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Em Buscada
FelicidadeChega de “bondade”, “maldade”, “heroísmo”...
O que você precisa c assumir sua condição humana. E perder o medo do sucesso.
5?Edição
Flávio GikovateO Autor.
I lávio Gikovate nasceu em São Paulo em 1943.I! médico, formado pela USP cm 1966.I oi Assistente Clínico no lnstitute of Psychiatry na London University, na Inglaterra.I )csde O início de sua carreira, dedica se essencialmente .u» trabalho de psicoterapeuta, i.i tendo atendido a mais «Ir (>.000 clientes.Atualmente dirige o Instituto <U ISicoteiapia deSào PauJo.M.-m de autor consagrado no Mi t al c editado também n i \rp.oulina, é conferencista minto .olliitado, tanto para .Hivulailr. acadêmicas • i'.ii.i .»s que se destinam•to publico em geral.I M. iwi, começou a apresentar . («nMiiima "( anal I ivre”, na I' .1. Ihiiideinintcs de Televisão, ..io para todo o país.
•MM •Inimis obras todas h i|in iiinncntt* reeditadas, iiMim rstAo relacionadas K I Mtiitti dobra deste livro.
Flávio Gikovate
Em Busca da
FelicidadeChega de “bondade”, “maldade”, “heroísmo”...
O que você precisa e assumir sua condição humana. I perder o medo do sucesso.
"ftCIP-Br.isil. C4tal06Açan-nâ-Fnnte Câaara
Brasileira do Livro, SP
Gikovate, Flávio, 19^3- ÜJ91e Em buGca da felicidade / Flúvio Gikovute. —
São Paulo : M. Q. Ed Aooociadot:, l«?3l.
1. Ética 2. Felicidade 3. Liberdade *♦. Pr.ico- logia exlctencial I. Título.
CDD-150.192-153.83-158.1-171.*»
81-0^53índices para catálo&o si stetr.it
ico:1. Felicidado : Anpectos aoraic :
Filosofia171 •%
2. Felicidade : Poicologia aplicado I58.I 3- Liberdade : Aapector paicológicofi 1>3*83 *♦. Psicologia existencial 150.19?
Produção: Florenlino Marcondes DWngelo Capas: CC&C - Cabral, Criação & Comunicação (SP) Foto:
Vic Parisi (Manchete)
© desta ediçãoMG Editores Associados l .tda.Alameda Uu, 1597 CEP 01421 São Paulo-SP Ia edição: Março de 1981
ÀCECI.
Minha metade feminina, dona da magia que me
falta. Companheira - paciente e corajosa de
rodas as viagens.
ÍNDICE
1............................................................................................. Introdução...........................................
2........................................................................ O Prazer da Renúncia........................................................................................................... 25
3............................................................................ Vaidade e Ambição........................................................................................................... 55
4................................................... O Herói e o Desejo de Imortalidade......................................................................................................... 67
5............................................ Uma Avaliação Moral da Generosidade......................................................................................................... 75
6.................................................................... A Questão da Liberdade
.......................................................................................................... ^9
7......................................................................... 0 Medo da Felicidade
....................................................................................................... 119
8........................................................................................ Conclusões
........................................................................................................ 1^9
1. INTRODUÇÃO
Tratarei aqui de fazer algumas considerações sobre a
questão da moral estudada do ponto de vista da psico-
logia. É evidente que se trata apenas de urn dos
múltiplos enfoques do problema e a intenção é a de trazer
mais alguns subsíd.os e não a de resolver todos os
mistérios milenares.
Desde o meu livro "Você é Feliz?” que o tema é
persistente nas minhas reflexões e assume complexidade e
importância crescentes, se intrincando com processos
ligados ao instinto sexual como eu o tenho entendido e
também com a questão da liberdade humana. E esta última é
parte fundamental do que se poderia chamar de felicidade,
estado anímico sempre buscado, mas cuja aproximação traz
sensações de medo — acompanhadas de tendências
destrutivas da condição buscada — difíceis de serem
explicadas, porém presentes em todas as pessoas.
Outra vez me vejo obrigado a fazer a ressalva de que
se trata de observações preliminares, ainda não comple
tamente encadeadas dentro de uma estrutura teórica coe
rente. Porém, em virtude da importância que penso ter
estas questões para a compreensão mais ampla da psico
13
logia humana normal, creio que se justifica sua
publicação ainda em estado embrionário. Não se trata de
propor claramente novos caminhos para o homem; a intenção
ainda é mais tentar esclarecer algumas amarras que o tem
limitado.
A psicologia tem sido entendida como uma ciência que
busca compreender os processos mentais do homem,
distinguir seus componentes instintivos e seus componen-
tes racionais; tem que tentar isolar os processos que
existiriam independentemente da influência de uma ordem
exterior — social — específica, bem como saber como o
meio externo modifica cada um dos componentes da vida
interior. E não é difícil perceber que os obstáculos são
quase intransponíveis, pois que a componente concreta da
razão se alimenta fundamentalmente de informações
recebidas do meio exterior, isto se dando através dos
órgãos dos sentidos. Assim sendo, é impossível imaginar
que o homem não seja continuamente influenciado pelo que
ele vê, ouve, etc. E ele não seria o animal racional que
é, se não se modificasse em função das características
das informações externas que recebe; e estas influem
também no modo como se expressarão os instintos, que
podem ser reprimidos ou estimulados a se exer cer numa ou
noutra direção conforme os interesses de uma ou outra
ordem social existente. Ao mesmo tempo, algum tipo de
organização social para o homem me pare- cc inevitável
tanto por razões ligadas à resolução de necessidades
materiais de sobrevivência como sn virtude de suas
características instintivas.
A prolongada dependência prática das crianças em
relação aos adultos cria a necessidade de uma ligação
mais estável entre um homem e uma mulher, de modo que ela
cuide diretamente dos filhos e ele se responsabilize pelo
encontro dos meios de sobrevivência do grupo. O instinto
do amor implica na existência de um desejo persistente
nas pessoas de estabelecer uma ligação permanente a dois,
o que reforça o surgimento do grupo familiar. 0 instinto
sexual, através de sua componente que chamei (vide "0
Instinto Sexual") de prazer de se exibir deter mina a
14
tendência dos homens de viverem próximos uns dos outros,
fato que corresponde ao que se chamou de instinto
gregário. Assim, parece inevitável, ao menos em
sociedades anteriores aos importantes progressos e alte-
rações ocorridas no nosso século, que homem e mulher se
unam em ligações permanentes, tenham filhos e se
encarreguem de criá-los e vivam próximos de outros nú
cleos construídos de modo similar, o que constitue a
essência de um grupo social. Este terá que ser regido por
regras e regulamentos, de modo a tentar garantir um fun-
cionamento harmônico e viável, o que será feito através
do estabelecimento de proibições de condutas que ameacem
a estabilidade do sistema e garantam, ao menos teori-
camente, os direitos dos outros.
As regras de convivência estabelecidas por cada grupo
serão transmitidas òs crianças, futuros membros ativos,
de tal forma que estas sofrem mais uma influência
externa, agora de natureza diferente da que os penetra
através da senso-percepção. Elas deverão se familiarizar
com conceitos abstratos ligados aos direitos e deveres de
cada membro do grupo, com o que é certo e com o que é
errado, com o que é bom e com o que é mau, com o que é
justo e com o que é injusto. As normas são, até certo
ponto, diferentes para cada grupo social, dependendo do
tipo de vida que levam, de sua organi/ação política e
econômica e do grau de sofisticação e complexidade que
atingem. Algumas dessas regras têm sido onipresentes,
sendo interessante registrar que uma delas é a que está
em relação com a regulamentação do exercício do instinto
sexual, que jamais pode ser deixado livre, para se
exercer naturalmente.
As normas que deverão reger a conduta de cada membro
do grupo podem ser construídas, ao menos hipote
ticamente, de dois modos: ou através da capacidade dos
homens — mais acurada em alguns de se colocar também no
papel dos outros, de modo a se construir um sistema justo
e capaz de garantir direitos e deveres idênticos a todos
os membros; ou através da observação egocêntrica de um
sub-grupo mais poderoso que cria nor mas desiguais e nas
15
quais são claramente favorecidos. Neste segundo caso,
obviamente o mais comum, não se pode falar de normas de
ordem moral e nem em justiça, de modo que as crianças
deverão ser induzidas a se conduzir conforme o sub grupo
social na qual tenham nascido e a entender as
desigualdades como fato indiscutível. Nestas condições,
fica difícil falar que a introjeção dos padrões de
conduta próprio de uma dada cultura seja obri
gatoriamente um processo que dá origem a um sentido moral
na criança. Também já afirmei que a maioria das pessoas
que se comporta conforme as normas existentes não o faz
por as considerarem justas e sim por medo das punições
previstas para o caso de transgressão.
Além das normas próprias da ordem social, a crian ça
sc familiariza, por volta dos 6 7 anos de idade, com um
outro conjunto de conceitos, este talvez de nature za
mais verdadeiramente abstrata: se trata das idéias re
ligiosas, presentes também em todas as culturas. A per
plexidade do homem diante do mundo que o cerca, diante do
mistério de sua existência e de sua morte, diante de
infindáveis eventos para ele inexplicáveis o levou sempre
— a meu ver, com razão — a supor a existência de uma
entidade criadora, um Deus.
Esta suposição, basicamente determinada pelo fato do
homem se ver cercado de processos incompreensíveis para
ele e capazes de influir decisivamente sobre sua vida,
leva quase sempre à busca de indícios capazes de provar
Sua existência, pressentida intuitivamente. Tal pressen-
timento corresponde ao que se chama de fé. e que para
muitas pessoas é suficiente; outras precisam encontrar
ni justificativas lógicas para a sensação que
experimentam, de modo a provarem através da argumentação
racional.
0 que já tomaram como verdadeiro. Assim, o trovão,
eventos atípicos — milagres — foram usados como provas
da ••Hiütòncia de Deus.
A etapa seguinte consistiria no esforço humano de
definir a natureza de Deus; ou seja, admitida sua exis-
tência. como seria Ele? Porque teria criado a Terra, os
16animais e o homem? Não é o caso de aqui discutir exaus-
tivumente o tema e também gostaria de ser entendido
• om clareza no sentido de que não acredito que o fato
11(i’• deuses descritos pelo homem possuirem muitas
vezes ■ procterísticas excessivamente humanas seja
argumento tulidente para provar Sua inexistência. Penso
que Deus,
' nc existe, não se revela ao homem; este se empenha em
• ompreendê Lo, o que não poderá levar a resultados
mui- tu iliferentes do que se tem chegado. Creio que as
dou- trmar. religiosas são esforços humanos de chegar a
Deus titi.ivés de um processo racional, sendo que a
divindade
1 pressentida; e isto não prova nem a existência e nem
Imtxistência de Deus, tema a meu ver cercado por um
mintório que jamais será decifrado.
Nos últimos 200 anos o homem féz importantes
ih'.cobertas no terreno das ciências naturais teoria da
iivulução, progressos na química, descoberta do átomo,
• nmpreensão de fenômenos moleculares em seres vivos
Míicionadas com a reprodução, etc. — de modo a se ter
(imlido supor que, através deste caminho, se chegaria
iitn dia a compreender todos os fenômenos observáveis. I
<i idéia de Deus caiu por terra, pois parecia que se es*
tiivíi <i caminho de entender os mistérios da existência
(HMVÓs de recursos criados pelo próprio homem. Tal su-
posição materialista tomou conta de muitos dos espíritos
mais lúcidos e entramos na era da louvação da ciência.
Só nos últimos anos ò que se tem percebido que houve uma
super-estimação das possibilidades desta rota conduzir
ao fim esperado, o que vem coincidindo com a retomada do
pensamento religioso. Em outras palavras,
quanto mais se conhece, maiores são as dúvidas sobre
coisas que aparecem e são inexplicáveis, de modo que o
mistério acerca do mundo em que vivemos se torna tanto
maior quanto maior é o conhecimento humano; e isto mostra
claramente que o mistério que nos cerca é indecifrável.
Novamente perplexo e bastante mais humilde, o homem volta
a cogitar da hipótese de uma entidade criadora.
17
E voltará a tentar entender Sua natureza e Suas in-
tenções, o que significa um esforço contínuo de superação
de si mesmo e de transcendência. Ou seja, quando o homem
aceita a idéia de Deus, imediatamente tenta se aproximar
da idéia que ele concebeu, ao que parece num esforço de
não ficar por baixo. É como se não conseguis semos
aceitar a existência de uma entidade superior a nós sem
desejarmos imediatamente nos eqüivaler a ela. Tal
processo, bastante curioso e importante reflexo de
características da psicologia humana de natureza bastante
duvidosa, é, ao mesmo tempo, extremamente criativo. Não
há como negar que muitas das mais belas obras feitas pelo
homern foram estimuladas pelo desejo de se equiparar a
Deus, ou então no sentido de louvá-lo condigna mente. As
igrejas, as pinturas e esculturas que elas contém, as
músicas sacras são alguns dos pontos altos do patrimônio
acumulado pelo homem nestes milênios de história.
Até mesmo se Deus nao existir, não há como negar que em
nome Dele — ou em busca Dele — o homem criou objetos e
idéias as mais ricas; se pode até dizer que a idéia da
existência de Deus é mais criativa e útil para a
humanidade do que a hipótese de sua inexistência, pois
não se pode negligenciar o fato de que o século XX, es-
sencialmente materialista, tem sido bastante pobre em
criações geniais na música, literatura, filosiíia, artes
plásticas, etc.
Na medida em que o pensamento religioso se sofistica
e mais características são atribuídas às divindades e
também em decorrência de que tais concepções \,:io
facilmente aceitas pelas pessoas em geral - o que mostra a
clara predisposição dos homens em supor a existência de um
ente criador — não é difícil imaginar que ns concepções
religiosas possam ser usadas como reforço Justificador das
normas sociais propostas para criar possibilidades de vida
coletiva. Assim sendo, as normas da organização social
passam a ser parte dos desígnios de Deus, que espera que
os homens se comportem de uma dada maneira com a
finalidade de agradá Lo. O homem terá que ter uma conduta
adequada para se salvar como 'criatura diante de Deus e
18
também para ser aceito dentro <!n grupo social. No plano
teórico não deveria haver con- tr.idição entre estes dois
tipos de expectativa acerca do comportamento humano;
porém, na medida em que as normas sociais se impõem no
sentido de beneficiar subgrupos e as proposições
religiosas persistam pretendendo condutas justas, o
indivíduo terá que optar entre se Milvar diante de Deus ou
suceder durante a vida terrena. Nestes termos o pensamento
religioso poderá ficar a serviço de criar uma maioria
dócil e resignada com a opres- ’.Jo que sofrem, não sendo
esta. em absoluto, sua inten- çflo inicial.
Em poucas palavras, a criança - e depois o adoles-
cente e o adulto — se apercebe de tendências que surgem • r.pontaneamente dentro de si, e que constituem os cha-
mados instintos; se apercebe da realidade externa e das
utilidades e interrelações entre os objetos que o cercam
ntravés dos órgãos dos sentidos e, através da memória.
19
os registra e aprende a lidar com eles, constituindo esta
a função principal da razão concreta; se apercebe que as
inter-relações entre as pessoas e destas com os objetos é
governada por normas às quais deve obedecer sob pena de
sofrer punições, além de aprender que estas normas teriam
sido propostas em função dos designios de uma entidade
superior — que é pressentida — e alicerçada em conceitos
de justiça próprios da maneira de ser da divindade. A
maioria das pessoas não chega a entender muito bem qual
seja esta maneira de ser e entende o pensamento religioso
como mais um aglomerado de regras que devem ser seguidas
sob pena de castigos futuros, É bom registrar que tal
atitude pedagógica foi muitas vezes assumida por
educadores religiosos, o que significa, a meu ver, um erro
imperdoável, pois com isto subtraíam toda a grandeza e
toda a sutileza do pensamento moral, que passava a ser
apenas mais um reforço das normas de comportamento social
adequado, e de acordo com a conveniência de subgrupos. Tal
atitude dificulta ainda mais a aquisição de uma concepção
abstrata do que seja a jus tiça.
Tanto as normas sociais como as proposições reli-
giosas ligadas è salvação da alma — e que. como disse, es-
tavam quase sempre correlacionadas na prática - sempre
impuseram limites a certas tendências do homem, tendências
estaS surgidas espontaneamente e que eram tidas como anti
sociais ou indignas segundo o anseio divino. A restrição
mais importante sempre foi em relação ao livre exercício
do desejo sexual, capaz de ameaçar a ordem social através
de sua conseqüência, que é a reprodução. Se compõe assim
um estado interno de tensão, estando presentes no homem
forças em antagonismo. Dito de outro modo, o homem percebe
que sua boa aceitação social e sua salvação implicam na
renúncia — ou limitação — de tendências presentes dentro
dele e que quando realizadas são fonte importante de
prazer.
É evidente também que as normas sociais regulamentam
a questão do instinto sexual, de modo a tornar tal tipo
de atividade possível em determinadas condições. Tais
normas não podem se opor demais à natureza instintiva,
pois senão terão muito pouca estabilidade — ou serão
freqüentemente transgredidas. Certos tipos de con cepção
religiosa assumem atitude mais radical, no sentido de
limitar a prática sexual - ao menos para quem pretende
ser puro — apenas à função reprodutora. O princípio é o
de que o homem deve renunciar aos prazeres do corpo e se
dedicar a uma vida a mais espiritual possível, sempre no
sentido de imitar a suposta vida das divindades; o homem
deveria tratar de viver desde já de «icordo com o que
seria sua vida futura, quando a alma %e desprenderia do
corpo.
A vida em grupo é um imperativo para o homem, ao
mesmo tempo que existem nele tendências que precisam ser
reprimidas — ou regulamentadas — para que o grupo tenha
estabilidade e estrutura sólida. As normas sociais e os
mandamentos divinos seriam, assim, fundamentais, devendo
ser incorporados por cada novo membro sob a forma de uma
acurada compreensão de seus significados ou apenas
seguidas por medo de punição. Desta maneira se justifica
a idéia de Freud de que não «•xiste civilização sem
repressão, principalmente da sexualidade; e neste aspecto
Sua visão se torna fatalista e,
• 11<'• certo ponto, pessimista, ê curioso observar a
tendência das pessoas — mesmo quando geniais para
atitudes deste tipo diante de um obstáculo mais complexo;
o fa- tu de não se ter até agora encontrado solução para
um determinado dilema não significa absolutamente que ele
M*ja insolúvel, ainda que assim possa aparecer à primeira
vista. 0 clareamento de novas variáveis pode criar con-
dições para a resolução de contradições que até então
pareciam inconciliáveis; por exemplo, a dissociação ab-
soluta que existe hoje entre sexo e reprodução permite
que se reveja a questão sob um ângulo absolutamente novo,
e até mesmo se poder vislumbrar a possibilidade de uma
ordem social onde não haja repressão sexual. A distinção
definida entre sexo e amor, que é talvez o pilar básico
da minha maneira de pensar, abre também novos horizontes
para a análise deste tema.
21
A complicada questão das normas sociais e religiosas
limitadoras da liberdade do homem — liberdade de exercer
suas tendências biológicas e também de agir di-
ferentemente dos padrões propostos em decorrência de
opiniões diferentes — se torna ainda mais confusa em
função da época em que tais questões surgem na vida da
pessoa. De fato, o desenvolvimento da razão abstrata, e
portanto da capacidade de se colocar no lugar das ou tras
pessoas e entender cada situação também do ponto de vista
delas, coincide com o surgimento e superação do chamado
período edipiano. O amor como fenômeno espiritual e não
só físico é também uma decorrência do desenvolvimento da
razao abstrata, de se poder imaginar eventos que não
estão, de fato, ocorrendo (vide "O Instinto do Amor").
As figuras dos pais são, concretamente, as que trazem
para os filhos as normas sociais e religiosas; a ligação
amorosa e a dependência prática das crianças as conduzem
a uma aceitação mais fácil das normas, sob pena de
perderem o afeto e a proteção tão necessária. A ruptura
amorosa edipiana se dá por medo de represálias ou por
sentimentos de culpa; ou seja, em decorrência de uma
sensação de profunda tristeza gerada pelo fato da criança
se sentir responsável por um sofrimento imposto ao pai do
mesmo sexo de quem é rival no triângulo. A dor
experimentada ao magoar o outro — que é como defino o
sentimento de culpa — é muito forte e a tendência seria
no sentido de a criança fazer o possível para evitar a
repetição desta sensação, o que a levaria a um com-
portamento o mais de acordo com a vontade do pai. Daí
a tendência à imitação do modo de ser deste e à
incorpo
ração de suas normas e valores de uma maneira ainda maisintensa.
Tanto a incorporação mais profunda das normas como a
tendência para evitar a qualquer custo o sentimento de
culpa determinam uma limitação ainda maior na liberdade
de pensar e de ser da criança e depois do adulto. Quando
não existe o sentimento de culpa, o que vale dizer
bloqueio do desenvolvimento da razão abstrata, persiste o
medo das represálias, limitador também, apesar de ser
menos intenso. De um modo geral se pode dizer que fica
mais livre aquele que não tem sentimento de culpa, mas
para isto ocorrer não haverá abstração e, portanto, a
criatividade será menor.
A ruptura edipiana faz surgir uma nova sensação,
t.imbém profundamente desagradável: a sensação de de-
namparo *. A criança se percebe pela primeira vez como um
ser independente dos pais, como tendo vida própria; porém
experimenta isto como sendo muito doloroso e t irregado
de insegurança e desproteção. A criança se percebe
independente não com significação de aumento de liberdade
mas sim como abandono e solidão, pois a consciência da
autonomia se dá cm decorrência de uma ruptura amorosa; e
este fato é inevitável na medida em que alas são criadas
dentro do núcleo familiar onde a situa-
l. Ko edipiana ocorre sempre. Ê possível que a evolução
tttria outra se a educação se desse de outro modo, como
ainda poderá vir a ocorrer.
A sensação de abandono e desamparo — que parece •■nr
mais intensa no menino, pois este vive o conflito edi-
(♦) SARTRE. J.P., O Existencialismo é um Humanismo. Tradução de Virgílio
Ferreira. Editorial Presença. Lisboa. 1965.
piano de modo mais dramático, como regra geral — tende a
se atenuar através do fortalecimento dos vínculos de
amizade, conforme costumam ocorrer nos grupos de meninos,
23
típicos dos anos do período de latência. Assim, as
ligações originais são substituídas pelo grupo social,
sendo muito importante para o menino se sentir bem aceito
por ele, o que o leva a um comportamento de acordo com as
normas aí existentes, e que são do mesmo tipo que as
normas do grupo social como um todo.
A idéia de Deus, já previamente existente, ganha
força também nesta época, pois o se ligar a uma figura
paternal invisível e onipresente atenua bastante a sensa-
ção de desamparo. Aqui também se perpetuam as tendências
para a limitação da liberdade, pois para ficar de bem com
Deus a criança terá que seguir os preceitos que os
adultos ensinam como sendo a vontade Dele. Mais uma vez a
criança — e depois o adulto — pode apenas seguir os
mandamentos ou tentar entender mais profundamente o que
eles significam e porque existem.
A triste sensação de desamparo se atenua também
através da percepção — que se desenvolve em algumas
crianças — de que cada um de nós é parte ínfima do que se
chama de humanidade; o se sentir parte de um coletivo
desperta um estado subjetivo de conforto, atenua o se
sentir só. É como se a família se estendesse e englobasse
todos os seres humanos. Suponho que desta sensação
atenuadora do abandono derive, ao menos em parte, o
desejo idealista de se empenhar por construir uma socie-
dade mais justa, ou seja, os anseios políticos do homem,
que — é claro — serão reforçados por outros componentes
da estrutura psíquica.
Estas observações rápidas são suficientes para mos
trar como os princípios de justiça e de moral são incor
porados de um modo confuso e dúbio. Algumas normas são
aceitas em função de se fugir de punições dolorosas,
outras em decorrência do temor da perda de afetos; outras
por medo do sofrimento determinado pela culpa de impor
contrariedade a figuras amadas. Certas normas são aceitas
com facilidade porque não implicam em grandes
sacrifícios; outras determinam tensões internas por estar
relacionadas com repressões de tendências instintivas.
Algumas são facilmente compreensíveis e, porisso mesmo,
24
mais aceitáveis; outras são definitivamente incom-
preensíveis e só podem ser aceitas por meio de algum
processo mais radical. Mesmo na vida adulta fica muito
difícil se fazer uma revisão crítica, de modo a se poder
dispensar certas normas e persistir aceitando outras; e
muito poucos são aqueles que não se vêem limitados por
esquemas repressivos desta ordem. Ao mesmo tempo, a idéia
fascinante de se ver livre de conceitos não mais
aceitáveis esbarra com um enorme temor, com múltiplas
conotações, todas elas ligadas ao processo infantil de
incorporação das normas: temor de abandono e solidão se
não agir conforme os princípios do meio; medo de
represálias ligadas a perda de posição, de provocar
sofrimento em pessoas queridas e de perder o afeto e a
admiração destas.
Assim, não se pode dizer que o homem é limitado por
princípios de moral e sim por um complexo processo que
envolve normas sociais, padrões familiares e princípios
religiosos relacionados com um modo peculiar de ver o bem
e o mal. Uma reflexão adulta e não religiosa sobre a
moral se impõe e será esta a minha intenção. A idéia é a
de trazer subsídios para uma colocação mais apropriada da
questão, com a pretensão de que isto possa trazer
melhores condições de pensar e de existir para o homem.
Na realidade, penso que a psicologia como ciência tem que
tentar compreender os processos mentais e também, na
medida em que se consigam novos avanços neste sentido,
propor soluções novas para o homem. A simples análise do
mundo anímico sem a pretensão de se buscar novos arranjos
entre os diversos componentes da subjetividade me parece
processo estéril, resignado e pessimista. Se a felicidade
humana consiste no encontro de formas mais harmônicas de
entrosamento das várias tendências, até certo ponto
conflitantes, da vida interior, esta tem que ser a meta
da psicologia; o entendimento e o detalhamento de cada
componente da subjetividade só tem importância e valor se
estiver a serviço desta finalidade.
Nem sempre os avanços se fazem através dos mi-
nuciosos estudos dedutivos. Creio que vale a pena, às
25
vezes, fazer considerações mais ousadas e de natureza
indutiva, ainda que usando para isto de um modo de pensar
menos ao gosto da nossa época; tentarei uma abor dagem
mais livre das normas científicas, de modo a dispensar
demonstrações exaustivas e a fazer suposições, às vezes,
com a liberdade que só se atribui ao artista; ou seja,
aqueles que podem-inventar ao invés de descobrir. Não é
demais repetir que tais criaturas com a liberdade de
inventar muitas vezes descobriram aquilo que oficialmente
só décadas ou séculos depois foi validado pela ci ência.
No que diz respeito à psicologia humana acho extremamente
difícil distinguir os dois processos; a verdade, quando
existe num ou noutro caso é imediatamente detectada pelas
outras pessoas.
2. O PRAZER DA RENÚNCIA
I
Inicialmente quero fazer algumas conjecturas acer- <
.1 de como nasce, do ponto de vista psicológico, a no-
çílo de bondade, bem como o que significa a maldade.
I uvarei em consideração o desenvolvimento das pessoas
'que persistiram na capacidade de abstração, e que cor-
tospondem às criaturas mais completas, mais subjetivas
II «em dúvida aquelas que foram — e são — as mais vol-
tadas para as questões da filosofia, da religião e da mo-
ral,
Conforme a hipótese que venho defendendo (vide “Você
é Feliz?") a quebra do processo concreto de raciocinar —
conhecimento adquirido diretamente a par- ilt dos órgãos
dos sentidos — surge quando a criança — o depois o adulto
— se coloca no papel de outra pessoa, mimai ou objeto.
Apesar de se tentar ao máximo a cla- ntza, é possível
apenas descrever estes fenômenos ligados no funcionamento
da razão e ainda assim de modo muito superficial. Não
dispomos de dados fundamentais que »ios permitam
compreender como se dão tais processos <io nível das
células cerebrais e nem podemos — sob pena de buscar
soluções fáceis — atribuí-los à alma, entidade oütranha
aos processos neuro-fisiológicos. Assim, fica
uma importante incógnita na raiz do entendimento da função
racional, especialmente do componente abstrato. É mais
fácil entender que os neurônios recebem informações de
fora através dos órgãos dos sentidos, que as registram e
correlacionam (processo em íntima ligação com o surgimento
da linguagem) do que saber como, de repente, estas
células, através da interação entre elas — sem dúvida
facilitada pela linguagem — passam a gerar novas
informações, agora independentes — ou quase — da senso-
percepção.
É como se, a partir de um certo número de informações
já registradas, o sistema racional ganhasse autonomia e
pudesse gerar novos dados por si mesmo. E é neste mis-
27
terioso processo que reside a maior grandeza do homem: sua
capacidade criativa.
O processo abstrato mais simples seria, pois, o de
sair de si e tentar "ver" um evento qualquer pelos olhos
do outro; é o mais simples porque ainda seria quase uma
imitação da percepção direta, apenas alterada por um es-
forço de se colocar noutra posição diante do evento, É evidente que tal possibilidade cria inúmeras novas infor-
mações e dá, pela primeira vez, condições para que se
possa ter dois pontos de vista acerca de um só evento. Não
é difícil perceber como o processo mental se enriquece com
apenas esta pequena alteração, como se pode obter muito
mais elementos a partir de cada situação; e, também, como
será difícil, a partir desta condição, se ter descanso e
unidade, pois para cada condição existirão mais de uma
forma de entendimento, fato gerador de tensões internas
intermináveis.
Do ponto de vista das interrelações humanas, aquele
que possui a capacidade de se colocar no lugar do outro se
verá desde logo sujeito a complicações. Se, por exemplo,
uma criança deste tipo — e eu creio que em certo momento
da vida praticamente todas têm esta capacidade — estiver
com um brinquedo novo e o seu irmão lhe pedir para usá-lo,
está composto o dilema: a criança, por razões
egocêntricas, está obtendo prazer do contato com este
objeto e ao mesmo tempo percebe que o irmão está triste
por não tê-lo, e isto ao se colocar no lugar dele. Sentirá
a alegria de possuí-lo e a tristeza que ele supõe oxista
no irmão; e poderá concluir que a tristeza do ir- mão
existe em decorrência do seu comportamento (sentimento de
culpa). Se ele der o brinquedo ao irmão ficará frustrado
mas aliviado desta outra dor; se não der, este suposto
sofrimento do outro poderá impedir que ele usufrua do
prazer advindo do brincar.
Muitas crianças tenderão a aceitar a frustração pes-
soal, por perceberem esta como sendo uma dor menor do que
aquela determinada por se achar responsável pelo
sofrimento da outra; e isto depende muito do modo como
reagirá a outra, pois se ela tiver uma atitude que demons-
tre grande sofrimento diante da privação, maior será o
28
sontimento de culpa. Tal conduta será tanto mais prová- vd
quanto mais significativa for, do ponto de vista afetivo,
a outra pessoa; assim, se o objeto do dilema do menino for
sua mãe e esta agir de modo a demonstrar grande sofrimento
diante de condutas do filho que a contrariem — que
corresponde ao que se chama de chantagem «•mocional —
maior será a tendência deste de abrir mão do seu prazer em
favor dela; e isto não se dará por convicção e sim para
que o menino se livre da terrível dor determinada por se
sentir responsável pelo sofrimento que ele pode supor
existente na mãe.
Quanto maior for a capacidade de se colocar no lugar
do outro, maior será o sofrimento derivado de supor sua
dor e, portanto, maior será a tendência para a renúncia
dos prazeres pessoais — egocêntricos — em favor de
terceiros. Do mesmo modo, quanto maior for a capacidade de
lidar com frustrações pessoais e quanto menor for a
capacidade de lidar com sentimentos de culpa, maior será a
renúncia, mesmo em condições em que ela não se justifique.
Do ponto de vista lógico, a renúncia da atitude
egocêntrica só deveria ocorrer quando a outra pessoa tem
mais direitos e não em igualdade de condições.
Inversamente, quanto menor for a capacidade de lidar
com frustrações pessoais e quanto maior for a ca-
pacidade de lidar com sentimentos de culpa — o que signi-
fica o colocar-se no lugar do outro de modo mais incom-
pleto — maior será a tendência para soluções egoístas,
mesmo em situações em que o outro tenha mais direitos.
Desta forma se compõem dois tipos humanos funda-
mentais: o generoso, que lida bem com frustrações e mal
com sentimentos de culpa; e o egoísta, que lida mal com
frustrações e bem com sentimentos de culpa. A nenhum dos
dois se pode atribuir o sentido de justiça, pois um
defende mal os seus legítimos direitos e o outro não se
ocupa de atribuir a outrem direitos iguais que a si mes-
mo. Do ponto de vista do desenvolvimento emocional, o
tipo generoso é o que indiscutivelmente evolui mais, pois
as renúncias contínuas o obrigam a buscar forças novas e
a encontrar soluções mais sofisticadas para não se deixar
29
sugar inteiramente; além do mais, ao suportar a dor de
repetidas frustrações se percebe cada vez mais forte e
seguro, de forma a desenvolver uma importante tendência
para um contentamento íntimo sempre que é capaz de mais
uma renúncia. Apesar de momentos de irritação consigo
mesmo e de dúvidas acerca de sua conduta, se sente cada
vez mais superior, mais nobre. O egoísta, por outro lado,
se encaminha para o estancamento do seu desenvolvimento,
pois se reconhece fraco diante das frustrações e tenderá
a fazer uso de sua inteligência sempre no sentido de
encontrar saídas não dolorosas para os dilemas; desta
forma, se mantém muito pouco preparado para a realidade
da vida e desenvolve cada vez mais uma postura de
parasita em relação a alguma pessoa mais generosa. Suas
soluções são, pois, menos sofis- tlciidas e menos
imaginosas e sua auto-avaliação é precá- ilti, apesar de
que se desenvolve uma clara tendência pa- in camuflar
todas as fraquezas — o que é a confirmação cnnlor de sua
existência.
O generoso se ocupa do próximo mais do que de ti
mesmo, sendo o inverso o comportamento do egoísta O
generoso não faz aos outros o que não quer que iw í im para
si, mas deixa que façam arbitrariedades con- tm cie; o
egoísta faz aos outros o que não quer que façam l»«ir<i
si e se revolta quando é vítima de arbitrariedades.
O egoísta é uma criatura injusta, capaz de prejudi-
oir seriamente o outro quando tal atitude lhe beneficiar;
•i Into fundamentalmente por não possuir — ou lidar bem -
om — sentimentos de culpa, É aquele que tem mais di-
ficuldades de aceitar normas sociais quando elas impli- •
nm em sacrifícios ou limitação de suas vontades — o «|iio
vem a ser frustração. Ao menos teoricamente as nor- nn\
existem com a finalidade de impor limites a estes
liornens, cuja conduta seria incompatível com qualquer
ordem social. Como lidam mal com frustrações temem
<mtigos que impliquem neste tipo de sofrimento e é
nes- !«• sentido que se construíram as punições sociais
para on casos de transgressão das normas. Do ponto de
vista rMIgioso, tais criaturas seriam as portadoras da
malda- <lr que desta forma se define como egoísmo e
30
imaturi- diide emociohal — que só poderiam se salvar
através do «lusenvolvimento do sentimento de culpa —
remorso ou Arrependimento.
A salvação, deste ponto de vista, consiste em recom-
pensas posteriores — após a morte - para condutas gene-
rosiis, condutas estas que implicam em sacrifícios e
renúncias nesta vida. A idéia é que Deus seria pura
generosidade, de modo que se aproxima mais Dele aquele
que «•.sim se comportar. A outra divindade seria o
Demonio ou a pura maldade, inspiradora do comportamento
egofs- t.i que, diga-se de passagem, quase nunca é
totalmente assim. O homem deveria se purificar ao máximo
de suas tendências egoístas — que existem também nos
generosos — e ser capaz de suportar todo o tipo de
arbitrariedade sem reagir e sem siquer se revoltar. Ao
menos do ponto de vista cristão é assim que as coisas são
entendidas. A generosidade é louvada, mesmo que
implicando em humilhações na vida terrena, e apontada
como sendo o caminho da salvação. Através do amor a Deus,
o egoísta descobriria o sentimento de culpa e se sentiria
mal ao contrariar Sua vontade e nisto consistiria a
essência de sua conversão.
As divindades seriam compostas de pura bondade e pura
maldade; os homens são uma mistura, em proporções
variadas, dos dois ingredientes, sendo que sua meta seria
se aproximar ao máximo da pura bondade. Desta forma, a
generosidade própria dos homens que lidam bem com
frustração e mal com sentimentos de culpa — e que tendem
para comportamentos injustos para consigo mesmos — é
louvada como sendo o bem e tal atitude ganha ainda mais
um reforço. Não é impossível que uma parte do
contentamento íntimo que deriva desta atitude advenha da
idéia de que se está cada vez mais transcendendo a
condição humana e se aproximando do modo de ser de Deus.
O sentimento de culpa é um freio íntimo e indepen-
dente das normas sociais, de modo que as pessoas gene-
rosas respondem mais à sua consciência do que a elas;
assim, parecem portadoras de verdadeiro sentido moral, ao
passo que o egoísta se freia apenas por medo de repre-
sálias, o que dificilmente pode ser entendido como senti-
31
do moral.
Partindo da hipótese de que Deus — se existe — não se
revelou ao homem e sim que este, ao pressenti-Lo, tentou
supor suas propriedades e atribuiu a Ele aquilo que era
entendido como sendo virtudes, pode-se dizer que a
generosidade é percebida como qualidade pelo próprio
homem. E principalmente pelo homem generoso que, ronforme
já afirmei, é o mais voltado para as questões filosóficas
e religiosas. O reconhecimento da existência Hr* uma
mágoa que surge numa situação injusta em que ■ oneroso
age em benefício do outro sem assim o dese- |itr - em
decorrência do medo da dor imposta pelo senti- monto de
culpa — é percebida como uma impureza, uma imperfeição a
ser ainda superada, de forma a que tal tipo Ir homem
jamais deveria sentir raiva do seu agressor. A impureza
seria sinal da existência de um componente mioísta,
indício da presença do Demônio em todos nós. Urna
concepção deste tipo — criada pelo homem — de- noquilibra
ainda mais a balança a favor da generosidade
indiscriminada e cria no homem um prazer cada vez maior
liijmlo à renúncia e ao sacrifício, pois esta capacidade
• mt.iiia em relação com a sua grandeza e aproximação
ca- i!<i vez maior da divindade. E é bom dizer que acredito
|iio as idéias, criadas pelo homem, são capazes de influir
•Incisivamente sobre ele mesmo.
Quanto mais o sacrifício é sentido como prazeroso,
fnnis o inverso tende a se dar. Assim, uma vida serena,
I ,'tcil e sem problemas aparece como pouco grandiosa
• M*m dignidade; e esta condição poderá trazer um es-
i M I O de ânimo depressivo, justamente quando o homem Haveria
estar contente. A paz é sentida como improdu- ilv.i e,
principalmente, indigna; não leva o homem a cres- mm. ü
sentir o prazer de se aproximar da grandeza de Deus. A
simples falta de sofrimentos e renúncias poderá gerar
•imtimentos de culpa, especialmente se no mundo várias
outras pessoas estiverem sofrendo. A culpa será ainda
maior se o indivíduo generoso estiver vivendo uma época w
uma situação efetivamente agradável, que é percebida «omo
não possuindo grandeza alguma; e mais, a vida pra- /orosa
32
é percebida como um enfraquecimento, um empobrecimento, um
distanciamento de Deus.
Nestas condições, o pensamento religioso louvador da
generosidade extrema — capaz de gerar um prazer novo,
ligado à renúncia, percebida como grandeza — tenderá a se
opor aos prazeres mais elementares do homem, ligados ao
funcionamento harmônico do seu corpo e à realização de
suas funções instintivas, particularmente a sexual. Assim,
a repressão sexual não existiria apenas como fato
indispensável para o estabelecimento de um grupo social
estável mas também para afastar os homens generosos do
sentimento de culpa e de empobrecimento ligado a uma vida
prazerosa e sem renúncias. O homem generoso aprende a
substituir o prazer instintivo pelo prazer da renúncia.
Substitui o prazer de receber pelo prazer de dar. Se
aproxima da divindade na medida em que se distancia de si
mesmo e, principalmente, do seu corpo. O corpo, e seus
prazeres, fica associado à idéia de empobrecimento e
também ligado a sentimentos de culpa, que só se atenuam em
situações de sofrimento e renúncia. Os prazeres do corpo
afastam o homem de Deus e os ligados ao sacrifício o
aproximam.
É importante ressaltar mais claramente que este
mecanismo não foge ao princípio freudiano de que o homem
busca o prazer. Se trata da renúncia de um tipo de prazer
em favor de outro sentido como maior e mais completo. O
que evidencia a existência de inadequação psicológica é
que não haveria a necessidade da renúncia de um tipo de
prazer em favor do outro, pois que eles não são, por si,
antagônicos. Não seria impossível imaginar o homem capaz
de usufruir os prazeres do corpo e os da paz e harmonia e
também se sentir gratificado e engrandecido quando
ultrapassa obstáculos e privações. O limitador desta
possibilidade é o sentimento de culpa, profundamente
agravado pelo modo como se desenvolveu o pensamento
religioso, que acabou associando a grandeza humana apenas
ao sofrimento e à renúncia.
Vale a pena também ressaltar que uma concepção
• InU» tipo é extremamente eficaz em termos de desen-
olvimento social. Na medida em que o homem tem que
33
%r sacrificar para se salvar, ele tenderá a compor para
si Hftiu vida a mais austera possível, se dedicando mais
a atividades produtivas e úteis do que aos prazeres. É
evi-
• lonte também que tal tendência existiria apenas nos
ho- niKis genuinamente generosos, que embora minoria, são
• MI que geram as idéias; na prática, tal tipo de
concepção A ilrformada por pessoas que se apropriam do
esforço Hnfl outros para fins pessoais, de modo que o
resultado l«> trabalho coletivo é dividido de modo
desigual. Ape- MÍ de tudo, se compõe uma sociedade mais
de trabalho lo que de prazer.
A partir de um tipo de concepção religiosa confor- «•ii
descrevi — e que corresponde à própria da nossa cul- tiirn
o homem generoso se furta aos prazeres do cor- l»o tanto
por causa dos sentimentos de culpa como por ~|imct)bê'los
como um empobrecimento, o afastamento
• l«t um estado grandioso. E, conforme acredito, esta
se- ■junda componente tende a ser cada vez mais importan-
tn de modo que o generoso teme se perder e se enfra-
• iiitt€:er se sua vida se torna amena e agradável;
deste mo-
• lu ovita esta condição de todas as formas, apesar de
que opnicntemente é exatamente isto que está procurando,
l" oomo se Deus só gostasse das pessoas que vivem uma
vltlfl de renúncias e humilhações, condenando à morte
Hi.|üoles que vivem em paz, ainda que sem nenhuma ofen-
•n uo próximo. Outra vez tal paradoxo mostra a existên-
• I.I de um ponto obscuro na origem do que se chama de iHtnorosidade, que se compõe por predomínio do sentimento
de culpa — e não em função de um sentido de jus- IM -
percebido como sofrimento maior do que a renún-
• 11 pessoal; desta maneira, a generosidade é uma
constru- Vllo que se faz em função de se encontrar um
sofrimento mínimo e que depois descobre em si mesma uma
fonte
de prazer e de engrandecimento pessoal; e tal descoberta
tende a vir associada à depreciação dos prazeres do corpo,
entendidos — e não sentidos — como sendo de natureza
inferior.
34
O prazer da renúncia é de natureza racional e do tipo
abstrato; se trata de um orgulho íntimo próprio de se
sentir capaz de tolerar sofrimento e, com isto, se apro-
ximar de Deus, o que significa um contínuo engrandecimento
pessoal. Há tempos venho insistindo na possibilidade do
homem encontrar prazer através da função racional — prazer
na resolução de um problema, no ouvir música, no se
identificar com uma idéia, etc. — e não só através da
realização das funções instintivas e resolução dos
desprazeres do corpo. O prazer da renúncia não deve, pois,
ser chamado de masoquismo, como se ele fosse
obrigatoriamente de natureza sexual. Creio que ele tem
autonomia e deriva de outra fonte. O prazer da renúncia e
até mesmo da humilhação — que existe em todas as situações
de vida — pode também se estender para a situação sexual,
ou mesmo ser predominante nesta condição, quando então
creio ser próprio o uso do termo. Assim, o masoquismo
seria um tipo de comportamento sexual onde além da
excitação instintiva se associa o prazer da humilhação,
sendo que este segundo é autônomo e existe também em
situações não sexuais.
A conduta generosa é, pois, inicialmente, uma de-
corrência do predomínio de dor ligado ao sentimento de
culpa — dor maior do que a determinada pela frustração — e
uma tentativa de evitar tal situação; nestas condições
existe um afastamento de uma atitude justa, que implicaria
no indivíduo cuidar dos seus direitos do mesmo modo como
do dos outros. Depois, o indivíduo percebe nascer um
contentamento íntimo ligado ao fato de ser capaz de
tolerar sofrimento, por se sentir forte por isto; se Deus
é todo renúncia, ele ficará cada vez mais próximo da
divindade através desta conduta, que tende ii ' « i
sentida cada vez mais como prazeirosa. A busca des- (•i
tipo de prazer entra em conflito com o usufruto dos i"
ii/oros do corpo, pois estes não estão associados à
idéia !•- grandeza, de tal forma que tendem a ser evitados
por II»inn entendidos como ameaçadores da evolução já atin-
iiii In, usta renúncia aos prazeres do corpo se dá sempre
— ou iu.rn! sempre — com dificuldade e vem associada à
35
idéia ili- tofrimento injustificado, auto imposto de uma
for- m.i incompreensível. O pensamento religioso
cristaliza •mii tomor e prega o desenvolvimento do
espírito em de- tilmonto do corpo, cujos prazeres são
vistos como vul- •ininu e baixos.
No egoísta a dor determinada pela frustração — não M
jill/üção de algum desejo — é maior do que o
sentimento .!«’ culpa — dor ligada ao sofrimento imposto
ao outro. OI H.I forma, a atitude geral é no sentido da realização illmtii dos anseios, realização associada à
sensação de pra-
0 quadro psicológico é bastante mais simples e, mesmo
na vida adulta, se assemelha ao que se pode observar numa
criança pequena. Se trata da busca direta da realiza-
• Mi dos desejos, independentemente do sofrimento ou
ilnno que possa causar a terceiros. Não existe, pois, o
de- iiMivolvimento de um prazer secundário, mais
sofisticado; l»«»miste a capacidade de experimentar os
prazeres do cor- iii>, (jue são percebidos como sendo os
únicos. O equilí- l*i io se altera sempre que existem
situações de frustração, inevitavelmente impostos pela
realidade externa, assim oomo pelos desafios e projetos
criados pelo próprio indiví- iluo e que estão sujeitos a
insucessos. A reação diante da ínistração é, também,
primária; corresponde a uma ati- tudu agressiva, própria do
homem que se vê ferido, amea- i ido; ou seja, a atitude é
sempre a de se ver como vítima c com direito, portanto, ao
revide agressivo.
Além das limitações da realidade, mais um elemento ()
capaz de perturbar a ordem, até certo ponto simples,
• Io indivíduo egoísta: a existência de indivíduos
generosos. Diante da capacidade destes de lidar com
frustrações e de sua eterna disposição para renunciar e
para dar, o egoísta não pode deixar de se sentir humilhado
e infe- riorizado. E tal sensação provoca uma reação
agressiva própria daquilo que chamamos de inveja; ou seja,
a agressão gratuita do que se vê mais fraco em relação
àquele que é visto como mais forte. Junto com esta
irritação, surge no egoísta a tendência para se aproveitar
da generosidade do outro, coisa que ele consegue com
36
facilidade; tal situação aumenta a inveja e, portanto, a
agressividade.
O egoísta se vê incompleto, mutilado e isto faz com
que ele experimente uma sensação continuada de frustração
e de insatisfação. Suas forças para tentar se compor de
uma forma mais aceitável para si mesmo são poucas, pois o
temor da frustração o inibe e o limita. Só lhe resta o
esforçar-se — em geral com sucesso — para se mostrar feliz
e bem consigo, além de usufruir com facilidade dos
prazeres do corpo — facilidades materiais de todo o tipo,
expressão sensual, etc. — coisa que desperta fascínio e
admiração no tipo generoso que, conforme disse, não se vê
com condições para isso.
Dentre os prazeres do corpo aquele capaz de despertar
as mais importantes sensações agradáveis é, sem dúvida, o
sexual. E não é por acaso que este instinto tenha sido
sujeito sempre a severas regulamentações, tanto por parte
das normas sociais como das de natureza religiosa. E,
segundo penso, só secundariamente as normas têm a ver com
o. problema da reprodução, uma vez que se sabe de há muito
tempo que esta função está ligada à ejaculação vaginal e
que há várias outras formas de recíproco prazer sexual
entre um homem e uma mulher; estas outras alternativas
sempre foram vistas como mais indignas ainda, muitas delas
até como perversões; e isto não pode ser explicado em
termos dos perigos de uma gestação em condições sociais
indevidas. E mais, só depois do advento das pílulas anti-
concepcionais — e, por-
I mto, da possibilidade da ejaculação vaginal sem conse-
i|ikõncias — é que se vem podendo praticar outros tipos
Cli» intimidade sexual, se bem que a maioria das pessoas
Minda considera a penetração vaginal fundamental e bá-
fti» .1 Ou seja, a idéia era a de vincular a prática
sexual A rjficulação vaginal e esta deveria ser limitada
pelos te-
• nmes de gravidez; o que se conseguia, assim, era
supri- mlf ,i liberdade sexual a pretexto deste risco, que
nunca Ini <i causa da repressão.
Conforme a idéia que defendi no meu livro "O Instinto
Sexual", a sexualidade humana é de natureza automática,
sendo portanto fenômeno pessoal e não inter- |M' i*oal;
isto levando-se em conta este instinto isoladamen- »•
Possui dois componentes básicos: o prazer de se exibir —
•fotismo difuso — e a estimulação direta das zonas eró-
pinus — feita pelo próprio indivíduo, ou através de um
nhircâmbio de carícias com outra pessoa — que deter- Htlmi
resposta orgástica. Tanto num como noutro ingre-
• lUnte da sexualidade o prazer é individual; ganha um
iu|wcto inter-pessoal — dar prazer ao parceiro — quando
•involve o elemento amoroso; ou então, no caso do homem,
haver uma satisfação do tipo do orgulho pessoal i'
trr conseguido levar a mulher ao orgasmo.
Do ponto de vista do pensamento religioso, criado |
m»Io modo de ser do homem generoso — arbitrariedade moral
derivada de sentimentos de culpa — a renúncia iiom
prazeres do corpo determina um novo tipo de pra- ívr,
percebido como mais edificante e engrandecedor. tn»8ta
forma, a sexualidade é vista como um prazer vul- J . M do qual
o homem deverá se afastar. Apesar dos ge- nrrosos serem
minoria, são os geradores das idéias e, por- tnnto, têm um
poder de influência grande sobre as normas mooitas por uma
determinada cultura, apesar de que suas inncepções são, em
geral, deturpadas durante sua apli- «ittçflo. Ainda assim,
o resultado final guarda aspectos desta idéia inicial,
especialmente no modo como age a grande maioria do grupo —
os sub-grupos que detém o poder pregam para a massa coisas
bastante diferentes daquelas que eles vivem.
Fica claro que, deste ângulo, a sexualidade deva ser
38
relacionada com o mal, com o egoísmo e com um modo de
existir vulgar. As pessoas que a exercem livremente não
são dignas de consideração; porém, despertam sempre enorme
fascínio — especialmente nos generosos — o que reflete a
presença de tal desejo em todas as pessoas, bem como o
fato da renúncia sexual ser uma coisa mais imposta pelo
processo psíquico do que uma convicção genuína. A
correlação da sexualidade com a maldade é uma decorrência
do equívoco de raciocínio determinado pelo sentimento de
culpa predominante na opção generosa. A grandeza
experimentada ao se perceber capaz de tolerar frustrações
não deveria levar à renúncia dos prazeres com a finalidade
de o homem cada vez mais, só se engrandecer de
sofrimentos; conforme já disse, em condições normais um
tipo de prazer — da renúncia — não deveria suprimir o
outro — do corpo.
Sexualidade, associada à maldade, baixeza e egoísmo,
é algo que tem que ser evitado pelos espíritos superiores
e que pretendam continuar evoluindo. O amor romântico,
grandioso e elevado, deverá, pois ter natureza assexuada.
Nas ligações amorosas mais corriqueiras o sexo se torna
aceitável através de uma deformação de sua natureza: a
mulher apaixonada se entregará fisicamente ao
homem com a finalidade de agradá-lo, usufruindo apenas
secundariamente do prazer; do mesmo modo, o homem tratará
de dar prazer à mulher, fato bastante mais aceitável do
que reconhecer que está ele em busca de prazer.
O homem e a mulher narcisista exercem com muito mais
liberdade o prazer sexual, pois que isto não significa
para eles uma limitação no desenvolvimento espiritual. A
sexualidade da mulher narcisista está sujeita I I outras
repressões de natureza psíquica e social que já
• llncuti em trabalho anterior; sua expressão maior
será
• juunto ao prazer de se exibir, exercido de um modo
que Mnimente será feito pela mulher generosa. Não só a
ex- »it ição física mas a ostentação do poder econômico e
do «liistaque social é bastante mais aceitável para o
egoísta <lo que para o generoso.
39
A questão da sexualidade humana é extremamente
• omplexa e cheia de entremeios ainda não devidamente
ndarecidos. A minha intenção aqui foi apenas no sentido
de introduzir mais um elemento, eventualmente es- i
hirecedor do modo como o tema é abordado pelo pen-
Mrnento religioso, o que vale dizer pelos homens genero-
O pensamento deles influi sobre as normas sociais i<
«itravés delas, sobre os homens egoístas, cujo compor-
tumento é determinado em grande parte pelos temores <|n
represálias sociais; desta forma, o modo de pensar dos
homens generosos influi diretamente sobre eles mesmos i
indiretamente sobre todo o grupo. O clareamento das i
ilhas deste tipo de pensamento abre, pois, perspectivas
p.tr.i outros tipos de propostas e para outras maneiras
<!o rxistir do ser humano.
II
A renúncia aos prazeres e direitos pessoais se faz,
pois, inicialmente, em decorrência do sentimento de cul-
pn; as pessoas que persistem capazes de se colocar no pa-
|H|| das outras experimentam as coisas da vida de uma
maneira mais completa e rica de possibilidades e de pon-
tos de vista, mas experimentam também maiores sofrimentos
— além dos seus, aqueles que supõem os outros estejam
padecendo. A situação se torna complicada quando o
usufruto de algum direito pessoal é percebido como capaz
de provocar sofrimento em outra pessoa; e mais ainda se
esta outra pessoa é alguém a quem se está afetivamente
ligado. Talvez esta situação possa ser entendida como
sendo o dilema moral mais elementar e essencial. A
situação não seria difícil de ser resolvida se uma das
duas pessoas tivesse mais direito àquilo que é desejado
por ambos, pois a ela caberia o privilégio. Mas há muitos
casos em que os direitos são iguais e onde o objeto de-
sejado não pode ser fraccionado (se duas crianças desejam
40
o mesmo doce, em igualdade de direitos, se pode cortar o
doce ao meio e se resolveria a questão tendo cada uma
direito à metade).
É possível que um dos aspectos nucleares do desen-
volvimento psicológico dos meninos resida numa situação
deste tipo, envolvendo como opositor o seu pai e como
objeto comum do desejo sua mãe. Por sua própria natureza,
o amor é exigente e exclusivista, de modo que é difícil
supor que ambos pudessem amar a mesma mulher
simultaneamente, ou cada um dos dois se contentasse com
uma parte das atenções dela. Conforme as idéias
desenvolvidas por Freud (e alteradas por mim em "O
Instinto do Amor"), o menino estabelece com a mãe, entre 6
e 8 anos de idade, uma ligação mais de natureza
intelectual, que corresponde a uma evolução do vínculo
físico que os unia desde a gestação. O amor — como fe-
nômeno espiritual — corresponde a um desesperado esforço
no sentido de não se desprender da mãe e se perceber como
criatura autônoma e independente, condição que obrigaria a
criança a experimentar a dolorosa sensação de desamparo e
solidão. É como se todos nós resistíssemos ao máximo à
idéia de nascer, tentando po- risso manter vivo o vínculo
simbiótico original; quando a ligação física com a mãe se
torna impossível — pois ela implicaria em limitações ao
processo de individuação •• i'Oit«jnto, impediria o
usufruto de outros prazeres — e |> t»sinto desenvolvimento
da razão abstrata, se estabeleço umn ligação com ela mais
em imaginação; e tal fenô- Imiho c'? o que corresponderia
ao amor na forma adulta, iiunforme o experimentamos.
Assim sendo, pai e filho têm pela mãe sentimentos Igutiln.
Ambos estão ligados a ela da mesma forma; e ape- do amor
perder seu caráter essencialmente físico — o tirni nfio
significa que não exista prazer no contato corpo- mantém
algumas características próprias da sua hitiuroza
primeira, principalmente o fato de ser ligação n ilois.
Está composto o dilema fundamental, que em |Mncia é a
disputa de dois homens pela posse — amoro- de uma mulher.
E os rivais são, além de tudo, cria- liitn% ligadas por
fortes vínculos afetivos. A disputa é rtnjh.is vezes
ostensiva; mas, na maioria dos casos é ve- no menos nas
41
sociedades ditas civilizadas, onde se- r»n inadmissível a
um pai confessar seus ciúmes e raiva
• 1*1 próprio filho. 0 grau de rivalidade depende
também «l«» nível de maturidade emocional do pai, se bem
que honmns maduros são menos cruéis mas também experi-
mentam os ciúmes. Se por um lado são mais tolerantes »i
proocupados com o filho, por outro são mais sentimen-
( m . <; têm com a esposa ligação mais intensa, fato que
01 f.iria agir com maior possessividade.
A atitude global do pai seria no sentido de se colo-
• ii como muito exigente de comportamentos adequa-
• Im por parte do filho. Na medida em que este não age
• acordo, fato evidentemente usual para crianças nes-
iii Idade, o adulto se atribui o direito à punição violen-
• <i, muitas vezes sendo esta apenas uma forma de
disfar-
• .ir o desejo agressivo próprio daquele que está
enciumado. Outros pais serão excessivamente tolerantes,
inclusive nngligentes em relação à sua função pedagógica;
e isto t into por se perceberem arbitrários e muitas vezes
injus- toi, como movidos por anseios menos dignos; ou
seja,
desejando que os filhos não se desenvolvam da melhor forma
possível, para que não sejam rivais à altura dele. E não
deixa de ser terrível perceber que o processo educacional
seja tão profundamente comprometido por esta disputa
amorosa. A confusão pode ser muito maior, dependendo da
maneira como a mãe se coloca em relação ao dilema:
endossar a atitude arbitrária do marido ou super- -
proteger o filho, coisa que usualmente é feita às escondi-
das do pai — evento que serve para compor uma certa forma
de cumplicidade entre ela e o filho.
Não é difícil perceber como é complicada e dolorosa a
situação do menino. Está sentimentalmente ligado ao pai,
que é também o seu rival; percebe a hostilidade dele e se
sente profundamente magoado. Não pode deixar de
experimentar anseios de vingança, que uma vez fantasiados
determinam enorme sentimento de culpa, pois imagina o pai
sofrendo por algo que ele foi responsável. Tem ciúmes das
atenções da mãe, que ele gostaria fossem dirigidas para
si, e percebe que o pai experimenta o mesmo tipo de emorão
quando é ele o beneficiado por carícias e cuidados.
O menino gosta do pai, ao mesmo tempo que tem raiva
dele; e também o teme, pois ao desobedecê-lo, é, como
regra, severamente punido. Porém, obedecê-lo pode ser
percebido como fraqueza, submissão ao rival; agir como ele
deseja — e que é o mesmo que agir como ele, pois todas as
pessoas se tomam como exemplo de perfeição, apesar de
falarem de modo diferente — pode parecer a melhor maneira
de agradar à mãe (quando ela ama o marido) que é outro
anseio presente o tempo todo. Desta forma, além do dilema
inicial ligado à disputa pelo amor da mãe, se cria no
menino uma enorme confusão acerca do seu modo de ser, de
pensar e de se comportar. Esta confusão o enfraquece e
determina enormes tensões psíquicas, muitas vezes
responsáveis por distúrbios observáveis, como insônia,
tendência para alterações do«imtlte, dificuldades de concentração para atividades es-
«olores, etc.
Quando mais se agrava esta situação, mais cresce a
IAIVÍI em relação ao pai; e esta se acompanha de um cres-
43
nintc» sentimento de culpa essencialmente relacionados
f«Mn as fantasias destrutivas, desenvolvidas
principalmen- IM rm sonhos. Além dos sentimentos de culpa,
extrema- munte penosos naqueles que persistem em se
colocar no liMjnf do outro, existe também o medo de
represálias — punições — por parte do pai. E estes dois
sentimentos m mesclam, muitas vezes de um modo difícil de
ser se- (Mirndos.
Nas crianças pouco sensíveis ao sentimento de cul- imi, o
medo de represálias é percebido com mais nitidez,
• orno emoção autônoma e de importância determinan- III nu renúncia ao amor da mãe, única forma de aplacar n ftm
do pai, condição indispensável para se recuperar
• im mínimo de equilíbrio e de coerência interior.
Naque- lí •. mais preocupados com os outros, o medo de
represá- 11it também existe, mas se associa ao sentimento
de cul- Imi no desencadear da mesma decisão final, que
inevita- volrrmnte consiste na renúncia ao amor pela mãe.
E é curio- iio observar que para estas pessoas o
sentimento de culpa,
• Hhindo experimentado em outras situações da vida
pos- lurlor, guarda sempre esta associação com o medo de
al- iliim tipo de punição. Ou seja, além da dor por
provocar II tiofrimento de alguém — mesmo numa situação em
que luto se justifica — surge também uma sensação difusa
de mudo, como se a pessoa prejudicada fosse tomar algum
tipo de atitude agressiva em represália. Muitas vezes o
tumor de represália surge sob a forma mágica ou mística,
MMKIO que nesta condição a vingança seria divina ou in- htimediada por fenômenos ligados a desejos destrutivos
mnnnados de pessoas invejosas.
Tal medo de represálias associado ao sentimento
• lr culpa torna o menino ainda mais vulnerável a esta
emoção, de modo que a renúncia à ligação amorosa com a mãe
aparece como mais viável do que o enfrentar tanto
sofrimento. Conforme já afirmei, o processo inicialmente
corresponde ao de se buscar a saída que implique em
sofrimento menor, de acordo com um princípio econômico: ou
o sofrimento mínimo ou o prazer máximo. A renúncia amorosa
é também a derrota em relação ao pai; é rendição
44
incondicional, ou seja, tendência à submissão e desejo de
se comportar conforme sua vontade — que, insisto,
significa se comportar como ele. Os que renunciam ao
vínculo materno apenas em decorrência do medo de
represália mantém um relacionamento menos dócil em relação
ao pai, sendo muitas vezes só superficial sua obediência
ou desejo de agradá-lo; anseios de vingança em relação a
ele são muitas vezes conscientes, apenas adiadas para um
momento mais oportuno.
Em uns de modo mais profundo e noutros de maneira
mais superficial, mas em todos os meninos surge, a partir
dos 9 anos de idade, a tendência para idealizar a figura
do pai, fato que se acompanha de um esforço de incorporar
sua maneira de ser e de pensar. A atitude competitiva dos
pais em relação aos filhos costuma se atenuar a partir
daí, sem contudo desaparecer por completo. São raros os
pais que não colocam como limite para o desenvolvimento
dos seus filhos a sua própria forma de ser; em outras
palavras — e independentemente do que digam — os pais
ficam profundamente incomodados pelo fato de seus filhos
os ultrapassarem como figuras humanas. Os filhos, no afã
de agradar seus pais e obter deles o afeto incondicional
— jamais experimentado — se empenham em ser como eles, e
até mesmo em serem mais bem sucedidos que eles. Ao invés
disto agradar aos pais, parece que os vai ameaçando na
sua hegemonia, de modo que os filhos não obtém deles as
respostas de apreço que esperavam. Isto provoca mágoa, ao
menos inicialmente; depois a tendência seria no sentido
do reacendimento
• IÜ íintiga rivalidade — agora não mais
intermediada pe- lo triângulo amoroso — pois os filhos
acabam por se gra- «Ificar com a irritação que o seu
desenvolvimento provo-
• .1 nos pais, e isto determina um estímulo a mais
no sen- tIdo da superação de si mesmos. A disputa
entre os ho- mnns de geração diferentes tende a se
perpetuar e é uma «ln% constantes, ao menos em
culturas como a nossa; tal imno foi abordado de modo
mais extenso e genial por I wud, em Totem e Tabu
(1913).
O conflito da menina com a mãe é, conforme acre- IIto,
de natureza idêntica. Apenas sua intensidade é me-
•t"i e isto porque a ligação dela com o pai é já uma
vin-
• ulnção afetiva secundária (o primeiro objeto do
amor «léi menina também é a mãe); além do mais, nossa
socie-
I.KIC tem dado pouca importância à mulher e ao seu de-senvolvimento pessoal, de modo que a rivalidade —
espe-
• Irtlmente nas fases posteriores da vida — seria
menor,
. ligada a aspectos mais sem importância, qual seja a
apa- írtncia física, competência para prendas
domésticas, etc. Nn medida em que se avançar na
tendência à igualdade feudal da mulher a que temos
assistido, é de se supor que H fenômeno se aproxime
cada vez mais daquele que des- i n vi como próprio do
mundo masculino.
Resulta claro que o dilema moral fundamental não
f«*solvido de uma maneira racional. O processo de re-
nuncia — obrigatória — é atingido através do medo de
mpresálias ou de sua associação com sentimentos de cul-
Ii<i E ainda mais, tudo isto^se passa num clima caótico
um que a atitude pedagógica dos pais é fortemente influ-
«miada por suas atitudes conflituosas em relação aos*
filhos, de modo a ser muito difícil imaginar que possam
•<lli com justiça. E a identificação do menino com os
46
valores do pai — e o inverso para as meninas — se
efetiva, iiípcrficial ou profundamente, em função do
desejo de «lilacar sua ira e de reparar os desejos
destrutivos fanta- •lodos.
Conseqüentemente, é impossível imaginar que, em meio
a tanta conturbação emocional, alguém consiga desenvolver
com propriedade — e por conta própria — a capacidade de
julgar com justiça cada situação de dilema, optando, às
vezes, por renunciar e às vezes por se atribuir o direito
a uma dada coisa. Alguns tendem a lutar sempre no sentido
do benefício pessoal, só sendo limitados pelo medo das
represálias alheias. Outros tendem à rápida renúncia em
favor de terceiros, agindo sempre no sentido de evitar
sentimentos de culpa (que, como disse, são sempre
mesclados aos medos de represálias).
Costuma-se supor que o homem capaz de renunciar em
favor do outro seja a pessoa boa, portadora do senso de
justiça. E tal idéia é reforçada pelo pensamento reli-
gioso, que prega claramente tal atitude. A experiência
nos ensina que estas pessoas, por serem capazes de se
colocar no papel das outras, julgam adequadamente
situações e dilemas nas quais não estão envolvidas
pessoalmente. Quando é esta a realidade, muitas vezes
optam pela renúncia quando não o desejam; ou seja, são
boas por incompetência para defender seus direitos e não
por convicção íntima. E tanto isto é verdade que, a sós,
alimentam fantasias agressivas em relação àqueles a quem
favoreceram.
Ao mesmo tempo, o que renuncia mesmo não de acordo
com o desejado percebe que nestas experiências de
frustração ele se torna cada vez mais forte, cada vez
mais calejado e preparado para as coisas da vida. Percebe
também que o tipo egoísta o inveja — ao mesmo tempo que
se aproveita dele. Alimentado pelo estímulo religioso,
pela inveja dos que agem de maneira oposta, e pela
sensação subjetiva de engrandecimento e fortalecimento, o
generoso persiste na sua trajetória. Mesmo se tentar se
modificar, no sentido de ser mais egoísta e agressivo,
não o conseguirá, pois os sentimentos de culpa o apri-
47
sionam. Persistindo na conduta generosa, se sente cada n f
mais vitalizado, cada vez mais superando a si mesmo,
descobre nisto um prazer novo, que chamei de pra- t"\ da
renúncia. Se torna com isto mais distanciado ain- t\ i \ do
sentido de justiça, pois agora a renúncia passa a w«i
gratificante por si, e é isto que o homem busca acima (In
tudo.
A partir da descoberta do prazer da renúncia, esta
iifln tende a se dar apenas nas situação de dilema: passa
N mm o princípio fundamental da vida. O indivíduo tende-
iA n abdicar aos prazeres da vida em geral e os do sexo
f<m particular; abrirá mão mesmo quando isto não bene- |
ii liit a ninguém e sem implicar, portanto, em confron-
(!*'» com o sentimento de culpa. A sensação subjetiva de
liMiuluza, derivada do conseguir transcender à condição
humana, passa a ser o prazer maior. A renúncia aos pra- r
inr. alimenta o prazer da renúncia.
III
0 prazer da renúncia fica cada vez mais claramen- tn
imociado à sensação de superioridade pessoal. A renún-
llii parece ser o caminho que conduz o homem às suas
•in|»iirléncias de transcendência, de aproximação com a
tllwmdude. Fica associada à idéia de uma vida rica e mais
11 tutIva. Passa a ser o pilar de certas doutrinas e, do
pon- lii dc vista de certas religiões, é o caminho básico
para 0 nnlvação do homem. Abrir mão dos prazeres do cor-
o que, insisto, não significa abdicar em situação de
Uiltuna, pois este agora não existe — fica associado ao
Muicoito de enriquecimento do espírito, de um modo tf*
vida mais digno, mais gratificante e mais próximo do que
se supõe ser o modo de vida da alma desprendida do corpo.
Ou seja, o homem deve tratar de ir vivendo desde já como
se ele não possuisse um corpo desejoso de prazeres. A
48
percepção de tais desejos fica associada à fraqueza,
incompleto desenvolvimento e, portanto, a algo que deve
ser combatido. A rigor, o corpo deveria ser um cabide
cuja finalidade seria transportar temporariamente a alma
até que ela pudesse se desprender e se libertar; seus
anseios são obstáculos ao pleno desenvolvimento da alma e
não devem ser levados em consideração. O homem seria
tanto mais forte e mais maduro quanto mais tivesse força
para a renúncia e para viver apenas em função dos
prazeres espirituais e de acordo com a vontade revelada
pelos deuses a nós.
Assim sendo, o homem que desenvolve o prazer da
renúncia desequilibra cada vez mais seu modo de ser e de
pensar na direção espiritual, abstrata. Tende a dar mais
valor às coisas da filosofia, à religião, ao ascetismo e
a considerar vulgar a vaidade física, os prazeres
materiais e a sexualidade. Porém, nos tempos de hoje a
sua atitude é mais contraditória, pois os valores da
cultura enfatizam cada vez mais estes últimos, mais
diretamente relacionados com o gozo dos prazeres mais
elementares e diretos do ser humano. O prazer da renúncia
continua a existir, mas as próprias pessoas que assim
procedem põem em dúvida sua conduta, especialmente porque
ela entra em choque com o que é socialmente valorizado.
No passado as virtudes espirituais eram claramente louva-
das — apesar de que a maioria das pessoas não as atingia,
condição na qual se sentiam pouco desenvolvidas. O pro-
gresso técnico trouxe consigo uma série de importantes
aprimoramentos da vida prática e, para estimular seu con-
sumo, houve uma alteração básica dos valores humanos; a
nossa época não estimula a renúncia e sim o poder usu-
fruir das delícias dos novos produtos capazes de trazer
importantes sensações físicas de prazer. Está em curso i
imbém importantes alterações na chamada moral sexual,
• uJíi liberação imediatamente desperta o desejo e o
in- ioiesse humano — pois se trata de um instinto que,
uma n r menos reprimido, surge de modo explosivo.
Fica cada vez mais difícil a um homem se alimentar
• Io prazer da renúncia, pois as coisas às quais ele
49
deve ibrir mão são muitas, e altamente tentadoras. Até há
poucas décadas abdicar era bastante mais fácil, pois im-
plicava essencialmente em não se beneficiar de certos i-i
(|uenos luxos — que pouco alteravam a vida da pessoa — c»
dr uma vida sexual um pouco mais atraente.
A sociedade industrial, através da produção em mas-
Ki de bens de consumo, teria que influir no processo psí-
quico humano obrigatoriamente no sentido oposto ao <|imj
pregava o pensamento religioso. E a ênfase teria que !
<•»! colocada sobre as criaturas incapazes de qualquer
ti- po de renúncia — os mais imaturos e egoístas, com
pou- m ou nenhum sentimento de culpa — pois são eles os
• lim se deliciam com os prazeres mais imediatos e de
tipo mntorial. Neste processo seria também inevitável que
uma Omln de libertação sexual existisse; e mais, que
interme- illitsse novos anseios de consumo, como é o
procedimen- in típico da publicidade dos nossos dias: se
utiliza de um
• l< ;(»jo instintivo — que nasce espontaneamente do
cor-
para associá-lo a um objeto novo, de sorte a que o
homem venha a desejá-lo, pois através de possuí-lo teria
(#• osso mais fácil à situação sexual.
Nestas condições é fácil perceber que a existência
«In Deus teria que ser negada; a religião teria sido obra
ilns homens, ignorantes e ingênuos diante de uma natureza
desconhecida e misteriosa. Agora que a ciência faz
piogressos e se aproxima rapidamente do desvendar de to-
«IIIH os mistérios e esclarecer tudo, não há mais lógica
alguma em se continuar crendo num ser superior. O homem e
sua ciência passaram a substituir as antigas divindades.
E mais, a idéia de Deus é nociva, pois em nome dela
sempre se pregou o prazer da renúncia. E nunca é demais
reforçar o fato de que a existência indiscutível deste
prazer foi utilizada de forma maldosa e oportunista pelas
minorias — não muito dignas — que dominaram os povos:
sofrer aqui na terra, que corresponderia ao exercício
deste prazer, em favor de uma vida após a morte cheia de
50
grandeza e bem aventurança foi — e, em certos lugares, é
— uma fórmula maliciosa e de opressão da maioria; é a
deturpação de um conceito verdadeiro em uma fórmula
prática que beneficia a uns poucos espertos. Já afirmei
várias vezes que os humanistas sinceros criam belos con-
ceitos e que os sofistas e homens poderosos se apropriam
destes, os deformam em causa própria, e depois os trans-
mitem para o povo, que os absorve em virtude deles con-
terem alguma verdade convincente; porém, a pequena
deturpação, que muda todo o conceito, não é percebida.
Já que o pensamento religioso deveria ser abafado,
pois contrariava os interesses do consumismo crescente,
surgiram as pessoas capazes de criar os argumentos que
provavam a inexistência de Deus. Da mesma forma que no
passado se provou sua existência, agora se provou o con-
trário. E é claro que nenhum dos dois tipos de argumento
é muito racional e sincero, pois — como já disse — Deus,
se existe, não se revelou ao homem. A utilização, por
exemplo, de fenômenos atípicos e inexplicáveis para pro-
var a existência de Deus é um argumento ingênuo e pobre;
e será tão pobre quanto isto afirmar que Deus não existe
porque tal fenômeno pode — ou poderá — ser explicado
cientificamente. Assim sendo, o conceito de Deus pode
surgir, desaparecer e voltar a ressurgir, conforme obser-
vamos nos dias de hoje. E isto se deve ao fato dos homens
terem percebido que nem todas as suas insatisfações se
msolvem com comodidades materiais, além do fato que
0 desenvolvimento técnicotrouxe
consigo problemas e
«liíiculdades insuspeitadas, bem como não cumpriu todas m
suas promessas no sentido de esclarecer os mistérios
«In vida.
É curioso observar também que mesmo no apogeu
• In euforia materialista persistiram em quase todos os
homens restos do pensamento mágico, sob a forma do <|UB
chamamos de superstições. E isto também em espíritos
bastante esclarecidos, e que lutavam contra estas
tundências em si mesmos. Sempre houve nestas criatu-
1 n uma enérgica atitude no sentido de se opor
dogmati- i imente a uma revisão mais ampla do pensamento
51
religioso; este foi negado com o rigor próprio daqueles
que
• i* 10 estão em busca da verdade e sim de
sustentarem suas posições através de desprezar tudo aquilo
que possa tra- /«í dúvidas ao sistema lógico no qual
acreditam.
A nova época, que faz a apologia dos prazeres mais
Imodiatos — os prazeres do corpo — encontrou no tipo
humano narcisista um adepto natural. Se antes se viam
Mimo criaturas incompletas, pecadoras e pouco sofisti-• tidas espiritualmente, o que as deixava
inferiorizadas •m relação aos padrões sociais, de repende
se viram valo- H/.idas, louvadas como sendo a forma humana
correta 'In ser e de se comportar. Incorporaram
rapidamente os novos padrões e se livraram do esforço
hipócrita que fa- iltim - quase todos — para aparecerem
como criaturas irnrrosas e beatas. A sensação é de que
eles é que esta- wnm certos, que o modo ideal de existir
do homem é aque- l" para o qual estavam habilitados.
Passam a ser os apologistas do progresso, os que mais
acreditam na técnica (nino sendo o caminho da salvação.
Usufruem com de- lulto das novas facilidades e aguardam
ansiosos qualquer Inovação capaz de lhes trazer algum tipo
de satisfação it tiiuis.
52
Os generosos, porém, percebem as coisas de modo diferente.
Se encantam também com as novidades e são capazes de reconhecer
sua utilidade, facilidades e gratificações. Não podem se opor
intelectualmente, mas sentem uma certa dificuldade no usufruto de
cada uma das coisas que torna a vida mais simples. Na medida em que
aprenderam a associar a grandeza pessoal a renúncias e sofrimentos,
se sentem diminuídos, enfraquecidos e até mesmo pouco dignos diante
de situações de vida na qual não têm que sofrer. É como se ao viverem
uma condição mais cômoda e prazerosa se sentissem rebaixados,
fúteis e insignificantes. Experimentam as novas aquisições com cautela,
com medo; demoram a se habituar a elas e só as incorporam com muita
dificuldade e sem lhes dar, ao menos em nfvel de consciência, grande
importância e valor. É como se, ao transformá-las em coisas banais —
ou mesmo tediosas — pudessem possuí-las e usufruir delas. Não é raro
que o generoso, ao mesmo tempo desejoso de alguma nova aquisição
e contraditório em relação a isto por se sentir mal em desejar coisas
capazes de provocar prazer imediato, resolva o conflito do seguinte
modo: se for ligado a alguma criatura egoísta -- esposa, mãe, filho, etc.
— fará com que esta deseje a tal coisa; ele, muito "magnânimo"
oferecerá o objeto a esta criatura, que — "coitada" — se encanta com
coisas materiais. A partir daí terá a oportunidade de usufruir da coisa
que foi adquirida para agradar a alguém e não por desejo pessoal. Este
é um curioso processo, no qual poderíamos dizer que o generoso
necessita do egoísta para resolver suas contradições entre desejar os
prazeres imediatos ao mesmo tempo que se sente fútil e vulgar por isto.
E é claro que estas contradições são muito maiores nos tempos de
hoje, ricos de alternativas fascinantes, do que eram há cem anos atrás,
onde a vida espiritual parecia ser a única alternativa atraente.
A situação global das pessoas, do ponto de vista lulcológico, é
hoje bastante curiosa: os narcisistas estão duramente conscientes de
que as gratificações materiais t? mesmo sexuais — não resolvem suas
frustrações e nflo apazíguam o estado íntimo de insatisfação contínua.
Os generosos estão cada vez mais em dúvida acerca da validade de
suas renúncias e incomodados com o fato de nflo usufruírem
adequadamente das coisas materiais, em (jurai entendendo mal a razão
disto — percebido apenas iiomo uma difusa sensação de culpa e medo.
Os que vivam conforme o corpo se ressentem de um vazio ligado lo
pequeno desenvolvimento da alma. Os que vivem conforme os
mandamentos espirituais se sentem prejudicados por não conseguirem
53
usufruir das delícias do corpo. E ninguém está feliz; e, principalmente,
ninguém está ab- •olutamente convencido da validade do modo como
estão vlvnndo.
3. VAIDADE E AMBIÇÃO
Conforme acredito, o prazer da renúncia é fenômeno .ujtônomo e determinado pela existência da razão abstrata. O desenvolvimento da razão humana, e especialmente para além do simples registro e correlação da realidade externa e interna, permite o surgimento de com- plexos fenômenos capazes, por si, de trazer sensações profundamente desagradáveis e outras absolutamente prazeirosas. O homem se sentirá alegre ou triste em função tjr estar fazendo sol ou chovendo, em função de ganhar ou perder dinheiro, etc.; e estas sensações serão derivadas tlu como a razão concreta lida com a realidade externa, nndo tal fenômeno independente da realização de dese- |os instintivos ou satisfação de necessidades orgânicas (o •l.inhar dinheiro pode ser percebido como agradável mesmo que não seja diretamente relacionado com sua utilização prática). E mesmo se nestes eventos se reconhecer uhjum ingrediente de natureza sexual, não creio que seja0 único. Conforme tentarei mostrar aqui o componente • Irste instinto que chamo de prazer de se exibir contamina1 todos os processos humanos, o que talvez tenha sido »i causa do erro de Freud de atribuir a este instinto uma importância (mpar — apesar de que não estava muito lon(je da verdade.
Através da capacidade de raciocinar e de imaginar o homem
pode chegar — em um processo exclusivamente intra-psíquico — a
uma série de dúvidas; pode não saber explicar situações que foi
capaz de imaginar, o que vem a ser não saber responder a
perguntas que soube formular. Aliás, todas as respostas que
trouxeram importantes acréscimos ao conhecimento humano
surgiram a partir destas perguntas desconcertantes; e isto é de tal
forma essencial que acredito que o mais importante seja se
conseguir formular perguntas originais, pois elas fatalmente — ainda
que muitas vezes após longo tempo — levarão às respostas.
Qualquer pergunta que não possa ser respondida gera uma
sensação de desconforto, de des- prazer, similar aos desconfortos
próprios de algum tipo de insatisfação orgânica. De modo análogo,
este desconforto — que é a dúvida ou a ignorância — busca sua re-
solução. E talvez isto explique a enorme dificuldade do ser humano
de conviver com dúvidas, que seria o equivalente à sede ou à fome
do ponto de vista da razão. Assim, também o espírito prefere uma
56
má resposta — uma comida inadequada — do que persistir no
desconforto da ignorância; e quantos erros e precipitações não
cometemos em decorrência disto.
Se a dúvida é um desagradável incômodo, a resposta
convincente é sensação, por si, bastante prazerosa. E é um prazer
autônomo derivado da resolução de um desconforto criado pelo
próprio indivíduo através de sua capacidade de correlacionar e
imaginar. Creio que o que se chama de curiosidade intelectual é um
impulso que surge no processo racional a partir de alguma dúvida,
sentida como desagradável, É um esforço ativo — autônomo — no
sentido de se buscar também este tipo de ho- meostase, de
equilíbrio. 0 processo é similar ao da resolução das necessidades do
corpo, porém essencialmente diferente em virtude do fato de que o
desconforto não é real. 0 prazer intelectual é ligado a se recuperar o
es- tíido de equilíbrio através da resolução das dúvidas geradas
dentro da própria pessoa. O desequilíbrio deriva do próprio modo de
funcionamento da razão e de sua capacidade extraordinariamente
desenvolvida no homem.É difícil imaginar — ao menos para pessoas inteli- gontes —
longos períodos de serenidade quanto a este Mpecto, pois as dúvidas e perguntas intrigantes surgem .«•mpre. E o simples clareamento de certos dilemas costuma desembocar no surgimento de novas questões. A ♦«Ituação é bastante mais difícil quando não existe sequer um conjunto de conceitos nos quais se acredita e em fun- i;ilo dos quais se tenta dirigir o processo de clareamento dns dúvidas novas que surgem. Quando existem, funcionam como uma espécie de bússola, de modo que o indivíduo não se sente tão desorientado. É evidente que •ixiste o perigo oposto: o indivíduo se filiar a uma ideolo- ijl.i essencialmente com a finalidade de se ver livre do so- tfimento imposto pelas dúvidas e contradições que a ra- /Ho pode criar. E não creio ser difícil de entender que o homem se torna mais criativo e livre quando não acredi- t.i muito em doutrina alguma; esta situação, existente mmpre que um sistema lógico de explicação do mundo mostra insuficiente ou muito falho, cria as condições Iduais para o surgimento de uma nova doutrina, cuja acei- hição conduzirá a uma acalmia, situação mais serena e menos criativa.
Desta forma, dois seriam os prazeres de natureza «isoncialmente intelectual, ambos ligados à idéia de aprimoramento pessoal. Um através da resolução de questões wuto-geradas — ou propostas por outras pessoas — e outro no se perceber forte em decorrência de poder renun- « liir a prazeres do corpo — em favor de terceiros ou ape* fui*, por grandeza pessoal. Tais prazeres derivam da capa- • Idade humana de abstração, ficando a razão concreta m.iis relacionada com a resolução de problemas de ordem Mi/itica, além de intermediar todos os processos instintivos e também os derivados da imaginação; a ela chegam todas as informações e dela derivam as resoluções finais que conduzem à ação. Respostas adequadas determinam um estado de contentamento íntimo, que seria o prazer próprio da razão concreta.
A separação dos vários tipos de sensação agradável e desagradável conforme sua fonte geradora é processo esquemático e difícil de ser feito, além de que está sujeita a inevitáveis equívocos. Os processos humanos se interrelacionam e as sensações são difusas e imprecisas, além do fato de que a razão detecta todas elas, de modo a parecer que tudo deriva de uma só fonte. E mais, componentes instintivos de natureza sexual se mesclam obrigatoriamente às funções racionais, de modo a se poder também supor que todas as sensações prazeirosas derivem desta fonte.
Além da sensação de excitação sexual derivada da estimulação direta das zonas erógenas, existe no ser humano uma outra curiosa manifestação deste instinto, que é um estado de excitação difuso — e independente de qualquer estimulação direta — ligado ao se exibir. 0 processo deste tipo se inicia pelos 5 anos de idade e a princípio tem a ver com a exibição dos próprios genitais; o fenômeno necessita de observadores, se bem que seja pouco importante quem seja e o grau de atenção que estejam prestando ao fato (o exibicionismo, como desvio adulto, seria a preservação intacta desta característica inicial do fenômeno). Rapidamente o prazer de se exibir se expande e o prazer de exibir os genitais se transforma no prazer de se exibir como um ser inteiro, como uma criatura graciosa quanto aos movimentos — e se isto não é facilmente perceptível no comportamento dos meninos é porque tal conduta é fortemente reprimida pela nossa cultura.
58
O exibir-se se sofistica cada vez mais, sempre no sentido do indivíduo experimentar uma sensação difusa
59
de prazer — indiscutivelmente da mesma natureza que o derivado da estimulação das zonas erógenas e, portan to, sexual — quando se percebe capaz de chamar a atenção das pessoas para si. E tudo o que puder ser feito para que isto aconteça mais intensamente será desejado pela própria pessoa, sequiosa de experimentar a sensação sexual agradável. Assim, tudo o que seja extravagante e capaz de chamar a atenção passará a ter uma conotação claramente sexual: uma roupa vistosa, um anel, um colar, cabelos de coloração diferente, brincos pouco usuais, otc. No caso dos homens a extravagância física é fortemente reprimida no que diz respeito a hábitos de vestir, pois a masculinidade entre nós — e isto está em mudança — deve se impor em função da discreção. Só os homossexuais r. que podem exercer o prazer de se exibir desta forma, lida como feminina.
Porém, em determinadas circunstâncias o fato de uma criatura não usar nenhum tipo de objeto capaz de chamar a atenção — especialmente quando poderia, em função de sua situação econômica — também será uma forma de atrair para si os olhares. E este pode ser o intuito em muitos casos.
0 indivíduo não chama a atenção apenas pelo modo como compõe sua aparência exterior — se bem que al gum tipo de preocupação a este respeito seja inevitável, lambém o faz por viver de uma maneira pouco usual, por pensar de um modo não convencional. E nunca é demais repetir que o chamar a atenção corresponde a um prazer de natureza claramente sexual. Só poderia dispensar este tipo de prazer aquela criatura que tivesse Mínunciado a toda a sorte de gratificação sexual. Uma vez que nunca se cogitou claramente da existência deste tipo de prazer — e que pode ser muito intenso e até mesmo gratificante como elemento único — sua proibição nunca existiu. E mesmo os padres católicos, celibatários, provavelmente pxnerimentavam alquma gratificação deste tipo ao se vestirem de um modo diferente do das outras pessoas, ao se sentirem pessoas especiais, vivendo e pensando de modo próprio. Assim, também acredito na existência de um prazer erótico de se exibir como componente da vida dos santos, dos filósofos, dos mártires, dos políticos, etc.
Qualquer tipo de extravagância conduz ao surgimento da
possibilidade de chamar a atenção e só isto determina um prazer sexual. 0 luxo e a simplicidade extrema podem provocar, portanto, a mesma sensação. O desfilar pelas ruas com roupas chamativas e belas ou em farrapos; o exibir um cão de raça e bem tratado, uma criança muito linda. O andar num automóvel pouco usual desperta olhares; e tudo o que atrair olhares estimula eroticamente a pessoa.
O prazer de se exibir e a conseqüente busca de destaque — de chamar para si a atenção — em suas infindáveis formas correspondem àquilo que sempre se chamou de vaidade humana.
Não há ação humana que não esteja contaminada com este ingrediente, conforme se pode ler na Bíblia (Ecle- siastes). Ou seja, não existe nenhuma forma de expressão e de existência do homem que não contenha um elemento sexual, o que absolutamente não significa que toda a força que move o homem seja desta natureza. E esta tem sido, a meu ver, a razão dos múltiplos equívocos a respeito da importância e extensão da influência do instinto sexual na conduta humana global. Penso que não há ação humana desprovida de algum componente sexual, mas na grande maioria dos casos estão em jogo outros componentes, de natureza diversa, e que não podem absolutamente ser desprezados e obscurecidos pelo fato de se detectar um ingrediente sexual.
Através do prazer de se exibir ganham conotação sexual objetos de uso pessoal, automóveis, casas, e toda a sorte de coisas materiais; estas serão tanto mais sensuais quanto mais forem raras e, portanto, pouco usuais. Reafirmo que o elemento erótico fundamental é o chamar a .itenção sobre si, de modo que qualquer tipo de extravagância estará a este serviço; numa sociedade como a nossa o prazer de se exibir se exerce prioritariamente .itravés de se possuir objetos caros, e porisso mesmo, privilégio de poucas pessoas.
A busca de destaque social, função essencialmente erótica,
corresponde ao surgimento de uma força estimulante no sentido da
atividade, que costumamos chamar de ambição.
As mulheres mais atraentes e belas são aquelas que exercem
o prazer de se exibir da forma mais fácil; atraem para si olhares de
desejo dos homens — e de admiração ou inveja das mulheres —
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pela simples conformação de seus rostos e corpos. Tendem a tirar
desta fonte seu prazer principal, de modo que tratam sempre de
sofisticar <;ada vez mais sua aparência física,, dedicando a tal tarefa
grande parte de sua energia. Tal esforço só pode ser compreendido
em função da gratificação que ele determina. Se não tiverem grande
preocupação com áreas abstratas — imaturidade, ou precária
inteligência — tenderão a viver conforme este prazer, tendo nos
complementos de ordem material e em si mesma o centro da
vaidade e da ambição. Sendo, em geral, criaturas pouco persistentes
— afora quanto ao cuidar de si — e muito desejadas pelos homens,
buscam se ligar a um que seja rico e ambicioso, de modo a ter tudo
o que desejam sem muito esforço.Os homens não podem exercer esta forma mais simples de
realização erótica porque não são atraentes para as mulheres fisicamente do mesmo modo que elas o são para eles (vide "O Instinto Sexual"). Mesmo os homens mais belos despertam um interesse relativo sobre as mulheres; a beleza masculina é um valor indiscutível mas as mulheres levam muito em consideração outros aspectos como a inteligência, cultura, posição social e econômica, etc. Fica, portanto, mais difícil para o homem tirar prazer no se exibir, ainda mais que nossa cultura não permite grandes ousadias no modo masculino de se vestir. Apenas os homossexuais têm coragem de usar roupas capazes de chamar a atenção, brincos nas orelhas, etc.; no máximo, o homem poderá se destacar pela qualidade e riqueza dos seus trajes, que não deverão ser muito diferentes do padrão da época.
Não despertando o desejo ativo das mulheres pela sua aparência física, não podendo exagerar no modo de se apresentar, fica fácil perceber o surgimento de uma importante frustração masculina quanto ao prazer de se exibir. Tal frustração existe também nas mulheres menos atraentes, que ao menos podem lançar mão de trajes originais. A busca de algum tipo de destaque social é, pois, percebida como extremamente importante, pois resolve o desejo exibicionista e também atrai o interesse das mulheres. Desta forma, a vaidade masculina tende a se expressar através do exercício de atividades profissionais valorizadas socialmente, situação na qual o indivíduo chama a atenção para si
em função do cargo que ocupa, da fama que possui ou do poder que detém. A ambição — energia dirigida no sentido de satisfazer a vai-dade — masculina se orienta, portanto, para estas metas.
Não é difícil concluir pela existência de uma ambição maior nos homens do que nas mulheres. Desnecessário insistir no fato de que a ambição determina um aumento de hostilidades entre os homens, sob a forma de rivalidades e competições, que se manifestam pela primeira vez aos 8-9 anos de idade de forma clara. A busca de destaque masculino teria como finalidade, além do prazer de se exibir, facilitar seu acesso às mulheres mais atraentes, que realizam suas ambições materiais e sociais através deles Mulheres menos atraentes tendem a se comportar como os homens, de modo a chamar a atenção por outras propriedades que não a física. Vivemos no momento uma época em que todas mulheres passaram a lutar intensivamente pela busca do destaque social, fato que se entende a partir do seu desejo de igualdade em relação .ios homens. Nem sempre as ações são feitas de modo muito crítico; apenas o que está havendo é a tendência das mulheres de exercerem a vaidade e a ambição de uma maneira masculina; e isto é percebido como grande progresso e mesmo como o caminho de uma emancipação feminina, fato que eventualmente poderia ser verdadeiro se os homens fossem realmente livres, o que não é real. Ao contrário, a ambição masculina se sofistica e se complica com rivalidades penosas apenas porque ao homem não é dado o direito de se exibir fisicamente de modo mais livre, em função do pavor da homossexualidade, que parece ser o castigo para qualquer extravagância des- fo tipo.
O indivíduo teria, portanto, prazer de natureza sexual em
qualquer coisa que chame para si a atenção das pessoas; qualquer
tipo de extravagância satisfaz a vaida- do. Na medida em que a
capacidade intelectual, o desprendimento das coisas materiais, a
generosidade e outras funções da razão, mais de natureza abstrata,
podem ser objeto de destaque no meio social, o seu exercício
também pode determinar um prazer erótico de se exibir. Qualquer
maneira de ser mais rara, menos corriqueira chama \ atenção e
desperta prazer exibicionista, ainda que não itxista nenhum esforço
neste sentido. O prazer de se exibi r é sensação subjetiva agradável,
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de modo a haver uma tundência no sentido do indivíduo desejar
experimentá-la tio máximo, donde muitas vezes existe um esforço
ativo no sentido de querer exibir suas prendas, mesmo as de
natureza mais sofisticada. 0 intelectual satisfaz sua vaida- dn ao
exibir seus conhecimentos; o político ao falar de «Mas obras; o
artista plástico ao mostrar seus quadros;
o músico ao se apresentar para grandes platéias e assim por diante.
Do mesmo modo, o missionário e o pregador religioso se
envaidecem por se exibirem como criaturas puras e capazes de todo
o tipo de renúncia material. O mesmo vale para o monge budista,
para os bispos e cardeais.
Porém, seria simplório supor que é apenas a vaidade que
move o homem e determina seus destinos. Do mesmo modo, seria
um enorme equívoco desqualificar o aspecto genuinamente
humanitário de determinadas ações apenas porque se pode detectar
um elemento erótico, do tipo da vaidade. O missionário continua
sendo um homem sincero e caridoso apesar de possuir também
vaidade. O artista experimenta um enorme prazer de criar sua obra
— prazer relacionado à solução de uma dúvida de natureza
intelectual — além do prazer de exibir para terceiros seus resultados.
O médico se gratifica de ter sido capaz de curar alguém, além de ser
um indivíduo vaidoso. O que existe é o acoplamento de um elemento
erótico ao exercício dos prazeres de natureza abstrata — solução de
dilemas e prazer da renúncia — de tal forma que um físico
experimenta o prazer de resolver um determinado problema e
também o prazer de mostrar aos outros os seus resultados. Um
prazer não exclui e nem invalida o outro. A tendência das pessoas é
sempre no sentido de julgar uma ação como boa ou má; ela é tida
como boa até o momento que se percebe um elemento mau — e a
vaidade é vista como sendo um defeito — quando então tudo é
desqualificado em função da existência desta "impureza". Tal modo
de refletir é perigoso e pode levar a graves erros de julgamento. Da
mesma forma que a vaidade, o reconhecimento de interesses
pessoais de todo o tipo não podem ser percebidos como capazes de
desqualificar o caráter humanitário de uma determinada ação.
A vaidade — prazer erótico de se exibir — está, pois, presente
em todas as atitudes e atividades humanas. A ambição é a força que
impulsiona o homem para a realização da vaidade. Por si vaidade e
ambição são características inerentes ao ser humano, sendo esta
última mais intensa nas pessoas mais frustradas quanto ao prazer de
se exibir e que se percebem com mais condições de atingir
determinados objetivos. A vaidade existe no rico e naquele que
renuncia às coisas materiais; no que se delicia com os prazeres do
sexo e no celibatário. Existe, portanto, um elemento sexual acoplado
ao prazer da renúncia, do mesmo modo que acoplado ao usufruto di-
reto dos prazeres materiais e do corpo.
A renúncia, efetivada inicialmente por causa de sentimentos de
culpa e temores de represália, que ganha autonomia na medida que
determina um prazer ligado ao fortalecimento e engrandecimento
pessoal, se fortalece agora com um componente erótico do tipo da
vaidade. & a existência de um elemento sexual associado ao prazer
da renúncia não significa nem que este prazer não exista por si e
nem que se possa entender a questão como masoquismo moral
(Freud usava este termo). São dois prazeres autônomos que
coexistem, determinando mais um reforço à já agradável sensação
de se perceber forte e capaz de transcender os limites imediatos da
condição humana.
4. O HERÓI E O DESEJO DE IMORTALIDADE
Cabem, nesta seqüência de reflexões, algumas observações
acerca do idealismo, da vida do herói e da preocupação do homem com a
questão da imortalidade. Observações importantes e pioneiras a respeito
foram feitas por O. Rank, um dos mais ilustres discípulos de Freud, ew
cuja obra, a meu ver, ainda não teve o merecido reconhecimento.
Segundo ele, o inconformismo do homem diante da morte seria o
responsável por várias formas de atividade intelectual, sempre visando
encontrar respostas e soluções para este inevitável acontecimento. As-
sim, a reflexão religiosa, o anseio da reprodução — perpetuação de si
através da descendência — bem como o desejo de transcendência da
condição humana vulgar corresponderiam a tentativas de solução, ou
atenuação, do problema; seria difícil justificar a vida na terra, especial-
mente aquela que se faz baseada em sacrifícios e renúncias, se ela não
for percebida como uma passagem temporária, parte de um processo
maior, do qual se buscam encontrar continuamente indícios
confirmadores. Entre os primitivos, a sombra refletida no chão era
indicativa da existência da alma; assim também o caráter duplo do ser
humano era evidenciado episodicamente pelo nascimento dos gêmeos
idênticos — e muitas vezes o ritual tribal determinava que se matasse um
dos dois, visto que não poderiam existir ambos os elementos
corporificados.Também são curiosas as observações de Rank no sentido de
mostrar que muitos dos heróis salvadores dos povos não tinham suas origens em núcleos familiares usuais; ou seja, não tinham pai nem mãe. Muitos foram abandonados por aqueles que os geraram em cestas, que corriam rio abaixo; cresceram por si e se tornaram líderes de outros povos. Ou seja, os heróis não estariam sujeitos às complexas vivências edipianas infantis, de modo a poderem ser adultos mais livres e mais fortes, capazes de preencher suas funções com maior grandeza. O herói não tem uma origem usual e não se perpetua através da reprodução e sim através de seus feitos. Eles são os líderes políticos e espirituais dos povos, pessoas comuns que só podem lutar contra a frustração da morte através da reprodução física.
A reflexão religiosa levaria inevitavelmente à idéia de que o destino
da alma depois da morte seria melhor ou pior conforme a conduta de cada pessoa durante os anos de vida na terra. Assim, qualquer tipo de sacrifício ou renúncia estaria justificada em função desta expectativa de imortalidade e também os esforços grandes seriam beneficiados com uma evolução mais agradável da alma após a morte. Qualquer sacrifício, mesmo o da própria vida, seria bem-vindo, pois a ação heróica seria sempre recompensada. A morte nestas condições seria, portanto, uma coisa percebida como agradável, nada dramática. A verdade é que a idéia da morte nem sempre foi sentida da forma como a vivemos hoje; cada época e cada cultura tem uma postura diante dela, coisa que, ao meu ver, pode levar a erro de julgamento do seguinte tipo: como nós, hoje, encaramos a morte de uma maneira péssima, supomos que sempre foi assim e que muitas das ações de povos primitivos ou de época anteriores à nossa foram feitas em função do medo da morte.
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Também é interessante registrar que seria de se prever que uma
cultura materialista — no sentido de não crer em Deus e na continuidade
da vida após a morte — não deveria desenvolver comportamentos do tipo
idealista — termo que estou usando no sentido de sacrifícios pessoais em
função de terceiros — em nenhum dos seus integrantes. Se o sacrifício e
a renúncia aos prazeres fossem formas de conduzir o homem à
imortalidade, a consciência de que a vida termina inexoravelmente
deveria determinar o desaparecimento destas tendências nos homens
que acreditam nisto. E tal fato não ocorre. Eles também se conduziram —
e se conduzem — de uma maneira idealista e heróica, buscando agora
formas de resolver as contradições políticas que levam a modos de vida
desiguais e injustos para grandes proporções da população. E o idealista
político é extremamente parecido em seus comportamentos com o
homem religioso e que acredita no sacrifício pessoal como forma de
salvação. O herói político morre por sua causa, mesmo não acreditando
em outra vida; e, o que é mais curioso, sua causa em muitas cir-
cunstâncias, se vitoriosa, o prejudicaria em termos materiais.
Penso que estas observações são claras no sentido de mostrar que
não creio que o anseio de imortalidade seja a mola propulsora do
comportamento que estou chamando de idealista. Não acredito também
que a questão do medo da morte tenha sido suficientemente estudada e
esclarecida. Parece estranho, por exemplo, que ele exista em pessoas
com convicção religiosa absoluta e firme, situação na qual a morte
deveria ser sentida como uma coisa boa. Também é difícil entender tal
temor nas pessoas de convicção materialista, onde a morte seria o fim da
consciência, a paz e a harmonia tão desejada (conforme a idéia de Freud
acerca do instinto da morte). Outro dado curioso é que o homem, cada
vez que se sente feliz e realizado, em paz, tem a sensação de perigo, de
que a morte o ronda — e mesmo os mais cépticos costumam fazer rituais
de proteção contra ela, como por exemplo, bater três vezes em algum
objeto de madeiraNão creio que o medo da morte seja o gerador da reflexão religiosa
e nem acredito que exista um efetivo anseio de imortalidade no homem derivado do seu incon- formismo diante do fato de ter sua vida limitada a algumas décadas, uma vez que não acredito que a morte seja o grande problema psicológico do homem. Muito mais difícil de ser entendido é o fato do homem existir e este é, a meu ver, o grande problema e o grande
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mistério. A morte é o último evento, e até certo ponto, o fim do mistério da existência. Acho que o medo da morte deriva da suposição de que ela contém os sofrimentos próprios do nascimento, do mesmo modo que acredito que a preocupação do homem com o seu destino posterior deriva de sua perplexidade diante do fato dele existir a partir de uma origem absolutamente misteriosa. A grande dúvida é, pois, donde viemos e não para onde vamos, posto que se soubéssemos responder à primeira questão a segunda não conteria mistério algum.
Conforme já assinalei, a razão, através de sua componente abstrata, formula questões que ela própria não consegue responder, ao menos imediatamente. Isto gera um desconforto, um estado no qual se fará todo o empenho para encontrar respostas, que serão sentidas como prazeirosas por determinarem o fim da dúvida — que pode ser entendida como o desprazer do espírito. Na medida em que a criança se desenvolve, sua razão se aprimora e é capaz de formular questões cada vez mais complexas; as respostas são buscadas no meio externo, especialmente nas conversas com os pais e outros adultos significativos. Com o passar dos anos, as inteligências mais bem dotadas vão percebendo quão insatisfatórias são as explicações disponíveis para as questões fundamentais. Exemplo desta condição é o surgimento da questão religiosa e metafísica nos anos da adolescência, fato que ocorre também para aqueles que receberam a informação religiosa usual — e que, de repente, parece insuficiente e insatisfatória.
Paralelamente ao desenvolvimento da razão se dá o
desprendimento gradual da criança — e depois do adolescente — do
seu núcleo familiar, cujo fato mais marcante é a ruptura amorosa
edipiana própria dos 9 anos de idade. A criança, que nunca se percebeu
como ser absolutamente independente, ao verificar este fato experi-
menta uma sensação profundamente dolorosa de desamparo, de se
sentir solta no mundo e no espaço. E esta sensação — importante fonte
de angústia — surge como fato essencial justamente no período que vai
dos 9 aos 16 anos de idade, época em que a razão abstrata percebe a
pouca consistência das respostas existentes para o mistério da origem
da vida. E isto não quer dizer que o problema se resolva aos 16 anos de
idade, mas sim que a maioria das pessoas tende, a partir daí, a se
ocupar mais das questões práticas de sobrevivência e resolução dos
problemas concretos que cada vez mais se avolumam, de modo a se
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distraírem da questão metafísica — que volta a reassumir importância
apenas na velhice, outra vez porque as questões práticas já se
atenuaram e não por causa do medo da morte que se aproxima.
Assim, a sensação de desamparo derivada das rupturas amorosas
familiares se associa ao desamparo e perplexidade sentidas ao se olhar
o céu numa noite estrelada. A vivência é, no global, desesperadora. A
idéia de Deus resolve, com certa facilidade, a questão e nos dois
sentidos: Deus é o pai e somos todos irmãos, fato que atenua a dor da
separação familiar irhposta pelo crescimento do indivíduo; e Deus é o
criador do universo, resolvendo assim a dúvida acerca do mistério da
origem da vida. Outra vez registro que tais observações não po
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dem ser entendidas como argumento no sentido de provar a
inexistência de Deus.Através deste tipo de situação se chega também a uma sensação
de solidariedade para com os outros homens: o desamparo e sua sensação dolorosa se atenua se a criança— ou o jovem — se sente parte integrante de algum tipo de coletividade: o grupo de amigos, os colegas de escola, os habitantes de sua cidade, os do seu país — que falam a mesma língua — e mesmo a humanidade como um todo. Da mesma forma, a idéia de Deus pode ser substituída por uma convicção — igualmente precipitada pelo desespero derivado da dúvida acerca da origem de tudo e de si mesmo — de que a ciência sabe ou saberá explicar todos os fatos fundamentais da vida. A ciência é encarada, nestes casos, sem nenhuma objetividade crítica, de modo que o jovem pensa que com os anos ele terá acesso a um conhecimento que o elucidará; desta forma poderá também se apaziguar, através da composição de uma sensação de solidariedade com os seus semelhantes— agora mais em termos de nacionalidade do que no sentido de serem todos filhos de Deus — e do adiamento da questão intelectual para uma época em que esteja mais armado de conhecimentos científicos.
Fica claro que estou me referindo apenas às pessoas que não têm suas preocupações abstratas truncadas pela imaturidade emocional e que têm uma capacidade intelectual maior. As outras se contentam com as explicações que lhes são fornecidas e seguem as normas próprias de sua época e de sua família. Jamais chegam a experimentar integralmente a sensação de desamparo, pois se apegam rapidamente às soluções propostas por seu grupo social; e isto ocorre porque são pouco capazes de suportar a dor própria desta condição, como de resto fogem de todo o tipo de frustração e sofrimento.
Em resumo, as pessoas mais competentes para a abstração — aquelas que suportam mais o desconforto da dúvida — resolvem a questão do desamparo e do mistério acerca da origem da vida — questões concomitantes e em franca inter-relação ao menos do ponto de vista psicológico — ou através da idéia de Deus ou através da convicção científica. Em ambos os casos resulta uma sensação de solidariedade para com os outros seres humanos, com os quais se sentem formando algum tipo de coletividade.
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Se associarmos a isto o fato de que estas pessoas experimentam a renúncia e o sacrifício como prazerosas em decorrência de serem vivências capazes de gerar contentamento íntimo derivado do indivíduo se reconhecer mais forte; se nos lembrarmos que estas pessoas sentem no prazer da renúncia — prazer de dar — gratificação maior do que no usufruto imediato dos prazeres — ainda que com dúvidas acerca da validade de tal processo — não é difícil entender que tendam a encaminhar sua vida no sentido do heróico ou do idealismo. O herói — tanto no sentido religioso como no político — abre mão dos seus privilégios e age essencialmente no sentido de se empenhar pelo bem estar dos seus irmãos, de seus concidadãos. Resolve sua angústia ligada ao desamparo, dá sentido à sua vida — e com isto se afasta, ao menos em parte, das dúvidas acerca da origem da existência —, exerce o prazer de dar, se sente engrandecido por sua capacidade de renúncia, se sente importante e digno dos maiores elogios, se sente uma pessoa boa e útil.
Além do mais, exerce desta forma o prazer de se exibir; ou seja, sua vaidade fica em direta correlação com os processos abstratos, assim como sua ambição. Desperta o interesse e a admiração das mulheres, sendo isto particularmente verdadeiro para o herói político; obtém o respeito — e também muitas vezes a inveja — dos homens, principalmente daqueles que não se vêem com grandeza suficiente para tal conduta. Ainda por cima pode exercer sua vaidade de forma que a ele mesmo pareça como inexistente, posto que para este tipo de homem é difícil admitir "fraquezas" humanas, como é considerado o prazer de se exibir. A grandeza do ideal, sua dedicação a ele, sua convicção nas idéias aparece de tal forma importante que o indivíduo pode achar que não tem nenhum tipo de vaidade — o que pode ser verdadeiro para questões de aparência física e bens materiais — coisa que o engrandece ainda mais.
Não creio que o heròi é o homem que luta contra o fato de ser mortal, do mesmo modo que não penso que a morte seja um problema complexo para o homem. O idealista em geral é o indivíduo que tenta resolver o desamparo próprio de se reconhecer só — e os heróis citados por Rank sempre são criaturas abandonadas em outras paragens — e a perplexidade e desconforto intelectual derivado das inevitáveis dúvidas acerca do mistério da origem da vida, através do apego à idéia de Deus - ou algum tipo de convicção científica — e através do esforço de ser útil aos seus semelhantes com os quais se sente solidário — o que atenua o
desamparo. O prazer de dar e de renunciar a privilégios em favor de terceiros provoca um contentamento íntimo importante, ligado ao enriquecimento pessoal, mesmo quando não exista convicção religiosa. A vaidade se exerce através deste modo atípico de ser, que desperta a atenção e a admiração das pessoas em geral, quase sempre comprometidas com o usufruto — ou luta pelo atingimento — dos bens materiais. Se trata de uma solução bastante atraente e razoavelmente consistente, capaz de satisfazer a vários componentes de prazer humano; tende, por outro lado, a determinar um apego dogmático — e pouco tolerante a críticas — à convicção básica, cujo abalo faria ruir toda a estrutura.
Nestes termos, o herói não é um homem tentando ser imortal e sim um homem tentando encontrar uma solução para o dilema do viver.
5. UMA AVALIAÇÃO MORAL DA GENEROSIDADE
O homem generoso tem um comportamento global bastante similar ao que acabei de descrever para o herói, apenas com variações quantitativas. Ele tira prazer pessoal da renúncia, se sente gratificado e engrandecido quando dá de si a alguém, se envaidece por ser assim. Experimenta uma sensação global de bem estar consigo mesmo, se sente uma criatura boa, moralmente bem formada. Quando tem convicções religiosas definidas se sente ainda mais reassegurado, pois vive conforme seus mandamentos e sua alma será salva. Os sacrifícios aos quais se submete o fazem sentir-se bem, cada vez mais forte. Até pelo contrário, se sente fútil e vulgar em época em que tudo está caminhando com facilidade. As dúvidas metafísicas — acerca da origem da vida — estão aplacadas pela convicção religiosa ou por algum tipo de ideal que dá sentido maior à vida. A sensação de desamparo se atenua pelo sentimento de solidariedade para com os outros seres humanos, e também através de ligações afetivas mais definidas. Os prazeres de natureza material são usufruídos com dificuldade em virtude da sensação de rebaixamento moral experimentada em situações cômodas, mas esta limitação costuma ser — mais no passado do que hoje — compensada pela sensação de grandeza espiritual.
Tanto do ponto de vista religioso como do senso comum, um modo
de vida como este costuma ser associado à idéia de bondade, de virtude
moral, de grandiosidade. Este seria o comportamento próprio das
pessoas que renunciaram ao egoísmo típico dos primeiros anos de vida,
que descobriram o sentido profundo da justiça, do bem e do mal e se
comportam conforme o bem. O mal estaria relacionado à perpetuação do
egoísmo, persistência no prazer do usufruto imediato das coisas materiais
e do corpo, agressividade incontrolada e a serviço dos interesses
pessoais que não podem deixar de ser satisfeitos a qualquer custo. 0
homem mau só está preocupado com os seus anseios e não se interessa
pelos malefícios causados a terceiros no processo de realizá-los; não
sente prazer específico em maltratar aos outros a não ser quando movido
pela inveja ou quando estes se opõem à consecução das suas vontades.
Seria uma situação excepcional — e sem interesse aqui — aquela na
qual uma pessoa tira prazer através de magoar gratuitamente a outros
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seres humanos.
Conforme já descrevi, o comportamento generoso se estabelece,
de fato, em função de uma capacidade abstrata de se colocar no papel de
terceiros; esta é capaz de determinar sofrimento pessoal quando o
indivíduo se percebe responsável pela dor do outro, que é o sentimento
de culpa. Na medida em que este sofrimento for percebido como maior do
que a dor determinada pela frustração de abrir mão de algum direito
pessoal, a solução mais econômica será no sentido de renúncia nas
situações de dilema, ainda mais que o sentimento de culpa se associa —
em função das vivências edipianas — a medo de represálias por parte do
que seria prejudicado. A renúncia passa a ser percebida, aos poucos,
como capaz de determinar uma sensação agradável, um contentamento
íntimo ligado ao se sentir forte e capaz de ir para além do modo usual de
comportamento humano. Se compõe,assim, um prazer novo. A este prazer da renúncia, que agora é buscado ativamente mesmo em situações em que não há dilema, se associa o prazer erótico de se exibir como forte e bom, o que corresponde a uma forma mais sofisticada de vaidade.
A partir da constatação de que a renúncia é capaz de determinar prazer — que se reforça por um componente sexual - seria tendência natural que tal estado passasse a ser buscado ativamente, visto que esta é uma das características fundamentais do organismo humano. Não é difícil entender que o pensamento religioso, que visa a transcendência do homem, se fixasse na tentativa de mostrar aos homens em geral esta forma mais sofisticada de prazer, que deveria substituir àqueles de natureza mais animal e imediata. Além do mais, se todas as pessoas se comportassem conforme a proposição de buscar o prazer do engrandecimento pessoal através da renúncia e da preocupação com os outros, seria fácil imaginar uma condição de vida mais harmônica e justa na terra. Desta forma, os humanistas — mesmo os sem filiação religiosa — também reconheceram neste prazer aquele mais compatível com a racionalidade do homem e o mais capaz de conduzir as sociedades a uma solução mais viável.
Vários aspectos, porém, devem ser levantados a respeito da
questão, no sentido de se verificar a retidão destas suposições que, na
prática, não tem dado resultados muito positivos. O primeiro é o de que
a maioria das pessoas não chega a experimentar de modo sistemático e
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consistente o prazer da renúncia. Nestas criaturas o padrão egoísta
persiste, só sendo limitado pelo temor de represálias; e não é à toa que
todas as doutrinas humanistas — religiosas ou leigas — acabam por
tentar se impor através da força, a partir do momento que percebem
como a massa é insensível aos seus apelos. As pessoas deste tipo só
experimentam a preocupação com terceiros em situações extremas,
como é o caso, por exemplo, de grave enfermidade física; nestas
situações se tornam dedicadas e prestativas — mesmo quando não
estão em jogo interesses pessoais — movidas pelo sentimento de pie-
dade, sentimento que desaparece logo que a situação se normaliza. A
partir daí a conduta volta a ser determinada pelo egoísmo. Não deixam
de experimentar prazer no se sentirem capazes de dar de si, mas suas
carências pessoais logo voltam a ser prioritárias, de modo que o padrão
de conduta generoso não se perpetua.
Mas a questão que me parece fundamental reside na verificação
mais acurada do significado do comportamento generoso e de sua
validade moral; e também de suas conseqüências em termos práticos
quanto a pretensão de se atingir um modo de vida mais justo, que é in-
discutivelmente o propósito inicial dos humanistas.
Na medida em que a renúncia a legítimos direitos de uma pessoa
pode lhe provocar uma sensação prazerosa, esta atitude tenderá a se
perpetuar independentemente da questão moral; ou seja, a renúncia é
um prazer que passa a ser buscado por si, sendo sua grandeza moral
um atributo duvidoso, ou pelo menos casual. O homem generoso está,
pois, buscando gratificação pessoal antes de qualquer coisa, o que pode
ser entendido como uma forma mais sofisticada de egoísmo. Se, para
satisfazer este novo prazer egoísta, lhe parecer interessante ajudar a ou-
tras pessoas, assim ele procederá. E isto poderá ocorrer mesmo em
situações em que a ajuda tiver significação moral bastante duvidosa.
Além do mais, o prazer do sacrifício está sempre em correlação com os
sentimentos de culpa que são sua origem primeira, de modo que muitas
vezes é este o motor da ação generosa.
Não é difícil apontar exemplos simples e cotidianos capazes de
ilustrar que a ação generosa é fenômeno autônomo da reflexão moral. O
dar esmola a uma criança na rua — muitas vezes claramente ensinada a
fazer um ar triste e infeliz — é, de fato, uma ação generosa? Estará a
pessoa efetivamente ajudando em algo a esta criatura ou estará
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contribuindo para que ela sofistique cada vez mais uma atitude hipócrita
e oportunista? Muitas são as pessoas que dão a esmola apenas por não
suportarem a dor derivada do sentimento de culpa, mesmo acreditando
que esta atitude não tem validade moral; outras se sentem felizes por
poder ajudar, ainda que em nível imediato, a alguém, usufruindo da
alegria interior de se sentirem generosas e dignas, mesmo sabendo dos
perigos de sua ação do ponto de vista da evolução do beneficiado.
A super-preocupação de certos pais acerca de poupar sofrimento a
seus filhos, se esforçando neste sentido, é outro exemplo moralmente
duvidoso, pois todos sabemos que a criança educada longe das
frustrações inerentes à condição humana tenderá a ser um adulto fraco e
incapaz para a vida. A proteção excessiva é prejudicial para a criança
mas apazigua os sentimentos de culpa dos adultos.
O ajudar, tanto materialmente como dando conforto emocional,
pessoas que sabemos ser do tipo egoísta, e que nos procuram apenas
quando estão em dificuldades^ uma ação efetivamente generosa?
Estaremos ajudando estas criaturas a se desenvolver e a alterar seu
modo primário e medíocre de ser, ou estaremos efetivamente exibindo
nossa magnidade, nos deleitando com nossa superioridade e
apaziguando nossos sentimentos de culpa? E o medo de represálias,
principalmente o medo de malefícios derivados da inveja destas pessoas
por nós? Não será que estamos tentando apenas aplacar a ira destas
pessoas, com a finalidade de nos protegermos? Penso que vale a pena, a
partir destes exemplos, aprofundarmos um pouco mais a questão, com a
finalidade de se entender melhor o modo de ser chamado de generoso,
para que possamos nos aproximar de uma reflexão verdadeiramente
moral.Antes da renúncia se tornar um prazer autônomo — e em muitas
circunstâncias, também depois disto — ele é determinado pelo sentimento de culpa e pelo medo de represálias.
Nestas condições, ela é percebida como dolorosa e o indivíduo que assim procede se percebe vítima de uma injustiça. Por não conseguir magoar o outro, se cala e consente em ser prejudicado; porém, em imaginação, se rebela contra o fato e fantasia inúmeras fórmulas de vingança; ou seja, exerce em pensamento a conduta que gostaria de ter tido e não pode. Com o surgimento do prazer — sensação de superioridade pessoal — ligado à renúncia, o anseio de vingança não
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desaparece (conforme propunha Cristo); apenas se sofistica e se aprimora no seguinte sentido: o generoso aprende, da experiência, que o egoísta que o prejudicou é criatura profundamente invejosa — inveja definida como hostilidade gratuita, surgida a partir da admiração; seu processo mental tende então para um aprimoramento pessoal cada vez maior, cujo progresso será capaz de determinar maior inveja no opositor; e a intenção é a de que o egoísta se envenene através dos seus próprios desejos maléficos, pois a inveja faz muito mal a quem a sente, É um tipo de vingança bastante engenhoso, pois não implica em nenhuma ação contra o agressor, além de que funciona como mais um estímulo para o aprimoramento pessoal.
Assim sendo, o generoso, que inicialmente é uma criatura frágil e presa fácil de egoístas, encontra no seu modo de ser — especialmente em função da capacidade de tolerar frustrações — uma arma também destrutiva e vingativa. E o tema da generosidade se complica mais ainda, além de se afastar perigosamente das questões de ordem moral: há prazer na renúncia, vaidade ligada a isto, e também a renúncia em situações injustas se transforma em mais um estímulo para o crescimento pessoal com a finalidade de despertar a inveja dos agressores. Só a questão da justiça é que não é cogitada, apesar de que o generoso costuma se ver como pessoa muito justa.
Não há dúvidas de que o generoso é um tipo humano bastante mais complexo e sofisticado do que o egoísta. Este último não possui grande sutileza, apesar de se ver como criatura esperta e hábil; na realidade é uma criança, apenas tentando buscar os meios mais fáceis para a satisfação de suas necessidades e desejos; não tem pretensões de ordem moral e nem sofre de grandes contradições; sofre apenas por se perceber incompleto no seu desenvolvimento e bastante mais pobre de capacidade criativa.
Os dilemas do generoso são permanentes, pois se age no sentido de provocar a inveja de algum opositor, se maltrata por causa dos sentimentos de culpa que o seu próprio progresso determina — pois ele sabe que isto vai provocar sofrimento ao outro. Ao se perceber com de-sejos de vingança se recrimina, do mesmo modo que se irrita com sua vaidade; seu anseio de perfeição e de transcendência se ofendem ao detectar em si características humanas vulgares. Ao mesmo tempo se vê forçado a renunciar aos prazeres da vida corriqueira — e isto será tanto mais verdadeiro quanto maior for a proporção destes em relação aos
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sofrimentos e frustrações — sem estar convencido da validade desta conduta; porém, a tentativa de usufruto deles provoca sensação de empobrecimento, além de sentimentos de culpa difusos e medos de tragédias de origem indefinida.
As limitações que ele se impõe derivam, pois, da forma como se construiu o equilíbrio psíquico. Basicamente o generoso é limitado pelos sentimentos de culpa e medo de represálias e também pelo temor de vulgarização quando usufrui prazeres e facilidades materiais. E alguma consciência a pessoa tem disto, pois em geral sente inveja dos egoístas especialmente por sua maior capacidade de advogar em causa própria e também por serem mais hábeis para lidar com os prazeres do corpo.
0 grau de renúncia aos prazeres do corpo é variável de pessoa para pessoa, bem como varia o prazer derivado da renúncia e do sofrimento, sendo que um está em função do outro. Assim, no caso extremo teríamos a criatura só capaz de tirar prazer da renúncia e do dar, e que corresponderia à imagem dos santos e ascetas em geral. Tais criaturas, se privadas deste tipo de prazer, podem experimentar profundo estado depressivo, pois se sentem incapazes para qualquer outro tipo de recompensa. Uma mãe extremamente dedicada e que tenha renunciado às próprias gratificações em favor de se dar aos seus filhos tende a viver um estado de profunda tristeza e desinteresse pela vida na medida em que eles crescem e se tornam independentes.
Esta mesma situação serve para exemplificar a existência de um estado de dependência do generoso em relação às pessoas que se beneficiam de sua renúncia. A dependência do egoísta em relação ao generoso é óbvia, pois ele não é auto-suficiente e necessita de alguém que lhe supra. Mas é surpreendente observar que o generoso precisa do egoísta para exercer o seu prazer de dar, que, como disse, pode ser o prazer fundamental. Um indivíduo não pode exercer o prazer de dar se não existirem pessoas dispostas receber. O que vale dizer que a genero-sidade não poderia existir se não existisse o egoísmo.
E isto se reforça, a título de argumentação, com o fato obsen/ável na prática de que o generoso é pessoa que não gosta de receber. Esta peculiaridade do seu modo de ser torna ainda mais duvidoso o aspecto moral de sua doação. O generoso se sente humilhado, diminuido, quando recebe qualquer tipo de ajuda material ou emocional; e se ele se sente assim ao receber, e se todos nós tentamos entender o outro em função de como somos, ele terá que se dar conta de que ao dar ele estará humi-
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lhando o outro. E penso que não há dúvidas de que muitas das ações generosas têm claramente componentes deste
tipo, sendo muitas vezes intencional o desejo de tripudiar. Este dado explica a conhecida ingratidão daqueles que recebem favores, cuja atitude usual é a de se tornarem hostis, invejosos em relação àquele que o favoreceu; de fato, não há motivo para que as pessoas se surpreendam com este tipo de reação, pois o que recebe — mesmo que tenha tomado a iniciativa de pedir — se sente inferiorizado, o que inevitavelmente teria que determinar a reação invejosa.
Só poderia agir com gratidão a pessoa que fosse do tipo generoso; mas, conforme disse, o generoso não recebe ajuda a não ser em situação absolutamente excepcional; e ainda assim trata de devolver o favor que lhe foi feito o mais rápido possível e, se puder, em dobro. Desta forma não é difícil perceber que o generoso exerce o seu prazer de dar essencialmente em relação aos egoístas, que são os que recebem com mais facilidade; e recebem porque não têm outro jeito — são dependentes - e incapazes de se sustentar por si mesmos — e não gostam da situação, que os humilha, de modo a reagirem com agressividade.
É evidente que não são todas as ações generosas que têm esta intenção, pois muitas vezes o desejo de ajudar é sincero e sem finalidade de determinar humilhação. Às vezes o dar está ligado apenas a uma preocupação com o outro e o anseio de facilitar a vida de alguém de quem se goste ou cujo trabalho se valorize (como é o caso do mecenas); outras vezes deriva do sentimento de culpa; outras por incapacidade de dizer não em decorrência do medo de represálias; e assim por diante.
0 que me parece extremamente importante e indiscutível é que o generoso, para exercer o seu prazer de dar, precisa do egoísta para receber os seus favores. No casamento usual, que chamei de ligação determinada pelo amor por diferença (vide 'Talando de Amor"), existe sempre a união de um generoso com um egoísta; e esta
seria a situação ideal que exemplifica a interdependência dos dois tipos extremos. A do egoísta é óbvia e dele já tratei em detalhes no "Você é Feliz?". O generoso aceita longos anos de convivência em uma situação arbitrária porque ele a percebe como sendo capaz de lhe fazer sentir cada vez mais digno e superior; através da renúncia em favor do amado se sente bastante gratificado, além do que pode experimentar o prazer da renúncia como sendo da natureza de quem ama, de modo que não pre-
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cisará reconhecer que ele tem autonomia. Avalia-se como uma pessoa boa e tolerante, indiscutivelmente superior ao cônjuge — coisa que, de fato, corresponde à realidade, pois o prazer de dar é menos vital do que a necessidade de receber. Aproveita-se do egoísta para usufruto dos prazeres materiais, todos estes obtidos aparentemente por insistência dele, o que ajuda a resolver a crescente contradição ligada a estas renúncias. Tais uniões são indubitavelmente do interesse do generoso também, pois senão não teriam a estabilidade e a duração que têm; além de exercer livremente o prazer de dar e se sentir cada vez mais engrandecido, também resolve suas ambições pessoais, pois elas são vividas como se fossem do outro, para agradar o outro. Têm na inveja que despertam no cônjuge um forte estímulo para continuar na sua rota evolutiva. A ligação por diferença faz o generoso se desenvolver cada vez mais na sua direção de transcendência, ao passo que o egoísta persiste no seu estado, cada vez mais dependente. As diferenças se agravam, portanto, com os anos de convivência, até que o sistema se de-sequilibra e se rompe, quase sempre por iniciativa do generoso que, com o tempo, acumulou motivos de sobra para justificar sua atitude.
De uma forma genérica, pode-se dizer que a generosidade humana
é o maior estímulo para o egoísmo, pois o reforça continuadamente.
Cada homem bom para se superar e se aproximar do ideal divino deverá
continua- damente se dar a pessoas más e oportunistas, pois só estas
estão dispostas a receber. 0 desenvolvimento da bondade, entendida
como prazer de dar e o prazer da renúncia, está, pois, intimamente
relacionada com a persistência da maldade e do egoísmo. Se todas as
pessoas tivessem sido sensíveis aos apelos cristãos de desenvolver o
prazer de dar, a situação estaria bastante complicada, pois não haveria
para quem dar.Chega-se a uma situação de equilíbrio curiosa na qual o egoísmo,
que surge espontaneamente e pode persistir ou não, é estimulado pela generosidade, que, para poder se exercer, precisa dele. O bom precisa do mau para se deixar explorar por ele e exercer o prazer da renúncia, capaz de o conduzir ao aprimoramento espiritual. É como se Deus tivesse criado o Demônio para poder exercer suas propriedades de bondade, coisa que seria impossível se não houvesse a maldade. A generosidade se alimenta do egoísmo tanto quanto este dela, só que -para outras finalidades. Se a generosidade, para existir, precisa do egoísmo, a
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generosidade não é boa, pois ela se exerce estimulando e reforçando a maldade. Isto sem falar das ações generosas apenas em superfície — que são muitas — e cuja intenção é humilhar ou mesmo despertar a inveja do beneficiado.
A generosidade, na medida em que determina o surgimento dos prazeres pessoais — de renúncia e vaidade — é ação que gratifica a própria pessoa, sendo desta forma um outro modo de expressão do egoísmo, bastante mais sofisticado e sutil. Tal maneira de ser está longe de poder ser considerada como moralmente aceitável e dirigida para o sentido de justiça. O generoso é injusto para consigo mesmo, sabe e se ressente disto; encontra depois fórmulas complexas para melhorar sua situação e também para se vingar das pessoas que, inicialmente, se aproveitaram de sua fraqueza efetiva, que é o sentimento de culpa.
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Além de ser uma construção psicológica complicada e suspeita —
indiscutivelmente superior ao egoísmo, — a generosidade é também uma
forma de ser moralmente duvidosa, na medida em que o seu exercício
estimula e reforça a existência do seu oposto. A generosidade cor-
responde à substituição de um tipo de prazer por outro, — os do corpo
são substituídos pelos do espírito. Neste sentido, fica vinculada ao
princípio econômico do prazer máximo, de natureza egocêntrica. A
preocupação com os outros e com os direitos dos outros existe nestas
pessoas, mas não é a avaliação acurada dos direitos de cada um que
determina o posicionamento delas diante da situação e sim o prazer de
se sentir superior em função da renúncia aos seus direitos, prazer que só
pode ser experimentado no convívio com uma pessoa do tipo egoísta.Se se constrói um modelo do que seja o bem e o mal em função do
comportamento usual dos dois tipos mais comuns de pessoas, se é forçado a concluir que o pensamento moral se afasta dramaticamente do que poderíamos chamar de justiça, ou seja, um esforço racional de se atribuir a cada pessoa seus direitos e suas limitações. E se uma moral religiosa prega a renúncia aos prazeres do corpo em favor do prazer da renúncia — que seria a forma do homem se aproximar de Deus — ela se comprometerá com o mesmo tipo de arbitrariedade, que é o de chamar o homem generoso de criatura boa, mais de acordo com a vontade divina. Isto sendo verdade, teríamos que concluir que a vontade divina se exerce no sentido da perpetuação da maldade entre os homens, maldade esta que se reforça pelo modo de se comportar dos homens que vivem conforme a generosidade proposta por Deus.
Assim sendo, me parece cada vez mais fundamental abandonar o pensamento moral em termos de bem e mal, pois que a separação e os limites entre eles são duvidosos
e bastante inconsistentes, além do fato de que, se persistirmos nesta
rota teremos que concluir que ambos coexistirão sempre, num equilíbrio
razoavelmente harmônico. A própria observação de que é assim que
tem sido, tanto no plano psicológico — como é exemplo o amor por
diferença — quanto no plano social — através do modo como são
organizados os agrupamentos humanos — mostram que o bem e o mal
são apenas duas formas de exercer a condição humana que se
alimentam e reforçam reciprocamente.
Penso que o que deve ser buscado, tanto em nível psicológico
como em nível social, é uma forma de existir para o homem compatível
com o que se possa chamar de justiça. E a norma fundamental da justiça
seria a de que um indivíduo não está autorizado a fazer aos outros aquilo
que não quer que façam para si. Quanto a este princípio elementar e
bastante antigo, é fácil demonstrar que tanto o generoso como o egoísta
são cria- ' turas injustas. O egoísta é agressivo e detesta ser agredido,
espera receber tudo e não gosta de dar nada. O generoso não agride
mas aceita ser agredido, gosta de dar e fica irritado quando recebe.
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6. A QUESTÃO DA LIBERDADE
I
Fica claro, do que foi exposto até agora, que não acredito na utilidade da separação entre o bem e o mal, entre o homem generoso e o egoísta, para uma avaliação moral da conduta humana. 0 bem e o mal não existem; são formas de comportamento que chamo de injusto; a intenção é no sentido de nos empenharmos na descrição do que seria o homem justo, aquele que, segundo penso, poderá se aproximar mais de um modo de existir feliz e coerente. O dilema moral passa a ser, portanto, entre o justo e o injusto e não mais entre o bem e o mal.
A bondade foi uma proposição fundamentada na idéia de que seria este o desejo de Deus — supremo bem — para o homem; esta conduta o aproximaria Dele. Vimos também que existe um prazer de natureza racional ligado à capacidade de renunciar; que a este se acrescenta uma forma especial de prazer sexual: a vaidade; e tam-bém que esta conduta final se instrumentaliza no sentido de ser tanto uma arma de defesa como uma forma de dominar e humilhar as pessoas que se beneficiam destas criaturas essencialmente governadas pelo sentimento de culpa, mas que não deixam de ter anseios de vingança quando se sentem explorados.
A maldade, na sua forma mais simples, consiste na persistência de uma conduta egoísta própria da dependência infantil, complicada depois pela existência de outras frustrações adultas capazes de deixar as pessoas insatisfeitas com o que são e invejosas daqueles que possuem as propriedades desejadas, tais como beleza, inteligência, força física, etc. Em poucas palavras, o egoísmo e a inveja seriam os componentes básicos da conduta má, que se caracteriza pelo desejo arbitrário de privilégios e pelo anseio de destruir aqueles que são o objeto da inveja, sendo que se busca atingir tais objetivos por quaisquer meios, ilimitados na agressão a terceiros uma vez que tais criaturas não sofrem com sentimentos de culpa. O único freio para estas condutas é o medo de represálias externas, de modo que a esperteza consistiria em tentar atingir os objetivos sem se deixar apanhar pelos responsáveis pelo cerceamento das ações anti-sociais. Aqueles que não têm sequer o medo das represálias correspondem ao que se costuma chamar de
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deliqüentes: os criminosos comuns mais inescrupulosos; e também, quando muito bem dotados de inteligência, alguns tiranos poderosos.
Fatores vários definem qual vai ser a atitude predominante de um adulto, no sentido de persistir no egoísmo ou se encaminhar para uma conduta mais generosa. Alguns provavelmente dependem de variáveis inatas, ligadas à capacidade de tolerar frustrações, a ponto de chegar a se constituir a sensação prazerosa ligada ao sofrimento. Outros dependerão da história peculiar de cada vida, da natureza e época dos sofrimentos e frustrações que tiveram que ser experimentadas; pessoas com grande capacidade de lidar com frustrações superam quaisquer obstáculos, mas a maioria superará ou não dependendo da magnitude das dificuldades que terão que en-frentar. Outras ainda dependem do modo como é o pensamento filosófico ou religioso predominante na épocaem que vivem; assim acredito que a razão humana — e as idéias nela contidas — influem muito na capacidade de cada pessoa ir modificando a sua trajetória; os homens são governados por instintos, por suas limitações quanto ao modo de lidar com a realidade e também pelas idéias nas quais acreditam verdadeiramente.
A bondade é uma conduta altamente reforçada pelas idéias de natureza religiosa, especialmente para aquelas pessoas que têm uma convicção sincera em suas crenças. Acreditam que Deus existe e que Ele se revelou ao homem através de alguns emissários; os textos sagrados conteriam os desígnios do Senhor, cabendo aos homens tentar segui-los, com a finalidade de obterem a salvação de suas almas. Como esta idéia faz o homem se sentir bem — através do sentir o prazer da renúncia - ela ganha estabilidade e consistência mesmo quando, objetivamente, ele tenha que reconhecer alguns prejuizos de ordem prática impostos pelas pessoas que agem com maldade *e egoísmo. Até pelo contrário, a existência destas lhe dá cada vez mais uma sensação subjetiva de superioridade, de grandeza e intimidade com Deus; a sensação de superioridade se manifesta através do sentir piedade dos maus e pecadores, sentimento obviamente de cima para baixo.
O materialismo contemporâneo teve um desenvolvimento muito curioso, ao menos do ponto de vista prático e analisado apenas do ângulo psicológico — único em que me vejo capaz e
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habilitado para fazer observações. A crença em Deus foi substituída pela convicção de que a ciência — em grande evolução — levaria o homem à descoberta dos mistérios da vida; a fé na ciência foi — e é ainda — a meu ver absolutamente desproporcional ao alcance dela e aos esclarecimentos que ela já nos trouxe e que, pensando mais seriamente, foram muito poucos.'A negação de Deus trouxe consigo um aumento das expectativas prazerosas na vida terrena e também um enorme empenho das pessoas de maior abstração — e que, no passado, seriam os grandes religiosos — em encontrar soluções para as injustiças sociais. Outra vez se apegaram a doutrinas de modo fanático, estando dispostas a sacrificar suas vidas e seus prazeres em favor delas. E trataram de impô-las com a mesma veemência e dedicação dos antigos pregadores religiosos.
Encontraram assim novas convicções absolutas e novas fórmulas para justificar a existência e persistência do prazer da renúncia. É indiscutível que exerceram, através desta via, suas vaidades e que compuseram outra vez a sensação de superioridade, de serem uma elite, preocupada agora com a salvação dos seus semelhantes ignorantes, mal informados e explorados. As pessoas encontram o sentido de suas vidas, através da renúncia pessoal em favor de alguma causa percebida como justa; e tal atitude substitui a idéia original da renúncia em favor da salvação da alma.
0 prazer da renúncia não deixa de ser exercido mesmo dentro da concepção materialista da vida, o que mostra de maneira bastante categórica que se trata de importante satisfação do ser humano, mais de acordo com sua natureza psicológica do que em decorrência de tentar seguir os preceitos de Deus. Tal prazer não se justifica, no nível das idéias, dentro do materialismo, que deveria levar o homem a uma tendência mais hedonista, mais no sentido de usufruir das delícias do corpo — e esta atitude também se tornou mais presente, mas não exclusiva.
A preocupação com os outros homens também não
desapareceu do espírito abstrato das pessoas descrentes; ao
contrário, ganhou uma intensidade maior do que a existente entre os
religiosos, que gastavam boa parte do seu tempo tentando entender
de Deus. Não só aumentaram suas preocupações com as questões
sociais, como também os esforços no sentido de fazer prevalecer
seus ideais de justiça se tornaram mais ativos e passaram a ser o
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tema principal de suas vidas. E através desta conduta se sentiam
superiores, mais sábios, os salvadores do mundo; pessoas idealistas
que estavam — e estão — sacrificando suas vidas em prol do bem
comum, num esforço de ajudar os oprimidos, pessoas inferiores,
mais fracas e necessitadas.De uma maneira simplória, vejo a humanidade constituída por
três grupos: a grande massa, oprimida, fraca, dócil e crente em Deus até hoje; uma minoria esperta e inescrupulosa que a explora; e uma minoria mais idealista e com sentimentos de superioridade que tenta salvá-la da opressão e da exploração que a deixa na miséria. A grande mudança se deu neste terceiro grupo dê pessoas, que deixou de ser religiosa para ser revolucionária no sentido político; os exploradores continuam a ser do mesmo modo, apenas com adaptações aos tempos e às novas circunstâncias; e a massa também pouco se alterou, se bem que em alguns países sua condição objetiva melhorou muito. A grande disputa sempre foi entre as duas minorias, ambas tentando dar as diretrizes que seriam depois seguidas pelo povo, constituído por pessoas de inteligência inferior, ou mais dóceis por decorrência de fatores vários. A minoria idealista costuma ser a mais criativa e da qual surgem as novas idéias; estas são apropriadas pela minoria esperta, devidamente deformadas e utilizadas em favor da preservação de seus privilégios; a massa se submete a estes, que são os governantes, em geral mais agressivos e para quem o sentimento de culpa conta pouco.
Assim, no idealismo religioso como no ateu, existem como características psicológicas essenciais o prazer da renúncia — que gera sentimento de superioridade — e a sensação de solidariedade para com os outros seres humanos. O religioso vê Deus como o pai e os homens como irmãos; o ateu subtrai a idéia de Deus mas persiste se sentindo integrado na comunidade dos homens, do mesmo modo fraternal. E o entendimento da psicologia deste grupo de pessoas é fundamental, pois que, apesar de minoritário, tem poder de influência, além de ser o gerador das novas idéias.
Já assinalei que a sensação de desamparo própria do
desprendimento familiar, coisa que se dá pelos 9 anos de idade e que
tem como marco a ruptura amorosa edipia- na, é percebida como
extremamente dolorosa. Dela deriva um anseio persistente de se
sentir vinculado a alguma pessoa, grupo ou idéia, situação
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atenuadora do desespero de se sentir só. O desamparo se atenua
quando surgem ligações amorosas durante a vida adulta; quando o
indivíduo se integra com um grupo de amigos; quando se vê parte de
uma comunidade racial ou nacional. Da mesma forma, a expressão
mais sofisticada destes fenômenos atenuadores da desagradável
sensação de existir por si só são a convicção religiosa — Deus é
onipresente e acompanha a pessoa sempre — ou o idealismo político
— o indivíduo está completamente diluido no grupo humano. Em
ambos os casos se justifica intelectualmente o exercício do prazer da
renúncia, contentamento íntimo gerador de sensação de
superioridade. Não é necessário muita argumentação para se dizer
que a religiosidade não exclui o idealismo político; pelo contrário,
seria de se supor que estes dois modos de lidar com o desamparo
coexistissem até de uma forma mais freqüente do que se observa na
prática. O idealismo político ateu tem sido o mais freqüente nos
últimos tempos, talvez o mais ativista por ser a única forma de
expressão mais elaborada deste esforço de fugir da dor do
desamparo nas pessoas que não creem em Deus.
A sensação de desamparo existe em todas as pessoas, mas é
provável que existam circunstâncias atenua- doras e agravantes
desta dor. Acredito que, do ponto de vista psicológico, a grande
agravante seria uma capacidade intelectual maior; crianças mais
inteligentes perguntam mais sobre a origem da vida e sobre as coisas
da morte, se satisfazem mal com as respostas que ouvem; não se
contentam com explicação alguma, pois dela são capazes de criar
novas perguntas, novos dilemas; aquelas de inteligência menor se
satisfazem com as respostas usuais e se sentem mais serenas com
isto.
Creio também que uma ordem social e familiar mais estável
atenue esta sensação na maioria das pessoas, pois as rupturas dos
vínculos familiares nunca chegam a se dar de modo completo. Na
arcaica estrutura do clã, por exemplo, os jovens gravitavam em torno
dos patriarcas por longo tempo; e depois sua descendência fazia o
mesmo com eles; desta forma, a vida de família era bastante mais
intensa e as pessoas se sentiam mais solidárias e menos solitárias.
Da mesma forma, a existência de um rei, de classes sociais estáveis
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e imutáveis, determinava pontos de segurança e de apôio mais
sólidos dos que existem nos tempos atuais. E isto não significa que
deveríamos retornar a este tipo de vida familiar e social; apenas
mostra que as alterações havidas realçaram este importante
componente da psicologia humana.
Não creio que haja dúvidas de que o enfraquecimento das convicções religiosas tradicionais tenha sido importante fator capaz de tornar evidente a dpr do desamparo; inversamente, me parece provável que a religiosidade como foi exercida — e o é por muitas pessoas — servia aos propósitos de atenuar esta dor. A idéia de um Deus onipresente pode ter surgido como solução para a sensação de solidão do homem, perplexo diante do mundo, se sentindo abandonado e solto na medida em que se torna mais consciente de si mesmo e mais desligado dos pais de uma maneira compulsória e contra a sua vontade. Outra vez reafirmo que não se pode usar estas observações como prova da inexistência de Deus.
Resumindo, a dor do desamparo seria máxima numa criança extremamente inteligente, com maior capacidade de abstração — coisa que a faz aceitar melhor a separação edipiana — e maior tolerância a frustrações — os mais intolerantes tratam de fugir rapidamente desta dor através de todos os recursos disponíveis: apego a coisas materiais e empenho em conseguí-los a qualquer cus-to, persistência nos vínculos familiares cuja separação é muito dolorosa, apego às convicções religiosas ou materialistas com pouca reflexão crítica, ligações com outros seres humanos sob a forma de grupos de amizades, etc. O desamparo é maior ainda quando a vida familiar é conturbada e instável, o mesmo se dando na vida política e também no plano das idéias, situação na qual não há no que se apegar para atenuar o desespero. Talvez porque estejamos vivendo uma época deste tipo que tal aspecto do homem esteja tão ressaltado, de modo a podermos observá-lo melhor; e isto pode ser o início de um outro modo de reflexão capaz de trazer algum tipo de proposta nova, coisa que só costuma ocorrer quando a condição humana se torna insuportável.
A dor do desamparo surge de modo mais evidente a partir da ruptura edipiana e em decorrência do desenvolvimento da razão, capaz de ficar confusa e cheia de dúvidas a respeito do mundo que nos cerca. Mas, de certa forma, creio que é sensação similar à que a
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criança sente ao nascer, ao se perceber longe da mãe nos primeiros tempos de vida. A sensação é física, profundamente desagradável, ligada a um desconforto difuso — talvez mais localizada na região gástrica. Seria uma espécie de revolta contra o .fato de ter nascido, o que vale dizer estar sujeito a todo o tipo de desprazer físico. Segundo acredito, porém, a dor do desamparo assume sua expressão máxima através de um processo racional, da reflexão — apesar de que ela persiste sendo sentida como desconforto também físico. Ou seja, se nascer é uma coisa dramática e grave, muito pior é se perceber que a origem da vida é desconhecida.
E quando me refiro à origem da vida, não estou falando das
primeiras curiosidades infantis acerca da reprodução nos mamíferos,
fenômeno que costuma aparecer pelos 5-6 anos de idade; para estas
já temos algumas explicações, ao menos as noções suficientes para
saciar a curiosidade de uma criança. A questão é bastante mais
complexa e as dúvidas crescem com a sofisticação da razão capaz
de perceber a grandeza do universo, as distâncias entre estrelas
medidas em milhões de anos- -luz, os fenômenos da natureza
vegetal e animal todos recheados de mistérios intrigantes. Afinal de
contas, donde surgiu tudo isto? Para que existem todas estas
coisas? Quem as criou? Sempre existiram? O universo é finito ou
infinito? Qual o sentido da vida? Estas são as perguntas capazes de
atormentar o espírito cada vez mais, desde a infância até à velhice,
de uma forma crescente. Sim, porque quanto mais tentamos saber e
nos informar, maiores são as dúvidas e os mistérios.
Já disse que o desconforto da razão são as dúvidas,
as perguntassem resposta. E elas funcionam de modo si
milar à fome para o corpo. Surge um desejo intenso de resolvê-las
com a finalidade de atenuar o sofrimento, agora originado
exclusivamente da capacidade racional do homem, perplexodiante da
realidade que o cerca. E isto
explica o fato
da maioria das pessoas se apegarem às
concepções em vigor na sua época, se contentarem superficialmente
com elas e tratarem de deixar este tipo de questão de lado e, mais
que depressa, se dedicarem às de ordem prática, ligadas ao
aprendizado de uma profissão, ganhar a vida, ter prazeres sexuais e
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afetivos, etc.
Numa reflexão mais acurada, podemos perceber que o grande
e dramático evento determinante da dor do desamparo é o fato de
que a origem da vida e do universo é um mistério, e mais, que jamais
será decifrado.Todas as sensações físicas infantis similares se reforçam brutalmente através desta constatação intelectual posterior e verdadeira. Quaisquer que fossem os esforços psico-pedagógicos capazes de atenuar este sofrimento físico infantil esbarrariam com o obstáculo intelectual, que é intransponível e definitivo; com isto fica evidente que o grande e fundamental problema do ser humano não é de natureza psicológica por si, mas sim de tipo filosófico: como existir, como ser, como se comportar uma criatura que tem que aceitar que desconhece sua origem? Como pode o ser humano mais maduro e sábio se sentir amparado se ele não sabe de onde veio?
Sendo a dúvida um desconforto difícil de ser suportado por si e reforçador da dor do desamparo, é evidente que o espírito humano tem se esforçado para encontrar soluções convincentes. A idéia de um ser criador do universo, da terra, dos animais e dos homens - um Deus — sempre foi a mais atraente para os nossos ancestrais, per-plexos diante do mistério da vida. A idéia é lógica, e até bastante provável, já que a hipótese oposta — que tomou corpo a partir de algumas importantes descobertas da física, astronomia e biologia, importantes mas também bastante superficiais em relação à magnitude do mistério — seria a de que o universo sempre existiu, que não foi criado, coisa bastante difícil de ser compreendida e sustentada com argumentos.
Já disse que o pensamento materialista se vale do fato de que as concepções de Deus são obviamente humanas para provarem sua inexistência. Usa também certas descobertas científicas sugestivas de que existem indícios de uma evolução casual e espontânea da matéria inanimada para a com vida e desta até o homem como prova de que tudo se construiu sem a intervenção de uma força superior, uma divindade. Outra vez o raciocício é primário, pois a descoberta de determinados processos absolutamente não é argumento suficiente para se acreditar que o universo sempre existiu. Mesmo que se possa demonstrar que a vida pode ter surgido espontaneamente, muitas são as dúvidas que sobram e que jamais
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poderão ser respondidas. A fé no desenvolvimento da ciência é da mesma natureza que a fé em Deus: duas formas, opostas na formulação, para se fugir ao desconforto determinado pela verdade. E a verdade indiscutível é que a origem da vida é um mistério.
Sou tentado a escrever Mistério — com inical maiúscula — da
mesma forma que sempre se escreveu assim sobre as divindades. A
idéia básica seria esta: o homem não é filho de Deus e nem
descendente do macaco; é fruto de um Mistério original. Sua
desgraça e o fascínio de sua vida se alicerçam no fato de que ele
tem que existir ignorante acerca de sua origem e, obviamente, de seu
destino. Qualquer explicação será precária e apenas terá a finalidade
de atenuar o desconforto da dúvida original. 0 desamparo é
sensação natural e obrigatória deste ser, de modo que sua tarefa
maior é aprender a conviver com esta dor e não tratar de fugir dela a
qualquer custo. E não será bastante provável que uma boa parte da
nossa energia nós a gastemos exatamente no sentido de fugir desta
verdade?
Quem crê em Deus se apazigua, vive conforme o "bem", se alimenta do prazer da renúncia e da certeza de uma vida futura melhor. Quem acredita que a vida termina com a morte trata de aproveitá-la da melhor forma possível do ponto de vista dos prazeres materiais, sempre meio apressado pois o medo da morte antes do tempo determina este estado, além de desenvolver seu eventual idealismo na direção da ação política. E como é que vive a pessoa que se sabe fruto do Mistério?
Não deixa de ser curioso e perturbador pensar com seriedade
que se é filho do Mistério. Que existe uma coisa ao menos maior que
o homem: o Mistério acerca de sua origem. Que a partir desta
verdade primária, tudo é possível de existir, tudo é tema de interesse
e reflexão, não há nada definido ou pré-estabelecido. Nem é verdade
que há vida depois da morte e nem que a vida termina com a morte.
Tudo é mistério, tudo pode ser pensado. Interessa o progresso da
ciência tanto quanto interessa o poema. Pode existir alma de outros
mundos que venham nos visitar, e tudo pode ser fruto da fabulação
humana. Podem existir — ou não — discos voadores; porque sim? e
porque não? O conteúdo dos sonhos podem ser de uma natureza
que transcenda as experiência já vividas e mesmo conter sabedoria
97
para além daquela que o indivíduo experimentou; ou não.De repente me apercebo que a idéia — a meu ver indiscutível
— de que o homem é filho do Mistério abre uma perspectiva intelectual e de vivências nunca antes proposta. O homem que se aceita como tal, que suporta a dor desta dúvida original e não tenta encontrar uma explicação para ela, se aproxima daquilo que sou tentado a chamar de homem livre. E o medo da liberdade, evento indiscutivelmente existente no ser humano, seria a incapacidade de lidar com a dor e o desespero próprio do desamparo real e característico da espécie. Os outros componentes, ligados ao medo de desafeto, medo de perda de privilégios, etc., aos quais estão sujeitas as pessoas que se comportam de um modo diferente do esperado, nada mais são do que casos particulares do medo do de-samparo, próprio da solidão à qual supostamente estaria condenado o homem livre.
Qualquer criatura capaz de viver de um modo diferente e original desperta imediatamente um enorme fascínio na grande maioria, que se comporta exatamente conforme os padrões da época. O fascínio mostra que a maioria das pessoas está absolutamente insatisfeita com o seu modo de vida; mas nem porisso se modifica e busca uma conduta mais de acordo com suas idéias. E o temor que impede é sempre o medo das críticas, de perda de posições sociais — nem sempre geradoras de privilégios capazes de justificar tal medo — e principalmente a perda do afeto das pessoas, o que significa abandono e solidão, ao menos como expectativa psicológica. E a situação é obviamente contraditória, posto que estas pessoas sabem que o fascínio das outras será até maior se elas ousarem um modo de ser original; mas existe o risco do desprezo geral, e isto é suficiente. Fica claro mais um aspecto ligado ao pavor da maioria das pessoas de experimentar a dor do desamparo, que é o de se comportar conforme os seus pares, se misturar com eles, ser mais um dentro da multidão, se diluir na massa. Tal tendência se opõe ao componente sexual que chamo de prazer de se exibir, que desta forma se frustra. Sobra a solução da fantasia, da imaginação: as pessoas vivem a vida de todo o mundo e sonham com a extravagância, com o luxo ou a miséria, com a promiscuidade ou com a austeridade monástica. E todos os sonhos deste tipo têm conotação sexual em virtude do exibicionismo que a extravagância de
98
qualquer tipo contém.O meio social usa o temor do desamparo como forma de
acovardar e amestrar a massa, de modo que as pressões no sentido do comportamento convencional existem e as represálias para as excentricidades são reais. Talvez não sejam, em certos casos, tão ameaçadoras quanto as criaturas imaginem, mas elas realmente existem. Um educador que se declare homossexual, por exemplo, dificilmente manterá o seu cargo. E estas coisas são tanto mais verdadeiras quanto mais importante e destacada for a posição de uma pessoa; isto até um certo limite superior, onde a extravagância passa a ser de novo tolerada.
Aos artistas em geral, o meio social autoriza o máximo de extravagância. E eles servem de alimento para a fantasia da maioria da população, sendo esta uma função interessante para fins de repressão: as pessoas se divertem em falar sobre a vida íntima conturbada dos artistas e com isto se esquecem da sua própria monotonia.
Ao mesmo tempo, se sabe que a função criativa só pode ser
exercida com este estado de espírito e modo de vida mais livre, de
maneira que uma parte da população terá que viver assim para que
surjam as novas idéias, as novas músicas, as novas pinturas, etc. É
evidente que não basta uma pessoa ter coragem de viver com
excentricidade — capacidade de lidar com o desamparo — para que
seja um artista. Será um homem livre, porém só será criativo se tiver
talento verdadeiro; e muitas são as pessoas que acham que viver a
vida de artista é o mesmo que virar um artista. Da mesma forma,
nem toda extravagância se manifesta na forma de se vestir e de viver
o cotidiano; este é o seu aspecto superficial e mais visível, ab-
solutamente secundário para muitas pessoas: Essencialmente
extravagante é o indivíduo que pensa por conta própria, que é capaz
de se livrar das amarras das convenções em sua maneira de refletir
sobre a vida, coisas e pessoas; esta extravagância subjetiva pode ou
não ter uma repercussão no modo de ser exterior da pessoa.
Em resumo, acredito que o desamparo seja a sensação
dolorosa mais típica do ser humano; apesar de existirem razões
psicológicas para justificá-la, creio que sua fonte maior é a
descoberta de que a origem da vida é um Mistério indecifrável. A
99
aceitação disto como uma verdade contra a qual não se pode lutar —
e a luta tem sido feita no sentido de se encontrar explicações
precipitadas e incompletas para o Mistério — e a capacidade de con-
viver com esta dúvida original, que é a causa da perpetuação na vida
adulta do desamparo infantil, cria uma nova perspectiva para o modo
de pensar e de ser do homem, no sentido de aproximá-lo muito
rapidamente de um dos seus maiores anseios: a liberdade.
II
100
Colocada a proposição de liberdade como uma enorme
abertura luminosa que deriva da aceitação de que a
condição humana consiste na existência de um estado de
consciência acerca do Mistério da vida e da morte — e
tal concepção substitui aquela que vê a tragédia humana
como derivada dele se saber mortal — devemos nos
encaminhar no sentido de tentar saber como é o homem
livre. A questão é complexa, pois não podemos deixar de
reconhecer que tais criaturas são muito poucas, se é que
verdadeiramente existem; e não dispomos de experiências
subjetivas para ilustrar tal condição, posto que todos
nós fomos educados dentro do princípio de que a conduta
excêntrica era castigada com o desafeto dos pais, o que
nos levaria ao estado de desamparo insuportável. Depois
de crescidos, além do medo similar — agora em relação ao
meio social como um todo — se acrescenta aquele que
deriva de se perceber que não há respostas às perguntas
fundamentais, o que abala brutalmente a auto-confiança e
a coragem para existir; nos apegamos então a convicções
de qualquer tipo apenas com a finalidade de dar sentido
à vida e fugir das dolorosas questões acerca do
Mistério; o tema em geral é abandonado após a puberdade
e só eventualmente é retomado na velhice, quando a luta
pela vida se abrandou e a morte se aproxima de modo
assustador.
Assim, o que nós todos temos feito é nos entupirmos de
obrigações e atividades com a finalidade de fugir' da
dor do desamparo, consciência sofrida que só aparece em
horas de acalmia, ou, pior ainda, de grande felicidade.
A luta pela sobrevivência é o tema básico da grande
massa da população da terra e é claro que ela assume
prioridade tal que estas criaturas não podem cogitar de
outras questões; seu sonho é a riqueza e com ela a
suposição de que todos os problemas estarão resolvidos.
Aqueles que resolveram as questões fundamentais da
sobrevivência material podem agir de dois modos: ou
reinventar problemas nesta área aumentando o nível de
101
suas ambições, ou encalhar nas questões chamadas exis-
tênciais e que são, em essência, as insatisfações amoro-
sas. Problemas econômicos podem ser sempre recriados,
especialmente numa sociedade como a nossa capaz de gerar
novidades atraentes e dignas de serem possuidas — e não
é impossível que isto se faça justamente com a fi-
nalidade de afastar o homem contemporâneo, materialista,
dos problemas metafísicos básicos. Alguém que mora numa
boa casa e tem situação econômica estável poderá decidir
mudar para outra do dobro do tamanho, a pretexto de
viver mais comodamente e com a finalidade real de poder
passar mais alguns anos ocupado com as questões
materiais. A experiência clínica é também sugestiva de
que as pessoas complicam sua vida amorosa muitas vezes
desnecessariamente; tantos casais vivem se atritando
quando poderiam viver felizes; do mesmo modo, quase
todos os encontros amorosos de grande afinidade e
intensidade sentimental máxima terminam em separação.
Outra vez parece claro que o homem foge de resolver
questões com a finalidade de evitar a complexa dor
derivada de se perceber filho de um Mistério.
Quase tudo que observamos na realidade é, portanto,
um esforço do homem de fugir de si mesmo, de fugir do
tempo livre que o levaria à reflexão. Nestas condições,
penso que o medo da liberdade deriva do fato de que ela
traria condições para o homem pensar acerca de si mesmo
e de sua origem; a idéia de liberdade é atraente, mas
vivê-la é assustador. E quantos não são os homens que
trabalham ininterruptamente e vivem sonhando com o dia —
sempre adiado — em que irão gozar das delícias de morar
numa praia semi-deserta? O que os impede de ir é que
terão forçosamente de pensar em si e na vida; enquanto
não vão, gastam o tempo livre a sonhar com a ida, o que
é mais uma forma de se distraírem de suas verdades.
Parece claro, portanto, que o homem foge da liberdade
através de uma vida massacrante e também através da
ilusão da liberdade que é o seu devaneio constante; se
102
realizar o devaneio terá que pensar na sua condição real
e isto é bastante doloroso, sentido como insuportável
para a maioria.
Os que têm uma convicção religiosa definida e pro-
funda — e estes são poucos — lidam melhor com uma vida
mais calma e serena; porém, fogem da verdade através da
própria convicção, que apazigua a dor do desamparo.
Apesar disto, vivem sem dúvida um estado interior mais
sereno do que aqueles que não creem em Deus. Mas, são
obrigados a se comportar conforme os mandamentos de sua
religião, de modo que também não são criaturas livres,
capazes de decidir sobre o seu próprio destino. Gastam
boa parte do tempo num esforço contínuo de entender os
desígnios de Deus, para depois tentar se comportar de
acordo. Já disse que deste esforço derivaram muitas das
mais belas e importantes criações do homem; e isto
talvez signifique que aqueles que crêem em Deus se vêem
com mais coragem para chegar mais perto das questões
humanas fundamentais, posto que estão escorados por esta
convicção.
Desta forma parece claro que o homem vive continua-
damente querendo se ocupar das questões objetivas com a
finalidade de se distrair de si mesmo; é evidente que
não é esta a única razão para o interesse pelas coisas
que o cercam, pois elas despertam também a curiosidade
natural do homem, além de ser necessário para a sobrevi-
vência da espécie o domínio sobre certos fenômenos da
natureza. Me refiro ao exagero de ocupação objetiva pró
103
prio do homem contemporâneo, e que não existe, por
exemplo, na maioria daqueles que têm verdadeira convic-
ção religiosa.
Tentar saber como é o homem livre implica, pois, em
um esforço de imaginação, pois que ele é muito raramente
encontrado na realidade. E é conveniente registrar que
acredito que se possam atingir importantes progressos
através deste recurso, talvez o único capaz de gerar
inovações. Se chega a uma nova idéia, a um novo con-
ceito, que servirá depois de modelo para a aplicação
prática, que será atingida através do tempo — e não
imediatamente — e com as devidas deformações e
limitações. A idéia sempre poderá estar mais próxima da
perfeição do que a realidade (Platão).
E a primeira idéia que tenho acerca dos homens
livres é que não serão todos iguais e não viverão todos
de uma só maneira. A realidade nos ensina um fato que
pode ser percebido com desgosto por muitos por causa de
suas convicções: não nascemos todos iguais. Há incríveis
diferenças individuais em todos os níveis, desde a
constituição física à inteligência; os homens diferem em
beleza, capacidade de trabalho, intensidade do instinto
sexual, competência para lidar com a dor física e com
frustrações, capacidade criativa, etc. E seria fugir aos
fatos supor que tais diferenças derivam apenas das
condições sócio-culturais e econômicas ligadas à origem
de cada pessoa, bem como pensar que são apenas os aspec-
tos psicológicos próprios da história infantil os
responsáveis pelo adulto que cada um de nós é. O inverso
também é verdadeiro: há importantes influências
psicológicas e sócio-econômicas na determinação do
homem; mas alguns limites inatos são intransponíveis, de
modo a ser impossível cogitar de alguma ordem social na
qual todos os homens seriam iguais. As diferenças
individuais não implicam obrigatoriamente em uma
sociedade onde existam privilégios e privilegiados; mas
o anseio de so
m*
104
ciedades mais justas não pode ser alicerçado em uma
inverdade, ligada a uma idéia simpática, mas falsa, de
que somos todos iguais.
Não deixa de me parecer surpreendente como certos
absurdos podem tomar corpo e fazer parte de doutrinas de
influência capital para a evolução da humanidade. Não é
improvável que a idéia da existência de diferenças
básicas entre os indivíduos seja desagradável por razões
psicológicas, no sentido de que ela traria várias
conseqüências importantes. Todos nós tentamos entender o
outro à nossa imagem e semelhança; supomos os so-
frimentos alheios através de nos imaginarmos naquelas
situações. E acreditamos que estamos obtendo dados reais
através deste processo, o que nem sempre será verdade. O
indivíduo mentalmente sadio que se imaginar internado à
revelia num sanatório, e submetido a determinados
tratamentos mais dramáticos, sentirá uma dor e uma
sensação de humilhação que o louco não sente.
Se as pessoas não são iguais, o processo de enten-
dimento do outro através do colocar-se no lugar dele
deixa de ser válido. E isto não significa que se deva
deixar de exercer esta função imaginativa; apenas não
pode ser entendida como sendo a forma de captação da
verdade efetiva do outro. Jsto complicaria o
desenvolvimento de certo tipo de idealismo salvador, tão
a gosto dos humanistas; apenas a título de exemplo,
poderíamos dizer que os estudantes universitários — que,
paradoxalmente, se reconhecem como elite pensante — não
estão autorizados a participar da luta operária, e muito
menos tentar influir sobre suas diretrizes. Apenas os
operários conhecem sua verdadeira situação e anseios;
tudo o que imaginarmos a respeito deles e do modo como
se sentem terá que ser percebido como hipótese e não
como expressão do que efetivamente se passa.
Em outras palavras, a idéia da igualdade entre as
pessoas autoriza a uma minoria decidir quais são os an-
seios da maioria, através do que a imaginação das
primeiras pode supor sobre a segunda. Assim, a própria
105
idéia igualitária determina o surgimento de elites
salvadoras da massa, e que, a partir daí, não precisam
sequer ser consultadas. Ela acaba desembocando sempre
num procedimento totalitário, mesmo quando a serviço de
conceitos humanistas, além de alimentar a vaidade dos
heróis que se sacrificam pela causa supostamente comum.
Outra vez insisto que o reconhecimento de diferen-
ças individuais não pode ser o motivo para justificar
uma sociedade em que existam nobres e escravos, raças
superiores e outras que devem ser exterminadas. Se
trata, aqui também, da utilização de verdades com a
finalidade de dar validade a ações voltadas para a
resolução de desejos de uma minoria que se atribui
direitos especiais.
A aceitação do fato de que os homens não são todos
iguais só pode ter uma conseqüência legítima: temos que
respeitar o modo de ser e de pensar do outro. Temos que
tentar saber como é o outro ao invés de querer imaginá-
lo; temos que nos aproximar efetivamente das pessoas,
conversar com elas, conviver com elas; e fazer isso sem
querer modificar o modo como elas pensam, sem nos
colocarmos como mais sábios, melhores. Poderemos
aprender dos outros e ensiná-los, apenas através de
ouví- -los e falar-lhes; e cada um falando de si e de
suas vivências. Cada criatura acha — e sempre será assim
— que suas idéias são as melhores; mas terá que
compreender que o outro também pensa do mesmo modo, de
sorte que se sentirá ofendido se quisermos impor as
nossas. E não temos este direito mesmo quando
acreditamos existir indícios evidentes de que o outro
está cometendo equívocos.
O reconhecimento da existência de diferenças indi-
viduais determina uma postura em relação ao outro tanto
de respeito como de curiosidade. Se fôssemos todos
iguais, pequeno seria o interesse de conhecermos outras
pessoas. Fica absolutamente sem sentido a tendência dos
pais de moldar seus filhos à sua imagem e semelhança; e
o lógico seria tentar perceber desde cedo quais são as
106
características de cada um deles para que sejam
respeitadas e eventualmente estimuladas. Não se pode
querer moldar criancas e nem outros adultos à nossa
imagem e semelhança, mesmo que continuemos a achar que o
nosso modo de ser, de viver e de pensar seja o mais
certo.
Não é o caso de desenvolver exaustivamente a ques-
tão, de modo a se saber quais sejam os modos de pensar
mais válidos e consistentes; apesar de acreditar que
existam diferenças e meios de se provar se certas
concepções são verdadeiras ou falsas, penso que cada
homem tem o direito de se guiar pelo seu julgamento. E,
no seu íntimo, ele percebe quais são as suas verdadeiras
crenças, quais as coisas que ele diz ou pensa apenas por
conveniência ou para se tranqüilizar; no limite, cada
criatura tem também o direito de viver continuamente a
se iludir.
O homem que se reconhece filho do Mistério sabe que
ele não tem acesso a verdades absolutas. Mas sabe também
que elas podem existir ou não, dependendo da natureza
deste Mistério que jamais será desvendado. A aceitação
desta condição traz consigo duas atitudes concomitantes:
uma certa docilidade e resignação diante do fato de que
jamais terá acesso ao Mistério — no que esta concepção
se aproxima da atitude religiosa diante da vida — ao
mesmo tempo que tem sua curiosidade aguçada, no sentido
de tentar decifrar todos os enigmas que sua inteligência
puder criar — nisto se aproximando da atitude científica
diante da vida.
O homem livre — o que aceita docilmente sua con-
dição de filho do Mistério — é calmo e sereno diante
deste fato definitivo de que jamais terá acesso às
respostas primeiras. Mas tem sua curiosidade justificada
pelo próprio Mistério original, curiosidade que se torna
mais atra
107
ente na medida em que ele poderá atuar conforme
suas convicções e descobertas, ainda que saiba que elas
são incompletas e parciais. Na medida em que sua origem
é desconhecida, ele se torna livre para construir suas
idéias e sua vida, coisa absolutamente fascinante e
atraente; e pode mudar o rumo de tudo quantas vezes isto
lhe parecer interessante.
O homem que se reconhece filho de Deus tem sua vida
e seu destino traçados por Ele; tem serenidade interior,
mas tem que viver conforme Sua bondade. O homem que se
reconhece como a evolução do macaco percebe a vida como
sendo sem sentido e se apressa em usufruir dos prazeres
do corpo, pois vive atormentado com o medo da morte. O
que se reconhece filho do Mistério — e aceita isto —
vive em paz, portador de um fatalismo próprio dos que se
reconhecem impotentes diante de coisas maiores, mas
extremamente curioso e livre, pois não está obrigado a
seguir nenhum mandamento superior. Nada é impossível,
nenhuma questão está fechada. Tudo é interessante. A
vida ganha um sentido enorme, pois ela pode ser vivida
conforme se queira; tudo o que se conseguir inventar ou
imaginar pode vir a ser fato um dia. O único limite para
o ser humano são os direitos dos outros, filhos do mesmo
Mistério; e não creio haver necessidade de grandes
argumentações para se estabelecer este princípio básico
de convivência como legítimo.
O homem livre faz suas concepções a partir do que
ele observa na realidade externa e também do que ele
imagina. Não é governado por concepções rígidas que o
impedem de aceitar alguns aspectos da realidade apenas
porque estas não se encaixam nos conceitos aceitos como
verdadeiros. O homem livre não se aterroriza com os pro-
gressos da ciência — capazes de abalar as doutrinas
religiosas — e nem se afasta de fenômenos estranhos,
porém verificáveis, nos quais parece que certas pessoas
possuem propriedades especiais — capazes de abalar as
concepções materialistas. Tudo o interessa, pois tudo é
possível. E a ele caberá julgar a validade das coisas,
concluir e formular seus próprios conceitos, que serão
sempre mutáveis em função de novas observações e novas
idéias. Com isto ele se aproxima cada vez mais de
concepções mais convincentes para si mesmo, se aprimora
cada vez mais; aceita e mistura conhecimentos obtidos a
partir da dedução científica com aqueles que derivam da
intuição mágica. O processo é similar ao descrito por
Platão; é como se os absolutos existissem mas não fossem
revelados ao homem; este, através de sua razão, tenta se
aproximar cada vez mais deles, mesmo ciente de que
jamais os alcançará.
O filho do Mistério não tem nenhum modelo pré- -
estabelecido de conduta. O filho de Deus deve se guiar
conforme aquilo que o homem supõe ser a Sua vontade; e
esta sempre esteve em relação com o usufruto do prazer
da renúncia, prazer secundário e que dá dignidade e
grandeza para pessoas enfraquecidas pelo sentimento de
culpa. O homem livre terá que reconhecer também muitos
equívocos em relação aos seus sentimentos de culpa, pois
eles também se constroem em função da idéia da igualdade
entre as pessoas; ou seja, muitos dos sofrimentos que se
imagina o outro esteja padecendo não correspondem à
verdade, de modo que o sentimento de culpa poderá ser
maior do que o justificado em muitas situações.
Aquele que aceita a dor do desamparo se sentirá
solidário com os outros seres humanos. Não substituirá o
amparo familiar pela idéia de Deus e nem dará sentido à
sua vida através do anseio heróico de salvar os seus
semelhantes da miséria ou de qualquer outra peste. Mas
se sentirá solidário, partícipe do mesmo curioso — e não
trágico — destino. O se sentir parte integrante do
coletivo humano define o princípio moral único do homem
livre: o respeito ao próximo e a seus direitos,
idênticos aos atribuidos a sí mesmo. Apesar das
diferenças individuais, não é difícil se chegar a um
consenso acerca dos limites de direitos de cada pessoa,
109
posto que os homens têm também entre si enormes
semelhanças. Assim, não matar, não roubar, não impor sua
própria vontade e suas convicções aos outros, etc
seriam postulados facilmente aceitáveis para a
totalidade das pessoas. O detalhamento- to deste
princípio geral para cada grupo social teria que ser
feito em função do modo como se dá cada tipo de or-
ganização, sempre em função da vontade da maioria dos
seus membros.
Assim o homem livre não é "bom" ou "mau", como
seria o filho de Deus, conforme se comportasse segundo
Sua vontade ou em oposição a ela. 0 homem livre é justo
ou injusto, conforme aceite o direito dos outros ou não.
Isto para cada situação em particular, pois no global
terá que ser uma pessoa justa. A ação continuada- mente
injusta — subtração de direitos de terceiros em causa
própria ou vice-versa — determinará a reação das outras
pessoas, que agora não têm mais a docilidade própria
daqueles que têm prazer na renúncia. Além do mais o
homem livre é crítico em relação a si mesmo e se saberá
injusto; e mais, sabe da experiência empírica, que tal
conduta não lhe faz bem. O generoso e o egoísta — os
dois tipos usuais de criaturas injustas — estão
absolutamente cientes de como tais tendências lhes fazem
sofrer. 0 homem livre não busca o sofrimento, pois isto
só teria sentido para aquele que quer se aproximar da
grandeza divina; do mesmo modo, não busca o privilégio
porque sabe que isto, direta ou indiretamente, gera
outro tipo de sofrimento.
O homem livre, ciente e conformado com o Mistério
original, tem sua atuação voltada para a vida na terra,
o que não significa negar a possibilidade da existência
de uma continuidade após a morte. Não tem um modelo a
seguir; é livre para existir conforme sua convicção. Não
tem que ser "bom" mas tem que ser justo, pois em caso
contrário perde sua própria liberdade. Sua meta não é a
salvação da alma após a morte, apesar de poder se
interessar também por isto, visto ser esta uma possibi-
lidade. A meta do homem livre é a felicidade em vida; ou
seja, aquilo que a religião prometeu para depois da
morte e a ciência sugeriu que é impossível.
Não existindo um modelo pré-determinado de como se
deve ser e não havendo limites à liberdade humana a não
ser os idênticos direitos dos outros, cabe a cada um de
nós tratarmos de nos pesquisar ao máximo e descobrirmos,
de uma forma não preconceituosa, nossas características
instintivas e racionais. Quanto mais formos capazes de
nos conhecer, não como gostaríamos de ser, mas como
somos, mais seremos capazes de encontrar modos de
existir satisfatórios para nossos múltiplos, e às vezes
contraditórios, anseios. Não é impossível que muitos dos
aspectos apontados como antagonismos irre- conciliáveis
dentro do psiquismo humano não o sejam de fato, sendo
isto apenas um sinal de que ainda não fomos capazes de
entender completamente a condição humana e,
principalmente, não fomos capazes de analisá-la de uma
maneira livre das pretensões de transcendência e de
"bondade" próprias do pensamento religioso.
O homem livre sabe que tudo é possível, apesar de
que isto não pode significar a subestimação dos obstá-
culos e dificuldades próprias das grandes tarefas.
Buscar a felicidade do homem na terra é projeto
ambicioso e ainda não atingido; e isto não significa que
seja impossível; e nem a descoberta de obstáculos
aparentemente intransponíveis nos autoriza a uma atitude
pessimista e de desânimo. O próprio progresso da ciência
é exemplo claro de como uma nova concepção teórica pode
permitir a abertura de caminhos práticos insuspeitados.
Genericamente, o homem livre de modelos externos a
si mesmo buscará na sua natureza humana e na realização
de todas as suas tendências a harmonia interior
111
e a alegria de viver próprias do estado de
felicidade. Se reconhecer dentro de si tendências no
sentido de desrespeitar os direitos dos outros —
especialmente os de natureza agressiva — não creio que
se sentirá muito frustrado de ter que limitá-los,
reprimí-los; isto porque a repressão terá o aval da
razão, aparecerá como lógica e razoável. Creio que o
homem se ressente muito mais quando se vê forçado a
reprimir tendências que absolutamente não prejudicam aos
outros seres humanos, como é o caso da maioria dos
freios aos quais estamos sujeitos. E mais, este excesso
de repressões — mais repressão, termo bastante próprio
introduzido por H. Marcuse — determina, a meu ver, uma
irritação interior capaz de tornar o homem mais
agressivo, mais injusto e, portanto, anti- -social.
Do ponto de vista psicológico, será tanto mais
feliz o homem quanto mais ele for capaz de satisfazer as
necessidades e os desejos do corpo, bem como se alimen-
tar de gratificações de natureza racional. As
necessidades do corpo são de tipo material — comida,
vestuário, medicamentos em caso de doença, etc. — e quem
se ocupa de percebê-las e satisfazê-las na medida do
possível é a razão concreta. Os desejos do corpo são os
chamados instintos, o do amor e o sexual, cujos anseios
também chegam à razão concreta para serem realizados
através desta entidade psicológica que tem a função de
perceber e tentar satisfazer todas as necessidades e
desejos. A própria razão, através da componente
abstrata, cria seus dilemas e busca suas resoluções
através do que se pode chamar de curiosidade
intelectual; ou seja, a busca de explicações capazes de
atenuar o desconforto da dúvida. Os órgãos dos sentidos,
além de sua função de trazer à razão informações da
realidade externa, podem ser fonte de prazer estético,
como seria o caso da música para os ouvidos e da pintura
para os olhos — nestes casos a senso- -percepção
determina prazeres ligados à razão abstrata.
112
A sofisticação de necessidades físicas podem trazer
novos tipos de prazer, como é o caso de uma comida de
bom paladar ou uma roupa extravagante. Através do prazer
de se exibir, todas as funções humanas ganham uma co-
notação também sexual — porém, como já assinalei, não
exclusiva — e isto é mais um estímulo para o homem bus-
car novas formas de ser e de pensar.
Em resumo, a natureza do homem é curiosa e ainda
incompletamente compreendida. Ele busca a paz e a
harmonia através da ausência de desprazeres; e busca
também ativamente novos prazeres, coisa que o põe em mo-
vimento, e que às vezes gera alguns novos desprazeres,
que deverão ser resolvidos para que ele volte a experi-
mentar a harmonia. Não se trata de uma incompatibilidade
de tendências para a estagnação e para o movimento, mas
sim de um desejo de que os desequilíbrios sejam apenas
prazeirosos, o que talvez seja impossível. Cabe ao homem
tolerar certa dose de desprazer para poder usufruir ao
máximo de sua condição. Aliás, o primeiro e principal
desconforto deriva da dor do desamparo próprio dele se
reconhecer filho do Mistério, dor esta que tem que ser
suportada para que o homem atinja sua plenitude.
Seu único e fundamental limite é o direito dos ou-
tros homens. Além disso, cabe a cada um de nós fazer
valer os nossos direitos, de sorte que o sentimento de
culpa e o medo de represálias, bem como o eventual pra-
zer da renúncia, não podem ser argumento válido para o
indivíduo se deixar envolver e dominar.
O homem livre se percebe filho do Mistério, é dócil
em relação a isto, ao mesmo tempo que curioso e ativo em
relação à vida terrena. Reconhece que não somos todos
iguais e respeita as diferenças entre as pessoas, de
modo que não se atribui, em hipótese alguma, o papel
heróico de salvar os seus semelhantes — que não são
iguais. É homem justo, de modo que não se aproveita de
eventuais fraquezas dos outros para tirar vantagem, pois
sabe que com isto perde sua liberdade. Não se guia por
modelos pré-fabricados e se percebe como o autor de sua
113
própria história. Não pretende a transcendência e sim a
felicidade, de modo que trata de se conhecer da melhor
forma possível para realizar um modo de ser e de viver
compatível com a sua natureza. Vive em concordância com
o que acredita e influi sobre os seus semelhantes
através do exemplo pessoal; não teme abandonos e desa-
fetos, pois já se familiarizou com a dor original, que é
a do desamparo própria da condição humana. Não se
submete sem crítica a nenhuma doutrina e não se coloca
como criatura estática, aceitando rever suas próprias
posições a partir de novos dados obtidos da realidade ou
através da intuição; se encanta e se alegra com a pos-
sibilidade sempre presente de chegar a novos
conhecimentos e novas sínteses — que determinarão
alterações na sua maneira de viver — de modo que viver
passa a ser um processo extremamente atraente e cheio de
surpresas.
É fácil perceber como quase todos nós estamos dis-
tantes do tipo descrito em múltiplos aspectos, mas
principalmente em função do problema original que é a
dor do desamparo, para muitos de nós percebida como
insuportável. Como disse inicialmente, trata-se de um
tipo de vida que se pode atingir apenas através da
imaginação, ao menos por hora; na medida das forças de
cada um, pode haver a possibilidade de se aproximar
deste modo de ser na realidade, ao menos para aqueles
que reconhecem a idéia como atraente.
Fica claro também que o homem livre não será jamais
um tipo só, padronizado, e a sociedade que contiver o
homem livre terá que absorver e se resolver levando em
conta uma multiplicidade de modos de vida, todos coe-
xistindo em clima de respeito às opiniões e direitos uns
dos outros. Cada homem encontrará o seu caminho pessoal,
respeitando as regras criadas pelo grupo social, todas
elas ligadas ao princípio do respeito mútuo e das deci-
sões sujeitas à aprovação da maioria. Nenhuma outra
restrição deverá existir para ele.
114
Se um homem preferir uma vida material miserável em
favor de convicções pessoais ou do direito de dispor de
todo o seu tempo para o que desejará trabalhar o mínimo,
ele é livre para isso. Se desejar mais benefícios
materiais e estiver disposto a grandes desgastes no
trabalho para este fim, assim deverá proceder.
Aquele que julgar que as ligações amorosas estáveis
são um impecilho à liberdade individual e principalmente
ao livre exercício do desejo sexual — sentido como
prioritário — viverá só. O que acreditar que o homem se
resolve — e inclusive atenua a sensação de desamparo —
através do amor, viverá a dois em ligações sólidas ou
efêmeras. Os que preferirem ver o homem como mais capaz
de estabelecer múltiplas ligações de amizade e so-
lidariedade para fins práticos, e acreditarem que as
relações sexuais devem ser múltiplas, viverão em
comunidades.
Os que julgarem fundamental a perpetuação de suas
vidas através da reprodução terão filhos; outros optarão
por não tê-los. Uns serão homossexuais, outros hetero-
xessuais e outros bissexuais; e assim por diante. As
soluções mais sólidas e estáveis serão aquelas mais de
acordo com a natureza psicológica e biológica do homem e
serão encontradas e se perpetuarão naturalmente. Sempre
que o homem vive de uma maneira que o afasta de sua
natureza passa a experimentar a desagradável sensação de
desprazer, de modo a se poder supor que naturalmente ele
tenderá a buscar um equilíbrio mais adequado; e se isto
não acontece sempre é porque o homem — e as sociedades
que ele criou — não é livre.
7. O MEDO DA FELICIDADE
I
O homem livre, aquele que vive de acordo com suas
convicções e seus anseios, se aproxima da sensação sub-
jetiva de felicidade. É um estado no qual sente paz,
equilíbrio interior e alegria íntima derivado de ter
conseguido atingir os objetivos propostos. A experiência
mostra que é o encontro amoroso o evento capaz de mais
completamente levar o homem a experimentar a sensação de
felicidade; além disso, no amor ela é vivida como estado
mais estável e contínuo, isto quando as pessoas toleram
se sentir assim.
A prática mostra também que o atingimento de ob-
jetivos parciais nos quais uma pessoa se empenhou muito
determina sensação de felicidade similar, apesar de que
de duração mais efêmera. Assim, um indivíduo envolvido
com sua carreira profissional se sentirá feliz ao
atingir o destaque procurado; aquele que se dedica ao
sucesso financeiro sentirá a mesma emoção ao alcançar o
objetivo previsto; o jovem que for aprovado nos exames
para o ingresso na faculdade desejada se sentirá feliz;
assim ocorrerá quando ele ganhar o seu automóvel, o
mesmo se dando com um casal que conseguir construir a
casa dos seus sonhos, etc.
Em linhas gerais, a sensação de felicidade — paz
interior associada a um estado de alegria — surgirá
numa pessoa sempre que ela conseguir atingir, ainda que
momentaneamente, as metas a que se propôs. Qualquer
progresso, ainda que parcial, determina o sentimento;
ele será tanto mais intenso quando maior for a
evolução, quanto mais conduzir o indivíduo para as suas
metas finais, tanto em termos de pretensões subjetivas
como materiais. A sensação é máxima nos estados
amorosos de intensidade maior, o que vem a ser o
encontro de pessoas afins (vide "Falando de Amor" e "0
Instinto do Amor").
É a prática que, mais uma vez, nos mostra um fato
surpreendente e indiscutível: o atingimento do estado
de felicidade determina em todos os seres humanos o
surgimento de uma sensação desagradável de medo. A
sensação é difusa na maioria das vezes; o indivíduo
feliz se sente imediatamente ameaçado, não sabendo nem
explicar esta sensação e nem qual é a ameaça efetiva.
Tenderá a localizar o medo em alguma coisa, conforme as
circunstâncias de sua vida: se perceberá ameaçado de
perder posição profissional, de perder a saúde, de
perder algum ente amado por morte, de perder o afeto do
cônjuge, etc. Na verdade creio que as pessoas preferem
concentrar o medo em algo aparentemente mais concreto
do que experimentá-lo como sensação difusa e
inexplicável.
É este temor que surge nas pessoas — e insisto no
fato de que isto é universal — quando se sentem felizes
que explica expressões como: "a situação está boa de-
mais"; "estou morrendo de felicidade", etc. Também se
explicam em função da existência do medo associado à
felicidade os rituais de proteção, de natureza
supersticiosa, próprios para a finalidade de afastar a
possibilidade —
118
ao que parece sentida como muito maior — de coisas
ruins virem a acontecer. A idéia que governa a todos
nós é de que a felicidade atrai a desgraça, de que não
é possível que ela dure longo tempo. É como se
existisse claramente presente a idéia de que deverá
existir um certo equilíbrio entre eventos alegres e
tristes; se existe uma momentânea sobrecarga de coisas
positivas, será inevitável que as desgraças venham em
quantidade proporcional, com a finalidade de equilibrar
a balança. Desta maneira, as coisas favoráveis são
recebidas com alegria e também com temor, pois elas
seriam sempre o prenúncio de tragédias; e isto dentro
do princípio de que a felicidade do homem na terra é
impossível, conforme os pensamentos religiosos de maior
influência sobre nós.
Se é verdadeira a tese que venho defendendo neste
livro, de que Deus não se revelou aos homens e que es-
tes é que o pressentiram e trataram de imaginar Suas
propriedades e Sua vontade, não é impossível que a
idéia de transferir a felicidade para depois da morte
tenha sido criada em decorrência da percepção dos
homens mais inteligentes de que existe um freio humano
— o medo — que surge quando alguém se aproxima deste
estado. É como se tivessem constatado a existência de
um limite superior para o ser humano, cuja aproximação
gera uma sensação de pânico intransponível; e tal
percepção justificaria a idéia de que a vida terrena
seria para ser vivida dentro de um equilíbrio de
alegrias e tristezas, sendo impossível ao homem
experimentar a felicidade sem um medo insuportável; e
tal constatação passaria a ser mais um dos desígnios de
Deus em relação ao homem, que teria que se contentar
com uma vida limitada.
Por vontade de Deus ou por qualquer outra razão, o
fato é que existe no homem um brutal medo da feli-
cidade, imediatamente associada a alguma tragédia, mais
concretamente à morte. E a associação de felicidade com
morte é o tema fundamental do romance de amor, emoção
119
que — conforme já afirmei — é capaz de conduzir o homem
à sensação máxima de felicidade. O medo do amor,
presente em quase todas as pessoas, não é mais do que
um caso particular do medo da felicidade (vide "O
Instinto do Amor").
Não é difícil perceber que o medo da felicidade —
um elemento universal — determina inevitavelmente a
vida das pessoas no sentido de afastá-las deste estado.
A ameaça aumentada de eventos trágicos é sempre perce-
bida como exterior: ou será a inveja das pessoas o
ingrediente capaz de perturbar a alegria conquistada, e
este é o aspecto valorizado por certas religiões de
grande influência no Brasil, ou será algum processo
mágico ligado a uma lei da vida ou de Deus o
determinante da interrupção do estado atingido. As
pessoas não percebem claramente a possibilidade de que
elas próprias, em função de temores de desgraças
maiores, sejam capazes de criar as condições para uma
atenuação da felicidade e, por conseqüência, do medo da
felicidade. É bastante fácil perceber que as pessoas,
quando estão bem, superdimensionam qualquer evento
negativo que surja, de modo a usarem isto como fator
capaz de equilibrá-las num estado de menor felicidade,
porém, sem tanto medo. Também é comum que as pessoas
fabriquem pequenos problemas, na maioria das vezes de
modo desproporcional às suas inteligências, com a
finalidade de compor sua cota de tristeza capaz de
equilibrar a felicidade sentida como ameaçadora.
Como regra geral, pode-se afirmar que o atingimen-
to do estado de felicidade determina uma sensação sub-
jetiva de medo e uma tendência — nascida dentro do pró-
prio indivíduo — para a criação de sensações ou situa-
ções destruidoras do estado conquistado. Assim se ex-
plicam, a meu ver, as chamadas tendências auto-destru-
tivas do homem, e que na realidade são apenas fórmulas
— rituais — de proteção contra a desgraça maior li-
120gada à felicidade, que seria a morte. A pessoa feliz
pode desenvolver um estadohipocondríaco, o que será
suficiente para determinar a perda de todaa
serenidade e
alegria de viver; poderá se tornar implicante com peque-
nas coisas do cotidiano e viver eternamente amargurado;
poderá criar atritos com as pessoas que mais ama e se
sentir frustrado quanto a esta emoção; e assim por dian
te.
Também acredito ser possível fazer a generalização
seguinte: o tipo humano adulto egoísta — narcisista — se
apavora com a felicidade mais rapidamente do que o
generoso. E isto por razões várias, sendo que a mais ob-
servável é o fato do generoso experimentar nas renúncias
sucessivas uma sensação de engrandecimento pessoal e
também um sofrimento que lhe autoriza uma certa cota de
alegrias. O egoísta, já privilegiado em decorrência de
sua atitude, vive continuamente a sensação de estar para
além de sua cota de alegrias e desenvolverá mais preco-
cemente as tendências auto-destrutivas próprias do medo
da felicidade. Desta forma, o egoísta teria um limite
mais baixo para o seu desenvolvimento pessoal também por
esta razão; abandona projetos de todos os tipos —
ligados ao aprimoramento pessoal, profissional,
material, etc. — tanto por temor do fracasso como do
sucesso.
De uma maneira simplista, pode-se pensar que não é
tão difícil e nem tão complexo o atingimento do estado
de felicidade. Uma pessoa que tenha saúde física, que
não tenha dificuldades materiais básicas, que se ligue
afetivamente a outra pessoa semelhante em temperamento e
anseios e que tenha prazer nas atividades intelectuais
ligadas ao trabalho e em outras escolhidas livremente
para as horas de lazer estaria muito próxima da
felicidade. E nenhum destes ingredientes é tão difícil
de se obter, bem como não é difícil a existência de
todos eles, ao menos para os 10% de pessoas que não
tenham grandes problemas ligados à sobrevivência
121
material; mas a prática nos mostra que as pessoas em
geral não são felizes.
122 A maior parte daqueles que resolvem o problema da
sobrevivência material se perdem na questão sentimental,
estabelecendo vínculos por diferença de temperamentos e
anseios, o que obviamente tenderá a determinar atritos e
frustrações recíprocas. E a própria cultura sugere que
este é o tipo de ligação amorosa ideal, o que vale dizer
que os homens são induzidos a caminhos definitivamente
ilógicos, com a finalidade de se afastarem da
felicidade. A própria supervalorização das riquezas
materiais é outra indução na direção oposta da felicida-
de, posto que o dinheiro, para além de um certo limite
determina mais preocupações e limitações do que bene-
fícios para a pessoa. O desenvolvimento do modo de vida
contemporâneo tem se dado de uma forma insalubre,
criando hábitos sedentários, dietas inconvenientes,
etc., de modo a afastar o homem do bem estar físico.
Estes exemplos são suficientes para mostrar que os
homens — e suas sociedades — tendem a caminhar numa
direção oposta àquela que os conduziria à felicidade. É
evidente que este desvio de rota não é percebido e que
as pessoas acreditam estar indo na direção certa; porém,
muitos são aqueles que percebem, no meio de suas vidas,
os equívocos. Quantos não foram iludidos pela idéia de
que a fortuna lhes traria a felicidade sonhada?
Estamos diante do impasse fundamental: felicidade
versus medo da felicidade. Diante disto, todo o resto é
detalhe, é caso particular. Na medida em que se constata
que o homem não suporta a felicidade, pois isto lhe
determina o surgimento do medo da morte, não se pode
supor que nenhuma fórmula seja capaz de viabilizar, na
prática, condições sociais mais justas e gratificantes.
Não se pode cogitar da criação de condições psicológicas
para a existência do homem livre, contente consigo mesmo
e justo para com os outros. Nada dará certo enquanto não
se resolver o impasse primeiro; toda a criação positiva
do homem trará consigo obrigatoriamente o elemento auto-
destrutivo, neutralizador — ao menos em parte — do
benefício conseguido. E isto será verdadeiro para cada
123
um de nós e também para as sociedades que criamos. Todo
"bem" trará consigo o "mal"; todo o progresso técnico
terá uma contrapartida destrutiva; toda sociedade mais
justa terá uma população mais deprimida e altos índices
de alcoolismo e outras toxicomanias. Todo o progresso
humano trará consigo o germe de sua própria destruição.
Não deixa de ser surpreendente e absolutamente
perturbador quando nos apercebemos da existência de um
limite superior para o ser humano. Não é difícil
compreender, em função disto, o pessimismo da maioria
dos pensadores acerca das possibilidades dos homens na
terra e a transferência para depois da morte da questão
da felicidade. O homem terá que se reconhecer filho de
um Mistério e, mais ainda, impedido de ser feliz. Se
Deus é o criador, tal impedimento será Sua vondade. Se
a origem da vida é um Mistério estamos autorizados a
pesquisar mais, no sentido de aclararmos eventuais
razões psicológicas capazes de justificar esta
associação absoluta de felicidade com morte presente em
todos nós. O encontro de explicações convincentes não
implica em solução do impasse, ao menos imediatamente;
porém, abre uma perspectiva otimista, há muito perdida,
para a vida terrena, ainda que não se deva subestimar
as dificuldades a serem, lentamente, vencidas.
Não creio que exista nenhum problema psicológico
mais fundamental do que este, da mesma forma que não
acredito que se possam resolver as questões sociais
enquanto não se conseguir avanços neste campo. Não vejo
este impasse como definitivo, do mesmo modo como não
vejo como definitiva nenhuma questão humana, pois o
filho do Mistério não tem elementos para ver nada desta
maneira. As observações que farei em seguida são o
pecialmente para aqueles capazes de acreditar nisto e
que, segundo creio, seriam os que estão internamente
mais predispostos a abrir mão do estado de bem-estar
alcançado porque estão muito assustados. Da mesma for-
ma, não é possível saber se existe um malefício vindo
128
de fora ou se a própria pessoa age destrutivamente
contra si mesma com a finalidade de atenuar o medo da
inveja, que é o mesmo medo da felicidade. Parece-me
impossível responder, por hora, a todas estas questões
com certeza, mas sou tentado a acreditar que toda a
ação destrutiva é gerada dentro da própria pessoa,
sendo o temor da inveja apenas um componente mais
observável da ameaça que paira para os que estão
felizes. O quanto mecanismos deste tipo podem estar em
correlação com o surgimento de doenças na própria
pessoa é assunto que creio valer a pena ser melhor
estudado.
O que de essencial está por trás do medo da inveja
é que forças externas poderiam impulsionar o invejado
na direção da morte. E é este o grande medo do homem
feliz; a sensação da iminência de sua morte ou a de al-
guém que lhe seja muito especial. Para podermos con-
tinuar buscando as origens do medo da felicidade, tere-
mos obrigatoriamente que tentar entender um pouco mais
da questão da morte, e principalmente do medo da morte.
Já disse que o homem compõe uma vida prática a mais
conturbada possível com a finalidade de se distrair das
questões metafísicas, capazes de provocar grande
sofrimento. E isto é tanto mais verdadeiro quanto mais
inteligente for o indivíduo, mais capaz de fazer per-
guntas perturbadoras. O único evento da vida adulta que
expõe o indivíduo, devidamente distraído pela prática,
às questões das quais ele foge é a morte de alguém ou o
temor de sua própria morte; e é comum que o indivíduo
se reconheça mortal apenas quando chega a sentir algum
mal-estar físico mais significativo, orgânico ou de
natureza psicológica.
As pessoas evitam pensar na questão da morte, do
mesmo modo que evitam as dúvidas acerca da origem da
vida, posto que se trata do mesmo problema, apenas
visto do ângulo de "para onde vamos?" ao invés de "de
onde viemos?". Apesar de se saberem mortais, tratam de
125
viver de modo a não cogitarem deste fato, o que terá
que conduzir a óbvios equívocos, pois se está fugindo
da verdade. O pensar sobre a própria morte provoca ime-
diata sensação de pânico, de modo que é automático o
desvio da atenção para outro assunto.
Parece-me bastante claro que são dois os problemas:
o medo da morte e a morte propriamente dita. Isto por-
que a morte é um acontecimento que não deveria provocar
medo. Se se considera mais provável a hipótese ma-
terialista de que a morte é o fim, não há razão para
temê- -la pois ela implica na parada do processo de
pensar e, portanto, na possibilidade de haver qualquer
tipo de sofrimento e consciência. A própria condição de
iminência de morte não deve ser dolorosa, pois o
psiquismo é portador de mecanismos adaptativos — de
defesa — capazes de atenuar todos os grandes golpes.
Se considerarmos como mais provável a hipótese de
que existe um Criador, a vida não se extingue com a
morte; esta seria apenas uma passagem para um outro
estágio, uma outra forma de existência. Seria difícil
supor, ao menos para a maioria das pessoas, que esta
transição fosse para pior, de modo que outra vez não
faz muito sentido o pavor da morte, especialmente para
aqueles que levam uma vida infeliz.
A experiência nos mostra que o medo da morte exis
te tanto nas pessoas de convicção religiosa como nas
materialistas. Não creio que essa sensação tenha
relação com o desconhecido, pois não acredito que as
pessoas todas se vejam intimidadas pelas coisas que não
conhecem. A morte por sí, não deveria provocar pânico,
a não ser que esta idéia esteja associada a algum outro
evento ou ex-
126
fruto de reflexões recentes, associados à vivência
codi- diana com os meus pacientes e comigo mesmo.
I I
A primeira série de pensamentos que tomam corpo
nas pessoas que estão momentaneamente — ou mais
solidamente — felizes é relacionada com sentimentos de
culpa e temor da inveja dos outros, o que seria uma
forma de represália. Estes pensamentos refletem de modo
claro o surgimento do medo associado à sensação de fe-
licidade; a ameaça difusa assume alguma coerência ló-
gica através deste tipo de formulação. O sentimento de
culpa é próprio das pessoas mais maduras e fácil de ser
entendido: o homem feliz se coloca no lugar dos mais
desgraçados e imagina a tristeza que eles estejam
sentin-- do em virtude de sua condição. Só este processo
já é capaz de subtrair uma boa parte de sua alegria e
não é impossível que esteja a serviço disto. Surge a
intenção de ajudar os menos favorecidos, o que poderá
vir a reforçar tendências heróicas derivadas do anseio
de dar sentido à sua vida, e cujo tema já expus
anteriormente. Além do mais, o privilégio aparece como
fútil e empobrecedor, de modo a reforçar a tendência
acima. Os sentimentos de culpa são mais intensos quando
se voltam para pessoas mais ligadas ao que está feliz,
como seria o caso, por exemplo, do sucesso material
maior obtido por um membro de uma família pobre.
É desnecessário demonstrar que o sentimento de
culpa é, como regra, injustificado, pois o sucesso das
pessoas não se faz obrigatoriamente em função de se
estar impondo prejuízos àqueles nos quais o sentimento
surge com maior intensidade; se este fosse o caso, o
127
sentimento seria justificado; mas são as pessoas
capazes de tais atitudes aquelas que não possuem
sentimentos de culpa, cuja existência impediria a
consecução dos seus propósitos. A sensação é difusa e
apenas existe com a finalidade de empobrecer a alegria
da felicidade e tirar dela validade moral.
Associado a ele, ou existindo isoladamente, toma
corpo obrigatoriamente o temor da inveja das outras
pessoas. Se o sentimento de culpa é próprio das pessoas
mais generosas, o medo da destrutividade da inveja é
universal. A inveja corresponde, de fato, ao surgimento
de um ódio gratuito; ou seja, um desejo agressivo em
relação a pessoas contra as quais objetivamente não se
tem nenhuma queixa. É o sentimento que os menos
favorecidos pela vida sentem pelos privilegiados em
geral, e em particular por aqueles sucedidos nas áreas
mais valorizadas pelo que sente a inveja.
0 invejoso deseja, de fato, que tudo de negativo
ocorra para o invejado. Este, por sua vez, ao tomar
consciência da existência deste sentimento, entra em
pânico, pois isto encontra eco subjetivo no pavor que
ele próprio já estava sentindo. Aparece então a
correlação fácil: a ameaça ao estado agradável atingido
vem de fora, vem daqueles que, com inveja, sonham com a
sua ruína. E mesmo pessoas pouco familiarizadas com o
pensamento mágico são capazes de supor que tal desejo
destrutivo tenha o poder de determinar estragos. Surgem
imediatamente os rituais de proteção contra a inveja.
A experiência de vida mostra a todos nós, exemplos
de pessoas que, estando muito felizes, logo a seguir
foram acometidas de graves tragédias, quais sejam a
morte de um filho, uma doença incurável, etc. Não é
possível saber se se trata apenas de coincidência — uma
vez que as tragédias existem também para as pessoas
infelizes — ou se, de fato, a inveja tem poderes
nocivos, es- periência vital. Conforme acredito, a
morte é capaz de provocar sensação profunda de
tristeza, tanto para o que se percebe partindo como
128para os que aqui ficam. Mas tristeza e medo são emoções
bastante diferentes e a maioria das pessoas pensa na
morte com tamanho pavor que talvez nem cheguem a
perceber a emoção verdadeira, que é a de tristeza;
talvez só percebam a tristeza quando são obrigados a se
expor ao acontecimento, situação em que o medo tende a
se desfazer.
Para aqueles que estão mais felizes é evidente que
a idéia da morte é percebida como muito triste, pois im-
plicaria na renúncia da situação agradável, do usufruto
dos prazeres do corpo. Para aqueles que estão mais infe-
lizes a ideía da morte aparece como menos triste, ao me-
nos com relação a este aspecto.
Talvez o aspecto mais dramático e doloroso asso-
ciado à idéia da morte seja relacionado com a ruptura de
vínculos afetivos. A morte afasta, ao menos do ponto de
vista dos vivos, os pais dos seus filhos, os homens de
suas mulheres. Morrer significa se separar daqueles a
quem se ama, o que é vivência profundamente triste. Ver
morrer alguém a quem se ama é a mesma experiência
dolorosa que existe ao se imaginar a própria morte. É a
separação, a ruptura de vínculos que dão sentido à
existência de uma forma que nada mais é capaz de dar. É minha convicção que a questão da morte, do ponto de
vista psicológico, não se distingue da persistente
temática humana ligada ao desamparo de se sentir só e
aos esforços instintivos para recuperar ligações sólidas
com outros seres humanos. As perdas amorosas entre
adultos — não determinados pela morte — representam um
tipo de sofrimento similar ao experimentado quando se
perde o convívio com uma pessoa querida em virtude de
sua morte. E não é impossível que a morte nos pareça —
aos que ficamos vivos — como um estado extremamente
solitário, desamparado e triste. O indivíduo morre e é
enterrado só, abandonado; apenas as crianças costumam
verbalizar a condição de morte desta forma, pois não
possuem o aglomerado de racionalizações e sofisticações
que nós dispomos, com a finalidade de nos enganarmos e,
129
eventualmente, nos afastarmos dos problemas básicos.
Insisto no fato de que a morte é evento triste, mas
não capaz de provocar medo. É triste pela perda da con-
dição conhecida de vida terrena quando esta é
agradável, de modo que é lógico supor que as pessoas
mais felizes imaginem suas mortes como coisa mais
dolorosa. Porém a idéia de que a felicidade traz
maiores probabilidades — senão certeza — de que
aconteçam desgraças não tem fundamento na realidade
objetiva. Também não fica explicado o medo da morte nas
pessoas em geral e o aumento da intensidade desta
sensação nas pessoas mais felizes. É bem provável que
exista uma tendência em todos nós de associarmos a
morte a alguma outra experiência vital; e isto me
parece tanto mais provável quanto mais se entender a
dor da morte como relacionada com as rupturas de
ligações afetivas e afastamento de pessoas que se amam,
o que provoca tristeza e a sensação dolorosa de desam-
paro da qual a maioria das pessoas tratam de fugir con-
tinuamente.
I I I
É minha convicção de que a idéia da morte durante a
vida adulta está francamente comprometida com a forma
confusa e insuficiente pela qual o cérebro humano
registrou o nascimento de cada um de nós. A vida é o
intervalo entre estes dois eventos críticos, ambos
cercados de mistério e incompreensão; o nascimento e a
morte são duas passagens, duas mudanças, e não é
difícil supor que sensações ligadas à primeira sejam
supostas como próprias da segunda. Não temos elementos
concretos para fazer afirmações sobre o assunto, pois
não existem nos adultos reminiscências ligadas ao
130nascimento; porém existem alguns sonhos, presentes
desde os 4 anos de idade, sugestivos de que o cérebro
humano registra, de forma não verbal e sem clareza, os
últimos tempos da vida uterina e a violência do nascer.
Um dos sonhos característicos é ligado ao desejo —
ou medo — da criança de ser engolida por outra pessoa
ou animal. Outras vezes uma pessoa sonha estar em um
ambiente familiar e agradável — sua casa, por exemplo —
e se vê empurrada para fora por uma força estranha. O
elemento mais sugestivo de reminiscências ligadas à
situação uterina é o desejo intenso das pessoas que se
amam de engolir uma à outra, desejo este claramente
consciente e relacionado com a angústia de ver fora de
si uma criatura tão vital, como é percebido o amado.
Também curioso é o fato de que as pessoas que se amam
se tratem como se fossem dois bebês, usando todas as
palavras no diminutivo e fazendo carinhos próprios
daqueles que se fazem aos récem-nascidos.
As evidências são indiretas e insuficientes do
ponto de vista mais científico e rigosoro. Porém, cada
vez mais tenho a impressão de que o nascer é o evento
mais crítico da história do homem. Apesar da alegria
dos adultos envolvidos — inversamente do que ocorre
quando alguém morre — acredito que a criança
experimenta esta passagem como extremamente dolorosa e
desagradável. É a circunstância em que ela fica exposta
a desequilíbrios homeostáticos extremamente mais
dramáticos do que aqueles que eventualmente
experimentou enquanto feto. Comparado com o ato mesmo
de nascer, e também com a vida como se segue, creio que
a condição uterina é percebida como paradisíaca, como
ótima.
131
Assim, acredito que a criança registra sua condição
uterina de razoável homeostase como primeira sensação.
E a segunda, em correlação imediata com esta, é a ter-
rível experiência de nascer. Ou seja, se compõe uma es-
pécie de vivência que conecta intimamente estas duas
sensações: homeostase seguida de ruptura brusca e dolo-
rosa. E é possível que esta seja a experiência primeira
de todos nós, da qual jamais nos livramos
completamente. Cada vez que nos aproximamos da sensação
de felicidade em fases posteriores da vida — o que
eqüivale à homeostase para o feto — imediatamente temos
a impressão de que estamos em ameaça, pois homeostase
está associada à idéia de que ela será rompida e de
modo dramático.
É possível que a criança experimente forte sensação
de medo diante do fenômeno do nascimento. E este medo
surge nos adultos sempre que ele se aproxima da
sensação de felicidade. E o temor, difuso e inexpli-
cado, é entendido como prenúncio de perda deste estado,
o que agora terá que ser associado à idéia de morte. Ou
seja, fica transferida para a morte — outra passagem -
o pânico experimentado pela criança ao nascer. Como já
disse, não me parece razoável o medo da morte, pois só
posso relacionar este evento com tristeza; ele é uma
projeção para esta passagem do medo experimentado
durante o evento do nascimento.
Não é impossível que tudo aquilo que imaginemos
relacionado com a situação de morte tenha a ver com
reminiscências difusas do nascimento. Talvez a morte
seja uma passagem bastante mais doce e mais fácil do
que tendemos a supor, posto que nossa razão pode estar
colocando nela propriedades experimentadas na condição
dolorosa do nascer. A própria forma como imaginamos
ser, do ponto de vista religioso, a passagem desta vida
para outra pode estar em relação com o fenômeno do nas-
cimento. Sempre vale insistir que isto não significa
afirmar a inexistência de vida após a morte, mas sim
132que a supomos conforme nossas vivências anteriores.
Em síntese: a vivência primeira do homem é do tipo
harmônico — ou quase — ligada à situação uterina; a esta
se associa a noção de ruptura dramática e cheia de medo,
que é o nascimento. Tal associação persiste durante a
vida adulta, sem que haja consciência de sua origem; em
vista disto, sempre que o homem experimente um estado de
felicidade vê crescer nele um desconforto difuso, ao
qual ele atribui a significação de ser prenúncio de
alguma desgraça, algo que venha destruir a alegria con-
quistada. O evento desastroso e capaz de interromper o
estado de felicidade é entendido como sendo a morte, que
passa a determinar no homem um medo, por sí, in-
justificado.
O adulto teme sua morte ou a dos que lhe são caros
e se sente tanto mais ameaçado por ela quanto mais feliz
estiver se sentindo. Este fenômeno é geral, só se tor-
nando mais evidente ou mais próximo para os que estão
bem. O pavor ligado ao evento do nascimento, corresponde
ao medo da felicidade, fenômeno universal por estar em
estreita ligação com uma experiência própria de todos
nós. O clareamento desta correlação — e sua ul- terior
confirmação através de dados mais concludentes — poderá
lançar grande luz no impasse humano fundamental, de
sorte a podermos supor que os homens sejam capazes de
dar mais um passo adiante no sentido de encontrar mais
harmonia na vida terrena.
Outro fenômeno da psicologia humana descrito como
universal é o sentimento de inferioridade. E não é
impossível que ele também esteja em correlação com o
nascer. Não é difícil supor que o nascimento seja vi-
venciado como situação de medo, mas também como profunda
rejeição. A criança é expulsa do útero, colocada fora em
situação bastante mais complexa e pior. Experimenta a
sensação de insegurança, própria do que tenho chamado de
desamparo, pela primeira vez, ainda que sem nenhum tipo
de consciência clara, como pode ocorrer aos 8-9 anos de
idade. Só encontra alívio para esta sensação quando está
133
se sentindo bem e, principalmente, quando se aproxima
fisicamente da mãe, situação a mais próxima possível
daquela que foi perdida com o nascimento.
Há evidências de que a criança, durante os primei-
ros anos de vida, correlaciona o ter nascido com alguma
característica negativa que possua; é como se tivesse
sido expulsa do útero por não possuir todas as
qualidades desejadas pela mãe. E isto é tanto mais
verdadeiro quanto mais inteligentes sejam as crianças,
situação na qual têm mais habilidade para correlacionar
eventos, ainda que de uma maneira falsa. Assim, um
menino pode concluir que foi rejeitado pela mãe em
virtude de ser muito pequeno, ter nariz grande, etc., de
modo a compor um sentimento claro de inferioridade desde
muito cedo; na realidade estes exemplos sugerem algum
tipo de consciência deles de que o nascimento foi vivido
como rejeição; e creio que esta é a vivência de todos,
só mais evidente nos mais inteligentes por causa do tipo
de correlação que fazem e em idade muito precoce.
Se o nascer é vivido como rejeição e em correlação
com o se sentir pouco digno de permanecer na simbiose
uterina, fica evidente a constituição de um sentimento
de inferioridade em todos nós; tal sensação poderá ser
agravada ou atenuada em função dos eventos posteriores
da vida, do tipo de vivência familiar e social que
experimentarmos. Porém, em algum grau estará presente em
cada um de nós, expulsos do paraiso por contermos alguma
característica negativa.
A atitude da criança é, até certo ponto, uma briga
contra o fato de ter nascido. Ela precisa ser fortemente
estimulada para todas as atividades pessoais, só encon-
trando prazer espontâneo no convívio com a mãe — além do
prazer auto-erótico de natureza sexual derivado da
estimulação das zonas erógenas. Com o desenvolvimento da
razão ela passa a se interessa pelos fenômenos da vida,
sem contudo perder o desejo de se sentir em paz através
do aconchego físico • com a mãe.
Pode-se dizer que o amor, como instinto, corres-
134ponde à manifestação de inconformismo do ser humano
contra o fato de ter nascido, de ter sido obrigado a
romper a relação dual original. É o desejo persistente
de refazer a sensação própria da simbiose uterina,
sensação de paz e harmonia; é o desejo de negar o fato
de ter nascido e talvez, em virtude do que disse antes,
porisso tenha sido tão claramente relacionado com a
morte. Em outras palavras, não creio que o homem busque
a morte, conforme supunha Freud; acho que o homem não
se conforma de ter nascido e o desejo de recuperar uma
relação a dois — o amor — é a manifestação disto. Aqui
outra vez existe confusão acerca das duas passagens
fundamentais, de modo a se colocar na morte
características próprias do nascimento; talvez isto
ajude a compreender a razão pela qual prefiro entender
a busca de harmonia no ser humano como instinto do
amor, em substituição à idéia de Freud de instinto de
morte. Além disso, tal modificação de conceitos é
fundamental e básica, pois implica na alteração de
todas as perspectivas para o homem; implica na passagem
de uma atitude pessimista e sem esperanças para uma
proposição em que se pode imaginar soluções mais
positivas e capazes de aproximar o homem da felicidade
em vida.
Na medida em que a criança cresce e se reconhece
só, experimenta a sensação de desamparo; não suportando
esta vivência dolorosa se afasta do caminho da liber-
dade e trata de agir de modo a permanecer vinculada às
figuras familiares e depois conforme as regras do meio
social. E isto significa que, por não suportarmos o
desamparo, não conseguimos nos colocar como criaturas
inteiras e livres.
135
A contrapartida adulta da solidão seria o encontro
amoroso. Porém, quando este é bem sucedido, corresponde
à aproximação máxima do paraiso perdido com o
nascimento. Não é por acaso, portanto, que o medo da
morte associado ao amor seja também máximo, de tal forma
que as pessoas são obrigadas a renunciar a esta sensação
tão ansiada. Tem restado ao homem apenas a possibilidade
de sonhar com o amor, sendo sua vivência proibida pela
idéia de morte que se associa imediatamente à felicidade
assim atingida.
Desta forma as pessoas se vêem limitadas nas duas
perspectivas básicas, que são o desejo da liberdade —
felicidade individual — e o de recuperar a plenitude
perdida com o nascimento através de ligações amorosas
intensas. A liberdade é limitada pelo medo do desamparo
e também pelo medo da felicidade, ao passo que o encon-
tro amoroso determina a máxima intensidade deste último.
E, de certa forma, todos nós temos chegado até a este
ponto, que se resolve de uma maneira curiosa através de
ligações afetivas precárias. Estas atenuam a dor do
desamparo, e também servem como vínculos amorosos
medíocres e frustradores de modo que não determinam o
bem estar próprio desta emoção, o que significa que não
fazem surgir o medo da felicidade e, por conseqüência, o
medo da morte. Ligações afetivas deste tipo correspondem
a uma espécie de saída de compromisso, na qual o ser
humano se vê minimamente gratificado em seus anseios e
não se vê ameaçado pela felicidade. Não é preciso muito
esforço para se perceber também que as ligações desta
natureza determinam uma importante limitação à liberdade
humana, pois o usual é que as pessoas envolvidas gastem
grande parte de sua energia a criticar e restringir o
desenvolvimento do outro. E, na medida em que isto é
aceito, fica claro que é o que os indivíduos desejam, em
virtude de não suportarem os temores ligados a situações
melhores.
0 medo da liberdade e o medo da felicidade têm sido
136os claros limitadores da evolução do homem e de suas
sociedades. O entendimento de suas características abre
importantes perspectivas novas, desde que se esteja com
coragem para enfrentar e tentar superar estes limites.
As observações que fiz neste trabalho me levam a
tomar o nascimento como a mais dramática variável da
constituição psicológica do ser humano. A dor do parto
tem sido observada apenas do ponto de vista da mulher;
porém, para a criança a condição é, provavelmente, vi-
vida como um estado de pânico, além de envolver dores e
sensações novas absolutamente desagradáveis. Não é
difícil perceber a expressão de terror própria da crian-
ça na hora do seu nascimento. Qualquer que seja o tipo
de desconforto experimentado durante os meses de vida
uterina, esta condição se altera bruscamente para pior a
partir da ruptura da bolsa e início do trabalho de
parto. Não há como provar se existe registro e memória
destes eventos, a não ser através de evidências disto
nos processos psíquicos da vida adulta.
As características do homem que mais sugerem a
existência de algum tipo de registro dramático deste
acontecimento primeiro são o sentimento de inferioridade
c o medo da felicidade. Estas são propriedades
universais, de modo que não podem estar em correlação
com as circunstâncias da vida infantil e de condições
posteriores
da vida; se assim .fosse, alguma proporção de
pessoas não deveria possuir tais características; estas
seriam as que foram criadas segundo o modo mais correto
de educação, modo este que não pode ser descrito
justamente porque todas as diferentes condutas
pedagógicas determinam resultados bastante similares,
ao menos quanto a estes aspectos da personalidade.
Características universais devem estar
forçosamente em relação com vivências próprias de todos
os seres humanos. Assim, o nascimento como dolorosa
ruptura do vínculo original é uma hipótese bastante
provável para explicar o sentimento de inferioridade e
o medo da felicidade. Além do mais, tais elementos são
bastante sólidos dentro da constituição psíquica das
pessoas, sendo muito difícil se conseguir progressos em
relação à auto- -avaliação e à capacidade de tirar
prazer da vida mesmo nas pessoas que têm todas as
condições objetivas favoráveis e indicativas de um bom
nível de desenvolvimento emocional, profissional,
social, etc.
Crianças mais inteligentes mostram sinais próprios
do sentimento de inferioridade — se acharem menos dig-
nas de afeto por parte dos adultos e de outras crianças
em virtude de alguma característica física destoante do
usual, como exemplo mais comum — desde os 3-4 anos de
idade. Desde modo, a sensação negativa a respeito de si
mesmo se compõe antes dos difíceis eventos afetivos
próprios do período edipiano, de sorte que não se pode
atribuir a estes a gênese de tais dificuldades. E não
existem condições anteriores capazes de explicar o sen-
timento de inferioridade, bem como os pretextos
justifi- cadores da sensação não são significativos. De
fato, a melhor hipótese que me ocorre é que a criança
vivência — ainda que sem registro sob a forma de
linguagem, e porisso mesmo de uma maneira difusa e
nebulosa — o nascer como rejeição e trata de entender
138que foi rejeitada por não ser digna de permanecer
vinculada à mãe; ain-
da que se trate de uma correlação falsa, e que a
própria criança entenda depois que o nascer era
inevitável, sobra a sensação, que nos acompanha por
toda a vida.
Colocadas as coisas nestes temos, não deixa de ser
surpreendente perceber que o homem nasce já marcado, e
de uma maneira negativa. Não é um livro em branco onde
serão registradas suas experiências e reflexões fu-
turas. O próprio nascimento já corresponde aos primei-
ros e mais profundos registros, que são capazes de fal-
sear e deturpar as vivências que se seguirão. E quanto
mais o homem se mantiver ignorante a respeito destes
aspectos — como o foi até hoje — maior será sua
influência posterior.
O homem nasce através de uma vivência dramática;
experimenta a sensação de existir com independência
como algo que ocorreu contra a sua vontade e cheio de
desconfortos; completamente dependente dos cuidados da
mãe, não pode deixar de se sentir desamparado, des-
protegido. Cresce e se torna cada vez mais consciente
de sua condição através da razão, propriedade
característica da espécie. Capaz de refletir, se vê
perplexo diante do mundo que o cerca. Ao mesmo tempo
que é capaz de compreender melhor as condições
específicas de seu nascimento e a inevitabilidade deste
evento, vai percebendo que não existem respostas claras
para o problema maior que é a existência da vida, da
terra, das estrelas e do universo. O problema do seu
nascimento se torna ínfimo diante desta questão maior.
E se já havia feito progressos no sentido de atenuar a
sensação de desamparo original através do
desenvolvimento pessoal no sentido de se tornar mais
independente e também através do estabelecimento dos
vínculos afetivos, esta toma corpo de novo em função
139
das dúvidas maiores. E tais dúvidas de natureza
metafísica serão tanto mais dolorosas quanto mais
inteligentes forem as pessoas; elas aparecem desde os
6-7 anos de idade em muitas crianças e são máximas
pelos 13-14 anos de idade, depois do que a vida prática
toma conta da maior parte do tempo e da energia
racional.
O homem — e o seu sentimento de inferioridade —
tem no desamparo a sensação mais dolorosa e sofrida. E
este é ligado tanto a aspectos da vida pessoal como,
através da reflexão, ao problema geral da origem do
mundo e da vida. Aqueles que suportam mal o sofrimento
e as frustrações — e devem existir variações inatas
quanto a esta capacidade de suportar dor — se vêem tão
fracos e ameaçados que têm que dar ênfase absoluta à
au- to-preservação. Isto significa a desistência do
processo imaginativo que surge através de poder se
colocar no lugar do outro e supor quais sejam suas
sensações; tal processo determipa novos sofrimentos e
também conflitos de interesse capazes de determinar
impasses complicados. Persiste assim, na maioria das
pessoas, como processo racional único a atitude
egocêntrica primária, condição que considero o
princípio do narcisismo. Tais criaturas, por não
suportarem o desamparo, tratam de compor vínculos
afetivos múltiplos e mais superficiais, sendo que
dificilmente conseguem atingir um estado mais indepen-
dente ou serem capazes de estabelecer ligações amorosas
mais profundas. Não têm coragem para atitudes próprias
do homem livre, pois são muito necessitados de
aprovação externa, nem para os vínculos amorosos in-
tensos, pois temem rejeição e abandono.
O narcisista terá forçosamente o seu sentimento de
inferioridade perpetuado — senão ampliado — em de-
corrência do modo como se desenvolve sua própria his-
tória. Tratará cada vez mais apenas de disfarçar este
140estado e aparecer socialmente como quem está contente
consigo mesmo e feliz. Além do mais costuma se sentir
brutalmente ameaçado quando, por acaso, se sente efe-
tivamente mais feliz; tal estado se acompanha de uma
sensação de medo e ameaça percebida como insuportável,
de modo que a atitude usual destas pessoas é destruir
as coisas boas que estão determinando a alegria mas tam
bém o medo. Suas perspectivas são sombrias e, desde
logo, se percebem num beco sem saída.
Aqueles que suportam melhor frustrações persis tem
no processo de observar o mundo também tentando se
colocar no papel das outras pessoas, coisa possí vel
através do desenvolvimento da razão conforme ocor re
por volta dos 6-7 anos de idade. Percebem as situações
de modo mais completo e com múltiplas versões; per-
cebem, através da imaginação, mais claramente os mis-
térios da vida e da existência. Nas situações de dilema
sofrem quando são beneficiados, por causa da capacidade
de avaliar a dor do prejudicado, dor esta que, em ge-
ral, é superestimada. Tal sofrimento — o sentimento de
culpa — leva estas pessoas a uma tendência no sentido
da renúncia pessoal em favor de terceiros, o que é
reforçado pelo temor de represálias vindas delas.
0 se sentir capaz de renunciar determina uma sen-
sação íntima de contentamento e superioridade, coisa
extremamente bem-vinda pois atenua o sentimento de
inferioridade sempre presente. O prazer da renúncia
assim composto é reforçado pelo pensamento religioso
mais corrente, que sugere ser este o caminho da
transcendência do homem e sua aproximação com o modo de
ser de Deus. E o desejo de transcendência é outro
indício indicativo da existência do sentimento de
inferioridade e do inconformismo quanto à condição
humana.
O prazer da renúncia assim composto determina
141
ostabilidade a este tipo de comportamento que aparen-
temente implica em prejuízo pessoal. Este é o
princípio, /i meu ver, da conduta generosa, forma mais
sofisticada «li? atenuação do sentimento de
inferioridade. A sensação dc desamparo se apazigua
através do indivíduo se sentir mais próximo de Deus ou
mais solidário com* os outros sores humanos. Tal
atitude reforça o egoísmo de outras pessoas, que se
aproveitam, em termos práticos, dos ge-
nerosos. Estes dependem também da existência do
tipo
narcisista para exercerem o prazer da renúncia, de modo
a se estabelecer uma inter-dependência curiosa e que
tem sido a forma das pessoas existirem em termos de
vida pessoal e de organização social.
0 generoso tem capacidade de amar, pois é menos
temeroso de rejeições. Mas não suporta ser amado, pois
isto implicaria numa condição em que não poderia exer-
cer o prazer da renúncia e também porque teria que re-
ceber os agrados do que o ama, o que seria o oposto da
renúncia. Assim, o exemplo maior da interdependência
dos dois tipos humanos básicos seria a ligação de amor
por diferença, na qual o generoso ama e não é amado
e o egoísta é amado e não ama.
0 generoso não é um homem livre, pois precisa do
sofrimento para atenuar seu sentimento de inferiorida-
de; precisa, pois, se cercar de criaturas narcisistas,
exigentes e possessivas, pelas quais se deixa
tiranizar. Além disto, quando ligado ao pensamento
religioso, tem que se comportar conforme os preceitos
que se supõe seja a vontade de Deus no sentido de
garantir sua salvação. Quando de convicção
materialista, tende a assumir uma atitude heróica no
sentido de se sentir responsável pelos destinos dos
seus concidadãos e se filiar de modo fanático a
ideologias políticas, o que também restringe a li-
142
berdade de pensar e de existir.
O homem livre — figura hipotética até o momento —
seria aquele que, tendo aceitado mais docilmente o fato
de ter nascido, se curva diante daquilo que pode ser
encarado como a verdade maior: o homem é filho de um
Mistério. O homem nasce, vive e morre sem saber de onde
veio e para onde vai; e, mais, é consciente disto. É
esta a condição deste animal, condição difícil,
dolorosa e fascinante ao mesmo tempo. Tal atitude cria
um espectro de curiosidades intelectuais e de
interesses
143
máximo, de modo que se pode afirmar que, sendo a
origem da vida um Mistério, tudo é possível.
O homem livre não teria pretensões de transcendên-
cia, pois não teria nenhum modelo divino a seguir; nada
estaria pré-fixado como sendo o modo de existir típico
do ser humano. Não buscaria o sentido de sua existên-
cia, pois teria aceito com serenidade o fato de ser
filho do Mistério. Nestas condições, saberia que não
teria outro princípio de reflexão senão a sua natureza
humana. Teria como meta o encontro de soluções
harmônicas para as várias componentes de sua estrutura
psíquica; quanto mais próximo estivesse delas, mais se
sentiria feliz. Continuaria curioso, pois esta seria a
atitude inevitável para os espíritos que se percebem
cercados de mistérios. Entenderia seus limites com
tranqüilidade, ao mesmo tempo que sem resignação.
O homem livre não é nem egoísta e nem generoso,
posto que ambos são dependentes. Ele é justo; ou seja,
não é governado nem pelo prazer da renúncia — que é uma
elaboração em cima do sentimento de culpa — e nem pela
intolerância a frustrações. Reconhece direitos iguais
para si e para os outros, de modo a tentar agir de modo
equilibrado. Renuncia em determinadas condições e
defende seus direitos em outras. Não se engrandece às
custas da fraqueza dos outros e nem se atribui direitos
especiais. Não busca a transcendência e nem os privilé-
gios terrenos; busca a felicidade, a alegria de
existir. Tem como único limite o direito das outras
pessoas.
Não é difícil perceber que acredito que é pré-
requisito para a liberdade do homem a superação do
sentimento de inferioridade. Também fica evidente que
está mais próximo disto o tipo generoso, pois é mais
fácil abrir mão do prazer da renúncia — que aí existe
em exagero — do que se tornar mais independente e mais
tolerante ao sofrimento. Na medida em que vinculei o
sentimento de inferioridade à dor do nascimento — sem
144 dúvida aumentado ou atenuado em função de experiências
posteriores — fica óbvio que sua superação é difícil e
talvez impossível de modo integral, ao menos por hora.
Tais dificuldades e obstáculos não devem ser
entendidos, do meu ponto de vista, com pessimismo. E
nem me vejo impedido de tentar especular, ainda que
através da imaginação, como seriam as soluções do homem
livre. Elas podem parecer utópicas e inatingíveis;
porém, tenho a firme convicção de que aquilo que o
homem consegue imaginar um dia ele conseguirá executar,
ainda que com as limitações próprias da passagem das
idéias para a realidade.
O homem tem na sua razão — e esta é a mais fasci-
nante e misteriosa de suas propriedades — uma entidade
centralizadora. A razão percebe — e, através da lin-
guagem, formaliza — necessidades do corpo, desejos do
corpo, a realidade externa tanto no sentido material
como humano e social. Além disto, a razão tem a capaci-
dade de imaginar, ou seja, ir para além das percepções
internas e externas; assim, o homem tem o poder de in-
ventar coisas que não existem — através da razão
abstrata — além de descobrir as coisas que existem —
através da razão concreta. Certas coisas que são
inventadas eventualmente poderão vir a existir; outras
ficarão apenas como parte do mundo das idéias.
Já disse que a meta do homem livreseria a busca
da felicidadena terra, dentro do princípio moral de que
isto não deve implicar em prejuízo para terceiros, pois
isto estimularia os sentimentos de culpa, agora de modo
justificado. E o surgimento da culpa determinaria uma
limitação definitiva ao atingimento de um estágio máxi-
mo de bem estar e alegria interior. O homem com sen-
timentos de inferioridade atenuados não busca a trans-
cendência e sim a resolução de suas contradições e o
seu equilíbrio.
A razão reconhece como prioridade aresolução das
necessidades do corpo. Destaforma, a primeira condição
145para a felicidade do homem seria o bem estar físico —
saúde — e a inexistência de dificuldades maiores quanto
às questões de sobrevivência. O homem que passa fome,
frio e outras formas de desconforto não poderá se
sentir feliz, ao menos segundo os critérios do homem
livre que venho tentando definir. Aqueles que pretendem
a transcendência através do exercício do prazer da
renúncia poderão sentir alegria própria da sensação de
se perceber superior à sua condição de portador de um
corpo; e podem basear a sua vida nestes tipos de mar-
tírio, mas estarão fugindo à verdade da condição humana
e se comprometendo de modo definitivo com um modo de
pensar que limita as possibilidades do homem.
Inversamente, não acredito que as necessidades do
corpo sejam tão grandes como as que sugerem as socie-
dades contemporâneas, capazes de criar uma infinidade
de produtos novos e atraentes. Os processos que regem a
criação de novidades não estão a serviço de agradar e
beneficiar as pessoas; creio que fazem parte de um
sistema econômico que ganhou vida própria — eventual-
mente em relação com o desejo das pessoas de fugir das
questões fundamentais — e cresce como uma bola de neve,
cada vez mais sem relação com a natureza e as pre-
tensões dos homens. E uma atitude crítica em relação a
isto se impõe, e com urgência, sob pena desta bola de
neve gigantesca vir a destruir toda a humanidade.
O homem livre terá uma atitude própria a respeito
do que sejam suas necessidades materiais. Alguns se
deleitarão muito com aquisições de coisas novas; outros
terão uma atitude mais contemplativa em relação à vida
e serão mais fascinados pelas idéias. Alguns acharão
muita graça em observar o que existe, enquanto que ou-
tros terão preferência pelo mundo da imaginação. Porém,
as necessidades mínimas terão que ser satisfeitas e o
prazer da contemplação não terá relação com a renúncia
aos prazeres do corpo.
146 0 homem livre terá no trabalho a forma de se sen-
tir útil e de exercer o prazer ligado à sua competência
física ou intelectual. É o meio de retribuir ao grupo
social os benefícios que recebe dele em termos de
resolução de suas necessidades físicas. Alguns obterão
do trabalho maior gratificação pessoal e se dedicarão a
ele com afinco. Outros acharão mais graça numa vida
mais pacata e trabalharão menos. Na medida em que o
sentimento de inferioridade se atenua o aspecto
competitivo do homem deverá se atenuar também, de modo
que as pretensões de ser mais capaz que os outros serão
bastante menores para a maioria das pessoas. Também uma
vida em que a sexualidade se exerça de modo mais livre
tenderá para a atenuação das disputas e rivalidades. O
homem perceberá que o seu esforço de ser um vencedor
poderá estar afastando-o da sua meta real, que é ser
feliz.
A razão perceberá também a existência de um per-
sistente anseio do homem de se ligar de modo mais es-
tável a outro ser humano; é o desejo amoroso, ligado à
busca de recuperação da harmonia e bem-estar experi-
mentada na situação dual original. O homem livre deseja
amar e ser amado, situação que efetivamente realiza o
instinto de modo completo e integral. Sendo justo, será
capaz de receber tanto quanto é capaz de dar; sendo
independente, as trocas se darão mais no nível dos
agrados do que de necessidades, é O prazer de agradar e
ser agradado que existe no amor e não a aproximação de
duas pessoas com a finalidade de complementar carências
e resolver incompetências de um através do outro.
A única forma de se chegar à realização amorosa
efetiva é por um critério de escolha que se baseie no
máximo de afinidades, tanto de nível prático como no
plano das idéias. Quanto mais homens e mulheres forem
livres e independentes, maior será a necessidade da
existência de semelhanças entre eles para que o
convívio não se transforme num contínuo processo de
147concessões e restrições à liberdade de cada um. Pessoas
muito parecidas vivem juntas de um modo muito similar
ao que viveriam se estivessem sós.
O homem poderá reconhecer em si o desejo de amar e
ser amado, porém optar por viver certos períodos de sua
vida como criatura independente, solitária. Nestas
condições experimentará o máximo de liberdade indivi-
dual, o que também pode ser sentido como extremamente
gratificante. Do mesmo modo, haverá casais cohabitando
e outros optando por morar cada um em uma casa.
Crianças e adultos reconhecerão o desejo sexual —
a sensação de excitação própria da estimulação das
zonas erógenas e também do se exibir — como agradável,
estimulante e gratificante. Exercerão este prazer sem
culpa e livremente, respeitado o princípio moral básico
dos direitos das outras pessoas. A sociedade criada por
homens livres não se ocupará de estabelecer outros
limites ao livre exercício do prazer sexual. E é
interessante repetir que todos os grupos humanos
conhecidos regulamentaram as práticas sexuais segundo
normas variadas, o que para mim aparece como um dos
pontos mais obscuros acerca deste instinto e da
necessidade de limitá- lo com a finalidade de subtrair
do homem a possibilidade de ser livre e feliz.
Conforme penso (vide "O Instinto Sexual"), o sexo
é fenômeno pessoal, assumindo características inter-
pessoais apenas quando vinculados ao fenômeno amoroso.
É possível que as regras limitadoras do seu livre
exercício tenham sido estabelecidas como decorrência da
não separação do amor e do sexo como eventos autônomos,
de modo que os limites seriam mais compreensíveis em
decorrência da característica possessiva e ciumenta do
amor. A pretexto de elementos próprios do amor se
acabou reprimindo o livre exercício do prazer sexual,
sendo que este instinto ficou cercado de mistérios e
proibições que deram a ele uma importância que talvez
não tenha. A frustração sexual determina uma
148exacerbação do desejo de destaque social, de modo a
aumentar as rivalidades e competitividades entre os
homens, coisa que certas sociedades valorizaram como
positivo por conduzir as pessoas a uma vida mais
voltada para o trabalho, mais produtiva em termos
materiais. E isto tem sido mais verdadeiro para os
homens, frustrados por não se perceberem desejados
ativamente pelas mulheres e também proibidos de exercer
livremente a extravagância pessoal característica do
prazer de se exibir.
O homem livre é extravagante do ponto de vista
físico e exerce o prazer de se exibir, através de sua
sofisticação posterior que é a vaidade. Isto tanto os
homens como as mulheres. Tal atitude determina uma
diminuição do desejo de obter destaque social através
de atividades competitivas. As práticas sexuais serão
ao gosto das pessoas envolvidas. O modo como será a
vida sexual dos casais que se amam será definida pelas
decisões que fizeram, de comum acordo. Certos casais
entenderão que o sexo e o amor deverão se expressar
sempre em concomitância e outros julgarão mais
apropriada a possibilidade de experiências sexuais para
além dos limites da ligação amorosa.
O homem experimentará ainda os prazeres e des-
confortos próprios da existência da razão. Poderá usu-
fruir do prazer intelectual de entender conceitos
novos, ver obras de arte de todos os tipos; sentirá as
emoções da música e da poesia. Sentirá os desconfortos
próprios das dúvidas, das coisas que ainda não pode
compreender. Terá o desprazer permanente de saber que
sua origem é um Mistério, do mesmo modo que assim é o
seu fim. Na medida que aceita esta verdade dolorosa,
percebe que nela reside também o estímulo à curiosidade
e a justificativa para tentar saber e se interessar por
tudo o que estiver ao seu alcance. O filho do Mistério
não é prepotente; está sempre disposto a rever suas
posições e ouvir outros pontos de vista. Está, pois, em
149contínua evolução e se sente gratificado com isto.
Finalmente, o homem livre não subestima o fato de
que ele é possuidor de um limite superior, de que a
felicidade é o seu anseio maior mas também o seu maior
temor. Sabe que o atingimento de um estado de harmonia
e bem estar lhe traz uma sensação de medo, como se es-
tivesse para ocorrer a qualquer momento algum tipo de
desgraça ou sofrimento. Talvez este seja o resíduo mais
profundo ligado à situação de paz uterina e à dor do
nascimento associada a ela. Tratará de aceitar esta
limitação, não como obstáculo definitivo, mas com o
respeito que se deve ter pelas coisas que aproximam o
homem dos mistérios maiores e primordiais. Terá coragem
e prudência ao mesmo tempo, sempre extremamente atento
para o surgimento de tendências destrutivas geradas
dentro de si mesmo quando se chega perto do limite da
felicidade.
Ousará, lentamente, colocar cada vez mais distante
este limite, de modo a ir se familiarizando com cada
nova aquisição. Não terá dúvidas quanto ao fato de que
o elemento mais capaz de gerar o estado de felicidade —
e de pavor — é a realização amorosa. Entenderá que terá
que se preparar como criatura para poder suceder nesta
área. Perceberá que sentimentos de culpa ligados a
excessivos privilégios em outras áreas da vida prática
tornam este limite mais baixo e tratará de viver de um
modo equilibrado e justo não com a finalidade de
agradar aos deuses mas sim com o objetivo de atingir
sua própria felicidade.
Impressão e Acabamento
Gráfica Editora Camargo Soares Ltda.Rua da Independência. 767 •CEP 01524 - Cambuci • São Paulo • SP Tel.: 274-6088
Filmes fornecidos pelo editor
sk
Também de Flávio Gikovate
Dificuldades do Amor7? edição
Falando de Amor6? ediçào
Sexo e Amor7? ediçào
Você é Feliz?7? ediçào
O Instinto do Amor5? ediçào
O Instinto Sexual3? ediçào
O Homem, a Mulher e o Casamento3! ediçào
Ser Livre8? ediçào
O Amor nos Anos 806? edição
Deixar de Ser Gordo4? ediçào
Vício dos Vícios2? edição
Homem: o Sexo Frágil?6? ediçào
Cigarro: Um Adeus Possível.2? edição
Em Busca da Felicidade
“Todas as pessoas se tomam como exemplo de perfeição, apesar de falarem de modo diferente.”“O intelectual satisfaz sua vaidade ao exibir seus conhecimentos; o políti co, ao falar de suas obras; o artista plástico, ao mostrar seus quadros; o mú sico, ao se apresentar para grandes platéias, e assim por diante. Do mesmo modo, o missionário e o pregador religioso se envaidecem por se exibirem como criaturas puras e capazes de todo o tipo de renúncia material. O mesmo vale para o monge budista, para os bispos e cardeais. (...) A vaidade — prazer erótico de se exibir — está, pois, presente em todas as atitudes e atividades humanas. A ambição é a força que impulsiona o homem para a realização da vaidade."
“O homem generoso está, pois, buscando gratificação pessoal antes de qualquer coisa, o que pode ser entendido como uma forma mais sofisticada de egoísmo. Se, para satisfazer esse novo prazer egoísta, lhe parecer interessante ajudar a outras pessoas, assim ele procederá. (...)O ajudar, tanto* materialmente como dando conforto emocional, a pessoas que sabemos ser do tipo egoísta, e que nos procuram apenas quando estão em dificuldades, é uma ação efetivamente generosa? (...)Ou estaremos efetivamente exibindo nossa magnanimidade, nos deleitando com nossa su-perioridade e apaziguando nossos sentimentos de culpa?”“A generosidade corresponde à substituição de um tipo de prazer por outro — os do corpo que são substituídos pelos do espírito.’'
“A idéia de liberdade é atraente, mas vivê-la é assustador. (...) O homem foge da liberdade através de uma vida massacrante e também através da ilusão da liberdade, que é o seu devaneio constante; se realizar o devaneio, terá que pensar na sua condiçãoreal e isto é bastante doloroso, sentido como insuportável pela maioria.”
“O atingimento do estado de felicidade determina uma sensação subjetiva de medo e uma tendência — nascida dentro do próprio indivíduo — para a criação de sensações ou situações destruidoras do estado conquistado. (...) Não creio que exista nenhum problema psicológico mais fundamental do que este, da mesma forma que não acredito que se possam resolver as ques tões sociais enquanto não se conseguir avanços neste campo.”
Flav io G ikova t e