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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ RODRIGO JOSÉ PEREIRA POR QUE TUDO FOI DIFERENTE? OS LANCEIROS NEGROS NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA (1835 A 1845). CURITIBA 2011

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

RODRIGO JOSÉ PEREIRA

POR QUE TUDO FOI DIFERENTE? OS LANCEIROS NEGROS NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA

(1835 A 1845).

CURITIBA

2011

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POR QUE TUDO FOI DIFERENTE? OS LANCEIROS NEGROS NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA

(1835 A 1845).

Curitiba

2011

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RODRIGO JOSÉ PEREIRA

POR QUE TUDO FOI DIFERENTE? OS LANCEIROS NEGROS NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA

(1835 A 1845).

CURITIBA

2011

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de História da Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura Orientadora: Professora Mestre Viviane Maria Zeni

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................... 5 1. O NEGRO NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA: SOB OLHARES E INTERESSES DOS REPUBLICANOS ........................................................... 10 1.1 ESCRAVOS DO IMPÉRIO E OS ESCRAVOS DE COR ............................ 10 1.2A INSERÇÃO DOS NEGROS NO MOVIMENTO DOS FARRAPOS..........................................................................................................20 1.3PERSONAGENS NEGROS NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA..................................................................................................28 2. A BATALHA DE PORONGOS: O NEGRO E O FIM DA REVOLU ÇÃO FARROUPILHA ................................................................................................ 36 2.1A “NEGOCIAÇÃO” DA LIBERDADE EM UM CAMPO DE CONFLITOS........................................................................................................36 2.2O ATAQUE A PORONGOS: MORTE DOS LANCEIROS NEGROS E O TRATADO DE PAZ ENTRE O IMPÉRIO E OS REPUBLICANOS................................................................................................42 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 52 FONTES .............................................................................................................. 55 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ..............................................................56

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Dedico este trabalho de conclusão do curso de história a duas pessoas

muito especiais em minha vida, Dorival e Lourdes, que em nenhum momento

mediram esforços para que todos os meus sonhos fossem possíveis, que me

encaminharam pelos caminhos corretos, me ensinaram a fazer as melhores

escolhas, me mostraram que a honestidade e o respeito são essenciais à vida, e

que devemos sempre lutar pelo que queremos. A eles devo a pessoa que me

tornei, sou extremamente feliz e tenho muito orgulho por chamá-los de pai e

mãe. AMO VOCÊS!

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Agradeço a Deus onde busquei meu refúgio e força e onde sempre

encontrei respostas para os meus problemas. A Karina, pelo carinho, pela

compreensão e principalmente por acreditar em mim, obrigado. Ao meu filho

Bruno simplesmente por existir em minha vida. A professora Etelvina, pela

atenção e por estar sempre disposta a ouvir e a ajudar. Aos demais professores,

Wilma, Vera Irene, Eliane Mimesse, Erivan, Clóvis, Sandro, Valéria, Geraldo,

Pedro Valandro, Pedro Leão, Maria Aparecida, Maria Ignês, Ieda, Rafael e

Osvaldo, obrigado por fazer da “história” parte da minha vida.

A professora Viviane Zeni, minha orientadora, sem comentários, se

quando eu “doutrinar” conseguir falar sobre a história com metade do entusiasmo

com que você fala, serei muito realizado, tenho você com um exemplo a ser

seguido sempre, obrigado por todo empenho dispensado e pela grande

contribuição com o meu tema, guardarei para sempre suas aulas contagiantes,

muito obrigado.

Aos meus colegas, que foram essenciais no decorrer do curso e que foram

meu sustento e apoio. Andreza e suas jujubas, Celso e seus “muitos caminhos

diferentes”, Fran minha colega “cheio das frases”, Mônica a baladeira da turma,

Luiz, o mais Terribille de todos, Tiago o coraçãozinho das pedagogas, Tamires

nossa eterna representante “de esquerda”, Frei o orientador de todos nós, a luz

“das trevas” e Salete, minha grande amiga, companheira de trabalhos, de correria

do dia a dia, sempre com bom humor e palavras de incentivo” vai dar certo, nos

vamos conseguir”. Caros e bons amigos e professores, agora posso dizer, nós

conseguimos. OBRIGADO.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho buscou analisar a condição do negro na região, que

atualmente representa o Rio Grande do Sul e que foi palco de uma das maiores

revoltas que o país vivenciou no século XIX: a Revolução Farroupilha. Muitas

análises referente a essa revolta foram realizadas, sem contudo, destacarem a

importância do negro nesse movimento. O Rio Grande do Sul, como muitas

regiões do país, relegou o negro a um mero espectador e o seu passado de lutas

foi por muito tempo ignorado pela historiografia tradicional.

Visando compreender melhor as formações sociais, no sentido de entender

o escravismo presente nas várias regiões da Província, o objetivo desse trabalho

consistiu em discutir a participação dos Lanceiros Negros, no período da

Revolução Farroupilha (1835 a 1845), e num duplo sentido analisar em que

medida as representações de liberdade conduziram esse grupo aos campos de

batalha.

A relação entre Revolução Farroupilha e os escravizados negros, parece

óbvia, mas não natural. Os escravizados foram utilizados como uma força de

extrema valia pelos líderes farrapos, que criaram um agrupamento somente de

soldados negros, chamados de “Lanceiros Negros”. Esses soldados foram

cooptados, principalmente para lutarem pela causa farrapa e conquistar a sua

liberdade ao final da revolta, admitidos pelos revolucionários devido ao escasso

número de pessoas que habitavam a Província de São Pedro, no período da

Revolução.

Os Lanceiros Negros eram excelentes cavaleiros, característica esta trazida

de seu trabalho diário com o gado, principal fonte de renda dos rio-grandenses.

Juntaram-se a causa farrapa e foram trazidos de diversas regiões da Província.

Alguns se associavam a revolução por iniciativa própria, enquanto outros

lutavam para que seus donos não necessitassem ir à guerra.

O trabalho não busca negar a possibilidade de o negro escravo se aliar ao

branco escravagista, mas entender e apresentar melhor essa situação,

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demonstrando em que condições essa aliança se dava. Também nesse estudo

monográfico não visa retratar os abolicionistas rio-grandenses e sim apresentar as

representações que esses criaram perante os negros. Desde o início do

movimento os revolucionários farroupilhas trataram de oferecer plena liberdade

aos cativos, buscando legitimar os ideais da Revolução Francesa, em relação as

noções de “liberdade, igualdade e fraternidade” e com isto, conquistaram o apoio

dos proprietários, fornecendo-lhes garantias de que seriam indenizados, mediante

venda dos bens dos legalistas pró-Império, para ressarcir a incorporação dos

negros na revolta.

A Revolução Farroupilha foi iniciada pela elite rio-grandense, ou seja, os

estancieiros produtores de charque, principal atividade econômica da região.

Com a criação da Republica Ocidental do Uruguai, estes estancieiros perderam

parte do poder político que exerciam na região e com os acordos comerciais

firmados entre o governo imperial e o país vizinho, tornou-se mais vantajoso,

para as demais províncias, importar o charque, do que adquiri-lo na Província do

Rio Grande. Essa decisão causou enorme descontentamento por parte destes

produtores. Estes passaram a afirmar que haviam se tornado “escravos” do

Império.

Em vinte de setembro de 1835, os ressentimentos geraram uma revolta e

sob o comando do General Bento Gonçalves, ocorreu o cerco a Porto Alegre que

marcou definitivamente o início da revolução. Os revolucionários republicanos

conquistaram muitos adeptos as causas da revolta e tomaram cidades

importantes, que passaram ao domínio da “Nova República”. Em 1836 foi

declarada a República do Piratini, pelo General Antonio de Souza Netto e o

definitivo rompimento com o governo imperial. As tropas imperiais rumaram em

direção ao Rio Grande e inúmeras batalhas foram travadas nos pampas rio-

grandenses, com vitórias e derrotas de ambos os lados. Os Republicanos

avançaram, não somente na Província de São Pedro, como também chegaram a

Santa Catarina, liderados por Giussepe Garibaldi, criando a República Juliana.

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O período que marcou a Revolução Farroupilha foi de extrema incerteza

na região, principalmente no que diz respeito a divisão territorial, com a

devolução do território uruguaio, agravado principalmente pela minoridade de

Dom Pedro II e a dificuldade de negociação para os questionamentos que os

republicanos faziam. O local onde travou-se a Revolução era de difícil acesso,

principalmente pela precariedade de suas estradas, que eram escassas. Os

republicanos levavam vantagem nas batalhas travadas, basicamente por

conhecerem melhor a região, sendo-lhes favorável em muitas vitórias que

obtiveram.

A revolta dos estancieiros durou dez anos, em períodos de combates mais

intensos, contrastados com outros de poucas lutas. Muitos líderes tiveram

destaque nestes anos de luta, como Bento Gonçalves, o general Netto, David

Canabarro, pelo lado dos republicanos e Luis Alves de Lima e Silva ( o Barão de

Caxias) “grande pacificador” ao defender os interesses do Império. Ao final da

longa Revolução, com os dois lados enfraquecidos e poucas conquistas reais, em

1845 deu-se a assinatura da concessão de paz, já sem a presença da maioria dos

generais farrapos, afastados por divergências, em relação aos rumos que a revolta

tomara. Poucas reivindicações foram conquistadas pelos farrapos ao final da

revolta mantiveram-se as bases sociais pré-estabelecidas, com o massacre de

grande parte da tropa negra que deveria ser libertada.

As indicações teóricas de Bronislaw Baczko foram significativas para esse

estudo monográfico, uma vez que sua análise sobre os imaginários sociais,

contribuiu para estabelecer uma relação entre a imaginação e a política e o

imaginário e o social para os revoltosos rio-grandenses. As representações que os

republicanos utilizaram para obter o maior número de adesões à causa e o modo

como regularam a vida das pessoas, foi outro ponto abordado com bases nas

indicações desse autor. Do historiador Roger Chartier foram utilizadas as suas

orientações sobre as representações sociais, pois os republicanos como os

imperiais se valeram dessa prática, para firmar o poder e a dominação, sobretudo

perante os Lanceiros Negros.

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Alguns referências historiográficos sobre o movimento revolucionário,

foram utilizados visando uma melhor compreensão do contexto rio-grandense

durante a Revolução Farroupilha. No entanto, dois trabalhos foram de

fundamental importância e por isso mais utilizados. As análises de Sandra

Pesavento, sobre a Revolução Farroupilha, e a presença do negro e sua

importância para a longa duração da revolta, e os estudos de Moacyr Flores,

historiador gaúcho, que dedicou boa parte de suas pesquisas para o tema sobre os

negros no Rio Grande do Sul. Este último autor foi de grande valia, devido a

análise e apresentação dos documentos que compõem parte do Arquivo Histórico

do Rio Grande do Sul, especialmente a coleção Varella, conjunto de obras sobre

o período mais conturbado da história do Rio Grande do Sul.

As fontes utilizadas foram basicamente os dados do periódico O POVO,

que circulou durante o período da Revolução Farroupilha, sendo este editado pela

ala italiana dos farrapos e também dados do Arquivo Histórico do Rio Grande do

Sul, extraídos da coleção Varella, que apresenta relatos, tanto dos chefes

farrapos, como dos soldados negros: os “Lanceiros Negros”.

Com base nestes suportes teóricos, bibliográficos e conjunto documental,

esse trabalho foi dividido em dois capítulos. O primeiro capítulo apresenta

parcialmente os motivos que conduziram a Província de São Pedro rebelar-se

contra o Império. A inserção dos negros como soldados dos republicanos e todas

as representações criadas sobre a presença deste contingente no movimento

também discutidos, além da escravidão, sob a ótica dos republicanos. Na

sequência foi abordada a criação do agrupamento de soldados negros, intitulados

Lanceiros Negros e o seu recrutamento para finalizar com uma abordagem que

contou com os relatos de vida dos lanceiros, que lutaram na revolução, sobretudo

os relatos de Francisco Cabinda e José de Angola, que permitiram analisar o

imaginário criado pelos negros em relação a revolta e como essas pessoas se

inseriram nela.

No segundo capítulo, foi apresentada a luta dos cativos para a conquista da

liberdade, e o ataque a Porongos, que levou definitivamente a assinatura da

concessão de paz e local onde os negros, incorporados ao exército republicano,

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por ordem do Barão de Caxias e conveniência do general farrapo Canabarro,

foram dizimados para atender os propósitos do Império.

Importa aqui ressaltar que, a nova historiografia deixa clara, a importância

dos negros no Rio Grande do Sul, inclusive na sua formação, sem, contudo

deixar de mencionar, que na maior parte das veses os negros foram e ainda o são

em muitos casos, tratados como algo de menor valia. É interessante observar o

tratamento dado ao negro, como uma figura quase anônima: mulatos e negros;

preto velho; negro Francisco; preto José; aquele negro. Ou seja, o negro, em sua

maioria, é um ser comum, coletivo, ausente.

Embora, em alguns casos, a inserção do negro na produção seja um fator

que o qualifica, como no caso de cozinheiros ou como guardadores de fazendas,

algo que foi muito comum durante o período da Revolução Farroupilha essa

mesma qualificação não autoriza uma efetiva expressão de direitos individuais

que possam expressar a efetiva mudança da condição de cativo. Em uma

realidade, onde brancos e negros lutaram juntos é importante problematizar sobre

as relações sociais, com objetivo de ajudar a reconstruir a história dos negros rio-

grandenses. E, compartilhando das reflexões de Eric Hobsbawm, quando afirma

que os vencedores sempre pensam que a história terminou bem, porque eles

estavam certos à medida que aqueles que perderam sempre questionam por que

tudo foi diferente? Esse questionamento, de fato tornou-se a questão mais

relevante neste trabalho.

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1.O NEGRO NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA: SOB OLHARES E INTERESSES DOS REPUBLICANOS.

1.1 OS ESCRAVOS DO IMPÉRIO E OS ESCRAVOS DE COR.

No campo dos Menezes (Rio Grande do Sul), em setembro de 1836,

indignado com os arbítrios do governo imperial, o general Antonio de Souza

Netto, proclamou o seguinte manifesto:

Manifesto de Independência da Republica Rio-Grandense.

Bravos companheiros da Primeira Brigada de Cavalaria! Ontem obtivestes o mais completo triunfo sobre os escravos da Corte do Rio de Janeiro, a qual, invejosa das vantagens locais da nossa Província, faz derramar sem piedade o sangue dos nossos compatriotas para, deste modo, fazê-la presa das suas vistas ambiciosas. Camaradas! Nós, que compomos a Primeira Brigada do exército liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência desta Província, a qual fica desligada das demais do Império, e forma um Estado livre e independente, com o título de República Rio-Grandense, e cujo manifesto às nações civilizadas se fará competentemente. Camaradas! Gritamos pela primeira vez: Viva a República Rio-Grandense! Viva a independência! Viva o exército republicano Rio-Grandense! 1

Ao ovacionar e destacar a ação do exército republicano rio-grandense, os

estancieiros do Rio Grande do Sul, declararam-se livres do Império brasileiro,

contudo muitos fatos ocorreram, para que esta ação fosse tomada. No período em

que começou a Revolução Farroupilha, a província do Rio Grande do Sul era,

ainda, muito pouco povoada. Sua população concentrava-se na região da área

Central e no Litoral, com poucos centros habitacionais na zona de Cima da Serra

e nas Missões e com a Campanha ocupada principalmente por estâncias de gado.

Neste período, o Rio Grande do Sul possuía quatorze municípios, sendo

estes: Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santo Antonio da Patrulha,

1 Proclamação de 11 de setembro de 1836, Fonte Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

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Cachoeira do Sul, Pelotas, Piratini, Alegrete, Caçapava do Sul, São José do

Norte, Triunfo, Jaguarão, São Borja e Cruz Alta.2 Entre eles, três se destacavam:

Porto Alegre, capital da província; o porto de Rio Grande, por onde se fazia a

maior parte das transações comerciais; e Pelotas, que prosperava devido à

manufatura do charque. O descontentamento dos estancieiros3 do Rio Grande do

Sul começou, quando da Independência do Uruguai, do domínio brasileiro, em

1828. Com a devolução do território uruguaio, o Governo brasileiro passou a

cobrar impostos de 15%, de todo o produto que entrasse no Brasil, provindo

daquele País, gerando um grande descontentamento destes estancieiros, que

desejavam que o gado entrasse e saísse do território brasileiro como lhes

conviesse.

As elevadas taxas de impostos cobradas pelo Império sobre itens básicos

da economia tais como: animais, couro, charque e trigo, produzidos nas estâncias

rio-grandenses e sobre as terras destas pessoas, permitiam que os gritos de

insatisfação contra o Império começassem a eclodir em toda a Província. A

tensão aumentou com a recusa do Imperador em dialogar com os estancieiros,

conduzidos por Bento Gonçalves da Silva, na noite de dezenove de setembro de

mil oitocentos e trinta e cinco a avançar com cerca de 400 homens, sob a cidade

de Porto Alegre, capital da Província. Os estancieiros rio-grandenses ao

buscarem uma província mais autônoma e um governo mais flexível, expulsaram

os Imperiais e começaram a difundir as idéias de uma nova República. Esta ação

fez com que o Império contra atacasse, retomando a capital e aprisionando Bento

Gonçalves. Os Republicanos não se abateram com esta ação e em novembro de

1836, já sob o Comando de Antonio Netto, os revolucionários proclamaram a

2 VELINHO, Moysés. Capitania Del Rei- Aspectos polêmicos da formação Rio-Grandense.

Porto Alegre: Editora Globo. 1964.

3 Termo usado na fronteira do Rio Grande do Sul. Referia-se originalmente a quem recebeu terras em sesmaria com a obrigação de nelas permanecer, de modo a atender ao interesse do Governo Imperial brasileiro de guarnecer o território na divisa com outros países. Desse modo, o estancieiro devia permanecer na terra, melhor sendo que a transforme em fazenda mediante adequado aproveitamento.

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República em Piratini4 e Bento Gonçalves, ainda preso, foi nomeado presidente

assumindo somente em1837.

Com relação aos escravizados negros, a ação da “Nova República” tornou-

se contraditória e para que se compreenda a ambiguidade dos ideais e interesses

republicanos no que concerne esta questão, retornou as noções que estes homens

possuíam sobre a escravidão. Para os revoltosos do sul do País, a noção de

escravidão abrangia dois grupos sociais em dois contextos totalmente diferentes

entre si.5 De um lado tinha-se a escravidão do povo rio-grandense em relação ao

Império, pois os mesmos afirmavam que sofriam todo o tipo de moléstias e em

um segundo plano, havia a escravização conhecida como a “escravidão dos

negros”.6 Mesmo possuindo dois tipos de conotação, a escravidão era entendida

como um valor pejorativo, porém nunca colocada de igual para igual com a

escravidão negra.

Um dos pontos defendidos por Bento Gonçalves, para a revolta no Rio

Grande do Sul e o motivo pelo qual foram obrigados a pegar em armas contra o

Império estava pautado na opção “entre a liberdade e os ferros, entre a escravidão

e a morte” 7 e devido a isso, os republicanos Rio-Grandenses abraçaram a guerra

com todas as suas conseqüências.8 Em um primeiro momento, ao analisar a fala

do líder Bento Gonçalves, pode-se perceber que explicitamente o republicano faz

uma alusão ao sofrimento dos negros em relação a escravidão, porém,

implicitamente a sua fala conduz a um outro contexto, relacionado a situação

vivida pelo povo do Rio Grande do Sul em relação ao Império e a do Brasil em

relação a Portugal, devido a posse de Dom Pedro II como regente da Nação.

4 Piratini foi à primeira cidade a sediar a primeira capital da nova República sul rio-grandense,

devido a isto a nova República ficou conhecida como República do Piratini. Atualmente a sede do Governo do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, é o Palácio do Piratini. 5 FLORES, Moacyr. Negros na Revolução Farroupilha. Porto alegre: Mercado Aberto. 2004.

6 FLORES, Moacyr. Cultura Sul Rio-Grandense. Porto alegre: Mercado Aberto. 1998. 7 VELINHO. op.cit., p. 97. 8 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.p. 29.

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Em diversos periódicos, a insatisfação com o governo regente, era notória.

O jornal O POVO9, por exemplo, ironizava o tratamento dado as leis pelo

Império brasileiro, com a seguinte afirmação:

Quando escravos de quem nos havia barbaramente dominado por três longos e afanosos séculos nós nos elevamos à ordem de Nação, de boa vontade nos unimos a quem como nós havia aturado a escravidão, porque a comunhão da desventura cria uniformidade de necessidades, de desejos, de votos; e as nossas necessidades, nossos desejos, nossos votos, eram ter uma Pátria, ter Liberdade, de marchar a uma prosperidade nacional de colônia de uma corte estrangeira européia, tornamo-nos a escrava donzela de quem se tinha se assumido o alto encargo de representar-nos a face do mundo como uma nação de livre .10

A mensagem divulgada, pelo periódico, mostra claramente a noção que os

estancieiros rio-grandenses tinham a respeito da escravidão. Importa aqui

salientar que, o jornal O POVO era editado por Luigi Rosseti, tendo os seus

pilares fundamentados nos ideais liberais e para divulgar tais princípios, o

periódico utilizava os ideais de filósofos iluministas. O princípio da legalidade

para o enfrentamento de um poder que ameaçava a propriedade e a soberania rio-

grandense era discutido por intermédio das ideias de John Locke. Com isso

buscava o periódico demonstrar que o Rio Grande deveria ter as mesmas regalias

que as demais províncias. De Charles-Louis de Secondat (Barão de Montesquieu)

difundia O POVO a idéia da divisão de poderes e a defesa de um governo

constitucional e representativo, no qual sobressairiam os grandes estancieiros,

pois o poder deveria ficar nas mãos da elite. Já de Jean Jacques Rousseau eram

privilegiadas as noções de liberdade e direitos individuais dos cidadãos, com

base na ideia de que o homem é bom em estado de natureza, mas era a sociedade

que o corrompia e isto justificava o direito de os homens mudarem quando

ocorresse uma discórdia com o princípio da liberdade individual, questão esta

9 O Povo foi o mais importante periódico oficial da República Riograndense. Se autointitulava Jornal Político, Literário e Ministerial da República Riograndense. Era editado por Luigi Rossetti, organizado por Domingos José de Almeida que havia comprado as prensas em Montevidéu, com o produto da venda de 17 escravos de sua propriedade no mesmo local. A tipografia e redação foram inicialmente instaladas na mesma casa onde Rossetti morava com Giuseppe Garibaldi. 10

FLORES. op.cit., p. 45 , 2004.

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muito representativa, para os republicanos arregimentarem um exército de

adeptos para as batalhas.

Os verdadeiros escravos, na concepção da palavra, foram mantidos como

propriedade, pois eram colocados junto com os bens de seus senhores, como o

gado, os imóveis e os numerários. O negro assumiu um papel de maior destaque,

neste contexto, devido a necessidade do serviço de guerra, servindo como

justificativa a sua incorporação a fim de emancipar esta “parte infeliz do gênero

humano”. A concepção que se tinha sobre os escravizados negros, indica que

embora apelassem para a humanidade e as luzes do século, sobretudo devido à

forte influência da ala italiana presente na base dos farroupilhas, os ricos

estancieiros mantiveram a visão da inferioridade do negro em relação ao branco,

afinal careciam de homens para a luta e não de cidadãos iguais aos demais.

Quando se referiam aos negros, os argumentos utilizados transpareciam

sobrecarregados de preconceitos, sobretudo quando afirmavam que a cor era um

acidente da natureza e que a minoria da sociedade constituía uma “parte infeliz

do gênero humano”.11

À liberdade do negro era imposta a condição do serviço militar, nunca

concedida por motivos morais ou acordos que fossem justos e legais na forma da

lei. Esta situação de suposta liberdade, nada mais era do que uma troca entre

dessemelhantes, que por isso poderia ser desfeita a qualquer momento, pela parte

mais relevante entre os envolvidos, jamais pela parte mais fraca. Jogando em

duas frentes, de certo modo, o Governo Republicano demonstrava apoio aos

escravizados negros, sem, contudo, retirar-lhes a sua condição de dependentes.

Os Republicanos condenavam a “negociação de carne humana”12,

principalmente pelos escravos capturados em navios negreiros, estes já proibidos

de atracar em portos brasileiros desde o ano de 1826. A censura ao tráfico era

clara e deveria ser condenada pelos homens e amaldiçoada por Deus.13 Esta

prática, antes de ser condenável, no que diz respeito à igualdade das pessoas, era

muito mais questionada pelo atraso que trazia para o Império como um todo.

11 PESAVENTO. op.cit., p. 54. 12 VELINHO. op.cit., p. 97. 13 FLORES. op.cit., p. 17 . 2004.

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No plano discursivo, a “nova República”, possuía como objetivo

transformar a realidade social e econômica fundamentada no trabalho escravo.

Porém, por intermédio de seus líderes e das ações que realizaram, não só

mantiveram as práticas escravistas, como fizeram delas, alguns dos pilares que

sustentaram o movimento Republicano, quando este já não tinha mais

perspectivas de uma vitória final e também quando se viram sem braços para

manter a luta.

As novas ideias buscavam uma forma de nortear o imaginário coletivo,

esta prática utilizada pelos farrapos consolidou uma política tradicional, que

envolvia diferentes correntes de pensamentos e posições. Por um lado os farrapos

utilizavam de uma política carismática, na qual a emoção emergia dos fatos da

razão. Já por outro lado utilizaram a política burocrática com todo o seu jogo de

ganhos e concessões, pouco benéficos aos menos favorecidos.14

Durante a ” Revolução”, os negros tiveram momentos de certo destaque,

como na conquista de Laguna, em Santa Catarina, onde junto ao revolucionário

italiano Giussepe Garibaldi , os Lanceiros Negros invadiram e tomaram a cidade,

para que o Governo Republicano, tivesse acesso a seu porto, uma vez que em

Montevidéu, estavam proibidos de atracar. Como o branco Rio-Grandense não

aceitava ir à luta nas embarcações, o Governo viu-se obrigado a mais uma vez

utilizar-se dos negros como marinheiros, os quais formaram a tripulação dos

lanchões, Seival e Farroupilha.15

Devido a negativa de muitos soldados brancos em participar de

determinadas batalhas, Bento Gonçalves, em junho de 1841, ordenou que os

escravos e os peões de serviço de fazendeiros não necessitariam de salvo conduto

para transitar no distrito, mas deveriam carregar um documento que permitisse

verificar a sua ocupação.16 Com este ato, Bento Gonçalves, cortou certos grilhões

referentes à escravidão, despertando no imaginário de muitos escravizados,

14

FLORES. op.cit., p. 22., 1998. 15SPALDING, Walter. A Epopéia Farroupilha. Rio de janeiro: Editora Biblioteca do Exército. 1963. 16 FLORES. op.cit., p. 62 , 2004.

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representações engrandecedoras de liberdade, a fim de obter o maior número de

adesões possíveis para o exército farrapo.

Bento Gonçalves conseguiu, com esta concessão, criar um imaginário de

expectativas e aspirações entre os negros que compunham a sociedade rio-

grandense. Os escravizados negros, vislumbraram com este ato, uma maior

liberdade, sem no entanto, entenderem que a dominação tradicional, ainda

imperava. Os códigos formadores estavam claros para Bento Gonçalves, e devido

a esta ação foi criada sobre a imagem do líder, a representação do bom chefe, no

caso ele próprio e do bom súdito: o negro que não tentasse a fuga, além de uma

representação inerente ao guerreiro corajoso, com o objetivo final do

engajamento desta parcela de escravos nas frentes de batalha.

Cabe aqui lembrar que, a cultura rio-grandense contribuiu para forjar esta

representação de igualdade e soberania. Por meio de sua base praticamente toda

voltada à pecuária e com componente militar presente, que lhes fora concedido

pelo próprio Império quando da anexação da Província Cisplatina do Uruguai,

criou-se um padrão e um comportamento do povo desta região, tanto na política

quanto nas lutas. Esse padrão se entrelaçou na cultura sulina dos brancos como

também dos negros que conviviam com seus senhores, fazendo que essas

pessoas, valorizassem a sua luta de tal forma, que grande parte dos revoltosos

julgavam que seus ideais eram os únicos corretos e justos.17 Os líderes farrapos

fizeram uma importante relação, entre o poder e o imaginário político. O

controle deste poder simbólico pelo poder político foi estratégico, pois com esta

ação ocorreu a dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantiu-se a

obediência pela conjugação das relações de poder. 18

Os líderes estancieiros buscavam um poder de decisão por meio do

sistema federativo e fundamentavam as suas reivindicações nas propostas liberais

que, naquele momento, eram impensáveis para o Império. Os farroupilhas em

momento algum buscaram um liberalismo radical para reestruturar a sociedade,

conforme afirma o historiador Moacyr Flores em suas análises sobre a Revolução

17 FLORES. op.cit., p. 50 , 2004. 18 BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Enaudi v.5 , Lisboa: Imprensa Nacional/ casa da moeda. 1985 p. 311.

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rio-grandense. Para o autor, os líderes farrapos mantiveram a maioria das leis

praticadas no Império e somente basearam-se nos ideais e conceitos dos governos

republicanos devido ao contato comum com os países vizinhos, sobretudo com o

Uruguai, como também devido a influência de seus aliados italianos, entre os

quais se destacaram, Luigi Rosseti e Giuseppe Garibaldi.19 Compartilhando, das

indicações de Sandra Pesavento, pode-se afirmar que o movimento separatista

ocorreu dentro da classe dominante pecuarista e jamais se estendeu ao povo em

geral, povo este somente necessário pelos longos anos de lutas travadas contra o

Império.20

Os farrapos, mesmo lutando fundamentados nas ideias liberais, que não

necessariamente estavam claras a todos, conseguiram controlar e monopolizar as

demais categorias da sociedade, para que se unissem e lutassem contra a tirania

do Império. Pretendiam os revoltosos, desenvolver na vida coletiva dos cidadãos

do Rio Grande do Sul, um ideário político baseado na liberdade e igualdade de

todos os rio-grandenses perante ao Império, ação que segundo Sandra Pesavento

transformou-se no real começo do ser “gaúcho”,um povo que defendia a

liberdade, e devido a isto, capaz de manifestar os princípios legitimadores, por

meio de um poder igualitário para todas as pessoas, que formariam a base dos

cidadãos honrados.21 Nesse sentido defender os princípios dos grandes

estancieiros era enfim defender o Rio Grande do Sul.

O imaginário, gerado em torno da Revolução Farroupilha, regulou a vida

coletiva das pessoas e muitas referências simbólicas surgiram fervilhantes aos

anseios do povo. Mitos e símbolos surgiram dentro deste emaranhado de ações

tomadas, por parte dos farroupilhas. Este imaginário coletivo que se organizava

19 FLORES, Moacyr. Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AHRGS. 1978. 20 PESAVENTO. op.cit., p. 32. 21 A expressão "gaúcho" surge nos documentos a partir de 1790, como sinônimo de gaudério e também para designar os ladrões de gado. Até a metade do século XIX, o termo gaúcho era ainda depreciativo. Tal afirmação pode ser corroborada a partir de relatos de Saint Hilaire quando o viajante, em 1820, se referia a esse grupo social, denominando-os de “homens sem religião nem moral, de nome de Garruchos ou Gahuchos". O reconhecimento de sua habilidade campeira e de sua bravura na guerra Cisplatina fez com que o termo "gaúcho" perdesse a conotação pejorativa, exaltando a sua coragem, o apego a terra, o seu amor a liberdade, conforme dados de Carneiro, David. História da Guerra Cisplatina. Brasília. Editora Universidade de Brasília. 1982.

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começou a moldar a identidade do povo gaúcho, criando um afeto real, emotivo e

racional. No capital simbólico, criado pelos farrapos, por meio de estratégias

explícitas, daquilo que era importante lembrarem e fabricado pelo poder do

Estado, em detrimento de algo maior, o negro foi colocado às margens da história

e esquecido por ela que somente glorificava os feitos dos heróis farroupilhas.

A representação criada pela Revolução Farroupilha, referente à liberdade

envolveu também à população menos abastada, composta por pessoas pobres de

cor branca, como também por negros, mestiços e indígenas. Os negros

associaram a liberdade com a vida campeira que levavam, na qual os campos

sem fim representavam a sua maneira de viver. A imensidão latifundiária foi em

muito confundida com a liberdade sonhada. A liberdade para o negro existiu,

todavia entre as cercas das estâncias.

A representação que a população rio-grandense construiu sobre a sua

identidade, foi de certa forma, fundamentada sobre este momento histórico

vivido. Partindo do pressuposto que qualquer indivíduo tem a necessidade de

situar-se como parte complementar de uma nação, embora as identidades se

transformem e se moldem conforme são absorvidas, pode-se concluir, com base

nas indicações de Roger Chartier, sobre as representações sociais, que o povo

Rio Grandense submergiu em toda a representação criada, fundamentando desta

forma seus hábitos e principalmente suas aspirações políticas.22 O poder imposto

pela cultura dos ricos estancieiros moldou valores internos em toda a sociedade,

envolvendo também as pessoas menos favorecidas e de menor instrução. Os

valores que foram agregados aos negros, quando na defesa do território rio-

grandense, eram de audaciosos e virtuosos de reconhecimento, principalmente

quando se tratava dos Lanceiros Negros, como será evidenciado no desenvolver

deste trabalho. Contudo os negros escravos capturados do Império eram

mandados às fazendas, para realizarem o trabalho braçal, o que demonstra que os

republicanos não buscaram, como diziam em seus discursos recuperar ou inserir

socialmente o negro na sociedade proposta.

22 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 16.

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Os farroupilhas defendiam a propriedade privada, não aceitavam que o

Império ingerisse nas mesmas, pois pregavam que se tivessem total controle de

suas propriedades, desta for sim teriam a sua verdadeira “liberdade”.

Questionavam também o pouco poder político que tinham nas decisões que o

Império tomava, e por isso vislumbravam-se como escravos de um governo que

já não mais legitimavam. O povo foi conduzido a não entender o fundo

ideológico da situação, pois os discursos pronunciados pelos farrapos tinham a

intenção de influenciar as ações dos cidadãos rio-grandenses, a fim de estabelecer

identidades e representações que seriam responsáveis pelo sentido da existência

dos diversos grupos ali presentes.23

O habitante do sul do País foi bombardeado por diversos símbolos de

pertencimento, como por exemplo, a defesa dos seus direitos, do enfrentamento e

da coragem consolidados constantemente por representações de bravura e

valentia, luta e liberdade. Tais representações forjaram, mesmo no seu tempo, os

valores e a importância da Revolução Farroupilha para a não subjugação do

povo. A identidade sulina, criada e fortemente fundamentada, nessas

representações, por um lado incluiu uma parcela da população, os senhores de

maiores posses e consequentemente da maioria das terras e por outro lado,

afastou o restante da população, representada por aqueles com menores

condições econômicas e destituídos de terras que garantiam o exercício do poder.

A crise política vivenciada durante a Revolução Farroupilha, possibilitou

ao povo rio-grandense, construir novos significados e renovar o seu imaginário.

O sentimento de pertencimento a uma nação justa, tanto para os brancos, que se

consideravam “escravos” do Império, como para os negros que eram escravos

dos brancos “escravos”, possibilitou a construção de uma identidade. O povo que

participou da Revolução criou um elaborado emaranhado de significações,

visando justificar as idéias e as concepções impostas pelos latifundiários, sobre

as quais foi construída uma realidade, imposta pelo grupo dominante e

institucionalizada, pelos líderes farrapos, mitificando a existência destes líderes,

23 SCHEIDT, Eduardo. Concepções de República na Região Platina à época da Revolução Farroupilha. São Leopoldo: UNISINOS, 2000.

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20

que buscavam criar uma identidade pra cada grupo dentro da sociedade rio-

grandense.24

Nesse contexto, de escravidão de brancos e negros, todos lutaram,

venceram e perderam batalhas, porém somente uma pequena parcela da

sociedade, representada pelos brancos conseguiu atingir os seus reais objetivos: a

igualdade com o restante do País. Os negros por sua vez, continuaram em sua

luta por igualdade, igualdade esta que jamais foi alcançada. Os rio-grandenses

defenderam os seus líderes e os exaltaram como grande colaboradores da

Revolução Farroupilha, entretanto “esqueceram” do restante da sociedade, que ao

final da Revolução mantinha-se, como no início, sem direitos definidos e com os

seus objetivos a atingir. A Revolução no começo se apropriou do termo

“escravo”, para mostrar a sua insatisfação perante o Império, mas jamais lutou

realmente, para que a verdadeira escravidão acabasse. Nesse sentido, emerge um

questionamento: os negros foram importantes nestas lutas? Sem dúvida, muitos

por intermédio de seu trabalho, valentia e vontade de viver livremente,

participaram da Revolução. Essas pessoas não participaram de decisões, nem de

lideranças restando-lhes apenas o esquecimento. E com o intuito de retirá-los da

enorme “condescendência da posteridade”, nos próximos capítulos será abordada

a participação dos negros, mais particularmente, dos Lanceiros Negros na

Revolução que atingiu as almas e as mentes do povo rio-grandense.

1.2 A INSERÇÃO DOS NEGROS NO MOVIMENTO DOS FARRAPOS.

Apesar de não estarem presentes, como já citado, na maioria dos relatos da

historiografia tradicional, um grupo de negros do território rio-grandense teve

significativa participação junto às tropas farrapas que guerreavam contra o

Império.25 Esse grupo compôs durante a Revolução Farroupilha, um terço do

exército farrapo, e atuou em duas áreas: a cavalaria e a infantaria, tropas militares

24 PIROTTI, Simone. O Gaúcho e a integração cultural. Santa Maria. UFSM. 2002. p 17. 25 Período este, que devido às roupas já estarem esfarrapadas, devido aos anos de guerra e com muitos remendos, as tropas Republicanas, começaram a ser chamadas pelo Império de “farrapas”, como modo de diminuir a capacidade e de ridicuralizá-los.

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criadas em setembro de 1836 e agosto de 1838 respectivamente, as quais foram

chamadas de “Corpo de Lanceiros Negros”.26

Os agrupamentos de Lanceiros Negros eram mesclados de negros livres e

escravos alforriados, pela nova República, com a promessa de liberdade total ao

fim da Revolução Farroupilha.27 Mesmo antes da criação do Corpo de Lanceiros

Negros, estes já lutavam junto às tropas farrapas, como por exemplo, no combate

de Porto Alegre em setembro de 1835, na qual os farrapos dominaram a cidade.

De acordo com Calvet Fagundes, durante o cerco a Porto Alegre, Bento

Gonçalves ao avançar as trincheiras contra as forças inimigas, contava com 400

soldados, “quase todos de cor preta e com igual número de montaria” 28, o que

indica, a falta de homens para a luta armada. Já na batalha de Pelotas, em abril de

1836, após o término do combate, o então chefe do agrupamento farrapo e um

dos líderes do movimento separatista, João Manuel de Lima e Silva29 libertou e

armou centenas de escravizados negros e ao defender a sua decisão, mostrou que

esses tinham grande disciplina militar e por isso deveriam imediatamente serem

incorporados às tropas republicanas antes que o Império mandasse reforços.30

Os negros, que estavam na condição de alforriados ou livres, ou até

mesmo os que por ali apareceram foragidos das estâncias do Uruguai31, serviram

de maneira eficaz na causa da Revolução Farroupilha, não somente como

soldados, mas também como mensageiros e condutores de tropas, tanto de gado

bovino quanto de gado equino pelos pampas gaúchos, além de auxiliarem na

26 FLORES. op.cit., 1998 p. 30. 27 PESAVENTO. op.cit., p. 21. 28 FAGUNDES, Morivalde Calvet. História da Revolução Farroupilha. Caxias do Sul: EDUCS, 1989.p. 225. 29 João Manuel de Lima e Silva tio de Luis Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, denunciado como rebelde e acusado de manter entendimentos secretos com Juan Antonio Lavalleja para a separação do Rio Grande do Sul, foi chamado à Corte, junto com Bento Gonçalves e defendeu-se perante o Ministro da Guerra, sendo absolvido e recebido triunfalmente no regresso à Província. 30 FLORES op.cit., p. 47. 1978. 31 Muitos fazendeiros possuíam terras tanto do lado brasileiro, como do lado uruguaio, pois em muitos casos até mesmo a fronteira se confundia. Para não entregar todos os seus escravizados para os revolucionários, muitos estancieiros levavam seus negros para o lado uruguaio, mesmo que no Uruguai já não existisse mais escravidão, contudo a vida que os escravizados levavam pouco modificava tanto de um lado quanto de outro, e essa situação incentiva isso, a fuga dos negros para se juntarem às tropas farrapas em busca de sua liberdade.

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fabricação da pólvora para o abastecimento das armas do Exército Farroupilha.

Esses “soldados” eram na sua maioria das Serras de Tapes e do Herval, (atuais

municípios de Canguçu, Piratini, Caçapava, Encruzilhada e Arroio Grande) e

exerciam atividades como domadores e campeiros, os quais viviam tomando

conta do gado nas fazendas produtoras de charque.

A população do Rio Grande do Sul, no período da Revolução Farroupilha,

não passava de cento e cinqüenta mil habitantes, sendo que cerca de 30% era

composta de negros, indígenas e mestiços. Cabe aqui ressaltar que, no período

que antecedeu a Revolução, a maioria dos negros que se concentravam no Rio

Grande do Sul fora deslocada do Rio de Janeiro, conforme relata Nicolas Dreys.

Nesse tempo, indica o autor, o Rio Grande era:

[...] considerado um purgatório para os negros; [...] quando um negro de outra província manifesta uma disposição viciosa, o porto de Rio Grande era o destino que lhe cabia como castigo; e quase todos os dias periódicos da corte ofereciam negros para vender, com a condição expressa de serem levados para o Rio Grande.32

Nesse sentido, o Rio Grande do Sul passou a ser considerado, no

imaginário dos negros, uma terra onde seriam severamente castigados, de forma

ainda mais cruel, do que em outras Províncias. No entanto, toda esta

representação, criada em torno do sofrimento, caía por terra quando os

escravizados chegavam a Província rio-grandense, pois, conforme dados da

Coleção Varela, do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, vários documentos,

referente aos negros, relatam que muitos exerciam a função de capatazes nas

fazendas criadoras de gado e produtoras de charque, os quais, inclusive, em

várias ocasiões, ficavam responsáveis pela fazenda quando o dono se ausentava,

principalmente no período da Revolução Farroupilha. Este imaginário, criado

sobre um maior sofrimento, não era favorável para nenhum dos dois lados, pois

para os negros, criava-se mais uma representação do irreal e para os fazendeiros,

32

DREYS, Nicolas. Noticia descritiva da Província de São Pedro. Porto Alegre: Ed. Nova Dimensão, 1852, p. 228.

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em um primeiro momento, restavam-lhes negros, que chegaram com vícios e

rebeldia. Porém, com o passar dos anos da Revolução Farroupilha, os negros

acostumados a não ceder facilmente ao regime escravista, mostraram-se

favoráveis aos republicanos que, por sua vez, souberam de forma eficaz, usar

toda esta valentia e obstinação a seu favor, obtendo assim soldados destemidos e

que lutassem pela causa.

A importância dos negros, para o exército farrapo pode ser confirmada,

quando em novembro de 1838, foi criada a “lei da chibatada”, lei esta elaborada

pelo Governo Imperial, como forma de coibir o alistamento dos negros no

Exército revolucionário, ao estabelecer que todo o escravo que fizesse parte das

tropas farrapas, deveria receber de 200 a 1000 chibatadas. Ao mesmo tempo, o

governo vigente prometia carta de liberdade a todo o escravo insurgente que se

apresentasse às forças imperiais. De pronto o exército farrapo divulgou um ofício

no jornal O POVO, como forma de rebater tal lei, conforme pode-se perceber no

discurso publicado pelo periódico:

Caçapava, 11 de maio de 1839 4º da Independência e da República Rio-Grandense. Tendo o tirânico Governo do Brasil, por aviso da repartição da Justiça, de 15 de novembro de 1838, determinado ao intruso e intitulado Presidente da Província do Rio Grande de São Pedro, a aplicação de 200 a 1000 açoites a todo homem de cor, que livre do cativeiro, em conformidade com as leis desta República, tiver feito parte de sua força armada e vier a cair prisioneiro das tropas chamadas legais, despreza aquele imoral governo toda a espécie de processo e formalidade judiciária para a qualificação daquele suposto crime. Foi em obediência às sagradas leis da humanidade, luzes deste século e aos verdadeiros interesses dos cidadãos de Estado, é que o Governo [da República Rio-Grandense] passou a libertar os cativos aptos para a profissão das armas, oficinas e colonização, a fim de acelerar, de pronto, a emancipação dessa parte infeliz do gênero humano. E, isso, com o grave sacrifício da Fazenda Pública, pois os que exigiram a indenização desses cativos, a receberam de pronto ou receberam documento para indenização oportuna. O Presidente da República para reivindicar os direitos inalienáveis da humanidade, não consentirá que o homem livre rio-grandense, de qualquer cor com que os acidentes da natureza o tenham distinguido, sofra impune e não vingado, o indigno, bárbaro,

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aviltante e afrontoso tratamento, que lhes prepara o infame Governo Imperial. Em represália à provocação decreta: Artigo Único: Desde o momento em que houver notícia certa de ter sido açoitado um homem livre de cor a soldo da República, pelo Governo do Brasil, o General Comandante de Exército ou o comandante de qualquer Divisão tirará a sorte entre os oficiais imperiais, de qualquer patente, nossos prisioneiros e fará passar pelas armas aquele oficial que a sorte designar. Domingos José de Almeida. Ministro e Secretário de Estado de Negócios do Interior, Fazenda e Justiça.33

Com uma promessa de liberdade para os negros, os republicanos

obtiveram soldados que se lançavam como verdadeiras feras nas batalhas e nas

missões geralmente mais arriscadas, sobretudo devido à grande mobilidade que

possuíam, por lutarem tanto a pé como a moda charrua34 e usarem lanças com

três metros de altura, ação esta que deu origem ao nome de Lanceiros, embora

em algumas ocasiões também usassem armas de fogo. Os Lanceiros atacavam

seus adversários com muitos gritos com o objetivo de amedrontá-los e em pouco

tempo já eram temidos por diversos adversários, que evitavam o confronto direto.

Os negros lanceiros não usavam escudo de proteção, somente um poncho

de lã, chamado de bichará, o qual enrolavam no braço para servir de proteção

contra os ataques dos inimigos. O bichará também possuía outras serventias, pois

era utilizado como cobertor e protetor nos dias de chuva e intenso frio do Rio

Grande do Sul.

Os Lanceiros Negros eram homens rústicos e disciplinados e a sua guerra

feita dos recursos naturais presentes nos campos de batalha. Alimentavam-se

com o que tivessem a sua disposição e dormiam em qualquer lugar do pampa sul

rio-grandense e de Santa Catarina.

A Revolução, neste momento, já atingia praticamente todas as partes do

Rio Grande do Sul e os líderes farrapos não conseguiam fazer com que o

Império, aceitasse as suas reivindicações. Neste momento do combate, os

Lanceiros já haviam vencido importantes batalhas no Rio Grande do Sul e

33 Jornal O POVO, Porto Alegre: Editor Luigi Rosseti, fev. 1839, p. 27. 34 Charrua: montaria em cavalo sem encilhamento, modo pelo qual os índios charruas montavam seus cavalos.

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também em Santa Catarina. O corpo de Lanceiros Negros já havia aumentado

consideravelmente, criando assim um código de expectativa e esperança, por

parte dos negros, pelo fim da Revolução. Foi um período, onde a revolta, parecia

pender para o lado dos farrapos, e devido a isso, várias espécies de símbolos

foram muito bem utilizados por seus líderes como modelos formadores de uma

nova sociedade. Como já citado, muitas representações atribuídas aos grandes

chefes, “líderes salvadores” bem como ao povo “leal a nobre causa” foram

criadas pelos revolucionários. Os Lanceiros não escaparam a este cenário e a eles

atribuiu-se a representação de guerreiros corajosos e aguerridos, firmando assim

o imaginário de homens valorosos.

Importa lembrar aqui que, mesmo aceitando a presença do negro,

enquanto a Revolução corria, muitos estancieiros, eram temerosos que a sua ação

causasse revoltas e a falta de mão-de-obra, uma vez que possuíam muito dinheiro

aplicado nos escravos, deixando claro, sobre a impossibilidade de libertação de

todos os escravizados, pois tal ação causaria a ruína de muitas estâncias. O ponto

referente aos escravos pertencentes à província do Piratini nunca foi totalmente

encerrado, somente os negros que lutaram ao lado dos farrapos tiveram a

expectativa de libertação. Mesmo lutando pela liberdade e igualdade, os

republicanos conservaram uma afinidade duvidosa com a escravidão.

Aparentemente eram partidários da libertação de todos os escravos, porém não a

praticaram totalmente, somente quando lhes convinha, ou seja, os negros

somente mereceriam a liberdade, desde que lutassem pela Revolução. No

entanto, para os demais negros, o comércio do charque era mais importante, pois

o Rio Grande do Sul, precisava se livrar das garras dos impostos do Império, o

que implica na necessidade de os estancieiros manterem a mão-de-obra, para dar

continuidade a esta conquista, mão-de-obra esta, negra e escravizada.

A impossibilidade de uma liberdade geral ficava clara, inclusive nos

anúncios do jornal O POVO, que defendia as causas revolucionárias. Neste

periódico os artigos libertários saíam ao lado de anúncios de compra e venda de

escravos. Em agosto de 1839, por exemplo, o mesmo jornal fez uma crítica aos

portugueses, referente ao comércio de escravos que, segundo o periódico,

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conduziria o Brasil a se africanizar.35 Muitos patriotas da “nova República”

criticavam a escravidão, sem, contudo questionar o governo republicano, que

mantinha a escravidão, pois para a República somente eram considerados

homens libertos aqueles que se juntassem a causa farrapa. Os demais escravos,

que trabalhavam nas fazendas e também nas cidades, nunca foram considerados

livres, pois a nova República não acabou com a escravidão.

O medo de uma rebelião de negros no Rio Grande do Sul fazia parte do

imaginário da época, principalmente pela maior “liberdade” e mobilidade que

possuíam neste período. Para Bronislaw Baczko, em seu estudo sobre os

imaginários sociais “a elaboração de práticas e técnicas de manejamento de

imaginários tem prioridade sobre qualquer outro tipo reflexão” 36. Desta forma

pode-se afirmar, que os líderes farrapos, monopolizaram várias categorias de

símbolos, que serviam ao seu interesse, tanto para conter os estancieiros como

para garantir os negros na luta. Este conjunto de signos, como, por exemplo, a

liberdade e um Estado livre, acabava efetivando um controle velado em ambos os

lados. O imaginário criado em torno de um Estado livre, estava acima de

interesses pessoais. A Revolução apresentava um panorama completamente

diferente do ponto de vista dos negros que lutavam em busca da liberdade,

liberdade essa de intensa produção simbólica e de outro lado os grandes

estancieiros que buscavam uma hegemonia no comércio do charque.

Ao ser institucionalizado o primeiro corpo de Lanceiros Negros em 1836,

Joaquim Pedro Soares37 foi designado como o seu comandante e subordinado a

Joaquim Teixeira Nunes.38 O número de Lanceiros Negros aumentava de acordo

com a intensidade da guerra e devido a isso os lanceiros tiveram grande

importância na vitória na cidade de Rio Pardo (1838), na conquista de Laguna,

35Jornal O POVO, Porto Alegre: Editor Luigi Rosseti, set. 1839, p. 10 36BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Enaudi v.5 Lisboa: Imprensa.casa da moeda. 1985. p 310. 37 Joaquim Pedro Soares formou-se em Medicina no Rio de Janeiro. Foi várias vezes deputado provincial e também deputado geral até a Proclamação da República. Teve participação importante na Revolução Farroupilha, sendo um de seus líderes. 38 Joaquim Teixeira Nunes, conhecido como o Coronel Gavião, é considerado o maior Lanceiro Farrapo. Foi o segundo comandante do Corpo de Lanceiros Negros, reconhecido líder abolicionista e defensor dos direitos dos negros.

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em Santa Catarina (1839) e no ataque a Lages, também em Santa Catarina

(1840).

Os Lanceiros Negros possuíam uma tática de luta diferente dos demais

soldados e sua especialidade consistia nos ataques surpresas, nos quais

avançavam contra o inimigo e recuavam dispersos como se estivessem fugindo,

levando o adversário para outro terreno. Nesses locais os Lanceiros já

reagrupados retornavam e venciam o seu oponente. A sua grande habilidade,

principalmente com os cavalos, era originária da vida que levavam nas estâncias,

nas quais conviviam com os indígenas e seus descendentes e também com seus

patrões, que na maioria eram ex-soldados.

Todo o negro ao ser alistado no Exército Farroupilha era obrigado a fazer

um juramento de fidelidade à causa da Independência. Cabe ressaltar que, os

novos soldados eram recrutados conforme a cor da pele, bens, instrução e

educação. Aqueles que sabiam ler e escrever eram direcionados à artilharia, esses

em sua grande maioria eram os brancos. Os negros, os indígenas e seus

descendentes39, por serem, considerados mais ágeis e corajosos eram

incorporados aos Lanceiros Negros.

O primeiro corpo de Lanceiros Negros era composto por oito companhias

de cinqüenta e um homens cada, sendo que ao final da Revolução Farroupilha o

número de lanceiros chegou a um total de novecentos e cinqüenta e dois. Além

dos negros que se alistavam por conta própria, na maioria fugidos das estâncias e

em busca de liberdade, também era permitido a todas as pessoas simpatizantes

com a causa Republicana, indicar negros de sua propriedade para ir à batalha em

seus lugares.

As duas partes lucravam com esta questão, de um lado o Exército

Farroupilha que obtinha soldados e por outro lado, os estancieiros que recebiam

pelos negros alistados, em forma de montantes ou por meio da redução de

impostos.

39 O historiador Moacyr Flores, indica que no corpo de Lanceiros Negros, a grande maioria era de negros, contudo, existem relatos, no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, sobre a presença de indígenas junto às tropas Republicanas. Estes também fizeram parte dos Lanceiros, em menor proporção, sendo utilizados na fabricação de munição e como cuidadores dos cavalos dos farrapos.

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Outro ponto relevante na inserção do negro na Revolução Farroupilha está

pautado nas ações de alguns estancieiros que possuíam terras tanto no Rio

Grande do Sul quanto na República Oriental do Uruguai, a qual por decreto havia

abolido a escravidão e como nesse momento não havia fronteiras bem definidas,

ora os negros estavam no Rio Grande do Sul, ora estavam no Uruguai. Dessa

forma, os estancieiros que possuíam negros escravizados e não simpatizavam

com a causa republicana, encaminhavam os seus escravos para o Uruguai, a fim

de não ter que cedê-los à Revolução. Foi nesta ação que muitos negros fugiram

das fazendas para se alistar nas forças rebeldes, reavivando o imaginário de uma

liberdade bem próxima de ocorrer.

A história da Revolução Farroupilha e, sobretudo a do negro dentro dessa

manifestação, ficou por muito tempo esquecida, sendo somente escrita após a

Guerra do Paraguai, que contou com alguns remanescentes dos farrapos. O

primeiro autor a escrever sobre o movimento foi Tristão de Alencar Araripe. Em

sua obra “A guerra civil no Rio Grande do Sul” (1881), relatou a versão do

Império, suprimindo muitos acontecimentos relevantes e deixando de mencionar

a presença do negro no conflito. O negro somente foi mencionado como

combatente e não como escravo, na obra de Assis Brasil, intitulada “A história

da Revolução Rio-grandense” lançado em 1882. Nessa obra, Assis Brasil se

referiu ao corpo de lanceiros negros como grupos semibárbaros redimidos da

escravidão.

O espaço traçado para a inserção do negro, no Rio Grande do Sul, depois

da Revolução Farroupilha e a reconstrução feita pelos líderes farrapos, com

discursos variados que visavam representar novos atos, para articular uma nova

representação coletiva, indicam como foi contraditório o pensar e o agir dos

farrapos em relação aos negros. Os novos “representantes” dos negros, ou seja,

aqueles que sempre exerceram o poder, criaram uma representação nova do

grupo. Em outras palavras, a representação atribuída ao negro foi ressignificada

com o objetivo de compor uma memória social , gerando novos signos para uma

realidade criada, que não era a vivida pelos negros.

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O modo como as ações tomadas pelos grandes estancieiros, em relação ao

negro, é deflagrado em seus discursos de liberdade, investidos de inúmeras

significações, como forma de captação de signos, que envolviam a vida, a

liberdade, as relações, e principalmente, a igualdade. Assim sendo, o poder e a

dominação nunca deixaram de existir, simplesmente foram reconstruídos de tal

forma que fossem entendidos no sentido de uma ordem simbólica, na qual a

representação de um Estado foi construída, com base, em novas classes sociais e

políticas, porém sem oferecer qualquer expectativa à população negra, a não ser a

liberdade caso a Revolução fosse vitoriosa. Em outros termos, pouco, ou quase

nada, foi dito em relação ao tratamento dispensado aos negros, após o término da

Revolução, em direção a um sistema mais democrático e humano. Talvez os

farrapos negros, ao entrarem nas linhas da Revolução Farroupilha, confiassem

que as funções de combate representassem os primeiros passos em direção à

igualdade. O que não era em hipótese alguma a principal finalidade dos líderes

farrapos, que por um lado consideravam o fim da escravização como algo digno,

porém por outro lado jamais discutiram ou colocaram em prática o direito dos

negros na sociedade rio-grandense.

1.3 OS PERSONAGENS NEGROS NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA

Durante o longo período, da Revolução Farroupilha, muitos lanceiros que

estavam ao lado dos farrapos, foram presos e levados à Casa de Correição do Rio

de Janeiro, onde eram interrogados. Estes relatos sobre os interrogatórios

apontam várias revelações, pois pode-se perceber que o negro sendo considerado

para tantos como uma simples mercadoria, acabou tornando-se um bem valioso,

principalmente para a causa Farroupilha.

Em um destes interrogatórios, o negro Francisco Cabinda, expôs as

experiências as quais esteve exposto no longo dos dez anos da maior guerra civil

que a Província de São Pedro viveu contra o Império.40 Francisco Cabinda

afirmava ter residência fixa na cidade de Piratini, próxima a cidade de Canguçu,

onde trabalhava para o seu senhor, no vasto pampa Sul Rio-grandense. De acordo

40 GERMANO, Iris. Rio Grande do Sul Negro. Porto Alegre: EDIPUCRS. 1985.

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com o seu relato, Francisco nada sabia sobre a Revolução Farroupilha, devido ao

seu isolamento nos pampas, e só tomou conhecimento do movimento durante a

chegada das tropas Republicanas, sob o comando do General Antonio de Souza

Netto e do Major Teixeira Nunes. Nesse período, com as muitas perdas de

combatentes nos dois lados da guerra e devido ao pequeno número de pessoas

que residiam no Rio Grande do Sul,41 os chefes Republicanos começaram a

exigir dos estancieiros o engajamento no exército, com o objetivo de recompor o

quadro, que já sentia sinais de enfraquecimento.

Muitos estancieiros começaram a alistar os seus escravos nas frentes de

batalhas, com o objetivo de eles mesmos não precisarem ir à luta. Este esquema

se tornou comum para muitos negros, que de um momento para outro passaram

de cuidadores de gado e trabalhadores na produção de charque para as frentes de

batalhas contra os caramurus, soldados do Império.42

Quando as tropas Republicanas chegavam às fazendas para se abastecerem

tanto de mantimentos quanto de futuros soldados, muitos negros eram retirados

de seus senhores e entes queridos para ir à luta. Porém, houve muitos casos de

negros que se alistavam por conta própria, sem que seu senhor nada pudesse

fazer. Estes possuíam pouca experiência de luta, a não ser a resistência velada

pela opressão da escravidão.

O encontro entre os revolucionários e os negros, neste caso Francisco

Cabinda, apresenta episódios relevantes da participação do mesmo, no período da

Revolução Farroupilha. Conforme relato de Francisco, o seu senhor o cedeu

juntamente com mais um escravo, de nome Antonio e de Nação Benguela, aos

farrapos para lutarem pela causa rio-grandense. A partir deste momento

Francisco e Antonio foram incorporados as tropas Republicanas e integrados aos

corpos de infantaria e artilharia, os quais ficavam a frente da batalha sendo os

primeiros a entrar em combate com o inimigo.

41Conforme dados do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, no início da Revolução Farroupilha, o Rio Grande do Sul abrigava cerca de cento e cinqüenta mil pessoas, divididas entre as quatorze cidades e o vasto pampa rio-grandense. 42Denominação pejorativa dada pelos republicanos farroupilhas aos legalistas pró-império. Para eles caramuru significava absolutista, camelo, restaurador, corcunda.

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Antes de irem às batalhas, os dois negros, junto com mais um pequeno

grupo, foram levados a casa de Onofre Pires, primo-irmão do General Bento

Gonçalves, então Presidente da Província. Neste local, eles tomaram

conhecimento sobre a Revolução Farroupilha e ouviram dos chefes Republicanos

a garantia de que se lutassem pela causa farrapa, receberiam, além do soldo e

comida, a tão desejada liberdade após o término do conflito. Pode-se a partir

desse momento considerar que o imaginário de liberdade começou a se

manifestar entre os negros, que conversaram com Onofre Pires, pois as

representações para os diferentes grupos são construídas por meio de imagens

que aspirem a razão, mas que são sempre determinadas pelo grupo que as

conduzem, daí, como orienta Bronislaw Baczko, a necessidade do discurso ser

proferido por quem as utiliza.43

O desejo destes negros na luta por algo agora palpável, somado a sua

vontade de liberdade e as representações e utopias desenvolvidas pelos líderes

Farrapos no imaginário dos negros, foi muito bem aproveitada pelo Exército

Republicano que, por sua vez, se beneficiou ao conseguir soldados para lutar por

sua causa. Importa aqui considerar que, para a maioria de seus soldados os

interesses eram completamente diferentes, no entanto, os farrapos conquistaram

algo fundamental em uma guerra, representado pela motivação, que permitiu

conseguirem soldados obedientes e com grande espírito de luta e vontade de

vencer. A prática que ocorria com certa freqüência, era a de os fazendeiros

cederem para o exército os escravos alugados e quando os seus verdadeiros

donos questionassem, esses eram orientados a reclamar com os generais

Farrapos. Os negros continuavam a serem produtos de troca, nada muito

diferente do que ocorria no restante do Brasil, somente a guerra e a luta de um

povo por sua liberdade, era o diferencial. Os Farroupilhas não queriam somente

um soldado que lutasse, mas sim um indivíduo que lutasse motivado pela

esperança de liberdade, criando uma relação simbólica, sobre a qual a luta seria o

símbolo da liberdade e da vida longe do cativeiro.

43BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Enaudi v.5 Lisboa: Imprensa.casa da moeda. 1985. p 309.

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Francisco, já devidamente alistado e juramentado com a causa dos

Republicanos, passou a fazer parte do corpo de Lanceiros Negros, com os quais

lutou em muitas batalhas, saindo ileso da maior parte delas. Em um dos

momentos de sua atuação no movimento, a tropa de que participava se dirigiu ao

vizinho Uruguai, em busca de alimentos, armamentos e munições. Ocorreu

porém, um fato comum já no período final da Revolução, seja pela

incompatibilidade de ideais entre os líderes farrapos ou pela falta de dinheiro

para pagar os soldos aos combatentes. Nesse momento o comandante da tropa

resolveu dispensar todos os negros, a fim de que estes seguissem o seu caminho,

porém sem o soldo pelo tempo dispendido na luta ao lado dos Republicanos e

para tanto concedeu papéis individuais de liberdade, visto que no Uruguai já não

existia mais escravos.44

Francisco relatou que havia trabalhado já como homem liberto, em

estâncias no Uruguai. Estas em sua maioria pertenciam a brasileiros que lutavam

na Revolução Farroupilha. Neste caso, muitos comandantes perdiam soldados

para os campos de batalha, mas em contrapartida ganhavam trabalhadores para as

suas fazendas no Uruguai. Posteriormente, Francisco, foi recrutado para lutar

pelas forças de Uribe, nas quais também ocorreram atos de barganha e

negociação, por este já ser um homem livre e conhecedor do território onde se

travava uma nova guerra.

Somente depois de muitos anos vividos nos campos de batalha, lutando

por sua liberdade e por uma causa que nem sua era, Francisco adoeceu e foi

internado em um hospital em Montevidéu, onde um cônsul brasileiro tomou

conhecimento da sua história e o remeteu ao Rio de Janeiro na condição de

escravo. O soldado foi então encaminhado à Casa de Correição para prestar

depoimento e contar parte de sua vida. A história do negro Francisco descreve

em parte os personagens obscuros da história, que somente deixam seus rastros,

quando do encontro com o poder. Restou-lhe ao fim, somente a experiência

como soldado e os anos vividos entre a escravidão e os campos de batalhas.

44FLORES, Moacyr. A formação do RS e a Política na região do Prata. Porto Alegre: JÁ, 1985.

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A história do negro Francisco Cabinda indica que um imaginário ao ser

“canalizado, disciplinado em uma sociedade com estruturas hierárquicas bem

assentadas, regulada por trocas harmoniosas de solidariedade se exalta quando as

defesas postas em ação para salvaguardar o equilíbrio desta sociedade se

encontram bloqueadas ou suprimidas”.45 O relato de certo momento da vida deste

negro escravo-liberto , aponta para a contribuição desse contingente da

população na Revolução e a sua participação na formação histórica e cultural do

povo rio-grandense.

Outro escravo que participou da Revolução foi José de Angola, que lutou

ao lado dos farrapos desde 1836 até desertar no ano de 1838. Em seus relatos às

autoridades do império, José de Angola afirmou que as tropas dos brancos, do

Exército Farroupilha havia praticamente desertado e que os que pegavam em

armas eram os negros, os indígenas e os mestiços, sendo que alguns utilizaram

armas de fogo e outros lanças: os temidos Lanceiros Negros. A guerra muitas

vezes se mostrava como uma alternativa em busca da liberdade, seja por

intermédio da atuação nos campos de luta, seja pela também propícia condição

de fuga.

A busca dos farroupilhas em aumentar o contingente alistando escravos e

libertos pode ser verificada também em documentos oficiais, como por exemplo,

os enviados pelo General de Brigada Antonio de Souza Netto ao Coronel João

Antonio da Silveira aconselhando que este não perdesse a “oportunidade de fazer

angariar libertos para os Corpos de Lanceiros e mesmo de Infantaria, pois me

consta existirem não poucos em algumas fazendas de dissidentes”.46 Apesar de

alguns relatos de negros estarem referenciados, poucos são os documentos

existentes sobre os corpos de Lanceiros Negros, que não sejam relatos de oficiais

imperiais ou lideranças dos farrapos, na maioria pessoas que lutaram ou

coordenaram os Lanceiros em determinados períodos da Revolução.

45 GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 46 ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. v. 10, 5412. Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1937, p. 67. ( Coleção Varella).

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Outro depoimento que merece destaque, para a elucidação da vida levada

pelos negros no Rio Grande do Sul, diz respeito ao proferido por Giuseppe

Garibaldi:47

Este corpo de lanceiros, composto em geral de negros livres da república, e escolhidos entre os melhores domadores de cavalos da província, tinha unicamente os oficiais superiores brancos, e nunca o inimigo havia visto as costas destes filhos da liberdade. As suas lanças, que eram maiores do que as comuns, os seus Rostos pretos como o azeviche, os membros robustos e a sua disciplina exemplar faziam deles o terror dos inimigos.48

A afirmação de Garibaldi permite perceber a consciência que os líderes

farrapos tinham em relação aos negros, ou seja, não eram vislumbrados

necessariamente como irmãos, ou até mesmo companheiros de causa, e sim como

um complemento importante de soldados para guerrear, mostrando que apesar de

serem soldados da causa Republicana, seus chefes eram brancos. Aponta também

a vida que levavam nos campos, sua disciplina oriunda dos anos de servidão, sua

bravura e desenvoltura nas táticas da guerra.

Outro relato significativo sobre a vida destes negros no Rio Grande do Sul

é o de Antonio, escravo do senhor Antonio Manuel de Sampaio, que neste

período residia em Porto Alegre.49 O preto Antonio foi preso pelo exército

imperial e interrogado no dia 16/10/1837, quando revelou que havia se alistado

junto ao exército Farroupilha, poucos dias antes de ser preso. O escravo informou

também que fora convidado pelo preto José. Pouco tempo após o alistamento ao

conversar com José, Antonio já havia se convencido de que a sua vida não estava

boa e, devido a isso, resolveu voltar para o seu senhor, pois, “viu a besteira que

havia cometido”.50

47 Garibaldi juntou-se aos republicanos, e participou de inúmeras lutas, inclusive da conquista de Laguna, em Santa Catarina. Afastou-se dos Republicanos em 1841, quando partiu para Montevidéu, a fim de defender a capital de Uribe. 48 DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Porto Alegre: Estado do Rio Grande do Sul, 1907. p. 30. 49 FLORES, op.cit., p. 30. 1985. 50 GERMANO, Iris. Rio Grande do Sul Negro. Porto Alegre: EDIPUCRS. 1985.

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Por motivos que não foram explicados, este escravo não percebeu

qualquer vantagem no engajamento51, e por isso retornou ao seu dono. Diante

deste testemunho, cabe aqui considerar as circunstâncias que envolviam o preto

Antonio. Este negro estava na presença de pessoas que queriam saber e

direcionar a verdade como lhes aprouvesse, certamente foi exercida uma pressão

sobre ele para que testemunhasse desta forma, levado pelo medo e o castigo que

teria na volta para seu dono. Fica conflitante o relato do escravo, que apesar de

anos de vida como cativo, na primeira real possibilidade de conquistar a

liberdade, decidiu voltar ao seu dono, pois a guerra não lhe fornecia uma vida

boa, mesmo tendo noção que o seu retorno para a antiga estância, certamente lhe

traria uma vida de maior sofrimento.

Retomando as ideias dos líderes republicanos em relação aos escravizados

negros, convém lembrar que embora os farrapos prometessem a liberdade, esta

liberdade estava longe de ser alcançada pelos negros. Durante o auge do

movimento, os Republicanos buscavam negros para as suas tropas prometendo-

lhes liberdade ao final da guerra, por outro lado, o seu maior divulgador de

idéias, o jornal O POVO estampava anúncios de fuga de escravos cativos da

cidade e também das fazendas:

[...] Senhora Bernardina Maria Ferreira, declara que indo busar o seu escravo, fugido de sua estância, de nome João Maria, na vila do Salto, em presença do juiz de paz [...] foi exigido pelo juiz que a dita senhora apresentasse o titulo de compra. Não tendo outra escolha, a senhora necessitou retornar a sua estância, a fim de buscar o documento. Quando voltou a vila do Salto “satisfazendo a vontade o juiz, não apareceu mais o dito escravo e tem-se que o mesmo esteja escondido”.52

O anúncio do jornal apresenta a fuga de um escravo das fazendas, e na

maior parte delas o sumiço era algo comum, sendo esta questão bastante

contraditória, pois muitos negros fugidos juntavam-se as tropas farroupilhas e

com as mesmas se dirigiam aos campos de batalha. Algumas questões ficam mais

51 ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. v. 10, 5412. Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1937, p. 63. ( Coleção Varella). 52

Jornal O POVO, Porto Alegre: Editor Luigi Rosseti, mai, 1840, p. 03.

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claras se considerarmos as indicações de Roger Chartier, sobre poder e

dominação, pois alerta o historiador que “lutas de representações tem tanta

importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos

quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os

valores que são seus, e o seu domínio”.53

Com base neste pressuposto, pode-se perceber que os negros absorveram

alguns tipos de representações designados pelo poder que os ricos estancieiros

impuseram na mentalidade do grupo dominado. As lutas por direitos econômicos

e políticos faziam parte apenas da elite branca e pecuarista.

53 CHARTIER, op.cit., 1990. p. 19.

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2- A BATALHA DE PORONGOS: O NEGRO E O FIM DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA.

2.1. A “NEGOCIAÇÃO” DA LIBERDADE EM UM CAMPO DE

CONFLITOS.

No contexto geral do Brasil, no período que ocorreu a Revolução

Farroupilha, poucos escravos conseguiram realizar o almejado sonho de

liberdade. Nem todo o escravo que era liberto, conseguia viver em condições a

serem seguidas para que esta liberdade fosse realmente aceita.

Aos negros, as condições referentes à liberdade eram impostas, mesmo

para aqueles que na Revolução entravam por vontade própria. Os líderes

farrapos, não foram diferentes dos demais escravocratas do Brasil naquele

período e colocaram inúmeras condições para que os negros obtivessem a

liberdade, objetivando, nesse caso específico e como já citado, a obediência até o

final da Revolução. Para que não voltassem à escravização, os escravizados

deveriam engajar-se na causa farroupilha e dela jamais se indispor, tornando-se

assim fiéis soldados da causa.

A Revolução feita por senhores de terras, de cor branca, pessoas negras,

indígenas e mestiças, pegando em armas juntas, fez do Rio Grande do Sul, algo

paradoxal. O poder da representação, associado a um imaginário de libertação,

para ambos os lados, criou uma batalha de ideias sobre uma Revolução justa e

igualitária para todos. Os líderes farrapos souberam utilizar estas representações

a seu favor, pois conquistaram as mentes e os corações dos estancieiros, para que

continuassem a financiar a revolta, por um lucro maior ao final da Revolução, e

cooptaram parte da população negra, a lutar por um bem maior: a liberdade e a

igualdade.

A liberdade proposta estava recheada de interesses dos líderes farrapos

que, na maioria das vezes, nem mesmo se entendiam referente a este assunto. Em

outras palavras, havia divergências sobre o negro se igualar ao homem branco,

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não somente nos campos de batalha, locais onde se tornava mais fácil a

convivência de duas culturas diferentes, como também o de renunciar desta

mão-de-obra cativa e aceitá-la como igual.

No Rio Grande do Sul houve uma pequena diferença, em relação ao negro

e sua conquista da liberdade, perante as demais Províncias do Brasil. Longe dos

pampas gaúchos, muitas eram as formas de se conquistar a liberdade, seja pela

compra da mesma, seja pela “bondade” de seu dono, entre outras. Contudo, no

Rio Grande do Sul, neste determinado período, de 1835 a 1845, os negros

somente poderiam almejar a sonhada liberdade, incorporando-se à Revolução

Farroupilha, uma vez que as outras formas de negociação foram suprimidas

totalmente. Somente aqueles que se engajavam na Revolução, tinham a

esperança de se tornarem livres, os demais ficavam a mercê da própria sorte,

cuidando do gado nas fazendas, trabalhando na produção de charque e em muitos

casos administrando as estâncias quando seus donos se afastavam.

No entanto, quando a revolta dos farrapos atingiu uma intensidade maior,

entre 1839 e 1840, a pequena população rio-grandense, passava por vários

flagelos devido a grande perda de homens, falta de comida e, sobretudo de

vestuário. Foi nesse período que os negros começaram a exercer um poder maior

de barganha, junto aos seus senhores e ao exército farrapo. Por ordem do General

Netto e com apoio dos demais líderes, foi autorizado que as tropas buscassem nas

fazendas, além de comida e vestuário, todo o homem que estivesse disposto a

lutar pela causa rio-grandense, que neste momento, se mesclava com a luta da

elite pelo comércio de charque e o da população pelo fim dos combates.

Cabe lembrar aqui que, quando as tropas republicanas chegavam às

fazendas e solicitavam para que os homens se alistassem no exército, era comum

os donos das terras colocarem “soldados” para lutarem em seus lugares, sendo

que estes recebiam um pagamento pelo alistamento ou a isenção de impostos. O

recrutamento também representava uma forma de muitos negros se apresentarem

frente aos Generais para jurar lealdade aos republicanos, impedindo dessa forma

o questionamento de seus senhores. Mesmo contrariados, os proprietários de

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escravos nada podiam fazer e se viam obrigados a negociar para que o exército

não levasse todos os seus escravos.

Esta condição exalta a representação utilizada pelos generais de lutar por

uma causa e por sua liberdade, e por conseguinte obter o maior número de

adesões possível, seja dos senhores estancieiros, que poderiam colaborar com

dinheiro e homens, seja pelo número de escravizados que seria conduzido às

frentes de batalha a fim de lutar por um ideal.

A busca do exército farrapo por pessoas, independente de sua cor e raça, já

motivada pela falta de homens para lutar, faz aparecer no Rio Grande do Sul, um

grande temor entre os fazendeiros que defendiam a manutenção da subordinação

dos negros. Devido a este temor, muitos estancieiros que possuíam terras tanto

no Rio Grande do Sul, quanto no Uruguai, começaram a levar os seus negros

escravizados para o país vizinho, fazendo com que o exército farrapo se

apressasse em recrutar estes negros, para não perdê-los para os seus próprios

conterrâneos54.

A negociação que se desenrolou diante deste fato, gerou protestos de

muitos fazendeiros, pois os seus negros escravizados eram levados de suas

fazendas, sem a sua autorização, para se juntarem as tropas farrapas e lutarem

pela causa conforme os relatos do jornal O POVO:

[...] O senhor Antonio Ferreira, declara que três de seus negros de nação, foram levados pelas tropas republicanas, de uma fazenda [...] o mesmo afirma que estava junto com as tropas farrapas em direção a Porto Alegre, quando soube do ocorrido [...] exige do Governo Republicano, o imediato retorno de seus escravos, pois são os mesmos que tomam conta de sua estância, devido a sua participação na Revolução.55

Mesmo o estancieiro lutando pela causa, as tropas farrapas buscavam os

negros em suas propriedades gerando inúmeras insatisfações. Os estancieiros por

sua vez, reclamavam diretamente ao Governo Republicano sobre o fato de seus

“trabalhadores” serem forçados a juntar-se ao movimento e pediam a volta dos

54

Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. v. 8, 4456. Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1935, p.17. ( Coleção Varella). 55

Jornal O POVO, Porto Alegre: Editor Luigi Rosseti, ago, 1840, p. 17.

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mesmos para as fazendas. Diante desta questão, o então Presidente Bento

Gonçalves, indeferiu a maioria dos pedidos e ao afirmar que as tropas eram

carentes de pessoas, de armamentos e de alimentos para os campos de batalha, na

maioria das vezes pagava para o estancieiro o valor atribuído ao negro. Tal ação

não abrandava os descontentamentos com o rumo tomado pelo Movimento

Republicano, porém, demonstrava que a autoridade de Bento era legitimada por

grande parte dos estancieiros que aos poucos abrandavam os questionamentos

sobre o assunto.

Os negros alistados com autorização ou não de seus donos, eram

incorporados as tropas farrapas. Mesmo já sendo soldados da causa Republicana,

não viviam juntos aos demais soldados brancos e sim em acampamentos, quase

sempre sem armas de fogo e somente com as suas lanças. Em períodos de poucas

lutas, os quais parecia que a Revolução estava por terminar, os Lanceiros mesmo

assim, mantinham-se agrupados e prontos para lutar novamente. Esta estratégia

havia sido bem arquitetada pelos líderes farrapos, pois se de um lado permitissem

a volta desses negros para as fazendas, dificilmente conseguiriam trazê-los de

volta para as frentes de batalha. Já por outro lado, mantinham a representação

criada para os lanceiros com base no respeito e na submissão, pois os

revolucionários ao criarem inúmeros aspectos, perante os negros, conseguiram,

mantê-los sob controle e abaixo dos demais soldados. Tais representações

fizeram com que o negro levasse consigo, dos tempos de escravidão, um

“constrangimento interiorizado”56, fundamental para que os farrapos não

necessitassem usar de violência para controlar as tropas.

Os farrapos descobriram nos negros, não o soldado mercenário e paciente,

e sim um aliado numa campanha armada pela libertação de seu Estado, afinal os

negros, sobretudo os lanceiros, tornaram-se os seus principais auxiliares. Eles

também entraram como os primeiros combatentes no espaço de luta e estiveram a

par dos segredos e senhas secretas, formando parcerias junto aos primeiros

revolucionários na luta contra o Império.

56 CHARTIER, op.cit., 1990. p.29.

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A importância que os negros tiveram na revolta, fica mais clara ao

relacionar-se o que escreve o sociólogo Clóvis Moura57, em sua análise sobre os

negros e o seu imaginário de liberdade:

[...] na Revolução Farroupilha eles, os negros, se sentiram a vontade porque fora a insurreição dos alfaiates, na Bahia, nenhum outro movimento foi tão enfático e ostensivamente antiescravista como o liderado por Bento Gonçalves. A presença do negro tinha um caráter regional, lógico. Não havia a contradição existente nos demais acontecimentos quando eles participavam das lutas por ordem de seus senhores [...]. Ademais como não pesava muito forte na economia da região conflagrada, o escravo se tornou em soldado rapidamente. As próprias autoridades farroupilhas se encarregavam de emancipá-los. O tipo de economia pastoril prescindia do escravo africano. Os trabalhos agrícolas, especialmente o da erva-mate, não eram do molde de exigir uma grande quantidade de escravos, como na economia dos engenhos e da mineração impunham.58

Como aponta o sociólogo, a quantidade de negros no Rio Grande do Sul

era menor do que no restante do país, pois o cuidado com o gado e a produção de

charque e erva-mate, não necessitava de muitos braços para o trabalho. Esta

peculiaridade em relação as demais províncias permitiu, ao negro escravizado

obter com maior facilidade, a negociação para ingressar na luta dos farrapos.

Certamente os acordos não eram realizados com facilidade, pois os fazendeiros

tinham as suas economias investidas nos negros escravizados. A apropriação do

imaginário da Revolução agia não somente contra, mas em certas ocasiões a

favor dos negros, pois os estancieiros e os líderes farrapos visavam os lucros com

as conquistas das suas reivindicações e o negro escravizado usufruía desses

interesses para lutar por sua liberdade ingressando, desta forma, na revolta e

libertando-se das correntes da escravidão rio-grandense.

57Clóvis Steiger de Assis Moura (Amarante, 1925 — São Paulo, dezembro de 2003), mais conhecido como Clóvis Moura, foi um sociólogo, jornalista, historiador e escritor brasileiro. Militou pelo Partido Comunista Brasileiro e, em 1962, na cisão do partido, migrou para o PCdoB. Destacou-se pela militância pioneira no movimento negro brasileiro. Colaborou com artigos para jornais da Bahia e de São Paulo. 58MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Zumbi, 1959.

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Julio Chiavenato, em sua análise sobre a condição dos negros no Brasil,

no que concerne à situação do escravizado na Revolução Farroupilha, afirmou

que era fácil o seu recrutamento no Rio Grande do Sul no período do movimento,

uma vez que esperavam a chegada das tropas farrapas para se juntarem às

mesmas, pois acreditavam que entrando num exército seriam libertados de toda a

opressão sofrida59. Assim sendo, a luta ao lado dos revolucionários apresentava-

se como uma oportunidade concreta de liberdade. Além dos escravizados que se

alistavam, muitos negros também fugiam das fazendas uruguaias para se unirem

ao exército revolucionário, apoiados no ideal de liberdade, pois embora este País

tivesse abolido a escravidão, os negros que trabalhavam nas fazendas de

brasileiros no Uruguai, continuavam na mesma situação imposta nas fazendas

brasileiras, ou seja, na condição de escravizados.

Os Farroupilhas por sua vez, visando a atingir os seus objetivos,

incentivavam a rebelião dos escravos negros, com o único propósito de

incorporá-los às fileiras revolucionárias. Tal afirmação pode ser corroborada por

meio do seguinte relato:

Agostinho José de Meneses denunciou o fato em Pelotas, onde, segundo ele cerca de 304 escravos negros foram desviados de seus proprietários pelos farrapos em troca de promessas de liberdade, os farrapos estão fazendo uma insurreição de negros escravos. Outro fazendeiro Azevedo Souza, relata fatos que mostram os farrapos fazendo uma insurreição de negros escravos em Pelotas. Manoel Jubo Toureiro Barreto e José Ignácio do Saldo confirmam tudo e Joaquim José Maria Panot ainda acrescenta que os farrapos fizeram grandes reuniões de escravatura, principalmente em São Francisco de Paula.60

59Júlio José Chiavenato, nasceu em Pitangueiras, interior de São Paulo, em 03 de janeiro de 1939, tem formação autodidata, trabalhou em jornais de Ribeirão Preto e conheceu as mazelas da America Latina em cima de sua motocicleta. È autor de livros “Genocidio Americano, A guerra do Paraguai, O golpe de 64 e a ditadura militar e o O negro no Brasil- Da sensala à abolição”. 60BAKOS, Margaret. Regulamento sobre o serviço dos criados: um estudo sobre o relacionamento estado e sociedade no Rio Grande do Sul (1887-1889).Porto Alegre:Marco Zero, 1984.

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As afirmações, acerca da situação dos escravos rio-grandenses, trazem a

tona uma peculiaridade do Rio Grande do Sul, pois enquanto em outras regiões

do Brasil, havia inúmeras fugas, solicitações de vendas por maus tratos, durante

o movimento dos farrapos, ocorria uma situação diferenciada, pois os escravos

contavam com todas as condições de negociação perante aos seus donos, devido

ao amparo fornecido pelo exército farroupilha que necessitava de seus serviços.

Desta forma eram desnecessárias as fugas planejadas ou a procura por quilombos

que lhes fornecessem abrigo. A facilidade como conseguiam alistar-se às tropas

farrapas criava uma representação de suposta liberdade e a guerra tornava-se

mais amena do que a vida nas fazendas.

Diante deste cenário, o negro construiu uma realidade contraditória

influenciada pelo grupo dominante. Em seu imaginário ficaram consolidados os

grandes chefes farroupilhas como verdadeiros defensores deste grupo social,

afinal por meio dos farrapos poderiam ter amparo para a sua alforria. No entanto,

os escravizados não conseguiam perceber que, devido ao período de crise pelo

qual passava o poder, houve uma maior produção de um imaginário social, o qual

criou representações, como forma de garantir as condições impostas pela elite.

Esses negros foram usados e levados a agir e a pensar de maneiras diferentes e

também em diferentes situações, entretanto sempre controlados pela grande

estrutura de poder, que jamais foi alterada, nem quando da suposta separação do

Império.

2.2. O ATAQUE A PORONGOS: MORTE DOS LANCEIROS

NEGROS E O TRATADO DE PAZ ENTRE O IMPÉRIO E OS REPUBLICANOS.

Em novembro de 1844, o Barão de Caxias, redigiu uma carta ao seu

comandante, Chico Pedro, também conhecido como Moringue. Nessa autorizou

o ataque a Porongos, atual município de Pinheiro Machado, local onde se

efetivou o último confronto da longa Revolução Farroupilha. Caxias solicitou ao

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seu comandante, que neste ataque fosse poupado o quanto pudesse o sangue

brasileiro,

[...], particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro. A relação junta é das pessoas quem deve dar escápula, se por casualidade caírem prisioneiras. [...] Se por fatalidade, não puder alcançar o lugar que lhe indico, no dia 14, às horas marcadas, deverá desferir o ataque para o dia 15 às mesmas horas, ficando certo de que, neste caso, o acampamento estará mudado um quarto de légua, mais ou menos por essas imediações em que estiveram no dia 14. Se o portador chegar a tempo de que esta importante empresa possa se efetuar, V.S. lhe dará seis onças, pois ele promete-me entregar em suas mãos este ofício até às quatro horas da tarde do dia 11do corrente. Além de tudo quanto lhe digo nesta ocasião, já V S. deverá estar bem ao ato do Estado das coisas pelo meu ofício de 28 de outubro e, por isso, julgo que o bote á aproveitado desta vez. Todo o segredo e circunspecção é indispensável nesta ocasião, e eu confio no seu zelo e discernimento que não abusará deste importante segredo. Deus Guarde a V. S. Quartel-General da Província e Comandante.- em-Chefe do Exército, em marcha nas imediações de Bagé. 9 de novembro de 1844 Barão de Caxias.61

No afã de acabar definitivamente com a Revolução, o Barão de Caxias deu

início ao fim da República Rio Grandense. É importante enfatizar que tal ação

não foi aleatória, pois até este momento do conflito, as negociações de paz

estavam sendo travadas entre David Canabarro e o Barão de Caxias, devido às

grandes divergências entre os chefes farrapos. Segundo os relatos, o General

David Canabarro, acampou nas imediações do Cerro de Porongos, com cerca de

1200 homens e às vésperas do ataque:

“uma partida farrapa notificou a tempo a Canabarro que o terrivel surpreendedor ia se abater sobre o seu arraial, e foi ao ter a parte da indicada unidade que arrotou abazófia [...] que todo

61Transcrição da carta de Caxias a Chico Pedro, Anais do Arquivo Histórico do Rio grande do Sul, v. 7, Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1933, Coleção Alfredo Varela, documento 3730 p. 30-31.

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o Rio Grande conhece: O Moringue sentindo a minhacatinga não vem cá.”62

Esse relato, demonstra que o general farrapo, estava ciente da

aproximação das tropas Imperiais, e tampouco preocupado com o eminente

ataque. David Canabarro menosprezou a presença de Moringue, afirmando que o

mesmo não teria coragem de atacá-lo, seja por ter elaborado um acordo com

Caxias, seja por puro desprezo, o certo é que Canabarro tinha conhecimento da

presença inimiga e a ignorou completamente.

A historiadora Sandra Pesavento relata que na noite anterior ao ataque, o

General Canabarro ordenou que a “infantaria republicana, composta por negros,

fosse desarmada e seu cartuchame todo retirado”, devido ao fato de que a

Revolução estava chegando ao fim e para evitar qualquer tipo de revolta

interna.63 Fato este questionado por vários historiadores que defendem a traição

dos farrapos para com os negros, pois somente esse grupo foi desarmado e

afastado dos demais soldados farrapos. O General Netto, preocupado com a

negativa de Canabarro de uma maior proteção, também ficou mais retirado das

demais tropas com seus soldados aliados, na maioria negros.

O que era óbvio, ocorreu na noite de 14 de novembro de 1844, quando a

força imperial comandada por Moringue atacou as tropas Farroupilhas, que

estavam “desprevenidas” neste momento. Os primeiros a serem atacados foram

os Lanceiros Negros que desarmados tornaram-se presa fácil para o exército

Imperial. Ivo Caggiani, historiador gaúcho, em suas pesquisas sobre a memória

política do Rio Grande do Sul, remonta o relato do ataque, ao indicar que:

Um esquadrão de 40 homens [...] cai de chofre sobre o exército desprevenido [...] Correm os soldados de todos os pontos, atônicos e assombrados, enquanto embalde procuram alguns oficiais organizar as fileiras. – É o Moringue! É o Moringue! É o grito de todas as bocas. A onda humana, que se espalhou em várias direções, tentava ganhar distância para se refazer [...] Mas eis que a onda se despedaça de encontro a uma barreira inesperada. É o próprio Chico Pedro que,

62 Anais do Arquivo Histórico do Rio grande do Sul, v. 7, Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1933, Coleção Alfredo Varela, documento 3730 p. 247-248. (Coleção Varella). 63

PESAVENTO, op.cit.,1985.

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emboscado com o grosso de suas forças, esperava o resultado o ataque para surgir pela frente dos que fogem. A situação é terrível. Os farrapos, passado o primeiro momento de estupor, cobram ânimo e dispõe-se a morrer lutando. Teixeira, o bravo dos bravos, cujo denodo assombrou um dia ao próprio Garibaldi, reúne os seus Lanceiros, o quarto regimento de linha e alguns esquadrões afrouxam, mas os imperiais se multiplicam, surgem de todos os pontos. Segunda carga, mais impetuosa, mais desesperada é também repelida. É este o sinal da debanda geral. [...] Apenas alguns grupos matem-se resistindo e neles o combate se trava a arma branca. Tombam os Lanceiros Negros de Teixeira, brigando um contra vinte, num esforço incomparável de heroísmo [...] é uma carnificina sem nome, um desbarato completo. Um pouco mais e toda resistência se abate.64

O ataque a Porongos deixou um saldo de 100 mortos, 14 feridos graves e

mais de 300 prisioneiros. Os soldados do Império conseguiram se apossar de

aproximadamente mil cavalos, além de armamentos e munição. Conforme

ordenado por Caxias ao general Chico Pedro, o general David Canabarro

conseguiu fugir e com ele boa parte dos soldados brancos dos farrapos. Os

mortos na sua maioria foram os Negros Lanceiros e o seu comandante Teixeira

Nunes. Com a morte da maioria desses escravizados, foi posto um fim no

obstáculo para que o Império acolhesse a paz, pois Caxias tinha instruções de não

conferir liberdade aos negros que lutaram como soldados na República rio-

grandense.

Bento Gonçalves que estava fora da negociação da convenção de paz,

devido a discordância com os demais chefes farrapos, sobretudo pelo caminho

que a revolução havia tomado, mostrou a sua indignação com a ação tomada por

David Canabarro. Em uma carta enviada a um amigo de nome Silvano, treze dias

após o ataque afirmou o líder que:

[...] caminhos indispensáveis por onde tinha de avançar eram tão visíveis que só poderiam ser ignoradas por quem não quisesse ver nem ouvir , ou por quem só quisessem ouvir os traidores, talves comprados pelo inimigo!!![...]Perder batalhas é dos capitães e ninguem pode estar livre disso; mas dirigir uma massa

64 Anais do Arquivo Histórico do Rio grande do Sul, v. 7, Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1933, Coleção Alfredo Varela, documento 2330 p. 317.( Coleção Varella).

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e prepará-la para sofrer uma surpresa é covardia do homem que assim se conduz.65

Os documentos que atestam os últimos acontecimentos da Revolução

Farroupilha e mesmo os defensores de que Canabarro não traiu seus comandados

negros, não conseguem explicar o motivo pelo qual o General em comando não

se defendeu ou se precaveu do eminente ataque. Por muitos anos o ataque nos

campos de Porongos, permaneceu omitido da história do Rio Grande do Sul.

Porém, se analisarmos a obra de Girardet66 , quando se refere ao tema da

conspiração, como sendo maléfica, algo obscuro comparando a pessoa que perfaz

este complô, com animais imundos que espalham o veneno e a infecção,

podemos entender e relacionar melhor os motivos pelos quais, esta ação foi por

muito tempo “esquecida” pela históriografia rio-grandense, afinal era difícil para

os farrapos admitirem que um dos seus maiores líderes estivesse aliado ao

inimigo e traisse os seus conterrâneos.

O historiador Alfredo Ferreira Rodrigues, em 1950, patrocinado pela

imprensa militar no Rio de Janeiro, colocou em dúvida a referida carta de Caxias

a Canabarro e apresentou poucos argumentos, contra a autenticidade do

documento, indagando apenas que no período da dita Revolução, vários

documentos foram forjados. Diante disso, o Arquivo Histórico do Rio Grande do

Sul, publicou na íntegra a carta de Caxias a Chico Pedro, sem levantar qualquer

dúvida sobre a sua autenticidade. Este documento está guardado no Arquivo

Histórico do Rio Grande do Sul, na seção de Coleção Varella, caixa 6, maço 22,

documento CV- 3730.67

Querelas a parte, o ataque a Porongos, repercutiu dos dois lados da

Revolução e acelerou o processo de paz da maior revolta interna que o Brasil

havia conhecido. No entanto, a questão do destino dos negros ainda era incerta e

65 SILVA, João Pinto. A Província de São Pedro ( interpretação da história do Rio Grande). Porto Alegre: Globo. 1985. p 256. 66 GIRARDET, op.cit, 1987. 67 Anais do Arquivo Histórico do Rio grande do Sul, v. 7, Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1933, Coleção Alfredo Varela, documento 3730 p. 317. ( Coleção Varella).

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alguns farrapos, embora fragilizados para as negociações, enfatizavam o seu

desejo de que os negros que lutaram ao seu lado e que conseguiram escapar de

Porongos com vida, mantivessem a sua liberdade. Já Caxias possuía ordens de

encaminhar tais negros, para as fazendas de café, a fim de suprir a falta de mão-

de-obra.

O Barão possuía naquele momento, poderes ilimitados e consideráveis

verbas, estes concedidos por Dom Pedro II, que visava acabar com a Revolução o

mais breve possível, sem é claro abrir mãos dos negros e por outro lado fazer

com que a elite se mantivesse favorável ao Império, o que ajudaria na defesa da

fronteira, sobretudo com a Argentina. O Barão de Caxias, já havia retirado Bento

Gonçalves das negociações, (pois o mesmo não aceitava de forma alguma as

imposições do Império referente a questão dos negros), e indicado no comando

das negociações de paz o General David Canabarro, pessoa bem mais propícia

aos seus propósitos.

O imaginário político, mostrou todo o seu valor, neste momento das

negociações. A assinatura da paz apresentou-se cheia de representações,

exaltando vitórias épicas e imagens de líderes bons e do povo. Desta forma se

instalou na vida dos grupos envolvidos um imaginário político, como forma de

explicar os princípios que firmavam o poder justo do povo soberano e dos

modelos que formariam o cidadão honesto e honrado. A apropriação dos

símbolos, propiciou aos líderes, tanto do Império quanto da “Republica”, a

obediência de seus subordinados. Caxias, como um excelente estrategista,

conseguiu controlar os anseios revolucionários, fazendo com que, de certa forma,

as expectativas e as aspirações do povo rio-grandense fossem alcançadas, dando

fim as lutas e conflitos que afligiam as pessoas.

O tratado de paz, foi assinado entre 28 de fevereiro e 01de março de

1845, e neste não participaram, o General Bento Gonçalves, que não aceitava o

combate final de Porongos e o General Netto, que neste momento estava

refugiado em sua estância no Uruguai, com seus soldados de confiança, dentre

eles muitos negros. Canabarro, dava-se por satisfeito, pelas “conquistas” que

havia efetivado na assinatura de paz, muito embora os farrapos não tivessem

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condições de prolongar a Revolução por mais tempo, devido a escassez de

recursos, tanto humanos quanto financeiros.

Caxias havia adaptado as disposições encaminhadas por Dom Pedro II em

1844, em um decreto secreto sobre as negociações de paz. Nesse decreto afirmou

o Imperador:

Recorrendo à minha imperial clemência aqueles de meus súditos

que, iludidos e desvairados, tem sustentado na Província de São

Pedro do Rio Grande do Sul, uma causa atentatória da

Constituição Política do Estado, dos decretos de minha

Imperial Coroa firmados na mesma Constituição e reprovado

pela nação inteira; que real e valorosamente se tem empenhado

em debelá-la; e não sendo compatível com os sentimentos do

meu coração o negar-lhes a paternal proteção a que os ditos

meus súditos se acolhem arrependidos: Hei por bem conceder a

todos, e a cada um deles, plena e absoluta anistia, para que nem

judicialmente, nem por outra qualquer maneira, possam ser

perseguidos ou de alguma sorte inquietados pelos atos que

houverem praticado até a publicação deste decreto nas diversas

povoações da Província.68

Com a anistia concedida por Dom Pedro II, os generais Caxias e

Canabarro, proclamaram o fim da Revolução Farroupilha. O documento que

firmava o fim da Revolução, intitulado “Convenção de Paz entre o Brasil e os

Republicanos” não fora divulgado e as condições para esta paz, somente

chegaram ao conhecimento da população rio-grandense, por meio de impressos

intitulados “concessões obtidas” que tinham somente a assinatura de Antonio

Vicente de Fontoura.69 O tratado de paz não poderia conter a assinatura de Caxias

68 Anais do Arquivo Histórico do Rio grande do Sul, v. 7, Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1933, Coleção Alfredo Varela, documento 1822 p. 87.( Coleção Varella). 69 Antônio Vicente da Fontoura, natural de Rio Pardo, nascido em 8 de junho de 1807. Foi um dos nomes mais influentes no Rio Grande do Sul da ala anti-separatista, sendo um forte aliado de Caxias para se aproximar o povo rio-grandense e conseguir seu apoio para o fim da Revolução.

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ou de algum representante oficial, pois para o Império, o Rio Grande jamais foi

reconhecido como um Estado autônomo. Do lado dos republicanos somente uma

ata foi assinada pelos generais, coronéis e majores farrapos, que ainda estavam

reunidos e na sua maioria eram favoráveis ao fim da revolução.

As concessões de paz foram impressas de forma resumida, e nelas

constavam alguns assuntos que não causariam revoltas nem constrangimentos de

ambos os lados.Entre as questões abordadas no documento, constava que os

republicanos escolheriam o novo Presidente da Província e que se aprovado pelo

governo imperial, o eleito assumiria o cargo imediatamente. O novo Presidente,

“escolhido” pela maioria, foi Caxias, o grande pacificador da revolta, escolha

prontamente aceita pela população com o aval de Dom Pedro II. Outro ponto

crucial, era referente ao pagamento que os estancieiros deveriam receber dos

republicanos. Nesse quesito, o Governo Imperial comprometeu-se a quitá-la

integralmente, sendo que para isso deveriam os devedores, apresentar a Caxias

os valores para o ressarcimento dos estancieiros.

Os oficiais, pertencentes ao exército republicano passariam a pertencer ao

exército brasileiro, pois de forma alguma Dom Pedro II poderia abrir mão destes

oficiais, o que certamente comprometeria significativamente a segurança da

fronteira desta região. Já, os “cativos” que serviram aos republicanos, foram

considerados livres. Porém é necessário aqui lembrar que, grande parte deste

contingente foi morta na batalha de Porongos e sobre a outra parte que foi

aprisionada, não há informações nos dados oficiais sobre o seu destino. Logo,

não há como constatar se os negros farrapos realmente receberam a carta de

alforria ou foram encaminhados para as fazendas de café, como era o desejo do

Imperador.

O Império garantiu a libertação dos soldados feitos prisioneiros durante a

revolução, soldados esses brancos. Também concedeu anistia a todos os homens

que optassem em retornar pacificamente para a Província de São Pedro do Rio

Grande e para os estancieiros garantiu a posse de suas propriedades, as quais de

forma alguma passariam para o gerenciamento do Império.

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Os republicanos conseguiram que Dom Pedro II se comprometesse a

regular definitivamente a questão territorial, com a República Ocidental do

Uruguai. Contudo, cabe ressaltar, que em nenhum momento foi mencionada a

questão da importação de charque do país vizinho, nem tampouco a redução de

impostos cobrados pelo Império referente aos produtos produzidos na Província.

Isto demonstra que após dez anos de luta, os republicanos pouco conquistaram no

que concerne as suas reividicações, pois nas concessões “impostas” pelo Império,

as mesmas foram suprimidas, sem qualquer questionamento por parte de

Canabarro restando somente as reclamações dos comandantes que estavam às

margens da negociação.

Oficialmente hà um comunicado, que informou a todos os partidários e

também aos que opuseram a revolta, que a mesma, por vontade tanto dos

republicanos quanto do Império, havia sido finalmente encerrada:

Concidadãos! Competentemente autorizado pelo magistrado civil a quem obedecíamos e na qualidade de comandante-em-chefe, concordando com a unânime vontade de todos os oficiais da força de meu comando, declaro que a guerra civil que há mais de nove anos devasta esse belo país está acabada. Concidadãos! Ao desprender-me do grau que me havia confiado poder que dirigia a revolução, cumpre-me assegurar-vos que podeis volver tranqüilos ao seio de vossas famílias. Vossa segurança individual e vossa propriedade estão garantidas pela palavra sagrada do monarca e o apreço de vossas virtudes confiado ao seu magnânimo coração. União, fraternidade, respeito às leis e eterna gratidão ao ínclito presidente da Província, ilustríssimo e excelentíssimo barão de Caxias, pelos afanosos esforços na pacificação da Província.70

Pode-se nesse momento inferir que Caxias possuia um grande poder de

barganha na “concessão de paz” e que o General David Canabarro, pouco

questionou as questões mais relevantes do tratado. Os impostos e os negros

foram deixados em segundo plano, para que a garantia da propriedade e a

liquidação da dívida ativa dos estancieiros, fossem o motor fundamental para que

70 Anais do Arquivo Histórico do Rio grande do Sul, v. 7, Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1933, Coleção Alfredo Varela, documento 2330 p. 75.( Coleção Varella).

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se chegasse a um acordo favorável para ambos os lados. Esta assinatura de paz,

esta repleta de interrogações e lacunas, como foi toda a Revolução Farroupilha.

O certo é que foram mantidas todas as bases sociais do começo da Revolução. Os

estancieiros por sua vez, tiveram suas dívidas de guerra quitadas, mas

esconderam os negros de sua história, os escravos que não aderiram a Revolução,

jamais foram citados e continuaram na condição de cativos. Sobre os Lanceiros

Negros e a recusa da maioria dos Generais farrapos em assinar o termo de paz,

são acontecimentos que foram suprimidos da história do Rio Grande do Sul por

um longo período.

Caxias foi exaltado como o salvador supremo, aquele que conseguiu suprir

as angústias e as esperanças coletivas do povo. Os chefes farrapos vislumbrados

como os verdadeiros defensores do povo. Entretanto os negros foram esquecidos

pelo povo rio-grandense. A sua história de lutas, foi apagada junto com eles no

massacre premeditado, jstamente por quem deveria defendê-los. Os relatos

apresentados mostram, que os negros se tornaram um empecilho para o fim da

Revolução, e por isso deveriam que ser dezimados.

A historiadora Margaret Bakos, reproduz as discussões no Conselho de

Estado, composto por estancieiros e políticos, referente as indenizações aos ex-

proprietários de escravos:

[...] A longa polêmica que o assunto gerou finaliza com a decisão de estipular a quantia de 400$000 para o pagamento da indenização aos proprietários. O interessante é que, a despeito do protesto de alguns conselheiros, que julgam irrisória a quantia face o preço do escravo negro para a compra, ela foi mantida com a argumentação de que a quantia de 400$000 não poderá com justiça considerar-se preço inferior ao merecimento daqueles escravos, atenta a sua inevitável desmoralização, que os fará insuportáveis aos seus senhores, e de nenhum valor no mercado. 71

Se as declarações do conselho de Estado demonstram que o negro que

havia lutado na Revolução Farroupilha, por quase dez anos, não seria mais útil,

dentro das estancias, pois tornar-se-iam insuportáveis perante aos seus senhores.

71RODRIGUES. J. H. Atas do Conselho do Estado. Brasília, Senado Federal, 1942. In: BAKOS, Margarete Marchiori. A escravidão negra e os farrapos. Porto Alegre, Marco Zero. p. 94.

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Afinal após tantas lutas travadas, certamente estes negros, não aceitariam viver

como cativos novamente e seria muito mais vantajoso ao Império libertá-los do

que ter que conviver com revoltas e as fugas destes negros. O negro que não

havia sido morto e que fora contagiado pela luta para obter a liberdade, não tinha

mais serventia como escravo, e só teria algum valor, se fosse controlado.

Nesse sentido, a libertação dos negros era perigosa para o Império, pois

esta concessão poderia aflorar no restante do Império, a insurgência de outros

escravizados. Caxias soube contornar situação. Por um lado, com a morte dos

Lanceiros Negros, acabaram-se os combatentes que poderiam gerar maiores

problemas, pois eram estes que lutavam pela sua liberdade. Com as garantias

concedidas aos estancieiros, estes acataram as imposições do Império o que para

Dom Pedro II, foi benéfico, pois o Imperador conseguiu aliados para a defesa

territorial da região, assim como acabar com uma das últimas grandes revoltas

internas do seu governo.

A história dos Lanceiros Negros no período da Revolução Farroupilha,

apresenta fatores por meio dos quais podemos conhecer melhor o

desenvolvimento histórico brasileiro em relação ao negro. Visto que a escravidão

e seus efeitos, fazem parte das incoerências fundamentais do período que

constituiu o início do governo republicano constitucional. Os idealizadores sul

rio-grandenses da nova República, não fugiram desta máxima, porém,

expressando as novas idéias de republicanismo e inspirados nos conceitos de

igualdade e fraternidade, ignoraram e, assim, feriram aqueles que haviam se

tornado os seus companheiros na luta pelas conquistas almejadas nas grandes

batalhas que foram travadas na Revolução Farroupilha.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade rio-grandense teve no negro cativo, um dos agentes na

construção da sua história, embora por um longo período, “eles” tenham sido

esquecidos pela historiografia tradicional e para retirá-los da “condescendência

de sua posteridade”, no decorrer desta pesquisa, procurou-se mostrar a atuação

dos escravizados negros no meio social o qual estavam inseridos.

A Revolução Farroupilha trouxe inúmeras contradições em relação aos

negros escravizados que por lá viveram. Os farroupilhas pregavam a total

liberdade dos escravos e somente admitiram os negros em suas frentes de

batalhas devido a reduzida população que possuíam. Nunca foram ferrenhos

defensores dos direitos desse grupo social, somente lhes forneciam certa

esperança, caso se juntassem a luta contra o “tirânico” Império.

Os líderes farrapos souberam de forma muito eficaz, reproduzir no

imaginário da população rio-grandense as representações necessárias, para

cooptar o maior número de adeptos para o movimento. As reivindicações do

começo da revolta, contemplavam grande parte dos anseios da população, porém

com o decorrer do tempo, a demora para o seu término e a lentidão por parte do

governo imperial, em aceitar as reivindicações da população rio-grandense, fez

com que muitas questões fossem “esquecidas”, priorizando somente a

manutenção das terras pelos estancieiros e a quitação da dívida dos mesmos.

Os relatos dos negros, que vivenciaram esse período da Revolução

Farroupilha, deixam claro o anseio pela luta e pela liberdade. Essas pessoas, não

almejavam terras, dinheiro ou concessões, somente queriam ser livres e, para tal

a sua vida dependia das vitórias nas batalhas. A compreensão do que era a

revolta, para os combatentes negros não ficou clara nos relatos analisados, que

carregados de representações apontaram tão somente o que era importante para

os republicanos.

No entanto, quando se fala de negros no contexto da Revolução

Farroupilha, devemos nos ater que os principais chefes farrapos adotavam

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práticas escravocratas. Exemplo claro foi dado por Bento Gonçalves, que ao ser

enviado preso à Corte, levou consigo um negro doméstico para servi-lo. Ao

morrer, o líder farroupilha legou terras, gado e meia centena de trabalhadores

escravizados, numa época em que um cativo valia um bom patrimônio.

Importa lembrar aqui que quando chamado às armas, o homem livre tinha

o direito de substituir-se. Em geral, alforriava um cativo para ocupar o seu posto

no combate. Além disso, incluíam-se nas tropas republicanas, cativos dos

inimigos da República e compravam-se trabalhadores escravizados de cidadãos

da República para preencher os vazios das tropas. Os soldados negros preferiam

a vida militar à escravidão, por sonharem com a liberdade após a luta. Não houve

democracia racial nas tropas farrapas, pois soldados negros e brancos

marchavam, comiam, dormiam e morriam separados e os oficiais dos

combatentes negros eram brancos.

Os republicanos exigiram, insistentemente, que o Império respeitasse a

liberdade dos soldados negros, pois temiam que se formasse uma guerrilha negra

na Província, caso a liberdade prometida, não fosse cumprida. Mesmo os chefes

farrapos divergiam sobre esta situação, e muitos não aceitavam que os negros

fossem libertados quando cessassem os combates.

Sem perspectiva de vitória, os líderes farrapos romperam de vez, com o

ideário revolucionário, uns partiram para as suas estâncias, enquanto o comando

das negociações foi entregue a David Canabarro, pessoa bem mais simpática a

volta dos negros para o sistema escravista. O Barão Caxias soube muito bem

aproveitar esta situação e no final da revolução, pouco antes do tratado de paz, o

destino dos negros foi traçado com a conivência do general Canabarro. Conforme

documentos do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, uma carta de Caxias ao

seu comandante Chico Pedro, dava ordens claras para que no ataque as tropas

farrapas que estavam acampadas no cerro de Porongos, somente o sangue de

gente branca e de indígenas fosse salvo. Nesse ataque os Lanceiros Negros

estavam desarmados e poucos sobreviveram. Dessa forma Caxias acabou com

mais um empecilho para o término da revolta e os lanceiros que sobreviveram,

não foram localizados , impossibilitando assim concluir se obtiveram a tão

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sonhada liberdade, ou marcharam para as fazendas de café, como era a vontade

de Dom Pedro II.

O ataque a Porongos mostrou que a “Nova República” pouco se interessou

pelos negros e os mesmos viveram às margens da sociedade, buscando na

maioria das vezes, criar estratégias para a sua sobrevivência. O seu papel dentro

da sociedade rio-grandense continuava sendo o de mercadoria, pouco podendo

opinar sobre a sua condição servil. De um lado ficavam os interesses dos

estancieiros farroupilhas e de outro a pressão do Império e no meio desse

turbilhão de questões, o negro tinha que se ajustar aos mecanismos impostos,

sendo influenciado por todas as representações criadas para melhor controlar as

suas vidas.

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