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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ DILLION ARPIS BRAZ FERREIRA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA E HERMENÊUTICA CURITIBA 2013

UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ DILLION ARPIS BRAZ …tcconline.utp.br/wp-content/uploads/2014/02/JURISDICAO-CONSTITUC... · 2 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica:

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

DILLION ARPIS BRAZ FERREIRA

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA E

HERMENÊUTICA

CURITIBA

2013

DILLION ARPIS BRAZ FERREIRA

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA E

HERMENÊUTICA

Monografia apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Doutor André Peixoto de Souza

CURITIBA

2013

TERMO DE APROVAÇÃO

DILLION ARPIS BRAZ FERREIRA

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA E HERMENÊUTICA

Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Bacharel em Direito, no curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, _____ de ____________________ 2013.

________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Oliveira Leite

Coordenador do Núcleo de Monografias Universidade Tuiuti do Paraná

Orientador:_______________________________ Professor Doutor André Peixoto de Souza Universidade Tuiuti do Paraná _______________________________ Professor Universidade Tuiuti do Paraná _______________________________ Professor Universidade Tuiuti do Paraná

Ao meu pai, Marcelo, à minha mãe, Elizabete,

ao meu irmão, Pedro Vitor e à minha irmã, Kiciani,

pois sem eles absolutamente nada seria possível!

Agradeço inicialmente à minha família,

a cuja sempiterna contribuição sou eternamente grato.

Ao meu orientador, professor André Peixoto de Souza,

por ter acreditado na realização deste trabalho e aceitado

pronta e bondosamente a orientação quando solicitado.

Aos professores Francisco Pinto Rabello Filho e Danielli Webber Santos Costi

e ao advogado Jean Dal Maso Costi pela amizade, reconhecimento e

contribuição na minha formação.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO................................................................................ 10

2. A FORMAÇÃO DO ESTADO CONSTITUCIONAL

CONTEMPORÂNEO................................................................................... 13

2.1. ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO

CONTEMPORÂNEO................................................................................... 13

2.1.1. Os precedentes históricos................................................................ 15

2.1.2. Os precedentes filosóficos: construção do pós-positivismo?........... 16

2.2. REFERENCIAIS TEÓRICOS DA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA 17

2.2.1. A força normativa da Constituição.................................................... 17

2.2.2. A expansão da jurisdição constitucional........................................... 18

2.2.3. A reelaboração da interpretação constitucional............................... 20

2.3. A CONSTRUÇÃO DUMA NOVA INTERPRETAÇÃO

CONSTITUCIONAL..................................................................................... 21

2.4. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO................................... 24

2.5. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE...................................................... 25

2.6. NEOCONSTITUCIONALISMO......................................................... 29

3. CONDIÇÕES PARA A EXPANSÃO INSTITUCIONAL DO PODE R

JUDICIÁRIO NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO..... ....... 33

3.1. PANORAMA DA EXPANSÃO GLOBAL DO PODER

JUDICIÁRIO................................................................................................ 33

3.2. A EXPANSÃO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO NO REGIME

CONSTITUCIONAL PÓS-1988................................................................... 35

3.2.1. O panorama político......................................................................... 35

3.2.2. O panorama institucional.................................................................. 37

3.2.3. O panorama interpretativo................................................................ 42

4. CRIAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO: AS FUNÇÕES

LEGISLATIVA E JURISDICIONAL E A PROBLEMÁTICA DA

INTERPRETAÇÃO..................................... ............................................... 50

4.1. A FUNÇÃO LEGISLATIVA E A FUNÇÃO JURISDICIONAL............ 50

4.2. A DIFERENÇA ENTRE O TEXTO E A NORMA.............................. 52

4.3. “VONTADE DA LEI” E “VONTADE DO LEGISLADOR” .................. 56

4.4. A PARTICIPAÇÃO DO INTÉRPRETE NA CRIAÇÃO

DA NORMA................................................................................................. 60

4.5. O PODER DE LEGISLAR E O PODER DE DIZER O DIREITO...... 65

5. A CONSTITUIÇÃO E O PAPEL DA JURISDIÇÃO

CONSTITUCIONAL: JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO .............................. 69

5.1. O EMBATE ENTRE AS TESES PROCEDIMENTALISTAS

E SUBSTANCIALISTAS............................................................................. 69

5.2. A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS..... 74

5.3. ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA.............. 76

5.3.1. Notas preliminares............................................................................ 76

5.3.2. Judicialização da política.................................................................. 77

5.3.3. Ativismo Judicial............................................................................... 85

5.4. O ALARGAMENTO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL E A CRISE DE

LEGITIMIDADE DOS ELEITOS.................................................................. 89

5.5. A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DOS JUÍZES À LUZ DA

CONSTITUIÇÃO......................................................................................... 91

5.6. JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO, CRISE DEMOCRÁTICA E POSSÍVEL

ASCENSÃO DE UMA JURISTOCRACIA? ................................................ 94

6. CONCLUSÃO...................................... ............................................ 102

7. BIBLIOGRAFIA.................................... ........................................... 106

RESUMO

O presente trabalho se propõe a uma análise hermenêutica da

jurisdição constitucional democrática brasileira e de algumas questões com as

quais se defronta. A atual jurisdição constitucional democrática, de cunho

inegavelmente compromissário, dirigente e vinculador, exsurge como um

modelo paradigmático, provocando inúmeras rupturas. Entretanto, por força de

características não só da nossa tradição como também dos tempos presentes,

a dificuldade em assimilar-se o novo e em aplicá-lo é enorme. Inicialmente,

pretende-se entender, em linhas gerais, o modelo de Jurisdição Constitucional

Democrática do Estado Contemporâneo. Uma vez expostos os caracteres do

atual modelo, busca-se identificar as grandes questões que enfrenta a

Jurisdição Constitucional. A principal fonte de pesquisa será a bibliográfica,

abrangendo a leitura, análise e interpretação de livros, artigos, jurisprudência,

periódicos e textos legais.

Palavras-chave: Jurisdição Constitucional. Constitucionalismo Democrático.

Hermenêutica. Interpretação. Ativismo. Judicialização.

1. INTRODUÇÃO

No decorrer do século XX, o discurso acerca do Estado atravessou três

fases distintas: a pré-modernidade (Estado liberal), a modernidade (Estado

social) e a pós-modernidade (Estado neoliberal). Em meio a essa transição, a

triste constatação é a de que o Brasil chega à pós-modernidade sem haver sido

liberal nem moderno. Conforme destaca Luís Roberto Barroso, “Herdeiros de

uma tradição autoritária e populista, elitizada e excludente, seletiva entre

amigos e inimigos – e não entre certo e errado, justo e injusto –, mansa com os

ricos e dura com os pobres, chegamos ao terceiro milênio atrasados e com

pressa.”1.

O constitucionalismo inaugurado pela Constituição Federal de 1988

trouxe consigo inúmeras inovações. Contudo, passados mais de 24 (vinte e

quatro) anos de existência da Constituição Federal, muitos são os problemas

que fazem com que expressiva parcela dos dispositivos não obtenha efetivação

e que cada vez mais se recorra ao Poder Judiciário para solucionar questões

sociais e políticas de todos os tipos, ensejando uma acentuada ascensão

desse Poder e, por conseguinte, inúmeros questionamentos a respeito da sua

atuação.

Com a jurisdição constitucional democrática surge um modelo de

Direito e de Estado jamais vistos anteriormente. Este novo modelo, por óbvio,

não está imune a críticas e a defeitos, sobretudo porque, assim como sói

acontecer ao novo e ao que nos é contemporâneo, sua leitura se dá com certa

dificuldade e não raras vezes de modo insuficiente, causando estranheza e 1 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 306.

perplexidade.

Sob esse panorama – não haverá negar – a atual jurisdição

constitucional democrática, de cunho inegavelmente compromissário, dirigente

e vinculador, exsurge como um modelo paradigmático, provocando inúmeras

rupturas. Entretanto, por força de características não só da nossa tradição

como também dos tempos presentes, a dificuldade em assimilar-se o novo e

em aplicá-lo é enorme.

Há uma crise no Direito que se manifesta de diferentes formas e em

vários níveis. Faz-se oportuno, destarte, que alguns questionamentos sejam

formulados, referentes a pontos como: o desenvolvimento e os caracteres do

atual modelo de jurisdição constitucional; as teorias que dão sustentáculo ao

sistema; o papel do Poder Judiciário no cenário contemporâneo; e os

problemas enfrentados pelo modelo vigente.

À análise aqui proposta impõem-se duas restrições: a primeira diz

respeito ao fato de que o presente trabalho tem enfoque na ascensão do Poder

Judiciário no atual contexto, o que exclui ênfase nos demais poderes; a

segunda restrição – umbilicalmente ligada à primeira –, é a de que a jurisdição

constitucional democrática será vista sob feição particular, vale dizer, como

produção e circulação do Direito no âmbito do Poder Judiciário, ou, ainda, das

respostas em Direito.

Uma adequada compreensão do paradigma inaugurado pela jurisdição

constitucional democrática, levada a cabo por intermédio de uma interpretação

coerente com os compromissos assumidos, parece ser um bom começo para

solucionar as questões apontadas.

A análise se dará sob o viés da jurisdição constitucional, mais

especificamente quanto ao poder Judiciário, o que exigirá uma discussão

acerca do papel da Constituição e da Justiça Constitucional no Estado

Democrático de Direito. Guiados por uma hermenêutica emancipadora, convém

visitar o atual estado de produção e circulação jurídicas, sempre desd’o

altiplano da jurisdição constitucional, a fim de se inquirir dialeticamente acerca

da coerência dos rumos preconizados por esse paradigma revolucionário e a

forma com que efetivamente se realiza e os problemas com que tem se

deparado.

A razão que motiva o presente estudo advém do descompasso existe

entre as características do atual modelo – assumido pela Constituição Federal

de 1988 – e a sua realização. Atualmente, já não parecer haver mais pejo em

violar as exigências da jurisdição constitucional democrática. O desafio que se

põe aos juristas, assim, é a produção de justiça material, o que obviamente

deverá começar pela adequada compreensão das características da jurisdição

constitucional e de seus comprometimentos.

Como bem lembra Lenio Streck, “o velho modelo de Direito (de feição

liberal-individualista-normativista) não morreu, e o novo modelo (forjado a partir

do Estado Democrático de Direito) não nasceu ainda”2. Assim, a leitura há de

ser feita a partir do modelo constitucional precisamente porque é ele que criou

e que conduz o modelo de sociedade política e jurídica em que vivemos.

Por fim, importante ressaltar-se que, para o desiderato proposto, não

se deverá perder de vistas os atributos mencionados, pois imprescindíveis à

compreensão do tema.

2 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 2.

2. A FORMAÇÃO DO ESTADO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNE O

2.1 ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO CONTEMPORÂNEO

O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século

XX3. A discussão a seu propósito, portanto, afigura-se de inconteste

importância, sobretudo em países como o Brasil, onde, por força da própria

formação social, política e jurídica, nada é simples.

Predecessor do Estado Constitucional, o Estado de Direito consolidou-

se na Europa ao longo do século XIX com a adoção do modelo preconizado

pela Revolução Francesa, com ênfase na separação de poderes e na proteção

dos direitos individuais. A partir do final da 2.ª Guerra Mundial, porém,

desenvolve-se o Estado Constitucional de Direito, acentuadamente

aprofundado no fim do século XX.

Este novo modelo de Estado trouxe consigo a ideia de subordinação da

legislação inferior como uma de suas principais características. A validade das

leis não mais dependia apenas da sua forma de produção, senão também da

compatibilidade de seu conteúdo com as normas constitucionais. Outra grande

inovação repousa no fato de a Constituição não mais se restringir à imposição

de limites às funções estatais (legislativa, administrativa e judiciária), mas

também de lhes determinar deveres positivos de atuação.

A Ciência do Direito e a jurisprudência passam a desempenhar papéis

renovadamente críticos, com destaque para a doutrina de invalidação de atos

3 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 1.

legislativos e administrativos, quando contrários às normas constitucionais,

bem como para a aceitação do papel criativo na interpretação dos enunciados

legais e constitucionais.

Neste cenário, augura-se uma nova forma de democracia que não mais

se limita ao direito de eleger representantes políticos. O debate político assume

contornos mais largueados em um contexto de livre circulação de ideias e de

informações, observados sempre os direitos fundamentais, que doravante

representam função racionalizadora, conformadora e limitadora das decisões

políticas e jurídicas importantes.

Em meio a essa conjuntura transacional, convém render tributos, com

especial ênfase, às noções de constituição dirigente, de constituição

compromissária e da força normativa da constituição, que não podem ser

tratadas secundariamente num país – como o Brasil – no qual grande parte de

seu texto constitucional encontra-se pendente de efetivação.

A propósito da Constituição e da Jurisdição Constitucional, há duas

correntes teóricas que predominam na disputam pela primazia da concepção

do seu papel institucional ideal4: o substancialismo, do qual são corifeus

autores como Dworkin e Rawls; e o procedimentalismo, defendido por

doutrinadores como Habermas e Ely. Embate certamente profícuo, o tema será

objeto de análise mais adiante – longe, por óbvio, da pretensão de esgotá-lo.

Nesse contexto, o Direito de uma maneira geral – e não só o

constitucional – passou por um conjunto amplo de transformações que mudou

a forma como a sua ciência, o direito positivo e a jurisprudência são

compreendidos e praticados. Não são poucas as mudanças, razão pela qual

4 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 3.

cabe delinear, neste trabalho, apenas aquelas que estão no centro

paradigmático: a Constituição e o novo papel que passou a desempenhar nas

democracias contemporâneas.

Assim, no rumo das transformações por que passam o Direito

Contemporâneo, podemos afirmar, com Luís Roberto Barroso, que ideias como

“a normatividade da Constituição, a diferenciação menos rígida entre direito

público e direito privado, a ampliação da jurisdição constitucional e a

judicialização das questões sociais e políticas tornaram-se correntes nas

instituições e nos debates atuais”5.

2.1.1. Os precedentes históricos

O referencial histórico que marca essa nova compreensão do direito

constitucional é o constitucionalismo pós-guerra, iniciado com as Constituições

do México (1917), da Itália (1947) e da Alemanha (1949). A partir desses

marcos iniciou-se uma ideia de redefinição do lugar da Constituição e da

influência do Direito Constitucional sobre as instituições, o que desencadeou,

na década de 70 do século passado, a redemocratização de países como

Grécia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978). Segundo Luís Roberto

Barroso, a principal referência de transformação do Direito Constitucional de

tradição romano-germânica foi o Tribunal Constitucional Federal alemão, criado

em 1951, e sua vasta produção teórica e jurisprudencial6.

No Brasil, o reavivamento do Direito Constitucional igualmente ocorreu

num ambiente de reconstitucionalização do país, o quê se deu por ocasião da 5 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 5. 6 Idem, ibidem.

Constituição Federal de 1988. Em que pesem algumas vicissitudes no seu

texto, bem como a torrente de emendas que insistem em seguirem-se, a

Constituição brasileiro logrou promover a transição de um Estado de regime

autoritário para um Estado Democrático de Direito, proporcionando assim o

período mais longo de estabilidade institucional da história republicana do país

e fazendo com que o texto constitucional passasse ao apogeu.

2.1.2. Os precedentes filosóficos: construção do pós-positivismo?

O novo direito constitucional tem seu marco teórico no que se sói

denominar pós-positivismo. Muito embora a indeterminação e a problemática

quanto ao tema – inclusive se de fato está, ou não, superado o positivismo

jurídico, ao contrário do que propalado por muitos –, a concepção adotada é no

sentido de um Direito que não se desconecta de uma filosofia política, moral e

jurídica, contestando a separação estanque entre essas disciplinas.

Não se trata de negativa dos domínios específico de cada área.

Evitando-se extremos, busca-se uma articulação intermediária que propicie

uma dialética de complementaridade entre os aludidos domínios do saber.

Visa-se a uma teoria de legitimação democrática e de justiça material, inclusive

mediante o diálogo complementar entre várias áreas do conhecimento humano.

A propósito, é bastante elucidativa a síntese de Luís Roberto Barroso:

A doutrina pós-positivista se inspira na teoria da justiça e na legitimação democrática. Nesse contexto, busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença

qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a Ética7.

A queda do positivismo e a ascensão de uma nova hermenêutica

jurídica, de perfil compromissário com a reintrodução do mundo fático no

Direito, apontam para o reconhecimento da impossibilidade de autossuficiência

de um Direito com fundamentos em categorias lógico-formais de fechamento

do sistema. Diversamente, ao escopo de melhor atender ao fim (a

humanidade), sem perder-se no caminho, predomina uma abertura dialógica

com as demais áreas do conhecimento humano sem que se sobreponham

entre si.

2.2. REFERENCIAIS TEÓRICOS DA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA

2.2.1. A força normativa da Constituição

Entre as grandes mudanças ocorridas no século XX está a atribuição

status de norma jurídica à norma constitucional, superando-se o modelo então

adotado na Europa até meados daquele século, que entendia a Constituição

como um documento essencialmente político em que apenas se estatuía

alguns comandos de atuação aos Poderes Públicos.

Após a década de 50 do século XX, assistiu-se ao começo da mudança

desse entendimento na Alemanha, daí estendendo-se a outros países

europeus. No Brasil, a ideia de que a Constituição é uma norma jurídica dotada

7 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 7.

de aplicabilidade direta e imediata somente se desenvolveu a partir da década

de 80, consolidando-se com a vigência da Constituição Federal de 1988.

Todavia, há pouco tempo apenas que passou a ser consenso entre os

juristas a força normativa ao Direito Constitucional, de caráter vinculativo e

obrigatório de seu texto, bem como o reconhecimento à Constituição de

imperatividade de seus dispositivos, atributo essencial de todas as normas

jurídicas, cuja não observância dá azo a mecanismos próprios de proteção e de

cumprimento forçado.

Contudo, convém abrir um pequeno parêntese para ressaltar que a

pretensão de normatividade de seus dispositivos com alguma frequência

encontra resistência na realidade fática e na vontade de manutenção do status

quo.

2.2.2. A expansão da jurisdição constitucional

Na esteira da doutrina inglesa de soberania do parlamento e da

concepção francesa da lei como expressão da vontade geral, predominava na

Europa, antes de 1945, um modelo que defendia a supremacia do Poder

Legislativo.

Todavia, já no fim da década de 40 do século passado, erige-se um

entendimento embrionário sobre uma nova abordagem do constitucionalismo

que traz consigo não apenas novas constituições, mas também um novo modo

de encará-la, baseado na experiência norte americana, que preconiza a

supremacia da Constituição no ordenamento jurídico interno.

Essa nova fórmula inclui a constitucionalização de direitos

fundamentais, que passam a gozar de imunidade na formação do processo

político majoritário e tem o seu eixo de proteção deslocado para outro poder.

A proteção dos direitos fundamentais, doravante incluídos nas

constituições, desloca-se ao Poder Judiciário, responsável pela sua garantia

inclusive em relação à formação majoritária no processo político. Trata-se de

fenômeno que se pode chamar de contramajoritarismo, idealizado para a

proteção de regras nucleares e também dos direitos fundamentais previstos na

Constituição. Dessa proteção incumbe-se com especial dignidade o Poder

Judiciário de tal arte a não apenas estar legitimado a rever os atos dos demais

poderes, mas também a legislação promanada pelo Poder Legislativo – e, na

experiência brasileira, também o pelo Poder Executivo.

Na experiência constitucional, cuida-se de fenômeno que se

convencionou chamar controle de constitucionalidade. A propósito, leciona Luís

Roberto Barroso:

Hans Kelsen foi o introdutor do controle de constitucionalidade na Europa, na Constituição da Áustria, de 1920, aperfeiçoado com a reforma constitucional de 1929. Partindo de uma perspectiva doutrinária diversa da que prevaleceu nos Estados Unidos, concebeu ele o controle como uma função constitucional e não propriamente como uma atividade judicial. Para tanto, previu a criação de um órgão específico – o Tribunal Constitucional – encarregado de exercê-lo de maneira concentrada. Assim se passou, inicialmente, na Alemanha (1951) e na Itália (1956), como assinalado. A partir daí, o modelo de tribunais constitucionais se irradiou por toda a Europa continental. A tendência prosseguiu com Chipre (1960) e Turquia (1961). No fluxo da democratização ocorrida na década de 70, foram instituídos tribunais constitucionais na Grécia (1975), na Espanha (1978) e em Portugal (1982). E também na Bélgica (1984). Nos últimos anos do século XX, foram criadas cortes constitucionais em países do leste europeu, como a Polônia (1986), Hungria (1990), Rússia (1991), República Tcheca (1992), Romênia (1992), República Eslovaca (1992) e Eslovênia (1993). O mesmo se passou em países africanos, como Argélia (1989), África do Sul (1996) e Moçambique (2003)8

8 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 11.

Atualmente, somente o Reino Unido, a Holanda e Luxemburgo ainda

mantêm a supremacia parlamentar, sem que se adote qualquer modalidade de

judicial review9.

O controle de constitucionalidade de cunho incidental existe, no Brasil,

desde a primeira Constituição republicana, de 1891. A denominada ação direta

(antiga ação genérica), destinada ao controle pela via principal – abstrato e

genérico –, foi introduzido pela Emenda Constitucional n.º 16, de 1965. A

jurisdição constitucional, porém, somente expandiu-se verdadeiramente com o

advento da Constituição Federal de 1988, tendo como causa determinante a

ampliação do rol dos legitimados à propositura de ação direta de

inconstitucionalidade, anteriormente circunscrita exclusivamente ao

Procurador-Geral da República – o que foi expressivamente aumentado pela

Constituição Federal de 1989 em seu artigo 103.

Também foi motivo determinante da ampliação da jurisdição

constitucional a criação de novos mecanismos de controle concentrado, tais

como a ação declaratória de constitucionalidade (introduzida pela emenda

constitucional n.º 3, de 1993, e pela Lei n.º 9.868/1999) e a regulamentação da

arguição de descumprimento de preceito fundamental (Lei n.º 9.882/1999).

2.2.3. A reelaboração da interpretação constitucional

Os acontecimentos acima citados provocaram enorme impacto sobre a

hermenêutica jurídica de modo geral, e sobre a interpretação constitucional de

modo especial. A consolidação do constitucionalismo democrático, o 9 Por judicial review entende-se, em parca definição, uma doutrina segundo a qual os atos dos Poderes Legislativo e Executivo, quando estiverem incompatíveis com a Constituição, estão sujeitos à revisão e até mesmo de invalidação pelo Poder Judiciário.

reconhecimento de normatividade da Constituição, a expansão da jurisdição

constitucional e as influências do pós-positivismo ensejaram rupturas

paradigmáticas em relação ao modo de se encarar o direito, mormente o direito

constitucional.

Luís Roberto Barroso cita uma série de outros fatores de ordem

heterogênea que contribuíram decisivamente para o giro em questão: o

pluralismo de visões, valores e interesses que caracterizam a sociedade

contemporânea; as demandas por justiça e pela preservação e promoção dos

direitos fundamentais; as insuficiências e a deficiência do processo político

majoritário, etc10.

No que concerne à interpretação, sofreram significativa influência as

premissas teóricas, filosóficas e ideológicas que lhe davam sustentáculo,

notadamente quanto ao papel da norma, suas possibilidades e seus limites,

problema que deve ser resolvido sem se olvidar o especial enfoque a ser dado

à realidade fática na produção da norma concreta pelo intérprete, que passa

doravante a ter reconhecido uma importância destacada.

Nesse ambiente novo, paralelamente aos elementos tradicionais de

interpretação jurídica e aos princípios específicos de interpretação

constitucional, abriu-se espaço a novas perspectivas e ao desenvolvimento de

novas teorias, incluindo-se aí a criação de novas categorias e a reformulação

de velhas.

2.3. A CONSTRUÇÃO DUMA NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

10 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 12.

O antigo modelo, denominado liberal-positivista, acreditava na

objetividade da atividade interpretativa e na neutralidade do intérprete. Havia

ênfase quase integralmente ao sistema jurídico, é dizer, às premissas jurídicas

que deveriam ser interpretadas e aplicadas ao caso concreto, pois nelas

supostamente estaria contida, em caráter geral e abstrato, a norma jurídica que

deveria regê-lo. O caso concreto, por sua vez, deveria fornecer os elementos

fáticos sobre os quais incidiria a norma, o material que a ela se subsumiria. E o

intérprete, ao seu turno, desempenharia a função técnica de identificar a norma

aplicável, revelando o seu sentido e fazendo-a incidir sobre os fatos do caso

levado à sua apreciação.

Contudo, a evolução da ciência jurídica viria a cindir as bases desse

sistema, fazendo que se lhe fossem desveladas as erronias de seus alicerces.

Se se quisesse evitar os equívocos que então povoava o imaginário dos

juristas, era necessária uma forma de abordagem que revolvesse com

propriedade o chão ideológico-linguístico desse modelo, atribuindo o devido

valor aos elementos supracitados (enunciado legal, caso concreto e intérprete).

Primeiramente, é preciso reconhecer que a norma jurídica fornece

apenas um início de solução, apontando um caminho. Ela não contém, em seu

relato geral e abstrato, todos os elementos para determinação do seu sentido.

Como se verá nos capítulos subsequentes, a ciência jurídica contemporânea

reconhece que não se deve confundir a norma com o enunciado legal (um ou

mais textos). A norma é o produto da interpretação, o que implica nega-lhe a

sua existência em abstrato, pois ela só existe quando concretizada.

Já o problema, isto é, o caso em análise, deixa de ser apenas um

conjunto de fatos que deverá acoplar-se a um enunciado normativo para se

transformar no fornecedor de parte dos elementos que irão produzir a norma.

No que toca ao intérprete, não mais viceja o reconhecimento de que o

seu papel se reduz a uma função de conhecimento técnico, direcionada à

revelação da solução contida no enunciado legal. Em sentido contrário,

hodiernamente ele tem reconhecido o inegável papel de coparticipante no

processo de criação do Direito, já que deve fazer valorações para criar a norma

jurídica que, por sua vez, regerá a situação concreta11.

A dogmática jurídica contemporânea refuta a aceitação do modelo

científico de viés positivista, no qual há absoluta separação entre intérprete e

objeto interpretado.

Em termos de interpretação jurídica, máxime a constitucional, é certo

que o modelo em comento reconhece a impossibilidade de objetivismo e de

neutralidade, porquanto o intérprete, para o bem ou para o mal, inevitavelmente

estará influenciado por sua pré-compreensão do mundo (sua ideologia, seu

inconsciente, etc.), que irá ser fator determinante da sua apreensão da

realidade e dos valores que irão servir de fundamento às suas decisões.

Em suma, o modelo em tela reconhece novos papéis à norma, ao

problema (= caso concreto) e ao intérprete. Este reconhecimento se deve a

diversos fatores, dentre os quais destaca Luís Roberto Barroso:

(i) a melhor compreensão de fenômenos que sempre existiram, mas não eram adequadamente elaborados; (ii) a maior complexidade da vida moderna, assinalada pela pluralidade de projetos existenciais e de visões de mundo, que comprometem as sistematizações

11 Bem aqui é preciso esclarecer – sem, contudo, adentrar no mérito da problemática – que a corrente majoritária inclina-se à aceitação de que não somente ao interpretar os enunciados normativos, mas também ao fazer valorações de sentido das “cláusulas abertas”, o intérprete dispõe de um espaço no qual pode realizar escolhas entre as várias soluções possíveis para um mesmo caso, mormente porque, segundo se diz, a solução poderá não ser unívoca.

abrangentes e as soluções unívocas para os problemas.12

2.4. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

Há razoável consenso de que o marco inicial do processo de

constitucionalização do Direito foi estabelecido na Alemanha. Sob o regime da

Lei Fundamental de 1949 e com a consagração de desenvolvimentos

doutrinários que já vinham de mais longe, o Tribunal Constitucional Federal

alemão assentou que os direitos fundamentais desempenham algo para além

da dimensão subjetiva de proteção de situações individuais: instituem também

uma ordem objetiva de valores.

Tal assertiva se traduz na necessidade de o sistema jurídico proteger

determinados direitos e bens não apenas por eventualmente aportarem algum

proveito a uma ou a algumas pessoas, senão também por existir um interesse

geral da sociedade de que sejam satisfeitos. A constituição, por conseguinte,

condiciona a interpretação de todos os ramos do Direito, quer seja do público,

quer seja do privado, e vincula os poderes estatais e inclusive os particulares.

No Brasil, a constitucionalização do Direito é fenômeno recente – em

que pese ser bastante propalada e caracterizar, em tese, uma atividade um

tanto quanto intensa –, cujo marco inicial pode ser identificado na transição de

importância de textos jurídicos para a centralidade do ordenamento. O

deslocamento da importância do Código Civil permitiu que a Constituição se

alçasse ao centro do sistema, movimento ocorrido inicialmente na Alemanha e

posteriormente na Itália. Nesse sentido, Paulo Bonavides já proclamou:

12 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 13.

“Ontem, os Códigos; hoje, as Constituições...!”13.

Afora a supremacia formal que sempre deteve, a Constituição passa a

gozar de supremacia material e axiológica, vinculando todo o sistema jurídico

às suas regras e princípios. Tal fato possibilitou, no Brasil, que a Constituição

ingressasse no mundo jurídico e no discurso dos juristas com força normativa

sem precedentes, deixando de ser mais do que um sistema em si com ordem,

unidade e harmonia, para lançar-se à categoria de texto cuja importância

determina o modo como todo o Direito será criado e interpretado.

Augurou-se, assim, no horizonte jurídico, um texto que determina a

forma como todo o ordenamento jurídico deve ser lido. Noutras palavras, a

leitura e a apreensão de toda a ordem jurídica passam a ser feitas sob a lente

da Constituição, com o escopo de que sejam realizados os preceitos formais e

materiais que compõem o seu texto. É o que se conhece por filtragem

constitucional.

Fenômeno bastante difundido na doutrina jurídica, é necessário

destacar, todavia, que o constitucionalismo não se restringe à inclusão de

normas próprias de outros domínios na Constituição, mas, sobretudo, na

reinterpretação de todos os institutos infraconstitucionais sob a ótica

constitucional.

2.5. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE

A Constituição brasileira, de cunho inegavelmente dirigente, é

fenômeno amplo que escapa ao estrito campo político-econômico para

13 Sobre o assunto, Cf. (Neo)constitucionalismo: ontem, os códigos; hoje, as Constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004.

açambarcar programas, motivos, meios e fins vinculados à atuação do Estado

para a promoção, por exemplo, de prescrições como a igualdade entre os

sexos e as raças, o meio ambiente ecologicamente sustentável, a inclusão das

pessoas portadoras de deficiência, o desenvolvimento científico e educacional,

a preservação do patrimônio cultural etc.

A nível semântico, dirigente é o quê ou quem dirige, ordena,

administra; governante, gestor, condutor14. Em sentido amplo, é possível dizer

que toda prescrição é dirigente, já que traz em si alguma ordem ou algum

comando, determinando o que é obrigatório, proibido, permitido ou,

simplesmente, estipulando condutas. Nesse raciocínio um tanto quanto

simplista, toda e qualquer norma seria dirigente tão-só por ser prescritiva, fato

que nos conduziria à conclusão de que toda Constituição é dirigente. Não é

esta visão ampla, entretanto, que se pretende acentuar.

Noção deveras complicada, profícua e instigante, impossível de aqui

ser examinada com a profundidade que o tema requer, basta-nos que o

conceito posto em relevo seja entendido como o de uma Constituição que

enuncia programas, motivos, meios e fins que vinculam a ação do Estado por

meio de pautas formais e materiais que sujeitam negativa e positivamente a

conduta de cada um dos três poderes, coordenando uma ação estatal ativa no

domínio jurídico, social, político, econômico e cultural com fundamento na

implementação dos direitos fundamentais, assim como uma noção de

Constituição conformara – obviamente noutra mediada, grau e qualidade – da

sociedade e dos cidadãos. Trata-se de compreender a atividade estatal sob a

14 Disponível em: http://aulete.uol.com.br/dirigente. Acesso em 2 de março de 2013.

ótica diretiva que identifica o projeto social-estatal15.

A noção de pautas dirigentes, ao contrário do que pode parecer, não

vincula apenas conteúdos, abarcando inclusive a noção de procedimentos. Não

só a substância importa, senão também o processo de decisão (procedimento).

A Constituição, assim, em termos substanciais e procedimentais,

vincula programas, estabelecendo planos e tarefas a serem cumpridos, bem

como define prioridades. Fábio Corrêa de Souza Oliveira lembra que a

afirmação de um caráter vinculatório da Constituição assume três conotações,

a saber:

1) cada plano está integrado em uma totalidade, prende-se ao conjunto programático, está enlaçado, como parte, de um projeto maior; 2) o plano é estatuído por uma ligação permanente e não contingente, é estável e não circunstancial, não se modifica com as alternâncias de governos; 3) o plano sujeita, submete, é obrigatório, porquanto é normativo.16

Nessa senda, até mesmo as formas de deliberação são mandamentos

componentes do dirigismo, o que implica dizer que a democracia, instituto tão

decantado nos dias que correm, não é incompatível com a noção de dirigismo

constitucional.

À parte do que ocorre, ou não, no Direito e na Política, a aposta da

Constituição brasileira é numa democracia verdadeira, prática, que não seja

apenas rótulo. Aliás, importante assentar que democracia a que se alude é

aquela que compreende os moldes previstos na constituição, não se podendo

subervertê-la, mormente porque o procedimento democrático não está acima

15 OLIVEIRA, Fábio Corrêa de Souza. A Constituição dirigente está morta... Viva a Constituição dirigente! In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 84. 16 OLIVEIRA, Fábio Corrêa de Souza. In BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 86.

ou fora da Constituição e, sim, lhe está sujeito na forma e no conteúdo.

Ainda, não se pode olvidar que, se o Direito como um todo, não só

constitucional, reflete a organização de um povo, necessário se faz que o

dirigismo constitucional seja compreendido sempre em conformidade com as

vicissitudes de um povo.

Se esse novel modelo de Constituição incorporava grandes conquistas

e valores profundamente democráticos, pluralistas e sociais, era necessário

que se elaborasse um discurso capaz de conferir-lhe força normativa, isto é,

força normativa própria do Direito. A Constituição, por conseguinte, deve ser

compreendida como um texto internamente conformado e ordenando – com

bastante dificuldade, mas integrado. A faina da dogmática é em favor da força

vinculante do conjunto das normas Constitucionais, refutando a tese do caráter

não normativo de suas normas, sobretudo as chamadas programáticas.

Em defesa do dirigismo constitucional, no Brasil, por força das nossas

peculiaridades históricas, é de imperiosidade inarredável a edificação duma

teoria da Constituição Dirigente constitucionalmente adequada. Nesse sentido,

tendo em mente as diferenças entre os países centrais e periféricos, Lenio Luiz

Streck propugna uma abordagem que intitula teoria da Constituição Dirigente

adequada a países de modernidade tardia17, como o Brasil.

A teoria defendida pelo ilustre jusfilósofo se propõe a dar conta do

“resgate das promessas da modernidade incumpridas” por meio da “construção

de um espaço público apto a implementar a Constituição em sua

materialidade”18.

17 STRECK, Lenio Streck. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 133. 18 Idem, ibidem, p. 135.

2.6. NEOCONSTITUCIONALISMO

O Direito Constitucional vem passando por uma série de

transformações paradigmáticas que espraiam efeitos profundos em todas as

suas formas de emanação. Como já ressaltado, tais transformações têm suas

raízes mais concretas no constitucionalismo pós-guerra, que iniciou com as

Constituições do México (1917), da Itália (1947) e da Alemanha (1949).

Em meio à mudança, o principal alvo a ser combatido era o positivismo

jurídico e seu discurso axiomático-dedutivo. Na busca de reaproximação do

Direito à vida e à ética, novos elementos hermenêuticos são incorporados

cotidianamente, construindo novas fórmulas dogmáticas que harmonizem o

texto e o sentimento de justiça. O escopo é o de realização do texto

constitucional e, destarte, de justiça material.

Refuta-se, pois, o discurso axiomático-positivista do Direito,

especialmente o entendimento de que ele seria um sistema fechado de

axiomas preestabelecidos que são capazes de regular a vida social. Destaca

Chaïm Perelman:

as concepções modernas do direito e do raciocínio jurídico, tais como foram desenvolvidas após a última guerra mundial, constituem uma reação contra o positivismo jurídico e seus dois aspectos sucessivos, primeiro o da escola da exegese e da concepção analítica e dedutiva do direito, depois o da escola funcional ou sociológica, que interpreta os textos legais consoante a vontade do legislador.19

Contemporaneamente, a reconstrução promovida pelo

neoconstitucionalismo do Direito busca um discurso que valorize os princípios.

Objetivando a realização da Constituição, o intérprete não mais deve ficar

19 PERELMAN, Chäim. Lógica Jurídica. Nova retórica. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 9.

adstringido ao enunciado do texto, mas, sim, permitir que incida os elementos

fáticos do caso concreto, refletindo acerca do melhor caminho dogmático a ser

seguido. Aliás, é unânime o entendimento de que as decisões devem ser bem

fundamentadas, sobretudo porque deve convencer os destinatários sobre o seu

acerto, assim como porque será submetida ao controle subjetivo da sociedade

como um todo.

Não obstante, cabe lembrar a preclara advertência Lenio Streck, para

quem devemos nos atentar para o quê realmente propugna o discurso

neoconstitucionalista.

Segundo o jusfilósofo, é possível que tenhamos sido conduzidos a

equívocos pelo termo, porquanto na trilha do neoconstitucionalismo estamos a

percorrer um caminho que nos leva a jurisprudência dos valores e suas

derivações axiologistas, com temperos da técnica de sopesamento proposta

por Robert Alexy20.

Cunhado por um grupo de constitucionalistas espanhóis, o termo

neoconstitucionalismo, em que pese haver representado um avanço importante

em direção à afirmação da força normativa da Constituição na Europa

continental, no Brasil tem por resultado o incentivo da recepção acrítica da

Jurisprudência dos Valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy e de

sua técnica da ponderação e do ativismo judicial estadunidense21.

É preciso reconhecer, contudo, que a importação do termo com as

suas propostas de trabalhos defendidas por autores da Europa ibérica teve

importância estratégica, uma vez que o Brasil ingressou tardiamente no novo

20 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 35. 21 Idem, ibidem.

mundo constitucional22. Falar em constitucionalismo significava, por

conseguinte, ir além de um constitucionalismo de feições liberais – no Brasil

sempre um simulacro, haja vista os regimes autoritários que se seguiam –

rumo a um constitucionalismo compromissório, de feições dirigentes, que

possibilite a efetivação de um regime democrático.

Não obstante, passadas mais de duas décadas de vigência da

Constituição Federal de 1988 e levando-se em consideração as características

do neoconstitucionalismo desenvolvido no Brasil, criou-se condições

patológicas que possibilitaram a corrupção do próprio texto constitucional. A

advertência é feita por Lênio Streck, para quem

[...] sob a bandeira “neoconstitucionalista” defendem-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, como: neoprocessualismo e neopositivismo. [...] Desse modo, fica claro que o neoconstitucionalismo representa, apenas, a superação – no plano teórico-interpretativo – do paleojuspositivismo (Ferrajoli), na medida em que nada mais faz do que afirmar as críticas antiformalistas deduzidas pelos partidários da Escola do Direito, da Jurisprudência dos Interesses e daquilo que é a versão mais contemporânea desta última, ou seja, da Jurisprudência dos valores.23 [grifo do autor]

O escopo do termo é designar um movimento teórico para lidar com um

direito pós-guerra (pós-bélico, pós-Auschwitz), que busca uma construção de

um direito democraticamente produzido sob o signo de uma Constituição

normativa e da integridade da jurisdição.

Lenio Streck recorda-nos, ainda, que a ideia de um

22 É preciso fazer justiça é esclarecer que, a bem de verdade, à semelhança do Brasil, a Europa, antes da segunda metade do século XX, desconhecia o conceito de constituição normativa, consideravelmente desenvolvido no âmbito constitucional estadunidense. 23 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 36.

neoconstitucionalismo pode ensejar equívocos no sentido de que se estaria a

falar da superação do constitucionalismo fruto do fim da modernidade, quando,

na verdade, o Constitucionalismo Contemporâneo remete a um processo de

continuidade e aperfeiçoamento com novas conquistas: as que passaram a

integrar o Estado Constitucional no período subsequente à Segunda Guerra

Mundial. Dito de outra forma, o Constitucionalismo Contemporâneo cinge-se a

um movimento que desaguou nas Constituições do segundo pós-guerra e que

ainda está presente no contexto atual.

Nesse diapasão, Lenio Streck defende a utilização do termo

Constitucionalismo Contemporâneo (com iniciais maiúsculas), que, em suas

palavras

[...] pode-se dizer que o Constitucionalismo Contemporâneo representa um redimensionamento na práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: no plano da teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático do Direito, e no plano da teoria do direito, no interior da qual se dá a reformulação da teoria das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição); na teoria da norma (devido à normatividade dos princípios) e na teoria da interpretação (que, nos termos que proponho, representa uma blindagem às discricionariedades e aos ativismos). Todas essas conquistas devem ser pensadas, num primeiro momento, como continuadoras do processo histórico por meio do qual se desenvolve o constitucionalismo. Com efeito, o constitucionalismo pode ser concebido como um movimento teórico jurídico-político em que se busca limitar o exercício do Poder a partir da concepção de mecanismos aptos a gerar e garantir o exercício da cidadania. Assim, se há, por um lado, esse processo de agregação com relação ao primeiro constitucionalismo, por outro, há uma nítida ruptura com os postulados hermenêuticos vigentes desde o final do século XIX e que terá seu apogeu durante a primeira metade do século XX. Nesse sentido, o neoconstitucionalismo não é a superação do paleojuspositivismo (exegetismo), mas os neoconstitucionalistas acham que é. Esse é o problema. Nesse ponto, Ferrajoli tem razão (ele é contra o neoconstitucionalismo – porque o neconstitucionalismo de que ele fala é o dos axiologistas, valorativistas, que acham que estão superando o velho positivismo, o primitivo).24 [grifo do autor]

24 Idem, ibidem, p. 37.

3. CONDIÇÕES PARA A EXPANSÃO INSTITUCIONAL DO PODER

JUDICIÁRIO NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO

3.1. PANORAMA DA EXPANSÃO GLOBAL DO PODER JUDICIÁRIO

Em que pese o controle de constitucionalidade tenha sido durante

muito tempo uma peculiaridade do sistema norte-americano, atualmente este

fenômeno se universalizou e alcançou a maioria dos países existentes no

mundo: de 191 sistemas existentes, 158 possuem positivado algum

instrumento de jurisdição constitucional25.

No que toca à afirmação da jurisdição constitucional, Rodrigo Brandão

destaca a existência de três ondas ou momentos pelos quais o mundo assistiu

à ascensão deste fenômeno. A primeira ocorreu logo após a fundação dos

Estados Unidos, no emblemático caso Marbury v. Madison (1803), em que o

órgão de cúpula dum sistema jurídico declarou inconstitucional uma lei federal.

A segunda, conquanto tivesse como precedente importante a Constituição

austríaca de 1920 (que instituiu um Tribunal Constitucional como idealizado por

Hans Kelsen), somente se avolumou no segundo pós-guerra, mormente com a

redemocratização de países recém-saídos de regimes totalitários na Europa

(v.g., Alemanha, Itália, Portugal e Espanha) e com a reconstrução

constitucional de países descolonizados, tal como a Índia. A terceira e última

onda, por fim, teve lugar nas duas últimas décadas do século XX, decorrendo

da reconstitucionalização de países latino-americanos que se libertaram de

ditaduras militares (década de 1980) e de países ex-comunistas, com o queda

25 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 65.

da União Soviética (década de 1990)26.

Posteriormente a segunda metade do século passado, viu-se, a partir

da previsão do controle de constitucionalidade, uma expansão global do Poder

Judiciário que ensejou, num primeiro momento, a judicialização da política,

compreendida no processo pelo qual Cortes e Juízes passam a integrar

paulatinamente a produção de políticas públicas e de normas antes decididas

por outros órgãos estatais, sobretudo o Legislativo e o Executivo. Noutras

palavras, viu-se um descolamento, em favor do Poder Judiciário, do eixo

decisório sobre questões com alta conotação política, muitas vezes em

detrimento dos Poderes Legislativo e Executivo.

Não raras vezes a judicialização da política envolve questões nucleares

que não só definem a comunidade política, mas por vezes também a dividem.

A título exemplificativo, pode-se citar as questões relativas ao processo

eleitoral, à fiscalização de funções típicas do Executivo, às políticas públicas

(v.g., saúde) e inclusive a própria definição de política enquanto tal.

A elaboração de teorias voltadas à explicação desse fenômeno de

expansão global do Poder Judiciário apresenta não poucas dificuldades. As

diferenças existentes entre as várias culturas jurídicas e o fato de esse

fenômeno se dar dentro de cenários diversos contribuem sobremodo para essa

dificuldade. Mas as dificuldades na explicação não para por aqui: decorrem de

inúmeros fatores, porém aqui convém destacar apenas dois, a saber, os

problemas locais e temporais.

Locais porque o fenômeno deve ser analisado à luz das diferenças e

peculiaridades existentes entre as culturas nos quais ele se manifesta,

26 Idem, ibidem, p. 66.

porquanto determinantes para a sua compreensão.

Temporais devido ao momento histórico de cada cultura jurídica e ao

grau de desenvolvimento, nos mais diversos níveis (social, político, jurídico,

econômico etc.) que ele supõe.

A questão relativa ao modo como se deu a transposição nos mais

diversos sistemas é demasiadamente extensa e peculiar, razão pela qual não

será aprofundada neste trabalho, não obstante abordagens oportunas.

Já no que toca ao fator temporal, mister anotar que a expansão global

do Poder Judiciário, observada nas mais diversas localidades a nível

internacional, não aconteceu temporalmente uniforme, podendo ser destacados

como marcos desse fenômeno os seguintes momentos: na Alemanha e na

Itália, a reconstrução política após a Segunda Guerra Mundial; na Índia e

nalguns países africanos, a independência em relação à antiga metrópole; na

América Latina e na Europa Continental, a transição do regime ditatorial para o

democrático; no Leste Europeu, a evolução de regimes comunistas para

democracias constitucionais de livre-mercado; na Dinamarca e na Suécia, a

incorporação de tratados internacionais ao direito interno, como a

internalização da Convenção Europeia de Direitos Humanos27.

3.2. A EXPANSÃO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO NO REGIME

CONSTITUCIONAL PÓS 1988

3.2.1. O panorama político

27 Idem, ibidem, p. 67.

No cenário brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil

de 1988 foi o principal marco jurídico do processo de redemocratização do

país, caracterizando a transição dum Estado unitário, marcado pela legalidade

paralela dos atos institucionais e por violações a direitos fundamentais dos

cidadãos, para um Estado Democrático de Direito, no interior do qual vem se

consolidando a separação dos poderes (sic), da democracia e dos direitos

fundamentais.

Com suas mais de duas décadas de vigência, a Constituição de 1988

proporcionou ao Brasil o mais longevo período de estabilidade democrática,

visto que a experiência democrática anterior durou apenas 18 anos

(1946/1964).

Não foram poucas as crises e escândalos de corrupção que se

sucederam, todas absorvidas pela Constituição por intermédio de seus

mecanismos institucionalizados para tanto sem necessidade de socorrer-se de

mecanismos exteriores. A despeito de a democracia brasileira inequivocamente

necessitar de aperfeiçoamentos, pode-se dizer que enfim ela se estabilizou e

se consolidou, inexistindo fundado temor de reversão ao regime autoritário

anterior28.

No que concerne ao desenho institucional do sistema político, o regime

constitucional de 1988 resgatou ideias como as do sistema de governo

presidencialista, do sistema eleitoral proporcional com lista aberta para o

Legislativo a nível federal, estadual e municipal (à exceção do Senado, no qual

se aplica o sistema majoritário), e do federalismo, fortalecido pelo aumento da

autonomia administrativa e fiscal dos entes da federação.

28 Idem, ibidem, p. 118.

3.2.2. O panorama institucional

A Constituição Federal de 1988 contém o maior rol de direitos da

história brasileira e erige, dentre outros, a dignidade da pessoa humana a

fundamento da República e os direitos humanos a princípios norteadores das

relações internacionais que o Brasil estabelecer. Demais disso, há um título

exclusivo para os direitos e garantias fundamentais que se caracteriza

principalmente pela sua extensão e que goza de eficácia imediata (artigo 5.º,

parágrafo 1.º) e tem status de cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4.º, inciso

IV). Foram positivados, ainda, diversos direitos sociais (artigos 6.º a 11).

O controle de constitucionalidade existente se caracteriza por ser uma

mescla das modalidades incidental e difusa – de origem norte americana – e

concentrado e abstrato – de tradição austríaca. Nesse particular há que ser

enfatizada a notável ampliação do rol de legitimados para o acesso ao controle

abstrato de constitucionalidade, inclusive por grupo de interesses e partidos de

oposição (CF, artigo 10329).

O fato de qualquer partido político que goze de representação no

Congresso Nacional detenha legitimidade para suscitar o controle concentrado

29 Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa; V - o Governador de Estado; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

e abstrato perante o Supremo Tribunal Federal faz com que toda questão

política relevante potencialmente possa ser judicializada. Isso faz com que a

jurisdição constitucional seja acionada e, no caso brasileiro, a batalha política

oriunda da deliberação majoritária seja travada no Supremo Tribunal Federal.

Nesse sentido é a lição de Rodrigo Brandão

O uso do controle de constitucionalidade por partido de oposição é claramente comprovado por números: enquanto no governo Fernando Henrique Cardoso os partidos de esquerda (oposição) foram responsáveis po 63,3% das ADIs, e os de direita (que compunham a “base aliada”), por 18,9%; com a eleição de Luis Inácio “Lula” da Silva para a presidência a relação se inverteu: os partidos de esquerda, agora no governo, propuseram 6% das ADIs, ao passo que os partidos de direita ajuizaram 73% das ADIs do período. Ainda mais emblemática é a atuação do Partido dos Trabalhadores: enquanto no governo FHC foi léder isolado de ADI, respondendo por 57,3% das ações propostas neste período, no governo Lula o PT não propôs uma ADI sequer.30

Há intensa atuação das entidades de classe de âmbito nacional na

propositura de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, em que pese a restrição

imposta na exigência de comprovação de pertinência temática. Entre 1988 a

2005, as associações propuseram 24,9% das ADIs, atrás apenas dos

Governadores de Estado, que representam 26% das ADIs no período. Esses

dados vêm a confirmar que a sociedade civil organizada tem se destacado no

protagonismo no processo de judicialização da política, o que evidencia que

também esses grupos veem no judiciário um foro alternativo de disputa política,

máxime quando vencidos no embate parlamentar31.

No panorama institucional, a expansão judicial ainda encontra terreno

nos institutos do amicus curiae e da audiência pública, criados pela Lei n.º

9.868/1999, permitindo que a sociedade civil organizada e grupos de interesse 30 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 122. 31 Idem, ibidem.

também participem de processos que não foram por si instaurados.

Importante observar que inexistem restrições significativas no controle

incidental, ao passo em que o controle concentrado, historicamente mais

restrito, tem sido significativamente largueado nos últimos anos pela evolução

da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de inovações legislativas, já

que este tipo de controle tem admitido ADI contra leis ou atos normativos

federais e estaduais, inclusive emendas constitucionais, leis complementares,

leis ordinárias, leis delegadas, decretos-legislativos e resoluções do Congresso

Nacional e de suas Casas, medidas provisórias, atos administrativos

autônomos, dispositivos de Constituições estaduais etc. Aliás, o Supremo

Tribunal Federal recentemente reviu a sua jurisprudência antiga sobre o não

cabimento de ADI contra leis de efeitos concretos, admitindo ADI em face de lei

orçamentária para conhecer e declarar a inconstitucionalidade de medida

provisória que abriu crédito extraordinário sem observância dos requisitos

constitucionais32.

Demais disso, a criação da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade

(ADC), por intermédio da EC n.º 3/1993, permitiu que se solicite ao Supremo

Tribunal Federal a declaração da constitucionalidade de lei ou ato normativo

federal a fim de que se pacifique, de forma definitiva, eventual controvérsia

sobre a constitucionalidade, ou não, do respectivo ato.

Por seu turno, a Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF), regulamentada pela Lei n.º 9.882/1992, expandiu

sobremodo o controle abstrato de constitucionalidade, possibilitando aos

legitimados à proposição de ADI que questionem perante o Supremo Tribunal

32 ADI 4048 MC, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 14/5/2008, DJe-157 Divulg 21/8/2008, Public 22-/8-2008.

Federal a validade de direito anterior à Constituição de 1988, de leis municipais

e de atos do Poder Público, o que tem possibilitado a ampliação do seu objeto

para atingir interpretações judiciais, atos administrativos de especial monta etc.

A EC n.º 3/1993 trouxe ainda o efeito vinculante para a interpretação

dada pelo Supremo Tribunal Federal, o que se afigura como um complemento

para o efeito erga omnes, haja vista que os efeitos se espraiam não apenas

para os destinatários da norma, mas também aos órgãos da administração

pública direta e indireta em todos os níveis da federação, evitando assim que a

parte tenha de percorrer todo o caminho recursal para ter acesso à Suprema

Corte mediante a possibilidade de propor diretamente Reclamação com o

escopo de estabelecer a autoridade da decisão.

Dentre essa plêiade de inovações, merecem estaque os institutos da

repercussão geral e da súmula vinculante, introduzidas pela EC n.º 45/2004.

Em havendo o Supremo Tribunal Federal proferido reiteradas decisões

em matéria constitucional que seja objeto de controvérsia cuja demora no

deslinde cause grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de

processos, é possível editar uma súmula vinculante mediante quórum

qualificado de dois terços33. Essa súmula será obrigatória para todo o poder

judiciário e para os órgãos da administração pública.

Quando, por outro lado, já houver o STF se manifestado a propósito de

questão em relação à qual haja reconhecido repercussão geral, mas os

Tribunais de origem não se retratarem, poderá o Supremo Tribunal Federal

33 Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada

(CPC, artigo 543-B, parágrafo 3.º34).

Com efeito, o que se pode observar é que houve, ao longo do tempo,

uma alteração significativa no modelo de controle de constitucionalidade,

resultando num forte estímulo à expansão do Poder Judiciário, principalmente

devido porque os efeitos produzidos pelas decisões de inconstitucionalidade do

Supremo Tribunal Federal, proferidas no controle concentrado, são de

observância obrigatória para todos os destinatários da norma constitucional e

vinculantes para todos os órgãos judiciais e da administração pública direta e

indireta de todos os entes federativos (CF, artigo 102, parágrafo 2.º35), o que faz

com que seja exponencialmente ampla a quantidade de destinatários atingidos

pela decisão do Supremo Tribunal Federal.

Verifica-se ainda uma forte tendência a que mesmo as decisões

preferidas em sede de controle incidental acabem por produzir efeitos que

superam o caso em que foram proferidas36.

Igualmente consiste em fortalecimento da importância política do

controle de constitucionalidade o fato de que, em que pese a possibilidade de

modulação temporal dos efeitos, o Supremo Tribunal Federal geralmente

subscreve efeitos ex tunc como regra geral no controle de constitucionalidade37.

34 Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo. [...] § 4o Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada. 35 § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. 36 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 125. 37 Idem, ibidem, p. 128.

O que se vê, destarte, é que o Supremo Tribunal Federal acaba por

reunir funções de tribunal constitucional, foro especializado e tribunal de

apelação de última instância38.

Ao citar Marcus André Melo, Rodrigo Brandão destaca, ainda, que

Por sua vez, o número expressivo de emendas constitucionais aprovadas alargou a extensão da Constituição, dada a resistência do Congresso em desconstitucionalizar matérias, já que isto significaria um cheque em branco ao Executivo. Assim, o temor verificado no processo constituinte em relação à predominância do Executivo no processo legislativo se manteve incólume no processo de reforma à Constituição, circunstância que impediu a realização de um enxugamento da Constituição, produzindo, ao revés, o efeito oposto. Não é, portanto, de causar espécie o caráter analítico da nossa Constituição, cujo corpo permanente conta com, aproximadamente, 32 mil palavras, relativamente superior à média das Constituições latino-americanas (25.400 palavras). O principal efeito desta hiperconstitucionalização é o estímulo à judicialização das atividades legislativas e administrativa, visto que, com base em amplíssimo parâmetro, o Judiciário pode controlar a constitucionalidade dos atos estatais e extrair deveres de agir aos demais Poderes.39

À guisa de conclusão, pode-se destacar que, em consonância com o

explanado, institucionalmente há um estímulo à judicialização de questões

políticas, bem como a um certo ativismo na reforma da Constituição, no qual o

Executivo tem demonstrado um claro protagonismo.

3.2.3. O panorama interpretativo

Até 1988, as Constituições brasileiras cingiram-se basicamente à

função estruturante do Estado, criando órgãos públicos e dispondo sobre as

suas competências e procedimentos. A instabilidade democrática e os ataques

à independência do Supremo Tribunal Federal impediram-lhe de proteger as

38 Idem, ibidem. 39Idem, ibidem, p. 129-130.

liberdades daqueles que eram tidos por inimigos do regime.

Igualmente, se por um lado os efeitos apenas inter partes das decisões

de inconstitucionalidade limitavam o controle constitucionalidade dos atos do

Poder Público, por outro dificultavam que o Supremo Tribunal Federal

garantisse que suas decisões fossem usadas como parâmetros em casos

análogos pelos tribunais inferiores e também pela administração pública.

Nessa conjuntura, o positivismo jurídico adquiriu especial relevo,

servindo à explicação teórica das relações travadas entre Constituição e lei.

Reputava-se a lei como expressão da vontade geral do povo, fruto da justiça e

da razão e cuja legitimidade deitava raízes na sua origem democrática, e não

por sua correspondência ou ajustamento a princípios constitucionais

substantivos. Vicejava nesse panorama um controle de constitucionalidade

débil e que se prestava apenas à análise de aspectos formais como, v.g.,

competência e procedimento, somente se permitindo ao Judiciário reconhecer

a inconstitucionalidade material em hipóteses excepcionais em que a lei

expressamente violasse uma regra constitucional.

Com bases nas teorizações de Kelsen, a indeterminabilidade, aspecto

inafastável de algumas normas constitucionais, só deveria ser resolvida pelo

legislador, e não pelo Judiciário, sob pena de instaurar-se um deslocamento de

poder de tal sorte a comprometer a democracia representativa. Em termos de

controle de constitucionalidade, a concepção era de que o Judiciário deveria

restringir-se a uma função de legislador negativo40, consistente na análise de

compatibilidade entre os dispositivos constitucionais e as leis

infraconstitucionais, sem que para tanto utilizasse conceitos impreciso como os

40Idem, ibidem, p. 131.

princípios ou mesmo de critérios que não fossem exclusivamente jurídicos, tais

como fundamentos científicos, econômicos e morais.

Na seara da doutrina ainda eram incipientes as elucubrações a

propósito das normas constitucionais e sua força normativa, pois, como

esclarece Rodrigo Brandão, mesmo autores progressistas como Rui Barbosa

distinguiam as normas constitucionais em autoaplicáveis e não autoaplicáveis

segundo critérios de cariz semânticos, donde os princípios constitucionais

abertos, devido à indeterminação semântica, não produziam eficácia jurídica de

autoaplicabilidade41.

A compreensão quanto ao conteúdo indeterminado da Constituição

assemelhava-se à tradição europeia das normas diretivas fundamentais,

servindo apenas para guiar a ação dos Poderes do Estado uma vez que, ao

tempo em que lhes estabelecia sugestões ou pautas gerais de atuação,

deixava a sua concretização aos respectivos poderes que por elas deveriam

regular-se, excluindo o Judiciário de atuar nesse sentido.

Como se intuir, era notadamente reduzida atuação do Poder Judiciário.

Para a concepção então dominante a atividade interpretativa deveria realizar-

se como um simples silogismo de subsunção, donde se extraía o imperativo de

neutralidade do intérprete e a completude do ordenamento jurídico. Desse

modo, a teoria jurídica tradicional, isolando-se da filosofia do direito, propagava

um conhecimento acrítico dos institutos jurídicos, sobretudo por não refletir

sobre o seu próprio saber e seus fundamentos de legitimidade42.

Destarte, antes do advento da Constituição Federal de 1988, o Brasil

adotou um modelo de jurisdição constitucional que pode ser caracterizada por 41Idem, ibidem, p. 131. 42 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – Os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 230.

um minimalismo constitucional, mormente porque as Constituições não

dispunham de muitos dispositivos dotados de eficácia jurídica, bem como por

força da limitação a juízos técnico-jurídicos de compatibilidade entre lei e

constituição, dando azo à supremacia da lei em detrimento da Constituição, no

sentido de que a lei se mantinha como principal instrumento para a resolução

de conflitos existentes na sociedade.

Não bastasse isso, eventuais questionamentos a respeito da

conformidade da lei para com os princípios constitucionais eram solucionados

mediante o uso do princípio da separação dos poderes e seus corolários,

discricionariedade legislativa, presunção de constitucionalidade dos atos do

Poder Público e a doutrina da insindicabilidade judicial das questões políticas.

Lícito dizer, por conseguinte, que os Códigos, pensados como sistemas

normativos completos, posicionavam-se no centro do ordenamento jurídico e a

Constituição, gravitava nos arredores, com o que a deserção das forças

progressivas do Direito converteu o mundo jurídico num feudo do pensamento

conservador ou, no mínimo, tradicional43.

Em 1967, José Afonso da Silva, preconizando a premissa de que

qualquer norma constitucional deve produzir algum grau de eficácia, publicou o

livro denominado Aplicabilidade das normas constitucionais, no qual concebeu

sua célebre teoria acerca da classificação tripartida das normas constitucionais

em normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata, de eficácia contida e

aplicabilidade imediata e de eficácia limitada e aplicabilidade mediata44.

43Idem, ibidem, p. 233. 44 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo; Malheiros Editores, 1999, p. 88-167. As normas de eficácia plena seriam aquelas dotadas de plenos efeitos e de imediata aplicabilidade, independentemente de edição de lei concretizadora, tendo em vista trazer a descrição da conduta exigida do seu destinatário. As normas de eficácia contida igualmente gozam de eficácia plena e de aplicabilidade por possuírem alto grau de

Na transição democrática ocorrida na década de 1980,

constitucionalistas como Luís Roberto Barroso alertam para o plano da eficácia

social das normas constitucionais, consubstanciada na aferindo da produção

de efeitos no mundo dos fatos. A assertiva defendida por essa doutrina é a de

que, se as normas constitucionais são normas jurídicas, elas gozam do atributo

da imperatividade que lhes deve ser comum, autorizando assim a sua

aplicação pelo judiciário. Tratava-se de elevar as normas constitucionais à

categoria de normas jurídicas, porquanto a tradição constitucional brasileira se

destacava por vislumbrar as normas constitucionais como veiculadoras de

diretrizes fundamentais aos poderes políticos, e não como norma de garantias

fundamentais aplicáveis pelo Poder Judiciário, exercendo mais função política

do que jurídica45. O argumentos não era de matiz moral ou filosófico; ao

contrário, a ratio essendi repousa no próprio direito positivo, vez que o escopo

é o de reconhecer força de norma jurídica às normas constitucionais.

Nesse rumo, o pensamento doravante defendido arraiga-se na seara

constitucional para atribuir às normas de direitos fundamentais a possibilidade

de revestir os seus destinatários de direitos subjetivos garantidos pela

Constituição, cujo descumprimento pelo Poder Público de seu correlato dever

jurídico enseja a pretensão, por parte do titular, de recorrer ao Poder Judiciário

para obter uma tutela coercitva.

Conhecida como doutrina da efetividade, o alvissareiro movimento tem

como figura central o juiz e seu impacto institucional, propugnando a ascensão

densidade normativa, muito embora estejam passíveis de restrição por parte da legislação infraconstitucional, já que este suposto é autorizado pela própria Constituição com a utilização de termos como “nos termos da lei”. Já as normas de eficácia limitada seriam aquelas cuja aplicabilidade e eficácia integral estão condicionadas a regulamentação infraconstitucional, visto que é baixo o seu grau de densidade normativa. 45 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – Os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 224.

do Poder Judiciário no Brasil na medida em que lhe atribuía papel de destaque

na concretização dos valores e dos direitos constitucionais46.

Passados mais de 24 (vinte e quatro) anos da promulgação da

Constituição, o constitucionalismo brasileiro de efetividade logrou enorme

sucesso na consolidação do entendimento, na comunidade jurídica, de que a

Constituição – inclusive seus princípios – tem caráter de norma jurídica, com o

que pode (e deve) ser aplicada pelo Poder Judiciário independentemente de

regulamentação pelo Poder Legislativo47. Trata-se de indiscutível e inestimável

evolução para o Direito brasileiro, em especial para o Direito constitucional.

Primeiramente porque dessa noção advém a possibilidade de a

Constituição desempenhar seu importantíssimo papel de limitar a atuação dos

poderes do Estado mediante o controle de conformidade entre ela e as leis e

os atos por este emanados, função esta frágil nos regimes anteriores, já que a

política era exercida fora e acima da Constituição.

De igual relevo é a afirmação da força normativa da Constituição,

máxime porque o acesso do juiz às normas constitucionais, sobretudo àquelas

substantivas e aos princípios, não mais necessita da intermediação do

legislador, afinal, como já exposto, se o sentido da norma jurídica só é definido

no caso concreto, pelo intérprete, a partir da conjugação do enunciado com os

fatos, a concretização do Direito é feita diretamente por intermédio da

interpretação judicial da Constituição.

A inserção da força normativa da Constituição na pré-compreensão dos

juristas representa inequívoco e inestimável logro para o Direito brasileiro. Sem

embargo, é preciso alertar para o perigo oposto, isto é, para a redução da 46Idem, ibidem, p. 224. 47 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 135.

Constituição à categoria de norma jurídica, o que tornaria a sua aplicação uma

atividade exclusivamente jurídica, desconsiderando a sua dimensão política.

É que à Constituição deve ser reconhecida função não apenas de

estruturar o poder e de defender as liberdades fundamentais, senão também

de estabelecer um projeto mais amplo, no qual deve estar compreendido o

desenvolvimento do Estado e da sociedade ao atingimento dos fins previstos

como programas.

Com efeito, não se pode olvidar os efeitos colaterais oriundos de teses

excessivamente judicialistas. Em virtude da pouca relevância política assumida

pelo Judiciário na história brasileira, o grande problema aqui foi a falta de

controle judicial e efetivo de decisões arbitrárias do governo, e não o excesso.

Contudo, hodiernamente vivenciamos um problema inédito, decorrente da

ingênua associação entre, de um lado, ativismo judicial e posição de vanguarda

na tutela dos direitos e, de outro, autorrestrição judicial e postura omissa no

combate a desmandos do governo.

Após a Constituição de 1988 e a introdução, no Brasil, das teorias pós-

positivistas, surge uma torrente de trabalhos sobre Teoria dos Princípios,

ponderação de interesses, teorias de argumentação, proporcionalidade e

razoabilidade etc., ademais da aplicabilidade imediata dos direitos

fundamentais, tanto os individuais como os sociais, com espeque numa

argumentação de cunho moral e democrática.

A partir de 2003, com a obra intitulada “Neoconstitucionalismo(s)”, de

Miguel Carbonel48, passa-se a empregar o aludido termo para designar uma

nova dimensão do constitucionalismo, de viés crítico, que, em que pese a

48CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid. Editorial Trotta, 2003.

diversidade de obras a seu respeito, tem em comum várias premissas, como,

por exemplo: “valorização dos princípios, adoção de métodos ou estilos mais

abertos e flexíveis na hermenêutica jurídica, com destaque para a ponderação,

abertura da argumentação jurídica à Moral, mas sem recair nas categorias

metafísicas do jusnaturalismo, reconhecimento e defesa da

constitucionalização do Direito, e do papel de destaque do Judiciário na agenda

de implementação dos valores da Constituição49”.

O reconhecimento de que as normas indeterminadas da Constituição,

notadamente os princípios, podem ser diretamente aplicados diretamente pelo

juiz é suposto que lhe confere enormes poderes, fazendo-se necessário, na

atual quadra histórica, teorizações sobre a autocontenção do Poder Judiciário,

sobretudo devido a inúmeros abusos que não raras vezes soem acorrer, como,

por exemplo, a atuação deste poder como “legislador positivo” diante da inércia

dos outros poderes, ou mesmo a revisão do sopesamento feito pelo legislador

quando não houver espaço para tanto.

Atenta a essas questões, parcela considerável da doutrina pátria50 tem

se voltado à análise de suas consequências, alertando alguns que, sob esse

viés, “a Constituição se tornaria ubíqua, atuando como ‘norma fundamental da

comunidade’ que teria resposta para todos os problemas jurídicos e políticos, e

o Judiciário, na sua função de Guardião da Constituição, acabaria por se

sobrepor aos demais Poderes. Em suma: o neoconstitucionalismo redundaria

49 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 138 – [destaque do autor] 50 Cite-se, por exemplo: SARMENTO, Daniel. O Constitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: SARMENTO, Daniel. Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre “ciência do direito” e o “direito da ciênca”. In: Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2008.

em um positivismo jurisprudencial, cujo protagonismo dos juízes equivaleria à

transformação da Suprema Corte de guardiã a substituta do poder

constituinte”51.

4. CRIAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO: AS FUNÇÕES LEGIS LATIVA E

JURISDICIONAL E A PROBLEMÁTICA DA INTERPRETAÇÃO

4.1. A FUNÇÃO LEGISLATIVA E A FUNÇÃO JURISDICIONAL

Imperioso pontuar, de início, que a teoria da “separação dos poderes”52

historicamente pode ser vista sob os aspectos material ou subjetivo: este

compreendido no sentido de vinculação dos poderes legislativo, executivo e

judiciário a órgãos específicos, sempre buscando o equilíbrio (Montesquieu);

aquele entendido na distinção das funções em legislativa, executiva e

jurisdicional conforme seu conteúdo e sem vinculá-las a órgãos em específico

(Locke).

A teoria adotada no Brasil é a do aspecto subjetivo, mormente a

teorização de Montesquieu nos ser mais familiar53.

A despeito da maior proximidade com o aspecto subjetivo que, como

visto, enfatiza o poder e o órgão a ele vinculado, preconizando uma separação

51 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 140 – [destaque do autor]. 52 Um dos princípios fundamentais da democracia contemporânea, a expressão separação de poderes sofre severas críticas por parte da doutrina nacional e estrangeira, razão pela qual deve ser entendida aqui como divisão de funções – termo este que, contudo, ao fim e ao cabo também revela certa imprecisão em relação ao objeto significado, já que acaba por indicar separação estanque de algo que, em verdade, mescla-se em atribuições típicas e atípicas de cada poder. 53 GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o Direito pressuposto. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 237.

estrita, convém destacar que o que aqui importa é a distinção entre funções

normativa, administrativa e jurisdicional54.

Feita essa breve introdução, cumpre, por conseguinte, diferenciar a

função jurisdicional da função legislativa.

A função legislativa – entre nós atribuída ao poder legislativo –, como o

próprio nome já em princípio indica, diz respeito à possibilidade de inovar no

ordenamento jurídico criando leis, direitos e deveres; já a função jurisdicional –

incumbida ao poder judiciário – se define na atribuição de julgar os casos que

lhe são levados à sua apreciação e, assim, aplicar a lei, geral e abstrata, a

situações singulares e concretas.

De se ressaltar, nessa toada, que a norma do caso concreto não é

necessariamente estatuída por intermédio do exercício originário de um poder

criado para tanto – como, por exemplo, o poder legislativo –, podendo haver

emanação de normas de um poder derivado – v.g., o poder judiciário.

Em que pese seja a função legislativa atribuída quase que

exclusivamente55 ao poder legislativo, a função normativa não é exclusiva do

aludido poder, porquanto se pode atribuí-la a outros poderes.

Assim, é possível dizer, com Eros Roberto Grau, que a lei não contém,

necessariamente, uma norma, assim como uma norma não advém,

necessariamente, de uma lei56, de modo que se reconhece a capacidade de

produzir normas, para além dos textos de lei, dos intérpretes aplicadores do

Direito, pois a lei é um conjunto de normas em potencial.

54 Idem, ibidem, p. 238. 55 A expressão “quase que exclusivamente” é proposital porque aos outros “poderes” também se atribui, em determinados casos, função legislativa, muito embora esta função seja restrita por caracterizar função atípica (não preponderante). 56 GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o Direito pressuposto. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 241.

Uma leitura superficial da distinção em comento conduz à equivocada

conclusão de que a produção normativa é de exclusividade dos legisladores.

Equivocada porque, em primeiro lugar, não se interpreta normas: a norma é o

resultado da interpretação.

A função precípua do poder legislativo é a de criação de textos legais,

ou, noutras palavras, de enunciados (= textos) que são normas em potencial.

A função jurisdicional é a de, a partir da conjugação do texto legal com

os conflitos que lhes são trazidos, dar uma resposta jurídica ao caso concreto,

para a qual deverá criar uma norma (= sentido) por meio de um processo a que

se denomina interpretação. Trata-se de função criadora que não se confunde,

todavia, com a função legislativa.

Não obstante, a fim de que a distinção analisada (entre a função

jurisdicional e a função legislativa) se torne clara, mister se faz que se tenha

em mente, dentre outras, a noção da diferença existente entre texto e norma.

4.2. A DIFERENÇA ENTRE O TEXTO E A NORMA

A diferença entre texto e norma, conforme leciona Eros Roberto Grau,

é oriunda do caráter alográfico do Direito.

Sustenta o mencionado doutrinador que as artes podem ser de dois

tipos: alográficas ou autográficas. Em que pese ambas carecerem de

intepretação, nas artes autográficas, tais como a pintura e o romance, o autor é

o único a contribuir com a realização da obra, a partir do que já se pode obter

emoção estética. Nas artes denominadas alográficas, como, por exemplo, a

música e o teatro, a completude da expressão artística, entendida como a

contemplação estética, depende da participação de um personagem essencial:

o intérprete. Isso se dá porque neste último caso a interpretação importa num

processo em que se fundem compreensão e reprodução57.

Ao comentar a obra do mencionado autor, Fernando Vieira Luiz nos

fornece elucidativa comparação:

Pode-se comparar, neste particular, o texto da lei ou da Constituição, com uma partitura musical. Os símbolos musicais descritos nesta, em si, nada significam, nenhum deleite causam naquele que aprecia música. Contudo, uma vez compreendida e reproduzida por um intérprete (músico), completa-se como expressão artística, gerando a contemplação estética de outros intérpretes (uma plateia, por exemplo, em um recital)58.

O mesmo fenômeno ocorre no âmbito do direito, na medida em que o

texto legal, em si e por si, nada presenta. Assim, por exemplo, as palavras

contidas num tipo penal ou num artigo do Código Civil não tem o condão de

criar, alterar ou modificar as coisas no mundo fático – afinal parece bastante

claro que o Direito não cria fatos e, sim, tão-só se lhes atribui, por meio dum

processo de interpretação, um determinado valor. As palavras que em conjunto

compõem um determinado enunciado legal são apenas palavras, pois falta-lhes

concretude (significação) 59.

Uma vez trazido à realidade por meio da sua aplicação a um fato

concreto por um intérprete (o juiz, por exemplo), o enunciado passa a ter vida e

dá lugar a uma norma, gerando consequências jurídicas. Daí que “o texto,

preceito, enunciado normativo é alográfico. Não se completa no sentido nele

57 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do Direito. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 77-78. 58 LUIZ, Fernando Vieira. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à constituição de Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 102. 59 É preciso abrir um parêntese para dizer que a significação (= sentido) somente é desvelada diante duma situação concreta, e assim, pois, da conjugação dos significantes (in casu, texto e fato), já que, parafraseando Hans-Georg Gadamer, estamos condenados a interpretar.

impresso pelo legislador. A 'completude' do texto somente é realizada quando o

sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo

intérprete”60.

O texto em si não possui uma essência que lhe seja inerente; não

existe uma verdade transcendental no texto legal esperando para ser

descoberta pela intérprete.

O que antes se supunha como uma relação real entre ser e essência

desde Kant já não se pode mais falar numa espécie de predicado real. O

sentido não depende dos objetos, mormente porque não há essências

esperando desvelamento (metafísica clássica); tampouco depende da

consciência do sujeito que, ao interpretar, assujeita o objeto (filosofia da

consciência); o sentido deve ser encontrado no âmbito da linguagem, que é,

segundo Lenio Streck, “onde o mundo se descortina; é na linguagem que se dá

a ação; é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência de si do

pensamento pensante). O sujeito surge na linguagem e pela linguagem”61.

Desse modo, uma vez não aplicado, o texto legal nada significa,

máxime porque “as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem:

somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas

(isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em

normas)”62.

Após a interpretação, entendida como a aplicação do texto a uma

situação fática concreta, o texto deixa de ser texto e passa a ser o sentido do

60 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do Direito. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 78. 61 STRECK, Lenio Streck. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 14. 62 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do Direito. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 78.

texto, que é o resultado da interpretação realizada. Este sentido expressado

pelo texto já é algo novo, distinto do texto: a norma. Desse modo, a norma,

vista como fruto da interpretação, já não é mais o texto, mas a atribuição de

sentido dada a ela no caso concreto.

A propósito, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho preconiza que as

palavras da lei têm um valor próprio, sobretudo porque utilizadas no lugar de

outras; sem embargo, tais palavras não contêm todo o sentido contido no texto,

máxime devido ao fato de que as decisões contra legem caracterizam “a prova

cabal de que o texto e a regra não aprisionam o sentido e, portanto, pode ele

não estar ex ante ali presente”63.

Contudo, indo adiante, parece não ser possível furtar-se ao assalto da

seguinte indagação: se o texto só existe como texto quando é aplicado, e se

com a sua aplicação deixa de ser texto para converter-se em norma, qual a

diferença entre texto e norma?

Não se pode continuar a pensar, na seara jurídica, em dicotomias

metafísicas como texto e norma. Em que pese existir, sim, uma diferença,

ambos não podem existir separadamente, haja vista que o texto só ocorre na

norma e esta, por seu turno, só existe com um texto que lhe sirva de base. A

norma é o sentido do texto e o texto, o seu suporte.

Destarte, somente por meio da aplicação é que se dá existência ao

texto – pela norma dele advinda – e à norma – como sentido do texto. É

impossível igualar texto à norma, e, da mesma forma, não se pode reconhecer

uma separação total entre ambos.

63 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites linguísticos da lei. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Curitiba, v. 1, p. 37-44, 2005, p. 4.

4.3. “VONTADE DA LEI” E “VONTADE DO LEGISLADOR”

Tendo como objeto de investigação a interpretação, a doutrina

tradicional sempre levantou questionamentos sobre qual é o seu objetivo

precípuo. Nessa seara, há muito tempo viceja o embate – longe de terminar,

frise-se – entre duas grandes teorias: a subjetivista e a objetivista.

Muito se tem discutido e ainda se discute, em direito, acerca dessas

duas teses sobre interpretação. Afinal, o que deve prevalecer, a “vontade da

lei” (teoria objetivista) ou a “vontade do legislador” (teoria subjetivista)?

Antes de qualquer incursão nessas teorias, desde logo cabe levantar

as seguintes questões: é possível descobrir o que é o espírito da lei ou o que

deseja uma norma? Tem importância descobrir o que é que o legislador quis

dizer ou qual era a sua intenção ao elaborar uma lei?

A doutrina subjetivista vê como objetivo da interpretação a busca da

vontade do legislador (mens legislatoris), isto é, a vontade do criador da norma

vista sob o prisma histórico. Segundo Norberto Bobbio, esta “intenção do

legislador” pode ser real ou presumida dependendo da possibilidade de se

chegar efetivamente ao que o autor da lei pretendeu dizer ou, caso impossível,

recorrendo-se à analogia para estabelecer o que ele teria previsto para o

caso64.

Para esta corrente, sendo a ciência jurídica um saber dogmático (este

considerado como um princípio arbitrário, derivado da vontade do emissor da

norma), a interpretação é, basicamente, uma compreensão do pensamento do

legislador, de modo que a ela opera ex tunc (desde então). Destaca-se o

64 BOBBIO, N. O Positivismo Jurídico: lições de Filosofia do Direito. Tradução de PUGLIESI, Márcio; BINI, Edson; RODRIGUES, Carlos E. São Paulo: Editora Ícone, 1995, p. 87.

método histórico de investigação.

A doutrina objetivista reputa a interpretação como forma de extrair do

texto a vontade da norma (mens legis). Busca-se um sentido extraível do

próprio texto de forma autônoma, ou seja, independente de qualquer

significado pretendido originalmente pelo legislador.

Nesta corrente prevalece o consenso de que a norma goza de sentido

próprio, determinado por fatores objetivos, independente até certo ponto do

sentido que lhe haja pretendido dar o legislador. A concepção, assim, é a de

uma interpretação ex nunc (desde agora), com enfoque no “papel

preponderante dos aspectos estruturais em que a norma ocorre e as técnicas

apropriadas à sua captação”65.

A tese subjetivista conduz a uma interpretação fixa na medida em que

sua finalidade é a de buscar a intenção do legislador que havia emanado

determinada lei. Já o objetivismo aceita a ideia de que a lei pode ser

juridicamente diferente da intenção do seu autor.

A corrente objetivista preconiza a ideia de que a lei traz em si a norma,

e que, bem por isso, a interpretação judicial pode ser controlada pelas regras

em virtude de que levam a uma correta determinação do significado do texto,

como se o significado estivesse “na coisa em si” (o texto).

A corrente subjetivista toma a interpretação judicial como sendo algo

subjetivo, ao argumento de busca da vontade do legislador – como se fosse

possível a concretização de semelhante empreitada. Enseja, desse modo, em

último caso, que a interpretação esteja ligada a preferências valorativas

pessoais do intérprete, tais como seu senso de justiça, dando ao texto o 65 STRECK, Lenio Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 127.

significado que lhe parece adequado.

Na postura objetivista, o texto existe independentemente de sua

aplicação, já que, mesmo sem alguma situação concreta para ser aplicado, traz

em si um significado universal, o qual está à espera de apreensão pelo

intérprete que o acople a uma situação e o reproduza numa norma. Nesta

concepção, texto e norma se equivalem, são a mesma coisa, não passando a

norma de uma capa de sentido.

Dito de outra forma, para essa corrente o texto possui uma essência

“x”, bastando ao juiz fazer a acoplagem deste significado, sem nada a

interpretar, para solucionar o caso, com o que a norma é sempre “x” e nada

mais.

Na postura subjetivista há completa dessemelhança entre texto e

norma, mormente porque esta será produzida exclusivamente pelo intérprete.

O Direito passa a ser aquilo que os juristas dizem que ele é,

independentemente do texto, sobretudo porque a norma será construída pelo

julgador por intermédio de sua subjetividade, inclusive por vezes ignorando-se

o texto. A norma será a representação que dela fizer o intérprete por meio de

sua razão.

Sem embargo, conforme ensina Streck, ambas as correntes, quando

levadas ao extremo, podem dar azo a situações indesejáveis: o subjetivismo,

ao privilegiar o legislador, pondo sua vontade em relevo, pode culminar em um

autoritarismo personalista; por outro lado, o objetivismo, ao igualar os

intérpretes ou, pelo menos, deslocando para eles a responsabilidade do

legislador, pode levar ao anarquismo66.

66 Idem, ibidem, p. 129.

Não há como falar-se na existência de procedimento que preconiza

subsunções em Direito. A Constituição, ou a lei, não possui uma essência, uma

substância em si que fica aguardando ser apreendida pelo intérprete. Ao

contrário: seu sentido é formado na aplicação.

Igualmente não se pode falar em subjetivismos, já que a Constituição

ou a lei não estão à disposição do intérprete. O círculo hermenêutico, com a

autoridade da tradição a ele intrínseca, impede que o intérprete dê o sentido

que quiser. Nesse sentido destaca Fernando Vieira Luiz ao citar Lenio Luiz

Streck:

É neste contexto que ocorre a invasão da filosofia pela linguagem (linguistic turn, que, no plano da hermenêutica filosófica, pode ser chamado de ontologische Wendung – giro ontológico), a partir de uma pós-metafísica de (re)inclusão da facticidade que, de forma inapelável, mormente a partir da década de 50 do século passado, atravessará o esquema sujeito-objeto (objetivista e subjetivista), estabelecendo uma circularidade virtuosa na compreensão. Destarte, esse déficit de realidade produzido pelas posturas epistemo-metodológicas – ainda presas ao esquema sujeito-objeto – será preenchido pelas posturas interpretativas, especialmente as hermenêutico-ontológicas, que deixam de hipostasiar o método e o procedimento, colocando o locus da compreensão no modo-de-ser e na facticidade, bem na linha da viragem a partir de Wittgenstein e Heidegger67.

Diante deste cenário, é possível afirmar que, independentemente de

prevalência de uma ou outra corrente, nota-se hodiernamente que o papel do

jurista, atuando como intérprete, ganhou significativo espaço, porquanto a ele

se recorre para a contextualização da lei no tempo. É inegável a constatação

de que o intérprete, mais que o legislador, contribui para a norma.

Ante essa constatação, faz-se necessário que se estabeleça as

condições de possibilidades que tem o intérprete de desempenhar o seu ofício

67 LUIZ, Fernando Vieira. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à constituição de Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 116.

e chegar a respostas corretas em direito, pois, como já se pôde notar até aqui,

as respostas em Direito tem ficado à mercê da atividade solipsista do

intérprete: ora na sua consciência, ora na coisa em si.

4.4. A PARTICIPAÇÃO DO INTÉRPRETE NA CRIAÇÃO DA NORMA

A doutrina mais tradicional, ao definir o que é interpretação, ainda

utiliza como melhor conceituação a noção de atividade voltada para revelar o

verdadeiro sentido do texto posto pelo legislador. Povoa ainda o imaginário

tradicional a ideia de que a lei tem um sentido que deve apenas ser descoberto

pelo intérprete. Trata-se da busca da vontade do legislador.

Com as teorizações da corrente objetivista, a figura da intenção do

legislador passou a ser questionada, ao tempo em que o trabalho do intérprete

ganhou maior relevância.

Somente no positivismo jurídico é que se pode tratar igualmente texto e

norma ou colocá-los como espécies totalmente distintas. Por esse motivo, vive-

se entre o objetivismo e o subjetivismo.

Não obstante, é preciso fazer justiça e esclarecer que, entre nós, há

aqueles que buscam uma fusão entre as duas correntes expostas.

Paulo Dourado de Gusmão, por exemplo, embora sustente que a lei se

faz independente do seu autor após a sua publicação, admite que, em ordem a

descobrir-se o sentido objetivo da lei, o intérprete deve proceder por várias

etapas, percorrendo o que se entende por fases da interpretação, nas quais se

incluem desde a interpretação gramatical ou literal até a interpretação histórica,

em que são utilizados os trabalhos preparatórios como o projeto de lei, debates

de comissões, etc68.

Já Paulo Nader, depois de tecer comentários sobre as duas teorias,

inclina-se pela doutrina objetivista, ao argumento de que o intérprete deve

“determinar o sentido objetivo do texto [...]; deve ele olhar menos para o

passado do que para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem

inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva”. Mais adiante, porém,

ao falar da interpretação em relação ao resultado, admite um exame do

passado legislativo, pois o legislador nem sempre utiliza bem os vocábulos ao

compor os atos legislativos, com o que procederia o intérprete à interpretações

declarativas, restritivas ou extensivas.

O certo é que, entre objetivismos e subjetivismos, o problema da

interpretação perdura há bastante tempo. O sentido não está na coisa em si,

nem tampouco na consciência de um sujeito. O sentido, em consonância com o

já exposto, reside na interação dialógica entre texto e intérprete mediada pela

tradição e sempre tendo em vista o caso concreto.

A interpretação – não só no âmbito jurídico como também no mais

cotidiano dos eventos – depende sempre da pré-compreensão, que por sua

vez é moldada pela própria tradição. A questão é que as duas teorias não

explicam o problema da compreensão. O que se pretende ressaltar é a

necessidade e a importância da tradição, da historicidade e da pré-

compreensão na interpretação: a interpretação só pode ocorrer num lugar

comum fixado no espaço e no tempo (que veio do passado, está no presente e

se estenderá ao futuro).

A interpretação não se faz do nada, é dizer, não há grau zero de

68 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 20.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 240 e 241.

sentido. Os sentidos antecedem porque o intérprete já está dotado duma pré-

compreensão sobre o objeto, e isso ocorre devido à incorporação na tradição

duma prática social compartilhada por todos há várias gerações.

As pessoas compartilham uma tradição e esperam que, ante uma

determinada situação, haja este tipo de compartilhamento. Mas também o texto

possui o seu horizonte (norma em potência, conforme diz Eros Grau), razão

pela qual o intérprete precisa analisar vários elementos antes de decidir,

momento no qual os seus horizontes e o do texto se fundirão e constituirão o

sentido adequado e, destarte, a norma.

O texto não possui uma essência em si, nem pode o intérprete atribuir-

lhe qualquer sentido arbitrário. Ante uma situação concreta, o intérprete, ao se

deparar com o texto, já o concebe “normatizado”, a partir do que se deve

controlar o sentido para que não se perca em discricionariedades ou arbítrios

do intérprete, já que este interage num jogo intersubjetivo que se dá num lugar

comum: a tradição, na qual há o compartilhamento de práticas sociais que,

pensadas entre passado, presente e futuro, pré-dispõe os sujeitos.

O ser está condenado a interpretar, e interpretar é a sua forma de ser

no mundo. O indivíduo caminha no mundo não só porque o compreende,

senão também que se o compreende.

Nesse rumo, a aplicação é a realização do próprio Direito. A resposta

jurídica sempre dependerá de um caso concreto, porquanto não pode haver

resposta antes da pergunta.

Vem daí que a assertiva – muito difundida no meio jurídico – de que o

julgador decide para depois buscar a fundamentação não é verdadeira, pois o

julgador só decide porque já encontrou o fundamento para a sua decisão. O

intérprete antecipa o sentido (pré-compreensão) e, após debruçar-se e refletir

mais detidamente sobre texto, com a fusão de horizontes de ambos, ocorre a

compreensão.

Interpretando o texto, o jurista explica a si mesmo o compreendido, isto

é, explica o porquê de, naquele caso concreto, a resposta corresponder a “x”, e

não a “y”. E não poderia ser o contrário porque não se escolhe

inadvertidamente uma resposta – porque já se decidiu, pela íntima convicção,

na medida em que sempre já se antecipa o sentido por meio da pré-

compreensão – para, após o decidido, passar-se a buscar fundamentos para

tanto, ou, dito de outra forma, para justificar a decisão tomada.

Em se tratando de decisão judicial, fundamento é condição de

possibilidade da decisão tomada. Nesse sentido, o juiz, a partir da antecipação

de sentidos, compreende o caso posto à sua análise e, dessa forma, o

fundamento já apareceu. Posteriormente, em consonância com o que diz

Fernando Vieira Luiz, ao citar Lenio Luiz Streck, o juiz “procederá a explicação

do compreendido, ‘mediante o aprimoramento do sentido que lhe foi antecipado

(...), a partir de uma racionalidade discursiva’” 69.

O papel do aplicador, enquanto intérprete dos textos legais, é

exatamente o de desvelar o Direito, na medida em que a Constituição,

enquanto texto, nada diz. Ela necessita do intérprete, mormente pelo próprio

caráter alográfico do Direito. A Constituição, por conseguinte, surgirá com a

sua aplicação por um intérprete, e existirá apenas como o sentido de

Constituição.

Isso demonstra o caráter criativo da interpretação, já que o indivíduo (= 69 LUIZ, Fernando Vieira. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à constituição de Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 114.

intérprete) tem papel crucial no jogo de compreensão para o estabelecimento

duma norma jurídica. “A interpretação é sempre crítica, uma vez que possibilita

o desvelamento e alargamento das perspectivas finitas dos sujeitos

envolvidos”70.

Observe-se com isso a possibilidade de uma atividade

constitutiva/concretizadora do intérprete diante de um texto que, conquanto não

possa representar uma inovação formal, implica em renovação do

ordenamento em razão dos resultados que provoca. A propósito sentencia Ana

Maria D’Ávila Lopes71:

No atual estado de Direito, pode-se concluir, então, que o juiz não está mais submetido à literalidade da lei, mas também, não pode atuar à margem de qualquer vínculo, porque na medida em que cria o Direito, deve permanecer dentro dos limites que a correta compreensão e interpretação da norma, na sua aplicação a um caso concreto, impõe-lhe.

Demais disso, é preciso destacar que o intérprete, aplicador do direito,

hodiernamente deve expandir seus conhecimentos para além das disposições

do Direito.

Incluem-se nesse conhecimento disciplinas como Filosofia, Sociologia,

Economia, Psicanálise, Política, etc., sem, contudo, perder de vista a

autonomia do Direito, pois as disciplinas citadas aportam conhecimentos

multidisciplinar e humanístico ao jurista, não se podendo permitir que

determinem o Direito naquele âmbito em que deve ter autonomia. Isso porque,

como abordado alhures, a partir do segundo pós-guerra o Direito adquiriu uma

característica inegável e intransponível: a sua autônima.

70 Idem. Ibidem, p. 115. 71 LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Disponível em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/560. Acesso em 13/1/2012.

Por derradeiro, é preciso arrematar a questão com a seguinte

sentença: só com uma visão interdisciplinar a transformação positiva da

realidade poderá acontecer através da hermenêutica72.

4.5. O PODER DE LEGISLAR E O PODER DE DIZER O DIREITO

Pontua-se, inicialmente, que, ao falar-se de interpretação e, assim, de

criação de normas jurídicas – pois as normas são o resultado da interpretação

–, busca-se, essencialmente, analisar a atuação daqueles que têm o dever de

decidir um caso concreto a partir de sua conjugação com um enunciado

constitucional/legal.

A criatividade constitui um fator inevitável da função jurisdicional de

criar normas jurídicas para a solução de casos concretos, máxime em relação

aos magistrados – responsáveis, em última análise, pela resposta final, seja

esta correta ou não (no sentido de adequada, ou não, à Constituição ou à lei).

Nessa seara, seria possível dizer que há, por conseguinte, um conflito

entre o papel criativo dos juízes e o papel do legislador? Em outras palavras, a

atuação criativa judiciária torna o juiz legislador?

Existem importantes razões para o acentuado desenvolvimento da

criatividade judiciária no nosso século. Este desenvolvimento corresponde não

só a características e a exigências fundamentais do atual estágio social e

jurídico que vivemos, mas também a questões constitucionais, sociais, políticas

e econômicas.

De fato, os juízes estão constrangidos a serem criadores do Direito;

72 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites linguísticos da lei. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Curitiba, v. 1, p. 37-44, 2005, p. 2.

não, porém, a substituírem-se na função atribuída ao poder legislativo. Nas

palavras de Mauto Cappelletti “efetivamente, eles [os juízes] são chamados a

interpretar e, por isso, inevitavelmente a esclarecer, integrar, plasmar e

transformar, e não raro a criar ex novo o direito. Isso não significa, porém, que

sejam legisladores. Existe realmente [...] essencial diferença entre o processo

legislativo e jurisdicional”73.

Na esteira dos ensinamentos de Mauro Cappelletti, do ponto de vista

substancial, o processo judiciário e o processo legislativo criam o Direito. Sem

embargo, o modo, ou o procedimento ou a estrutura da formação do direito em

ambos os casos não se confundem.

O bom juiz pode (e deve) ser criativo, dinâmico e ativo, mas somente o

mau juiz é que se colocaria no papel do legislador. A legislação é um modo de

criar o Direito essencialmente distinto daquele empregado pelo judiciário.

Sendo a monopolização da produção normativa pelo Estado – junto

com a monopolização do poder coercitivo – a solução para o caótico estado de

natureza, a validade das leis depende da aprovação da sociedade que será

submetida a elas. No entanto, como não se apresenta viável que todos os

cidadãos participem da criação das leis, confia-se este poder a um grupo de

representantes: o poder legislativo. Aí está a origem teórica desse poder que

se baseia, entre nós, na soberania popular e na representatividade.

A noção de soberania que, devidamente transferida para o povo ou

para a nação, após as revoluções burguesas, especialmente a francesa de

1789, vai justificar não apenas o monopólio do Estado no tocante à produção

de leis como também o monopólio legislativo confiado a um dos poderes do

73 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 73.

Estado: o Legislativo.

No âmbito do poder legislativo, é na maioria parlamentar que a

comunidade delega o exercício do poder mais ajustado aos fins que motivaram

a sua constituição, que é o poder de fazer as leis.

Grosso modo, numa perspectiva histórica a atividade legislativa era

vinculada ao momento jurisdicional em que a legislação era uma atividade

excepcional. Isso provavelmente ocorreu devido à prevalência do direito natural

sobre o direito positivo que existia naquele contexto.

Na pré-modernidade, então, tratava-se de uma função apenas

declarativa, o que foi alterado com a modernidade, quando ganhou relevo a

função constituinte, a partir do que a legislação passa a ter um caráter

autônomo ao processo judicial. Conforme afirma Nuno Piçarra, “Só a partir do

momento em que a lei passa a ser concebida como algo de factível, de

natureza constitutiva e não meramente declarativa, é que tem sentido falar de

uma função legislativa em sentido próprio, autônoma em relação à função

jurisdicional”74.

O traço distintivo da atividade legislativa é a prerrogativa de poder

inovar no ordenamento jurídico, no sentido de criar leis com as características

da abstração e da generalidade, motivo pelo qual também se pode desvincular

o ato de legislar do momento de aplicação do direito.

Com o destaque que ganhou o momento de criação das leis, inclusive

por conta de sua importância dentro duma sociedade, natural que se

iniciassem debates acerca da produção do Direito e do poder de ter nas mãos

este momento originário. Isso, como bem esclarece Castanheira Neves, devido 74 PIÇARRA, N. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional – um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra Editora, 1989, p. 45.

à importância dada à criação do direito como reflexo da manifestação de um

poder75, com o que o poder de criação do Direito se tornou um dos mais

visados e importantes no Estado de feição constitucional, sobretudo por ser

considerado por muito tempo a principal dentre as funções estatais.

No direito natural, os estudiosos do direito gozavam de grande

prestígio à medida que não existiam disposições escritas, razão pela qual havia

maior flexibilidade para fazer a ciência do Direito. Os juristas, então,

responsabilizavam-se por analisar as regras gerias e universais que regem o

mundo, sempre tendo como ferramenta o uso da razão.

Entretanto, a hegemonia dos juristas que dominava a produção até

certo tempo da história perdeu lugar diante do legalismo, experiência

possibilitada pelo pensamento jurídico moderno-iluminista. O movimento de

codificação daí exsurgente se converteu depois na própria expressão do

legalismo dos Estados pós-revolucionários europeus.

Durante o auge do Positivismo houve perda de espaço dos estudiosos

do Direito. Como explica Bobbio, no positivismo jurídico “a exigência da

segurança jurídica faz com que o jurista deva renunciar a toda contribuição

criativa na interpretação da lei, limitando-se simplesmente a tornar explícito,

através de um procedimento lógico (silogismo), aquilo que já está

implicitamente estabelecido na lei”76.

À perda de importância da formação do Direito pela doutrina deu lugar

à busca dos juristas pela recuperação de seu espaço. A partir de então, com o

aflorar da questão do método (herança de René Descartes) abriu-se espaço

75 NEVES, A. C. Digesta – escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. V. 2, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 13. 76 BOBBIO, N. O Positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. Tradução de PUGLIESI, Márcio; BINI, Edson; RODRIGUES, Carlos E. São Paulo: Editora Ícone, 1995, p. 80.

para a produção doutrinária. Utilizando-se das ferramentas intelectuais

preconizadas pelo método cartesiano, a interpretação jurídica então se lançou

à jornada pela busca da essência do Direito, o que proporcionou a abertura na

qual os juristas atuavam: o campo da interpretação das leis.

Concluindo-se, pode-se dizer que, quando se pensa no aplicador do

direito, verifica-se um movimento não só de simples interpretação dos textos de

lei, mas também uma atuação criativa no sentido da constituição de normas.

Noutro giro verbal, é o que se denomina papel criativo.

5. A CONSTITUIÇÃO E O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUC IONAL: JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO

5.1. O EMBATE ENTRE AS TESES PROCEDIMENTALISTAS E

SUBSTANCIALISTAS

Contemporaneamente, há uma discussão acerca do papel da

Constituição, sua força normativa e o seu grau de dirigismo que gira em torno

de duas teses: de um lado as teorias procedimentalistas, e, de outro, as teorias

substancialistas. Cuida-se de embate de fundamental importância para a

definição do papel exercido pela jurisdição constitucional.

As teses materiais enfatizam a regra contramajoritária (freios às

vontades de maiorias eventuais), o que, para os adeptos da postura

substancialista, reforça a relação entre Constituição e Democracia, e, para os

procedimentalistas, enfraqueceria a democracia por faltar legitimidade de

justiça constitucional, ao argumento de que uma jurisdição constitucional

interventiva coloniza o mundo da vida.

Há, no Brasil, um rol considerável de juristas que, contrapondo-se às

teorias processuais-procedimentais, defendem uma atuação mais efetiva da

justiça constitucional, sobretudo por conta da notória inefetividade da

Constituição e da omissão dos poderes Legislativo e Executivo na

implementação de políticas públicas, fatos que conduzem inevitavelmente à

utilização de mecanismos aptos à realização dos direitos substantivos previstos

na Constituição Federal, como, por exemplo, ações constitucionais e controle

de constitucionalidade.

Doutra banda, as teses procedimentalistas tem ganhado corpo

ultimamente, tendo em vista a acusação que fazem da judicialização da política

e do ativismo judicial. Muito embora assista razão a essas teses nalgumas

críticas a respeito do ativismo, tem-se que às vezes chegam a defender um

constitucionalismo débil, pelo qual a Constituição somente limitaria os poderes

existentes, sem prever especificamente uma defesa material dos direitos

fundamentais77.

Para os procedimentalistas, nas sociedades complexas a natureza

das decisões deve ceder lugar ao procedimento, uma vez que generalizam o

reconhecimento das decisões. O respeito aos procedimentos, tanto na seara

do legislativo quanto do judicial, garantiriam a aceitabilidade das decisões. Não

obstante, quiçá não seria sem razão defender que o problema dessas teorias

repousa no fato de que depositar no procedimento o meio ideal de operar a

democracia supõe um problema na medida em que impossibilita uma

intervenção substantiva.

Noutro vértice, as teorias materiais-substantivas trabalham com a

77 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 81.

perspectiva de que a implementação dos direitos fundamentais e sociais, por

intermédio da jurisdição constitucional, afigura-se como condição de

possibilidade da validade da própria Constituição, especialmente em países

com baixo grau de efetividade do texto constitucional. Cite-se, por exemplo, a

posição sustentada por Paulo Bonavides, que a justifica por motivos

pragmáticos, admitindo a judicialização da política – entendida como

concretização de direitos fundamentais-sociais pela via judicial – como

necessária em países com acentuado grau de inefetividade da Constituição,

como é o típico caso do Brasil78.

Também endossa esse entendimento Lenio Streck:

Parece não restar dúvida de que as teorias materiais da Constituição reforçam a Constituição como norma (força normativa), ao evidenciarem o seu conteúdo compromissório a partir da concepção dos direitos fundamentais-sociais a serem concretizados, o que, a toda evidência – e não há como escapar dessa discussão – traz à baila a questão da legitimidade do Poder Judiciário (ou da justiça constitucional) para, no limite, isto é, na inércia injustificável dos demais poderes, implementar essa missão.79

Parece difícil sustentar as teses processuais-procedimentalistas em

países como o Brasil, onde parte considerável dos direitos fundamentais e

sociais continua pendente de cumprimento, em que pese as mais de duas

décadas de promulgação da Constituição de 1998. De fato, afigura-se

demasiadamente pouco reservar ao Poder Judiciário apenas a função de zelar

pelo respeito aos procedimentos democráticos na formação da vontade

política.

Jürgen Habermas, principal corifeu do procedimentalismo a nível

78 BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 9-10. 79 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 82.

mundial, critica com veemência a invasão da política e da sociedade pelo

Direito, partindo da ideia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do

século XX, nas democracias de massas dos Estados Sociais, demandam uma

compreensão procedimentalista do Direito. Segundo Lenio Streck, Habermas

empreende severas críticas à leitura substancialista feita por Alexy do modelo

de Direito defendido por Dworkin e ao gigantismo ou politização do Judiciário

surgido no pós-guerra, bem como recusa tanto o processo hermenêutico de

aplicação de normas como se fossem valores e o enfoque de um juiz que se

sobressai por sua virtude e acesso privilegiado à verdade80.

É preciso insistir, todavia, que processuais-procedimentalistas

guardam certa distância da realidade brasileira. O motivo para isso é um tanto

quanto singelo: devido ao seu conteúdo fortemente formal, o Brasil longe está

de prover as condições de possibilidades para que essas tenha solo fértil, não

só porque a Constituição adotada tem um vasto conteúdo matéria-substancial,

senão também devido as inúmeras promessas não cumpridas do texto de

1988, afinal ainda existem milhões de pessoas vivendo na miséria ao tempo

um que a Constituição estabelece que o Brasil é uma República que visa a

erradica-la (a miséria). Por motivos como esse é que se pode sustentar, no

Brasil, que a jurisdição constitucional deve atuar tendo em conta os direitos

fundamentais e sociais estabelecidos no processo democrático fundante de

1988, tendo inclusive precedência contra textos legislativos produzidos por

maiorias parlamentares (que, ao fim e ao cabo, também devem obediência à

constituição).

Ademais, há a premente necessidade de manter a Constituição em

80 Idem, ibidem, p. 84.

sua perspectiva dirigente e compromissória. Direito constitucional é Direito

político. Existe uma fundamentação constitucional da política que aponta linhas

de atuação política e estabelece condições para mudança da sociedade e das

estruturas sociais pelo Direito, haja vista que a Constituição reconhece

desigualdades e, por isso, disponibilizar no pacto fundante os mecanismos

para alcançar a sua mudança. Nas palavras de Lenio Streck, “Trata-se de uma

cláusula transformadora permanente, isto é, a Constituição do Brasil vai

incorporar os conflitos que antes eram ignorados pelos juristas”81.

Derradeiramente, é necessário que se deixe bem claro, à guisa de

conclusão, que as divergências entre as teorias substancialistas – que

agregam à noção de Estado o conteúdo material das Constituições e a coloca

na justiça constitucional para a efetivação dos direitos fundamentais-sociais e a

transformação da sociedade – e procedimentalistas – fulcradas na ideia de

democracia procedimental pugnada por Jürgen Habermas – não as contrapõe

a ponto de se pensar que o substancialismo não é pluralista ou que o

procedimentalismo se reduz a mera formalidade82.

De igual maneira não se pode pensar que uma defende a

democracia e a outra, não, ou que os procedimentalistas não estão

preocupados com a concretização dos direitos fundamentais e com a

preservação da Constituição. Ao contrário, ambas as teorias estão

preocupadas com a preservação da Constituição e da Democracia. Os

caminhos é que são diferentes, já que são diferentes os paradigmas filosóficos

em que buscam sustentáculo.

81 Idem, ibidem, p. 88. 82 Idem, ibidem.

5.2. A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS

A constitucionalização aqui abordada é aquela que se projeta por todo

sistema jurídico, e essa projeção pelo ordenamento jurídico se dá pela via da

jurisdição constitucional, que possibilita a aplicação direta da Constituição a

uma série de questões sociais e políticas, a declaração de

inconstitucionalidade de normas com ela incompatíveis, retirando-se-lhes a

eficácia e a interpretação conforme a Constituição, na qual se atribui sentido às

normas jurídicas em geral sempre acorde com a Constituição.

Muito embora a discussão a respeito do ativismo judicial vem sendo

realizada nos Estados Unidos desde 1803, no célebre caso Marbury

v.Madison83, no contexto brasileiro, contudo, apresenta o referencial de que o

crescimento e a intensidade da participação do Judiciário apenas se deu a

partir da Constituição de 1988, quando, rompido com a ditadura militar, criou-se

um ambiente político propício ao desenvolvimento da ideia de concretização de

direitos aos cidadãos. Noutras palavras, foi somente com a noção de

constitucionalismo democrático que se começou a pensar na atuação do

Judiciário a partir duma perspectiva ativista.

Vem à baila lembrar que, no caso brasileiro, a jurisdição constitucional

83 O caso envolvia discussão sobre a designação feita pelo então presidente dos Estados Unidos da América, John Adams, às vésperas de deixar seu cargo, de William Marbury como juiz de paz. A Suprema Corte, por decisão do Chief Justice Marshall, afirmou que, embora a nomeação fosse irrevogável, o caso não poderia ser julgado pela Corte, declarando inconstitucional a seção 13 do Judiciary Act, que atribuía competência originária da Suprema Corte para a análise da questão, sob o fundamento de que essa disposição legislativa ampliava sua atuação para além do que havia sido estabelecido constitucionalmente no Article III. Dessa forma, por uma decisão judicial no julgamento dum caso concreto, surgiu o controle de constitucionalidade (judicial review) norte-americano. É de se lembrar, a propósito, que a Constituição não conferia expressamente esse poder de revisão, pelos Tribunais, da legislação do Congresso. Inicia-se assim as discussões sobre o ativismo judicial em solo norte-americano.

é exercida amplamente pelo Poder Judiciário. Desd’o juiz estadual ao Supremo

Tribunal Federal, todos detêm não só legitimidade, mas também poder-dever

de interpretar a legislação infraconstitucional em conformidade com a

Constituição. Essa atribuição inclui a prerrogativa de recusar a aplicação de lei

ou ato normativo contrário à Constituição.

O amplo exercício da jurisdição constitucional trouxe um fenômeno

complexo: sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil de

1988, houve um aumento significativo da demanda por justiça na sociedade.

Como fatores para essa transformação, Luís Roberto Barroso destaca, em

primeiro lugar, a redescoberta da cidadania e a conscientização das pessoas

em relação aos próprios direitos. Há também o fato de o texto constitucional

haver criado novos direitos, introduzido novas ações e ampliado a legitimação

ativa para tutela de interesses, inclusive metaindividuais (difusos, coletivos e

individuais homogêneos).

Houve, nesse contexto, uma significativa ascensão institucional do

Poder Judiciário. Com a recuperação das liberdades democráticas e das

garantias da magistratura, juízes e tribunais adquiriram um maior

protagonismo, abandonando papel mais passivo e assumindo uma postura

mais ativa e dividindo espaço com os Poderes Legislativo e Executivo. O

cenário que então se descortina ensejou uma modificação substantiva na

relação entre a sociedade e as instituições judiciais, o quê conduziu reformas

estruturais e suscitou questões complexas acerca da extensão dos poderes

reconhecidos ao Judiciário.

O fenômeno da constitucionalização, a ampliação dos direitos, o

aumento da demanda por justiça e ascensão institucional do Judiciário foram

fatores que conduziram a uma expressiva judicialização de questões políticas e

sociais, que passaram a ter no judiciário a instância decisória final. Convém

destacar alguns dos casos ilustrativos desse fenômeno apontados por Luís

Roberto Barroso:

(i) Políticas públicas: a constitucionalidade de aspectos centrais da Reforma da Previdência (contribuição dos inativos) e da Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça); (ii) Relações entre Poderes: determinação dos limites legítimos de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebra de sigilos e decretação de prisão) e do papel do Ministério Público na investigação criminal; (iii) Direitos fundamentais: legitimidade de interrupção da gestação em certas hipóteses de inviabilidade fetal e das pesquisas científicas com células-tronco embrionárias; (iv) Questões do dia-a-dia das pessoas: legalidade da cobrança de assinaturas telefônicas, majoração do valor das passagens de transporte coletivo ou a fixação do valor máximo de reajuste de mensalidade de planos de saúde.84

Em todas essas questões, o método de atuação do Poder Judiciário é

uma fundamentação jurídica. Porém, é necessário reconhecer que a natureza

da função assume contornos inegavelmente políticos.

Nota-se, pois, que a ascensão do Poder Judiciário e a judicialização da

vida são fenômenos característicos de nossos tempos.

5.3. ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

5.3.1 Notas preliminares

O Poder Judiciário tem passado por inúmeras transformações em

seu perfil de atuação. A Constituição da República Federativa do Brasil de

84 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 7.

1988 representou um momento de radical nesse sentido, modificando o

exercício da jurisdição constitucional. A partir de então, dois fenômenos

passaram a estar diretamente ligados à atividade jurisdicional: o ativismo

judicial e a judicialização da política.

Esses dois fenômenos, não há negar, representam um acentuado

grau de judicialização que assume o Direito brasileiro na atualidade. Conquanto

este seja um ponto comum entre ambos os temas, não se deve confundi-los.

Para compreender os dois fenômenos, necessário se faz que os

diferenciemos. A pesar da importância que assume essa problemática na atual

conjuntura, não são raros os casos em que pouco ou nada se esclarece sobre

o tema, confundindo-se-os.

5.3.2 Judicialização da política

De início, sobreleva ressaltar que a questão acerca do que seja a

judicialização da política indica a interação entre pelo menos três elementos:

Direito, Política e Poder Judiciário.

Como já se demonstrou, sem embargo das várias facetas pelas

quais pode ser entendido o constitucionalismo contemporâneo, é possível

defini-lo como uma tentativa jurídica – isto é, do Direito –, de apresentar limites

ao poder político – ou seja, a política – por intermédio de Constituições. Nesse

sentido, veja-se o magistério trazido por Clarissa Tassinari:

Por certo, a própria noção de constitucionalismo, nas suas mais variadas acepções, seja como conjunto de mecanismos normativos e institucionais de um sistema jurídico-político que organiza os poderes do Estado e protegem os direitos fundamentais dos cidadãos; como tipo ideal para refletir sobre a realidade histórica de uma nação e

trazer à luz elementos da experiência política (mormente aqueles ligados à consagração de instrumentos e técnicas de limitação do exercício do poder político; ou como oposição a governo, dentre outras possíveis explorações do termo, demonstra, assim, o modo como se dá a articulação entre o Direito e a Política.85

Com essa assertiva inicial, busca-se reforçar a ideia de vinculação

entre Direito – especialmente o constitucional – e Política, sem que para tanto

se resvale na aceitação de que essa relação implique fatalmente no

decisionismo judicial. Aliás, admitir a inexpugnável imbricação existente entre

ambas as disciplinas sem compactuar com o decisionismo não só possível

como também necessário.

No fundo, cuida-se, por um lado, de compreender o elemento

político do Direito, reconhecendo-se que Direito e Política se inter-relacionam,

e, por outro, de se negar que a Política seja o elemento propulsor do

decisionismo no Direito. Deve-se a essa tênue distinção a existência de

grandes dificuldades de se conceber a judicialização da política e o ativismo

judicial como manifestações de fenômenos distintos.

Cabe pontuar, contudo, que, da mesma forma que a relação entre

Direito e Política possibilita a leitura acima exposta, reputar a Política como

fator externo de incidência eventual no âmbito jurídico enseja, por vezes,

posicionalmente extremamente oposto. Isso porque, se a Política deixar de ser

a força motriz para a constituição do conteúdo jurídico-constitucional para

adquirir contornos de argumento corretivo do Direito, o que não raras vezes

ocorre pela via judicial, o fenômenos que então se nos apresenta é a violação à

autonomia do Direito. É o que Lenio Streck denomina de “predador externo da

85 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 28.

autonomia do Direito”86.

Para o referido autor, o Direito possui uma autonomia que de

quando em vez tende a ser abalada por dois tipos de predadores: internos e

externos. Como exemplo de predadores externos, o aludido doutrinador cita a

Política, a Moral e a Economia. Confira-se:

Autonomia do direito não pode implicar indeterminabilidade desse mesmo direito construído democraticamente. Se assim se pensar, a autonomia será substituída – e esse perigo ronda a democracia a todo tempo – exatamente por aquilo que a gerou: o pragmatismo político nos seus mais diversos aspetos, que vem colocando historicamente o direito em permanente ‘estado de exceção’, o que, ao fim e ao cabo, representa o próprio declínio do ‘império do direito’ (alguém tem dúvida de que essa questão é retroalimentada permanentemente, mormente em países de modernidade tardia como no Brasil?).87

Advém daí a afirmação de que é devido a esse perfil de

intransponibilidade de imbricação entre Direito e Política que ativismo judicial e

judicialização da política tendem a ser confundidos.

A exemplo do que vem sido abordado pela doutrina, convém trazer a

lume o magistério de Luís Roberto Barroso, consagrado constitucionalista

brasileiro, que, ao versar sobre a problemática em comento, admite existir uma

dualidade na relação entre Direito e Política, em virtude de que haveria uma

autonomia relativa, já que o Direito se situa numa situação de ambiguidade em

que, a um só tempo, é e não é Política. Não seria Política porque não se pode

conceber a possibilidade de submeter-se “a noção do que é correto e justo à

vontade de quem detém o poder”88. Não obstante, seria política porque:

86 STRECK, Lenio Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 370. 87 Idem, ibidem. 88 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrátia. In: COUTINHO, Jacinto N. de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.).

(i) sua criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas leis; (ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos; (iii) juízes não são seres sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia e, consequentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que formula.89

O posicionamento trazido à colação, porém, revela-se insuficiente

para o correto enfrentamento do papel da Política no Direito, sendo inclusive

contraditório.

Em primeiro lugar porque, na tradição romano-germânica da qual o

Brasil adepto, o Direito surgido no raiar da modernidade é e sempre foi produto

da maioria, ou seja, resultado de legislação forjada na formação do processo

majoritário.

Em segundo lugar, o fato de a aplicação do Direito não ser

dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos

sentimentos e expectativas dos cidadãos resulta da atual conjuntura

hermenêutico-constitucional do Direito contemporâneo, consequência da

reformulação da atividade jurisdicional e da atividade interpretativa, nos moldes

já referidos nas abordagens acima.

Em terceiro lugar, o suposto de os juízes não serem seres

desprovidos de memória e de desejos, nem tampouco libertos do próprio

inconsciente e de qualquer ideologia, não são argumentos suficientes para dar-

se vazão a subjetivismos/decisionismos. O assunto é por demais complexo e,

bem por isso, impossível de aqui ser abordado com a detenção que requer;

entretanto, cabe pontuar que o argumento em tela tem acentuada grau de

Constituição & Ativismo judicial: limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 285. 89 Idem, ibidem, p. 30.

possibilidade de comprometimento da autonomia e da formação democrática

de que se reveste o Direito contemporâneo.

Em sendo o Direito Política, mas também não o sendo, a Política

adquire elevada carga de subjetivismo, de tal arte a, levada ao extremo, incidir

em fundamento para o fenômeno oposto: o ativismo.

Portanto, muito embora as linhas traçadas se proponham a

demarcar paralelo distintivo entre o ativismo judicial e a judicialização da

política, tem-se que a finalidade não é alcançada, pois não possibilita tal

distinção.

Para Barroso, no Brasil, a judicialização da política é decorrente de

um contexto em que preponderam três fatores; redemocratização,

constitucionalismo abrangente e incorporação de um sistema híbrido de

controle de constitucionalidade, nos quais se fazem presentes as modalidades

difusa e concentrada. Por conseguinte, o fenômeno surge como característica

indelével das transformações por que passou do Direito brasileiro após a

Constituição Federal de 1988. O contraponto entre ativismo judicial e

judicialização da política, destarte, dar-se-ia em função da diferença existente

nas causas que lhes originaram.

À continuação, o multicitado constitucionalista identifica o ativismo

judicial como “um modo específico e proativo de interpretar a Constituição,

expandindo o seu sentido e seu alcance” ou, ainda, como uma postura que

“procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem,

contudo, invadir o campo da criação livre do Direito”. Com supedâneo nos seus

ensinamentos, é possível sintetizar três condutas que lhe caracterizam: (i)

aplicação direta da Constituição, ainda que diante de inexistência de disposição

legislativa; (ii) declaração de inconstitucionalidade com base em critérios

menos rígidos; e, por fim, (iii) imposição de condutas ao Poder Público.

Resumindo-se, para ele o ativismo seria “uma participação mais ampla e

intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com

maior interferência no espaço de atuação dos outros poderes”90.

Entrementes, os critérios distintivos acima ilustrados não se afiguram

suficientes para a definição dos fenômenos em análise. Forçoso reconhecer-se

que as notas caracterizadoras do ativismo, nos termos propostos por Barroso,

devem, no atual paradigma constitucional, ser inerentes a qualquer juiz no

exercício de suas atribuições.

Na atual quadra histórica já não mais se concebe que o julgador não

deva mostrar-se preocupado com a aplicação imediata da Constituição, com a

realização de um efetivo controle de constitucionalidade (principalmente devido

ao grande número de leis inconstitucionais que convivem promiscuamente com

a Constituição sem que o Poder Judiciário reconheça essa lamentável

circunstância), e com o efetivo cumprimento das finalidades constitucionais (em

que pese essa constatação careça de prática adequada no Brasil, ensejando o

que Lenio Streck conceitua de “baixa constitucionalidade”91).

Todavia, a despeito de os critérios supramencionados não

possibilitarem uma apropriada distinção entre ativismo judicial e judicialização

da política, impossível discordar que leitura do fenômeno da judicialização da

política não seja produto das transformações ocorridas no Direito

contemporâneo, notadamente com o advento do texto constitucional de 1988.

Seria um despautério negar o deslocamento do polo de tensão do 90 Idem, ibidem, p. 279-280. 91 STRECK, Lenio Streck. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

Executivo para o Judiciário como uma das marcas da transição do Estado

Social para o Estado Democrático de Direito. A propósito, é sobremodo

elucidativa as observações de Lenio Streck:

Em síntese, é a situação hermenêutica instaurada a partir do segundo pós-guerra que proporciona o fortalecimento da jurisdição (constitucional), não somente pelo caráter hermenêutico que assume o direito, em uma fase pós-positivista e de superação do paradigma da filosofia da consciência, mas também pela força normativa dos textos constitucionais e pela equação que se forma a partir da inércia na execução de políticas públicas e na deficiente regulamentação legislativa de direitos previstos nas Constituições. É nisto que reside o que se pode denominar de deslocamento do pólo de tensão dos demais poderes em direção ao Judiciário.92

É por este caminho, pois, que podem ser fixados os primeiros traços

distintivos com vista a demonstrar as diferenças entre os dois fenômenos em

espeque.

A esse escopo Clarissa Tessinari acertadamente assenta que a

constitucionalização do direito após a Segunda Guerra Mundial, a legitimação

dos direitos humanos e as influências dos sistemas estadunidense e europeu

são fatores que contribuíram fortemente à ocorrência da judicialização do

sistema político brasileiro. Tais fatores ensejaram maiores participação e

interferência do Estado na sociedade, suposto sobremaneira acentuado em

face da inércia dos demais Poderes, o que consequentemente abriu espaço

para que a jurisdição suprimisse as lacunas por eles deixadas. O judiciário, por

conseguinte, passou não só a exercer um papel determinante na definição de

certos padrões a serem respeitados, mas também na concretização de direitos

aos cidadãos, reduzindo consideravelmente o déficit deixado pelos demais

92 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 190.

Poderes93.

Demais disso, é preciso destacar igualmente aquilo que pode ser

chamado de publicização da esfera privada, observada na vocação expansiva

que o princípio democrático tem implicado para com a crescente

institucionalização do direito na vida social, invadindo espaços até há pouco

tempo inacessíveis a ele, tais como certas dimensões da vida privada.

As novas Constituições, a remodelagem do Estado e a existência de

novos direitos (dos quais se pode destacar especialmente os metaindividuais)

tiveram por resultado a reformulação da relação entre os Poderes, no interior

da qual o Judiciário abandonou a inércia e o desdém em relação às

transformações sociais. É o que se extrai da lição de Luiz Werneck Vianna,

citado por Clarrisa Tessinari. Verbis:

[...] a democratização social [...] e a nova institucionalidade da democracia política, [...] trazendo à luz Constituições informadas pelo princípio da positivação dos direitos fundamentais, estariam no cerne do processo de redefinição das relações entre os três Poderes, ensejando a inclusão do Poder Judiciário no espaço da política.94

Ao que se vê, a judicialização não é uma postura a ser identificada

como positiva ou negativa; ao contrário, apresenta-se como uma constatação

de algo que ocorre na contemporaneidade por força da consagração e da

regulamentação constitucionais de direitos, donde decorre um maior número de

demandas que não poucas vezes acabarão no Judiciário. Noutras palavras, é

questão jungida à composição do cenário jurídico atual, e não referente à

necessidade de se criar um modelo de jurisdição fortalecido.

93 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 32. 94 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 190.

No caso brasileiro, não se pode olvidar que a questão da

judicialização ganha foros de expansão na medida em que a própria

Constituição Federal consagra no artigo 5.º, inciso XXXV95, o princípio da

inafastabilidade da jurisdição, o que vem a corroborar com a afirmação de que

a judicialização está atada à estruturação do ordenamento, e não à

necessidade de fortalecimento do órgão judicante.

Por todo o exposto, vislumbra-se que a judicialização, uma vez

possibilitada pelo próprio ordenamento jurídico, consagra-se como uma

questão social. Se assim o é, haverá de ser reconhecido que o fenômeno

independe do desejo ou da vontade do órgão julgador; em vez disso, a sua

origem se espraia numa série de fatores originalmente alheios à jurisdição,

tendo como ponto inicial um maior e mais amplo reconhecimento de direitos

aos cidadãos (sobretudo na Constituição), passando pela ineficiência do

Estado em implementá-los (o que no Brasil assume foros de dramaticidade,

haja vista que mesmo após 24 anos é evidente a elevada dificuldade em

cumprir o texto constitucional) e, derradeiramente, suscitando um aumento da

litigiosidade (característica das sociedades de massa).

De mais a mais, a diminuição da judicialização não depende apenas

de medidas realizadas pelo Poder Judiciário, mas, sim, duma plêiade de

medidas que envolvem um comprometimento de todos os Poderes estatais.

5.3.3 Ativismo Judicial

Com a Constituição Federal de 1988, a comunidade jurídica

95 XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

brasileira testemunhou o advento das transformações como a ampliação do

papel político-institucional do Supremo Tribunal Federal. Acresça-se a isso o

fenômeno da judicialização da política e ver-se-á que essas circunstâncias

repercutiram enormemente na forma de conceber a atuação dos Juízes e

Tribunais, o que acabou ocasionando a propagação do ativismo judicial. O

tema, porém, tem sido abordado sob diversos ângulos diferentes, gerando

assim certa fragmentariedade na sua compreensão.

Em meio às dificuldades de sistematização das concepções

existentes sobre o ativismo, notadamente em decorrência do seu número,

Clarissa Tassinari elenca algumas perspectivas sobre as quais tem sido

diagnosticado o tema:

a) como decorrência do exercício do poder de revisar (leia-se, controlar a constitucionalidade) atos dos demais poderes; b) como sinônimo de maior interferência do Judiciário (ou maior volume de demandas judiciais, o que, neste caso, configuraria muito mais a judicialização); c) como abertura à discricionariedade no ato decisório; d) como aumento da capacidade de gerenciamento processual do julgador, dentre outras.96

Elival da Silva Ramos identifica que o problema do ativismo envolve

ao menos três questões: o exercício do controle de constitucionalidade, a

existência de omissões legislativas e o caráter de vagueza e ambiguidade do

Direito. Para ele, o problema ao redor do ativismo tem como questão

subjacente a busca pela legitimidade do controle de constitucionalidade. Em

suas palavras:

[...] a questão da legitimidade (axiológica) do controle de jurisdicional de constitucionalidade, que é externa à argumentação estritamente

96 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 32.

dogmática (juízo de validade formal e de eficácia jurídica), passa a ter por foco não a jurisdição constitucional em si e sem a própria Constituição que consagra; um suma, o que caberia é se o modelo de Estado Constitucional de Direito Escolhido pelo constituinte seria o mais adequado para implantar uma democracia. 97

Fato é que o ativismo judicial e o controle de constitucionalidade são

questões que se implicam, já que tratar do ativismo também significa atentar-se

para a forma de exercício da jurisdição constitucional.

Em adendo à preocupação externada pelo referido autor, anote-se

que a questão do ativismo judicial não se restringe apenas à coerência, ou não,

da existência do controle de constitucionalidade com um Estado Democrático.

É preciso desvelar certa opacidade que acomete essa abordagem.

Não obstante a importância do tema da compatibilidade, em terras

brasileiras essa é uma questão superada, porquanto o texto constitucional de

1988, ao prever expressamente a possibilidade do exercício do controle de

constitucionalidade, dirimiu maiores elucubração quanto ao tema, assim como

estabeleceu um papel estratégico aos Juízes e Tribunais nesse aspecto.

Em se tratando de ativismo judicial, é preciso que a atenção esteja

voltada às respostas dadas pelo Poder Judiciário e não apenas para

compreender se o exercício do controle de constitucionalidade é coerente com

a existência de um Estado Democrático.

O controle de constitucionalidade está indissociavelmente presente

no pacto federativo estabelecido pela Constituição Federal de 1988, razão pela

qual importa discuti-lo nos moldes em que ele se dá, sendo correto falar que a

sua legitimidade reside precisamente na concretização da Constituição, no

sentido de que às demandas judiciais se deve atribuir respostas

97 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 25.

constitucionalmente adequadas. Diversamente, um controle de

constitucionalidade feito a partir da vontade ou da consciência do intérprete,

por não representar a concretização da Constituição e, sim, o seu

desvirtuamento, deixa porta entreaberta para o ativismo judicial.

Sendo o controle de constitucionalidade um tema que guarda

profunda relação com o ativismo judicial, mas se tratado, porém, de expediente

consagrado no âmago da formação do atual regime constitucional, a discussão

sobre o ativismo desloca-se para o modo como o Judiciário responde os casos

a ele submetidos. Noutro giro verbal, a questão sobre o ativismo judicial deve

gravitar em torno do modo – ou os termos – que o controle de

constitucionalidade é exercido, isto é, o modo como, ao interpretar, o Judiciário

vem decidindo.

Um ponto bastante sensível ao ativismo diz respeito ao controle

sobre as políticas de ação social do governo, uma vez que é de suma

importância que se evite que o Judiciário assuma funções do governo.

Destarte, o problema da abordagem deve ser deslocado do prisma

da averiguação de constitucionalidade da atuação dos demais Poderes, que já

se sabe de antemão ser possível, para inquirir-se acerca de como se dá este

controle; ou, dito de outra forma, esta revisão judicial.

Em relação à distinção entre ativismo judicial e judicialização da

política, leciona Lenio Streck que:

[...] um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado (ou de um conjunto de magistrados); já a judicialização é um fenômeno que exsurge a partir da relação entre os poderes do Estado (pensemos, aqui, no deslocamento do pólo de tensão dos Poderes Executivo e

Legislativo em direção da justiça constitucional [...]).98

Nesse rumo, a concepção de ativismo judicial pode ser sintetizada

na assunção, pelo Poder Judiciário, de competências que não lhe são

reconhecidas constitucionalmente.

Daí por que, em relação ao tema, é possível desenhar a seguinte

diferenciação entre ativismo judicial e judicialização do direito: (i) é impossível

negar-se o liame existente entre Direito e Política, o que, entretanto, não

autoriza falar-se em ativismo ou judicialização com base nessa imbricação; (ii)

é um equívoco considerar ativismo judicial e judicialização da política como

sendo fenômenos iguais; e (iii) a judicialização da política é um fenômeno

contingencial, exsurgente da insuficiência ou inércia dos demais Poderes, em

determinadas circunstâncias e independentemente da postura dos juízes,

enquanto o ativismo judicial é uma postura do judiciário que se situa para além

dos limites constitucionais a si atribuídos99.

5.4. O ALARGAMENTO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL E A CRISE DE

LEGITIMIDADE DOS ELEITOS

No atual contexto brasileiro, é possível destacar a chamada crise de

legitimidade dos eleitos como uma das causas que conduziram ao incremento

da atividade dos tribunais. No Brasil, não só é notória a lentidão com que o

Poder Legislativo acompanha a demanda por novas soluções que surge na

sociedade, mas também a sua quase ineficiência operacional e a sua

98 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 589, nota de rodapé 123. 99 Idem, ibidem, p. 51-56.

vassalagem em relação ao Executivo.

No âmbito do Legislativo, sói acontecer que o trancamento da pauta

e as disputas ideológicas dificultem a edição de leis contemporâneas e em

consonância com a realidade social. No Brasil, porém, o Congresso Nacional

tem se revelado pródigo em descumprir a Constituição, em seguir uma pauta

imposta pelo Executivo por meio de medidas provisórias e em editar leis

inconstitucionais100. Ainda, os escândalos assolam não apenas o Congresso,

mas também o governo, de modo a desencadear um processo de corrupção e

de descrédito popular.

Dia após dia há um bombardeio de novas denúncias e escândalos

que atingem tanto o Senado como a Câmara dos Deputados, sem contar os

casos de menor repercussão na casa de prefeitos e vereadores em todo o

país. Já não se pode dizer que há a ideal representação entre cidadãos e

eleitos, tal como deveria ser, a fim de prevalecer, realmente, a soberania

popular. O povo não se reconhece nos representantes e em suas escolhas.

Nesta brecha que tem crescido a atuação dos tribunais, porquanto

neste espaço os cidadãos têm encontrado um viés para verem atendidos seus

interesses e reivindicações. A consequência é que os julgadores têm tentado

suprir as omissões e déficits legislativos a fim de atender as necessidades que

emergem desse panorama, mas por vezes dando azo aos fenômenos da

judicialização e do ativismo.

Por outro lado, o Judiciário tem sofrido com o trancamento de suas

funções e a torrente de processos que tem de apreciar. Sobrecarregado por

100 “De cada 10 leis estaduais ou federais submetidas ao crivo do Supremo Tribunal Federal, oito são julgadas inconstitucionais, o que evidencia não só a baixa qualidade da produção legislativa, mas principalmente, o papel cada vez atuante do Judiciário brasileiro na defesa dos direitos do cidadão.”, in Anuário da Justiça Brasil – 2012. 4. ed. Consultor Jurídico, 2012.

ocupar os espaços deixados pelos demais Poderes, o Judiciário também passa

por um movimento de descrença pelos cidadãos em virtude da demora das

soluções buscadas e pelos altos custos. Apesar disso, é bastante democrático,

no sentido de permitir maior participação dos interessados nos deslindes do

processo por intermédio de garantias como a do contraditório.

5.5. A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DOS JUÍZES À LUZ DA

CONSTITUIÇÃO

Uma das grandes questões que merecem destaque quando se fala

da atuação alargada do Judiciário diz respeito à legitimidade democrática de

seus membros, já que eles não são eleitos como os membros dos demais

poderes.

Mauro Cappelletti lembra que a independência dos juízes é que faz

do Judiciário um poder forte e não sujeito a interferências dos demais poderes,

mas que, por outro lado, esse aspecto denota um lado preocupante para a

democracia, na medida em que “tanto mais são esses independentes, tanto

menos obrigados a ‘prestar contas’ das suas decisões ao povo ou à maioria

deste e a seus representantes.”101.

Em relação a essa legitimação democrática, convém enfatizar que

ela decorre da própria Constituição, uma vez que há no seu texto duas formas

de legitimação democrática: uma representativa (referente ao sufrágio pelo

qual os candidatos devem passar para representarem o povo) e outra referente

101 CAPPELLETTI, M. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabril Editor, 1993, p. 93.

a requisitos outros, tais como concurso público (CF, artigo 93, inciso I102).

É a própria Constituição que define que os julgadores não são

eleitos diretamente pela maioria, definindo outra forma de legitimação para o

cargo, que, para o bem ou para o mal, trata-se igualmente de forma de

legitimação para tomar decisões importantes ao regime democrático.

Outrossim, não se pode perder de vista que os juízes, por

decorrência da própria sistematização da jurisdição constitucional, exerce uma

imprescindível função contramajoritária, razão pela qual fosse a representação

deles de natureza política, os julgamentos correriam sempre o risco de se

pautarem pelo propósito dos eleitores, já que eventualmente poderiam ficar

vinculados aos desígnios da opinião pública – ou mesmo a maiorias eventuais

– que não raramente não reflete a decisão adequada (ou correta) sob o prisma

jurídico, máxime o constitucional.

Não virá a despropósito recordar que, dentre os Poderes do Estado,

foi ao Judiciário, em cuja cúpula, no Brasil, se encontra o Supremo Tribunal

Federal, que o constituinte originário confiou a guarda da Constituição103.

Desse modo, a função do Judiciário, sobretudo da Suprema Corte, é

a de decidir sobre a constitucionalidade das leis, e não buscar inspiração na

opinião pública; isso é função do Legislativo e do Executivo. À vista do papel do

Poder Judiciário, Juiz algum pode se ver na obrigação de agradar à opinião

pública quando decide; nem ser obrigado a aceitar recursos financeiros de

empresas para financiar sua campanha eleitoral.

102 I - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação; 103 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe.

Importante acrescentar, na esteira desses argumentos, que as

garantias asseguradas aos membros do Poder Judiciário também evidenciam

exatamente a necessidade de se prever um poder separado do governo a fim

de assegurar que suas decisões não representem os caprichos passageiros da

opinião pública, representando nada mais, nada menos, do que a Constituição

e as leis da República Democrática.

Além disso, a democracia, ao exigir procedimentos públicos e

institucionalizados que reconhecem e garantem direitos iguais a todos os

cidadãos de participação política, possibilita a existência de um Direito

reconhecido como legítimo. E tanto o processo legislativo quanto o processo

jurisdicional se dão por meio de procedimentos públicos e institucionalizados,

de forma que este último também garante efetivamente a produção legítima do

Direito.

De igual forma Mauro Cappelletti104 enxerga a legitimidade dos

juízes em outros pontos que não a representatividade democrática. Em sua

opinião, não faz sentido submeter todos os ramos à análise da maioria, pois

abrira espaço para uma ditadura. A legitimação da atuação dos juízes na

constituição de normas no momento da solução do caso concreto estaria na

obrigatoriedade da fundamentação das decisões, expondo a solução para a

apreciação pública, que no caso brasileiro se reflete em exigência

constitucional insculpido do artigo 93, inciso IX105.

Com efeito, é preciso indagar se a participação do povo não seria

104 CAPPELLETTI, M. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabril Editor, 1993, p. 94. 105 IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

ainda maior nos processos judiciais do que na burocracia administrativa ou

legislativa, sobretudo pela possibilidade de contraditório e controle

constitucional das decisões, e, mais recentemente, pela possibilidade de

participação nos processos de controle de constitucionalidade perante o

Supremo Federal a partir da figura do amigo da corte (amicus curiae) e de

audiências públicas. Por meio desses mecanismos o Judiciário permite aos

grupos marginais que tenham mais apoio do que lhes oferecem os poderes

políticos106.

Verifica-se, portanto, que a questão da legitimidade da atuação dos

tribunais, mais propriamente dos julgadores, não pode ser vista sob o prisma

da representatividade democrática, ao menos em nosso sistema em que a

carreira de magistratura segue ditames constitucionais que não incluem a

eleição como via de acesso.

Por fim, averbe-se que uma legitimação não deve confundir-se com

a outra; bem ao contrário, pois aos juízes é vedado o exercício de atividades

político-partidárias.

5.6. JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO, CRISE DEMOCRÁTICA E POSSÍVEL

ASCENSÃO DE UMA JURISTOCRACIA?

Até aqui foram identificados diversos fatores que desaguaram na

atual conjuntura, tais como a constitucionalização do direito (o pós-guerra), as

contribuições que consagraram a importância dos textos constitucionais que

deram lugar a uma ruptura histórica (a noção de constituição dirigente), a

106 CAPPELLETTI, M. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabril Editor, 1993, p. 94.

relevância da criação dos Tribunais Constitucionais europeus (especialmente o

alemão) e as transformações que ampliaram o acesso à justiça. Todos esses

foram fatores contribuíram para a judicialização na contemporaneidade.

Convém ressaltar, nesse rumo, uma possível consequência do

panorama advindo desses elementos: a ascensão duma possível juristocracia.

É possível apreender do exposto que, não só o Brasil mas também

boa parte do mundo, passam por um período que se caracteriza pelo

surgimento dum imaginário social, político e jurídico que deposita no Judiciário

a confiança para decidir questões importantes da sociedade. Sem que se faça

juízos de valor e, sim, uma representação a nível de ganhos e perdas, essa

constatação tem um duplo sentido simbólico: um positivo, consubstanciado no

predomínio das instâncias judiciais na garantia/proteção de direito, a partir da

mudança de elementos históricos como a grande deficiência de direitos aos

cidadãos, a omissão dos demais poderes e a posição de indiferença que antes

caracterizava o judiciário; e outro negativo, consistente na fragilização de

outros braços estatais, indicando assim uma sensação de existência duma

crise em certas instituições.

Clarissa Tassinari, fazendo alusão a C. Neal Tate e Torbjörn

Vallinder, afirma que há diversos motivos para justificar a crescente

judicialização, dentre os quais destaca:

a) transformação do modo de compreensão da democracia como “vontade da maioria” (democracy as majority rule and popular responsability), adicionando-se a importância do poder contramajoritário, que acaba tendo o Judiciário como seu represente; b) a afirmação da separação dos poderes, que facilitou a judicialização; c) a (falta de) implementação de políticas públicas, apesar da existência de um vasto rol de direitos assegurados constitucionalmente; d) a atuação de certos grupos de interesse ao utilizar a jurisdição como meio de expandir os direitos garantidos, pleiteando a inclusão de outros não afirmados na constituição; e) o

fortalecimento do controle de constitucionalidade, que, muitas vezes, aparece amplamente vinculado com o sistema político, no sentido de que acabou sendo utilizado pela oposição parlamentar para barrar as iniciativas do governo; f) a inefetividade das instituições majoritárias, fazendo-se referência tanto ao Legislativo quanto ao Executivo, devido à ausência de implementação de políticas públicas por parte deste, o que representa um problema na condução da administração; e, por último, g) a delegação de poderes pelas próprias instituições majoritárias ao Judiciário, criando-se, assim, ua situação de conveniência, em que, para não gerar controvérsias políticas para o congressista (ou administrador), ao invés de definir lei que proíbe (ou permita) certas questões de grande divergência social, atribui-se tal função aos juízes e tribunais, evitando a indisposição política, o conflito e a polêmica com os seus eleitores e, principalmente, com seus opositores.107

Tais fatores possibilitaram o deslocamento de atenção para o

Judiciário e, ademais, passam a configurar as principais características do

mosaico do novo constitucionalismo.

Jose Luis Bolzan de Morais alerta que, no Brasil, podem ser

acrescentados aos motivos acima elencados mais dois elementos:

primeiramente, o descompasso pelo qual atravessa a esfera política estatal,

que tenta conjugar “uma política de inclusão (democracia social) e uma

economia de exclusão (capitalismo)”; em segundo lugar e em decorrência

também do primeiro motivo, a existência duma sensação de desconforto,

originada da insatisfação popular com a ausência do cumprimento

(especialmente pelo Poder Executivo) das promessas insculpidas no texto

constitucional, produzindo assim um apelo à jurisdição e, destarte, causa uma

“sacralização”108.

Dá-se, contudo, que o afastamento da sociedade em relação aos

demais poderes tem o perverso condão de provocar um distanciamento entre a

107 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 50. 108 BOLZAN DA MORAIS, José Luis. Crise do estado e da constituição e a transformação espaço-temporal dos direitos humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 60-61.

democracia – entendida no sentido de participação política dos cidadãos na

tomada de decisões – e a criação do Direito, que de certo modo passou a, por

vezes, ser caudatário de definições judiciais não pautadas em critérios

jurídicos. Não se nega, com essa afirmação, a indissociável concepção de

democracia também como contramajoritarismo, que pode ser representada na

atuação de cortes e tribunais na proteção de direitos constitucionais

assegurados contra a existência de maiorias eventuais.

Há algum tempo já se rompeu com a compreensão de democracia a

partir de um critério baseado na regra majoritária, o que se deu com a transição

do conceito grego de democracia direta, no qual o povo ia às ruas para discutir

a coisa pública, para a democracia representativa, que agrega elemento social

ao plano político de exercícios de liberdades, até desembocar na noção de

democracia participativa, em que há a inclusão da participação direta.

Por mais que se tenha avançado no modo de conceber a

democracia, agregando-se a ela o seu hoje indispensável conteúdo

contramajoritário, hodiernamente ocorre uma espécie de terceirização dos

direitos, decorrente do sentimento de acomodação e apatia política e cívica e o

consequente apelo permanente à jurisdição, fatores que impedem a

consolidação de um sistema em que a sociedade é parte ativa.

Não se olvide ainda que, a despeito dessa constatação, tem-se visto

na jurisdição uma saída para a asseguração da democracia, seja majoritária ou

contramajoritária, mormente porque muitos grupos têm a ela recorrido para

garantir o procedimento democrático, o que tem motivado a instituição de

mecanismos democráticos na tomada de decisões pelo poder judiciário (por

exemplo, a figura do amicus curiae – amigo da corte).

Por fim, gize-se ainda o fato de que acontecimentos como o

recrudescimento do ambiente democrático, a crescente judicialização e a

morosidade do Poder Judiciário abriram espaço para vias alternativas de

solução de litígios.

Em suma, como se viu, a judicialização se trata de fenômeno

inexorável e contigencial, pois não é resultado da atuação de juízes, ocorrendo

independentemente deles, de modo contingencial, porque as questões passam

a ser submetidas ao Judiciário por conta da conjuntura do próprio sistema.

Por sua vez, o ativismo se refere a uma conduta adotada pelos

juízes no exercício de suas atribuições, vez que intrinsecamente relacionado à

postura do órgão judicial na tomada da decisão. Portanto, o ativismo é um

problema exclusivamente jurídico, isto é, criado pelo Direito, cujas

consequências se fazem sentir em todas as demais esferas. Daí por que o

ativismo judicial é um problema de teoria do Direito, mas especificamente de

teoria da interpretação.

No fundo, o ativismo releva uma postura dos juízes em relação ao

novo paradigma em que estamos inseridos e a ascensão do Poder Judiciário.

Não raras vezes os juristas tendem a referir-se à decisão judicial como um ato

de vontade, o que nos remete a Hans Kelsen.

De fato, Hans Kelsen, preocupado com a estruturação do sistema

jurídico, não chegou a problematizar a questão da interpretação, mas a

vontade aparece em seu texto como elemento característico do ato de

aplicação do direito. Confira-se

[...] através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela

ciência jurídica.109

Kelsen preocupava-se com a formulação de um estatuto

epistemológico para o âmbito jurídico, tendo em vista a tradição então reinante,

na qual o Direito encontrava dificuldade em firmar-se como conteúdo próprio e

frequentemente era confundido com questões morais, políticas e econômicas.

A partir disso, Kelsen cria uma distinção entre Direito e ciência do direito, fato

que impacta diretamente na sua concepção de interpretação jurídica, já que

para um dessas esferas ele estabelece um modo diferenciado de compreender

a questão hermenêutica:

Desta forma, existem duas espécies de interpretação que devem ser distinguidas claramente uma da outra: a interpretação do Direito pelo órgão que o aplica, e a interpretação do Direito que não é realizada por um órgão jurídico mas por uma pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica.110

É importante ressaltar que a preocupação com o ativismo não é

objeto de preocupação por Hans Kelsen, visto que, em sendo o ativismo

judicial é um problema hermenêutico, e como tal envolve a discussão de como

aplicar o Direito, esse debate não faz parte do centro das teorizações feitas

pelo aludido autor, cujo enfoque direcionava-se à construção da ciência do

Direito.

Contudo, vale a pena destacar que, para o mencionado autor, a

interpretação do Direito é um ato de vontade, e a partir da sua teoria incorpora-

se ao Direito essa concepção a propósito de momento tão fulcral quanto o da

109 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 249. 110 Idem, ibidem, p. 245.

interpretação.

Aliado a um cenário de intensa judicialização, marca do

constitucionalismo contemporâneo, o protagonismo judicial ocorreu ao mesmo

tempo em que tomou forma o critério de vontade do julgador no ato de

interpretação, o que refletiu um perfidiosa discricionariedade que conduz

facilmente ao ativismo judicial.

Lenio Streck é um dos primeiros autores a demonstrar criticamente a

dualidade existente no pensamento de Hans Kelsen e as suas consequências

para o Direito. Aliás, é devido à sua obra que se pode dar conta da vinculação

entre ativismo e ato de vontade do julgador, assim como os problemas

oriundos disso. Nessa linha, o ativismo judicial se diferencia da judicialização

da política, vez que naquele está incluído o problema da vontade como critério

decisório.

Não por acaso, Antoine Garapon afirma que a atuação jurisdicional é

acentuada de tal forma que os juízes passam a ser considerados como os

“guardadores de promessas”, passando a ser considerados como “últimos

ocupantes de uma função de autoridade – clerical e até paternal – abandonada

por seus antigos titulares”. Para ele, à noção de ativismo judicial e de governo

de juízes subjaz uma tentativa de redenção pela qual o juiz se torna inclusive

árbitro dos bons costumes111.

Garapon associa o ativismo judicial e a decisão judicial a um critério

de desejo, de vontade daquele que julga, nos seguintes termos: “O ativismo

começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é

dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, ao contrário, de a

111 GARAPON, Atoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Tradução de Francisco Aragão. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 40-43.

travar”. Ainda, aduz que o ativismo “revela-se sob duas formas: sob a de um

novo clericalismo dos juristas, se a corporação dos juízes for poderosa, ou,

pelo contrário, sob a forma de algumas individualidades sustentaras pelos

media, se a magistratura não tiver grande tradição de independência”112.

Vê-se, destarte, que a inter-relação entre escolha, desejo e poder

são elementos que se conjugam em torno do fenômeno do ativismo judicial.

Esse breve excurso serve ao propósito de pôr a descoberto que o

ativismo judicial tem origem, dentre outras causas, no modo como se dá a

interpretação em Direito. A teoria da interpretação, na atual quadra histórica,

carece de necessários acertamentos, sob pena de contribuir para o ativismo

judicial e, assim, comprometer o atual caráter democrático-constitucional do

Direito, pois, como visto, o ativismo judicial se caracteriza por decisionismos

praticados a partir de discricionariedade interpretativa por atos de vontade,

desejo e poder.

Advém daí a necessidade de perquirir-se para encontrar uma

resposta à seguinte indagação: a interpretação é um ato de vontade ou o

resultado de um projeto compreensivo no interior do qual se busca o melhor ou

o correto sentido para a interpretação?

112 Idem, ibidem, p. 54.

6. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, verifica-se que a discussão sobre o

constitucionalismo contemporâneo é tarefa sobremodo importante.

Com a jurisdição constitucional democrática surge um modelo de

Direito e de Estado jamais vistos anteriormente. Este novo modelo, por óbvio,

não está imune a críticas e a defeitos, sobretudo porque, assim como sói

acontecer ao novo e ao que nos é contemporâneo, sua leitura se dá com certa

dificuldade e não raras vezes de modo insuficiente, causando estranheza e

perplexidade.

Com supedâneo no trabalho realizado, pode-se reafirmar que as

noções de constituição dirigente, de constituição compromissária e da força

normativa da constituição não podem ser tratadas secundariamente, sobretudo

em países como o Brasil onde grande parte de texto constitucional de 1988

encontra-se pendente de efetivação, bem como por nos encontrarmos em meio

a uma fase de transição teórica em relação a vários institutos inaugurados pelo

Constitucionalismo Contemporâneo.

O termo Constitucionalismo Contemporâneo revela a adesão à crítica

do direito propugnada por Lenio Streck. Com esse mote busca-se, a um só

tempo, evidenciar o empreendimento de dois enfrentamentos: o primeiro

relativo à crítica à onda neoconstitucionalista; o segundo concernente à busca

de superação do positivismo jurídico. Nas palavras de Streck

Assim, para efeitos dessas reflexões e a partir de agora, passarei a nominar Constitucionalismo Contemporâneo (com iniciais maiúsculas) o movimento que desaguou nas Constituições do segundo pós-guerra e que ainda está presente em nosso contexto atual, para evitar os

mal-entendidos que permeiam o termo neoconstitucionalismo.113

No Estado Constitucional Democrático de Direito Contemporâneo, não

raro dá-se um deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do

Executivo para o plano da jurisdição constitucional. Isso não só se deu graças

a uma ascensão do Poder Judiciário brasileiro, possibilitada pelo novo

paradigma, mas também devido ao fato de que a inércia do Poder Executivo e

a falta de atuação do Poder Legislativo (e o Brasil tem visto bons exemplos

desses supostos) podem ser suprimida, por vezes, pela atuação do Poder

Judiciário, mediante a utilização de mecanismos jurídicos previstos na

Constituição Federal.

Vindo a confirmar os objetivos propostos, não virá a despropósito

pontuar, na senda do que preconiza Lenio Luiz Streck em seu livro “Jurisdição

Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito”, que constituem

algumas causas para os problemas que o cenário atual brasileiro se defronta

os seguintes: a dogmática jurídica dominante ainda está refratária ao giro

linguístico-hermenêutico; a despeito do grande intervencionismo estatal, não há

no país um Estado Social; prevalece um modelo liberal no Direito não só pelo

fato de existir vasta legislação infraconstitucional em desconformidade com a

Constituição, mas também pela grande dificuldade em enfrentamento de

questões de direitos transindividuais numa sociedade cada vez mais complexa

e de risco.

O constitucionalismo exsurgente marca o que se convencionou

denominar Estado Constitucional de Direito, o qual não se circunscreve à

proliferação de textos constitucionais a partir da segunda metade do século XX, 113 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 37.

nem tampouco se limita à existência de uma postura jurisprudencial

diferenciada, vez que voltada à concretização de direitos fundamentais-sociais,

mas, em adição a isso, desvela a necessidade de criação de uma teoria

constitucional inovadora e que esteja atenta às transformações ocorridas no

constitucionalismo.

Muitos dos problemas identificados são objetos de estudos de teses

neoconstitucionalistas, que podemos destacar os seguintes pontos que

definem seus contornos: (i) a pretensão de serem pós-positivistas; (ii) o resgate

dos princípios na interpretação jurídica; (iii) reconciliação entre Direito e Moral;

e, por fim, (iv) o protagonismo judicial a partir da discricionariedade judicial114.

Demais disso, o que normalmente se denomina crise do Direito é,

originariamente, crise do Estado. Diz-se do Estado porque é ele quem o produz

o direito, não somente porque os textos são escritos pelo poder Legislativo,

mas também porque é implementado, em certo sentido, pelo poder Executivo e

suas normas são produzidas pelo poder Judiciário. Assim, todos os seus

produtos, inclusive o Direito, passam a exibir sinais dessa crise.

No Brasil atual, não somente se há vicejam políticas e institucionais

que fazem com que, virtualmente, todas questões políticas e moralmente

relevantes deságue no Judiciário, como também se fazem presentes as

condições interpretativas que autorizam que os juízes aceitem o encargo de

apreciá-las.

Por fim, é no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo

preconizado por Lenio Luiz Streck que, tendo em vista o problemas como o do

ativismo judicial, pode-se defender, a título de encerramento do presente

114 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 111.

trabalho, que o cenário jurídico atual está marcado por três desafios: (i) o

enfrentamento das recepções teóricas equivocadas e de suas mesclas

indiscriminadas pela doutrina brasileira; (ii) a superação da discricionariedade

judicial; e, por derradeiro, (iii) a preservação da autonomia do Direito.

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