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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA A AVENTURA DE HELEN KELLER EM ERNST CASSIRER: REDE SIMBÓLICA E SENTIDO DA VIDA FELIPE URBANO SÃO PAULO 2015

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU · 2017-10-31 · 7" " " " RESUMO O presente trabalho tem como objetivo investigar a experiência de Helen Keller presente na obra Ensaio sobre o homem

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

A AVENTURA DE HELEN KELLER EM ERNST CASSIRER:

REDE SIMBÓLICA E SENTIDO DA VIDA

FELIPE URBANO

SÃO PAULO

2015

2    

   

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

A AVENTURA DE HELEN KELLER EM ERNST CASSIRER:

REDE SIMBÓLICA E SENTIDO DA VIDA

Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Hélio Salles Gentil

SÃO PAULO

2015

3    

   

Urbano, Felipe

U72a A aventura de Helen Keller em Ernest Cassirer: rede simbólica e sentido da vida / Felipe Urbano. - São Paulo, 2015.

101 f. ; 30 cm.

Orientador: Hélio Salles Gentil. Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo,

2015. 1. Keller, Helen Adams, 1880. 2. Cassirer, Ernst, 1874-1945. 3. Simbolismo. I. Gentil, Hélio Salles. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título CDD 22 – 113.8

4    

   

DEDICATÓRIA

A todos que em algum momento procuram o sentido da vida e, não encontrando resposta, encontram em outros o que achavam buscar em si.

5    

   

AGRADECIMENTOS

A Hélio Salles Gentil, orientador e mestre do caminho. Em todo o tempo ele

conciliou competência e rigor acadêmico com a ternura de quem carrega gentileza no

sobrenome.

A Talita, amada e presente, pela companhia de vida, pelo amor em todo o tempo.

A José Carlos e Nice Urbano, que me mantiveram de pé com pincéis e joelhos.

A Fabiane Urbano. Sem ela não haveria graduação, e sem graduação não haveria

mestrado.

A Sergio Cruz, mestre e parceiro de caminhada, a quem sou eternamente grato por

ter compartilhado comigo este e tantos outros projetos de vida.

A Marson Guedes, que me ensinou o caminho até as palavras em um tempo que

ainda me eram uma soma de letras.

A Ed René, por ter inspirado boa parte dos lampejos aqui postos.

A tantos outros mestres que encontrei no caminho. Menção especial ao Washington

de Campos, que me acompanha em amizade e compartilhando sabedoria há mais de dez

anos.

Aos amigos, que emprestam sua amizade e questões em todo o tempo.

À querida Julie Oliva, por sua intelectualidade e afetividade no cuidado com este

amigo mestrando.

Aos professores Erinson Cardoso Otenio e Paulo Jonas de Lima Piva pela

contribuições na banca de qualificação deste trabalho e disponibilidade em contribuir.

Aos alunos de sala de aula que repartem suas histórias e me inspiram.

Aqueles que tantos cafés comigo tomaram para tornar esse projeto possível.

Àquele que É o que É.

6    

   

Felicidade?

Disse o mais tolo: "Felicidade não existe."

O intelectual: "Não no sentido lato."

O empresário: "Desde que haja lucro."

O operário: "Sem emprego, nem pensar!"

O cientista: "Ainda será descoberta."

O místico: "Está escrito nas estrelas."

O político: "Poder"

A igreja: "Sem tristeza? Impossível.... (Amém)"

O poeta riu de todos,

E por alguns minutos...

Foi feliz!

(Sergio Vaz, Felicidade)

7    

   

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar a experiência de Helen Keller presente

na obra Ensaio sobre o homem de Ernst Cassirer, tendo por horizonte questões acerca de

quem é o homem e como faz parte de sua natureza uma interrogação sobre o sentido para a

vida. Examinamos, a partir das ideias de Ernest Cassirer, a presença do homem como

produtor de cultura que atua em mundo “ideal” produzido por ele mesmo, o mundo

simbólico. Este homem que, enquanto animal simbólico, busca estabelecer sentido para sua

presença no mundo, imerso em uma rede simbólica constituída pela arte, pelo mito,

religião e linguagem, história e ciência. Helen Keller é um exemplo que nos pareceu

ilustrar com precisão a teoria de Cassirer: uma criança surda e cega que entra neste

universo, novo para ela, vindo de fora dele. Ganha destaque na experiência dela algo que

se passa, de forma menos evidente, com todo ser humano. Para examinar o problema da

atribuição de sentido, a investigação do trabalho parte da consideração do homem

contemporâneo que parece experimentar uma crise pela ausência de sentido. Perguntamos

como conciliar a ideia de um não-sentido em relação a um homem simbólico que a tudo

atribui sentido, interrogando autores como Lima Vaz, Fernando Savater e Albert Camus,

que refletiram sobre a crise de sentido do homem moderno e contemporâneo. Como se

sabe, o não sentido do homem ganha voz gritante na experiência humana em Auschiwitz,

de que buscamos os testemunhos de Viktor Frankl e Primo Levi, com suas reflexões sobre

a ausência de sentido no campo de concentração. Os caminhos do não sentido e do homem

simbólico se encontram novamente na reflexão sobre a figura de Helen Keller e o relato

mais profundo de sua entrada no universo da linguagem, a partir da qual esboçamos nossas

conclusões. A impossibilidade de atribuir um sentido único a vida e a atuação do homem

no poder semântico do mundo são duas importantes conclusões sobre a ação do homem

simbólico.

Palavras-chave: Ernst Cassirer; Helen Keller; rede simbólica; sentido da vida.

8    

   

ABSTRACT

This study aims to explore Helen Keller’s experience as described in Ernst Cassirer work,

An Essay on Man. It pursues to understand who is the man and how his nature implies a

quest for the meaning of life. By using Ernst Cassirer’s ideas as a starting point, we

examine man’s presence in the world as a culture generator that acts on an “ideal” world of

his own produce, the symbolic world. Such man, as a symbolic animal, seeks the definition

of meaning for his presence in the world surrounded by a symbolic network comprised of

art, myth, religion and language, history and science. Helen Keller is deemed as an

accurate example of Cassirer’s theory: a deaf and blind child enters this world, new to it

and into it. Her experience makes an usual occurrence a remarkable one: what is unusual to

her is taken for granted for most of us. In order to examine how meaning is ascribed, this

investigation examines the contemporary man that seems to go through a crisis because of

lack of meaning. We proceed questioning how to harmonize the idea of non-meaning by

looking through the works of Lima Vaz, Fernando Savater and Albert Camus, thinkers that

pondered on a meaning crisis experienced by modern and contemporary man. It is clear

that man’s non-meaning is intensely expressed by human experience in Auschwitz, so we

examine Viktor Frankl and Primo Levi reflections on the absence of meaning on a

concentration camp. Non-meaning and symbolic man cross pathways again on the

reflection about Helen Keller figure, and on a deeper report of his entry on language

universe. At that point we draw our conclusions. The impossibility of ascribing a single

meaning to life, besides the acting of man on world’s semantic power, are two prominent

conclusions on symbolic man action.

Keywords: Ernst Cassirer; Helen Keller; symbolic network; meaning of life.    

9    

   

SUMÁRIO

 DEDICATÓRIA .......................................................................................................................................... 4

AGRADECIMENTOS ................................................................................................................................ 5

RESUMO ..................................................................................................................................................... 7

ABSTRACT ................................................................................................................................................. 8

SUMÁRIO ................................................................................................................................................... 9

1. A REDE SIMBÓLICA EM CASSIRER ..................................................................................... 16

1.2 O SÍMBOLO E NATUREZA HUMANA ............................................................................ 19

1.3 “DO ANIMAL RACIONAL AO ANIMAL SIMBÓLICO” .................................................... 24

1.4 REDE SIMBÓLICA ................................................................................................................. 32

1.5 DO SÍMBOLO À EXPERIÊNCIA ........................................................................................... 38

1.5.1 EFEITO SIMBÓLICO EM CASSIRER ............................................................................. 38

1.5.2 EFICÁCIA SIMBÓLICA EM LEVI STRAUSS ............................................................... 42

2. A PERGUNTA SOBRE O SENTIDO DA VIDA ........................................................................ 49

2.1 A PROBLEMÁTICA DO SENTIDO DA VIDA NA MODERNIDADE .................................... 49

2.2 O ABSURDO COMO ALTERNATIVA DE RESPOSTA ...................................................... 61

2.3 A VIDA SEM UM PORQUÊ ................................................................................................... 69

2.4 UMA EXPERIÊNCIA LIMITE: AUSCHWITZ ...................................................................... 74

3. A LINGUAGEM COMO PRINCÍCPIO ORGANIZADOR ..................................................... 82

3.1 LINGUAGEM E FALA EM CASSIRER ................................................................................ 82

3.2 HELEN KELLER E A CONQUISTA DO HUMANO ............................................................ 89

CONCLUSÃO ........................................................................................................................................... 94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................... 99

 

10    

   

INTRODUÇÃO

Debater-se contra a realidade, buscar um sentido para a experiência diária, um algo

maior que explique esse inóspito e repetitivo exercício diário de pequenas variações:

despertar, tomar o café, fazer exercícios, trabalhar, comer, pegar o caminho de volta pra

casa e novamente deitar-se para dormir. Esse ciclo aparentemente natural – um dia de

sensação indigesta, nauseante1 – interpela o homem e o coloca em um sem fim de

questionamentos. Isso causa uma profunda sensação de desconforto e inadequação – de

todas as expressões possíveis para referir-se à vida, possivelmente seja a mais indigesta

essa a de afirmar que é um mero suceder de dias. Isso aparece na tradição judaica, Adão

provou o fruto; na história dos heróis gregos, como Aquiles. Estas são expressões

mitológicas que trazem dentro de si camadas aparentes do desejo humano de superar a

rotina, o cotidiano massacrante. São expressões de uma necessidade profunda de romper o

ciclo natural a que estão submetidos e experimentar algo para além das suas fronteiras na

busca por significado.

É a escolha preferencial pela dor, o sofrimento, a guerra até a morte, ou mesmo

qualquer outro estímulo que se oponha ao desenrolar monótono dos dias. Aquiles foi

advertido a ficar na Grécia, casar-se, ter filhos e vê-los crescer. Ainda assim, optou pela

guerra que o destruiria. Do mesmo modo, Adão não se conformou com a sua condição

natural e limitada e decidiu romper com o ciclo que o “aprisionava” na sucessão de dias

sempre iguais2.

Esse movimento se percebe nas situações cotidianas, não é ocorrência rara. Olhar-

se no espelho, avaliar os passos a dar, não gostar dos passos que deu, sentar-se à mesa para

as refeições. Tudo, são movimentos simples e automáticos, como ficar olhando fixamente

para o prato, experimentar uma angústia e, na tentativa de lidar com essa angústia

nauseante, buscar o sono para esvaziar-se dela.

Ao tempo em que este trabalho é produzido, o vento traz consigo expressões de um

homem contemporâneo que sofre a perda de sentido, em constante crise para explicar seu                                                                                                                                        1 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 29

2 Nilton Bonder na obra A Alma Imoral avalia o ato transgressor de Adão como uma vocação inerente ao homem  

11    

   

mundo, já que é tomado de uma necessidade absoluta de explicá-lo. Sofre ainda com o já

identificado desejo de transcender a vida cotidiana e a monotonia de seus dias, que é uma

característica das gerações anteriores. Em vez de “maçãs e guerras”, vê-se levado a

enxergar cada centímetro de sua presença humana no mundo. A opção são as variações

“psi”: divãs nos consultórios, profissionais da saúde mental, terapias ou medicamentos que

não precisam oferecer obrigatoriamente um triunfo, um final feliz depois do tratamento.

Precisam, no entanto, ser um processo que alivie a dor causada pelas pressões da vida.

O acúmulo de entretenimento passa a ser um valor, não importa quão alienada seja

a postura de “não pensar em nada” enquanto o tempo passa. Muitos espaços passam a ter

esse potencial: a televisão, o estádio de futebol, o salão de beleza. A tecnologia também

acaba por exercer uma função anestésica, provendo contínuas interações com conteúdos ou

pessoas. Os aparelhos são projetados para aperfeiçoar a vida humana, torná-la mais prática.

Talvez a maior tentação seja a de colocar a suprema necessidade de se ocupar no lugar da

necessidade de reflexão. Ocupar-se o tempo todo, com o que quer que seja, parece ser o

mantra de nosso tempo.

Outro grande agente da súplica por um sentido de vida está ligado à tecnologia,

embora se expresse além dela: o consumo. Entretenimento é uma forma de consumo que

nem se prende à aquisição de um objeto, uma vez que é possível consumir ambientes,

pessoas, lugares ou experiências. Quanto mais destas experiências alguém ajunta em sua

coleção, mais contentamento se encontra na própria condição. Observa-se este movimento

até na experiência com o sagrado. Novas propostas religiosas surgem todos os dias.

Templos abarrotados, práticas as mais excêntricas, tudo porque o homem busca uma

experiência que “supere” a sucessão de dias, que lhe forneça um referencial, que prescreva

uma transcendência que possa ser sentida.

Como definir essa crise experimentada pelo homem? Qual é sua origem e quais são

as implicações? Estes fragmentos da vida humana são suficientes para incitar a pergunta

crucial: o que é este homem que a tudo busca significar? Seria este o traço mais

12    

   

característico da experiência humana? Nenhum momento histórico é mais significativo

para a problemática desta crise de sentido do homem quanto o advento da modernidade3.

Antes da modernidade o eixo de referência para a humanidade era um conjunto de

valores estabelecidos que apontavam para além do ser humano. O mundo que valorizava a

busca “do bem”, e dos imperativos religiosos, testemunha o surgimento das ideias de

Copérnico. Com ele o centro gravitacional do universo muda da divindade para uma

definição astronômica da relação terra-sol, e com isso mudam também os referenciais que

o homem usa para medir-se.

O conjunto de sentidos do homem, junto com a particularidade de suas

circunstâncias, existia fora dele, mas agora foi trazido para dentro. Todos os referenciais de

significação do mundo, e as maneiras de explicá-lo, agora fazem parte de seu mundo

interno. O homem, na sua finitude e limitações, passa a ser responsável por assegurar o seu

mundo de significados. O arcabouço que afirmava “coisas tais como elas são” é substituído

pela lógica “das coisas tal como são para mim”.

No século XX, em meio ao paralelo hegemônico da discussão filosófica e

científica, uma apologia biológica-científica emerge com maior popularidade, pois é um

novo olhar que coloca o homem como variante de outras espécies animais, mesmo que o

ápice desse processo de reflexão seja a ideia de que o homem é um animal de categoria

diferenciada. Após um século de discussões sobre esta pergunta de caráter em princípio

antropológico, o filósofo alemão Ernst Cassirer usa esta perspectiva científico-biológico.

No início do século XX ele propõe questionamentos em sua obra como: estaria o universo

de interação do homem restrito a um processo mecanicista-biológico? Não seria limitador

conceber o homem como animal racional? O debate científico e das outras áreas de

conhecimento não teriam afastado a perspectiva filosófica da discussão sobre o homem?

A proposta para esta investigação é examinar Ensaio sobre o homem, livro de Ernst

Cassirer. A saída do autor para estas questões terá a raiz no conceito de símbolo, tendo

como exemplo mais ilustrativo a história da americana Helen Keller. Cassirer encontra

                                                                                                                                       3 A ideia será elaborada no decorrer do texto com o filósofo Henrique de Lima Vaz no texto “Crise de sentido e Modernidade”

13    

   

nela um exemplo tipicamente humano na natureza para trocar o conceito de um animal

racional para o de um animal simbólico, colocando em xeque as teorias existentes, aquelas

que apontavam a racionalidade como o traço mais característico do ser humano, uma

afirmação amplamente disseminada por biólogos ao longo do século XVIII e XIX.

Helen Keller, cega, surda e consequentemente muda, não apenas vive uma das mais

belas histórias da humanidade na sua relação com a professora Anne Sulivan, mas também

oferece o “abre-te, Sésamo!” para uma compreensão da natureza humana. Sua experiência

mostra como o conceito de símbolo pode nortear toda a discussão filosófica sobre o

homem em Cassirer. O autor reconhece que a discussão da relação entre homem e símbolo

deveria ter mais presença em outras áreas de estudo além da filosofia, defendendo a

necessidade de reencontrar este espaço de discussão. Esta evidência é possível ser

encontrada nos exemplos dados pelo autor nos estudos biológicos das reações animais e,

em uma análise contemporânea a Cassirer, na psicologia de Carl Gustav Jung4.

O tema deste trabalho tem Helen Keller como chave, pois pode ela ser ainda um

exemplo para investigarmos as questões primárias apresentadas por este texto sobre o

sentido da vida. Consideramos que sua condição de extremas limitações no símbolo é uma

oportunidade para a reflexão desta problemática. Que contribuição uma jovem que

aprendeu o sentido das palavras aos nove anos de idade, e que só se comunicou por meio

da professora pelo toque das mãos, poderia dar para a questão? O que ela descobriu nesta

sua entrada no universo simbólico que coloriu sua vida a ponto de ser tornar uma grande

ativista, militante, escritora e personalidade mundialmente conhecida pela plenitude de

vida?

No primeiro capítulo, examinaremos o conceito de rede simbólica em Cassirer

como norte da problemática do símbolo, e examinaremos a forma como o autor estrutura a

ideia de símbolo não como um fragmento isolado (que chamará sinal), mas como uma teia

interligada de múltiplos significados de um homem que em todo o tempo busca estes

significados distintos. O autor se insere em um debate permanente da história da filosofia

sobre o que seria este “homem” e as formas de conhecimento que tem a respeito de si                                                                                                                                        4 A comparação direta das duas obras sobre o símbolo foi lembrada na obra O mito em Cassirer e Jung: Uma compreensão do ser do humano de Nilton Sousa da Silva.

14    

   

mesmo. Dentre as reflexões, o autor encontrará a chave para o símbolo, a experiência de

Helen Keller aparecerá como exemplo do homem simbólico em ação. Também entra neste

debate uma leitora de Cassirer, Susanne Langer. Ela avalia o símbolo como uma nova

possibilidade da concepção do humano que, até aquele momento, estava reduzido pela

realidade científica. Ela encontrou no símbolo aquilo que denominou de “um mundo de

novas questões”5 não científicas. Para a autora, a única filosofia surgida genuinamente da

ciência foi o positivismo, a menos interessante de todas as doutrinas6. Segundo ela,

Cassirer possui o pioneirismo na filosofia do simbolismo e é com base em sua reflexão

sobre o símbolo que este trabalho será desenvolvido.

Há uma noção fundamental para a compreensão do conceito de símbolo em

Cassirer: a cultura. Skidelsky, biógrafo de Cassirer, o identifica como o “último filósofo da

cultura”7 e considera fundamental pensar a obra do autor nestes termos. Compreender a

cultura a partir do olhar de Cassirer é investigar o sistema das atividades humanas que

define e determina o círculo da humanidade, em que linguagem, mito, religião, arte,

ciência e história são os setores desse círculo, componentes da rede simbólica discutidas há

pouco8. Para melhor compreensão da relação de homem, símbolo e cultura, também

consideraremos o trabalho de Levi Strauss em sua obra Antropologia Estrutural, junto com

seus estudos em tribos consideradas primitivas (na perspectiva contemporânea de

desenvolvimento voltado para um progresso de infraestrutura de vida) e suas relações com

elementos simbólicos que compreendem seu modo de vida.

No segundo capítulo, dado o homem simbólico que a tudo busca significar, as

questões levantadas no início do trabalho sobre o sentido da vida e a crise de sentido do

homem começam a ganhar contorno: o que seria a “crise de sentido” do homem? O que a

configura e a caracteriza? Quando se dá? Como ela acontece? O teórico Henrique de Lima

Vaz contribuirá na localização da problemática com sua visão sobre a modernidade e busca

de sentido conceituando o que chamamos de crise de sentido e as suas implicações para o

                                                                                                                                       5 LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. 2ed. São Paulo, Perspectiva, 1989, p. 25. 6 LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. 2ed. São Paulo, Perspectiva, 1989, p. 25. 7 Skidelky, E. Cassirer, the last Philosopher of Culture. Princeton: Princeton University Press, 2008. 8 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: Introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução: Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.115  

15    

   

homem moderno9. A resposta para a questão do sentido da vida será explorada em Albert

Camus. O filósofo francês trará com a experiência e a noção de absurdo uma luz

importante e direcionadora para a problemática, como lidamos com esta questão e qual a

resposta possível para ela. Suas alternativas serão indigestas diante da expectativa: a vida

teria em si um sentido? A visão de Camus será corroborada por Fernando Savater. De

posse dos escritos do século XX sobre a problemática, apontará para um caminho

interessante para fundamentar suas respostas de que, na verdade, a vida não tem sentido.

Diante deste cenário pouco atrativo, duas experiências serão relevantes para a discussão: as

de Primo Levi e de Victor Frankl. As situações extremas que viveram em Auschwitz

apontam lampejos do limiar máximo da experiência humana e sua crise de sentido.

No terceiro capítulo, retomamos a experiência de Helen Keller como conexão na

exposição dos sentidos no símbolo de Cassirer, para a ponte do sentido da vida discutido

pelos autores do segundo capítulo, tendo por organizador o universo simbólico da

linguagem. A experiência da pequena Helen Keller é:

“Antes que a minha professora viesse a mim, eu não sabia que existia. Vivia num mundo que não era mundo para mim. Não espero conseguir descrever adequadamente aquele inconsciente, embora consciente, estado do nada. Ignorava que sabia alguma coisa, que vivia, agia, desejava; não tinha nem vontade, nem intelecto; eu era impelida para objetos e ações por um impulso cego natural, instintivo. Só tinha uma inclinação para a cólera, o prazer, o desejo... Não era noite e não era dia, mas um vazio que absorvia o espaço, uma estabilidade sem fundamento. Não havia estrelas, nem terra, nem tempo, nem freio, nem mudança, nem bem, nem crime” (KELLER, 1908, pg.113).

O mundo de Helen Keller é então invadido por símbolos e a “pequena massa de

possibilidades”10, e encontra na educadora Anne Sulivan um desdobramento infinito de

possibilidades. Como foi a experiência de entrar em um universo simbólico? Teria de fato

a menina dado sentido à sua vida a partir de então? O que significou esta euforia? A

experiência de Helen se apresenta como uma oportunidade para questão do sentido da vida

                                                                                                                                       9 A ideia de um homem moderno não está inserida em um debate sobre o real estado da modernidade ou hipermodernidade como for a de radicalização como o quer autores contemporâneos (Gilles Lipovettsky como expoente), mas uma referência simples de um homem que acompanha as questões postas pela modernidade. 10 KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008. Pg. 36  

16    

   

e o universo simbólico. Desvendar o que ela encontrou foi um caminho muito bem trilhado

por Cassirer. A investigação do que esta experiência significou a uma menina que até então

encontrava possibilidades restritas poderá ser uma importante ponte para compreender um

pouco melhor a relação que estabelecemos com o sentido da vida.

Será um regresso para Cassirer, com a exposição da rede simbólica em sua forma

linguística por alguém vindo de um lugar “de fora dela”11. Cassirer, oriundo das ciências

da linguagem com sua formação em literatura anterior à filosofia, contribuirá para uma

alternativa mais específica sobre o problema. Como poderia Helen, por meio da

linguagem, estabelecer sentido para sua vida? Como a rede simbólica da linguagem é fonte

de sentido para qualquer humano? Estaria nela uma chave possível para dissolução da

problemática do sentido?

Para longe de uma resposta definitiva, a expectativa é que este caminho contribua

para uma ilustração sobre uma problemática contemporânea (com diversas manifestações

ao longo da história) sobre o sentido da vida. O que se apresenta nesse momento como

chave é a experiência de uma menina de sete anos, sua professora, e um arcabouço

carregado de densidade filosófica sobre símbolos.

 

1. A REDE SIMBÓLICA EM CASSIRER

A obra Ensaio sobre o homem foi o roteiro escolhido para remontar o caminho que

Ernst Cassirer construiu até o homem simbólico, como modelo considerado mais adequado

para uma investigação que nos auxilie na busca por uma abordagem inicial para a questão

inicial deste trabalho: o que é este homem que a tudo busca significar? Anterior a uma

reflexão sobre o homem simbólico, Cassirer inicia sua abordagem na questão sobre o

conhecimento que o homem tem a respeito de si e dos meios utilizados até então para                                                                                                                                        11  Esta   expressão   é   utilidade   por   James   Berger   editor   do   livro  A   história   da  Minha   Vida  de  Hellen   Keller  (2008:  36)  

17    

   

conhecê-lo. Considera ter sido esta uma questão que superou o conflito de escolas

filosóficas ao longo do tempo, e a avalia como a “mais alta meta” do pensamento filosófico

em geral. Para ele, nem mesmo os pensadores mais céticos negam a possibilidade e a

necessidade do autoconhecimento. O ponto de partida de Cassirer é o método da

introspecção na “tradição cartesiana”.

“O avanço do conhecimento psicológico pouca coisa fez para confirmar esse principio cartesiano. Hoje, a tendência geral do pensamento inclina-se novamente para o polo oposto. Poucos psicólogos modernos admitiriam ou recomendariam um simples método de introspecção. No geral, dizem-nos que tal método é muito precário. Estão convencidos de que uma atitude behaviorista estritamente objetiva é única abordagem possível para um psicologia científica”(CASSIRER, 1994, p. 10)

Para o autor, é possível uma crítica em relação à visão puramente introspectiva,

mas não é possível eliminá-la. No entanto, é preciso admitir que, seguindo apenas este

caminho, nunca poderemos chegar a uma visão abrangente da natureza humana. Cassirer

adjetiva a investigação da natureza humana unicamente por meio da introspecção como

“pobre” e “fragmentária”, investigação que remonta a uma trajetória complexa. Para efeito

desta discussão, longa para demarcar o problema do conhecimento do homem, não

investirei o mesmo tempo que ele me atentando para a problemática, mas lançarei mão de

mais um exemplo que parece essencial no seu raciocínio sobre o conhecimento que o

homem tem sobre si. Para Cassirer, para além das questões cartesianas, Aristóteles tenta

explicar o mundo ideal, o mundo do conhecimento, em termos da vida. Tanto na Natureza

quanto no conhecimento humano, as formas superiores desenvolvem-se a partir de formas

inferiores. No entanto, adotar uma visão estritamente biológica do desenvolvimento

humano compreenderia um olhar exclusivo para o mundo externo, o que não permitiria um

olhar para o conhecimento do homem no mundo interior (temática que Cassirer está

perseguindo). Cassirer defende que, para todas as suas necessidades imediatas e interesses

práticos, o homem depende de seu ambiente físico. Não pode viver sem uma constante

adaptação às condições do mundo que o rodeia. Os primeiros passos na direção da vida

intelectual e cultural do homem podem ser descritos como atos que implicam uma espécie

de ajuste mental ao ambiente imediato. À medida que a cultura humana progride, porém,

logo encontramos uma tendência oposta da vida humana (CASSIRER, 1994, p.12). Neste

momento, Cassirer aponta para a necessidade de encontrar um direcionador comum para

18    

   

compilar, ordenar o conhecimento humano em torno de uma mesma temática, dizendo ser

a essa a única maneira de encontrar o fio condutor no emaranhado de expressões e olhares,

embora dê valor ao fato de que em nenhuma outra época tenhamos tido condição tão

favorável a respeito do conhecimento da natureza humana.

“Comparado à nossa própria abundância, o passado deve parecer muito pobre. Nossa riqueza de fatos, contudo, não é necessariamente uma riqueza de pensamento. A menos que consigamos achar um fio de Ariadne que nos conduza para fora deste labirinto, não teremos qualquer compreensão real do caráter geral da cultura humana; continuaremos perdidos em uma massa de dados desconexos e desintegrados que parecem carecer de toda a unidade conceitual”. (CASSIRER, 1994, p. 42-43)

Diante da complexidade tecida por muitos fios, a proposta organizadora do autor

para o conhecimento da natureza humana abre caminho para uma resposta à questão-

chave: quem é o homem? Cassirer responde a esta questão tendo como resposta uma

chave de acesso no símbolo.

19    

   

1.2 O SÍMBOLO E NATUREZA HUMANA

A favor de um norteador que organize o conhecimento do homem em torno de um

único ponto, o autor escolhe como caminho pensar o homem valendo-se da biologia como

ciência de amparo. A escolha de Cassirer não é aleatória. Ele se coloca diante de um

contexto de supervalorização científica desde o fim do século XIX e de seus constantes

exercícios para aproximar o pensamento a respeito da natureza humana em comparativos

com os animais. Ele centralizava a discussão a respeito do homem em comparativos

biológicos, em constantes exercícios para compreender gestos, reações e expressões de

animais, que justificassem respostas sobre aquilo que o homem sabe a respeito de si.

Cassirer se insere no debate de seu tempo buscando encontrar uma outra “chave” de acesso

ao homem, para além da hegemonia biológica.

Escolhe como referência o biólogo Johannes Von Uexkull, cuja defesa biológica se

assenta em uma visão crítica em relação aos princípios calcados na biologia de então. De

certo modo, Uexkull se opôs a uma perspectiva mais técnica e mecanicista sobre

funcionamento de sistemas e formas dos organismo limitados aos termos da física e da

química. Sua proposta principal está representada na ideia que a vida é uma realidade

suprema e dependente de si mesma e não poderia ser descrita ou explicada (e reduzida)

apenas nos termos da física ou da química. O novo esquema ao qual o biólogo se propõe é

destacado por Cassirer na singularidade que cada espécie biológica dispõe em sua

concepção, criando para si um mundo próprio que não poderia dispor de uma “realidade

absoluta” como propõe a física e a química. Nesse processo, cada organismo é, por assim

dizer, um ser monódico. Os fenômenos que encontramos na vida de uma determinada

espécie biológica não são transferíveis para nenhuma outra espécie (CASSIRER, 1994, p.

46).

Para Cassirer, este pressuposto geral do biólogo permite a construção de um

esquema engenhoso e original do mundo biológico. Em meio à riqueza de fatos (já

apontado pelo autor no capítulo anterior) das interpretações psicológicas, o biólogo

sustenta: a única chave para a natureza animal é a anatomia comparada ou seja,

20    

   

“Conhecendo a estrutura anatômica de uma espécie animal, possuímos todos os dados

necessários para reconstruir seu modo especial de experiência”. O argumento central de

Uexkull destacado por Cassirer é que:

“Cada organismo, mesmo o mais simples, não está apenas, em um sentido vago adaptado (angepasst) como também inteiramente ajustado (Eigenpasst) ao seu ambiente. De acordo com sua estrutura anatômica, ele possui um certo Merknetz e um certo Winknetz – um sistema receptor e uma sistema efetuador. Sem a cooperação e o equilíbrio desses dois sistemas, o organismo não poderia sobreviver. O sistema receptor, através do qual uma espécie biológicas recebe estímulos externos, e o sistema efetuador, pelo qual reage a eles, estão em todos os casos intimamente entrelaçados. São elos da mesma cadeia única que Uexkull descreve como circulo funcional do animal” (CASSIRER, 1994, p.47)

“Ajuste” e não adaptação reforça a ideia de que não haveria outra possibilidade

para o organismo senão aquelas condições, mas que uma adaptação ao ambiente é o

pressuposto de que qualquer alteração neste ambiente poderia ser de alguma forma fatal ao

organismo. O princípio de que isso se aplicaria a organismos superiores e inferiores não é

difícil de compreender. Em um exemplo prático, um urso polar que sofre a mínima

variação de temperatura no seu habitat, não resistiria a uma condição de vida com

temperaturas mais altas por muito tempo. O mesmo se aplica a uma planta longe de sua

fonte de energia em condições ideais de abastecimento de água e sol. O círculo funcional

de efetuação e recepção sugerido pelo biólogo, e que é enfatizado por Cassirer, pressupõe

que alterações em tamanho, ação e resposta do organismo em relação ao meio que está

inserido está dada, impedindo a possibilidade de variação de acordo com um raciocínio de

ação e resposta.

Para uma melhor exploração do conceito proposto por Uexkull, buscaremos uma

leitura para além de Cassirer, no filósofo italiano Giorgio Agamben, que também faz

referência aos estudos do biólogo em sua obra O Aberto, propondo como caminho a leitura

do homem em reconciliação com sua natureza animal. Ao olhar do autor italiano, o biólogo

Uexkull colocou uma infinita variedade de mundos perceptíveis que, embora sejam

incomunicáveis e reciprocamente exclusivos, são todos igualmente perfeitos e ligados

entre si. São como uma gigantesca partitura musical em cujo centro estão pequenos seres

familiares, onde cada ser vivo de algum modo é participante de um mundo singular. Para o

autor, Uexkull desmantela a ideia de que um único mundo situa todos os seres viventes. A

21    

   

leitura do filósofo, sob o chão construído pelo biólogo, sugeriu um raciocínio relevante

para a compreensão da questão: sugere AGAMBEN (2013, p.69) que animais como a

abelha, a libélula ou a mosca, que observamos voar em torno de nós em um dia de sol

qualquer, não se movem no mesmo mundo em que nós os observamos, nem dividem

conosco – ou entre si – o mesmo tempo e o mesmo espaço. A leitura de Aganben reforça o

olhar que enfatizamos de Cassirer a respeito de Uexkull, na direção de mais

esclarecimentos sobre esta diversidade de mundos. O autor italiano recorre a duas palavras

alemãs, sendo Umgebung (vizinhança, arredores) e Umwelt (ambiente). Na primeira,

refere-se ao espaço objetivo no qual se move o ser vivente, ou seja, a realidade física que

presenciamos. Na seguinte, o mundo em que este ser vivente se insere, ou seja, um

ambiente construído de uma série mais ou menos ampla de elementos que Uexkull

chamará de “portadores de significados” ou “marcas” que são os únicos que interessam ao

animal:

“...por exemplo, o caule de uma flor-do-campo, quando considerado na qualidade de portador de significado, constitui um elemento diverso a cada vez que está em um ambiente diverso; de uma garota que colhe flores para fazer um ramalhete com o qual perfumar o seu corpete; no ambiente da formiga que se serve dele como trajeto ideal para conseguir sua nutrição no cálice da flor; naquele da larva da cigarra que, nascida sem canal medular, utiliza-o, pois, como uma bomba para construir partes fluídas de seu casulo aéreo e, por fim, naquele da lagarta que simplesmente o mastiga e ingere para nutrir-se. Todo ambiente é uma unidade fechada em si própria, que resulta da seleção prévia de uma série de elementos “marcas” na Umgebung, que não é, por sua vez, como o ambiente do homem” (AGAMBEN, 2013, p.70)

O autor italiano ilustra o conceito de Uexkull à semelhança da citação do círculo

funcional feita por Cassirer, mas a contribuição de Aganben para a reflexão está não

apenas na validação de um princípio encontrado para pensar o homem, mas também na

chave mestra que guiará o nosso estudo: a polissemia de significados. Para o autor,

expressa no mesmo local e na dependência do olhar em questão, é possível uma “floresta-

para-a-guarda-florestal, uma floresta-para-os-caçadores, uma floresta-para-os-botânicos,

uma floresta-para-os-viajantes, uma floresta-para-o-amigo da natureza, uma floresta-para-

o-lenhador e, por fim, uma floresta para a fábula na qual se perde Chapeuzinho

Vermelho” 12 . O autor italiano antecipa um movimento que será posteriormente

                                                                                                                                       12  idem,  p.  70  

22    

   

amplamente explorado por Cassirer, a ideia de que o animal não necessita estabelecer uma

relação de significação com seu objeto, mas de que ele percebe a marca (ou o sinal como o

quer Cassirer) e reage a ela, como se todos os seus órgãos receptores daquele ambiente

estivessem ajustados para aquela determinada ação. Quando retornamos para o raciocínio

de Ernst Cassirer diante da leitura de Giorgio Aganben, ambos lendo a ideia central do

biólogo Uexkull, a pergunta do autor alemão é: “Será possível fazer uso do esquema

proposto por Uexkull para uma descrição e caracterização do mundo humano?” Em outras

palavras, a pergunta de Cassirer também poderia ser: “será que a maneira de olhar o

homem como fruto de uma composição biológica é suficiente para refletir o que (ou quem)

é esse homem?”. O autor aponta neste momento para o conceito-chave de seu argumento

sobre o homem e que servirá de embasamento para toda a sua construção filosófica,

afirmando que:

“O homem descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados em todas as espécies animais observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como sistema simbólico. Essa nova aquisição transforma o conjunto da vida humana. Comparado aos outros animais, o homem não vive apenas em uma realidade mais ampla, vive, pode-se dizer, uma nova dimensão da realidade” (CASSIRER, 1994, p.47-48)

O círculo funcional é o mesmo para todas as espécies. No que se refere ao homem,

não é apenas maior que o dos outros organismos, em tamanho e complexidade, mas há um

terceiro elo. Neste momento a complexa teia construída para entender como o homem

ganha mais precisão no sistema simbólico, esta nova dimensão da realidade é um dado

exclusivo da atividade humana, não sendo possível ser acessada por outros seres vivos.

Cassirer não refuta a racionalidade como característica humana, mas refuta ser ela a chave

de acesso para uma compreensão do homem. Cassirer demarca uma importante diferença

entre “as reações orgânicas”, originárias de organismos que funcionam restritos ao círculo

funcional, e as “respostas humanas” dadas em relação aos estímulos externos (no capítulo

seguinte da obra: Das reações animais às repostas humanas o autor investirá seus

argumentos na observação desses fatos).

A racionalidade do homem, para Cassirer, também apresenta sua inadequação como

definição geral nos termos da linguagem. Apesar de elaborada na razão, uma linguagem

23    

   

científica, lógica ou conceitual, vem acompanhada em todo o instante de uma linguagem

emocional, imaginativa e poética. A religião, para o autor, é mera abstração de objetos,

símbolos distantes da realidade imediata ao homem, que transmite apenas a forma ideal de

uma prática, a sombra do que é a vida religiosa genuína e concreta. Quando posiciona a sua

análise nesse contraste é que autor apresenta o que seria “o fio de Ariadne” para acessar o

homem e organizar o conhecimento sobre ele: o símbolo. Não pela contramão de um

pensamento científico de homem como animal racional, mas utilizando um termo mais

adequado no que seria este universo característico. A partir desta concepção, Cassirer

propõe a investigar o que seria este animal simbólico, não em detrimento do animal

racional, mas adequando a resposta na tentativa de definição do homem.

"A razão é um termo muito inadequado com o qual compreender as formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e variedade. Mas todas essas são formas simbólicas. Logo, em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum" (CASSIRER, 1994, p.50).

Definir é o verbo em questão. Qual o elemento mais característico da atividade

humana? Qual o fio condutor que nos levará para o conhecimento do homem? Diante da

necessidade de autoconhecimento, o que responder? O autor alemão expõe o problema e

consolida seu raciocínio. Diante do tecnicismo biológico do seu tempo e do silêncio

filosófico sobre a definição do homem, Cassirer se propõe a encontrar uma definição para

o homem no símbolo.

 

24    

   

1.3 “DO ANIMAL RACIONAL AO ANIMAL SIMBÓLICO”

No capítulo das reações animais as respostas humanas, o autor visita as atividades

tidas como “simbólicas” no reino animal em detrimento da atividade simbólica do homem,

buscando importantes demarcações para justificar a atividade simbólica como tipicamente

humana sem possibilidades de aplicação aos animais. Cassirer propõe uma investigação da

realidade do homem através do símbolo, aparentemente sem definir o conceito de símbolo,

mas indicando por sombras algo ainda oculto.

“É inegável que o pensamento simbólico e o comportamento simbólico estão entre os traços mais característicos da vida humana, e que todo o progresso da cultura humana está baseado nessas condições. Teremos, porém, o direito de considerá-lo como um dom especial do homem, com a exclusão de todos os seres orgânicos? Seria o simbolismo um princípio cujas origens podemos encontrar em fontes muito mais profundas, e com um campo de aplicabilidade ainda mais vasto?” (CASSIRER, 1994, p.51)

Cassirer ancora sua discussão no homem simbólico. No entanto, está diante do

desenvolvimento científico e da multiplicação dos estudos sobre a vida animal e suas

possíveis relações com os homens. O autor reforça a importância do estudo do símbolo

para o entendimento da vida humana, seja por meio da linguagem, da religião ou da arte,

que possibilita a inteligibilidade do homem na cultura. O filósofo alemão reforça que o

debate a respeito do simbolismo é uma questão com manifestações em diferentes campos

de estudo e objeto de discórdia sobre as suas implicações. Ele reforça que sua proposta não

é, de nenhuma maneira, adentrar a esta discussão, mas descrever a atitude simples,

simbólica do homem de maneira mais precisa, para podemos contrapô-la a outros modos

de comportamento simbólico encontrado no reino animal.

Cassirer deste ponto em diante iniciará uma demarcação de conceitos entre a

atividade simbólica do homem em detrimento da dos animais. Em um primeiro momento,

assume como atividade simbólica todas as experiências científicas realizadas e assim

denominadas por seus autores. No entanto, a ideia de símbolo em aplicação aos animais

será refutada alguns passos mais à frente de seu argumento.

25    

   

No primeiro exemplo, o autor recorre aos estudos com macacos antropóides

propostos por JB Wolfe no estudo “Effectiveness of token rewards for chimpanzees” em

1936. Para CASSIRER (1994, p.53), “segundo Wolfe, os resultados das longas e variadas

experiências mostraram que processos simbólicos ocorrem no comportamento dos

macacos antropoides”. O conhecimento científico de sua época encaminhara a discussão

para a conclusão de que, possivelmente, os processos simbólicos dos animais poderiam ser

os antecedentes dos processos simbólicos humanos. Acompanhando os estudos de JB

Wolfe, o pesquisador americano Robert M Yerkes extrai uma importante conclusão sobre

este fato em sua obra “Chimpanzees. A Laboratory Colony” (apud CASSIRER, 1994,

p.53), afirmando que “os processos simbólicos são raros e difíceis de observar, mas

suspeito que logo serão identificados como antecedentes dos processos simbólicos

humanos”. Ambos os pesquisadores deixaram esta temática aberta para futuras

investigações. No entanto, um fato chama atenção de Cassirer ao analisar os estudos:

“Parece-me altamente significativo que hoje em dia não sejam os filósofos, mas os observadores e pesquisadores empíricos que parecem estar assumindo os papeis principais na solução deste problema. Estes últimos dizem-nos que, afinal, o problema não é meramente empírico, mas em grande parte lógico” CASSIRER, 1994, p.54)

Para a resolução deste ponto, Cassirer encontra no pesquisador Georg Révész o

debate da questão da linguagem animal. O convite do autor é analisar os fatos empíricos

sob a luz de um conceito sólido e lógico, e o ponto de partida escolhido é a definição de

fala. O conceito de fala é proposto por Cassirer não como uma definição fechada e linear,

mas o ponto de partida de um processo de investigação que será crucial para a

compreensão do que o autor entende por símbolo, sobre o limiar entre a atuação humana e

as respostas cedidas pelos animais. CASSIRER (1994, p.55) inicia sua investigação com a

proposta de visitar as diversas camadas geológicas da fala, sendo a primeira camada a

linguagem das emoções. Ele afirma que grande parte das expressões humanas depende

desta camada, baseando-se no autor Edward Sapir em seu livro Language e no francês

Charles Bally. “Le Langage et la vie” esclarece que não há a possibilidade de romper com

esta primeira camada emocional da linguagem nem mesmo em casos de uma linguagem

teórica sem o mínimo de tintura afetiva ou emocional. O contraponto para o mundo animal

é evocado pelo autor novamente. No entanto, Cassirer delimita novamente o que seria o

26    

   

limite da expressão animal e as capacidades humanas em responder a um determinado

estímulo.

“No que toca aos chimpanzés, Wolfgang Koehler afirma que eles atingem um alto grau de expressão por meio da gesticulação. Raiva, terror, desespero, pesar, súplica, desejo, brincadeira e prazer são expressados com facilidade deste modo. Falta, no entanto, um elemento, característico e indispensável a toda a linguagem humana: não encontramos nenhum sinal que tenha uma referência ou sentido objetivo. (CASSIRER, 1994, p. 55)

O caminho de Cassirer para a argumentação do símbolo como elemento

característico humano começa a ganhar força por meio da linguagem. Observar os estudos

dos chimpanzés não apenas delimita o campo de atuação humana e do reino animal, mas

apresenta por meio de dados empíricos dos biólogos evidências claras da limitação dos

animais em atribuir um sentido objetivo para a sua linguagem emocional. A expressão de

sons e gestos realizados pelos macacos não designam ou descrevem objetos, apenas

reagem ao estímulo oferecido. Cassirer conclui desta experiência que:

“A diferença entre linguagem proposicional e a linguagem emocional é a verdadeira fronteira entre o mundo humano e mundo animal [...] Em toda a literatura sobre o tema parece não haver uma única prova conclusiva de que algum animal jamais de o passo decisivo que leva da linguagem subjetiva à objetiva, da afetiva a proposicional” CASSIRER, 1994, p. 55 e 56)

Cassirer analisa os estudos de Wolfgang Koehler13, Géza Révész14 e Robert

Yerkes15, sobre a relação dos animais com a linguagem, mas para Cassirer, se partirmos de

uma definição clara do conceito de fala, todas as expressões animais serão

automaticamente eliminadas. Para ele, em Koehler, a ausência da fala nos macacos

antropoides impede os animais de desenvolver sequer os mais mínimos rendimentos de

desenvolvimento cultural. Para Révész, a fala é em si um conceito antropológico e deve ser

descartado da psicologia animal. Por fim, embora seja o mais otimista, Yerkes conclui que

há indícios abundantes de que vários outros tipos de processo de sinalização, além do

simbólico, são de ocorrência frequente e funcionam efetivamente no chimpanzé, mas todas

estas expressões funcionais são excessivamente rudimentares, simples e de utilidade

                                                                                                                                       13  KOEHLER,  Wolfang.  The  mentality  of  apes.  Heracourt.  Nova  York,  Brace,  1925.  14  RÉVÉSZ,  Géza.  The  origins  and  Prehistory  of  language.  Philosophical  Library.  1940.  15  YERKES,  M.  Robert.  Chipanzees.  A  laboratory  Colony.  Yale  University  Press.New  Haven,  1923.    

27    

   

limitada, em comparação com os processos cognitivos humanos. A análise dos estudos

mais avançados das atividades animais em detrimento da atividade humana posiciona

Cassirer no desafio de enunciar o que melhor seria a atividade simbólica, pois, se a

atividade simbólica é exclusivamente humana, o que dizer dos estudos com os macacos

antropoides? E, se a fala é o limiar escolhido para delimitar o que seria a atividade animal e

uma resposta humana, como extrair deste exemplo a concepção de símbolo? Como

engendrar um raciocínio capaz de refutar as referências a símbolos utilizados até então

pelos biólogos de sua época? A saída escolhida por Cassirer é a delimitação do conceito de

símbolos e sinais, que será amplamente explorada neste momento. A preocupação do autor

neste momento é a construção dos seus argumentos a partir da perspectiva humana,

também explorado a partir de experimentos empíricos. Sobre símbolos e sinais, Cassirer

expõe o problema da seguinte forma:

“... devemos distinguir com cuidado a diferença de sinais e símbolos. Parece ser um fato estabelecido que encontramos sistemas bastante complexos de signos e sinais no comportamento animal. Podemos até dizer que alguns animais, em especial animais domésticos, são extremamente suscetíveis aos sinais. Um cão reage às mínimas mudanças no comportamento de seu dono; distingue até as expressões do rosto humano e as modulações da voz humana. Mas há uma enorme distância entre tais fenômenos e a compreensão da fala simbólica humana” (CASSIRER, 1994, p. 57)

Cassirer avalia a experiência empírica com o cão como delimitadora de sinais e

símbolos, afirmando que o cão está absolutamente suscetível a variações dos sentidos

humanos. Um animal pode compreender uma quantidade de sons e sinais que lhe indica o

que deve fazer, qual ação é mais adequada. Para o autor, os “reflexos condicionados” do

animal não estão apenas muito afastados, mas são opostos ao caráter essencial do

pensamento simbólico humano. A leitora de Cassirer, Susanne Langer, sugere em sua obra

Filosofia em nova chave, que isso aponta para uma construção filosófica complementar ao

raciocínio do autor alemão, com uma série de exemplos e evidências importantes para

suportar a proposta da atuação de um homem simbólico em comparação a ação dos

animais. Há uma importante delimitação que Langer sugere logo no prefácio da segunda

edição da obra, a ideia de que nos momentos em que escreveu “signo” poderia

naturalmente ser lida como “sinais”:

28    

   

“Charles Morris, em seu Signos, Linguagem e Comportamento, empregou um tratamento que acho superior ao meu e que, consequentemente, adotei desde a publicação de meu livro. Morris usa a palavra “sinal” pelo o que eu chamava signo. O termo “sinal” é, naturalmente, estendido para cobrir não apenas sinais explicitamente reconhecidos – luzes vermelhas, campainhas, e etc. – mas também fenômenos que tacitamente respeitamos como sinais para nossos sentidos, p ex., a vista de objetos e janelas pelos quais somos orientados num aposento, a sensação provocada por um garfo na mão de alguém que o guia erguendo-o a sua boca; em resumo, abrangendo tudo que dominei “signo” (LANGER, 2004. p. 11)

A delimitação entre signos e sinais será importante para compreender as

construções da autora no eco ao que Cassirer chama de sinais. De volta à diferença entre

símbolos e sinais, a autora pontua o que chama ser uma profunda diferença entre o uso de

ambos, sendo o segundo uma manifestação primária da mente e comenta, como Cassirer,

ser essa uma primeira aparição na história biológica do homem no “reflexo condicionado”

diante de um estímulo. O mundo animal dos sinais pressupõe um universo mais restrito de

variações. Sons, apontamentos ou indicações não trazem consigo uma multiplicidade de

significados, mas uma reação imediata de respostas. Langer tem um exemplo muito

ilustrativo pensando nos cachorros. Se um cachorro tem por dono James, e escuta a palavra

“James”, automaticamente procurará o dono em resposta ao estímulo. Se o mesmo

estímulo da palavra for dado a um ser humano, não se estranhará uma resposta como: “O

que há com James”? ou “Quem é James?”. Para o cão, James é um sinal como uma

campainha e não pode indicar outra coisa senão o fato da aproximação do seu dono. Para

um ser humano, a palavra evoca uma multiplicidade de possibilidades e significados

(LANGER, 2004, p.71). Eis então a demarcação das respostas humanas em detrimento às

reações animais. A contribuição da autora alemã nos devolve para a necessidade de uma

compreensão geral do que significa essa demarcação de símbolos e sinais. Para uma

compreensão geral importante que seja um avanço na perspectiva do mundo humano dos

símbolos, voltemos para Cassirer:

“Os símbolos – no sentido próprio do termo – não podem ser reduzidos a meros sinais. Sinais e símbolos pertencem a dois universos diferentes de discurso: um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte do mundo humano do significado. Os sinais são “operadores” e os símbolos são “designadores”. Os sinais, mesmo quando entendidos e usados como tais têm mesmo assim uma espécie de ser físico substancial; os símbolos tem apenas um valor funcional” (CASSIRER, 1994, p. 58)

29    

   

Sinais e símbolos como reinos diferentes reforçam a ideia apresentada por Cassirer

sobre o “terceiro elo” humano para além de sistemas receptores e operadores, ou seja, para

além de uma perspectiva mecânica de respostas comum aos animais. Enquanto os sinais

operam no mundo presente das “coisas” (gestos, campainhas, objetos), o símbolo opera na

realidade do significado e possibilita ao homem o questionamento, o porquê. Cassirer

encontra na delimitação de símbolos e sinais uma contribuição para a reflexão sobre a

inteligência dos animais, que se aplica como bom exemplo sobre sinais “operadores” e

símbolos “designadores”. No entanto, a demarcação não resolve a questão central do autor:

poderíamos dizer que, além de symbolicum, o homem seria um animal caracterizadamente

rationale, configurado diante dos outros animais por sua capacidade de raciocínio? Logo, o

que teríamos não seria uma substituição de um termo (animal racional), mas a

sobreposição por outro (animal simbólico). Mas não parece ser esta a proposta de Ernst

Cassirer, que vê a racionalidade como termo inadequado.

A investigação do autor encontra caminho no conceito de inteligência,

comparativamente na atividade humana e animal. O autor pontua a dificuldade de

encontrar um denominador comum ao termo inteligência e discorre sobre a controversa

reflexão do mundo empírico quanto àquilo que poderia ser considerado um processo

cognitivo nos animais. O ponto central da reflexão de Cassirer está em afirmar que, se

entendermos por inteligência o ajuste ao ambiente imediato, ou a modificação adaptativa

ao ambiente, devemos com certeza atribuir aos animais uma inteligência

comparativamente bastante desenvolvida. É o que mostram os estudos com macacos

antropoides, que são considerados formas superiores de vida animal, pois, diante dos

estímulos oferecidos pelos pesquisadores (referência neste caso a Koehler), exibiam uma

reação pensada (compreendida) ao estímulo oferecido. É incontestável a capacidade

surpreendente provada pelos animais. Cassirer refere-se a estudos (do já mencionado

Robert M. Yerkes) em que os animais ainda demonstram uma capacidade imaginativa e

criativa relativamente desenvolvida, e mesmo assim sem as características de uma

imaginação tipicamente humana.

Não é distante a afirmação de que os animais possuem inteligência que, no entanto,

é uma inteligência de natureza diferente da humana. A ideia debatida pelo autor, em

30    

   

resumo, aponta para nos dizer que o animal possui uma imaginação e uma inteligência

prática, enquanto apenas o homem desenvolveu uma nova forma: uma imaginação e uma

inteligência simbólica (CASSIRER, 2004, p.59). A conclusão de Cassirer não parece

expressiva se analisada diante das capacidades humanas em detrimento da dos animais:

apenas aponta capacidades diferentes e, do ponto de vista de uma compreensão da natureza

humana, possibilita um caminho livre para o aprofundamento da atividade simbólica na

relação do homem com o seu mundo, junto com a possibilidade de um avanço significativo

na compreensão da natureza humana.

Com a delimitação do mundo humano e do mundo animal, a palavra animalidade

possivelmente seja a mais adequada para expressar o distanciamento humano da atividade

simbólica. O esvaziamento do significado, a pantomima das coisas, a experiência

mecanizada são traços comuns da experiência humana e apenas possíveis nela. Para

CASSIRER (1994), a animalidade do homem, longe da atividade simbólica, é como a

ilustração do prisioneiro no mito da caverna de Platão, vendo a realidade passar diante de

si apenas como sombras, sem a presença da luz iluminadora do simbólico, preso a suas

necessidades biológicas e longe do que o autor denomina ao “mundo ideal”. A experiência

do autor alemão no estudo da atividade simbólica o levou à reflexão sobre a relação do

símbolo como elemento singular atividade humana, não sendo reproduzida em qualquer

outra espécie animal, independentemente do nível de evolução dela. Ora, por mais

desenvolvido que seja um ensaio psicológico, não poderia concluir diretamente que um

urso polar suicidou-se porque o derretimento das calotas polares refletiu nele como um

símbolo da perda de esperança sobre o seu habitat. A única reação do urso será: diante da

sensação do processo de derretimento do gelo, abrigar-se para não ser atingido ou afogado

pela onda.

O símbolo. É a resposta mais adequada diante da pergunta do que é o elemento

humano mais característico. O animal simbólico de Cassirer é uma resposta construída

com o fundamento da história da filosofia (sua análise a partir dos filósofos gregos) e a

contemporaneidade do desenvolvimento biológico do século XX. Saber sobre o símbolo

implica, não apenas uma definição vazia e tecnicista, mas a possibilidade de avançar no

estudo da presença do homem no mundo é saber de que forma o símbolo articula sentido

31    

   

para sua vida. São as questões iniciais deste trabalho, e diante disto se constrói um

universo novo de questões: como se dá essa articulação no mundo humano dos símbolos?

Como é construída essa atividade simbólica? Cassirer apresenta caminhos pela

compreensão de uma cultura humana construída por símbolos, que atuam não mais de

maneira isolada (individual) como quiseram os filósofos e estudiosos do comportamento

humano que o precederam, mas como grandes sistemas simbólicos interligados (coletivo)

que criam o que Cassirer chamará de rede simbólica.

32    

   

1.4 REDE SIMBÓLICA

A necessidade de encontrar um princípio organizador para o homem no símbolo

impele Ernst Cassirer a encontrar também o mesmo princípio na presença deste homem

simbólico no mundo, buscando um organizador na cultura humana. A questão inicial de

Cassirer sobre quem é o homem, continua ecoando o tema central desta dissertação: quem

é esse homem que a tudo busca significar e como se dá esta significação. Neste momento

da escrita, de posse do conceito do homem simbólico, resta saber como ele se relaciona

com esse universo. É o que Cassirer constantemente chamará de “mundo ideal”. Para ser

fiel à ideia do autor e o seu funcionamento (no sentido de funtionale que será debatido a

diante) neste mundo que o levará – em nossa discussão – até a rede simbólica. A

investigação de Cassirer sobre a cultura humana segue o método de investigação

característico nos seus escritos, um resgate genealógico na história da filosofia sobre a

tratativa. No entanto, a grande caraterística do filósofo da cultura (como foi citado na

introdução deste texto) é a ideia de que o homem pensado de maneira ampla não pode ser

pensado agindo individualmente. A partir de alternativas de respostas nos termos da

política e do estado, para o autor, parece evidente que a natureza do homem está escrita na

natureza do estado, mas não é, também, a vida política a única forma de experiência

comunitária humana.

“a definição do homem como “animal social” não é suficientemente abrangente. Ela nos proporciona um conceito geral, mas não a diferenciação específica. A sociabilidade como tal não é uma característica exclusiva do homem, nem privilégio só dele. Nos chamados estados animais, entre as abelhas e formigas, encontramos um nítida diviso do trabalho a uma organização social surpreendente complicada. No caso do homem, porém, encontramos não só uma sociedade de ação, como ocorre entre os animais, mas também uma sociedade de pensamento e sentimento. A linguagem, o mito, a arte, a religião e a ciência são elementos e as condições constitutivas dessa forma mais elevada da sociedade. São os meios pelos quais as formas de vida social que encontramos na natureza orgânica se desenvolvem para um novo estado, o da consciência social. A consciência social do homem depende de um ato duplo, de identificação e discriminação. O homem não pode encontrar a si mesmo, não pode tomar consciência de sua individualidade, a não ser através do meio de vida social.” (CASSIRER, 1994, p.363)

33    

   

Para o autor, antes mesmo de o homem descobrir uma forma de organização social,

“ele havia feito outras tentativas de organizar seus sentimentos, desejos e pensamentos.

Tais organizações e sistematizações estão contidas na linguagem, no mito, na religião e na

arte” (CASSIRER, 2004. pg 108). Diante de uma convicção destas organizações

“primitivas” (em relação à política, estado), o autor empreende um caminho de análise dos

muitos métodos empregados para compreender a presença do homem na cultura

(introspecção psicológica, experimentação biológica, investigação histórica) que serão

tratados neste trabalho. No entanto, o seu ponto de chegada (que será o grande ensaio da

sua construção filosófica) culminará na filosofia das formas simbólicas: “A filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definição da natureza ou “essência” do homem, tal definição só poderá ser entendida como sendo funcional e não substancial. Não podemos definir o homem com base em qualquer princípio inerente que constitua a sua essência metafísica – nem podemos definí-lo por qualquer faculdade ou instinto inato que possa ser verificado pela observação empírica. A característica destacada do homem, sua marca distintiva, não é sua natureza metafísica ou física, mas o seu trabalho. É este trabalho, o sistema das atividades humanas, que define e determina o círculo da “humanidade. Linguagem, mito, religião, arte, ciência e história são os constituintes, os vários setores desse círculo” (CASSIRER, 2004. pg 115)

Não há em Cassirer a preocupação de refutar os métodos anteriormente

desenvolvidos, mas também não é possível concebê-los como organizadores e fontes que

esgotam a presença do homem no mundo. O fato de resgatarmos registros históricos de

uma determinada sociedade não reduz as expressões míticas e religiosas que ele construiu

ao longo deste tempo: são variações diferentes de um mesmo sistema de atividades. A

discussão sobre a filosofia das formas simbólicas é ampla e profundamente debatida em

Cassirer, não sendo objeto direto de estudo a profundidade no conceito. No entanto, um

aspecto é substancial para uma melhor compreensão da presença do homem na cultura: o

desafio de encontrar um organizador para estas expressões da atividade humana no mito,

arte, religião. Para Cassirer, conceber uma filosofia a respeito do homem tem de

(reforçando o caminho por ele proposto) entender a estrutura fundamental de cada destas

atividades, mas ao mesmo tempo precisariam ser concebidas em um todo orgânico.

Reforça ainda que:

34    

   

“A filosofia não pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura humana. Ela procura uma visão universal sintética que inclua todas as formas individuais. Mas não seria uma tal visão abrangente uma tarefa impossível uma simples quimera? Na experiência humana não encontramos, de maneira alguma, as varias atividades que constituem o mundo da cultura existindo em harmonia. Ao contrário, vemos o atrito perpétuo entre forças conflitantes. O pensamento científico contradiz e suprime o pensamento mítico. A religião, em seu mais alto desenvolvimento teórico e ético, ve-sê na necessidade de defender a pureza de seu próprio ideal contra as fantasias extravagantes do mito ou da arte. Assim, a unidade e harmonia da cultura parece ser pouca coisa mais um pium desiderium – um embuste virtuoso – que é constantemente frustrado pelo curso real dos acontecimentos”( CASSIRER, 1994, pg. 119)

O desafio de organizar a expressão da cultura humana, tendo por raiz o homem

simbólico, empreende um esforço do autor em torno de uma lógica comum que tem por

pressuposto não combinar sequencialmente cada um dos elementos, mas organizá-los em

um elemento comum (funcional, como já mencionado). Se, de algum modo, o filósofo se

contentar apenas os resultados de cada uma destas atividades humanas, seria impossível

encontrar um denominador comum. Para Cassirer, uma síntese filosófica parte do que ele

chamará “unidade de ação”, não dos produtos estabelecidos em cada atividade, mas do

processo criativo as quais todas estão submetidas. Conclui dizendo que: Se o termo

“humanidade” que dizer alguma coisa, que dizer que, a despeito de todas as diferenças e

oposições que existem entre as suas várias formas, todas elas estão, mesmo assim,

trabalhando para um fim comum (CASSIRER, 1994, pg. 119). As sínteses particulares de

cada uma destas atividades já foram encontradas, segundo autor, e sistematizadas nas suas

diversas formas (na arte, no mito, na religião). Encontraram categorias definidas para

acoplar princípios de cada um dela. No entanto, para Cassirer a filosofia não pode parar

por aqui:

“Não fosse por essa síntese prévia efetuada pelas próprias ciências, a filosofia não teria um ponto de partida. A filosofia, por outro lado, não pode parar aqui. Ela deve procurar alcançar uma condensação e uma centralização ainda maiores. Na ilimitada multiplicidade e variedade de imagens míticas, dogmas religiosos, formas linguísticas, obras de arte, o pensamento filosófico revela a unidade de uma função geral por meio da qual todas essas criações são mantidas unidas. O mito, a religião, a arte, a linguagem e até a ciência são hoje vistos como diversas variedades de um tema comum – e a tarefa da filosofia é tornar esse tema audível e compreensível.” (CASSIRER, 1994, pg. 119 – 120)

35    

   

A função geral, a chave para o “funcionamento” do homem na cultura aparece em

Cassirer como resposta a esse princípio organizador. As formas simbólicas atuantes no

acesso do homem ao universo simbólico organizam-se em um função geral na qual todas

se encontram em um denominador comum. Ainda sob a ótica da função, outro autor,

tributário às formulações de Cassirer, resgata uma definição de símbolo alinhada ao

conceito debatido, até aqui:

“o símbolo é ao mesmo tempo algo físico, um sopro de vento ou uma marca num papel, e algo espiritual, um significado. O símbolo também é algo específico, ao mesmo tempo, transmite um significado universal. O símbolo é, além disso, o meio universal da atividade cultural, e ainda é o símbolo é algo específico a cada atividade particular dentro da qual ele tem seu próprio significado. O símbolo é, pois, um análogo ao conceito matemático de função” (VERENE, 2008, p.98).

A ampliação de Verene contribui para reforçar a necessidade de demarcar o

conceito de símbolo, mas a contribuição para este trabalho se dá a partir de uma

perspectiva do conceito análogo a função, atuando como um meio universal da atividade

cultural. Diante desta demarcação, o conceito chave para o universo simbólico pode ser

mais bem explorado. A ideia de rede simbólica aparece em Cassirer da seguinte maneira:

“Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Todo o progresso humano em pensamento é refinado por essa rede, e a fortalece. O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem” (CASSIRER, 2004, p.48)

No terceiro elo do sistema desenvolvido pelo homem (debatido anteriormente no

contraponto aos animais), o homem está em permanente contato com a atividade

simbólica, seja no mito, na arte ou na religião. Este homem simbólico constrói fios de uma

rede que se interpõem entre ele e seu mundo, entre a realidade física e o homem. A rede

simbólica é o emaranhado dessa experiência humana, onde o homem se insere em

composição já dada pela cultura em que está inserido. É uma construção artificial (na

expressão de Cassirer) para se relacionar com esta realidade, que necessariamente precisa

ser apreendida em cada rede específica, seja pelos mitos, arte, religião, em que o homem

não vive em um mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejo

36    

   

imediato: o distanciamento é o movimento fundamental do símbolo. Na experiência

simbólica, o homem não acessa a realidade imediata por uma opção, mas porque não

consegue mais observar os fatos de outro modo, pois já está inserida neste mundo ideal

ditado pelo símbolo. A linguagem já não é um compilado alfabético cuja composição de

palavras que aponta para uma única realidade. A arte não é a apenas a impressão estética

do autor, mas um conjunto (rede) elaborado e polissêmico. A realidade imediata não é uma

referência tipicamente humana. O homem se envolveu de tal modo em formas linguísticas,

imagens artísticas, símbolos míticos, ou ritos religiosos, que não consegue ver ou conhecer

coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial (CASSIRER 2004, p.48-49).

Diante deste cenário, o autor esclarece que, mesmo diante da rede simbólica, a

realidade humana não é apenas abstração, mas possui características únicas de

racionalidade. É pensada e organizada, tem lógica, e é uma parte importante para a

atividade humana. O próprio autor afirma que a racionalidade é de fato um traço inerente a

todas as atividades humanas. A própria mitologia não é uma massa grosseira de

superstições ou ilusões crassas. Não é meramente caótica, pois possui uma forma

sistemática e conceitual. Mas ele acrescenta que, por outro lado, seria impossível

caracterizar a estrutura do mito como racional. CASSIRER (2004, p.48-49). A rede

simbólica é um mundo construído pelo homem e somente acessado por ele. Cassirer

conclui:

“Tomada como um todo, a cultura humana pode ser descrita como o processo de progressiva auto liberação descrita como o processo de progressiva autoliberação do homem. A linguagem, a arte, a religião e a ciência são várias fases desse processo. Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder – o poder de construir um mundo só dele, um mundo “ideal”. A filosofia não pode renunciar à sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal; mas não confunde essa unidade com simplicidade. Ela não menospreza as tensões e atritos, os fortes contrastes e os profundos conflitos entre os vários poderes do homem Estas não podem ser reduzidos a um denominador comum. Tendem para direções diferentes e obedecem a princípios diferentes. Mas essa multiplicidade e disparidade não denotam discórdia ou desarmonia. Todas as funções completam-se e complementam-se entre si. Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um novo aspecto da humanidade.” (CASSIRER, 1994, pg. 372)

A abertura deste novo horizonte do homem no acesso à rede simbólica é a grande

contribuição de Cassirer para a compreensão de como o homem simbólico atua no mundo.

37    

   

O desafio posto agora é apresentar a atuação deste homem presente no mundo e agindo

neste universo do símbolo. Para melhor ilustrar este movimento humano, dois exemplos

serão investigados, estando um em Cassirer e outro em Levi Strauss.

38    

   

1.5 DO SÍMBOLO À EXPERIÊNCIA

1.5.1 EFEITO SIMBÓLICO EM CASSIRER

A questão inicial deste trabalho parte de uma observação da realidade, de falas comuns

ouvidas no cotidiano a respeito do homem contemporâneo. Sem qualquer fundamento

inicial empírico ou filosófico, a hipótese levantada na experiência vai ganhando contornos

sob a direção da organização filosófica de Cassirer, para quem é tarefa da filosofia tornar

uma temática audível. A rede simbólica como foi apresentada traz novamente a

necessidade de um exemplo prático de aplicação, onde a hipótese filosófica se prova na

experiência. Este texto, que partiu da experiência, mergulhou nos pressupostos filosóficos,

encontrou novamente outra expressão da experiência.

Cassirer apresenta o que seria seu argumento mais ilustrativo do momento em que

um humano salta da pantomima dos sinais para exercer a função simbólica da realidade.

Este raciocínio de Cassirer torna-se evidente com a jovem Helen Keller16 em sua fase de

formação, principalmente no desenrolar das diferenças entre sinais e símbolos. O caminho

de Helen Keller até o símbolo é reconhecidamente uma das mais belas histórias de

aprendizagem na história humana. Ela sempre intrigou pedagogos do mundo todo a

investigar o exercício de uma criança surda e cega nos seus primeiros passos de escrita. No

entanto, a história de Helen Keller é uma pérola no pressuposto filosófico do símbolo e

ilustração da filosofia de Cassirer. Uma em especial, acontecida em uma tarde de abril de

1887 na cidade americana de Tuscumbia, estado do Alabama, descrita por sua professora

Sra. Sullivan, que abriu a janela para uma compreensão mais abrangente e prática da rede

simbólica:

“Tenho de escrever- lhe uma linha esta manhã porque uma coisa muito importante aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua educação. Aprendeu que tudo tem um nome, e que, o alfabeto manual é a chave para tudo o que ela quer saber. Hoje de manhã, quando se estava lavando, ela quis saber o nome da "água". Quando quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha mão. Soletrei "a-g-u-a" e não pensei mais nisso até depois do café da manhã...” (CASSIRER, 1994, p. 58)

                                                                                                                                       16  Helen  Keller,  americana  que  ainda  na  infância  ficou  cega  e  surda  em  decorrência  de  uma  febre,  nascida  em  1880  no  Estados  Unidos  tornou-­‐se  o  que  alguns  chamaram  de  “um  milagre  humano”  por  aprender  a  se  comunicar  e  se  tornar  ativista  em  direitos  humanos.  

39    

   

Aprender que cada coisa tem um nome foi sua primeira descoberta para apontar

sinais de cada elemento. Helen Keller é uma criança criada em uma cidade interiorana com

o desafio de aprender a nomear o mundo no qual está inserida. Anne Sullivan encontra

Srta. Keller recomendada por trabalhos recentes de alfabetização com crianças em

situações semelhantes. Não há fala, nem sentido. Há um sinal, uma referência imediata a

um objeto, ao que temos defendido em Cassirer. Fazer referência à palavra “água” não é

um exercício de atribuir sentido as coisas e é possível afirmar que o seu movimento de

referir-se ao mundo, neste caso, é mais semelhante à atividade dos animais que

propriamente a atividade humana. Não há interação da menina com o mundo

“propriamente humano”, pois o primeiro passo de Helen Keller na nomeação de seu

mundo é uma pantomima de sinais. Uma demarcação conceitual deve ser reforçada neste

momento. A exata experiência de atribuir sinais as coisas, ou “índices” como prefere o

biólogo Terrence Deacon, em sua obra The Symbolic Species (As espécies simbólicas), é

apontada por Cassirer:

“outros animais usam uma variedade de sinais para se comunicar. O macaco-vervet dá um determinado grito para indicar que uma águia está se aproximando pelo céu e outro para indicar que um jaguar se aproxima pelo chão. Mas tais gritos não são parte uma linguagem. Cada grito, argumenta Deacon, é um “índice”; aponta pra um objeto determinado num momento determinado e nunca é usado na ausência desse objeto. O índice é uma forma de transferência trancada em seu objeto. Muitos animais podem emprega-lo e é tremendamente útil. Mas o índice não é um símbolo, que pode construir trocadilhos, abstrações, ficções e mentiras” (CASSIRER, 1994, p.61)

A expressão “trancada em seu objeto” é possivelmente a melhor forma de

representar a condição de Helen até aquele momento. Ela vivia alheia à rede simbólica

(como bem disse Cassirer) e acessava a realidade no contato imediato, sem intermediações

dos símbolos, o que excluia a possibilidade de atribuir significados diferentes as coisas. A

educação da menina mostra de maneira clara a transição do uso de sinais para designar

objetos para o uso simbólico das palavras. O momento desta transição é narrado pela Sra.

Sullivan logo em seguida ao momento em que Helen toca na água. A descrição é lembrada

por Cassirer. Embora longa, precisa ser transcrita com a riqueza de detalhes que a

experiência merece:

40    

   

“[Mais tarde] saímos para ir até a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela debaixo da bica enquanto eu bombeava. Quando a água fria correndo-lhe pela mão pareceu assombrá-la. Deixou cair a caneca e ficou como que transfixada. Uma nova luz espalhou-se por seus rosto. Soletrou “água” varias vezes. Então deixou-se cair e perguntou o nome dele e apontou para bomba e para a treliça.”(CASSIRER, 1994, pg. 61)

Ora, o que acontecera com Helen Keller que a deixara transfixada e iluminara o seu

rosto? Ler a descrição é como ser lançado para uma cena em que uma menina é

transportada a outro universo, como se a porta de uma nova dimensão tivesse sido aberta e

um mundo cinza tivesse sido colorido gradativamente pelo movimento de descoberta em

cada objeto que tocava. Não era a descoberta de uma palavra que a espantava, mas

aplicabilidade universal dela, onde a palavra “água” não estava mais trancada em um

objeto, mas na multiplicidade de significados. Antes desta experiência na casa das bombas,

não parecia haver para ela nenhuma diferença entre a água contida na caneca e a que

jorrava pela treliça, assim como não havia diferença entre a água e a caneca: o vasilhame e

o conteúdo era um único objeto – algo para beber –, e ela não conseguia conceber que

“água” existisse independentemente do objeto em que a bebia. Na verdade, sua mente

trabalhava por indicação. Existe a “caneca d’água”. Água em outro contexto requer algum

outro sinal (tal como a experiência de Deacon com os macacos-vervet). No famoso

episódio junto ao poço, contudo “o mistério da linguagem foi revelado a mim”, disse Helen

Keller 17 , que entendeu com clareza (ou começou a entender) via o tato, tanto a

particularidade quanto a generalidade das palavras. Água, então, era a palavra para água na

caneca e água no poço e a água no rio e no oceano. Uma “caneca” podia conter água, leite

ou limonada, e havia canecas de formas e tamanhos diferentes, mesmo assim, o nome

“caneca” aplicava-se a todas”18.

Para Cassirer, a aplicabilidade geral é uma característica exclusiva do símbolo. Para

ele, Helen Keller “teve de entender que tudo tem um nome – que a função simbólica não

está restrita a casos particulares, mas é um princípio de aplicabilidade universal que abarca

todo o campo de pensamento humano (CASSIRER, 1994. pg. 62). Ele comenta o fato de

Helen Keller aprender a usar as palavras não como meros sinais ou signos mecânicos, mas

                                                                                                                                       17  Esta questão será aprofundada no terceiro capítulo do trabalho na relação da forma simbólica da linguagem na relação com a atribuição de sentido, tendo o caso de Helen como exemplo mais ilustrativo desta relação  18 KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008, p.15

41    

   

como um instrumento inteiramente novo de pensamento. Um novo horizonte se abre a

partir deste momento, como uma criança que corre à vontade por uma área

incomparavelmente mais ampla e livre.

A função simbólica atua articulando a multiplicidade de sentidos nesse novo

universo de Helen Keller, por meio da linguagem. O efeito simbólico de Cassirer é

evidenciado em um exemplo absolutamente ilustrativo na experiência humana. O efeito

simbólico transforma a condição da Helen Keller com expressões de animalidade (pelo

conceito debatido até aqui) para a entrada no “mundo ideal” humano. Cassirer, dentro da

perspectiva da cultura não é o único a presenciar o efeito simbólico na humanidade. O

sociólogo Levi Strauss também estrutura sua análise, não apenas no efeito simbólico, mas

na eficácia desta função da construção de uma cultura.

42    

   

1.5.2 EFICÁCIA SIMBÓLICA EM LEVI STRAUSS

Compreender o pensamento de Cassirer na experiência de Helen Keller é

absolutamente esclarecedor. A garota estadunidense foi em direção, na teoria de Cassirer,

de uma rede simbólica já estabelecida e a acessou por um “funcionamento” que uma

criança sem as limitações de Helen Keller acessaria com naturalidade. No sentido de lançar

luz sobre a rede simbólica proposta por Cassirer, há uma reflexão interessante e pertinente

à proposta deste trabalho, que é o trabalho de Levi Strauss com a relação do homem, do

símbolo e da cultura em sua obra Antropologia estrutural. Nessa obra, ele se aplica a

investigar a atuação de feiticeiros e xamãs em comunidades indígenas nas Américas,

visando principalmente pensar as formas de atuação desses guias espirituais em processos

de possíveis curas de doenças sofridas por indivíduos destas comunidades. A função

simbólica em Strauss receberá outras tonalidades e expressões19.

Com o objetivo de investigar a intervenção de um xamã na comunidade indígena, o

autor toma como ponto de partida da sua reflexão o texto de Walter B. CANNON (1942)

intitulado Voodo death. Levi Strauss investiga uma experiência tida como sobrenatural por

parte de um membro de uma comunidade indígena, acometido de um suposto dano /

doença que apenas poderia ser superado com a intervenção de um xamã, por conta da

crença de que a raiz da doença seria um feitiço. O enfeitiçamento sofrido pelo indivíduo

em determinada cultura se apresenta como doença psicossomática – como um trauma,

medo ou cólera. A vítima é persuadida de um determinado malefício pelo grupo, familiares

e tradições que o consideram maldito, “não apenas morto, mas fonte de perigo para o

círculo” (STRAUSS, 1989, 194). O indivíduo é conduzido a uma série de privações que

gera uma “dissolução da sua personalidade social”, com sérias consequências à sua

integridade física. O maldito em questão, interpelado por essa realidade espiritual, é

pressionado pelo grupo de que está doente / enfeitiçado e levado ao feiticeiro, que se aplica

a rituais minuciosos para sanar o problema em questão. O autor reforça a eficácia da magia

do feiticeiro, dizendo que ela está sustentada em um tripé:

                                                                                                                                       19  Os comentários que se seguem estão baseados nos capítulos IX e X, sendo respectivamente “O feiticeiro e sua magia” e “A eficácia simbólica”, com objetivo de extrair de que forma o pensamento simbólico é parte da leitura social que Strauss faz desses povos.  

43    

   

“a eficácia da magia implica a crença na magia, e que esta se apresenta sobre três aspectos complementares: existe, inicialmente, a crença no feiticeiro, na eficácia das suas técnicas; em seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do feiticeiro, finalmente, a confiança e suas exigências na opinião coletiva, que formam à casa instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aquele que ele enfeitiça” (STRAUSS, 1989, p. 194-195)

Interessante observar que o poder da crença na eficácia da intervenção do feiticeiro

não é colocado em uma relação lateral feiticeiro-doente, mas reforçada por um terceiro

elemento: a opinião coletiva. O autor reforça esse tripé, apresentando três exemplos de

como esse movimento feiticeiro-doente-coletivo está diretamente relacionado à validação

da magia do feiticeiro diante do grupo e o caráter simbólico de sua intervenção.

No primeiro exemplo, Strauss viaja até a tribo dos Nambikwara nas nascentes do

rio Tapajós, aqui mesmo no Brasil, em 1938. Relata que a tribo era organizada por um

chefe civil e um feiticeiro. Em determinado momento, o feiticeiro não apareceu no

acampamento (era um tribo nômade) à hora habitual. O grupo foi tomado de desespero,

mulheres que choravam, um estado de temor entre o coletivo imaginando que poderia ele

ter sido tragado por algum animal e o grupo evocava as consequências trágicas do

desaparecimento do seu feiticeiro. Após um longo período de espera, por volta das dez da

noite, um grupo sai à procura do seu dignitário e o encontra a duzentos metros de distância

do seu acampamento “silenciosamente acocorado, tiritando no frio noturno, desgrenhado e

privado (os Nambikwara não usam outras vestimentas) de seu cinto, colares e pulseiras”

(STRAUSS, 1989 p. 196). O feiticeiro lhes contara uma história sobre uma rápida

“viagem” (pequeno trajeto) realizada por intermédio de um trovão, como em um

teletransporte, causando uma comoção inicial a esse pequeno grupo sob a ótica de que, se

há algo de sobrenatural para acontecer, justifica-se que aconteça ao feiticeiro e seria aquela

uma prova concreta do poder sobrenatural que lhe fora entregue. Passado um período do

acontecido, uma nova versão da história foi evocada. Sendo o feiticeiro trazido de uma

tribo vizinha, e estando submetido a um outro chefe civil, utilizava a história do trovão

para motivações questionáveis, visando interesses particulares de sua tribo, o que

evidentemente fez o povo (não mais aquele pequeno grupo) da tribo Nambikwara

questionar a veracidade do fato após passado um tempo da experiência.

44    

   

Após a narração deste fato, Strauss analisa que: tanto a experiência mágica

“vivenciada” pelo feiticeiro e validação daquele pequeno grupo, quanto à do povo em

questionar a veracidade das informações contadas na história após a reflexão, são

experiências que coexistem, principalmente se analisadas do ponto de vista da experiência

individual (pequeno grupo) e coletiva (povo):

“As duas explicações são logicamente incompatíveis, mas nós admitimos que uma ou outra possa ser verdadeira, segundo o caso: como são igualmente plausíveis, passamos facilmente de uma à outra, segundo ocasião e momento, e, para muitos, elas podem coexistir obscuramente na consciência. Essas interpretações divergente, qualquer que possa ser sua origem intelectiva, não são evocadas pela consciência individual ao termo de uma análise objetiva, mas antes como dados complementares, reclamados por atitudes muito fluídas e não elaboradas que, para cada um de nós, tem um caráter de experiencial. Essas experiências permanecem, entretanto, intelectualmente informes e afetivamente intoleráveis, a não ser que se incorporem a tal ou qual esquema presente no grupo e cuja assimilação é o único meio de objetivar os estados subjetivos, formular impressões informuláveis e integrar experiências inarticuladas em sistema” (STRAUSS, 1989, pg. 198)

O regresso do feiticeiro com sua história absurda é fruto de uma esquematização

individual de um pequeno do grupo, criada no entorno da figura do feiticeiro que validava

o seu caráter sobrenatural. No entanto, a mesma história contada na experiência de um

povo, que sabia de suas motivações escusas, apresentou-se como um ato dissimulado, ou

seja, a experiência não ecoa no universo simbólico construído ali. Até aqui, a crença na

magia do feiticeiro não é apenas fruto das suas próprias mãos e o eco em pequeno (e

individual) grupo, mas depende de uma opinião coletiva construída pelo povo (como já

dito pelo autor). A articulação da experiência dentro de um sistema proposto pelo grupo é

determinante para estabelecer o sentido do fato em si. Se individualmente não é possível

formular uma lógica plausível para a experiência, coletivamente ela é articulada e as duas

histórias podem coexistir. STRAUSS (1989, pg.198) ilustra em um exemplo prático sua

ideia de articulação individual e coletiva.

Se no momento de uma guerra o povo de um país aponta para uma lógica

sistematizada sobre a guerra como elemento último da libertação nacional e age em favor

deste fato, é absolutamente possível que, se o indivíduo se encontra com o negociante de

45    

   

canhões que porventura está tirando vantagem da guerra e ouve dele a real

intencionalidade de uma guerra para o lucro financeiro do vendedor, sua posição sobre a

guerra se fará conflitante em relação à liberdade que ela trará. No entanto, com a comoção

que a guerra traz ao povo e o indivíduo, ainda que saiba das motivações escusas, o autor

abre a possibilidade que as duas interpretações coexistam no mesmo individuo. Assim, o

mesmo indivíduo que desconfiava da guerra pela experiência com o negociante de canhões

estará em praça pública bradando a vitória e a liberdade. O primeiro exemplo do autor é

suficiente para encontrar a questão de como a experiência coletiva é estruturada por um

sistema de significação próprio, construído por um povo e, ainda que um indivíduo tenha

uma experiência contrária com determinada temática, o indivíduo agirá em favor do

sistema de significação dado pelo povo. Esta estruturação coletiva coexistirá com sua

percepção individual. No exemplo dado, ainda que o indivíduo questione o poder

sobrenatural do feiticeiro, a experiência coletiva validará para si mesmo o caráter

sobrenatural do feiticeiro.

A partir de então o autor recorre a um segundo exemplo:

“Esses mecanismos se esclarecerão melhor à luz de observações já antigas, feitas entre Zuni do Novo México pela admirável investigadora M. C. Stevenson. Uma mocinha de doze anos fora presa de uma crise nervosa, imediatamente depois que uma adolescente lhe agarrara as mãos; este último foi acusado de feitiçaria e arrastado diante do tribunal dos sacerdotes” (STRAUSS, 1989, p.199)

A história, descrita pela pesquisadora STEVENSON (1905), é de um feiticeiro

criado pela opinião coletiva. Para o autor belga, o jovem adolescente que na tentativa de

explicar o ato citado se debateu contra o tribunal em vão, e que quando se percebe em uma

situação difícil com argumentos desacreditados por sua platéia em questão, improvisa uma

longa narrativa sobre as circunstâncias que havia sido iniciado na feitiçaria. A resistência

dos juízes em aceitar seus argumentos caminhou por uma longa jornada de investigação,

que motivou o jovem a passar por simulação de uma cura, plumas mágicas herdadas dos

antepassados místicos e muros quebrados na busca de instrumentos mágicos. O jovem após

um exaustivo processo de julgamento entre provas e contraprovas de sua “magia” voltou à

praça pública, “onde teve de repetir toda a sua história, que enriqueceu com um grande

46    

   

número de novos detalhes, terminou por uma peroração patética onde lamentava a perda de

seu poder natural. Assim tranquilizados, seus auditores consentiram em libertá-lo”

(STRAUSS, 1989, pg. 201).

Strauss questiona em que ponto o jovem não se tornara efetivamente um feiticeiro?

“Que a mocinha sare após administração do remédio, e que as experiências vividas no

curso de uma prova tão excepcional se elaborem e se organizem, nada mais é necessário,

sem dúvida, para que os poderes sobrenaturais, já reconhecidos pelo grupo, sejam

confessado definitivamente por seu inocente detentor” (STRAUSS, 1989, pg.202). O

feiticeiro é criado pelo grupo e o próprio jovem passa acreditar no fato, a origem não está

no indivíduo, mas no sistema coletivo de uma estrutura previamente estabelecida. Neste

momento vale um olhar para a atividade simbólica, a articulação simbólica construída pelo

grupo no julgamento do rapaz. O grande julgamento não tem por fim a justiça, mas a

validação de um sistema mágico onde a escolha não é entre este e outro sistema, mas entre

o sistema mágico e nenhum sistema. Ou seja, a desordem. O adolescente chegou a se

transformar, de ameaça para a segurança física de seu grupo, em garantia a sua coerência

mental. O eficácia do símbolo neste caso, se dá pela necessidade de articulação de uma

experiência em um todo coerente.

Levi Strauss, aponta para mais uma expressão da eficácia simbólica como efeito de

organização de uma cultura. No terceiro exemplo, temos a ocasião onde a criação de um

feiticeiro tem o seu apogeu no texto do autor na experiência do Quesalid que, impelido

pelo desejo de descobrir fraudes e pela curiosidade de investigar a dinâmica de

funcionamento dos grupos com os xamãs, aventura-se a aprender suas práticas.

“Um certo Quesalid (tal é, ao menos o nome que ele recebeu quando se tornou feiticeiro) não acreditava no poder dos feiticeiros, ou, mais exatamente, dos xamãs, visto que este termo convém melhor para denotar um tipo de atividade específica em certas regiões do mundo; impelido pela curiosidade de descobrir suas fraudes, e pelo desejo, de desmascará-los, pôs-se a frequentá-los, até que um deles se ofereceu para introduzi-lo em seu grupo, onde seria iniciado e tornar-se-ia rapidamente um dos seus” (STRAUSS, 1989, pg.203)

Iniciado no grupo, o Quesalid vai aprendendo as práticas culturais e atividades

daquele povo. Após um processo de treinamento, em pouco tempo se torna feiticeiro. No

47    

   

seu processo de treinamento para a prática dos xamãs, não demorou a descobrir os

“simulacros” e subterfúgios das práticas xamanísticas. Segundo ele, a grande magia dos

xamãs eram realizadas com penas de aves misturadas a sangue humano que formariam

uma “gosma” ensanguentada, explicando: cada vez que um doente acionava o xamã, o

feiticeiro aplicava a técnica de amassar as penugens de seu cocar e a colocava em contato

com sangue humano gerado por um corte interno em sua boca. Após proferir as palavras

mágicas, o xamã simulava a extração do “mal” simbolizado na “gosma” ensanguentada.

Quesalid, em fase final do processo de formação como feiticeiro, foi convidado por uma

família para aplicar a cura em um doente que sonhara com sua figura como salvador que

traria a cura. O descrente recém-formado feiticeiro vai até a casa do rapaz e aplica a

técnica aprendida. O rapaz em questão foi surpreendentemente curado. O sucesso do

Quesalid foi estrondoso. O “novo” feiticeiro teria ainda outras oportunidades de testar a

eficácia de seus métodos, desmascarar outros xamãs tidos como impostores, e após um

tempo, o então incrédulo se tornara um feiticeiro “orgulhoso de seus sucessos”. Sob a

perspectiva do Quesalid, o autor concluiu que ele não se tornou um grande feiticeiro

porque curava os seus doentes, ele curava os seus doentes porque se tinha tornado um

grande feiticeiro (STRAUSS, 1989, pg. 208). O feiticeiro é um símbolo. Parece que nesse

momento a atividade simbólica apresenta diferentes manifestações e significações para o

tripé proposto por Strauss (feiticeiro-doente-público). Se, por um lado, para o doente o

feiticeiro é um símbolo de cura, conforto, resolução de uma determinada dificuldade para o

povo, por outro ele é sinônimo da validação de um sistema, de um processo mental /

intelectual estabelecido. O feiticeiro atua nesse cenário como agente que compõe uma

realidade estabelecida. Para o próprio feiticeiro, sua figura carrega a simbologia de um ser

mítico, representante de uma sobrenaturalidade perante o grupo que o conforta e o faz

acreditar que está, de algum modo, sendo intermediador de um processo de cura ou

libertação de algum mal, ou ainda de um sobressalto em relação a outras práticas

xamanísticas.

A “atividade simbólica” presente na obra Strauss, nas relações estabelecidas na

tribo e as “figuras” levantadas pelo povo, encontra seu eco no conceito de rede simbólica

de Cassirer (já descrito). São expressões culturais dadas pela arte, religião e mitos ali

48    

   

estabelecidos. A eficácia simbólica age como articulação de sentido para aquela cultura

que olha para os lados ou para cima, e articula seu universo de sentidos em elementos

externos ao indivíduo. O funcionamento do homem no sistema simbólico, debatido até

aqui, contribui para entender como o homem articula o sentido: do homem simbólico de

Cassirer, ilustrado na figura de Helen Keller, às experiências dos povos primitivos, de

Strauss. Estas são expressões desse processo. No entanto, há uma questão a ser

aprofundada, balizadora da proposta deste trabalho. Como que esse homem simbólico que

a tudo significa pode viver, na contemporaneidade, uma crise de sentido? Não seriam os

mesmos meios de articulação de sentido do homem contemporâneo os encontrados nas

tribos primitivas? Em busca desta questão uma formulação sobre o sentido mais amplo, da

vida, poderá contribuir na busca por respostas mais claras ou, ainda, perguntas com

melhores formulações.

49    

   

2. A PERGUNTA SOBRE O SENTIDO DA VIDA

2.1 A PROBLEMÁTICA DO SENTIDO DA VIDA NA MODERNIDADE

Posta a problemática do símbolo e o esclarecimento de Cassirer, complementada

pela visão de Levi Strauss, a segunda questão sobre o caso de Helen Keller nesse momento

assume ainda mais força. Apreender esse universo novo na experiência com Anne Sulivan,

e compreender o mundo e a cultura que está inserida, contribui de que maneira para sua

experiência? Como a sua experiência de alegria em abrir esta nova “janela da existência”

contribuiu para atribuir “sentido a sua vida?” Responder a esta questão de Helen Keller,

possivelmente seja fundamental para uma resposta sobre o funcionamento do homem na

crise de sentido contemporânea. Em busca desta resposta três caminhos serão, em vista do

texto aqui construído, necessárias: Primeira, uma demarcação do que seria esta crise de

sentido do homem; segundo, qual a relação entre homem e sentido da vida; e terceiro,

como seria possível ao homem estabelecer o sentido de vida diante de uma possível

ausência de sentido na contemporaneidade. Para compreender a primeira parte da questão,

o texto Modernidade e crise de sentido de Lima Vaz será uma importante referência. O

texto de Lima Vaz sobre a crise da civilização moderna está organizado em três momentos.

No primeiro momento introdutório, o autor empreende uma análise sobre o problema do

sentido, desde a sua concepção etimológica até uso moderno do termo para referir-se a

uma experiência existencial que, por sua vez, será sinalizada como o princípio fundante do

seu argumento.

Para o autor, o problema do sentido é caracterizado por sua importância e

abrangência no pensamento contemporâneo, e a tarefa de lançar luz sobre o conceito exige

considerar qual parte do problema será tratado. Esclarece que o desafio é não é o de

examinar os diversos aspectos da questão do sentido, mas o de situar essa questão no

contexto da reflexão sobre filosofia e cultura. Em particular, é o desafio de examinar a

trajetória conceitual seguida pelo tema do “sentido”, na acepção que denomina existencial.

Na leitura do autor, o uso filosófico do termo sentido traz em si uma polissemia que exige

cautela, uma necessidade imediata de identificar que tipo de sentido filosófico está sendo

50    

   

considerado e de explicitar seus diversos usos na trajetória do pensamento filosófico até a

modernidade VAZ (2002, p. 154).

Dois pontos são importantes para o autor no uso do termo “sentido” na linguagem

contemporânea: uma de maneira ordinária e outra de maneira filosófica. No primeiro

momento, chama de especificações mais vulgarizadas utilizadas na linguagem ordinária

como “sentido religioso”, “sentido moral” e outros exemplos que colocam o vocábulo

como uma expressão e força de linguagem. No segundo momento, Vaz delimita o campo

de estudo filosófico e se atenta a cada acepção técnica do seu uso na linguagem filosófica

contemporânea, considerando a lógico-linguística, a hermenêutica, a epistemológica e a

existencial. Há uma escolha de Lima Vaz neste momento, e seu critério é claro: ele escolhe

a lógico-linguística e a existencial por acreditar serem estas duas as acepções técnicas do

uso do sentido de maior abrangência no uso da sua expressão. Para ele, uma se configura

pelo significante e a outra pelo significado.

“A primeira vista ao sentido na sua face expressiva, a saber, na linguagem, enquanto essa se apresenta como corpo significante. A segunda, apoiando-se sobre a origem metafórica do termo sentido, tem em vista o seu conteúdo significado, enquanto exprime a inteligibilidade do objeto de acordo com o vetor teleológico no qual ele se situará na compreensão e na linguagem do sujeito. Esta ultima acepção pode ser dita existencial, pois nela o sentido abandona o campo neutro da acepção lógico-linguistica para penetrar no terreno da existência do sujeito, essencialmente orientada para os fins que ele se propõe ou para os quais naturalmente é movido. O sentido configura-se, então, como “sentido da vida” (sinn des lebens) ou “sentido da existência” (sinn des daseins). Já a acepção lógico-linguística cinge-se à estrutura semântica da linguagem na sua qualidade de lugar das significações e, por conseguinte, de lugar da elaboração do sentido” (VAZ, 2002, p. 156).

Ainda em caráter introdutório, Lima Vaz aponta entre as duas a que lhe desperta

atenção para a construção do seu argumento sobre a crise de sentido. Para o autor, estas

acepções são pontos de chegada de um longo caminho na história do pensamento

ocidental, e brevemente explicita a acepção lógico-linguística. Afirma que esta acepção

está presente desde a Idade Média, estando presente na filosofia moderna e encontrando no

século XX “o clima intelectual propício que tornou possível o seu pleno desenvolvimento

na filosofia da linguagem no século XX”. Para o autor, atualmente, é em torno desta

acepção que se concentra o interesse filosófico pelo problema do sentido. Após esta breve

51    

   

descrição, Vaz reflete sobre a acepção existencial visando o que chama o “céu histórico da

modernidade”. Na visão do autor, a acepção existencial inaugura a reflexão filosófica na

Grécia e não tem por objeto inicial a linguagem, mas sim o ser, em suas diversas

manifestações, “seja ele o cosmos, a vida, o homem, o divino, ou próprio ser na sua

unidade absoluta, como na especulação eleática”. Para VAZ (2002, pg.156), a questão do

ser em torno do problema do sentido só se mostrará de maneira explícita a partir do

questionamento socrático. O problema da definição da areté como forma de vida melhor e

orientada para o Bem é considerado o momento inicial da questão do sentido em sua

acepção existencial.

Vaz resgata a proposta da reflexão filosófica grega (orientada para o Bem) para

além uma mera demarcação histórica sobre o fundamento da sua questão, mas faz uma

importante ponte de transição de uma reflexão baseada no homem do mundo antigo para

uma questão existencial do homem moderno. A reflexão de Vaz não é um caminho

arqueológico de Sócrates aos nossos dias sobre a questão existencial no problema do

sentido, mas as transformações sofridas na orientação do homem sobre o que responde ao

sentido de sua vida, sob o céu histórico da modernidade.

Uma análise importante que acreditamos ser uma contribuição para a leitura de Vaz

é que, até o advento da modernidade, as questões de sentido eram orientadas a algum

aspecto transcendente ao homem. O sagrado respondia ao todo do universo de significados

(como passível de observação no universo religioso) ou, no modelo grego, proposta sob a

busca do bem. A resposta para o sentido da vida estaria até este momento “trancada” a uma

única possibilidade, ou a um universo mais restrito de significação. Após a apreciação da

filosofia de Ernst Cassirer, junto com a polissemia de significados nas redes simbólicas, a

resposta de um sentido único parece não abarcar mais o desafio proposto pelo trabalho. O

que era até aquele momento articulado em um sentido, passa ser agora em sentidos. Para

Vaz, o céu da modernidade poderá ser o grande momento de transformação deste

movimento do homem em favor de uma polissemia, e pode lançar luz sobre estas

transformações ocorridas na modernidade. Vaz mantém na sua analogia astronômica do

“céu da modernidade” aquilo que a revolução copernicana representa em Kant.

52    

   

A revolução copernicana é utilizada como ilustração para se pensar o impacto da

transformação nas coordenadas do universo mental do homem ocidental (de uma

referência única para uma polissemia de sentidos) em uma transição de referenciais. Vaz

explicita este movimento da seguinte forma, finalizando seu processo introdutório de

delimitação do problema:

No primeiro caso, o sol passa ocupar o centro da descrição geométrica do universo. No segundo caso, a representação virá a ocupar o centro do universo mental. Esse novo regime gnosiológico provoca o retraimento do ser, privando-o da sua amplitude analógica e instaurando um novo sistema de referências intelectuais no qual o problema do sentido, na sua acepção existencial, deverá ser profundamente reformulado. (VAZ, 2002, p. 156).

A mudança de referenciais pede um esclarecimento sobre quais referenciais foram

alterados até chegar-se à problemática do sentido em um uma leitura na modernidade, o

que acontece tendo como base a acepção existencial. Para o autor, o homem sofre na

modernidade uma nova forma de obter conhecimento que não mais está centralizada no

objeto, mas agora no sujeito, e o problema da representação destes objetos apresenta-se

como centro de reflexão deste novo universo mental (voltado para o sujeito). É nele que a

mudança estrutural passa a ser debatida. No apogeu da modernidade, surge para o autor a

operação de um novo regime gnosiológico (conhecimento intelectual humano) que assume

papel de protagonismo em torno da problemática da representação. A partir de uma

exposição desde Sócrates até Santo Agostinho (que não receberá atenção nesta

investigação por uma questão de extensão), Lima Vaz introduz a ruptura entre a

representação e o ser como mudança de foco na forma de conhecimento do homem do

mundo antigo para a realidade moderna.

“A necessária representação do objeto do conhecimento, postulada pela não-indentidade física entre o cognoscente e conhecido, permanece, portanto, como elemento subordinado à primazia do ser na gnosiologia antigo-medieval pelo menos até o século XIII. Essa primazia determina igualmente a prioridade ontológica do sentido existencialmente considerado, o que significa a prioridade da verdade objetiva sobre a sua representação subjetiva e sobre o sentido da existência que nela tem seu fundamento”(VAZ, 2002, p.157-158)

53    

   

O caminho “objetivado” do conhecimento do ser até o século XIII conhece o

“subjetivado” pela representação. A ontologia contida no modelo gnosiológico antigo-

medieval conhecerá, a partir do Renascimento, um movimento que transformará, na

concepção de Lima Vaz, a forma como o homem organiza seu universo mental. Para o

autor, o momento da ruptura entre a representação e o ser dar-se-á ao longo de um

complexo movimento de transformação nos fundamentos da vida espiritual e intelectual do

Ocidente. Lima Vaz chama a atenção para um marco na problemática da representação

ocorrida na chamada revolução no século XIV, referente ao novo tempo histórico vivido

pelo Renascimento, em que aparece para o autor como a primeira expressão da

modernidade. Neste momento, o autor aponta para a quebra de referenciais sofrida pelo

homem, não mais na alegoria astronômica – da revolução de Copérnico –, mas como um

edifício cujas estruturas de uma cultura antigo-medieval estão abaladas (ou “postas em

questão”, para usar a expressão do autor). É uma “inversão que passa a dar primazia à

representação no regime do conhecimento, a ela submetendo a face objetiva – o ser – do

objeto conhecido” (VAZ, 2002, p.158). Decifra o caminho do conhecimento e da

representação em sua evolução histórica até o advento da chamada modernidade, e atribui

ao êxito espetacular desta teoria há sete séculos apontando para o novo ciclo de civilização

que iria denominar-se “civilização moderna” ou “modernidade”. VAZ (2002, p.161),

escolhendo uma lente para olhar o problema da modernidade – o conhecimento – pôde

observar que o homem moderno assumiu o projeto de edificar um mundo simbólico

submetido a um sistema de medidas imanentes ao próprio homem. Neste cenário do século

XIV, o triunfo da representação sobre o ser consolida a profunda mudança na estrutura do

conhecimento intelectual em novos fundamentos desde a filosofia antiga.

A relação entre sujeito e objeto emerge então como o grande problema na teoria da

representação no que tange à ordem do conhecimento. A representação deixa de atuar,

conforme sugeria o olhar medieval, como um sinal que apontava para uma única direção

possível e é debatida na medida em que o sujeito cognoscente e o objeto no seu ser vai

sendo conhecido, abrindo assim um campo vasto de exploração em diversas perspectivas

que Vaz chama idealistas. Da filosofia medieval explorada por A. de Muralt a Ernst

Cassirer na contemporaneidade, o homem entra em um novo ciclo de civilização, e todos

54    

   

os grandes domínios das atividades humanas começam a ser redefinidos e reordenados

segundo a nova matriz de conhecimento. Interessante notar que neste momento o autor

alcança na sua construção uma fortaleza de argumento na representação como forma de

conhecimento que é chave para a compreensão da modernidade. Desde o esclarecimento

histórico na filosofia antiga, passando pelas sugestões de construções medievais até o

ponto de virada do século XIV, Vaz encontra, neste momento, terreno fértil para explorar

em cada área da atividade humana (ética, social, política) as implicações desta teoria de

representação moderna.

O autor escolhe três grandes formas de conhecimento propostas nos moldes

aristotélicos como fundo da sua discussão: teorético, prático e poiético. Vaz explica as

formas de conhecimento como sendo o teorético e prático tendo como objeto,

respectivamente, o ser (ousia) das coisas investigando e contemplando na sua verdade, e o

agir virtuoso (héxis, areté) segundo o costume (ethos), descrito e compreendido na sua

bondade. Já o conhecimento poiético dirige o fazer (poiesis) de objetos segundo sua

utilidade. Com estas três concepções de conhecimento, diante da primazia da

representação, há, para Vaz, um campo ilimitado de possibilidades para o sujeito referir-se

ao objeto. Um novo estilo de trabalho teórico é inaugurado para o autor, por meio de uma

forma de construtivismo que submete o objeto aos procedimentos operacionais definidos e

estabelecidos pelo próprio sujeito (VAZ, 2002, p.163). Neste campo, o ambiente mais

propício surgiu para o conhecimento da Natureza e o desenvolvimento do conhecimento

científico, de uma maneira diferente ao desenvolvido até ali, criando uma revolução

técnica com um novo mundo de objetos. Esta revolução, essencialmente poiética, com a

primazia da representação sobre o ser, trouxe na visão de Lima Vaz uma consequência:

“A reordenação radical das linhas de inteligibilidade de com que o homem pensa e interpreta a realidade: ele passa a estatuir normas, valores e fins de acordo com os princípios axiológicos por ele mesmo estabelecido e que atendem sobretudo à satisfação das suas necessidades naturais ou artificialmente suscitadas. E ainda, ele opera uma inversão completa da direção do vetor metafísico do conhecimento, orientado-o para a imanência do próprio sujeito, ali onde se desenrola a laboriosa produção do objeto.” (VAZ, 2002, p.164)

55    

   

As implicações destas consequências serão amplamente debatidas na etapa de

fechamento do ensaio. Neste momento, Lima Vaz se ocupa em esclarecer como esta nova

forma de conceber o conhecimento na primazia da representação, da relação entre sujeito e

objeto, da inversão completa, da reordenação radical, se expressa no que denomina

“grandes vertentes teóricas” que configuram o terreno cultural da modernidade: ciência,

ética, política e filosofia. Para o autor, o modelo poiético mostrou-se eficaz no trato das

questões relacionadas à Natureza, e contribuiu de maneira significativa para o

desenvolvimento do método empírico-formal, alcançando resultados inquestionáveis no

campo da ciência. Ela atribui ao método o caráter de elemento mais poderoso na criação da

tecnociência, alterando substancialmente o mundo humano como conhecemos e os hábitos

dos homens. Além desta contribuição para a Natureza científica, também proporcionou

enormes avanços para as ciências humanas. Nesse cenário de desenvolvimento do método

empírico-formal pelo modelo poiético, onde a Natureza é desenvolvida e avanços ocorrem

nas ciências humanas, Vaz encontra no desenvolvimento destas últimas uma crise

epistemológica, pois a mesma exatidão obtida nas ciências da Natureza não se aplica às

ciências humanas. A partir de então, a chave-mestra para o acesso ao problema do sentido

aparece no argumento do autor, porque, se esta dificuldade é explícita em lidar com a

representação no trabalho teórico das ciências humanas, as dificuldades se agravam nos

“saberes normativos da ética”, na política ou mesmo na metafísica, sendo esta última

fundamental na visão do autor. A ponte para o problema do sentido está posta e o autor

expõe o caminho até a problemática da seguinte maneira:

“Mais graves, no entanto, apresentam-se aqui as dificuldades, já que se trata de uma reinterpretação radical desses conceitos matriciais que regem, de um lado, o conhecimento da ação humana livre, mas constitutivamente ordenada ao universo do bem, dos valores e dos fins e, de outro, o conhecimentos dos primeiros princípios do ser. É nesse contexto que irá delinear-se a profunda crise do sentido que acompanha a formação da modernidade e que hoje reconhece no niilismo seu fruto mais legítimo” (VAZ, 2002, p.166)

Lima Vaz a partir deste momento pretende delimitar a expressão da crise de sentido

no mundo moderno valendo-se da questão da representação. Tendo por longo o caminho a

respeito da totalidade do pensamento ético-político e do pensamento metafísico na história

intelectual do ocidente, assinala ser importante para a discussão apresentar o fundamento

56    

   

gnosiológico sobre o qual teve lugar a “revolução copernicana” (aos moldes de Kant, a

mesma já citada anteriormente neste mesmo capítulo que operou uma inversão nas

direções fundamentais do universo simbólico do homem ocidental). Diante do campo

ético-político e metafísico, as mudanças das coordenadas humanas aparecem no argumento

do autor como a expressão do não sentido (ou da negação do sentido), e Lima Vaz, afirma

ser esse um dos sinais mais inquietantes da crise na modernidade.

Uma pausa no raciocínio do autor é importante neste momento. Como seria

possível um não sentido em um homem que a tudo atribui sentido o tempo todo? A

evidência de uma mudança do eixo referencial do homem, que atribui sentido em objetos

distanciados, assume agora o próprio homem como articulador de sentido, e neste processo

a crise de sentido se manifesta. O que terá o homem no lugar do sentido que anteriormente

era atribuído para além de si?

O autor reforça que a questão do sentido é, para o homem, suscitada pela

necessidade de traduzir a verdade do ser na verdade do conhecer, “onde o sentido desenha

a face humana da verdade, e nossa aspiração inata é a de que o sentido que damos às

proposições que enunciamos e, por elas, às coisas e aos eventos correspondam a verdade

do seu ser”. Se o sentido delineia a verdade do ser para homem, essa construção terá por

resultado uma polissemia de sentidos. O autor afirma que: “Descobrir o sentido na floresta dos sentidos possíveis é, pois, a tarefa por excelência do ser humano enquanto portador do logos, pois só a ele, aberto constitutivamente ao ser e a verdade, é oferecido o supremo risco de enunciar um sentido verdadeiro e, assim, de interpretar razões do ser em razões do seu próprio viver” (VAZ, 2002, p.167)

A problemática da crise de sentido para o autor transita agora sob a forma da

interpretação do ser a partir da perspectiva do próprio homem (sujeito). Lima Vaz, após

essa conclusão embrionária, mergulha seu argumento novamente no mundo antigo. Aponta

a relação dialética entre verdade, existência e sentido como a origem da razão ética nos

tempos socráticos, como a ciência do que denomina o verdadeiro Ethos, quando a vida

vivida de acordo com o bem recebe o predicado de vida sensata. Vale dizer, vida segundo a

razão “do melhor” ou do “mais justo”. No movimento de leitura dos gregos, o autor

encontra um caráter exemplar para a leitura da nossa própria crise da modernidade, no

movimento da operação lógica que transforma “a produção humana do sentido em fábrica

57    

   

da aparência e do não-sentido desde o momento em que, tendo rompido seu vínculo com o

ser, passa a constituir-se paradoxalmente em matriz do não-ser” (VAZ, 2002, pg. 168). Um

estatuto gnosiológico é fundado nas diversas teorias da representação com uma poderosa

instrumentação epistemológica nas formas diversas com que se apresenta o modelo

poiético do conhecimento, onde a razão tem por visada maior o mundo dos fenômenos,

sendo o sujeito o protagonista teórico típico do trabalho da razão moderna (VAZ, 2002,

p.169).

Reforça Vaz que o homem recebe a metafísica da subjetividade como a filosofia

própria da subjetividade, e nesse cenário o sujeito cumpre o papel de hypokeimeno, de

substância primeira, que sustenta todo o edifício simbólico da cultura moderna. Ela

encontra no sujeito sua unidade profunda, e na visão do autor, neste momento manifesta-se

uma progressiva oposição entre sujeito e razão que resulta na dramática experiência do

não-sentido. O sujeito, a partir de então, vê-se impotente e desamparado em face do

domínio sempre maior exercido sobre o mundo da vida pela razão instrumental sistêmica.

Vaz delineia os passos da liberdade do sujeito na construção de um universo de

representações, a busca pelo mundo dos fenômenos que conduziram a mudança do

referencial do ser do objeto para o sujeito. O autor entende ainda que a crise de sentido da

modernidade está neste movimento da poiesis para além dos seus limites tecno-científicos:

“Não lhe resta senão submeter-se a esse domínio e tentar a paradoxal “desconstrução” de si mesmo, celebrando o triunfo do Leviatã lógico-estrutural, produzido pela sua própria razão no uso de sua função poiética. Tal a face mais visível da crise da modernidade. Ela delineia justamente como consequência da extensão indevida do modelo poiético ao âmbito da teoria e da práxis, onde deveria prevalecer outra forma de conhecimento, tendo como reto exercício a contemplação da verdade do ser e a realização da bondade da vida” (VAZ, 2002, p.170)

Para Vaz, a problemática desta “extensão” poiética apresenta uma dificuldade mais

latente na práxis do homem moderno, e avalia essas implicações nas duas grandes regiões

do universo humano que exigem caminhos diversos de exploração a fim de obter uma

compreensão possível: a natureza e a liberdade. Considera a Natureza o campo das coisas

mensuráveis, razão matemática, em que o modelo poiético como forma de conhecimento

se apresenta de maneira extremamente fecunda. No entanto, a liberdade (como campo

58    

   

inteligível da práxis) não pode ser mensurada e submetida a cálculo da razão. Para o autor,

sua essência é a orientação para o bem. E é no curso do seu movimento que o sentido se

constitui como sentido da vida, devendo nele transluzir a verdade do ser que aponta para o

bem, sendo a escolha pela liberdade no modelo poiético o bloqueio que seria inato do

homem para a direção do bem VAZ (2002, p.171). Para Lima Vaz, a experiência da

liberdade do homem ocidental na modernidade, como centro da história destes tempos

modernos, aponta para o homem uma experiência conflitante de duas instâncias. Na

primeira, a liberdade se apresenta como o lugar de nascimento do sentido na medida em

que, operando em sinergia com a razão no seu uso contemplativo, torna possível o

exercício da inteligência espiritual na qual ela é, fundamentalmente, consentimento ao

bem, sendo consentimento ao ser. Na segunda perspectiva, é também o lugar da gênese do

não-sentido onde o indivíduo se lança em um espaço incapaz de apreender o verdadeiro

sentido da liberdade e se aliena. Este momento acontece para Vaz quando o movimento

dialético entre a liberdade e razão inverte a direção do seu movimento (em favor do bem).

A incoerência desta crise, sintetiza Vaz, é que o homem vive a contradição de ser um ser

finito e situado para uma pretensão ontológica infinita, onde torna-se ser criador do

absoluto. Vaz conclui:

“Essa contradição está instalada no cerne do projeto da civilização moderna, e é ela que determina o seu destino, esse destino se torna hoje visível no projeto de uma civilização que dispõe de todos os instrumento e recursos materiais para assegurar sua sobrevivência e seu progresso tecnológico, mas assiste inquieta a uma crise profunda do seu universo simbólico e das suas próprias razões de ser” (VAZ, 2002, p.172)

A problemática simbólica suscitada por Vaz não está mais presa apenas à

polissemia dos sentidos, mas à constatação de um homem que concentrou em si o sentido

último das coisas, e desenha uma face do niilismo ético da modernidade, de uma

civilização que ousou reivindicar para o sujeito a responsabilidade de suportar todo o

universo humano do sentido, ou seja, de constituir-se em fundamento último dessa verdade

do ser que o sentido deve fazer brilhar para o homem (VAZ, 2002, p.174). O autor afirma

ter, neste momento, chegado ao ponto alto da crise de sentido da modernidade em sua raiz

espiritual, quando o homem achava ter encontrado a fonte última do sentido (liberdade)

aparentemente triunfante. O homem apresenta uma profunda crise de um dever ético

59    

   

fundamental que seria, para o autor, a instauração do sentido da vida do homem, ou seja, o

dever de realizar a verdade da sua existência.

Para Lima Vaz, não sairemos desta crise enquanto não superarmos a experiência do

não-sentido do humanismo antropocêntrico. É necessário dirigir as energias espirituais da

civilização para o reencontro da fonte transcendente do sentido, ou descobrir uma nova

estrutura da experiência do transcendente que se torne princípio de uma realização

autenticamente humana. Ele conclui assim o capítulo, apresentando um desafio à

modernidade:

Essas proposições parecem soar, é verdade, como um ingênuo arcaísmo aos ouvidos de uma cultura estruturalmente ateia, que se orgulha de ter ousado o passo que levou a humanidade da idade infantil das crenças para a idade adulta da Razão. Mas, e se a exigência do Absoluto transcendente estiver inscrita na própria essência e no dinamismo mais profundo da Razão? E se foi à implacável dialética dessa exigência, desdobrando-se no terreno da teoria da representação, a levar a humanidade moderna ocidental à dramática experiência do niilismo, reverso dialético perfeito da experiência do absoluto real, e a conviver com essas formas do não-sentido absoluto da violência e da morte, presentes como símbolos de uma civilização em crise, em todas as encruzilhadas do nosso tempo? (VAZ, 2002, p.174)

A importante conclusão de Lima Vaz sobre a crise de sentido experimentada pelo

homem tem as origens na mudança de um eixo de referência para pensar seu mundo. Essa

mudança é aprofundada teoricamente no problema do conhecimento do homem na questão

da representação, mas nos deixa como principal mensagem o desafio de encontrar nele

mesmo o sentido necessário para explicar o seu mundo e sua realidade. O movimento de

liberdade do homem pelo modelo poético na busca pela liberdade refletiu em um niilismo,

um movimento autocentrado que não comporta uma articulação de sentido suprema e teve

como resultado um não sentido. A questão de um não sentido moderno será amplamente

debatida no final deste capítulo, mas uma provocação após a leitura do intelectual

brasileiro é necessária: seria possível, no mundo pós-moderno (ou seja, após o advento da

modernidade e não ampliando o conceito), uma articulação de sentido relevante? A saída

de Vaz como solução aponta para uma proposta aparentemente mais restrita às questões

espirituais e à busca do bem. Seriam estas as respostas definitivas para explicar solucionar

a crise de sentido do homem?

60    

   

Neste momento do trabalho, uma nova camada da problemática será investigada a

partir de uma perspectiva conflitante com a ideia de Vaz como solução para a crise de

sentido. O universo do autor Albert Camus será apresentado na tentativa de expressar uma

visão contemporânea desta crise de sentido, apresentando a ideia do absurdo como resposta

alternativa.

61    

   

2.2 O ABSURDO COMO ALTERNATIVA DE RESPOSTA

A crise de sentido, aprendida com Vaz, que tem origem na modernidade, parece até

agora não ter demonstrado uma tratativa satisfatória para responder o porquê de o homem

contemporâneo viver uma crise de sentido. A obra de Albert Camus insere um caráter

teórico e filosófico absolutamente esclarecedor à questão. Por isso, foi o autor escolhido

para a compressão da experiência na questão do sentido da vida. O autor apresenta a obra

O mito de Sísifo como alternativa de resposta à questão do sentido da vida e, como

mencionado, será um importante eixo de suporte da discussão. Seu ensaio tem por visada o

sentido da vida a partir de uma reflexão clara sobre o que o autor entende pela “condição

humana”. Camus dedica as quatro últimas páginas do seu ensaio para explorar o mito

grego que nomeia sua obra e segue um caminho árido na busca de dar forma ao que

considera ser a melhor representação da condição humana e sua relação com o mundo: o

absurdo.

Camus é didático no caminho que está propondo, e coloca como disparador da sua

discussão a problemática do suicídio, arriscando dizer ser ele o “único problema filosófico

realmente sério”. Seu argumento é que:

“Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com maior tranquilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Esta verdade não valia o risco da fogueira. É profundamente indiferente saber qual dos dois, a Terra ou o Sol, gira em torno do outro. Em suma, é uma futilidade. Mas vejo, em contrapartida, que muitas pessoas morreram porque consideraram que a vida não vale a pena ser vivida” (CAMUS, 2013, p. 19)

A partir deste raciocínio, Camus diz ser o sentido da vida a mais premente das

perguntas, e questiona-se como se deve responder a ela. Observar o disparador do autor

para sua investigação filosófica da condição humana pode trazer a ideia de tragédia, de que

fatalmente seu discurso será encaminhado a uma abordagem de valor “pessimista” em

relação ao homem. Mas o autor, a partir desta questão, sustenta um trabalho sério e de

honestidade intelectual, expondo as problemáticas e delimitando as questões até onde lhe é

possível apontar caminhos. CAMUS (2013, pg. 22) aponta que, ao se matar, o homem,

raramente o faz por reflexão (embora não descarte a hipótese), e aponta pelo menos seis

motivos. Sendo: 1) Que foi superado pela vida; 2) Que não a entende; 3) O caráter ridículo

62    

   

do costume de fazer gestos que a existência impõe; 4) A ausência de qualquer motivo

profundo para viver; 5) O caráter insensato da agitação cotidiana; 6) A inutilidade do

sofrimento. Olhar a relação entre o suicídio e o absurdo, sendo o suicídio a solução para o

absurdo é a grande temática do ensaio. Se o suicídio apresenta seus argumentos de um

lado, para Albert Camus, esta luta em busca de sentido pode recuar, em outra extremidade,

àquilo que denominou de esquiva mortal, para uma saída bastante conhecida na filosofia e

muito difundida na religião:

“A esquiva mortal que constitui o terceiro tema deste ensaio é a esperança. Esperança de uma outra vida que é preciso “merecer, ou truque daqueles que vivem não pela vida em si, mas por alguma grande ideia que a ultrapassa, sublima, lhe da um sentido e a trai” CAMUS (2013 p.23)

O raciocínio polarizado entre o suicídio e a esperança é a grande problemática de

Camus: o desafio de elaborar um raciocínio capaz de se aprofundar na condição humana

sem dar fim a sua própria vida, ou esquivado por uma esperança para além do mundo

humano. A pergunta de Camus retorna ao seu argumento inicial entre o absurdo e o

suicídio: será que o absurdo da vida exige que escapemos dela pela esperança ou pelo

suicídio? Seriam apenas estas as duas alternativas possíveis para um não enfrentamento da

condição humana e o mundo que o envolve? O argumento do autor sobre a “esquiva

mortal” da esperança é complementado com a ideia de um suicídio do pensamento, e usa

como exemplo que diante destas questões o homem transita por lugares desertos, sem

água, onde o pensamento chega ao seus limites e homens com grande pressa para resolver

a questão do sentido da vida querem fugir dali. Neste eminente paradoxo – suicídio e

esperança –, o convite de Camus está neste fio delimitador entre o homem que põe fim a

sua própria vida e a esperança transcendental, um convite a permanecer em um deserto

onde, na visão do autor, nenhum outro filósofo se propôs a permanecer: o caminho árido

de explorar o mundo absurdo.

“Todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos tem um começo ridículo. Muitas vezes as grandes obras nascem na esquina de uma rua ou na porta giratória de um restaurante. Absurdo assim. O mundo absurdo, mais do que outro, obtém sua nobreza desse nascimento miserável. Em certas situações, responder “nada” a uma pergunta sobre a natureza de seus pensamentos pode ser uma finta do homem. Os seres amados sabem disso. Mas se a resposta for sincera, se expressar aquele singular estado da alma em que o vazio se torna eloquente, em que se rompe a corrente

63    

   

dos gestos cotidianos, em que o coração procura em vão o elo que lhe falta, ela é então um primeiro sinal do absurdo” (CAMUS, 2013 p. 27)

O mundo do absurdo de Camus é uma forma de conceber o mundo em que

interagimos. O autor diz que não é algo específico de uma época, sociedade e nem é uma

questão situacional que traz esta condição. Ela já está presente no homem, mas é disfarçada

pelos hábitos, costumes que ocupam a vida humana e que, em algum momento, é

despertada pelas mais simples causalidades da vida, tal como um vento em uma esquina

qualquer. O homem simples pode ser tomado deste sentimento quando surge um “por

quê?”. Camus ilustra esta passagem do homem de rotinas, hábitos e costumes para uma

consciência de sua condição como cenários desabando diante de uma realidade dura. Estas

são para o autor apenas evidências da condição humana. Neste momento, o absurdo mostra

suas evidências, torna-se necessário ao autor apontar caminhos para sua compreensão. O

absurdo é a estranheza do mundo, “pantomima desprovida de sentido que torna estúpido

tudo o que os rodeia. Um homem fala ao telefone atrás de uma divisória de vidro: não se

ouve o que diz, mas vemos sua mímica sem sentido: perguntamo-nos porque ele vive?”

(CAMUS, 2013, p.24). Esse é o lugar onde nenhum esforço é justificável a priori (em

itálico aos moldes kantianos) diante das matemáticas sangrentas que ordenam nossa

condição. Para concluir uma breve ilustração do mundo absurdo, Camus aponta o seu

nascimento do confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Diante da

nossa questão, até este momento, Camus nomeia o sentido que dispara o texto de

introdução deste trabalho no sentimento do absurdo, este “vento” que no meio da rotina

repetitiva, e aparentemente insossa, dispara a pergunta: Qual é o sentido da vida?

Após uma ilustração do mundo absurdo, Camus investe uma profunda investigação

filosófica em Kierkegaard, Husserl, Jaspers e Chestov. Nesta empreitada, avalia o

movimento destes como suicídios filosóficos, ou seja, soluções rápidas para a realidade

massacrante dos desertos da existência. Não vamos nos aprofundar no ensaio sobre os

argumentos de Camus na contramão desta proposta filosófica a fim caminhar mais

lentamente naquilo que ele entende ser o homem absurdo.

Por definição, Camus o apresenta como:

64    

   

“Aquele que sem negá-lo, nada faz pelo eterno. Não que a nostalgia lhe seja alheia. Mas prefere a ela a sua coragem e seu raciocínio. A primeira lhe ensina a viver sem apelo e a satisfazer-se com o que tem, o segundo lhe ensina seus limites. Seguro da sua liberdade com prazo determinado, da sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue a aventura no tempo de sua vida. Este é sem campo, lá está a sua ação, que ele subtrai a todo juízo exceto o próprio. Uma vida maior não pode significar para ele outra vida. Seria desonesto.” (CAMUS 2013, p.73)

O homem absurdo já se deparou com o sentimento de absurdo, tem consciência do

absurdo e esta consciência o liberta dos aspectos transcendentais da existência, de um

universo físico limitado à morte e preso no tempo que o tem até lá. Os exemplos de

homens absurdos são em Camus, “vidas privadas de futuro”. Tudo que faz o homem

trabalhar e se agitar utiliza a esperança. O único pensamento não enganoso é, então, um

pensamento estéril. No mundo absurdo o valor de uma noção ou de uma vida se mede por

sua infecundidade. Para compreender este homem absurdo de maneira mais ampla, Camus

lança mão de três exemplos: um sedutor, um comediante e um conquistador.

Para explicar o homem sedutor como expressão deste homem absurdo, Camus

recorre à história de Don Juan, dizendo que “quanto mais se ama, mais se consolida o

absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher por falta de amor. É ridículo representá-lo

como um iluminado em busca de amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico

arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação e esse

aprofundamento” CAMUS (2012, p.76). Para ele, Don Juan é um grande sábio e não

acredita no sentido profundo das coisas, contribui com mais um traço do homem absurdo

como aquele que não se separa do tempo. Para o autor, Don Juan não pensa em “colecionar

mulheres”. Esgota seu número e, com elas, suas possibilidades de vida. Colecionar é ser

capaz de viver no passado. Mas ele rejeita a nostalgia, essa outra maneira de esperança.

Não sabe contemplar retratos: Camus também protege Don Juan dos argumentos que ele

seja egoísta, pois sua concepção de amor está presa à mistura de desejo, ternura e

entendimento que o liga às mulheres que lhe relaciona, sendo esta a sua maneira de dar

amor e fazer viver. Don Juan é o desenlace feroz de uma alegria sem futuro. O gozo

termina aqui em ascese. Após a ilustração do homem sedutor, Camus aponta para o

segundo exemplo do comediante.

65    

   

“Os comediantes da época se consideravam excomungados. Entrar na profissão era escolher o inferno. E a igreja via neles seus piores inimigos. Alguns literatos se indignam. “Como negar Molière 20 os últimos socorros!” Mas isso era correto, sobretudo para ele, que morreu em cena e acabou sob a maquiagem uma vida inteira dedicada à dispersão. Em relação a ele, costumava invocar o gênio que tudo desculpa. Mas o gênio não desculpa nada, justamente porque se nega a fazê-lo” (CAMUS, 2013, p.86)

Camus resgata o ator como expressão do homem absurdo, que estabelece seu

reinado na experiência do palco, vivendo naquele espaço de tempo todas as emoções e

possibilidades possíveis. Como homem absurdo, é um viajante do tempo que transporta do

tempo e do espaço os personagens vividos. No período em que se apresenta, o ator vai até

o fim do caminho sem saída que o homem da plateia leva toda a sua vida para percorrer. O

absurdo da experiência do ator também não vê esperança, nem mesmo futuro, pois seus

personagens nascem com prazo de validade. Por fim, na sequência do argumento do

homem absurdo, Camus apresenta o conquistador:

“mesmo humilhada a carne é minha única certeza. Só posso viver dela. A criatura é minha pátria. Por isso escolhi este esforço absurdo e sem alcance. Por isso estou do lado da luta. Nossa época se presta a isto, já disse. Até agora, a grandeza de um conquistador era geográfica. Ela se media pela extensão dos territórios vencidos. Não é por acaso que a palavra mudou de sentido e não designa um general vencedor. A grandeza trocou de campo. Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro” (CAMUS, 2013, p.88)

Para Camus, os conquistadores são os homens que procuram vencer-se a si mesmos

com plena consciência de grandeza, sentindo-se como deuses frente às inocorrências da

vida, bastando-se por si mesmos sem nenhuma expectativa futura que o supere. O salto sob

todas as formas, a precipitação no divino ou no eterno, o abandono às ilusões do cotidiano

ou da ideia, todas essas telas ocultam o absurdo. O homem absurdo pode ser qualquer um

que conscientemente nada encobre. O argumento de Camus até aqui pode iniciar um

tratado sobre o desespero e, sabendo desta realidade, o autor aponta que carecer de

esperança não equivale a se desesperar. Haveria mais caminhos para explorar o homem

absurdo de Camus, mas neste momento o mais relevante é que o autor responde como

possibilidade ao homem absurdo a alegria na sua condição: gratuita, dada. Retorna ao mito

grego de Sísifo onde o herói no seu processo constante de empurrar a pedra acima e abaixo

                                                                                                                                       20  Dramaturgo  francês  do  século  XVII  

66    

   

da montanha depara-se com a alegria da sua atividade. Ora, que atividade repetitiva como

esta poderia carregar alegria? Camus responde da seguinte maneira.

“Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem enquanto contempla seu tormento [...] o homem absurdo diz que sim e seu esforço não terá interrupção. Se há um destino pessoal, não há um destino superior ou a menos só há um, que ele julga fatal e desprezível. De resto, sabe que é dono de seus dias [...] A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração do homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”. (CAMUS, 2013 p. 124)

A felicidade presente é a resposta do homem absurdo ao mundo absurdo, na

gratuidade da vida e nas coisas dadas, não há necessidade de transcendência. Camus

descobre um Sísifo feliz, alegre com sua condição, uma alegria curiosa diante do cenário

construído. Mas Sísifo é Don Juan, sabe de sua condição, é fidedigno a ela, não espera,

seja porque tenha se conformado, ou ainda porque não seja necessário. O retrato opaco,

fosco do autor para a vida diminui uma expectativa ou possível visada inicial de um

projeto que empreende buscar o sentido para a vida, a expectativa de um sentido geral, de

uma resposta mirabolante que abarque toda a existência e resuma cada fragmento em um

único lugar. Pode não ser animadora, mas esclarecem questões substanciais. Sísifo não tem

uma experiência aterrorizante e Don Juan não se arrepende ao final da sua trajetória. Na

construção de Camus, é possível que nós também não. Vale reforçar que a formulação

teórica do autor ganhou forma e personagem, em sua obra O estrangeiro (laureada prêmio

Nobel de literatura em 1957).

O autor apresenta o seu homem absurdo no protagonista Mersault, indica a vida de

um homem que sabia o que era “rolar a pedra morro acima para depois torná-la a rolar

morro a baixo”. Em uma cena clássica da obra, o personagem havia assassinado um

homem árabe na praia, em decorrência de uma briga que não sabia bem a razão de ter

entrado, e está diante de um tribunal para ser julgado. Retrata o momento da seguinte

forma:

“Quando o promotor se sentou, houve um momento de silêncio bastante longo. Quanto a mim, estava atordoado pelo calor e pela perplexidade. O presidente tossiu um pouco, e em tom muito baixo perguntou se eu tinha algo a acrescentar. Levantei-me, e como estava com vontade de falar, disse, aliás, um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o árabe. O presidente respondeu que isto era uma afirmação, que até então

67    

   

não tinha entendido muito bem meu sistema de defesa e gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Disse rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do meu ridículo, que fora por causa do sol” (CAMUS, 2013, p. 94-95)

Não, Camus não está usando de ironia. Mersault é uma personagem embebida da

noção de absurdo e estava absolutamente desconfortável com o momento, e ainda

ressaltava em todo o tempo que a sentença não faria a menor diferença. O homem absurdo

de Camus sabe de onde veio e para onde vai, parece que para o autor ele é a resposta para o

sentido vida e, neste momento, perde o seu tom intrigante, quase infantil e ganha uma

robustez investigativa na direção de uma saída mais ajustada e menos ufanista. Para

concluir a abordagem sobre o homem absurdo, vale um escrito curto do próprio Camus na

obra O homem revoltado:

“A conclusão última do raciocínio absurdo é, na verdade, a rejeição do suicídio e a manutenção desde confronto desesperado entre a interrogação humana e o silêncio do mundo. O suicídio significaria o fim desse confronto, e o raciocínio absurdo considera que ele não poderia endossá-lo sem negar suas próprias premissas. Tal conclusão, seria fuga u liberação. Mas fica claro que, ao mesmo tempo, esse raciocínio admite a vida como bem necessário porque permite justamente esse confronto, sem o qual a aposta absurda não encontraria respaldo. Para dizer a que a vida é absurda, a consciência tem necessidade de estar viva” (CAMUS, 2013, p. 16)

A gratuidade da vida se basta. A hipótese de Camus para o sentido da vida é

respondida na própria vida, sem a necessidade de algo que a transcenda. Possivelmente, a

maior contribuição de Camus para uma reflexão sobre o sentido da vida seja a ideia de que,

além de não ter um sentido, não precisaria ter. A ideia pode abrir um deserto árido ao que

espera uma resposta definitiva, ou ainda uma articulação única do sentido da vida, como

regresso de uma crise de sentido pós-moderna. No entanto, Camus não esgota a questão: o

conflito com o animal simbólico de Cassirer (debatido no capítulo 1) ainda permanece.

Como poderia um homem que a tudo atribui sentido, não atribuir sentido à própria vida? A

possibilidade de Sísifo na alegria ou a felicidade presente de Mersault seria a resposta

definitiva? Ao que parece, uma última camada possível de ser explorada neste trabalho

precisa ser melhor explicada. A vida não tem mesmo sentido e escolheremos o caminho de

Camus como resposta única aos nossos desertos existenciais? Para explorar melhor esta

68    

   

questão uma proposta de reflexão (mais curta) sobre o sentido geral da vida merece

atenção no trabalho, e o convite para o diálogo é feito ao filósofo Fernando Savater.

 

69    

   

2.3 A VIDA SEM UM PORQUÊ

Fernando Savater propõe uma construção teórica importante para concluir nosso

raciocínio sobre o sentido da vida, possivelmente neste momento celebrando a proposta de

Camus. No processo de busca por um esclarecimento desta questão, nos deparamos com a

obra do autor As perguntas da vida, que dentre as muitas reflexões, reserva lugar especial

(no epílogo) para explorar a questão do sentido na experiência humana no que estamos

neste momento tratando como a busca de um “sentido da vida em geral”. A apresentação

do texto está dividida em três seções. No posicionamento filosófico, o sentido da vida é

uma pergunta religiosa e a conclusão proposta é de que a vida não tem sentido. O autor

inicia sua reflexão delimitando a atuação do filósofo nas grandes questões da vida e, para

contextualizar, organiza seus argumentos em torno do hábito histórico de rir dos filósofos.

Faz referências desde Tales de Mileto, que caiu em um poço olhando para o firmamento e

arrancando sorrisos das criadas que passavam por ali, ao texto de Luciano de Samosata

(Século II d. C) onde Zeus, com a colaboração de Hermes, organiza um leilão onde os

compradores pagavam de acordo com a utilidade da doutrina dos leiloados. Os mais

cotados eram Sócrates e Platão a dois talentos cada um, e Heráclito, por exemplo, é

retirado por falta de comprador (SAVATER, 2001, p. 205)

A pergunta de Savater para justificar o porquê de os filósofos serem risíveis,

encontra resposta em três argumentos. No primeiro deles, uma ambição teórica para

investigar os porquês e o tempo todo fazer perguntas, atreladas a resultados práticos

escassos. No segundo momento, afirma que “com frequência os filósofos se chocam contra

as evidências do senso comum ou contra as respeitáveis tradições que as pessoas decentes

nunca criticam”. Em terceiro lugar, “a arrogância disparatada – ninguém sabe como eu”

atribui adjetivos incontáveis em uma mão sobre esse “ser supremo”. Neste momento,

Savater investe seus argumentos na tentativa de remeter ao que considera uma reflexão

filosófica genuína, contestando o posicionamento filosófico pretensioso de fechar questões

e resolver problemáticas de maneira sistemática, afirmando que “os filósofos devem tentar

responder às perguntas e inquietudes dos humanos, e não se fechar em discussões

melindrosas de terminologia só com os de seu grupo”. Mas afinal, qual deveria ser a

atribuição do filósofo frente a questões relevantes para a vida humana? Para o autor, “a

70    

   

tarefa da filosofia é refletir sobre a cultura que vivemos e seu significado, não só o objetivo

como também o subjetivo para nós”. Também vai argumentar que o exercício filosófico

deve vir acompanhado de um “preparo cultural prévio”. (SAVATER, 2001, p. 208)

O autor, para concluir seu discurso sobre o papel do filosófico, seleciona elementos

essenciais da formação do filósofo, indicando pontos chaves que um professor de filosofia

jamais deveria esconder dos seus alunos e que, para nossa reflexão, dois deles chamam a

atenção para o caminho até o sentido. A primeira é que não existe “a” filosofia, mas “as”

filosofias e, sobretudo, o filosofar, debatendo novamente contra a ideia de questões

concluídas em sistemas filosóficos e reflexões presas a grupos fechados com vocabulários

próprios. A outra ideia exposta é a de quê não existem “deuses” com opiniões

intransponíveis na filosofia, que o autor vê como um ramo da arqueologia e muito menos

simples veneração de tudo que vem assinado por um nome ilustre. A ideia central de

Savater, nesta primeira abordagem, não está apenas presa a um modelo de pensamento ou

posicionamento sobre o papel do filósofo frente às questões da vida, mas estas ideias

norteadoras serão de extrema importância para compreender a construção do filósofo até a

questão do sentido da vida alinhada ao seu posicionamento filosófico. O autor mantém sua

construção a respeito do papel do filósofo, apontando um exemplo prático de uma postura

adequada do filósofo nas perguntas a respeito do sentido da vida, atribuindo à questão um

caráter inteiramente religioso:

“um dos motivos de ridículo mais justificado em que os filósofos costumam incorrer, é pretender competir com a religião na busca redentora do sentido da vida. Acontece que a pergunta por esse “sentido” já é religiosa pro si só, e a única coisa que a filosofia pode fazer com relação a ela é mostrar – como estou tentando fazer agora – essa religiosidade e tentar reformulá-la de outro modo para que se torne filosoficamente válida” (SAVATER, 2001, p. 210)

Savater empenha seus argumentos em mostrar que quando se pergunta pelo o

sentido da vida, está se perguntando “qual tipo de sentido? O que se entende por sentido?”

Fidelizando seus argumentos até aqui sobre o trabalho filosófico, sua resposta vem ao

encontro da amplitude da questão:

“que tipo de “sentido” estamos nos referindo? Dizemos ter “sentido” aquilo que quer significar algo por meio de uma outra coisa ou que foi concebido de algo com determinado fim. O sentido de uma palavra ou de

71    

   

uma frase é o que ela quer dizer; o sentido de uma sinal é o que ele quer indicar (uma direção, o escalão de uma pessoa, etc.) ou o que quer avisar (um perigo, a hora de levantar, a passagem de pedestres, etc.); o sentido de um objeto é aquilo para que ele quer servir (tomar a sopa, matar o inimigo, falar com alguém que está longe, etc.); sentido de uma obra de arte é o que seu autor quer expressa (uma forma de beleza, a representação do real, a insatisfação diante do real, a ilusão do ideal, etc.); o sentido de uma conduta ou de uma instituição é o que se quer conseguir por meio dela (amor, segurança, diversão, riqueza, ordem, justiça, etc.)” (SAVATER, 2001, p. 211)

O sentido, para o autor, está relacionado à intenção que anima alguma coisa, uma

visada dada para esta coisa, como nos exemplos apresentados. Mais um exemplo concreto

que o autor retrata é o tropismo das plantas. A planta o realiza reagindo àquele ambiente

visando a preservação da sua vida com uma intenção específica, que se explica na própria

vida. Diante desta intencionalidade vital, o autor pergunta-se: se as intenções vitais são a

única resposta inteligível à pergunta pelo sentido, como poderia a própria vida ter

“sentido”? Para SAVATER (2001, p. 211), se é próprio do sentido de uma coisa remeter

intencionalmente a outra coisa que não a si mesma, o que a vida quer? A questão que fica

ao leitor então é: qual a saída para pensar o sentido no âmbito da vida?

Savater recorre a Wittgenstein na afirmação: “A pergunta pelo sentido termina onde

termina o mundo, ou podemos continuar perguntando pelo sentido ‘mais além’?” E esta

pergunta expõe o caráter religioso no questionamento sobre o sentido da vida, pois a única

alternativa de resposta para o autor, neste caso, será supra-humana. Na saída supra-

humana, o homem recorre a Deus como solução e aceita que seja Ele o Sentido Supremo.

Aquele que dá sentido a todos os sentidos é um pacto mais conformista ainda com a

escuridão do que responder que o sentido de todos os sentidos é a intencionalidade vital ou

a intenção humana (SAVATER, 2001, pg. 212)

A questão sobre o sentido da vida não é possível de ser respondida. E mais: não é

possível de ser concretamente formulada, pois qual seria a finalidade da vida se todas as

coisas intencionam a própria vida? Como seria possível o sentido da vida em seu conjunto?

Amparado na conclusão que a pergunta sobre o sentido é uma pergunta religiosa, e que o

posicionamento do filósofo na questão não é concluir, mas ampliar a questão e torná-la

72    

   

filosoficamente válida, Savater caminha para uma exposição que culminará na afirmação

que a vida, em si, não tem sentido e defende que isto não é um absurdo:

“Não é absurdo que a vida em seu conjunto não tenha sentido, porque não conhecemos intenções fora das vitais, e mais além do âmbito intencional a pergunta pelo sentido... carece de sentido! (...) Realmente “absurdo” não é a vida não é a vida carecer de sentido, mas nos empenharmos em que ela deva tê-lo” (SAVATER, 2001, p. 213)

Ora, se a vida não tem sentido, e o autor não considera isso um absurdo, porque nos

empenhamos em buscar que a vida deve ter sentido? A resposta para esta pergunta em

Savater é que, cada vez que nos perguntamos sobre o sentido da vida, o que queremos

saber é se “nossos esforços morais serão recompensados, se vale a pena trabalhar

honradamente e respeitar o próximo, ou daria na mesma entregar-se a vícios criminosos,

em suma, se nos espera algo além e fora da vida ou só à tumba, como parece evidente”.

Continua o autor:

“Ao constatar esse panorama tão pouco alentador, a única defesa – segundo Kant – que resta à pessoa decente para salvaguardar sua retidão e não a considerar um empenho estéril é aceitar a existência de um Deus que seja o criador moral do mundo, garantindo assim o “sentido” ultramundano feliz para a boa vontade, tão tristemente retribuída aqui embaixo” (SAVATER, 2001, p.214).

Savater escolhe responder a questão de Kant diante desse cenário trágico e

assolador recorrendo a Spinoza, que teria chamado o homem de “alegre”. Reforça que o

homem, sabendo ser ele mortal, se desperta para a tarefa de pensar sobre a sua primeira

certeza, a ideia óbvia de que irá morrer. Para o autor, nascem diante desta constatação pelo

menos três sentimentos: medo, avidez e ódio. Neste momento, as respostas possíveis

transitarão diante de aspectos como medo diante das coisas que ameaçam a chegada do seu

fim, seja doença, privações ou qualquer outra questão da vida; a avidez por querer

acumular tudo que possa lhe prover uma certa distância desta morte iminente, como fama

ou riqueza; e o sentimento de ódio contra aqueles que disputam esses bens. Estas três

condições levam o homem à condição do desespero. Neste momento emerge uma realidade

ainda mais palpável para este momento do homem, a certeza de que no agora está vivo e

que, se a morte é invencível, nos damos conta de que alguma forma a derrotamos quando

nascemos. No momento em que o homem constata a presença da vida, há uma exaltação

no coração humano, e aparece a alegria, onde assume o lugar diante do desespero da face

73    

   

da morte e a condição de algo que vai se desfazendo ao longo tempo caminhando para um

nada. Para Savater:

“A alegria não celebra conteúdos concretos da vida, com frequência atrozes, mas a própria vida, porque não é a morte, porque não é “não” mas “sim”, porque é tudo em face de nada. Mas a alegria não é puro êxtase e, sim, atividade ainda mais: luta contra o mal-estar desesperado da morte que nos infecta de medo, de avidez e de ódio. Nunca a alegria poderá triunfar completamente sobre o desespero (dentro de cada um de nós coexistem o desespero e a alegria), mas também não se renderá a ele. A partir da alegria tentamos “aliviar” a vida do peso opressor e nefasto da morte” (SAVATER, 2001, p.217)

A alegria de Sísifo encontra eco em Savater. Se o mundo em que vivemos não pode

acomodar um sentido ou significado próprio, somos nós, enquanto vivemos nele, que

atribuímos significados heterogêneos. Este sentido, como já exposto por Lima Vaz, é algo

que damos à vida e ao mundo em face de todas as questões que nos aprisionam, e de toda a

experiência e noção absurda sobre ela. Como diria Savater (2001): “Vitória significativa e

derrota insignificante porque morre o indivíduo, mas não o sentido que quis dar à sua

vida... esse fica para nós, seus companheiros de humanidade”.

A vida não carrega em si um sentido geral, não pode apontar um sentido que

compreenda toda a sua definição. Aliás, transitar por ela é viver no limite da experiência

do absurdo, buscando alternativas para superar esta falta de sentido. Uma nota é importante

neste momento: a pergunta sobre o sentido da vida, tal como a definição do homem e

presença na cultura do primeiro capítulo, é ilustrado na experiência. A questão sobre o

sentido da vida acompanha neste trabalho o mesmo movimento do capítulo um. É gerado

pela pergunta de uma observação quase aleatória. É fundamentada nos pressupostos da

filosofia e, neste momento, será retomada na experiência sensível do homem. Se o homem

pós-moderno de Lima Vaz vive um não-sentido, e a experiência desse homem é reforçada

por Camus como um não-sentido inerente à condição humana, a saída de Savater para a

possibilidade de um sentido não geral, mas específico, merece atenção ao final do capítulo

e será explorado em uma experiência limite do homem, aquela que seria, possivelmente, a

experiência mais indigesta de não-sentido do homem pós-moderno: O limiar de

Auschwitz.

74    

   

2.4 UMA EXPERIÊNCIA LIMITE: AUSCHWITZ

Jaanne Marie Gagnebin, em sua obra Lembrar, escrever e esquecer, propõe uma

reflexão sobre a importância da escrita rememorativa, como fonte de revisitar o passado e,

de algum modo, reescrever o presente. O quinto ensaio de sua obra está intitulado “Após

Auschwitz”, segundo a própria autora fruto de um colóquio sobre a temática com outros

colegas. No entanto, uma sentença em especial chama a atenção na discussão técnica sobre

a escrita, a percepção adquirida pela autora sobre esse silêncio na história recente da

humanidade.

“A problemática do colóquio parisiense era, portanto, profundamente prática e atual; não se tratava de uma celebração piedosa das vítimas do Holocausto, mas sim de sua rememoração, no sentido benjaminiano da palavra, isto é, de uma memória afetiva que transforma o presente. No entanto, as contribuições dos teóricos da linguagem e da literatura foram decisivas, mesmo que a questão fosse tão prática e pragmática. Esse colóquio acabou de me convencer que “Auschiwitz” – ou, ainda, “Após Auschiwitz” – não representa somente um episódio dramático da história judaica ou da história alemã, mas é um marco essencial e pouco elaborado da história ocidental” (GAGNEBIN, 2006, p.59)

O colóquio foi, a partir do pensamento da autora, o movimento de irromper com um

silenciamento de não-sentido de Auschwitz, bem demarcado não apenas como um

problema da história alemã com o povo judeu, mas de toda a humanidade. Tornar esse

tema audível, no difícil movimento de rememorar essa lacuna na história humana, é uma

tarefa indigesta, mas é possível que terminado este trabalho de mergulho no Holocausto

encontremos importantes chaves para a questão do sentido da vida. Há muitos olhares que

podemos lançar sobre os muros de Auschwitz. Dois deles foram escolhidos para nossa

investigação, por um motivo simples: os questionamentos ancorados no sentido da vida e

alternativas respostas ancoradas na experiência. São eles: Primo Levi e Viktor Frankl.

A discussão em Primo Levi para nossa questão, parece ser a mais indigesta das

duas – se isso, de algum modo, é possível. O autor introduz sua obra É isto um homem?

reforçando que “já é bem conhecido do leitores de todo o mundo com referência ao tema

doloroso dos campos de extermínio” e que este trabalho não havia sido escrito “para fazer

novas denúncias; poderá antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos

aspectos das alma humana” (LEVI, 1998, p.07). A experiência do escritor italiano no

75    

   

campo de concentração foi retratada, como as demais descrições conhecidas, na eminência

da morte. Se há algo de comum nas experiências registradas é a certeza de que em todo o

tempo a possibilidade da morte está à espreita, seja por doença ou simples

desentendimento com um oficial da SS. O autor avalia que, na experiência limite de

contato presente com a morte, “cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a

felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que

também é irrealizável a infelicidade completa” (LEVI, 1998, p. 17). Na perspectiva de

quem está diante da morte, sabendo que suas chances são poucas e que a resposta é mais

provável é a de morrer – a construção teórica de Camus parece verossímil o bastante. O

momento presente não permite alimentar grande esperanças sobre a realidade futura, ainda

mais no caso de Primo Levi que, das 45 pessoas que estavam em seu vagão quando

desembarcou em Auschwitz, apenas quatro tornaram a ver suas casas. Ele avalia que seu

vagão foi um dos mais afortunados. Na chegada a Auschwitz, o silêncio que ecoaria

posteriormente nesta lacuna da humanidade, é sentido por Levi:

“Tudo era silêncio, como num aquário e como em certas cenas de sonhos. Teríamos esperado algo mais apocalíptico, mas eles pareciam simples guardas. Isso deixava-nos desconcertados, desarmados. Alguém ousou perguntar pela bagagem, responderam: “Bagagem depois; outros não queriam separar-se da mulher, responderam: “Depois, de novo juntos”; muitas mães não queriam separar-se dos filhos; responderam-se: “Está bem, ficar com o filho”. Sempre com a pacata segurança de quem apenas cumpre com sua tarefa diária; mas Renzo demorou um instante a mais ao se despedir de Francesca, sua noiva, e derrubaram-no com um único soco na cara. Essa também era a tarefa diária” (LEVI, 1998, p.21)

E o vazio do não-sentido, nas primeiras horas apareceria para Primo Levi, da seguinte forma:

“Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gigante gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota”(26)

Logo na chegada ao Auschwitz, o “padrão” de relação com os agentes da SS é

estabelecido. A cada desvio, receber um soco na cara era ação mínima de repressão. A

chegada ao campo reflete muitas cenas do universo em que estes homens entrariam: a

palavra Auschwitz já era sinônimo de medo. Aos que de dentro de um vagão avistavam a

placa com o nome do campo, não seria um mero sinal a respeito de um lugar, mas um

76    

   

conjunto de significados de “imagens horripilantes”. O vazio existencial daquela

experiência apresentava-se já nas primeiras horas. Levi a compara com uma experiência de

morte, no som ensurdecedor de um torneira de água não potável em uma sala de seres

(humanos? A pergunta de Levi no tema do livro começa a ganhar forma) sedentos. A

chegada a Auschwitz também é tema em Viktor Frankl. Neste momento do texto, a

contribuição do autor será útil para reforçar esta visão:

“De repente, do amontoado de gente esperando ansiosamente no vagão, surge um grito: Olha a tabuleta: Auschiwitz” Naquele momento não houve coração que não se abalasse. Rodos sabiam o que significava Auschiwitz. Esse nome suscitava imagens confusas mas horripilantes de câmara de gás, fornos crematórios e execuções em massa.”(FRANKL, 2008, p.23)

Se Levi, viu a violência logo na entrada do campo, para Frankl não foi diferente:

“Sobre os corpos nus descem chicotes. Somos levados para outra sala. Então raspam o pelo de cima a baixo. Não somente da cabeça; não fica um pelo no corpo inteiro. Dali somos tocados para dentro dos chuveiros Entramos mais uma vez na fila. Um prisioneiro mal reconhece o outro. Mas com grande alívio e alegria que alguns constatam que dos chuveiros realmente sai água...” (FRANKL, 2008, p.39)

Um chuveiro é um chuveiro para qualquer pessoa livre, sempre sinônimo de

conforto. Não é assim em Auschwitz. O campo começa para Frankl e Levi a construir um

universo completamente novo (e horripilante) de significação. Aquilo que para os homens

livres é conforto, para os prisioneiros é sinônimo de morte. O alívio de Frankl é descobrir

que do chuveiro, apesar de gelada, sai água... não gás. As tintas que vão desenhando o

cenário de Auschwitz vão evidenciando mais uma hipótese sobre o porquê é uma lacuna na

nossa história recente. O efeito simbólico em Auschwitz é a experiência onde todos (ou

quase todos) os objetos de significação, que aparentemente são comuns às pessoas livres,

adquirem outras formas para os prisioneiros, e há ali dezenas de símbolos de sofrimento e

dor. Auschwitz não é uma máquina de destruição apenas na câmara de gás, mas um

exercício permanente de mutilação da alma humana. Se imaginarmos, como sugere Levi,

um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua

roupa, tudo enfim, rigorosamente tudo que possuía, ele será um vazio, reduzido a puro

sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo,

muitas vezes perde também a si mesmo (LEVI, 1998, p.33). Se há uma dificuldade latente

77    

   

em atribuir sentido à vida sabendo elementos mínimos de identidade, essa tarefa torna-se

ainda mais difícil quando esta lhe é retirada. A perda de identidade em Auschwitz recebe

uma tintura diferenciada nas obra dos autores. Primo Levi em mais de um momento da sua

obra lembra momentos em que sua identidade vai se perdendo aos poucos, como o gotejar

inicial da torneira na sala vazia na chegada ao campo de concentração. Refere-se aos

colegas de campo inúmeras vezes como corpos, esqueletos (p.67), rostos pálidos, bonecos

sórdidos, miseráveis e fantasmas (p.32), relatando a respeito de si mesmo “Meu nome é

174.517” (p. 33). Ele continua a descrição com uma pergunta:

“eles nos ouvem falando muitas línguas diferentes que não compreendem e que lhes soam grotescas, como gritos de bichos; veem-nos escravizados ignobilmente, sem cabelo, sem honra nem nome, a cada dia espancados, a cada dia mais abjetos, e nunca leem nosso olhar uma luz de revolta, de paz, ou de fé. Sabem que somos ladrões e indignos de confiança, sujos, esfarrapados, esfomeados, e, trocando o efeito pela causa, julgam-nos merecedores da nossa abjeção. Quem poderia distinguir nossos rostos?” (LEVI, 1998, p.179)

No tocante à perda da identidade, o eco em Viktor Frankl é o mesmo na referência a ser reconhecido por um número:

“cada qual então representa pura e simplesmente uma cifra, pois na lista constam apenas os números dos prisioneiros. Afinal de contas, é preciso considerar que em Auschiwitz, por exemplo, quando o prisioneiro passa pela recepção, ele é despojado de todos os seus haveres e assim também acaba ficando sem nenhum documento, de modo que, quem quiser pode simplesmente adotar um nome qualquer, alegar outra profissão e etc.” (FRANKL, 2008, p. 17)

A perda de identidade em Auschwitz é um processo degenerativo, todo o universo

de significação do homem construído até ali parece ser minado dentro daqueles arames

farpados. Isso suscita uma pergunta para o nosso trabalho. Mesmo com a probabilidade de

não darmos conta de explorá-la, ela precisa ser feita, ainda que para um segundo texto de

exploração. Há um movimento reverso em Auschwitz de animalização, e não seria absurdo

pensá-lo nos moldes de como foi tratada a diferença entre um homem e um animal até aqui

no universo simbólico. O processo de animalização como uma perda de sentido por

intermédio dos símbolos, e o abandono de uma multiplicidade por universos mais restritos,

parece recuar a experiência humana à pantomima de sinais. Abrindo uma possibilidade

para uma questão reversa: se sabemos que passamos do animal para o homem pela

presença simbólica, é possível o caminho reverso à medida que o universo humano vai

78    

   

recuando a uma pantomima de sinais mais restritos? Talvez fosse uma questão mais

profunda para um segundo trabalho, mas a hipótese não parece absurda, principalmente se

levarmos em consideração este relato de primo Levi:

“justamente porque o campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento; e, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao menos a estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defende-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento. Portanto, devemos nos lavar, sim; ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha. Devemos engraxar o sapato, não porque assim reza o regulamento, e sim por dignidade e alinho Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer.” (LEVI, 1998, p. 55)

Se um processo de animalização é dado aos prisioneiros, lampejos do universo

simbólico surgem, e serão destacados, começando a apontar as diferenças dos pensamentos

dos dois autores. A arte é uma forma simbólica profundamente debatida por Cassirer como

universo de significação. O autor alemão afirma que: “a arte nos proporciona uma imagem

mais rica, mais viva e colorida da realidade, e uma compreensão mais profunda de sua

estrutura formal” (CASSIRER, 1994, p.278). Para Victor Frankl, ainda diante do massacre

de Auschwitz, a arte foi descrita com base nestas estruturas:

Apresentam-se algumas canções e recitam-se poemas, contam-se ou apresentam-se cenas cômicas, ou mesmo sátiras avulsivas à vida do campo, tudo para ajudar a esquecer. E realmente ajuda! Ajuda a tal ponto que alguns prisioneiros comuns, não privilegiados, vêm para esse teatro, mesmo exaustos da labuta do dia, e mesmo perdendo por isso a distribuição da sopa (...) Durante o intervalo podíamos nos reunir na sala de máquinas, ainda em construção; na entrada cada um recebia uma concha de sopa rala. Enquanto a sorvíamos sequiosamente, um companheiro subia num tonel e cantava árias italianas. Enquanto para nós isso representava um deleite musical, ele tinha garantida uma ração dupla de sopa, “do fundo”, ou seja, até com ervilhas21 ”(FRANKL, 2008, p.59)

                                                                                                                                       21  As “famosas ervilhas” também são lembradas em Primo Levi. Seriam meras ervilhas, se não fosse a grande símbólica de recompensas para os prisioneiros e motivição para o trabalho: “Sabemos que não é a mesma coisa receber uma concha de sopa retirada da superfície, ou do fundo do panelão, e já estamos em condições de calcular, na base da capacidade dos diversos panelões, qual é o lugar mais conveniente que entramos na fila.”(LEVI, 1998, p.43)  

79    

   

Primo Levi revalida a polissemia de significados dos símbolos, sua percepção sobre

as músicas entoadas no campo de concentração não parece ecoar em Viktor Frankl:

“Pela primeira vez desde que estou no Campo, a alvorada pega-me no meio de um sono profundo; acordar é regressar do nada. Na hora da destruição do pão ouve-se ao longe, no ar escuro, a banda de música que começa a tocar; são companheiros sadios que saem, formados, para o trabalho (...) Entreolhamos uma cama a outra; sentimos todos que essa música é infernal” (LEVI, 1998, p.70)

A experiência limite do campo de concentração, já recebeu o que acreditamos ser

até aqui dados suficientes para uma compreensão de como parte da vida humana era

articulada em um ambiente dado como expressão do que chamamos não-sentido. No

entanto, o sentido (como mostrado em diversos momentos até aqui) está presente em uma

multiplicidade de ações, em universo mais restrito, em muitos momentos com

significações de horror, mas sempre presente na narrativa de Primo Levi e Victor Frankl. A

abrangência desse sentido possivelmente é o grande divisor de águas no pensamento dos

autores, com a expressão de um Primo Levi mais tributário ao pensamento de Albert

Camus no homem absurdo e ao de Fernando Savater. Numa análise no imediatismo dos

fatos, Levi retrata com precisão a experiência da ausência de um sentido geral que

acomode a totalidade da experiência humana e afirma que:

“A convicção de que a vida tem um objetivo esta enraizada em cada fibra do homem; é uma característica da substância humana. Os homens livres dão a esse objetivo vários nomes, e muitos pensam e discutem quanto à sua natureza. Para nós, a questão é mais simples. Hoje, e aqui, o nosso objetivo é aguentarmos até a primavera. No momento, não pensamos em outra coisa. Depois deste objetivo não há, por enquanto, outro” (LEVI, 1998, p.102)

Ou ainda, afirmando o que possivelmente seria por Sísifo em Camus, sem

esperança futura, mas o contato com a realidade imediata, o almoço que se aproximava

naquela hora do dia:

“quando volto ao trabalho, vejo passar os caminhões de rancho, o que significa que são dez horas; já é alguma coisa, o intervalo do meio-dia já se vislumbrava nas brumas do futuro e isso nos dá força”(LEVI, 1998, p. 98)

Para Viktor Frankl, a possibilidade de um sentido de vida mais abrangente que

abarque a experiência humana como um todo também não parece possível. Antes, o

80    

   

convite do autor para a experiência trágica do campo de concentração assume um convite

mais próximo de uma experiência de esperança e maior que um instante momentâneo:

“Para nós no campo de concentração, nada disso era especulação inútil sobre a vida, Essas reflexões eram a única coisa que ainda podia ajudar, pois esses pensamentos não nos deixavam desesperar quando não enxergávamos chance alguma de escapar com vida. O que nos importava já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes colocada, ingenuamente, referindo-se a nada mais do que a realização de um alvo qualquer através de nossa produção criativa. O que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que inclui também a morte e assim não somente atribui sentido à “vida, mas também ao sofrimento e à morte. Se era o sentido pelo qual estávamos lutando”. (FRANKL, 1998, p.103)

Para Victor Frankl, a pergunta do sentido da vida também está enraizada em cada

célula da experiência humana e reforça ainda “que a vida tem um sentido potencial sob

quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis.” (FRANKL, 2008, pg.10). Quando se

refere a seu livro, reforça a importância da temática que é questão central neste trabalho, a

partir de uma evidência também pouco empírica ou fundamentada filosoficamente: o fato

de seu livro ser uma expressão da miséria dos nossos tempos. Se centenas de milhares de

pessoas procuram um livro cujo título promete abordar o problema do sentido da vida,

deve ser uma questão que as está incomodando muito (FRANKL, 2008, pg. 09).

Diante do caos de Auschwitz, Primo Levi e Viktor Frankl acompanharam o que,

possivelmente, foi o maior silêncio da história recente da humanidade, quando ambos

deram voz a ela com suas experiências escritas ao impactos que devastam a alma humana.

Ainda assim, ali, na experiência limiar da experiência do não-sentido, trouxeram o homem

simbólico em suas expressões. Se é verdade que a vida não tem um sentido como foi

levantado na questão inicial deste trabalho, e que o homem é envolto do sentimento do

absurdo em momentos mais frequentes do que gostaria, uma coisa é possível de ser

pensada: na impossibilidade da vida ter um sentido, no homem simbólico, ela assume a

possiblidade de sentidos, ainda que seja no limiar da experiência humana de Auschwitz:

“Aninhado ali, eu comtemplava – por entre a vinheta obrigatória do arame farpado – os vastos campos verdejantes e floridos, as distantes colinas azuis da paisagem bávara. Ali eu sonhava os sonhos de minha saudade e enviava meus pensamentos para bem longe, para o norte e nordeste, onde supunha pessoas amadas” (FRANKL, 2008, pg.71)

81    

   

82    

   

3. A LINGUAGEM COMO PRINCÍCPIO ORGANIZADOR

3.1 LINGUAGEM E FALA EM CASSIRER

De posse das construções feitas até o momento, no capítulo 3 encontraremos a

discussão do sentido da vida e da rede simbólica representada na história de Helen Keller.

Para chegarmos a este olhar em busca de uma conclusão sobre a temática trabalhada até

aqui, dois caminhos parecem ser necessários: a clareza do conceito de linguagem que o

autor Ernst Cassirer desenvolve, e o ganho de profundidade do processo de entrada da Srta.

Keller na rede simbólica pela forma simbólica da linguagem. Lembrando que a questão do

sentido da vida e do animal simbólico continua direcionando as investigações, neste

momento serão investigadas a partir do homem simbólico na busca pelas expressões do

sentido da vida em Helen Keller, na possibilidade de encontrar eco com as conclusões do

capítulo dois: não é possível ao homem articular um único sentido para a vida, mas

sentidos múltiplos em um tempo presente.

Para um ponto de partida, consideramos Ernst Cassirer assentado sobre as estruturas

da sua antropologia filosófica defendida até aqui, pois ele insere a sua discussão na forma

simbólica da linguagem abrigada na fala humana como aspecto organizador. O autor inicia

sua discussão em paralelo ao mito, no que chama de exercício constante do homem

primitivo que é a tentativa de organizar ambos em um sentido único: “sempre que

encontramos o homem, vemo-lo em possessão da faculdade da fala e sobre a influência da

função de fazer mitos. Logo é tentador, para uma antropologia filosófica, colocar essas

duas características especificamente humanas sob um mesmo título” (CASSIRER, 1994,

p.180)

Na busca por expressões do organizador comum, a rede simbólica, Cassirer parte do

argumento que a linguagem e o mito operam como parentes próximos, arriscando uma

impossibilidade de separar um do outro. Para ele, uma análise antropológica teria um apelo

porque colocaria ambos sob um mesmo título, mas avalia que, embora sejam parecidos,

referem-se a dois “brotos de uma mesma raiz”, pois vemos o homem primitivo com a

faculdade da fala sob a influência de fazer mitos. O autor avalia que algumas tentativas

foram feitas no sentido de unificar os dois temas, e aponta o exemplo de F. Max Muller,

83    

   

que desenvolvera uma teoria em que o mito era subproduto da linguagem. O primeiro

movimento proposto por Cassirer em seu texto é separar estes universos a partir da

perspectiva do homem primitivo. Para ele a linguagem – por sua própria natureza é

metafórica, sendo incapaz de descrever coisas diretamente – recorre a modos indiretos de

descrição, a termos ambíguos e equívocos. Ele acredita ser este o eixo de ligação a qual se

ancora a similaridade proposta por Max Muller. Para o autor, mito e linguagem atuam com

similaridade por uma questão natural, no seguinte exemplo avalia a ação primária da

criança no trato da linguagem:

“Muito antes de aprender a falar, a criança já descobriu outros meios mais simples de se comunicar com as pessoas. Os gritos de desconforto, dor e fome, medo e susto que encontramos em todo o mundo orgânico começam a assumir uma nova forma. Deixam de ser reações instintivas simples, pois são empregados de maneira mais consciente e deliberada. Quando é deixada sozinha, a criança exige por sons mais ou menos articulados a presença da babá ou da mãe, e percebe que essas exigências surtem o efeito desejado. O homem primitivo transfere essa primeira experiência social elementar para a totalidade da natureza”. (CASSIRER, 1994, p. 183)

A criança passa a responder ao mundo que a rodeia, não mais com reações fisiológicas,

insere em suas ações um processo simples de reflexão que precede sua ação. Na visão de

Cassirer, o homem primitivo estabelece com a natureza de forma total a mesma relação

que a criança, como a mãe na mobilização (ou manipulação) na direção de um favor ou

qualquer outro efeito necessário diante dos perigos visíveis e invisíveis aos quais é

submetido. O homem primitivo, enxergando a natureza como interligada, suscita a função

da palavra mágica para superar os perigos. Por meio da palavra mágica, o homem encontra

uma maneira de evocar os poderes da natureza de uma maneira específica e manipulá-la a

favor de seus interesses. No entanto, o homem descobre que a natureza é inexorável, não

porque não atendia as suas exigências, mas porque não entendia a linguagem que ele

falava. Para o autor, há nesse momento uma transição da relação do homem com a palavra.

Ora, se o efeito da palavra mágica não era mais o mesmo, se provavelmente (na visão de

Cassirer) o homem se frustraria com isto e não teria aberto outro caminho se não

encontrasse nesta relação com a linguagem uma possibilidade mais promissora, a partir

deste momento surge para o homem a palavra com uma função semântica. Já não é mais

mágica, pois a palavra deixa de ser dotada de poderes misteriosos, não tem mais influência

84    

   

física ou sobrenatural direta, não pode interferir na natureza, nem modificá-la e, muito

menos, mobilizar forças sobrenaturais. Mas, como reforça Cassirer, nem por isso deixa de

perder o seu poder, na função semântica. A expressão que o autor utiliza é que “o Logos

torna-se o princípio do universo e o primeiro princípio do conhecimento humano”

(CASSIRER 1994, p.184).

A função simbólica, por meio da linguagem, é o processo que leva o homem de uma

“palavra de manipulação” para a semântica das palavras, a potência física da palavra na

modificação da natureza perde força para um ganho de articulação lógica. Como o fez em

outros momentos de sua obra, o autor alemão retoma o histórico de uma temática a fim de

ampliar a visão sobre o problema estudado. Nesta altura do seu argumento recorre a

Heráclito como marco desta transição do homem da palavra mágica a semântica em

direção ao Logos.

“Não é no mundo material, mas no humano, que está a chave para uma interpretação correta para a ordem cósmica. Neste mundo humano, a faculdade da fala ocupa um lugar central. Portanto, precisamos entender o que a fala significa para entendermos o “significado” do universo. Se deixarmos de encontrar esta abordagem – a abordagem por meio da linguagem em vez de pelos fenômenos físicos – não enxergamos a porta da filosofia” (CASSIRER, 1994, p.185).

Há uma forma de relação do homem com o mundo de forma “não material”. Na relação

que o homem estabelece com a fala não é diferente. Logo, observar a fala não é apenas o

fenômeno físico de uma mera emissão de sons, mas uma perspectiva mais abrangente que

precisa de atenção. Para Cassirer (1994), esta reflexão para além de uma experiência

antropológica já está presente no argumento de Heráclito: o “logos” não é a expressão

confinada nos limites do nosso mundo humano, pois carrega em si uma verdade cósmica

universal. A diferença neste momento é que, em vez de ser um poder mágico, como queria

o argumento anterior, a palavra é entendida em sua função semântica e simbólica, pois

carrega em si uma carga de significado para além de uma realidade funcional, imediata.

Para CASSIRER (1994), neste momento a filosofia grega passa de uma filosofia da

natureza para uma filosofia da linguagem, o que inaugura uma nova realidade com grandes

dificuldades. Como continua o autor, é possível que haja algo mais desconcertante e

controvertido que o “significado do significado”. Se é verdade que até hoje psicólogos,

85    

   

linguistas e filósofos sustentam opiniões absolutamente divergentes sobre o significado, a

filosofia grega não podia, para o autor, enfrentar diretamente este problema em todos os

seus aspectos. Algumas verdades emergem para esta teoria. A primeira é que o sentido

deve ser explicado em termos de ser, pois seria o que liga o ser ou substância à realidade.

Logo, uma palavra não poderia significar uma coisa se não houvesse uma identidade

parcial entre as duas. Para o autor, teremos assim uma teoria que conseguirá abranger uma

teoria geral do conhecimento, mas apresentará limitações para a formulação de uma

filosofia da linguagem:

“A ligação entre o símbolo e seu objeto deve ser natural, e não simplesmente convencional. Sem essa ligação natural, uma palavra da linguagem humana não poderia cumprir sua tarefa; tornar-se-ia ininteligível. Se admitirmos esse pressuposto, que tem sua origem mais em uma teoria geral do conhecimento que em uma teoria da linguagem, estaremos imediatamente diante de uma doutrina onomatopeica. Só esta doutrina parece capaz de lançar uma ponte entre os nomes e as coisas.”. (CASSIRER, 1994, p. 187)

No entanto, Cassirer não demora a dizer que esta teoria começa a ruir na primeira

tentativa de utilizá-la sob a ironia de Sócrates. Segundo o autor, Platão tentara embasar seu

argumento (no diálogo Kratylus) de que toda linguagem tem origem na imitação de sons de

maneira ingênua. A objeção ao argumento de Platão nasce do movimento de análise das

palavras da linguagem comum, e da percepção de que na maioria das vezes há uma lacuna

entre sons e seus objetos. Embora ela também pudesse ser removida na ideia de que a

linguagem humana ao longo do tempo sofre mudanças e deterioração e, para não nos

acomodar nesta ideia, Cassirer (1994) propõe um caminho de volta à origem do vínculo

que une os sons a seus objetos e encontra a etimologia. Segundo o autor, para regressarmos

ao étimo, a forma verdadeira e original de cada termo, em um movimento que se firmou

como um dos princípios da filosofia da linguagem e, até o século XIX, não recebera

nenhum tipo de tratativa científica, o autor retoma as formulações gregas em Heráclito e

Platão e estende o “caminho” até os sofistas. Para o autor, os sofistas foram os primeiros a

empregar uma tratativa mais sistemática dos problemas gramaticais e linguísticos, em que

uma teoria da linguagem teria de resolver tarefas mais urgentes, tais como “ensinar-nos a

falar e a agir no nosso mundo social”, perpassando pela utilidade nas lutas políticas. Isso

culminaria na ideia de que os nomes não estariam apenas a serviço de expressar “a

86    

   

natureza das coisas, sua verdadeira tarefa não é descrever as coisas, mas despertar emoções

humanas; não transmitir meras ideias ou pensamentos, mas incitar os homens a certas

ações” (CASSIRER, 2004, p.188)

Após a construção deste caminho até aqui, o autor conclui um caminho de três

aspectos da função e do valor da linguagem: o mitológico, o metafísico e o pragmático,

afirmando que nenhum deles parece apontar a direção correta, por deixar de apresentar o

que considera a característica mais evidente da linguagem: “as expressões humanas mais

elementares não se referem a coisas físicas, nem são arbitrárias, mas são expressões

involuntárias de sentimentos, interjeições e exclamações humanas” (CASSIRER, 1994,

p.189-190).

O autor alemão aponta que Demócrito foi o primeiro a propor que a fala humana

tem origem em certos sons de caráter meramente emocional, acompanhado por seus

sucessores Epicuro e Lucrécio. As ideias ali desenvolvidas exerceram influência sobre a

teoria da linguagem até os dias de hoje. Finalmente, para Cassirer, do ponto de vista

científico, a fala humana pode ser reduzida a um instinto fundamental implantado pela

natureza em todas as criaturas vivas. Exclamações violentas – medo, raiva, dor e alegria –

não são uma propriedade específica do homem, pois as encontramos por toda parte do

mundo animal. Isso torna plausível a causa social da fala ser atribuída a uma causa

biológica geral. Se seguirmos Demócrito, “a semântica deixa de ser uma província

separada; torna-se um ramo da biologia e da fisiologia” (CASSIRER, 1994, p.191). No

entanto, Cassirer está desde o início de sua obra ocupado a distinguir elementos da

atividade humana sem comparações com o reino animal. Para o autor:

“os criadores das teorias biológicas sobre a origem da linguagem deixaram de ver o bosque por causa das árvores. Partiram de um pressuposto de que um caminho direto liga a interjeição à fala. Mas isso é evadir a questão, e não solucioná-la. Não era apenas o fato, mas toda a estrutura da linguagem, que precisava de uma explicação. Uma análise dessa estrutura revela uma diferença radical entre a linguagem emocional e a proposicional. Os dois tipos não estão no mesmo nível (...) não temos nenhuma prova psicológica de que algum animal atravessou jamais a fronteira entre linguagem preposicional e a emocional” (CASSIRER, 2014, p.192).

87    

   

A passagem da linguagem proposicional para a linguagem emocional é o limiar das

expressões animais para a atividade humana. Um animal, por mais articulada que seja sua

formulação de sons e gestos em distinção e abrangência, para expressar sentimentos não

possui a capacidade de designar ou descrever um objeto. A fala, como característica da

atividade humana, permite articular os sentidos das palavras, objetivar e sistematizar no

que seria, para Cassirer (1994), a tarefa principal e mais importante da linguagem humana.

Diante da comparação com os animais, Susanne Langer insere-se na discussão

complementando a visão de Ernst Cassirer sobre a limitação dos animais que

impossibilitam uma semelhança direta com a atividade humana:

“Os animais, por outro lado, são todos destituídos de fala. Eles se comunicam sem dúvida; mas não por algum método que possa comparar-se ao falar. Expressam emoções, indicam seus desejos e controlam o comportamento um dos outros por meio de sugestão. Um macaco tomara outro pela mão e o arrastará a um jogo ou para sua cama; estenderá a mão para implorar comida, e às vezes, recebê-la-á. Mas até os macacos superiores não apresentam qualquer indício de fala (...)Se os macacos realmente utilizassem sons definidos semelhantes a palavras para simbolizar sentimentos e possivelmente também ideias, seria difícil negar seu poder de fala. Mas todas as descrições de seu comportamento mostram que eles empregam tais sons apenas para indicar as sensações e talvez os desejos. Suas expressões vocais de amor são sintomas de uma emoção, não o seu nome, nem qualquer outro símbolo que represente (como o coração em um cartão de namorados). (LANGER, 2004, p.112- 113)

A função indicativa dos animais no movimento de sons relembra a discussão do

primeiro capítulo sobre a diferença entre símbolos e sinais, suscita a diferença substancial

do que seria uma função signa da palavra para uma função simbólica. O animal emite sons

que reagem às suas emoções, diferentemente do ser humano que responde aos seus

sentimentos – como no exemplo do amor – em uma forma simbólica. Para a autora, esta

passagem da função sígnica de uma palavra a sua função simbólica é gradativa, sendo um

resultado da organização social, um instrumento que se mostra indispensável uma vez

descoberto, e que se desenvolve por meio do uso bem sucedido (id p.43). A verdadeira

linguagem começa apenas quando um som mantém a respectiva referência além da

situação de sua pronunciação instintiva: por exemplo, quando um indivíduo pode dizer não

apenas: “meu amor, meu amor!”, mas também: “Ele me ama – ele não me ama”

(LANGER, 2004, p.113). O amor assume diferentes expressões e significados, não mais

como uma palavra trancada em seu objeto. Langer (2004) desenvolveu três critérios que

88    

   

considera substancial para configurar a linguagem como tal. Em primeiro lugar, a ideia de

que toda linguagem possui um vocabulário e uma sintaxe, e a partir das regras

estabelecidas pela sintaxe será possível construir símbolos com novos significados

resultantes. Em segundo lugar, em uma linguagem, algumas palavras equivalem a

combinações inteiras de outras palavras, de modo que a maioria dos significados é

exprimível de várias maneiras diferentes. Em terceiro, podem existir palavras alternativas

para o mesmo significado.

A exploração das palavras no mundo da fala humana, é uma relevante demarcação

para uma investigação da experiência de Helen Keller, que será tratada posteriormente o

quanto a polissemia das palavras e seus significados serão centrais para o encontro da

forma simbólica da linguagem e o sentido da vida. Nomear o mundo, possivelmente seja

um dos traços mais característicos humanos na atribuição de sentidos ao universo que o

rodeia, vimos o poder da palavra em seu sentido semântico como fonte desta afirmação.

Susanne Langer mais uma vez é evocada para consolidar o caminho até aqui:

“Por que possuem os homens linguagem? A resposta penso, é que todos os homens a possuem porque todos têm a mesma natureza psicológica, que alcançou, na raça humana inteira, um estágio de desenvolvimento em que o uso de símbolos e a feitura de símbolos constituem atividades dominantes. Se houve começos da linguagem ou poucos, ou mesmo apenas um, não podemos dizer; mas onde quer que o primeiro estágio do falar, o emprego de algum símbolo denotativo, foi atingido, ali ocorreu provavelmente o desenvolvimento da fala com velocidade fenomenal. Pois a noção de dar um nome a algo é a mais ampla idéia gerativa jamais concebida” (LANGER, 2013, p.146)

Na direção de explorar o caminho humano na nomeação do universo como fonte de

sentido, a história de Helen Keller aparece no que sugere ser uma síntese de rede

simbólica, através da forma simbólica da linguagem, e sentido da vida.

89    

   

3.2 HELEN KELLER E A CONQUISTA DO HUMANO

A construção exposta até este momento sobre a rede simbólica e o sentido da vida

aponta para um caminho ainda pouco integrado. Afinal, saber que o homem é um animal

simbólico que em tudo busca atribuir sentido também nos levou a um caminho

aparentemente oposto, guiado pela impossibilidade de se atribuir um sentido geral para a

vida que transcenda a experiência humana. Uma conclusão até aqui contribuiu para

propormos um caminho de conexão, a personagem chave da experiência simbólica descrita

por Cassirer, Helen Keller, cria uma hipótese como um exemplo claro do homem

simbólico imergindo de uma experiência semelhante a animal (aos moldes de Cassirer)

para a rede simbólica, a abundância de sentidos e como consequência a conquista do

humano.

Vimos que a forma simbólica da linguagem está enraizada na natureza humana

desde os povos mais primitivos, as sistematizações e objetivações da fala humana

configuraram a atuação humana no processo de nomear o mundo que o rodeia e estabelecer

significados e nomes distintos para cada objeto de representação. A entrada no mundo

humano da linguagem pela fala é para Cassirer (1994) um processo maior que de aprender

um certo vocabulário. Se a criança precisasse apenas imprimir em sua mente e em sua

memória uma grande massa de sons artificiais e arbitrários, isso seria um processo

puramente mecânico. A criança quando aprende que tudo tem um nome dispara uma busca

constante para objetivar o mundo:

“Ao aprender a dar nomes às coisas, a criança não se limita a acrescentar uma lista de sinais artificiais ao seu conhecimento prévio de objetos empíricos prontos. Aprende antes a formar conceitos desse objetos, a entrar em acordo com o mundo objetivo. A partir de então, a criança passa a estar em terreno mais firme. Suas percepções vagas, incertas e flutuantes e seus sentimentos confusos começam a assumir um novo aspecto. Pode-se dizer que eles se cristalizam em torno ao nome como um centro fixo, um foco para o pensamento. Sem ajuda do nome, cada novo avanço, feito no processo de objetivação correria sempre o risco de perder-se no momento seguinte” (CASSIRER, 1994, p. 217–218)

A conclusão de Cassirer nos leva para a personagem protagonista do autor, e

consequentemente deste trabalho, Helen Keller. A então garota, nos dá o privilégio de

contemplar esse processo de objetivação do mundo, comum a crianças nos primeiros anos

90    

   

de vida, acontecer por alguém que não experimentou esse processo natural em seus

primeiros passos na fala. Em Cassirer (19944), a ideia é defendida na perspectiva de que as

crianças frequentemente ficam muito confusas ao saber pela primeira vez que nem todo

nome de objeto é um nome próprio, que a mesma coisa pode ter nomes diferentes em

lugares diferentes. Elas tendem a achar que uma coisa “é” aquilo que chamam. Mas este é

apenas o primeiro passo. Toda criança normal aprende logo que pode usar vários símbolos

para expressar o mesmo desejo ou pensamento. No caso de Helen Keller, segundo

BERGER,22 a menina encontrou a linguagem vinda de um universo de fora dela. Ou seja,

ao contrário das crianças que escutam a linguagem e instintivamente associam ao seu

mundo as palavras e seus significados, para Helen Keller a linguagem aparece como um

objeto estranho não participante do seu mundo. No prefácio do editor na obra A história da

minha vida, assinada pela própria Helen Keller, há um interessante tópico construído por

James Berger: a educação de Helen Keller, uma história de linguagem. Para Berger, a

maioria das pessoas experimenta a transição para a linguagem ao passar pela fase de bebê

para a infância e a maturidade. Contudo, são os casos especiais – como o de Helen – que

parecem mais atrativos e ilustrativos. A cena de Helen Keller junto à casa de bombas

merece ser rememorada neste momento para ilustrar a entrada da menina no mundo da

linguagem, desta vez com o depoimento da própria Srta. Keller:

“Descemos o caminho para a casa do poço, atraídas pela fragrância das madressilvas que a cobriam, Alguém estava tirando água e a Srta. Sullivan colocou minha mão sob o jorro da água. Enquanto a fria corrente despejava-se sobre uma das minhas mãos, a Srta. Sullivan soletrava na outra a palavra água, primeiro lentamente, depois rapidamente. Fiquei imóvel, como toda a atenção fixada no movimento dos dedos. De repente senti uma consciência envolta em nevoeiro, como de algo específico – o eletrizar de um pensamento que voltava; e de algum modo o mistério da linguagem foi revelado a mim, Soube então que “á-g-u-a” significava a coisa fresca que fluía sobre a minha mão. Aquela palavra viva despertou minha alma, deu-lhe luz, esperança, alegria, enfim, libertou-a! Ainda havia barreiras, é verdade, mas barreiras que poderiam ser varridas com o tempo” (KELLER, 2008, p.21)

A entrada de Helen Keller no universo simbólico vem acompanhada de um salto

para uma posição de onde seria possível observar o mundo pela rede simbólica. O animal

                                                                                                                                       22 KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008, p.15

 

91    

   

simbólico emerge na experiência e o resultado disto para menina foi o ganho do mundo

humano ideal na realidade simbólica. Helen adentra a linguagem e compreende o exato

efeito da fala na linguagem. Para Cassirer (1994), ilustrou o fato de que, com o primeiro

entendimento do simbolismo da fala ocorre uma verdadeira revolução na vida da criança.

A partir desse momento, toda a sua vida pessoal e intelectual assume uma forma

inteiramente nova. De um modo geral, essa mudança pode ser descrita – em Cassirer -

dizendo que a criança passa de um estado mais subjetivo para um estado objetivo, de uma

atitude simplesmente emocional para uma atitude teórica. A mesma mudança pode ser

observada na vida de qualquer criança normal, embora de maneira muito menos

espetacular. A própria criança tem um sentido claro de significado do novo instrumento

para o seu desenvolvimento mental. Ela não se satisfaz em aprender de modo puramente

receptivo, mas assume um papel ativo no processo de fala, que é ao mesmo tempo um

processo de objetivação progressiva. Assim como para Helen, o ganho para o universo

simbólico foi uma experiência absolutamente iluminadora, sua professora Anne Sullivan

também descreveu esse processo, dizendo que:

“Durante todo o caminho de volta para à casa Helen estava altamente excitada e aprendeu o nome de cada objeto que tocava, de modo que em poucas horas ela acrescentara 30 novas palavras ao seu vocabulário (...) Na noite passada, quando me deitei, ela correu para os meus braços espontaneamente e me beijou pela primeira vez, pensei que meu coração estouraria, tão cheio de alegria que estava.” (KELLER, 2008, p.302)

Anne Sullivan percebe um traço sensível da experiência de Helen Keller, o estado

de felicidade da menina subsequente a experiência de entrada na rede simbólica. A menina

não apenas aprendera novas palavras, mas compreendeu que tudo tem um nome e é função

do homem nomear seu mundo. Hellen Keller, encontrara ali a chave para toda a

linguagem, um universo de infinitas possibilidades de sentido, ela mesma descreve este

fato na volta para a casa da seguinte forma:

“Eu tinha agora a chave para toda a linguagem e estava ansiosa para aprender a usá-la. As crianças que ouvem, aprendem a linguagem sem qualquer esforço especial; as palavras que caem dos lábios alheios são pegas por ela no ar, como se diz, prazerosamente, enquanto a criança surda precisa aprendê-la numa armadilha através de um lento e geralmente penoso processo. Contudo, seja qual for o processo, o resultado é maravilhoso. De nomear um objeto, avançamos gradualmente passo a passo até atravessarmos a vasta distância entra a nossa primeira

92    

   

sílaba gaguejada e o relâmpago de um pensamento num verso de Shakespeare” (KELLER, 2008, p.28)

O mundo de Helen Keller é invadido por símbolos e a sensação é traduzida com

extrema felicidade. Helen Keller (2008) afirma que antes da chegada da sua professora,

não sabia que eu era vivendo em um mundo que não era um não-mundo, sem vontade nem

intelecto com apenas um certo ímpeto natural cego. No exemplo de Helen Keller, as

dimensões trabalhadas até aqui sobre o sentido da vida, mais uma vez ficam em evidência.

O processo de atribuir significado as palavras propõe a menina um movimento recorrente

de atribuição de sentido em tudo em que está objetivando em seu mundo. Segundo Berger

(2008), para longe da linguagem, Helen Keller também não possuía um senso ético. Anne

Sulivan descreveu-a como uma “tirana” com um temperamento violento, impossível de ser

controlado pela família e cujas “mãos não-educadas e insatisfeitas destroem o que quer que

toquem” (KELLER, 2008, p.287). As rápidas mudanças que chegaram com a aquisição

inicial da linguagem por Helen, como ela e Anne Sullivan descreveram, não foram apenas

cognitivas, mas também morais. Pouco depois da famosa revelação linguística junto ao

poço, Helen voltou para a casa e encontrou pedaços de uma boneca que quebrara

anteriormente naquele mesmo dia. Tentou então, sem conseguir, juntar os pedaços, e

afirmou que: “meus olhos se encheram de lágrimas, pois percebi o que fizera e, pela

primeira vez, senti arrependimento e tristeza” (KELLER, 2008, p.22). O ganho da

dimensão ética é mais um fruto do processo de entrada de Hellen Keller na forma

simbólica da linguagem. Aquilo que havia em princípio começado com uma simples

palavra, dispara um processo de formação de caráter na menina. Para Cassirer (1994), os

primeiros nomes que a criança faz uso podem ser comparados à bengala com que o cego

tateia seu caminho. A experiência de Srta Keller, tateando os objetos pós a descoberta da

palavra “água”, evidencia a analogia. E na linguagem, como um todo, torna-se a porta para

um novo mundo de articulação no símbolo. Nela, todo progresso abre uma nova

perspectiva, amplia e enriquece nossa experiência concreta.

Neste momento do trabalho, adotar a expressão sentidos para a experiência de

Helen Keller possivelmente seja o movimento mais adequado, inserida na rede simbólica, a

tudo buscava significar, ela mesma afirma que no início era apenas uma pequena massa de

possibilidades. A interferência da Srta. Sullivan quem as desdobrou e desenvolveu.

93    

   

“Quando ela veio, tudo em torno de mim passou a exalar amor e alegria e tornou cheio de

significado” (KELLER, 2008, p.37). Em outro momento, denomina esta transição como:

“os muitos incidentes no verão de 1887 que se seguiram ao súbito acordar da minha alma”

(p.23)

Do chão da existência Helen Keller grita diante do silencio de um possível não-

sentido atribuindo sentido para tudo quanto encontra e enquanto encontra significado

desfruta da felicidade presente descrita no capítulo dois. Sua história deve ser lembrada

como ilustração de alguém que, na multidão dos sentidos da rede simbólica, foi

significando a sua própria vida. Possivelmente, a experiência individual de Helen Keller

não ecoe em muitas situações cotidianas, mas já não é mais possível desconsiderá-la na

busca do homem contemporâneo por sentido.

“Sua vida se tornou uma lenda. Surda, cega, aprendeu a linguagem – na verdade tão bem, que obteve um bacharelado em inglês cum laude na faculdade de Radcliffe e escreveu 14 livros” (KELLER, 2008, p. 7)

94    

   

CONCLUSÃO

No caminho construído por este trabalho, procuramos compreender uma questão

contemporânea sobre o homem e uma atual perda de sentido. Essa perda é fruto de uma

observação da condição humana, não está calcada sobre uma pesquisa empírica nem sobre

uma elaboração filosófica pré-formulada, mas sobre uma experiência cotidiana evidenciada

pela busca constante do homem pelo alívio de uma dor ou desconforto existencial. Uma

outra sugestão foi a ideia de que a perda de sentido demonstrava uma herança histórica em

homens de outro tempo, a época retratada nas histórias antigas. A pesquisa proposta para o

trabalho procurou em todo o tempo, especialmente ao final de cada capítulo, retornar à

experiência sensível do homem diante das formulações propostas pelos autores estudados.

O caminho que nos levou ao confronto com esta perda de sentido do homem

contemporâneo teve início em uma pergunta sobre a natureza humana, em que

encontramos a construção de Ernst Cassirer. Diante de um questionamento sobre o

conhecimento do homem a respeito de si, Cassirer (1994) afirmou que seria esta a mais alta

meta do pensamento filosófico em geral. A busca empreendida pelo autor seguiu uma

análise histórica sobre o pensamento filosófico no entorno do conhecimento do homem, o

que o motivou a encontrar um princípio organizador para explicitar a natureza humana. No

debate com os cientistas do século XX, Cassirer (1994, p. 50) encontra no contraponto

feito à racionalidade do homem o ápice do que é tipicamente humano.

O autor nos entregou o primeiro delimitador relevante para pensar o homem, a ideia

de que, se ele seria adequadamente definido como animal (como queriam os biólogos), não

seria a racionalidade seu traço mais característico, mas o símbolo. Logo, o que já era

consenso entre a comunidade científica do homem como animal racional, dá lugar em

Cassirer ao animal simbólico. As evidências do autor para justificar seu posicionamento

lançaram luz em pontos importantes para o desenvolvimento deste trabalho. O primeiro

ponto – qualquer animal se desenvolveu num meio que emprega um sistema receptor e

efetuador. Os exemplos deste universo dos animais foram explorados também em Aganben

(2130) – não o universo no qual estes animais reagem aos estímulos oferecidos pela

natureza em vez de estar apenas se adaptando ao seu ambiente, mas se ajustando

devidamente diante de qualquer variação no seu universo de interação para que continue

95    

   

sobrevivendo a este mundo. No homem, este sistema de recepção e efetuação funciona a

mesma forma. No entanto, para Cassirer (1994. P. 47-48), o homem descobriu um novo

método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema de recepção e de efetuação

desenvolveu um terceiro chamado sistema simbólico, que lhe possibilita não apenas uma

realidade mais ampla, mas principalmente uma nova dimensão da realidade. Esta

conclusão sobre o homem simbólico nos encaminhou para um segundo ponto importante

na conclusão: a rede simbólica de Cassirer, como filósofo da cultura, está em todo o tempo

buscando encontrar organizadores para a atividade humana no mundo. O conceito de rede

simbólica consolida o raciocínio do autor nessa direção: para Cassirer (1994), o homem se

envolve de tal maneira na atividade de produzir símbolos que não consegue acessar a

realidade de nenhuma outra maneira que não pela interposição desse meio artificial. Duas

experiências validaram a proposta do autor: Helen Keller e Levi Strauss.

Helen Keller assumiu papel de protagonismo na obra de Cassirer e,

consequentemente, neste trabalho. Ela evidencia a exata passagem do animal racional para

o animal simbólico. A garota americana, cega e surda, se apresenta em uma cena

memorável junto à cisterna da sua casa no aprendizado do efeito simbólico da palavra

“água”. O efeito simbólico na menina contribui para a articulação de sentido em um

mundo mais amplo, onde a palavra não estava mais “trancada em seu objeto” (Cassirer,

1994, pg.61). Antes de um olhar conclusivo na experiência individual de Helen Keller, a

experiência do antropólogo Levi Strauss foi evocada. O autor contribuiu para uma

conclusão sobre a eficácia coletiva deste sistema simbólico em uma cultura de povos

primitivos: se é verdade que há um homem simbólico, nestas culturas se encontram as

evidências da eficácia do símbolo na construção do universo de significação do homem.

Na experiência individual da Srta. Keller, e nas evidências da eficácia do símbolo

em Levi Strauss, uma pergunta crucial surgiu para o trabalho: se o homem pode ser

considerado um animal simbólico e sua natureza está prescrita na atividade de produzir

símbolos, como poderia ele sofrer uma ausência de sentido se a tudo significa em todo o

tempo? Diante desta pergunta, o primeiro capítulo se encerrou com os ganhos do homem

simbólico para a discussão e suas diferentes expressões e presença no mundo. Diante de

96    

   

um mundo científico altamente expressivo, o retorno de uma resposta filosófica trouxe à

tona a possibilidade de pensar o homem com um fator organizador: o símbolo.

De posse do homem simbólico que a tudo significa, encontramos no autor brasileiro

Lima Vaz uma possível “origem” para o não-sentido moderno e contemporâneo. O autor

contribuiu para uma clarificação sobre o que seria a dimensão existencial da crise de

sentido vivenciada pelo homem, e localizou no advento da modernidade seu marco mais

representativo. Em meio a esta realidade, e motivado pelo modelo poiético de

conhecimento que aponta para o que é útil, surge a imanência do próprio sujeito como

significação do objeto (VAZ, 2002, p.164). O principal produto para o autor deste processo

de imanência do sujeito foi o homem assumir para si a tarefa de significar o seu mundo,

um ser imanente que traz para si a responsabilidade da transcendência, atraindo assim uma

crise profunda no universo simbólico do homem VAZ, 2002, p.172). O não-sentido do

homem, nesta acepção existencial, colocou-nos em uma pergunta crucial: existe a

possibilidade de, na modernidade, a vida ter um sentido único? A resposta foi tratada em

dois autores: Albert Camus e Fernando Savater, que nos apontaram uma conclusão

importante sobre o homem e sua elaboração do sentido da vida.

Camus colocou-nos diante da resposta indigesta do absurdo. No que denominou

“esquivas” (CAMUS, 2014, pg.23) para a problemática do sentido da vida, sendo a

esperança e o suicídio, propôs um caminho de investigação tipicamente moderno (ao

moldes da problemática de Vaz) em que é o homem o responsável por buscar uma resposta

para o sentido da vida e não via algo que pudesse superá-lo ou o transcendê-lo. A

conclusão de Camus por pouco não elimina todo um processo de construção. Sua resposta

para o sentido da vida está no homem absurdo que lida com a vida como se ela não tivesse

um sentido: no estrangeiro, no conquistador e principalmente em Sísifo, encontra um

homem que torna desnecessária a esperança de a vida ter um sentido (CAMUS, 2013,

pg.124). A resposta do homem absurdo está em uma felicidade presente e encontrou eco no

raciocínio de Savater (2011) em uma vida que não tem um porquê, mas encontra na alegria

uma maneira de lutar contra o mal do desespero de uma ausência de sentido. Antes da

conclusão do capítulo dois, recorremos ao mesmo caminho construído no capítulo um:

uma validação da tese filosófica pela experiência. Encontramos um exemplo nas

97    

   

experiências de Primo Levi e Viktor Frankl em Auschwitz. No limiar de uma experiência

humana, no que seria possivelmente o maior não sentido humano na modernidade, alguma

resposta poderíamos encontrar sobre a pergunta do sentido da vida. As experiências de

ambos são angustiantes, não há gritos neste silêncio da história humana. Toda a estrutura

de significação estabelecida de um sujeito com determinados objetos é refeita em

Auschwitz, assim como novas formulações de sentido são necessárias e outros caminhos

são tomados no trânsito da rede simbólica. Diante da construção filosófica do capítulo

dois, e da experiência dos prisioneiros no holocausto, uma conclusão determinante para a

pergunta inicial do trabalho emerge.

A ideia de que se a vida não tem um sentido único, no homem simbólico ela pode

ter sentidos. Na multiplicidade de significados e de formas simbólicas, o homem acessa o

mundo pela rede simbólica e em todo o tempo atribui um sentido. Sísifo estabeleceu um

sentido, menor, não abrangente da vida como um todo e o nomeou como alegria. Em

Savater, felicidade. Para os prisioneiros de Auschwitz, momentos de contemplação e

reflexão em uma expectativa futura aliada a experiências com a família. No caos, Levi e

Frankl encontraram, em um universo mais restrito, alternativas possíveis de sentidos

momentâneos. O homem simbólico de Cassirer ganha força e mais expressão diante das

difíceis questões existenciais enfrentadas no capitulo dois. Para nós fica a constatação de

que, de fato, a vida não tem um sentido, mas a possibilidade de uma infinidade de sentidos.

Identificá-los nas situações cotidianas, no momento presente, estão entre as alternativas de

resposta para o homem contemporâneo. Diante do sentimento do absurdo, a saída pela

esperança não é uma resposta legítima para Camus, mas se assim o entender o homem

contemporâneo, a esperança pode estar – como em Viktor Frankl em Auschwitz – na busca

por um mundo “ideal” como quer Cassirer nas diferentes formas simbólicas.

A evidência das conclusões propostas até aqui ganham vida no seu exemplo mais

significativo no capítulo três: a história de Helen Keller e sua entrada no universo

simbólico pela linguagem. Para compreender a forma simbólica da linguagem, algumas

conclusões em Cassirer foram importantes. Aparentemente, um caminho repetitivo seria

dizer que Cassirer novamente dialoga com os biólogos de seu tempo. No entanto, vale

reforçar que o autor está inserido no debate científico do século XX em uma

98    

   

predominância científica a respeito do homem. Para Cassirer (1994), a fala humana é o

aspecto característico da diferença para os sons emitidos pelos animais. Diante de qualquer

possibilidade de uma similaridade aparente, há um traço característico que demarca o

distanciamento de um animal em detrimento do homem. Em Susanne Langer (2004)

encontramos mais evidências da tese defendida por Cassirer e nos serviu de base segura

para pensar a experiência de Helen Keller como um salto para o mundo humano. Na

história de Helen Keller, o ganho para um mundo humano assume forma em diversos

relatos da sua professora Anne Sullivan, com especial atenção para o ganho do senso ético

(KELLER, 1998, p. 21), relação com o sagrado e o amor (p. 22), e todas as outras

expressões relatadas pela própria Hellen Keller, que responde a esta experiência, com uma

resposta existencial, de maneira que merece ser rememorada: “antes da chegada da minha

professora, eu não sabia que eu era” – escreveu em The World I Live In – “eu vivia num

mundo que não era um não-mundo, não tinha vontade nem intelecto (...) apenas um certo

ímpeto natural cego”. Diante de todas as experiências de Helen Keller, em uma leitura

sobre a sua entrada no mundo simbólico na experiência na cisterna e o relato da sua alegria

ao descobrir, pela linguagem, a efeito simbólico das palavras e seus significados,

encontramos a evidência de um ganho de sentido. Não foi possível afirmar que a Srta.

Keller articulou todo o sentido da sua vida, mas com alguma convicção podemos dizer que

descobriu naquele momento algum sentido, ou ainda, uma forma de atribuir sentido, pela

linguagem.

Helen Keller é o animal simbólico de Cassirer. Para nós é uma possível resposta

diante da pantomima das coisas e do desafio de romper com o suceder de dias sem sentido,

articulando novos sentidos, em diferentes formas simbólicas, e no momento presente.

99    

   

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