922-2010),

tem merecido uma constante atenção por parte dos críticos literários e do meio

acadêmico devido à confluência entre História e ficção que organiza a maior parte

de sua produção romanesca. O escritor português conheceu a fama e o

reconhecimento a partir de 1991, quando recebeu o prêmio da Associação

Portuguesa de Escritores (APE), com o romance O Evangelho Segundo Jesus

Cristo. Pelo conjunto de sua obra, recebeu, em 1995, o prêmio “Camões”; e, em

1998, foi agraciado com o prêmio “Nobel de Literatura”.

Para esse estudo, opta-se por textos que fazem uma leitura crítica da

narrativa saramaguiana publicada a partir de 1995. Isso porque o escritor mesmo

proferiu em palestra proferida em Turim, em 1998, que sua obra pode ser vista sob

dois momentos distintos: a fase “estátua” e a fase “pedra”. Por sua vez, nessa

dissertação interessa a fase “pedra”, que corresponde ao interno da estátua, que

segundo Saramago (1998, s/p), é “a tentativa de entrar na pedra é como quem diz

entrar no mais profundo de nós”.

Os romances da fase “pedra” têm como características uma linguagem

discursiva mais próxima da oralidade, em que a pontuação convencional de diálogos

é descartada para dar lugar a um discurso mais fluido, vindo a configurar num traço

estilístico do romancista. Além disso, as narrativas escritas a partir de 1995 trazem

também a discussão sobre os mal-estares que assolam a Humanidade,

representados através do recurso à alegoria, em que Saramago mantém seu viés

humanístico visível na fase “estátua”, porém visto sob um prisma atual.

Ensaio sobre a cegueira (1995), romance da “fase pedra”, já foi abordado sob

diversos aspectos, contudo continua sendo para os críticos e leitores uma fonte

inesgotável de perguntas e respostas. Na narrativa, o “olhar” é o centro dos debates,

e uma das principais articulações e discussões que esse texto possibilita é a

reflexão sobre o dilema da alteridade no mundo contemporâneo. Numa sociedade

em que impera o culto à imagem e o fetichismo, o romance possibilita discutir sobre

algumas questões, como: O que é ver? O que é viver sob o olhar do outro quando

não se tem o sentido da visão? Como “aprender” a olhar o outro quando se está

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impossibilitado pela cegueira? Interrogações como essas possibilitam “ler” o

romance em questão levando em conta tanto a possibilidade como a não-

possibilidade dos sujeitos manterem contatos e relacionamentos estáveis e

duradouros.

Essa narrativa relata a história de uma cidade acometida por uma epidemia

de cegueira tenebrosa e repentina. Um homem comum, num dia comum, está

parado no sinal de trânsito com seu carro à espera que este abra. Ao tentar dar

partida no veículo, percebe que está cego. Simultaneamente, os habitantes da

cidade, um após outro, vão perdendo a visão. Com o intuito de manter a ordem e

evitar contágios, o Estado, representado pela força militar, decide confinar os cegos

num manicômio abandonado. Com isso, desde o confinamento à exclusão dos

vitimizados pela cegueira, tem-se caracterizado o caos social e a marginalização dos

sujeitos, levando à reflexão sobre a condição humana no mundo pós-moderno.

Na literatura brasileira, João Gilberto Noll (1946 – Porto Alegre, RS) vem

chamando atenção da crítica e do público leitor na prosa ficcional depois de 1970 no

Brasil. Foi com a coletânea de contos O cego e a dançarina (1980), que o escritor

despontou no cenário cultural, conquistando prêmios como “Revelação do Ano” da

Associação Paulista dos Críticos de arte, “Ficção do Ano” do Instituto Nacional do

Livro e o “Prêmio Jabuti” da Câmara Brasileira do Livro. O escritor gaúcho é autor

dos romances A fúria do corpo (1981), Bandoleiros (1985), Rastros do verão (1986),

Hotel Atlântico (1989), O quieto animal da esquina (1991), Harmada (1993), A céu

aberto (1996), Canoas e marolas (1999), Berkeley em Bellagio (2002), Mínimos

Múltiplos Comuns (2003), Lorde (2004), os contos que integram o livro Máquina de

ser (2006) e Acenos e afagos (2008).

Nas narrativas de Noll, a individualidade e as relações de alteridade se dão

pelo esvaziamento e renúncia de relações “sólidas” para com o outro. Não diferente

ocorre em Hotel Atlântico (1989), em que a personagem protagonista narra suas

errâncias em sua busca de algo que ele mesmo não consegue nominar. No

romance, a construção das personagens se dá pelo anonimato, pela solidão, pela

ausência de contatos físicos duradouros. O andarilho, sem afeto e sem objetivos a

alcançar em sua transitoriedade, parte dos lugares em que chega, sem criar raízes

ou vínculos afetivos com ninguém. Essa personagem faz de suas flaneries vivências

destituídas de qualquer enriquecimento cultural, social e afetivo, elementos caros a

um tempo em que olhar o outro com solidariedade é quase que impossível.

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O andarilho, personagem protagonista da narrativa nolliana, caracteriza o

sujeito que cultiva as incertezas do momento presente e que, simplesmente, deixa a

vida acontecer. Por isso, nenhum lugar o prende, tão pouco consegue e quer manter

relacionamentos duradouros, por isso está sempre partindo. O fato de que essa

personagem vaga sem rumo e sem paradeiro abre perspectivas para que se “leia”

esse sujeito que está “fora”, à margem, vagueando nas fronteiras da pós-

modernidade, sem almejar conhecimento, bens materiais ou afetos verdadeiros e

recíprocos.

As experiências do narrador-protagonista são anuladas pela sua condição de

desterritorialização, o que impossibilita que ele consiga historiografar. Assim, tem-se

caracterizado a efemeridade, a precariedade e a instabilidade do sujeito que,

fragmentado, só tem o tempo presente – o instante, o agora – em detrimento da

história e da memória como rastro de sua existência. É na pluralidade de

desdobramentos no circuito pós-moderno que o narrador-protagonista de Hotel

Atlântico é estruturado. Personagem fragmentada em sua constituição, que assoma

como um sinônimo de inadequação do sujeito com a realidade contingente,

cambiante e em constante transformação.

A leitura dessas narrativas possibilita entrever aspectos em comum,

possibilitando uma aproximação temática que revela similitudes quanto à

inconstância dos sujeitos nos espaço urbanos, elemento que caracteriza

relacionamentos instáveis e fugazes que expõem os mesmos à marginalização. A

leitura dos artigos, dissertações e teses feitas até o momento chamam atenção para

a inconstância, instabilidade e precariedade das personagens tanto de Ensaio sobre

a cegueira como de Hotel Atlântico.

No que tange aos problemas que instigam a lançar mão dos romances

supracitados, alguns pontos são obervados. Primeiro, em que aspectos Ensaio

sobre a cegueira e Hotel Atlântico dialogam entre si no que consiste em apontar

para a fragmentação das personagens em seus diferentes contextos culturais? Em

segundo, em que pontos das narrativas tem-se o entrecruzamentos dos discursos

ficcional e histórico, podendo, assim, elencar aproximações entre a criação estética

literária e a realidade social do Brasil e de Portugal? Em terceiro, quais fatores

intrínsecos aos romances possibilitam perceber aproximações que convergem para

o dilema da alteridade, da fragmentação e da marginalização das personagens?

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Nesse sentido, ao passo que o estudo busca entender a paulatina

fragmentação do sujeito no espaço urbano mediado pela globalização, também

opera na direção de se buscar entender o homem em suas vivências sociais e como

elas, em detrimento da experiência, ocasionam a desconstituição do “eu” e,

consequentemente, sua marginalização. Ainda, o estudo busca compreender o

romance como fenômeno e reflexo direto da instabilidade que se tornou a vida do

homem no contexto urbano da pós-modernidade.

Touraine (2002) destaca que a ideia de sujeito não pode ser separada da

ideia de relações sociais. No contexto da pós-modernidade, o sujeito tanto sofre

como transforma seu entorno social. Com isso, “a cultura pós-moderna rejeita antes

de tudo a profundidade, isto é, a distância entre os sinais e os sentidos”

(TOURAINE, 2002, p. 266), levando ao extremo a supressão do sujeito e a

substituição do objeto no lugar do mesmo. No entanto, cabe aqui uma ressalva. Não

é do âmbito dessa pesquisa discutir os possíveis aspectos que movem a

contemporaneidade rumo a uma classificação como pós-moderna. Por outro lado, é

possível afirmar que as mudanças nas sensibilidades culturais interferem de maneira

incisiva no fazer literário de Saramago e Noll.

Tendo como enfoque os romances de Saramago e Noll, o objetivo geral do

estudo é verificar como se dá a representação da alteridade, da fragmentação e da

marginalização do sujeito em Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico. Os objetivos

específicos buscam dar suporte ao objetivo geral para alcançar os propósitos dessa

dissertação.

O primeiro objetivo específico destaca os eventos que caracterizam as

mudanças sociais das sociedades portuguesa e brasileira a partir de 1970, para

compreender o diálogo que os romances selecionados estabelecem em seus

contextos e como esses condicionamentos interferem na construção das

personagens.

O segundo objetivo delineia aspectos formais e temáticos em que os

discursos da ficção e da história contemporânea aproximam-se na forma de um

discurso referencial entre os campos da criação artística e da realidade. Com base

nos romances objetos de análise, o terceiro objetivo específico busca nas narrativas

em questão os fatores que apontam para o processo pelo qual o sujeito é

fragmentado em sua constituição e fragmentado.

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No que tange ao quarto objetivo específico, o trabalho visa discutir o modo

como as personagens das narrativas de Saramago e Noll possibilitam ou não o

estabelecimento de contatos e vínculos sociais estáveis e duradouros. Por sua vez,

o quinto objetivo específico identifica nas narrativas a representação de sujeitos

postos à margem do sistema elitista e opressor.

No sexto objetivo específico busca-se discutir como a alteridade e a

marginalização do sujeito são construídas no espaço urbano, lugar privilegiado como

cenário de degradação social, econômica e cultural na pós-modernidade. O último

objetivo específico desse estudo compara dois romances de países distintos – Brasil

e Portugal – publicados depois de 1970, buscando, em Ensaio sobre a cegueira e

Hotel Atlântico, os diálogos que esses textos estabelecem com seus contextos de

produção no âmbito social, econômico, político e cultural.

Tendo por objeto de análise essas duas narrativas de língua portuguesa, é

possível apontar um caminho interpretativo de cunho comparatista, o qual pode ser

desenvolvido a partir das relações entre literatura, História e sociedade. Isso porque

é recorrente nas experiências das personagens das narrativas a desconstituição da

identidade – metaforizada na cegueira das personagens da narrativa saramaguiana

e nas errâncias do andarilho do romance nolliano –, o que acarreta a representação

de sujeitos fragmentados no contexto da alteridade, levando à marginalização do

sujeito.

Por isso, a escolha de Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico como objetos

desse estudo, já que ambas narrativas tratam do desencantamento do sujeito em

uma “modernidade líquida”3. São romances que narram a transitoriedade absurda de

vidas insuladas pela solidão e precariedade no contato com o outro (alteridade),

mostrando imagens distorcidas que são simulacros dos espaços urbanos que

organizam a cartografia pós-moderno da cidade. Além disso, esses textos literários

remetem o leitor a uma necessária reflexão a respeito do cotidiano das grandes

cidades, pois narram histórias que não conhecem outro final senão o da

fragmentação do eu. Destarte, são obras que se justificam tanto pela densidade

crítica e valor expressivo que têm na produção literária dos escritores quanto sua

3 As definições e explicações sobre o termo “pós-modernidade” seguem no capítulo 2, mais especificamente. No capítulo 1, a definição segue a definição de Zygmunt Bauman, que contrapõe a “modernidade líquida” (atualidade) à “modernidade” iniciada com a Revolução Industrial, no século XIX, até a década de 1970, data que é o divisor de águas entre modernidade e pós-modernidade para esse estudo.

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receptividade pelo público leitor e crítica. Além disso, ler e analisar duas obras, uma

portuguesa e outra brasileira, permite ver a conformidade de temáticas e aspectos

estruturais que vêm à baila com sua leitura.

Ainda que inscritas em culturas distintas, os textos de Saramago e de Noll

possibilitam uma aproximação com condicionamentos de ordem social, política,

econômica e cultural num contexto mais amplo, que é a globalização e suas

consequências. As narrativas desbravam a difícil tarefa de pensar a civilização

quando se tem um mal-estar coletivo. Possibilitam, assim, discutir e refletir acerca de

como experiências sociais podem ser exploradas esteticamente pelos escritores e

como estratégias artísticas podem colaborar na representação de um determinado

contexto social.

A abordagem, leitura e análise dos romances Ensaio sobre a cegueira e Hotel

Atlântico são feitas, principalmente, baseados nos textos de alguns teóricos que

trazem subsídios para que os objetivos do estudo sejam alcançados e que são

destacados na estruturação dos capítulos da dissertação. Nesse ínterim, o estudo

está estruturado da seguinte forma.

O primeiro capítulo apresenta três seções. Na primeira seção faz-se uma

leitura do círculo de ideias circunscritas à modernidade, em que a retomada do

pensamento de alguns autores mostra-se imprescindível para uma compreensão

mais aprofundada dessa época que implicou transformações radicais no espaço

físico das cidades como também no tipo humano. Para cumprir esse propósito, usa-

se no primeiro tópico as ideias de Charles Baudelaire (1985, 2010), Walter Benjamin

(1989, 1994), Marshall Berman (1986), Anthony Giddens (1991) e Bauman (1999,

2001, 2008a, 2009).

A segunda seção trata das identidades fragmentadas no âmbito da

modernidade líquida, em que são usados textos de Giddens (2002), Stuart Hall

(2005) e Bauman (1998b, 2001, 2005) para esclarecer a questão. A terceira seção

encerra o primeiro capítulo e trata da alteridade e da marginalização do sujeito no

contexto da cidade. Usa-se, para tanto, as ideias de Augé (1994), Adorno (1994),

Bauman (2004, 2006b), Boaventura de Sousa Santos (1995), Ester Limonad (2000),

Gomes (1994, 2000), K. Lynch (1999), Canclini (1999), Hall (2005) e Nelson Brissac

Peixoto (1987).

O segundo capítulo da dissertação está estruturado em duas seções. A

primeira seção pondera discussões sobre a narrativa e a representação da cidade

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como “lugar” da fragmentação e marginalização do sujeito. São utilizadas as

referências de Gomes (1999), Fredric Jameson (2004), André Bueno (2002), Roland

Barthes (1985), Rejane C. Rocha (2011), Tânia Pellegrini (1996, 2002) e Ângela

Maria Dias (2005). Para discorrer sobre o dilema da alteridade no espaço urbano e

como a narrativa produzida no Brasil e em Portugal depois de 1970 trata dessa

questão, a segunda seção lança mão das ideias de Regina Dalcastagnè (2003,

2007, 2008), Lucia Helena (2008), Silviano Santiago (2002), Seixo (1986), Ernesto

Sabato (2003), Theodor Adorno (1983, 1994), Barthes (2002), Nelson Brissac

Peixoto (1987), Jaime Ginzburg (2004), Michel Maffesoli (1984), Maurice Merleau-

Ponty (1994), Augé (1994) e Bauman (1998a, 1998b, 2001, 2004, 2008).

O terceiro capítulo da dissertação está estruturado em três seções. A primeira

seção disserta acerca do diálogo da literatura com a sociedade, com destaque ao

espaço urbano e à liquidez dos seus sujeitos. A segunda e a terceira seções fazem

uma leitura analítico-interpretativa dos romances Ensaio sobre a Cegueira e Hotel

Atlântico. Nessas seções, levam-se em consideração os eixos temáticos alteridade,

fragmentação e marginalização, que balizam a leitura das narrativas, em que esses

eixos são relacionados com o pensamento dos muitos sociólogos, filósofos e críticos

da cultura contemporânea elencados no decorrer da dissertação em Letras.

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1. TUDO QUE É SÓLIDO, DERRETE

Homens derretendo. Disponível em: www.papodepsicologo.com/2010/ 10/lacos-fragilizados.html. Acesso em: 16 mai. 2013.

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A pós-modernidade, época que recebe muitas denominações, como

sociedade pós-industrial, sociedade das mídias, sociedade da informação,

sociedade high-tech e similares, promove uma mudança radical na estrutura da

sociedade global, fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,

sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que eram a base sólida para o sujeito no

curso de sua vida social.

Sérgio Paulo Rouanet, em As razões do Iluminismo (1987), disserta acerca

das nuanças que permeiam os debates a respeito da pós-modernidade. Para o

crítico, a pós-modernidade se manifesta, inicialmente, no plano do vivido, através de

“um novo cotidiano, qualitativamente diferente do que se caracterizava a

modernidade” (ROUANET, 1987, p. 233). Esse cotidiano se caracteriza pelo apogeu

da informação em detrimento da máquina, a fábrica foi trocada pelo shopping center

e, o que mais se acentua nessas mudanças, é que os contatos de pessoa a pessoa

foram substituídos pela relação mediática.

O mundo social, enfatiza Rouanet (1987, p. 233), se “desmaterializa, passa a

ser signo, simulacro, hiper-realidade”, consequentemente, o sujeito pós-moderno

mostra-se fragmentado em sua constituição. Ele é “esquizoide, é permeável a tudo,

tudo é demasiadamente próximo, é promíscuo com tudo o que toca, deixa-se

penetrar por todos os poros e orifícios” (ROUANET, 1987, p. 234).

Sintomaticamente, a fragmentação do sujeito se dá numa época permeada por

simulacros, pluralidades, antagonismos, fetiches e mal-estares de toda ordem.

A condição fragmentária do ser humano não escapa às contingências de uma

existência que Zygmunt Bauman, em Vida Líquida (2009, p. 19), vê como uma “vida

líquida que significa constante autoexame, autocrítica e autocensura e alimenta a

insatisfação do eu consigo mesmo”. Na sociedade atual, o sujeito padece de ideias

geniais que possam suprir suas carências afetivas, e substitui sua falta de projeto de

vida pelo consumo de objetos e imagens. Por isso o advento da sociedade líquido-

moderna, na visão de Bauman (2009, p. 19), veio a significar “a morte das principais

utopias sociais e, de modo mais geral, da ideia de ‘boa sociedade’”.

Numa época sem respostas, o que o sujeito faz com as perguntas? É sempre,

a posteriori que se faz possível um balanço dos acontecimentos que marcaram um

povo, uma nação, uma cultura. Atualmente, difícil compreender e captar o mundo

contemporâneo em sua totalidade, pois a história, seja coletiva ou individual,

apresenta-se fragmentado em tempos aclamados como pós-utópicos. Nesse

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contexto, o termo “pós” é assunto pertinente no meio acadêmico, ora suscitando

dúvidas quanto à sua especificidade, ora ascendendo chama pelos mais entusiastas

que falam em sua defesa.

No rol dos debates, uma questão se torna pertinente: Mas e depois do “pós”,

o que vem? Nesse sentido, a observação de Jean Baudrillard (1990) é oportuna

numa época em que as utopias e a fé numa sociedade mais justa e igualitária

caíram por terra. Em A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos

(1990), o filósofo liga a modernidade à orgia, expressando que:

[a] orgia é o momento explosivo da modernidade, o da liberação em todos os domínios. Liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação da mulher, da criança, das pulsações inconscientes, liberação da arte. Assunção de todos os modelos de representação e de todos os modelos de anti-representação. Total orgia de real, de racional de sexual, de crítica e anticrítica, de crescimento e de anti-crescimento. Percorremos todos os caminhos da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. O que fazer após orgia? (BAUDRILLARD, 1990, p. 9).

O filósofo lança mão dessa pergunta para caracterizar o atual estado das

coisas, e sinaliza que tudo o que é liberado está fadado à substituição, como

também vive sob o signo da indeterminação crescente e do princípio da incerteza

(BAUDRILLARD, 1990, p. 10). Esses elementos vão ao encontro de uma cultura

voltada ao simulacro, consequência direta da tendência que a sociedade tem de

deixar os mecanismos da vida humana nas “mãos invisíveis” do mercado que, sob a

gerência de mentes hábeis e oportunistas, fazem crer que vive-se num tempo em

que a liberdade e as possibilidades conferem a todos direitos e prazeres iguais.

Bauman, em Modernidade e Holocausto (1998a, p. 32), revela o surgimento

de um novo tipo de incerteza, que não está “limitada à própria sorte e aos dons de

uma pessoa, mas a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de

viver nele”, bem como “os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira

de viver”. Nesse contexto, a condição humana deve ser pensada à luz de uma

época em que um mal-estar paira silenciosamente entre os sujeitos, onde não há

mais, recuperando a expressão popular, aquela “luz no final do túnel” que possa

servir de guia ao sujeito em sua trajetória social.

As transformações atingiram sua voltagem máxima, havendo a perda da

experiência e da tradição em detrimento da descoberta do novo e da busca

incansável pelo progresso. Com isso, os laços humanos mostram-se frágeis, e o

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sujeito precisa de uma constituição heroica para, dia após dia, firmar sua identidade

ou “construir” uma nova, para não se tornar obsoleto, e ser esquecido pela

sociedade alienada e fetichista.

Na modernidade, a figura do sujeito foi neutralizada no interior de um discurso

de verdade que o tomou como personagem anônimo da História, mero enunciador

de um saber construído fora do seu corpo e de sua subjetividade. Em nome da

verdade, o sujeito moderno não foi considerado; logo, o mesmo adentrou às portas

do século XXI e pagou um preço relativamente caro para poder “consumir” as

novidades e outras promessas que vieram inclusas ao “pacote” da modernidade.

Com o “derretimento” das bases sólidas, instalou-se um conflito existencial e

um enfrentamento entre sujeito e sociedade, causando a oscilação entre o “ser” e o

“ter”: o primeiro, apreciado numa esfera de espaço e tempo; o segundo, esmaecido

pelas forças das esferas (social, cultural, política, econômica), que se revelam

superiores e tendem à fragmentação do “eu”. Com isso, tudo é, à primeira vista, um

déjà vu sonoro, um campo de debates genuinamente complexo, polissêmico e

polifônico que gira no vórtice da globalização.

Se as bases sólidas da modernidade derreteram, como caracterizar o atual

momento social, político, econômico e cultural da sociedade? Assim, antes de lançar

um olhar sobre questões relevantes à fragmentação do sujeito pós-moderno, faz-se

necessário realizar um balanço da modernidade, evento iniciado no século XVII.

Mister lembrar que embrenhar-se pelos caminhos tortuosos da modernidade é uma

tarefa árdua devido à profusão de conceitos, ideias, fatos históricos, manifestações

artísticas e literárias alusivos ao período.

No círculo de ideias circunscritas à modernidade, a retomada do pensamento

de alguns autores é imprescindível para uma compreensão mais aprofundada dessa

época que implicou transformações radicais no espaço físico das cidades como

também no tipo humano. Para cumprir esse propósito, usa-se no primeiro tópico as

ideias de Charles Baudelaire (1985, 2010), Walter Benjamin (1989, 1994), Marshall

Berman (1986), Anthony Giddens (1991) e Bauman (1999, 2001, 2008a, 2009).

1.1 Olhares à modernidade e à pós-modernidade

Foi à luz do dilema que discute tradição versus modernidade que Charles

Baudelaire, em O pintor da vida moderna (2010), edição póstuma, discute questões

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relevantes de sua época. Às portas da modernidade, a arte desse período era

baseada na cultura renascentista. Baudelaire (2010, p. 14) refere-se à pintura para

enfatizar que “[o] passado é interessante não só pela beleza que lhe souberam

extrair os artistas para os quais ele era o presente, mas também como passado, por

seu valor histórico”, e conclui que:

[o] mesmo se passa com o presente. O prazer que extraímos da representação do presente deve-se não apenas à beleza de que pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente (BAUDELAIRE, 2010, p. 14).

Valorizando tanto o passado como o presente, Baudelaire não apenas

discorreu sobre a questão como apontou exemplos da arte moderna. O poeta cita a

obra do aquarelista Constantin Guys (1805-1892) como ícone da época. Nas

palavras finais do ensaio, Baudelaire assinala o que para ele é a modernidade:

[...] o Sr. Guys tem um mérito profundo. [...] Ele cumpriu, deliberadamente, uma função que outros artistas desprezaram e que cabia sobretudo a um homem do mundo cumprir; ele buscou por toda parte a beleza passageira, fugaz, da vida presente. O caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar a modernidade (BAUDELAIRE, 2010, p. 87).

A modernidade é, pois, a beleza passageira e fugaz da vida presente. O

poeta francês foi o primeiro a viver esse tempo e soube como ninguém interpretá-lo,

tanto que lê-lo é ir na direção desses sinais e da própria condição histórica, tão

intrinsecamente relacionada com a modernidade.

Ao lançar mão da arte de Guys, o poeta francês depreende que há uma

oportunidade histórica que fortalece a necessidade de não só mais olhar para a vida

moderna, mas também de pintá-la. Para ele, o pintor da vida moderna é,

[...] um ser urbano, ‘grande amante da multidão e do incógnito’, que ‘mergulha na multidão como num imenso reservatório de eletricidade’, como ‘um espelho tão imenso quanto esta multidão; como um caleidoscópio dotado de consciência que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e a graça cambiante de todos os elementos da vida, [...] sempre instável e fugidia (BAUDELAIRE, 2010, p. 30).

A modernidade em sua fase sólida tem na obra do escritor francês um caráter

substantivo. Significa uma nova era que imprime um novo modo de viver, cabendo

ao pintor da vida moderna, ao artista, ao intelectual a função de percorrer a cidade

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com o intuito de expressá-la por meio da arte, como fez Guys. Baudelaire permitiu,

ainda, produzir uma obra poética que expressa claramente o que é a modernidade.

Não há como ler As flores do mal (1985) sem perceber a crítica baudelairiana

à sociedade de seu tempo, em que o processo acelerado de modernização incute no

sujeito novos jeitos de pensar e agir dentro de uma Paris que rapidamente é

transformada pelo engenho humano4. Há na obra uma galeria de versos que

abordam o clássico motivo da fugacidade humana: diante do desassossego

efêmero, do progresso5 acelerado, das mudanças intermináveis que transformam

fisicamente a cidade e, até mesmo, o jeito de ser dos corações urbanos, que se

tornam instáveis.

Para Baudelaire, a modernidade é a reconstrução e a afobação da

humanidade na grande metrópole de Paris oitocentista. Não há nada mais moderno

que a vida nas grandes cidades6, e a essa modernidade está intimamente ligada à

noção de conflito, “[a] modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente. E esse

elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes, não se tem o

direito de desprezá-lo ou de dispensá-lo” (BAUDELAIRE, 2010, p. 35).

As flores do mal (1985) são reflexo de um poeta que vê, sente e vive no novo

espaço urbano de Paris sob fortes traços da modernidade: a mudança na

arquitetura, a maquinaria nas fábricas, o êxodo rural, a lotação do espaço citadino, o

comércio, o culto ao novo e a fragmentação das relações humanas. O poeta observa

as ruas de Paris, seus habitantes – velhos, trabalhadores, prostitutas – e tenta

apreender e retratar esse novo espaço urbano7.

Da modernidade oitocentista adentra-se na modernidade do século XX. Para

Walter Benjamin, a (im)possibilidade da produção estética na modernidade é um dos

4 A estrofe do poema O Cisne ilustra essa questão: Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história / Depressa muda mais que um coração infiel); / Paris muda! Mas nada em minha nostalgia / Mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados, / Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria (BAUDELAIRE, 1985, p. 327-328). 5 Na visão benjaminiana, o fato de Baudelaire ter se colocado hostilmente contra o progresso constituiu-se condição imprescindível para que pudesse dominar Paris em sua poesia: “É muito importante que o ‘novo’ em Baudelaire não preste nenhuma contribuição ao progresso. É sobretudo, a crença no progresso que ele persegue com seu ódio como se ela fosse uma heresia, uma falsa doutrina e não um erro habitual” (BENJAMIN, 1989, p. 177). 6 A literatura modernista nasceu na cidade e com Baudelaire, principalmente na descoberta deste poeta de que as multidões significam solidão e que os termos multitude e solitude são intercambiáveis para um poeta de imaginação fértil e ativa deste poeta (KIRCHOFF, 2004). 7 Para Marshall Berman, o poeta de As flores do mal pôde ver-se não só como um espectador, mas como participante e protagonista dessa tarefa em curso; seus escritos parisienses expressam o drama e o trauma aí implicados. Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos (BERMAN, 1986, p. 143).

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pontos de sua preocupação teórica. A partir da segunda década do século XX, o

filósofo germânico faz dessa questão um tema fecundo para reflexão. Sua época

aproxima da época de Baudelaire, tornando “sua” modernidade contígua à do poeta,

e assim compartilhar das inquietações presentes nos poemas baudelairianos.

O pensador germânico não ficou alheio a essa questão crucial da

Humanidade, que foi a tematização da experiência moderna do sujeito em

sociedade. Essa experiência é entendida como “experiência vivida no choque”,

legado de um período da história que é perpassado por um sentimento ambíguo,

tecido duplamente pelo fio de um horror e de um encantamento. O horror

representado nas formas degeneradas e decadentes do flâneur, da prostituta, da

mercadoria, da moda; o encantamento construído sobre a compreensão da

decadência, da morte, das ruínas da história.

Benjamin (1994, p. 93) observa que na modernidade o sujeito, alheio à

história, se revela como fatalidade. Ao fazer uma leitura do quadro Angelus Novus,

de Paul Klee, o filósofo expressa que o sujeito moderno deu as costas à tradição,

pois acreditava que fugindo e negando o passado poderia ser feliz dentro da

tempestade que é o progresso8. A Tese IX formulada por Benjamin em Sobre o

conceito da história (1994), reafirma o descrédito com relação ao seu tempo, pois

esse é um contexto histórico repleto de valores relativos, em que a incerteza e a

insegurança rompem com qualquer possibilidade de uma vida futura estável.

Benjamin (1994) vislumbra no declínio da experiência o surgimento de uma

gama de novas narrativas, que estão relacionadas ao tempo cindido industrial, com

seu apelo no consumo e na efemeridade das coisas. O sociólogo germânico teceu

suas teses diante de uma experiência arruinada [entenda-se a modernidade] e em

crise, em que o progresso vem diretamente ligado à catástrofe. Nessa direção, a

dualidade entre experiência e vivência é uma das noções capitais para que se

entenda a teoria da cultura do filósofo. A experiência (Erfahrung) está relacionada à

8 Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994. p. 226).

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memória individual e coletiva, ao inconsciente, à tradição, ao passo que a vivência

(Erlebnis) relaciona-se à existência privada do homem, à sua solidão, ao choque.

Tendo por base os termos “vivência” e “experiência”, Benjamin (1994)

elaborou um balanço a respeito da modernidade, em que a concepção do presente

está impregnada pela noção de progresso histórico, quadro este intensificador do

afastamento crescente da consciência do presente em relação ao passado. O tempo

do progresso rege a modernidade; é um tempo efêmero, fluido: é o tempo da

vivência que habita o âmbito privado, que faz com que cada sujeito se torne cada

vez mais alienado de si próprio e da sociedade da qual faz parte, impossibilitando,

progressivamente, a obtenção de uma imagem de si ou de uma experiência no

sentido pleno.

Benjamin (1994) busca compreender a modernidade e lança mão da ideia de

presente intensificado para se referir à noção de um tempo que não escoa, fato que

torna o passado debilitado e o futuro ausente, em nome do retorno do sempre igual,

o tempo da repetição, da mesmice. A modernidade, pautada na busca pela

novidade, pelo novo, e amparada na rotina maçante em que não há o partilhamento

de experiências, não permite ao sujeito acabar aquilo que iniciou.

Na mesma esteira de Benjamin, só que não apresentando uma visão tão

pessimista a respeito da história moderna, Marshall Berman (1986) trata das

influências da modernidade. Ao deliberar acerca dos prós e dos contras da vida

moderna, o autor cita três elementos distintos – modernização, modernidade,

modernismo – que andam juntos, mas que devem ser vistos separadamente do

ponto de vista analítico.

Para o autor de Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da

modernidade (1986), ser moderno:

[...] é encontrarmo-nos em um meio-ambiente que nos promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo – e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos (BERMAN, 1986, p.15).

A modernidade é a experiência simbólica e sensorial da modernização.

Berman reconhece que ainda que essa época seja uma experiência vital através do

tempo e espaço que une a raça humana, essa experiência é paradoxal, pois

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“despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e

contradição, de ambiguidade e angústia” (BERMAN, 1986, p. 15).

Destarte, para falar desse paradoxo, o crítico argumenta que o turbilhão da

vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes. Cabe, aqui, citá-las:

[...] grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão (BERMAN, 1986, p. 16).

A conhecida metáfora9 de Marx – “Tudo que é sólido desmancha no ar” –,

alude à crise dos referenciais, à implosão das certezas, ao desvanecimento dos

parâmetros de crença e sustentação do sujeito e da sociedade capitalista. Nesse

contexto, a reação é em cadeia: o modelo econômico medieval, a razão iluminista,

os paradigmas estéticos, filosóficos, religiosos não dão mais conta da sociedade e

do homem do século XIX.

Se a visão bermaniana fala de influências que a sociedade viveu com o

desenvolvimento da modernidade, Anthony Giddens fala de consequências. Em As

consequências da modernidade (1991), o autor refere que

[...] “modernidade” refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial (GIDDENS, 1991, p. 11).

9 Berman enfatiza o contexto paradoxal da aventura moderna, trabalhando com o pensamento dialético herdado à Ideologia alemã e inspirado pelo Manifesto Comunista de Marx, claramente referendado no título do seu livro: “Em nossos dias, tudo parece estar impregnado de seu contrário”. E mais adiante: “todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar (MOORE, 1888, p. 475-6, apud BERMAN, 1986).

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A modernidade foi construída sobre o solo fértil da liberdade e promessa de

oportunidades iguais para todos. Contudo, isso acarretou consequências, que,

segundo Giddens (1991), fizeram com que o homem moderno tivesse que “inventar”

tradições e romper com a “tradição genuína”, isto é, aqueles valores radicalmente

vinculados ao passado pré-moderno.

O autor desenvolve uma interpretação “descontinuísta” do desenvolvimento

social moderno. Conforme Giddens (1991, p. 15-16), é preciso capturar a natureza

dessas descontinuidades para poder analisar o que é realmente a modernidade e

diagnosticar suas consequências para a época presente. Para identificação dessas

descontinuidades que separam as instituições sociais modernas das ordens sociais

tradicionais, deve-se observar algumas características, como a) o ritmo da mudança

– as mudanças em todas as esferas, em condições de modernidade, acontecem

numa velocidade extrema; b) o escopo da mudança – as interconexões de diferentes

áreas, geram ondas de transformação social que penetram o mundo todo; e c) a

natureza intrínseca das instituições modernas - a modernização não transcorre de

maneira única e uniforme pelas diversas regiões do globo.

A modernidade, neste sentido, expressa descontinuidade, a ruptura entre o

que se apresenta como o “novo” e o que persiste como herança do “velho”. Para

entender a modernidade, Giddens (1991, p. 16) expressa que alguns fatores devem

ser levados em consideração. A saber: a) ruptura com a ideia de comunidade e

passagem à ideia de sociedade (dividida em interesses conflitantes, classes

antagônicas e grupos diversificados); b) ruptura com a ideia e a prática teológico-

política do poder político encarnado na pessoa do dirigente e passagem à ideia da

dominação impessoal ou da dominação racional, isto é, nascimento da ideia

moderna de Estado.

Ainda que se lance um olhar promissor sobre a interpretação descontinuísta,

Giddens alerta que não basta inventar novas palavras para explicar este

redemoinho, mas sim olhar com atenção a própria modernidade e analisar os

resultados, pois “estamos alcançando um período em que as consequências da

modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes”

(GIDDENS, 1991, p. 12-13).

Vive-se uma época marcada pela desorientação. A modernidade transformou

as relações sociais e também a percepção dos sujeitos e coletividades sobre a

segurança e a confiança, bem como sobre os perigos e riscos do viver. Nas

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condições da globalização, há um mal-estar que alcança a todos, pois a sensação

de insegurança estende-se desde a maior cidade a menor comunidade, que o

progresso (ainda) não alcançou.

Os modos de vida produzidos pela modernidade, explica Giddens (1991, p.

14) “nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma

maneira que não tem precedente”. Por isso, a experiência da modernidade em

tempos globais colocou por terra as certezas, em que confiança versus risco,

oportunidade versus perigo são características paradoxais e permeiam todos os

aspectos da vida cotidiana. Ninguém, absolutamente ninguém, pode estar

completamente de fora diante das condições adversas que esse período

proporciona. Ser moderno é estar ciente das surpresas e dos riscos que estão

sempre à espreita, e planejar o futuro é uma impossibilidade caso o sujeito acredite

que ele deva ser planejado, levando em conta a construção histórica que alie

passado e presente.

Ao se posicionar sobre o fenômeno modernidade, Bauman observa que os

valores modernos derreteram. Em Modernidade e Ambivalência (1999, p. 14), o

sociólogo lembra que “a existência é moderna na medida em que contêm a

alternativa da ordem e do caos”. A modernidade sólida é caracterizada pela ideia do

projeto através do qual pretendia controlar, através do ordenamento racional e

técnico, o mundo pela razão. Com esse escopo, são dois os elementos através dos

quais o projeto moderno seguia caminho: os Estados-nações e a ciência.

Nesse ornamento, o Estado

[...] fornecia os critérios para avaliar a realidade do dia presente. Esses critérios dividiam a população em plantas úteis a serem estimuladas e cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas ou arrancadas (BAUMAN, 1999, p. 29).

Na mesma direção, a ciência não era menos importante. Segundo o

sociólogo:

[a] ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de conquistar a Natureza e subordiná-la às necessidades humanas. A louvada curiosidade cientifica que teria levado os cientistas ‘aonde nenhum homem ousou ir ainda’ nunca foi isenta da estimulante visão de controle e administração, de fazer as coisas melhores do que são (isto é, mais flexíveis, obedientes, desejosas de servir) (BAUMAN, 1999, p. 48).

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Se a modernidade sólida foi a tentativa de controlar o mundo, eliminando toda

e qualquer espécie de ambivalência, a modernidade líquida10 é o mundo em

descontrole. Percebe-se que a ordem já não perdura entre os objetivos do projeto

moderno, e a crise do pensamento racionalista exige uma nova sensibilidade, em

que pensamento e emoção formem um novo paradigma que contemple e abrigue as

complexidades dessa “cultura de risco” da qual fala Giddens (1991).

Nesse sentido, um “mundo líquido” é a ideia que Bauman desenvolve ao

lançar um olhar nada confiante sobre o tempo da contemporaneidade. Expressões

como “modernidade líquida”, “vida líquida”, “tempos líquidos”, firmaram-se como

títulos de livros, e buscam trazer à lume a interpretação de uma época permeada por

incertezas, angústias e desafios. O autor defende que a atual sociedade global

passou do estágio da modernidade “sólida” para a modernidade “líquida”, fato que

se deu a partir da liquefação dos sólidos conceitos do passado, como valores e

crenças, que eram o alicerce da sociedade até então tida como modelo.

A liquidez fez “escorrer” a ambivalência para dentro de todos os setores da

sociedade. Hoje, percebe-se que a economia se desterritorializou. O trabalho, antes

localizado e vigiado em grandes fábricas, agora é flexível, pois não depende mais da

produção de bens materiais e nem da localidade onde são produzidos. A fluidez

também atingiu o poder, que não depende mais da localidade: o controle pode ser

feito à distância.

Em Vida Líquida (2009), Bauman destaca que o século XX trouxe à baila as

contradições que a modernidade não conseguiu resolver em sua trajetória. Se com a

modernidade o sujeito vive às custas da idealização e projeções futuras, no contexto

da modernidade líquida, cabe a ele habituar-se a um tempo que exige uma

sucessão de reinícios. A vida nessas condições é uma vida precária, vivida em

condições de incerteza constante (BAUMAN, 2009, p. 8). A liquidez e suas

características determinantes, fluidez e adaptabilidade, são qualidades que a

sociedade enaltece, pois crê que é necessária a mudança de forma para que o

sujeito se adapte a qualquer situação adversa.

Se a modernidade oferecia um leque de ideologias fortes, sustentáveis, que

fomentavam uma segurança existencial ao sujeito que nela confiava, na sociedade

10 A expressão “pós-modernidade” tem em “modernidade líquida”, de Bauman, seu equivalente. Nesse trabalho, não é considerado a modernidade em termos de superação (um período já ultrapassado), apenas procura-se marcar no mundo contemporâneo as diferenças em relação aos pressupostos modernos.

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líquido-moderna não é mais assim. Tendo “derretido tudo que era sólido e profanado

tudo que era sagrado, a modernidade introduziu a era da permanente desarmonia

entre as necessidades e as capacidades”, observa Bauman na obra A sociedade

individualizada: vidas contadas e histórias vividas (2008a, p. 79-80).

O atual período da sociedade globalizada demarca a fragmentação das

estruturas “sólidas” da sociedade, aquelas que por muito tempo serviam de alicerce

cultural, institucional e psicológico para a formação das identidades. Os laços sociais

derreteram, tornando-se fluídos como os líquidos. Tem-se, então, instaurado a

“liquidez” das formas de vida, caracterizando a sociedade líquido-moderna, que é:

[...] uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir (BAUMAN, 2009, p. 7).

Para certificar isso, Bauman observa que tudo na contemporaneidade é

fluído, porque os líquidos não fixam o espaço, nem tampouco prendem o tempo,

como também não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos

a mudá-la. O sociólogo utiliza de modo metafórico o termo “líquido” para caracterizar

o processo de despersonalização do sujeito em sociedade. Os líquidos estão

associados à mobilidade e à inconstância, e podem mover-se facilmente. Tem-se a

passagem dos estágios da modernidade “sólida”11 para a “líquida”, caracterizando a

liquefação dos sólidos conceitos do passado, como valores e crenças, que

edificavam o modelo de sociedade até então visto.

Para ilustrar o “derretimento dos sólidos”, o sociólogo lança mão da alegoria

do “cadinho”, que é o traço permanente da modernidade. Em Modernidade Líquida

(2001), o autor refere que esse traço distintivo alude a um novo sentido:

Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro (BAUMAN, 2001, p. 12).

11 Trata-se de uma apropriação do conceito de “derreter os sólidos”, apresentado pelo Manifesto Comunista: forma pela qual o espírito moderno se dirigia à sociedade, considerada rija e inflexível para a necessária adaptação aos novos tempos.

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Essa discordância dá margem para que se perceba a diluição das promessas

“sólidas” da modernidade, embasadas na ideia de uma sociedade para todos. Agora,

o homem experimenta a fluidez e a volatilidade do tempo, em que as inúmeras

esferas da sociedade atual – vida pública, vida privada, relacionamentos humanos –

passam por uma série de transformações, cujas consequências esgarçam o tecido

social. Tais alterações, fazem com que as instituições sociais percam a solidez e se

liquefaçam, tornando-se amorfas, paradoxalmente, como os líquidos.

Na modernidade líquida, a liquidez e a fluidez são as características

determinantes, pois são enaltecidas pela sociedade que considera necessária a

mudança de forma para a adaptação a qualquer situação adversa. Como fruto dessa

liquidez que permite a adaptação e dificulta a sedimentação, o que resulta em um

crescente individualismo presente em todas as esferas da sociedade.

Bauman (2001, p. 8) explica que “os sólidos suprimem o tempo; para os

líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa”. A modernidade líquida traz à tona

os modos pelos quais o sujeito experimenta uma outra compreensão da realidade,

assim como vivencia situações marcadas pela individuação diante de uma

vertiginosa realidade, que é veloz, instável e precária. Tem-se, então, a “liquefação”

do projeto moderno, caracterizando a dissolução das forças ordenadoras que

permitiam ativamente reenraizar e reencaixar os antigos sólidos em novas formas

sociais modernas.

A sociedade do século XXI não é menos moderna que aquela que adentrou

no século XX. Ela é somente moderna de um modo diferente, pois oportuniza ao

sujeito o status de emancipação tão almejado. O que a faz tão moderna, ressalta o

sociólogo polonês, é a

[...] compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou de criatividade destrutiva, se for o caso: de ‘limpar o lugar’ em nome de um ‘novo e aperfeiçoado’ projeto; de ‘desmantelar’, ‘cortar’, ‘defasar’, ‘reunir’ ou ‘reduzir’, tudo isso em nome da maior capacidade de fazer o mesmo no futuro, em nome da produtividade ou da competitividade) (BAUMAN, 2001, p. 36).

Nessa linha de pensamento, são duas as características que fazem com que

a modernidade líquida seja vista com um olhar diferenciado. A primeira é o rápido

declínio da antiga ilusão moderna, resumida na crença que há no fim do caminho

percorrido um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser

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atingido amanhã, algum tipo de sociedade boa, justa e sem conflitos (BAUMAN,

2001, p. 37).

A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e

deveres diários. O que antes era visto como algo a ser realizado pela coletividade,

agora está fragmentado, ou seja, individualizado (BAUMAN, 2001, p. 38). Com isso,

ao tempo que o sujeito sente que a época propicia mais liberdade, sente também

que as responsabilidades que lhe cabem são imensas. Assim, ele precisa “moldar-

se” para estar à altura do esperado e poder fluir e escorrer tranquilamente pelos

“mares”, ora caudalosos ora turbulentos, da sociedade líquido-moderna. Nesse jogo

de sensações entra a problemática do sujeito.

O sujeito da modernidade líquida está fragmentado na sua condição de

cidadão pleno. Isso leva, consequentemente, a ponderar a discussão sobre a

questão do declínio das velhas identidades produzidas na modernidade sólida. A

seção que segue trata das identidades fragmentadas no âmbito da modernidade

líquida. Usa-se Giddens (2002), Stuart Hall (2005) e Bauman (1998b, 2001, 2005)

para esclarecer a questão.

1.2 Identidades movediças na modernidade líquida

A edição de 25 de dezembro de 2012 da revista Time concedeu o prêmio

tradicional de "Pessoa do Ano" para "você". Sim! para você: a cada usuário e criador

de conteúdo disponibilizado na web. Magistralmente, a capa da Time mostra um

teclado branco com um espelho no lugar da tela do computador, dando a entender

que cada “navegador” do ciberespaço pode ver seu reflexo.

Ao discorrer sobre a premiação inusitada, Slavoj Zizek argumenta que a

premiação “pessoa do ano” pondera acerca das identidades que o mundo online

possibilita criar. Esse fato, reflete o desejo incansável que o sujeito tem em ser

“outro” na busca pela perfeição. Para ilustrar isso, Zizek narra a seguinte história

sobre um comercial de uma TV inglesa:

Para pouco mais de uma década atrás, havia um brilhante comercial inglês de cerveja. A primeira parte reproduzia a conhecida história de uma moça que caminha ao longo de um riacho, vê um sapo, o toma nas mãos e beija, e o sapo miraculosamente se transforma em príncipe. Mas a história não acabava assim. O jovem olhava a moça de um jeito cobiçoso, a tomava nos braços, a beijava e ela se transformava em uma garrafa de cerveja, que ele exibia em um gesto triunfante (ZIZEK, 2012).

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Ainda que irônica, a narrativa de Zizek faz repensar a constituição das

identidades dos sujeitos numa sociedade líquido-moderna, pautada no culto ao

fetichismo da imagem e dos objetos. Mais do que nunca, a constituição das

identidades está ligada a fatores que mantêm íntima relação com a globalização, os

avanços da tecnologia, a compressão espaço-tempo.

Esses fatores empurram o sujeito atual para que tenha uma postura mais

voltada ao “ter”, em detrimento do “ser”. Em sua essência, os debates presumem

que as velhas identidades, que por muito tempo estabilizaram a sociedade, estão

em declínio, fazendo, assim, surgir novas identidades e, consequentemente,

fragmentando o sujeito unificado. Nesse debate, as considerações de Giddens

(2002), Stuart Hall (2005) e Bauman (1998) merecem créditos, pois jogam luz sobre

a delicada questão que é a formação e firmação da identidade do sujeito na

sociedade pós-modernidade.

Os problemas referentes à constituição do sujeito têm despertado intensa

reflexão em diferentes campos do conhecimento, isso porque se observa um cenário

mundial que passou por profundas transformações sociais e econômicas,

caracterizando uma nova configuração do capitalismo no ocidente. Essa

configuração Fredric Jameson (2004, p. 22) denomina de “capitalismo tardio”, que

caracteriza a pós-modernidade em termos socioeconômicos. De acordo com o

crítico, “[q]ualquer ponto de vista a respeito do pós-modernismo na cultura é ao

mesmo tempo uma posição política, implícita ou explícita, com respeito à natureza

do capitalismo multinacional em nossos dias” (JAMESON, 2004, p. 29).

A pós-modernidade, segundo Jameson (2004), operou uma mudança de

ordem global quando o capitalismo intensificou suas formas e forças, ampliando-se

pelas corporações internacionais e pela crescente superação de fronteiras

nacionais. Nesse sentido, o termo “pós-moderno” é visto de forma mais genérica e

complexa, pois envolve tanto o movimento desenfreado da tecnologia da informação

e da indústria de consumo. O termo “pós-modernismo” é caracterizado como um

conjunto de práticas culturais que conduz à transformação da esfera cultural na

sociedade atual, em que ocorre a erosão “da fronteira entre a alta cultura e a

chamada cultura comercial ou de massa” (JAMESON, 2004, p. 3).

De outra banda, o pensador inglês Terry Eagleton (1998, p. 7) conceitua a

pós-modernidade como “uma linha de pensamento que questiona as noções

clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou

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emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas”. Eagleton (1998,

p. 7), vê o mundo atual como “contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível”

que se entrecruzam num “conjunto de culturas ou interpretações desunificadas

gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da

história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades”.

A produção cultural pós-moderna, seja na erosão entre as fronteiras culta e

popular (JAMESON, 2004), seja instabilidade e imprevisibilidade (EAGLETON,

1998), encontra na cultura do narcisismo a resposta pela fragmentação do sujeito

em sociedade. Nessa direção, Giddens (2002, p. 160) explica que a cultura do

narcisismo, detalhada por Christopher Lasch ao lançar um olhar mais apurado sobre

as estratégias de sobrevivência privatizadas na cultura moderna, ainda impera na

alta modernidade. Nesse contexto, o consumismo faz com que o sujeito veja seu

entorno social como cercado por espelhos. Nessa profusão, as imagens do “eu” se

multiplicam. Numa sociedade dominada pelas aparências (ainda que aparências

possam enganar), o sujeito volta todas as suas energias à aparência de um “eu”

socialmente valorizado.

Em Modernidade e Identidade (2002), Giddens argumenta que, ao se discutir

a identidade do sujeito, essa deve ser observada à luz da reflexividade. As

transformações na identidade e a globalização são os dois polos da dialética do local

e do global nas condições da “alta modernidade” (GIDDENS, 2002, p. 36). Por isso,

o estabelecimento de conexões sociais de grande amplitude faz com que essa fase

da modernidade seja vista como uma “cultura do risco” (GIDDENS, 2002, p. 11).

A alta modernidade remete à modernidade tardia. Ela é apocalíptica não

porque se dirija em direção ao caos, mas porque introduz riscos que as gerações

anteriores não tiveram que enfrentar. Esse período rompe o referencial protetor da

pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores

e impessoais, obrigando o sujeito à reflexão contínua diante dos ambientes

cambiantes globais que oferecem riscos a toda hora.

No âmbito da reflexividade, a identidade do sujeito é inerentemente frágil.

Embora o sujeito viva uma vida local, “os mundos fenomênicos da maioria [dos

sujeitos] são globais” (GIDDENS, 2002, p. 174). Nesses termos, a vida na alta

modernidade sugere que o sujeito sustente uma identidade que precisa ser

constantemente revista num cenário que alterna experiências cambiantes e

tendências e estilos fragmentados. Por isso, de tempos em tempos, a reflexividade

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da identidade nunca cessa. É preciso que o sujeito questione a si mesmo acerca da

forma que age e aquilo que pensa.

Nesse ínterim, a construção das identidades implica em alguns dilemas

consoantes às tribulações do “eu”. Primeiro, tem-se a unificação versus

fragmentação (GIDDENS, 2002, p. 175-176), pois, em nível global, a tendência da

dispersão impõe suas forças, em que sujeito fica difícil unificar a narrativa coerente

sobre si mesmo diante das rápidas e rotineiras mudanças operadas pela

globalização. A fragmentação significa uma diversificação dos contextos de

interação, fazendo com que um mesmo sujeito incorpore os diferentes contextos de

sua vida numa narrativa integrada, fazendo dos diversos “eus” um só.

Como segundo dilema, tem-se a discordância entre a impotência e a

apropriação (GIDDENS, 2002, p. 177-179). Com a globalização, o sujeito tem

grandes oportunidades de se apropriar de diversas formas de vida, de interagir em

diversos ambientes (virtuais ou não) e, ao mesmo tempo, tornar-se “diferenciado”

dos demais. No entanto, essas vantagens não vêm gratuitamente. No pacote vêm

inclusas situações em que o sentimento de impotência foge ao controle.

O terceiro dilema contrapõe autoridade e incerteza (GIDDENS, 2002, p. 180-

181). Na sociedade globalizada, não existem autoridades definitivas, pois a tradição

já não tem poder como fonte primeira de autoridade, como ocorria nas sociedades

pré-modernas. O pluralismo agrega a todos. Todos servem-se de uma fatia desse

bolo que é a globalização: a ciência, a religião, os governos, todos participam de

decisões sobre temas que se cruzam e inter-relacionam. E ainda que essa

pluralidade forneça opções das mais variadas ao sujeito, as incertezas sobrepujam

a melhor das escolhas.

Experiência personalizada versus experiência mercantilizada é o quarto

dilema (GIDDENS, 2002, p. 182-186). Padrões de consumo promovidos pela

propaganda influenciam a formação da identidade do sujeito, promovendo estilos de

vida. A mídia publicitária estimula estilos de vida que vão ao encontro dos padrões

que a sociedade de consumo estabelece. Muitas vezes, o projeto reflexivo de se

construir uma identidade se traduz na posse de determinados bens. Aqui, o “ter”

sobrepuja o “ser”.

Em A identidade cultural na pós-modernidade (2005), Hall explica que essas

mudanças que culminaram num sujeito fragmentado devem-se às rápidas mudanças

da sociedade, fazendo com que a identidade perca sua unidade e estabilidade, a

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ponto de fragmentar-se. O professor inglês se destaca no âmbito dos estudos

culturais contemporâneos, pois apresenta várias dimensões das implicações da

globalização e da liquidez moderna na criação da identidade individual e coletiva. O

sujeito na compreensão iluminista, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno são,

para Hall (2005), as três compreensões principais da identidade, que podem ser

inscritas em tempos históricos determinados. Interessa no estudo o sujeito pós-

moderno, que deriva do questionamento das estruturas modernas.

O sujeito pós-moderno é caracterizado pela ausência de uma identidade fixa,

essencial ou permanente, uma vez que a mesma se transforma continuamente e à

medida que as representações do sistema cultural que o rodeia vão variando. Não

há mais uma identidade unificada e estável, mas várias identidades que são

contraditórias ou não-resolvidas (HALL, 2005, p. 12). As estruturas sociais mudaram.

Agora, a paisagem sócio-cultural é outra. Novas identidades são projetadas num

mundo provisório, variável e problemático. À medida que os sistemas de significação

e representação cultural se multiplicam, o sujeito é confrontado por uma

multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma

das quais poderia se identificar ainda que temporariamente (HALL, 2005, p. 13).

Segundo Hall (2005, p. 13), a “identidade torna-se uma ‘celebração móvel’”. A

identidade na modernidade líquida é resultado direto das formas pelas quais o

sujeito é representado ou interpelado nos sistemas culturais de que faz parte. Ela é,

histórica e não biologicamente definida. Nessa direção, tem-se um sujeito que

desliza por múltiplas identidades com uma perda da estabilidade do sentido de si, o

que gera a “crise de identidade” (HALL, 2005, p. 9).

O sujeito pós-moderno é obrigado a flexibilizar-se em seu processo identitário,

pois é “atravessado” por diferentes divisões e antagonismos sociais que resultam em

variadas posições de sujeito, como identidades fragmentadas, inacabadas, abertas e

contraditórias. O que gera a crise de identidade é a ação conjunta de um duplo

deslocamento, a descentralização dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social

e cultural quanto de si mesmos.

A identidade não corresponde mais a realidade. Para Hall, o sujeito:

[...] previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as

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‘necessidades’ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2005, p. 12).

Nesse contexto, mister observar que a “crise de identidade” (HALL, 2005) não

decorre de um processo simples que permeia os discursos de estudiosos da área

cultural. A crise faz

[...] parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (HALL, 2005, p. 7).

A globalização, cuja hélice é movida pelo progresso das tecnologias de

transporte e comunicação, liga o local ao global. A maior interdependência global

leva, consequentemente, a um colapso das identidades tradicionais, ligadas ao local,

e produz uma diversidade cada vez maior de estilos e identidades (HALL, 2005, p.

74). Tem-se, assim, a hibridização e homogeneização de informações, estilos,

costumes, ideias, ideologias. Identidades que antes eram locais podem ser

encontradas agora em qualquer local.

Por outro lado, certos padrões se encontram em todos os lugares. Por

exemplo, os padrões que se relacionam ao consumo:

Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de ‘identidades partilhadas’ – como ‘consumidores’ para os mesmos bens, ‘clientes’ para os mesmos serviços, ‘públicos’ para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas das outras no espaço e no tempo (HALL, 2005, p. 74).

O sintoma da crise é, por sua vez, o declínio das velhas identidades tecidas

na modernidade, que foram a marca da estabilização do mundo social moderno.

Com o declínio, o conceito de identidade também passa por mudanças na medida

em que a visão de um sujeito integrado se liquefaz, e feito líquido, escorre, pinga,

transborda os antigos paradigmas de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e

nacionalidade.

O processo vivido pelo sujeito pós-moderno deslocou a sensação de uma

identidade como objeto fixo e substituiu pela insegurança, angústia, incerteza e

precariedade. Bauman também se posiciona a respeito da identidade. Para ele, o

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“eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas

evitar que se fixe” (BAUMAN, 1998b, p. 114). Indubitavelmente, tratar de dois

tempos distintos elencados por Bauman – o sólido e o líquido – faz com que a

discussão recaia sobre a questão da identidade, seu estabelecimento e firmação, na

contemporaneidade.

Na obra Identidade (2005), Bauman argumenta que a identidade passa por

um processo contínuo de construção, permanecendo assim, sempre incompleta.

Isso porque a modernidade gerou um mundo fluído, onde as identidades se

desfazem facilmente acompanhando o ritmo da vida líquida. Segundo o sociólogo

polonês,

[a] facilidade de se desfazer de uma identidade no momento em que ela deixa de ser satisfatória, ou deixa de ser atraente pela competição com outras identidades mais sedutoras, é muito mais importante do que o realismo da identidade buscada ou momentaneamente apropriada (BAUMAN, 2005, p. 26)

A razão moderna de ser do sujeito era inspirada pela razão cartesiana, e

situava-se no intervalo dos fenômenos: o presente é um renascer contínuo, diante

de um passado que é sonho. Já na época líquido-moderna, o mundo está repartido

em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas existências individuais são

fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados (BAUMAN, 2005, p.

18-19).

No que tange na afirmação da identidade, para os habitantes da sociedade

líquido-moderna, atitudes como cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de

acordo com precedentes e manter-se fiel à lógica da continuidade, flutuando na

onda das oportunidades mutáveis e de curta duração, constituem opções

promissoras (BAUMAN, 2005, p. 60).

Na modernidade em sua fase sólida, a identidade passou da ideia de

atribuição para a ideia de realização (BAUMAN, 1998b, p. 30). Nesse período, o

esforço individual é que fazia a diferença. Era preciso buscar forças na

individualidade, então lançada como sendo um projeto de vida. A identidade deveria

ser erigida sistematicamente, de degrau em degrau. Essa “construção” da identidade

exigia do sujeito a percepção clara do resultado final a longo prazo. Havia, assim,

“um vínculo firme e irrevogável entre a ordem social como projeto e a vida individual

como projeto, sendo a última impensável sem a primeira” (BAUMAN, 1998b, p. 31).

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Na obra O mal-estar da pós-modernidade (1998b), Baumam destaca que o

projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Por outro lado,

esse projeto não se posicionou contra a maneira de se “forjar” uma identidade e nem

como mantê-la, pois somente transformou a identidade, que era questão de

atribuição do Estado em comunhão com o sujeito, em realização. Então, a

identidade tornou-se uma tarefa individual e da responsabilidade do próprio sujeito.

Na complexa vida líquida, “os seres humanos já não mais ‘nascem’ em suas

identidades”, explica o sociólogo polonês (2001, p. 40). O caráter identitário da vida

social é absorvido e descartado da esfera individual. A cada dia, a identidade precisa

ser revista. A cada dia, o sujeito precisa buscar entre as vivências líquidas razão e

força para compreender que já não mais nasce sujeito e cidadão em prol da

(re)construção da identidade.

Bauman (1998b, p. 91) destaca que, psiquicamente, a “modernidade trata da

identidade: da verdade de que a existência ainda não se dar aqui, ser uma tarefa,

uma missão, uma responsabilidade”, enfim, é algo a ser buscado pelo sujeito no

contexto da vida social. Como o restante dos padrões, a identidade permanece à

frente, e é preciso buscá-la, dia após dia, pois “a identidade [está] permanentemente

inconsumada, [...] toda realização é meramente uma pálida cópia do seu modelo”

(BAUMAN, 1998b, p. 91-92).

Numa sociedade onde a ideia de simulacro impera, a identidade do sujeito

entra no arcabouço como fruto do grande projeto proposto pela modernidade.

Atualmente, a identidade do sujeito se coloca como um dos grandes enigmas a ser

desvendado ou reconstituído. É ponto de inesgotável discussão, um fenômeno

inquietante que reivindica reflexão. A “‘identidade’ agora se tornou um prisma,

através do qual aspectos tópicos da vida contemporânea são localizados, agarrados

e examinados” (BAUMAN, 2008a, p. 178).

O sujeito não teme mais a ambivalência nem busca mais fixar identidades

“sólidas”. Ser ambivalente tornou-se um valor admirado por políticos, empresários e

simpatizantes. Num mundo liquefeito, onde tudo é transitório e precário, ter

identidade fixa e bem definida não é atrativo, antes é sinal de desconfiança e

desprezo.

O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca

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de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalho de construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre ‘mantendo as opções abertas’ (BAUMAN, 1998b, p. 112-113).

O presente é continuo. O passado é abolido da ideia de tempo, por isso,

manter as “opções abertas” significa não se apegar a nada, nem a ninguém. Além

disso, na vida líquida não há “para frente” ou “para trás”, o que pesa é o tempo

constituído de “agoras”, ininterruptos. O sujeito não se deixa levar por nenhum tipo

de forma de vida que enseja durabilidade o suficiente para se tornar um tédio e cair

na mesmice, na rotina. Desse modo, para o sujeito “a dificuldade já não é descobrir,

inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma identidade, mas como

impedi-la de ser firme e aderir depressa demais ao corpo” (BAUMAN, 1998b, p.

114), impedindo-o de “fluir” livremente.

A reflexão desenvolvida até aqui a respeito da identidade na pós modernidade

denota que a identidade como objeto fixo não é mais possível dentro de um espaço

urbano que perdeu a força ordenadora que tinha na modernidade. Os modos de vida

das cidades brasileira e portuguesa das três décadas finais do século XX e anos

iniciais do século XXI “diluíram” essa função, substituindo-a pela insegurança,

instabilidade, incerteza e precariedade.

A formação dos espaços urbanos nas últimas quatro décadas, seja nas

diferenças entre os estratos sociais que foram demarcando o que é centro e o que é

periferia, seja nos modos de ver, sentir e agir esses espaços por parte do cidadão,

caracterizam a instabilidade e precariedade do “ser” que culmina,

irremediavelmente, em sua fragmentação. De modo claro, os esclarecimentos a

respeito da fragmentação do sujeito resultam da vida arbitrária que o mesmo leva no

espaço urbano a partir da década de 1970. Quanto à alteridade, o espaço urbano

fomenta o surgimento de formas de vida que exigem do sujeito capacidades jamais

vistas no que tange à vivência com o outro.

A seção que segue trata da questão voltada à alteridade e à marginalização

do sujeito no contexto da cidade. Usa-se, para tanto, as ideias de Augé (1994),

Adorno (1994), Bauman (2004, 2006b), Boaventura de Sousa Santos (1995), Ester

Limonad (2000), Gomes (1994, 2000), K. Lynch (1999), Canclini (1999), Hall (2005)

e Nelson Brissac Peixoto (1987).

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1.3 Sujeito e espaço urbano: da alteridade à marginalização

Presta atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma, tem gente demais, tem mendigo demais na cidade, apanhando papel, disputando o ponto com a gente, um montão vivendo debaixo de marquise, estamos sempre expulsando vagabundo de fora, tem até falso mendigo disputando o nosso papel com a gente (FONSECA, 1994, p. 613).

A cidade, incompatível com qualquer atuação regeneradora, libertadora do tempo, da hierarquia, pois sempre alguém está acima, mandando em você, dispondo de você, ou abaixo, invejando você, querendo o que é seu (LACERDA, 2009, p. 154).

Ainda que as epígrafes sejam excertos de textos literários de dois autores

brasileiros, Rubem Fonseca e Rodrigo Lacerda, as referências são oportunas para

que se discuta a cidade à luz das suas modificações arquitetônicas constantes, bem

como lançar um olhar mais crítico sobre as mudanças que o ritmo acelerado e o

consumismo imprimem em seu habitante.

As falas das personagens do conto e do romance, respectivamente: “[p]resta

atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma” (FONSECA, 1994, p. 613); ; “[a]

cidade, incompatível com qualquer atuação regeneradora” (LACERDA, 2009, p.

154), reforçam a mutabilidade que a polis vem sofrendo nos últimos três séculos. A

vida nas grandes cidades partilha formas de subjetivação e sociabilidades

semelhantes, que são forjadas pela propaganda, pelos meios audiovisuais, pelos

emaranhados de edifícios, pelo consumismo latente nos shopping centers, pelo

trânsito frenético das ruas.

As marcas e grifes que padronizam o sujeito que só é igual quando o assunto

é consumo. Contudo, o mesmo sujeito mostra toda sua heterogeneidade quando a

questão pede um olhar mais atencioso para com o seu semelhante. Esses fatores

vêm ao encontro do modelo de sociedade baseado no capitalismo tardio, que

condiciona valores e comportamentos sociais impulsionado pelo reino dos objetos,

do conforto, lazer de massa e de um tipo de consumismo denominado por Bauman

(2008b, p. 19) de “fetichismo da subjetividade”.

A cidade no âmbito da pós-modernidade, ela é o lugar que comporta a

maioria da população. Diariamente, milhares de praticantes do espaço circulam

pelas ruas, avenidas, centros comerciais, edifícios e periferia. Esses se beneficiam

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daquilo que as grandes cidades podem oferecer, mas também sofrem as

consequências do ritmo acelerado e incessante que a globalização opera em todos

os setores da sociedade. A cidade pode tanto causar atração como repulsa para o

cidadão. Se a cidade atrai pelo progresso e pela sua praticidade, ela pode, também,

tornar-se um lugar de repulsa pelos vários problemas que angustiam seus cidadãos.

No contexto da alteridade, a individualidade é um problema que impossibilita o

sujeito ver e se comunicar com os outros. Nesse sentido, o dilema da alteridade

fomenta discussões acerca da marginalização que os modos de vida urbano

impõem ao sujeito no espaço urbano brasileiro e português.

A cidade inserida ao vórtice da globalização aceita e suporta a todos que nela

desejam viver, ainda que entre seus habitantes muitas vezes isso seja motivo de

conflitos de toda ordem. Por isso, o espaço urbano é um lugar de difícil leitura, uma

vez que o humano e o concreto estão em constante conflito. Segundo Renato

Cordeiro Gomes, em seu livro Todas as cidades, a cidade (1994), o espaço citadino

é um lugar que acolhe para si o conceito de “chama”, que é o humano e o fluido: os

relacionamentos que não encontram solidez e se desfazem. Em contraponto, tem-se

o conceito de “cristal”, que é o concreto e o rígido (asfalto, edifícios), representando

a cidade e a impossibilidade da alteridade plena, coerente e sólida.

Em outra obra, Cartografias urbanas: representações da cidade na literatura

(2000), Gomes esboça um breve panorama do desenvolvimento do Brasil. Conforme

o crítico, este desenvolvimento se deu de modo contraditório, pois viu-se, em nível

internacional, as mudanças radicais e velozes, que colocaram em discussão as

verdades da modernidade. Enquanto isso, no Brasil, verificou-se, a partir dos anos

70, o

[...] desenvolvimento da sociedade de consumo, que condiciona valores e comportamentos sociais ligados ao modo de vida impulsionado pelo reino dos objetos, do conforto e lazer de massa, pano de fundo para o surgimento de uma nova cultura urbana (GOMES, 2000, p. 67).

Nos acalorados discursos oficiais, a ideia de um projeto que pudesse frear o

atraso brasileiro esbarrou numa estrutura ultrapassada. Nesse embate, viu-se a

fragmentação “individualista do corpo social, que redundou no consumismo privado,

na retração individualista, na atomização dos seres, no hedonismo, no narcisismo,

na esterilização das crenças e dos dogmas comuns” (GOMES, 2000, p. 67). Como

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consequência, viu-se cruzamento de elementos comuns que culminaram na crise

que refletiu na “cacofonia da cidade” (GOMES, 2000), em que a miséria, a

degradação e a alienação se acentuaram devido ao descaso dos governantes para

com a população.

Seguindo a linha de pensamento de Gomes (2000), Ester Limonad, no ensaio

“A cidade na pós-modernidade: entre a ficção e a realidade” (2000, p. 94), assevera

que a velocidade dos acontecimentos e das transformações ocorridas, em todos os

âmbitos da vida social, cultural política e econômica nas últimas décadas do século

XX, supera em muito a capacidade de assimilação por parte da produção científica e

defronta-nos com um problema restritivo, a ser superado no estudo dos fatos

sociais.

Esse problema, segundo Limonad (2000, p. 94), insere-se à revolução

tecnológica, em especial a informática, que fez com que a cidade deixasse de ser o

locus privilegiado da produção e torna-se espaço do consumo. Nesse processo de

consumo, se consome não apenas na cidade, mas a cidade enquanto objeto e

representação. Por isso, a cidade da sociedade pós-industrial, pretensamente pós-

moderna:

[...] apresenta-se-nos como um produto do desenvolvimento tecnológico vis-à-vis à deterioração do meio ambiente, do desperdício. Os serviços agigantam-se; as relações sociais e a vida material deterioram-se, acompanhando a degradação da natureza e do próprio homem (LIMONAD, 2000, p. 94).

No que tange em deliberar sobre a condição social, política e econômica de

Portugal, Boaventura de Sousa Santos, em Pela mão de Alice: o social e o político

na pós-modernidade (1995, p. 57), expressa que o país luso é uma sociedade de

desenvolvimento intermédio e por isso é um país periférico. As cidades portuguesas

sofrem com o atraso em muitos aspectos. Esses aspectos envolvem traçados

arquitetônicos esquecidos no tempo, uma precária infraestrutura que não

acompanhou o processo evolutivo postulado pela modernidade e um atraso

econômico que, passados alguns anos do século XXI, mostra-se mais acirrado na

crise financeira que assola a Europa. Desse modo, o cidadão luso sente que sua

história não se mostra progressiva, e isso solapa sua identidade ao ponto de

fragmentá-la.

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As cidades brasileira e portuguesa das três décadas finais do século XX e

primeiros anos do século XXI apresentam-se como uma imensa arena de signos

gastos e dispersos, que fazem a ponte entre a urbe e o sujeito. Como resultado

disso, tem-se a erosão das sociabilidades, a desestabilização do homem sem

ideologias e ideais que vê crescer os índices de corrupção e o ápice da violência.

Na visão de Gomes (2000), a cidade tornou-se:

[m]orada incerta que é um “agora” precário a ser substituído por outro agora igualmente precário, quando a modernidade perde fé em si mesma e o presente faz a crítica do futuro e passa a desalojá-lo, e ganham força os conflitos de ordem cultural (GOMES, 2000, p. 68).

Na eminência dos conflitos urbanos, precariedade, incerteza, dúvida,

desesperança são fatores que passaram a desalojar o sujeito do seu canto seguro.

Acuado, o mesmo precisou sair à rua para ocupar e dividir os espaços públicos e

privados com os habitantes que se acotovelavam nos centros que se formavam ou

já estavam formados. Viver na cidade é uma experiência ambígua (BAUMAN, 2004,

p. 61). Na cena urbana, o relacionamento eu-outro é mercantilizado, e frágeis laços

de afeto têm a possibilidade de serem desfeitos frente a qualquer desagrado das

partes. O sujeito vive uma vida incompleta e vê no “possuir” uma maneira de suprir

essa carência, numa sociedade em que o capital, o poder, o consumo e a

competição geram um sujeito nada inclinado à cooperação e à solidariedade.

Em outra obra não menos importante, Confiança e medo na cidade (2006b),

Bauman disserta a respeito do medo e da obsessão por segurança que o homem

ocidental experimenta em tempos líquidos. As cidades, segundo o sociólogo,

[...] converteram-se no depósito de lixo de problemas de origem mundial. Os seus habitantes e aqueles que os representam confrontam-se habitualmente com uma tarefa impossível, seja para onde for que viremos os olhos: a [tarefa] de encontrar soluções locais para contradições globais (BAUMAN, 2006b, p. 28).

As contradições de ordem global sinalizam que a função ordenadora da

cidade está morrendo, lentamente. A agonia do espaço urbano deve-se a problemas

dos mais diversos, como superpopulação, precariedade de serviços públicos,

violência social, desemprego, entre outros. A cidade está fraturada por cruzamento

de signos, imagens e acontecimentos que reformulam a cada dia os lugares

antropológicos em detrimento dos “não-lugares”.

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Com o “derretimento” das utopias da modernidade, as relações se liquefazem,

tomando rumos incertos e impedem a solidificação das identidades por meio das

relações estabelecidas pelos sujeitos, ao contrário dos lugares antropológicos. Para

elucidar isso, Augé (1994) faz um paralelo entre os lugares tradicionais e os lugares

criados pela “modernidade líquida”. Os lugares tradicionais, explica o autor, são os

lugares antropológicos, que referem à:

[...] construção concreta e simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles [lugares] a quem ela designa um lugar (AUGÉ, 1994, p. 51).

Em Não-lugares (1994), Augé analisa a relação do homem com o espaço, a

questão da identidade e da coletividade. Ele designa “não-lugar” todos os

dispositivos e métodos que visam à circulação de pessoas, em oposição à noção

sociológica de “lugar”, isto é, à ideia de uma cultura localizada no tempo e no

espaço.

A título de exemplificação, rodovias, avenidas, hotéis, shoppings, aeroportos,

redes de fast-food, campos de refugiados, caixas eletrônicos, são vistos como “não-

lugares”, pois são todos destinados à passagem. “Não-lugares” não são ambientes

de habitação, e não requerem que se esteja sempre em contato com eles a ponto de

serem criadas relações duradouras. São lugares que são iguais em todas as

cidades, e planejados previamente para os sujeitos que os visitarão. Neles, são

inibidas quaisquer relações que fujam da transitoriedade para os quais os “não-

lugares” se destinam, como as relações de proximidade e troca de afetos.

Um lugar se define pelas relações e identidades estabelecidas pelos sujeitos

a ele vinculado. Ao contrário dos lugares antropológicos, o “não-lugar” é o espaço

que inibe relações e identidades específicas. Os lugares antropológicos “criam um

social orgânico, os ‘não-lugares’ criam tensão solitária” (AUGÉ, 1994, p. 87), onde

as relações entre sujeitos se dão no âmbito da indiferença e impessoalidade.

Essa percepção vem ao encontro da visão de Bauman, que expressa que as

cidades da modernidade líquida são

[o]s campos de batalha sobre os quais convergem, por um lado, os poderes mundiais e, por outro, as razões de ser obstinadas de cada um dos seus habitantes, que se entrechocam e combatem em busca de um novo acordo satisfatório ou minimamente tolerável: um tipo de convivência que se espera poder constituir uma paz duradoura, mas que, regra geral,

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não consegue ser mais do que um armistício, uma trégua que permite a reparação das defesas que abrem brechas e a reorganização das tropas em vista do próximo confronto (BAUMAN, 2006b, p. 31-32).

A acuidade do sociólogo tem tonalidade bélica. Na obstinada luta pela

sobrevivência, o sujeito faz de cada dia uma “queda de braço” que impossibilita a

plenitude da alteridade, levando a sua marginalização. Hall (2005) corrobora com

essa questão e diz que quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado

global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da

mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados (HALL, 2005, p.

75), mais constata-se que as identidades se desvincularam; ou seja, estão

desalojadas de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar

livremente”’.

Visivelmente, no “mundo líquido”, o aumento da densidade demográfica não é

proporcional ao aumento da densidade psicológica. Nas ruas das grandes cidades,

no interior dos estabelecimentos comerciais e de lazer, os olhares perderam a

serenidade de observar as pessoas e a realidade com profundidade.

Alegoricamente, a velocidade faz das cenas do cotidiano um imenso outdoor, uma

grande e interligada imagem de um quebra-cabeça que passa aos olhos do

transeunte rapidamente, tal qual a sensação que tem alguém que observa a

paisagem urbana da janela de um automóvel.

A sensação de estar perdido nos “não-lugares”, que são comuns a qualquer

esfera social, econômica e cultural da sociedade globalizada, caracteriza a

inquietude do sujeito, cujo cotidiano é acelerado e claustrofóbico. O sujeito da

modernidade líquida vive em cenários repletos de imagens, em que “[t]udo é apenas

lixo. [...] Tudo se torna apenas indícios de exaustão e decadência daquilo que se

converteu em simulacro de si mesmo” (PEIXOTO, 1987, p. 219).

A ilusória sensação de pertencimento ao “não-lugar” é reflexos da produção

de aparências, que Nelson Brissac Peixoto, em Cenários em ruínas (1987, p. 204),

vê como “uma verdadeira recriação ilusória do mundo, através de imagens

arquitetônicas fictícias, inscritas em fachadas decoradas, outdoors e superfícies

espelhadas”. Caminhar por galerias comercias, parar em frente às vitrinas das lojas

dos shopping centers em busca de um objeto que sacie o desejo de posse. Essa

postura confere à atitude comum do sujeito urbano que se assemelha ao flâneur da

época de Baudelaire.

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O flâneur do século XIX é aquele sujeito que, em seu passeio pela cidade

oitocentista, consegue organizar, interpretar e gozar as transformações urbanas da

sua época. Benjamin (1989) acreditava que o olhar, fruto do perambular, tinha mais

validade que o trabalho. Na sociedade líquido-moderna, essa tarefa é cada vez mais

onerosa e carente de heroicidade. Não há para o sujeito tempo de sobra para gastar

em flaneries que não auferem lucro.

Além disso, seria, para o flâneur, difícil apreender a matéria constituinte das

múltiplas narrativas e discursos locais, nacionais, transnacionais e ciberespaciais

que são latentes na experiência urbana atual, que “não é mais uma construção do

espaço. A cidade agora é apenas uma imagem desenhada num painel publicitário”

(PEIXOTO, 1987, p. 204).

No afã de exemplificar as formas da velocidade, deslocamentos,

comportamentos, câmbios urbanos, múltiplas experiências vivenciais e divagações

de procedência diversa, Néstor García Canclini, em Consumidores e cidadãos:

conflitos multiculturais da globalização (1999), disserta acerca da impossibilidade de

satisfação e realização por parte do flâneur na modernidade tardia. Segundo o autor,

“narrar é saber que já não é possível a experiência da ordem que o flâneur esperava

estabelecer [...] Agora a cidade é como um videoclipe” (CANCLINI, 1999, p. 155),

uma montagem fervescente de imagens descontínuas que se cruzam e se plasmam,

dando cor a uma realidade de simulacros e mascaramentos do sujeito social.

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2. A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO EM TEMPOS LÍQUIDOS

Argia. Cidades invisíveis (Aquarela em papel). Disponível em: http:// ascidadesvisitadas.blogspot.com.br/. Acesso em: 23 jun. 2013.

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Antonio Candido escreve em Literatura e Sociedade (1967) sobre a mediação

entre obra literária e sociedade. Para o autor, só é possível compreender a literatura,

de qualquer época, “fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente

íntegra” (CANDIDO, 1967, p. 4). Nessa perspectiva, tem-se o entendimento de que

não é mais possível separar a literatura do corpo social, da história e do ideológico.

Ler, interpretar e compreender o texto literário, seja em verso ou em prosa, é

também estudar sociologia, filosofia, antropologia, psicanálise, biografia.

A partir dessa visão, é possível afirmar que a literatura é uma construção

histórica, em que o escritor sofre influências do contexto social. O texto literário,

como produto artístico, possibilita de modo mais abrangente a tomada de

compreensão e de consciência do mundo por parte do escritor e do leitor. De modo

abrangente, ainda que não se refira diretamente a uma realidade histórica, o texto

literário é portador de uma realidade polissêmica e plurissignificativa, permitindo ao

leitor a organização e compreensão do universo simbólico a partir da linguagem.

A narrativa literária estabelece uma transcendência sobre a realidade a partir

de uma construção discursiva pelos caminhos do imaginário, sendo que os fatos

chegam ao leitor como representação de algo, problematizando a história. Essas

observações vão ao encontro da perspectiva sociológica do estudo da literatura, que

vai além da tradicional visão de que o texto literário ampara-se, quase que

exclusivamente, na formação de leitores. A literatura é, como já se salientou,

resultado dessa “fundição” entre texto e contexto de que fala Candido (1967)12.

A narrativa é um fenômeno social à medida que resulta de convicções,

códigos, crenças e costumes, e enquanto tal exprime a sociedade, modificando-a ou

até mesmo negando-a. Na literatura contemporânea, a noção do referente como

“real” e a “verdade” em primeira instância é problematizada de modo que o estatuto

da representação da obra literária não mais se firma numa “verdade única”, fechada

em si mesma, totalizada.

Ao tratar dessa questão, Wolfang Iser (1983, p. 385) crê que o texto ficcional

não é de todo isento de realidade, pois “o ficcional contém elementos do real sem

que se esgote na transcrição desse real”. Para o autor de O Fictício e o imaginário:

perspectiva de uma antropologia literária (1983), a preparação de um imaginário por

12 Aqui cabe uma ressalva. Candido condiciona que o estudo do elemento social do texto literário não deve ser visto como mera relação de condicionamento meio-obra, mas numa perspectiva de “interiorização” do elemento social como elemento estruturador da obra (CANDIDO, 1967, p. 4).

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parte do escritor alude que o “fingir” no ato criativo se relaciona “com a realidade

retomada pelo texto”. O texto literário “recria” a vivência social do homem,

transportando-o da realidade para a ficção.

Contudo, fingir não é mentir, mas tão somente “re-criar” o real por meio de

processo que Iser (1983) denomina como seleção, combinação e auto-

desnudamento13. Porquanto, esse processo pode, na esfera da representação, dar

conta das particularidades e das amplas significações do pensar, sentir e agir do

homem em sociedade. O ato de fingir, portanto,

[...] ganha a sua marca própria, que é a de provocar a repetição no texto da realidade, atribuindo por meio dessa repetição, uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o imaginário em efeito do que assim é referido (ISER, 1983, p. 14).

Consoante à narrativa literária, Roland Barthes, em A escrita do romance

(2004, p. 35), enfatiza que “[é] a sociedade que impõe o romance. É, pois, pela

evidência de sua intenção, que se reconhece o pacto que liga, por toda a solenidade

da arte, o escritor à sociedade”. As transformações pelas quais passou e passa o

romance fundamentam-se naquilo que dá razão de ser deste gênero: atingir uma

forma ideal de representação do mundo com seu eminente protagonista, o homem.

As observações de Iser (1983), Candido (1967) e Barthes (2004) são

plausíveis para que se discuta a respeito do gênero romanesco. Desde sua gênese,

o romance é alvo de especulações reformulações e críticas num amplo interesse em

desvendar o modo como ele, enquanto obra de arte, se aproxima do ser humano e

seu meio. A par disso, esse capítulo estrutura-se em duas seções.

A primeira seção pondera discussões sobre a narrativa e a representação da

cidade como “lugar” da fragmentação e marginalização do sujeito. Para tanto, são

utilizadas referências de Gomes (1999), Fredric Jameson (2004), André Bueno

(2002), Roland Barthes (1985), Rejane C. Rocha (2011), Tânia Pellegrini (1996,

2002) e Ângela Maria Dias (2005).

13 Seleção é uma transgressão de limites na medida em que os elementos do real acolhidos pelo texto se desvinculam então da estruturação semântica ou sistemática dos sistemas de signos que foram tomados. Combinação cria relacionamentos intratextuais. Como o relacionamento é um produto do fingir, ele se revela, como a intencionalidade do texto. Auto-indicação ou autodesnundamento ocasiona um ato de duplicação peculiar designado pela expressão “como se” que por sua vez, indica que o mundo representado no texto deve ser visto como se fosse um mundo, embora não o seja, pois o mundo textual não significa aquilo que diz (ISER, 1996, p. 14-15).

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Para discorrer sobre o dilema da alteridade no espaço urbano e como a

narrativa produzida no Brasil e em Portugal depois de 1970 trata dessa questão, a

segunda seção lança mão das ideias de Regina Dalcastagnè (2003, 2007, 2008),

Lucia Helena (2008), Silviano Santiago (2002), Seixo (1986), Ernesto Sabato (2003),

Theodor Adorno (1983, 1994), Barthes (2002), Nelson Brissac Peixoto (1987), Jaime

Ginzburg (2004), Michel Maffesoli (1984), Maurice Merleau-Ponty (1994), Marc Augé

(1994) e Zygmunt Bauman (1998a, 1998b, 2001, 2004, 2008).

2.1 Como andar na cidade movediça? fragmentação e marginalização do

sujeito na narrativa pós-moderna

Na gênese dos tempos, havia o barro, a pedra, os homens e um sonho em

comum: edificar a cidade. A cidade do século XIX é a Babel que prosperou com a

perda das conexões e a falta de referência aos valores do passado, o que resultou

na fragmentação do sujeito e da sua experiência. Os fragmentos da modernidade

em sua fase sólida – autoritarismo, mudanças estruturais na cidade, revolução

industrial, afirmação do capitalismo, novos modos de vida, aceleração do tempo e

formas de sociabilidades – estão liquefeitos e deslizam pelas cidades da

modernidade líquida, que os absorve tal qual uma esponja, de modo que “a

percepção urbana nega-se a operar como totalidade” (GOMES, 1994, p. 33).

Na esteira do capitalismo tardio (JAMESON, 2004), é preciso um olhar crítico

tanto sobre as grandes cidades brasileiras como as portuguesas. A fragmentação é

algo peculiar para ambas em muitos aspectos, resultado da violência, do

desemprego, da corrupção, da miséria, da exclusão e da marginalização. Estar

fragmentado refere que o sujeito não consegue “ler” o espaço urbano como fazia o

flâneur do século XIX.

Ao conceber à cidade o status de livro de registros que anota as vivências do

sujeito urbano, Gomes (1994) alerta que a leitura fica incompleta, pois tentar uma

leitura:

[...] globalizante, totalizadora, desse livro de registro, tentar uma reconstituição imaginária, através de suas folhas e pranchas, da cidade “como é ou foi agora”, é tarefa impossível. O livro é composto de pedaços, fragmentos, trechos apagados pelo tempo, rasuras – de textos que jamais serão recompostos na íntegra (GOMES, 1994, p. 24).

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A percepção de Gomes a respeito do imaginário da cidade na modernidade

líquida caracteriza o labor de muitos escritores que buscam fazer colagens desses

fragmentos perdidos em meio às esquinas, em meio à multidão, em meio ao

emaranhados dos edifícios e às galerias dos centros comerciais que ocupam o

espaço citadino. Historicamente, as sociedades brasileira e portuguesa viveram

estados de exceção: o Brasil assolado pela Ditadura Militar que se estendeu até

1985, quando o cidadão pode comungar da democracia; e Portugal, que com a

Revolução dos Cravos, em 1974, passou a “respirar” mudanças sociais.

A partir desses eventos históricos, romancistas passaram a produzir uma

ficção voltada a outras questões sociais que não aos regimes ditatoriais de seus

países. Passou-se a narrar todas as formas de mazelas humanas que o espaço

urbano das três décadas finais do século XX podia oferecer, como estranheza e

fragmentação do sujeito, o que instiga os romancistas a deliberar sobre os dilemas

da alteridade no contexto urbano.

André Bueno delibera sobre a forma de como o universo da cidade pode lidar

com a estranheza, com a fragmentação, com a alteridade. Em Formas da Crise:

estudos de literatura, cultura e sociedade (2000), o crítico argumenta que:

[...] pode-se sugerir que trata disso fornecendo uma imaginação crítica e ampliada da vida cotidiana e histórica, dando espaço para que o leitor confronte, digamos assim, uma estranheza (a da forma literária) com outra estranheza (a opacidade da vida cotidiana, os fetiches da mercadoria, os sinais dispersos, a apenas aparente falta de hierarquia na reprodução do cotidiano) (BUENO, 2000, p. 222-223).

No cerne da estranheza, uma grande parte das narrativas tem representado a

cidade por meio de discursos libertos de qualquer alento, catarse, consolo ou utopia

que venham escamotear a realidade. A cidade líquida impõe ao sujeito modos

diferenciados de perceber, sentir e compreender o espaço em que vive. O capital, o

poder, o consumismo e a competição fazem com que se tenha a “liquefação” dos

instintos de solidariedade e de cooperação entre os seres humanos.

Com isso, lembra Bauman (2001, p. 29), é preciso que o sujeito abandone a

esperança de uma possível totalidade, tanto presente quanto futura. Na

modernidade líquida não é mais possível ao sujeito idealizar uma sociedade segura

e fraterna. A fragmentação é um dado histórico que solapa as sociedades brasileira

e portuguesa.

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A título de exemplificação, as transformações no espaço físico da cidade e

nos modos de ser e agir do homem foi vista por Charles Baudelaire que

acompanhou de perto as transformações urbanísticas de Paris na segunda metade

do século XIX. Com sua poesia combativa, Baudelaire foi o escritor que primeiro

assimilou o caráter brusco e inesperado que caracterizou a transitoriedade do

homem dentro da cidade moderna no fervor do seu desenvolvimento industrial. Na

poesia baudelairiana, a cidade é palco de contradições e também campo para

resolvê-las. Os poemas da obra As flores do mal (1985) são metáforas da

destruição, da morte e da degeneração, verdadeiras alegorias que servem de norte

para que se tenha uma ideia das transformações na cidade e no tipo humano à

época.

Com o fim dos tempos de censura no Brasil e em Portugal, a temática

literatura e cidade têm despertado pesquisas em diversos campos do saber. Os

estudos abrangem os campos da História, Sociologia, Filosofia e Antropologia, que

veem no espaço citadino a concentração de linguagens e vivências que compõem o

difuso e complexo discurso acerca da fragmentária vida urbana. A cidade na

modernidade líquida é constituída de fragmentos, haja vista que sua base,

alicerçada na ideia de uma modernidade sólida, ainda sente os resquícios dos

tempos “nebulosos” que assolaram as Histórias brasileira e portuguesa.

As narrativas produzidas nesses dois países tecem essa “cidade-texto”,

voltadas aos processos de subjetivação figurados na construção de personagens

sem rumo, insatisfeitas com a vida e sem experiências úteis para transmitir. No caso

brasileiro, tem-se como exemplos os romances Eles eram muitos cavalos (2001), de

Ruffato, O mez da grippe (1981), de Valêncio Xavier. No caso da narrativa

portuguesa, tem-se Balada da praia dos cães (1983), de José Cardoso Pires, A

caverna (2000), de José Saramago e Amadeo (1984), de Mário Cláudio. Esses

romances juntam-se ao rol das muitas narrativas que permitem perceber a estreita

relação que a literatura mantêm com a vida urbana.

No artigo “A Forma do Real: a representação da cidade em Eles eram muitos

cavalos” (2011), Rejane C. Rocha argumenta que a narrativa contemporânea,

voltada à apreensão do espaço urbano e das formas de sociabilidades, constitui-se

na orla de dois elementos. Conforme Rocha (2011, p. 5), de um lado há o objeto em

si da representação: a urbe e sua realidade muitas vezes inapreensível e impossível

de ser narrada, composta por um cotidiano de violência, de disparidades sociais e

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econômicas, de pequenas e grandes tragédias. De outro lado, temos a tradição

literária que desde o principio da modernidade, taxativamente escolheu o espaço

urbano como fonte de onde os escritores absorvem meios expressivos, como a

velocidade, a multidão, a industrialização.

Ao lançar mão de argumentos que deliberam sobre literatura e experiência

urbana, Pellegrini, no ensaio “Vazio cultural?” (1996), argumenta que a partir da

segunda metade do século XX, a cidade alcança outro papel na literatura brasileira.

Esse papel reserva-se a um “realismo alegórico que instalou-se nas cidades, lugar

símbolo da deterioração empreendida pelo capital”, que toma o espaço urbano como

“campo temático para suas obras: o caos urbano, a desumanização, a

incomunicabilidade, a individualização solitária e inevitável” (PELLEGRINI, 1996, p.

28).

Na mesma esteira, no artigo “A ficção brasileira hoje: os caminhos da cidade”

(2002), Pellegrini discute a literatura pós-ditadura, sinalizando que há uma “ficção

em trânsito”, o que caracteriza uma narrativa brasileira que revela um espaço urbano

ficcionalizado, abrigando significados novos e ampliando o seu espectro simbólico14.

Para a autora, de cenário que funcionava apenas como pano de fundo para idílios e

aventuras, a cidade pouco a pouco, foi se transformando numa possibilidade de

representação dos problemas sociais, até se metamorfosear num complexo corpo

vivo, de que os habitantes são a parte mais frágil (PELLEGRINI, 2002, p. 7).

Essa literatura em trânsito tem mostrado que a literatura de resistência de

certa forma ainda pulsa, só que agora menos politizada e mais fragmentária, bem

menos esperançosa. Na visão de Pellegrini (2002, p. 6), “esse período assiste à

gradativa introdução do pós-modernismo no Brasil, aqui entendido como a lógica

cultural do capitalismo tardio”15.

A temática trabalhada pela literatura no Brasil depois de 1970 do século XX

reflete a sua situação econômica e social, marcada pela desigualdade, e a sua

condição política, que atravessou a ditadura, a abertura e a redemocratização.

14 Nesse aspecto, a busca da expressão nacional, que representava o sentido agônico da convivência entre nacional e estrangeiro, já não é mais o único caminho da produção da literatura brasileira. Assiste-se, também, ao surgimento da busca de inserção no mercado, inclusive internacional, o que implica transformações significativas do código estético-literário, que aos poucos incorpora até, como se fossem naturais — claro que com as honrosas exceções de sempre —, descuidos, mesmices, obviedades e redundâncias na fatura, em busca de leitores cada vez mais apressados e interessados nos derivativos que a televisão oferece (PELLEGRINI, 2002, p. 6). 15 A autora faz uso da leitura da obra Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (2004), de Fredric Jameson.

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Nessa variação de temas, a presença do híbrido, do descontínuo, do provisório,

caracterizou uma ficção, que com o fim do regime militar, viu nascer novas questões

relacionadas aos grandes centros urbanos, como as drogas, a AIDS, a violência e

temas relacionados às minorias. Segundo Pellegrini (2002, p. 15), a ficção brasileira

criou um “corpo vivo”, que vem se revelando cada vez mais como “lócus horribilis,

que corresponde às nossas condições econômicas, sociais e políticas, neste início

de século tão cheio de presságios de todas as dimensões”.

Ângela Maria Dias, em “As cenas da crueldade: ficção brasileira

contemporânea e experiência urbana” (2005, p. 87), explica que essa temática não

consegue fugir à “recorrente perplexidade diante da experiência histórica,

ficcionalizada como absurda e inverossímil”. Ainda, “[p]ara além da crueldade da

convivência nas metrópoles ocupadas pelo presente perpétuo das imagens e pelo

cotejo dos males da desigualdade social, o real transparece como trauma” (DIAS,

2005, p. 87). Os argumentos da autora apontam para um presente perpétuo das

imagens da paisagem urbana contemporânea que está dominada por cenários

artificiais, simulacros, embalagens enganosas que impossibilitam ao sujeito captar a

realidade empírica.

Consoante a prosa portuguesa produzida depois de 1970, Carlos Reis (2004,

p. 16) argumenta que a narrativa lusa é marcada “pela crescente abertura a temas, a

valores e a estratégias discursivas pós-modernistas”. Nesse rol, romances de

autores como José Saramago, Almeida Faria, José Cardoso Pires, Lídia Jorge,

Augusto Abelaira e António Lobo Antunes não deixam de lançar um olhar aguçado

sobre o modo como se efetivam as questões voltadas à alteridade.

Em suas reflexões, Isabel Pires de Lima (1998, p. 4) volta-se à narrativa

portuguesa atual. A autora expressa que ver o romance português pós-moderno

implica observar a “especificidade do contexto político, social e cultural de um país

que, cortado por uma ditadura longa e anacrônica, não experienciou nem em

liberdade, nem em plenitude, o projeto moderno de emancipação”. Lima vê na

narrativa lusa traços pós-modernistas que trazem muito da metaficção historiográfica

de que fala Hutcheon (1991). A autora também percebe na narrativa de José

Saramago um exemplo dessa tendência pós-modernista.

Para tanto, a pesquisadora cita o romance Ensaio sobre a Cegueira,

publicado em 1995, como exemplo. Na obra, o narrador saramaguiano dá ao leitor

conhecer um mundo possível, alternativo ao mundo atual, que faz com que o leitor

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abandone as leis deste último, passando a adotar outra perspectiva ontológica, ou

melhor: a mergulhar numa indeterminação ontológica de tipo pós-moderno.

A leitura feita até aqui sobre a narrativa contemporânea produzida no Brasil e

em Portugal, ainda que apontem mudanças quanto à estruturação e estilos, denota

que, indiscutivelmente, as narrativas brasileira e portuguesa refletem as

contradições das grandes cidades globalizadas, em detrimento das temáticas até

então consagradas nas tradições das letras brasileira e portuguesa, como a

problemática “nacional”.

De certo modo, o conceito de “nação”16, inspiração universalista, é oriundo

das metanarrativas da modernidade, e é desconstruído não apenas na teoria crítica,

mas também na criação literária pós-moderna. Nesse sentido, as narrativas

brasileira e portuguesa produzidas nas quatro últimas décadas são textos derivados

de uma experimentação estética e da valorização da heterogeneidade, difundida no

cotejo das diferenças sociais, da fragmentação do sujeito e da diluição da sua

identidade, bem como na marginalização do ser humano e no dilema da alteridade.

K. E. Schollhammer, em Ficção brasileira contemporânea (2009), define que o

“contemporâneo é aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um

anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo” (SCHOLLHAMMER, 2009,

p. 9). A literatura contemporânea não é aquela “que representa a atualidade, a não

ser por uma inadequação, uma estranheza histórica que a faz perceber as zonas

marginais e obscuras do presente, que se afastam de sua lógica”

(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10). Além disso, Schollhammer (1999, p. 30-31) dá

destaque à prosa pós-moderna que ganhou força a partir de 1980.

A fragmentação do sujeito na narrativa pós-moderna17 se dá,

concomitantemente, à tentativa de reconstrução da sua totalidade num mundo que

Bauman (2006, p. 36) vê cada vez menos convidativo. A próxima seção trata da

alteridade de maneira que se compreenda como a narrativa pós-moderna procura

representar um dos maiores dilemas das sociedades pós-modernas. O

16 Bauman argumenta que “nos tempos modernos a nação era a ‘outra face’ do Estado e a arma principal em sua luta pela soberania sobre o território e sua população. [...] O romance secular da nação com o Estado está chegando ao fim; não um divórcio, mas um arranjo de ‘viver juntos’ está substituindo a consagrada união conjugal fundada na lealdade incondicional” (BAUMAN, 2001, p. 211-212). 17 Essa questão acerca do “contemporâneo” e sobre o “pós-modernismo” na literatura será detalhada no capítulo 3 da dissertação, junto com a análise dos romances de Noll e Saramago.

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relacionamento eu-outro e a fragmentação dos afetos18 na esfera da modernidade

líquida.

2.2 O dilema da alteridade: pensar, sentir, tocar o outro

Eu quero ler poesia, eu nunca tive um amigo, eu nunca recebi uma carta. Fico caminhando à noite pelos bares, eu tenho medo de dormir, eu tenho medo de acordar, acabo jogando sinuca a madrugada toda e indo dormir quando o sol já está acordando e eu completamente bêbado. Eu nasci neste tempo em que tudo acabou, eu não tenho futuro, eu não acredito em nada (ABREU, 1988, p. 63).

Tal qual o narrador do conto O rapaz mais triste do mundo (1988), de Caio

Fernando Abreu, a narrativa recente, seja de extração brasileira ou portuguesa,

partilha de personagens forjadas na impossibilidade de narrar um mundo seguro

para todos. A personagem da narrativa do escritor gaúcho caracteriza o sujeito

andarilho, que fragmentado em sua totalidade, flui, corre, desliza pelo espaço

urbano feito líquido, transbordando desesperança e ceticismo.

O narrador do conto de Abreu insere-se ao tipo de narrador apresentado por

Regina Dalcastagnè (2002). Na narrativa atual, há:

[n]arradores cheios de dúvidas ou abertamente mentirosos, personagens descarnadas e sem rumo “autores” que penetram no texto para se justificar diante de suas criaturas – esses seres confusos que preenchem a literatura contemporânea habitam um espaço não menos conturbado (DALCASTAGNÈ, 2002, p. 23).

O narrador do conto do escritor gaúcho está à margem do processo de

produção de bens e imagens. Ao tratar sobre “A auto-representação de grupos

marginalizados: tensões e estratégias na narrativa contemporânea” (2007), a autora

expressa que “[t]al como outras esferas de produção de discurso, o campo literário

brasileiro se configura como um espaço de exclusão” (DALCASTAGNÈ, 2007, p.

18).

18 A ideia, nesse estudo, não é deliberar sobre os afetos na visão da psicanálise, mas sim de perceber

como são rarefeitos os afetos nas relações sociais, e como essa ausência interfere diretamente na fragmentação do sujeito e dos seus vínculos.

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A autora frisa que no âmbito das produções literárias, os autores brasileiros

são, em sua maioria, homens, brancos, moradores dos grandes centros urbanos e

de classe média. Nessa perspectiva, as personagens construídas nas suas

representações excluem o negro, pobre, homossexual, mendigo e prostituta, e

quando são incluídos, vem à cena numa posição secundária. Em contraponto a esse

prisma de exclusão, a pesquisadora discute a tensão presente em textos de

escritores provenientes de outros segmentos sociais, que têm de se contrapor a

essas representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, reafirmar a

legitimidade de sua própria construção. Cita, pois, Paulo Lins, com Cidade de Deus,

publicado em 1997, e Capão pecado, do escritor Ferréz, publicado em 2000

(DALCASTAGNÈ, 2007, p. 19) como exemplo disso.

Isso é revisto no artigo “Vozes nas sombras: representação e legitimidade na

narrativa contemporânea” (2008). No texto, Dalcastagné é enfática ao dizer que “[o]

silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que

buscam falar em nome deles” (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 78) no âmbito da voz

autoral e a arte literária, entre legitimidade e autenticidade do narrado.

Nessa reflexão, necessário reportar-se ao importante texto de Theodor

Adorno, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, publicado em 1958.

Adorno destaca a reificação das relações entre os sujeitos como elemento que

influencia diretamente na questão do discurso narrativo, haja vista o cabedal cultural

urbano19, responsável direto pela fragmentação do sujeito, que por meio da perda da

experiência e da memória coletiva transforma-se em um indivíduo isolado

socialmente.

Passado meio século de sua publicação, percebe-se o agravamento da

questão. A tese de Adorno conduz ao termo de difícil conceituação: epopeia

negativa. O pensamento do teórico acerca do narrador converge para a ideia de que

esse elemento é marcado pela negatividade e é estruturado a partir de três

elementos: o elemento social, o elemento histórico e o elemento individual. Esse

último condiz ao fato da não existência mais de um ego fixado e estável, mas da

verificação da ideia de que a construção do sujeito está em processo e em

transformação.

19 Entenda-se, nesse contexto, as mudanças sociais e culturais próprias da globalização.

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Partindo do elemento individual, pode-se perceber que os romances

produzidos na modernidade líquida assemelham-se a epopeias negativas. Essas

narrativas são testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si mesmo,

convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia pareceu

endossar o mundo pleno de sentido (ADORNO, 1983, p. 273). O narrador, filiado a

essa perspectiva, mostra que sua constituição se dá através de um ângulo negativo.

Adorno reforça isso em sua tese ao lembrar que na epopeia clássica há afirmação

de uma coletividade que se firmava no herói. A negatividade se alicerça no fato de

que não há coletividade ou mesmo herói. A partir da negação desses elementos,

percebe-se que não há grandes feitos a serem narrados, mas sim uma subjetividade

que é convertida no seu contrário.

Segundo Adorno (1983, p. 269), “o que se desintegrou foi a identidade da

experiência, a vida contínua e articulada em si mesma, que só a postura do narrador

permite”, pois, “narrar algo significa, na verdade, ter algo especial a dizer, e

justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela

mesmidade” (ADORNO, 1983, p. 270). Desse modo, depreende-se que a narrativa

fica impossibilitada de se concretizar numa sociedade em que não há interação

social e a alienação dos homens em relação a si mesmo se torna cada vez mais

institucionalizada.

Na narrativa pós-moderna não há espaços para heróis e nem tempo para atos

heroicos, nem tão pouco há aquele “lugar comum” da epopeia, para onde o herói

voltava depois de longas distâncias percorridas e lutas homéricas, fatos que lhe

restituíam o sentido da vida. Não há como o escritor narrar a cidade em sua

totalidade, pois, conforme Silviano Santiago (2002, p. 46), a pós-modernidade

“revela um narrador que olha para se informar, e, não, mergulhado na própria

experiência, doá-la a outrem. Na sociedade da imagem, o homem não mergulha

mais para dentro de si, em busca de um eu profundo”.

Por isso, o narrador pós-moderno recorre aos fragmentos figurativos de modo

disperso, e nunca uma imagem completa. É um tipo de narrador que quer extrair a si

da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele

narra da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar, mas nunca

narra enquanto atuante (SANTIAGO, 2002, p. 52).

Vive-se numa sociedade em que o diálogo enquanto troca de opiniões sobre

ações que foram vivenciadas torna-se difícil. Essa constatação vai ao encontro da

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tese desenvolvida por Santiago no ensaio “O narrador pós-moderno” (2002).

Segundo o crítico, “[a]s pessoas já não conseguem hoje narrar o que

experimentaram na própria pele” (SANTIAGO, 2002, p. 60). Por isso, “as narrativas

hoje são, por definição, quebradas. Sempre a recomeçar” (SANTIAGO, 2002, p. 54).

O narrador evidenciado por Santiago procura manter-se distante do fato

narrado. Olhar, espiar, flagrar, observar à distância são atitudes não apenas do

narrador pós-moderno, mas sim atitudes dos sujeitos que pertencem a sociedade do

olhar que encontram na aparência, no simulacro e na duplicidade sua expressão

mais completa (MAFFESOLI, 1984, p. 131).

Consoante a constituição contraditória e fragmentária do sujeito em seu

cotidiano, Michel Maffesoli expressa que é no jogo das aparências que se

desenvolve a vida do homem urbano no dinamismo das forças sociais. Em A

conquista do presente (1984), o filósofo explica que a teatralização da vida cotidiana

se dá quando o sujeito encena ser alguém que na verdade não é, usando máscaras

da aparência. Máscaras essas que ele pode mudar quando a situação exigir para

que, assim, ele se sinta inserido aos moldes da sociedade fetichista, voltada às

imagens e ao culto do consumo.

É na força da encenação diária do sujeito que pode-se compreender o

dinamismo das forças do sujeito que se mascara, ora para se “mostrar” superior ora

para se ocultar atrás da máscara do conformismo. A constatação de Peixoto (1987,

p. 204) de que o “mundo produzido como imagem” é fato comprovado na sociedade

atual, pois o sujeito relaciona-se antes com o objeto do que com seu semelhante.

Essa constatação que é recuperada nas palavras de Jameson (1995), ao

lembrar que no contexto da globalização, os sujeitos se relacionam antes com o

universo das imagens, para, num segundo momento, entrar em conta com o

produto. Para o crítico norte-americano, esse relacionamento com a imagem

“prende” o sujeito à teia do consumo, o que torna o mesmo incapaz de transcender a

esfera da objetividade.

O sujeito da modernidade líquida vive num universo saturado de clichês, em

que a banalização do espaço e das imagens projeta a descartabilidade não somente

dos objetos, mas também das pessoas. A cidade líquida não possibilita encontrar

rastro algum de identidades inteiriças, sólidas, mas apenas identidades “derretidas”,

sujeitos liquefeitos em sua constituição. No espaço urbano, os sujeitos tratam o

outro com indiferença, com impessoalidade, e “manter-se à distância parece a única

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forma razoável de proceder” (BAUMAN, 2008, p. 93). Nesse contexto, o dilema da

alteridade ganha relevo e força, não podendo mais ser escamoteado ou tratado

como um problema de segunda ordem na categoria dos conflitos sociais.

A modernidade líquida propaga a necessidade do sujeito em seguir a mão

invisível do mercado, o que é uma obrigação caso ele queira manter sua cadeira

cativa, pois a vida na sociedade líquida-moderna “é uma versão perniciosa da dança

das cadeiras, jogada para valer” (BAUMAN, 2009, p. 10). Antes locais agora globais,

as contradições sinalizam que a função ordenadora da cidade está morrendo,

lentamente. A agonia do espaço urbano deve-se a problemas dos mais diversos,

como superpopulação, precariedade de serviços públicos, violência social,

desemprego, entre outros.

Consequentemente, o relacionamento eu-outro é mercantilizado, mostrando

que frágeis laços de afeto e relacionamentos profissionais estão aptos a serem

desfeitos, “derretidos” frente a qualquer desagrado. Nesse ponto, oportuno lembrar

das palavras de Theodor Adorno em sua tese “Educação após Auschwitz” (1994).

Na tese, o autor lembra de que o ocorrido no campo de concentração nazista não foi

um acontecimento isolado, mas algo que vem ao encontro de uma sociedade

reificada. Frieza, falta de amor e indiferença são condições formuladas ao longo da

história da Humanidade, e não foram exclusividade no Holocausto.

No círculo social da vida líquida, a alteridade sofre as consequências dessa

liquidez desmedida. Na cidade, não mais se tem o engajamento mútuo. Todos estão

ocupados o tempo todo, seja trabalhando na produção de objetos consumíveis, seja

consumindo. Bauman (2001) lança um olhar crítico sobre o dilema da alteridade na

sociedade atual, cujo cenário está desprovido de vínculos identitários coerentes e de

relações sinceras. Os relacionamentos seguem a lógica mercantil, que estimula o

descarte do que já foi consumido.

Bauman lança mão do pensamento do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que

na obra Tristes Trópicos (1957), escreve sobre as duas estratégias de enfrentar a

alteridade: a antropoêmica e antropofágica. Interessa, aqui, a antropoêmica,

estratégia que se resume no ato de “‘vomitar’, cuspir os outros vistos como

incuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o diálogo, a interação

social” (BAUMAN, 2001, p. 118). A vida na cidade traz em seu bojo a fama de ser

uma experiência que desperta sentimentos desencontrados, atrai e repele ao

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mesmo tempo. Por isso mesmo, a homogeneidade social é descartada do círculo de

convivência.

No círculo globalizado da alteridade, relações amorosas, familiares,

profissionais são vistas com receio e desconfiança diante de um possível

relacionamento duradouro. Se a liquidez, como já foi expresso antes, é a grande

virtude do sujeito na atualidade, a durabilidade dos contatos e relacionamentos é

menosprezada. Bauman (2008b) reconhece nessa postura do sujeito da sociedade

líquido-moderna um consumidor acostumado às regras do mercado. Esse indivíduo

deseja aplacar seus anseios de consumo por algo novo que deve ser descartado

assim que o desejo for consumado ou que uma nova “mercadoria” seja ofertada.

Essa lógica é que dita as regras nos relacionamentos na atualidade. Segundo o

autor, a sociedade globalizada se distingue por uma reconstrução das relações

humanas a partir do padrão e à semelhança das relações entre os consumidores e

os objetos de consumo (BAUMAN, 2008b, p. 19).

Na obra Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria

(2008b), Bauman enfatiza que a cultura de consumo transforma os sujeitos em

mercadorias20. Fato que eles aceitam pacificamente e de forma alienada. Dentro

dessa lógica, percebe-se o esvaziamento do sentido das relações sociais, que vem

de mão dada com uma ameaça iminente ao consumidor, de que ele se torne

também uma mercadoria.

Próximo às ideias de Karl Marx acerca do fetichismo e da reificação, Bauman

chama esse fenômeno de “fetichismo da subjetividade” (2008b), em que o sujeito

assume aspecto de mercadoria para responder aos anseios da demanda do

mercado. Como exemplos, cita-se o aprimoramento profissional do sujeito, sendo

que para subir um degrau na carreira o mesmo não mede esforços para “puxar o

tapete” de alguém que possa representar um obstáculo à sua ascensão. Ainda, tem-

se a ideia fixa de “quem vai ao ar, perde lugar”, em que a mais pequena distração

pode representar a exclusão. Aliado ao desejo de ser sempre e sempre mais

competitivo, o sujeito demanda cuidados com o corpo (postura, forma de falar,

trajes, aparência física), afim de ser “consumível”.

20 Karl Marx adverte que o caráter místico da mercadoria não provém, portanto, de seu valor de uso, tampouco do conteúdo das determinações de valor, mas da autonomização das coisas objetivadas pelos produtores que, na modernidade capitalista, assume a forma de mercadoria (MARX, 1985a, V. 1, Tomo 1 e 2, p. 70).

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O “fetichismo da subjetividade” advém da liquefação do “mundo bom e

seguro” que a modernidade em sua fase sólida construiu. A modernidade líquida

“derreteu” o ideal de uma sociedade transparente, em que nada de obscuro ou

impenetrável se colocasse no caminho do olhar. Em outras palavras, uma sociedade

em que nada estragasse a harmonia na relação eu-outro; nada “fora do lugar”; um

mundo sem “sujeira”, sem estranhos, sem impedimentos à felicidade (BAUMAN,

1998, p. 21).

No âmbito da alteridade, a vida líquida não permite ao sujeito firmar laços

duradouros. Tudo é construído com vistas ao consumo. Na obra Amor Líquido:

sobre a fragilidade dos laços humanos (2004, p. 10), Bauman argumenta que a

temeridade da aproximação do outro impede a concretização dos afetos, pois “é

preciso diluir as relações para que possamos consumi-las”. No coração da cidade, a

indiferença e a velocidade impede que se olhe o outro pelo ângulo daqueles que

estão impedidos de participar e impedidos de se mover. Aqueles que não têm poder

aquisitivo para consumir os bens ditados pela moda passageira, estão fora do jogo.

Ao grupo daqueles que não resistiram à dança das cadeiras podem se incluir

os desempregados, os mendigos, os estrangeiros, os deficientes físicos, os usuários

de drogas psicoativas, prostitutas, homossexuais. Esses representam o grupo

indigesto que podem atrapalhar a harmonia e a imagem social. São esses os

estranhos que, na percepção de Bauman (1998a, p. 28), não tem mais valia para o

mundo ordeiro, e “não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo”,

e que precisam, portanto, serem vomitados, afastados.

Nessa condição, subtende-se que o relacionamento eu-outro se liquefaz

diante da necessidade da convivência, e que só não acontece devido o receio, medo

ou egoísmo que se instalou entre os corações urbanos, tal qual uma parede de

vidro, em que se pode ver outrem, mas não se aproximar. É bem verdade que o

mundo é o que o sujeito vê e que, contudo, precisa aprender a vê-lo como se

apresenta21 (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 16).

21 Este redimensionamento do olhar para o campo da percepção traz em seu bojo uma outra concepção de vida, de existência, fundamentadas na vertente da filosofia contemporânea designada Hermenêutica fenomenológica, a qual se filia Maurice Merleau-Ponty, e que trata do ser no mundo enquanto ser situado nas relações de co-existência. Para tanto, desconstrói o discurso pragmático e individualista predominante nas estruturas sociais contemporâneas.

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Ver-por-ver, ver-para-crer são expressões do cotidiano que jogam luz sobre o

olhar enquanto prática de ver o outro sem um olhar de exclusão, indiferença22,

afastamento ou de repulsa. O olhar, então,

[...] transcende o limite do visível para o invisível. Ou seja, olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o ‘real’ fora de nós, é sobretudo, um mergulho no sensível. O visível e o invisível não são duas faces diferentes do olhar, mas o modo próprio e originário de apreensão da realidade (SILVA, 2012, p. 17).

A problemática da alteridade está relacionada à condição do sujeito urbano,

que em meio a uma rotina maçante e no acúmulo de imagens e signos, procura se

reconhecer e se identificar com imagens, grifes e personalidades que em nada

refletem sua identidade, e sim uma identidade fluida, fruto dos meios mediáticos.

Quanto ao dilema da alteridade, Celeste Olalquiaga, no texto “Megalópolis:

sensibilidades culturais contemporâneas” (1998, p. 16), é enfática ao afirmar que a

experiência urbana transparece sentimentos, emoções e sensações que “são

evocados mais efetivamente pela imagem da mídia, do que pela exposição direta de

contato e apreensão do outro”. No contexto atual, a alteridade conhece sua cisão

mais radical na época atual.

Nos muitos espaços urbanos da sociedade líquido-moderna, os

relacionamentos oxidam os elos da corrente dos relacionamentos sociais íntegros, o

outro é um obstáculo que precisa ser “vomitado”. De modo claro, a renúncia em

olhar ao outro com olhos que não sejam de “vomitar” e de excluir qualquer elo de

ligação ou proximidade gera, consequentemente, a marginalização. Nessa reflexão,

marginalização não se refere a sujeitos voltados ao mundo sórdido da criminalidade

em todas as suas ramificações. Marginalidade, no sentido de sujeitos que são

postos à margem da modernidade líquida.

Desse modo, a narrativa produzida na modernidade líquida traz personagens

que usam a máscara da diferença, representando os sujeitos fragmentados que

coabitam num espaço urbano predisposto à pluralidades, antagonismos, conflitos e

tensões. O olhar nada otimista através do qual filósofos e sociólogos veem a

problemática da alteridade na cena urbana “respinga” na literatura.

22 Jean-Paul Sartre destaca a importância do olhar do outro no congelamento de traços do ser-para-si como um em-si, tornando o outro objeto do olhar. A indiferença, escreve o filósofo, “é uma cegueira com relação aos outros. Quase não lhes dou atenção, ajo como se estivesse sozinho no mundo; toco de leve as pessoas como toco de leve paredes; evito-as como evito obstáculos” (SARTRE, 1997, p. 474).

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Jaime Ginzburg, em “Cegueira e Literatura” (2004), elabora uma reflexão

sobre a problemática da constituição do sujeito. Segundo o crítico, a cegueira pode

ser lida levando-se em conta dois aspectos. No primeiro aspecto, ela vem

“associada conotativamente aos limites do conhecimento, à ilusão, à incerteza”

(GINZBURG, 2004, p. 57). Nesse caso, ela é vista como uma metáfora. Em outra

perspectiva, a cegueira é vista como “uma forma específica de experiência,

caracterizada pelo limite, pela exposição do ser humano, da incomunicabilidade, da

impossibilidade de viver senão em uma condição trágica” (GINZBURG, 2004, p. 57).

Em muitos dos romances escritos em língua portuguesa depois de 1970, a

cegueira, em seu sentido metafórico, pode ser relacionada à impossibilidade de os

sujeitos fragmentados “não querer ver” o outro, remetendo, logo, a experiência de

choque oriunda de relacionamentos fugazes e precários de um tempo líquido em

que são muitas as vendas que inibem o olhar.

Assim, como narrar o outro? É ponto pacífico que depois dos anos 70 do

século XX a ficção brasileira e lusa fixou-se como urbana, e funcionam como

tradutores dessa espécie de “lugar de pressão” nos seus múltiplos níveis. Um

desses níveis, em especial, traduz a exclusão da maior parte dos indivíduos do

sistema que ela representa (PELLEGRINI, 2002, p. 15), colocando o sujeito à

margem da sociedade.

A fragmentação do sujeito em muitas das narrativas brasileira e lusitana se dá

num espaço urbano conturbado, que não mais permite o relacionamento eu-outro; e

quando o faz, não deixa de escamotear posturas que velam os verdadeiros

interesses no conflituoso jogo da alteridade. Lucia Helena, em esclarecedor ensaio

denominado “Uma sociedade do olhar: reflexões sobre a ficção brasileira” (2008, p.

11), vê na narrativa atual a flagrante presença da sociedade do olhar. Isso porque há

um bombardeio de ícones que congestiona a paisagem urbana e, com isso, queira

ou não, o sujeito altera seus hábitos e costumes, altera a convivência, a percepção

de si mesmo e do outro. Nessa sociedade do olhar, todos espiam, mesmo que de

modo involuntário, mas isso não quer dizer que enxergam melhor.

Ainda que o olhar esteja associado ao interior do ser, voltado para o sentido

da co-existência, visando o encontro com o outro, “o voyerismo obrigatório” cancela,

em vez de abrir, as dimensões do que se vê” (HELENA, 2008, p.11). Nesse

paradoxo, o leitor não deixa de ser um expectador de imagens das que os

narradores pós-modernos lançam mão na sua escritura. São narrativas que,

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conforme já se viu com Pellegrini (1999, 2005), são verdadeiras operações

metalinguísticas costuradas por uma mistura de linguagens e imagens.

Helena (2008) coloca a narrativa de João Gilberto Noll no rol das narrativas

que operam na categoria ficção-limite e na textualização do problema da imagem da

arte literária na década de 80 do século passado. Na tessitura dos romances

Bandoleiros (1985) e Fúria do corpo (1981), a autora vê uma “pedagogia do olhar”

(HELENA, 2008, p. 16), em que o caráter do espetáculo e da “teatralização da vida

cotidiana” instaura um empreendimento artístico que culmina na “fria” dramatização

da vida contingente. Dramatização essa que mostra tudo aquilo que se expôs no

estudo até aqui, a saber: a fragmentação de uma identidade fixada no modelo

cartesiano (modernidade) em substituição pela insegurança, angústia, incerteza e

precariedade, o que caracteriza a problemática constituição do sujeito na sociedade

líquido-moderna.

Consoante as ponderações entre alteridade e vida urbana, Regina

Dalcastagné, em “Sombras da cidade: o espaço da narrativa brasileira

contemporânea” (2003), crê que há no romance uma espécie de suspensão do

espaço, que deixou de ser descrito na sua concretude, em que não há para as

personagens a possibilidade de constituírem uma experiência palpável, em que a

incompatibilidade é voga, seja em relação ao espaço seja em relação ao outro.

Na perspectiva da narrativa portuguesa, Seixo (1986) explica que a alteridade

no romance luso firma-se “no nível da sua organização semântica”. Isto é, na

estruturação lógica dos elementos constitutivos da narrativa e no direcionamento

temático e, além disso, também no próprio discurso literário, ou em sua identificação

mimética. Para a teórica, o novo aspecto utilizado para denotar o sentido de

alteridade que a narrativa suscita tem como elemento maior a auto-referencialidade:

Ao apontar para si próprio que o texto, engrandecendo as marcas do seu projeto literário, pode ultrapassar-se e encontrar o seu ‘outro lado’, que não é nem o reflexo social, nem o estatuto simbólico ou mítico, nem a sua projeção de mundividência (SEIXO, 1986, p. 22-23).

Grosso modo, as narrativas brasileira e portuguesa comungam da ideia de

Ernesto Sabato a respeito da personagem que o romance traz à cena. Em O escritor

e seus fantasmas (2003), o autor lembra que a personagem da narrativa atual é o

espelho do sujeito que se lançou “cegamente à conquista do mundo exterior,

preocupado tão somente com o manejo das coisas”, e que por isso “acabou por

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coisificar-se, caindo no mundo bruto em que rege o determinismo cego” (SABATO,

2003, p. 84).

Por sua vez, as narrativas brasileira e portuguesa produzida nas últimas

quatro décadas têm revelado personagens fragmentadas em sua constituição.

Personagens que não ascendem a totalidade como se lia em muitos romances do

século XVIII. O passado da cidade não se coaduna com o tempo presente,

tampouco com o futuro. O sujeito sucumbe ao caudal de urbanidade e socialidade

que a cidade induz, pois o processo vivido pelo sujeito pós-moderno denota que os

vínculos na cidade líquida parecem oxidar cada vez mais os elos da corrente que

ligam os sujeitos entre si e em comunidade, elos esses que foram substituídos pela

insegurança, angústia, incerteza e precariedade.

O romance não ascende à pura imaginação, nem tende ser apenas simulacro

de uma realidade dada ao escritor anteriormente, e sim busca transitar numa

espécie de um lugar mais propício que possa potencializar a reflexão de si e do

outro, sem que o leitor se dê conta disso. Por isso, reforça Sabato (2003, p. 37), “o

grande tema da literatura não é mais a aventura do homem lançado na conquista do

mundo externo, mas que explora os abismos e covas de sua própria alma”, na busca

de entender a si mesmo e ao outro.

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3. OS SUJEITOS FRAGMENTADOS DE ENSAIO SOBRE A

CEGUEIRA E HOTEL ATLÂNTICO

Capas. Disponível em: https://www.google.com.br/ search?q=capas+dos+livros+ensaio+sobre+a+cegueira+e+hotel+atlantico. Acesso em: 20 jun. 2013.

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A prerrogativa de Antonio Candido (1967, p. 68) de que a literatura é “um

sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na

medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a” possibilita

compreender o posicionamento do crítico a respeito de que a obra literária é

resultante de um “fazer” e “pensar” históricos, em que o escritor sofre influências do

contexto sócio-histórico no ato de produzir sua escritura ficcional.

Em sua tese, Candido (1967) tece considerações sobre a crítica literária

sociológica e o modo como esta constrói a análise da obra literária. O sociólogo

defende uma crítica literária que possa verificar como a realidade social se

transforma em componente da estrutura da obra literária, de modo que pode ser

estudada em si mesma, e aponta que só o conhecimento da obra permite

compreender a função que a mesma exerce sobre o leitor.

Candido (1967, p. 4) enfatiza que a busca pela “unidade” da obra literária

somente pode ser compreendida quando houver a fundição do texto com o contexto.

O prisma social relegado à obra literária apresenta dois aspectos. O primeiro refere

que a concepção da obra de arte tem é valorada a partir dos valores da sociedade

em que é produzida, e estes permanecem na sua estrutura. O segundo aspecto

atenta para o fato de que a obra de arte influencia os seres humanos, produzindo

um efeito de reafirmação de valores sociais ou questionamentos destes, provocando

novas concepções de mundo e de conduta (CANDIDO, 1967, p. 19).

Consoante ao romance, gênero em foco nessa dissertação, os aspectos

elencados por Candido (1967) são passíveis de serem observados no estudo. Tanto

na estrutura do texto literário como na abordagem e nas temáticas utilizadas pelos

escritores, a narrativa pós-moderna não deixa escamotear as rápidas e constantes

mudanças evidenciadas no cenário global, antes sim traz a lume um mal-estar de

toda ordem que ora aflige ora denigre os sujeitos urbanos.

No contexto das relações entre literatura e sociedade à luz das

transformações da modernidade líquida, o romance é a arte que traduz em suas

linhas a condensação das incertezas e questionamentos diante de um mundo

globalizado que se mostra fragmentado, veloz, mediático, instável e efêmero. Nas

quatro últimas décadas, o gênero passou por mudanças que vão desde a

representação verossímil, quase fotográfica da vida, como se viu no romance

realista do século XIX, para outra mudança, em que os fatos narrados refletem o

caráter denso e fragmentado da vida do sujeito em sociedade. Com isso, na

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modernidade líquida – tempo da “liquidez” da alteridade –, a representação da

realidade passou a ser sugerida e questionada a todo o momento, para que o texto

literário tenha sentido.

No tocante à literatura brasileira e à literatura portuguesa, nas quatro últimas

décadas, tem-se percebido que o espaço urbano tem sido objeto de representação

por parte dos escritores. A narrativa atual mapeia a trajetória do sujeito por um

espaço em que o sentido do “outro” está relacionado com o sentido social, e, as

vivências de alteridade são construídas e reconstruídas de acordo com as

experiências e as necessidades de sobrevivência que a vida na sociedade líquido-

moderna impõe.

Gomes (1994, p. 1), atento à literatura produzida nos anos finais do século

XX, enfatiza que ela é resultante de um “tempo pós-utópico, em que o presente

desaloja o futuro enquanto ‘terra prometida’, pondo sob suspeita as certezas que a

modernidade anunciava”. Para o crítico, a literatura, filha desse tempo de subtração

dessas certezas, tornou-se problema, como foi para as vanguardas, e constitui

elemento forte da pauta das questões pós-modernas (GOMES, 1994, p. 1).

No que tange à temática que envolve o espaço urbano e as vivências e

experiências do citadino, na narrativa pós-moderna a fragmentação do sujeito

ocorre, concomitantemente, à liquefação da alteridade, em que a relação eu-outro

somatiza a ambiguidade, a precariedade e a instabilidade dos relacionamentos. Os

sujeitos que coabitam os globalizados espaços urbanos vivem uma constante

relação de antipatia, em que os laços de afeto e proximidade com o outro acarretam

na marginalização do citadino.

Nesse sentido, o romance pós-moderno sinaliza uma “liquefação” da boa

sociedade, fator que dá margem a mal-estar de toda ordem. Com a dissipação do

“mal-branco”, não é possível concretizar uma boa sociedade, justa e igualitária. os

sujeitos põem à margem os bons costumes e valores antes cultivados, e

concretizam seus verdadeiros desejos e intenções, julgando não poder ser vistas por

ninguém. A civilidade é posta em xeque, e não há mais barreiras de valores ou

pudor. A narrativa revela a degradação humana em seu ápice.

A literatura de extração urbana representa a cidade e seu habitante por meio

de discursos libertos de qualquer alento, catarse, consolo ou utopia que possam

escamotear a realidade social. Conforme Dalcastagnè (2002, p. 31), a imagem da

cidade nos textos literários se impõe na tessitura ficcional, pois “o espaço urbano,

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além de ser um espaço de aglutinação, é, antes de tudo, um território de

segregação”.

Se por um lado tem-se a crença de que o romance está em crise, tem-se, por

outro lado, escritores como José Saramago e João Gilberto Noll que percebem

nesse gênero literário a oportunidade para a representação de um tempo em crise.

Nessa direção, as “alteridades literárias” de duas culturas distintas – Portugal e

Brasil – auxiliam a refletir a respeito de como as narrativas desses escritores vêm

marcadas pelo espaço onde se configuram, bem como são marcadas pelas

temporalidades que as tornam possíveis e que de alguma maneira exprimem.

As “alteridades literárias” evidenciadas em Saramago e Noll permitem ver de

que maneira ocorrem os confrontos do cotidiano e auxiliam a pensar que nos rastros

da literatura se esboça uma “leitura” do homem e seu contexto social, como enfatiza

Candido (1967). No caso de Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico, objetos de

análise nesse estudo, tem-se a abertura para que se busque a representação das

vivências do sujeito no espaço urbano, observando-se os eixos temáticos

“alteridade”, “fragmentação” e “marginalização”.

As considerações acerca dos romances possibilitam refletir e discutir a

literatura pós-moderna num viés que possibilite aproximá-los, levando em conta a

desconstituição do “eu”, representado pela fragmentação do sujeito da sua paulatina

marginalização nos meandros relacionais evidenciados no espaço urbano. Essas

narrativas, por sua vez, constituem um imaginário providencial para a representação

do estranhamento da vida cotidiana citadina que marginaliza o sujeito.

O capítulo que encerra a dissertação é estruturado em duas seções. A

primeira seção traz a fortuna crítica da obra do escritor português a partir dos

romances da “fase pedra”. Ainda, elenca aspectos que inscrevem as narrativas da

“fase pedra” na pós-modernidade. A última parte dessa seção traz a leitura e análise

do Ensaio sobre a cegueira (1995). A segunda seção inicia com a fortuna crítica da

obra do escritor João Gilberto Noll para, depois, trazer uma leitura crítica de Hotel

Atlântico.

3.1 José Saramago e os romances da “fase pedra”

A crítica literária e a historiografia da cultura portuguesa e brasileira que se

têm dedicado à análise da produção literária portuguesa das últimas quatro décadas

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são unânimes em afirmar que a Revolução dos Cravos, movimento militar ocorrido

em abril de 1974, demarcou o início de uma nova etapa da história de Portugal. A

essa nova etapa condizem transformações tanto de ordem política e ideológica,

aquisição de novos hábitos culturais, sociais e mesmo pela descoberta ou

instauração de uma nova “psicologia” coletiva, novos comportamentos e formas de

estar na vida. Nas questões de ordem estética, a arte passa por mudanças que

venham a se aproximar da representação da realidade contingente. A literatura é,

sem dúvidas, a mais abrangida.

Do ponto de vista formal e estético, a literatura lusa necessitava de uma

“nova” escrita que viesse a dar conta desse momento pós-revolução. A

“necessidade de tudo reconstruir”, escreve José Rodrigues de Paiva, em

“Revolução, renovação: caminhos do romance português no século XX” (2009, p. 2),

faz com que a representação ficcional das radicais e necessárias transformações

tenha de passar pela própria escrita que estava “abalada nas suas estruturas e

quebrada na sua organicidade canônica, fragmentada, desestruturada, tal como

esse mundo arrasado que era preciso soerguer dos escombros” (PAIVA, 2009, p. 3).

O espírito renovador observado no cenário político e cultural com o fim da

Revolução dos Cravos se estendeu aos domínios da literatura e, obviamente, no

romance. No caso da ficção portuguesa, a “nova” escrita literária objetivou:

[...] ampliar algumas experiências de ordem estética já anteriormente intentadas, prosseguindo um caminho de renovação textual (sobretudo estrutural) começado a trilhar, principalmente no romance, por alguns autores já nos anos de 1960, em particular pelos que promoveram a saída estética do impasse e do esgotamento em que o neo-realismo fizera mergulhar a narrativa ficcional (PAIVA, 2009, p. 2).

Maria Alzira Seixo, no artigo “Narrativa e ficção: problemas de tempo e

espaço na literatura européia do pós-modernismo” (1994, p. 111), expressa que

certos modos mais salientes do romance português pós-moderno “remetem

simultaneamente para a auto-reflexividade e para a tomada de posição junto do

terreno social”. De um modo geral, o posicionamento “junto ao terreno social” é

flagrado nos romances de José Saramago (1922-2010), pois suas personagens

apresentam uma constante preocupação com os conflitos humanos, sejam esses de

ordem psicológica ou de ordem social, suscitando, pois, reflexões a respeito da

condição humana em sociedade.

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Saramago conheceu a fama e o reconhecimento a partir de 1991, quando

recebeu o prêmio da Associação Portuguesa de Escritores (APE), com o romance O

Evangelho Segundo Jesus Cristo. Pelo conjunto de sua obra, recebeu, em 1995, o

prêmio “Camões”; e, em 1998, foi agraciado com o prêmio “Nobel de Literatura”.

Nesse estudo, opta-se por textos que fazem uma leitura crítica da narrativa

saramaguiana publicada a partir de 1995. Isso porque o escritor mesmo proferiu em

palestra datada de 1998, em Turim, que sua obra pode ser vista sob dois momentos

distintos: a fase “estátua” e a fase “pedra”. Consoante à primeira fase, Saramago

observa que nela ele descrevia a estátua em seu exterior, em sua superfície.

O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra [...] é o resultado daquilo que foi retirado da pedra, a estátua é o que ficou depois do trabalho que retirou pedra a pedra [...] Então é como se eu tivesse ao longo destes livros todos andado a descrever essa estátua [...] porque quando o acabei [...] não sabia que tinha andado a descrever uma estátua, para isso tive de perceber o que é que acontecia quando deixávamos de descrever e passávamos a entrar na pedra (SARAMAGO, 1998, s/p.).

A esse momento, inserem-se as obras Terra do pecado (1947), Manual de

pintura e caligrafia (1977), Levantado do chão (1980), Memorial do convento (1982),

O ano da morte de Ricardo Reis (1984), A jangada de pedra (1986), História do

cerco de Lisboa (1989) e O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991).

A fase “pedra” corresponde ao interno da estátua, em que “a tentativa de

entrar na pedra é como quem diz entrar no mais profundo de nós”, explica

Saramago (1998, s/p). A esse momento, correspondem os romances Ensaio sobre a

cegueira (1995), Todos os nomes (1997), A caverna (2000), O homem duplicado

(2002), Ensaio sobre a lucidez (2004), As intermitências da morte (2005), A viagem

do elefante (2008) e Claraboia (2011).

Os romances dessa fase têm como características uma linguagem discursiva

mais próxima da oralidade, em que a pontuação convencional de diálogos é

descartada para dar lugar a um discurso mais fluido, vindo a configurar num traço

estilístico do romancista. Além disso, as narrativas escritas a partir de 1995 trazem

também a discussão sobre os diversos tipos de mal-estar que assolam a

Humanidade, representados através do recurso à alegoria, em que Saramago

mantém seu viés humanístico visível na fase “estátua”, porém vista sob um prisma

atual. Nessa direção, alguns estudos voltados à segunda fase são elencados para

que se compreenda esse período de transição.

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Consoante a prosa portuguesa produzida depois de 1970, Carlos Reis, em

“Romance e história depois da revolução: José Saramago e a ficção portuguesa

contemporânea” (1994, p. 16), argumenta que a narrativa lusa é marcada “pela

crescente abertura a temas, a valores e a estratégias discursivas pós-modernistas”.

O romance português das três últimas décadas instaura uma dinamicidade que traz

o amálgama entre diálogo crítico e discurso histórico e social, mistura essa que é

mediada por narrativas que analisam o contexto histórico-social e propõem, a partir

disso, novos olhares sobre o sujeito em sociedade.

Essa visão corrobora com o exposto por Seixo (1986), que destaca que, nos

romances portugueses da atualidade, é marcante a presença do aspecto de

“alteridade”. A pesquisadora cita como exemplo disso a produção ficcional de

Saramago. Em A palavra do romance (1986), a autora discorre a respeito desses

aspectos das realizações escriturais lusas, unindo a textualidade à auto-

referencialidade que a escritura romanesca passa a adotar, em Portugal, nas últimas

décadas.

Em outra obra, Lugares da ficção em José Saramago (2010), Seixo aborda a

questão que envolve a História e a ficção na prosa do escritor luso. Para ela, a

História é o outro tempo que vem ativar a consciência do presente. Contudo, alerta

Seixo, Saramago não faz História, faz ficção, integrando no romance dimensões

outras que engrandecem ou acentuam seu caráter textual específico, produzindo um

tipo de linguagem onde o passado objetual se contamina pelo presente crítico e

perspectivante (SEIXO, 2010, p. 23-24).

No caso de Ensaio sobre a cegueira, alguns elementos possibilitam

enquadrar o romance dentro do contexto da pós-modernidade. Diante da

diversidade de estéticas não é possível que se trace uma estética pós-moderna

definitiva, mas nas narrativas saramaguianas da segunda fase as experimentações

com a linguagem e o modo de pontuar as frases fazem com que se enquadre Ensaio

sobre a cegueira no rol dos romances pós-modernistas23.

Em sua dissertação de mestrado, O ser humano e a sociedade em

Saramago: um estudo sociocultural das obras “Ensaio sobre a cegueira” e “Ensaio

23 Os críticos descrevem a escrita pós-modernista como descontínua, mas nem sempre reconheceram a conexão entre esta descontinuidade semântica e narrativa e seu “correlativo objetivo” físico, o espaçamento do texto (FERNANDES, 2009, p. 303 apud McHALE, 1994, p. 181-182).

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sobre a lucidez” (2008), Iris Selene Conrado comenta que os romances

saramaguianos pós-1995 possibilitam a reflexão sobre a linguagem, bem como a

percepção de um labor discursivo caracterizado pela pluralidade de vozes e pelo uso

da ironia e da intertextualidade. Esses fatores permeiam a representação do ser

humano em seus conflitos e angústias em sociedade.

A leitura da tese de doutorado de Walter Praxedes, intitulada A Elucidação

pedagógica, história e identidade nos romances de José Saramago (2001), levanta

questões como: A obra literária tem significado pedagógico e político? O romance

também se constitui em objeto da análise e reflexão política? Tais questionamentos

implicam uma compreensão de que o contexto histórico e a sociedade de cada

época influenciam o autor e a sociedade é influenciada pela obra que ele produz.

Para o autor, Saramago, no curso de sua carreira como escritor,

[...] tem demonstrado sua preocupação em tornar a literatura um instrumento de emancipação humana. O escritor português explicitamente já assume para si e para seus escritos o objetivo de contribuir para que a humanidade realize uma mudança de valores. No seu entendimento, as civilizações contemporâneas estão sofrendo o choque das rápidas transformações do nosso tempo, tanto as científicas e tecnológicas como as morais e axiológicas (PRAXEDES, 2001, p. 28).

Aprofundando a compreensão a respeito da leitura das obras de Saramago,

compreende-se que o escritor português tem uma compreensão centrada no

cumprimento do seu papel de escritor, em influenciar a vida social e em reafirmar

seu compromisso com a escrita e com a sociedade.

“A (des) construção da identidade nos romances de José Saramago” (s/d) é

título do artigo de Shirley de Souza Gomes Carreira. No texto, a autora faz uma

leitura dos romances Todos os nomes, Ensaio sobre a cegueira e A caverna,

mencionando que, ainda que o escritor luso não desconstrua o conceito de

identidade nessas obras, ele “coloca em xeque os processos de concepção da

identidade, atribuindo-lhe um princípio que, antes de ser social e histórico, é

primordialmente discursivo” (CARREIRA, s/d, p. 01).

Nesse estudo, ao se referir a Ensaio sobre a cegueira, Carreira (s/d, p. 3-4)

comenta que nesse romance as personagens não são nominadas e trazem o

enfraquecimento das marcas usuais da historicidade, tão comuns em muitos

romances do escritor português. Com isso, o texto pode ser visto como “um espelho

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onde o leitor poderá mirar-se e refletir sobre o seu papel, enquanto cidadão do

mundo, na construção da história da humanidade” (CARREIRA, s/d, p. 4).

Em outro estudo, Carreira, em texto intitulado “O não-lugar da escritura: uma

leitura de Ensaio sobre a cegueira de José Saramago” (2001), mostra que a

impossibilidade de se situar a história do romance naqueles três conceitos da

historiografia – tempo, espaço e identidade – faz desta obra um retrato contundente

da própria condição humana. A autora expressa que no romance em questão,

[...] surpreende-nos a ausência das marcas usuais da historicidade. Não há sequer uma referência temporal que nos permita dizer com segurança em que momento histórico o mundo ficcional deve ser inserido. No entanto, a própria ausência de marcadores temporais permite-nos fazer reflexões acerca do seu significado. A percepção do tempo se faz sentir apenas na memória das personagens e nas observações do narrador. No continuum do tempo, o passado do qual as personagens se recordam é o conjunto de atitudes e valores que incorporavam antes da cegueira e sob esse aspecto o passado e o presente são julgados um à luz do outro na diegese (CARREIRA, 2001, p. 1).

Sandra Ferreira, no artigo “Espaços expectantes: sobre romances de José

Saramago” (2008), delibera a respeito da importância dos espaços no desenrolar

das tramas de muitos romances saramaguianos. Segundo ela, os romances do

escritor luso têm se caracterizados como “narrativas em que a estilização das

personagens adere aos recintos que as contêm, resultando disso que o arranjo dos

modos espaciais e temporais é decisivo para a interpretação desses romances”

(FERREIRA, 2008, p. 30).

Nessa direção, Ferreira (2008) anota que os espaços,

[...] sobretudo nos romances da segunda fase, assumem uma feição que parte da realidade empírica para infringir suas rígidas normas. A plasticidade e portabilidade dos cenários, na fabulação saramaguiana, representam ambientes públicos e privados que falam da nossa atualidade, mas se dimensionam em emanações labirínticas (FERREIRA, 2008, p. 30-31).

Levando em consideração as narrativas A caverna, Todos os nomes e Ensaio

sobre a cegueira, Ferreira (2008, p. 39) conclui que esses romances “elaboram

espaços que abolem a distância e propiciam a experiência da síntese”, elaboração

proveniente da proximidade entre as personagens nos lugares comuns em que eles

circulam. Lugares esses que são espaços que instigam a alteridade, sugerindo e

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forçando relacionamentos a partir com as quais as personagens precisam “aprender”

a conviver com o outro, seja para aceitá-lo, seja para negá-lo.

Dos espaços expectantes de Ferreira (2008) chega-se à tese de doutorado de

Nanci Geroldo Richter. Em Os espaços infernais e labirínticos em Ensaio sobre a

cegueira (2007), a pesquisadora dá destaque à questão espacial em que se

desenvolve o enredo do romance em destaque. A autora analisa a narrativa

saramaguiana, levando em consideração os conceitos de espaço e lugar, como

também os conceitos de lugar e não-lugar segundo a perspectiva de Marc Augé

(2004).

Flávia Belo Rodrigues da Silva, em sua dissertação de mestrado intitulada

Entre a cegueira e a lucidez: a tentativa de resgate da essência humana nos

“ensaios” de José Saramago (2006), faz uma leitura dos dois romances à luz da

dialética cegueira e lucidez. Ao debater a questão da alienação humana em

sociedade, a autora frisa que a análise dessas narrativas possibilita entrever o papel

do ser humano nos anos finais do século XX, para que se tenha um mundo mais

justo. Isso porque os romances em questão “fornecem cenários que, apesar de

pertencerem a uma ficção imersa em acontecimentos insólitos, trazem à tona as

questões mais fundamentais da realidade do mundo atual” (SILVA, 2006, p. 9).

Além disso, Silva (2006) discute a questão dos gêneros literários diante da

hibridez de formas e discursos próprios da pós-modernidade. Nesse caso, em se

tratando dos dois romances que se intitulam “ensaios”, tem-se caracterizada uma

tênue fronteira entre os gêneros literários, sendo este um traço típico deste período.

Maiquel Röhring, no artigo “Uma leitura humanista de Ensaio sobre a

cegueira, Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte, de José Saramago”

(2011), discute o estado de exceção que está intimamente relacionado ao

isolamento a que o Estado submete, nas três narrativas, os cidadãos e à

consequente suspensão de direitos. No entendimento de Röhring (2011, p. 15),

nessas três narrativas, saltam aos olhos as intenções políticas, pois apresentam um

questionamento e uma crítica à democracia e suas instituições e apontam, ainda,

para a necessidade de um sistema substantivamente democrático, no qual seja

realmente o povo a governar seu destino.

Anderson Pires Silva, no artigo “As impurezas do branco: Ensaio sobre a

cegueira como distopia positiva” (2011), disserta a respeito dos termos utopia e

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distopia à luz da narrativa de Saramago. Consoante à distopia, o autor comenta que

o termo:

[...] designa uma narrativa situada no futuro, ou em um tempo indeterminado, tendo por princípio uma crítica às formas políticas de totalitarismo e uma visão pessimista sobre a natureza humana. Embora situada em uma realidade alternativa, a narrativa distópica, quase sempre, tem como alvo o próprio presente (SILVA, 2011, p. 49).

Em “Traços pós-modernos na ficção portuguesa atual” (1998, p. 4), Isabel

Pires de Lima explica que o romance português traz em sua tessitura a

especificidade do contexto político, social e cultural de um país que foi “cortado” por

uma ditadura longa e anacrônica. Desse modo, Lima (1998) vê traços pós-

modernistas na narrativa de Saramago e cita Ensaio sobre a Cegueira (1995) como

exemplo. Isso porque nessa narrativa o narrador dá ao leitor conhecer um mundo

possível, que assoma como alternativo ao mundo atual, sugerindo ao leitor a

abandonar as leis deste último, passando a adotar outra perspectiva ontológica, ou

melhor: a mergulhar numa indeterminação ontológica de tipo pós-moderno.

Desse modo, é possível ler o romance em questão como pós-modernista. O

primeiro elemento a ser observado diz respeito ao termo “ensaio”. Segundo Teresa

Cristina Cerdeira da Silva, em “De cegos e visionários: uma alegoria finissecular na

obra de José Saramago” (1998), Ensaio sobre a cegueira é um romance que se quer

ensaio. Além disso, a pesquisadora pondera que esse “não é tão somente um

romance cujo assunto é a cegueira, mas também um ensaio entendido como

experiência, experimentação que revele a possibilidade de enxergar para além das

aparências” (SILVA, 1998, p. 693).

As aparências, nesse contexto, referem ao leitor, que passa a ver e a reparar

outros horizontes que vão além das imagens cotidianamente presenciáveis. Por

isso, a epígrafe ao início do romance, pertencente ao Livro dos Conselhos: “Se

podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Desse modo, a leitura dessa narrativa

possibilita discutir outra questão: a problematização do pós-modernismo.

No que tange a deliberar sobre a questão dos gêneros literários diante da

hibridez de formas e discursos próprios da pós-modernidade, ao usar o termo

“ensaio” no título da sua narrativa, a obra abre margens para que se discuta a

fronteira entre os gêneros literários. E Saramago certamente não o fez de maneira

gratuita, haja vista sua predileção em dar nomes instigantes aos seus romances. A

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título de exemplificação, tem-se História do cerco de Lisboa (1989), Manual de

pintura e caligrafia (1977), Memorial do convento (1982) e O Evangelho segundo

Jesus Cristo (1991).

Ensaio sobre a cegueira é pós-moderno porque busca esta experimentação

não apenas na forma, com a questão da hibridez de gêneros narrativos, mas

também no conteúdo, no qual a vivência humana pende entre a humanidade e a

animalidade, a solidariedade e a perversidade, a civilidade e a barbárie, a

democracia e a ditadura. Essas características dicotômicas não permitem uma

classificação precisa do romance “ensaio”, por isso vem ao encontro do exposto por

Hutcheon (1991, p. 25). A autora afirma que “o pós-modernismo é um fenômeno

contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que

desafia”. Assim, a hibridez dos gêneros – romance e ensaio – remete à modalidade

de escrita que, por sua vez, não correspondem ao que encontramos no conteúdo do

romance em questão.

Outro elemento a ser observado para que se possa enquadrar o romance

dentro do pós-modernismo remete à cidade ficcional em que se passa a história.

Essa cidade, diante do fato de não ter nome e estar situada num tempo não

demarcado pelo narrador, assoma como uma característica que possibilita ver como

um espaço da pós-modernidade. Nessa esteira, Shirley de Souza Gomes Carreira,

em seu texto intitulado “O não-lugar da escritura: uma leitura de Ensaio sobre a

cegueira de José Saramago” (2001), mostra que a impossibilidade de se situar a

história do romance naqueles três conceitos da historiografia (tempo, espaço e

identidade) faz desta obra um retrato contundente da própria condição humana.

Conforme a pesquisadora, não se pode ler o romance, dissociando a

ausência de referentes temporais da ausência de referentes espaciais. Se à luz da

perspectiva historicista o tempo e o espaço são essenciais no “todo” da obra, o olhar

que o pós-modernismo lança ao passado ultrapassa as barreiras formais da história,

pois “[a]o criar um texto em que essas marcas de identificação espaço-temporal

revelam-se enfraquecidas”, o escritor português “faz dele um espelho onde o leitor

poderá mirar-se e refletir sobre o seu papel, enquanto cidadão do mundo, na

construção da história da humanidade” (CARREIRA, 2001, p. 1).

Essa seção contempla uma leitura analítica do Ensaio sobre a cegueira e é

estruturada da seguinte forma. Inicialmente, elencam-se pontos que convergem para

que o romance possa ser enquadrado dentro do pós-modernismo. Depois, faz-se

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uma leitura da narrativa levando em conta dois aspectos. No primeiro aspecto, “olhar

de fora”, procura-se ler a narrativa do ponto de vista das personagens que, usando

do expediente do poder, no caso o Estado e o exército, isolam as personagens

cegas no manicômio abandonado, excluindo-as e marginalizando-as. No segundo

aspecto, “olhar de dentro”, lê-se o romance num viés que analisa as atitudes das

personagens cegas entre si, em que pese deliberar acerca do dilema da alteridade e

das relações que denigrem e marginalizam os sujeitos no espaço de confinamento.

3.1.1 Ensaio sobre a cegueira: quero ver, mas não posso

No documentário Janela da Alma (2002), de João Jardim e Walter Carvalho, o

escritor José Saramago expressa que a temática acerca da cegueira surgiu

enquanto ele de repente pensou: “E se fossemos todos cegos?”, para no momento

seguinte constatar que:

[...] mas nós estamos realmente todos cegos! Cegos da razão, cegos da sensibilidade, cegos, enfim, de tudo aquilo que faz de nós não ser razoavelmente funcional no sentido da relação humana... mas, pelo contrário, ser agressivo, ser egoísta, ser violento, enfim, isso é o que nós somos. E o espetáculo que o mundo nos oferece é precisamente este. Um mundo de desigualdade, de sofrimento, sem justificação (SARAMAGO apud JANELA DA ALMA, 2002).

A constatação de Saramago ampara-se na sua visão sobre a condição do

sujeito inserido na sociedade globalizada, em que imagens ditam as regras da

convivência. O excesso de imagens deixa o homem cego, enfatiza o escritor. Com

os sentidos enganados, os homens seguem como rebanho na multidão. Na

acuidade saramaguiana, o homem contemporâneo tem seus sentidos perdidos. Em

primeiro lugar de si próprio; e, em segundo lugar, na relação com o mundo,

acarretando em sujeitos que circulam pelos lugares sem saber muito bem nem o que

são, nem pra que servem, nem que sentido tem a sua existência (JANELA DA

ALMA, 2002).

As palavras do escritor luso levam à reflexão sobre um tempo em que, ainda

que o homem tenha o sentido da visão, não consegue ver a si e muito menos ao

outro. Nessa direção, a cegueira, tema central do romance Ensaio sobre a cegueira,

é articulada a partir de um olhar que transcende o campo da visão imposto pela

sociedade da imagem, que é uma das características da pós-modernidade, e se

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estende para um mundo ficcional onde o visível e o invisível se encontram e se

fundem.

A narrativa revela as cicatrizes do autoritarismo exacerbado por parte de um

governo autoritário de um país fictício no curso de uma epidemia de cegueira que

afeta boa parte dos habitantes de uma cidade sem nome. Partindo do fato de não

nominar a cidade e não localizá-la dentro de um espaço/tempo, o escritor português

faz entender que pode ser qualquer cidade (país, pátria, nação) onde imperam as

contradições imanentes à globalização.

O romance inicia com um acontecimento comum ao cotidiano de uma cidade

qualquer inserida na sociedade líquido-moderna. Nas ruas, muitos automóveis, a

tensão e pressa dos motoristas, que “com o pé no pedal da embraiagem, mantinham

em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem

vir no ar a chibata” (SARAMAGO, 1995, p. 11). A luz verde do semáforo acende,

porém um dos automóveis não se move e “[e]m meio às buzinas enfurecidas e à

gente que bate nos vidros percebe-se o movimento da boca do motorista, formando

duas palavras: Estou cego” (SARAMAGO, 1995, p. 12). Trata-se, pois, do primeiro

caso de uma cegueira branca que lentamente contagia os habitantes da cidade, que

passam a viver em meio ao caos.

A primeira vítima da cegueira põe as mãos diante dos olhos para ver se havia

visão e constata que havia “[n]ada, é como se tivesse no meio de um nevoeiro, é

como tivesse caído num mar de leite” (SARAMAGO, 1995, p. 13). As imagens da

cidade tornam-se nebulosas e fragmentadas aos olhos do cego. A partir desse

momento, a cidade passa a ser acometida de uma epidemia de cegueira que vai,

pouco a pouco, alastrando-se por todos os recantos urbanos.

Assim, o cenário urbano que antes poderia ser descrito nos mínimos detalhes

pelo olhar, desde as pessoas, veículos, casas, prédios, cores, formas dos objetos,

às expressões e sentimentos que se misturam às imagens materializadas do

cotidiano, não pode mais ser descrito. Diz o primeiro cego: “Vejo tudo branco, e logo

deixou aparecer um sorriso triste” (SARAMAGO, 1995, p. 18). Paulatinamente, a

epidemia de cegueira se alastra sobre a cidade inominada, atingindo quase toda

população. Sem distinguir classe social, o “mal-branco” dissemina as instituições

públicas e privadas, como também os valores sociais e individuais que antes

norteavam a vida em sociedade.

Para as autoridades do país,

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[e]nquanto não se apurassem as causas, ou, para empregar uma linguagem adequada, a etiologia do mal-branco, como [...] a cegueira passaria a ser designada, enquanto para ele não fosse encontrado o tratamento e a cura, [...] todas as pessoas que cegaram [...] seriam recolhidas e isoladas, de modo a evitarem-se ulteriores contágios (SARAMAGO, 1995, p. 45).

Partindo do aumento considerável das vítimas da cegueira e do isolamento

dos contagiados, a narrativa tece uma reflexão tenaz acerca da alteridade no âmbito

dos relacionamentos urbanos, sejam familiares, sociais ou profissionais. O romance

é um texto que se ocupa da desumanização, pois a cegueira não é tão somente a

impossibilidade de ver, mas é, sobretudo, uma condição através da qual as

personagens não conseguem exercer a humanidade.

A narrativa coloca o “ver” como um problema. Para realizar de modo pleno a

alteridade, o sujeito precisa enxergar o outro. Mas, no caso das personagens que

coabitam no texto de Saramago, o que pensam e como agem em relação aos cegos

em quarentena? Assim, buscar os rastros da sociabilidade na narrativa é discutir o

dilema da alteridade num viés que aborde a visão que o sujeito tem a respeito do

outro.

Levando em conta os eixos temáticos que balizam a leitura de Ensaio sobre a

cegueira – alteridade, fragmentação e marginalização –, no primeiro momento se

analisa o romance sob o “olhar de fora”. Busca-se, para tanto, a representação das

personagens fragmentadas diante da exclusão e marginalização perpetradas pelo

Estado em relação aos cegos, que são encarcerados num manicômio abandonado.

A epidemia de cegueira que percorre as linhas e entrelinhas do romance pode

ser apurada numa perspectiva estética e epistemológica. O pensamento de

Ginzburg (2004) é interessante, pois elabora uma reflexão sobre a problemática da

constituição do sujeito na atualidade e como alguns textos literários, como a crônica

de Paulo Mendes Campos, O cego de Ipanema (1998), o conto Amor, de Clarice

Lispector, o conto Infância, de Graciliano Ramos, e o conto São Marcos, de

Guimarães Rosa, os quais fazem referência ao sujeito pós-moderno e

contemporâneo.

Segundo o crítico, esses textos literários são representativos porque

tematizam a questão da cegueira do ponto de vista em que ela assoma como uma

forma particularmente importante na expressão da tragicidade humana. Para o

autor, “em tempos de catástrofes e desumanização, escritores procuram formas que

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de algum modo estejam ligadas a uma experiência fragmentária e delicada de

constituição de sujeito”, e que “[m]uitas vezes esta se apresenta como experiência

inconclusa” (GINZBURG, 2004, p. 3).

O autor acredita que a cegueira do sujeito pode ser lida levando-se em conta

dois aspectos. No primeiro aspecto, ela vem “associada conotativamente aos limites

do conhecimento, à ilusão, à incerteza” (GINZBURG, 2004, p. 57). Nesse caso, ela é

vista como uma metáfora. Em outra perspectiva, a cegueira é vista como “uma forma

específica de experiência, caracterizada pelo limite, pela exposição do ser humano,

da incomunicabilidade, da impossibilidade de viver senão em uma condição trágica”

(GINZBURG, 2004, p. 57).

Recuperando o pensamento de Ginzburg (2004), as personagens de Ensaio

sobre a cegueira inserem-se na segunda perspectiva, haja vista que passam pela

experiência trágica de viver no limite. No romance, a condição trágica é

caracterizada quando os contagiados pelo “mal-branco” são colocados em

quarentena, afastados do convívio social, passando, então, da condição de doentes

à condição de excluídos e, concomitantemente, a de marginalizados.

No principiar da generalização da cegueira, o Governo reúne um grupo de

especialistas para decidir quais seriam as providências necessárias para erradicar o

“mal-branco” que se instalara na cidade. O presidente de logística e segurança

precisa definir para onde os cegos serão encaminhados. Um soldado apresenta para

o ministro quatro lugares que podem ser usados para encaminhar as vitimas: a feira

industrial em fase de conclusão, o hipermercado em processo de falência, a

instalação militar em desuso e o manicômio vazio.

A feira industrial e o hipermercado, por sua vez, representam espaços que

instigam a produção e o consumo, não cabendo, portanto, aos cegos serem levados

para tais lugares, pois, como relata a personagem ministro, “[a] indústria não

gostaria com certeza, estão ali investidos milhões” (SARAMAGO, 1995, p. 46). A

atitude do Governo caracteriza a ambivalência que é a vida nos grandes centros

urbanos.

Logo que os cegos são trazidos para o manicômio, o narrador faz uma

“leitura” do espaço através dos olhos da mulher do médico, a única que consegue

enxergar e decidiu pelo isolamento para acompanhar seu marido, o médico.

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A mulher guiava o marido para camarata. Era comprida como uma enfermaria antiga, com duas filas de camas. [...] havia mais caramatas, corredores longos e estreitos, gabinetes que deviam ser de médicos, sentinas encardidas, uma cozinha que não perdera o cheiro de má comida, um refeitório com mesas de zinco, três celas até a altura de dois metros e forrada de cortiça. Por trás do edifício havia uma cerca abandonada, com árvores mal cuidadas. Por toda parte havia lixo (SARAMAGO, 1995, p. 47).

Depois que a mulher do médico percorreu o inóspito ambiente com seu olhar,

fala para seu marido: “És capaz de imaginar onde nos trouxeram” a passo que ele

responde “Não”, e ela conclui “A um manicômio” (SARAMAGO, 1995, p. 48). É

nesse espaço que os cegos passam a conviver e precisam aprender a compartilhar

experiências que antes eram particulares a cada um, desde as necessidades

fisiológicas às angústias e aflições diante da inusitada situação. Assim, o lugar

antropológico é substituído pelo “não-lugar” diante da provisoriedade das camaratas

e pela redução dos códigos de convivência social a um estado de barbárie.

A partir dessa perspectiva, aos cegos cabe aprender a conviver de novo, a

construir novos parâmetros para o “eu” fragmentado. Desse modo, o dilema da

alteridade é traçado na narrativa em conformidade à forma específica de experiência

anunciada por Ginzburg (2004). Os primeiros contagiados pela cegueira são

expostos à incomunicabilidade e condicionados à condição trágica de terem que

viver situações limítrofes no manicômio. Aos olhos dos sujeitos que estão no poder,

e certos de que podem definir os rumos das vidas alheias, as opções dadas são

todas relacionadas à marginalização, pois na tratativa, a última opção – o manicômio

–, é a escolhida, pois essa instância representa a extinção das vontades individuais

e a submissão dos cegos à tutela hierárquica do Governo.

A ambivalência que caracteriza a ação do Governo pode ser lida levando em

conta o pensamento de Bauman. Na obra Confiança e medo na cidade (2006b, p.

31-32), o sociólogo enfatiza que as cidades da globalização “são os campos de

batalha”, em que os seus habitantes se “entrechocam e combatem em busca de um

acordo satisfatório ou minimamente tolerável”; um acordo social que dure o tempo

necessário para que o sujeito se reorganize e recomponha suas forças emocionais.

A vida na cidade “tem fama de ser uma experiência que desperta sentimentos

desencontrados. Atrai e repele ao mesmo tempo” (BAUMAN, 2006b, p. 41). A busca

pela homogeneidade social do espaço urbano, acentuada e reforçada pela

segregação, reduz a capacidade que o sujeito tem em tolerar as diferenças. Viver

em companhia de desconhecidos, mendigos, pedintes e desempregados é “sempre

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um tanto alarmante” (BAUMAN, 2006b, p. 66), pois esses sujeitos fazem despertar

uma grande multiplicidade de sentimentos, endêmicos e incuráveis, de que possam

ocorrer eventos imprevisíveis.

As autoridades do romance são a personificação do risco e do medo. O risco

não existe sem medo. Receosos e com medo, o Governo isola os cegos

contagiados da parcela de habitantes não afetados pela cegueira. O manicômio,

lugar destinado às vítimas da cegueira, estava há muito tempo abandonado e

mantinha a mesma estrutura organizacional que tinha para comportar os loucos.

Esse lugar passa receber outro tipo de excluído social, os cegos, sem que sejam

aventadas ideias que possam auxiliar no tratamento dos mesmos.

O “olhar de fora” os vê com desprezo e tão somente confirma a visão de que

se tem a respeito daqueles que não se encaixam ao mundo ordeiro. Mais uma vez

recorre-se ao pensamento de Bauman (2001, p. 118)24, que trata das duas

estratégias de enfrentar a alteridade: a antropoêmica e antropofágica. Nesse estudo,

interessa a estratégia antropoêmica, que se resume no ato de “‘vomitar’, cuspir os

outros vistos como incuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o

diálogo, a interação social”.

Os guardas revestem-se do caráter antropoêmico, pois despidos de qualquer

senso de zelo e empatia pela condição dos cegos,

[s]abiam o que no quartel tinha sido dito essa manhã pelo comandante do regimento, que o problema dos cegos só poderia ser resolvido pela liquidação física de todos eles, os havidos e os por haver, sem contemplações falsamente humanitárias (SARAMAGO, 1995, p. 105).

A passagem caracteriza esse ato de “vomitar”, excluir o outro, não permitindo

a interação social, o contato. Ao eleger o manicômio como espaço de exclusão, o

escritor toma partido daqueles sujeitos que a modernidade líquida rejeita porque eles

não têm mais valia, pois eles estão fora das normas da sociedade.

No curso da quarentena, a luta pela satisfação das necessidades básicas

torna-se um dos fios condutores da história. A cegueira faz com os sujeitos cegos se

empenhem na conquista não do espaço, do “não-lugar”, mas sim na luta diária de

como aprender a usar os espaços do manicômio. Nessa questão, a divisão das

camaratas e das camas, as idas e uso dos banheiros, tudo a ser feito no manicômio

24 Bauman faz uso das ideias do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que em Tristes trópicos (1957) menciona as duas estratégias de enfrentar a alteridade: a antropoêmica e antropofágica.

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exige a aceitação da dura realidade que em quase nada pode ser alterada, exigindo,

pois, apenas adaptação e resignação.

No tocante à alimentação, os cegos confinados esperam pela comida que

lhes é alcançada diariamente pelo portão. Cientes de que a comida era pouca para

alimentar tantos famintos, os cegos se aglomeram na entrada para apanhar o

alimento, sendo que os guardas, assustados com a movimentação, disparam:

Os dois soldados da escolta, que esperavam no patamar, reagiram exemplarmente perante o perigo. Dominando, só Deus sabe como e porquê, um legítimo medo, avançaram até ao limiar da porta e despejaram os carregadores. Os cegos começaram a cair uns sobre os outros caindo recebiam ainda no corpo balas que já eram um puro desperdício de munição, foi tudo incrivelmente lento, um corpo, outro corpo (SARAMAGO, 1995, p. 88).

A passagem em tela reforça a noção de que o olhar ocupa o centro dos

debates acerca do aparecimento de sujeitos problemáticos como ocorre na

modernidade líquida. Na narrativa, tem-se caracterizando a instabilidade dos

relacionamentos, em que os cegos – na condição do outro – são vistos como uma

ameaça à sociedade.

O espaço social representado no Ensaio sobre a cegueira insere-se ao

modelo de sociedade de que fala Bauman (2005). Na narrativa, as personagens são

fragmentadas abruptamente e de um instante para outro passam da condição de

“ver” para a cegueira, fomentando o caos e o estranhamento entre os citadinos.

Diante do caos instaurado pela doença, o governo decide “higienizar” as ruas da

cidade e, para que isso seja possível, ele toma uma medida drástica que resulta no

confinamento.

O confinamento dos cegos vem ao encontro do observado por Bauman

quando refere que as ações de exclusão e limpeza do espaço social são medidas

tomadas em prol da “saúde da sociedade e para que o ‘funcionamento normal’ do

sistema social não sejam ameaçados” (BAUMAN, 2005, p. 81). Assim, o espaço

urbano ficcional da narrativa comporta mal-estares que podem ser evidenciados na

maioria das grandes cidades da modernidade líquida. Como exemplo disso, cita-se o

medo gerado pela falta de segurança, que faz nada mais que afastar as pessoas

umas das outras, não permitindo a efetividade dos relacionamentos “sólidos” e

confiáveis.

A política do medo cotidiano afasta qualquer dinâmica de interação social

mais sólida. Na narrativa saramaguiana, o medo do contato representa por um “mal-

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branco”, que pode surgir de qualquer espaço urbano, seja do centro ou da periferia.

Sobre isso, Bauman (2006b, p. 36-37) expressa que “[o] medo do desconhecido, no

qual estamos envolvidos, busca desesperadamente algum tipo de alívio”. A busca

por segurança representa esse alivio.

A observação do sociólogo é pertinente, pois é com a insurgência do medo

que as grandes cidades europeias fizeram dos seus espaços urbanos verdadeiros

bunkers, equipados com todos os recursos tecnológicos necessários à vida privada.

Nos grandes centros comerciais, bairros nobres e condomínios luxuosos europeus,

a arquitetura do medo faz com que as disposições estéticas dos espaços urbanos

sejam transformadas radicalmente. Com isso, prédios, casas e shopping centers

seguros são erguidos contra as ameaças dos outros, que são aqueles que não são

considerados economicamente viáveis e os socialmente descartáveis.

Para Bauman (2008a, p. 93), nas cidades “manter-se à distância parece a

única forma razoável de proceder”. Por um princípio de economia, transfere-se a

responsabilidade moral do medo para o outro. É o outro que usa a máscara líquida

dos deserdados socialmente. Junto aos emaranhados aparatos de segurança que

alternam os “não-lugares” das grandes cidades europeias (instalação de câmeras

nas ruas e nos edifícios, como também escutas sensíveis e sofisticados aparelhos

que detectam qualquer ameaça a ordem estabelecida a uma distância muito longa)

sente-se que a sociedade líquido-moderna aprofunda seus receios e medos. O faz

na busca de suprimir os efeitos destrutivos que qualquer contato social que fuja do

desejo de bem-estar social.

Certamente, isso se deve à tendenciosa incapacidade que o sujeito tem em

desenvolver autênticas relações interpessoais, bem como se deve aos preconceitos

generalizados em torno daqueles sujeitos que são vistos, cotidianamente, como

incompatíveis ao modo de ser que a modernidade líquida enseja. No romance, os

governantes agem de modo que o controle e a ordem local sejam mantidos a todo

custo. Por isso, cada vez que chega ao manicômio uma nova leva de cegos, ouve-

se do alto-falante um discurso gravado, em que o Governo lamenta pela medida

tomada em relação à epidemia da cegueira:

O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira, provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a

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colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio [...] O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades (SARAMAGO, 1995, p. 49-50).

Ironicamente, o discurso do Governo pede desculpas pela medida tomada.

Enfatiza, também, que os cegos cumpram com seu papel no decorrer da

quarentena, dando-lhes a entender das suas responsabilidades e que o isolamento

representa, acima de tudo, um ato solidário para com seus compatriotas. O governo

espera, também,

[...] que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um acto de solidariedade para com o resto da comunidade nacional (SARAMAGO, 1995, p. 49-50).

O governo, na ficção de Saramago, é investido de aparências, e, ainda que

faça uso dos expedientes da benevolência e do altruísmo, sua postura política não

caracteriza zelo para com o outro, o cego, pelo contrário, o exclui do convívio social.

No afã de alargar seu poderio, as autoridades lançam mão de artifícios cruéis

para investir na marginalização e exclusão social. Para tal, diz que o isolamento

representa um ato de solidariedade com o resto dos habitantes não infectados pelo

“mal-branco”. Contudo, no curso do confinamento, essas aparências são postas em

xeque pelas personagens. Indignados com as ordens repassadas pela voz no alto-

falante, que tratavam sobre o funcionamento das camaratas e regras do manicômio,

os cegos percebem que foram traídos. Então, as vozes ecoam pelo inóspito

manicômio: “Estamos fechados. Vamos morrer aqui todos, Não há direitos, Onde

estão os médicos que nos tinham prometido” (SARAMAGO, 1995, p. 73).

A voz coletiva soa como vazio, pois as autoridades não escutam o apelo.

Assim, ao fechar a porta do manicômio, os cegos passam de um estado

supostamente igualitário a um estado segregário, em que o governo passa a ser

sustentado por dois pilares: repressão e ausência de direitos básicos para uma

vivência digna. Para as personagens que formam o grupo governamental, o não

reconhecimento do outro acarreta na exclusão. Os cegos são vistos como um só

corpo doente, e são lançados fora do círculo social com vista a proteger os demais

habitantes da contaminação.

A cegueira representa para as autoridades um sinal de alerta, pois o risco de

contágio poderia representar:

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[...] uma passagem da ordem para a desordem pública. [...] A coerção exercida pelo Estado em direção aos cegos instaura uma política de exceção, um estado de sítio em que o alarde precisa, mesmo que aparentemente, surgir controlado. Nesses casos, medidas provisórias assumem estatuto de lei e são tomadas como práticas legitimadas, embora não possuam legalidade jurídica (SILVA, 2011, p. 2).

Da parte dos soldados, o Estado não desempenha o papel de “cuidador” dos

vitimizados pela cegueira. Ao invés de dar auxílio aos cegos, os soldados

desdenham os pedidos de ajuda. Isso fica caracterizado na passagem em que a

personagem mulher do médico negocia a alimentação junto aos soldados que

despejam garrafões de amônia sobre o sangue que verteu dos corpos dos cegos

que foram executados por não seguirem as ordens. A personagem questiona:

E a comida, aproveitou a mulher do médico a ocasião para recorda-lhes, A comida ainda não chegou, Só do nosso lado há mais de cinqüenta pessoas, temos fome, o que estão a mandar não chega para nada (SARAMAGO, 1995, p. 85).

Ao passo que um soldado responde: “[...] Isso da comida não é com o exército

(SARAMAGO, 1995, p. 85). Em outra passagem os soldados deixam as caixas de

suprimentos na entrada do manicômio e pedem que os cegos se aproximem para

recolhê-las. Uns cegos se aproximam, e um deles pede orientação: “Por favor,

ajudem-me, diga-me por onde devo ir” (SARAMAGO, 1995, p. 106), ao passo que,

sarcasticamente, um guarda fala:

Vem andando, ceguinho, vem andando, disse de lá um soldado em tom falsamente amigável, (...) por aqui mesmo, nesta direcção, chegarás onde te estão a chamar, ao encontro da bala que substituirá em ti uma cegueira por outra (SARAMAGO, 1995, p. 107).

O isolamento dos cegos não contempla segurança, bem-estar, higiene básica

e alimentação adequada. Para eles, não há por parte dos governantes o

cumprimento das promessas anunciadas. A postura do governo caracteriza a

ambivalência da atitude para com os cegos. Uma atitude que expressa os extremos

da covardia, pois, por um princípio de economia, o governo transfere a

responsabilidade moral de seu autoritarismo e negligências para o outro, no caso, as

vítimas da cegueira.

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O funcionamento normal da sociedade é ameaçado por sujeitos doentes.

Esses, na visão da sociedade elitista e consumista, não têm mais utilidade, pois

representam o excedente. Em Vida Líquida (2009), Bauman lança um olhar crítico

sobre os excedentes que a sociedade voltada aos bens de consumo produz e que,

no final, refuga, lançando-os ao lixo. Segundo o sociólogo, o lixo humano que as

grandes cidades ocidentais produzem tornou-se um problema para a sociedade

consumista que se vê de mãos atadas diante do fenômeno que despeja pelas ruas

das grandes cidades mendigos, desempregados, estrangeiros. Enfim, toda uma

“massa” de sujeitos que engrossam as estatísticas dos “refugos” que ocupam as

ruas das grandes cidades europeias.

Onde deve ser despejado o lixo humano produzido pela globalização?

Bauman não vê com otimismo essa questão, pois

[a]s formas de lidar com o lixo humano que se transformaram na tradição moderna não são mais viáveis, e novas maneiras não foram inventadas, muito menos postas em operação. Pilhas de lixo humano crescem ao longo das linhas defeituosas da desordem mundial, e se multiplicam os primeiros sinais de uma tendência à autocombustão, assim como os sintomas de uma explosão iminente (BAUMAN, 2004, p. 68).

As personagens cegas representam a “pilha de lixo” que é posto em

quarentena. O “mal-branco” somatiza os mal-estares que denigrem o esgotamento

dos sentidos nos espaços urbanos das grandes cidades, colaborando para que se

tenham no espaço urbano relações obstruídas pelo receio ou medo de manter

contato com o semelhante.

O outro é visto como aquele que usa a “máscara líquida” da alteridade; ele é

a ameaça constante, por isso a atitude dos guardas que lançam mão de uma

agressividade sem medida. Após deixarem caixas contendo comida à entrada do

manicômio, os soldados pedem para que os cegos se aproximem para recolher o

material. Guiados por uma corda esticada desde as camaratas ao portão de entrada

do manicômio, os cegos aproximam-se, perfilados e guiados pela corda esticada. Na

voz do narrador, “[e]m circunstâncias diferentes, o grotesco espetáculo teria feito rir

à gargalhada o mais sisudo dos observadores” (SARAMAGO, 1995, p. 105).

No entanto, o esmaecimento da alteridade é evidente na narrativa quando os

cegos soltam as mãos da corda e aproximam como se fossem animais, feito gatos

engatinhando. Ao vê-los desse jeito, ao rés-ao-chão,

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[a] vontade dos soldados era apontar as armas e fuzilar deliberadamente, friamente, aqueles imbecis que se moviam diante dos seus olhos como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava (SARAMAGO, 1995, p. 105).

A passagem caracteriza que muitos sentimentos humanos caíram por terra,

entre eles a solidariedade, a compaixão e a benevolência, pois a violência, seja na

sua forma física ou simbólica, estabelece uma estranha relação entre opressor e

oprimido. Para Silva (2011, p. 52), “a inversão desses papéis através da força faz

com que a narrativa decrete que a natureza humana é violenta”, sendo que o que

difere os bons dos maus é o propósito que justifica a violência por parte das

autoridades para com relação aos cegos.

A marginalização é constatada na indiferença por parte dos soldados para

com os cegos, solapando o último resquício de dignidade. Na narrativa, isso é

caracterizado na passagem em que um cego chega à porta principal do manicômio e

alerta os guardas que um grupo de cegos passou a roubar e a controlar a

distribuição de comida. “Ajudem-nos que estes estão a querer roubar-nos a comida”

(SARAMAGO, 1995, p. 139), grita a personagem, ao passo que

“[o]s soldados fizeram de conta que não tinham ouvido, as ordens que o sargento recebera de um capitão após da visita de inspeção eram peremptória, claríssimas, Se eles se matarem uns aos outros, melhor, menos ficam (SARAMAGO, 1995, p. 139).

A maneira como os guardas veem o outro é apenas mais um dos sintomas da

indiferença e desprezo tão marcantes nas vivências em sociedade. Não há contato

direto com os confinados, sendo que é sugerido o aniquilamento da massa de

confinados objetivando diminuir despesas financeiras para o Estado.

A rudeza no tratamento dispensado aos confinados denota um olhar

indiferente às situações que requerem a efetivação da alteridade. Os cegos são

marginalizados no âmbito da co-existência, na negação ao visível, em que os

guardas encarnam a máscara do individualismo, não permitindo que, a partir do

caos, a alteridade possa ser solidificada novamente. Para o segundo sargento a

ocupar o cargo de vigilância, ao saber que os cegos estavam reclamando a falta de

materiais de higiene básica e de alimentos, acha que “o melhor era deixá-los morrer

à fome, morrendo o bicho acabava-se a peçonha” (SARAMAGO, 1995, p. 89). A fala

da personagem expõe o processo de humilhação pelo qual passam os cegos no

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manicômio. As máscaras sociais são diluídas na confluência conflituosa do “não-

lugar”.

Aos cegos, marginalizados, não cabe outra saída a não ser o aniquilamento,

seja através do esquecimento por parte das autoridades, seja através da morte que

devido às necessidades biológicas e às doenças pouco a pouco vão tomando os

corpos degradados. Esse processo, além de excluir e marginalizar, também pauta-

se em doses diárias de humilhação. Conforme já se expôs, fatores como o

isolamento dos cegos num manicômio, a má distribuição de alimentação e produtos

de higiene, o descaso e inoperância dos guardas, as péssimas instalações sanitárias

do ambiente, colaboram para que se confirme, através do “olhar de fora”, a

marginalização que vem atrelada à humilhação dos sujeitos cegos.

A humilhação diária pela qual passam os cegos do romance pode ser vista na

contextualização da relação entre opressor e oprimido enfatizada por Bauman em

Amor líquido (2003). Na obra, o sociólogo traça um panorama do processo de

humilhação pelo qual passou o homem lembra que o mesmo tem reflexo direto nos

relacionamentos das grandes cidades ocidentais. Para o sociólogo, o Holocausto é a

experiência trágica que transformou negativamente a humanidade, pois com ele o

ser humano experimentou um nível impressionante e nunca visto antes no que diz

respeito às formas mais cruéis de humilhar o outro. “Como escapar à dor e a

humilhação? A forma natural é matar ou humilhar seu algoz ou benfeitor. Ou

encontrar outra pessoa mais fraca para triunfar sobre ela” (BAUMAN, 2003, p. 110).

A cegueira, como se mostra na narrativa, sai do fato de estar cego para

alcançar a cegueira de um ponto de vista ontológico, apontando, pois, para outras

possibilidades de cegueiras, como a psicológica e a alegórica25. Ao fazer-se valer

das anotações da personagem escriturário, o narrador faz menção que é no devir da

história que o sujeito precisa reconhecer a essência humana, sabendo “ver” na

pluralidade e na diversidade de contextos que a sociedade líquido-moderna oferece.

Isso porque é nos meandros da alteridade que o sujeito pode fazer-se ver e ser

visto.

25 Quanto à cegueira alegórica, remete-se o leitor para o texto de CONRADO, Iris Selene. O ser humano e a sociedade em Saramago: um estudo sociocultural das obras Ensaio sobre a cegueira e Ensaio sobre a lucidez. Maringá, 2006. 140 f. Disponível em: www.ple.uem.br/defesas/pdf/ isconrado.pdf.

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O narrador sugere que ele saia do seu estado de cegueira psicológico e

venha “escriturar” as mazelas e humilhações pelas quais passam seus colegas de

confinamento. Certamente, ele “faria constar que não se pode andar pela cerca

interior sem tropeçar em cegos escoando suas diarréias”, também escreveria que

“enquanto a estas horas a camarata dos malvados deverá já estar entulhada de

caixas de comida, aqui os desgraçados não tarda que se vejam reduzidos a apanhar

migalhas do chão imundo” (SARAMAGO, 1995, p. 159-160).

No Ensaio sobre a cegueira, o sujeito é pensado em seu meio natural, cultural

e histórico, posto que a cegueira e o olhar, o “ver” e o “ser” são confrontados no

decorrer da narrativa. Em sua dissertação de mestrado, Ensaio sobre a cegueira:

um olhar que transcende o olho (2012), Maria Ivonete Coutinho da Silva diserta

acerca do olhar e se apoia nas palavras de Merleau-Ponty. Para a autora, o olhar:

[...] transcende o limite do visível para o invisível. Ou seja, olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o ‘real’ fora de nós, é sobretudo, um mergulho no sensível. O visível e o invisível não são duas faces diferentes do olhar, mas o modo próprio e originário de apreensão da realidade (SILVA, 2012, p. 17).

No que tange à apreensão do cotidiano baseado no signo das aparências, a

autora frisa que o sujeito “é programado para não ver”, ainda que ele seja

diariamente convidado a “presenciar as imagens do espetáculo urbano, que como

todo espetáculo, exige ser visto rapidamente, em momentos breves e imagens

efêmeras” (SILVA, 2012, p. 18). De certo modo, a ênfase dada pelo narrador à

cegueira, quando relata que “só num mundo de cegos as coisas serão o que

verdadeiramente são” (SARAMAGO, 1995, p. 128), encontra respaldo nas atitudes

de negação, exclusão e marginalização por parte daqueles – Governo, autoridades e

soldados – que veem os confinados com um “olhar de fora”.

A leitura da narrativa feita até aqui mostra que a estratégia antropoêmica é

voga no que tange à alteridade: os cegos, representando os estranhos ao mundo

ordeiro, são “vomitados”, ou seja, excluídos e marginalizados pelo Estado. De outro

ângulo, Ensaio sobre a cegueira pode ser lido com um “olhar de dentro”, com

ênfase às ações das personagens em sua quarentena no manicômio. Assim, essa

parte do texto procura deliberar acerca do dilema da alteridade entre os cegos

confinados, com ênfase à fragmentação dos relacionamentos e à marginalização.

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A perda da visão por parte da maioria das personagens do Ensaio sobre a

cegueira é apenas mais um passo para a modificação do olhar. O manicômio

assoma como lugar em que as experiências entre os sujeitos precisam ser

assimiladas e re-aprendidas para que, assim, a dimensão do espaço (camaratas,

corredores, banheiros), seja ressignificado. Cria-se, assim, uma nova comunidade

que em muito lembra os espaços labirínticos de uma cidade.

Antes, em suas rotinas diárias, libertas do “mal-branco”, as personagens

conviviam com todo e qualquer pré-conceito que norteava a vida no mundo visível.

No manicômio, onde os cegos “vão ali como carneiros ao matadouro, balindo como

de costume, um pouco apertados, é certo, mas essa sempre foi a sua maneira de

viver, pelo com pelo, bafo com bafo, cheiro com cheiro” (SARAMAGO, 1995, p.112),

eles precisam assimilar as dificuldades, e novas regras de convivência precisam ser

estipuladas para que a convivência seja, pelo menos, tolerável.

Os sujeitos confinados precisam pensar a alteridade posto que estão

limitados pela cegueira. O manicômio representa não só estruturalmente, mas

também de modo subjetivo, a condição fragmentária do sujeito envolto nas

contingências que Bauman (2009, p. 19) vê como sendo uma “vida líquida”. A

mulher do médico, não alheia à sua condição de vidente de tudo que a cerca dentro

da camarata, ao assistir uma discussão entre os cegos para ver quem ficava com a

melhor cama, a personagem faz de sua nova experiência um autoexame, autocrítica

e autocensura, pois sentencia: “o mundo está todo aqui dentro” (SARAMAGO, 1995,

p. 102).

A constatação da mulher do médico instiga à reflexão a respeito do re-

aprendizado a que são condicionados os sujeitos cegos do romance. Para Silva

(2012),

a situação de cegueira exige a reestruturação do olhar, ou seja, a readaptação perceptiva ao mundo, um aprendizado da visão envolvendo todos os sentidos para poder assegurar a existência de centenas de cegos num mundo restrito e estruturado para quem pode ver (SILVA, 2012, p. 47).

Configura-se, assim, uma nova sociedade, haja vista que os sujeitos são

reduzidos ao grau zero da civilização, semelhante a uma orla primitiva, onde tudo

tem de ser refeito, tudo tem de ser re-aprendido. Assim, ações simples e corriqueiras

para quem consegue enxergar, como fazer as necessidades básicas de higiene,

tornam-se complicadas diante da cegueira.

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A questão que envolve nuanças de ordem espacial e de tempo evidenciada

no romance Ensaio sobre a cegueira, leva a pensar a relação do homem com o

espaço e a questão da alteridade no contexto da coletividade. Nesse contexto, Marc

Augé, em Não-lugares (1994), faz uma abordagem sócio-cultural da pós-

modernidade. Os lugares tradicionais são os lugares antropológicos, que referem à

construção simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das

vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a

quem ela designa um lugar (AUGÉ, 1994, p. 51). O autor designa “não-lugar” todos

os dispositivos e métodos que visam à circulação de pessoas, em oposição à noção

sociológica de “lugar”, isto é, à ideia de uma cultura localizada no tempo e no

espaço.

Ensaio sobre a cegueira pode ser lido levando em conta a noção de “não-

lugar” (AUGÉ, 1994), pois o escritor desconstrói as referências típicas do “lugar

antropológico”, sobre as quais a literatura, por ser umas das formas de expressão

cultural de um povo, busca sua referência concreta. O romance traz em sua tessitura

a ausência de marcas temporais e espaciais, bem como não permite ver as marcas

usuais da historicidade.

A lição transmitida pela narrativa é que o mundo de imagens passa a ser

substituído por um mundo de sons dispersos, perdidos no “mar leitoso” que se

apresenta aos cegos. Com exceção da mulher do médico, a única que não sucumbe

à cegueira, as demais personagens se veem diante de uma vida sem os referentes

do seu lugar antropológico (AUGÉ, 1994). A ausência de marcadores temporais e

espaciais na narrativa e a própria cegueira das personagens reforçam a ideia

do “não-lugar”.

Os elementos demarcadores do lugar antropológico, caracterizado pelas

raízes identitárias, relacionais e históricas são desfeitas no “não-lugar” do

manicômio. O novo espaço é marcado pela provisoriedade da subsistência nas

camaratas, pela redução dos códigos de convivência social a um estado de barbárie.

A cegueira descentraliza, liquefaz as identidades e revela o verdadeiro caráter do

sujeito. Aos olhos do narrador, não escapa a visão apurada e fria do ambiente que

pouco a pouco mostra que, cegos ou não, as personagens são aquilo que eram

quando a cegueira ainda não os tinha vitimizado.

Aqui não há só gente discreta e bem-educada, alguns são uns mal- desbastados que se aliviam matinalmente de escarros e ventosidades sem

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olhar a quem está, verdade seja que no mais do dia obram pela mesma conformidade, por isto a atmosfera vai se tornando cada vez mais pesada (SARAMAGO, 1995, p. 99-100).

A quarentena imposta aos cegos leva a discutir o dilema da alteridade tendo

como parâmetros a relação do sujeito com o espaço, em especial as nuanças

voltadas à fragmentação dos relacionamentos. No que tange à nova vida dos cegos,

o ensinamento de Augé (1994) é oportuno quando assevera que os espaços

urbanos que mediam a relação eu-outro necessitam passar por uma reavaliação.

Para o narrador do romance, ainda nos primeiros dias de convívio, “bastavam

duas ou três palavras trocadas para que os desconhecidos sem convertessem em

companheiros de infortúnio, e com mais três ou quatro se perdoavam mutuamente

todas as faltas, algumas delas bem graves” (SARAMAGO, 1995, p. 133). Com o

passar dos dias, as diferenças vem à lume. De modo sentencioso, o narrador lembra

que mesmo que os cegos deem o melhor de si, não podem esquecer:

[...] daquilo que são aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos (SARAMAGO, 1995, p. 135).

As palavras do narrador acerca da dureza que é ser cego num manicômio em

que os sujeitos são levados aos limites, recupera o pensamento de Ginzburg (2004).

Diante da experiência trágica a qual os cegos são relegados, uma experiência

pautada na tragicidade, a exposição das vítimas pode ser vista na perspectiva em

que a cegueira é “associada conotativamente aos limites do conhecimento, à ilusão,

à incerteza” (GINZBURG, 2004, p. 57).

Na voz do narrador, de que “na terra dos cegos quem tem um olho é rei”

(SARAMAGO, 1995, p. 103), reveste-se de uma fina ironia, que acaba encontrando

respaldo na atitude desonesta de alguns cegos. Para exemplificar, tem-se a

passagem em que o narrador relata o episódio do retorno dos cegos que haviam

buscado as caixas com alimentação junto aos guardas no portão do manicômio.

Enquanto alguns cegos aplaudem o sargento, que reprimira seus subordinados por

orientarem de maneira equivocada os cegos no seu trajeto de volta às camaratas,

outros cegos “[a]proveitando-se do alvoroço, [...] tinham-se escapulido com umas

quantas caixas, as que conseguiram transportar, maneira evidentemente desleal de

prevenir hipotéticas injustiças de distribuição” (SARAMAGO, 1995, p. 107).

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A passagem em tela ilustra que o redimensionamento das relações entre os

cegos é colocado em xeque diante da experiência trágica que é viver no limite. Cria-

se, inicialmente, um jogo dicotômico, em que as diferenças afloram na divisão das

camaratas, na divisão dos alimentos e na escolha das camas. O ditado popular que

versa “que em terra de cego aquele que tem um olho é rei” é diluído quando as

personagens discutem a respeito da divisão da comida que está sendo dividida de

modo desonesto. Um cego, irônico, se posiciona sobre o problema: “Aqui nem os

zarolhos se salvariam” (SARAMAGO, 1995, p. 103), esvaziando o sentido do ditado

acima citado.

A cegueira faz com que as personagens, fragmentadas em sua constituição,

ajam como os líquidos de que fala Bauman (2001) quando se refere à inconstância

dos sujeitos na sociedade líquido-moderna. Na sociedade do Ensaio, os “sólidos”

derreteram, pois a liquidez dos relacionamentos dificulta a sedimentação das

experiências entre os cegos. A liquefação dos laços e vínculos que firmavam as

relações entre os cegos resulta num crescente individualismo.

Isso faz eclodir a revolta entre alguns cegos que, num tempo anterior ao

confinamento, estavam mais acostumados às gentilezas e à nobreza do ato de

repartir o pouco que tinham. “Os de boa-fé”, conta o narrador, “que sempre os há por

mais que se lhes diga, protestaram, indignados, que assim não se podia viver, Se

não podemos confiar nos outros, aonde é que vamos parar” (SARAMAGO, 1995, p.

107).

O re-aprendizado da alteridade, representado na urgência da adaptação ao

“não-lugar” e na insurreição da incerteza, acaba liquefeito diante das atitudes

desonestas dos cegos que pertenciam às outras camaratas que não fosse a

camarata do médico e da sua esposa. O manicômio não possibilita que as ações

baseadas nas “políticas de coletividades” (BAUMAN, 2001) tenham êxito.

As políticas de vida são conduzidas quase que exclusivamente de modo

individual, fazendo com que o leitor reflita sobre a linha tênue que se coloca entre o

individual e o coletivo. As imagens do cotidiano evidenciadas na narrativa

caracterizam o declínio da ideia de que se possa uma sociedade perfeita, boa e

justa, sem conflitos entre os sujeitos (BAUMAN, 2001, p. 37). A sociedade de cegos

liquefaz as últimas identidades que procuravam manter suas falsas aparências, pois

como expressa o médico: “só num mundo de cegos as coisas serão o que

verdadeiramente são” (SARAMAGO, 1995, p. 128).

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A fala da personagem sintomatiza que, na sociedade dos cegos, não há como

mascarar as identidades que cada um mantinha em seu contexto social anterior ao

manicômio. Com a crise de identidade, a necessidade de adaptação aos ambientes

faz com que os sujeitos procurem, dia-a-dia, adaptarem-se a um ambiente

degradado. Dificultada a adaptação, os instintos humanos caem por terra diante da

animalização que paulatinamente toma os corações encarcerados.

O narrador vê a chegada de mais cegos ao manicômio como um fator que

exigiria mais disciplina entre os contagiados. Se inicialmente havia duas ou três

dúzias de vítimas, a nova leva de contagiados recolhidos ao manicômio, mais de

duzentos sujeitos, demandaria uma reorganização não só no que refere à ocupação

das camas, mas também no que toca aos modos de convivência. Por isso, ao ver e

perceber que havia uma generalização de tumulto, a mulher do médico alerta: “[s]e

não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo

para não viver inteiramente como animais” (SARAMAGO, 1995, p. 119).

A percepção da personagem se dá diante de um cenário em que múltiplas

identidades somatizam a perda da estabilidade do sentido de si. Na vida líquida das

camaratas, não há máscaras que sustentem a fragilidade, a instabilidade e a

inconstância do sujeito. Desse modo, as ações das personagens visam a justificar a

fragilidade dos laços humanos num local em que “ter” vem antes do “ser”, haja vista

as necessidades fisiológicas que sobrepujam às necessidades psicológicas.

Sem o sentido da visão, os cegos e tudo mais que está em seu entorno

assumem não o espectro do acabado, daquilo que pode ser tocado. Liquefeitas, as

velhas identidades dos sujeitos da narrativa não correspondem mais à realidade do

mundo antropológico, pois suas identidades estão fragmentadas, contraditórias e

não resolvidas (HALL, 2005, p. 12), e precisam ser reformatadas para que se

ajustem a um tempo líquido.

Aos tomados pela cegueira cabe o anonimato, tal como ocorre no mundo

ordeiro, que gira em torno dos relacionamentos administrados. Os sujeitos não são

conhecidos pelos nomes, mas sim pelo “nome fantasia” da empresa, por exemplo.

Na tessitura do romance, a identificação das personagens através de suas

profissões ou postos que ocupam no círculo social (médico, mulher do médico,

ladrão, motorista, ajudante de farmácia, rapariga dos óculos escuros, rapazinho

estrábico), faz com que cada sujeito integre uma coletividade disforme.

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Na sociedade do manicômio, heterogênea e impessoal, os nomes dos

sujeitos em nada importam. Logo que chegam ao manicômio, a mulher do médico

organiza a fila de cegos e diz “o melhor será que vão se numerando e dizendo cada

um quem é” (SARAMAGO, 1995, p. 66). Os cegos hesitam e “dois dos homens

falaram simultaneamente, um fez uma pausa, parecia que ia dizer o nome, mas o

que disse foi, sou polícia, e a mulher do médico pensou, não disse como se chama,

também saberá que aqui não tem importância” (SARAMAGO, 1995, p. 66).

A posição social até então exercida pelos sujeitos não mais é levada em

conta. Sua condição os destitui do exercício de seus papéis como sujeitos de

direitos, tendo, então, sua identidade “diluída”. Marginalizadas, as personagens que

ocupam as camaratas apresentam identidades inconsumadas (BAUMAN, 1998b, p.

91), fluidas e liquefeitas. O ambiente degradado faz com que as personagens se

auto-examinem, se avaliem, se questionem. A mulher do médico, numa das

primeiras noites de quarentena, reflete sobre a condição a qual estão condicionadas.

Para ela:

[...] tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para que, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão (SARAMAGO, 1995, p. 64).

A interrogação da personagem remete à crise de identidade na modernidade

líquida, em que é lugar-comum constatar que a alteridade é mediada por uma co-

existência frágil, repartida em fragmentos mal coordenados, ao passo que as

existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente

conectados (BAUMAN, 2005, p. 18-19).

A sucessão de acontecimentos expõe a constituição contraditória e

fragmentada dos sujeitos cegos em seu cotidiano de ilusões e incertezas.

Indubitavelmente, é no jogo das aparências e no mascaramento da realidade que as

vitimas da cegueira expõe suas fragilidades diante do dinamismo das forças sociais.

O cotidiano dos cegos não escapa à barbárie que já foi abordada por Adorno (1994)

ao referir que a frieza, a falta de amor e a indiferença são condições formuladas no

curso da história da Humanidade, e não exclusividade do Holocausto.

A frieza e a indiferença fazem com o último grupo de cegos que chegara ao

manicômio se imponha e passe a confiscar as caixas com alimentação em troca de

pagamentos. “Não nos deixaram trazer a comida” (SARAMAGO, 1995, p. 138), grita

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um dos cegos encarregado de pegar a comida à entrada do manicômio e trazê-la

para a camarata em que ficavam o médico e sua esposa. Conforme a personagem,

“[e]les dizem que isso acabou, a partir de hoje quem quiser comer terá que pagar”

(SARAMAGO, 1995, p. 138).

Em meio a protestos e ânimos alterados, a negociação acerca da comida tem

início. A mulher do médico acompanha alguns colegas de camarata que, exaltados,

se dirigem ao átrio. Lá chegando, “a mulher do médico compreendeu logo que

nenhuma conversação diplomática iria ser possível, e que provavelmente não o

seria nunca”, pois os cegos malvados rodeavam as caixas de comida, “um círculo de

cegos armados de paus e ferros de cama, apontados para a frente como baionetas

ou lanças, fazia frente ao desespero dos cegos que os cercavam” (SARAMAGO,

1995, p. 138-139).

Em meio à batalha campal travada no átrio, entre golpes às cegas e

empurrões desencontrados, a mulher do médico:

[...] aterrorizada, viu um dos cegos quadrilheiros tirar do bolso uma pistola e levantá-la bruscamente no ar. O disparo fez soltar-se do teto uma grande placa de estuque que foi cair sobre as cabeças desprevenidas, aumentando o pânico (SARAMAGO, 1995, p. 140).

A partir desse momento, outra relação é constituída. De modo trágico, a

relação entre opressor e oprimido parte de um contexto em que se presume que a

harmonia e a união devam ser voga com vistas à igualdade. Os cegos da camarata

do médico pela segunda vez são marginalizados. Se antes eles eram

marginalizados pelos guardas do manicômio, a partir do conflito interno a

marginalização se dá num viés do “olhar de dentro”.

O cego da pistola e os demais do seu grupo assumem o poder interno do

manicômio e discrimina ordens a todos: “a partir de hoje seremos nós a governar a

comida [...], sofrerão as consequências de qualquer tentativa de ir contra as ordens,

a comida passa a ser vendida, quem quiser comer, paga” (SARAMAGO, 1995, p.

140). Inicialmente, o pagamento pela comida diária se dá através da arrecadação de

objetos que tenham valor.

Os cegos das outras camaratas mostram opiniões divididas. Uns reclamam

ao passo que muitos não reconhecem que possuir ou não seus objetos não fazia

diferença para quem está cego. Assim, “desfaziam-se do que possuíam com uma

espécie de indiferença, como se pensassem que, vista bem as coisas, não há no

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mundo nada que em sentimento absoluto nos pertença” (SARAMAGO, 1995, p.

143).

Mas, passados alguns dias, outros bens são requisitados em troca de comida.

Dessa vez, “os cegos malvados mandaram recado de que queriam mulheres. [...] Se

não nos trouxerem mulheres, não comem” (SARAMAGO, 1995, p. 165). Diante da

degradante imposição, os cegos levaram a exigência às camaratas. Inicialmente, os

homens da camarata do médico relutaram e negaram-se a acreditar que ainda havia

espaço para mais degradação daquilo que os civilizados chamam de dignidade.

No dia seguinte, na hora marcada, a mulher do médico organiza a fila que iria

até a camarata dos cegos malvados. Uma a uma, as mulheres se posicionavam

para ir ao encontro fatídico. Em fila indiana,

[a] rapariga dos óculos escuros foi pôr-se atrás da mulher do médico, depois, sucessivamente, a criada do hotel, a empregada do consultório, a mulher do primeiro cego [...], a cega das insônias, uma fila grotesca de fêmeas malcheirosas, com as roupas imundas e andrajosas (SARAMAGO, 1995, p. 174).

Após passarem pelos compridos corredores, as mulheres expostas ao

sacrifício chegam à camarata dos cegos malfeitores. De dentro do local que logo

serviria de “abatedouro” do último resquício de dignidade das mulheres, “saíram

gritos, relinchos, risadas” (SARAMAGO, 1995, p. 175). Alguns cegos, afoitos,

afastam rapidamente a cama que servia de barricada à entrada da camarata:

“Depressa, meninas, entre, entrem, estamos todos aqui como uns cavalos, vão levar

o papo cheio” (SARAMAGO, 1995, p. 175), disse um deles entre risos sarcásticos.

O que se viu depois disso são cenas que poderiam ser inenarráveis. Contudo,

o narrador saramaguiano não poderia furtar-se de “ver” e relatar a barbárie a qual as

mulheres estavam sendo submetidas.

Os cegos relincharam, deram patadas no chão, Vamos a elas que se faz tarde, berraram alguns, Calma disse o da pistola, deixe-me ver primeiro como são as outras. Apalpou a rapariga dos óculos escuros e deu um assobio, Olá, saiu-nos a sorte grande, deste gado ainda cá não tinha aparecido. [...] Esta é das maduras, mas tem jeito de ser também uma rica fêmea. Puxou para si as duas mulheres, quase se babava quando disse, Fico com estas, depois de as despachar passo-as a vocês. [...] A cega das insônias uivava de desespero debaixo de um cego gordo, as outras quatro estavam rodeadas de homens com as calças arriadas que se empurravam uns aos outros como hienas em redor de uma carcaça (SARAMAGO, 1995, p. 176).

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A passagem em tela caracteriza o estado de animalização que toma os cegos

esquecidos dentro do manicômio por parte do Estado. Tanto as mulheres cegas que

foram violentadas como os cegos malvados que as violentaram física e moralmente,

enfim os sujeitos de Ensaio sobre a cegueira revelam sua face animalesca em seu

plano mais cruel e sórdido. Para o narrador, o comportamento destes passa a ser

comparado com o dos animais. O uso dos termos “relincharam”, “patadas”,

“berraram”, “gado”, “fêmea”, “babava”, “uivava” e a expressão que os compara

diretamente “[...] como hienas ao redor de uma carcaça” (SARAMAGO, 1995, p.

176), descreve os sujeitos bárbaros sem velar suas atitudes perante o leitor.

A barbárie a qual são submetidas as mulheres cegas revela que os sujeitos

perderam o sentido de civilidade e responsabilidade, caracterizando sua natureza

bruta, contraditória e fragmentada. A narrativa traz à lume as imperfeições e

deformidades existentes no caráter humano dos sujeitos cegos, o faz através da

descrição ou evocação de fatos grosseiramente vulgares, sórdidos e grotescos,

“derretendo” as máscaras sociais.

A representação da realidade no romance desvela um tempo de crise a partir

de uma versão desumanizada dos sujeitos fragmentados. A narrativa instiga que o

ser humano “abra os olhos” e que tenha mais sensibilidade e posicionamento crítico

no que tange aos rumos da relação eu-outro em sociedade. A fragmentação e

marginalização do sujeito é o sintoma da crise instaurada no bojo da sociedade

líquido-moderna, em que o esmaecimento dos afetos advém da fragilidade dos

limites que separam o ser humano da barbárie.

Acerca disso, André Bueno (2002) destaca que

[d]epois de Freud, sabemos todos como são frágeis os limites que separam civilização e barbárie, contratos sociais e violência cega. Sabemos como é difícil a vida em sociedade, tanto de renúncia que se faz necessária, o quanto de aceitação da realidade e diminuição do prazer se apresentam inevitáveis (BUENO, 2002, p. 282).

No romance saramaguiano, a violência que escorre dos “contratos” entre os

cegos pode ser contemplada como o declínio da alteridade. Ainda que vista em

segundo plano no rol das questões sobre as quais gira a narrativa, a violência é

percebida como

[...] resultado, uma adaptação instável e perigosa, posto que a renúncia e a repressão criam uma hostilidade contra a própria civilização, que pode

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se manifestar como violência e formas irracionais de “resolver” o mal-estar que a vida social impõe (BUENO, 2002, p. 282).

A ausência de perspectivas por parte das personagens do manicômio revela

uma lacuna no âmbito dos valores morais e éticos, bem como a fragmentação dos

laços sociais que são, página por página, substituídos pelo estranhamento do outro.

A narrativa põe em suspenso a esperança. Na voz da personagem mulher do

médico, enxergar já não é mais motivo para acreditar diante da barbárie instaurada

no manicômio. Primeiro, por ter matado o cego malvado com várias estocadas de

tesoura durante as orgias:

A mão levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. [...] Não chegarás a gozar, pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com toda a força na garganta do cego. [...] O grito mal se ouviu (SARAMAGO, 1995, p. 185).

Com a morte do cego malvado, o caos é inevitável no interior do manicômio.

Alguns conflitos corpo a corpo são vistos na rotina desumanizadora dos cegos. Em

outra oportunidade, após uma tentativa frustrada de invadir a camarata onde os

cegos malvados guardavam a comida objeto de disputa, a mulher do médico rasteja

pelo chão imundo na busca de resgatar dois colegas mortos a tiros. Ela constata

que:

[...] pela porta do átrio que dá para a cerca exterior entra uma difusa claridade que cresce pouco a pouco, os corpos que ainda estão no chão, mortos dois deles, os outros vivos ainda, vão lentamente ganhando volume, desenho, traços, feições, todo peso de um horror sem nome, então a mulher do médico compreendeu que não tinha qualquer sentido, se o havia tido alguma vez, continuar com o fingimento de ser cega, está visto que aqui ninguém se pode salvar, a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança (SARAMAGO, 1995, p. 204) (grifos do autor).

A cegueira tematizada no Ensaio sobre a cegueira se desdobra como uma

experiência do “re-aprendizado”, em que o sentido do olhar adquire suma

importância no relacionamento entre os cegos confinados no manicômio. Ainda que

o narrador diga que “não é preciso ter olhos para saber de que lado está a mão

direita” (SARAMAGO, 1995, p. 104), a perda da visão por parte das personagens

expõe as dificuldades que essa perda impõe ao sujeito, necessitando que o cego se

ajude aos olhos alheios, que também não veem.

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Desse modo, do manicômio à liberdade com o retorno à vida na cidade, para

as personagens cegas a cegueira é questionada em todo o percurso narrativo. Esse

tipo de cegueira “configura-se de forma paradoxal, porque é pelo viés dela que se

discute o olhar como uma busca de sentido explícito e reconhecível para a

sociedade em que se perdeu quase por completo, os princípios fundamentais que

norteiam a visão” (SILVA, 2012, p. 20). A mensagem positiva que o romance deixa

na cosmogonia pós-moderna é traduzida pela postura crítica da mulher do médico

que, estando fora do manicômio após o incêndio que destruiu o local e tentando

readaptar-se à vida na cidade em caos, questiona: “E como poderá uma sociedade

de cegos organizar-se para que viva”, ao passo que ouve do médico: “Organizando-

se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos” (SARAMAGO,

1995, p. 282).

A narrativa mostra que o olhar é objeto do desejo de ver, contudo há “cegos

que veem, Cegos que, vendo, não veem” (SARAMAGO, 1995, p. 310), o que

corrobora com a passagem ao final da narrativa, em que o médico oftalmologista

convida para que abram os olhos, e alguém responde: “não podemos, estamos

cegos”, sendo que o médico diz: “É uma grande verdade que o pior cego foi aquele

que não quis ver” (SARAMAGO, 1995, p. 283).

A seção fez uma leitura de Ensaio sobre a cegueira, levando em conta dois

aspectos. Com um “olhar de fora”, leu-se a narrativa do ponto de vista das

personagens que, usando do expediente do poder, no caso o Estado e o exército,

isolam as personagens cegas no manicômio abandonado, excluindo-as e

marginalizando-as. Com um “olhar de dentro”, leu-se o romance num viés que

analisou as atitudes das personagens cegas entre si, em que pese deliberar acerca

do dilema da alteridade e das relações que denigrem e marginalizam os sujeitos no

espaço de confinamento.

A próxima seção delibera acerca de João Gilberto Noll. Primeiro, traz um

apanhado crítico sobre a obra do escritor para, em seguida, fazer uma análise do

romance Hotel Atlântico (1989).

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3.2 João Gilberto Noll e as narrativas líquidas

Numa entrevista datada de outubro de 2006, o escritor João Gilberto Noll fala

a respeito de uma das características marcantes de sua prosa literária: o nomadismo

de suas personagens, que não encontram ancoragem, lugar fixo no mundo social.

Sobre essas características, afirma Noll (2000, p. 19), “não trato de pessoas em

cenários domésticos, em volta da mesa da cozinha. Os cenários da minha gente são

a rua. [...] Toda minha ficção existe a partir de um sentimento de desterro”. Por isso,

na literatura do escritor gaúcho, as relações de alteridade se dão por esvaziamento,

sendo que a construção do sujeito se dá pelo anonimato, pela solidão, a ausência de

contatos afetivos duradouros, de vínculos profissionais, políticos, residenciais ou

representantes de estratificação social.

A literatura brasileira contemporânea reúne variadas tendências, o que deixa

claro que a forma mais apropriada de ela se aproximar é através do ponto de vista

da multiplicidade. O “fazer” literário de Noll pode ser inserido naquilo que Karl Erich

Schollhammer (2009) denomina de “realismo de novo” ao fazer alusão à literatura

produzida no Brasil a partir de 1980.

Em Ficção brasileira contemporânea (2009, p. 9), o crítico explica que para

narrar o tempo presente o escritor deve ter a astúcia de se “orientar no escuro e, a

partir daí, ter coragem de reconhecer e de se comprometer com um presente com o

qual não é possível coincidir” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10). Visto desse viés, ao

escritor contemporâneo cabe um desafio: dar respostas a um anacronismo ainda

tributário de esperanças que lhe chegam tanto de um passado histórico em ruínas e

de um futuro permeado por utopias em que o sujeito vaga sem esperanças e

desiludido.

Schollhammer discorre sobre um contexto literário atual por ele denominado

de “o ‘realismo de novo’, em que a literatura contemporânea26 procura criar efeitos

de realidade, sem precisar recorrer à descrição verossímil ou à narrativa causal e

coerente” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 79). No bojo da representação literária

dentro de um prisma pós-moderno, o crítico expressa que a literatura atual não é

aquela “que representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma

26 Não comparando o termo “realismo” aos escritores realistas do passado, cita a prosa literária experimental de Luiz Ruffato, autor do romance Eles eram muitos cavalos (2001), como exemplo claro desse “novo realismo” que desestabiliza a objetividade da representação realista.

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estranheza histórica que a faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente,

que se afastam de sua lógica” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10).

Consoante às diferenças estabelecidas entre a modernidade e o momento

atual da história, tem-se a ênfase de que “o presente contemporâneo é a quebra da

coluna vertebral da história e já não pode oferecer nem repouso, nem conciliação”

(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 12). Nesse sentido, o “novo realismo” é pautado na

vontade dos escritores em relacionar literatura e arte com a realidade social e

cultural da qual a ficção emerge, em que a produção artística assoma como força

transformadora (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 54), dando suporte à prosa pós-

moderna que ganhou força a partir de 1980, em que pese situar o nome de João

Gilberto Noll como um dos expoentes literários dessa geração.

Na literatura brasileira, João Gilberto Noll (1946 – Porto Alegre – RS) vem

chamando atenção da crítica e do público leitor como um dos mais expressivos

nomes surgidos na prosa ficcional depois de 1970. Foi com a coletânea de contos O

cego e a dançarina (1980), que o escritor gaúcho despontou no cenário cultural,

conquistando prêmios como “Revelação do Ano” da Associação Paulista dos

Críticos de arte, “Ficção do Ano” do Instituto Nacional do Livro e o “Prêmio Jaboti” da

Câmara Brasileira do Livro.

Noll é autor dos romances A fúria do corpo (1981), Bandoleiros (1985),

Rastros do verão (1986), Hotel Atlântico (1989), O quieto animal da esquina (1991),

Harmada (1993), A céu aberto (1996), Canoas e marolas (1999), Berkeley em

Bellagio (2002), Mínimos Múltiplos Comuns (2003), Lorde (2004), os livros de contos

Máquina de ser (2006) e Acenos e afagos (2008).

Consoante à obra nolliana, Sarita Costa Erthal Cordeiro, em sua dissertação

de mestrado Por vias e desvios: um panorama sobre o protagonista de João Gilberto

Noll em suas trilhas contemporâneas (2008), destaca que o narrador-protagonista do

escritor gaúcho é um tipo que merece atenção, porque, apesar de sua constante, é:

[...] um andarilho que percorre as imagens que ele próprio cria, em contínuo perambular pelo espaço/tempo, sem que, com isso, as experiências dessas andanças se agreguem a ele e modifiquem, de algum modo, sua maneira de agir perante o mundo e as situações pelas quais passa. Ele se diferencia entre as narrativas por surpreender o leitor a cada passo que dá (CORDEIRO, 2008, p. 9).

Nesse sentido, esclarece Cordeiro (2008, p. 9), as muitas transgressões nos

romances do escritor gaúcho causam um desconcerto no leitor, pois este não

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consegue decodificar se os acontecimentos narrados aconteceram na trama ou

apenas imaginação do narrador-protagonista. Além disso, a análise das narrativas

de Noll permite uma leitura que desvele a paranoia presente em sua literatura, que é

um choque por desconstruir os modelos sociais ao qual o leitor está submetido.

Rafael Campos Quevedo, em “Experiência e pobreza na narrativa de João

Gilberto Noll” (2007), faz uma leitura de quatro romances nollianos. Em referência a

Hotel Atlântico (1986), Harmada (1993), A céu aberto (1996) e Berkeley em Bellagio

(2002), o autor parte do pressuposto de que essas narrativas são registro do

definhamento da experiência e da memória, elementos que dão suporte à figura do

narrador. No artigo, o autor indaga sobre a configuração problemática do narrador

da obra de Noll do ponto de vista da “falta do ter o que narrar”, espécie de paradoxo

emblemático da conjuntura em que a obra do escritor gaúcho se insere.

Ao se reportar a essas narrativas, Quevedo (2007) destaca que nelas:

[...] tudo se passa como se elas fossem engendradas ‘durante’ o processo mesmo da escrita, ou seja, o conteúdo da narrativa não precederia o texto em si, mas passaria a existir de maneira concomitante ao próprio ato de narrar. Isso nos sugere a possibilidade de estarmos diante de uma escrita que parte do “grau zero” da memória, que não se origina de um centro irradiador de onde se poderia jorrar uma experiência a ser comunicada, mas tudo se passa como se tal escrita fosse a confissão e o testemunho dessa ‘pobreza’ (QUEVEDO, 2007, p. 4).

Quevedo (2007, p. 2) observa que a pobreza advinda da falta do que ter para

narrar por parte dos protagonistas de cada narrativa em questão faz com que ao

final de cada romance se tenha algum tipo de colapso com a linguagem, seja na

forma de impotência total ou parcial dos sentidos: mudez ou surdez como em Hotel

atlântico e Harmada; seja no conflito entre língua materna e língua estrangeira, caso

de Berkeley; ou na encenação de uma mudez, como ocorre em A céu aberto.

Além disso, frisa o autor, a ideia de se chegar até o mutismo ou a alguma

forma de privação de um ou alguns dos sentidos que dizem respeito à faculdade da

comunicação pode ser entendida sob dois prismas: o da degeneração e o do triunfo.

No primeiro caso, emudecer pode significar, pelo viés da queda, a amputação de uma faculdade essencial, sem a qual o indivíduo se desumaniza, torna-se um mutilado, expulso da comunidade do lógos onde se abriga a humanidade como forma de se ‘proteger’ da ameaçadora ancestralidade animal. Sob o outro ponto de vista, a mudez pode ser vista não como perda, mas como coroamento, ascensão. O indivíduo salta sobre o fosso do qual a linguagem se pretende ponte e alcança, sob a forma do silêncio, a consciência, de natureza mística, a partir da qual a linguagem

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torna-se absolutamente desnecessária. Nesse caso, é ela, a linguagem, que é vista como precariedade e insuficiência. O silêncio, por sua vez, é almejado como a instância última, não do conhecimento conceitual e discursivo (lógos), mas da sabedoria mística, espécie de superação do hiato entre homem e mundo (QUEVEDO, 2007, p. 2).

No tocante aos romances analisados, Quevedo (2007, p. 12) expressa que

essas narrativas não apresentam a figura do sujeito conciliado, justamente porque,

em Hotel Atlântico, Harmada, A céu aberto e Berkeley em Bellagio, tem-se a

manifestação de um projeto de literatura que quer a qualquer custo fugir do engodo

da grande mentira da unidade, da verdade e da sabedoria enquanto experiência de

uma tradição.

Fernanda Dusse, no artigo “Signos partidos: uma análise da (des)construção

da subjetividade na narrativa de O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll”

(2002), comenta que há semelhanças entre a obra de Noll e a de outros autores e

textos pós-modernistas brasileiros, como Bernardo de Carvalho, Dalton Trevisan ou

Silviano Santiago. Em todos eles, destaca Dusse (2002, p. 3), a “fragmentação é

utilizada como técnica sintática e semântica, possibilitando o debate sobre a

ressignificação do leitor na narrativa pós-moderna”.

Dusse faz uma leitura do romance O quieto animal da esquina (2003),

explicando que na narrativa de Noll:

[...] fragmentação e pluralismo estão presentes nas contradições e angústias de seu protagonista-narrador. Sua escrita é um convite à reflexão, na medida em que busca romper com aspectos vários da tradição literária, como a onisciência do narrador (que é nesta obra absolutamente volátil), a organização textual em blocos interligados (a conexão entre as partes da novela precisa ser pensada pelo leitor) ou a presença de diferentes vozes marcada pela existência de diferentes personagens (pois aqui é o protagonista-narrador que incorpora pontos de vista opostos e desconexos, mostrando a pluralidade do indivíduo) (DUSSE, 2012, p. 3).

Nesse sentido, destaca Dusse (2012, p. 4), “mais importante que construir

sentidos, a obra de Noll é um convite para lidar com a desconstrução”, em que seu

“fazer” literário pós-moderno se faz de migalhas e questionamentos, abandonando a

ilusão de sentido do texto ou sentido da vida. Ao assumir a descrença e a

impotência como patamares narrativos, O quieto animal da esquina possibilita

perceber algumas ações típicas do romance de formação, a fim de apresentar a

personagem à luz de sua origem, seu conhecimento e seu caráter.

Entretanto, em O quieto animal da esquina:

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[...] é nítido o caráter irônico empregado pelo autor, que, ao se aproximar de tal gênero, desconstrói seus valores e representações simbólicas. Percebemos, que embora em movimento, o protagonista não tem destino, caminhando perdido e sem se sentir responsável por seu futuro (DUSSE, 2012, p. 5).

A desconstrução de valores e as errâncias das personagens de que fala

Dusse (2012) são contempladas em outro artigo, “A inquietação do andarilho:

desterritorialização em Hotel Atlântico” (2010), de Marcelo Barbosa Alcaraz e Rita de

Cassia Moser Alcaraz. No artigo, os autores fazem uma leitura do romance Hotel

Atlântico (1989) e levam em consideração a perspectiva do andarilho.

Segundo Alcaraz e Alcaraz, Hotel Atlântico:

[...] não pretende examinar a condição social e histórica dos tempos que correm e sim, a existência do homem pós-moderno, buscando uma existência em mundo fugidio e absurdo. Como nada é certo e seguro, como quase nada se pode planificar em mundo que se transforma em ritmo inumano, a única categoria em que se pode fiar é a das possibilidades (ALCARAZ; ALCARAZ, 2010, p. 8).

Consoante a isso, em Hotel Atlântico, a fragmentação da identidade do sujeito

e a problemática da alteridade são aspectos que saltam aos olhos. Nesse romance,

o “outro é quase sempre visto como estranho, não como alguém que se possa

estabelecer uma relação, a não ser que seja passageira” (ALCARAZ; ALCARAZ,

2010, p. 4). Consequentemente, o protagonista do romance de Noll é um sujeito

fragmentado que não foge à “vivência de um ego absolutamente infantil. Cada

encontro vai mostrando o total desinteresse de se criar vínculos. Os laços se tornam

impossíveis, é uma relação do narrador com o nada” (ALCARAZ; ALCARAZ, 2010,

p. 4).

Giuliano Hartmann, em “A céu aberto, de João Gilberto Noll: identidade

narrativa, biografias do corpo, transgressão e subjetividades” (2010), enfatiza que o

universo narrativo nolliano é um “mar no qual se navega pelo leme da incerteza”. Ao

fazer uma leitura do romance A céu aberto (1996), Hartmann insere essa narrativa

ao mundo globalizado, que não mais apresenta fronteiras a serem transpostas ou

respeitadas. As personagens dessa narrativa são “[c]riaturas que se frutificam nas

raias da marginalidade e que, incorporadas a uma possível realidade social,

intensificam a disparidade existente entre a contravenção e o legitimamente aceito”

(HARTMANN, 2010, p. 2).

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Hartmann (2010) comenta que A céu aberto possibilita uma reflexão a

respeito da condição e da contravenção das subjetividades no bojo da pós-

modernidade, pois essa é “uma narrativa que explora lugares inominados para então

evidenciar as consequências da vida capitalista na construção dos sujeitos

anônimos que percorrem as margens, tentando apenas sobreviver” (HARTMANN,

2010, p. 2). Ao fazer uma leitura dessa narrativa, o autor busca entender a

identidade do sujeito pós-moderno e sua paulatina fragmentação no âmbito da

sociedade globalizada, em que a forma do texto literário também é vista como

fenômeno e reflexo direto da inconstância que se tornou a vida humana.

Cristina Maria da Silva, em sua tese de doutorado intitulada Rastros das

socialidades: conversações com João Gilberto Noll e Luiz Ruffato (2009), aborda a

escrita literária de Noll e de Luiz Ruffato, tomando como perspectiva a tese de que

nos textos literários desses autores estão presentes as marcas da experiência social

com toda sua gama de mal-estares, com em seus conflitos e tragicidades. Ao se

reportar ao “fazer” literário de Noll, a autora expressa que seus textos são:

[...] sensíveis ao que tece a vida social, sendo uma literatura do fragmento, do instante e da diversidade humana. Uma literatura que ensina acompanhar os rastros da socialidade, adentrando as trilhas da vida que se constrói para além da clareza e da argumentação lógica (SILVA, 2009, p. 91).

Como exemplo disso, Silva (2009, p. 111-112) cita o romance Bandoleiros

(1985) e enfatiza que a narrativa segue por uma trilha de enredos, aparentemente

desconexos. Ainda, o escritor lança mão do discurso cinematográfico na construção

de suas narrativas, nas quais atravessam desesperos, desilusões, angústias da vida

cotidiana com suas presenças efêmeras, cenas eróticas passageiras, a contínua

busca de sentidos e a fragmentação das fronteiras entre o bem e o mal.

Em outra tese que merece ser citada no estudo, intitulada A transfiguração

narrativa em João Gilberto Noll: “A céu aberto”, “Berkeley em Bellagio” e “Lorde”

(2007), de Fábio Figueiredo Camargo, o pesquisador assevera que na literatura de

Noll existe uma deserção da companhia do outro na cultura que só consegue algum

alívio ao tocar a carne humana, para, a partir daí, entrar nesse gozo provisório,

efêmero, que é o contato com o outro.

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Camargo (2000) expressa que Noll filia-se ao rol de escritores cujos textos

literários não escamoteiam:

[...] a desesperança do homem contemporâneo, que nada mais tem a narrar, embora continue a narrar, que não possui sonhos a serem concretizados, ajuda a compreender que não há mais o que fazer a não ser continuar infinitamente uma ladainha eterna, sem se preocupar com mais nada a não ser o presente (CAMARGO, 2000, p. 19-20).

No que tange ao romance Céu aberto (1986), Camargo (2000, p. 40) reitera

que provisoriedade e efemeridade levam a entender que não há um sujeito

completo, só há alguém fragmentado, em estado decadente, o que “configura-se na

profunda perplexidade do sujeito que vivencia a decadência do mundo e de si

próprio”, que vê a sua própria perda de lastro (PIRES, 2000, p. 41 apud CAMARGO,

2000, p. 40). Essa aparência esgarçada dá a definição do que é esse sujeito em

frangalhos ou fragmentado.

Camargo observa que Noll, em entrevista a Ronaldo Bressane (2000),

destaca que sua escrita é aquela que lida com o desconforto do leitor.

Ela não está interessada em causar ou possibilitar a este um conforto moral, um conforto pequeno-burguês. Há uma necessidade para o escritor de levar seu leitor a uma jornada na qual este vislumbre algo para além da realidade concreta que se lhe aparece todos os dias. Esse desconforto, organizado pelos seus temas os mais insólitos e pela implosão de todos os valores burgueses com os quais o seu leitor está acostumado, é o motor propulsor da angústia de sua literatura. Só o que existe é o sentimento de perda e de desamparo nessa escrita do desconforto que traz ao seu leitor a inquietude de se saber em um mundo por demais arrasado e, ao mesmo tempo, com a possibilidade de o poético e o belo instaurarem-se em meio ao desencanto e à destruição. Não há certeza de saída, há, sim, a derrocada dos valores burgueses, o fim dos seres de papel, quase sempre desaparecidos, subsumidos em suas angústias cotidianas, embora eles, em suas elocubrações, não se cansem de dizer o quanto estão cansados de representar e de se representar em um mundo já tão exaustivamente representado (CAMARGO, 2000, p. 132-133).

Além disso, frisa o pesquisador, há um estilo nolliano do qual não se pode

fugir nem negar, que é:

[a] superficialidade em suas histórias de narradores errantes que não se envolvem emocionalmente nem param para pensar sobre questões importantes para a humanidade é mera aparência, pois há uma preocupação em se refletir sobre a situação do homem contemporâneo em meio a uma sociedade de superfícies como a tela da TV, do cinema, do computador, uma sociedade de consumo na qual não se tem espaço para ligações mais profundas (CAMARGO, 2000, p. 19-20).

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Sobremaneira, é a partir dessa representação do sujeito desterrado que Noll

cria suas diversas personas na tessitura de suas narrativas. Para Camargo (2000, p.

133), é “nessa explosão de ‘eus’ os mais diversos, embora advindos de um só

sujeito, que se faz essa produção que não cessa de se escrever e de se inscrever

na contemporaneidade brasileira”.

Ivana Ferigolo Melo, em “A narrativa de João Gilberto Noll: a ficção

(des)constituindo o ser” (2011), dá atenção à finitude da existência do homem

contemporâneo. No que tange ao “fazer” literário do escritor gaúcho, a autora frisa

que “desconstruindo valores e subjetividades característicos da realidade social

imediata, as narrativas de Noll terminam entronizando a liberdade individual como

utopia” (MELO, 2011, p. 6).

A autora vê, ainda, que nas obras desse escritor

[...] a rudeza e a coloquialidade linguística potenciadas no fragmento se fazem patentes em todos os romances de Noll, caracterizando-os como produtos simbólicos que rompem com as correntes literárias que, estabelecendo o combate da arte de consumo, reivindicavam, em torno dos anos 60, um romance forjado a partir de uma linguagem elaborada e nada convencional ou cotidiana. Como marca singular do “fazer” literário do escritor gaúcho, tem-se a linguagem seca, despida de “arranjos” e rebuscamentos. A palavra no romance em questão é “seca”, símbolo de uma anomia, em que a vida se faz na transitoriedade do instante que marca os desencontros da vida (MELO, 2011, p. 3).

Outrossim, quanto à inserção da obra de Noll à pós-modernidade,

Schollhammer (2009, p. 31) destaca que a prosa nolliana serve de modelo para

definir o pós-moderno, haja vista a nova posição do sujeito marcada pela expressão

literária de uma individualidade desprovida de conteúdo psicológico, sem

profundidade e sem projeto. Desse modo, a leitura de alguns pesquisadores da obra

nolliana é oportuna para deliberar acerca da pós-modernidade em seus textos.

A ênfase ao novo realismo na literatura conforme Schollhammer (2009)

insere-se às relações que o romance pós-moderno mantém com o universo que o

alimenta, ou seja, a sociedade líquido-moderna. Esse é o tempo da

contemporaneidade em que a liquidez, amparada por suas características

determinantes, a fluidez e a adaptabilidade, são as qualidades enaltecidas pela

sociedade que considera necessária que o sujeito deva mudar de “forma”,

liquefazer-se, para a adaptação aos modos de vida que os espaços urbanos exigem.

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Nos romances de Noll, a pós-modernidade se faz presente quando suas

narrativas percebem a catástrofe do passado e representam através de suas

personagens nômades a dispersão e fragmentação do sujeito. O escritor gaúcho

inscreve-se à pós-modernidade ao narrar as possibilidades existenciais aleatórias e

imprevisíveis de um sujeito que vive à deriva diante do caos, do desmoronamento

das utopias da modernidade e da presença consciente da morte. Ainda que a escrita

ficcional de Noll não vá ao passado como o romance pós-moderno estudado por

Hutcheon (1991), é possível perceber a pós-modernidade na narrativa desse

escritor, a parodia à tradição ao criticar o passado e olhando-o, também, de forma

crítica (CAMARGO, 2000, p. 21).

Eneida Maria de Souza, em A preguiça: mal de origem (2001), analisa a

narrativa Canoas e marolas (2001). Levando em conta esse romance, a autora frisa

que a narrativa pós-moderna de João Gilberto Noll é

[...] pautada pelo mal-estar e pela comprovação de uma poética que, não tendo mais nada a dizer em termos de experiência e de saber acumulado no passado, utiliza- se de uma retórica do fragmento e de uma solução formal minimalista. A obsessão por situações de perda e pelo espectro da morte transforma a escrita em encenação de enredos já conhecidos e de enunciações estereotipadas, por se tratar de uma estrutura repetitiva e circular, portanto, exaurida. Personagem e narrativa cumprem o ritual de uma estética e de uma ética da negação, da letargia e do cansaço como uma das formas de se inscrever na escrita faltosa e sem trégua (SOUZA, 2001, 84).

Sem dúvidas, a escrita ficcional de Noll apresenta coaduna em sua tessitura o

mal-estar, o fragmento, a obsessão por perdas e outras características elencadas

pela ensaísta, o que ajudaria a denominá-la como pós-moderna. Para Hutcheon

(1991, p. 15), “o pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um

subtexto ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua

produção ou de seu sentido”. A ideologia, na narrativa pós-moderna de Noll, é

representar uma realidade em que em nada há de ideológico.

Na vertente das personagens errantes que percorrem as páginas dos

romances, como Bandoleiros (1985), Hotel Atlântico (1989), O quieto animal da

esquina (1991), Canoas e marolas (1999), Berkeley em Bellagio (2002), tem-se a

oposição dos “não-lugares” (AUGÉ, 1994) ao lar, diante da desterritorialização,

termo próprio do que é o pós-moderno na literatura, como o desenraizamento, o

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desapego aos bens subjetivos e materiais, bem como o individualismo de uma

sociedade pautada na realidade social imediata.

Na seção que seguiu viu-se que as personagens do Ensaio estão confinadas

e querem ver, mas não conseguem. Nessa perspectiva, a seção que segue procura

ler o romance Hotel Atlântico num viés em que o narrador-protagonista vê, mas não

quer ver a dinâmica da vida líquida.

3.2.1 Hotel Atlântico: vejo, mas não quero ver

O delineamento das especificidades e configurações das subjetividades na

modernidade líquida apoiam-se em mal-estares que esgarçam o tecido social e

individual do sujeito. Instabilidade, precariedade e efemeridade são elementos que

fazem parte dos mal-estares que denigrem a figura humana no contexto da vida

líquida. Paulatinamente, as alterações do espaço urbano e o esmaecimento das

relações sociais silenciam a alteridade como valor fundante do comportamento ético

nas sociedades primitivas, levando o sujeito “à indeterminação crescente e ao

princípio da incerteza” (BAUDRILLARD, 1990, p. 10).

Na sociedade líquido-moderna, a alteridade desconhece o relacionamento eu-

outro como valor que possa ser levado em conta na esfera fragilizada das relações

sociais. Isso vem ao encontro do exposto por Touraine. Em Pensar outramente: o

discurso interpretativo dominante (2009, p. 145), o autor explica que o “sujeito não é

definido pelos papeis sociais nem pelas relações, que são intersubjetividades”.

Somente é possível definir o sujeito pela relação consigo mesmo. Ao dissertar sobre

o tema eu-outro, o autor acredita que a “alteridade é muito mais do que uma

diferença”. Falar do outro é uma maneira indireta de dizer que o

[...] sujeito não pode ser alcançado diretamente em mim e que é olhando através do outro que eu percebo a presença ou a ausência, em mim, de um sujeito que não é facilmente perceptível (TOURAINE, 2009, p. 191).

Consoante ao sujeito e sua constituição, Touraine (2009, p. 144) brada pela

liberdade do sujeito, desejando que “as ‘grandes narrativas’ da vida pública e da

História sejam substituídas pelas ‘grandes narrativas’ do sujeito, de sua criação, de

sua defesa contra todas as formas do ‘nós’”. As narrativas do sujeito em sua

subjetividade devem ser levadas em conta, e isso faz com que o romance Hotel

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Atlântico seja visto como um texto literário fonte de reflexão e questionamento sobre

o declínio da narrativa da vida pública e da História.

O texto de Noll considera a história do sujeito urbano, insulado pelo trivial e

corriqueiro, que escamoteia sua identidade e não encontra ponto fixo no espaço

ficcional inominado. O romance tem como protagonista um ex-ator, que vivencia e

narra suas andanças pelas estradas brasileiras. Para esse sujeito, não há modelos

de vida em sua trajetória que o estimulem a ter um lugar fixo no mundo social.

Personagem sem destino, o narrador-protagonista é o típico sujeito que Peixoto

(1987) considera ser aquele que vem do nada e parte para lugar nenhum, que

aparece de repente, que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai.

A narrativa encontra abrigo para o trânsito no qual vive a personagem

protagonista. Ao falar sobre a escolha do título, o escritor em depoimento à Maria

Flávia Armani Magalhães (1993), declara que

“Hotel” é coisa do abrigo. (...) e “Atlântico” vem de Atlas, eu não sabia, depois é que fui ver a origem da palavra – vem de Atlas. Porque quando o Atlântico foi descoberto era o maior mar que até então se conhecia, essa imensidão... e depois está bem claro, eu não acho que seja possível para o homem essa falta de movimento divino: o ser humano realmente é um fenômeno incompleto, que está sempre em formação. (...) para haver esse movimento tem que pegar fogo às vezes, tem que se aflitar, tem que se conflituar (NOLL apud MAGALHÃES, 1993, p. 309).

A leitura do texto literário possibilita perceber a dimensão do vazio existencial

representada através das suas andanças. Além de abrigo e pouso, a palavra hotel,

assim como os locais em que ela se hospeda em suas andanças, assoma como

desejo, procura de algo que nem ela sabe o que é. O narrador-protagonista do

romance é o tipo de sujeito mergulhado na condição pós-moderna da existência,

que, segundo Bauman, tem uma identidade que se dissolveu em meio à circulação

incessante dos signos midiáticos e informacionais da modernidade líquida

(BAUMAN, 2001).

O romance é atravessado por uma tendência de se romper com a estética da

narrativa tradicional. Por isso, é possível inserir o texto literário à literatura pós-

moderna. Como exemplos disso, tem-se o fato de que o romance é narrado em

primeira pessoa, sendo que o narrador é o protagonista da trama, ainda, os períodos

são curtos e a narrativa é estruturada em seis blocos.

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Permeada pelo insólito, pelo fronteiriço e pelo inacabado, a narrativa inicia

quando a personagem protagonista chega para hospedar-se no hotel. Logo, se vê

cercado pela agitação comum aos locais em que alguém é assassinado, posto que

no hotel alguém fora morto horas antes. Junto ao balcão, a personagem pede “[u]m

quarto com banheiro, cama de casal, uma televisão, e uma mesa onde eu possa

apoiar os cotovelos e pensar” (NOLL, 1989, p. 6). No decorrer do romance, uma das

características marcantes desse sujeito é o fato de não levar consigo bagagens.

Quando interpelada a respeito disso, a personagem dissimula. Assim o faz quando a

atendente do hotel pergunta: “E a bagagem?”, para depois dissimular e responder:

“A bagagem eu deixei guardada no Galeão” (NOLL, 1989, p. 6).

As alterações da modernidade líquida e a maneira como Noll as representa

em suas obras é objeto de reflexão de Analice de Oliveira Martins, que em

Identidades em vôo cego (2004), reforça a ligação da obra do escritor com as

alterações do mundo contemporâneo afirmando que:

João Gilberto Noll ficcionaliza, de certa forma, uma trajetória das individualidades contemporâneas, assim como, promove, em alguns momentos, uma desreferencialização bastante radical do espaço geográfico, sem contudo apagar as marcas da condição urbana. Talvez mais do que qualquer outra em seu conjunto, a ficção de Noll traga à baila personagens em trânsito, deslocando-se não só por lugares e não-lugares como também por outras individualidades, outros "selfs". A condição de nomadismo aqui é recorrente (MARTINS, 2004, p. 79).

No romance pós-moderno, as personagens frequentemente “aparecem

confusas acerca do mundo em que estão e de como deveriam agir com relação a

ele”, explica Harvey (2007, p. 46). A confusão, proposital ou não, que caracteriza o

narrador-protagonista da narrativa em análise se filia aos tipos de sujeitos gerados

nesses tempos líquidos, que colocam a leitura em suspenso, sem que o leitor tenha

clareza a respeito dos acontecimentos. Para o leitor, a dúvida permanece, não

sabendo se eles realmente aconteceram ou se tudo se resume em pura imaginação

do narrador.

O narrador-protagonista de Hotel Atlântico insere-se ao tipo de narrador

apresentado por Dalcastagnè (2007), ao referir-se à narrativa atual, em que se vê:

[n]arradores cheios de dúvidas ou abertamente mentirosos, personagens descarnadas e sem rumo “autores” que penetram no texto para se justificar diante de suas criaturas – esses seres confusos que preenchem a literatura

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contemporânea habitam um espaço não menos conturbado (DALCASTAGNÈ, 2007, p. 23).

Como acontece na maioria dos romances de Noll, o narrador-protagonista de

Hotel Atlântico é marcado pela expressão literária de uma individualidade desprovida

de conteúdo psicológico, sem profundidade e sem projeto (SCHOLLHAMMER, 2009,

p. 31). O andarilho pós-moderno que transita pelas páginas de narrativa é aquele

sujeito que está sempre a partir, e que “não tem experiências a contar, não tem o

que falar sobre seu próprio eu. Desconhece sua própria história” (CORDEIRO, 2008,

p. 9-10).

Os “‘não-lugares’ criam tensão solitária” (AUGÉ, 1994, p. 87). A ânsia de

partir, sair sem rumo, é atestada quando ao acordar no quarto do hotel, ao

amanhecer, a personagem mostrava-se afoita, nervosa:

Fechei a cortina [da janela]. Uma contagem regressiva estava em curso, eu precisava ir. Mas resolvi voltar para a cama. Tirei os sapatos com os próprios pés. Sabia que de dentro de mim eu representava um desespero, porque daqui um pouco eu precisava ir (NOLL, 1989, p. 9).

Representante da angústia do sujeito urbano o andarilho, em sua constante

movimentação por espaços geográficos não previamente definidos, transita por

espaços fluidos que não lhe possibilitam firmar raízes. Sempre forçando os limites

do espaço em que transita, o percurso do andarilho é feito “não-lugares” (AUGÉ,

1994). Seu percurso é feito de extravios e recomeços numa cidade que não passa

de um mero cartão postal, uma imagem que pode ser guardada no bolso.

Comprei um postal da ponte de Florianópolis. Eu costumava guardar postais de recordação. Naquelas dias eu levava no bolso de trás da calça dois postais. Já estavam bem amarfanhados. Um deles mostrava a praia de Copacabana à noite. O outro, a barca para Niterói. Agora, aquele postal da ponte de Florianópolis atravessando um mar de azul escandalosamente artificial, aquele postal faria companhia aos outros (NOLL, 1989, p. 30-31).

Por fim, esses pedaços desaparecem, como se fundissem a um sujeito

igualmente fragmentado e registram um simples impulso, para depois ficarem

esquecidos num lugar qualquer. A passagem em que o andarilho deixa para trás o

mapa que deixara sobre o banco é altamente significativa. Após sair do hotel, ele

pega um táxi e percorre as ruas da cidade. Mais tarde, chega à estação rodoviária e

senta sobre um banco. Então, tendo em mãos um mapa do Brasil, seu olhar passeia

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pelas regiões brasileiras: “Os meus olhos desceram um pouco, entraram no interior

de São Paulo [...]” (NOLL, 1989, p. 16), para depois esquecer o mapa e partir,

novamente:

Dobrei o mapa, disfarçadamente coloquei-o debaixo da bunda. Depois me levantei e saí andando. Não dei cinco passos, uma mulher sentada num banco da frente me chamou: - Ei senhor, o senhor esqueceu alguma coisa ali. Olhei para trás [...] vi o papel dobrado no assento do banco, me virei para a mulher, abanei a cabeça dizendo: - Não é meu (NOLL, 1989, p. 17).

Em cada partida, o andarilho faz com que o leitor fique na expectativa, pois

para um ser errante, tudo o que possa relacioná-lo aos lugares em que passou deve

ser deixado para trás. É o típico sujeito pós-moderno, esquisito, que faz do

nomadismo sua razão de ser. Porque está de passagem o tempo todo? Para onde

vai? Quais são seus desejos? Seu perfil é rarefeito numa narrativa em que a

motivação e a verossimilhança são diluídas em prol de situações ambíguas. Muitas

vezes, o leitor precisa procurar nas entrelinhas do texto um sentido para sua

vivência.

Postais e mapa são esquecidos porque é característico ao sujeito diluir

qualquer objeto que possa trazer ao narrador-protagonista alguma recordação, pois

ele próprio afirma: “[e]u não guardo nada comigo” (NOLL, 1989, p. 41). As imagens

que traz em seu olhar tornam-se vazias de significação, são meros cartões

amarrotados no bolso ou mapa esquecido num lugar qualquer da cidade.

O andarilho vê a cidade como um lugar que não lhe pertence, assim como

acredita que não pertence a lugar algum. Por isso, não são raras passagens que

denotam que ele estava sempre a partir: “Uma contagem regressiva estava em

curso, eu precisava ir” (NOLL, 1989, p. 9). Em conformidade com o pensamento de

Peixoto (1987, p. 361), “[q]uanto mais rápido o movimento, mais profundidade as

coisas têm, mais chapadas ficam, como se estivesse contra um muro, contra uma

tela”. A cidade, ao olhar do andarilho, está convertida num cenário, os sujeitos em

personagens (PEIXOTO, 1987, p. 361).

Nesse sentido, em se tratando da representação de sujeitos fragmentados,

que ocupam os mais diferentes “não-lugares” da cidade, torna-se voga a presença

de personagens andarilhas, sem rumo e sem lugar antropológico para fincar raízes.

Nelson Brissak Peixoto, em Cenários em ruínas: a realidade imaginária

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contemporânea (1987), pontua que o andarilho reescreve uma história pessoal em

cada lugar que passa. As andanças e errâncias da personagem do romance de Noll

são representações da inquietude do sujeito, envolto por um cotidiano acelerado e

claustrofóbico, que vive em cenários descontínuos e repletos de imagens, mas nada

parece tirá-lo da sensação de viver “rudimentos de ilusão” (NOLL, 1989, p. 30).

A sensação de estar perdido nesses “não-lugares”, que são comuns a

qualquer esfera social, econômica e cultural da sociedade globalizada, caracteriza a

inquietude do sujeito, cujo cotidiano é acelerado e claustrofóbico. O andarilho,

segundo Peixoto (1987, p. 82), tem como constituição viver na inquietude. A

inquietação faz

[v]iver em hotéis, [...] em motéis de beira de estrada. Num lugar qualquer onde estiver passando em locais que se fique por pouco tempo, em que não se deixe rastros, dos quais não se guarde lembranças (PEIXOTO, 1987, p. 82).

Na narrativa, a inquietação do andarilho faz com que ele se sinta um liberto

por não ter que permanecer sempre no mesmo lugar. Em sua ânsia de partir –

“Cruzar fronteiras permite uma nova percepção das coisas” (PEIXOTO, 1987, p. 82)

–, a personagem desabafa: “Quando me vi com a passagem na mão me sentindo

como que comprando a minha alforria. E me invadiu a sensação de uma liberdade

demasiada” (NOLL, 1989, p. 17). No entanto, essa sensação é ilusória, pois o

andarilho é o sujeito que não sobreviveu à perniciosa dança das cadeiras (BAUMAN,

2005, p. 10). Suas andanças tem como garantia a permanência temporária pelos

“não-lugares” que transita, antes de ter que partir rumo a outra cidade.

O caráter ético da vida social do narrador-protagonista é diluído das relações

individuais. Da passagem das relações sólidas e duradouras às relações líquidas e

instantâneas, o não-apego do andarilho à relações duradouras coaduna com a

observação de Bauman (2005, p. 18-19) quando trata dos traços identitários do

sujeito inserido à modernidade líquida. A personagem está imersa num tempo em

que a sociedade em volta está repartida em fragmentos mal coordenados, e sua

existência é fatiada numa sucessão de episódios fragilmente conectados.

O ser pleno já não existe mais para o mundo da totalidade. Tem-se, por sua

vez, a artificialidade que toma conta dos relacionamentos. Os laços sociais que

unem momentaneamente dois sujeitos são relacionamentos guarda-roupa, “reunidas

enquanto dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os expectadores

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apanham seus casacos nos cabides” (BAUMAN, 2005a, p. 37). Por isso, a

personagem enfatiza: “Eu não guardo nada comigo” (NOLL, 1989, p. 41) diante da

mulher do hotel quando ela pergunta ao andarilho o motivo de ter como bens apenas

a roupa do corpo.

Na obra Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas (2001),

Maffesoli destaca:

Qualquer que seja o nome que se lhe possa dar, a errância, o nomadismo está inscrito na própria estrutura da natureza humana; quer se trate do nomadismo individual ou do social. De alguma forma, está ai a expressão mais evidente do tempo que passa, da inexorável fugacidade de todas as coisas, de sua trágica evanescência (MAFFESOLI, 2001, p. 37-38).

O andarilho de Hotel Atlântico tem sua constituição fragmentada. Por isso, no

decorrer da leitura é difícil depreender acerca da visibilidade do olhar da

personagem. O que vê? O que não quer ver? Essas são questões que tornam a

leitura do romance inquietante.

Sujeito anônimo na multidão de qualquer grande metrópole do mundo, a

personagem incorpora a massa de transeuntes nas ruas velozes, um andarilho que

vai “andando pela rua com os olhos postos em frente, fixos” (NOLL, 1989, p. 56). É

caminhante do finito, ora por entre automóveis e prédios ora por lugares

descampados, num pequeno povoado do interior brasileiro.

Na prosa ficcional nolliana há um constante entrecruzamento de imaginários,

a multiplicidade dos acontecimentos e a intensificação da ficcionalização do real. O

movimento do andarilho de Hotel Atlântico, por geografias incertas, faz questionar as

dimensões espaciais e temporais do narrado. Schollhammer (2009) reforça a

relação da obra do escritor gaúcho com as teorias ligadas à pós-modernidade, pois

[...] Noll cumpre uma trajetória que o identifica, inicialmente, como o intérprete mais original do sentido pós-moderno de perda de sentido e de referência. Sua narrativa se move sem um centro, não ancorada num narrador autoconsciente; seus personagens se encontram em processo de esvaziamento de projetos e de personalidade, em crise de identidade nacional, social e sexual, mas sempre à deriva e à procura de pequenas e perversas realizações do desejo (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 32).

O romance insere-se às produções literárias que têm como temática o

citadino em meio ao “caos urbano, a desumanização, a incomunicabilidade, a

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individualização solitária e inevitável” (PELLEGRINI, 1996, p. 28). No cotejo

experiência urbana e representação do sujeito, no romance de Noll há seres

predominantemente visuais, posto que a maioria das informações que o homem do

século XXI recebe lhe vem por imagens. Diferentemente da forma de cegueira que

vitimiza as personagens do romance de Saramago, Ensaio sobre a cegueira (1995),

o narrador protagonista de Hotel Atlântico traz consigo a verdade de que a imagem

não traz mais consigo a duração do olhar.

O instantâneo e o imagético são voga na modernidade líquida. As ações do

sujeito voltam-se à instantaneidade. Tudo é produzido para ser consumido. Tudo se

torna descartável: objetos, pessoas, identidades. Com isso, o sujeito, sua identidade

e sua história são “derretidas”. O sujeito da modernidade “sólida” foi posto no

cadinho, e está derretendo para novamente ser recolocado em sociedade em busca

de uma nova adaptação.

Recuperando o pensamento de Bauman (2009, p. 7), líquido-moderna é “uma

sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num

tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e

rotinas, das formas de agir” (BAUMAN, 2009, p. 7). Nesse contexto, possível pensar

as errâncias do narrador-protagonista seguindo a alegoria do “olhar líquido”,

buscando uma aproximação terminológica com os “líquidos” de Bauman. O

sociólogo é autor de expressões como “vida líquida”, “modernidade líquida”, “tempos

líquidos”, “medo líquido”, “amor líquido”, somatiza os mal-estares que assolam o

sujeito na esfera da sociedade globalizada.

No artigo “A literatura líquida de João Gilberto Noll” (2008), Tânia Nunes

expressa que o escritor brasileiro

[...] vale-se em sua escrita da palavra úmida. O que podemos chamar de a literatura líquida do autor tem, como marca singular, a palavra a esvaziar o corpo, a secá-lo em sua linguagem, como símbolo de uma ausência, uma anomia, em que a vida se faz na transitoriedade do instante, ou seja, seus personagens ingerem e expelem pelos orifícios corporais os desencontros da vida (NUNES, 2008, p. 1).

Semelhante reflexão acerca da vivência do andarilho e da liquidez de seus

relacionamentos é somatizada no mal-estar da personagem principal de Hotel

Atlântico, que traz em seu “olhar líquido” a dinâmica fluida entre a vida e a morte. No

universo ficcional do romance, o mal-estar se dá na dificuldade da personagem

protagonista em compartilhar tanto a experiência como a sua percepção de mundo,

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que é vivida sempre de modo solitário e marcada pelo signo da indiferença para com

o outro.

Substancialmente, o olhar da personagem não consegue enquadrar o todo e

muito menos demarcar a singular relação de distância entre ela e seu tempo, pois

ela é o típico sujeito contemporâneo, que fragmentado em sua constituição, recebe

em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. A contemporaneidade –

modernidade líquida, pós-modernidade – nasce da não-possibilidade do sujeito

apreender seu tempo, em que expressões como “muito cedo” e “muito tarde”, “já” e

“ainda não”, se entrecruzam e demarcam o estranhamento em tempos líquidos.

Hotel Atlântico exemplifica o tempo líquido em que o homem vive, quando

tudo é fluido, sem sentido e traz como signos a precariedade, instabilidade e

efemeridade. A narrativa desfolha imagens que se esfacelam em segundos no estilo

direto, seco e sábio do escritor de dizer muito com poucas palavras. Nela, não há

espaço para a experiência, pois no constante estranhamento gerado pela alteridade

em tempos líquidos, a vivência, o experimento e a tentativa contínua são as balizas

do sujeito em sociedade.

O estranhamento se dá na impossibilidade que a personagem tem em manter

o olhar focado em um objetivo que pudesse levá-lo a estabelecer vínculos

duradouros e residência fixa. “Olhar líquido” é, portanto, uma expressão da cegueira

que toma os corações urbanos, entregues à individualidade e ao excesso de

imagens, que fazem com que o sujeito acredite estar vivendo num eterno presente,

no qual “a repetição do mesmo não fosse tão poderosa que não anunciasse mais

qualquer possibilidade de ruptura e de descontinuidade” (BIRMAN, 2012, p. 9).

A visão de Joel Birman acerca da mudança em algumas categorias

constitutivas do sujeito fala dos mal-estares vigentes na atualidade. A principal

mudança evidenciada pelo filósofo é a relação do sujeito com o espaço e com o

tempo, em que o primeiro engloba o segundo. Na obra, O sujeito na

contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade (2012), o filósofo cita

que “o tempo vai para o espaço”, pois “o mundo se reduz ao espaço do aqui e

agora, sem expansão, sem escansão e sem qualquer horizonte possíveis, pois é a

pontualidade da sua presença que aqui se impõe” (BIRMAN, 2012, p. 101).

O mal-estar na modernidade líquida está centrado nos registros da ação e do

corpo, indicando uma ruptura entre os registros do espaço e do tempo, em que o

espaço “passa a dominar todo o território do psiquismo” (BIRMAN, 2012). No

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romance de Noll há um impasse na dinâmica psíquica do sujeito andarilho. O

registro do tempo não importa para a personagem, pois ela está sempre envolta por

angústias que a levam a partir, constantemente.

Na obra, isso é verificável na passagem em que a personagem está sentada

num banco da rodoviária. Liquefeito, o narrador-protagonista divaga sobre a liquidez

de sua existência:

Olhando aquele chão sujo eu não tinha nada a pensar. Talvez uma vaga saudade da intimidade infantil com o chão. Me surgiu a ideia de que a viagem me devolveria essa intimidade. Sabe lá se não vou ter que dormir no chão, era o que me dizia uma voz interna entre excitada e apreensiva (NOLL, 1989, p. 15-16).

A confusão gerada pela personagem denota um sujeito sem raízes e sem

histórias para contar. Há, na passagem acima, um desencantamento que caracteriza

o “vazio no existir” (BIRMAN, 2012, p. 113). Esse vazio fragmenta o andarilho de sua

constituição. Sua história é pautada apenas no efêmero momento, o passado não

existe, e o futuro precisa ser escrito. Sobre o tempo, existe somente o agora,

pautado na necessidade de partir, viajar, o que é revelado num impulso

incontrolável.

Na leitura do filósofo, o vazio é uma figura retórica para que se compreenda o

sujeito na atualidade. O vazio “remete à categoria do espaço. [...] O vazio é o espaço

em negativo”, que provoca o “esgotamento do sujeito de maneira trágica, se

esvaindo do seu desejo de ser, de viver e agir” (BIRMAN, 2012, p. 123). Esse vazio

na existência do andarilho se dá na sua constituição fragmentada, inacabada. Para

ele não há projeto de existência, por isso o narrador-protagonista constata que se

sentia “a viver rudimentos de ilusões” (NOLL, 1989, p. 30).

A partir da indiferença e da falta de experiências para passar ao outro, o

“olhar líquido” do andarilho denota a fragmentação da identidade sólida, pois o eixo

da estratégia de vida pós-moderna evita que a identidade se fixe (BAUMAN, 1998b,

p. 114). Assim como inicia a narrativa, do nada, de um acontecimento vago: “Subi as

escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina da

Miguel Lemos” (NOLL, 1989, p. 5), a chegada do andarilho a um lugar para pousar e

dele sair se dá de maneira rápida, sem que fiquem vestígios de sua passagem.

A identidade do andarilho chega ao estágio do não-eu, é postiça, é reflexo

das vestimentas do cotidiano. O sujeito andarilho é permeável a tudo e promíscuo

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com tudo o que toca (ROUANET, 1987, p. 234). A personagem caracteriza a

ambivalência que permeia a vida líquida, precária e efêmera, dos habitantes da

modernidade líquida e suas identidades frágeis e escorregadias. Através de suas

atitudes, o narrador protagonista mostra que não há mais uma identidade unificada e

estável. As estruturas sociais mudaram. Agora, a paisagem sócio-cultural é outra,

haja vista que novas identidades são projetadas num mundo provisório, variável e

problemático.

Hotel Atlântico pode ser visto como alegoria da representação da abertura

política no país com o fim do tempo ditatorial. O retrato, a um só tempo, da coragem

e desorientação de um personagem sem destino, vivendo à sorte do acaso, assim

como muitos brasileiros. A identidade não-resolvida (HALL, 2005, p. 12) do andarilho

se apresenta na grande alegoria da viagem. Deslocado no espaço e no tempo, a

“liquidez” da forma de vida da personagem é a postura do sujeito desorientado na

esfera da sociedade líquido-moderna, em que “as condições sob as quais agem

seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a

consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir” (BAUMAN, 2009, p. 7).

Na esfera da liquidez, o passado é abolido, e o presente é contínuo para o

narrador-protagonista. A personagem mostra não ter uma identidade “sólida”. Por

isso, ele não se apega a nada, nem a ninguém, pois ele próprio afirma: “Eu não

guardo nada comigo” (NOLL, 1989, p. 41). Não há um olhar que remeta o olhar para

trás em suas andanças pelo país. Sobremaneira, o andarilho não enseja construir

uma identidade, mas sim agir de certa forma para com isso impedi-la de ser firme e

aderir depressa demais ao corpo (BAUMAN, 1998b, p. 114).

Para o andarilho, “identidade significa não ter casa” (PEIXOTO, 1987, p. 82).

Por isso sua indecisão ao deixar o hotel para partir para algum lugar ainda

desconhecido: “Quem sabe volto para o quarto?, me perguntava. Quem sabe eu

fico, desisto? Quem sabe eu me caso com a melindrosa da portaria? Quem sabe me

contento na companhia de uma mulher?” (NOLL, 1989, p. 13). Essa passagem

denota não apenas a perda de referenciais geográficos e sociais da personagem,

mas também a impossibilidade do sujeito recompor os traços da sua identidade e de

identificar traços de sua origem.

Isso corrobora para que o andarilho tenha dificuldade de projetar uma

representação de si mesmo. O narrador-protagonista não fornece uma visão

absolutizante dos fatos narrados em seu instante ficcional, o que gera a incerteza e

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desconforto pelo fato de omitir referências sobre sua origem e destino. Essa postura

da personagem vem ao encontro do tipo de narrador de que fala Dalcastagnè

(2007). Por ser descarnada e sem rumo, a personagem desconhece o local em

detrimento do global, e suas constantes partidas não auferem deixar rastros de sua

passagem nem de sua história.

Os “não-lugares” em que transita o andarilho, são marcados pela fluidez do

tempo, em que a imaginação é suspensa para as vivências. A incerteza do andarilho

acerca de seu destino é vista na passagem em que ele olha um mapa:

Enquanto eu abria o mapa ia lembrando do que eu tinha dito para o motorista do táxi. Que eu faria um tratamento contra o alcoolismo em Minas. No mapa o interior de Minas parecia um formigueiro de localidades. Os meus olhos desceram um pouco, entraram pelo interior de São Paulo, pararam no Paraná (NOLL, 1989, p. 16).

Na passagem em tela, a escolha do próximo local a pisar se dá de modo

aleatório. Assim, ele diz: “Resolvi comprar uma passagem para Florianópolis. [...] De

repente uma ilha: era um tema que me interessava” (NOLL, 1989, p. 16). A

personagem se insere ao rol de sujeitos confusos e sem rumo, pois subitamente o

andarilho muda seu itinerário e, ao invés de ir para Minas tratar-se contra o

alcoolismo, vai noutra direção.

As errâncias do narrador-protagonista podem ser lidas segundo a ideia de

Peixoto (1987), que escreve acerca do imaginário voltado às andanças do andarilho.

Para o autor:

É preciso mudar sempre. Desaparecer, tornar-se desconhecido, partindo para longe ou se perdendo na própria cidade, é a verdadeira forma do movimento da viagem. Ser sempre alguém diferente, como se fosse de fora (PEIXOTO, 1987, p. 82).

A passagem é significativa para que se compreenda a personagem de Noll. É

um sujeito que transita pelos espaços da cidade de maneira anônima, sem que isso

lhe incomode. Além disso, o andarilho “evitava a ideia de recorrer a alguém.

Recorrer a alguém seria o mesmo que ficar, e eu precisava ir” (NOLL, 1989, p. 13).

Negar o outro, não necessitar do outro e a ânsia em partir do narrador-

protagonista entra em conformidade com as palavras de Peixoto (1987), pois

[...] não ter casa, não ter memória, não ter para onde ir. Afirmar sempre sua distância. Abandonar os lugares conhecidos, desfazer continuamente a

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própria identidade: processos infinitos de estranhamento (PEIXOTO, 1987, p. 82).

Por onde passa, o andarilho apaga sua história, haja vista que não há

integração do corpo à identidade. Esse fator leva à marginalização do sujeito por

não ter experiências para narrar aos que encontra pelo caminho em suas andanças

pelo Brasil. A relação tensa entre a linguagem, em primeira pessoa, e o olhar

constrói uma narrativa conduzida por movimentos e a busca incessante por novas

paisagens e imagens. Não há mergulho na subjetividade, posto que o lema é “viver

na superfície, não se apegar a nada nem ninguém, não criar raízes” (PEIXOTO,

1987, p. 82).

O sujeito fragmentado que narra no romance transita pelo visto e o não-visto,

neutralizando sua subjetividade que caminha para a autodestruição (VILLAÇA, 1996,

p. 105). O olhar do narrador-protagonista neutraliza o outro, não reconhecendo-o no

contexto da alteridade. No que tange aos modos de como o sujeito recebe as

imagens do seu entorno diariamente, Ítalo Calvino, em Seis propostas para o

próximo milênio (1990), elege a visibilidade como proposta importante. Para o

pensador italiano, hoje o sujeito é bombardeado por uma quantidade de imagens a

ponto de não distinguir mais a experiência direta daquilo que viu há poucos

segundos na televisão (CALVINO, 1990, p. 107).

Outrossim, a experiência contemporânea é pressionada por um acúmulo de

imagens sucessivas que não conseguem se sustentar por si mesmas, diluindo-se

antes de adquirir consistência na memória visual do sujeito. O “olhar líquido” do

narrador-personagem é resultante de um olhar pautado apenas no fugaz e no

passageiro. Por isso do seu olhar fragmentado sobre as imagens que o cotidiano lhe

traz aos olhos. Diante do bombardeio de imagens ao qual está submetido, o

andarilho não mais é capaz de perceber todos os objetos que estão disponíveis.

Sobremaneira, a personagem cega pelo fato de não ter mais nenhum tipo de

conhecimento associado à apreensão do objeto pelo olho. É esse bombardeio que

lhe incapacitou a ponto de cegá-lo. Consoante à alteridade, Hotel Atlântico

caracteriza o mal-estar da modernidade líquida, firmado na desconstituição do “eu” e

engendrado pelo esmaecimento dos afetos. Aqui, recupera-se as palavras de

Ginzburg ao expressar que muitos textos literários podem ser lidos como

representação de “tempos de catástrofes e desumanização”, em que “escritores

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procuram formas que de algum modo estejam ligadas a uma experiência

fragmentária e delicada de constituição de sujeito” (GINZBURG, 2004, p. 3).

No que tange à representação da alteridade na narrativa de Noll, suas

experiências no contato com o “outro” são vazias de sentido, ficando apenas no

contato físico. Em Hotel Atlântico, o andarilho não aprofundar relacionamentos

sociais ou amorosos, fato que vem ao encontro do pensamento de Ginzburg (2004,

p. 3) quando enfatiza que “em tempos de catástrofes e desumanização, escritores

procuram formas que de algum modo estejam ligadas a uma experiência

fragmentária e delicada de constituição de sujeito”, que “[m]uitas vezes esta se

apresenta como experiência inconclusa”.

Ao representar um sujeito cujas experiências são fragmentadas, o texto de

Noll se insere a essa visão de Ginzburg. A relação da personagem protagonista com

o “outro” caracteriza o descompromisso do sujeito para com sua história. Na

narrativa, as relações de alteridade e de individualidade são pautadas no anonimato

e em situações que, impregnadas pela mentira, fazem com que a personagem

preencha a ficha do hotel: “estado civil casado eu menti – e imaginei uma mulher me

esperando num ponto qualquer do Brasil” (NOLL, 1989, p. 6).

O andarilho percorre as imagens de um mundo que ele mesmo cria. Seu

contínuo viajar pelo espaço e tempo não corroboram para que ele tenha

experiências autênticas para contar aos outros que encontra pelo caminho. Em nada

suas andanças agregam ao mesmo conhecimento para que possa, a partir das

experiências, agir ou mudar sua situação. Por manter experiências inconclusas, é

um sujeito alheio a tudo que o cerca. Suas passagens nos locais que pisa são

breves, assim como são breves e instáveis seus relacionamentos, em que o olhar

não alcança o outro.

Ao conhecer a porteira do hotel, o narrador-protagonista, “como deveria estar

num dia de canastrão” (NOLL, 1989, p. 6), pede para que a mulher trouxesse até o

seu quarto um copo de uísque. Quando ela entra, ele diz que “tinha se apaixonado

em questão de segundos”, e então, no calor da hora, “vendo-se despida ela

imediatamente se pôs de quatro sobre o imundo carpete verde. Eu me ajoelhei por

trás. A minha missão, cobri-la fora do alcance dos seus olhos” (NOLL, 1989, p. 7).

A passagem corrobora para que se compreenda a frieza com que os

relacionamentos são pontuados na narrativa. Relacionamentos destituídos de afeto,

que sugerem ao leitor indagar acerca dos motivos que levam o andarilho a optar,

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voluntária ou involuntariamente, por um tipo de cegueira? Será que a cegueira à

qual ele está destinado é mesmo opção sua? Haverá mesmo uma cegueira

inevitável, como sina dessa personagem? O trabalho de linguagem exercido por Noll

caracteriza um texto fragmentado, com cenas sobrepostas e episódios que

começam de repente, sem ligação direta com o assunto anterior, leia-se os

encontros repentinos com a mulher do hotel, que acabam em relacionamentos

sexuais destituídos de qualquer esperança de reencontro futuro, a não ser que seja

por acaso, no ir e vir de suas perambulações.

O olhar do andarilho é fugaz e disperso. As imagens que se desenham ao seu

olhar tornam-se vazias de significação. As imagens são apenas cartões amarrotados

no bolso, tal quais os “pedaços” de acontecimentos que são narrados no curso do

romance, que antes mesmo que alcancem um desfecho, os “fragmentos de

narrativas” são abandonados pelo narrador para, assim, dar-se o início de outro

acontecimento sobre sua vida “veloz”.

A liquidez confunde a vida. O palpável escorre feito líquido e transpassa as

fronteiras do visível. O andarilho é um ser que se esgueira por fronteiras e tem uma

vida pautada por acontecimentos insólitos. Assim, não mais tendo regras para seguir

em seu cotidiano, ele transforma o real em experiências de quase ficção. O romance

expõe o mal-estar da vivência citadina, pois propõe uma experiência traumática, em

que o problema da alteridade se coloca na ordem do dia. Assim, a constituição do

andarilho e sua representação se dá perpassada por uma narrativa em que o sujeito

nega a si e ao outro.

Por isso, “negar-se o tempo todo, romper permanentemente como o que se é,

voltar sempre a zero” (PEIXOTO, 1987, p. 82) caracteriza o narrador-protagonista do

romance de Noll, um sujeito alheio a tudo, sejam pessoas ou objetos. Os

relacionamentos na narrativa são esvaziados de sentido. O “outro”, no romance, é

visto como um estranho que pode “frear” as partidas do andarilho; ao “outro”

somente é possibilita manter relações passageiras, fugazes, frias.

A relação que a personagem protagonista estabelece com o “outro” é pautado

na dúvida, e essa máscara ela usará até o final da narrativa, sem que se saiba ao

certo sobre a veracidade do que é narrado. A personagem que vaga sem rumo e

paradeiro dramatiza um sujeito liquefeito, cujo “eu” está desconstituído, e flui,

escorre e faz transbordar a incompatibilidade de “ser” numa modernidade líquida

que valoriza somente quem está ligado ao “ter”.

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No universo da ficção de Noll, destaca Helena (2008, p. 16), “sublinha-se

como é difícil compartilhar tanto a experiência como a percepção do mundo, que é

vivida sempre de modo solitário”. Hotel Atlântico é uma narrativa tecida na fúria dos

corpos que se encontram por encontrar. É no enlace da sexualidade e dos códigos

obscenos que o andarilho demonstra que não há espaço para “ficar”, fincar raízes.

No contexto da vivência líquida, firmar laços de afeto caracteriza um ato arriscado,

senão perigoso, pois não se sabe de antemão o resultado final dessa experiência

amorosa, resumida na missão que era “cobri-la fora do alcance dos seus olhos”

(NOLL, 1989, p. 7).

A personagem inominada dilui a relação para que possa, em seguida,

consumi-la (BAUMAN, 2004, p. 10) para, depois, sair pelo mundo. As relações

amorosas na vida líquida são impregnadas de risco. A personagem-protagonista

mantém para com a atendente do hotel aquilo que Bauman (2004, p. 10) denomina

de “relacionamento de bolso”, pois o andarilho pode voltar e, quiçá, dispor do corpo

da mulher por um breve instante. Nos breves e fragmentados encontros amorosos

da contemporaneidade, é voga as relações instantâneas sem que haja profundidade

e esperança de um novo encontro. Por isso, o narrador-protagonista confidencia ao

sair do hotel pela manhã: “Eu disse adeus, falei que um dia a gente ia se rever me

sentindo completamente ridículo” (NOLL, 1989, p. 12).

Para a personagem, o fato de se sentir ridículo se assenta na lógica do

descarte que afeta também os relacionamentos. A alteridade amorosa tem o seu

declínio diante da liquidez humana que faz escorrer os afetos pelos alicerces

enfraquecidos de um mundo líquido que, em suspenso, vive a proliferar alteridades

baseadas no corpo, na pura expressão da sexualidade. O outro é visto como

estranho, não como alguém que se possa estabelecer uma relação, a não ser que

seja passageira (ALCARAZ; ALCARAZ, 2010).

De certo modo, a problemática da alteridade evidenciada em Hotel Atlântico

está associada à ilusão e à incerteza (GINZBURG, 2004, p. 57). O narrador-

protagonista está limitado aos conhecimentos que auferem ao sujeito sua inserção à

sociedade voltada à imagem e aos signos dispersos da modernidade líquida. Age à

moda dos cegos, pois em verdade seu relacionamento para com os outros sujeitos

se dá de modo bruto e frio, ficando ao final da relação o vazio e o inominável:

“Nenhum toque acima da cintura, nada que não fossem ancas anônimas se

procurando, patéticas” (NOLL, 1989, p. 8-10). A exposição direta ao outro é

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impossibilitada pela cegueira que dificulta ao andarilho manter relacionamentos

sólidos e duradouros.

A condição pós-moderna do narrador-protagonista encaminha-se para um

devir que decreta a falência da subjetividade, em que pese considerar a morte dos

aspectos que definem a subjetividade humana, como a capacidade de firmar

relacionamentos. A fragilidade dos laços de afeto no romance pode ser percebida

como receio que o sujeito tem em aproximar-se do outro, impedindo a concretização

dos afetos, pois “é preciso diluir as relações para que possamos consumi-las”

(BAUMAN, 2004, p. 10).

Para o andarilho, elementos como bens culturais, princípios éticos e

afetividade são esferas as quais ele não ascende, pois sua constituição é precária

num universo marcado por encontros ambivalentes, saturado de vivências vazias e

por imagens que marcam o efêmero e o precário no vórtice da vida líquida. O

andarilho, pegando de empréstimo as palavras de Bauman (2005, p. 8), tem uma

vida precária, vivida em condições de incerteza constante.

Consoante às ponderações entre alteridade e vida urbana, Regina

Dalcastagné, em “Sombras da cidade: o espaço da narrativa brasileira

contemporânea” (2003), crê que há no romance uma espécie de suspensão do

espaço, que deixou de ser descrito na sua concretude, em que não há para as

personagens a possibilidade de constituírem uma experiência palpável, em que a

incompatibilidade é voga, seja em relação ao espaço seja em relação ao outro.

“Mas eu precisava ir” (NOLL, 1989, p. 13), repete o andarilho para si mesmo

ao sair do hotel, pela manhã. Essa personagem não guarda recordações dos

sujeitos que encontra pelo caminho, tampouco pretende ficar e fincar raízes e tecer

sua história. Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma por

muito tempo. A personagem narradora do texto de Noll é fluida, não fixa o espaço e

nem prende o tempo (BAUMAN, 2001, p. 8). O andarilho sempre está a partir,

fugindo do outro. Individualmente, ele persegue a ilusória satisfação plena que

nunca chega.

A condição finita da personagem incorpora novos personagens em cada lugar

por onde passa, de hotel em hotel, de cidade em cidade, as circunstâncias vão

traçando a sua improvisada trajetória. Anonimamente, o andarilho tece suas breves

relações num universo constituído por descontinuidades. No afã de escamotear a

realidade na qual está inserida, a personagem vive simulacros do que realmente é.

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As dissimulações de si mesmo irrompem até mesmo quando o sujeito inominado

chega a um povoado do interior do Rio Grande do Sul.

Com o corpo bastante degradado diante da doença degenerativa que o

assola, o andarilho acorda no hospital e constata que sua perna direita fora

amputada. Inicialmente, o médico, que era candidato a prefeito da cidade, o acolhe

em seu hospital por saber que ele era um ator. Porém, ao saber da decadência do

ator andarilho, abandona-o no leito hospitalar por acreditar que ele não poderia

trazer benefícios políticos para sua candidatura.

Marginalizado, o narrador-protagonista não crê ter perdido uma parte do seu

corpo. No diálogo que trava com a filha do médico que vinha visitá-lo cada dia no

hospital, o andarilho devaneia sobre sua condição deplorável como sujeito:

De repente me acendeu a esperança de que tudo aquilo tudo não passava de um pesadelo. De repente me veio a velha sensação de que alguém estava representando, no caso aquela garota (NOLL, 1989, p. 66).

Para Maffesoli (1984, p. 136), “[a] repetição do teatro é o cadinho do parecer

social”. O fato de o andarilho acreditar que aquela cena do quarto do hospital

poderia ser mera representação, aproxima-se do aspecto teatral que sua vida líquida

sempre fora; um misto de aparência e de simulacro. A teatralidade do cotidiano de

que fala Mafessolli (1984) vem ao encontro das cenas finais do romance, em que o

narrador-protagonista, inválido e inerte, não faz mais do que crer que sua condição

fragmentada seja apenas mais uma cena que está sendo gravada.

Nesse sentido, a “encenação da vida cotidiana”, expressa Maffesoli (1984),

ensina

[...] que, do mais grotesco ao mais patético, na ordem do produtivo ou na ordem do lúdico, assistimos a um encaixe de situações maleáveis e pontuais que obedecem menos a uma construção intelectual do que a uma figuração ‘imaginal’, ao mesmo tempo contraditória e constituída na aparência (MAFFESOLI, 1984, p. 138).

A única relação mais próxima e duradoura que o andarilho consegue manter é

com o enfermeiro do hospital, Sebastião. No mais, a narrativa mostra que os sujeitos

com as quais o protagonista cruza em sua trajetória são apresentados apenas com o

primeiro nome. No que tange às personagens secundárias, a narrativa não dá ao

leitor informações sobre quem elas são. Quando há pistas sobre isso, elas são

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dadas a partir de fragmentos de acontecimentos que na maioria das vezes não

apresentam um desfecho, este fica a cargo do leitor e da sua imaginação.

Por conseguinte, na narrativa são muitos os pontos de interrogação e as

lacunas a serem completadas: a recepcionista do hotel, o garoto que o levou até o

quarto do hotel, o motorista de táxi, Eva, a loura com quem se envolvera. Susan, a

americana que conheceu no ônibus durante a viagem a Florianópolis, os dois

rapazes com os quais seguiu viagem até Porto Alegre: Nelson e Leo; Marisa,

Antonio, Dr. Carlos, a filha de Dr. Carlos: Diana. Com todas essas pessoas, mantém

relações esvaziadas, anônimas e desprovidas de qualquer sentimento afetivo, o que

fica evidenciado principalmente, na relação sexual entre o aventureiro e a

recepcionista do hotel no Rio de Janeiro.

Quanto à relação de proximidade com Sebastião, ela se dá no momento de

invalidez, em que o andarilho estagna em suas andanças. Completamente

dependente da ajuda do enfermeiro, o narrador-protagonista recorre ao profissional

em saúde para iniciar a sua última viagem e completar o percurso. Sobremaneira,

em Hotel Atlântico o corpo da personagem principal se revela como pilar da vida

líquida, pois na esfera da existência circunstancial vivida pelo sujeito sem nome do

romance, o sujeito reduzido a si mesmo tem no corpo residência única do existir.

Assim, na narrativa, ainda que o olhar líquido busque não mostrar afetividade, o

corpo em sua degradada condição é um corpo que fala, e pede socorro.

Ao deliberar sobre o corpo, Eagleton (2007, p. 73) escreve que no arcabouço

do pós-modernismo os sujeitos vivem o apogeu do corpo de maneira escancarada.

Na atualidade, “[o]s corpos constituem formas de falar do sujeito humano sem cair

no humanismo piegas”. À margem de subjetivismos de qualquer ordem, a

personagem tematiza a ambivalência que permeia a vida precária dos sujeitos na

cidade contemporânea. No espaço urbano das grandes cidades brasileiras, sujeitos

de “olhar líquido” estão em permanente confronto na construção e reconstrução do

“eu” fragmentado.

O sujeito da modernidade líquida, diferente do sujeito cartesiano, é aquele

“cujo corpo se integra a sua identidade” (EAGLETON, 2007, p. 72). O andarilho que

percorre as margens da narrativa integra sua identidade liquefeita à sua condição

física. O estado degradante do seu corpo, devido a uma doença degenerativa que o

acompanha desde o princípio do texto, somatiza o mal-estar do homem que vive sob

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o signo da incerteza, em que o corpo assoma como única certeza palpável quando

todo o entorno torna-se cada vez mais abstrato (HARTMANN, 2010).

O andarilho revela então, o seu fracasso enquanto sujeito de si, itinerante das

experiências fugazes. Inválido em sua constituição física, não agrega mais valor à

sociedade líquido-moderna. É um sujeito que não mais “não se encaixa no mapa

cognitivo, moral ou estético do mundo” (BAUMAN, 1998, p. 27), cujo ordenamento

se dá por meio de estruturas que baseadas em interesses políticos e econômicos

em detrimento do social.

A personagem sem nome não condiz à estrutura do mundo ordeiro de que

fala o sociólogo polonês. Ao analisar o paciente e fazer a limpeza do toco que

restara da perna amputada, o médico explica para um residente que o acompanha:

- Vivemos num mundo de estruturas. Como em qualquer outra, quando se extrai uma parte da estrutura óssea toda estrutura é afetada (NOLL, 1989, p. 83)

Alegoricamente, o corpo do andarilho significa o alicerce enfraquecido da

sociedade atual. Sua integridade física está fragmentada, por isso sua

marginalização por parte do médico que o acompanha no período de internação no

hospital da cidade. O médico o esquece, pois o paciente, um ator decadente, não

lhe trará benefícios políticos e financeiros.

Diante do andarilho, a postura da personagem médico caracteriza o gesto de

reconhecer no outro como elemento que fratura e desestabiliza o sistema. O

narrador-protagonista é a vida que não vale a pena ser vivida, por isso é excluído,

pois o capital, o poder, o consumo e a competição são os princípios de uma

sociedade nada inclinada à cooperação e à solidariedade (BAUMAN, 2004, p. 158).

O conteúdo social não mais define o sujeito, explica Touraine na obra

Poderemos viver juntos? (1998). Ao deliberar sobre a constituição do “eu, o autor

escreve que:

[...] Já não sabemos quem somos. A nossa patologia principal teve sua origem por longo tempo no peso repressivo que as proibições, as leis exerciam sobre nós; vivemos uma patologia às avessas, a da impossível formação de um eu, afogado na cultura de massa ou encerrado em comunidades autoritárias (TOURAINE, 1998, p. 71).

Para o andarilho não há constituição que possa auxiliar o leitor em defini-lo.

Ser errante, o narrador-protagonista não dissimula e não nega sua identidade

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líquida. A experiência do sujeito andarilho vem marcada pelo horizonte de

indeterminação que se devem ao signo da falta que atravessa seu cotidiano. As

falas do narrador-protagonista atestam a incompletude do ser, que deambula de

cidade em cidade, e hospeda-se em hotéis que servem por algumas horas de

paradeiro. É nesse “não-lugar” que o sujeito para, por alguns instantes, e flagra sua

imagem no espelho.

A presença do espelho se repete continuamente no romance de Noll que,

posicionados na linguagem, refletem e iluminam múltiplas miradas. Os espelhos

participam dos múltiplos jogos de olhares construídos pelas vozes narrativas. E o

que refletem essas superfícies? Em Hotel Atlântico, o encontro do narrador-

protagonista revela o encontro com o outro, com aquele a quem ele nega: a si

mesmo. No excerto abaixo, o estranhamento ao seu reflexo faz com que a

personagem perceba fragmentos de uma vida que está à margem de si mesmo, cujo

“lampejo” de realidade somente o espelho pode refletir, por alguns instantes, antes

que o olhar se desvie em outra rota de fuga.

Me olhei num espelho no pequeno saguão do hotel. [...] Naquele espelho eu parecia de uma terra remota, obrigado a enfrentar diariamente as maiores intempéries. Senti como se uma falta do que eu jamais precisaria suportar. Baixei os olhos (NOLL, 1989, p. 32).

Fecundada pelo olhar que se nega em ver, a narrativa dá a ver um sujeito que

corresponde ao mundo em fragmento, que também incorpora através do próprio

reflexo no espelho o enigma a ser desvendado. Sua imagem no espelho parecia ser

o rosto de alguém distante, de alguém que há muito tempo ficara para trás, do qual

nem lembrança havia.

Ao expressar: “[s]enti como se uma falta do que eu jamais precisaria suportar.

Baixei os olhos” (NOLL, 1989, p. 62), o narrador-protagonista caracteriza o

desamparo que é a sombra da sua degradação. A fragmentação de si revela a

percepção angustiada de quem está limitado ao corpo. A recusa do andarilho frente

a realidade mescla as experiências da marginalidade e do periférico como forma de

abalo e ruptura com as convenções de uma normalidade social alienada.

Não diferente acontece com a personagem principal de Hotel Atlântico, que

faz das suas constantes partidas a refuta de um “real” que em nada lhe prende para

firmar raízes e manter relacionamentos duradouros. Touraine (2009, p. 145)

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esclarece “o sujeito é o olhar sobre o corpo individual, não-social”. O andarilho é

escorregadio e frágil em sua constituição, mostra-se liquefeito em sua subjetividade,

a ponto de concordar quando a personagem Eva diz: “Um desocupado, é disso que

te chamam – eu costumava dizer sozinho me olhando no espelho. Um desocupado!

– eu sem querer gritei” (NOLL, 1989, p. 9).

É através da sua imagem refletida no espelho que a personagem constata

que definhara:

Na frente do espelho olhei as minhas olheiras fundas, a pele toda escamada, os lábios ressequidos, enfiei a língua pela cárie inflamada de um dente, pensei que não adiantava nada eu permanecer aqui, contabilizando sinais de que meu corpo estava se deteriorando (NOLL, 1989, p. 11).

Por isso, a personagem encarna o andarilho, um ser sempre em fuga de si e

da realidade. Isso é constatado quando resolve partir, e ao se deparar com a mulher

na portaria do hotel, o narrador-protagonista diz: “notei que alguma coisa a intrigava.

Franzindo os olhos ela me perguntou por que eu tinha ficado com esse olhar

envelhecido”, ao passo que ele responde: “De fato, não posso disfarçar que de uns

minutos para cá qualquer coisa aconteceu para me deixar assim” (NOLL, 1989, p.

12).

O narrador-protagonista, ao ser questionado pela mulher, assustada diante da

resposta do mesmo, responde: “Olha, meu anjo, acho que estou partindo para

saber” (NOLL, 1989, p. 12). A reação da personagem reflete na busca do sujeito em

encontrar razão para si mesmo numa sociedade impregnada pelo esvaziamento do

tempo e do espaço. A postura da personagem protagonista do romance é

caracterizada pelos impulsos ao agir, mostrando-se completamente inconsequente.

Voltada a atitudes que o impelem sempre a partir, ao desassossego, a

incompletude, a personagem insere-se ao grupo de sujeitos cuja identidade não

consegue encontrar “ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2005, p. 7). A

morte é seu ancoradouro. O definhamento do corpo da personagem-protagonista é a

alegoria da fragmentação do sujeito inserido ao vórtice da modernidade líquida,

tempo de derretimento das utopias e da possibilidade de ver no amanhã um porto

seguro.

Em Hotel Atlântico, a questão do corpo sobressai às questões que pedem

atenção às subjetividades. Princípios morais e éticos não são levados em conta

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diante da liquidez da narrativa e de sua personagem principal. O discurso social é

silenciado em detrimento da voz solitária do andarilho, que expõe a fragmentação de

si. Nesse contexto, nas últimas páginas da narrativa o “derretimento” do corpo do

andarilho representa aquilo que Touraine, em Pensar outramente: o discurso

interpretativo dominante (2009, p. 197), expressa sobre a morte em todas as suas

formas: o “mais elevado momento de uma relação de alteridade é a morte do outro”.

Os outros no romance são os sujeitos com os quais o andarilho teve contato

no curso de suas andanças. Um a um, os sujeitos foram sendo fragmentados e

postos à margem pelo “olhar líquido” do narrador-protagonista, até que ele narre seu

último lampejo de vida, fluida e inconstante:

Quando Sebastião saiu do quarto comigo nos braços os meus olhos não agüentaram tanta claridade do sol, e se fecharam. Depois do choque reabri os olhos, e me dei conta de que eu via tudo de cabeça para baixo, porque a minha cabeça pendia para trás. Eu sabia que Sebastião caminhava, eu sabia de tudo, normalmente, mas já não possuía a audição. (...) Só me restava respirar, o mais profundamente. E me vi pronto para trazer, aos poucos, todo o ar para os pulmões. Nesses segundos em que eu enchia o pulmão de ar, senti a mão de Sebastião apertar a minha. Sebastião tem força, pensei, e eu fui soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim (NOLL, 1989, p. 98).

O final da narrativa fica em aberto. A representação da morte do corpo fica

sugerida: “e eu fui soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim” (NOLL, 1989, p.

98). Em Hotel Atlântico, o corpo e suas relações são construídos à margem da

subjetividade, “derretendo” e diluindo a vida em toda sua complexidade. Se no

decorrer da narrativa a viagem funciona ainda como ponto de articulação dos

dilemas e conflitos envolvidos no processo de representação do outro, com a

representação da possível morte do narrador-protagonista tem-se a fragmentação

do sujeito em seu último estágio.

O “mundo tinha ficado mudo” (NOLL, 1989, p. 98), constata o andarilho que

vai carregado nos braços de Sebastião para gozar de seus últimos instantes de

sujeito. Ao ser carregado pelo enfermeiro, a alteridade é consumada, ainda que

tardiamente. O “olhar líquido”, que aos poucos vai cegando de vez para o mundo, vê

“bem cada coisa, embora de cabeça para baixo. [...] um cachorro correndo atrás das

patas e um cavalo que puxava uma carroça, eu vi uma imensidão de areias brancas”

(NOLL, 1989, p. 98).

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A passagem em que o narrador-protagonista revela que “vê bem cada coisa,

embora de cabeça para baixo”, traz a lume a representação de uma realidade

fragmentada e de seus sujeitos excluído pela modernidade líquida. Consoante à

marginalização do sujeito e de sua representação em seus textos, Noll diz em uma

entrevista que sua “ficção trata dos deserdados sim. Dos excluídos. É uma literatura

da exclusão, reflete sobre o estado de exclusão total” (NOLL, 2000). Ainda, que a

“própria alma, a própria natureza do indivíduo fica radicalmente comprometida. São

personagens que às vezes só conseguem realmente sobreviver no estado de

evasão” (NOLL, 2000).

A imagem do mundo de cabeça para baixo é significativa. Nela, está

estampada a configuração do tempo líquido, que escorre ao olhar do narrador-

protagonista na certeza (ou ilusão?) de que não mais é possível ser captado,

contemplado em toda sua profundidade. O livro, a última página, um sujeito que cala

e não mais vê.

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COMO NARRAR O OUTRO?

POR UMA CONCLUSÃO DE OLHOS ABERTOS

Tobias cura de cegueira de seu pai. (Óleo sobre tela). Jacques Blanchart (França, 1638). Disponível em: http://pt.wahooart.com/ @@/8Y3TNQ-Jacques-Blanchard-Tobias-Cura-da-cegueira-de-seu-Pai-(3)Acesso em: 22 jul. 2013.

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Percorrendo o caminho da alteridade literária de dois escritores, o português

José Saramago e o brasileiro João Gilberto Noll, o estudo teve como objetivo geral

verificar como se dá a representação da alteridade, da fragmentação e da

marginalização do sujeito em Ensaio sobre a cegueira (1995) e Hotel Atlântico

(1989).

A proposta assentou-se numa leitura crítico-comparativa dessas narrativas

escritas em língua portuguesa, em que pesou o encontro de imaginários e discursos

sobre a representação do sujeito na sociedade líquido-moderna. Através do “fazer”

literário, Saramago e Noll criaram imagens que permitem conferir sentidos ao que é

vivido, visto, tocado, como também ao que é, na maioria das vezes, “soterrado”

pelas páginas oficiais da historiografia ocidental.

Reveladas pela linguagem, as representações sociais dos sujeitos

evidenciadas na tessitura das narrativas saramaguiana e nolliana revelam um mal-

estar assentado numa “cegueira” de que o sujeito é vítima como que também

vitimiza. Nessa direção, os eixos temáticos que balizaram a leitura crítica e analítica

dos romances em questão – alteridade, fragmentação e marginalização –,

consideraram o sujeito urbano no vórtice da modernidade líquida. Ficções que não

se impõem como verdade, mas apenas representações da realidade, as narrativas

são escritas sobre a página movediça de um tempo líquido, em que os sujeitos-

personagens são cercados por imagens do cotidiano que não conseguem

escamotear os fragmentos da condição humana.

No crivo da alteridade literária, os sujeitos das narrativas são narrados por

vozes que procuram dizer o sujeito contemporâneo com toda sua força. Segundo

Cornelius Castoriadis (1982, p. 124), o “sujeito não se diz, mas é dito por alguém,

existe, pois como parte do mundo de um outro”. Assim, levando em conta as

narrativas em questão, encerra-se essa dissertação partindo de uma interrogação:

Como narrar o outro? A leitura e análise dos romances que formaram o corpus de

análise são articuladas por um olhar crítico que transcende o campo de visão

imposto pela sociedade da imagem e se estende para as páginas da narrativa,

permitindo entrever a fundição do visível e do invisível.

A reflexão em tela volta-se à alteridade num contexto em que o sujeito não

reconhece o outro no âmbito das relações sociais. Tanto no romance de Saramago

como no de Noll, as personagens, sejam elas principais ou secundárias,

estabelecem vínculos que são fragmentados pouco a pouco, a ponto de marginalizá-

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las. A fragmentação do “eu”, a generalização do corpo e a percepção do “outro” são

narrados nesses textos literários por narradores que narram a liquidez das formas de

vida, característica da sociedade líquido-moderna.

Nos romances, a representação do sujeito urbano remete a uma metáfora da

pós-modernidade, uma vez que os elementos de referência, selecionados pelos

autores, proporcionam essa consideração. Recuperando as palavras de Iser (1996,

p. 18) os aspectos e elementos da vida real, ao se converterem em campos de

referência do texto, denunciam a intencionalidade desse texto, que é chamar a

atenção do leitor para o modo de vida da cidade contemporânea. Os textos literários

de Saramago e Noll são narrativas que instauram uma realidade ficcional

reconhecida enquanto verdade representacional.

Nos romances em comento, a realidade ficcional é tão próxima da realidade

vivenciada nas ruas das cidades, que se torna possível enxergar o anacronismo27 de

um tempo líquido, percebido de modo diferente pelos narradores dos dois romances.

Ensaio sobre a cegueira é narrado em terceira pessoa, ao passo que Hotel Atlântico

é narrado em primeira pessoa. Destarte, depreende-se uma reflexão a respeito dos

narradores que “falam” em ambas as narrativas, buscando semelhanças ou

diferenças sem, contudo, deixar de perceber as relações que romances deixam

entrever.

Há diferenças na estrutura dos dois textos, o que é evidenciado na maneira

de pontuar as frases como na colocação das vozes das personagens. Porém, o que

se quer aqui é demarcar o modo como o narrador de cada romance “diz” aquilo que

pretende dizer acerca da alteridade, da fragmentação das personagens e da sua

marginalização no âmbito da modernidade líquida.

Narrado em terceira pessoa, Ensaio sobre a cegueira possibilita, pela

estruturação formal do texto, o partilhamento de vozes que compartilham o seu

discurso. Estruturas linguísticas são “entrelaçadas” por relações experimentadas por

uma escrita que mostra a sua “autoria” através do caráter dialógico do discurso

indireto livre. A leitura do Ensaio caracteriza um discurso de “uma língua plena de

‘palavra do outro’” (MORETTI, 2009, p. 140). A pontuação da narrativa tem apelo à

oralidade, pois não há os travessões, os dois pontos ou as aspas a indicar quem

27 Segundo Schollhammer (2009, p. 11) “a urgência é a expressão sensível da dificuldade de lidar com o mais próximo e atual, ou seja, a sensação, que atravessa alguns escritores, de ser anacrônico em relação ao presente”.

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fala. A própria leitura em voz alta é que indicará a identidade do falante ou

enunciador.

No romance, narrador e personagens se recusam à fala monológica, ao

egocentrismo, estabelecendo o diálogo no qual todas as vozes podem ser ouvidas.

A figura do narrador saramaguiano é aquela do “sábio experiente que se transforma

em contador, porque tem algo de importante a comunicar” (BERRINI, 1998, p. 57).

Indubitavelmente, o narrador do Ensaio permite-se à multiplicidade de vozes. O

diálogo com o outro reflete a intencionalidade dos discursos, que é a de apontar a

direção em saída do caos social instaurado na cidade líquida com a epidemia da

cegueira. A saída, segundo a mulher do médico em diálogo com o marido ao olhar

as ruas da cidade e o lixo nelas espalhado, é “organizar-se já é, de uma certa

maneira, começar a ter olhos” (SARAMAGO, 1995, p. 282). Para que uma

sociedade de cegos viva, necessário que os sujeitos se organizem.

Visto como regente e harmonizador de um concerto de vozes, o narrador do

Ensaio encontra respaldo nas palavras do próprio escritor, que diz que o caráter

polifônico que o narrador assume na sua ficção não é unilinear (SARAMAGO, apud

ROANI, 2001, p. 232). Por isso, a multiplicidade de vozes que ecoa pelas páginas do

romance é um chamamento ao leitor para enxergar para além das aparências, para

além do que preconiza a sociedade da imagem.

Na sociedade líquido-moderna, há “cegos que veem, Cegos que, vendo, não

veem” (SARAMAGO, 1995, p. 310), expressa a personagem médico para o

rapazinho estrábico que questiona os motivos da cegueira. A cegueira que vitimiza

os sujeitos destituí a possibilidade de que eles possam lançar mão das máscaras

sociais consagradas pelo discurso oficial, constituídas das aparências que os olhos

veem. O romance quer, pois, romper com um tipo de cegueira assentado na ética,

haja vista que condições adversas e desumanas dos campos de concentração dos

regimes totalitários do século XX. Na narrativa, essa semelhança é menos notória

pelas condições de sobrevivência e muito mais latentes pela reflexão sobre a

natureza humana que o confinamento propõe.

Quanto à personagem mulher do médico; o narrador se faz “dizer” e “ouvir”

através da voz dela. Esta chama para si “a responsabilidade de ter olhos quando

outros os perderam” (SARAMAGO, 1995, p. 241). Com isso, firma-se um pacto entre

narrador e personagem, em que a mulher do médico é o único sujeito que tem o

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sentido da visão, e o esconde para acompanhar e zelar pelo seu esposo durante o

confinamento.

Em Saramago: um roteiro para os romances (1999, p. 90), Eduardo Calbucci

explica que a “mulher do médico não cegou porque provavelmente era a única que

tinha verdadeiramente consciência pessoal”, ou seja, consciência da importância da

ação humana para a convivência social, consciência da distinção entre o certo e o

errado, o bem e o mal, independente da estrutura social, consciência do que é

essencialmente humano, pois, quanto aos outros, “de tanto olhar as pessoas

pararam de ver, de reparar, de distinguir” (CALBUCCI, 1999, p. 89).

Não desistoricizado, o texto literário se Saramago é pós-moderno porque

confronta dois mundos: o mundo que o leitor vive e conhece, anterior à “cegueira

branca”, com todas as suas conquistas e criações do homem civilizado, e o mundo

novo que, paulatinamente, precisa ser (re)construído no curso da narrativa. O

escritor português torna o romance representativo, pois tematiza a questão da

cegueira do ponto de vista em que ela assoma como uma forma particularmente

importante na expressão da tragicidade humana.

O mundo ficcional de Ensaio segue a direção do desconhecido e da

superação da barbárie. No contexto da alteridade, o escritor se faz entender pela

voz da mulher do médico. Camila Rocha Muner, no artigo “Ensaio sobre a cegueira:

a voz de um narrador muito antigo” (2008), expressa a respeito da figura do

narrador. Para ela, o narrador,

[...] ora irônico, ora pesaroso, bem humorado ou crítico, o narrador de Saramago parece querer incomodar a consciência daqueles que percorrem, pela leitura, suas histórias. Assim, é-lhe peculiar fazer uso da invasão do pensamento das personagens, a fim de revelar suas verdades mais recônditas, também de manusear o tempo ficcional em conjunto com o histórico, causando um vai-e-vem revelador de uma pluralidade de pontos de vista e de julgamentos, que, a priori, poderiam gerar certo desconforto e confusão entre real e ficção, mas que podem, ainda, demonstrar o caráter relativo das verdades que, inadvertidamente, parece que todos nós, no papel de leitores, aceitamos como únicas (MUNER, 2008, p. 3).

Ao se fazer “ouvir” através da mulher do médico, a atitude do narrador é

justamente a desse ser que, contando o que sabe e o que observa, auxilia na

construção de sentidos, na percepção de algo que está para além da primeira vista.

Sobremaneira, a alteridade, na narrativa, é constante ao olhar dessa personagem,

que procura conceder um outro olhar sobre a situação. É através dela que o

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narrador constrói imagens significativas para o leitor, apontando saídas para o caos

social instaurado na cidade ficcional do Ensaio.

Bakhtin, em Estética da criação verbal (2000, p. 43-47), expõe que, por se

situar num lugar fora do âmbito das demais personagens, o narrador passa a ter um

“excedente constante” da sua “visão” e do seu “conhecimento”, o que favorece o

princípio do seu “acabamento estético”. Entretanto, para alcançar a percepção do

horizonte concreto do outro, o narrador do Ensaio trabalha um movimento de

aproximação, abandona a heterodiegese e assume-se como testemunha do que

narra, fazendo sua a voz que é coletiva.

O modo de contar, para Saramago, tem tanta importância quanto o que está

sendo contando. A alteridade literária no romance se faz ver no ato de guiar o leitor

na construção de sentidos e mesmo refletindo a respeito da criação literária. Essa

voz que orienta em meio à cegueira das personagens pede atenção acerca da

responsabilidade que é ter olhos, quando os demais não veem, ainda que

enxerguem. Para Calbucci (1999, p. 89), essa frase explicita as intenções do

romance, à medida que faz com que o leitor perceba toda a metáfora dessa onda de

cegueira, que figurativiza a alienação, a massificação, a perda da individualidade do

sujeito.

No romance saramaguiano, a dialética proposta pelo narrador - “ver” e

“reparar” - se assenta na preocupação, indignação e perplexidade perante uma

sociedade líquido-moderna que não mais valoriza os relacionamentos “sólidos”. Na

narrativa, o narrador “repara” a indiferença entre os sujeitos cegos e conclui que “é

dessa massa que somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade”

(SARAMAGO, 1995, p. 40).

O narrador do Ensaio lança mão da experiência própria dos narradores que

tem algo para contar. “Ter olhos” é sinônimo da obrigação que o leitor tem em “ver”,

“reparar” para fugir à contingência de um tempo líquido, em que “o mundo está cheio

de cegos vivos. [...] Quando a experiência dos tempos não tem feito outra coisa que

dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras” (SARAMAGO, 1995, p. 308).

Firmado na aura da experiência, o narrador do romance de Saramago tem a

feição de um narrador que vem de longe e tem muito a dizer, conforme cita

Benjamin, em O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1994). Na

contramão do tipo de narrador evidenciado no Ensaio, o narrador-protagonista de

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Hotel Atlântico é “uma relação do narrador com o nada” (ALCARAZ; ALCARAZ,

2010, p. 4).

O narrador-protagonista de Hotel Atlântico denota uma individualidade

desprovida de conteúdo psicológico, sem profundidade e sem projeto

(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 31). Por isso, a personagem, [...] sentado no banco do

pátio, ouvindo o órgão, [...] Olhava a falta da minha perna, apalpava o toco como se

eu ainda tivesse dúvidas. [...] Achava o mundo bem infeliz” (NOLL, 1989, p. 84).

O andarilho pós-moderno que transita pelas páginas da narrativa é aquele

sujeito que está sempre a partir e que não tem experiências a contar. No romance

de Noll, o abandono de uma narrativa para subitamente iniciar outra se deve ao fato

de que o narrador-protagonista não tem experiências para narrar. Isso vem ao

encontro do expresso por Benjamin que, em Experiência e Pobreza (1994, p. 197),

diz que “[a] arte de narrar está em vias de extinção”.

Na narrativa do escritor brasileiro, as cenas vivenciadas pela personagem

protagonista denotam o desapego à sua história, o que caracteriza o registro de

vivências individuais, efêmeras e fragmentadas que solapam o relato transmissor de

qualquer experiência que esse possa ter tido. Hotel Atlântico não é uma escrita

linear, épica e confortável. A partir das errâncias do narrador-protagonista de

identidade inconsumada, tem-se uma “epopeia do fragmento. [...] Palavras

destituídas de qualquer expressão, amarras invisíveis, a ‘experiência da agonia’ [...]

Desterrados vivendo num ‘miasma aventureiro’ e diante do naufrágio da memória’”

(SILVA, 2009, p. 180).

A dualidade entre experiência e vivência é uma das noções capitais para que

se entenda a teoria da cultura de Benjamin. A experiência (Erfahrung) está

relacionada à memória individual e coletiva, ao inconsciente, à tradição, ao passo

que a vivência (Erlebnis) relaciona-se à existência privada do homem, à sua solidão,

ao choque. A leitura do romance aponta que a personagem inominada não

consegue intercambiar experiências. Sua vivência é vazia de sentido, e diante de

uma ocupação que pudesse lhe trazer experiência para contar, a personagem

reflete: “um desocupado. [...] eu costumava dizer sozinho me olhando no espelho.

Um desocupado! Eu sem querer gritei” (NOLL, 1989, p. 9).

O narrador-protagonista, “com o corpo incompleto” (NOLL, 1989, p. 84), é um

sujeito fragmentado. Não sabe e nem faz esforço em revelar suas origens. É um

sujeito que não tem experiências para contar ao outro. Sua vida é líquida, seu

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contato com o outro é pautado na fluidez. A atendente do hotel; a americana

arqueóloga; Nelson e Léo, que lhe dão carona para que ele chegue a uma cidade

qualquer; a garota de traços orientais; e Sebastião, o enfermeiro, são alguns sujeitos

que entram na vida da personagem principal e dela saem, não mais que num de

repente. A alteridade “derrete”, sem que se possa vislumbrar a partilha de alguma

experiência que seja útil no curso de suas andanças pelos “não-lugares”.

No romance não há transmissão de informação. Há, somente, a narração do

instante, pautado em repetições, o que torna a narrativa anti-benjaminiana, pois “a

repetição substitui o conhecimento derivado da experiência. Assim como a produção

automática e seriada dos tempos modernos, o homem [pós-moderno] se viu privado

de exercer suas experiências. Tornou-se um mero repetidor desprovido de memória”

(CORDEIRO, 2008, p. 47). Essa constatação encontra respaldo nas atitudes da

personagem principal de Hotel Atlântico, cujas figurações da experiência urbana

desvelam aspectos de várias vivências balizadas por questões como a solidão, a

ausência de uma total comunicabilidade entre o homem e seus pares,

caracterizando o desencantamento, a fadiga, a corrosão de si e um vazio não

possível de ser completado diante do absurdo de uma vida líquida.

Esse vazio sem ter o que contar para alguém é caracterizado na passagem

em que o narrador-personagem embarca num ônibus rumo a Florianópolis. Já

dentro do veículo, a personagem senta ao lado de uma americana que viera ao

Brasil para coordenar escavações de uma possível civilização pré-colombiana.

Seu nome era Susan Flemming, Tinha grandes olhos verdes. Contou que fazia a viagem por terra para conhecer melhor o interior do Brasil. Aí ficamos horas sem falar. Quando começou a se formar um belo pôr-do-sol me veio à boca qualquer coisa que eu nem fixei. Fixei ela responder que achava que não. Voltamos ao silêncio por uma meia hora (NOLL, 1989, p. 18-19).

Silenciar é não ter o que narrar, e isso é sentencioso no romance de Noll. A

desterritorialização e as vivências destituídas de sentido fazem com que ele não

tenha nada para contar sobre sua vida para sua companheira de viagem. Então,

solapa-se o último resquício da memória e da história, seja individual ou coletiva. “A

experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os

narradores”, expressa Benjamin (1994, p. 198). Contudo, o narrador do romance de

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Noll não comunica mais a experiência e nem dá mais conselho, ele não se envolve

mais com o ato de narrar e conduz a narrativa para a ruptura do enredo.

A respeito disso, Camargo (2000) expressa que Noll filia-se ao rol de

escritores cujos textos literários não escamoteiam:

[...] a desesperança do homem contemporâneo, que nada mais tem a narrar, embora continue a narrar, que não possui sonhos a serem concretizados, ajuda a compreender que não há mais o que fazer a não ser continuar infinitamente uma ladainha eterna, sem se preocupar com mais nada a não ser o presente (CAMARGO, 2000, p. 19-20).

Benjamin reconhece que a capacidade de intercambiar experiências parecia

ser segura e inalienável. Contudo, a leitura do romance nolliano faz crer que as

“ações da experiência estão em baixa” (BENJAMIN, 1994, p. 198). O sentimento de

desnorteio, a ausência de sólidas referências familiares, questões que, em seu

conjunto, corroboram para que se tenham histórias de vida diluídas ante um “olhar

líquido”.

Com isso, a vertente da narrativa nolliana vai ao encontro do que pensa

Benjamin (1994) sobre a matriz do romance. Para o pensador da Escola de

Frankfurt,

[...] a matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém pode dar conselhos e que não sabe dar conselhos a ninguém. Escrever um romance significa descrever a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo (BENJAMIN, 1994, p. 54).

Tanto no tema como na linguagem, Hotel Atlântico desvela a pobreza da

experiência e também da pobreza da palavra escrita como processo de

comunicação. Tem-se um narrador distanciado da experiência clássica que prezava

a dimensão utilitária do seu discurso. A narrativa lida com a fragmentação. Seja na

estrutura, em blocos, seja no trato com a linguagem, como nas relações “líquidas”

que o narrador-protagonista tem para com o outro, o romance se faz de migalhas e

questionamentos, abandonando a ilusão de sentido do texto ou sentido da vida.

No romance, narrar o outro requer distanciamento. O outro é quase sempre

visto como estranho, não como alguém que se possa estabelecer uma relação, a

não ser que seja passageira” (ALCARAZ; ALCARAZ, 2010, p. 4).

Consequentemente, o protagonista do romance de Noll é um sujeito fragmentado

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que não foge à “vivência de um ego absolutamente infantil. Cada encontro vai

mostrando o total desinteresse de se criar vínculos” e, como já se frisou, “[o]s laços

se tornam impossíveis, é uma relação do narrador com o nada” (ALCARAZ;

ALCARAZ, 2010, p. 4) e que, diante dos limites do corpo e de sua deterioração, vive

“rudimentos de ilusões” (NOLL, 1989, p.30).

A crença popular que conta que quem viaja muito tem muito a contar não

encontra respaldo nas viagens que faz o andarilho. Na visão de Benjamin (1994, p.

198), o narrador é aquele vem de longe. O que não entra em conformidade com o

narrador-protagonista de Hotel Atlântico, pois o mesmo viaja muito e, no entanto,

não tem muito a contar. A alteridade aparece nos deslocamentos encenados por

uma escritura líquida, em que o andarilho somatiza o mal-estar do sujeito diante de

uma realidade social e cultural que não o completa, por isso a personagem repete

constantemente: “Uma contagem regressiva estava em curso, eu precisava ir”

(NOLL, 1989, p. 9).

No romance nolliano, os fatos narrados exprimem a experiência negativa do

sujeito em sociedade, ao ponto que “[a] morte é a sansão de tudo o que o narrador

pode contar” (BENJAMIN, 1984, p. 208). E o narrador-protagonista assim o faz: “Só

me restava respirar, o mais profundamente. E me vi pronto para trazer todo o ar para

os pulmões. [...] e eu fui soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim (NOLL, 1989,

p. 98).

Diferenças, semelhanças, aproximações. Os romances objetos de análise

possibilitam uma leitura crítico-analítica que considere vários ângulos. Seja na

representação crítica e fragmentária de condicionamentos sócio-históricos nos

textos literários e no enfoque temático quanto nas opções estéticas, Ensaio sobre a

cegueira e Hotel Atlântico desbravam a difícil tarefa de pensar a civilidade quando se

tem um mal-estar coletivo que fragmenta o sujeito em sua constituição, a ponto de

marginalizá-lo. Nesse contexto, a literatura possibilita discutir e refletir acerca de

como experiências sociais podem ser exploradas esteticamente pelos escritores e

como estratégias artísticas podem colaborar na representação de um determinado

contexto social.

Tendo como eixos temáticos que direcionaram a leitura dos dois romances –

alteridade, fragmentação e marginalização –, as narrativas permitem uma

aproximação que remete às personagens cegas do texto de Saramago e ao

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andarilho de Noll, em que pese considerar a cegueira como elemento fundante que

expõe as personagens à paulatina fragmentação no espaço urbano mediado pela

globalização.

Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico são resultado da “fundição” entre

texto e contexto de que fala Candido (1967). As narrativas englobam o processo

baseado em quatro momentos da produção em que fala o autor, como: “o artista,

sob o impulso de uma necessidade interior, escolhe certos temas, usa certas formas

e a síntese resultante age sobre o meio” (CANDIDO, 1967, p. 25). Nessa direção, o

estudo do elemento social nos romances objetos de análise na dissertação não deve

ser visto como mera relação de condicionamento meio-obra (sendo a obra, desta

forma, uma ilustração de determinadas dinâmicas sociais), mas numa perspectiva de

“interiorização” do elemento social como elemento estruturador da obra.

Os dois romances analisados dialogam com as histórias portuguesa e

brasileira, cada qual em seu contexto. As personagens protagonistas das narrativas

inserem-se aos ditames da Globalização, evento social, político e econômico que

trouxe drásticas consequências à sociedade global, em que pese considerar a ideia

de um mundo bom e seguro; uma sociedade transparente, em que nada de obscuro

ou impenetrável se colocasse no caminho do olhar; uma sociedade em que nada

estragasse a harmonia na relação eu-outro; nada fora do lugar; um mundo sem

sujeira, sem estranhos, sem impedimentos à felicidade.

As narrativas tratam do desencantamento do sujeito nas confluências da

modernidade líquida. São romances que narram a transitoriedade absurda de vidas

insuladas pela solidão e precariedade no contato com o outro (alteridade), e

mostram imagens distorcidas no espaço e tempo. Assim, remetem o leitor a uma

necessária reflexão a respeito do desalento da existência no cerne de uma “vida

líquida”, que não conhece outro final senão o da fragmentação do eu. Destarte, são

obras que se justificam tanto pela densidade crítica e valor expressivo que os

romances têm na produção literária dos escritores quanto sua receptividade pelo

público leitor e crítica.

Utilizando as palavras de Ginzburg (2004), as narrativas saramaguiana e

nolliana são representativas porque tematizam a questão da cegueira do ponto de

vista em que ela assoma como uma forma particularmente importante na expressão

da tragicidade humana. Tanto os cegos do Ensaio como o andarilho de Hotel

Atlântico caracterizam um tipo de cegueira que está associada “aos limites do

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conhecimento, à ilusão, à incerteza”; ainda, é vista como “uma forma específica de

experiência, caracterizada pelo limite, pela exposição do ser humano, da

incomunicabilidade, da impossibilidade de viver senão em uma condição trágica”

(GINZBURG, 2004, p. 57).

No que tange aos problemas que instigaram a lançar mão dos romances

analisados, Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico dialogam entre si e apontam

para a fragmentação das personagens em seus diferentes contextos culturais. Os

sujeitos das narrativas inserem-se na orla de personagens que têm como

características determinantes a liquidez e a fluidez. Como consequência dessa

liquidez que permite a adaptação e dificulta a sedimentação, as personagens de

ambas as narrativas apontam para a liquefação dos laços e vínculos que firmavam

as relações sociais, resultando em um crescente individualismo presente em todas

as esferas da sociedade pós-moderna.

As narrativas trazem o entrecruzamento dos discursos ficcional e histórico,

aproximações entre a criação estética literária e a realidade social do Brasil e de

Portugal. As personagens cegas do romance saramaguiano estão expostas a uma

forma particular de experiência, permeada pela tragicidade; ao passo que a cegueira

do andarilho é metafórica, por estar fadado à incerteza, à ilusão e à falta de

conhecimento, leia-se aqui, à falta de experiências para intercambiar. Nessa direção,

buscou-se entender o sujeito urbano em suas vivências sociais e como elas, em

detrimento da experiência, ocasionam a fragmentação do “eu” e, consequentemente,

sua marginalização.

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