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LENIO STRECK- O Q É ISTO -CAP 1 A 4

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COLEÇÃO O Q!JE É ISTO?

ResponsávelLenio Luiz Streck

S9140 Streck, Lenio Luiz

O que é isto - decido conforme minha consciência?-3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Editora,2012.

118 p.; 21 em. - (Coleção O Que é Isto? - 1)

ISBN 978-85-7348-778-7

1. Teoria do direito. 2. Filosofia do direito. I. Título.

CDU - 340.12

Índices para o catálogo sistemático

Filosofia do direito 340.12Teoria do direito 340.12

(Bibliotecária responsável: Marta Roberto, CRB-1O/652)

Lenio Luiz Streck

o conforme

Dnsciência?3° EDiÇÃO

IADgv~çjf1a.GADO'!Iedztora

Porto Alegre, 2012

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© Lenio Luiz Streck, 2012

Projeto gráfico e diagramaçãoLivraria do Advogado Editora

Projeto da capaClarissa Tassinari

Gravura da capa"A Torre de BabeI" por Pieter Bruegel, em 1563 1 ,,',/lI/tio Stein, pela escuta constante;

11I11111/1 do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuti-1I1'~III'I'illl, Clarissa Tassinari, quem mais tràbalhou;

o, h,': Fausto Santos de Morais, André Karamr'WH""tI" " N'I/I/(I/ Toma: de Oliveira).

1111111>('111, Rosane e Maria Luiza.

RevisãoRosane Marques Borba

Direitos desta edição reservados porLivraria do Advogado Editora Ltda.

Rua Riachuelo, 133890010-273 Porto Alegre RS

Fone/fax: [email protected]

www.doadvogado.com.br

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

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iSTO?......................... 9

\I ilh" IIlIlulógico-linguístico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 11

til I~II,I~ 1\111trrrae brasilis ou "de como fluem os sentidos1I1111111111111~UIIU". . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 20

\11\1"'111,IIS manifestações doutrinárias que des-cobrem11111jlldklnl 33

,I" "'\I{\III0I10 na especificidade: o germe da filosofia....................................... 57

1111'1111IIhjolo e suas consequências no e para o direito. 60\11li" 11"domínio da moral": onde fica a "consciência"? .. 67

1111111,"11-di' l'indil' interpretação e aplicação: de como o Direito111I'1'1IlIlI'llIlIlIlldade instrumental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 71

'''"1 d,1 , 1111111'11standard ou "compreendendo melhorIIhl~IIIII" 79

II~IIII"II uutlrrclarivísta e a aposta na antidiscricionariedade. 88

", 1'1 1111111'01111'as decisões judiciais é uma questão de1,\ "1\111' 111111Implica "proibição de interpretar" ! 93

li IIIIIIIIII'III\(Ií.l (c suas derivações) como uma'1iIi"l, .. plINlllvisLa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 97

illIl'. 1111dlll'I)I110 "para uma teoria ser pós-positivista, é111"11111I 'decido conforme minha. consciência'" 103

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ANDOA) QUE É ISTO?

'1""111IJ.t1lDurei Ribeiro que Deus é tão treteiro,d\lIditllNc sofisticadas, que ainda precisamosIIi' tiS cientistas - para desvelar as obvieda-

lu "nntureza" do óbvio estar no anonimato. EstáIlIdll. 1 ksobnubilado. Dizer que algo está aí.

I••II (ll'IglIlHaro que isto é ou "o que é isto". Essa"1"1'1 (ll:squisa.!lu" lIli~IIS que parecem óbvias é que o direito

IIIII(lII'XO.Afinal, para o bem e para o mal, há111111111 II IIOSilavida. Poder, política, violência,

1"'1 tlll do direito ronda a humanidade. Mas se-1"'1111' 11111 instrumento à disposição do poder? É11111 111" 11 direito a ponto de transformá-lo em um

,,/,1/,1.1' uplicaüvos?

!,,,'u'llI considerável da comunidade jurídicadifl'lhl (~urna racionalidade meramente (ou "pu-

11111111'111111 • no que não discrepa sobremodo deI~nl'"ndvlndas da sociologia ou até mesmo da fi-

li••1IIIIIIIIIIIIIIdode há muito na contramão dessa tese.1IIIItlIIIIIIN~'as atrocidades cometidas sob o pálio do1111 I,·, 1I0i'\ ensinado que o direito deve ser mais do

lIillll'. li" 1111'11 ou procedimento. É como dizer: depois•••••• "_1'" dll IltlMllivismoe~a moral do campo ju-

I"illil "IH' 1011.'" leito. Dito de outro modo: o direito nãoli IIIIIIIU'1I0S influx2s> das profundas transformações

I' 111111'11 dos paradigrnas filosóficos.I 1"1111' dessa constatação e/ou reconhecimento de

11 1(111' 1111111 filosofia do direito, teríamos que elaborar

líI' 1111 1 ('()NFOR.MEIllql 11\/ 9

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uma filosofia no direito, busco construir as condições de pubilidade para que possamos dar respostas às diversas pergunacerca da complexidade do direito.

Por que o pensar dos juristas seria diferente do pensarfilósofo? Por que o jurista teria um diferente "acesso" à "redade"? Vejam-se, por exemplo, algumas questões absolutamenintrigantes: se, no campo da filosofia, já não se acredita emsências, qual é a razão de os juristas continuarem a acreditar"busca da verdade real"? Ou: se a filosofia da consciênciacontestada e superada pelas diversas correntes linguísticas, P'que razão no campo jurídico se continua a apostar na "conscicia de si do pensamento pensante"?

É nesse sentido que, entre outras questões, a presente Cleção procura desvendar os meandros paradigmáticos que obnbilam o pensamento dos juristas. Busca-se fazer com o direitguardadas as perspectivas histórico-filosóficas, o que Heideggbuscou no campo filosófico com a pergunta: O que é isto - alosofia? (Was ist Das - die Philosophie)?

Mutat~;~o conjunto reflexivo que inicia comvolume O que é isto - Tecido conforme minha consciência'l, busca responder às mais diversas indagações acerca do (complexofenômeno jurídico. O objetivo final é contribuir para a repostauma pergunta que talvez seja impossível de responder: O queisto - o Direito?

Esse é o desafio que enfrentamos com o primeiro volumdesta coleção.

I SUJEITO E O GIRO}(J ICO- LIN GUÍSTI CO

_~M""'lIh I Iwidental, há uma angústia particular que111l'odcmos atravessar o "abismo gnosiológi-

hllllll'lIl das coisas? Como se dá nome às coisas?dI' o inlcio, houve um compromisso da filo-

IlIdl'.1I filosofia sempre procurou esse olhar que"l' 11';coisus são. Talvez a obra que melhor sim-11111IIl1gllsliante seja Crátilo, escrito por Platão

I ( I, "-"'SI' diálogo pode ser considerado a primeiradI! IIl1gllagemda história da humanidade.

11 dI' I\lIl'1"aleS,há mais dois personagens: Hermó-1'lItllIISsofistas, e Crátilo, que representa Herá-

111 (I lilll'. juntamente com Parmênides, inaugura1111dll "ser" e do "pensar", e do logos superando11111poek ser considerado o primeiro que proble-nltll dll linguagem. Platão, pela boca de Sócra-111111'1je'ílllll:nteduas teses: o naturalismo, pela qual111111U' por natureza (o logos está na physis), tese

!IÔll 1"1I por Crátilo, 1e o convencionalismo, posiçãoIIIId11(lI11' llcrrnógenes, pela qual a ligação do nome

Ih'llIllIllImente arbitrária e convencional, é dizer,lIN.hllll" IIgll,'flodas palavras com as coisas.

",;10 representa o enfrentamento de Platão comIIIIIIIIIN que podem ser considerados os primei-

Lenio Lui: Streck

I i,1 III111111111111do diz que Platão atribui ao personagem Crátilo um111I1j1l11t;nll dus palavras às coisas que não expressa adequada e

11"''''/1 ti" I trráclito. Com efeito, se os pré-socráticos - mormente!I,.II" 11 ~I", 1\ Plulílo e Aristóteles o esconderam, portanto, a posição

1,,1 "li' "I""lIhl'" strirto sensu, à de Heráclito. Cf. Palavra e verdade na,. ,II/,/II\(', Rlo de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 67.

COLEÇÃO O Q])E É ISTO? - ILenio Lui; Streck

111' IllIle'eINFOR.MEli 1:11 11\.'10 11

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11111111I C para facilitar a compreensão da pro-tllI filosofia -, é possível dizer que, para a

." "I'nlidos estav~as..c..oisas (as coisa~r11111111111Icssêncié), A met~õi entend~-1~1ll'11Ipor Aristóteles!éaciência primeira

'"rI' 11todas as outras o-'fundamento comum,I 11IdllSse referem e os princípios dos quais111nquilo que aqui interessa, a metafísica é

IIlIhl)lill.doutrina que estuda os caracteres fun-1111111Sl'll1o qual algo não é; se refere às deter-

dll Nl'J'.Estas determinações estão presentesmuueiras de ser particular. É um saber que

Ulllllll1,por isso, é a ciência primeira, pois seu,,"~'"IIII noS objetos de todas as ciências e o seu

li" 1\ vulldade de todos os outros princípios.OIIlHift 6 possível perceber uma superação",.1/,'/'(1/.1' et rei, assim como, mais tarde, em1111111.para quem os universais existem ape-

NAu I'KINteo universal nas coisas. Portanto, nãoII que se denomina de nominalismo, uma

IInil rum nomes, palavras, o faz sem que elas se11\Ir 1I,,;nocom os objetos.

iNSO6 extremamente relevante -, era im-I 1111111antes de Kant e, de certo modo, da "in-dI' IkSCHrtes. De fato, até Kant, o ser era um

IIIUlVII'Neque havia uma relação real entre serlIullo, 11Nt'ntido era dependente dos objetos, que

1l1'i"r. por isso, era possível revelá-lo,"t,,~"1I tllI IIh.letivismo (realismo filosófico) dá-se na

\I 1'1I1111\ modernidade). Naquela ruptura histó-11'11111'IIIllBbusca da explicação sobre os fun-

'''"Irlll 'I'rnta-se do iluminismo (Aufkliirung). OI é HIIII/\o essencialismo com uma certa presençai'illll () homem não é mais sujeito às estruturas.

III~IIIlIrnto da subjetividade. A palavra "sujeito"IdI' 11IlNHÜa "as sujeitar" as coisas. É o que se

•••••• IIIIU !Ir r,IHIucma sujeito-objeto, em que o mundo pas-•••• th-mlo (e tundamcntado) pela razão, circunstância que

IIClltnllIIno seja objeto destas reflexões - propor-

ros positivistas - defendiam o convencionalismo, isto é, qutre palavras e coisas não há nenhuma ligação/relação. Claro qcom isso, a verdade deixava de ser prioritária. O discurso passua depender de argumentos persuasivos (retórica e argumentaçOs sofistas provocaram, assim, no contexto da Grécia antiga, Urompimento paradigmático.

Utilizo Platão - sua obra Crátilo (e seu contexto políti- para demonstrar a busca pelo conhecimento e pela verdaAfinal, ali, quatro séculos antes da Era Cristã, já se discutiu"justeza dos nomes". Isto é, quais as condições de possibilidapara que os objetos tenham determinados nomes e não outroComo funciona a relação do sujeito com o objeto? Qual é o papda linguagem? Verdade ou método? Essas perguntas atravessaos séculos, experimentando diferentes respostas, representadpor diferentes "princípios epocais", que igualmente fizeramlonga travessia de duas metafísicas, chegando, nesta quadratempo, ao universo de posturas e teorias filosóficas que represetam as posições hoje consideradas como pós-metafísicas.

Cada época organizou sua concepção de fundamento.' F.zendo um pequeno escorço histórico destes vinte séculos, a busca de um fundamentum absolutum inconcussum veritatis está jna ideia platônica, na substância aristotélic'!, no esse subsitendo medievo (última síntese da metafísica clássica), no cogitinaugurador da filosofia da consciência, no eu penso kantiano,no absoluto hegeliano, na vontade do poder nietzschean'ãe"íi----=--imperati vo do dispositivo da era da técnica", em que o ser desapurece no pensamento que calcula (Heidegger).?

No campo do direito, tais questões permanece(ra)m difusas- e essa é uma questão ainda não superada pelos juristas - em ummisto de objetivismo e subjetivismo. Se a primeira "etapa" dolinguistic turn foi recepcionada pelas concepções analíticas dodireito, o mesmo não se pode dizer acerca daquilo que se poddenominar de "giro-ontológico-linguístico".

2 Trata-se do ser em vista da fundamentação do ente. Por isso, cada época possui o seufundamento. Cf. Heidegger, Martin. Tempo e Ser. Conferências e Escritos Filosoficos.Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 256-7.

3 Ver, para tanto, Stein, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. Ijuí: Unijuí, 2004.

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R.ME 13

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1111'ti qu« morre é a subjetividade "assu-"" da relação de objetos (refira-se que,

111111cqu ivocada do giro linguístico, quandoIvhllllk com o sujeito ou, se assim se qui-

IIll'lIl1du filosofia da consciência [s-o] comI 1111111N('I'humano e em qualquer relação de

cionou o surgimento do Estado Moderno (aliás, não é por uque a obra de ruptura que fundamenta o Estado Moderno tsido escrita por Thomas Hobbes, um nominalista, o que fao primeiro positivista da modernidade).

Já a ruptura com a filosofia da consciência - esse é o "nodo paradigma da subjetividade - dá-se no século XX, a partique passou a ser denominado de giro linguístico. Esse giro "lita" a filosofia do fundamentum que, ~, na,derni.gade, 2..araa consciência. Mas, registre-se, o giro ou guinnâo se sustenta tão somente no fato de que, agora, os problefilosóficos serão linguísticos, em face da propalada "invasão"filosofia pela linguagem. Mais do que isso, tratava-se do ingso do mundo prático na filosofia. Da epistemologia' - entendtanto como teoria geral ou teoria do conhecimento - avançavaem direção a esse novo paradigma. Nele, existe a descobertaque, para além do elemento lógico-analítico, pressupõe-se sepre uma dimensão de caráter prático-pragmático. Em Heideggisso pode ser visto a partir da estrutura prévia do modo .de sermundo ligado ao compreender; em Wittgenstein, (InvestigaçFilosóficas), é uma estrutura social comum - os jogos de liguagem que proporcionam a compreensão. E é por isso quepode dizer que Heidegger e Wittgenstein foram os corifeus desruptura paradigmática, sem desprezar as contribuições de AustiApel, Habermas e Gadamer, para citar apenas estes.

Destarte, correndo sempre o risco de simplificar essa complexa questão, pode-se afirmar que, no linguistic tum, a invasque a linguagem promove no campo da filosofia transfere o pr,prio conhecimento para o âmbito da linguagem, onde o mundo sdescortina; é na linguagem que se dá a ação; é na linguagem quse dá o-sentido (e não na consciência de si do pensamento pensante). O sujeito surge ~uagem e pela linguagem, a parti

111"1denomino de ontológico-linguísticol"l'Il'IlSÕes analíticas, principalmente do

ti ,11sujeito não é fundamento do conheci-Ilhllh' e busco socorro em Stein -, de uma

h'l 1I1I1016gico,no sentido de que nós somos,11I1I~,('lIles que já sempre se compreendem a

I, 11 l'lllllpl'eender é um existencial da própria1'"11111110,faz também parte da dimensão onto-1,1('li ('1110herrnenêutico-ontológico.

l•••• ~Ii~1111IIIIIUexplicitação: Heidegger elabora a1111111111ontologia fundamental. Essa palavraIIi ,\ identificada com a fenomenologia. Por

1IIII'IIologiué utilizada para descrever também1I11111'I'I\SI10do ser. Então, a fenomenologia não111111111'('111'1110,mas à questão do ser. E, na medi-

""'11111111do ser de que trata a fenomenologia diz111'••1111I nurológica que é prévia - antecipadora,11••1111do ser é algo com que já sabemos e ope-

"III'\I'IIHISos entes -, a ontologia de que aqui se'''"/1'1/0,

11qlll' 11lcnomenologia (hermenêutica) faz uma, "\'/'111) e ente (Seiende). Ela trata do ser en-

I~rll1do ser c do ente enquanto compreensão do111111111rudu) modo de ser. Classicamente, a onto-

, I' dlll'lIle. Aqui, a ontologia trata do ser ligadoItUtH'llllI1do ser-aí (Dasein), que é o compreenderI'Pt/lII' .umliçâo de possibilidade de qualquer tra-tlll" 'I'uuumcnto esse que pode ser chamado na11111'1.,110",mas sempre entificado. Essa ontologiah'hlITW'1' irá chamar de met-ontologia. Essa teo-,\I \TI /llIINontologias regionais (naturalmente, dos

4 Aqui é necessário explicitar, ainda que brevemente - sendo que já venho deixando issoclaro principalmente na 4' edição do Verdade e Consenso -, que não é "proibido" fazerepistemologia na herrnenêutica. Trata-se de níveis diferentes (nível hermenêutico e o n!vel apofântico), Para além da epistemologia geral e da tradição das teorias da consciênclu(onde não se trata[va] mais de um conhecimento metafísico, mas de uma metafísica doconhecimento, como bem lembra Stein), a partir do giro hermenêutico, passa-se a faludo universo do mundo prévio, que é também conhecimento, só que falta(va) explicitá-lo,Esse "vetar de racionalidade de segundo nível" - explicitativo - é perfeitamente compatível com a hermenêutica, desde que não se situe como elemento "construtor" do próprioconhecimento (mundo compartilhado na pré-compreensão),

COLEÇÃO O Q1JE É ISTO? - ILenio Lui: Streck 1514

L

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Desse modo, a ontologia ligada à compreensão do suma ontologia fundamental, condição de possibilidade dquer ontologia no sentid clãssico -qll~está ligadotificação e objetifica ão Assim, podemos dizêrque-a ont'- onginada na tfãdição hermenêutica - está ligada a um moser e a um modo de o erar do ser humano~- -

Lembremos que o próprio Ga amer reconhece que Hger somente ingressa na problemática da hermenêutica e ascas históricas com o objetivo de desenvolver, a partir delas,o ponto de vista ontológico, a pré-estrutura da compreensalgum modo, temos, então, uma ontologia ligada à questhermenêutica e, dessa maneira, indissociavelmente entreicom a pré-compreensão, elemento prévio de qualquer mani.ção do ser humano mesmo na linguagem.

Assim, pode-se falar de uma transformação do conceltontologia, para então ligar esse novo conceito ao problemlinguagem do ponto de vista hermenêutico. A explicitaçãosa dimensão ontológico-linguística irá tratar da linguagemsimplesmente como elemento lógico-argumentativo, masum modo de explicitação que já é sempre pressuposto ailidamos com enunciados lógicos.

Está aí a chave do problema: mesmo que o elemento Ico-explicitativo se apresente do modo como se apresenta nasrias analíticas, isto é, de modo único, determinante e autônoportanto, dispensando o mundo vivido, ele já sempre estárando com uma estrutura de sentido que se antecipa ao disce representa a sua própria condição de possibilidade. Porrazão, é preciso reconhecer que o elemento lógico-analíticpressupõe sempre o elemento ontológico-linguístico. É issoquero dizer quando me refiro ao giro ontológico-linguístico.

f Numa palavra: a viragem ontológico-linguística é o raiarnova possibilidáde de constituição de sentido. Trata-se da suração do elemento f!p;ói,~I}ttp.Ç>·;",coma introdução desse elemprático que são as estruturas prévias qJ.lecondicionam e pndem o conhecimento. Assim, a novidade é que o sentido não

ltará mais na consciência (de si do pensamento pensante), msim, na linguagem, como algo que produzimos e que é condide nossa possibilidade de estarmos no mundo. Não nos relac

16 COLEÇÃO o Q!}E É ISTO?Lenio Luiz SI

I!III1MobJeetos, mascom a linguagem, que éIIdlllll'dceose relacionamento; é pela lingua-

111 1\ Illiio.•I(lIIlIIIlI,tL· linguagem passa a ser entendida111miMII qine se colocaentre o (ou um) sujei-

li! r, ••1111, c(J)mo condiçãode possibilidade. A11\ dlldo c, jportann não pode ser produto de,\·r1".I'(.I'lIc!1.tiger),queconstrói o seu próprio

11111

I vi 1'1I!;t.lIrJ. onto16gico-linguística se coloca[uulquer ceíaçãojosítíva. Não há mais um

11I'11hflulr).a comunidade que antecipa qual-I" ""Irilo.hlluontil1mcmte, de uma "virada hermenêut~ ti'IOl'ollhccin::J.entojurídico, venho denominan-1/(1,'(/.Il1rtci'icae(m)Crise' - de Nova CrítiCa)

li! nuvo csti 10 de alordagem na filosofia pelaIrlu pl'ÍlIll.!il'ao reconhecimento de que a uni-

II!llIrrllsiio é condição de possibilidade da ra-Illul'lI/1l1lvuçã<?,). S

!1I1 Hrnlldo Stein, podemos afirmar que, supe-!lIlNIlIIIH uristotélico-emista e da filosofia da

Úil 1/ algo não serámais de forma direta eHO 1/ (lIgo é pela mediação do significado e

.,,/.If,' acesso ê:J.scoisa sem a mediação do sig-Il!lllexiste acesso às coisas sem a mediação

IInll p"tll'mos compreender as coisas sem que te-10dr l'"mpl'CelJoderqueacompanha qualquer tipo

tn medo de: compreender é exatamente esteIIIUrlltll11 cstl'utu:t'a fundamental do enunciado as-

l'IIlIlftl algo, algo comoalgo (etwas ais etwas).11 ;""1'111 que não temos aces~_aoÂ.obietos assim

lílll'l Nnlllprcde ~~i~partir de uIDaI1 rtiquanto cadeira, a árvore enquantQ árvo-

nll''''"~lIlldo HlloLnifice.~-

! "(III! I'tI,I"'. 8. cd. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2008.111/111 ;1 m'/lIl/1''''/tIÇt!O póso-metaflsica, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997,

I P i'll Hll;()NI10RMEII~jUAI 17

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\I Illldt' o significado é encontrado e produzido no con-1111\ li priori compartilhado. Trata-se, portanto, de algo

"'IIHIN mencionar, com Stein, como um transcendental( ) que é importante ressaltar aqui é que o problema daI" portanto, da manifestação da verdade no próprio ato

III 11110pode se reduzir a um exercício da vontade do in-(I"IHO!" conforme sua consciência), como se a realidadeu.u!« ti sua reoresauacaa subjgtiva':' , •..

Esses são os elementos mínimos necessários para entender-mos a questão "de como é possível compreender". Os paradig-mas conformam o nosso modo de compreender o mundo. E nadaestá a indicar que o direito tenha "ficado de fora" ou que possaestar "blindado" aos influxos dessas verdadeiras revoluções co-pernicanas que atravessaram a filosofia ao longo de mais de doismil anos da história ocidental.

Assim, em tempos de viragem linguística - ou, para sermais específico, em tempos de viragem ontológico-linguística-,não pode(ria)m passar despercebidas teorizações ou enunciadosperformativos que reduzem a complexíssima questão do "ato dejulgar" à consciência do intérprete, como se o ato (de julgar) de-vesse apenas "explicações" a um, por assim dizer, "tribunal darazão" ou decorresse de um "ato de vontade" do julgador.

Desde logo, cabe consignar que não se ignora o papel exer-cido pelo chamado "tribunal da razão" no contexto da críticakantiana do conhecimento: Com efeito, o sentido de crítica queaparece em Kant - justificar e fundamentar os conceitos com osquais operamos quando conhecemos - representa um salto para-digmático em toda história da reflexão filosófica. Para isso, ~dizia que era preciso colocar nossos juízos diante do "Tribunalda Razão". - - -- - -

O problema que aparece em Kant, e que acaba por tornarsua crítica não suficientemente radical, é exatamente a hipertro-fia em relação ao sujeito, à consciência. Ou seja, com Heidegger,é possível dizer que Kant aceitou acriticamente a ontologia da rescogitans de Descartes no momento em que o eu transcendentalrepresenta o ponto de unidade de todos os juízos, o repositóriofinal de todos os conceitos.

Isso quer dizer: a crítica kantiana cola o transcendental nosujeito e, nesse momento, ele passa a ser o lugar último e fun-damento da verdade. Na filosofia hermenêutica, no modo comoHeidegger efetua a analítica do Dasein em Ser e Tempo, o ele-mento transcendental é deslocado do sujeito para um contexto designificâncias e significados que será chamado de mundo. Nãoo mundo da cosmologia ou mundo natural (este foi excluídodo espaço da filosofia através do "encurtamento herrnenêutico"[Stein] realizado pelo filósofo), mas o mundo enquanto instância

,. I,I",It', lJur: Unijuí, 2006.11/11011 1IllIlIhllulllmento, ver meu Verdade e Consenso, posfácio da quarta edi-

, I ",, \f'I/,I'tI. Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas 4. ed. São1,'1111)

COLEçÃO O Q!)E É ISTO? - ILenio Luiz Streck 1918

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1IIIIdnN,em 1949.(Çom efeito, nos anos que11I~'nl)da lei fundamental, houve um esforçoIIl' du Bundesverfassungsgericht para legiti-"nollllhu sido constituída pela ampla partici-\hu. I>II(ti afirmação de umjus distinto da lex,I ih' IIlgllmentos que permitissem ao TribunalIh'I'I~t'lI'i()Sque se encontravam fora da estru-

111111Ih' A referência a valores aparece, assim,h' "nlu-rtura" de uma legalidade extremamen-1111111111'11,em alguma medida, o totalitarismo

2. As PRÁTICAS JUDICIÁRIAS EMTERRAE BRASILIS OU "ns COMFLUEM OS SENTIDOS Q!JEDESNUDAM UM PARADIGMA"

O, 111\0podemos esquecer que a tese da juris-!lHe", I'. III~hoje, de certo modo, preponderante

Il:IIIINtOm;iaque tem provocado historicamen-11 !,IIIIIOdu teoria constitucional ao modus in-

hu1111I IIh'11l110.Releva anotar, entretanto, que aII'II\'IIIIII'lIleteve, a partir do segundo pós-guer-111111"111111nu íormatação da teoria constitucional

11"1nl'lllplo, em Portugal, Espanha e Brasil.I"r 111111u-m sido dita é que o equívoco das teo-

I,II~I' 11111'1prctativas que estabelecem uma repris-tllI hutsnrudência dos Valores - mormente em

til 1111husca de incorporar o modus tensionanteIII~IIIn-ulidades (tão) distintas, que não possu-

Ililll) n/l mesmos contornos históricos acima re-IlI'dl'h.:o do Brasil, onde, historicamente até

t ••••• lhlud,· 1IIII'gucsatem sido difícil de "emplacar", a11111111'estabelecer as condições para o fortale-jiill,1Irk-mccrático de edificação da legalidade,

IIi I 1I1I"IllIlICional.1111111''',h'ix:IlTIà mostra essa problemática. Com

1'11111'111ti" Código Brasileiro de Processos Coleti-itl !()O /, Il'Iruía muito bem essa indevida recepção

/llIl/tI/'.I'PI'I:/,assungsgericht",o que se pode verdl"PIINitivos que objetivam a flexibilização da

'!III, 'w}!,lIldodo consequente aumento dos poderesItll" , IIWIIlSivc,produzir (sic) provas de ofício.

Como já se viu, deslocar o problema da atribuição detido para a consciência é apostar, em plena era do predomda linguagem, no individualismo do sujeito que "constrói" opróprio objeto de conhecimento. Pensar assim é acreditar quconhecimento deve estar fundado em estados de experiênciteriores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma reidireta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo p,além deles (Blackburn).

Isso, aliás, tornou-se lugar comum no âmbito do imaglrio dos juristas. Com efeito, essa problemática aparece explfou implicitamente. Por vezes, em artigos, livros, entrevistasjulgamentos, os juízes (singularmente ou por intermédio de acdãos nos Tribunais) deixam "claro" que estão julgando "de acdo com a sua consciência" ou "seu entendimento pessoal soo sentido da lei". Em outras circunstâncias, essa questão apandevidamente teorizada sob o manto do poder discricionário djuízes.

Não se pode ~$1Ila;rPa "tendência" contemporânea (braleira) de apostar no protagonismo judicial como uma das formde concretizar direitos. Esse "incentivo" doutrinário decorreuma equivocada recepção daquilo que ocorreu na Alemanha p-segunda guerra a partir do que se convencionou a chamarJurisprudência dos Valores.

No caso alemão, temos que a jurisprudência dos vaioserviu para equalizar a tensão produzida depois da outorga

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,llIllId,' IIOSEUA só se deu cinquenta e doisIl'IllI,II~,pOI' outro lado, que ativismo judicial nost!'lI" I'IH avessas num primeiro momento (de11111-('llllsiderar que o ativismo seja sempreh'i I I'11''<1de um ativismo às avessas foi a pos-11\(\ (''1ll1dunidensecom relação ao new deal,1III\lIIIdosde um liberalismo econômico do

11111VII,por inconstitucionalidade, as medidasInheh'l'idlls pelo governo Roosevelt. As atitu-

I tilVOJ' dos direitos humanos fundamentaisIIt\I\loque dependia muito mais da ação indi-1IIII,••iubclccida, do que pelo resultado de um"I'IIh' níivista. O caso da Corte Warren, por,"h' du ,'of)cepção pessoal de certo número deIIlIdod,' 11msentimento constitucional acercaI' l'Ij~IISt:il'cunstâncias não podem ser igno-

No elenco dos princípios informadores desse novogo, encontramos a instrumentalidade das formas, a flexihilda técnica processual, a proporcionalidade e a razoabilidurém, o princípio (sic) que mais chama a atenção é o do ••mo judicial", circunstância que desnuda não somente a incompreensão da noção de "princípio", como também o prndo - agora sim - princípio democrático. Ou seja, o Códnasce com um déficit de democracia ao deslocar o problconcretização dos direitos dos demais Poderes e da Soeiem direção ao Judiciário. Trata-se, evidentemente, de umparadoxo: como é possível que um Código, cuja pretensão Ié o incremento de mecanismos de acesso à justiça, aposte nvismo judicial como um dos seusldJ.Qlá:ó'QS'?É nesses momque os processualistas brasileiros - adeptos do instrumentalprocessual - acabam, implicitamente, dando plena razãobermas, quando este denuncia a colonização do mundo dapelo direito.

Aliás, aqui parece ser o momento ideal para esclarecerquestão que tem sido tratada de forma superficial em terrasilis. Trata-se do modo tabula rasa como tem sido empreo termo ativismo judicial? Note-se: nos Estados Unidos, ti

cussão sobre o governo dos juízes e sobre o ativismo judiacumula mais de duzentos anos de história. Quanto a isso, brecordar que o mesmo Marshall que instituiu o precedenteconsagrou a judicial review foi também quem iniciou, no cMcCulock v.s. Maryland, a tradição do judicial self restraSintomático, também, que a segunda decisão em sede de c

111111011sem aspas, demonstra também que a1II1111p,('11lsolipsista, o que se toma problemá-

tI!1IIIhUl l' os avanços passam a depender dasI~hllllll~dll suprema corte. De todo modo - e isso

llifll ,apenas diante da consagração de uma1I,,~tlllll'i()nalé que se pode falar no problema

11 1111'"1'11I ulcmão, que somente depois da instala-

I1I1~lIll1l'ionalpassou a discutir os problemas daI I\ldll'illl e as questões envolvendo a jurispru-

NII BIIISil,a tradição de uma jurisdição cons-h' !\IIII'Hde 1988, não existia efetivo controle11,,111'INSO é fundamental para o enfrentamento

9 Registre-se que essa incompreensão em tomo do ativismo judicial não se restrinproblema brasileiro. Também Peter Hâberle, prestigiado constitucionalista alemão,entrevista publicada no Conjur (Repúblicas jovens necessitam de ativismo judiciul,www.conjur.com.br.13.02.2009)entende ••sersaudável •• paraas ••novas repúblicas'ativismo judicial praticado pelos tribunais que, através de sua ação no tecido social, nga os demais poderes a agirem também. Creio, porém, que devemos ter cautela IIlunda afirmação de Hãberle. De pronto, consigno que, quando o judiciário age - desdi' lidevidamente provocado - no sentido de fazer cumprir a Constituição, não há que SI' ('nl,em ativismo. O problema do ativismo surge exatamente no momento em que a Cort.trapola os limites impostos pela Constituição e passa afazer política judiciária, seju Jlo "bem", seja para o "mal". Ademais, a discussão de Hâberle sempre precisará ser 1'11textualizada pelo simples fato de que seu contexto vivencial concreto é outro - jUl'lHJldência dos valores e todas suas consequências já aqui delineadas -, que é bem diferendaquele que se apresenta em terrae brasilis. Portanto, não me parece conveniente qu~ (juristas brasileiros "recebam" a entrevista como umapgê,ou louvação ao ativismo.

lI! h' I11hIl'Il' necessário: pode-se dizer que, tanto,••ti" 1(,/do sensu como na doutrina, são percep-

.'UIIIII, tini" tipos de manifestação do paradigma da1I~1I1l11.lu consciência), que envolve exatamente

It, IlIlntivismo, decisionismo e a admissão do•••• "1111\1 ill II primeiro trata do problema de forma mais

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explícita, "assumindo" que o ato de julgar é um ato de v(para não esquecer o oitavo capítulo da Teoria Pura dode Kelsen); ainda nesse primeiro grupo devem ser indudecisões que, no seu resultado, implicitamente trata(ra)m dpretação ao modo solipsista. São decisões que se baseiamconjunto de métodos por vezes incompatíveis ou incoerentsi ou, ainda, baseadas em leituras equivocadas de autoresRonald Dworkin ou até mesmo Gadamer, confundindo a ••ção" dos métodos com relativismos e/ou irracionalismos.

No segundo grupo, encontramos as decisões que bjustificações no plano de uma racionalidade argumentativespecial, os juristas adeptos das teorias da argumentação jumormente a matriz alexyana. Também nestas estará presproblema paradigmático, uma vez que as teorias da argução são dependentes da discricionariedade.'?

Alguns exemplos podem auxiliar na compreensão dblema. Em discurso de posse de novos juízes estaduais emminada Unidade Federada, a saudação não deixa dúvidado papel do juiz e do processo em terrae brasilis, não sendcil perceber, de igual modo, a confusão entre o positivismcgético e o positivismo normativo: "o 'processo' não é scninstrumento que o Estado entrega ao juiz para, ao aplicarao caso concreto, solucionar o litígio com justiça. Jus/iremana exclusivamente de nossa consciência, sem nenhum fI/,obsessivo à letra fria da lei"."

No plano do que podemos chamar de "aplicação jurld-judiciária", calha registrar parte de voto proferido em julgamo Superior Tribunal de Justiça:

"Não me importa o que pensam os doutrinadores. l.mqto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assunautoridade da minhajurisdição. (...) Decido, porém, ('011me minha consciência. Precisamos estabelecer nossa nunomia intelectual, para que este Tribunal seja respeinuk

111111'(l1'IIII'lIdimento de que os Srs. Ministros11111Mnrrins e Humberto Gomes de Barros1"''''"1' pensam assim. E o STJ decide as-

111111111111dI' seus integrantes pensa como esses11pl'lIsamento do Superior Tribunal de

/111 tnu (I'/{' se amolde a ele. É fundamental(I qlll' somos. Ninguém nos dá lições. Não....m/.· ..di' ninuuém"."

11111111I' necessário lembrar - antes mesmo de1111'11'111ido mais crítico - que o direito não é

1/, /1'11' a intérprete quer que ele seja. Portanto,I••qlll' 11Tribunal, no seu conjunto ou na indi-

mnponcntcs, dizem que éY A doutrina deve11NI'IIpapel. Aliás, não fosse assim, o que

1'" di' IIIiIfaculdades de direito, os milhares de11111I1'1/livros produzidos anualmente? E mais:1"1'1111(1I1ll0Scom o parlamento, que aprova as

lulI'1 com a Constituição, "lei das leis"?IIl1l1dllpelo Superior Tribunal de Justiça no11'11111upcnas explicita aquilo que está na raiz

IU'I','ssariamente, paradigmático. Veja-se,!lllIdo "OIllOa linguagem desnuda os elemen-h'llIlIH'illlldoo "lugar da fala" do interlocutor.lu. 1l'Npondendo a uma crítica por ter suspen-

111111111/,de primeiro grau de forma liminar, o11111111,,'1'"que possa ter se equivocado, mas,1111111111.,um erro in judicando e não erro inIIl'l "decido de acordo com a minha consciên-

1/1,'11 rntoudimento pessoal, como previsto noIIW"dI' l'roccsso Civil"."

"'''1''"1111'11411110apenas coiliã sua consciência passa aII'th'lIll1o imaginário de parcela considerável

ilill/illlU'N do Barros no AgReg em REsp n? 279.889/AL,julg.11111,'1'1'1,

!1~1I010IIl'dll1111lllrl,emseu ConceptojLaw,acereadasregrasdo1'0'111111'111111'pONilivistacontra o próprio deeisionismo positivista

!II 'li 111111111\"11questão.I !111 1i1111://WWw.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?

I" i1t~11'· Al'ÇSSO em: set. 2009. (grifei)

10 Remeto o leitor à terceira edição do meu Verdade e Consenso, op. cit., onde l'NNlI1blemática está explicitada amiúde.

11 Discurso do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomnn,10/01103, na posse de novos Juízes no Rio de Janeiro. Disponível em: hIlP://W\\Iamaerj.org.br.

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IIhl{~tjvllllldt', sistema inquisitório e poder, 1\ Hei vnriuçõcs de um mesmo tema. Ob-ÍlI ("'''NII questão nos casos de delimitaçãojllltt"IlH'1l10, em que o Tribunal justifica oI 1ri1l••II'1I11I1'que compete ao juiz, "exarnina-lulkillis, estabelecer, conforme necessárioIllIdl' dll pena aplicável, dentro dos limites

1Ii1'Hn11l " ""~/I'liva e o juiz lança o quanto enten-\. '/"11"/(/" .11)

1111111111'1111'similar, o argumento da discricio-1 l'IIIII'il'O em julgamentos do TJDF, assen-li 1111luixu ctária nos casos de proibição de

""11I1'_ ill'lI~IIS de jogos eletrônicos subordina-setil 11 uuuiedade judicial" e do TJSP, que, emh'IIIII'IIPllção de imóvel em caso de despejo,

IlIdl' 1111patamar de princípio."

(I'w I': onde ficam a tradição, a coerência1111'/( 'mia decisão parte (ou estabelece) um

dos magistrados brasileiros, o que se pode perceber emciamento do então Presidente do Superior Tribunal dMin. Costa Leite, respondendo a uma indagação sobre o rmento de energia elétrica que atingia o país, no sentidono momento de proferir a decisão (caso concreto), "ose subordina a ninguém, senão à Lei e à sua consciênciasim como em importante decisão do mesmo Tribunal emHabeas Corpus: "Em face do princípio do livre convencmotivado ou da persuasão racional, o Magistrado, no {'X,de sua função judicante, não está adstrito a qualquer cri,apreciação das provas carreadas aos autos, podendo vaicomo sua consciência indicar, uma vez que é soberano dmentos probatórios apresentados" .16

Do mesmo Superior Tribunal de Justiça, tem-se qucerto que o juiz fica ip'stÍito às provas constantes dos autos,menos certo que não fica subordinado a nenhum critério aptico no apurar, através delas, a verdade material. O juiz cré, assim, restituído à sua própria consciência" .17

Há, pois, um núcleo comum, uma espécie de holding,torna o tema recorrente: o juiz não se subordina a "nada",ser ao "tribunal de sua razão". Com efeito, "o deferimcntcompromisso à testemunha-e traditada e que não poderiatá-lo, a teor da letra d art. 208, rltima parte, do Código dcesso ~1lª1.Lnão vi~ia a çao penal, mas ~teríoriza-sc

c mera irregularidade, pois, não encerrada a instrução e dcnt.& ' ",' ,; ! '.,..( U / 'i!1,/. / _./,l, .. -~~í.íi~({!~íq)jorilf.v.r~d.Q~r.,pyp1ento XP9~l,VI,\(J~,o JUIZ, nao ada critérios de valoração apriorístico, atribuirá ao depoime.peso que sua consciência indicar, mediante fundamentação,Ou seja, em ultima ratio, em plena vigência da Constituiç1988, o próprio resultado do processo dependerá do que ti cciência do juiz indicar, pois a gestão da prova não se dá por"rios intersubjetivos, devidamente filtrados pelo devido proclegal, e, sim, pelo critério inquisitivo do julgador.

\I pCIIIII. () modo pelo qual se manifesta o11111iunul tO o sistema inquisitório, no processo

Itlll/llltvismo do juiz que encobre a filosofiaIVI' 'll\ nesse sentido:

II thuuul de Justiça do Estado do Paraná: "A11111jlllZ ( ... ) meios para completar sua con-II •mn tranquilidade de consciência, reali-I"",.,tn .I /I iz'':22

'li 11111111I1de Justiça do Estado de Minas Ge-ti! iI.",ItIlIlt{tl'io da prova, e só a ele, cabe, diante

1"11111"nfcri r decisão, determinar a realização11111Ijlll', lonnalmente e à primeira vista, seja o

111 h".1 \'11\' aparentemente idôneo";"

1'1' 111tlVOH/l999. (grifei)11 'IHIIHOmOOI.

,_ 11111111" II I 1~'/.S91-0/0.IIIlAlllllltl' 111II!OmO()8. (grifei)

111, ! 1\ 1II/IimO()O.(grifei)

15 Entrevista disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/englnl..Wtmp.area=368&tmp.texto=68172>. Acesso em: set. 2009. (grifei)

16 HC 94.826/SP, julgado em 17/0412008, DJe 05/05/2008, (grifei)

17 HC 16.706/RJ, julgado em 19/06/2001, DJ 24/0912001, p, 352. (grifei)

18 HC 11.896/RJ, julgado em 27/06/2000, DJ 21/08/2000, p. 173. (grifei)

26 ! I IIHlt'IlME 27

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III) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Ca-tarina: "o juiz é o intérprete da consciência social, pois contrapõea livre vaio ração moral à norma"."

Variações de um mesmo tema: não somente a interpretaçãoda lei depende da consciência do decisor, mas, também, a produ-ção da prova. Nesse sentido, registre-se decisão do Superior Tri-bunal Militar, pela qual ''provar é produzir um estado de certezana consciência do Juiz, para sua convicção sobre a existência- ou não - de um fato''.>

Há decisões paradigmáticas, que conseguem, em poucas@ palavras, fundir teses e teorias do paradigma representacional,como se pode ver na decisão do Superior Tribunal do Trabalho:

"( ...) a sentença é um ato de vontade do juiz como órgão doEstado. Decorre de um prévio ato de inteligência com o ob-jetivo de solucionar todos os pedidos, analisando as causasde pedir, se mais de uma houver. Existindo vários funda-mentos (raciocínio lógico para chegar-se a uma conclusão),o juiz não está obrigado a.4'~~~t~ todos eles. A sentençanão é um diálogo entre o magistrado e as partes. Adotadoum fundamento lógico que solucione o binômio 'causa depedir/pedido', inexiste omissãov.v

Nada surpreendente, mormente se levarmos em conta querecentes trabalhos acadêmicos - embora com pretensões de cons-truir racionalidades e até mesmo tecer críticas a decisionismose/ou voluntarismos - acabam por sújrage)"·teses como a constan-te no acórdão em tela e nos demais aqui referidos. 27 É o caso, por

24 TJSC: AC 37530/SC, DJ 03/08/2000. (grifei)25 STM: Apelo 49563/RS. (grifei)

26 TST _Ia Turma - EDRR 6443/89 - Ac. 2418/90- DJU 15.02.91

27 Efetivamente, há que se reconhecer que essa é uma questão que vem sendo reforçadaem teses de doutorado e dissertações de mestrado nos diferentes cursos de pós-graduação.Por todas, refira-se a tese de doutorado de Maria de Fátima S.G.M. de Oliveira, que refor-ça o imaginário de apoio ao solipsismo judicial ao defender, por exemplo, que "a liber-dade de investigação crítica corresponde à interpretação dada pelo magistrado à norma".A autora entende que, "hoje, o juiz não se submete à letra fria da lei. Deve, ao contrário,interpretá-Ia e suas decisões devem ser harmonizadas ao sistema jurídico, mesmo que,aparentemente, afrontem a lei. O juiz exerce atividade criadora do direito e com margemde liberdade." (grifei) Mais ainda, sustenta que a discricionariedade nada mais é, senão,a impressão pessoal do juiz e a possibilidade de escolher a melhor interpretação dessesconceitos indeterminados (dano irreparável, relevante fundamento, etc.) ao caso concreto

28 COI.EÇÃO O QlJE É ISTO? - 1Lenio Lui; Streck

exemplo, de Eduardo Cambi," que, a partir de uma mixagem deuuurizes e autores, sustenta que o juiz, nos casos difíceis, possuitanta margem de discricionariedade quanto o legislador, comoe, a um, o legislador tivesse discricionariedade nesta quadra da

história e, a dois, não fosse a discricionariedade, exatamente, aporta de entrada dos decisionismos e voluntarismos.

Mais ainda, embora sua obra tenha pretensões pós-positi-vtstas (ou antipositivistas), o que, registre-se, é extremamentelouvável, Cambi insiste em teses que são contrárias (ou estão emcontradição) ao que propõe, como, por exemplo, quando sustentaque a sentença é ato de vontade do juiz - repristinando, cons-.icnte ou inconscientemente, o pai do positivismo normativista(Kelsen) - e que "sentença vem de sentir" (sic). Ao fim e ao.abo, reforça o protagonismo judicial que pretende combater, aofazer coro com Eduardo Couture, no sentido de que "a dignidadedo direito depende da dignidade do juiz", isto é, de que "o direitovalerá o que valham os juízes'' .29

De ressaltar, ademais, a opção explícita de Cambi pelo so-lipsismo: "A decisão judicial reflete características pessoais dojuiz (a sua personalidade, o seu temperamento, as suas experiên-cias passadas, as suas frustrações, as suas expectativas etc.) oudos jurados (...)".30 Por fim, sustenta a necessidade de que o juiz.faça ponderações, o que, também neste caso, coloca-o em campodistante da hermenêutica filosófica, da teoria integrativa dworki-niana e do antirrelativismo habermasiano.

Exatamente nessa linha é que não se pode (e não se deve)subestimar as mixagens teóricas e a confusão acerca de posiçõesassumidas por determinados jusfi16sofos, que acabam sendo ci-tados fora de contexto, como se rêforçassem o paradigma subje-ti vista. Por todos, veja-se:

"Segundo a moderna doutrina de Dworkin, 'Teoria da Acei-tação Racional', no julgamento do caso concreto, o julga-

para atingir a ordem jurídica justa". (grifei) Cf. Discricionariedade Judicial nas medidasprocessuais provisórias. São Paulo, PUC, 2007, p. 201 e segs,

28 Cf. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Direitos fundamentais, polfticas pú-blicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p, 272.

29 Cf. Carnbi, Eduardo. Jurisdição no processo civil. Compreensão crítica. Curitiba: Ju-ruá, 2002, p, 83-4.

30 Cf. Neoconstitucionalismo e neoprocessua/ismo, op. cit., p. 124 e 125.

O QlJE É 15TO- DECIDO CONFORMEMINHA CON5CltNCIA? 29

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dor há de trabalhar, construtivamente, os princípio e regrasconstrutivas do direito vigente, para reforçar a segurançajurídica e a certeza do direito, proporcionando e aviventan-do na sociedade o sentimento de justiça. O julgador deve tero espírito imbuído da certeza de que o ordenamento jurídi-co é mais complexo do que o simples conjunto hierarquiza-do de regras, defendido pelos positivistas. O sentimento dejustiça, que deve revestir o espírito do juiz, é o único capazde assegurar a solidez da ordem do Estado Democrático deDireito"."

Neste último caso, é 4SWçiétt2o' advertir para o fato de queDworkin não aposta em interpretações que exsurjam do "espíritodo juiz" e tampouco acredita no juiz como "único capaz de asse-gurar a solidez da ordem do Estado Democrático de Direito".

Construiu-se, assim, um imaginário (gnosiológico) no seioda comunidade jurídica brasileira, com forte sustentação na dou-trina, no interior do qual o "decidir" de forma solipsista encontra"fundamentação" - embora tal circunstância não seja assumidaexplicitamente - no paradigma dar.yJ9.sófia dá,cón~ci"ên,ç;9'.Essaquestão assume relevância e deve preocupar a comunidade jurí-dica, uma vez que, levada ao seu extremo, a lei - aprovada de-mocraticamente - perde(rá) (mais e mais) espaço diante daquiloque "o juiz pensa acerca da lei".

Em determinados julgamentos, toma-se impossível ao "su-jeito da modemidade" esconder o solipsismo que o sustenta,dando-se, assim, razão a Wemeck Vianna, quando afirma que asituação do juiz brasileiro é ambígua:

"ele é criatura de uma carreira burocrático-estatal, porémse concebe como um ser singular, auto-orientado, como sea sua investidura na função fizesse dele um personagem so-cial dotado de carisma. Daí que, embora recrutado fora dapolítica, isto é, pelo instituto do concurso público, elenãoo~~nquadre ~amente no(ethos .burocrãtíco pr~nizado)por Max Wefier". 5 r- -

~31 TJMG - Apelação n. 1.0596.03.013587-2/001.

32 Cf. Corpo e alma da magistratura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1997,p.295.

30 COLEÇÃO O Q1JE É ISTO?-ILenio Luiz Streck

A leitura da seguinte decisão demonstra o acerto da pesqui-NU comandada por Vianna:

"A judicatura não sobrevive como instituição permanenteda sociedade apenas com o saber, com a técnica, com a ex-celência do conhecimento teórico. Todos esses ingredientesnão são suficientes para um Juiz. De nada adianta conhecera doutrina, as leis, a jurisprudência, se, dotado de qualidadesintelectuais excepcionais, não tiver honestidade, vida iliba-da, reputação imaculada, não somente perante os destinatá-rios do seu ofício, mas, igualmente, perante os seus pares.Antes de ser poesia, a alma .mpa de um Juiz, a austeridade..,que impõe a toga que ves a reclusão da sua consciên~~d@. press...õgL~sQrt§..::. (.:..)".33.\

Na mesma linha, vale lembrar decisão que escancara ummisto de "filosofia da consciência" e "jusnaturalismo", em umaliçãojudicial de busca e apreensão de menor: "Haverá ele [o Juiz]de acomodar-se numa regra não escrita (non scriptum), mas ina-111 na morada da consciência dos que julgam (sed nata), que re-monta às origens da humanidade, com fincas no direito natural:jus est arts boni et aequi (o direito é arte do bem e do justo)"."Resta a pergunta: haveria uma "consciência inata" naqueles que[ulgam?

Permito-me insistir: trata-se de uma questão paradigmáti-eu. Veja-se, nesse sentido, acórdão da mais alta Corte do País

e o aspecto simbólico que dela decorre - em que, por uma desuas Turmas, por maioria de votos, o Tribunal indeferiu habeascorpus" em que se alegava falta de demonstração da urgência naIirodução antecipa<da_<k-.P-IDva_te.SJ~hal de a~u~ão __decre-tuda nos termos do~o de Processo Penal,/ anteI revelia do paciente/réu. O Supremo Tribunal deixou assentado

que a determinação de produção antecipada de prova está ao:;{i-\'I',trip do juiz, que pode ordenar a sua realização se considerarcvistenies condições urgentes pará. que isso ocorra,

III'I'OCCSSO n? 1995.001.00763 - Apelação - Julgamento: 11/04/1995 _Ia Câmara Cível1'lItl, (grifei)

11 l'roccsso n? 1993.001.04007 - Apelação - Julgamento: 07/12/1993 - 1" Câmara CívelI'IIU, ~1\ .'\'\'(1- Habeas Corpus n° 93.157, de 23.09.2008~

I , uuE É ISTO - DECIDO CONFORMEMINIIA CONSCIÊNCIA? 31

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Observe-se, nesse julgado, a imbricação entre o sistema in-quisitório e a filosofia da consciência (questão paradigmática,pois): a determinação de produção antecipada de prova fica acritério (discricionariedade, livre apreciação, para dizer o me-nos) do juiz. O Min. Lewandowski votou vencido, concedendoa ordem, porque vislumbrou ofensa ao dever de fundamentar asdecisões judiciais e às garantias do contraditório e da ampla de-fesa, uma vez que a decisão que determinou a produção de provaesteve "fundamentada" tão somente no fato de o paciente não tersido localizado (nas palavras do Ministro, "a decisão fora deter-minada de modo automático").

Apenas o voto de Lewandowski mostrou-se acertado, vezque fundado no sistema acusatório. Os votos vencedores apenasfortalecem o protagonismo judicial, apostando na "boa escolha"- discricionária - do magistrado. Com efeito, parece razoávelafirmar - a partir de uma abordagem hermenêutica - que, quandoa lei estabelece que o juiz pode determinar a produção antecipa-da das provas consideradas urgentes." sua decisão deverá estarfundamentada/justificada com todos os detalhes, além de passarpelo crivo do contraditório e da ampla defesa, como, aliás, bemfrisou o voto vencidp. Além disso, a urgência de que fala a leiprocessual deve ser considerada levando em conta toda a históriainstitucional das decisões anteriores que tratam dessa temática,respeitando a coerência e a integridade. Ou seja, "provas consi-deradas urgentes" não é um enunciado assertórico. A "proposi-ção jurídica" só terá sentido em cada caso concreto. A aplicaçãoautomática do dispositivo (tábula rasa) abre espaço para a deci-são que o juiz julgar mais conveniente. E isso é reforçar o "sub-jetivismo/discricionarismo" dos juizes."

36 Anote-se, aliás, que o Anteprojeto praticamente reproduz o atual art, 366 (provas con-sideradas urgentes). Portanto, de nada adiantará um novo CPP se o juizo sobre a "urgên-cia" fica ao "alvedrio do juiz". Veja-se, aqui, a relação entre o "novo" texto e o "velho"texto, e de como o novo poderá se tornar velho a partir de uma interpretação que coloqueo solipsismo judicial no topo da condição de sentido.

37 Lembremos, por relevante, que a fundamentação/justificação/motivação das decisõesé um direito fundamental do cidadão (aliás. assim considerado pelo TEDH; Sentenças:a) de 9.12.1994 - TEDH 1994,4, Ruiz Torija e Hiro Balani-Eâ, parágrafos 27 e 29; b)de 19.02.1998 - TEDH 1998.3, Higgins e outros - Fr, parágrafo 42; e c) de 21.01.99- TEDH 1999.1, Garcia Ruiz-ES. No mesmo sentido. ressalte-se a posição do TribunalConstitucional da Espanha (sentença 20/2003. de 10 de fevereiro).

32 COLEÇÃO O Ql)E É ISTO? - 1Lenio Luiz Streck

3. NAS NESGAS DA LINGUAGEM, ASMANIFESTAÇÕES DOUTRINÁRIASQ1JE DES-COBREM O DNA DOSOLIPSISMO JUDICIAL

Para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina in-dica o caminho para a interpretação, colocando a consciência ouI convicção pessoalcomo norteadores do juiz, perfectibilizandoI~HHa"metodologia" de vários modos. E isso "aparecerá" de vá-das maneiras, como na direta aposta na:

a) interpretação como ato de vontade do juiz ou no ~~õ"sentença como sentire";

b) interpretação como fruto da subjetividade judicial;c) interpretação como produto da consciência do julgador;d) crença de que' o juiz deve fazer a "ponderação de valo-

rcs" a partir de seus "valores";e) razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato volunta-

rista do julgador;f) crença de que "os casos difíceis se resolvem discriciona-

riamente";g) cisão estrutural entre regras e princípios, em que estes

proporciona(ria)m uma "abertura se sentido" que deverá ser pre-enchida e/ou produzida pelo intérprete.

Há ainda outras hipóteses - e cito tão somente algumas quercpresentarn, simbolicamente, uma-forte parcela do imaginário[urídico - de manifestação de filiação ao paradigma da subje-íividade (esquema sujeito-objeto). Vejamos: para Maria Helenal>iniz,38"conhecer é trazer para o sujeito algo que se põe como

IK Cf', Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva. 1998. p. 12

l' scgs.

() O.lJE É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA? 33

Page 18: LENIO STRECK- O Q É ISTO -CAP 1 A 4

objeto", consistindo, assim, "em levar para a consciência do su-jeito cognoscente algo que está fora dele (...) tomando-o presenteà inteligência". Essa filiação ao paradigma subjetivista já estavapresente em processualistas como Moacyr Amaral dos Santos,que dizia que "a sentença é ato de vontade'',> Já Tourinho Filhovai dizer que o juiz, através da sentença, "declara o que sente",«deixando explicitada a sua adesão à tese da adeaquatio rei et in-tellectus. Observe-se, nesse contexto, que "filosofia da consciên-cia" e "discricionariedade judicial" são faces da mesma moeda,sendo muito comum essa junção ser feita a partir da tese _ explí-cita ou implícita - de que a interpretação (ou a sentença) "é umato de vontade", reconstruindo-se, assim, o discricionarismo/de_cisionismo sustentado por Kelsen na sua Teoria Pura do Direito.

Refira-se, que, não raras vezes, deparamo-nos com umamixagem (ou sincretismo) de paradigmas inconciliáveis, como éo caso da "junção" do paradigma metafísico-clássico (adeaqua-tio intellectus et rei) e a filosofia da consciência (adeaquatio reiet intellectus) ,4 I embora, ao fim e ao cabo, sempre prevaleça a"livre convicção" ou "a vinculação à consciência do julgador".

Interessante notar como essa problemática atravessa os di-versos campos ideológicos, isto é, a tese do "protagonismo" e do"poder discricionário" do juiz é professada por vezes por camposteóricos distantes entre si. É o caso de Emane Fidélis dos Santos=e Rui Portanova. Assim, o primeiro vai dizer que, "para assegu-rar a imparcialidade do Juiz, é ele dotado de completa indepen-dência, a ponto de não ficar sujeito, no julgamento, a nenhuma

autoridade superior. No exercício da jurisdição, o juiz é sobera-1111. Não há nada que a ele se sobreponha. Nem a própria lei...".

Já o segundo," notoriamente ligado às teorias críticas dodireito - registre-se, destacado jurista e um dos expoentes do di-Il'ito alternativo nos duros tempos do ancién régime (ao lado deoutros não menos importantes, como, por todos, Amilton Buenodl' Carvalho, Márcio Puggina, James Tubenchlak e Antonio Car-los Wolkmer) -, não discrepa da posição de Fidélis dos Santos,quando diz, por exemplo, que "enfim, todo homem, e assim tam-hém o juiz, é levado a dar significado e alcance universal e até(runscendente àquela ordem de valores imprimida em sua cons-clência individual. Depois, vê tais valores nas regras jurídicas.( 'ontudo, estas não são postas só por si. É a motivação ideológi-('li da sentença". Embora Portanova reconheça que "o sentenciar )alternativo não é autorização para motivações arbitrárias" e que()"o juiz deve manter-se dentro de um sistema jurídico, mas comliberdade para assumir posição diante da lei, na busca de tradu-/',iro sentimento de justiça da comunidade", mais adiante concor-da com o próprio Fidélis dos Santos, citando-o, na linha de que 'I

"não há nada que se sobreponha ao juiz, nem a própria lei". Emoutra obra não menos relevante, Portanova" assevera que "é difi-,ctl acreditar em algo que possa restringir a liberdade do juiz de\lecidir como quiser. É preciso reconhecer realisticamente: nem ,.(." lei, nem os princípios podem, prévia e plenamente, controlar()julgador", E complementa: "Depois de tantos anos, os juízesaprendem como moldar seu sentimento aos fatos trazidos nos au-tos e ao ordenamento jurídico em vigor. Primeiro se tem a solu-<'ão,d~l!!]J.s..sebusca a leipara.fgndamentá-la".45~ -.

43 Cf. Motivações ideológicas da sentença. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,1997.

44 Cf. Princípios do Processo Civil. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.(grifei).'15 Veja-se como essa tese ainda é dominante no imaginário dos juristas, isto é, deque primeiro se interpreta para, só depois, apliêar (ou primeiro, interpretamos, depois,compreendemos e, finalmente, aplicamos, repetindo as três subtititates: intelligendi,explicandi e dpplicandi). Trata-se da cisão metafísica entre interpretar e aplicar, postu-ra que pode ser vista explicitamente em texto de Celso Bastos e Samantha Meyer-Pflug(A interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitu-cionais. In: Silva, Virgílio A. da (OI:g.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Ma-Ihe~,~uando dizem que a ~rpretação é uma atividade "qUe'precede, necessariq.mente,_a_aplicação da lei" e\cjue "é a partir da interpretação que

Ql)E É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA? 3S

\

39 Cf. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1985,vol. Ill, p.19.

40 Cf. Prática de Processo Penal. 4. ed. Bauru: Jalovi, 1976, p. 243.

41 Mixagem desse jaez é feita por Marco Antonio de Barros (A busca da verdade noprocesso penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 286), quando, ao mesmotempo em que afirma ser a verdade "a adequação ou conformidade entre o intelecto ea realidade", sustenta que esta é fruto da inteligência humana, porque "moldada pelojuízo racional e não pela prova ou evidência que pode ser verídica ou falsa". Entretanto,no plano da avaliação das provas, diz que a "convicção do juiz é livre, submete-se a suaprópria consciência; porém, a sua decisão deve ser fundamentada nas provas colhidas nocurso do processo". Veja-se que a ressalva no sentido de que a decisão, embora "de livreconvicção", deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo, seria rele-vante, não fosse exatamente a contradição entre "a livre convicção" (solipsismo judicial)e a "fundamentação nas provas processuais".

42 Cf. Manual de Direito Processual Civil: processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo:Saraiva, 1997, v. 1.

34 COLEçÃO O Q1JE É ISTO?-lLenio Luiz Streck

Page 19: LENIO STRECK- O Q É ISTO -CAP 1 A 4

,,11111\1\lIl\ticla na conhecida expressão de queIIII",/I/,('/ações (o que, de certa forma, virou

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I~Ora, se não existem fatos e, sim, somente interpretações, é possível dizer "qualqu,I'\llsa sobre qualquer coisa", inclusive negar a história, a memória e a tradição ...! Contl~~o, simplesmente afirmo: só há fatos porqu~' há interpretações e só há interpretaçÕ'porque há fatos. Trata-se de uma circularidade (hermenêutica). Sobre esse ponto pern)\O-me remeter o leitor à conferência que proferi na TV Justiça (Programa Aula Magpdisponível no portal "justube" em: <http://WWW.youtube.com/watch?v:OSdYOmqFjf.

Acessado em 3 ago 2010.49 Sobre essa questão, Cf. Stein, Ernildo. A Caminho de ltlna Fundamentação pós-meJlsica, porto Alegre: Edipucrs, 1999, em especial o capítulo 10. -

Õ O\l' t ISTO _ DECIDO CONfORME 7M.INHA CONSCIÊNCIA?

Não há dúvida, pois, de que essa questão da interprou da sentença como "ato de vontade" atravessa os diversospos ideológicos do direito. Veja-se o modo como Paulo Quum do enalistas mais críticos do país, não consegue se Id(ess) heran a eis niana o decisionismo. Com efeito, CItigo re ente, Queiroz sustenta que "sempre que condenamoabsolvemos, fazêmo-lo porque queremos fazê-Ia, de sortenesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atosverdade, mas atos de vontade". Segundo o penalista baiano, li

rece evidente que, ordinariamente, por mais que tenhamos nuvos, legais ou não, para condenar, condenamos porque queremcondenar e porque julgamos importante fazê-lo; inversamenpor mais que tenhamos motivos, legais ou não, para absolvabsolvemos porque queremos absolver e julgamos importanfazê-Io"." Veja-se: embora substancialmente a contribuição crtica de Queiroz seja inegável, neste ponto corre o risco de provocar retrocessos democráticos nas manifestações processuais dPromotores e Juízes.

De se consignar que o autor publicou uma resposta às crl-ticas que lhe teci na primeira edição desta obra." Na sua réplica,argumenta que o livro "O que é Isto - decido conforme minhaconsciência?" combate uma espécie de juiz Robinson Crusoé- o que, diga-se de pronto, é uma compreensão reducionista doque seja o solipsismo ~íi~é'flúSt<í~t,){este sim alvo (constan-te) do meu combate teórico - e pergunta, retoricamente, se essejuiz solipsista existe realmente (sic), Com isso, Queiroz quer nosconduzir, em meio a sua sofisticada '~§;si1A-fl?1,à ideia própria do

a norma jurídica abstrata passa a incidir nas situações fáticas". É possível constatar,com relativa facilidade, que, por trás dessa tese subja: o esquema sujeito-objeto e aadesão à metodologia jurídica tradicional, além da defesa (kelseniana) de que a "in-terpretação feita pelos juízes é um ato de vontade". Refira-se, como contraponto, que,paradigmaticamente, a hermenêutica jurídica (filosófica) coloca-se na contramão dessacisão entre interpretar e aplicar, problemática que discuto em: Hermenêutica (jurídica):compreendemos porque interpretamos ou interpretamos porque compreendemos? Umaresposta a partir do Ontological Turn. In: Streck, Lenio Luiz; Rocha, Leonel Severo(orgs.). Anuário do programa de pós-graduação em direito da Unisinos. São Leopol-do: Edições Portão, 2003, p. 223-27l.

46 Cf. O que é direito? Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/o-que-e-o-direito> Aces-so em: 16 fev. 2010. Os grifos são meus.47 Cf. Critica da Vontade de Verdade. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/critica--da-vontade-de-verdade> Acesso em: 3 ago. 2010.

COLEÇÃO o QlJE É ISTO? - 1Lenio Lui: Streck36

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1111111I'lIl1tida na conhecida expressão de que1I1,'I/'I'/'I{/çljes(o que, de certa forma, virou

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hlll'll'IlIl'iollismo, em todas as suas formas, des-11'1IlIlh'l'ipndor da compreensão e o elemento de

I"h'llI'" di' mundo, que não são determinados porlIu\j\'ldlllll, Inas.,estão ligados ~ um a pri.or~~t6n::.i- ~tli !'IIII!1l1to,nao se trata de dizer que o SOhpsIsmo rx,11111'lI' I'Hse conceito - filosófico que é - tivesse ~.

1111111111-di' remissão a um objetQ. empiricamente,,"p~II-I\I\() é U!J engodo teórico; el~~exfste dilJ:-111I,1:1/1111'111que se constitu~tir da moderni-

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•• 1'111 1III'lllHlvc negar a história, a memória e a tradição ... ! Contra11111111 ~I'I 11/1 1'1I1os porque há interpretações e s6 há interpretações

111 •• "I 1111111cil'cularidade (hermenêutica). Sobre esse ponto permi-1•• 1 '" I 111111'1111Ii,;111 que proferi na TV Justiça (Programa Aula Magna)1 111,,111111''' 1\111: <hllP://WWW.youtube.com/watch?v=osdyomqFjf4>

11\11I" •• 1 I '111,111. Hl'lIildo. A Caminho de uma Fundamentação pós-meta-

I ,111"11/1.11)\)9,cm especial o capítulo 10.

Não há dúvida, pois, de que essa questão da intcrtou da sentença como "ato de vontade" atravessa os diverstpos ideológicos do direito. Veja-se o modo como Pauloum do Renalistas mais críticos do país, não onsegue Sd(ess) heran a els niana o ecisionismo. Com efeito,tigo re ente, Queiroz sustenta que "sempre que condenaabsolvemos, fazêmo-lo porque queremos [azê-lo, de sonesse sentido, a condenação ou a absolvição não seioverdade, mas atos de vontade". Segundo o penalista baiunrece evidente que, ordinariamente, por mais que tenhamovos, legais ou não, para condenar, condenamos porque (//1

condenar e porque julgamos importante fazê-to; inversapor mais que tenhamos motivos, legais ou não, para al.absolvemos porque queremos absolver e julgamos inufazê-lo":" Veja-se: embora substancialmente a contribuiçtica de Queiroz seja inegável, neste ponto corre o risco decar retrocessos democráticos nas manifestações proccssuPromotores e Juízes.

De se consignar que o autor publicou uma respostaticas que lhe teci na primeira edição desta obra." Na sua rargumenta que o livro "O que é Isto - decido conforme Iconsciência?" combate uma espécie de juiz Robinson- o que, diga-se de pronto, é uma compreensão reducionlstque seja o solipsismo ~w.1Íé~~~~~{este sim alvo (conte) do meu combate teÓIi~o - e pergunta, retoricamentc, Sjuiz solipsista existe realmente (sic). Com isso, Queiroz quconduzir, em meio a sua sofisticada ~,s'fl:t.t,;4f??,à ideia própri

a norma jurídica abstrata passa a incidir nas situações fáticas". É possível ('011.com relativa facilidade, que, por trás dessa tese subjaz. o esquema sujeilll.II"I~"adesão à metodologia jurídica tradicional, além da defesa (kelseniana) de 1\"terpretação feita pelos juízes é um ato de vontade". Refira-se, como contrapoutuparadigmaticamente, a hermenêuticajurídica (filosófica) coloca-se na contrumancisão entre interpretar e aplicar, problemática que discuto em: Hermenêutica (111I1,compreendemos porque interpretamos ou interpretamos porque compreendcmna?resposta a partir do Ontological Turn. In: Streck, Lenio Luiz; Rocha, Leonel(orgs.). Anuário do programa de pós-graduação em direito da Unisinos. Suo 1,111do: Edições Portão, 2003, p. 223-271.

46 Cf. O que é direito? Disponível em: <http://pauloqueiroz.netlo-que-e-o-dirciloso em: 16 fev. 2010. Os grifos são meus.

47 Cf. Critica da Vontade de Verdade. Disponível em: <http.z/pauloqueiroz.net/crl-da-vontade-de-verdade> Acesso em: 3 ago. 2010.

RME

3637

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"""'\'11" ,/" POssibilidade da mOdernidade! E essa inven1/1/"" lI/odu:G efeitos (e drásticos).

ize1'que o solipsismo epistemológico não existe é fa111:JÇade Wittgenstein II (que falava da imPossibilidade da li

guagem Privada, Cümbatendo o isomorfismo da tradiÇão e o.liPSismo linguístico da mOdernidade) ou então de fIeidegg

er

, qdemonstrou que o Dasem se manifesta eXistencialmente comser-com-OS-oUlros, que estâ sempre engajado em um Projeto dmundo compartilhado.

fIá também OUtra afinn"Ção que causa perplexidade. DiQueiroz: "qUe a interpretação do direito constitoi Om ato d,Vontade, nem mesmo Ke/sen hesitou em reconhecê_lo, apesar d,

pretensão de poreza e de estrita obediência do jOiz à lei. ". Ora,se Kels

enreconheceu, é POrque ele sabia que não existe "estrita

O""di~nc~~à leP' no plano do que ele chegou a chamar "POlíticajUdlclana . Por 1Sso, é preCiso ficar (bem) alerta jlara UmPOnto~SSenclal para ~ c~mpreensão de Kels~n. Ele era um neoposi_OV1Sta,ctrcunstanc1a Ignorada pela maioria de seus intérpretes- pelo menos em terrae brast1is. A "PlIreza" kelseniana inSistonão se dava no plano do "direito", mas sim no nivel ';"'ta-lin:gO[stico, da "ciéncia do direito" (de u"'" vez POr tOdas, enten_da-se - e, neSSePonto, ecoam Comigo as VOzesde Warat e LeonelRacha: para Kels

en, a ciência do direito é orna meta-lingoagemSobre a linguagem objeto).

Numa palavra final: aCreditar que a deciSão jUdicial ou apromOÇão de arqUivamento (ou UmPedido de absolViÇão feitospelo MP) são PlOdutos de Umato de Vontade (de POder) nos COn_duz inexoravelmente a Um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria)da VOntade peSSoal (se o Iuiz qUer fazer, faz; se não quer, nãofaz ... !). Logo, a próPria demOcracia não depende(ria) de nadapara além do que algUém quer ... ! FUjamos disso! Aliá~ a her-

~. menéutica surgiu ~xatame~te para sUperar o ~~il%' que1470 SUje1tofuz do objeto (abas, "so e o que é afilosofia da cOns_ciência ... !).

Além do Pllradig"", epistemOl6gico da filOSOfia da cOns_~~iência, é POSSíve~também perce""r, nos diversos autores refe-11I:I

7

)'ndos, a sUbsotUlçao de Um vetor de raclOnalidade estruturante

(pré-COmpreenSão) por uma raCionalidade meramente inslrumen_

38 Co~

Lenio Lltiz Strecl,

I, illflico-argumentativa. Com efeito, é preciso reconhecer, junto1111Slcin, que só fazemos filosofia no estrito sentido da palavrauulusive filosofia no direito - se essa filosofia é uma filosofia

!t, stundard de racionalidade. Isso quer dizer que, para que o filo-11111Itenha resultados1~~~~lfgf.i, é necessário que o filósofo (ou

11I~11f()sofo)saiba se movimentar no interior de um paradigma1111I~(J)I'icoou de algo que, com Lorenz Puntel, podemos chamar11' uuadro referencial teórico. É a partir desse quadro referencial

"//1'0 que o trabalho filosófico irá articular suas construções noIIIH'tange a uma teoria da verdade, uma teoria da realidade, umaIllIp,lItlgeme uma ideia de método."

Na matriz teórica aqui defendida, fica claro que há paradig-IIIIINdistintos sendo trabalhados. Nesse contexto, exsurge umaIjlH'Nlãoque não pode ser ignorada, ou seja, a de que a dogmática1111(dica" permanece aferrada a um paradigma estruturado, de se-1IIIdonível, que se assemelha, muito grosseiramente, aquilo que

1111 produzido pela filosofia analítica e suas adjacências. Não é,jlllis, um vetor de racionalidade estruturante, de primeiro nível,1111110é o caso da filosofia hermenêutica ou da hermenêutica fi-ItlsMica.

Explicando melhor: para as teorias analíticas, o problema daliuguagem começa e termina na tarefa de crítica dos conceitos. Ou~('ja,o problema da linguagem se resolve a partir de uma "clarifi-rução" ou de uma melhor colocação do conceito. Antes do concei-10 não há nada (e por isso é que a dogmáticajurídica trabalha com"conceitos sem coisas"). Daí que é muito difícil, no interior delima filosofia analítica, filosofar com a história da filosofia. Para11hermenêutica, todavia, a história da filosofia é condição de pos-sibilidade do filosofar e a representação sintático-semântica dos.onceitos é.apsass a superfície de algo muito mais profundo.

) Vale dizer: aquilo que é dito (mostrado) na linguagem ló-~ico-conceitual que aparece no discurso apofântico, é apenas asuperfície de algo que já foi compreendido num nível de pro-r .---.l ".

\0 Nesse sentido, ver Stein, Emildo. Filosofia e Hermenêutica Jurídica. Os standards deracionalidade. ln: -. Exercícios de Fenomenologia. Limites de um paradigma. ljuí:Editora Unijuí, 2004, p. 150-170.

~I Entendo a dogmática jurídica - nos moldes em que é dominante em terrae brasilis -como um conjunto de discursos prévios de fundamentação que dispensam o mundo prá-tico, buscando dar todas as respostas antes das perguntas.

Q\)E É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA? 39

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é condição de possibilidade da modernidade! E essa invençãoainda produz efeitos (e drásticos).

Dizer que o solipsismo epistemológico não existe é fazertroça de Wittgenstein II (que falava da impossibilidade da lin-guagem privada, combatendo o isomorfismo da tradição e o so-lipsismo linguístico da modernidade) ou então de Heidegger, quedemonstrou que o Dasein se manifesta existencialmente comoser-com-os-outros, que está sempre engajado em um projeto demundo compartilhado.

Há também outra afirmação que causa perplexidade. DizQueiroz: "que a interpretação do direito constitui um ato devontade, nem mesmo Kelsen hesitou em reconhecê-to. apesar dapretensão de pureza e de estrita obediência do juiz à lei.". Ora,se Kelsen reconheceu, é porque ele sabia que não existe "estritaobediência à lei" no plano do que ele chegou a chamar "políticajudiciária". Por isso, é preciso ficar (bem) alerta para um pontoessencial para a compreensão de Kelsen. Ele era um neoposi-tivista, circunstância ignorada pela maioria de seus intérpretes- pelo menos em terrae brasilis. A "pureza" kelseniana, insisto,não se dava no plano do "direito", mas sim no nível meta-lin-guistico, da "ciência do direito" (de uma vez por todas, enten-da-se - e, nesse ponto, ecoam comigo as vozes de Warat e LeonelRocha: para Kelsen, a ciência do direito é uma meta-linguagemsobre a linguagem objeto).

Numa palavra final: acreditar que a decisão judicial ou apromoção de arquivamento (ou um pedido de absolvição feitospelo MP) são produtos de um ato de vontade (de poder) nos con-duz inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria)da vontade pessoal (se o juiz quer fazer, faz; se não quer, nãofaz ... !). Logo, a própria democracia não depende(ria) de nadapara além do que alguém quer ... ! Fujamos disso! Aliás, a her-

~. menêutica surgiu exatamente para superar o 1á1g7~njél~m;e.wt~que"><lJ) o sujeito faz do objeto (aliás, isso é o que é a filosofia da cons-

'A • ')czencza.....

Além do paradigma epistemológico da filosofia da cons-~ciência, é possível também perceber, nos diversos autores refe-~/ridos, a substituição de um vetor de racionalidade estruturante

(pré-compreensão) por uma racionalidade meramente instrumen-

38 COLEÇÃO o QJ)E É ISTO? - 1Lenio Lui; Streck

tal, lógico-argumentativa. Com efeito, é preciso reconhecer, juntocom Stein, que só fazemos filosofia no estrito sentido da palavra

inclusive filosofia no direito - se essa filosofia é uma filosofiade standard de racionalidade. Isso quer dizer que, para que o filo-sofar tenha resultados1~~<if:f!;í,$, é necessário que o filósofo (oujusfilósofo) saiba se movimentar no interior de um paradigmarilosófico ou de algo que, com Lorenz Puntel, podemos chamarde quadro referencial teórico. É a partir desse quadro referencialteórico que o trabalho filosófico irá articular suas construções noque tange a uma teoria da verdade, uma teoria da realidade, umalinguagem e uma ideia de método."

Na matriz teórica aqui defendida, fica claro que há paradig-mas distintos sendo trabalhados. Nesse contexto, exsurge umaquestão que não pode ser ignorada, ou seja, a de que a dogmáticajurídica" permanece aferrada a um paradigma estruturado, de se-;undo nível, que se assemelha, muito grosseiramente, aquilo quefoi produzido pela filosofia analítica e suas adjacências. Não é,pois, um vetar de racionalidade estruturante, de primeiro nível,.orno é o caso da filosofia hermenêutica ou da hermenêutica fi-losófica.

Explicando melhor: para as teorias analíticas, o problema dalinguagem começa e termina na tarefa de crítica dos conceitos. Ouseja, o problema da linguagem se resolve a partir de uma "clarifi-.ação" ou de uma melhor colocação do conceito. Antes do concei-to não há nada (e por isso é que a dogmática jurídica trabalha com"conceitos sem coisas"). Daí que é muito difícil, no interior delima filosofia analítica, filosofar com a história da filosofia. Para1\ hermenêutica, todavia, a história da filosofia é condição de pos-sibilidade do filosofar e a representação sintático-semântica dos.onceítos é.apsaas a superfície de algo muito mais profundo.

) Vale dizer: aquilo que é dito (mostrado) na linguagem ló-gico-conceitual que aparece no discurso apofântico, é apenas asuperfície de algo que já foi comp~eendido num nível de pro-

---l .

'11 Nesse sentido. ver Stein, Emildo. Filosofia e Hermenêutica Jurídica. Os standards derncionalidade. In: -. Exercícios de Fenomenologia. Limites de um paradigma. Ijuí:Htlitora Unijuí, 2004, p. 150-170.I1 Entendo a dogmática jurídica - nos moldes em que é dominante em terrae brasilis -corno um conjunto de discursos prévios de fundamentação que dispensam o mundo prá-Ilco, buscando dar todas as respostas antes das perguntas.

() tU,JE É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA? 39

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fundidade que é hermenêutico. Daí que, para a hermenêutica, éÁ\ comum a afirmação de que o dito sempre carrega consigo o não( ~ dito, sendo que a tarefa do hermeneuta é dar conta, não daquilo

que já foi mostrado pelo discurso (logos) apofântico, mas simdaquilo que permanece retido - como possibilidade - no discurso(logps) hermenêutico _

Portanto, para a hermenêutica, não faz sentido procurar-mos determinar, de maneira abstrata, o sentido das palavras e~os conce~tos, c?mo fazem as posturas.a~alíticas de cariz semân- jtico, mas e preciso se colocar na condição concreta daquele quecompreende - o ser humano - para que o compreendido~ I

devidamente explicitado. E esse é o pontot1i'~t J -":----

Não se faz necessária uma análise mais aprofundada paraperceber que parcela importante da doutrina - e falo aqui dosformadores de opinião no plano das práticas judiciárias - sufraga

I!\\,\ teses pelas quais a interpretação (aplicação) do direito fica nitida-,W) mente--de]2.endentede um sujeito cognoscente, o julgador.~r--- ~Nes~, é preciso ressaltar que essa qu ---. ---

longe, na verdade, do século XIX. Desde então, há um problemfilosófico-paradigmático que continua presente nos diversos ra

Imos ?O direi,to..P~ss~d..?sdois séculos, ~orment~ ~&5oblemáticarelacIOnada a ]UnSdIçao e o lllil2eldestinado a0.JUIZ. esde Oskarvon BüIlow - questão que também pode ser vista em Anton Men-ger e Franz Klein -, a relação publicística está lastreada na figurado juiz, "porta-voz avançado do sentimento jurídico do povo",com poderes para além da lei, tese que viabilizou, na sequência,a Escola do Direito Livre. Essa aposta solipsista está lastreada nop~~:~i,gtíi,b;â~~Q:&ít~~cJ1iJ1ii~tW~ítàque atravessa dois séculos,podendo facilmente ser percebida, na sequência, em Chio venda,para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma sera vontade concreta da lei; em CarneIlutti, de cuja obra se depre-ende que a jurisdição é "prover", "fazer o que seja necessário";também em Couture, para o qual, a partir de sua visão intuitiva esubjetivista, chega a dizer que "o problema da escolha do juiz é,em definitivo, o problema da justiça"; em Liebman, para quemo juiz, no exercício da jurisdição, é livre de vínculos enquantointérprete qualificado da lei.

No Brasil, essa "delegação" da atribuição dos sentidos emfavor do juiz atravessou o século XX (v.g., de Carlos Maximilia-

40 COLEÇÃO o CWE É ISTO? - JLenio Lui; Streck

nu a Paulo Dourado de Gusmão), sendo que tais questões estãopresentes na concepção instrumentalista do processo, cujos de-lcnsores admitem a existência deA~(~p~metajurídicos, estandopermitido ao juiz realizar determinações jurídicas, mesmo que1/(70 contidas no direito legislado, com o que o aperfeiçoamentodo sistema jurídico dependerá da "boa escolha dos juízes" (sic)e, consequentemente, de seu - como assinalam alguns doutrina-dores - "sadio protagonismo".

É nessa linha que, v.g., José Roberto dos Santos Bedaque,importante e prestigiado processualista, procura resolver o pro-blema da efetividade do processo a partir de uma espécie de"delegação" em favor do julgador, com poderes para reduzir asr()rmalid~s _q~mpedem a realização do direito material e~conflito. isso é feito a partir de um novo princípio processual}- decorrente do "princípio da instrumentalidade" das.ÍQrmas" -de;:;-ominado princípio da adequaçã'crou adaptaçâoã'lY proce-dimento à correta aplicação da técnica processual. Por este"princípio" se reconhece "ao julgador a capacidade para, comsensibilidade e bom senso, adequar o mecanismo às especifici-tlades da situação, que não é sempre a mesmd'P Mais ainda,deve "ser reconhecido ao juiz o poder de adotar soluções nãoprevistas pelo legislador, adaptando o processo às necessidadesverificadas na situação concreta"?' Em sua - refira-se - sofisti-cada tese, embora demonstre preocupação em afastá-Ia da discri-;ionariedade, Bedaque termina por sufragar as teses hartianas ekelsenia as, quando admite que as fórmulas egislativas abertasfavorece es~~uação j~icia1.55

.'2 Para uma crítica adequada à instrumentalidade do processo, torna-se indispensável11 leitura de autores como Marcelo Cattoni (Jurisdição e Hermenêutica Constitucional.'leio Horizonte: Mandamentos, 2008), Flaviane Barros (A reforma do Processo penal.Belo Horizonte: DeI Rey, 2008); Dierle Nunes (Processo Jurisdicional Democrático.'uritiba: Juruá, 2008), André Cordeiro Leal (Instrumentalidade do Processo Em Crise.

!leio Horizonte: Mandamentos, 2008) e Ovídio Baptista da Silva (Processo e Ideologia.Rio de Janeiro: Forense, 2004). Também o artig9 de Rafael Tomaz de Oliveira e GeorgesAbboud (O Dito e o Não-dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções11 partir de uma exploração herrnenêutica da teoria processual. Revista de processo, SãoPaulo, v. 33, n. 166, p. 27-69, dez. 2008).~3 Cf. Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 45(grifei).54 Idem, ibidem, p. 571 (grifei).

55 Idem, ibidem, p. 109.

Q!)E É ISTO - DECIDO CONFORMEM IN HA CONSCI ÊNCIA? 41

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(No mesmo sentido, Cândido Rangel Dinamarca - que inau-

gurou com sua tese de Cátedra a corrente chamada Instrumen-talidade do Processo, que influenciou e continua influenciandogerações de juristas - afirma, sem ressalvas, que o juiz é o canalprivilegiado de captação dos valores sociais, devendo estes apa-recerem assimilados na sentença. Nas palavras do autor: "o juizé o legítimo canal através de que o universo axiológico da socie-dade impõe as suas pressões destinadas a definir e precisar o sen-tido dos textos, a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar aevolução do conteúdo substancial das normas constitucionaís''.«

Na sequência, Dinamarco faz uma verdadeira profissão defé no solipsismo do juiz, in verbis: "entra aqui, outra vez, o quetem sido dito sobre a participação do juiz na revelação do direitodo caso concreto. Ser sujeito à lei não significa ser preso ao rigordas palavras que os textos contêm, mas ao espírito do direito doseu tempo". E complementa: "se o texto aparenta apontar parauma solução que não satisfaça ao seu sentimento de justiça, issosignifica que provavelmente as palavras do texto ou foram malempregadas pelo legislador, ou o próprio texto, segundo a menslegislatoris, discrepa dos valores aceitos pela nação no tempopresente".

A opção pelo paradigma subjetivista-solipsista fica maisclaro quando assevera que, "na medida em que o próprio orde-~namento jurídico ofereça [ao juiz] meios para u~Ifterpretaçãd.qysistemática satisfatória perantee senso de justiçqJ ao afastar--se das aparências verbais do texto e atender aos valores subja-centes à lei, ele estará fazendo cumprir o direito"."

Estranhamente, essa aposta também é feita por autores liga-dos à sociologia jurídica, por vezes temperada por pressupostosmarxistas, como é o caso de Boaventura de Sousa Santos. Corro-borando o que já pregava de há muito, mormente para as escolasda magistratura de terrae brasilis, o importante sociólogo, emrecente entrevista ao jornal português Global Notícias, pregouum maior poder discricionário em favor dos juízes no âmbito doprocesso penal1 ao comentar a lentidão da justiça e o uso de "me-didas~~~l~i~" pela defesa: o juiz deveria ter mais autonomia

56 Cf. A Instrumentalidade do Processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, p. 47.57 Cf. A instrumentalidade, op. cit, p. 361.

42 COLEÇÃO O Q!,!E É ISTO?- 1Lenio Luiz Streck

para dizer: "não aceito esta diligência porque não me parece'11/(, seja útil para que sejaçajustiça". Mais ainda, acentuou queIIS juízes devem poder ter "um papel mais activo e discricionário110 sentido de recusarem algumas diligências ou arrolamentos demais testemunhas"."

A toda evidência, não é possível concordar com a tese dexousa Santos. Qual é o fundamento de, em plena democracia e(It' produção democrática do direito, delegar para o juiz esse po-(kr discricionário? E o que é isto, "fazer justiça"? Mais: o cum-pri rnento estrito das regras processuais - que, nas constituiçõesrxmtemporâneas estão inscritas como direitos fundamentais - im-plica "privilégios" processuais ou "injustiças"? E o juiz teria queu-r o poder de fazer essas "correções"? Mas, se o devido processok-gal é uma garantia constitucional, de que modo o juiz poderiat' contrapor a essa aplicação? Veja-se o eterno retorno ao proble-

Itla do solipsismo, o que, paradoxalmente, aproxima as teses deSousa Santos com aquelas defendidas por Menger, Klein, Coutu-rc, Bedaque, Dinamarco e tantos outros.

Embora sob pressupostos teóricos diferentes, Maria TerezaSudek - cientista política com largo prestígio junto ao Poder Ju-diciário e Ministério Público brasileiros - segue caminho seme-lhunte ao trilhado por Sousa Santos. De mérito, é necessário dizerque Sadek de há muito vem apontando as deficiências na pres-tução jurisdicional. Seus números deixam claro, inclusive, que,uualmente, a maioria dos juízes reconhece o "estado de crise".Iicn uncia ql:le:-n0-s.j:s-têIBa-:J·uàieiárie-!.!tltl-se-é-be:fl'tíelacionadõÔU, , '1I tal relacionadu..D-ideaLde-justiça..s.e ....contrapõe a_pri.\ill.égios"..:.:,Identifica como um dos fatores da impunidade a legislação pro-rcssual, com demasiado número de recursos, manipuláveis pelaI écnica jurídica. No campo do processo civil, critica a subvalori-',liçãodos juizados especiais: "A face de prestação de serviços de

Judiciário deveria estar no Juizado, já que a Justiça comum estápróxima da falência"." Lamenta, também, que as decisões que"provoquem consequências no cole'tivo" fiquem a cargo de um

'" çr. Falta poder aos juízes para justiça mais rápida. Global Notícias, Lisboa, ano 3, n.()6, 25 novo 2009.

"1 (T. ~PJ~$9-9.~)ío;jff~$!)p$rtt9íf~'.Revista Época, 25.07.2008."li c:r. "Cada juiz é uma ilha e tem muito poder em suas mãos". Consultor Jurídico,1()()9.

() <WE É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA? 43

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juiz ind}j'idual. No plano das reformas mais recentes, reconheceque "Nt,'fíl/#/I abriu espaço para a efetivação de alterações de na-tureza institucional no Judiciário. Qualificam-se nessa dimensão19 a súmula vinculante o sistema de re ercussão geral Lei dosRecursos Re etitivos e o critério c!.eJ:~e~ncia. Esses expe-dientes começaram a ser utilizados e já provocaram alteraçõessignificativas no perfil das Cortes, no volume de processos e naqualidade das sentenças"."

Embora a riqueza dos dados e a importância das denún-cias que podem ser retiradas das pesquisas de Sadek, as soluçõesapontadas permanecem ou seguem uma linha de raciocínio já do-minante no próprio judiciário: a de que o problema da crise estána morosidade, no "emaranhado" legislativo e que, portanto, háque se "fazer gestão". Em 2009, ao detalhar as conclusões daspesquisas feitas sobre o Judiciário, Sadek chega a afirmar que "odesempenho do Judiciário depende exclusivamente da gestão, daadministração interna (...)".62 Observe-se o grau de comprometi-mento das conclusões da pesquisadora, vez que passam ao largode uma análise sob a perspectiva da substancialidade: para ela,a crise do Judiciário toma-se um problema de administração/ge-renciamento/organização da justiça.

Em outras palavras, segundo Sadek, o problema da crise dajustiça estaria no fato de que os juízes (lato sensu) não estariampreparados para a gestão administrativa-econômica do judiciá-rio. E que, se os juízes forem melhor preparados - inclusive oumormente em relação a saber gestionar -, o Judiciário pode(ria)superar a crise.

Nota-se, ademais, como os dignósticos (e as soluções) apre-sentados por Sadek não enfrentam o problema dos julgamentosdemocráticos (por exemplo, a qualidade das decisões) e dos obs-táculos à democracia representados exatamente pelos mecanis-mos por ela "elogiados": a súmula= e a repercussão geral, para

61 Cf. "Cada juiz é uma ilha e tem muito poder em suas mãos". Consultor Jurídico,2009.

62Cf. "Justiça funciona como há 100 anos". Última instância, 2009.

63 Como tenho referido, a súmula não é "boa" e nem "má"; pode ser importante compo-nente para colocar o selo jurídico em conquistas; mas, ao mesmo tempo, utilizada comosignificante primordial fundante, será fator de fragilização da discussão amíude dos di-reitos dos cidadãos.

44 COLEçÃO O QVE É ISTO? - 1Lenio Lui: Streck

IIIIHI'apenas destes, tidos como "instrumentos com capacidade deulterar o status quo na estrutura do Poder Judiciário, no tempo eI1r' qualidade da prestação jurisdicional". Aqui Sadek esquece,pm exemplo, que as súmulas são produto da própria fragmenta-,,110 das decisões, problemática nem de longe enfrentada na pes-quisa. Ou seja, ignora que as súmulas sejam decorrentes de umIlI'Ilbl€-O@j?aradigmático.

\ Além do mais, não se percebe, nem no diagnóstIco e nem

\

IIIIS soluções, qualquer preocupação com a problemática filosófi-I'Hque envolve o ato de interpretar/aplicar\Isso fica claro quan-111 l, ao comentar uma decisão judicial de repercussão - reformadapelo Supremo Tribunal Federal=-, Sadek diz não ser possível dis-rutir o acerto ou erro do juiz, "porque ele decide conforme a suauuerpretação da lei e a sua consciência"." Desse modo, Sadek seaproxima perigosamente das teses instrumentalistas do direito,justamente sob 0i.das quais os diversos projetos de reformado Poder Judiciário vêm sendo conduzidos (inclusive por ele elo-dada, EC 45).

A problemática não está restrita às fronteiras do Brasil.No direito alienígena, Alejandro Nieto faz uma profissão de féno realismo jurídico em seu El arbítrio judicial= juntando osingredientes da discricionariedade positivista com o paradigmasubjetivista. Também Mauro Cappelletti" rende-se aos poderesdiscricionaristas do juiz. Nem mesmo Mirreile Delmas-Marty?consegue superar o paradigma representacional e suas consequências na teoria do direito.'<yu sejã: mesmo quêSe afume que a(

orlSinUiçãOéonorte dâ'iiiierpreração, doutrina e jurisprudência Iainda insistem na tese de que o "produto" desse processo herme-nêutico "deve ficar a cargo da convicção-do.:juiz", fenômeno queaparece sob o álibi da discricionariedade. ""

Sob outra perspectiva, esse fenômeno se repete no direitocivil, a partir da defesa, por parte da maioria da doutrina, dopoder interpretativo dos juízes nas cláusulas gerais, que "de-

i64 Cf. Quando rivais trocam de pele: Juiz que elogia MP, que apóia delegado? A Satia-graha revela novas aproximações no Judiciário. Estado de São Paulo. Suplementos Aliás,19.07.2008.65 Cf. El arbítrio judicial. Barcelona: Ariel, 2000, p. 28 e segs.

66 Cf. Juizes legisladores? Porto Alegre: Fabris, 1993, p.33.

67 Cf. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

o Q])E É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCI ÊNCIA? 45

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vem ser preenchidas" com amplo "subjetivismo" e "ideologi-camente". As cláusulas gerais seriam uma espécie de "Códigod~

Com efeito, parcela considerável dos doutrinadores civilis-tas brasileiros trilha pelo caminho de entender o novo CódigoCivil como um sistema aberto, em face, principalmente, da ado-ção das cláusulas gerais, que seriam normas "que se caracterizampela abertura e possibilidades de criação conferida ao intérprete"e "o esforço intelectual do operador do direito que trabalha comnormas abertas, como o são as cláusulas gerais, é sobremanei-ra dimensionado", porque carecem de "complementação valora-tiva", o que faz com que o intérprete se veja "obrigado a buscarem outros espaços do sistema, ou até mesmo fora dele, a fonteque inspirará e fundamentará a sua decisão".«

Despiciendo lembrar que a tese representa uma concessão àdiscricionariedade positivista, o que pode ser facilmente percebi-do em assertivas do tipo "a lei [o Código Civil, na parte relativaàs cláusulas gerais] confia ao intérprete-aplicador, com absolutaexclusividade e larga margem de liberdade, a inteira responsabi-lidade de encontrar, diante de um modelo vago, a decisão justapara cada hipótese levada à decisão judicial"." Ora, de tudo oque foi dito, não parece democrático delegar ao juiz o preenchi-mento conceitual das assim chamadas "cláusulas gerais" (a mes-ma crítica pode ser feita ao uso da ponderação para a "escolha"do princípio que será utilizado para a resolução do problema cau-sado pela "textura aberta da cláusula").

Registre-se, por justiça, que o papel (ou "esse" papel) dascláusulas gerais não são unanimidade no seio da doutrina civil eprocessual civil. Nesse sentido, a importante crítica de HumbertoTheodoro Jr.70 contra o emprego legislativo desse tipo de estra-tégia, muito embora admita a introdução, pelo juiz, de valores

68 Cf. Mencke, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreçãodos conceitos. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano XXXIII, n. 103, set. 2006, p. 69 esegs. (grifei).

69 Cf. Neves, Frederico Ricardo Almeida. Conceitos jurídicos indeterminados e direitojurisprudenciaJ. In: Duarte, Bento Herculano; Duarte, Ronnie Preuss (orgs.). ProcessoCivil. Aspectos relevantes. São Paulo: Método, 2006, p. 85-6.

70 Cf. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da seguran-çajurídica. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 9, n. 35,2006, p. 15 e segs.

46 COLEÇÃO O QlJE É ISTO?-1Lenio Luiz Streck

cticos na lei. Em linha similar, Marcus de Carvalho Dantas, paraquem "entender que o recurso às cláusulas gerais é um expedien-Il' idôneo a garantir um tratamento mais responsável das normaspor parte do juiz é altamente discutível, já que não há pré-deter-minação da interpretação das normas, o que remete à dicotomiasubjetivismo-objetivismo'',"

Por isso não se pode confundir ou tentar buscar similitudesentre os princípios constitucionais e as referidas cláusulas gerais(abertas)." São coisas absolutamente distintas. Aliás, seria incom-putfvel com a democracia que uma Constituição estabelecesse,por exemplo, "princípios" (sic) que autorizassem o juiz a buscar,em outros "espaços" ou fora dele, as fontes para complementar11 lei.

É como se a Constituição permitisse que ela mesma fosse"cornplementada" por qualquer aplicador, à revelia do processolcgislativo regulamentar (portanto, à revelia do princípio demo-l'I'ático). Isso seria uma "autorização" para ativismos, que, ao fim(' ao cabo, deságuam em decisionismos." Ou seja, qualquer tri-hunal ou a própria doutrina poderiam "construir" princípios quesnbstituíssem ou derrogassem até mesmo dispositivos constitu-cionais, o que, convenhamos, é um passo atrás em relação ao

1I('r. Acerca das funções sociais do contrato. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janei-111,n. 27,jul./dez. 2005, p. 108. '

I" /\ note-se as bem construídas pesquisas feitas no Brasil acerca da recepção da hermenêu-11\'11filosófica pelo direito, mormente no que tange a uma aplicação na cotidianidade das"prrlticas" jurídicas, valendo destacar, v.g., Hermenêutica Filosófica e Direito - o exem-'I/O privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual (2. ed. Rio de Janeiro: Lumen1i111N,2006), de José Carlos Moreira da Silva Filho. A obra faz um adequado "enquadra-11/\\1110"da discussão das cláusulas gerais do Código Civil. Também com ênfase na appli-I /11/0, Alexandre Morais da Rosa, em seu Decisão Penal: a bricolage de significantes.1{l1Ide Janeiro: Lumen Juris, 2006.

I I I!ssa circunstância é (muito bem) reconhecida até mesmo por juristas adeptos da teoriadll nrgurnentação jurídica, como Daniel Sarmento (Livres e Iguais: Estudos de Direitot 'nnstitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 199-200), verbis: "E a outra facerlu moeda [do uso desmesurado dos princípios] é o lado do decisionismo e do 'oba-oba',/\1'lIlIlece que muitos juízes, deslumbrados diantefdos princípios e da possibilidade de,1I1111Vésdeles, buscarem justiça - ou o que entendem por justiça -, passaram a negligen-I Ili\' do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta 'euforia' com,1\ nrinctpios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionis-11111travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões gran-di lnqücntes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípiosIuustitucionais, neste quadro, convertem-se em verdadeiras 'varinhas de condão': coml'll's, ()julgador consegue fazer quase tudo o que quiser." (Grifei)

litl.lJE É ISTO-DEClDOCONFORME~\lNII/\ CONSCIÊNCIA? 47

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grau de autonomia que o direito dever ter no Estado Democráticode Direito.

Já no processo penal não passa despercebida a continuidadeda força do "princípio" da "verdade real", presente na maioriados autores utilizados nos cursos de direito e nos julgamentostribunalícios. Aqui é necessário denunciar um paradoxo (ou umacontradição) presente no uso do assim denominado "princípio daverdade real". Com efeito, esse "princípio" - inicialmente co-nhecido como um "princípio geral do direito" e hoje, para minhatotal surpresa, "recepcionado" em pleno Estado Democrático deDireito - representava um modo de institucionalizar no direito o"mito do àado2..da-ill~e",ta""f~ís~i~c:::.a...:::c.:::lá::.::s:.:::s::::ic:::a~._

IMutatis, mutandis, era a instrumentalizaç.ã<Lda...ontolQgiálclássica no processo pena~ pelo qual a verdade do processo pe-nal se revelaria ãO}wZ(aaeaquatio intellectus et rei). A verdadeestaria "nas coisas", que, por terem uma essência, iluminariam ointelecto do juiz. Ocorre que, por desconhecimento filosófico ouuma con:fptela meto.doló.gk.a,...oaludido "princípio" foi transfor-mado eITrf!.0dus interpretandi ~o paradigma que superou o obje-tivismo realista: o 12arad~ filosofia da consciência. Dessemodo, ao.invés da '~1( "assujeitar"OJUiZ- cir~uns.tância queassegurarIa o exsurgImelltõaa vefcIãOê"dada" no âmbito do pro-cesso penal-, foi o juiz que pass?,-ua "as sujeitar" a coisa (a pro-va processual). E a "verdade reãI ' passou a ser aquela "extraídainquisitorialmente pelo juiz". É dizer, a prova passou a.ser aquiloque a consciência do juiz "determina". Por alguma razão _ que éde todos conhecida - a "verdade real" cambiou de paradigma ... !

Outro sintoma do "decidi conforme à con ciência" está naforça do princípio (sic) do~re convenciment ", o que se podeperceber pela sua permanência no rojeto o novo Código deProcesso Penal que tramita no Parlamento. Com efeito, em umdos seus dispositivos, o projeto estabelece que o juiz formará li-vremente o seu convencimento com base nas provas submetidasao contraditório.

Isso significa admitir que o projeto do Código de ProcessoPenal passou longe das mudanças paradigmáticas no campo dafilosofia. Isso porque, quando se fala da formação do convenci-mento do juiz, está-se a tratar de uma questão filosófica, repre-

48 COLEÇÃO o Q1IE É ISTO? - 1Lenio Lui; Streck

"/,, pela discussão acerca das condições de possibilidade, lutz/lntérprete possui para decidir.

"1I1'Ll mim, entretanto, o principal problema aparece quan-procura determinar como ocorre e dentro de quais limites

I',. urorrer a decisão judicial. O juiz decid~por "l~vre conven-uentn"? Mas, o que é isto, '& livre c?nvenci~entr"? A ~ec~-,,,no PO;~:Produto deumconjunto de tmperscrutaveisknuções subjet vas, subtraídas de qualquer critério reconhecí-, 11\1 con o e m ersubjetivo"." Daí a minha indagação: de que

1111IIt 11,afirmar um novo modo de "gestão da prova" se o sentido,. definido sobre o "produto final" dessa "gestão probatória"

rmunece a cargo de um "inquisidor de segundo grau" que11'1I1 "livre convencimento"?

~por essas razões que não creio que o velho (e atual) CPP e1I Projeto do que deverá ser o "novo" CPP tenham passado pertoIr,l'.I'fl discussão filosófica. Se fizermos uma análise do problema"dr como decidir" à luz da filosofia da linguagem, ficará eviden-tI' que as teorias que apostam na vontade do intérprete (e esse é,Ictlvamente, "o problema" do "livre convencimento") acabam•rando/possibilitando discricionariedades e arbitrariedades.

I'lIis questões aplicam-se, à evidência, ao Projeto do novo Có-digo de Processo Civil, igualmente refém dessa concepção demundo,

Por sua vez, no direito constitucional, essa perspectiva éperceptível pela utilização descriteriosa dos princípios, transfor-mados em "álibis persuasivos", fortalecendo-se, uma vez mais,o protagonismo judicial (nas suas diversas rou a e s, como odccisionismo, o ativismo, etc.). O uso da on er -o é tambémnesse ramo do direito outro sintoma de uma espécie de "consti-tucionalismo da efetividade", pelo qual o mesmo "princípio" éutilizado para sustentação de teses antitéticas,

Nesse sentido, não é difícil perceber o modo pelo qual aponderação" foi sendo transformada - aqui em terrae brasilis

74 Cf. Comoglio, Luigi Paolo; Ferri, Corrado; Taruffo, Michele. Lezioni sul processo ci-vi/e. Bolonha: 11Mulino, 1995, p. 623.7~ A força exerci da pelo argumento da ponderação é tão forte que faz com que, até mes-mo autores identificados com teorias incompatíveis com Alexy, dela não abram mão.É o caso de Rogério Gesta Leal (O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea - umaperspectiva procedimentalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 96.), que, à

o QlJE É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSClfNCIA? 49

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- em um enunciado performativo. Como se sabe, uma expressãoperformativa não se refere a algo existente e nem a uma ideiaqualquer. A sua simples enunciação já faz "emergir" a sua sig-nificação. Portanto, já "não pode ser contestado"; não pode so-frer críticas; consta como "algo dado desde sempre". A sua meraevocação já é um "em si-mesmo". O uso performativo de umenunciado objetiva a "colar" texto e sentido do texto, não haven-do espaço para pensar a diferença (entre ser e ente, para usar alinguagem hermenêutica).

"Daí que expressões como "ponderação de valõtes"-;-''mamla::-dos de otimização", "proporcionalidade", "razoabilidade", "jus-ta medida", "decido conforme minha consciência", no momentoem que são utilizadas ou pronunciadas, têm um forte poder de .violência simbólica (Bourdieu) que produz o "sentido próprio" (e o "próprio sentido". Produzem-se, assim, sentidos coagulados,que atravessam a gramática do direito rumo a uma espécie deun.ivocidade "ex~ída a fórceps" no Plan.o das relações simbóli-cas de poder. ~ -- ..>

~ "Por isso, merecem especiãI cuidado as decisões que lançammão especialmente da "razoabilidade" (com ou sem "pondera-ção de valores"), argumentação que se transformou em autêntica"pedr filosofal da hermenêutica" a partir -º.e!ise ~áter perfor-

_ [email protected].__xcetuan o os casos em que, teleologicamente, decisõescalcadas na ponderação de valores podem ser consideradas cor-retas ou adequadas à Constituição (o que por si só já em um pro-blema, porque a interpretação não pode depender dessa "loteria"de caráter finalístico), a maior parte das sentenças e acórdãosacaba utilizando tais argumentos como um instrumento para oexercício da mais ampla discricionariedade (para dizer o menos)e o livre cometimento de ativismos.

- --Como se sabe, em nome do "sopesamento entre fins e

meios" (a assim denominada "p-onderaç~)..76 é possível chegar-

51

luz da teoria habermasiana, defende a discricionariedade judicial, fazendo-o, exatamente,com apoio em Herbert Hart, corifeu do positivismo jurídico. Nessa mesma linha, GestaLeal defende as cláusulas abertas da Constituição como oportunizadoras de valoraçõesde razoabilidade, adequação, proporcionalidade e tolerabilidade. Para ele, a resolução dosproblemas de racionalidade ficam "a cargo" da ponderação de Alexy.

76Veja-se: embora Ana Paula de Barcellos defenda a possibilidade de ponderação emetapas e até mesmo a ponderação de regras. reconhece as fragilidades metodológicasdo instituto: "Não há como negar, considerando o estado atual da dogmática sobre o

50 COLEçÃO O Q\)E É ISTO? - ILenio Luiz Streck

IIlIIis diversas respostas, ou seja, casos idênticos acabam rece-tll'lIt10 decisões dif~~entes, tudo sob o manto da "ponderação" e

1111" decorr~nçias77.-Veja-se, por exemplo, que, em nome ãe pnn-'PIOS ad!áIfi~{e todos os dias são inventados novos standards

'1"1' se pretendem "princípios"), como o "da confiança no juiz daI 111/,\'(/" (sic), e em nome de supostos ;.';~(fjp~.s~e1\tq:~t(pondera-\til'S), um acusado é posto em liberdade no Rio Grande do SUP8e01111'0 é mantido preso em Santa Catarina.79 Há que se ter cuidado111111 o manejo dos princípios e mormente com esse corriqueiro

Ilpcsamento" .Outra advertência que se impõe, no contexto de uma aná-

IiNI' sobre a teoria do direito a partir da hermenêutica filosófica(portanto, delimitando a matriz teórica ou, se se quiser, o "lugart1I1 fala"), diz respeito exatamente a essa dependência que a pon-dl'rução tem em relação à discricionariedade.80 Na maior parte

II~NIIIlIO,que, de fato, a ponderação é metodologicamente inconsistente, enseja excessiva~lIhj()lividade e não dispõe de mecanismos que previnam o arbítrio." (A nova interpreta-\ 1111 (,()rJstitucional:ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio detnnciro: Renovar, 2006, p.53)/I () LISOindiscriminado de enunciados performativos como "razoabilidade", "justa me-dl(lll", etc., leva a situações limites, como, por exemplo, o julgamento ocorrido no TIDF(APR n. 88408320070001), em que se decidiu que "quando a quantidade de pena superaIIN limites da razoabilidade, cumpre ao Tribunal reduzi-Ia aos termos de sua justa medi-1111". Veja-se: na primeira parte do julgado, o Tribunal reconhece a discricionariedade do,,11. para a fixaçãq da yena, para, em, U~glJ!l.®..!ltoroento,.5imit~-ta'.C.peIO~gumérítÕ

dll ~·~z~~~~A~,o/,gunta~u~.fica e: na bu.sca de uma "justa lI)edida", c9molimitarIlh~cI'JCiOnarleda~~por1jltellJledio da rilzoabllldade1 t :s:"".---''------'-----HRSEn.~2.~

1'1 IIC n.06045173-1.HII Tem sido crescente a tentativa de diversos autores em estabelecer a Hermenêutica!lilos6fica como base para a edificação de uma Herrnenêutica Jurídica. Isso é extrema-mente louvável. De fato, a interpretação do fenômeno jurídico exige tais reflexões, sobpena de continuarmos sob o influxo de uma dogmática jurídica de cunho exegético e/oupundectista. Contudo, é necessária especial atenção aos limites e possibilidades que audoção desse paradigma impõe, pois se tornarão insustentáveis tanto o caminho que con-fere aos métodos alguma segurança, quanto o caminho oposto, que sustenta a prevalênciada subjetividade do inté~rete, provocando, assim~ querendo ou não, um perigoso retorno110 rerá~<j,~m~~!~inraiIif.~t~.d§,-&-#!~~ib:j,~t" )Em obra intitulada "Da hermenêutica.Il1osójica&àVfíermenêLtticajurídica"(Saraiva, 20r i), Inocêncio Mártires Coelho apresentaum conjunto de fragmentos sobre o problema da interpretação e, embora defenda correta-mente uma série de postulados gadamerianos, acaba propondo um modelo interpretativoque não supera o problema do esquema sujeito-objeto (porque aposta no "sujeito", na"consciência" e na "vontade" do intérprete). V.g., na medida em que no fragmento 400parece concordar não s6 com a inexistência de métodos, mas também com o fato de queisso não implica interpretações de acordo com a vontade do intérprete, sustentará para ahennenêuticajurídica um conjunto de cânones (frs. 510 e 511, problemática que se repe-

o QJ)E É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA?

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das vezes, os adeptos da ponderação não levam em conta a rele-vante circunstância de que é impossível fazer uma ponderaçãoque resolva diretamente o caso. A ponderação - nos termos pro-palados por seu criador, Robert Alexy - não é uma operação emque se colocam os dois princípios em uma balança e se apontapara aquele que "pesa mais" (sic), algo do tipo "entre dois prin-cípios que colidem, o intérprete escolhe um" (sic). Nesse sentido,é preciso fazer justiça a Alexy, mesmo que com ele não esteja-mos de acordo: sua tese sobre a ponderação não envolve essa"escolha direta".

Na verdade, a ponderação é um procedimento que servepara resolver uma colisão em abstrato de princípios constitucio-nais. Dessa operação resulta uma regra - regra de direito funda-mental adscripta - essa sim, segundo Alexy, apta a resolução dademanda da qual se originou o conflito de princípios. E um regis-tro: essa aplicação da regra de ponderação se fará por subsunção(por mais paradoxal que isso possa ser).

Aliás, é importante ressaltar que parcela considerável gosjusfilosófos (e juristas em geral) que faz críticas ao modelo~~-,~à:t1(á!!J'desentença - e não parece que alguém ainda defenda essaforma de raciocínio - acaba incorrendo em uma contradictio, naexata medida em que sustentam suas teses na base da cisão es-trutural "casos fáceis-casos difíceis". Assim, se os casos fáceisse resolvem por subsunção, como negar que - pelo menos paraesses easy cases - ainda se utiliza o velho~~~? Mais: namedida em que os casos difíceis se resolvem mediante pondera-ção - que, como é sabido, é uma regra, e não um princípio -, apergunta que fica é: a aplicação da ponderação não é uma sub-sunção de segundo grau?

te, sob o epíteto de diretrizes, no fr. 1123, fundado na filosofia de Miguel Reale). Note--se: no fr. 509 o autor se refere a Kelsen e a denúncia que este faz dos métodos na TPD;ocorre que essa antimetodologia é absolutamente distinta da pregada por Gadamer, pelasingela razão de que este não é um relativista (lembremos que Gadamer, ao mesmo tempoem que opera uma reabilitação dos pré-juizos que haviam sido afastados do problema doconhecimento pela Aufklãrung. alerta para o fato de que, no interior do círculo hermenêu-tico, o intérprete deve suspender seus pré-juízos - realizando uma verdadeira epoché - naperspectiva de desenvolver de modo correto, no contexto da Tradição, o projeto de com-preensão e interpretação do texto). A despeito do caráter racionalizador que Mártires Co-elho confere a tais cânones, "a eleição última entre diferentes diretrizes interpretativas"ficará na dependência de valores que o intérprete deve realizar através da interpretação(fragmento 518), conclusão que marca uma recaída no subjetivismo. Isso também podeser visto nos frs. 620 e 613 (a vontade do juiz como "ato de escolha final").

52 COLEÇÃO O Q1JE ~ ISTO? - 1Lenio Luiz Streck

Ao fim e ao cabo, na teoria da argumentação tudo acaba/'/11 subsunção. Aliás, quando no Brasil se usa a ponderação, narealidade, se faz a partir da aplicação direta da proporcionalidade.<)uando isso acontece - e não é difícil perceber isso - a propor-'ionalidade, que deveria ser um princípio, acaba sendo aplicadacorno se fosse uma regra. Ou seja, aplica-se a proporcionalidadediretamente. E por subsunção. Trata-se, assim, de um eterno re-torno ao que se quer combater ... !

É por isso que venho sustentando - inclusive alterando po-sição professada há alguns anos atrás - que a proporcionalidadesomente tem sentido se entendida como "garantia de~!ill4__

fé". Ou seja, proporcionalidade - admitindo-se-a ad argume:Iandum tantum - j!ão_é_Çe-não-pode--seI-)siBôBimo-de--€"lu.idade.7

( Fora disso, o "princípio" da proporcionalidade se torna um irmão",I siamês'do livre convencimento, ambos frutos do casamento do (

positivismo jurídico com a filosofia da consciência, com o que) voltamos ao âmago do tema tratado nesta obra: pode o sujeito ,..;>

l soli~nte.t:-em-ple.no.-g.i.r'()-QntolÓgic.oJinguísticoAinda no âmbito do direito constitucional - que em sua

maior parte foi tomado pelas teorias da argumentação jurídi-ca," sendo raro encontrar constitucionalistas que não se rendamà distinção estrutural regra-princípio e à ponderação de filiaçãoalexyana _ são desenvolvidas/seguidas diversas teorias/teses porvezes incompatíveis entre si.

Um dos problemas fulcrais está na própria convicção deque haveria uma "hermenêutica" própria e específica para o di-reito constitucional, o que por si só já é uma confissão de quehermenêutica não é uma "questão filosófica", mas, sim, episte-mo-lógica. Fosse possível a existência de uma "hermenêutica es-pecífica"82 para tratar do direito constitucional, e teríamos que

BI Para exemplificar: a) STF _ RCL 2126, AGR 395662, HC 97197, HC 97677, RMS27920, ADPF 101 e ADI 2240; b) STJ - HC 68397 e QOnoRESP 1063343; c) TJRS -70027526524,70027525898,70032218398,70d29002441,70023751365,70009702366,70005967740, 70005003?20, 7003~022237 ~js032629396./~c!álO~ê$;â~#/.f"i\~itiU#M>z,.&@.~g,{,-tiÚ,h~J~~pt;?M~lU(.82Por todos, veja-se André Ramos Tavares (Curso de Direito Constitucional. São Pau-lo: Saraiva, 2006, p.76) e Inocêncio Mártires Coelho (Interpretação Constitucional.Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1997). No direito alienígena, Jerzy Wróblewski (Cons-tituiciôn y Teoría General de La lnterpretación Jurídica. Madrid: Cuadernos Civitas,

1988).

o QlJE É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA?

S3

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admitir as diversas "hermenêuticas regionais" (hermenêutica dodireito penal, civil, etc.). De igual maneira, teríamos que admitirque interpretar o direito é uma mera técnica, e não um modo decompreender (modo-de-ser). Nesse universo, sempre há o riscodas mixagens teoréticas, uma vez que, ao mesmo tempo em quese avance no sentido de afirmar que a interpretação não mais éum ato praticado "sem qualquer subjetividade", admita-se, pa-radoxalmente, que a interpretação tenha a presença de "grandemargem de vontade" do intérprete."

Na esteira dessas questões, Richard Posner, corifeu da Lawand Economics e professor da Universidade de Chicago, tam-bém professa um elevado teor de subjetivismo e de solipsismodecisional. Com efeito, em debate travado com Dworkin" sobrea polêmica em torno da dicotomia direitos enumerados e direitosnão enumerados pela Constituiçãos' - a partir da qual a teoriaconstitucional estadunidense procura resolver os problemas queenvolvem questões como o aborto, as ações afirmativas, a liber-dade de imprensa, etc. -, Posner afirma que, quando os juizessão chamados a intervir nestes casos que colocam o problemada interpretação da Constituição na linha de frente do debate ju-rídico, eles devem reagir segundo "determina sua consciência"(sic). Para ele, o juiz não tem o dever de formar uma boa moti-

83 Entre outros, Celso Bastos (Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo:IBDC, 1999, p. 17) e Uadi Bulos (Manual de Interpretação Constitucional. São Paulo,Saraiva, 2007) admitem a interpretação como ato de vontade. Nessa mesma linha, veja-setrecho do voto do Min. Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, no AI 252347, emque essa "questão kelseniana"(interpretação como ato de vontade) aparece explicitamen-te: "No mais, a respeito da interpretação dada a textos de lei, observe-se que tal atividaderevela sempre um ato de vontade, possuindo uma carga construtiva muito grande, no queé buscada a prevalência do trinôrnio Lei, Direito e Justiça". E, em outro julgamento (AI218668): "Toda e qualquer interpretação consubstancia ato de vontade, devendo o intér-prete considerar o objetivo da norma". (grifei)

84 Cf. Posner, Richard A. Legal Reasoning from the Top Dwon and from the Bottorn Up:The Question of Unenumerated Constitututional Rights. University Chicago Law Review,Vol. 59,1992, em especial p. 446-447.

85 Anote-se, por relevante, que, para Dworkin, essa polêmica sobre os direitos enumera-dos e os direitos não enumerados passa longe do âmago do problema. Mais do que isto,Dworkin chega a afirmar que esse tipo de preocupação acadêmica representa um graverisco de encobrimento dos sentidos projetados pela história constitucional norte-america-na. Para o jusfilósofo estadounidense, as questões que aparecem na esteira desses direitosdevem ser resolvidas, não pela via de uma classificação semântico-formal, mas sim nocontexto da integridade e da coerência, sempre na teia da reconstrução da história insti-tucional do Direito.

S4 COLEÇÃO O OlJE É ISTO? - 1Lenio Luiz Streck

vação de sua decisão e só deve utilizar a linguagem de tais direi-tos para enfrentar os casos que instintivamente (sic) - segundoordena sua consciência (sic), é claro -lhe parecem terrivelmenteInjustos (sic).86Isso bem demonstra como há um fio condutor aligar as posturas pragmaticistas como a de Posner com o sujeitosolus ipse, que não se compreende como participante de uma co-munidade política, mas se pretende o comandante dos sentidos,corno aquele que coloca a ordem no mundo segundo sua ilimi-tada vontade (veja-se como Kelsen sempre está a assombrar os"ncodecisionistas"). De se notar, também, como a leitura eco-uôrnica do direito proposta por Posner representa uma perigosaubcrtura para o solipsismo decisório a ponto de descartar o deverde fundamentar as decisões, por considerá-lo secundário ou desomenos importância.

Por todos os campos (ou disciplinas) do direito, Karl En-gish parece resumir com fidelidade os conteúdos das teses que,ivançando para além da clássica visão exegético-normativista do"juiz como boca da lei" - e, convenhamos, nem a mais simplistadogrnática jurídica nega essa superação do ~~s~bouche de IaI(/i -, terminam, no entanto, por admitir uma espécie de "fatali-dade subjetivista", isto é, de que não há como fugir de uma dose(maior ou menor) de discricionariedade, verbis:

"O resultado a que chegamos com referência a tão discuti-da discricionariedade é, portanto, este: que pelo menos épossível admitir - na minha opinião é mesmo de admitir- a existência de discricionariedade no seio da nossa ordemjurídica conformada pelo princípio do Estado de Direito.De discricionariedade, note-se, neste sentido: no sentido deque, no domínio da administração ou no da jurisdição, aconvicção pessoal (particularmente, a valoração) de quemquer que seja chamado a decidir, é elemento decisivo paradeterminar qual das várias alternativas que se oferecemcomo possíveis dentro de 'certo espaço de jogo' será havi-da como sendo a melhor e a )usta'. É problema da herme-

"', Nl'ssc ponto, Posner parece se aproximar - de maneira curiosa - da fórmula Radbruch,""llhl~m resgatada por Alexy. Veja-se, nesse sentido, como são perigosas as armadilhasdll Nllllpsismo: dois autores que se situam "ideologicamente" em planos diametralmente"I"'NIOS acabam por defender urna mesma bandeira teórica no que tange à realização1'"11·,\)111 dos direitos.

IltHII: É ISTO - DECIDO CONFORME~\INllfI CONSCIÊNCIA? SS

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nêutica jurídica indagar onde e como e com que latitudeessa discricionariedade existe". 87

Ora, aparentemente, a tese de Engish estaria em oposiçãoao positivismo (pelo menos é assim que muitos doutrinadores oveem ...); entretanto, a holding do seu discurso reforça a prin~

~. caractéfíSfica positivista: a discricionariedade construída a part~~ da manifestação da "vontade do intérprete". '§ nesse sentldo, é

preciso ter claro a seguinte questão: colocar em xeque a discri-cionariedade não é apenas uma questão de se colocar a favor oucontra a prerrogativa do juiz-intérprete atribuir sentidos e fazer"escolhas" entre "vários sentidos possíveis" ... !

Para além disso, é preciso ficar claro que os problemas queenfrento neste livro cuidam (no sentido hermenêutico da pala-vra) de dar respostas a uma questão relacionada à democracia, àprodução democrática da lei e às condições de possibilidade docontrole das decisões judiciais. Assim, as críticas dirigidas aosolipsismo e suas variações e decorrências surgi das no rastro dafilosofia da consciência devem ser recebidas e compreendidasdesse modo. Não se retira a importância da produção jusfilosó-fica que busca, de um modo ou de outro, controlar as decisõesjudiciais, muito embora - como tentei demonstrar - por vezestais críticas são reabsorvidas (ou recuperadas) pelo próprio ob-jeto que pretende(ra)m superar. De todo modo, o saldo das di-versas tentativas de construir racionalidades judiciais - seja pelavia das teoriasAIf~·, consciente ou inconscientemente, à fi-losofia analít(l'(a'i~/~~":zsu, seja pela via até mesmo das teoriasargumentativas - é positivo, uma vez que é inegável que as ve-lhas posturas que predominaram a dogmáticajurídica (entendidacomo seI)§2. comum teórico) podem ser consideradas superadas.E isso é ~r.~)jâ~):ít>.

Numa palavra - e penso que nisso há uma grande concor-dância no seio das diversas posturas antes delineadas -, em regi-mes e sistemas jurídicos democráticos, não há (mais) espaço paraque "a convicção pessoal do juiz" seja o "critério" para resolveras indeterminações da lei, enfim, "os casos difíceis". Assim, umacrítica do direito stricto sensu, isto é, uma crítica que se mantenhanos aspectos semânticos da lei, pode vir a ser um retrocesso.

87 Cf. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Caulouste Gulbenkian, 1996, p. 227.

56 COLEÇÃO O Q\}E É ISTO?-1Lenio Lui; Streck

4. A IDENTIFICAÇÃO DO FENÔMENONA ESPECIFICIDADE: O GERME DAFILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA

Desse modo, explicitado minimamente o fenômeno, toma-se necessário problematizá-lo à luz do paradigma hermenêuti-

ro, buscando demonstrar o modo pelo qual o paradigma episte-mológico da filosofia da consciência (ainda) se faz presente noimaginário dos juristas e a umbilical relação da "filiação paradig-mática" do sujeito solipsista ao positivismo jurídico.

Ou seja, esse problema estrutural decorre do atrelamento daconcepção de direito (ainda dominante) aos paradigmas aristoté-Iico-tomista e da filosofia da consciência. Registro, no entanto,que aqui tratarei desse segundo paradigma, embora, como tenhoreferido à saciedade não seja difícil constatar a existência defortes resquícios d~~;=a essencialista, êrceptfvel, v.g., - $>lias súmulas vincula o mo o como sao tilizados os ver- G

hctes "jurisprudenciais", como se um conceito pudesse "carre-gar" a substância dos fenômenos.

Com efeito, se, de um lado, os juízes ainda acreditam napossibilidade da busca da verdade real (sic), como se existissemessências (ontologia substancialista clássica), de outro, tomampara si a condução da prova no processo, como se a produçãoda prova pudesse ser gerida a partir de sua consciência (filosofiada consciência, em que o sujeito "constrói" o objeto, medianteleis gerais do "espírito"). Ora, por trás desse "vício de origem"da "metodologia do direito" está a velha discricionariedade (es-paço ocupado pela razão prática nos "casos" de insuficiênciajj,"plenitude" da razão teórica), que, não por acasop o que sus~Ilenta o principal inimigo do direito democrático: o positivismoljuríd~ --

() Q1I E É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA? 57

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Ora, discutir o positivismo é discutir paradigmas. Mais doque isso, é tratar de rupturas paradigmáticas. Para tanto, é preci-so entender que a principal característica does) positivismo(s) - adiscricionariedade - está ligada umbilicalmente ao paradigma dasubjetividade, isto é, ao esquema sujeito-objeto. É esse "esque-ma" que sustenta o sujeito de qualquer relação cognitiva.

-,. Insisto, assim, em ancorar a presente discussão na evolu~ãodos paradigmas filosóficos e a supera ão da fjlosofig_da ca;;;;'

\ ciência pelq gJr.o ..o.ritolôgi'co-,linglt/stiob. uem melhor explicouessa problemática foi Heidegger, para quem, de Descartes à Hus-serl, o sujeito da subjetividade ~J'i:íã1i~~"é o ponto comum queatravessa a metafísica moderna. Esse sujeito é o Selbstsüchtiger@ (':solipsistã', qu"?quer dizer egoísta, que se basta, encapsulado).E ele que se "encarrega" de fazer a "inquisição". E a verdade seráa que ele, o "sujeito", estabelecerá a partir de sua c~ência.Isso exsurge, por exemplo, da produção da prov~e~ffjcio ]e daprevalência de princípios (sic) como o do "livre convencimentodo juiz" e ou "livre apreciação da prova" (para dizer o mínimo).

Daí a pergunta: por que, depois de uma intensa luta pelademocracia e pelos direitos fundamentais, enfim, pela inclusãodas conquistas civilizatórias nos textos legais-constitucionais,deve(ría)mos continuar a delegar ao juiz a apreciação discricio-nária nos casos de regras (textos legais) que contenham vague-zas e ambiguidades e nas hipóteses dos assim denominados hardcases'I" Volta-se, sempre, ao lugar do começo: o problema dademocracia e da (necessária) limitação do poder. Discriciona-riedades, arbitrariedades, inquisitorialidades, positivismo jurídi-co: tudo está entrelaçado.

É preciso entender que o sujeito solipsista - que está na basede afirmações do tipo "decido conforme minha consciência" - éuma construção filosófica que deita suas raízes no que antes de-lineei. Essa concepção tem como ponto de partida o cogito ergosum de Descartes, passando pelas mônadas de Leibniz, pelo eutranscendental de Kant, até chegar a seu extremo em Schope-nhauer, com a ideia de mundo como vontade e representação.Com efeito, como afirma Blackbum, o solipsismo "é a conse-

88 Como tenho referido à saciedade (v.g., em Verdade e Consenso, op. cit.), a cisão entrecasos fáceis (easy cases) e casos difíceis (hard cases) é uma arrematada ficção!

58 COLEçÃO O Qj)E É ISTO? - 1Lenio Lui; Streck

quência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estarlundado em estados de experiência interiores e pessoais, não seronseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e()conhecimento objetivo de algo para além deles". Trata-se, por-tunto, de uma corrente filosófica que determina que exista apenasIIITI Eu que comanda o Mundo, ou seja, o mundo é controladoronsciente ou insconscientemente pelo Sujeito. Devido a isso, aúnica certeza de existência é o pensamento, instância psíquicaque controla a vontade. O mundo ao redor é apenas um esboçovirtual do que o Sujeito imagina, quer e decide o que é.89

Desse modo, quando falo aqui - e em tantos outros textosde um sujeito solipsista, refiro-me a essa consciência encapsu-

lada que não sai de si no momento de decidir. É contra esse tipode pensamento que volto minhas armas. Penso que seja necessá-Iio realizar uma descontrução (Abbau) crítica de uma ideia que semostra sedimentada (ou entulhada, no sentido da fenomenologiaheideggeriana) no imaginário dos juristas e que tem se mostra-do de maneira emblemática no vetusto jargão: "sentença vem desentire ..." (para citar apenas um entre tantos chavões, que, como,rt demonstrei, transformam-se em enunciados performativos).Isso é sintomático, porque liga umbilicalmente o elemento deci-sório às "sensações" do juiz. __ _

Repito: para o solipsismo filosófico - e pensemos aqui na~discricionariedade positivista, louvada até mesmo pelos setores.crfticos da teoria do direito -, o mundo seriaJé apenas o resulta-to das representa ões ue realizamos a partir de nosso "feixe

tI{' sensaçã ..es::-'_ , definitivamente, depois do giro ontológico-linguístico, não é mais possível pensar que a realidade passaI ser uma construção de representações de um sujeito isolad~(solipsista). O giro ontológico-linguístico já nos mostrou que so- \1I10S, desde sempre, seres-no-mundo, o que implica dizer que,originariamente, já estamos "fora" de nós mesmos nos relacio-uundo com as coisas e com o mundo. Esse mundo é um ambientede significância; um espaço no interior do qual o sentido - de-llniüvamente - não está à nossa disposição. Este é um espaçorompartilhado a partir dQ.Sl.!Jaltemos que prestar contas uns aos

"'1 ('r. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 367; ver1IIIIIh6m nesse sentido Verdade: Um guia para perplexos. São Paulo: Civilização Bra-_lIllll'u, 2006.

II Il,l!E É ISTO - DECIDO CONFORME~IINIIA CONSCIÊNCIA? 59

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""- -

outros, como que para dar uma espécie de "testemunho da ver-lade". "- _

Essa é uma experiência intersubjetiva que está plasmada na-ideia de que a linguagem é a condição de possibilidade para aces\sarmos o mundo. E é exatamente por isso que podemos dizer,!sem medo de errar, que o sujeito solipsista foi destruído (embora sobreviva em grande parte do ambiente jusfilosófico). Afinal,como diz Gadamer," "quem pensa a 'linguagem' já se movimen-ta para além da subjetividade".

4.1. O esquema sujeito-objeto e suas consequênciasno e para o direito

Assim, embora o ceticismo de parcela considerável da co-munidade jurídica, é impossível negar as consequências da vi-ravolta ontológico-linguística para a interpretação do direito.Está-se a tratar de uma ruptura paradigmática que supera séculosde predomínio do esquema sujeito-objeto. E, consequentemente,está-se a tratar da superação daquilo que, no direito, representouo lócus privilegiado da relação sujeito-objeto: o positivismo.

Essas questões (são as que mais) têm gerado críticas (e per-plexidades) em determinados setores da comunidade jurídica, apartir de uma série de subtemas: por que é necessário rompercom a discricionariedade na interpretação do direito? Qual é arelação da filosofia da consciência com a discricionariedade po-sitivista? Qual é a relação do paradigma da filosofia da consciên-cia, por exemplo, com o instrumentalismo processual e o sistemainquisitivo? Qual é a relação (ou dependência) da metodologiajurídica com esse paradigma que instaurou a modemidade (háconsideráveis setores da comunidade jurídica que desconhecemo "sujeito" - sim, "esse sujeito" do "esquema sujeito-objeto" _é uma invenção da modernidade)?

Há alguns elementos que atravessam as diversas temáticase que nos cobram, a todo o momento, um reforço de sentido,porque dizem respeito à legitimidade e à validade do direito emtempos de ruptura com a tradição positivista lato sensu. Com

90 Cf. Hermenêutica em Retrospectiva. A virada herrnenêutica. Petr6polis: Vozes, 2007,p.27.

60 COLEÇÃO O QlJE É ISTO? - 1Lenio Luiz Streck

efeito, parece recorrente dizer que esse problema (central) estálocalizado na discussão entre direito e moral. E, consequente-mente, no papel desempenhado pela razão prática no contexto dateoria do direito que já não pode conviver com as divisões/cisõesentre faticidade-validade, moral-direito, teoria e prática, para fi-car apenas nestas.

Para firmar o foco: o jargão "decido conforme minha cons-ciência" tem, assim, uma umbilical dependência do papel desem-penhado pela razão prática. Relembremos: a razão prática nosvem desde a filosofia grega, quando Aristóteles delimitou umafi losofia teórica (que pergunta pela verdade ou pela falsidade)

uma filosofia prática (que pergunta pelo certo e pelo errado).Na primeira, está em jogo uma observação de uma determinadarealidade, ao passo que, na segunda, tem-se o questionamento delima ação concreta.

Na modernidade, a problematização entre razão teórica erazão prática foi retomada por Kant em sua Crítica da RazãoPura e na Crítica da Razão Prática. O que há de comum entreKant e Aristóteles é que em ambos há uma barreira que separaI filosofia teôrica da prática e nenhum deles conseguiu expli-.ar como a filosofia teórica pode determinar a filosofia práticaou vice-versa. A partir de Kant e da revolução copernicana porele instaurada, o problema razão teórica/razão prática passa aagregar a questão da subjetividade que não estava presente naproblemática grega. Desse modo, além do problema da cisão,tom-se por acrescido também o~ema do solipsismo do suiei-to transcetídental kantiano.

Com o gir~o operado por Heidegger, se dá - delima forma inédita em toda tradição filosófica - uma reconcilia-rflo entre prática e teoria e, ao mesmo tempo, ocorre um desloca-monto do solipsismo subjetivista para um contexto intersubjetivolrfundameniação. Heidegger cria um.novo conceito que descre-vo um ambiente no interior do qual conhecimento prático e co-nhccimento teórico se relacionam a partir de uma circularidade:11 circulo hermenêutico (hermeneutische Zirkel). Há uma espécietil' "privilégio" do conhecimento prático em virtude da estrutura11()Logoshermenêutic~

II lUJE É ISTO - DECJ,r5Ó CONFORME 61~\INIIA CONSCI~.N'éIA?

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Aliás, há uma tendência - muito peculiar ao pensamentojurídico - de se falar em hermenêutica, circulo hermenêutico,fusão de horizontes, pré-compreensão e alguns outros conceitosfilosóficos sem citar, ou, na pior das hipóteses, ignorando com-pletamente, aquele que foi o grande filósofo que introduziu estesconceitos ou, no caso do conceito de hermenêutica e de círcu-lo hermenê~tico, renovou seu conteúdo. Este filósofo foi MartinHeideg~eWRegistre~e--.9...uetal lembrança é ~ndição de possibi-lidade para se falar e~ H~rmenêutica Filos~ic~ (ou troquemosde matriz ... I).

O próprio Gadamer reconhece que seu projeto filosóficoretira da obra heideggeriana seu elemento mais fundamental: adescoberta da estrutura prév~a da compreensão; Ou seja,Jalar emhermenêutica no contexto aCiãZe não enfrentar a obra de Hei-degger é como falar em Metafísica e ignorar Aristóteles, Tomásde Aquino ou Francisco Suare: (ou, no Brasil, falar em Heideg-ger e em hermenêutica sem citar a vasta obra de Emildo Stein).Há uma fundamentalidade na obra de Heidegger com respeito aomodo como se trabalha com a hermenêutica, que não pode serafastada por conveniência ou por outras razões (p. ex., políticas).Quer dizer, "adotar" Gadamer e "esquecer" Heidegger é ignorar- deliberadamente ou não - a construção da matriz teórica quenasce na filosofia hermenêutica e desemboca na hermenêuticafilosófica.

Na verdade, esse (novo) modo de tratar a relação entre teo-ria e prática passa a privilegiar a dimensão de vivências fáticas.É assim que (re)aparece o "mundo prático" na filosofia - que semanifestou no início grego com os pré-socráticos, mas que foi en-coberto pelo logos socrático-platônico. É desse modo, pois, quea hermenêutica irá responder ao problema da relação entre teoriae prática: um contexto intersubjetivo de fundamentação (a noçãode pré-compreensão, contexto antepredicativo de significânciaetc.), no interior do qual tanto o conhecimento teórico quantoo conhecimento prático se dão na abertura do pré-compreenderestruturante (razão hermenêutica, para usar a xpressão cunhada

rpor Emst Schnâdelbach). É - por assim dizer desse comporta-mento moral que Sedá na pré-compreensão que podemos extra("

I - no c~po da a~ão do direito - a ideia de resposta correta j

COLEÇÃO o Q1)E É ISTO?-1Lenio Lui: Streck62

-t

63

(ou, se se quiser, adequada à Constituição) e de instituciom=-,'110 do mundo prático pelos princí~ \.

Nesse contexto, as teorias positivistas do direito re(a-rum-se a fundar suas epistemologias numa racionalidade~edesse con~propriamente dito, (escolhas, jusdfica(s,etc.). Como altemativã,'~taeeleG~am um princípio fundad

m

lima razão teórica pura.io direit~ partir de então, deveri'ervisto como~m obj~ qu~eria analisado segundo critérios I~-

I1!ldos/de.uma.l~~rmal rí~. ~ ess: "ob~o" seria.p:~:~do propno SUJeito, o conHeCimento. Da! o papel do sujemlipsista, "---

Para o positivismo jurídico, pouco importava coloca~mdiscussão - no campo da teoria do direito - questões rel;asI) legitimidade da decisão tomada nos diversos níveis d()O-der estatal (legislativo, executivo ou judicial). No fundo,.2.e",/'Ou-se uma.cisãa.entre validade e legitimidade, sendo ql asquestões de validactesenãi'ii7esõlviaas porlntermédio dema

málise lógico-semântica dos enunciados jurídicos, ao pass(\ue()s problemas de legitimidade - que incluem uma problem~camoral - deveriam ficar sob os cuidados de uma teoria polcaque poucos resultados poderiam produzir, visto que esbam:n110 problema do pluralismo de ideias presente num contexto ;-mocrático, o que levava inexoravelmente a um relativislId l-I ófi ( bl /' /' esos lCO essa pro emática se agravou em pa!ses com grsperíodos de ausência de democracia, como o Brasil).

Por certo, a preténsão das teorias positivistas era ofere~ àxnnunidade jurídica um objeto e um método seguro para pi doção do conhecimento científico no direito. Isso levou - de al o

-I' • 1 1 d / (bl »Ó,.» tre-com a atmostera inte ectua a epoca pro emática que, e I'tanto, ainda não está superada) - a uma aposta em uma racic~ l-

I de teôri .h· ' 1 ",," ·.Alâ~11tId tico(a e teorzca asfixiante que ISO aVafJn~\1,. f'loJ' to o contexto prde onde as questões jurídicas realmente haviam emergido.

Em outras palavras, o positivisíno atinge seu d~s'i~~rtl6-repito, nas suas mais diversas manifestações - quando com

gue

lescolar a enunciação da lei do mundo concreto, ou seja, lan-I -I' I' - A ( dnas

(O trans1.o~a el em uma razao autonoma mesmo quan ( dposturas realisrÇ,'considera as decisões judiciais como o 110 oprivilegiado de manifestação do direito).

o QVE É ISTO - QEClDO CONFORMEMINHA CONSCIENCIA?

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Essa racionalidade teórica (ou razão autônoma) possibilitou- e continua a possibilitar - "entender" o direito em sua "autôno-ma objetividade". Ou ainda em outras palavras, os fatos sociais,os conflitos, enfim, a faticidade, não faziam parte das "preocu-pações" da teoria do direito. Portanto, ironicamente, a pretensãoestabilizadora - e cientificizante - do positivismo jurídico aca-bou por criar uma babel resultante da separação produzida entrequestões teóricas e questões práticas, entre validade é legitimida-de, entre teoria do direito e teoria política.

Essa questão teve em Kelsen o seu ftKqf~~.Mas Kelsen eraum pessimista moral, uma espécie de cético que apostava em umamoral relativista. Para ele, o problema da vinculação do direito àmoral se apresenta problemático, porque não há como sustentaruma moral absoluta - válida e vigente em todos os lugares e emtodos os tempos - que possa servir como parâmetro para deter-minação dos conteúdos das normas jurídicas. Sua argumentaçãoprocura demonstrar como há vários sistemas morais que variamde acordo com a época e o lugar de onde se originam: "o que émais importante, porém - o que tem de ser' sempre acentuado enunca o será suficientemente - é a ideia de que não há uma únicaMoral, 'a' Moral, mas vários sistemas de Moral profundamentediferentes entre os outros e muitas vezes antagônicos"." Ou seja,há uma impossibilidade de conhecimento dos conteúdos moraisexpressos nas condutas dos indivíduos. A única coisa que perma-nece uniforme em todos os sistemas morais é - tal qual acontececom os sistemas jurídicos - sua forma, seu caráter de norma. Aforma da moral é estudada, segundo os postulados kelsenianos,pela ética; ao passo que a forma do direito é responsabilidade daciência jurídica.

No fundo, Kelsen estava convicto de que não era possívelfazer ciência sobre uma casuistica razão prática. Desse modo,todas as questões que exsurgem dos problemas práticos que en-volvem a cotidianidade do direito são menosprezados por suateoria na perspectiva de extrair da produção desse manancial ju-rídico algo que possa ser cientificamente analisado.

Aqui reside o ponto fu1cral, cujas consequências podem sersentidas mesmo em "tempos pós-positivistas": um dos fenôme-

91 Cf. Teoria Pura do Direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 74.

64 COLEçÃO O QVE ~ ISTO? - 1Lenio Luiz Streck

lUIS relegados a esta espécie de "segundo nível" foi exatamente/I problema da aplicação judicial do direito. Com efeito, não éem razão que a interpretação judicial é tratada como um apên-

dice em sua Teoria Pura do Direito e apenas apresenta interessepura auxiliar a diferenciação entre a interpretação que o cientistado direito realiza e aquela que os órgãos jurídicos proferem emsuas decisões.

Daí as conclusões kelsenianas de todos conhecidas: a inter-prctação dos órgãos jurídicos (os tribunais, por exemplo) é umproblema de vontade (interpretação como ato de vontade), noqual o intérprete sempre.possui um espaço que poderá preencher110 momento da aplicação da norma (é a chamada "moldura danorma", que, no limite,pode até ser ultrapassada). Já a interpre-Ilição que o cientista do direito realiza é um ato de conhecimentoque pergunta - logicamênte - pela validade dos enunciados ju-rfdicos. É nesse duplo viés que reside o cerne do paradigma dafi losofia da consciência. É também na interpretação como "atode vontade" que faz morada a discricionariedade positivista.

Conforme insisto em vários de meus textos (em especial,em Verdade e Consenso), há um ponto que marca definitivamen-te o equívoco cometido por todo o positivismo ao apostar emcerto arbítrio (eufemisticamente ~)~~ como "discriciona-riedade") do julgador no momento de determinar sua decisão:sendo o ato jurisdicional um ato de vontade, ele representa umamanifestação da razão prática, ficando fora das possibilidadesdo conhecimento teórico. Isso ainda não foi devidamente enten-dido pela(s) teoria(s) do direito. Não é fácil, pois, derrotar o po-sitivismo ...

Note-se, agora, o modo pelo qual a questão da interpretaçãoentendida como ato de vontade e a separação entre direito e mo-ral se cruzam: ambos fazem parte daquilo que, desde os gregos,chamamos de filosofia prática-e que, na modernidade kantiana,recebeu o nome de razão prática.

Ou seja, o positivismo aposta na discricionariedade por-que o paradigma filosófico sob o qual está assentado não conse-gue apresentar uma' solução satisfatória para a~~~ decorrenteda dicotomia "razão teórica-razão prática". Eis aí o ponto de

o QlJE É ISTO - DECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA? 65

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Sendo mais explícito: na medida em que esta questão ca-rece de solução, os positivistas preferiram - e ainda preferem- apostar na razão teórica, deixando as questões relativas à ra-zão prática fora de seu campo de preocupações. E, ao contráriodo que pensa parcela considerável dos juristas, a interpretaçãoacaba, exatamente por isso, relegada a um plano secundário (oexemplo maior é o de Kelsen). É por isso que ocorre a aposta dopositivismo na discricionariedade. Também por essa razão é queas posturas positivistas admitem múltiplas respostas no direito.

r \Apostar na razão teór~~ é acreditar ~a possibilidade_de~\ p.0stas_antes-das_per:.guntaUso tãrVez explique o sucesso das de-

finições lexicográficas no campo jurídico, bastando, para tanto,examinar os ementários e as súmulas, que representam, mutatis,mutandis, a busca de um paraíso de conceitos que "carreguem"consigo as múltiplas possibilidades aplicativas.

í ~=:-:--~'l-:-i""T-:-:-::-O:-::- IPor tais razões, permaneçofierãtese assmruda de há muito, --,.0;:--- _ <,

\ de maneira a enfatizar e a reprimir com veemência tanto a arbi-trariedade como a discricionariedade, uma vez gue, entre elanão há uma fronteira clar~5itrariedade e70u discncionarieda-eoe sentiôos (ou nos sentidos) são "práticas" típicas de um ra-

cionalismo que teima em sobreviver em outro paradigma. Tantouma como outra são frutos de "consensos artificiais", de "con-ceitos sem coisas", somente possíveis a partir do descolamentoentre lei e realiE..ade.!É por essarazãô que na lreTID-e-rfêmi"C"aa:qtti·

\ defendida não hâ'resposras/ínterpretações (portanto, aplicações)antes da diferença ontológica ou, dizendo de outro modo, antes'da manifestação do caso a ser decidido. ~ )

Não há como definir "aplicações" da lei em abstrato, porqueisso seria retomar ao mito do dado (metafísica clássica). Aliás,é Gadamer quem diz que o sentido somente ocorre na situaçãoconcreta. Ou seja, no plano de uma "autônoma objetividade" dodireito - em que a aplicação se dá a partir de um conceito previa-

tmenteelaborado e onde a resolução concreta do direito se subsu-me nesse conceito -, até é possível, e talvez necessário, distinguira discricionariedade da arbitrariedade.

Entretanto, não posso perder de vista que a discricionarieda-de pregada e defendida pela maior parte da teoria do direito - emespecial as teorias procedurais-argumentativas - é exatamente a

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'1"1' se confunde com a arbitrariedade. Nelas, o afastamento daIlIhitrariedade é argumento e álibi teórico para z justificaçõo dadlNt'f"icionariedade(retome-se, sempre, admissão da "necessída-dI' da discricionariedade" para que o intérprete possa ponderar,ronforme defendem Robert Alexy e Prieto Sanchís, para falarapenas destes).

Este é o ponto. A discricionariedade que combato é ia dosub-jectum, que dis-põe dos sentidos do direito, como se fosse"proprietário dos sentidos" e dos "meios-de-produção-dos-sen-tidos", circunstância que a aproxima das teses pragmatistas emgeral, em que o caso concreto é transformado em álibi para. vo-luntarismos, a partir de um "grau zero de significado".

4.2. A razão prática e o "domínio da moral":onde fica a "consciência"?

De todo modo - e penso estarmos de acordo com tal pre-missa -, a aposta na discricionariedade acarretou uma vitória depll·nJ dos reducionismos Wi:JJ.~mí,ctts,isto porque, afastando a ra-zão prática e apostando ~ razão teórica, os positivistas do direitoacabaram "obrigados" a permitir -' como uma espécie de "com-pensação" - esse "acentuado grau de discricionariedade" (sic)para dar conta dessa, para eles incontomável, questão: a razãoprática tem guarida no domínio da moral e é impossível cindi-Iado "mundo epistêmico" da "pureza" de intenções ... !

É preciso ter claro que, no paradigma do Estado Democrá-tico, o direito passa a se preocupar - em razão das contingênciashistóricas - com a democracia e, portanto, com a legitimidadedo direito (o problema da validade, pois), problemática que atéentão era "cindida" pela "ciência do direito": de um lado, o di-reito, sem preocupações com a "razão prática", e, de outro, oterritório no qual a penetração do direito não tinha "canotaçãovalorativa". \

Nesse sentido é que se torna interessante notar como Kelsen(e aqui basta apenas me referir a ele) acaba preservando - mes-mo com toda sofisticação de sua teoria - o elemento messiãnicopresente nas teorias objetivistas e subjetivistas da interpretaçãojurídica (vontade da lei e vontade do legislador), voluntarismo

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esse que o coloca no último princípio epocal da modernidade: avontade de poder de Nietzsche (Wille zur Macht).

Na verdade, por justiça, é preciso reconhecer que Kelsenfoi um autêntico positivista - talvez "o" autêntico positivista _,porque percebeu que o único modo de "desindexar" definitiva-mente a moral do direito seria de um modo artificial, ficcional,circunstância que o identifica inexoravelmente com o neoposi-tivismo e toda tradição epistemológica que se seguiu. Explica--se o seu "pé" no neopositivismo lógico, que lhe permitiu tratara ciência do direito como uma metalinguagem elaborada sobreuma linguagem objeto. De efetivo, esse é o corte epistemológicoque provocou tantos mal-entendidos no decorrer do século XX einício deste século. Não é por nada que, na segunda "versão" dasua Grundnorm, ele passou a denominá-Ia de "ficção", inspira-da na filosofia do ais ob (como se), do filósofo Hans Vahinger.Assim, a norma fundamental passou a ser uma "ficção necessa-riamente útil" ...

No fundo, há sempre um retorno às teses decisionistas de,.kelseniano: nele, não há espaço para princípios. No positi-vismo-normativista kelseniano não há espaço para o "caso con-ereto" (o "caso" ele "deixa" a cargo dos juízes, para os quais nãohá métodos ou critérios que "segurem" a interpretação.> confor-me o célebre capítulo oitavo da TPD). Até mesmo um positivistaconsiderado moderado como Hart - este~{~t~ lhe foi dado porDworkin -, ao tratar da textura aberta, procura resolver os casosdifíceis (hard cases) através da interpretação das zonas de penum-bra (textura aberta) da norma. Também ali não há lugar para osprincípios (volta-se sempre para a contraposição "discursos defundamentação-discursos de aplicação"). Abre-se, assim, a possi-bilidade da discricionariedade do intérprete. Afinal, se a tese har-tiana da zona da penumbra (vagueza e ambiguidade da norma) éatrativa, também é verdade que ela não se resolverá na aplicação,mas, sim, no campo da conceitualização. Só que isso deixa a in-terpretação do direito insulado na velha razão teórica.

Portanto, sempre sobrará realidade. Ou seja, na medida emque não há espaço para os princípios, as regras devem resolver(abarcar) todos os casos de forma subsuntiva-dedutiva. Este é ocalcanhar de Aquiles das posturas positivistas: diante das insufi-ciências/limitações das regras, diante dos "casos difíceis" e face

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pluralidade de regras ou sentidos da(s) regra(s), o positivismo""II/Iite que o juiz faça a "melhor escolha". O direito é, assim,"I"'IIHS a moldura na qual serão subsumidos os "fatos" (como se'''1,\'(/ possível separar fato e direito).

Significa dizer que, trabalhando com a ideia de sistema sem1lIl'lInaS,a própria previsão da "correção" e da "colmatação" dasrusuficiências do ordenamento faz parte do próprio ordenamen-111 jurídico. Essa é a vitória de pirro. Desse modo, remete-se aoproprio direito a tarefa da correção do direito (veja-se, no casolnuxi leiro,_a":':p~ei~ombin~rçã()fGQJIlP1ementariedade entre o1111, 42 da LICC J 0~.:...l26 do çPC/agora realimentados pelasrluusulas "abertas" do 'Código Civil).

Se ficarmos atentos, não é difícil constatar - em um uni-Vl'I'SOque calca o conhecimento em um fundamento último e110 qual a "epistemologia" é confundida com o próprio conheci-rucnto (problemática presente nas diversas teorias discursivas-urgumentativas e nas perspectivas analíticas em geral) - que a

ücrmenêutica jurídica dominante no imaginário dos operadoresdo direito no Brasil (perceptível a partir do ensino jurídico, dadoutrina e das práticas dos tribunais) continua sendo entendidacomo sendo esse ~er "operacional" (talvez por isso os[uristas se autodenominem àe"operadores do direito") de quelulavam Kelsen e outros positivistas.

E esse saber operacional permanece calcado exatamente na"hipótese positivista" ou "fator discricionário": quando a razãoteórica não consegue responder todas as perguntas - que, abstrata-mente, são feitas antes da aplicação, porque ainda~~jfj:líY inter-pretação-aplicação -, delega-se o poder de 't~1f#"o sistema",paradoxalmente, àquilo que o positivismo quena "isolar", à ra-zão prática; que, como sabemos, vem ';'t}y'#' de subjetividade.

Graças a isso, domina, no âmbito jurídico, o modelo assen-lado na ideia de que "o processo/procedimento interpretativo"possibilita que o sujeito (a partir da subjetividade "instauradora"do mundo) alcance o "exato sentido' da norma", "o verdadeirosignificado - semântico+ do vocábulo", "o real sentido da regrajurídica", etc.

Tais pretensões parecem sofrer daquilo que Dworkin deno-mina de "aguilhão semântico". Ocorre que, paradoxalmente, esse

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"sentido da norma" exsurge de um sub-jectum que, sustentadoem uma "adequada metodologia", alcança essa "certeza", que,estranhamente, pode ser "uma entre várias". Veja-se: aquilo queera o "exato sentido" somente o era in abstracto ...; diante dos"casos'j as respostas passam as ser múltiplas, Ora, o que.parcelaconsiderável dos juristas não entende é que é na "íabstratalida-de" que os sentidos podem ser múltiplos, em face da porosidadedas regras. E o equívoco está nisso: os sentidos não podem seratribuídos em abstrato, pela simples razão de que não se pode

\cindir fato e direito, interpretação e aplicação. Eis o papel da di-r.erença ontológica, que propicia o ingresso do mundo prático nod~--

O que importa referir é que, uma vez que passamos da epis-temologia (teoria geral, na sua primeira "fase" e teoria do conhe-cimento, segunda "fase") para a hermenêutica (fundada na viradalinguística), é razoável pensar (e esperar) que essa ruptura pa-radigmática deveria obter uma ampla recepção nessa complexaárea do conhecimento que é o direito, mormente se parti(r)mosda concepção de que há uma indissociávelligação entre o posi-tivismo jurídico - que tanto queremos combater - e o esquemasuj~E~-??}e~o (afinal: ~i~guém admite, principalmente no Brasil,ser :ç)Wet~~9{de "positivista").

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S. A IMPOSSIBILIDADE DE CINDIRINTERPRETAÇÃO EAPLICAÇÃO:DE COMO O DIREITO NÃO ÉUMA (MERA) RACIONALIDADEINSTRUMENTAL

A temática da interpretação, embora tenha assumido um lu-~ar cimeiro, continua atrelada à cisão ou às cisões próprias dahermenêutica clássica e, portanto, ao paradigma representacio-nal. Isso gera uma porção de mal-entendidos, mormente quandose confunde as noções de pré-compreensão com "visões de mun-dos", "subjetividades", etc., ou se pensa a applicatio gadameria-na como uma fase posterior do "processo" interpretativo.

Problemas semelhantes ocorrem quando, invocando o cír-culo hermenêutico, continua-se a fazer interpretações em etapas.O salto para a superação desses delicados pontos no campo dodireito exige o entendimento acerca da diferença entre os diver-sos paradigmas filosóficos que conformam o conhecimento e afirme convicção de que o direito não está imune a essas rupturasparadigmáticas.

Esse fenômeno, como vem sendo explicitado no decorrerdestas reflexões, pode ser adequadamente compreendido a partirde Heidegger e Wittgenstein (com a reelaboração feita por Ga-damer, a partir da especificidade do direito), embora sob pers-pectivas diferenciadas. A utilizaçãq da filosofia hermenêutica eda hermenêutica filosófica (Gadamer) dá-se na exata medida daruptura paradigmática introduzida principalmente por Heideg-ger (e também, mais tarde, pelo segundo Wittgenstein), a partirda introdução do mundo prático na filosofia, circunstância queaproxima os dois filósofos.

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