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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
DILLION ARPIS BRAZ FERREIRA
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA E
HERMENÊUTICA
CURITIBA
2013
DILLION ARPIS BRAZ FERREIRA
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA E
HERMENÊUTICA
Monografia apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Doutor André Peixoto de Souza
CURITIBA
2013
TERMO DE APROVAÇÃO
DILLION ARPIS BRAZ FERREIRA
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA E HERMENÊUTICA
Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Bacharel em Direito, no curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná.
Curitiba, _____ de ____________________ 2013.
________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Oliveira Leite
Coordenador do Núcleo de Monografias Universidade Tuiuti do Paraná
Orientador:_______________________________ Professor Doutor André Peixoto de Souza Universidade Tuiuti do Paraná _______________________________ Professor Universidade Tuiuti do Paraná _______________________________ Professor Universidade Tuiuti do Paraná
Ao meu pai, Marcelo, à minha mãe, Elizabete,
ao meu irmão, Pedro Vitor e à minha irmã, Kiciani,
pois sem eles absolutamente nada seria possível!
Agradeço inicialmente à minha família,
a cuja sempiterna contribuição sou eternamente grato.
Ao meu orientador, professor André Peixoto de Souza,
por ter acreditado na realização deste trabalho e aceitado
pronta e bondosamente a orientação quando solicitado.
Aos professores Francisco Pinto Rabello Filho e Danielli Webber Santos Costi
e ao advogado Jean Dal Maso Costi pela amizade, reconhecimento e
contribuição na minha formação.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................ 10
2. A FORMAÇÃO DO ESTADO CONSTITUCIONAL
CONTEMPORÂNEO................................................................................... 13
2.1. ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO
CONTEMPORÂNEO................................................................................... 13
2.1.1. Os precedentes históricos................................................................ 15
2.1.2. Os precedentes filosóficos: construção do pós-positivismo?........... 16
2.2. REFERENCIAIS TEÓRICOS DA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA 17
2.2.1. A força normativa da Constituição.................................................... 17
2.2.2. A expansão da jurisdição constitucional........................................... 18
2.2.3. A reelaboração da interpretação constitucional............................... 20
2.3. A CONSTRUÇÃO DUMA NOVA INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL..................................................................................... 21
2.4. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO................................... 24
2.5. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE...................................................... 25
2.6. NEOCONSTITUCIONALISMO......................................................... 29
3. CONDIÇÕES PARA A EXPANSÃO INSTITUCIONAL DO PODE R
JUDICIÁRIO NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO..... ....... 33
3.1. PANORAMA DA EXPANSÃO GLOBAL DO PODER
JUDICIÁRIO................................................................................................ 33
3.2. A EXPANSÃO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO NO REGIME
CONSTITUCIONAL PÓS-1988................................................................... 35
3.2.1. O panorama político......................................................................... 35
3.2.2. O panorama institucional.................................................................. 37
3.2.3. O panorama interpretativo................................................................ 42
4. CRIAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO: AS FUNÇÕES
LEGISLATIVA E JURISDICIONAL E A PROBLEMÁTICA DA
INTERPRETAÇÃO..................................... ............................................... 50
4.1. A FUNÇÃO LEGISLATIVA E A FUNÇÃO JURISDICIONAL............ 50
4.2. A DIFERENÇA ENTRE O TEXTO E A NORMA.............................. 52
4.3. “VONTADE DA LEI” E “VONTADE DO LEGISLADOR” .................. 56
4.4. A PARTICIPAÇÃO DO INTÉRPRETE NA CRIAÇÃO
DA NORMA................................................................................................. 60
4.5. O PODER DE LEGISLAR E O PODER DE DIZER O DIREITO...... 65
5. A CONSTITUIÇÃO E O PAPEL DA JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL: JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO .............................. 69
5.1. O EMBATE ENTRE AS TESES PROCEDIMENTALISTAS
E SUBSTANCIALISTAS............................................................................. 69
5.2. A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS..... 74
5.3. ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA.............. 76
5.3.1. Notas preliminares............................................................................ 76
5.3.2. Judicialização da política.................................................................. 77
5.3.3. Ativismo Judicial............................................................................... 85
5.4. O ALARGAMENTO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL E A CRISE DE
LEGITIMIDADE DOS ELEITOS.................................................................. 89
5.5. A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DOS JUÍZES À LUZ DA
CONSTITUIÇÃO......................................................................................... 91
5.6. JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO, CRISE DEMOCRÁTICA E POSSÍVEL
ASCENSÃO DE UMA JURISTOCRACIA? ................................................ 94
6. CONCLUSÃO...................................... ............................................ 102
7. BIBLIOGRAFIA.................................... ........................................... 106
RESUMO
O presente trabalho se propõe a uma análise hermenêutica da
jurisdição constitucional democrática brasileira e de algumas questões com as
quais se defronta. A atual jurisdição constitucional democrática, de cunho
inegavelmente compromissário, dirigente e vinculador, exsurge como um
modelo paradigmático, provocando inúmeras rupturas. Entretanto, por força de
características não só da nossa tradição como também dos tempos presentes,
a dificuldade em assimilar-se o novo e em aplicá-lo é enorme. Inicialmente,
pretende-se entender, em linhas gerais, o modelo de Jurisdição Constitucional
Democrática do Estado Contemporâneo. Uma vez expostos os caracteres do
atual modelo, busca-se identificar as grandes questões que enfrenta a
Jurisdição Constitucional. A principal fonte de pesquisa será a bibliográfica,
abrangendo a leitura, análise e interpretação de livros, artigos, jurisprudência,
periódicos e textos legais.
Palavras-chave: Jurisdição Constitucional. Constitucionalismo Democrático.
Hermenêutica. Interpretação. Ativismo. Judicialização.
1. INTRODUÇÃO
No decorrer do século XX, o discurso acerca do Estado atravessou três
fases distintas: a pré-modernidade (Estado liberal), a modernidade (Estado
social) e a pós-modernidade (Estado neoliberal). Em meio a essa transição, a
triste constatação é a de que o Brasil chega à pós-modernidade sem haver sido
liberal nem moderno. Conforme destaca Luís Roberto Barroso, “Herdeiros de
uma tradição autoritária e populista, elitizada e excludente, seletiva entre
amigos e inimigos – e não entre certo e errado, justo e injusto –, mansa com os
ricos e dura com os pobres, chegamos ao terceiro milênio atrasados e com
pressa.”1.
O constitucionalismo inaugurado pela Constituição Federal de 1988
trouxe consigo inúmeras inovações. Contudo, passados mais de 24 (vinte e
quatro) anos de existência da Constituição Federal, muitos são os problemas
que fazem com que expressiva parcela dos dispositivos não obtenha efetivação
e que cada vez mais se recorra ao Poder Judiciário para solucionar questões
sociais e políticas de todos os tipos, ensejando uma acentuada ascensão
desse Poder e, por conseguinte, inúmeros questionamentos a respeito da sua
atuação.
Com a jurisdição constitucional democrática surge um modelo de
Direito e de Estado jamais vistos anteriormente. Este novo modelo, por óbvio,
não está imune a críticas e a defeitos, sobretudo porque, assim como sói
acontecer ao novo e ao que nos é contemporâneo, sua leitura se dá com certa
dificuldade e não raras vezes de modo insuficiente, causando estranheza e 1 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 306.
perplexidade.
Sob esse panorama – não haverá negar – a atual jurisdição
constitucional democrática, de cunho inegavelmente compromissário, dirigente
e vinculador, exsurge como um modelo paradigmático, provocando inúmeras
rupturas. Entretanto, por força de características não só da nossa tradição
como também dos tempos presentes, a dificuldade em assimilar-se o novo e
em aplicá-lo é enorme.
Há uma crise no Direito que se manifesta de diferentes formas e em
vários níveis. Faz-se oportuno, destarte, que alguns questionamentos sejam
formulados, referentes a pontos como: o desenvolvimento e os caracteres do
atual modelo de jurisdição constitucional; as teorias que dão sustentáculo ao
sistema; o papel do Poder Judiciário no cenário contemporâneo; e os
problemas enfrentados pelo modelo vigente.
À análise aqui proposta impõem-se duas restrições: a primeira diz
respeito ao fato de que o presente trabalho tem enfoque na ascensão do Poder
Judiciário no atual contexto, o que exclui ênfase nos demais poderes; a
segunda restrição – umbilicalmente ligada à primeira –, é a de que a jurisdição
constitucional democrática será vista sob feição particular, vale dizer, como
produção e circulação do Direito no âmbito do Poder Judiciário, ou, ainda, das
respostas em Direito.
Uma adequada compreensão do paradigma inaugurado pela jurisdição
constitucional democrática, levada a cabo por intermédio de uma interpretação
coerente com os compromissos assumidos, parece ser um bom começo para
solucionar as questões apontadas.
A análise se dará sob o viés da jurisdição constitucional, mais
especificamente quanto ao poder Judiciário, o que exigirá uma discussão
acerca do papel da Constituição e da Justiça Constitucional no Estado
Democrático de Direito. Guiados por uma hermenêutica emancipadora, convém
visitar o atual estado de produção e circulação jurídicas, sempre desd’o
altiplano da jurisdição constitucional, a fim de se inquirir dialeticamente acerca
da coerência dos rumos preconizados por esse paradigma revolucionário e a
forma com que efetivamente se realiza e os problemas com que tem se
deparado.
A razão que motiva o presente estudo advém do descompasso existe
entre as características do atual modelo – assumido pela Constituição Federal
de 1988 – e a sua realização. Atualmente, já não parecer haver mais pejo em
violar as exigências da jurisdição constitucional democrática. O desafio que se
põe aos juristas, assim, é a produção de justiça material, o que obviamente
deverá começar pela adequada compreensão das características da jurisdição
constitucional e de seus comprometimentos.
Como bem lembra Lenio Streck, “o velho modelo de Direito (de feição
liberal-individualista-normativista) não morreu, e o novo modelo (forjado a partir
do Estado Democrático de Direito) não nasceu ainda”2. Assim, a leitura há de
ser feita a partir do modelo constitucional precisamente porque é ele que criou
e que conduz o modelo de sociedade política e jurídica em que vivemos.
Por fim, importante ressaltar-se que, para o desiderato proposto, não
se deverá perder de vistas os atributos mencionados, pois imprescindíveis à
compreensão do tema.
2 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 2.
2. A FORMAÇÃO DO ESTADO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNE O
2.1 ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO CONTEMPORÂNEO
O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século
XX3. A discussão a seu propósito, portanto, afigura-se de inconteste
importância, sobretudo em países como o Brasil, onde, por força da própria
formação social, política e jurídica, nada é simples.
Predecessor do Estado Constitucional, o Estado de Direito consolidou-
se na Europa ao longo do século XIX com a adoção do modelo preconizado
pela Revolução Francesa, com ênfase na separação de poderes e na proteção
dos direitos individuais. A partir do final da 2.ª Guerra Mundial, porém,
desenvolve-se o Estado Constitucional de Direito, acentuadamente
aprofundado no fim do século XX.
Este novo modelo de Estado trouxe consigo a ideia de subordinação da
legislação inferior como uma de suas principais características. A validade das
leis não mais dependia apenas da sua forma de produção, senão também da
compatibilidade de seu conteúdo com as normas constitucionais. Outra grande
inovação repousa no fato de a Constituição não mais se restringir à imposição
de limites às funções estatais (legislativa, administrativa e judiciária), mas
também de lhes determinar deveres positivos de atuação.
A Ciência do Direito e a jurisprudência passam a desempenhar papéis
renovadamente críticos, com destaque para a doutrina de invalidação de atos
3 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 1.
legislativos e administrativos, quando contrários às normas constitucionais,
bem como para a aceitação do papel criativo na interpretação dos enunciados
legais e constitucionais.
Neste cenário, augura-se uma nova forma de democracia que não mais
se limita ao direito de eleger representantes políticos. O debate político assume
contornos mais largueados em um contexto de livre circulação de ideias e de
informações, observados sempre os direitos fundamentais, que doravante
representam função racionalizadora, conformadora e limitadora das decisões
políticas e jurídicas importantes.
Em meio a essa conjuntura transacional, convém render tributos, com
especial ênfase, às noções de constituição dirigente, de constituição
compromissária e da força normativa da constituição, que não podem ser
tratadas secundariamente num país – como o Brasil – no qual grande parte de
seu texto constitucional encontra-se pendente de efetivação.
A propósito da Constituição e da Jurisdição Constitucional, há duas
correntes teóricas que predominam na disputam pela primazia da concepção
do seu papel institucional ideal4: o substancialismo, do qual são corifeus
autores como Dworkin e Rawls; e o procedimentalismo, defendido por
doutrinadores como Habermas e Ely. Embate certamente profícuo, o tema será
objeto de análise mais adiante – longe, por óbvio, da pretensão de esgotá-lo.
Nesse contexto, o Direito de uma maneira geral – e não só o
constitucional – passou por um conjunto amplo de transformações que mudou
a forma como a sua ciência, o direito positivo e a jurisprudência são
compreendidos e praticados. Não são poucas as mudanças, razão pela qual
4 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 3.
cabe delinear, neste trabalho, apenas aquelas que estão no centro
paradigmático: a Constituição e o novo papel que passou a desempenhar nas
democracias contemporâneas.
Assim, no rumo das transformações por que passam o Direito
Contemporâneo, podemos afirmar, com Luís Roberto Barroso, que ideias como
“a normatividade da Constituição, a diferenciação menos rígida entre direito
público e direito privado, a ampliação da jurisdição constitucional e a
judicialização das questões sociais e políticas tornaram-se correntes nas
instituições e nos debates atuais”5.
2.1.1. Os precedentes históricos
O referencial histórico que marca essa nova compreensão do direito
constitucional é o constitucionalismo pós-guerra, iniciado com as Constituições
do México (1917), da Itália (1947) e da Alemanha (1949). A partir desses
marcos iniciou-se uma ideia de redefinição do lugar da Constituição e da
influência do Direito Constitucional sobre as instituições, o que desencadeou,
na década de 70 do século passado, a redemocratização de países como
Grécia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978). Segundo Luís Roberto
Barroso, a principal referência de transformação do Direito Constitucional de
tradição romano-germânica foi o Tribunal Constitucional Federal alemão, criado
em 1951, e sua vasta produção teórica e jurisprudencial6.
No Brasil, o reavivamento do Direito Constitucional igualmente ocorreu
num ambiente de reconstitucionalização do país, o quê se deu por ocasião da 5 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 5. 6 Idem, ibidem.
Constituição Federal de 1988. Em que pesem algumas vicissitudes no seu
texto, bem como a torrente de emendas que insistem em seguirem-se, a
Constituição brasileiro logrou promover a transição de um Estado de regime
autoritário para um Estado Democrático de Direito, proporcionando assim o
período mais longo de estabilidade institucional da história republicana do país
e fazendo com que o texto constitucional passasse ao apogeu.
2.1.2. Os precedentes filosóficos: construção do pós-positivismo?
O novo direito constitucional tem seu marco teórico no que se sói
denominar pós-positivismo. Muito embora a indeterminação e a problemática
quanto ao tema – inclusive se de fato está, ou não, superado o positivismo
jurídico, ao contrário do que propalado por muitos –, a concepção adotada é no
sentido de um Direito que não se desconecta de uma filosofia política, moral e
jurídica, contestando a separação estanque entre essas disciplinas.
Não se trata de negativa dos domínios específico de cada área.
Evitando-se extremos, busca-se uma articulação intermediária que propicie
uma dialética de complementaridade entre os aludidos domínios do saber.
Visa-se a uma teoria de legitimação democrática e de justiça material, inclusive
mediante o diálogo complementar entre várias áreas do conhecimento humano.
A propósito, é bastante elucidativa a síntese de Luís Roberto Barroso:
A doutrina pós-positivista se inspira na teoria da justiça e na legitimação democrática. Nesse contexto, busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença
qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a Ética7.
A queda do positivismo e a ascensão de uma nova hermenêutica
jurídica, de perfil compromissário com a reintrodução do mundo fático no
Direito, apontam para o reconhecimento da impossibilidade de autossuficiência
de um Direito com fundamentos em categorias lógico-formais de fechamento
do sistema. Diversamente, ao escopo de melhor atender ao fim (a
humanidade), sem perder-se no caminho, predomina uma abertura dialógica
com as demais áreas do conhecimento humano sem que se sobreponham
entre si.
2.2. REFERENCIAIS TEÓRICOS DA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA
2.2.1. A força normativa da Constituição
Entre as grandes mudanças ocorridas no século XX está a atribuição
status de norma jurídica à norma constitucional, superando-se o modelo então
adotado na Europa até meados daquele século, que entendia a Constituição
como um documento essencialmente político em que apenas se estatuía
alguns comandos de atuação aos Poderes Públicos.
Após a década de 50 do século XX, assistiu-se ao começo da mudança
desse entendimento na Alemanha, daí estendendo-se a outros países
europeus. No Brasil, a ideia de que a Constituição é uma norma jurídica dotada
7 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 7.
de aplicabilidade direta e imediata somente se desenvolveu a partir da década
de 80, consolidando-se com a vigência da Constituição Federal de 1988.
Todavia, há pouco tempo apenas que passou a ser consenso entre os
juristas a força normativa ao Direito Constitucional, de caráter vinculativo e
obrigatório de seu texto, bem como o reconhecimento à Constituição de
imperatividade de seus dispositivos, atributo essencial de todas as normas
jurídicas, cuja não observância dá azo a mecanismos próprios de proteção e de
cumprimento forçado.
Contudo, convém abrir um pequeno parêntese para ressaltar que a
pretensão de normatividade de seus dispositivos com alguma frequência
encontra resistência na realidade fática e na vontade de manutenção do status
quo.
2.2.2. A expansão da jurisdição constitucional
Na esteira da doutrina inglesa de soberania do parlamento e da
concepção francesa da lei como expressão da vontade geral, predominava na
Europa, antes de 1945, um modelo que defendia a supremacia do Poder
Legislativo.
Todavia, já no fim da década de 40 do século passado, erige-se um
entendimento embrionário sobre uma nova abordagem do constitucionalismo
que traz consigo não apenas novas constituições, mas também um novo modo
de encará-la, baseado na experiência norte americana, que preconiza a
supremacia da Constituição no ordenamento jurídico interno.
Essa nova fórmula inclui a constitucionalização de direitos
fundamentais, que passam a gozar de imunidade na formação do processo
político majoritário e tem o seu eixo de proteção deslocado para outro poder.
A proteção dos direitos fundamentais, doravante incluídos nas
constituições, desloca-se ao Poder Judiciário, responsável pela sua garantia
inclusive em relação à formação majoritária no processo político. Trata-se de
fenômeno que se pode chamar de contramajoritarismo, idealizado para a
proteção de regras nucleares e também dos direitos fundamentais previstos na
Constituição. Dessa proteção incumbe-se com especial dignidade o Poder
Judiciário de tal arte a não apenas estar legitimado a rever os atos dos demais
poderes, mas também a legislação promanada pelo Poder Legislativo – e, na
experiência brasileira, também o pelo Poder Executivo.
Na experiência constitucional, cuida-se de fenômeno que se
convencionou chamar controle de constitucionalidade. A propósito, leciona Luís
Roberto Barroso:
Hans Kelsen foi o introdutor do controle de constitucionalidade na Europa, na Constituição da Áustria, de 1920, aperfeiçoado com a reforma constitucional de 1929. Partindo de uma perspectiva doutrinária diversa da que prevaleceu nos Estados Unidos, concebeu ele o controle como uma função constitucional e não propriamente como uma atividade judicial. Para tanto, previu a criação de um órgão específico – o Tribunal Constitucional – encarregado de exercê-lo de maneira concentrada. Assim se passou, inicialmente, na Alemanha (1951) e na Itália (1956), como assinalado. A partir daí, o modelo de tribunais constitucionais se irradiou por toda a Europa continental. A tendência prosseguiu com Chipre (1960) e Turquia (1961). No fluxo da democratização ocorrida na década de 70, foram instituídos tribunais constitucionais na Grécia (1975), na Espanha (1978) e em Portugal (1982). E também na Bélgica (1984). Nos últimos anos do século XX, foram criadas cortes constitucionais em países do leste europeu, como a Polônia (1986), Hungria (1990), Rússia (1991), República Tcheca (1992), Romênia (1992), República Eslovaca (1992) e Eslovênia (1993). O mesmo se passou em países africanos, como Argélia (1989), África do Sul (1996) e Moçambique (2003)8
8 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 11.
Atualmente, somente o Reino Unido, a Holanda e Luxemburgo ainda
mantêm a supremacia parlamentar, sem que se adote qualquer modalidade de
judicial review9.
O controle de constitucionalidade de cunho incidental existe, no Brasil,
desde a primeira Constituição republicana, de 1891. A denominada ação direta
(antiga ação genérica), destinada ao controle pela via principal – abstrato e
genérico –, foi introduzido pela Emenda Constitucional n.º 16, de 1965. A
jurisdição constitucional, porém, somente expandiu-se verdadeiramente com o
advento da Constituição Federal de 1988, tendo como causa determinante a
ampliação do rol dos legitimados à propositura de ação direta de
inconstitucionalidade, anteriormente circunscrita exclusivamente ao
Procurador-Geral da República – o que foi expressivamente aumentado pela
Constituição Federal de 1989 em seu artigo 103.
Também foi motivo determinante da ampliação da jurisdição
constitucional a criação de novos mecanismos de controle concentrado, tais
como a ação declaratória de constitucionalidade (introduzida pela emenda
constitucional n.º 3, de 1993, e pela Lei n.º 9.868/1999) e a regulamentação da
arguição de descumprimento de preceito fundamental (Lei n.º 9.882/1999).
2.2.3. A reelaboração da interpretação constitucional
Os acontecimentos acima citados provocaram enorme impacto sobre a
hermenêutica jurídica de modo geral, e sobre a interpretação constitucional de
modo especial. A consolidação do constitucionalismo democrático, o 9 Por judicial review entende-se, em parca definição, uma doutrina segundo a qual os atos dos Poderes Legislativo e Executivo, quando estiverem incompatíveis com a Constituição, estão sujeitos à revisão e até mesmo de invalidação pelo Poder Judiciário.
reconhecimento de normatividade da Constituição, a expansão da jurisdição
constitucional e as influências do pós-positivismo ensejaram rupturas
paradigmáticas em relação ao modo de se encarar o direito, mormente o direito
constitucional.
Luís Roberto Barroso cita uma série de outros fatores de ordem
heterogênea que contribuíram decisivamente para o giro em questão: o
pluralismo de visões, valores e interesses que caracterizam a sociedade
contemporânea; as demandas por justiça e pela preservação e promoção dos
direitos fundamentais; as insuficiências e a deficiência do processo político
majoritário, etc10.
No que concerne à interpretação, sofreram significativa influência as
premissas teóricas, filosóficas e ideológicas que lhe davam sustentáculo,
notadamente quanto ao papel da norma, suas possibilidades e seus limites,
problema que deve ser resolvido sem se olvidar o especial enfoque a ser dado
à realidade fática na produção da norma concreta pelo intérprete, que passa
doravante a ter reconhecido uma importância destacada.
Nesse ambiente novo, paralelamente aos elementos tradicionais de
interpretação jurídica e aos princípios específicos de interpretação
constitucional, abriu-se espaço a novas perspectivas e ao desenvolvimento de
novas teorias, incluindo-se aí a criação de novas categorias e a reformulação
de velhas.
2.3. A CONSTRUÇÃO DUMA NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
10 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 12.
O antigo modelo, denominado liberal-positivista, acreditava na
objetividade da atividade interpretativa e na neutralidade do intérprete. Havia
ênfase quase integralmente ao sistema jurídico, é dizer, às premissas jurídicas
que deveriam ser interpretadas e aplicadas ao caso concreto, pois nelas
supostamente estaria contida, em caráter geral e abstrato, a norma jurídica que
deveria regê-lo. O caso concreto, por sua vez, deveria fornecer os elementos
fáticos sobre os quais incidiria a norma, o material que a ela se subsumiria. E o
intérprete, ao seu turno, desempenharia a função técnica de identificar a norma
aplicável, revelando o seu sentido e fazendo-a incidir sobre os fatos do caso
levado à sua apreciação.
Contudo, a evolução da ciência jurídica viria a cindir as bases desse
sistema, fazendo que se lhe fossem desveladas as erronias de seus alicerces.
Se se quisesse evitar os equívocos que então povoava o imaginário dos
juristas, era necessária uma forma de abordagem que revolvesse com
propriedade o chão ideológico-linguístico desse modelo, atribuindo o devido
valor aos elementos supracitados (enunciado legal, caso concreto e intérprete).
Primeiramente, é preciso reconhecer que a norma jurídica fornece
apenas um início de solução, apontando um caminho. Ela não contém, em seu
relato geral e abstrato, todos os elementos para determinação do seu sentido.
Como se verá nos capítulos subsequentes, a ciência jurídica contemporânea
reconhece que não se deve confundir a norma com o enunciado legal (um ou
mais textos). A norma é o produto da interpretação, o que implica nega-lhe a
sua existência em abstrato, pois ela só existe quando concretizada.
Já o problema, isto é, o caso em análise, deixa de ser apenas um
conjunto de fatos que deverá acoplar-se a um enunciado normativo para se
transformar no fornecedor de parte dos elementos que irão produzir a norma.
No que toca ao intérprete, não mais viceja o reconhecimento de que o
seu papel se reduz a uma função de conhecimento técnico, direcionada à
revelação da solução contida no enunciado legal. Em sentido contrário,
hodiernamente ele tem reconhecido o inegável papel de coparticipante no
processo de criação do Direito, já que deve fazer valorações para criar a norma
jurídica que, por sua vez, regerá a situação concreta11.
A dogmática jurídica contemporânea refuta a aceitação do modelo
científico de viés positivista, no qual há absoluta separação entre intérprete e
objeto interpretado.
Em termos de interpretação jurídica, máxime a constitucional, é certo
que o modelo em comento reconhece a impossibilidade de objetivismo e de
neutralidade, porquanto o intérprete, para o bem ou para o mal, inevitavelmente
estará influenciado por sua pré-compreensão do mundo (sua ideologia, seu
inconsciente, etc.), que irá ser fator determinante da sua apreensão da
realidade e dos valores que irão servir de fundamento às suas decisões.
Em suma, o modelo em tela reconhece novos papéis à norma, ao
problema (= caso concreto) e ao intérprete. Este reconhecimento se deve a
diversos fatores, dentre os quais destaca Luís Roberto Barroso:
(i) a melhor compreensão de fenômenos que sempre existiram, mas não eram adequadamente elaborados; (ii) a maior complexidade da vida moderna, assinalada pela pluralidade de projetos existenciais e de visões de mundo, que comprometem as sistematizações
11 Bem aqui é preciso esclarecer – sem, contudo, adentrar no mérito da problemática – que a corrente majoritária inclina-se à aceitação de que não somente ao interpretar os enunciados normativos, mas também ao fazer valorações de sentido das “cláusulas abertas”, o intérprete dispõe de um espaço no qual pode realizar escolhas entre as várias soluções possíveis para um mesmo caso, mormente porque, segundo se diz, a solução poderá não ser unívoca.
abrangentes e as soluções unívocas para os problemas.12
2.4. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
Há razoável consenso de que o marco inicial do processo de
constitucionalização do Direito foi estabelecido na Alemanha. Sob o regime da
Lei Fundamental de 1949 e com a consagração de desenvolvimentos
doutrinários que já vinham de mais longe, o Tribunal Constitucional Federal
alemão assentou que os direitos fundamentais desempenham algo para além
da dimensão subjetiva de proteção de situações individuais: instituem também
uma ordem objetiva de valores.
Tal assertiva se traduz na necessidade de o sistema jurídico proteger
determinados direitos e bens não apenas por eventualmente aportarem algum
proveito a uma ou a algumas pessoas, senão também por existir um interesse
geral da sociedade de que sejam satisfeitos. A constituição, por conseguinte,
condiciona a interpretação de todos os ramos do Direito, quer seja do público,
quer seja do privado, e vincula os poderes estatais e inclusive os particulares.
No Brasil, a constitucionalização do Direito é fenômeno recente – em
que pese ser bastante propalada e caracterizar, em tese, uma atividade um
tanto quanto intensa –, cujo marco inicial pode ser identificado na transição de
importância de textos jurídicos para a centralidade do ordenamento. O
deslocamento da importância do Código Civil permitiu que a Constituição se
alçasse ao centro do sistema, movimento ocorrido inicialmente na Alemanha e
posteriormente na Itália. Nesse sentido, Paulo Bonavides já proclamou:
12 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 13.
“Ontem, os Códigos; hoje, as Constituições...!”13.
Afora a supremacia formal que sempre deteve, a Constituição passa a
gozar de supremacia material e axiológica, vinculando todo o sistema jurídico
às suas regras e princípios. Tal fato possibilitou, no Brasil, que a Constituição
ingressasse no mundo jurídico e no discurso dos juristas com força normativa
sem precedentes, deixando de ser mais do que um sistema em si com ordem,
unidade e harmonia, para lançar-se à categoria de texto cuja importância
determina o modo como todo o Direito será criado e interpretado.
Augurou-se, assim, no horizonte jurídico, um texto que determina a
forma como todo o ordenamento jurídico deve ser lido. Noutras palavras, a
leitura e a apreensão de toda a ordem jurídica passam a ser feitas sob a lente
da Constituição, com o escopo de que sejam realizados os preceitos formais e
materiais que compõem o seu texto. É o que se conhece por filtragem
constitucional.
Fenômeno bastante difundido na doutrina jurídica, é necessário
destacar, todavia, que o constitucionalismo não se restringe à inclusão de
normas próprias de outros domínios na Constituição, mas, sobretudo, na
reinterpretação de todos os institutos infraconstitucionais sob a ótica
constitucional.
2.5. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE
A Constituição brasileira, de cunho inegavelmente dirigente, é
fenômeno amplo que escapa ao estrito campo político-econômico para
13 Sobre o assunto, Cf. (Neo)constitucionalismo: ontem, os códigos; hoje, as Constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004.
açambarcar programas, motivos, meios e fins vinculados à atuação do Estado
para a promoção, por exemplo, de prescrições como a igualdade entre os
sexos e as raças, o meio ambiente ecologicamente sustentável, a inclusão das
pessoas portadoras de deficiência, o desenvolvimento científico e educacional,
a preservação do patrimônio cultural etc.
A nível semântico, dirigente é o quê ou quem dirige, ordena,
administra; governante, gestor, condutor14. Em sentido amplo, é possível dizer
que toda prescrição é dirigente, já que traz em si alguma ordem ou algum
comando, determinando o que é obrigatório, proibido, permitido ou,
simplesmente, estipulando condutas. Nesse raciocínio um tanto quanto
simplista, toda e qualquer norma seria dirigente tão-só por ser prescritiva, fato
que nos conduziria à conclusão de que toda Constituição é dirigente. Não é
esta visão ampla, entretanto, que se pretende acentuar.
Noção deveras complicada, profícua e instigante, impossível de aqui
ser examinada com a profundidade que o tema requer, basta-nos que o
conceito posto em relevo seja entendido como o de uma Constituição que
enuncia programas, motivos, meios e fins que vinculam a ação do Estado por
meio de pautas formais e materiais que sujeitam negativa e positivamente a
conduta de cada um dos três poderes, coordenando uma ação estatal ativa no
domínio jurídico, social, político, econômico e cultural com fundamento na
implementação dos direitos fundamentais, assim como uma noção de
Constituição conformara – obviamente noutra mediada, grau e qualidade – da
sociedade e dos cidadãos. Trata-se de compreender a atividade estatal sob a
14 Disponível em: http://aulete.uol.com.br/dirigente. Acesso em 2 de março de 2013.
ótica diretiva que identifica o projeto social-estatal15.
A noção de pautas dirigentes, ao contrário do que pode parecer, não
vincula apenas conteúdos, abarcando inclusive a noção de procedimentos. Não
só a substância importa, senão também o processo de decisão (procedimento).
A Constituição, assim, em termos substanciais e procedimentais,
vincula programas, estabelecendo planos e tarefas a serem cumpridos, bem
como define prioridades. Fábio Corrêa de Souza Oliveira lembra que a
afirmação de um caráter vinculatório da Constituição assume três conotações,
a saber:
1) cada plano está integrado em uma totalidade, prende-se ao conjunto programático, está enlaçado, como parte, de um projeto maior; 2) o plano é estatuído por uma ligação permanente e não contingente, é estável e não circunstancial, não se modifica com as alternâncias de governos; 3) o plano sujeita, submete, é obrigatório, porquanto é normativo.16
Nessa senda, até mesmo as formas de deliberação são mandamentos
componentes do dirigismo, o que implica dizer que a democracia, instituto tão
decantado nos dias que correm, não é incompatível com a noção de dirigismo
constitucional.
À parte do que ocorre, ou não, no Direito e na Política, a aposta da
Constituição brasileira é numa democracia verdadeira, prática, que não seja
apenas rótulo. Aliás, importante assentar que democracia a que se alude é
aquela que compreende os moldes previstos na constituição, não se podendo
subervertê-la, mormente porque o procedimento democrático não está acima
15 OLIVEIRA, Fábio Corrêa de Souza. A Constituição dirigente está morta... Viva a Constituição dirigente! In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 84. 16 OLIVEIRA, Fábio Corrêa de Souza. In BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 86.
ou fora da Constituição e, sim, lhe está sujeito na forma e no conteúdo.
Ainda, não se pode olvidar que, se o Direito como um todo, não só
constitucional, reflete a organização de um povo, necessário se faz que o
dirigismo constitucional seja compreendido sempre em conformidade com as
vicissitudes de um povo.
Se esse novel modelo de Constituição incorporava grandes conquistas
e valores profundamente democráticos, pluralistas e sociais, era necessário
que se elaborasse um discurso capaz de conferir-lhe força normativa, isto é,
força normativa própria do Direito. A Constituição, por conseguinte, deve ser
compreendida como um texto internamente conformado e ordenando – com
bastante dificuldade, mas integrado. A faina da dogmática é em favor da força
vinculante do conjunto das normas Constitucionais, refutando a tese do caráter
não normativo de suas normas, sobretudo as chamadas programáticas.
Em defesa do dirigismo constitucional, no Brasil, por força das nossas
peculiaridades históricas, é de imperiosidade inarredável a edificação duma
teoria da Constituição Dirigente constitucionalmente adequada. Nesse sentido,
tendo em mente as diferenças entre os países centrais e periféricos, Lenio Luiz
Streck propugna uma abordagem que intitula teoria da Constituição Dirigente
adequada a países de modernidade tardia17, como o Brasil.
A teoria defendida pelo ilustre jusfilósofo se propõe a dar conta do
“resgate das promessas da modernidade incumpridas” por meio da “construção
de um espaço público apto a implementar a Constituição em sua
materialidade”18.
17 STRECK, Lenio Streck. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 133. 18 Idem, ibidem, p. 135.
2.6. NEOCONSTITUCIONALISMO
O Direito Constitucional vem passando por uma série de
transformações paradigmáticas que espraiam efeitos profundos em todas as
suas formas de emanação. Como já ressaltado, tais transformações têm suas
raízes mais concretas no constitucionalismo pós-guerra, que iniciou com as
Constituições do México (1917), da Itália (1947) e da Alemanha (1949).
Em meio à mudança, o principal alvo a ser combatido era o positivismo
jurídico e seu discurso axiomático-dedutivo. Na busca de reaproximação do
Direito à vida e à ética, novos elementos hermenêuticos são incorporados
cotidianamente, construindo novas fórmulas dogmáticas que harmonizem o
texto e o sentimento de justiça. O escopo é o de realização do texto
constitucional e, destarte, de justiça material.
Refuta-se, pois, o discurso axiomático-positivista do Direito,
especialmente o entendimento de que ele seria um sistema fechado de
axiomas preestabelecidos que são capazes de regular a vida social. Destaca
Chaïm Perelman:
as concepções modernas do direito e do raciocínio jurídico, tais como foram desenvolvidas após a última guerra mundial, constituem uma reação contra o positivismo jurídico e seus dois aspectos sucessivos, primeiro o da escola da exegese e da concepção analítica e dedutiva do direito, depois o da escola funcional ou sociológica, que interpreta os textos legais consoante a vontade do legislador.19
Contemporaneamente, a reconstrução promovida pelo
neoconstitucionalismo do Direito busca um discurso que valorize os princípios.
Objetivando a realização da Constituição, o intérprete não mais deve ficar
19 PERELMAN, Chäim. Lógica Jurídica. Nova retórica. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 9.
adstringido ao enunciado do texto, mas, sim, permitir que incida os elementos
fáticos do caso concreto, refletindo acerca do melhor caminho dogmático a ser
seguido. Aliás, é unânime o entendimento de que as decisões devem ser bem
fundamentadas, sobretudo porque deve convencer os destinatários sobre o seu
acerto, assim como porque será submetida ao controle subjetivo da sociedade
como um todo.
Não obstante, cabe lembrar a preclara advertência Lenio Streck, para
quem devemos nos atentar para o quê realmente propugna o discurso
neoconstitucionalista.
Segundo o jusfilósofo, é possível que tenhamos sido conduzidos a
equívocos pelo termo, porquanto na trilha do neoconstitucionalismo estamos a
percorrer um caminho que nos leva a jurisprudência dos valores e suas
derivações axiologistas, com temperos da técnica de sopesamento proposta
por Robert Alexy20.
Cunhado por um grupo de constitucionalistas espanhóis, o termo
neoconstitucionalismo, em que pese haver representado um avanço importante
em direção à afirmação da força normativa da Constituição na Europa
continental, no Brasil tem por resultado o incentivo da recepção acrítica da
Jurisprudência dos Valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy e de
sua técnica da ponderação e do ativismo judicial estadunidense21.
É preciso reconhecer, contudo, que a importação do termo com as
suas propostas de trabalhos defendidas por autores da Europa ibérica teve
importância estratégica, uma vez que o Brasil ingressou tardiamente no novo
20 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 35. 21 Idem, ibidem.
mundo constitucional22. Falar em constitucionalismo significava, por
conseguinte, ir além de um constitucionalismo de feições liberais – no Brasil
sempre um simulacro, haja vista os regimes autoritários que se seguiam –
rumo a um constitucionalismo compromissório, de feições dirigentes, que
possibilite a efetivação de um regime democrático.
Não obstante, passadas mais de duas décadas de vigência da
Constituição Federal de 1988 e levando-se em consideração as características
do neoconstitucionalismo desenvolvido no Brasil, criou-se condições
patológicas que possibilitaram a corrupção do próprio texto constitucional. A
advertência é feita por Lênio Streck, para quem
[...] sob a bandeira “neoconstitucionalista” defendem-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, como: neoprocessualismo e neopositivismo. [...] Desse modo, fica claro que o neoconstitucionalismo representa, apenas, a superação – no plano teórico-interpretativo – do paleojuspositivismo (Ferrajoli), na medida em que nada mais faz do que afirmar as críticas antiformalistas deduzidas pelos partidários da Escola do Direito, da Jurisprudência dos Interesses e daquilo que é a versão mais contemporânea desta última, ou seja, da Jurisprudência dos valores.23 [grifo do autor]
O escopo do termo é designar um movimento teórico para lidar com um
direito pós-guerra (pós-bélico, pós-Auschwitz), que busca uma construção de
um direito democraticamente produzido sob o signo de uma Constituição
normativa e da integridade da jurisdição.
Lenio Streck recorda-nos, ainda, que a ideia de um
22 É preciso fazer justiça é esclarecer que, a bem de verdade, à semelhança do Brasil, a Europa, antes da segunda metade do século XX, desconhecia o conceito de constituição normativa, consideravelmente desenvolvido no âmbito constitucional estadunidense. 23 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 36.
neoconstitucionalismo pode ensejar equívocos no sentido de que se estaria a
falar da superação do constitucionalismo fruto do fim da modernidade, quando,
na verdade, o Constitucionalismo Contemporâneo remete a um processo de
continuidade e aperfeiçoamento com novas conquistas: as que passaram a
integrar o Estado Constitucional no período subsequente à Segunda Guerra
Mundial. Dito de outra forma, o Constitucionalismo Contemporâneo cinge-se a
um movimento que desaguou nas Constituições do segundo pós-guerra e que
ainda está presente no contexto atual.
Nesse diapasão, Lenio Streck defende a utilização do termo
Constitucionalismo Contemporâneo (com iniciais maiúsculas), que, em suas
palavras
[...] pode-se dizer que o Constitucionalismo Contemporâneo representa um redimensionamento na práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: no plano da teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático do Direito, e no plano da teoria do direito, no interior da qual se dá a reformulação da teoria das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição); na teoria da norma (devido à normatividade dos princípios) e na teoria da interpretação (que, nos termos que proponho, representa uma blindagem às discricionariedades e aos ativismos). Todas essas conquistas devem ser pensadas, num primeiro momento, como continuadoras do processo histórico por meio do qual se desenvolve o constitucionalismo. Com efeito, o constitucionalismo pode ser concebido como um movimento teórico jurídico-político em que se busca limitar o exercício do Poder a partir da concepção de mecanismos aptos a gerar e garantir o exercício da cidadania. Assim, se há, por um lado, esse processo de agregação com relação ao primeiro constitucionalismo, por outro, há uma nítida ruptura com os postulados hermenêuticos vigentes desde o final do século XIX e que terá seu apogeu durante a primeira metade do século XX. Nesse sentido, o neoconstitucionalismo não é a superação do paleojuspositivismo (exegetismo), mas os neoconstitucionalistas acham que é. Esse é o problema. Nesse ponto, Ferrajoli tem razão (ele é contra o neoconstitucionalismo – porque o neconstitucionalismo de que ele fala é o dos axiologistas, valorativistas, que acham que estão superando o velho positivismo, o primitivo).24 [grifo do autor]
24 Idem, ibidem, p. 37.
3. CONDIÇÕES PARA A EXPANSÃO INSTITUCIONAL DO PODER
JUDICIÁRIO NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO
3.1. PANORAMA DA EXPANSÃO GLOBAL DO PODER JUDICIÁRIO
Em que pese o controle de constitucionalidade tenha sido durante
muito tempo uma peculiaridade do sistema norte-americano, atualmente este
fenômeno se universalizou e alcançou a maioria dos países existentes no
mundo: de 191 sistemas existentes, 158 possuem positivado algum
instrumento de jurisdição constitucional25.
No que toca à afirmação da jurisdição constitucional, Rodrigo Brandão
destaca a existência de três ondas ou momentos pelos quais o mundo assistiu
à ascensão deste fenômeno. A primeira ocorreu logo após a fundação dos
Estados Unidos, no emblemático caso Marbury v. Madison (1803), em que o
órgão de cúpula dum sistema jurídico declarou inconstitucional uma lei federal.
A segunda, conquanto tivesse como precedente importante a Constituição
austríaca de 1920 (que instituiu um Tribunal Constitucional como idealizado por
Hans Kelsen), somente se avolumou no segundo pós-guerra, mormente com a
redemocratização de países recém-saídos de regimes totalitários na Europa
(v.g., Alemanha, Itália, Portugal e Espanha) e com a reconstrução
constitucional de países descolonizados, tal como a Índia. A terceira e última
onda, por fim, teve lugar nas duas últimas décadas do século XX, decorrendo
da reconstitucionalização de países latino-americanos que se libertaram de
ditaduras militares (década de 1980) e de países ex-comunistas, com o queda
25 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 65.
da União Soviética (década de 1990)26.
Posteriormente a segunda metade do século passado, viu-se, a partir
da previsão do controle de constitucionalidade, uma expansão global do Poder
Judiciário que ensejou, num primeiro momento, a judicialização da política,
compreendida no processo pelo qual Cortes e Juízes passam a integrar
paulatinamente a produção de políticas públicas e de normas antes decididas
por outros órgãos estatais, sobretudo o Legislativo e o Executivo. Noutras
palavras, viu-se um descolamento, em favor do Poder Judiciário, do eixo
decisório sobre questões com alta conotação política, muitas vezes em
detrimento dos Poderes Legislativo e Executivo.
Não raras vezes a judicialização da política envolve questões nucleares
que não só definem a comunidade política, mas por vezes também a dividem.
A título exemplificativo, pode-se citar as questões relativas ao processo
eleitoral, à fiscalização de funções típicas do Executivo, às políticas públicas
(v.g., saúde) e inclusive a própria definição de política enquanto tal.
A elaboração de teorias voltadas à explicação desse fenômeno de
expansão global do Poder Judiciário apresenta não poucas dificuldades. As
diferenças existentes entre as várias culturas jurídicas e o fato de esse
fenômeno se dar dentro de cenários diversos contribuem sobremodo para essa
dificuldade. Mas as dificuldades na explicação não para por aqui: decorrem de
inúmeros fatores, porém aqui convém destacar apenas dois, a saber, os
problemas locais e temporais.
Locais porque o fenômeno deve ser analisado à luz das diferenças e
peculiaridades existentes entre as culturas nos quais ele se manifesta,
26 Idem, ibidem, p. 66.
porquanto determinantes para a sua compreensão.
Temporais devido ao momento histórico de cada cultura jurídica e ao
grau de desenvolvimento, nos mais diversos níveis (social, político, jurídico,
econômico etc.) que ele supõe.
A questão relativa ao modo como se deu a transposição nos mais
diversos sistemas é demasiadamente extensa e peculiar, razão pela qual não
será aprofundada neste trabalho, não obstante abordagens oportunas.
Já no que toca ao fator temporal, mister anotar que a expansão global
do Poder Judiciário, observada nas mais diversas localidades a nível
internacional, não aconteceu temporalmente uniforme, podendo ser destacados
como marcos desse fenômeno os seguintes momentos: na Alemanha e na
Itália, a reconstrução política após a Segunda Guerra Mundial; na Índia e
nalguns países africanos, a independência em relação à antiga metrópole; na
América Latina e na Europa Continental, a transição do regime ditatorial para o
democrático; no Leste Europeu, a evolução de regimes comunistas para
democracias constitucionais de livre-mercado; na Dinamarca e na Suécia, a
incorporação de tratados internacionais ao direito interno, como a
internalização da Convenção Europeia de Direitos Humanos27.
3.2. A EXPANSÃO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO NO REGIME
CONSTITUCIONAL PÓS 1988
3.2.1. O panorama político
27 Idem, ibidem, p. 67.
No cenário brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 foi o principal marco jurídico do processo de redemocratização do
país, caracterizando a transição dum Estado unitário, marcado pela legalidade
paralela dos atos institucionais e por violações a direitos fundamentais dos
cidadãos, para um Estado Democrático de Direito, no interior do qual vem se
consolidando a separação dos poderes (sic), da democracia e dos direitos
fundamentais.
Com suas mais de duas décadas de vigência, a Constituição de 1988
proporcionou ao Brasil o mais longevo período de estabilidade democrática,
visto que a experiência democrática anterior durou apenas 18 anos
(1946/1964).
Não foram poucas as crises e escândalos de corrupção que se
sucederam, todas absorvidas pela Constituição por intermédio de seus
mecanismos institucionalizados para tanto sem necessidade de socorrer-se de
mecanismos exteriores. A despeito de a democracia brasileira inequivocamente
necessitar de aperfeiçoamentos, pode-se dizer que enfim ela se estabilizou e
se consolidou, inexistindo fundado temor de reversão ao regime autoritário
anterior28.
No que concerne ao desenho institucional do sistema político, o regime
constitucional de 1988 resgatou ideias como as do sistema de governo
presidencialista, do sistema eleitoral proporcional com lista aberta para o
Legislativo a nível federal, estadual e municipal (à exceção do Senado, no qual
se aplica o sistema majoritário), e do federalismo, fortalecido pelo aumento da
autonomia administrativa e fiscal dos entes da federação.
28 Idem, ibidem, p. 118.
3.2.2. O panorama institucional
A Constituição Federal de 1988 contém o maior rol de direitos da
história brasileira e erige, dentre outros, a dignidade da pessoa humana a
fundamento da República e os direitos humanos a princípios norteadores das
relações internacionais que o Brasil estabelecer. Demais disso, há um título
exclusivo para os direitos e garantias fundamentais que se caracteriza
principalmente pela sua extensão e que goza de eficácia imediata (artigo 5.º,
parágrafo 1.º) e tem status de cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4.º, inciso
IV). Foram positivados, ainda, diversos direitos sociais (artigos 6.º a 11).
O controle de constitucionalidade existente se caracteriza por ser uma
mescla das modalidades incidental e difusa – de origem norte americana – e
concentrado e abstrato – de tradição austríaca. Nesse particular há que ser
enfatizada a notável ampliação do rol de legitimados para o acesso ao controle
abstrato de constitucionalidade, inclusive por grupo de interesses e partidos de
oposição (CF, artigo 10329).
O fato de qualquer partido político que goze de representação no
Congresso Nacional detenha legitimidade para suscitar o controle concentrado
29 Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa; V - o Governador de Estado; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
e abstrato perante o Supremo Tribunal Federal faz com que toda questão
política relevante potencialmente possa ser judicializada. Isso faz com que a
jurisdição constitucional seja acionada e, no caso brasileiro, a batalha política
oriunda da deliberação majoritária seja travada no Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido é a lição de Rodrigo Brandão
O uso do controle de constitucionalidade por partido de oposição é claramente comprovado por números: enquanto no governo Fernando Henrique Cardoso os partidos de esquerda (oposição) foram responsáveis po 63,3% das ADIs, e os de direita (que compunham a “base aliada”), por 18,9%; com a eleição de Luis Inácio “Lula” da Silva para a presidência a relação se inverteu: os partidos de esquerda, agora no governo, propuseram 6% das ADIs, ao passo que os partidos de direita ajuizaram 73% das ADIs do período. Ainda mais emblemática é a atuação do Partido dos Trabalhadores: enquanto no governo FHC foi léder isolado de ADI, respondendo por 57,3% das ações propostas neste período, no governo Lula o PT não propôs uma ADI sequer.30
Há intensa atuação das entidades de classe de âmbito nacional na
propositura de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, em que pese a restrição
imposta na exigência de comprovação de pertinência temática. Entre 1988 a
2005, as associações propuseram 24,9% das ADIs, atrás apenas dos
Governadores de Estado, que representam 26% das ADIs no período. Esses
dados vêm a confirmar que a sociedade civil organizada tem se destacado no
protagonismo no processo de judicialização da política, o que evidencia que
também esses grupos veem no judiciário um foro alternativo de disputa política,
máxime quando vencidos no embate parlamentar31.
No panorama institucional, a expansão judicial ainda encontra terreno
nos institutos do amicus curiae e da audiência pública, criados pela Lei n.º
9.868/1999, permitindo que a sociedade civil organizada e grupos de interesse 30 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 122. 31 Idem, ibidem.
também participem de processos que não foram por si instaurados.
Importante observar que inexistem restrições significativas no controle
incidental, ao passo em que o controle concentrado, historicamente mais
restrito, tem sido significativamente largueado nos últimos anos pela evolução
da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de inovações legislativas, já
que este tipo de controle tem admitido ADI contra leis ou atos normativos
federais e estaduais, inclusive emendas constitucionais, leis complementares,
leis ordinárias, leis delegadas, decretos-legislativos e resoluções do Congresso
Nacional e de suas Casas, medidas provisórias, atos administrativos
autônomos, dispositivos de Constituições estaduais etc. Aliás, o Supremo
Tribunal Federal recentemente reviu a sua jurisprudência antiga sobre o não
cabimento de ADI contra leis de efeitos concretos, admitindo ADI em face de lei
orçamentária para conhecer e declarar a inconstitucionalidade de medida
provisória que abriu crédito extraordinário sem observância dos requisitos
constitucionais32.
Demais disso, a criação da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
(ADC), por intermédio da EC n.º 3/1993, permitiu que se solicite ao Supremo
Tribunal Federal a declaração da constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal a fim de que se pacifique, de forma definitiva, eventual controvérsia
sobre a constitucionalidade, ou não, do respectivo ato.
Por seu turno, a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), regulamentada pela Lei n.º 9.882/1992, expandiu
sobremodo o controle abstrato de constitucionalidade, possibilitando aos
legitimados à proposição de ADI que questionem perante o Supremo Tribunal
32 ADI 4048 MC, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 14/5/2008, DJe-157 Divulg 21/8/2008, Public 22-/8-2008.
Federal a validade de direito anterior à Constituição de 1988, de leis municipais
e de atos do Poder Público, o que tem possibilitado a ampliação do seu objeto
para atingir interpretações judiciais, atos administrativos de especial monta etc.
A EC n.º 3/1993 trouxe ainda o efeito vinculante para a interpretação
dada pelo Supremo Tribunal Federal, o que se afigura como um complemento
para o efeito erga omnes, haja vista que os efeitos se espraiam não apenas
para os destinatários da norma, mas também aos órgãos da administração
pública direta e indireta em todos os níveis da federação, evitando assim que a
parte tenha de percorrer todo o caminho recursal para ter acesso à Suprema
Corte mediante a possibilidade de propor diretamente Reclamação com o
escopo de estabelecer a autoridade da decisão.
Dentre essa plêiade de inovações, merecem estaque os institutos da
repercussão geral e da súmula vinculante, introduzidas pela EC n.º 45/2004.
Em havendo o Supremo Tribunal Federal proferido reiteradas decisões
em matéria constitucional que seja objeto de controvérsia cuja demora no
deslinde cause grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de
processos, é possível editar uma súmula vinculante mediante quórum
qualificado de dois terços33. Essa súmula será obrigatória para todo o poder
judiciário e para os órgãos da administração pública.
Quando, por outro lado, já houver o STF se manifestado a propósito de
questão em relação à qual haja reconhecido repercussão geral, mas os
Tribunais de origem não se retratarem, poderá o Supremo Tribunal Federal
33 Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada
(CPC, artigo 543-B, parágrafo 3.º34).
Com efeito, o que se pode observar é que houve, ao longo do tempo,
uma alteração significativa no modelo de controle de constitucionalidade,
resultando num forte estímulo à expansão do Poder Judiciário, principalmente
devido porque os efeitos produzidos pelas decisões de inconstitucionalidade do
Supremo Tribunal Federal, proferidas no controle concentrado, são de
observância obrigatória para todos os destinatários da norma constitucional e
vinculantes para todos os órgãos judiciais e da administração pública direta e
indireta de todos os entes federativos (CF, artigo 102, parágrafo 2.º35), o que faz
com que seja exponencialmente ampla a quantidade de destinatários atingidos
pela decisão do Supremo Tribunal Federal.
Verifica-se ainda uma forte tendência a que mesmo as decisões
preferidas em sede de controle incidental acabem por produzir efeitos que
superam o caso em que foram proferidas36.
Igualmente consiste em fortalecimento da importância política do
controle de constitucionalidade o fato de que, em que pese a possibilidade de
modulação temporal dos efeitos, o Supremo Tribunal Federal geralmente
subscreve efeitos ex tunc como regra geral no controle de constitucionalidade37.
34 Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo. [...] § 4o Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada. 35 § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. 36 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 125. 37 Idem, ibidem, p. 128.
O que se vê, destarte, é que o Supremo Tribunal Federal acaba por
reunir funções de tribunal constitucional, foro especializado e tribunal de
apelação de última instância38.
Ao citar Marcus André Melo, Rodrigo Brandão destaca, ainda, que
Por sua vez, o número expressivo de emendas constitucionais aprovadas alargou a extensão da Constituição, dada a resistência do Congresso em desconstitucionalizar matérias, já que isto significaria um cheque em branco ao Executivo. Assim, o temor verificado no processo constituinte em relação à predominância do Executivo no processo legislativo se manteve incólume no processo de reforma à Constituição, circunstância que impediu a realização de um enxugamento da Constituição, produzindo, ao revés, o efeito oposto. Não é, portanto, de causar espécie o caráter analítico da nossa Constituição, cujo corpo permanente conta com, aproximadamente, 32 mil palavras, relativamente superior à média das Constituições latino-americanas (25.400 palavras). O principal efeito desta hiperconstitucionalização é o estímulo à judicialização das atividades legislativas e administrativa, visto que, com base em amplíssimo parâmetro, o Judiciário pode controlar a constitucionalidade dos atos estatais e extrair deveres de agir aos demais Poderes.39
À guisa de conclusão, pode-se destacar que, em consonância com o
explanado, institucionalmente há um estímulo à judicialização de questões
políticas, bem como a um certo ativismo na reforma da Constituição, no qual o
Executivo tem demonstrado um claro protagonismo.
3.2.3. O panorama interpretativo
Até 1988, as Constituições brasileiras cingiram-se basicamente à
função estruturante do Estado, criando órgãos públicos e dispondo sobre as
suas competências e procedimentos. A instabilidade democrática e os ataques
à independência do Supremo Tribunal Federal impediram-lhe de proteger as
38 Idem, ibidem. 39Idem, ibidem, p. 129-130.
liberdades daqueles que eram tidos por inimigos do regime.
Igualmente, se por um lado os efeitos apenas inter partes das decisões
de inconstitucionalidade limitavam o controle constitucionalidade dos atos do
Poder Público, por outro dificultavam que o Supremo Tribunal Federal
garantisse que suas decisões fossem usadas como parâmetros em casos
análogos pelos tribunais inferiores e também pela administração pública.
Nessa conjuntura, o positivismo jurídico adquiriu especial relevo,
servindo à explicação teórica das relações travadas entre Constituição e lei.
Reputava-se a lei como expressão da vontade geral do povo, fruto da justiça e
da razão e cuja legitimidade deitava raízes na sua origem democrática, e não
por sua correspondência ou ajustamento a princípios constitucionais
substantivos. Vicejava nesse panorama um controle de constitucionalidade
débil e que se prestava apenas à análise de aspectos formais como, v.g.,
competência e procedimento, somente se permitindo ao Judiciário reconhecer
a inconstitucionalidade material em hipóteses excepcionais em que a lei
expressamente violasse uma regra constitucional.
Com bases nas teorizações de Kelsen, a indeterminabilidade, aspecto
inafastável de algumas normas constitucionais, só deveria ser resolvida pelo
legislador, e não pelo Judiciário, sob pena de instaurar-se um deslocamento de
poder de tal sorte a comprometer a democracia representativa. Em termos de
controle de constitucionalidade, a concepção era de que o Judiciário deveria
restringir-se a uma função de legislador negativo40, consistente na análise de
compatibilidade entre os dispositivos constitucionais e as leis
infraconstitucionais, sem que para tanto utilizasse conceitos impreciso como os
40Idem, ibidem, p. 131.
princípios ou mesmo de critérios que não fossem exclusivamente jurídicos, tais
como fundamentos científicos, econômicos e morais.
Na seara da doutrina ainda eram incipientes as elucubrações a
propósito das normas constitucionais e sua força normativa, pois, como
esclarece Rodrigo Brandão, mesmo autores progressistas como Rui Barbosa
distinguiam as normas constitucionais em autoaplicáveis e não autoaplicáveis
segundo critérios de cariz semânticos, donde os princípios constitucionais
abertos, devido à indeterminação semântica, não produziam eficácia jurídica de
autoaplicabilidade41.
A compreensão quanto ao conteúdo indeterminado da Constituição
assemelhava-se à tradição europeia das normas diretivas fundamentais,
servindo apenas para guiar a ação dos Poderes do Estado uma vez que, ao
tempo em que lhes estabelecia sugestões ou pautas gerais de atuação,
deixava a sua concretização aos respectivos poderes que por elas deveriam
regular-se, excluindo o Judiciário de atuar nesse sentido.
Como se intuir, era notadamente reduzida atuação do Poder Judiciário.
Para a concepção então dominante a atividade interpretativa deveria realizar-
se como um simples silogismo de subsunção, donde se extraía o imperativo de
neutralidade do intérprete e a completude do ordenamento jurídico. Desse
modo, a teoria jurídica tradicional, isolando-se da filosofia do direito, propagava
um conhecimento acrítico dos institutos jurídicos, sobretudo por não refletir
sobre o seu próprio saber e seus fundamentos de legitimidade42.
Destarte, antes do advento da Constituição Federal de 1988, o Brasil
adotou um modelo de jurisdição constitucional que pode ser caracterizada por 41Idem, ibidem, p. 131. 42 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – Os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 230.
um minimalismo constitucional, mormente porque as Constituições não
dispunham de muitos dispositivos dotados de eficácia jurídica, bem como por
força da limitação a juízos técnico-jurídicos de compatibilidade entre lei e
constituição, dando azo à supremacia da lei em detrimento da Constituição, no
sentido de que a lei se mantinha como principal instrumento para a resolução
de conflitos existentes na sociedade.
Não bastasse isso, eventuais questionamentos a respeito da
conformidade da lei para com os princípios constitucionais eram solucionados
mediante o uso do princípio da separação dos poderes e seus corolários,
discricionariedade legislativa, presunção de constitucionalidade dos atos do
Poder Público e a doutrina da insindicabilidade judicial das questões políticas.
Lícito dizer, por conseguinte, que os Códigos, pensados como sistemas
normativos completos, posicionavam-se no centro do ordenamento jurídico e a
Constituição, gravitava nos arredores, com o que a deserção das forças
progressivas do Direito converteu o mundo jurídico num feudo do pensamento
conservador ou, no mínimo, tradicional43.
Em 1967, José Afonso da Silva, preconizando a premissa de que
qualquer norma constitucional deve produzir algum grau de eficácia, publicou o
livro denominado Aplicabilidade das normas constitucionais, no qual concebeu
sua célebre teoria acerca da classificação tripartida das normas constitucionais
em normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata, de eficácia contida e
aplicabilidade imediata e de eficácia limitada e aplicabilidade mediata44.
43Idem, ibidem, p. 233. 44 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo; Malheiros Editores, 1999, p. 88-167. As normas de eficácia plena seriam aquelas dotadas de plenos efeitos e de imediata aplicabilidade, independentemente de edição de lei concretizadora, tendo em vista trazer a descrição da conduta exigida do seu destinatário. As normas de eficácia contida igualmente gozam de eficácia plena e de aplicabilidade por possuírem alto grau de
Na transição democrática ocorrida na década de 1980,
constitucionalistas como Luís Roberto Barroso alertam para o plano da eficácia
social das normas constitucionais, consubstanciada na aferindo da produção
de efeitos no mundo dos fatos. A assertiva defendida por essa doutrina é a de
que, se as normas constitucionais são normas jurídicas, elas gozam do atributo
da imperatividade que lhes deve ser comum, autorizando assim a sua
aplicação pelo judiciário. Tratava-se de elevar as normas constitucionais à
categoria de normas jurídicas, porquanto a tradição constitucional brasileira se
destacava por vislumbrar as normas constitucionais como veiculadoras de
diretrizes fundamentais aos poderes políticos, e não como norma de garantias
fundamentais aplicáveis pelo Poder Judiciário, exercendo mais função política
do que jurídica45. O argumentos não era de matiz moral ou filosófico; ao
contrário, a ratio essendi repousa no próprio direito positivo, vez que o escopo
é o de reconhecer força de norma jurídica às normas constitucionais.
Nesse rumo, o pensamento doravante defendido arraiga-se na seara
constitucional para atribuir às normas de direitos fundamentais a possibilidade
de revestir os seus destinatários de direitos subjetivos garantidos pela
Constituição, cujo descumprimento pelo Poder Público de seu correlato dever
jurídico enseja a pretensão, por parte do titular, de recorrer ao Poder Judiciário
para obter uma tutela coercitva.
Conhecida como doutrina da efetividade, o alvissareiro movimento tem
como figura central o juiz e seu impacto institucional, propugnando a ascensão
densidade normativa, muito embora estejam passíveis de restrição por parte da legislação infraconstitucional, já que este suposto é autorizado pela própria Constituição com a utilização de termos como “nos termos da lei”. Já as normas de eficácia limitada seriam aquelas cuja aplicabilidade e eficácia integral estão condicionadas a regulamentação infraconstitucional, visto que é baixo o seu grau de densidade normativa. 45 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – Os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 224.
do Poder Judiciário no Brasil na medida em que lhe atribuía papel de destaque
na concretização dos valores e dos direitos constitucionais46.
Passados mais de 24 (vinte e quatro) anos da promulgação da
Constituição, o constitucionalismo brasileiro de efetividade logrou enorme
sucesso na consolidação do entendimento, na comunidade jurídica, de que a
Constituição – inclusive seus princípios – tem caráter de norma jurídica, com o
que pode (e deve) ser aplicada pelo Poder Judiciário independentemente de
regulamentação pelo Poder Legislativo47. Trata-se de indiscutível e inestimável
evolução para o Direito brasileiro, em especial para o Direito constitucional.
Primeiramente porque dessa noção advém a possibilidade de a
Constituição desempenhar seu importantíssimo papel de limitar a atuação dos
poderes do Estado mediante o controle de conformidade entre ela e as leis e
os atos por este emanados, função esta frágil nos regimes anteriores, já que a
política era exercida fora e acima da Constituição.
De igual relevo é a afirmação da força normativa da Constituição,
máxime porque o acesso do juiz às normas constitucionais, sobretudo àquelas
substantivas e aos princípios, não mais necessita da intermediação do
legislador, afinal, como já exposto, se o sentido da norma jurídica só é definido
no caso concreto, pelo intérprete, a partir da conjugação do enunciado com os
fatos, a concretização do Direito é feita diretamente por intermédio da
interpretação judicial da Constituição.
A inserção da força normativa da Constituição na pré-compreensão dos
juristas representa inequívoco e inestimável logro para o Direito brasileiro. Sem
embargo, é preciso alertar para o perigo oposto, isto é, para a redução da 46Idem, ibidem, p. 224. 47 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 135.
Constituição à categoria de norma jurídica, o que tornaria a sua aplicação uma
atividade exclusivamente jurídica, desconsiderando a sua dimensão política.
É que à Constituição deve ser reconhecida função não apenas de
estruturar o poder e de defender as liberdades fundamentais, senão também
de estabelecer um projeto mais amplo, no qual deve estar compreendido o
desenvolvimento do Estado e da sociedade ao atingimento dos fins previstos
como programas.
Com efeito, não se pode olvidar os efeitos colaterais oriundos de teses
excessivamente judicialistas. Em virtude da pouca relevância política assumida
pelo Judiciário na história brasileira, o grande problema aqui foi a falta de
controle judicial e efetivo de decisões arbitrárias do governo, e não o excesso.
Contudo, hodiernamente vivenciamos um problema inédito, decorrente da
ingênua associação entre, de um lado, ativismo judicial e posição de vanguarda
na tutela dos direitos e, de outro, autorrestrição judicial e postura omissa no
combate a desmandos do governo.
Após a Constituição de 1988 e a introdução, no Brasil, das teorias pós-
positivistas, surge uma torrente de trabalhos sobre Teoria dos Princípios,
ponderação de interesses, teorias de argumentação, proporcionalidade e
razoabilidade etc., ademais da aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais, tanto os individuais como os sociais, com espeque numa
argumentação de cunho moral e democrática.
A partir de 2003, com a obra intitulada “Neoconstitucionalismo(s)”, de
Miguel Carbonel48, passa-se a empregar o aludido termo para designar uma
nova dimensão do constitucionalismo, de viés crítico, que, em que pese a
48CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid. Editorial Trotta, 2003.
diversidade de obras a seu respeito, tem em comum várias premissas, como,
por exemplo: “valorização dos princípios, adoção de métodos ou estilos mais
abertos e flexíveis na hermenêutica jurídica, com destaque para a ponderação,
abertura da argumentação jurídica à Moral, mas sem recair nas categorias
metafísicas do jusnaturalismo, reconhecimento e defesa da
constitucionalização do Direito, e do papel de destaque do Judiciário na agenda
de implementação dos valores da Constituição49”.
O reconhecimento de que as normas indeterminadas da Constituição,
notadamente os princípios, podem ser diretamente aplicados diretamente pelo
juiz é suposto que lhe confere enormes poderes, fazendo-se necessário, na
atual quadra histórica, teorizações sobre a autocontenção do Poder Judiciário,
sobretudo devido a inúmeros abusos que não raras vezes soem acorrer, como,
por exemplo, a atuação deste poder como “legislador positivo” diante da inércia
dos outros poderes, ou mesmo a revisão do sopesamento feito pelo legislador
quando não houver espaço para tanto.
Atenta a essas questões, parcela considerável da doutrina pátria50 tem
se voltado à análise de suas consequências, alertando alguns que, sob esse
viés, “a Constituição se tornaria ubíqua, atuando como ‘norma fundamental da
comunidade’ que teria resposta para todos os problemas jurídicos e políticos, e
o Judiciário, na sua função de Guardião da Constituição, acabaria por se
sobrepor aos demais Poderes. Em suma: o neoconstitucionalismo redundaria
49 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 138 – [destaque do autor] 50 Cite-se, por exemplo: SARMENTO, Daniel. O Constitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: SARMENTO, Daniel. Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre “ciência do direito” e o “direito da ciênca”. In: Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2008.
em um positivismo jurisprudencial, cujo protagonismo dos juízes equivaleria à
transformação da Suprema Corte de guardiã a substituta do poder
constituinte”51.
4. CRIAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO: AS FUNÇÕES LEGIS LATIVA E
JURISDICIONAL E A PROBLEMÁTICA DA INTERPRETAÇÃO
4.1. A FUNÇÃO LEGISLATIVA E A FUNÇÃO JURISDICIONAL
Imperioso pontuar, de início, que a teoria da “separação dos poderes”52
historicamente pode ser vista sob os aspectos material ou subjetivo: este
compreendido no sentido de vinculação dos poderes legislativo, executivo e
judiciário a órgãos específicos, sempre buscando o equilíbrio (Montesquieu);
aquele entendido na distinção das funções em legislativa, executiva e
jurisdicional conforme seu conteúdo e sem vinculá-las a órgãos em específico
(Locke).
A teoria adotada no Brasil é a do aspecto subjetivo, mormente a
teorização de Montesquieu nos ser mais familiar53.
A despeito da maior proximidade com o aspecto subjetivo que, como
visto, enfatiza o poder e o órgão a ele vinculado, preconizando uma separação
51 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 140 – [destaque do autor]. 52 Um dos princípios fundamentais da democracia contemporânea, a expressão separação de poderes sofre severas críticas por parte da doutrina nacional e estrangeira, razão pela qual deve ser entendida aqui como divisão de funções – termo este que, contudo, ao fim e ao cabo também revela certa imprecisão em relação ao objeto significado, já que acaba por indicar separação estanque de algo que, em verdade, mescla-se em atribuições típicas e atípicas de cada poder. 53 GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o Direito pressuposto. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 237.
estrita, convém destacar que o que aqui importa é a distinção entre funções
normativa, administrativa e jurisdicional54.
Feita essa breve introdução, cumpre, por conseguinte, diferenciar a
função jurisdicional da função legislativa.
A função legislativa – entre nós atribuída ao poder legislativo –, como o
próprio nome já em princípio indica, diz respeito à possibilidade de inovar no
ordenamento jurídico criando leis, direitos e deveres; já a função jurisdicional –
incumbida ao poder judiciário – se define na atribuição de julgar os casos que
lhe são levados à sua apreciação e, assim, aplicar a lei, geral e abstrata, a
situações singulares e concretas.
De se ressaltar, nessa toada, que a norma do caso concreto não é
necessariamente estatuída por intermédio do exercício originário de um poder
criado para tanto – como, por exemplo, o poder legislativo –, podendo haver
emanação de normas de um poder derivado – v.g., o poder judiciário.
Em que pese seja a função legislativa atribuída quase que
exclusivamente55 ao poder legislativo, a função normativa não é exclusiva do
aludido poder, porquanto se pode atribuí-la a outros poderes.
Assim, é possível dizer, com Eros Roberto Grau, que a lei não contém,
necessariamente, uma norma, assim como uma norma não advém,
necessariamente, de uma lei56, de modo que se reconhece a capacidade de
produzir normas, para além dos textos de lei, dos intérpretes aplicadores do
Direito, pois a lei é um conjunto de normas em potencial.
54 Idem, ibidem, p. 238. 55 A expressão “quase que exclusivamente” é proposital porque aos outros “poderes” também se atribui, em determinados casos, função legislativa, muito embora esta função seja restrita por caracterizar função atípica (não preponderante). 56 GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o Direito pressuposto. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 241.
Uma leitura superficial da distinção em comento conduz à equivocada
conclusão de que a produção normativa é de exclusividade dos legisladores.
Equivocada porque, em primeiro lugar, não se interpreta normas: a norma é o
resultado da interpretação.
A função precípua do poder legislativo é a de criação de textos legais,
ou, noutras palavras, de enunciados (= textos) que são normas em potencial.
A função jurisdicional é a de, a partir da conjugação do texto legal com
os conflitos que lhes são trazidos, dar uma resposta jurídica ao caso concreto,
para a qual deverá criar uma norma (= sentido) por meio de um processo a que
se denomina interpretação. Trata-se de função criadora que não se confunde,
todavia, com a função legislativa.
Não obstante, a fim de que a distinção analisada (entre a função
jurisdicional e a função legislativa) se torne clara, mister se faz que se tenha
em mente, dentre outras, a noção da diferença existente entre texto e norma.
4.2. A DIFERENÇA ENTRE O TEXTO E A NORMA
A diferença entre texto e norma, conforme leciona Eros Roberto Grau,
é oriunda do caráter alográfico do Direito.
Sustenta o mencionado doutrinador que as artes podem ser de dois
tipos: alográficas ou autográficas. Em que pese ambas carecerem de
intepretação, nas artes autográficas, tais como a pintura e o romance, o autor é
o único a contribuir com a realização da obra, a partir do que já se pode obter
emoção estética. Nas artes denominadas alográficas, como, por exemplo, a
música e o teatro, a completude da expressão artística, entendida como a
contemplação estética, depende da participação de um personagem essencial:
o intérprete. Isso se dá porque neste último caso a interpretação importa num
processo em que se fundem compreensão e reprodução57.
Ao comentar a obra do mencionado autor, Fernando Vieira Luiz nos
fornece elucidativa comparação:
Pode-se comparar, neste particular, o texto da lei ou da Constituição, com uma partitura musical. Os símbolos musicais descritos nesta, em si, nada significam, nenhum deleite causam naquele que aprecia música. Contudo, uma vez compreendida e reproduzida por um intérprete (músico), completa-se como expressão artística, gerando a contemplação estética de outros intérpretes (uma plateia, por exemplo, em um recital)58.
O mesmo fenômeno ocorre no âmbito do direito, na medida em que o
texto legal, em si e por si, nada presenta. Assim, por exemplo, as palavras
contidas num tipo penal ou num artigo do Código Civil não tem o condão de
criar, alterar ou modificar as coisas no mundo fático – afinal parece bastante
claro que o Direito não cria fatos e, sim, tão-só se lhes atribui, por meio dum
processo de interpretação, um determinado valor. As palavras que em conjunto
compõem um determinado enunciado legal são apenas palavras, pois falta-lhes
concretude (significação) 59.
Uma vez trazido à realidade por meio da sua aplicação a um fato
concreto por um intérprete (o juiz, por exemplo), o enunciado passa a ter vida e
dá lugar a uma norma, gerando consequências jurídicas. Daí que “o texto,
preceito, enunciado normativo é alográfico. Não se completa no sentido nele
57 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do Direito. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 77-78. 58 LUIZ, Fernando Vieira. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à constituição de Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 102. 59 É preciso abrir um parêntese para dizer que a significação (= sentido) somente é desvelada diante duma situação concreta, e assim, pois, da conjugação dos significantes (in casu, texto e fato), já que, parafraseando Hans-Georg Gadamer, estamos condenados a interpretar.
impresso pelo legislador. A 'completude' do texto somente é realizada quando o
sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo
intérprete”60.
O texto em si não possui uma essência que lhe seja inerente; não
existe uma verdade transcendental no texto legal esperando para ser
descoberta pela intérprete.
O que antes se supunha como uma relação real entre ser e essência
desde Kant já não se pode mais falar numa espécie de predicado real. O
sentido não depende dos objetos, mormente porque não há essências
esperando desvelamento (metafísica clássica); tampouco depende da
consciência do sujeito que, ao interpretar, assujeita o objeto (filosofia da
consciência); o sentido deve ser encontrado no âmbito da linguagem, que é,
segundo Lenio Streck, “onde o mundo se descortina; é na linguagem que se dá
a ação; é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência de si do
pensamento pensante). O sujeito surge na linguagem e pela linguagem”61.
Desse modo, uma vez não aplicado, o texto legal nada significa,
máxime porque “as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem:
somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas
(isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em
normas)”62.
Após a interpretação, entendida como a aplicação do texto a uma
situação fática concreta, o texto deixa de ser texto e passa a ser o sentido do
60 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do Direito. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 78. 61 STRECK, Lenio Streck. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 14. 62 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do Direito. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 78.
texto, que é o resultado da interpretação realizada. Este sentido expressado
pelo texto já é algo novo, distinto do texto: a norma. Desse modo, a norma,
vista como fruto da interpretação, já não é mais o texto, mas a atribuição de
sentido dada a ela no caso concreto.
A propósito, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho preconiza que as
palavras da lei têm um valor próprio, sobretudo porque utilizadas no lugar de
outras; sem embargo, tais palavras não contêm todo o sentido contido no texto,
máxime devido ao fato de que as decisões contra legem caracterizam “a prova
cabal de que o texto e a regra não aprisionam o sentido e, portanto, pode ele
não estar ex ante ali presente”63.
Contudo, indo adiante, parece não ser possível furtar-se ao assalto da
seguinte indagação: se o texto só existe como texto quando é aplicado, e se
com a sua aplicação deixa de ser texto para converter-se em norma, qual a
diferença entre texto e norma?
Não se pode continuar a pensar, na seara jurídica, em dicotomias
metafísicas como texto e norma. Em que pese existir, sim, uma diferença,
ambos não podem existir separadamente, haja vista que o texto só ocorre na
norma e esta, por seu turno, só existe com um texto que lhe sirva de base. A
norma é o sentido do texto e o texto, o seu suporte.
Destarte, somente por meio da aplicação é que se dá existência ao
texto – pela norma dele advinda – e à norma – como sentido do texto. É
impossível igualar texto à norma, e, da mesma forma, não se pode reconhecer
uma separação total entre ambos.
63 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites linguísticos da lei. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Curitiba, v. 1, p. 37-44, 2005, p. 4.
4.3. “VONTADE DA LEI” E “VONTADE DO LEGISLADOR”
Tendo como objeto de investigação a interpretação, a doutrina
tradicional sempre levantou questionamentos sobre qual é o seu objetivo
precípuo. Nessa seara, há muito tempo viceja o embate – longe de terminar,
frise-se – entre duas grandes teorias: a subjetivista e a objetivista.
Muito se tem discutido e ainda se discute, em direito, acerca dessas
duas teses sobre interpretação. Afinal, o que deve prevalecer, a “vontade da
lei” (teoria objetivista) ou a “vontade do legislador” (teoria subjetivista)?
Antes de qualquer incursão nessas teorias, desde logo cabe levantar
as seguintes questões: é possível descobrir o que é o espírito da lei ou o que
deseja uma norma? Tem importância descobrir o que é que o legislador quis
dizer ou qual era a sua intenção ao elaborar uma lei?
A doutrina subjetivista vê como objetivo da interpretação a busca da
vontade do legislador (mens legislatoris), isto é, a vontade do criador da norma
vista sob o prisma histórico. Segundo Norberto Bobbio, esta “intenção do
legislador” pode ser real ou presumida dependendo da possibilidade de se
chegar efetivamente ao que o autor da lei pretendeu dizer ou, caso impossível,
recorrendo-se à analogia para estabelecer o que ele teria previsto para o
caso64.
Para esta corrente, sendo a ciência jurídica um saber dogmático (este
considerado como um princípio arbitrário, derivado da vontade do emissor da
norma), a interpretação é, basicamente, uma compreensão do pensamento do
legislador, de modo que a ela opera ex tunc (desde então). Destaca-se o
64 BOBBIO, N. O Positivismo Jurídico: lições de Filosofia do Direito. Tradução de PUGLIESI, Márcio; BINI, Edson; RODRIGUES, Carlos E. São Paulo: Editora Ícone, 1995, p. 87.
método histórico de investigação.
A doutrina objetivista reputa a interpretação como forma de extrair do
texto a vontade da norma (mens legis). Busca-se um sentido extraível do
próprio texto de forma autônoma, ou seja, independente de qualquer
significado pretendido originalmente pelo legislador.
Nesta corrente prevalece o consenso de que a norma goza de sentido
próprio, determinado por fatores objetivos, independente até certo ponto do
sentido que lhe haja pretendido dar o legislador. A concepção, assim, é a de
uma interpretação ex nunc (desde agora), com enfoque no “papel
preponderante dos aspectos estruturais em que a norma ocorre e as técnicas
apropriadas à sua captação”65.
A tese subjetivista conduz a uma interpretação fixa na medida em que
sua finalidade é a de buscar a intenção do legislador que havia emanado
determinada lei. Já o objetivismo aceita a ideia de que a lei pode ser
juridicamente diferente da intenção do seu autor.
A corrente objetivista preconiza a ideia de que a lei traz em si a norma,
e que, bem por isso, a interpretação judicial pode ser controlada pelas regras
em virtude de que levam a uma correta determinação do significado do texto,
como se o significado estivesse “na coisa em si” (o texto).
A corrente subjetivista toma a interpretação judicial como sendo algo
subjetivo, ao argumento de busca da vontade do legislador – como se fosse
possível a concretização de semelhante empreitada. Enseja, desse modo, em
último caso, que a interpretação esteja ligada a preferências valorativas
pessoais do intérprete, tais como seu senso de justiça, dando ao texto o 65 STRECK, Lenio Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 127.
significado que lhe parece adequado.
Na postura objetivista, o texto existe independentemente de sua
aplicação, já que, mesmo sem alguma situação concreta para ser aplicado, traz
em si um significado universal, o qual está à espera de apreensão pelo
intérprete que o acople a uma situação e o reproduza numa norma. Nesta
concepção, texto e norma se equivalem, são a mesma coisa, não passando a
norma de uma capa de sentido.
Dito de outra forma, para essa corrente o texto possui uma essência
“x”, bastando ao juiz fazer a acoplagem deste significado, sem nada a
interpretar, para solucionar o caso, com o que a norma é sempre “x” e nada
mais.
Na postura subjetivista há completa dessemelhança entre texto e
norma, mormente porque esta será produzida exclusivamente pelo intérprete.
O Direito passa a ser aquilo que os juristas dizem que ele é,
independentemente do texto, sobretudo porque a norma será construída pelo
julgador por intermédio de sua subjetividade, inclusive por vezes ignorando-se
o texto. A norma será a representação que dela fizer o intérprete por meio de
sua razão.
Sem embargo, conforme ensina Streck, ambas as correntes, quando
levadas ao extremo, podem dar azo a situações indesejáveis: o subjetivismo,
ao privilegiar o legislador, pondo sua vontade em relevo, pode culminar em um
autoritarismo personalista; por outro lado, o objetivismo, ao igualar os
intérpretes ou, pelo menos, deslocando para eles a responsabilidade do
legislador, pode levar ao anarquismo66.
66 Idem, ibidem, p. 129.
Não há como falar-se na existência de procedimento que preconiza
subsunções em Direito. A Constituição, ou a lei, não possui uma essência, uma
substância em si que fica aguardando ser apreendida pelo intérprete. Ao
contrário: seu sentido é formado na aplicação.
Igualmente não se pode falar em subjetivismos, já que a Constituição
ou a lei não estão à disposição do intérprete. O círculo hermenêutico, com a
autoridade da tradição a ele intrínseca, impede que o intérprete dê o sentido
que quiser. Nesse sentido destaca Fernando Vieira Luiz ao citar Lenio Luiz
Streck:
É neste contexto que ocorre a invasão da filosofia pela linguagem (linguistic turn, que, no plano da hermenêutica filosófica, pode ser chamado de ontologische Wendung – giro ontológico), a partir de uma pós-metafísica de (re)inclusão da facticidade que, de forma inapelável, mormente a partir da década de 50 do século passado, atravessará o esquema sujeito-objeto (objetivista e subjetivista), estabelecendo uma circularidade virtuosa na compreensão. Destarte, esse déficit de realidade produzido pelas posturas epistemo-metodológicas – ainda presas ao esquema sujeito-objeto – será preenchido pelas posturas interpretativas, especialmente as hermenêutico-ontológicas, que deixam de hipostasiar o método e o procedimento, colocando o locus da compreensão no modo-de-ser e na facticidade, bem na linha da viragem a partir de Wittgenstein e Heidegger67.
Diante deste cenário, é possível afirmar que, independentemente de
prevalência de uma ou outra corrente, nota-se hodiernamente que o papel do
jurista, atuando como intérprete, ganhou significativo espaço, porquanto a ele
se recorre para a contextualização da lei no tempo. É inegável a constatação
de que o intérprete, mais que o legislador, contribui para a norma.
Ante essa constatação, faz-se necessário que se estabeleça as
condições de possibilidades que tem o intérprete de desempenhar o seu ofício
67 LUIZ, Fernando Vieira. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à constituição de Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 116.
e chegar a respostas corretas em direito, pois, como já se pôde notar até aqui,
as respostas em Direito tem ficado à mercê da atividade solipsista do
intérprete: ora na sua consciência, ora na coisa em si.
4.4. A PARTICIPAÇÃO DO INTÉRPRETE NA CRIAÇÃO DA NORMA
A doutrina mais tradicional, ao definir o que é interpretação, ainda
utiliza como melhor conceituação a noção de atividade voltada para revelar o
verdadeiro sentido do texto posto pelo legislador. Povoa ainda o imaginário
tradicional a ideia de que a lei tem um sentido que deve apenas ser descoberto
pelo intérprete. Trata-se da busca da vontade do legislador.
Com as teorizações da corrente objetivista, a figura da intenção do
legislador passou a ser questionada, ao tempo em que o trabalho do intérprete
ganhou maior relevância.
Somente no positivismo jurídico é que se pode tratar igualmente texto e
norma ou colocá-los como espécies totalmente distintas. Por esse motivo, vive-
se entre o objetivismo e o subjetivismo.
Não obstante, é preciso fazer justiça e esclarecer que, entre nós, há
aqueles que buscam uma fusão entre as duas correntes expostas.
Paulo Dourado de Gusmão, por exemplo, embora sustente que a lei se
faz independente do seu autor após a sua publicação, admite que, em ordem a
descobrir-se o sentido objetivo da lei, o intérprete deve proceder por várias
etapas, percorrendo o que se entende por fases da interpretação, nas quais se
incluem desde a interpretação gramatical ou literal até a interpretação histórica,
em que são utilizados os trabalhos preparatórios como o projeto de lei, debates
de comissões, etc68.
Já Paulo Nader, depois de tecer comentários sobre as duas teorias,
inclina-se pela doutrina objetivista, ao argumento de que o intérprete deve
“determinar o sentido objetivo do texto [...]; deve ele olhar menos para o
passado do que para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem
inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva”. Mais adiante, porém,
ao falar da interpretação em relação ao resultado, admite um exame do
passado legislativo, pois o legislador nem sempre utiliza bem os vocábulos ao
compor os atos legislativos, com o que procederia o intérprete à interpretações
declarativas, restritivas ou extensivas.
O certo é que, entre objetivismos e subjetivismos, o problema da
interpretação perdura há bastante tempo. O sentido não está na coisa em si,
nem tampouco na consciência de um sujeito. O sentido, em consonância com o
já exposto, reside na interação dialógica entre texto e intérprete mediada pela
tradição e sempre tendo em vista o caso concreto.
A interpretação – não só no âmbito jurídico como também no mais
cotidiano dos eventos – depende sempre da pré-compreensão, que por sua
vez é moldada pela própria tradição. A questão é que as duas teorias não
explicam o problema da compreensão. O que se pretende ressaltar é a
necessidade e a importância da tradição, da historicidade e da pré-
compreensão na interpretação: a interpretação só pode ocorrer num lugar
comum fixado no espaço e no tempo (que veio do passado, está no presente e
se estenderá ao futuro).
A interpretação não se faz do nada, é dizer, não há grau zero de
68 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 20.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 240 e 241.
sentido. Os sentidos antecedem porque o intérprete já está dotado duma pré-
compreensão sobre o objeto, e isso ocorre devido à incorporação na tradição
duma prática social compartilhada por todos há várias gerações.
As pessoas compartilham uma tradição e esperam que, ante uma
determinada situação, haja este tipo de compartilhamento. Mas também o texto
possui o seu horizonte (norma em potência, conforme diz Eros Grau), razão
pela qual o intérprete precisa analisar vários elementos antes de decidir,
momento no qual os seus horizontes e o do texto se fundirão e constituirão o
sentido adequado e, destarte, a norma.
O texto não possui uma essência em si, nem pode o intérprete atribuir-
lhe qualquer sentido arbitrário. Ante uma situação concreta, o intérprete, ao se
deparar com o texto, já o concebe “normatizado”, a partir do que se deve
controlar o sentido para que não se perca em discricionariedades ou arbítrios
do intérprete, já que este interage num jogo intersubjetivo que se dá num lugar
comum: a tradição, na qual há o compartilhamento de práticas sociais que,
pensadas entre passado, presente e futuro, pré-dispõe os sujeitos.
O ser está condenado a interpretar, e interpretar é a sua forma de ser
no mundo. O indivíduo caminha no mundo não só porque o compreende,
senão também que se o compreende.
Nesse rumo, a aplicação é a realização do próprio Direito. A resposta
jurídica sempre dependerá de um caso concreto, porquanto não pode haver
resposta antes da pergunta.
Vem daí que a assertiva – muito difundida no meio jurídico – de que o
julgador decide para depois buscar a fundamentação não é verdadeira, pois o
julgador só decide porque já encontrou o fundamento para a sua decisão. O
intérprete antecipa o sentido (pré-compreensão) e, após debruçar-se e refletir
mais detidamente sobre texto, com a fusão de horizontes de ambos, ocorre a
compreensão.
Interpretando o texto, o jurista explica a si mesmo o compreendido, isto
é, explica o porquê de, naquele caso concreto, a resposta corresponder a “x”, e
não a “y”. E não poderia ser o contrário porque não se escolhe
inadvertidamente uma resposta – porque já se decidiu, pela íntima convicção,
na medida em que sempre já se antecipa o sentido por meio da pré-
compreensão – para, após o decidido, passar-se a buscar fundamentos para
tanto, ou, dito de outra forma, para justificar a decisão tomada.
Em se tratando de decisão judicial, fundamento é condição de
possibilidade da decisão tomada. Nesse sentido, o juiz, a partir da antecipação
de sentidos, compreende o caso posto à sua análise e, dessa forma, o
fundamento já apareceu. Posteriormente, em consonância com o que diz
Fernando Vieira Luiz, ao citar Lenio Luiz Streck, o juiz “procederá a explicação
do compreendido, ‘mediante o aprimoramento do sentido que lhe foi antecipado
(...), a partir de uma racionalidade discursiva’” 69.
O papel do aplicador, enquanto intérprete dos textos legais, é
exatamente o de desvelar o Direito, na medida em que a Constituição,
enquanto texto, nada diz. Ela necessita do intérprete, mormente pelo próprio
caráter alográfico do Direito. A Constituição, por conseguinte, surgirá com a
sua aplicação por um intérprete, e existirá apenas como o sentido de
Constituição.
Isso demonstra o caráter criativo da interpretação, já que o indivíduo (= 69 LUIZ, Fernando Vieira. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à constituição de Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 114.
intérprete) tem papel crucial no jogo de compreensão para o estabelecimento
duma norma jurídica. “A interpretação é sempre crítica, uma vez que possibilita
o desvelamento e alargamento das perspectivas finitas dos sujeitos
envolvidos”70.
Observe-se com isso a possibilidade de uma atividade
constitutiva/concretizadora do intérprete diante de um texto que, conquanto não
possa representar uma inovação formal, implica em renovação do
ordenamento em razão dos resultados que provoca. A propósito sentencia Ana
Maria D’Ávila Lopes71:
No atual estado de Direito, pode-se concluir, então, que o juiz não está mais submetido à literalidade da lei, mas também, não pode atuar à margem de qualquer vínculo, porque na medida em que cria o Direito, deve permanecer dentro dos limites que a correta compreensão e interpretação da norma, na sua aplicação a um caso concreto, impõe-lhe.
Demais disso, é preciso destacar que o intérprete, aplicador do direito,
hodiernamente deve expandir seus conhecimentos para além das disposições
do Direito.
Incluem-se nesse conhecimento disciplinas como Filosofia, Sociologia,
Economia, Psicanálise, Política, etc., sem, contudo, perder de vista a
autonomia do Direito, pois as disciplinas citadas aportam conhecimentos
multidisciplinar e humanístico ao jurista, não se podendo permitir que
determinem o Direito naquele âmbito em que deve ter autonomia. Isso porque,
como abordado alhures, a partir do segundo pós-guerra o Direito adquiriu uma
característica inegável e intransponível: a sua autônima.
70 Idem. Ibidem, p. 115. 71 LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Disponível em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/560. Acesso em 13/1/2012.
Por derradeiro, é preciso arrematar a questão com a seguinte
sentença: só com uma visão interdisciplinar a transformação positiva da
realidade poderá acontecer através da hermenêutica72.
4.5. O PODER DE LEGISLAR E O PODER DE DIZER O DIREITO
Pontua-se, inicialmente, que, ao falar-se de interpretação e, assim, de
criação de normas jurídicas – pois as normas são o resultado da interpretação
–, busca-se, essencialmente, analisar a atuação daqueles que têm o dever de
decidir um caso concreto a partir de sua conjugação com um enunciado
constitucional/legal.
A criatividade constitui um fator inevitável da função jurisdicional de
criar normas jurídicas para a solução de casos concretos, máxime em relação
aos magistrados – responsáveis, em última análise, pela resposta final, seja
esta correta ou não (no sentido de adequada, ou não, à Constituição ou à lei).
Nessa seara, seria possível dizer que há, por conseguinte, um conflito
entre o papel criativo dos juízes e o papel do legislador? Em outras palavras, a
atuação criativa judiciária torna o juiz legislador?
Existem importantes razões para o acentuado desenvolvimento da
criatividade judiciária no nosso século. Este desenvolvimento corresponde não
só a características e a exigências fundamentais do atual estágio social e
jurídico que vivemos, mas também a questões constitucionais, sociais, políticas
e econômicas.
De fato, os juízes estão constrangidos a serem criadores do Direito;
72 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites linguísticos da lei. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Curitiba, v. 1, p. 37-44, 2005, p. 2.
não, porém, a substituírem-se na função atribuída ao poder legislativo. Nas
palavras de Mauto Cappelletti “efetivamente, eles [os juízes] são chamados a
interpretar e, por isso, inevitavelmente a esclarecer, integrar, plasmar e
transformar, e não raro a criar ex novo o direito. Isso não significa, porém, que
sejam legisladores. Existe realmente [...] essencial diferença entre o processo
legislativo e jurisdicional”73.
Na esteira dos ensinamentos de Mauro Cappelletti, do ponto de vista
substancial, o processo judiciário e o processo legislativo criam o Direito. Sem
embargo, o modo, ou o procedimento ou a estrutura da formação do direito em
ambos os casos não se confundem.
O bom juiz pode (e deve) ser criativo, dinâmico e ativo, mas somente o
mau juiz é que se colocaria no papel do legislador. A legislação é um modo de
criar o Direito essencialmente distinto daquele empregado pelo judiciário.
Sendo a monopolização da produção normativa pelo Estado – junto
com a monopolização do poder coercitivo – a solução para o caótico estado de
natureza, a validade das leis depende da aprovação da sociedade que será
submetida a elas. No entanto, como não se apresenta viável que todos os
cidadãos participem da criação das leis, confia-se este poder a um grupo de
representantes: o poder legislativo. Aí está a origem teórica desse poder que
se baseia, entre nós, na soberania popular e na representatividade.
A noção de soberania que, devidamente transferida para o povo ou
para a nação, após as revoluções burguesas, especialmente a francesa de
1789, vai justificar não apenas o monopólio do Estado no tocante à produção
de leis como também o monopólio legislativo confiado a um dos poderes do
73 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 73.
Estado: o Legislativo.
No âmbito do poder legislativo, é na maioria parlamentar que a
comunidade delega o exercício do poder mais ajustado aos fins que motivaram
a sua constituição, que é o poder de fazer as leis.
Grosso modo, numa perspectiva histórica a atividade legislativa era
vinculada ao momento jurisdicional em que a legislação era uma atividade
excepcional. Isso provavelmente ocorreu devido à prevalência do direito natural
sobre o direito positivo que existia naquele contexto.
Na pré-modernidade, então, tratava-se de uma função apenas
declarativa, o que foi alterado com a modernidade, quando ganhou relevo a
função constituinte, a partir do que a legislação passa a ter um caráter
autônomo ao processo judicial. Conforme afirma Nuno Piçarra, “Só a partir do
momento em que a lei passa a ser concebida como algo de factível, de
natureza constitutiva e não meramente declarativa, é que tem sentido falar de
uma função legislativa em sentido próprio, autônoma em relação à função
jurisdicional”74.
O traço distintivo da atividade legislativa é a prerrogativa de poder
inovar no ordenamento jurídico, no sentido de criar leis com as características
da abstração e da generalidade, motivo pelo qual também se pode desvincular
o ato de legislar do momento de aplicação do direito.
Com o destaque que ganhou o momento de criação das leis, inclusive
por conta de sua importância dentro duma sociedade, natural que se
iniciassem debates acerca da produção do Direito e do poder de ter nas mãos
este momento originário. Isso, como bem esclarece Castanheira Neves, devido 74 PIÇARRA, N. A Separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional – um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra Editora, 1989, p. 45.
à importância dada à criação do direito como reflexo da manifestação de um
poder75, com o que o poder de criação do Direito se tornou um dos mais
visados e importantes no Estado de feição constitucional, sobretudo por ser
considerado por muito tempo a principal dentre as funções estatais.
No direito natural, os estudiosos do direito gozavam de grande
prestígio à medida que não existiam disposições escritas, razão pela qual havia
maior flexibilidade para fazer a ciência do Direito. Os juristas, então,
responsabilizavam-se por analisar as regras gerias e universais que regem o
mundo, sempre tendo como ferramenta o uso da razão.
Entretanto, a hegemonia dos juristas que dominava a produção até
certo tempo da história perdeu lugar diante do legalismo, experiência
possibilitada pelo pensamento jurídico moderno-iluminista. O movimento de
codificação daí exsurgente se converteu depois na própria expressão do
legalismo dos Estados pós-revolucionários europeus.
Durante o auge do Positivismo houve perda de espaço dos estudiosos
do Direito. Como explica Bobbio, no positivismo jurídico “a exigência da
segurança jurídica faz com que o jurista deva renunciar a toda contribuição
criativa na interpretação da lei, limitando-se simplesmente a tornar explícito,
através de um procedimento lógico (silogismo), aquilo que já está
implicitamente estabelecido na lei”76.
À perda de importância da formação do Direito pela doutrina deu lugar
à busca dos juristas pela recuperação de seu espaço. A partir de então, com o
aflorar da questão do método (herança de René Descartes) abriu-se espaço
75 NEVES, A. C. Digesta – escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. V. 2, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 13. 76 BOBBIO, N. O Positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. Tradução de PUGLIESI, Márcio; BINI, Edson; RODRIGUES, Carlos E. São Paulo: Editora Ícone, 1995, p. 80.
para a produção doutrinária. Utilizando-se das ferramentas intelectuais
preconizadas pelo método cartesiano, a interpretação jurídica então se lançou
à jornada pela busca da essência do Direito, o que proporcionou a abertura na
qual os juristas atuavam: o campo da interpretação das leis.
Concluindo-se, pode-se dizer que, quando se pensa no aplicador do
direito, verifica-se um movimento não só de simples interpretação dos textos de
lei, mas também uma atuação criativa no sentido da constituição de normas.
Noutro giro verbal, é o que se denomina papel criativo.
5. A CONSTITUIÇÃO E O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUC IONAL: JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO
5.1. O EMBATE ENTRE AS TESES PROCEDIMENTALISTAS E
SUBSTANCIALISTAS
Contemporaneamente, há uma discussão acerca do papel da
Constituição, sua força normativa e o seu grau de dirigismo que gira em torno
de duas teses: de um lado as teorias procedimentalistas, e, de outro, as teorias
substancialistas. Cuida-se de embate de fundamental importância para a
definição do papel exercido pela jurisdição constitucional.
As teses materiais enfatizam a regra contramajoritária (freios às
vontades de maiorias eventuais), o que, para os adeptos da postura
substancialista, reforça a relação entre Constituição e Democracia, e, para os
procedimentalistas, enfraqueceria a democracia por faltar legitimidade de
justiça constitucional, ao argumento de que uma jurisdição constitucional
interventiva coloniza o mundo da vida.
Há, no Brasil, um rol considerável de juristas que, contrapondo-se às
teorias processuais-procedimentais, defendem uma atuação mais efetiva da
justiça constitucional, sobretudo por conta da notória inefetividade da
Constituição e da omissão dos poderes Legislativo e Executivo na
implementação de políticas públicas, fatos que conduzem inevitavelmente à
utilização de mecanismos aptos à realização dos direitos substantivos previstos
na Constituição Federal, como, por exemplo, ações constitucionais e controle
de constitucionalidade.
Doutra banda, as teses procedimentalistas tem ganhado corpo
ultimamente, tendo em vista a acusação que fazem da judicialização da política
e do ativismo judicial. Muito embora assista razão a essas teses nalgumas
críticas a respeito do ativismo, tem-se que às vezes chegam a defender um
constitucionalismo débil, pelo qual a Constituição somente limitaria os poderes
existentes, sem prever especificamente uma defesa material dos direitos
fundamentais77.
Para os procedimentalistas, nas sociedades complexas a natureza
das decisões deve ceder lugar ao procedimento, uma vez que generalizam o
reconhecimento das decisões. O respeito aos procedimentos, tanto na seara
do legislativo quanto do judicial, garantiriam a aceitabilidade das decisões. Não
obstante, quiçá não seria sem razão defender que o problema dessas teorias
repousa no fato de que depositar no procedimento o meio ideal de operar a
democracia supõe um problema na medida em que impossibilita uma
intervenção substantiva.
Noutro vértice, as teorias materiais-substantivas trabalham com a
77 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 81.
perspectiva de que a implementação dos direitos fundamentais e sociais, por
intermédio da jurisdição constitucional, afigura-se como condição de
possibilidade da validade da própria Constituição, especialmente em países
com baixo grau de efetividade do texto constitucional. Cite-se, por exemplo, a
posição sustentada por Paulo Bonavides, que a justifica por motivos
pragmáticos, admitindo a judicialização da política – entendida como
concretização de direitos fundamentais-sociais pela via judicial – como
necessária em países com acentuado grau de inefetividade da Constituição,
como é o típico caso do Brasil78.
Também endossa esse entendimento Lenio Streck:
Parece não restar dúvida de que as teorias materiais da Constituição reforçam a Constituição como norma (força normativa), ao evidenciarem o seu conteúdo compromissório a partir da concepção dos direitos fundamentais-sociais a serem concretizados, o que, a toda evidência – e não há como escapar dessa discussão – traz à baila a questão da legitimidade do Poder Judiciário (ou da justiça constitucional) para, no limite, isto é, na inércia injustificável dos demais poderes, implementar essa missão.79
Parece difícil sustentar as teses processuais-procedimentalistas em
países como o Brasil, onde parte considerável dos direitos fundamentais e
sociais continua pendente de cumprimento, em que pese as mais de duas
décadas de promulgação da Constituição de 1998. De fato, afigura-se
demasiadamente pouco reservar ao Poder Judiciário apenas a função de zelar
pelo respeito aos procedimentos democráticos na formação da vontade
política.
Jürgen Habermas, principal corifeu do procedimentalismo a nível
78 BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 9-10. 79 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 82.
mundial, critica com veemência a invasão da política e da sociedade pelo
Direito, partindo da ideia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do
século XX, nas democracias de massas dos Estados Sociais, demandam uma
compreensão procedimentalista do Direito. Segundo Lenio Streck, Habermas
empreende severas críticas à leitura substancialista feita por Alexy do modelo
de Direito defendido por Dworkin e ao gigantismo ou politização do Judiciário
surgido no pós-guerra, bem como recusa tanto o processo hermenêutico de
aplicação de normas como se fossem valores e o enfoque de um juiz que se
sobressai por sua virtude e acesso privilegiado à verdade80.
É preciso insistir, todavia, que processuais-procedimentalistas
guardam certa distância da realidade brasileira. O motivo para isso é um tanto
quanto singelo: devido ao seu conteúdo fortemente formal, o Brasil longe está
de prover as condições de possibilidades para que essas tenha solo fértil, não
só porque a Constituição adotada tem um vasto conteúdo matéria-substancial,
senão também devido as inúmeras promessas não cumpridas do texto de
1988, afinal ainda existem milhões de pessoas vivendo na miséria ao tempo
um que a Constituição estabelece que o Brasil é uma República que visa a
erradica-la (a miséria). Por motivos como esse é que se pode sustentar, no
Brasil, que a jurisdição constitucional deve atuar tendo em conta os direitos
fundamentais e sociais estabelecidos no processo democrático fundante de
1988, tendo inclusive precedência contra textos legislativos produzidos por
maiorias parlamentares (que, ao fim e ao cabo, também devem obediência à
constituição).
Ademais, há a premente necessidade de manter a Constituição em
80 Idem, ibidem, p. 84.
sua perspectiva dirigente e compromissória. Direito constitucional é Direito
político. Existe uma fundamentação constitucional da política que aponta linhas
de atuação política e estabelece condições para mudança da sociedade e das
estruturas sociais pelo Direito, haja vista que a Constituição reconhece
desigualdades e, por isso, disponibilizar no pacto fundante os mecanismos
para alcançar a sua mudança. Nas palavras de Lenio Streck, “Trata-se de uma
cláusula transformadora permanente, isto é, a Constituição do Brasil vai
incorporar os conflitos que antes eram ignorados pelos juristas”81.
Derradeiramente, é necessário que se deixe bem claro, à guisa de
conclusão, que as divergências entre as teorias substancialistas – que
agregam à noção de Estado o conteúdo material das Constituições e a coloca
na justiça constitucional para a efetivação dos direitos fundamentais-sociais e a
transformação da sociedade – e procedimentalistas – fulcradas na ideia de
democracia procedimental pugnada por Jürgen Habermas – não as contrapõe
a ponto de se pensar que o substancialismo não é pluralista ou que o
procedimentalismo se reduz a mera formalidade82.
De igual maneira não se pode pensar que uma defende a
democracia e a outra, não, ou que os procedimentalistas não estão
preocupados com a concretização dos direitos fundamentais e com a
preservação da Constituição. Ao contrário, ambas as teorias estão
preocupadas com a preservação da Constituição e da Democracia. Os
caminhos é que são diferentes, já que são diferentes os paradigmas filosóficos
em que buscam sustentáculo.
81 Idem, ibidem, p. 88. 82 Idem, ibidem.
5.2. A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS
A constitucionalização aqui abordada é aquela que se projeta por todo
sistema jurídico, e essa projeção pelo ordenamento jurídico se dá pela via da
jurisdição constitucional, que possibilita a aplicação direta da Constituição a
uma série de questões sociais e políticas, a declaração de
inconstitucionalidade de normas com ela incompatíveis, retirando-se-lhes a
eficácia e a interpretação conforme a Constituição, na qual se atribui sentido às
normas jurídicas em geral sempre acorde com a Constituição.
Muito embora a discussão a respeito do ativismo judicial vem sendo
realizada nos Estados Unidos desde 1803, no célebre caso Marbury
v.Madison83, no contexto brasileiro, contudo, apresenta o referencial de que o
crescimento e a intensidade da participação do Judiciário apenas se deu a
partir da Constituição de 1988, quando, rompido com a ditadura militar, criou-se
um ambiente político propício ao desenvolvimento da ideia de concretização de
direitos aos cidadãos. Noutras palavras, foi somente com a noção de
constitucionalismo democrático que se começou a pensar na atuação do
Judiciário a partir duma perspectiva ativista.
Vem à baila lembrar que, no caso brasileiro, a jurisdição constitucional
83 O caso envolvia discussão sobre a designação feita pelo então presidente dos Estados Unidos da América, John Adams, às vésperas de deixar seu cargo, de William Marbury como juiz de paz. A Suprema Corte, por decisão do Chief Justice Marshall, afirmou que, embora a nomeação fosse irrevogável, o caso não poderia ser julgado pela Corte, declarando inconstitucional a seção 13 do Judiciary Act, que atribuía competência originária da Suprema Corte para a análise da questão, sob o fundamento de que essa disposição legislativa ampliava sua atuação para além do que havia sido estabelecido constitucionalmente no Article III. Dessa forma, por uma decisão judicial no julgamento dum caso concreto, surgiu o controle de constitucionalidade (judicial review) norte-americano. É de se lembrar, a propósito, que a Constituição não conferia expressamente esse poder de revisão, pelos Tribunais, da legislação do Congresso. Inicia-se assim as discussões sobre o ativismo judicial em solo norte-americano.
é exercida amplamente pelo Poder Judiciário. Desd’o juiz estadual ao Supremo
Tribunal Federal, todos detêm não só legitimidade, mas também poder-dever
de interpretar a legislação infraconstitucional em conformidade com a
Constituição. Essa atribuição inclui a prerrogativa de recusar a aplicação de lei
ou ato normativo contrário à Constituição.
O amplo exercício da jurisdição constitucional trouxe um fenômeno
complexo: sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, houve um aumento significativo da demanda por justiça na sociedade.
Como fatores para essa transformação, Luís Roberto Barroso destaca, em
primeiro lugar, a redescoberta da cidadania e a conscientização das pessoas
em relação aos próprios direitos. Há também o fato de o texto constitucional
haver criado novos direitos, introduzido novas ações e ampliado a legitimação
ativa para tutela de interesses, inclusive metaindividuais (difusos, coletivos e
individuais homogêneos).
Houve, nesse contexto, uma significativa ascensão institucional do
Poder Judiciário. Com a recuperação das liberdades democráticas e das
garantias da magistratura, juízes e tribunais adquiriram um maior
protagonismo, abandonando papel mais passivo e assumindo uma postura
mais ativa e dividindo espaço com os Poderes Legislativo e Executivo. O
cenário que então se descortina ensejou uma modificação substantiva na
relação entre a sociedade e as instituições judiciais, o quê conduziu reformas
estruturais e suscitou questões complexas acerca da extensão dos poderes
reconhecidos ao Judiciário.
O fenômeno da constitucionalização, a ampliação dos direitos, o
aumento da demanda por justiça e ascensão institucional do Judiciário foram
fatores que conduziram a uma expressiva judicialização de questões políticas e
sociais, que passaram a ter no judiciário a instância decisória final. Convém
destacar alguns dos casos ilustrativos desse fenômeno apontados por Luís
Roberto Barroso:
(i) Políticas públicas: a constitucionalidade de aspectos centrais da Reforma da Previdência (contribuição dos inativos) e da Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça); (ii) Relações entre Poderes: determinação dos limites legítimos de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebra de sigilos e decretação de prisão) e do papel do Ministério Público na investigação criminal; (iii) Direitos fundamentais: legitimidade de interrupção da gestação em certas hipóteses de inviabilidade fetal e das pesquisas científicas com células-tronco embrionárias; (iv) Questões do dia-a-dia das pessoas: legalidade da cobrança de assinaturas telefônicas, majoração do valor das passagens de transporte coletivo ou a fixação do valor máximo de reajuste de mensalidade de planos de saúde.84
Em todas essas questões, o método de atuação do Poder Judiciário é
uma fundamentação jurídica. Porém, é necessário reconhecer que a natureza
da função assume contornos inegavelmente políticos.
Nota-se, pois, que a ascensão do Poder Judiciário e a judicialização da
vida são fenômenos característicos de nossos tempos.
5.3. ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
5.3.1 Notas preliminares
O Poder Judiciário tem passado por inúmeras transformações em
seu perfil de atuação. A Constituição da República Federativa do Brasil de
84 BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 7.
1988 representou um momento de radical nesse sentido, modificando o
exercício da jurisdição constitucional. A partir de então, dois fenômenos
passaram a estar diretamente ligados à atividade jurisdicional: o ativismo
judicial e a judicialização da política.
Esses dois fenômenos, não há negar, representam um acentuado
grau de judicialização que assume o Direito brasileiro na atualidade. Conquanto
este seja um ponto comum entre ambos os temas, não se deve confundi-los.
Para compreender os dois fenômenos, necessário se faz que os
diferenciemos. A pesar da importância que assume essa problemática na atual
conjuntura, não são raros os casos em que pouco ou nada se esclarece sobre
o tema, confundindo-se-os.
5.3.2 Judicialização da política
De início, sobreleva ressaltar que a questão acerca do que seja a
judicialização da política indica a interação entre pelo menos três elementos:
Direito, Política e Poder Judiciário.
Como já se demonstrou, sem embargo das várias facetas pelas
quais pode ser entendido o constitucionalismo contemporâneo, é possível
defini-lo como uma tentativa jurídica – isto é, do Direito –, de apresentar limites
ao poder político – ou seja, a política – por intermédio de Constituições. Nesse
sentido, veja-se o magistério trazido por Clarissa Tassinari:
Por certo, a própria noção de constitucionalismo, nas suas mais variadas acepções, seja como conjunto de mecanismos normativos e institucionais de um sistema jurídico-político que organiza os poderes do Estado e protegem os direitos fundamentais dos cidadãos; como tipo ideal para refletir sobre a realidade histórica de uma nação e
trazer à luz elementos da experiência política (mormente aqueles ligados à consagração de instrumentos e técnicas de limitação do exercício do poder político; ou como oposição a governo, dentre outras possíveis explorações do termo, demonstra, assim, o modo como se dá a articulação entre o Direito e a Política.85
Com essa assertiva inicial, busca-se reforçar a ideia de vinculação
entre Direito – especialmente o constitucional – e Política, sem que para tanto
se resvale na aceitação de que essa relação implique fatalmente no
decisionismo judicial. Aliás, admitir a inexpugnável imbricação existente entre
ambas as disciplinas sem compactuar com o decisionismo não só possível
como também necessário.
No fundo, cuida-se, por um lado, de compreender o elemento
político do Direito, reconhecendo-se que Direito e Política se inter-relacionam,
e, por outro, de se negar que a Política seja o elemento propulsor do
decisionismo no Direito. Deve-se a essa tênue distinção a existência de
grandes dificuldades de se conceber a judicialização da política e o ativismo
judicial como manifestações de fenômenos distintos.
Cabe pontuar, contudo, que, da mesma forma que a relação entre
Direito e Política possibilita a leitura acima exposta, reputar a Política como
fator externo de incidência eventual no âmbito jurídico enseja, por vezes,
posicionalmente extremamente oposto. Isso porque, se a Política deixar de ser
a força motriz para a constituição do conteúdo jurídico-constitucional para
adquirir contornos de argumento corretivo do Direito, o que não raras vezes
ocorre pela via judicial, o fenômenos que então se nos apresenta é a violação à
autonomia do Direito. É o que Lenio Streck denomina de “predador externo da
85 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 28.
autonomia do Direito”86.
Para o referido autor, o Direito possui uma autonomia que de
quando em vez tende a ser abalada por dois tipos de predadores: internos e
externos. Como exemplo de predadores externos, o aludido doutrinador cita a
Política, a Moral e a Economia. Confira-se:
Autonomia do direito não pode implicar indeterminabilidade desse mesmo direito construído democraticamente. Se assim se pensar, a autonomia será substituída – e esse perigo ronda a democracia a todo tempo – exatamente por aquilo que a gerou: o pragmatismo político nos seus mais diversos aspetos, que vem colocando historicamente o direito em permanente ‘estado de exceção’, o que, ao fim e ao cabo, representa o próprio declínio do ‘império do direito’ (alguém tem dúvida de que essa questão é retroalimentada permanentemente, mormente em países de modernidade tardia como no Brasil?).87
Advém daí a afirmação de que é devido a esse perfil de
intransponibilidade de imbricação entre Direito e Política que ativismo judicial e
judicialização da política tendem a ser confundidos.
A exemplo do que vem sido abordado pela doutrina, convém trazer a
lume o magistério de Luís Roberto Barroso, consagrado constitucionalista
brasileiro, que, ao versar sobre a problemática em comento, admite existir uma
dualidade na relação entre Direito e Política, em virtude de que haveria uma
autonomia relativa, já que o Direito se situa numa situação de ambiguidade em
que, a um só tempo, é e não é Política. Não seria Política porque não se pode
conceber a possibilidade de submeter-se “a noção do que é correto e justo à
vontade de quem detém o poder”88. Não obstante, seria política porque:
86 STRECK, Lenio Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 370. 87 Idem, ibidem. 88 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrátia. In: COUTINHO, Jacinto N. de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.).
(i) sua criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas leis; (ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos; (iii) juízes não são seres sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia e, consequentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que formula.89
O posicionamento trazido à colação, porém, revela-se insuficiente
para o correto enfrentamento do papel da Política no Direito, sendo inclusive
contraditório.
Em primeiro lugar porque, na tradição romano-germânica da qual o
Brasil adepto, o Direito surgido no raiar da modernidade é e sempre foi produto
da maioria, ou seja, resultado de legislação forjada na formação do processo
majoritário.
Em segundo lugar, o fato de a aplicação do Direito não ser
dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos
sentimentos e expectativas dos cidadãos resulta da atual conjuntura
hermenêutico-constitucional do Direito contemporâneo, consequência da
reformulação da atividade jurisdicional e da atividade interpretativa, nos moldes
já referidos nas abordagens acima.
Em terceiro lugar, o suposto de os juízes não serem seres
desprovidos de memória e de desejos, nem tampouco libertos do próprio
inconsciente e de qualquer ideologia, não são argumentos suficientes para dar-
se vazão a subjetivismos/decisionismos. O assunto é por demais complexo e,
bem por isso, impossível de aqui ser abordado com a detenção que requer;
entretanto, cabe pontuar que o argumento em tela tem acentuada grau de
Constituição & Ativismo judicial: limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 285. 89 Idem, ibidem, p. 30.
possibilidade de comprometimento da autonomia e da formação democrática
de que se reveste o Direito contemporâneo.
Em sendo o Direito Política, mas também não o sendo, a Política
adquire elevada carga de subjetivismo, de tal arte a, levada ao extremo, incidir
em fundamento para o fenômeno oposto: o ativismo.
Portanto, muito embora as linhas traçadas se proponham a
demarcar paralelo distintivo entre o ativismo judicial e a judicialização da
política, tem-se que a finalidade não é alcançada, pois não possibilita tal
distinção.
Para Barroso, no Brasil, a judicialização da política é decorrente de
um contexto em que preponderam três fatores; redemocratização,
constitucionalismo abrangente e incorporação de um sistema híbrido de
controle de constitucionalidade, nos quais se fazem presentes as modalidades
difusa e concentrada. Por conseguinte, o fenômeno surge como característica
indelével das transformações por que passou do Direito brasileiro após a
Constituição Federal de 1988. O contraponto entre ativismo judicial e
judicialização da política, destarte, dar-se-ia em função da diferença existente
nas causas que lhes originaram.
À continuação, o multicitado constitucionalista identifica o ativismo
judicial como “um modo específico e proativo de interpretar a Constituição,
expandindo o seu sentido e seu alcance” ou, ainda, como uma postura que
“procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem,
contudo, invadir o campo da criação livre do Direito”. Com supedâneo nos seus
ensinamentos, é possível sintetizar três condutas que lhe caracterizam: (i)
aplicação direta da Constituição, ainda que diante de inexistência de disposição
legislativa; (ii) declaração de inconstitucionalidade com base em critérios
menos rígidos; e, por fim, (iii) imposição de condutas ao Poder Público.
Resumindo-se, para ele o ativismo seria “uma participação mais ampla e
intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com
maior interferência no espaço de atuação dos outros poderes”90.
Entrementes, os critérios distintivos acima ilustrados não se afiguram
suficientes para a definição dos fenômenos em análise. Forçoso reconhecer-se
que as notas caracterizadoras do ativismo, nos termos propostos por Barroso,
devem, no atual paradigma constitucional, ser inerentes a qualquer juiz no
exercício de suas atribuições.
Na atual quadra histórica já não mais se concebe que o julgador não
deva mostrar-se preocupado com a aplicação imediata da Constituição, com a
realização de um efetivo controle de constitucionalidade (principalmente devido
ao grande número de leis inconstitucionais que convivem promiscuamente com
a Constituição sem que o Poder Judiciário reconheça essa lamentável
circunstância), e com o efetivo cumprimento das finalidades constitucionais (em
que pese essa constatação careça de prática adequada no Brasil, ensejando o
que Lenio Streck conceitua de “baixa constitucionalidade”91).
Todavia, a despeito de os critérios supramencionados não
possibilitarem uma apropriada distinção entre ativismo judicial e judicialização
da política, impossível discordar que leitura do fenômeno da judicialização da
política não seja produto das transformações ocorridas no Direito
contemporâneo, notadamente com o advento do texto constitucional de 1988.
Seria um despautério negar o deslocamento do polo de tensão do 90 Idem, ibidem, p. 279-280. 91 STRECK, Lenio Streck. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
Executivo para o Judiciário como uma das marcas da transição do Estado
Social para o Estado Democrático de Direito. A propósito, é sobremodo
elucidativa as observações de Lenio Streck:
Em síntese, é a situação hermenêutica instaurada a partir do segundo pós-guerra que proporciona o fortalecimento da jurisdição (constitucional), não somente pelo caráter hermenêutico que assume o direito, em uma fase pós-positivista e de superação do paradigma da filosofia da consciência, mas também pela força normativa dos textos constitucionais e pela equação que se forma a partir da inércia na execução de políticas públicas e na deficiente regulamentação legislativa de direitos previstos nas Constituições. É nisto que reside o que se pode denominar de deslocamento do pólo de tensão dos demais poderes em direção ao Judiciário.92
É por este caminho, pois, que podem ser fixados os primeiros traços
distintivos com vista a demonstrar as diferenças entre os dois fenômenos em
espeque.
A esse escopo Clarissa Tessinari acertadamente assenta que a
constitucionalização do direito após a Segunda Guerra Mundial, a legitimação
dos direitos humanos e as influências dos sistemas estadunidense e europeu
são fatores que contribuíram fortemente à ocorrência da judicialização do
sistema político brasileiro. Tais fatores ensejaram maiores participação e
interferência do Estado na sociedade, suposto sobremaneira acentuado em
face da inércia dos demais Poderes, o que consequentemente abriu espaço
para que a jurisdição suprimisse as lacunas por eles deixadas. O judiciário, por
conseguinte, passou não só a exercer um papel determinante na definição de
certos padrões a serem respeitados, mas também na concretização de direitos
aos cidadãos, reduzindo consideravelmente o déficit deixado pelos demais
92 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 190.
Poderes93.
Demais disso, é preciso destacar igualmente aquilo que pode ser
chamado de publicização da esfera privada, observada na vocação expansiva
que o princípio democrático tem implicado para com a crescente
institucionalização do direito na vida social, invadindo espaços até há pouco
tempo inacessíveis a ele, tais como certas dimensões da vida privada.
As novas Constituições, a remodelagem do Estado e a existência de
novos direitos (dos quais se pode destacar especialmente os metaindividuais)
tiveram por resultado a reformulação da relação entre os Poderes, no interior
da qual o Judiciário abandonou a inércia e o desdém em relação às
transformações sociais. É o que se extrai da lição de Luiz Werneck Vianna,
citado por Clarrisa Tessinari. Verbis:
[...] a democratização social [...] e a nova institucionalidade da democracia política, [...] trazendo à luz Constituições informadas pelo princípio da positivação dos direitos fundamentais, estariam no cerne do processo de redefinição das relações entre os três Poderes, ensejando a inclusão do Poder Judiciário no espaço da política.94
Ao que se vê, a judicialização não é uma postura a ser identificada
como positiva ou negativa; ao contrário, apresenta-se como uma constatação
de algo que ocorre na contemporaneidade por força da consagração e da
regulamentação constitucionais de direitos, donde decorre um maior número de
demandas que não poucas vezes acabarão no Judiciário. Noutras palavras, é
questão jungida à composição do cenário jurídico atual, e não referente à
necessidade de se criar um modelo de jurisdição fortalecido.
93 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 32. 94 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 190.
No caso brasileiro, não se pode olvidar que a questão da
judicialização ganha foros de expansão na medida em que a própria
Constituição Federal consagra no artigo 5.º, inciso XXXV95, o princípio da
inafastabilidade da jurisdição, o que vem a corroborar com a afirmação de que
a judicialização está atada à estruturação do ordenamento, e não à
necessidade de fortalecimento do órgão judicante.
Por todo o exposto, vislumbra-se que a judicialização, uma vez
possibilitada pelo próprio ordenamento jurídico, consagra-se como uma
questão social. Se assim o é, haverá de ser reconhecido que o fenômeno
independe do desejo ou da vontade do órgão julgador; em vez disso, a sua
origem se espraia numa série de fatores originalmente alheios à jurisdição,
tendo como ponto inicial um maior e mais amplo reconhecimento de direitos
aos cidadãos (sobretudo na Constituição), passando pela ineficiência do
Estado em implementá-los (o que no Brasil assume foros de dramaticidade,
haja vista que mesmo após 24 anos é evidente a elevada dificuldade em
cumprir o texto constitucional) e, derradeiramente, suscitando um aumento da
litigiosidade (característica das sociedades de massa).
De mais a mais, a diminuição da judicialização não depende apenas
de medidas realizadas pelo Poder Judiciário, mas, sim, duma plêiade de
medidas que envolvem um comprometimento de todos os Poderes estatais.
5.3.3 Ativismo Judicial
Com a Constituição Federal de 1988, a comunidade jurídica
95 XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
brasileira testemunhou o advento das transformações como a ampliação do
papel político-institucional do Supremo Tribunal Federal. Acresça-se a isso o
fenômeno da judicialização da política e ver-se-á que essas circunstâncias
repercutiram enormemente na forma de conceber a atuação dos Juízes e
Tribunais, o que acabou ocasionando a propagação do ativismo judicial. O
tema, porém, tem sido abordado sob diversos ângulos diferentes, gerando
assim certa fragmentariedade na sua compreensão.
Em meio às dificuldades de sistematização das concepções
existentes sobre o ativismo, notadamente em decorrência do seu número,
Clarissa Tassinari elenca algumas perspectivas sobre as quais tem sido
diagnosticado o tema:
a) como decorrência do exercício do poder de revisar (leia-se, controlar a constitucionalidade) atos dos demais poderes; b) como sinônimo de maior interferência do Judiciário (ou maior volume de demandas judiciais, o que, neste caso, configuraria muito mais a judicialização); c) como abertura à discricionariedade no ato decisório; d) como aumento da capacidade de gerenciamento processual do julgador, dentre outras.96
Elival da Silva Ramos identifica que o problema do ativismo envolve
ao menos três questões: o exercício do controle de constitucionalidade, a
existência de omissões legislativas e o caráter de vagueza e ambiguidade do
Direito. Para ele, o problema ao redor do ativismo tem como questão
subjacente a busca pela legitimidade do controle de constitucionalidade. Em
suas palavras:
[...] a questão da legitimidade (axiológica) do controle de jurisdicional de constitucionalidade, que é externa à argumentação estritamente
96 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 32.
dogmática (juízo de validade formal e de eficácia jurídica), passa a ter por foco não a jurisdição constitucional em si e sem a própria Constituição que consagra; um suma, o que caberia é se o modelo de Estado Constitucional de Direito Escolhido pelo constituinte seria o mais adequado para implantar uma democracia. 97
Fato é que o ativismo judicial e o controle de constitucionalidade são
questões que se implicam, já que tratar do ativismo também significa atentar-se
para a forma de exercício da jurisdição constitucional.
Em adendo à preocupação externada pelo referido autor, anote-se
que a questão do ativismo judicial não se restringe apenas à coerência, ou não,
da existência do controle de constitucionalidade com um Estado Democrático.
É preciso desvelar certa opacidade que acomete essa abordagem.
Não obstante a importância do tema da compatibilidade, em terras
brasileiras essa é uma questão superada, porquanto o texto constitucional de
1988, ao prever expressamente a possibilidade do exercício do controle de
constitucionalidade, dirimiu maiores elucubração quanto ao tema, assim como
estabeleceu um papel estratégico aos Juízes e Tribunais nesse aspecto.
Em se tratando de ativismo judicial, é preciso que a atenção esteja
voltada às respostas dadas pelo Poder Judiciário e não apenas para
compreender se o exercício do controle de constitucionalidade é coerente com
a existência de um Estado Democrático.
O controle de constitucionalidade está indissociavelmente presente
no pacto federativo estabelecido pela Constituição Federal de 1988, razão pela
qual importa discuti-lo nos moldes em que ele se dá, sendo correto falar que a
sua legitimidade reside precisamente na concretização da Constituição, no
sentido de que às demandas judiciais se deve atribuir respostas
97 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 25.
constitucionalmente adequadas. Diversamente, um controle de
constitucionalidade feito a partir da vontade ou da consciência do intérprete,
por não representar a concretização da Constituição e, sim, o seu
desvirtuamento, deixa porta entreaberta para o ativismo judicial.
Sendo o controle de constitucionalidade um tema que guarda
profunda relação com o ativismo judicial, mas se tratado, porém, de expediente
consagrado no âmago da formação do atual regime constitucional, a discussão
sobre o ativismo desloca-se para o modo como o Judiciário responde os casos
a ele submetidos. Noutro giro verbal, a questão sobre o ativismo judicial deve
gravitar em torno do modo – ou os termos – que o controle de
constitucionalidade é exercido, isto é, o modo como, ao interpretar, o Judiciário
vem decidindo.
Um ponto bastante sensível ao ativismo diz respeito ao controle
sobre as políticas de ação social do governo, uma vez que é de suma
importância que se evite que o Judiciário assuma funções do governo.
Destarte, o problema da abordagem deve ser deslocado do prisma
da averiguação de constitucionalidade da atuação dos demais Poderes, que já
se sabe de antemão ser possível, para inquirir-se acerca de como se dá este
controle; ou, dito de outra forma, esta revisão judicial.
Em relação à distinção entre ativismo judicial e judicialização da
política, leciona Lenio Streck que:
[...] um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado (ou de um conjunto de magistrados); já a judicialização é um fenômeno que exsurge a partir da relação entre os poderes do Estado (pensemos, aqui, no deslocamento do pólo de tensão dos Poderes Executivo e
Legislativo em direção da justiça constitucional [...]).98
Nesse rumo, a concepção de ativismo judicial pode ser sintetizada
na assunção, pelo Poder Judiciário, de competências que não lhe são
reconhecidas constitucionalmente.
Daí por que, em relação ao tema, é possível desenhar a seguinte
diferenciação entre ativismo judicial e judicialização do direito: (i) é impossível
negar-se o liame existente entre Direito e Política, o que, entretanto, não
autoriza falar-se em ativismo ou judicialização com base nessa imbricação; (ii)
é um equívoco considerar ativismo judicial e judicialização da política como
sendo fenômenos iguais; e (iii) a judicialização da política é um fenômeno
contingencial, exsurgente da insuficiência ou inércia dos demais Poderes, em
determinadas circunstâncias e independentemente da postura dos juízes,
enquanto o ativismo judicial é uma postura do judiciário que se situa para além
dos limites constitucionais a si atribuídos99.
5.4. O ALARGAMENTO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL E A CRISE DE
LEGITIMIDADE DOS ELEITOS
No atual contexto brasileiro, é possível destacar a chamada crise de
legitimidade dos eleitos como uma das causas que conduziram ao incremento
da atividade dos tribunais. No Brasil, não só é notória a lentidão com que o
Poder Legislativo acompanha a demanda por novas soluções que surge na
sociedade, mas também a sua quase ineficiência operacional e a sua
98 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 589, nota de rodapé 123. 99 Idem, ibidem, p. 51-56.
vassalagem em relação ao Executivo.
No âmbito do Legislativo, sói acontecer que o trancamento da pauta
e as disputas ideológicas dificultem a edição de leis contemporâneas e em
consonância com a realidade social. No Brasil, porém, o Congresso Nacional
tem se revelado pródigo em descumprir a Constituição, em seguir uma pauta
imposta pelo Executivo por meio de medidas provisórias e em editar leis
inconstitucionais100. Ainda, os escândalos assolam não apenas o Congresso,
mas também o governo, de modo a desencadear um processo de corrupção e
de descrédito popular.
Dia após dia há um bombardeio de novas denúncias e escândalos
que atingem tanto o Senado como a Câmara dos Deputados, sem contar os
casos de menor repercussão na casa de prefeitos e vereadores em todo o
país. Já não se pode dizer que há a ideal representação entre cidadãos e
eleitos, tal como deveria ser, a fim de prevalecer, realmente, a soberania
popular. O povo não se reconhece nos representantes e em suas escolhas.
Nesta brecha que tem crescido a atuação dos tribunais, porquanto
neste espaço os cidadãos têm encontrado um viés para verem atendidos seus
interesses e reivindicações. A consequência é que os julgadores têm tentado
suprir as omissões e déficits legislativos a fim de atender as necessidades que
emergem desse panorama, mas por vezes dando azo aos fenômenos da
judicialização e do ativismo.
Por outro lado, o Judiciário tem sofrido com o trancamento de suas
funções e a torrente de processos que tem de apreciar. Sobrecarregado por
100 “De cada 10 leis estaduais ou federais submetidas ao crivo do Supremo Tribunal Federal, oito são julgadas inconstitucionais, o que evidencia não só a baixa qualidade da produção legislativa, mas principalmente, o papel cada vez atuante do Judiciário brasileiro na defesa dos direitos do cidadão.”, in Anuário da Justiça Brasil – 2012. 4. ed. Consultor Jurídico, 2012.
ocupar os espaços deixados pelos demais Poderes, o Judiciário também passa
por um movimento de descrença pelos cidadãos em virtude da demora das
soluções buscadas e pelos altos custos. Apesar disso, é bastante democrático,
no sentido de permitir maior participação dos interessados nos deslindes do
processo por intermédio de garantias como a do contraditório.
5.5. A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DOS JUÍZES À LUZ DA
CONSTITUIÇÃO
Uma das grandes questões que merecem destaque quando se fala
da atuação alargada do Judiciário diz respeito à legitimidade democrática de
seus membros, já que eles não são eleitos como os membros dos demais
poderes.
Mauro Cappelletti lembra que a independência dos juízes é que faz
do Judiciário um poder forte e não sujeito a interferências dos demais poderes,
mas que, por outro lado, esse aspecto denota um lado preocupante para a
democracia, na medida em que “tanto mais são esses independentes, tanto
menos obrigados a ‘prestar contas’ das suas decisões ao povo ou à maioria
deste e a seus representantes.”101.
Em relação a essa legitimação democrática, convém enfatizar que
ela decorre da própria Constituição, uma vez que há no seu texto duas formas
de legitimação democrática: uma representativa (referente ao sufrágio pelo
qual os candidatos devem passar para representarem o povo) e outra referente
101 CAPPELLETTI, M. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabril Editor, 1993, p. 93.
a requisitos outros, tais como concurso público (CF, artigo 93, inciso I102).
É a própria Constituição que define que os julgadores não são
eleitos diretamente pela maioria, definindo outra forma de legitimação para o
cargo, que, para o bem ou para o mal, trata-se igualmente de forma de
legitimação para tomar decisões importantes ao regime democrático.
Outrossim, não se pode perder de vista que os juízes, por
decorrência da própria sistematização da jurisdição constitucional, exerce uma
imprescindível função contramajoritária, razão pela qual fosse a representação
deles de natureza política, os julgamentos correriam sempre o risco de se
pautarem pelo propósito dos eleitores, já que eventualmente poderiam ficar
vinculados aos desígnios da opinião pública – ou mesmo a maiorias eventuais
– que não raramente não reflete a decisão adequada (ou correta) sob o prisma
jurídico, máxime o constitucional.
Não virá a despropósito recordar que, dentre os Poderes do Estado,
foi ao Judiciário, em cuja cúpula, no Brasil, se encontra o Supremo Tribunal
Federal, que o constituinte originário confiou a guarda da Constituição103.
Desse modo, a função do Judiciário, sobretudo da Suprema Corte, é
a de decidir sobre a constitucionalidade das leis, e não buscar inspiração na
opinião pública; isso é função do Legislativo e do Executivo. À vista do papel do
Poder Judiciário, Juiz algum pode se ver na obrigação de agradar à opinião
pública quando decide; nem ser obrigado a aceitar recursos financeiros de
empresas para financiar sua campanha eleitoral.
102 I - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação; 103 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe.
Importante acrescentar, na esteira desses argumentos, que as
garantias asseguradas aos membros do Poder Judiciário também evidenciam
exatamente a necessidade de se prever um poder separado do governo a fim
de assegurar que suas decisões não representem os caprichos passageiros da
opinião pública, representando nada mais, nada menos, do que a Constituição
e as leis da República Democrática.
Além disso, a democracia, ao exigir procedimentos públicos e
institucionalizados que reconhecem e garantem direitos iguais a todos os
cidadãos de participação política, possibilita a existência de um Direito
reconhecido como legítimo. E tanto o processo legislativo quanto o processo
jurisdicional se dão por meio de procedimentos públicos e institucionalizados,
de forma que este último também garante efetivamente a produção legítima do
Direito.
De igual forma Mauro Cappelletti104 enxerga a legitimidade dos
juízes em outros pontos que não a representatividade democrática. Em sua
opinião, não faz sentido submeter todos os ramos à análise da maioria, pois
abrira espaço para uma ditadura. A legitimação da atuação dos juízes na
constituição de normas no momento da solução do caso concreto estaria na
obrigatoriedade da fundamentação das decisões, expondo a solução para a
apreciação pública, que no caso brasileiro se reflete em exigência
constitucional insculpido do artigo 93, inciso IX105.
Com efeito, é preciso indagar se a participação do povo não seria
104 CAPPELLETTI, M. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabril Editor, 1993, p. 94. 105 IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
ainda maior nos processos judiciais do que na burocracia administrativa ou
legislativa, sobretudo pela possibilidade de contraditório e controle
constitucional das decisões, e, mais recentemente, pela possibilidade de
participação nos processos de controle de constitucionalidade perante o
Supremo Federal a partir da figura do amigo da corte (amicus curiae) e de
audiências públicas. Por meio desses mecanismos o Judiciário permite aos
grupos marginais que tenham mais apoio do que lhes oferecem os poderes
políticos106.
Verifica-se, portanto, que a questão da legitimidade da atuação dos
tribunais, mais propriamente dos julgadores, não pode ser vista sob o prisma
da representatividade democrática, ao menos em nosso sistema em que a
carreira de magistratura segue ditames constitucionais que não incluem a
eleição como via de acesso.
Por fim, averbe-se que uma legitimação não deve confundir-se com
a outra; bem ao contrário, pois aos juízes é vedado o exercício de atividades
político-partidárias.
5.6. JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO, CRISE DEMOCRÁTICA E POSSÍVEL
ASCENSÃO DE UMA JURISTOCRACIA?
Até aqui foram identificados diversos fatores que desaguaram na
atual conjuntura, tais como a constitucionalização do direito (o pós-guerra), as
contribuições que consagraram a importância dos textos constitucionais que
deram lugar a uma ruptura histórica (a noção de constituição dirigente), a
106 CAPPELLETTI, M. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabril Editor, 1993, p. 94.
relevância da criação dos Tribunais Constitucionais europeus (especialmente o
alemão) e as transformações que ampliaram o acesso à justiça. Todos esses
foram fatores contribuíram para a judicialização na contemporaneidade.
Convém ressaltar, nesse rumo, uma possível consequência do
panorama advindo desses elementos: a ascensão duma possível juristocracia.
É possível apreender do exposto que, não só o Brasil mas também
boa parte do mundo, passam por um período que se caracteriza pelo
surgimento dum imaginário social, político e jurídico que deposita no Judiciário
a confiança para decidir questões importantes da sociedade. Sem que se faça
juízos de valor e, sim, uma representação a nível de ganhos e perdas, essa
constatação tem um duplo sentido simbólico: um positivo, consubstanciado no
predomínio das instâncias judiciais na garantia/proteção de direito, a partir da
mudança de elementos históricos como a grande deficiência de direitos aos
cidadãos, a omissão dos demais poderes e a posição de indiferença que antes
caracterizava o judiciário; e outro negativo, consistente na fragilização de
outros braços estatais, indicando assim uma sensação de existência duma
crise em certas instituições.
Clarissa Tassinari, fazendo alusão a C. Neal Tate e Torbjörn
Vallinder, afirma que há diversos motivos para justificar a crescente
judicialização, dentre os quais destaca:
a) transformação do modo de compreensão da democracia como “vontade da maioria” (democracy as majority rule and popular responsability), adicionando-se a importância do poder contramajoritário, que acaba tendo o Judiciário como seu represente; b) a afirmação da separação dos poderes, que facilitou a judicialização; c) a (falta de) implementação de políticas públicas, apesar da existência de um vasto rol de direitos assegurados constitucionalmente; d) a atuação de certos grupos de interesse ao utilizar a jurisdição como meio de expandir os direitos garantidos, pleiteando a inclusão de outros não afirmados na constituição; e) o
fortalecimento do controle de constitucionalidade, que, muitas vezes, aparece amplamente vinculado com o sistema político, no sentido de que acabou sendo utilizado pela oposição parlamentar para barrar as iniciativas do governo; f) a inefetividade das instituições majoritárias, fazendo-se referência tanto ao Legislativo quanto ao Executivo, devido à ausência de implementação de políticas públicas por parte deste, o que representa um problema na condução da administração; e, por último, g) a delegação de poderes pelas próprias instituições majoritárias ao Judiciário, criando-se, assim, ua situação de conveniência, em que, para não gerar controvérsias políticas para o congressista (ou administrador), ao invés de definir lei que proíbe (ou permita) certas questões de grande divergência social, atribui-se tal função aos juízes e tribunais, evitando a indisposição política, o conflito e a polêmica com os seus eleitores e, principalmente, com seus opositores.107
Tais fatores possibilitaram o deslocamento de atenção para o
Judiciário e, ademais, passam a configurar as principais características do
mosaico do novo constitucionalismo.
Jose Luis Bolzan de Morais alerta que, no Brasil, podem ser
acrescentados aos motivos acima elencados mais dois elementos:
primeiramente, o descompasso pelo qual atravessa a esfera política estatal,
que tenta conjugar “uma política de inclusão (democracia social) e uma
economia de exclusão (capitalismo)”; em segundo lugar e em decorrência
também do primeiro motivo, a existência duma sensação de desconforto,
originada da insatisfação popular com a ausência do cumprimento
(especialmente pelo Poder Executivo) das promessas insculpidas no texto
constitucional, produzindo assim um apelo à jurisdição e, destarte, causa uma
“sacralização”108.
Dá-se, contudo, que o afastamento da sociedade em relação aos
demais poderes tem o perverso condão de provocar um distanciamento entre a
107 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 50. 108 BOLZAN DA MORAIS, José Luis. Crise do estado e da constituição e a transformação espaço-temporal dos direitos humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 60-61.
democracia – entendida no sentido de participação política dos cidadãos na
tomada de decisões – e a criação do Direito, que de certo modo passou a, por
vezes, ser caudatário de definições judiciais não pautadas em critérios
jurídicos. Não se nega, com essa afirmação, a indissociável concepção de
democracia também como contramajoritarismo, que pode ser representada na
atuação de cortes e tribunais na proteção de direitos constitucionais
assegurados contra a existência de maiorias eventuais.
Há algum tempo já se rompeu com a compreensão de democracia a
partir de um critério baseado na regra majoritária, o que se deu com a transição
do conceito grego de democracia direta, no qual o povo ia às ruas para discutir
a coisa pública, para a democracia representativa, que agrega elemento social
ao plano político de exercícios de liberdades, até desembocar na noção de
democracia participativa, em que há a inclusão da participação direta.
Por mais que se tenha avançado no modo de conceber a
democracia, agregando-se a ela o seu hoje indispensável conteúdo
contramajoritário, hodiernamente ocorre uma espécie de terceirização dos
direitos, decorrente do sentimento de acomodação e apatia política e cívica e o
consequente apelo permanente à jurisdição, fatores que impedem a
consolidação de um sistema em que a sociedade é parte ativa.
Não se olvide ainda que, a despeito dessa constatação, tem-se visto
na jurisdição uma saída para a asseguração da democracia, seja majoritária ou
contramajoritária, mormente porque muitos grupos têm a ela recorrido para
garantir o procedimento democrático, o que tem motivado a instituição de
mecanismos democráticos na tomada de decisões pelo poder judiciário (por
exemplo, a figura do amicus curiae – amigo da corte).
Por fim, gize-se ainda o fato de que acontecimentos como o
recrudescimento do ambiente democrático, a crescente judicialização e a
morosidade do Poder Judiciário abriram espaço para vias alternativas de
solução de litígios.
Em suma, como se viu, a judicialização se trata de fenômeno
inexorável e contigencial, pois não é resultado da atuação de juízes, ocorrendo
independentemente deles, de modo contingencial, porque as questões passam
a ser submetidas ao Judiciário por conta da conjuntura do próprio sistema.
Por sua vez, o ativismo se refere a uma conduta adotada pelos
juízes no exercício de suas atribuições, vez que intrinsecamente relacionado à
postura do órgão judicial na tomada da decisão. Portanto, o ativismo é um
problema exclusivamente jurídico, isto é, criado pelo Direito, cujas
consequências se fazem sentir em todas as demais esferas. Daí por que o
ativismo judicial é um problema de teoria do Direito, mas especificamente de
teoria da interpretação.
No fundo, o ativismo releva uma postura dos juízes em relação ao
novo paradigma em que estamos inseridos e a ascensão do Poder Judiciário.
Não raras vezes os juristas tendem a referir-se à decisão judicial como um ato
de vontade, o que nos remete a Hans Kelsen.
De fato, Hans Kelsen, preocupado com a estruturação do sistema
jurídico, não chegou a problematizar a questão da interpretação, mas a
vontade aparece em seu texto como elemento característico do ato de
aplicação do direito. Confira-se
[...] através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela
ciência jurídica.109
Kelsen preocupava-se com a formulação de um estatuto
epistemológico para o âmbito jurídico, tendo em vista a tradição então reinante,
na qual o Direito encontrava dificuldade em firmar-se como conteúdo próprio e
frequentemente era confundido com questões morais, políticas e econômicas.
A partir disso, Kelsen cria uma distinção entre Direito e ciência do direito, fato
que impacta diretamente na sua concepção de interpretação jurídica, já que
para um dessas esferas ele estabelece um modo diferenciado de compreender
a questão hermenêutica:
Desta forma, existem duas espécies de interpretação que devem ser distinguidas claramente uma da outra: a interpretação do Direito pelo órgão que o aplica, e a interpretação do Direito que não é realizada por um órgão jurídico mas por uma pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica.110
É importante ressaltar que a preocupação com o ativismo não é
objeto de preocupação por Hans Kelsen, visto que, em sendo o ativismo
judicial é um problema hermenêutico, e como tal envolve a discussão de como
aplicar o Direito, esse debate não faz parte do centro das teorizações feitas
pelo aludido autor, cujo enfoque direcionava-se à construção da ciência do
Direito.
Contudo, vale a pena destacar que, para o mencionado autor, a
interpretação do Direito é um ato de vontade, e a partir da sua teoria incorpora-
se ao Direito essa concepção a propósito de momento tão fulcral quanto o da
109 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 249. 110 Idem, ibidem, p. 245.
interpretação.
Aliado a um cenário de intensa judicialização, marca do
constitucionalismo contemporâneo, o protagonismo judicial ocorreu ao mesmo
tempo em que tomou forma o critério de vontade do julgador no ato de
interpretação, o que refletiu um perfidiosa discricionariedade que conduz
facilmente ao ativismo judicial.
Lenio Streck é um dos primeiros autores a demonstrar criticamente a
dualidade existente no pensamento de Hans Kelsen e as suas consequências
para o Direito. Aliás, é devido à sua obra que se pode dar conta da vinculação
entre ativismo e ato de vontade do julgador, assim como os problemas
oriundos disso. Nessa linha, o ativismo judicial se diferencia da judicialização
da política, vez que naquele está incluído o problema da vontade como critério
decisório.
Não por acaso, Antoine Garapon afirma que a atuação jurisdicional é
acentuada de tal forma que os juízes passam a ser considerados como os
“guardadores de promessas”, passando a ser considerados como “últimos
ocupantes de uma função de autoridade – clerical e até paternal – abandonada
por seus antigos titulares”. Para ele, à noção de ativismo judicial e de governo
de juízes subjaz uma tentativa de redenção pela qual o juiz se torna inclusive
árbitro dos bons costumes111.
Garapon associa o ativismo judicial e a decisão judicial a um critério
de desejo, de vontade daquele que julga, nos seguintes termos: “O ativismo
começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é
dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, ao contrário, de a
111 GARAPON, Atoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Tradução de Francisco Aragão. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 40-43.
travar”. Ainda, aduz que o ativismo “revela-se sob duas formas: sob a de um
novo clericalismo dos juristas, se a corporação dos juízes for poderosa, ou,
pelo contrário, sob a forma de algumas individualidades sustentaras pelos
media, se a magistratura não tiver grande tradição de independência”112.
Vê-se, destarte, que a inter-relação entre escolha, desejo e poder
são elementos que se conjugam em torno do fenômeno do ativismo judicial.
Esse breve excurso serve ao propósito de pôr a descoberto que o
ativismo judicial tem origem, dentre outras causas, no modo como se dá a
interpretação em Direito. A teoria da interpretação, na atual quadra histórica,
carece de necessários acertamentos, sob pena de contribuir para o ativismo
judicial e, assim, comprometer o atual caráter democrático-constitucional do
Direito, pois, como visto, o ativismo judicial se caracteriza por decisionismos
praticados a partir de discricionariedade interpretativa por atos de vontade,
desejo e poder.
Advém daí a necessidade de perquirir-se para encontrar uma
resposta à seguinte indagação: a interpretação é um ato de vontade ou o
resultado de um projeto compreensivo no interior do qual se busca o melhor ou
o correto sentido para a interpretação?
112 Idem, ibidem, p. 54.
6. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, verifica-se que a discussão sobre o
constitucionalismo contemporâneo é tarefa sobremodo importante.
Com a jurisdição constitucional democrática surge um modelo de
Direito e de Estado jamais vistos anteriormente. Este novo modelo, por óbvio,
não está imune a críticas e a defeitos, sobretudo porque, assim como sói
acontecer ao novo e ao que nos é contemporâneo, sua leitura se dá com certa
dificuldade e não raras vezes de modo insuficiente, causando estranheza e
perplexidade.
Com supedâneo no trabalho realizado, pode-se reafirmar que as
noções de constituição dirigente, de constituição compromissária e da força
normativa da constituição não podem ser tratadas secundariamente, sobretudo
em países como o Brasil onde grande parte de texto constitucional de 1988
encontra-se pendente de efetivação, bem como por nos encontrarmos em meio
a uma fase de transição teórica em relação a vários institutos inaugurados pelo
Constitucionalismo Contemporâneo.
O termo Constitucionalismo Contemporâneo revela a adesão à crítica
do direito propugnada por Lenio Streck. Com esse mote busca-se, a um só
tempo, evidenciar o empreendimento de dois enfrentamentos: o primeiro
relativo à crítica à onda neoconstitucionalista; o segundo concernente à busca
de superação do positivismo jurídico. Nas palavras de Streck
Assim, para efeitos dessas reflexões e a partir de agora, passarei a nominar Constitucionalismo Contemporâneo (com iniciais maiúsculas) o movimento que desaguou nas Constituições do segundo pós-guerra e que ainda está presente em nosso contexto atual, para evitar os
mal-entendidos que permeiam o termo neoconstitucionalismo.113
No Estado Constitucional Democrático de Direito Contemporâneo, não
raro dá-se um deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do
Executivo para o plano da jurisdição constitucional. Isso não só se deu graças
a uma ascensão do Poder Judiciário brasileiro, possibilitada pelo novo
paradigma, mas também devido ao fato de que a inércia do Poder Executivo e
a falta de atuação do Poder Legislativo (e o Brasil tem visto bons exemplos
desses supostos) podem ser suprimida, por vezes, pela atuação do Poder
Judiciário, mediante a utilização de mecanismos jurídicos previstos na
Constituição Federal.
Vindo a confirmar os objetivos propostos, não virá a despropósito
pontuar, na senda do que preconiza Lenio Luiz Streck em seu livro “Jurisdição
Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito”, que constituem
algumas causas para os problemas que o cenário atual brasileiro se defronta
os seguintes: a dogmática jurídica dominante ainda está refratária ao giro
linguístico-hermenêutico; a despeito do grande intervencionismo estatal, não há
no país um Estado Social; prevalece um modelo liberal no Direito não só pelo
fato de existir vasta legislação infraconstitucional em desconformidade com a
Constituição, mas também pela grande dificuldade em enfrentamento de
questões de direitos transindividuais numa sociedade cada vez mais complexa
e de risco.
O constitucionalismo exsurgente marca o que se convencionou
denominar Estado Constitucional de Direito, o qual não se circunscreve à
proliferação de textos constitucionais a partir da segunda metade do século XX, 113 STRECK, Lenio Streck. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 37.
nem tampouco se limita à existência de uma postura jurisprudencial
diferenciada, vez que voltada à concretização de direitos fundamentais-sociais,
mas, em adição a isso, desvela a necessidade de criação de uma teoria
constitucional inovadora e que esteja atenta às transformações ocorridas no
constitucionalismo.
Muitos dos problemas identificados são objetos de estudos de teses
neoconstitucionalistas, que podemos destacar os seguintes pontos que
definem seus contornos: (i) a pretensão de serem pós-positivistas; (ii) o resgate
dos princípios na interpretação jurídica; (iii) reconciliação entre Direito e Moral;
e, por fim, (iv) o protagonismo judicial a partir da discricionariedade judicial114.
Demais disso, o que normalmente se denomina crise do Direito é,
originariamente, crise do Estado. Diz-se do Estado porque é ele quem o produz
o direito, não somente porque os textos são escritos pelo poder Legislativo,
mas também porque é implementado, em certo sentido, pelo poder Executivo e
suas normas são produzidas pelo poder Judiciário. Assim, todos os seus
produtos, inclusive o Direito, passam a exibir sinais dessa crise.
No Brasil atual, não somente se há vicejam políticas e institucionais
que fazem com que, virtualmente, todas questões políticas e moralmente
relevantes deságue no Judiciário, como também se fazem presentes as
condições interpretativas que autorizam que os juízes aceitem o encargo de
apreciá-las.
Por fim, é no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo
preconizado por Lenio Luiz Streck que, tendo em vista o problemas como o do
ativismo judicial, pode-se defender, a título de encerramento do presente
114 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 111.
trabalho, que o cenário jurídico atual está marcado por três desafios: (i) o
enfrentamento das recepções teóricas equivocadas e de suas mesclas
indiscriminadas pela doutrina brasileira; (ii) a superação da discricionariedade
judicial; e, por derradeiro, (iii) a preservação da autonomia do Direito.
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