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Em Busca da Felicida de Chega de “bondade”, “maldade”, “heroísmo”... O que você precisa c assumir sua condição humana. E perder o medo do sucesso. 5? Edição

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Em Buscada

FelicidadeChega de “bondade”, “maldade”, “heroísmo”...

O que você precisa c assumir sua condição humana. E perder o medo do sucesso.

5?Edição

Flávio GikovateO Autor.

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I lávio Gikovate nasceu em São Paulo em 1943.I! médico, formado pela USP cm 1966.I oi Assistente Clínico no lnstitute of Psychiatry na London University, na Inglaterra.I )csde O início de sua carreira, dedica se essencialmente .u» trabalho de psicoterapeuta, i.i tendo atendido a mais «Ir (>.000 clientes.Atualmente dirige o Instituto <U ISicoteiapia deSào PauJo.M.-m de autor consagrado no Mi t al c editado também n i \rp.oulina, é conferencista minto .olliitado, tanto para .Hivulailr. acadêmicas • i'.ii.i .»s que se destinam•to publico em geral.I M. iwi, começou a apresentar . («nMiiima "( anal I ivre”, na I' .1. Ihiiideinintcs de Televisão, ..io para todo o país.

•MM •Inimis obras todas h i|in iiinncntt* reeditadas, iiMim rstAo relacionadas K I Mtiitti dobra deste livro.

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Flávio Gikovate

Em Busca da

FelicidadeChega de “bondade”, “maldade”, “heroísmo”...

O que você precisa e assumir sua condição humana. I perder o medo do sucesso.

"ftCIP-Br.isil. C4tal06Açan-nâ-Fnnte Câaara

Brasileira do Livro, SP

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Gikovate, Flávio, 19^3- ÜJ91e Em buGca da felicidade / Flúvio Gikovute. —

São Paulo : M. Q. Ed Aooociadot:, l«?3l.

1. Ética 2. Felicidade 3. Liberdade *♦. Pr.ico- logia exlctencial I. Título.

CDD-150.192-153.83-158.1-171.*»

81-0^53índices para catálo&o si stetr.it

ico:1. Felicidado : Anpectos aoraic :

Filosofia171 •%

2. Felicidade : Poicologia aplicado I58.I 3- Liberdade : Aapector paicológicofi 1>3*83 *♦. Psicologia existencial 150.19?

Produção: Florenlino Marcondes DWngelo Capas: CC&C - Cabral, Criação & Comunicação (SP) Foto:

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Vic Parisi (Manchete)

© desta ediçãoMG Editores Associados l .tda.Alameda Uu, 1597 CEP 01421 São Paulo-SP Ia edição: Março de 1981

ÀCECI.

Minha metade feminina, dona da magia que me

falta. Companheira - paciente e corajosa de

rodas as viagens.

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ÍNDICE

1............................................................................................. Introdução...........................................

2........................................................................ O Prazer da Renúncia........................................................................................................... 25

3............................................................................ Vaidade e Ambição........................................................................................................... 55

4................................................... O Herói e o Desejo de Imortalidade......................................................................................................... 67

5............................................ Uma Avaliação Moral da Generosidade......................................................................................................... 75

6.................................................................... A Questão da Liberdade

.......................................................................................................... ^9

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7......................................................................... 0 Medo da Felicidade

....................................................................................................... 119

8........................................................................................ Conclusões

........................................................................................................ 1^9

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1. INTRODUÇÃO

Tratarei aqui de fazer algumas considerações sobre a

questão da moral estudada do ponto de vista da psico-

logia. É evidente que se trata apenas de urn dos

múltiplos enfoques do problema e a intenção é a de trazer

mais alguns subsíd.os e não a de resolver todos os

mistérios milenares.

Desde o meu livro "Você é Feliz?” que o tema é

persistente nas minhas reflexões e assume complexidade e

importância crescentes, se intrincando com processos

ligados ao instinto sexual como eu o tenho entendido e

também com a questão da liberdade humana. E esta última é

parte fundamental do que se poderia chamar de felicidade,

estado anímico sempre buscado, mas cuja aproximação traz

sensações de medo — acompanhadas de tendências

destrutivas da condição buscada — difíceis de serem

explicadas, porém presentes em todas as pessoas.

Outra vez me vejo obrigado a fazer a ressalva de que

se trata de observações preliminares, ainda não comple

tamente encadeadas dentro de uma estrutura teórica coe

rente. Porém, em virtude da importância que penso ter

estas questões para a compreensão mais ampla da psico

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logia humana normal, creio que se justifica sua

publicação ainda em estado embrionário. Não se trata de

propor claramente novos caminhos para o homem; a intenção

ainda é mais tentar esclarecer algumas amarras que o tem

limitado.

A psicologia tem sido entendida como uma ciência que

busca compreender os processos mentais do homem,

distinguir seus componentes instintivos e seus componen-

tes racionais; tem que tentar isolar os processos que

existiriam independentemente da influência de uma ordem

exterior — social — específica, bem como saber como o

meio externo modifica cada um dos componentes da vida

interior. E não é difícil perceber que os obstáculos são

quase intransponíveis, pois que a componente concreta da

razão se alimenta fundamentalmente de informações

recebidas do meio exterior, isto se dando através dos

órgãos dos sentidos. Assim sendo, é impossível imaginar

que o homem não seja continuamente influenciado pelo que

ele vê, ouve, etc. E ele não seria o animal racional que

é, se não se modificasse em função das características

das informações externas que recebe; e estas influem

também no modo como se expressarão os instintos, que

podem ser reprimidos ou estimulados a se exer cer numa ou

noutra direção conforme os interesses de uma ou outra

ordem social existente. Ao mesmo tempo, algum tipo de

organização social para o homem me pare- cc inevitável

tanto por razões ligadas à resolução de necessidades

materiais de sobrevivência como sn virtude de suas

características instintivas.

A prolongada dependência prática das crianças em

relação aos adultos cria a necessidade de uma ligação

mais estável entre um homem e uma mulher, de modo que ela

cuide diretamente dos filhos e ele se responsabilize pelo

encontro dos meios de sobrevivência do grupo. O instinto

do amor implica na existência de um desejo persistente

nas pessoas de estabelecer uma ligação permanente a dois,

o que reforça o surgimento do grupo familiar. 0 instinto

sexual, através de sua componente que chamei (vide "0

Instinto Sexual") de prazer de se exibir deter mina a

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tendência dos homens de viverem próximos uns dos outros,

fato que corresponde ao que se chamou de instinto

gregário. Assim, parece inevitável, ao menos em

sociedades anteriores aos importantes progressos e alte-

rações ocorridas no nosso século, que homem e mulher se

unam em ligações permanentes, tenham filhos e se

encarreguem de criá-los e vivam próximos de outros nú

cleos construídos de modo similar, o que constitue a

essência de um grupo social. Este terá que ser regido por

regras e regulamentos, de modo a tentar garantir um fun-

cionamento harmônico e viável, o que será feito através

do estabelecimento de proibições de condutas que ameacem

a estabilidade do sistema e garantam, ao menos teori-

camente, os direitos dos outros.

As regras de convivência estabelecidas por cada grupo

serão transmitidas òs crianças, futuros membros ativos,

de tal forma que estas sofrem mais uma influência

externa, agora de natureza diferente da que os penetra

através da senso-percepção. Elas deverão se familiarizar

com conceitos abstratos ligados aos direitos e deveres de

cada membro do grupo, com o que é certo e com o que é

errado, com o que é bom e com o que é mau, com o que é

justo e com o que é injusto. As normas são, até certo

ponto, diferentes para cada grupo social, dependendo do

tipo de vida que levam, de sua organi/ação política e

econômica e do grau de sofisticação e complexidade que

atingem. Algumas dessas regras têm sido onipresentes,

sendo interessante registrar que uma delas é a que está

em relação com a regulamentação do exercício do instinto

sexual, que jamais pode ser deixado livre, para se

exercer naturalmente.

As normas que deverão reger a conduta de cada membro

do grupo podem ser construídas, ao menos hipote

ticamente, de dois modos: ou através da capacidade dos

homens — mais acurada em alguns de se colocar também no

papel dos outros, de modo a se construir um sistema justo

e capaz de garantir direitos e deveres idênticos a todos

os membros; ou através da observação egocêntrica de um

sub-grupo mais poderoso que cria nor mas desiguais e nas

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quais são claramente favorecidos. Neste segundo caso,

obviamente o mais comum, não se pode falar de normas de

ordem moral e nem em justiça, de modo que as crianças

deverão ser induzidas a se conduzir conforme o sub grupo

social na qual tenham nascido e a entender as

desigualdades como fato indiscutível. Nestas condições,

fica difícil falar que a introjeção dos padrões de

conduta próprio de uma dada cultura seja obri

gatoriamente um processo que dá origem a um sentido moral

na criança. Também já afirmei que a maioria das pessoas

que se comporta conforme as normas existentes não o faz

por as considerarem justas e sim por medo das punições

previstas para o caso de transgressão.

Além das normas próprias da ordem social, a crian ça

sc familiariza, por volta dos 6 7 anos de idade, com um

outro conjunto de conceitos, este talvez de nature za

mais verdadeiramente abstrata: se trata das idéias re

ligiosas, presentes também em todas as culturas. A per

plexidade do homem diante do mundo que o cerca, diante do

mistério de sua existência e de sua morte, diante de

infindáveis eventos para ele inexplicáveis o levou sempre

— a meu ver, com razão — a supor a existência de uma

entidade criadora, um Deus.

Esta suposição, basicamente determinada pelo fato do

homem se ver cercado de processos incompreensíveis para

ele e capazes de influir decisivamente sobre sua vida,

leva quase sempre à busca de indícios capazes de provar

Sua existência, pressentida intuitivamente. Tal pressen-

timento corresponde ao que se chama de fé. e que para

muitas pessoas é suficiente; outras precisam encontrar

ni justificativas lógicas para a sensação que

experimentam, de modo a provarem através da argumentação

racional.

0 que já tomaram como verdadeiro. Assim, o trovão,

eventos atípicos — milagres — foram usados como provas

da ••Hiütòncia de Deus.

A etapa seguinte consistiria no esforço humano de

definir a natureza de Deus; ou seja, admitida sua exis-

tência. como seria Ele? Porque teria criado a Terra, os

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16animais e o homem? Não é o caso de aqui discutir exaus-

tivumente o tema e também gostaria de ser entendido

• om clareza no sentido de que não acredito que o fato

11(i’• deuses descritos pelo homem possuirem muitas

vezes ■ procterísticas excessivamente humanas seja

argumento tulidente para provar Sua inexistência. Penso

que Deus,

' nc existe, não se revela ao homem; este se empenha em

• ompreendê Lo, o que não poderá levar a resultados

mui- tu iliferentes do que se tem chegado. Creio que as

dou- trmar. religiosas são esforços humanos de chegar a

Deus titi.ivés de um processo racional, sendo que a

divindade

1 pressentida; e isto não prova nem a existência e nem

Imtxistência de Deus, tema a meu ver cercado por um

mintório que jamais será decifrado.

Nos últimos 200 anos o homem féz importantes

ih'.cobertas no terreno das ciências naturais teoria da

iivulução, progressos na química, descoberta do átomo,

• nmpreensão de fenômenos moleculares em seres vivos

Míicionadas com a reprodução, etc. — de modo a se ter

(imlido supor que, através deste caminho, se chegaria

iitn dia a compreender todos os fenômenos observáveis. I

<i idéia de Deus caiu por terra, pois parecia que se es*

tiivíi <i caminho de entender os mistérios da existência

(HMVÓs de recursos criados pelo próprio homem. Tal su-

posição materialista tomou conta de muitos dos espíritos

mais lúcidos e entramos na era da louvação da ciência.

Só nos últimos anos ò que se tem percebido que houve uma

super-estimação das possibilidades desta rota conduzir

ao fim esperado, o que vem coincidindo com a retomada do

pensamento religioso. Em outras palavras,

quanto mais se conhece, maiores são as dúvidas sobre

coisas que aparecem e são inexplicáveis, de modo que o

mistério acerca do mundo em que vivemos se torna tanto

maior quanto maior é o conhecimento humano; e isto mostra

claramente que o mistério que nos cerca é indecifrável.

Novamente perplexo e bastante mais humilde, o homem volta

a cogitar da hipótese de uma entidade criadora.

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E voltará a tentar entender Sua natureza e Suas in-

tenções, o que significa um esforço contínuo de superação

de si mesmo e de transcendência. Ou seja, quando o homem

aceita a idéia de Deus, imediatamente tenta se aproximar

da idéia que ele concebeu, ao que parece num esforço de

não ficar por baixo. É como se não conseguis semos

aceitar a existência de uma entidade superior a nós sem

desejarmos imediatamente nos eqüivaler a ela. Tal

processo, bastante curioso e importante reflexo de

características da psicologia humana de natureza bastante

duvidosa, é, ao mesmo tempo, extremamente criativo. Não

há como negar que muitas das mais belas obras feitas pelo

homern foram estimuladas pelo desejo de se equiparar a

Deus, ou então no sentido de louvá-lo condigna mente. As

igrejas, as pinturas e esculturas que elas contém, as

músicas sacras são alguns dos pontos altos do patrimônio

acumulado pelo homem nestes milênios de história.

Até mesmo se Deus nao existir, não há como negar que em

nome Dele — ou em busca Dele — o homem criou objetos e

idéias as mais ricas; se pode até dizer que a idéia da

existência de Deus é mais criativa e útil para a

humanidade do que a hipótese de sua inexistência, pois

não se pode negligenciar o fato de que o século XX, es-

sencialmente materialista, tem sido bastante pobre em

criações geniais na música, literatura, filosiíia, artes

plásticas, etc.

Na medida em que o pensamento religioso se sofistica

e mais características são atribuídas às divindades e

também em decorrência de que tais concepções \,:io

facilmente aceitas pelas pessoas em geral - o que mostra a

clara predisposição dos homens em supor a existência de um

ente criador — não é difícil imaginar que ns concepções

religiosas possam ser usadas como reforço Justificador das

normas sociais propostas para criar possibilidades de vida

coletiva. Assim sendo, as normas da organização social

passam a ser parte dos desígnios de Deus, que espera que

os homens se comportem de uma dada maneira com a

finalidade de agradá Lo. O homem terá que ter uma conduta

adequada para se salvar como 'criatura diante de Deus e

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também para ser aceito dentro <!n grupo social. No plano

teórico não deveria haver con- tr.idição entre estes dois

tipos de expectativa acerca do comportamento humano;

porém, na medida em que as normas sociais se impõem no

sentido de beneficiar subgrupos e as proposições

religiosas persistam pretendendo condutas justas, o

indivíduo terá que optar entre se Milvar diante de Deus ou

suceder durante a vida terrena. Nestes termos o pensamento

religioso poderá ficar a serviço de criar uma maioria

dócil e resignada com a opres- ’.Jo que sofrem, não sendo

esta. em absoluto, sua inten- çflo inicial.

Em poucas palavras, a criança - e depois o adoles-

cente e o adulto — se apercebe de tendências que surgem • r.pontaneamente dentro de si, e que constituem os cha-

mados instintos; se apercebe da realidade externa e das

utilidades e interrelações entre os objetos que o cercam

ntravés dos órgãos dos sentidos e, através da memória.

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os registra e aprende a lidar com eles, constituindo esta

a função principal da razão concreta; se apercebe que as

inter-relações entre as pessoas e destas com os objetos é

governada por normas às quais deve obedecer sob pena de

sofrer punições, além de aprender que estas normas teriam

sido propostas em função dos designios de uma entidade

superior — que é pressentida — e alicerçada em conceitos

de justiça próprios da maneira de ser da divindade. A

maioria das pessoas não chega a entender muito bem qual

seja esta maneira de ser e entende o pensamento religioso

como mais um aglomerado de regras que devem ser seguidas

sob pena de castigos futuros, É bom registrar que tal

atitude pedagógica foi muitas vezes assumida por

educadores religiosos, o que significa, a meu ver, um erro

imperdoável, pois com isto subtraíam toda a grandeza e

toda a sutileza do pensamento moral, que passava a ser

apenas mais um reforço das normas de comportamento social

adequado, e de acordo com a conveniência de subgrupos. Tal

atitude dificulta ainda mais a aquisição de uma concepção

abstrata do que seja a jus tiça.

Tanto as normas sociais como as proposições reli-

giosas ligadas è salvação da alma — e que. como disse, es-

tavam quase sempre correlacionadas na prática - sempre

impuseram limites a certas tendências do homem, tendências

estaS surgidas espontaneamente e que eram tidas como anti

sociais ou indignas segundo o anseio divino. A restrição

mais importante sempre foi em relação ao livre exercício

do desejo sexual, capaz de ameaçar a ordem social através

de sua conseqüência, que é a reprodução. Se compõe assim

um estado interno de tensão, estando presentes no homem

forças em antagonismo. Dito de outro modo, o homem percebe

que sua boa aceitação social e sua salvação implicam na

renúncia — ou limitação — de tendências presentes dentro

dele e que quando realizadas são fonte importante de

prazer.

É evidente também que as normas sociais regulamentam

a questão do instinto sexual, de modo a tornar tal tipo

de atividade possível em determinadas condições. Tais

normas não podem se opor demais à natureza instintiva,

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pois senão terão muito pouca estabilidade — ou serão

freqüentemente transgredidas. Certos tipos de con cepção

religiosa assumem atitude mais radical, no sentido de

limitar a prática sexual - ao menos para quem pretende

ser puro — apenas à função reprodutora. O princípio é o

de que o homem deve renunciar aos prazeres do corpo e se

dedicar a uma vida a mais espiritual possível, sempre no

sentido de imitar a suposta vida das divindades; o homem

deveria tratar de viver desde já de «icordo com o que

seria sua vida futura, quando a alma %e desprenderia do

corpo.

A vida em grupo é um imperativo para o homem, ao

mesmo tempo que existem nele tendências que precisam ser

reprimidas — ou regulamentadas — para que o grupo tenha

estabilidade e estrutura sólida. As normas sociais e os

mandamentos divinos seriam, assim, fundamentais, devendo

ser incorporados por cada novo membro sob a forma de uma

acurada compreensão de seus significados ou apenas

seguidas por medo de punição. Desta maneira se justifica

a idéia de Freud de que não «•xiste civilização sem

repressão, principalmente da sexualidade; e neste aspecto

Sua visão se torna fatalista e,

• 11<'• certo ponto, pessimista, ê curioso observar a

tendência das pessoas — mesmo quando geniais para

atitudes deste tipo diante de um obstáculo mais complexo;

o fa- tu de não se ter até agora encontrado solução para

um determinado dilema não significa absolutamente que ele

M*ja insolúvel, ainda que assim possa aparecer à primeira

vista. 0 clareamento de novas variáveis pode criar con-

dições para a resolução de contradições que até então

pareciam inconciliáveis; por exemplo, a dissociação ab-

soluta que existe hoje entre sexo e reprodução permite

que se reveja a questão sob um ângulo absolutamente novo,

e até mesmo se poder vislumbrar a possibilidade de uma

ordem social onde não haja repressão sexual. A distinção

definida entre sexo e amor, que é talvez o pilar básico

da minha maneira de pensar, abre também novos horizontes

para a análise deste tema.

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A complicada questão das normas sociais e religiosas

limitadoras da liberdade do homem — liberdade de exercer

suas tendências biológicas e também de agir di-

ferentemente dos padrões propostos em decorrência de

opiniões diferentes — se torna ainda mais confusa em

função da época em que tais questões surgem na vida da

pessoa. De fato, o desenvolvimento da razão abstrata, e

portanto da capacidade de se colocar no lugar das ou tras

pessoas e entender cada situação também do ponto de vista

delas, coincide com o surgimento e superação do chamado

período edipiano. O amor como fenômeno espiritual e não

só físico é também uma decorrência do desenvolvimento da

razao abstrata, de se poder imaginar eventos que não

estão, de fato, ocorrendo (vide "O Instinto do Amor").

As figuras dos pais são, concretamente, as que trazem

para os filhos as normas sociais e religiosas; a ligação

amorosa e a dependência prática das crianças as conduzem

a uma aceitação mais fácil das normas, sob pena de

perderem o afeto e a proteção tão necessária. A ruptura

amorosa edipiana se dá por medo de represálias ou por

sentimentos de culpa; ou seja, em decorrência de uma

sensação de profunda tristeza gerada pelo fato da criança

se sentir responsável por um sofrimento imposto ao pai do

mesmo sexo de quem é rival no triângulo. A dor

experimentada ao magoar o outro — que é como defino o

sentimento de culpa — é muito forte e a tendência seria

no sentido de a criança fazer o possível para evitar a

repetição desta sensação, o que a levaria a um com-

portamento o mais de acordo com a vontade do pai. Daí

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a tendência à imitação do modo de ser deste e à

incorpo

ração de suas normas e valores de uma maneira ainda maisintensa.

Tanto a incorporação mais profunda das normas como a

tendência para evitar a qualquer custo o sentimento de

culpa determinam uma limitação ainda maior na liberdade

de pensar e de ser da criança e depois do adulto. Quando

não existe o sentimento de culpa, o que vale dizer

bloqueio do desenvolvimento da razão abstrata, persiste o

medo das represálias, limitador também, apesar de ser

menos intenso. De um modo geral se pode dizer que fica

mais livre aquele que não tem sentimento de culpa, mas

para isto ocorrer não haverá abstração e, portanto, a

criatividade será menor.

A ruptura edipiana faz surgir uma nova sensação,

t.imbém profundamente desagradável: a sensação de de-

namparo *. A criança se percebe pela primeira vez como um

ser independente dos pais, como tendo vida própria; porém

experimenta isto como sendo muito doloroso e t irregado

de insegurança e desproteção. A criança se percebe

independente não com significação de aumento de liberdade

mas sim como abandono e solidão, pois a consciência da

autonomia se dá cm decorrência de uma ruptura amorosa; e

este fato é inevitável na medida em que alas são criadas

dentro do núcleo familiar onde a situa-

l. Ko edipiana ocorre sempre. Ê possível que a evolução

tttria outra se a educação se desse de outro modo, como

ainda poderá vir a ocorrer.

A sensação de abandono e desamparo — que parece •■nr

mais intensa no menino, pois este vive o conflito edi-

(♦) SARTRE. J.P., O Existencialismo é um Humanismo. Tradução de Virgílio

Ferreira. Editorial Presença. Lisboa. 1965.

piano de modo mais dramático, como regra geral — tende a

se atenuar através do fortalecimento dos vínculos de

amizade, conforme costumam ocorrer nos grupos de meninos,

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23

típicos dos anos do período de latência. Assim, as

ligações originais são substituídas pelo grupo social,

sendo muito importante para o menino se sentir bem aceito

por ele, o que o leva a um comportamento de acordo com as

normas aí existentes, e que são do mesmo tipo que as

normas do grupo social como um todo.

A idéia de Deus, já previamente existente, ganha

força também nesta época, pois o se ligar a uma figura

paternal invisível e onipresente atenua bastante a sensa-

ção de desamparo. Aqui também se perpetuam as tendências

para a limitação da liberdade, pois para ficar de bem com

Deus a criança terá que seguir os preceitos que os

adultos ensinam como sendo a vontade Dele. Mais uma vez a

criança — e depois o adulto — pode apenas seguir os

mandamentos ou tentar entender mais profundamente o que

eles significam e porque existem.

A triste sensação de desamparo se atenua também

através da percepção — que se desenvolve em algumas

crianças — de que cada um de nós é parte ínfima do que se

chama de humanidade; o se sentir parte de um coletivo

desperta um estado subjetivo de conforto, atenua o se

sentir só. É como se a família se estendesse e englobasse

todos os seres humanos. Suponho que desta sensação

atenuadora do abandono derive, ao menos em parte, o

desejo idealista de se empenhar por construir uma socie-

dade mais justa, ou seja, os anseios políticos do homem,

que — é claro — serão reforçados por outros componentes

da estrutura psíquica.

Estas observações rápidas são suficientes para mos

trar como os princípios de justiça e de moral são incor

porados de um modo confuso e dúbio. Algumas normas são

aceitas em função de se fugir de punições dolorosas,

outras em decorrência do temor da perda de afetos; outras

por medo do sofrimento determinado pela culpa de impor

contrariedade a figuras amadas. Certas normas são aceitas

com facilidade porque não implicam em grandes

sacrifícios; outras determinam tensões internas por estar

relacionadas com repressões de tendências instintivas.

Algumas são facilmente compreensíveis e, porisso mesmo,

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24

mais aceitáveis; outras são definitivamente incom-

preensíveis e só podem ser aceitas por meio de algum

processo mais radical. Mesmo na vida adulta fica muito

difícil se fazer uma revisão crítica, de modo a se poder

dispensar certas normas e persistir aceitando outras; e

muito poucos são aqueles que não se vêem limitados por

esquemas repressivos desta ordem. Ao mesmo tempo, a idéia

fascinante de se ver livre de conceitos não mais

aceitáveis esbarra com um enorme temor, com múltiplas

conotações, todas elas ligadas ao processo infantil de

incorporação das normas: temor de abandono e solidão se

não agir conforme os princípios do meio; medo de

represálias ligadas a perda de posição, de provocar

sofrimento em pessoas queridas e de perder o afeto e a

admiração destas.

Assim, não se pode dizer que o homem é limitado por

princípios de moral e sim por um complexo processo que

envolve normas sociais, padrões familiares e princípios

religiosos relacionados com um modo peculiar de ver o bem

e o mal. Uma reflexão adulta e não religiosa sobre a

moral se impõe e será esta a minha intenção. A idéia é a

de trazer subsídios para uma colocação mais apropriada da

questão, com a pretensão de que isto possa trazer

melhores condições de pensar e de existir para o homem.

Na realidade, penso que a psicologia como ciência tem que

tentar compreender os processos mentais e também, na

medida em que se consigam novos avanços neste sentido,

propor soluções novas para o homem. A simples análise do

mundo anímico sem a pretensão de se buscar novos arranjos

entre os diversos componentes da subjetividade me parece

processo estéril, resignado e pessimista. Se a felicidade

humana consiste no encontro de formas mais harmônicas de

entrosamento das várias tendências, até certo ponto

conflitantes, da vida interior, esta tem que ser a meta

da psicologia; o entendimento e o detalhamento de cada

componente da subjetividade só tem importância e valor se

estiver a serviço desta finalidade.

Nem sempre os avanços se fazem através dos mi-

nuciosos estudos dedutivos. Creio que vale a pena, às

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25

vezes, fazer considerações mais ousadas e de natureza

indutiva, ainda que usando para isto de um modo de pensar

menos ao gosto da nossa época; tentarei uma abor dagem

mais livre das normas científicas, de modo a dispensar

demonstrações exaustivas e a fazer suposições, às vezes,

com a liberdade que só se atribui ao artista; ou seja,

aqueles que podem-inventar ao invés de descobrir. Não é

demais repetir que tais criaturas com a liberdade de

inventar muitas vezes descobriram aquilo que oficialmente

só décadas ou séculos depois foi validado pela ci ência.

No que diz respeito à psicologia humana acho extremamente

difícil distinguir os dois processos; a verdade, quando

existe num ou noutro caso é imediatamente detectada pelas

outras pessoas.

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2. O PRAZER DA RENÚNCIA

I

Inicialmente quero fazer algumas conjecturas acer- <

.1 de como nasce, do ponto de vista psicológico, a no-

çílo de bondade, bem como o que significa a maldade.

I uvarei em consideração o desenvolvimento das pessoas

'que persistiram na capacidade de abstração, e que cor-

tospondem às criaturas mais completas, mais subjetivas

II «em dúvida aquelas que foram — e são — as mais vol-

tadas para as questões da filosofia, da religião e da mo-

ral,

Conforme a hipótese que venho defendendo (vide “Você

é Feliz?") a quebra do processo concreto de raciocinar —

conhecimento adquirido diretamente a par- ilt dos órgãos

dos sentidos — surge quando a criança — o depois o adulto

— se coloca no papel de outra pessoa, mimai ou objeto.

Apesar de se tentar ao máximo a cla- ntza, é possível

apenas descrever estes fenômenos ligados no funcionamento

da razão e ainda assim de modo muito superficial. Não

dispomos de dados fundamentais que »ios permitam

compreender como se dão tais processos <io nível das

células cerebrais e nem podemos — sob pena de buscar

soluções fáceis — atribuí-los à alma, entidade oütranha

aos processos neuro-fisiológicos. Assim, fica

uma importante incógnita na raiz do entendimento da função

racional, especialmente do componente abstrato. É mais

fácil entender que os neurônios recebem informações de

fora através dos órgãos dos sentidos, que as registram e

correlacionam (processo em íntima ligação com o surgimento

da linguagem) do que saber como, de repente, estas

células, através da interação entre elas — sem dúvida

facilitada pela linguagem — passam a gerar novas

informações, agora independentes — ou quase — da senso-

percepção.

É como se, a partir de um certo número de informações

já registradas, o sistema racional ganhasse autonomia e

pudesse gerar novos dados por si mesmo. E é neste mis-

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27

terioso processo que reside a maior grandeza do homem: sua

capacidade criativa.

O processo abstrato mais simples seria, pois, o de

sair de si e tentar "ver" um evento qualquer pelos olhos

do outro; é o mais simples porque ainda seria quase uma

imitação da percepção direta, apenas alterada por um es-

forço de se colocar noutra posição diante do evento, É evidente que tal possibilidade cria inúmeras novas infor-

mações e dá, pela primeira vez, condições para que se

possa ter dois pontos de vista acerca de um só evento. Não

é difícil perceber como o processo mental se enriquece com

apenas esta pequena alteração, como se pode obter muito

mais elementos a partir de cada situação; e, também, como

será difícil, a partir desta condição, se ter descanso e

unidade, pois para cada condição existirão mais de uma

forma de entendimento, fato gerador de tensões internas

intermináveis.

Do ponto de vista das interrelações humanas, aquele

que possui a capacidade de se colocar no lugar do outro se

verá desde logo sujeito a complicações. Se, por exemplo,

uma criança deste tipo — e eu creio que em certo momento

da vida praticamente todas têm esta capacidade — estiver

com um brinquedo novo e o seu irmão lhe pedir para usá-lo,

está composto o dilema: a criança, por razões

egocêntricas, está obtendo prazer do contato com este

objeto e ao mesmo tempo percebe que o irmão está triste

por não tê-lo, e isto ao se colocar no lugar dele. Sentirá

a alegria de possuí-lo e a tristeza que ele supõe oxista

no irmão; e poderá concluir que a tristeza do ir- mão

existe em decorrência do seu comportamento (sentimento de

culpa). Se ele der o brinquedo ao irmão ficará frustrado

mas aliviado desta outra dor; se não der, este suposto

sofrimento do outro poderá impedir que ele usufrua do

prazer advindo do brincar.

Muitas crianças tenderão a aceitar a frustração pes-

soal, por perceberem esta como sendo uma dor menor do que

aquela determinada por se achar responsável pelo

sofrimento da outra; e isto depende muito do modo como

reagirá a outra, pois se ela tiver uma atitude que demons-

tre grande sofrimento diante da privação, maior será o

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sontimento de culpa. Tal conduta será tanto mais prová- vd

quanto mais significativa for, do ponto de vista afetivo,

a outra pessoa; assim, se o objeto do dilema do menino for

sua mãe e esta agir de modo a demonstrar grande sofrimento

diante de condutas do filho que a contrariem — que

corresponde ao que se chama de chantagem «•mocional —

maior será a tendência deste de abrir mão do seu prazer em

favor dela; e isto não se dará por convicção e sim para

que o menino se livre da terrível dor determinada por se

sentir responsável pelo sofrimento que ele pode supor

existente na mãe.

Quanto maior for a capacidade de se colocar no lugar

do outro, maior será o sofrimento derivado de supor sua

dor e, portanto, maior será a tendência para a renúncia

dos prazeres pessoais — egocêntricos — em favor de

terceiros. Do mesmo modo, quanto maior for a capacidade de

lidar com frustrações pessoais e quanto menor for a

capacidade de lidar com sentimentos de culpa, maior será a

renúncia, mesmo em condições em que ela não se justifique.

Do ponto de vista lógico, a renúncia da atitude

egocêntrica só deveria ocorrer quando a outra pessoa tem

mais direitos e não em igualdade de condições.

Inversamente, quanto menor for a capacidade de lidar

com frustrações pessoais e quanto maior for a ca-

pacidade de lidar com sentimentos de culpa — o que signi-

fica o colocar-se no lugar do outro de modo mais incom-

pleto — maior será a tendência para soluções egoístas,

mesmo em situações em que o outro tenha mais direitos.

Desta forma se compõem dois tipos humanos funda-

mentais: o generoso, que lida bem com frustrações e mal

com sentimentos de culpa; e o egoísta, que lida mal com

frustrações e bem com sentimentos de culpa. A nenhum dos

dois se pode atribuir o sentido de justiça, pois um

defende mal os seus legítimos direitos e o outro não se

ocupa de atribuir a outrem direitos iguais que a si mes-

mo. Do ponto de vista do desenvolvimento emocional, o

tipo generoso é o que indiscutivelmente evolui mais, pois

as renúncias contínuas o obrigam a buscar forças novas e

a encontrar soluções mais sofisticadas para não se deixar

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sugar inteiramente; além do mais, ao suportar a dor de

repetidas frustrações se percebe cada vez mais forte e

seguro, de forma a desenvolver uma importante tendência

para um contentamento íntimo sempre que é capaz de mais

uma renúncia. Apesar de momentos de irritação consigo

mesmo e de dúvidas acerca de sua conduta, se sente cada

vez mais superior, mais nobre. O egoísta, por outro lado,

se encaminha para o estancamento do seu desenvolvimento,

pois se reconhece fraco diante das frustrações e tenderá

a fazer uso de sua inteligência sempre no sentido de

encontrar saídas não dolorosas para os dilemas; desta

forma, se mantém muito pouco preparado para a realidade

da vida e desenvolve cada vez mais uma postura de

parasita em relação a alguma pessoa mais generosa. Suas

soluções são, pois, menos sofis- tlciidas e menos

imaginosas e sua auto-avaliação é precá- ilti, apesar de

que se desenvolve uma clara tendência pa- in camuflar

todas as fraquezas — o que é a confirmação cnnlor de sua

existência.

O generoso se ocupa do próximo mais do que de ti

mesmo, sendo o inverso o comportamento do egoísta O

generoso não faz aos outros o que não quer que iw í im para

si, mas deixa que façam arbitrariedades con- tm cie; o

egoísta faz aos outros o que não quer que façam l»«ir<i

si e se revolta quando é vítima de arbitrariedades.

O egoísta é uma criatura injusta, capaz de prejudi-

oir seriamente o outro quando tal atitude lhe beneficiar;

•i Into fundamentalmente por não possuir — ou lidar bem -

om — sentimentos de culpa, É aquele que tem mais di-

ficuldades de aceitar normas sociais quando elas impli- •

nm em sacrifícios ou limitação de suas vontades — o «|iio

vem a ser frustração. Ao menos teoricamente as nor- nn\

existem com a finalidade de impor limites a estes

liornens, cuja conduta seria incompatível com qualquer

ordem social. Como lidam mal com frustrações temem

<mtigos que impliquem neste tipo de sofrimento e é

nes- !«• sentido que se construíram as punições sociais

para on casos de transgressão das normas. Do ponto de

vista rMIgioso, tais criaturas seriam as portadoras da

malda- <lr que desta forma se define como egoísmo e

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30

imaturi- diide emociohal — que só poderiam se salvar

através do «lusenvolvimento do sentimento de culpa —

remorso ou Arrependimento.

A salvação, deste ponto de vista, consiste em recom-

pensas posteriores — após a morte - para condutas gene-

rosiis, condutas estas que implicam em sacrifícios e

renúncias nesta vida. A idéia é que Deus seria pura

generosidade, de modo que se aproxima mais Dele aquele

que «•.sim se comportar. A outra divindade seria o

Demonio ou a pura maldade, inspiradora do comportamento

egofs- t.i que, diga-se de passagem, quase nunca é

totalmente assim. O homem deveria se purificar ao máximo

de suas tendências egoístas — que existem também nos

generosos — e ser capaz de suportar todo o tipo de

arbitrariedade sem reagir e sem siquer se revoltar. Ao

menos do ponto de vista cristão é assim que as coisas são

entendidas. A generosidade é louvada, mesmo que

implicando em humilhações na vida terrena, e apontada

como sendo o caminho da salvação. Através do amor a Deus,

o egoísta descobriria o sentimento de culpa e se sentiria

mal ao contrariar Sua vontade e nisto consistiria a

essência de sua conversão.

As divindades seriam compostas de pura bondade e pura

maldade; os homens são uma mistura, em proporções

variadas, dos dois ingredientes, sendo que sua meta seria

se aproximar ao máximo da pura bondade. Desta forma, a

generosidade própria dos homens que lidam bem com

frustração e mal com sentimentos de culpa — e que tendem

para comportamentos injustos para consigo mesmos — é

louvada como sendo o bem e tal atitude ganha ainda mais

um reforço. Não é impossível que uma parte do

contentamento íntimo que deriva desta atitude advenha da

idéia de que se está cada vez mais transcendendo a

condição humana e se aproximando do modo de ser de Deus.

O sentimento de culpa é um freio íntimo e indepen-

dente das normas sociais, de modo que as pessoas gene-

rosas respondem mais à sua consciência do que a elas;

assim, parecem portadoras de verdadeiro sentido moral, ao

passo que o egoísta se freia apenas por medo de repre-

sálias, o que dificilmente pode ser entendido como senti-

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31

do moral.

Partindo da hipótese de que Deus — se existe — não se

revelou ao homem e sim que este, ao pressenti-Lo, tentou

supor suas propriedades e atribuiu a Ele aquilo que era

entendido como sendo virtudes, pode-se dizer que a

generosidade é percebida como qualidade pelo próprio

homem. E principalmente pelo homem generoso que, ronforme

já afirmei, é o mais voltado para as questões filosóficas

e religiosas. O reconhecimento da existência Hr* uma

mágoa que surge numa situação injusta em que ■ oneroso

age em benefício do outro sem assim o dese- |itr - em

decorrência do medo da dor imposta pelo senti- monto de

culpa — é percebida como uma impureza, uma imperfeição a

ser ainda superada, de forma a que tal tipo Ir homem

jamais deveria sentir raiva do seu agressor. A impureza

seria sinal da existência de um componente mioísta,

indício da presença do Demônio em todos nós. Urna

concepção deste tipo — criada pelo homem — de- noquilibra

ainda mais a balança a favor da generosidade

indiscriminada e cria no homem um prazer cada vez maior

liijmlo à renúncia e ao sacrifício, pois esta capacidade

• mt.iiia em relação com a sua grandeza e aproximação

ca- i!<i vez maior da divindade. E é bom dizer que acredito

|iio as idéias, criadas pelo homem, são capazes de influir

•Incisivamente sobre ele mesmo.

Quanto mais o sacrifício é sentido como prazeroso,

fnnis o inverso tende a se dar. Assim, uma vida serena,

I ,'tcil e sem problemas aparece como pouco grandiosa

• M*m dignidade; e esta condição poderá trazer um es-

i M I O de ânimo depressivo, justamente quando o homem Haveria

estar contente. A paz é sentida como improdu- ilv.i e,

principalmente, indigna; não leva o homem a cres- mm. ü

sentir o prazer de se aproximar da grandeza de Deus. A

simples falta de sofrimentos e renúncias poderá gerar

•imtimentos de culpa, especialmente se no mundo várias

outras pessoas estiverem sofrendo. A culpa será ainda

maior se o indivíduo generoso estiver vivendo uma época w

uma situação efetivamente agradável, que é percebida «omo

não possuindo grandeza alguma; e mais, a vida pra- /orosa

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é percebida como um enfraquecimento, um empobrecimento, um

distanciamento de Deus.

Nestas condições, o pensamento religioso louvador da

generosidade extrema — capaz de gerar um prazer novo,

ligado à renúncia, percebida como grandeza — tenderá a se

opor aos prazeres mais elementares do homem, ligados ao

funcionamento harmônico do seu corpo e à realização de

suas funções instintivas, particularmente a sexual. Assim,

a repressão sexual não existiria apenas como fato

indispensável para o estabelecimento de um grupo social

estável mas também para afastar os homens generosos do

sentimento de culpa e de empobrecimento ligado a uma vida

prazerosa e sem renúncias. O homem generoso aprende a

substituir o prazer instintivo pelo prazer da renúncia.

Substitui o prazer de receber pelo prazer de dar. Se

aproxima da divindade na medida em que se distancia de si

mesmo e, principalmente, do seu corpo. O corpo, e seus

prazeres, fica associado à idéia de empobrecimento e

também ligado a sentimentos de culpa, que só se atenuam em

situações de sofrimento e renúncia. Os prazeres do corpo

afastam o homem de Deus e os ligados ao sacrifício o

aproximam.

É importante ressaltar mais claramente que este

mecanismo não foge ao princípio freudiano de que o homem

busca o prazer. Se trata da renúncia de um tipo de prazer

em favor de outro sentido como maior e mais completo. O

que evidencia a existência de inadequação psicológica é

que não haveria a necessidade da renúncia de um tipo de

prazer em favor do outro, pois que eles não são, por si,

antagônicos. Não seria impossível imaginar o homem capaz

de usufruir os prazeres do corpo e os da paz e harmonia e

também se sentir gratificado e engrandecido quando

ultrapassa obstáculos e privações. O limitador desta

possibilidade é o sentimento de culpa, profundamente

agravado pelo modo como se desenvolveu o pensamento

religioso, que acabou associando a grandeza humana apenas

ao sofrimento e à renúncia.

Vale a pena também ressaltar que uma concepção

• InU» tipo é extremamente eficaz em termos de desen-

olvimento social. Na medida em que o homem tem que

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33

%r sacrificar para se salvar, ele tenderá a compor para

si Hftiu vida a mais austera possível, se dedicando mais

a atividades produtivas e úteis do que aos prazeres. É

evi-

• lonte também que tal tendência existiria apenas nos

ho- niKis genuinamente generosos, que embora minoria, são

• MI que geram as idéias; na prática, tal tipo de

concepção A ilrformada por pessoas que se apropriam do

esforço Hnfl outros para fins pessoais, de modo que o

resultado l«> trabalho coletivo é dividido de modo

desigual. Ape- MÍ de tudo, se compõe uma sociedade mais

de trabalho lo que de prazer.

A partir de um tipo de concepção religiosa confor- «•ii

descrevi — e que corresponde à própria da nossa cul- tiirn

o homem generoso se furta aos prazeres do cor- l»o tanto

por causa dos sentimentos de culpa como por ~|imct)bê'los

como um empobrecimento, o afastamento

• l«t um estado grandioso. E, conforme acredito, esta

se- ■junda componente tende a ser cada vez mais importan-

tn de modo que o generoso teme se perder e se enfra-

• iiitt€:er se sua vida se torna amena e agradável;

deste mo-

• lu ovita esta condição de todas as formas, apesar de

que opnicntemente é exatamente isto que está procurando,

l" oomo se Deus só gostasse das pessoas que vivem uma

vltlfl de renúncias e humilhações, condenando à morte

Hi.|üoles que vivem em paz, ainda que sem nenhuma ofen-

•n uo próximo. Outra vez tal paradoxo mostra a existên-

• I.I de um ponto obscuro na origem do que se chama de iHtnorosidade, que se compõe por predomínio do sentimento

de culpa — e não em função de um sentido de jus- IM -

percebido como sofrimento maior do que a renún-

• 11 pessoal; desta maneira, a generosidade é uma

constru- Vllo que se faz em função de se encontrar um

sofrimento mínimo e que depois descobre em si mesma uma

fonte

de prazer e de engrandecimento pessoal; e tal descoberta

tende a vir associada à depreciação dos prazeres do corpo,

entendidos — e não sentidos — como sendo de natureza

inferior.

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O prazer da renúncia é de natureza racional e do tipo

abstrato; se trata de um orgulho íntimo próprio de se

sentir capaz de tolerar sofrimento e, com isto, se apro-

ximar de Deus, o que significa um contínuo engrandecimento

pessoal. Há tempos venho insistindo na possibilidade do

homem encontrar prazer através da função racional — prazer

na resolução de um problema, no ouvir música, no se

identificar com uma idéia, etc. — e não só através da

realização das funções instintivas e resolução dos

desprazeres do corpo. O prazer da renúncia não deve, pois,

ser chamado de masoquismo, como se ele fosse

obrigatoriamente de natureza sexual. Creio que ele tem

autonomia e deriva de outra fonte. O prazer da renúncia e

até mesmo da humilhação — que existe em todas as situações

de vida — pode também se estender para a situação sexual,

ou mesmo ser predominante nesta condição, quando então

creio ser próprio o uso do termo. Assim, o masoquismo

seria um tipo de comportamento sexual onde além da

excitação instintiva se associa o prazer da humilhação,

sendo que este segundo é autônomo e existe também em

situações não sexuais.

A conduta generosa é, pois, inicialmente, uma de-

corrência do predomínio de dor ligado ao sentimento de

culpa — dor maior do que a determinada pela frustração — e

uma tentativa de evitar tal situação; nestas condições

existe um afastamento de uma atitude justa, que implicaria

no indivíduo cuidar dos seus direitos do mesmo modo como

do dos outros. Depois, o indivíduo percebe nascer um

contentamento íntimo ligado ao fato de ser capaz de

tolerar sofrimento, por se sentir forte por isto; se Deus

é todo renúncia, ele ficará cada vez mais próximo da

divindade através desta conduta, que tende ii ' « i

sentida cada vez mais como prazeirosa. A busca des- (•i

tipo de prazer entra em conflito com o usufruto dos i"

ii/oros do corpo, pois estes não estão associados à

idéia !•- grandeza, de tal forma que tendem a ser evitados

por II»inn entendidos como ameaçadores da evolução já atin-

iiii In, usta renúncia aos prazeres do corpo se dá sempre

— ou iu.rn! sempre — com dificuldade e vem associada à

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idéia ili- tofrimento injustificado, auto imposto de uma

for- m.i incompreensível. O pensamento religioso

cristaliza •mii tomor e prega o desenvolvimento do

espírito em de- tilmonto do corpo, cujos prazeres são

vistos como vul- •ininu e baixos.

No egoísta a dor determinada pela frustração — não M

jill/üção de algum desejo — é maior do que o

sentimento .!«’ culpa — dor ligada ao sofrimento imposto

ao outro. OI H.I forma, a atitude geral é no sentido da realização illmtii dos anseios, realização associada à

sensação de pra-

0 quadro psicológico é bastante mais simples e, mesmo

na vida adulta, se assemelha ao que se pode observar numa

criança pequena. Se trata da busca direta da realiza-

• Mi dos desejos, independentemente do sofrimento ou

ilnno que possa causar a terceiros. Não existe, pois, o

de- iiMivolvimento de um prazer secundário, mais

sofisticado; l»«»miste a capacidade de experimentar os

prazeres do cor- iii>, (jue são percebidos como sendo os

únicos. O equilí- l*i io se altera sempre que existem

situações de frustração, inevitavelmente impostos pela

realidade externa, assim oomo pelos desafios e projetos

criados pelo próprio indiví- iluo e que estão sujeitos a

insucessos. A reação diante da ínistração é, também,

primária; corresponde a uma ati- tudu agressiva, própria do

homem que se vê ferido, amea- i ido; ou seja, a atitude é

sempre a de se ver como vítima c com direito, portanto, ao

revide agressivo.

Além das limitações da realidade, mais um elemento ()

capaz de perturbar a ordem, até certo ponto simples,

• Io indivíduo egoísta: a existência de indivíduos

generosos. Diante da capacidade destes de lidar com

frustrações e de sua eterna disposição para renunciar e

para dar, o egoísta não pode deixar de se sentir humilhado

e infe- riorizado. E tal sensação provoca uma reação

agressiva própria daquilo que chamamos de inveja; ou seja,

a agressão gratuita do que se vê mais fraco em relação

àquele que é visto como mais forte. Junto com esta

irritação, surge no egoísta a tendência para se aproveitar

da generosidade do outro, coisa que ele consegue com

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facilidade; tal situação aumenta a inveja e, portanto, a

agressividade.

O egoísta se vê incompleto, mutilado e isto faz com

que ele experimente uma sensação continuada de frustração

e de insatisfação. Suas forças para tentar se compor de

uma forma mais aceitável para si mesmo são poucas, pois o

temor da frustração o inibe e o limita. Só lhe resta o

esforçar-se — em geral com sucesso — para se mostrar feliz

e bem consigo, além de usufruir com facilidade dos

prazeres do corpo — facilidades materiais de todo o tipo,

expressão sensual, etc. — coisa que desperta fascínio e

admiração no tipo generoso que, conforme disse, não se vê

com condições para isso.

Dentre os prazeres do corpo aquele capaz de despertar

as mais importantes sensações agradáveis é, sem dúvida, o

sexual. E não é por acaso que este instinto tenha sido

sujeito sempre a severas regulamentações, tanto por parte

das normas sociais como das de natureza religiosa. E,

segundo penso, só secundariamente as normas têm a ver com

o. problema da reprodução, uma vez que se sabe de há muito

tempo que esta função está ligada à ejaculação vaginal e

que há várias outras formas de recíproco prazer sexual

entre um homem e uma mulher; estas outras alternativas

sempre foram vistas como mais indignas ainda, muitas delas

até como perversões; e isto não pode ser explicado em

termos dos perigos de uma gestação em condições sociais

indevidas. E mais, só depois do advento das pílulas anti-

concepcionais — e, por-

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I mto, da possibilidade da ejaculação vaginal sem conse-

i|ikõncias — é que se vem podendo praticar outros tipos

Cli» intimidade sexual, se bem que a maioria das pessoas

Minda considera a penetração vaginal fundamental e bá-

fti» .1 Ou seja, a idéia era a de vincular a prática

sexual A rjficulação vaginal e esta deveria ser limitada

pelos te-

• nmes de gravidez; o que se conseguia, assim, era

supri- mlf ,i liberdade sexual a pretexto deste risco, que

nunca Ini <i causa da repressão.

Conforme a idéia que defendi no meu livro "O Instinto

Sexual", a sexualidade humana é de natureza automática,

sendo portanto fenômeno pessoal e não inter- |M' i*oal;

isto levando-se em conta este instinto isoladamen- »•

Possui dois componentes básicos: o prazer de se exibir —

•fotismo difuso — e a estimulação direta das zonas eró-

pinus — feita pelo próprio indivíduo, ou através de um

nhircâmbio de carícias com outra pessoa — que deter- Htlmi

resposta orgástica. Tanto num como noutro ingre-

• lUnte da sexualidade o prazer é individual; ganha um

iu|wcto inter-pessoal — dar prazer ao parceiro — quando

•involve o elemento amoroso; ou então, no caso do homem,

haver uma satisfação do tipo do orgulho pessoal i'

trr conseguido levar a mulher ao orgasmo.

Do ponto de vista do pensamento religioso, criado |

m»Io modo de ser do homem generoso — arbitrariedade moral

derivada de sentimentos de culpa — a renúncia iiom

prazeres do corpo determina um novo tipo de pra- ívr,

percebido como mais edificante e engrandecedor. tn»8ta

forma, a sexualidade é vista como um prazer vul- J . M do qual

o homem deverá se afastar. Apesar dos ge- nrrosos serem

minoria, são os geradores das idéias e, por- tnnto, têm um

poder de influência grande sobre as normas mooitas por uma

determinada cultura, apesar de que suas inncepções são, em

geral, deturpadas durante sua apli- «ittçflo. Ainda assim,

o resultado final guarda aspectos desta idéia inicial,

especialmente no modo como age a grande maioria do grupo —

os sub-grupos que detém o poder pregam para a massa coisas

bastante diferentes daquelas que eles vivem.

Fica claro que, deste ângulo, a sexualidade deva ser

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38

relacionada com o mal, com o egoísmo e com um modo de

existir vulgar. As pessoas que a exercem livremente não

são dignas de consideração; porém, despertam sempre enorme

fascínio — especialmente nos generosos — o que reflete a

presença de tal desejo em todas as pessoas, bem como o

fato da renúncia sexual ser uma coisa mais imposta pelo

processo psíquico do que uma convicção genuína. A

correlação da sexualidade com a maldade é uma decorrência

do equívoco de raciocínio determinado pelo sentimento de

culpa predominante na opção generosa. A grandeza

experimentada ao se perceber capaz de tolerar frustrações

não deveria levar à renúncia dos prazeres com a finalidade

de o homem cada vez mais, só se engrandecer de

sofrimentos; conforme já disse, em condições normais um

tipo de prazer — da renúncia — não deveria suprimir o

outro — do corpo.

Sexualidade, associada à maldade, baixeza e egoísmo,

é algo que tem que ser evitado pelos espíritos superiores

e que pretendam continuar evoluindo. O amor romântico,

grandioso e elevado, deverá, pois ter natureza assexuada.

Nas ligações amorosas mais corriqueiras o sexo se torna

aceitável através de uma deformação de sua natureza: a

mulher apaixonada se entregará fisicamente ao

homem com a finalidade de agradá-lo, usufruindo apenas

secundariamente do prazer; do mesmo modo, o homem tratará

de dar prazer à mulher, fato bastante mais aceitável do

que reconhecer que está ele em busca de prazer.

O homem e a mulher narcisista exercem com muito mais

liberdade o prazer sexual, pois que isto não significa

para eles uma limitação no desenvolvimento espiritual. A

sexualidade da mulher narcisista está sujeita I I outras

repressões de natureza psíquica e social que já

• llncuti em trabalho anterior; sua expressão maior

será

• juunto ao prazer de se exibir, exercido de um modo

que Mnimente será feito pela mulher generosa. Não só a

ex- »it ição física mas a ostentação do poder econômico e

do «liistaque social é bastante mais aceitável para o

egoísta <lo que para o generoso.

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39

A questão da sexualidade humana é extremamente

• omplexa e cheia de entremeios ainda não devidamente

ndarecidos. A minha intenção aqui foi apenas no sentido

de introduzir mais um elemento, eventualmente es- i

hirecedor do modo como o tema é abordado pelo pen-

Mrnento religioso, o que vale dizer pelos homens genero-

O pensamento deles influi sobre as normas sociais i<

«itravés delas, sobre os homens egoístas, cujo compor-

tumento é determinado em grande parte pelos temores <|n

represálias sociais; desta forma, o modo de pensar dos

homens generosos influi diretamente sobre eles mesmos i

indiretamente sobre todo o grupo. O clareamento das i

ilhas deste tipo de pensamento abre, pois, perspectivas

p.tr.i outros tipos de propostas e para outras maneiras

<!o rxistir do ser humano.

II

A renúncia aos prazeres e direitos pessoais se faz,

pois, inicialmente, em decorrência do sentimento de cul-

pn; as pessoas que persistem capazes de se colocar no pa-

|H|| das outras experimentam as coisas da vida de uma

maneira mais completa e rica de possibilidades e de pon-

tos de vista, mas experimentam também maiores sofrimentos

— além dos seus, aqueles que supõem os outros estejam

padecendo. A situação se torna complicada quando o

usufruto de algum direito pessoal é percebido como capaz

de provocar sofrimento em outra pessoa; e mais ainda se

esta outra pessoa é alguém a quem se está afetivamente

ligado. Talvez esta situação possa ser entendida como

sendo o dilema moral mais elementar e essencial. A

situação não seria difícil de ser resolvida se uma das

duas pessoas tivesse mais direito àquilo que é desejado

por ambos, pois a ela caberia o privilégio. Mas há muitos

casos em que os direitos são iguais e onde o objeto de-

sejado não pode ser fraccionado (se duas crianças desejam

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40

o mesmo doce, em igualdade de direitos, se pode cortar o

doce ao meio e se resolveria a questão tendo cada uma

direito à metade).

É possível que um dos aspectos nucleares do desen-

volvimento psicológico dos meninos resida numa situação

deste tipo, envolvendo como opositor o seu pai e como

objeto comum do desejo sua mãe. Por sua própria natureza,

o amor é exigente e exclusivista, de modo que é difícil

supor que ambos pudessem amar a mesma mulher

simultaneamente, ou cada um dos dois se contentasse com

uma parte das atenções dela. Conforme as idéias

desenvolvidas por Freud (e alteradas por mim em "O

Instinto do Amor"), o menino estabelece com a mãe, entre 6

e 8 anos de idade, uma ligação mais de natureza

intelectual, que corresponde a uma evolução do vínculo

físico que os unia desde a gestação. O amor — como fe-

nômeno espiritual — corresponde a um desesperado esforço

no sentido de não se desprender da mãe e se perceber como

criatura autônoma e independente, condição que obrigaria a

criança a experimentar a dolorosa sensação de desamparo e

solidão. É como se todos nós resistíssemos ao máximo à

idéia de nascer, tentando po- risso manter vivo o vínculo

simbiótico original; quando a ligação física com a mãe se

torna impossível — pois ela implicaria em limitações ao

processo de individuação •• i'Oit«jnto, impediria o

usufruto de outros prazeres — e |> t»sinto desenvolvimento

da razão abstrata, se estabeleço umn ligação com ela mais

em imaginação; e tal fenô- Imiho c'? o que corresponderia

ao amor na forma adulta, iiunforme o experimentamos.

Assim sendo, pai e filho têm pela mãe sentimentos Igutiln.

Ambos estão ligados a ela da mesma forma; e ape- do amor

perder seu caráter essencialmente físico — o tirni nfio

significa que não exista prazer no contato corpo- mantém

algumas características próprias da sua hitiuroza

primeira, principalmente o fato de ser ligação n ilois.

Está composto o dilema fundamental, que em |Mncia é a

disputa de dois homens pela posse — amoro- de uma mulher.

E os rivais são, além de tudo, cria- liitn% ligadas por

fortes vínculos afetivos. A disputa é rtnjh.is vezes

ostensiva; mas, na maioria dos casos é ve- no menos nas

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sociedades ditas civilizadas, onde se- r»n inadmissível a

um pai confessar seus ciúmes e raiva

• 1*1 próprio filho. 0 grau de rivalidade depende

também «l«» nível de maturidade emocional do pai, se bem

que honmns maduros são menos cruéis mas também experi-

mentam os ciúmes. Se por um lado são mais tolerantes »i

proocupados com o filho, por outro são mais sentimen-

( m . <; têm com a esposa ligação mais intensa, fato que

01 f.iria agir com maior possessividade.

A atitude global do pai seria no sentido de se colo-

• ii como muito exigente de comportamentos adequa-

• Im por parte do filho. Na medida em que este não age

• acordo, fato evidentemente usual para crianças nes-

iii Idade, o adulto se atribui o direito à punição violen-

• <i, muitas vezes sendo esta apenas uma forma de

disfar-

• .ir o desejo agressivo próprio daquele que está

enciumado. Outros pais serão excessivamente tolerantes,

inclusive nngligentes em relação à sua função pedagógica;

e isto t into por se perceberem arbitrários e muitas vezes

injus- toi, como movidos por anseios menos dignos; ou

seja,

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desejando que os filhos não se desenvolvam da melhor forma

possível, para que não sejam rivais à altura dele. E não

deixa de ser terrível perceber que o processo educacional

seja tão profundamente comprometido por esta disputa

amorosa. A confusão pode ser muito maior, dependendo da

maneira como a mãe se coloca em relação ao dilema:

endossar a atitude arbitrária do marido ou super- -

proteger o filho, coisa que usualmente é feita às escondi-

das do pai — evento que serve para compor uma certa forma

de cumplicidade entre ela e o filho.

Não é difícil perceber como é complicada e dolorosa a

situação do menino. Está sentimentalmente ligado ao pai,

que é também o seu rival; percebe a hostilidade dele e se

sente profundamente magoado. Não pode deixar de

experimentar anseios de vingança, que uma vez fantasiados

determinam enorme sentimento de culpa, pois imagina o pai

sofrendo por algo que ele foi responsável. Tem ciúmes das

atenções da mãe, que ele gostaria fossem dirigidas para

si, e percebe que o pai experimenta o mesmo tipo de emorão

quando é ele o beneficiado por carícias e cuidados.

O menino gosta do pai, ao mesmo tempo que tem raiva

dele; e também o teme, pois ao desobedecê-lo, é, como

regra, severamente punido. Porém, obedecê-lo pode ser

percebido como fraqueza, submissão ao rival; agir como ele

deseja — e que é o mesmo que agir como ele, pois todas as

pessoas se tomam como exemplo de perfeição, apesar de

falarem de modo diferente — pode parecer a melhor maneira

de agradar à mãe (quando ela ama o marido) que é outro

anseio presente o tempo todo. Desta forma, além do dilema

inicial ligado à disputa pelo amor da mãe, se cria no

menino uma enorme confusão acerca do seu modo de ser, de

pensar e de se comportar. Esta confusão o enfraquece e

determina enormes tensões psíquicas, muitas vezes

responsáveis por distúrbios observáveis, como insônia,

tendência para alterações do«imtlte, dificuldades de concentração para atividades es-

«olores, etc.

Quando mais se agrava esta situação, mais cresce a

IAIVÍI em relação ao pai; e esta se acompanha de um cres-

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nintc» sentimento de culpa essencialmente relacionados

f«Mn as fantasias destrutivas, desenvolvidas

principalmen- IM rm sonhos. Além dos sentimentos de culpa,

extrema- munte penosos naqueles que persistem em se

colocar no liMjnf do outro, existe também o medo de

represálias — punições — por parte do pai. E estes dois

sentimentos m mesclam, muitas vezes de um modo difícil de

ser se- (Mirndos.

Nas crianças pouco sensíveis ao sentimento de cul- imi, o

medo de represálias é percebido com mais nitidez,

• orno emoção autônoma e de importância determinan- III nu renúncia ao amor da mãe, única forma de aplacar n ftm

do pai, condição indispensável para se recuperar

• im mínimo de equilíbrio e de coerência interior.

Naque- lí •. mais preocupados com os outros, o medo de

represá- 11it também existe, mas se associa ao sentimento

de cul- Imi no desencadear da mesma decisão final, que

inevita- volrrmnte consiste na renúncia ao amor pela mãe.

E é curio- iio observar que para estas pessoas o

sentimento de culpa,

• Hhindo experimentado em outras situações da vida

pos- lurlor, guarda sempre esta associação com o medo de

al- iliim tipo de punição. Ou seja, além da dor por

provocar II tiofrimento de alguém — mesmo numa situação em

que luto se justifica — surge também uma sensação difusa

de mudo, como se a pessoa prejudicada fosse tomar algum

tipo de atitude agressiva em represália. Muitas vezes o

tumor de represália surge sob a forma mágica ou mística,

MMKIO que nesta condição a vingança seria divina ou in- htimediada por fenômenos ligados a desejos destrutivos

mnnnados de pessoas invejosas.

Tal medo de represálias associado ao sentimento

• lr culpa torna o menino ainda mais vulnerável a esta

emoção, de modo que a renúncia à ligação amorosa com a mãe

aparece como mais viável do que o enfrentar tanto

sofrimento. Conforme já afirmei, o processo inicialmente

corresponde ao de se buscar a saída que implique em

sofrimento menor, de acordo com um princípio econômico: ou

o sofrimento mínimo ou o prazer máximo. A renúncia amorosa

é também a derrota em relação ao pai; é rendição

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incondicional, ou seja, tendência à submissão e desejo de

se comportar conforme sua vontade — que, insisto,

significa se comportar como ele. Os que renunciam ao

vínculo materno apenas em decorrência do medo de

represália mantém um relacionamento menos dócil em relação

ao pai, sendo muitas vezes só superficial sua obediência

ou desejo de agradá-lo; anseios de vingança em relação a

ele são muitas vezes conscientes, apenas adiadas para um

momento mais oportuno.

Em uns de modo mais profundo e noutros de maneira

mais superficial, mas em todos os meninos surge, a partir

dos 9 anos de idade, a tendência para idealizar a figura

do pai, fato que se acompanha de um esforço de incorporar

sua maneira de ser e de pensar. A atitude competitiva dos

pais em relação aos filhos costuma se atenuar a partir

daí, sem contudo desaparecer por completo. São raros os

pais que não colocam como limite para o desenvolvimento

dos seus filhos a sua própria forma de ser; em outras

palavras — e independentemente do que digam — os pais

ficam profundamente incomodados pelo fato de seus filhos

os ultrapassarem como figuras humanas. Os filhos, no afã

de agradar seus pais e obter deles o afeto incondicional

— jamais experimentado — se empenham em ser como eles, e

até mesmo em serem mais bem sucedidos que eles. Ao invés

disto agradar aos pais, parece que os vai ameaçando na

sua hegemonia, de modo que os filhos não obtém deles as

respostas de apreço que esperavam. Isto provoca mágoa, ao

menos inicialmente; depois a tendência seria no sentido

do reacendimento

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• IÜ íintiga rivalidade — agora não mais

intermediada pe- lo triângulo amoroso — pois os filhos

acabam por se gra- «Ificar com a irritação que o seu

desenvolvimento provo-

• .1 nos pais, e isto determina um estímulo a mais

no sen- tIdo da superação de si mesmos. A disputa

entre os ho- mnns de geração diferentes tende a se

perpetuar e é uma «ln% constantes, ao menos em

culturas como a nossa; tal imno foi abordado de modo

mais extenso e genial por I wud, em Totem e Tabu

(1913).

O conflito da menina com a mãe é, conforme acre- IIto,

de natureza idêntica. Apenas sua intensidade é me-

•t"i e isto porque a ligação dela com o pai é já uma

vin-

• ulnção afetiva secundária (o primeiro objeto do

amor «léi menina também é a mãe); além do mais, nossa

socie-

I.KIC tem dado pouca importância à mulher e ao seu de-senvolvimento pessoal, de modo que a rivalidade —

espe-

• Irtlmente nas fases posteriores da vida — seria

menor,

. ligada a aspectos mais sem importância, qual seja a

apa- írtncia física, competência para prendas

domésticas, etc. Nn medida em que se avançar na

tendência à igualdade feudal da mulher a que temos

assistido, é de se supor que H fenômeno se aproxime

cada vez mais daquele que des- i n vi como próprio do

mundo masculino.

Resulta claro que o dilema moral fundamental não

f«*solvido de uma maneira racional. O processo de re-

nuncia — obrigatória — é atingido através do medo de

mpresálias ou de sua associação com sentimentos de cul-

Ii<i E ainda mais, tudo isto^se passa num clima caótico

um que a atitude pedagógica dos pais é fortemente influ-

«miada por suas atitudes conflituosas em relação aos*

filhos, de modo a ser muito difícil imaginar que possam

•<lli com justiça. E a identificação do menino com os

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valores do pai — e o inverso para as meninas — se

efetiva, iiípcrficial ou profundamente, em função do

desejo de «lilacar sua ira e de reparar os desejos

destrutivos fanta- •lodos.

Conseqüentemente, é impossível imaginar que, em meio

a tanta conturbação emocional, alguém consiga desenvolver

com propriedade — e por conta própria — a capacidade de

julgar com justiça cada situação de dilema, optando, às

vezes, por renunciar e às vezes por se atribuir o direito

a uma dada coisa. Alguns tendem a lutar sempre no sentido

do benefício pessoal, só sendo limitados pelo medo das

represálias alheias. Outros tendem à rápida renúncia em

favor de terceiros, agindo sempre no sentido de evitar

sentimentos de culpa (que, como disse, são sempre

mesclados aos medos de represálias).

Costuma-se supor que o homem capaz de renunciar em

favor do outro seja a pessoa boa, portadora do senso de

justiça. E tal idéia é reforçada pelo pensamento reli-

gioso, que prega claramente tal atitude. A experiência

nos ensina que estas pessoas, por serem capazes de se

colocar no papel das outras, julgam adequadamente

situações e dilemas nas quais não estão envolvidas

pessoalmente. Quando é esta a realidade, muitas vezes

optam pela renúncia quando não o desejam; ou seja, são

boas por incompetência para defender seus direitos e não

por convicção íntima. E tanto isto é verdade que, a sós,

alimentam fantasias agressivas em relação àqueles a quem

favoreceram.

Ao mesmo tempo, o que renuncia mesmo não de acordo

com o desejado percebe que nestas experiências de

frustração ele se torna cada vez mais forte, cada vez

mais calejado e preparado para as coisas da vida. Percebe

também que o tipo egoísta o inveja — ao mesmo tempo que

se aproveita dele. Alimentado pelo estímulo religioso,

pela inveja dos que agem de maneira oposta, e pela

sensação subjetiva de engrandecimento e fortalecimento, o

generoso persiste na sua trajetória. Mesmo se tentar se

modificar, no sentido de ser mais egoísta e agressivo,

não o conseguirá, pois os sentimentos de culpa o apri-

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sionam. Persistindo na conduta generosa, se sente cada n f

mais vitalizado, cada vez mais superando a si mesmo,

descobre nisto um prazer novo, que chamei de pra- t"\ da

renúncia. Se torna com isto mais distanciado ain- t\ i \ do

sentido de justiça, pois agora a renúncia passa a w«i

gratificante por si, e é isto que o homem busca acima (In

tudo.

A partir da descoberta do prazer da renúncia, esta

iifln tende a se dar apenas nas situação de dilema: passa

N mm o princípio fundamental da vida. O indivíduo tende-

iA n abdicar aos prazeres da vida em geral e os do sexo

f<m particular; abrirá mão mesmo quando isto não bene- |

ii liit a ninguém e sem implicar, portanto, em confron-

(!*'» com o sentimento de culpa. A sensação subjetiva de

liMiuluza, derivada do conseguir transcender à condição

humana, passa a ser o prazer maior. A renúncia aos pra- r

inr. alimenta o prazer da renúncia.

III

0 prazer da renúncia fica cada vez mais claramen- tn

imociado à sensação de superioridade pessoal. A renún-

llii parece ser o caminho que conduz o homem às suas

•in|»iirléncias de transcendência, de aproximação com a

tllwmdude. Fica associada à idéia de uma vida rica e mais

11 tutIva. Passa a ser o pilar de certas doutrinas e, do

pon- lii dc vista de certas religiões, é o caminho básico

para 0 nnlvação do homem. Abrir mão dos prazeres do cor-

o que, insisto, não significa abdicar em situação de

Uiltuna, pois este agora não existe — fica associado ao

Muicoito de enriquecimento do espírito, de um modo tf*

vida mais digno, mais gratificante e mais próximo do que

se supõe ser o modo de vida da alma desprendida do corpo.

Ou seja, o homem deve tratar de ir vivendo desde já como

se ele não possuisse um corpo desejoso de prazeres. A

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percepção de tais desejos fica associada à fraqueza,

incompleto desenvolvimento e, portanto, a algo que deve

ser combatido. A rigor, o corpo deveria ser um cabide

cuja finalidade seria transportar temporariamente a alma

até que ela pudesse se desprender e se libertar; seus

anseios são obstáculos ao pleno desenvolvimento da alma e

não devem ser levados em consideração. O homem seria

tanto mais forte e mais maduro quanto mais tivesse força

para a renúncia e para viver apenas em função dos

prazeres espirituais e de acordo com a vontade revelada

pelos deuses a nós.

Assim sendo, o homem que desenvolve o prazer da

renúncia desequilibra cada vez mais seu modo de ser e de

pensar na direção espiritual, abstrata. Tende a dar mais

valor às coisas da filosofia, à religião, ao ascetismo e

a considerar vulgar a vaidade física, os prazeres

materiais e a sexualidade. Porém, nos tempos de hoje a

sua atitude é mais contraditória, pois os valores da

cultura enfatizam cada vez mais estes últimos, mais

diretamente relacionados com o gozo dos prazeres mais

elementares e diretos do ser humano. O prazer da renúncia

continua a existir, mas as próprias pessoas que assim

procedem põem em dúvida sua conduta, especialmente porque

ela entra em choque com o que é socialmente valorizado.

No passado as virtudes espirituais eram claramente louva-

das — apesar de que a maioria das pessoas não as atingia,

condição na qual se sentiam pouco desenvolvidas. O pro-

gresso técnico trouxe consigo uma série de importantes

aprimoramentos da vida prática e, para estimular seu con-

sumo, houve uma alteração básica dos valores humanos; a

nossa época não estimula a renúncia e sim o poder usu-

fruir das delícias dos novos produtos capazes de trazer

importantes sensações físicas de prazer. Está em curso i

imbém importantes alterações na chamada moral sexual,

• uJíi liberação imediatamente desperta o desejo e o

in- ioiesse humano — pois se trata de um instinto que,

uma n r menos reprimido, surge de modo explosivo.

Fica cada vez mais difícil a um homem se alimentar

• Io prazer da renúncia, pois as coisas às quais ele

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deve ibrir mão são muitas, e altamente tentadoras. Até há

poucas décadas abdicar era bastante mais fácil, pois im-

plicava essencialmente em não se beneficiar de certos i-i

(|uenos luxos — que pouco alteravam a vida da pessoa — c»

dr uma vida sexual um pouco mais atraente.

A sociedade industrial, através da produção em mas-

Ki de bens de consumo, teria que influir no processo psí-

quico humano obrigatoriamente no sentido oposto ao <|imj

pregava o pensamento religioso. E a ênfase teria que !

<•»! colocada sobre as criaturas incapazes de qualquer

ti- po de renúncia — os mais imaturos e egoístas, com

pou- m ou nenhum sentimento de culpa — pois são eles os

• lim se deliciam com os prazeres mais imediatos e de

tipo mntorial. Neste processo seria também inevitável que

uma Omln de libertação sexual existisse; e mais, que

interme- illitsse novos anseios de consumo, como é o

procedimen- in típico da publicidade dos nossos dias: se

utiliza de um

• l< ;(»jo instintivo — que nasce espontaneamente do

cor-

para associá-lo a um objeto novo, de sorte a que o

homem venha a desejá-lo, pois através de possuí-lo teria

(#• osso mais fácil à situação sexual.

Nestas condições é fácil perceber que a existência

«In Deus teria que ser negada; a religião teria sido obra

ilns homens, ignorantes e ingênuos diante de uma natureza

desconhecida e misteriosa. Agora que a ciência faz

piogressos e se aproxima rapidamente do desvendar de to-

«IIIH os mistérios e esclarecer tudo, não há mais lógica

alguma em se continuar crendo num ser superior. O homem e

sua ciência passaram a substituir as antigas divindades.

E mais, a idéia de Deus é nociva, pois em nome dela

sempre se pregou o prazer da renúncia. E nunca é demais

reforçar o fato de que a existência indiscutível deste

prazer foi utilizada de forma maldosa e oportunista pelas

minorias — não muito dignas — que dominaram os povos:

sofrer aqui na terra, que corresponderia ao exercício

deste prazer, em favor de uma vida após a morte cheia de

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grandeza e bem aventurança foi — e, em certos lugares, é

— uma fórmula maliciosa e de opressão da maioria; é a

deturpação de um conceito verdadeiro em uma fórmula

prática que beneficia a uns poucos espertos. Já afirmei

várias vezes que os humanistas sinceros criam belos con-

ceitos e que os sofistas e homens poderosos se apropriam

destes, os deformam em causa própria, e depois os trans-

mitem para o povo, que os absorve em virtude deles con-

terem alguma verdade convincente; porém, a pequena

deturpação, que muda todo o conceito, não é percebida.

Já que o pensamento religioso deveria ser abafado,

pois contrariava os interesses do consumismo crescente,

surgiram as pessoas capazes de criar os argumentos que

provavam a inexistência de Deus. Da mesma forma que no

passado se provou sua existência, agora se provou o con-

trário. E é claro que nenhum dos dois tipos de argumento

é muito racional e sincero, pois — como já disse — Deus,

se existe, não se revelou ao homem. A utilização, por

exemplo, de fenômenos atípicos e inexplicáveis para pro-

var a existência de Deus é um argumento ingênuo e pobre;

e será tão pobre quanto isto afirmar que Deus não existe

porque tal fenômeno pode — ou poderá — ser explicado

cientificamente. Assim sendo, o conceito de Deus pode

surgir, desaparecer e voltar a ressurgir, conforme obser-

vamos nos dias de hoje. E isto se deve ao fato dos homens

terem percebido que nem todas as suas insatisfações se

msolvem com comodidades materiais, além do fato que

0 desenvolvimento técnicotrouxe

consigo problemas e

«liíiculdades insuspeitadas, bem como não cumpriu todas m

suas promessas no sentido de esclarecer os mistérios

«In vida.

É curioso observar também que mesmo no apogeu

• In euforia materialista persistiram em quase todos os

homens restos do pensamento mágico, sob a forma do <|UB

chamamos de superstições. E isto também em espíritos

bastante esclarecidos, e que lutavam contra estas

tundências em si mesmos. Sempre houve nestas criatu-

1 n uma enérgica atitude no sentido de se opor

dogmati- i imente a uma revisão mais ampla do pensamento

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religioso; este foi negado com o rigor próprio daqueles

que

• i* 10 estão em busca da verdade e sim de

sustentarem suas posições através de desprezar tudo aquilo

que possa tra- /«í dúvidas ao sistema lógico no qual

acreditam.

A nova época, que faz a apologia dos prazeres mais

Imodiatos — os prazeres do corpo — encontrou no tipo

humano narcisista um adepto natural. Se antes se viam

Mimo criaturas incompletas, pecadoras e pouco sofisti-• tidas espiritualmente, o que as deixava

inferiorizadas •m relação aos padrões sociais, de repende

se viram valo- H/.idas, louvadas como sendo a forma humana

correta 'In ser e de se comportar. Incorporaram

rapidamente os novos padrões e se livraram do esforço

hipócrita que fa- iltim - quase todos — para aparecerem

como criaturas irnrrosas e beatas. A sensação é de que

eles é que esta- wnm certos, que o modo ideal de existir

do homem é aque- l" para o qual estavam habilitados.

Passam a ser os apologistas do progresso, os que mais

acreditam na técnica (nino sendo o caminho da salvação.

Usufruem com de- lulto das novas facilidades e aguardam

ansiosos qualquer Inovação capaz de lhes trazer algum tipo

de satisfação it tiiuis.

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Os generosos, porém, percebem as coisas de modo diferente.

Se encantam também com as novidades e são capazes de reconhecer

sua utilidade, facilidades e gratificações. Não podem se opor

intelectualmente, mas sentem uma certa dificuldade no usufruto de

cada uma das coisas que torna a vida mais simples. Na medida em que

aprenderam a associar a grandeza pessoal a renúncias e sofrimentos,

se sentem diminuídos, enfraquecidos e até mesmo pouco dignos diante

de situações de vida na qual não têm que sofrer. É como se ao viverem

uma condição mais cômoda e prazerosa se sentissem rebaixados,

fúteis e insignificantes. Experimentam as novas aquisições com cautela,

com medo; demoram a se habituar a elas e só as incorporam com muita

dificuldade e sem lhes dar, ao menos em nfvel de consciência, grande

importância e valor. É como se, ao transformá-las em coisas banais —

ou mesmo tediosas — pudessem possuí-las e usufruir delas. Não é raro

que o generoso, ao mesmo tempo desejoso de alguma nova aquisição

e contraditório em relação a isto por se sentir mal em desejar coisas

capazes de provocar prazer imediato, resolva o conflito do seguinte

modo: se for ligado a alguma criatura egoísta -- esposa, mãe, filho, etc.

— fará com que esta deseje a tal coisa; ele, muito "magnânimo"

oferecerá o objeto a esta criatura, que — "coitada" — se encanta com

coisas materiais. A partir daí terá a oportunidade de usufruir da coisa

que foi adquirida para agradar a alguém e não por desejo pessoal. Este

é um curioso processo, no qual poderíamos dizer que o generoso

necessita do egoísta para resolver suas contradições entre desejar os

prazeres imediatos ao mesmo tempo que se sente fútil e vulgar por isto.

E é claro que estas contradições são muito maiores nos tempos de

hoje, ricos de alternativas fascinantes, do que eram há cem anos atrás,

onde a vida espiritual parecia ser a única alternativa atraente.

A situação global das pessoas, do ponto de vista lulcológico, é

hoje bastante curiosa: os narcisistas estão duramente conscientes de

que as gratificações materiais t? mesmo sexuais — não resolvem suas

frustrações e nflo apazíguam o estado íntimo de insatisfação contínua.

Os generosos estão cada vez mais em dúvida acerca da validade de

suas renúncias e incomodados com o fato de nflo usufruírem

adequadamente das coisas materiais, em (jurai entendendo mal a razão

disto — percebido apenas iiomo uma difusa sensação de culpa e medo.

Os que vivam conforme o corpo se ressentem de um vazio ligado lo

pequeno desenvolvimento da alma. Os que vivem conforme os

mandamentos espirituais se sentem prejudicados por não conseguirem

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usufruir das delícias do corpo. E ninguém está feliz; e, principalmente,

ninguém está ab- •olutamente convencido da validade do modo como

estão vlvnndo.

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3. VAIDADE E AMBIÇÃO

Conforme acredito, o prazer da renúncia é fenômeno .ujtônomo e determinado pela existência da razão abstrata. O desenvolvimento da razão humana, e especialmente para além do simples registro e correlação da realidade externa e interna, permite o surgimento de com- plexos fenômenos capazes, por si, de trazer sensações profundamente desagradáveis e outras absolutamente prazeirosas. O homem se sentirá alegre ou triste em função tjr estar fazendo sol ou chovendo, em função de ganhar ou perder dinheiro, etc.; e estas sensações serão derivadas tlu como a razão concreta lida com a realidade externa, nndo tal fenômeno independente da realização de dese- |os instintivos ou satisfação de necessidades orgânicas (o •l.inhar dinheiro pode ser percebido como agradável mesmo que não seja diretamente relacionado com sua utilização prática). E mesmo se nestes eventos se reconhecer uhjum ingrediente de natureza sexual, não creio que seja0 único. Conforme tentarei mostrar aqui o componente • Irste instinto que chamo de prazer de se exibir contamina1 todos os processos humanos, o que talvez tenha sido »i causa do erro de Freud de atribuir a este instinto uma importância (mpar — apesar de que não estava muito lon(je da verdade.

Através da capacidade de raciocinar e de imaginar o homem

pode chegar — em um processo exclusivamente intra-psíquico — a

uma série de dúvidas; pode não saber explicar situações que foi

capaz de imaginar, o que vem a ser não saber responder a

perguntas que soube formular. Aliás, todas as respostas que

trouxeram importantes acréscimos ao conhecimento humano

surgiram a partir destas perguntas desconcertantes; e isto é de tal

forma essencial que acredito que o mais importante seja se

conseguir formular perguntas originais, pois elas fatalmente — ainda

que muitas vezes após longo tempo — levarão às respostas.

Qualquer pergunta que não possa ser respondida gera uma

sensação de desconforto, de des- prazer, similar aos desconfortos

próprios de algum tipo de insatisfação orgânica. De modo análogo,

este desconforto — que é a dúvida ou a ignorância — busca sua re-

solução. E talvez isto explique a enorme dificuldade do ser humano

de conviver com dúvidas, que seria o equivalente à sede ou à fome

do ponto de vista da razão. Assim, também o espírito prefere uma

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má resposta — uma comida inadequada — do que persistir no

desconforto da ignorância; e quantos erros e precipitações não

cometemos em decorrência disto.

Se a dúvida é um desagradável incômodo, a resposta

convincente é sensação, por si, bastante prazerosa. E é um prazer

autônomo derivado da resolução de um desconforto criado pelo

próprio indivíduo através de sua capacidade de correlacionar e

imaginar. Creio que o que se chama de curiosidade intelectual é um

impulso que surge no processo racional a partir de alguma dúvida,

sentida como desagradável, É um esforço ativo — autônomo — no

sentido de se buscar também este tipo de ho- meostase, de

equilíbrio. 0 processo é similar ao da resolução das necessidades do

corpo, porém essencialmente diferente em virtude do fato de que o

desconforto não é real. 0 prazer intelectual é ligado a se recuperar o

es- tíido de equilíbrio através da resolução das dúvidas geradas

dentro da própria pessoa. O desequilíbrio deriva do próprio modo de

funcionamento da razão e de sua capacidade extraordinariamente

desenvolvida no homem.É difícil imaginar — ao menos para pessoas inteli- gontes —

longos períodos de serenidade quanto a este Mpecto, pois as dúvidas e perguntas intrigantes surgem .«•mpre. E o simples clareamento de certos dilemas costuma desembocar no surgimento de novas questões. A ♦«Ituação é bastante mais difícil quando não existe sequer um conjunto de conceitos nos quais se acredita e em fun- i;ilo dos quais se tenta dirigir o processo de clareamento dns dúvidas novas que surgem. Quando existem, funcionam como uma espécie de bússola, de modo que o indivíduo não se sente tão desorientado. É evidente que •ixiste o perigo oposto: o indivíduo se filiar a uma ideolo- ijl.i essencialmente com a finalidade de se ver livre do so- tfimento imposto pelas dúvidas e contradições que a ra- /Ho pode criar. E não creio ser difícil de entender que o homem se torna mais criativo e livre quando não acredi- t.i muito em doutrina alguma; esta situação, existente mmpre que um sistema lógico de explicação do mundo mostra insuficiente ou muito falho, cria as condições Iduais para o surgimento de uma nova doutrina, cuja acei- hição conduzirá a uma acalmia, situação mais serena e menos criativa.

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Desta forma, dois seriam os prazeres de natureza «isoncialmente intelectual, ambos ligados à idéia de aprimoramento pessoal. Um através da resolução de questões wuto-geradas — ou propostas por outras pessoas — e outro no se perceber forte em decorrência de poder renun- « liir a prazeres do corpo — em favor de terceiros ou ape* fui*, por grandeza pessoal. Tais prazeres derivam da capa- • Idade humana de abstração, ficando a razão concreta m.iis relacionada com a resolução de problemas de ordem Mi/itica, além de intermediar todos os processos instintivos e também os derivados da imaginação; a ela chegam todas as informações e dela derivam as resoluções finais que conduzem à ação. Respostas adequadas determinam um estado de contentamento íntimo, que seria o prazer próprio da razão concreta.

A separação dos vários tipos de sensação agradável e desagradável conforme sua fonte geradora é processo esquemático e difícil de ser feito, além de que está sujeita a inevitáveis equívocos. Os processos humanos se interrelacionam e as sensações são difusas e imprecisas, além do fato de que a razão detecta todas elas, de modo a parecer que tudo deriva de uma só fonte. E mais, componentes instintivos de natureza sexual se mesclam obrigatoriamente às funções racionais, de modo a se poder também supor que todas as sensações prazeirosas derivem desta fonte.

Além da sensação de excitação sexual derivada da estimulação direta das zonas erógenas, existe no ser humano uma outra curiosa manifestação deste instinto, que é um estado de excitação difuso — e independente de qualquer estimulação direta — ligado ao se exibir. 0 processo deste tipo se inicia pelos 5 anos de idade e a princípio tem a ver com a exibição dos próprios genitais; o fenômeno necessita de observadores, se bem que seja pouco importante quem seja e o grau de atenção que estejam prestando ao fato (o exibicionismo, como desvio adulto, seria a preservação intacta desta característica inicial do fenômeno). Rapidamente o prazer de se exibir se expande e o prazer de exibir os genitais se transforma no prazer de se exibir como um ser inteiro, como uma criatura graciosa quanto aos movimentos — e se isto não é facilmente perceptível no comportamento dos meninos é porque tal conduta é fortemente reprimida pela nossa cultura.

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O exibir-se se sofistica cada vez mais, sempre no sentido do indivíduo experimentar uma sensação difusa

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de prazer — indiscutivelmente da mesma natureza que o derivado da estimulação das zonas erógenas e, portan to, sexual — quando se percebe capaz de chamar a atenção das pessoas para si. E tudo o que puder ser feito para que isto aconteça mais intensamente será desejado pela própria pessoa, sequiosa de experimentar a sensação sexual agradável. Assim, tudo o que seja extravagante e capaz de chamar a atenção passará a ter uma conotação claramente sexual: uma roupa vistosa, um anel, um colar, cabelos de coloração diferente, brincos pouco usuais, otc. No caso dos homens a extravagância física é fortemente reprimida no que diz respeito a hábitos de vestir, pois a masculinidade entre nós — e isto está em mudança — deve se impor em função da discreção. Só os homossexuais r. que podem exercer o prazer de se exibir desta forma, lida como feminina.

Porém, em determinadas circunstâncias o fato de uma criatura não usar nenhum tipo de objeto capaz de chamar a atenção — especialmente quando poderia, em função de sua situação econômica — também será uma forma de atrair para si os olhares. E este pode ser o intuito em muitos casos.

0 indivíduo não chama a atenção apenas pelo modo como compõe sua aparência exterior — se bem que al gum tipo de preocupação a este respeito seja inevitável, lambém o faz por viver de uma maneira pouco usual, por pensar de um modo não convencional. E nunca é demais repetir que o chamar a atenção corresponde a um prazer de natureza claramente sexual. Só poderia dispensar este tipo de prazer aquela criatura que tivesse Mínunciado a toda a sorte de gratificação sexual. Uma vez que nunca se cogitou claramente da existência deste tipo de prazer — e que pode ser muito intenso e até mesmo gratificante como elemento único — sua proibição nunca existiu. E mesmo os padres católicos, celibatários, provavelmente pxnerimentavam alquma gratificação deste tipo ao se vestirem de um modo diferente do das outras pessoas, ao se sentirem pessoas especiais, vivendo e pensando de modo próprio. Assim, também acredito na existência de um prazer erótico de se exibir como componente da vida dos santos, dos filósofos, dos mártires, dos políticos, etc.

Qualquer tipo de extravagância conduz ao surgimento da

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possibilidade de chamar a atenção e só isto determina um prazer sexual. 0 luxo e a simplicidade extrema podem provocar, portanto, a mesma sensação. O desfilar pelas ruas com roupas chamativas e belas ou em farrapos; o exibir um cão de raça e bem tratado, uma criança muito linda. O andar num automóvel pouco usual desperta olhares; e tudo o que atrair olhares estimula eroticamente a pessoa.

O prazer de se exibir e a conseqüente busca de destaque — de chamar para si a atenção — em suas infindáveis formas correspondem àquilo que sempre se chamou de vaidade humana.

Não há ação humana que não esteja contaminada com este ingrediente, conforme se pode ler na Bíblia (Ecle- siastes). Ou seja, não existe nenhuma forma de expressão e de existência do homem que não contenha um elemento sexual, o que absolutamente não significa que toda a força que move o homem seja desta natureza. E esta tem sido, a meu ver, a razão dos múltiplos equívocos a respeito da importância e extensão da influência do instinto sexual na conduta humana global. Penso que não há ação humana desprovida de algum componente sexual, mas na grande maioria dos casos estão em jogo outros componentes, de natureza diversa, e que não podem absolutamente ser desprezados e obscurecidos pelo fato de se detectar um ingrediente sexual.

Através do prazer de se exibir ganham conotação sexual objetos de uso pessoal, automóveis, casas, e toda a sorte de coisas materiais; estas serão tanto mais sensuais quanto mais forem raras e, portanto, pouco usuais. Reafirmo que o elemento erótico fundamental é o chamar a .itenção sobre si, de modo que qualquer tipo de extravagância estará a este serviço; numa sociedade como a nossa o prazer de se exibir se exerce prioritariamente .itravés de se possuir objetos caros, e porisso mesmo, privilégio de poucas pessoas.

A busca de destaque social, função essencialmente erótica,

corresponde ao surgimento de uma força estimulante no sentido da

atividade, que costumamos chamar de ambição.

As mulheres mais atraentes e belas são aquelas que exercem

o prazer de se exibir da forma mais fácil; atraem para si olhares de

desejo dos homens — e de admiração ou inveja das mulheres —

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pela simples conformação de seus rostos e corpos. Tendem a tirar

desta fonte seu prazer principal, de modo que tratam sempre de

sofisticar <;ada vez mais sua aparência física,, dedicando a tal tarefa

grande parte de sua energia. Tal esforço só pode ser compreendido

em função da gratificação que ele determina. Se não tiverem grande

preocupação com áreas abstratas — imaturidade, ou precária

inteligência — tenderão a viver conforme este prazer, tendo nos

complementos de ordem material e em si mesma o centro da

vaidade e da ambição. Sendo, em geral, criaturas pouco persistentes

— afora quanto ao cuidar de si — e muito desejadas pelos homens,

buscam se ligar a um que seja rico e ambicioso, de modo a ter tudo

o que desejam sem muito esforço.Os homens não podem exercer esta forma mais simples de

realização erótica porque não são atraentes para as mulheres fisicamente do mesmo modo que elas o são para eles (vide "O Instinto Sexual"). Mesmo os homens mais belos despertam um interesse relativo sobre as mulheres; a beleza masculina é um valor indiscutível mas as mulheres levam muito em consideração outros aspectos como a inteligência, cultura, posição social e econômica, etc. Fica, portanto, mais difícil para o homem tirar prazer no se exibir, ainda mais que nossa cultura não permite grandes ousadias no modo masculino de se vestir. Apenas os homossexuais têm coragem de usar roupas capazes de chamar a atenção, brincos nas orelhas, etc.; no máximo, o homem poderá se destacar pela qualidade e riqueza dos seus trajes, que não deverão ser muito diferentes do padrão da época.

Não despertando o desejo ativo das mulheres pela sua aparência física, não podendo exagerar no modo de se apresentar, fica fácil perceber o surgimento de uma importante frustração masculina quanto ao prazer de se exibir. Tal frustração existe também nas mulheres menos atraentes, que ao menos podem lançar mão de trajes originais. A busca de algum tipo de destaque social é, pois, percebida como extremamente importante, pois resolve o desejo exibicionista e também atrai o interesse das mulheres. Desta forma, a vaidade masculina tende a se expressar através do exercício de atividades profissionais valorizadas socialmente, situação na qual o indivíduo chama a atenção para si

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em função do cargo que ocupa, da fama que possui ou do poder que detém. A ambição — energia dirigida no sentido de satisfazer a vai-dade — masculina se orienta, portanto, para estas metas.

Não é difícil concluir pela existência de uma ambição maior nos homens do que nas mulheres. Desnecessário insistir no fato de que a ambição determina um aumento de hostilidades entre os homens, sob a forma de rivalidades e competições, que se manifestam pela primeira vez aos 8-9 anos de idade de forma clara. A busca de destaque masculino teria como finalidade, além do prazer de se exibir, facilitar seu acesso às mulheres mais atraentes, que realizam suas ambições materiais e sociais através deles Mulheres menos atraentes tendem a se comportar como os homens, de modo a chamar a atenção por outras propriedades que não a física. Vivemos no momento uma época em que todas mulheres passaram a lutar intensivamente pela busca do destaque social, fato que se entende a partir do seu desejo de igualdade em relação .ios homens. Nem sempre as ações são feitas de modo muito crítico; apenas o que está havendo é a tendência das mulheres de exercerem a vaidade e a ambição de uma maneira masculina; e isto é percebido como grande progresso e mesmo como o caminho de uma emancipação feminina, fato que eventualmente poderia ser verdadeiro se os homens fossem realmente livres, o que não é real. Ao contrário, a ambição masculina se sofistica e se complica com rivalidades penosas apenas porque ao homem não é dado o direito de se exibir fisicamente de modo mais livre, em função do pavor da homossexualidade, que parece ser o castigo para qualquer extravagância des- fo tipo.

O indivíduo teria, portanto, prazer de natureza sexual em

qualquer coisa que chame para si a atenção das pessoas; qualquer

tipo de extravagância satisfaz a vaida- do. Na medida em que a

capacidade intelectual, o desprendimento das coisas materiais, a

generosidade e outras funções da razão, mais de natureza abstrata,

podem ser objeto de destaque no meio social, o seu exercício

também pode determinar um prazer erótico de se exibir. Qualquer

maneira de ser mais rara, menos corriqueira chama \ atenção e

desperta prazer exibicionista, ainda que não itxista nenhum esforço

neste sentido. O prazer de se exibi r é sensação subjetiva agradável,

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de modo a haver uma tundência no sentido do indivíduo desejar

experimentá-la tio máximo, donde muitas vezes existe um esforço

ativo no sentido de querer exibir suas prendas, mesmo as de

natureza mais sofisticada. 0 intelectual satisfaz sua vaida- dn ao

exibir seus conhecimentos; o político ao falar de «Mas obras; o

artista plástico ao mostrar seus quadros;

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o músico ao se apresentar para grandes platéias e assim por diante.

Do mesmo modo, o missionário e o pregador religioso se

envaidecem por se exibirem como criaturas puras e capazes de todo

o tipo de renúncia material. O mesmo vale para o monge budista,

para os bispos e cardeais.

Porém, seria simplório supor que é apenas a vaidade que

move o homem e determina seus destinos. Do mesmo modo, seria

um enorme equívoco desqualificar o aspecto genuinamente

humanitário de determinadas ações apenas porque se pode detectar

um elemento erótico, do tipo da vaidade. O missionário continua

sendo um homem sincero e caridoso apesar de possuir também

vaidade. O artista experimenta um enorme prazer de criar sua obra

— prazer relacionado à solução de uma dúvida de natureza

intelectual — além do prazer de exibir para terceiros seus resultados.

O médico se gratifica de ter sido capaz de curar alguém, além de ser

um indivíduo vaidoso. O que existe é o acoplamento de um elemento

erótico ao exercício dos prazeres de natureza abstrata — solução de

dilemas e prazer da renúncia — de tal forma que um físico

experimenta o prazer de resolver um determinado problema e

também o prazer de mostrar aos outros os seus resultados. Um

prazer não exclui e nem invalida o outro. A tendência das pessoas é

sempre no sentido de julgar uma ação como boa ou má; ela é tida

como boa até o momento que se percebe um elemento mau — e a

vaidade é vista como sendo um defeito — quando então tudo é

desqualificado em função da existência desta "impureza". Tal modo

de refletir é perigoso e pode levar a graves erros de julgamento. Da

mesma forma que a vaidade, o reconhecimento de interesses

pessoais de todo o tipo não podem ser percebidos como capazes de

desqualificar o caráter humanitário de uma determinada ação.

A vaidade — prazer erótico de se exibir — está, pois, presente

em todas as atitudes e atividades humanas. A ambição é a força que

impulsiona o homem para a realização da vaidade. Por si vaidade e

ambição são características inerentes ao ser humano, sendo esta

última mais intensa nas pessoas mais frustradas quanto ao prazer de

se exibir e que se percebem com mais condições de atingir

determinados objetivos. A vaidade existe no rico e naquele que

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renuncia às coisas materiais; no que se delicia com os prazeres do

sexo e no celibatário. Existe, portanto, um elemento sexual acoplado

ao prazer da renúncia, do mesmo modo que acoplado ao usufruto di-

reto dos prazeres materiais e do corpo.

A renúncia, efetivada inicialmente por causa de sentimentos de

culpa e temores de represália, que ganha autonomia na medida que

determina um prazer ligado ao fortalecimento e engrandecimento

pessoal, se fortalece agora com um componente erótico do tipo da

vaidade. & a existência de um elemento sexual associado ao prazer

da renúncia não significa nem que este prazer não exista por si e

nem que se possa entender a questão como masoquismo moral

(Freud usava este termo). São dois prazeres autônomos que

coexistem, determinando mais um reforço à já agradável sensação

de se perceber forte e capaz de transcender os limites imediatos da

condição humana.

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4. O HERÓI E O DESEJO DE IMORTALIDADE

Cabem, nesta seqüência de reflexões, algumas observações

acerca do idealismo, da vida do herói e da preocupação do homem com a

questão da imortalidade. Observações importantes e pioneiras a respeito

foram feitas por O. Rank, um dos mais ilustres discípulos de Freud, ew

cuja obra, a meu ver, ainda não teve o merecido reconhecimento.

Segundo ele, o inconformismo do homem diante da morte seria o

responsável por várias formas de atividade intelectual, sempre visando

encontrar respostas e soluções para este inevitável acontecimento. As-

sim, a reflexão religiosa, o anseio da reprodução — perpetuação de si

através da descendência — bem como o desejo de transcendência da

condição humana vulgar corresponderiam a tentativas de solução, ou

atenuação, do problema; seria difícil justificar a vida na terra, especial-

mente aquela que se faz baseada em sacrifícios e renúncias, se ela não

for percebida como uma passagem temporária, parte de um processo

maior, do qual se buscam encontrar continuamente indícios

confirmadores. Entre os primitivos, a sombra refletida no chão era

indicativa da existência da alma; assim também o caráter duplo do ser

humano era evidenciado episodicamente pelo nascimento dos gêmeos

idênticos — e muitas vezes o ritual tribal determinava que se matasse um

dos dois, visto que não poderiam existir ambos os elementos

corporificados.Também são curiosas as observações de Rank no sentido de

mostrar que muitos dos heróis salvadores dos povos não tinham suas origens em núcleos familiares usuais; ou seja, não tinham pai nem mãe. Muitos foram abandonados por aqueles que os geraram em cestas, que corriam rio abaixo; cresceram por si e se tornaram líderes de outros povos. Ou seja, os heróis não estariam sujeitos às complexas vivências edipianas infantis, de modo a poderem ser adultos mais livres e mais fortes, capazes de preencher suas funções com maior grandeza. O herói não tem uma origem usual e não se perpetua através da reprodução e sim através de seus feitos. Eles são os líderes políticos e espirituais dos povos, pessoas comuns que só podem lutar contra a frustração da morte através da reprodução física.

A reflexão religiosa levaria inevitavelmente à idéia de que o destino

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da alma depois da morte seria melhor ou pior conforme a conduta de cada pessoa durante os anos de vida na terra. Assim, qualquer tipo de sacrifício ou renúncia estaria justificada em função desta expectativa de imortalidade e também os esforços grandes seriam beneficiados com uma evolução mais agradável da alma após a morte. Qualquer sacrifício, mesmo o da própria vida, seria bem-vindo, pois a ação heróica seria sempre recompensada. A morte nestas condições seria, portanto, uma coisa percebida como agradável, nada dramática. A verdade é que a idéia da morte nem sempre foi sentida da forma como a vivemos hoje; cada época e cada cultura tem uma postura diante dela, coisa que, ao meu ver, pode levar a erro de julgamento do seguinte tipo: como nós, hoje, encaramos a morte de uma maneira péssima, supomos que sempre foi assim e que muitas das ações de povos primitivos ou de época anteriores à nossa foram feitas em função do medo da morte.

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Também é interessante registrar que seria de se prever que uma

cultura materialista — no sentido de não crer em Deus e na continuidade

da vida após a morte — não deveria desenvolver comportamentos do tipo

idealista — termo que estou usando no sentido de sacrifícios pessoais em

função de terceiros — em nenhum dos seus integrantes. Se o sacrifício e

a renúncia aos prazeres fossem formas de conduzir o homem à

imortalidade, a consciência de que a vida termina inexoravelmente

deveria determinar o desaparecimento destas tendências nos homens

que acreditam nisto. E tal fato não ocorre. Eles também se conduziram —

e se conduzem — de uma maneira idealista e heróica, buscando agora

formas de resolver as contradições políticas que levam a modos de vida

desiguais e injustos para grandes proporções da população. E o idealista

político é extremamente parecido em seus comportamentos com o

homem religioso e que acredita no sacrifício pessoal como forma de

salvação. O herói político morre por sua causa, mesmo não acreditando

em outra vida; e, o que é mais curioso, sua causa em muitas cir-

cunstâncias, se vitoriosa, o prejudicaria em termos materiais.

Penso que estas observações são claras no sentido de mostrar que

não creio que o anseio de imortalidade seja a mola propulsora do

comportamento que estou chamando de idealista. Não acredito também

que a questão do medo da morte tenha sido suficientemente estudada e

esclarecida. Parece estranho, por exemplo, que ele exista em pessoas

com convicção religiosa absoluta e firme, situação na qual a morte

deveria ser sentida como uma coisa boa. Também é difícil entender tal

temor nas pessoas de convicção materialista, onde a morte seria o fim da

consciência, a paz e a harmonia tão desejada (conforme a idéia de Freud

acerca do instinto da morte). Outro dado curioso é que o homem, cada

vez que se sente feliz e realizado, em paz, tem a sensação de perigo, de

que a morte o ronda — e mesmo os mais cépticos costumam fazer rituais

de proteção contra ela, como por exemplo, bater três vezes em algum

objeto de madeiraNão creio que o medo da morte seja o gerador da reflexão religiosa

e nem acredito que exista um efetivo anseio de imortalidade no homem derivado do seu incon- formismo diante do fato de ter sua vida limitada a algumas décadas, uma vez que não acredito que a morte seja o grande problema psicológico do homem. Muito mais difícil de ser entendido é o fato do homem existir e este é, a meu ver, o grande problema e o grande

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mistério. A morte é o último evento, e até certo ponto, o fim do mistério da existência. Acho que o medo da morte deriva da suposição de que ela contém os sofrimentos próprios do nascimento, do mesmo modo que acredito que a preocupação do homem com o seu destino posterior deriva de sua perplexidade diante do fato dele existir a partir de uma origem absolutamente misteriosa. A grande dúvida é, pois, donde viemos e não para onde vamos, posto que se soubéssemos responder à primeira questão a segunda não conteria mistério algum.

Conforme já assinalei, a razão, através de sua componente abstrata, formula questões que ela própria não consegue responder, ao menos imediatamente. Isto gera um desconforto, um estado no qual se fará todo o empenho para encontrar respostas, que serão sentidas como prazeirosas por determinarem o fim da dúvida — que pode ser entendida como o desprazer do espírito. Na medida em que a criança se desenvolve, sua razão se aprimora e é capaz de formular questões cada vez mais complexas; as respostas são buscadas no meio externo, especialmente nas conversas com os pais e outros adultos significativos. Com o passar dos anos, as inteligências mais bem dotadas vão percebendo quão insatisfatórias são as explicações disponíveis para as questões fundamentais. Exemplo desta condição é o surgimento da questão religiosa e metafísica nos anos da adolescência, fato que ocorre também para aqueles que receberam a informação religiosa usual — e que, de repente, parece insuficiente e insatisfatória.

Paralelamente ao desenvolvimento da razão se dá o

desprendimento gradual da criança — e depois do adolescente — do

seu núcleo familiar, cujo fato mais marcante é a ruptura amorosa

edipiana própria dos 9 anos de idade. A criança, que nunca se percebeu

como ser absolutamente independente, ao verificar este fato experi-

menta uma sensação profundamente dolorosa de desamparo, de se

sentir solta no mundo e no espaço. E esta sensação — importante fonte

de angústia — surge como fato essencial justamente no período que vai

dos 9 aos 16 anos de idade, época em que a razão abstrata percebe a

pouca consistência das respostas existentes para o mistério da origem

da vida. E isto não quer dizer que o problema se resolva aos 16 anos de

idade, mas sim que a maioria das pessoas tende, a partir daí, a se

ocupar mais das questões práticas de sobrevivência e resolução dos

problemas concretos que cada vez mais se avolumam, de modo a se

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distraírem da questão metafísica — que volta a reassumir importância

apenas na velhice, outra vez porque as questões práticas já se

atenuaram e não por causa do medo da morte que se aproxima.

Assim, a sensação de desamparo derivada das rupturas amorosas

familiares se associa ao desamparo e perplexidade sentidas ao se olhar

o céu numa noite estrelada. A vivência é, no global, desesperadora. A

idéia de Deus resolve, com certa facilidade, a questão e nos dois

sentidos: Deus é o pai e somos todos irmãos, fato que atenua a dor da

separação familiar irhposta pelo crescimento do indivíduo; e Deus é o

criador do universo, resolvendo assim a dúvida acerca do mistério da

origem da vida. Outra vez registro que tais observações não po

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dem ser entendidas como argumento no sentido de provar a

inexistência de Deus.Através deste tipo de situação se chega também a uma sensação

de solidariedade para com os outros homens: o desamparo e sua sensação dolorosa se atenua se a criança— ou o jovem — se sente parte integrante de algum tipo de coletividade: o grupo de amigos, os colegas de escola, os habitantes de sua cidade, os do seu país — que falam a mesma língua — e mesmo a humanidade como um todo. Da mesma forma, a idéia de Deus pode ser substituída por uma convicção — igualmente precipitada pelo desespero derivado da dúvida acerca da origem de tudo e de si mesmo — de que a ciência sabe ou saberá explicar todos os fatos fundamentais da vida. A ciência é encarada, nestes casos, sem nenhuma objetividade crítica, de modo que o jovem pensa que com os anos ele terá acesso a um conhecimento que o elucidará; desta forma poderá também se apaziguar, através da composição de uma sensação de solidariedade com os seus semelhantes— agora mais em termos de nacionalidade do que no sentido de serem todos filhos de Deus — e do adiamento da questão intelectual para uma época em que esteja mais armado de conhecimentos científicos.

Fica claro que estou me referindo apenas às pessoas que não têm suas preocupações abstratas truncadas pela imaturidade emocional e que têm uma capacidade intelectual maior. As outras se contentam com as explicações que lhes são fornecidas e seguem as normas próprias de sua época e de sua família. Jamais chegam a experimentar integralmente a sensação de desamparo, pois se apegam rapidamente às soluções propostas por seu grupo social; e isto ocorre porque são pouco capazes de suportar a dor própria desta condição, como de resto fogem de todo o tipo de frustração e sofrimento.

Em resumo, as pessoas mais competentes para a abstração — aquelas que suportam mais o desconforto da dúvida — resolvem a questão do desamparo e do mistério acerca da origem da vida — questões concomitantes e em franca inter-relação ao menos do ponto de vista psicológico — ou através da idéia de Deus ou através da convicção científica. Em ambos os casos resulta uma sensação de solidariedade para com os outros seres humanos, com os quais se sentem formando algum tipo de coletividade.

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Se associarmos a isto o fato de que estas pessoas experimentam a renúncia e o sacrifício como prazerosas em decorrência de serem vivências capazes de gerar contentamento íntimo derivado do indivíduo se reconhecer mais forte; se nos lembrarmos que estas pessoas sentem no prazer da renúncia — prazer de dar — gratificação maior do que no usufruto imediato dos prazeres — ainda que com dúvidas acerca da validade de tal processo — não é difícil entender que tendam a encaminhar sua vida no sentido do heróico ou do idealismo. O herói — tanto no sentido religioso como no político — abre mão dos seus privilégios e age essencialmente no sentido de se empenhar pelo bem estar dos seus irmãos, de seus concidadãos. Resolve sua angústia ligada ao desamparo, dá sentido à sua vida — e com isto se afasta, ao menos em parte, das dúvidas acerca da origem da existência —, exerce o prazer de dar, se sente engrandecido por sua capacidade de renúncia, se sente importante e digno dos maiores elogios, se sente uma pessoa boa e útil.

Além do mais, exerce desta forma o prazer de se exibir; ou seja, sua vaidade fica em direta correlação com os processos abstratos, assim como sua ambição. Desperta o interesse e a admiração das mulheres, sendo isto particularmente verdadeiro para o herói político; obtém o respeito — e também muitas vezes a inveja — dos homens, principalmente daqueles que não se vêem com grandeza suficiente para tal conduta. Ainda por cima pode exercer sua vaidade de forma que a ele mesmo pareça como inexistente, posto que para este tipo de homem é difícil admitir "fraquezas" humanas, como é considerado o prazer de se exibir. A grandeza do ideal, sua dedicação a ele, sua convicção nas idéias aparece de tal forma importante que o indivíduo pode achar que não tem nenhum tipo de vaidade — o que pode ser verdadeiro para questões de aparência física e bens materiais — coisa que o engrandece ainda mais.

Não creio que o heròi é o homem que luta contra o fato de ser mortal, do mesmo modo que não penso que a morte seja um problema complexo para o homem. O idealista em geral é o indivíduo que tenta resolver o desamparo próprio de se reconhecer só — e os heróis citados por Rank sempre são criaturas abandonadas em outras paragens — e a perplexidade e desconforto intelectual derivado das inevitáveis dúvidas acerca do mistério da origem da vida, através do apego à idéia de Deus - ou algum tipo de convicção científica — e através do esforço de ser útil aos seus semelhantes com os quais se sente solidário — o que atenua o

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desamparo. O prazer de dar e de renunciar a privilégios em favor de terceiros provoca um contentamento íntimo importante, ligado ao enriquecimento pessoal, mesmo quando não exista convicção religiosa. A vaidade se exerce através deste modo atípico de ser, que desperta a atenção e a admiração das pessoas em geral, quase sempre comprometidas com o usufruto — ou luta pelo atingimento — dos bens materiais. Se trata de uma solução bastante atraente e razoavelmente consistente, capaz de satisfazer a vários componentes de prazer humano; tende, por outro lado, a determinar um apego dogmático — e pouco tolerante a críticas — à convicção básica, cujo abalo faria ruir toda a estrutura.

Nestes termos, o herói não é um homem tentando ser imortal e sim um homem tentando encontrar uma solução para o dilema do viver.

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5. UMA AVALIAÇÃO MORAL DA GENEROSIDADE

O homem generoso tem um comportamento global bastante similar ao que acabei de descrever para o herói, apenas com variações quantitativas. Ele tira prazer pessoal da renúncia, se sente gratificado e engrandecido quando dá de si a alguém, se envaidece por ser assim. Experimenta uma sensação global de bem estar consigo mesmo, se sente uma criatura boa, moralmente bem formada. Quando tem convicções religiosas definidas se sente ainda mais reassegurado, pois vive conforme seus mandamentos e sua alma será salva. Os sacrifícios aos quais se submete o fazem sentir-se bem, cada vez mais forte. Até pelo contrário, se sente fútil e vulgar em época em que tudo está caminhando com facilidade. As dúvidas metafísicas — acerca da origem da vida — estão aplacadas pela convicção religiosa ou por algum tipo de ideal que dá sentido maior à vida. A sensação de desamparo se atenua pelo sentimento de solidariedade para com os outros seres humanos, e também através de ligações afetivas mais definidas. Os prazeres de natureza material são usufruídos com dificuldade em virtude da sensação de rebaixamento moral experimentada em situações cômodas, mas esta limitação costuma ser — mais no passado do que hoje — compensada pela sensação de grandeza espiritual.

Tanto do ponto de vista religioso como do senso comum, um modo

de vida como este costuma ser associado à idéia de bondade, de virtude

moral, de grandiosidade. Este seria o comportamento próprio das

pessoas que renunciaram ao egoísmo típico dos primeiros anos de vida,

que descobriram o sentido profundo da justiça, do bem e do mal e se

comportam conforme o bem. O mal estaria relacionado à perpetuação do

egoísmo, persistência no prazer do usufruto imediato das coisas materiais

e do corpo, agressividade incontrolada e a serviço dos interesses

pessoais que não podem deixar de ser satisfeitos a qualquer custo. 0

homem mau só está preocupado com os seus anseios e não se interessa

pelos malefícios causados a terceiros no processo de realizá-los; não

sente prazer específico em maltratar aos outros a não ser quando movido

pela inveja ou quando estes se opõem à consecução das suas vontades.

Seria uma situação excepcional — e sem interesse aqui — aquela na

qual uma pessoa tira prazer através de magoar gratuitamente a outros

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seres humanos.

Conforme já descrevi, o comportamento generoso se estabelece,

de fato, em função de uma capacidade abstrata de se colocar no papel de

terceiros; esta é capaz de determinar sofrimento pessoal quando o

indivíduo se percebe responsável pela dor do outro, que é o sentimento

de culpa. Na medida em que este sofrimento for percebido como maior do

que a dor determinada pela frustração de abrir mão de algum direito

pessoal, a solução mais econômica será no sentido de renúncia nas

situações de dilema, ainda mais que o sentimento de culpa se associa —

em função das vivências edipianas — a medo de represálias por parte do

que seria prejudicado. A renúncia passa a ser percebida, aos poucos,

como capaz de determinar uma sensação agradável, um contentamento

íntimo ligado ao se sentir forte e capaz de ir para além do modo usual de

comportamento humano. Se compõe,assim, um prazer novo. A este prazer da renúncia, que agora é buscado ativamente mesmo em situações em que não há dilema, se associa o prazer erótico de se exibir como forte e bom, o que corresponde a uma forma mais sofisticada de vaidade.

A partir da constatação de que a renúncia é capaz de determinar prazer — que se reforça por um componente sexual - seria tendência natural que tal estado passasse a ser buscado ativamente, visto que esta é uma das características fundamentais do organismo humano. Não é difícil entender que o pensamento religioso, que visa a transcendência do homem, se fixasse na tentativa de mostrar aos homens em geral esta forma mais sofisticada de prazer, que deveria substituir àqueles de natureza mais animal e imediata. Além do mais, se todas as pessoas se comportassem conforme a proposição de buscar o prazer do engrandecimento pessoal através da renúncia e da preocupação com os outros, seria fácil imaginar uma condição de vida mais harmônica e justa na terra. Desta forma, os humanistas — mesmo os sem filiação religiosa — também reconheceram neste prazer aquele mais compatível com a racionalidade do homem e o mais capaz de conduzir as sociedades a uma solução mais viável.

Vários aspectos, porém, devem ser levantados a respeito da

questão, no sentido de se verificar a retidão destas suposições que, na

prática, não tem dado resultados muito positivos. O primeiro é o de que

a maioria das pessoas não chega a experimentar de modo sistemático e

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consistente o prazer da renúncia. Nestas criaturas o padrão egoísta

persiste, só sendo limitado pelo temor de represálias; e não é à toa que

todas as doutrinas humanistas — religiosas ou leigas — acabam por

tentar se impor através da força, a partir do momento que percebem

como a massa é insensível aos seus apelos. As pessoas deste tipo só

experimentam a preocupação com terceiros em situações extremas,

como é o caso, por exemplo, de grave enfermidade física; nestas

situações se tornam dedicadas e prestativas — mesmo quando não

estão em jogo interesses pessoais — movidas pelo sentimento de pie-

dade, sentimento que desaparece logo que a situação se normaliza. A

partir daí a conduta volta a ser determinada pelo egoísmo. Não deixam

de experimentar prazer no se sentirem capazes de dar de si, mas suas

carências pessoais logo voltam a ser prioritárias, de modo que o padrão

de conduta generoso não se perpetua.

Mas a questão que me parece fundamental reside na verificação

mais acurada do significado do comportamento generoso e de sua

validade moral; e também de suas conseqüências em termos práticos

quanto a pretensão de se atingir um modo de vida mais justo, que é in-

discutivelmente o propósito inicial dos humanistas.

Na medida em que a renúncia a legítimos direitos de uma pessoa

pode lhe provocar uma sensação prazerosa, esta atitude tenderá a se

perpetuar independentemente da questão moral; ou seja, a renúncia é

um prazer que passa a ser buscado por si, sendo sua grandeza moral

um atributo duvidoso, ou pelo menos casual. O homem generoso está,

pois, buscando gratificação pessoal antes de qualquer coisa, o que pode

ser entendido como uma forma mais sofisticada de egoísmo. Se, para

satisfazer este novo prazer egoísta, lhe parecer interessante ajudar a ou-

tras pessoas, assim ele procederá. E isto poderá ocorrer mesmo em

situações em que a ajuda tiver significação moral bastante duvidosa.

Além do mais, o prazer do sacrifício está sempre em correlação com os

sentimentos de culpa que são sua origem primeira, de modo que muitas

vezes é este o motor da ação generosa.

Não é difícil apontar exemplos simples e cotidianos capazes de

ilustrar que a ação generosa é fenômeno autônomo da reflexão moral. O

dar esmola a uma criança na rua — muitas vezes claramente ensinada a

fazer um ar triste e infeliz — é, de fato, uma ação generosa? Estará a

pessoa efetivamente ajudando em algo a esta criatura ou estará

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contribuindo para que ela sofistique cada vez mais uma atitude hipócrita

e oportunista? Muitas são as pessoas que dão a esmola apenas por não

suportarem a dor derivada do sentimento de culpa, mesmo acreditando

que esta atitude não tem validade moral; outras se sentem felizes por

poder ajudar, ainda que em nível imediato, a alguém, usufruindo da

alegria interior de se sentirem generosas e dignas, mesmo sabendo dos

perigos de sua ação do ponto de vista da evolução do beneficiado.

A super-preocupação de certos pais acerca de poupar sofrimento a

seus filhos, se esforçando neste sentido, é outro exemplo moralmente

duvidoso, pois todos sabemos que a criança educada longe das

frustrações inerentes à condição humana tenderá a ser um adulto fraco e

incapaz para a vida. A proteção excessiva é prejudicial para a criança

mas apazigua os sentimentos de culpa dos adultos.

O ajudar, tanto materialmente como dando conforto emocional,

pessoas que sabemos ser do tipo egoísta, e que nos procuram apenas

quando estão em dificuldades^ uma ação efetivamente generosa?

Estaremos ajudando estas criaturas a se desenvolver e a alterar seu

modo primário e medíocre de ser, ou estaremos efetivamente exibindo

nossa magnidade, nos deleitando com nossa superioridade e

apaziguando nossos sentimentos de culpa? E o medo de represálias,

principalmente o medo de malefícios derivados da inveja destas pessoas

por nós? Não será que estamos tentando apenas aplacar a ira destas

pessoas, com a finalidade de nos protegermos? Penso que vale a pena, a

partir destes exemplos, aprofundarmos um pouco mais a questão, com a

finalidade de se entender melhor o modo de ser chamado de generoso,

para que possamos nos aproximar de uma reflexão verdadeiramente

moral.Antes da renúncia se tornar um prazer autônomo — e em muitas

circunstâncias, também depois disto — ele é determinado pelo sentimento de culpa e pelo medo de represálias.

Nestas condições, ela é percebida como dolorosa e o indivíduo que assim procede se percebe vítima de uma injustiça. Por não conseguir magoar o outro, se cala e consente em ser prejudicado; porém, em imaginação, se rebela contra o fato e fantasia inúmeras fórmulas de vingança; ou seja, exerce em pensamento a conduta que gostaria de ter tido e não pode. Com o surgimento do prazer — sensação de superioridade pessoal — ligado à renúncia, o anseio de vingança não

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desaparece (conforme propunha Cristo); apenas se sofistica e se aprimora no seguinte sentido: o generoso aprende, da experiência, que o egoísta que o prejudicou é criatura profundamente invejosa — inveja definida como hostilidade gratuita, surgida a partir da admiração; seu processo mental tende então para um aprimoramento pessoal cada vez maior, cujo progresso será capaz de determinar maior inveja no opositor; e a intenção é a de que o egoísta se envenene através dos seus próprios desejos maléficos, pois a inveja faz muito mal a quem a sente, É um tipo de vingança bastante engenhoso, pois não implica em nenhuma ação contra o agressor, além de que funciona como mais um estímulo para o aprimoramento pessoal.

Assim sendo, o generoso, que inicialmente é uma criatura frágil e presa fácil de egoístas, encontra no seu modo de ser — especialmente em função da capacidade de tolerar frustrações — uma arma também destrutiva e vingativa. E o tema da generosidade se complica mais ainda, além de se afastar perigosamente das questões de ordem moral: há prazer na renúncia, vaidade ligada a isto, e também a renúncia em situações injustas se transforma em mais um estímulo para o crescimento pessoal com a finalidade de despertar a inveja dos agressores. Só a questão da justiça é que não é cogitada, apesar de que o generoso costuma se ver como pessoa muito justa.

Não há dúvidas de que o generoso é um tipo humano bastante mais complexo e sofisticado do que o egoísta. Este último não possui grande sutileza, apesar de se ver como criatura esperta e hábil; na realidade é uma criança, apenas tentando buscar os meios mais fáceis para a satisfação de suas necessidades e desejos; não tem pretensões de ordem moral e nem sofre de grandes contradições; sofre apenas por se perceber incompleto no seu desenvolvimento e bastante mais pobre de capacidade criativa.

Os dilemas do generoso são permanentes, pois se age no sentido de provocar a inveja de algum opositor, se maltrata por causa dos sentimentos de culpa que o seu próprio progresso determina — pois ele sabe que isto vai provocar sofrimento ao outro. Ao se perceber com de-sejos de vingança se recrimina, do mesmo modo que se irrita com sua vaidade; seu anseio de perfeição e de transcendência se ofendem ao detectar em si características humanas vulgares. Ao mesmo tempo se vê forçado a renunciar aos prazeres da vida corriqueira — e isto será tanto mais verdadeiro quanto maior for a proporção destes em relação aos

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sofrimentos e frustrações — sem estar convencido da validade desta conduta; porém, a tentativa de usufruto deles provoca sensação de empobrecimento, além de sentimentos de culpa difusos e medos de tragédias de origem indefinida.

As limitações que ele se impõe derivam, pois, da forma como se construiu o equilíbrio psíquico. Basicamente o generoso é limitado pelos sentimentos de culpa e medo de represálias e também pelo temor de vulgarização quando usufrui prazeres e facilidades materiais. E alguma consciência a pessoa tem disto, pois em geral sente inveja dos egoístas especialmente por sua maior capacidade de advogar em causa própria e também por serem mais hábeis para lidar com os prazeres do corpo.

0 grau de renúncia aos prazeres do corpo é variável de pessoa para pessoa, bem como varia o prazer derivado da renúncia e do sofrimento, sendo que um está em função do outro. Assim, no caso extremo teríamos a criatura só capaz de tirar prazer da renúncia e do dar, e que corresponderia à imagem dos santos e ascetas em geral. Tais criaturas, se privadas deste tipo de prazer, podem experimentar profundo estado depressivo, pois se sentem incapazes para qualquer outro tipo de recompensa. Uma mãe extremamente dedicada e que tenha renunciado às próprias gratificações em favor de se dar aos seus filhos tende a viver um estado de profunda tristeza e desinteresse pela vida na medida em que eles crescem e se tornam independentes.

Esta mesma situação serve para exemplificar a existência de um estado de dependência do generoso em relação às pessoas que se beneficiam de sua renúncia. A dependência do egoísta em relação ao generoso é óbvia, pois ele não é auto-suficiente e necessita de alguém que lhe supra. Mas é surpreendente observar que o generoso precisa do egoísta para exercer o seu prazer de dar, que, como disse, pode ser o prazer fundamental. Um indivíduo não pode exercer o prazer de dar se não existirem pessoas dispostas receber. O que vale dizer que a genero-sidade não poderia existir se não existisse o egoísmo.

E isto se reforça, a título de argumentação, com o fato obsen/ável na prática de que o generoso é pessoa que não gosta de receber. Esta peculiaridade do seu modo de ser torna ainda mais duvidoso o aspecto moral de sua doação. O generoso se sente humilhado, diminuido, quando recebe qualquer tipo de ajuda material ou emocional; e se ele se sente assim ao receber, e se todos nós tentamos entender o outro em função de como somos, ele terá que se dar conta de que ao dar ele estará humi-

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lhando o outro. E penso que não há dúvidas de que muitas das ações generosas têm claramente componentes deste

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tipo, sendo muitas vezes intencional o desejo de tripudiar. Este dado explica a conhecida ingratidão daqueles que recebem favores, cuja atitude usual é a de se tornarem hostis, invejosos em relação àquele que o favoreceu; de fato, não há motivo para que as pessoas se surpreendam com este tipo de reação, pois o que recebe — mesmo que tenha tomado a iniciativa de pedir — se sente inferiorizado, o que inevitavelmente teria que determinar a reação invejosa.

Só poderia agir com gratidão a pessoa que fosse do tipo generoso; mas, conforme disse, o generoso não recebe ajuda a não ser em situação absolutamente excepcional; e ainda assim trata de devolver o favor que lhe foi feito o mais rápido possível e, se puder, em dobro. Desta forma não é difícil perceber que o generoso exerce o seu prazer de dar essencialmente em relação aos egoístas, que são os que recebem com mais facilidade; e recebem porque não têm outro jeito — são dependentes - e incapazes de se sustentar por si mesmos — e não gostam da situação, que os humilha, de modo a reagirem com agressividade.

É evidente que não são todas as ações generosas que têm esta intenção, pois muitas vezes o desejo de ajudar é sincero e sem finalidade de determinar humilhação. Às vezes o dar está ligado apenas a uma preocupação com o outro e o anseio de facilitar a vida de alguém de quem se goste ou cujo trabalho se valorize (como é o caso do mecenas); outras vezes deriva do sentimento de culpa; outras por incapacidade de dizer não em decorrência do medo de represálias; e assim por diante.

0 que me parece extremamente importante e indiscutível é que o generoso, para exercer o seu prazer de dar, precisa do egoísta para receber os seus favores. No casamento usual, que chamei de ligação determinada pelo amor por diferença (vide 'Talando de Amor"), existe sempre a união de um generoso com um egoísta; e esta

seria a situação ideal que exemplifica a interdependência dos dois tipos extremos. A do egoísta é óbvia e dele já tratei em detalhes no "Você é Feliz?". O generoso aceita longos anos de convivência em uma situação arbitrária porque ele a percebe como sendo capaz de lhe fazer sentir cada vez mais digno e superior; através da renúncia em favor do amado se sente bastante gratificado, além do que pode experimentar o prazer da renúncia como sendo da natureza de quem ama, de modo que não pre-

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cisará reconhecer que ele tem autonomia. Avalia-se como uma pessoa boa e tolerante, indiscutivelmente superior ao cônjuge — coisa que, de fato, corresponde à realidade, pois o prazer de dar é menos vital do que a necessidade de receber. Aproveita-se do egoísta para usufruto dos prazeres materiais, todos estes obtidos aparentemente por insistência dele, o que ajuda a resolver a crescente contradição ligada a estas renúncias. Tais uniões são indubitavelmente do interesse do generoso também, pois senão não teriam a estabilidade e a duração que têm; além de exercer livremente o prazer de dar e se sentir cada vez mais engrandecido, também resolve suas ambições pessoais, pois elas são vividas como se fossem do outro, para agradar o outro. Têm na inveja que despertam no cônjuge um forte estímulo para continuar na sua rota evolutiva. A ligação por diferença faz o generoso se desenvolver cada vez mais na sua direção de transcendência, ao passo que o egoísta persiste no seu estado, cada vez mais dependente. As diferenças se agravam, portanto, com os anos de convivência, até que o sistema se de-sequilibra e se rompe, quase sempre por iniciativa do generoso que, com o tempo, acumulou motivos de sobra para justificar sua atitude.

De uma forma genérica, pode-se dizer que a generosidade humana

é o maior estímulo para o egoísmo, pois o reforça continuadamente.

Cada homem bom para se superar e se aproximar do ideal divino deverá

continua- damente se dar a pessoas más e oportunistas, pois só estas

estão dispostas a receber. 0 desenvolvimento da bondade, entendida

como prazer de dar e o prazer da renúncia, está, pois, intimamente

relacionada com a persistência da maldade e do egoísmo. Se todas as

pessoas tivessem sido sensíveis aos apelos cristãos de desenvolver o

prazer de dar, a situação estaria bastante complicada, pois não haveria

para quem dar.Chega-se a uma situação de equilíbrio curiosa na qual o egoísmo,

que surge espontaneamente e pode persistir ou não, é estimulado pela generosidade, que, para poder se exercer, precisa dele. O bom precisa do mau para se deixar explorar por ele e exercer o prazer da renúncia, capaz de o conduzir ao aprimoramento espiritual. É como se Deus tivesse criado o Demônio para poder exercer suas propriedades de bondade, coisa que seria impossível se não houvesse a maldade. A generosidade se alimenta do egoísmo tanto quanto este dela, só que -para outras finalidades. Se a generosidade, para existir, precisa do egoísmo, a

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generosidade não é boa, pois ela se exerce estimulando e reforçando a maldade. Isto sem falar das ações generosas apenas em superfície — que são muitas — e cuja intenção é humilhar ou mesmo despertar a inveja do beneficiado.

A generosidade, na medida em que determina o surgimento dos prazeres pessoais — de renúncia e vaidade — é ação que gratifica a própria pessoa, sendo desta forma um outro modo de expressão do egoísmo, bastante mais sofisticado e sutil. Tal maneira de ser está longe de poder ser considerada como moralmente aceitável e dirigida para o sentido de justiça. O generoso é injusto para consigo mesmo, sabe e se ressente disto; encontra depois fórmulas complexas para melhorar sua situação e também para se vingar das pessoas que, inicialmente, se aproveitaram de sua fraqueza efetiva, que é o sentimento de culpa.

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Além de ser uma construção psicológica complicada e suspeita —

indiscutivelmente superior ao egoísmo, — a generosidade é também uma

forma de ser moralmente duvidosa, na medida em que o seu exercício

estimula e reforça a existência do seu oposto. A generosidade cor-

responde à substituição de um tipo de prazer por outro, — os do corpo

são substituídos pelos do espírito. Neste sentido, fica vinculada ao

princípio econômico do prazer máximo, de natureza egocêntrica. A

preocupação com os outros e com os direitos dos outros existe nestas

pessoas, mas não é a avaliação acurada dos direitos de cada um que

determina o posicionamento delas diante da situação e sim o prazer de

se sentir superior em função da renúncia aos seus direitos, prazer que só

pode ser experimentado no convívio com uma pessoa do tipo egoísta.Se se constrói um modelo do que seja o bem e o mal em função do

comportamento usual dos dois tipos mais comuns de pessoas, se é forçado a concluir que o pensamento moral se afasta dramaticamente do que poderíamos chamar de justiça, ou seja, um esforço racional de se atribuir a cada pessoa seus direitos e suas limitações. E se uma moral religiosa prega a renúncia aos prazeres do corpo em favor do prazer da renúncia — que seria a forma do homem se aproximar de Deus — ela se comprometerá com o mesmo tipo de arbitrariedade, que é o de chamar o homem generoso de criatura boa, mais de acordo com a vontade divina. Isto sendo verdade, teríamos que concluir que a vontade divina se exerce no sentido da perpetuação da maldade entre os homens, maldade esta que se reforça pelo modo de se comportar dos homens que vivem conforme a generosidade proposta por Deus.

Assim sendo, me parece cada vez mais fundamental abandonar o pensamento moral em termos de bem e mal, pois que a separação e os limites entre eles são duvidosos

e bastante inconsistentes, além do fato de que, se persistirmos nesta

rota teremos que concluir que ambos coexistirão sempre, num equilíbrio

razoavelmente harmônico. A própria observação de que é assim que

tem sido, tanto no plano psicológico — como é exemplo o amor por

diferença — quanto no plano social — através do modo como são

organizados os agrupamentos humanos — mostram que o bem e o mal

são apenas duas formas de exercer a condição humana que se

alimentam e reforçam reciprocamente.

Penso que o que deve ser buscado, tanto em nível psicológico

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como em nível social, é uma forma de existir para o homem compatível

com o que se possa chamar de justiça. E a norma fundamental da justiça

seria a de que um indivíduo não está autorizado a fazer aos outros aquilo

que não quer que façam para si. Quanto a este princípio elementar e

bastante antigo, é fácil demonstrar que tanto o generoso como o egoísta

são cria- ' turas injustas. O egoísta é agressivo e detesta ser agredido,

espera receber tudo e não gosta de dar nada. O generoso não agride

mas aceita ser agredido, gosta de dar e fica irritado quando recebe.

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6. A QUESTÃO DA LIBERDADE

I

Fica claro, do que foi exposto até agora, que não acredito na utilidade da separação entre o bem e o mal, entre o homem generoso e o egoísta, para uma avaliação moral da conduta humana. 0 bem e o mal não existem; são formas de comportamento que chamo de injusto; a intenção é no sentido de nos empenharmos na descrição do que seria o homem justo, aquele que, segundo penso, poderá se aproximar mais de um modo de existir feliz e coerente. O dilema moral passa a ser, portanto, entre o justo e o injusto e não mais entre o bem e o mal.

A bondade foi uma proposição fundamentada na idéia de que seria este o desejo de Deus — supremo bem — para o homem; esta conduta o aproximaria Dele. Vimos também que existe um prazer de natureza racional ligado à capacidade de renunciar; que a este se acrescenta uma forma especial de prazer sexual: a vaidade; e tam-bém que esta conduta final se instrumentaliza no sentido de ser tanto uma arma de defesa como uma forma de dominar e humilhar as pessoas que se beneficiam destas criaturas essencialmente governadas pelo sentimento de culpa, mas que não deixam de ter anseios de vingança quando se sentem explorados.

A maldade, na sua forma mais simples, consiste na persistência de uma conduta egoísta própria da dependência infantil, complicada depois pela existência de outras frustrações adultas capazes de deixar as pessoas insatisfeitas com o que são e invejosas daqueles que possuem as propriedades desejadas, tais como beleza, inteligência, força física, etc. Em poucas palavras, o egoísmo e a inveja seriam os componentes básicos da conduta má, que se caracteriza pelo desejo arbitrário de privilégios e pelo anseio de destruir aqueles que são o objeto da inveja, sendo que se busca atingir tais objetivos por quaisquer meios, ilimitados na agressão a terceiros uma vez que tais criaturas não sofrem com sentimentos de culpa. O único freio para estas condutas é o medo de represálias externas, de modo que a esperteza consistiria em tentar atingir os objetivos sem se deixar apanhar pelos responsáveis pelo cerceamento das ações anti-sociais. Aqueles que não têm sequer o medo das represálias correspondem ao que se costuma chamar de

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deliqüentes: os criminosos comuns mais inescrupulosos; e também, quando muito bem dotados de inteligência, alguns tiranos poderosos.

Fatores vários definem qual vai ser a atitude predominante de um adulto, no sentido de persistir no egoísmo ou se encaminhar para uma conduta mais generosa. Alguns provavelmente dependem de variáveis inatas, ligadas à capacidade de tolerar frustrações, a ponto de chegar a se constituir a sensação prazerosa ligada ao sofrimento. Outros dependerão da história peculiar de cada vida, da natureza e época dos sofrimentos e frustrações que tiveram que ser experimentadas; pessoas com grande capacidade de lidar com frustrações superam quaisquer obstáculos, mas a maioria superará ou não dependendo da magnitude das dificuldades que terão que en-frentar. Outras ainda dependem do modo como é o pensamento filosófico ou religioso predominante na épocaem que vivem; assim acredito que a razão humana — e as idéias nela contidas — influem muito na capacidade de cada pessoa ir modificando a sua trajetória; os homens são governados por instintos, por suas limitações quanto ao modo de lidar com a realidade e também pelas idéias nas quais acreditam verdadeiramente.

A bondade é uma conduta altamente reforçada pelas idéias de natureza religiosa, especialmente para aquelas pessoas que têm uma convicção sincera em suas crenças. Acreditam que Deus existe e que Ele se revelou ao homem através de alguns emissários; os textos sagrados conteriam os desígnios do Senhor, cabendo aos homens tentar segui-los, com a finalidade de obterem a salvação de suas almas. Como esta idéia faz o homem se sentir bem — através do sentir o prazer da renúncia - ela ganha estabilidade e consistência mesmo quando, objetivamente, ele tenha que reconhecer alguns prejuizos de ordem prática impostos pelas pessoas que agem com maldade *e egoísmo. Até pelo contrário, a existência destas lhe dá cada vez mais uma sensação subjetiva de superioridade, de grandeza e intimidade com Deus; a sensação de superioridade se manifesta através do sentir piedade dos maus e pecadores, sentimento obviamente de cima para baixo.

O materialismo contemporâneo teve um desenvolvimento muito curioso, ao menos do ponto de vista prático e analisado apenas do ângulo psicológico — único em que me vejo capaz e

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habilitado para fazer observações. A crença em Deus foi substituída pela convicção de que a ciência — em grande evolução — levaria o homem à descoberta dos mistérios da vida; a fé na ciência foi — e é ainda — a meu ver absolutamente desproporcional ao alcance dela e aos esclarecimentos que ela já nos trouxe e que, pensando mais seriamente, foram muito poucos.'A negação de Deus trouxe consigo um aumento das expectativas prazerosas na vida terrena e também um enorme empenho das pessoas de maior abstração — e que, no passado, seriam os grandes religiosos — em encontrar soluções para as injustiças sociais. Outra vez se apegaram a doutrinas de modo fanático, estando dispostas a sacrificar suas vidas e seus prazeres em favor delas. E trataram de impô-las com a mesma veemência e dedicação dos antigos pregadores religiosos.

Encontraram assim novas convicções absolutas e novas fórmulas para justificar a existência e persistência do prazer da renúncia. É indiscutível que exerceram, através desta via, suas vaidades e que compuseram outra vez a sensação de superioridade, de serem uma elite, preocupada agora com a salvação dos seus semelhantes ignorantes, mal informados e explorados. As pessoas encontram o sentido de suas vidas, através da renúncia pessoal em favor de alguma causa percebida como justa; e tal atitude substitui a idéia original da renúncia em favor da salvação da alma.

0 prazer da renúncia não deixa de ser exercido mesmo dentro da concepção materialista da vida, o que mostra de maneira bastante categórica que se trata de importante satisfação do ser humano, mais de acordo com sua natureza psicológica do que em decorrência de tentar seguir os preceitos de Deus. Tal prazer não se justifica, no nível das idéias, dentro do materialismo, que deveria levar o homem a uma tendência mais hedonista, mais no sentido de usufruir das delícias do corpo — e esta atitude também se tornou mais presente, mas não exclusiva.

A preocupação com os outros homens também não

desapareceu do espírito abstrato das pessoas descrentes; ao

contrário, ganhou uma intensidade maior do que a existente entre os

religiosos, que gastavam boa parte do seu tempo tentando entender

de Deus. Não só aumentaram suas preocupações com as questões

sociais, como também os esforços no sentido de fazer prevalecer

seus ideais de justiça se tornaram mais ativos e passaram a ser o

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tema principal de suas vidas. E através desta conduta se sentiam

superiores, mais sábios, os salvadores do mundo; pessoas idealistas

que estavam — e estão — sacrificando suas vidas em prol do bem

comum, num esforço de ajudar os oprimidos, pessoas inferiores,

mais fracas e necessitadas.De uma maneira simplória, vejo a humanidade constituída por

três grupos: a grande massa, oprimida, fraca, dócil e crente em Deus até hoje; uma minoria esperta e inescrupulosa que a explora; e uma minoria mais idealista e com sentimentos de superioridade que tenta salvá-la da opressão e da exploração que a deixa na miséria. A grande mudança se deu neste terceiro grupo dê pessoas, que deixou de ser religiosa para ser revolucionária no sentido político; os exploradores continuam a ser do mesmo modo, apenas com adaptações aos tempos e às novas circunstâncias; e a massa também pouco se alterou, se bem que em alguns países sua condição objetiva melhorou muito. A grande disputa sempre foi entre as duas minorias, ambas tentando dar as diretrizes que seriam depois seguidas pelo povo, constituído por pessoas de inteligência inferior, ou mais dóceis por decorrência de fatores vários. A minoria idealista costuma ser a mais criativa e da qual surgem as novas idéias; estas são apropriadas pela minoria esperta, devidamente deformadas e utilizadas em favor da preservação de seus privilégios; a massa se submete a estes, que são os governantes, em geral mais agressivos e para quem o sentimento de culpa conta pouco.

Assim, no idealismo religioso como no ateu, existem como características psicológicas essenciais o prazer da renúncia — que gera sentimento de superioridade — e a sensação de solidariedade para com os outros seres humanos. O religioso vê Deus como o pai e os homens como irmãos; o ateu subtrai a idéia de Deus mas persiste se sentindo integrado na comunidade dos homens, do mesmo modo fraternal. E o entendimento da psicologia deste grupo de pessoas é fundamental, pois que, apesar de minoritário, tem poder de influência, além de ser o gerador das novas idéias.

Já assinalei que a sensação de desamparo própria do

desprendimento familiar, coisa que se dá pelos 9 anos de idade e que

tem como marco a ruptura amorosa edipia- na, é percebida como

extremamente dolorosa. Dela deriva um anseio persistente de se

sentir vinculado a alguma pessoa, grupo ou idéia, situação

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atenuadora do desespero de se sentir só. O desamparo se atenua

quando surgem ligações amorosas durante a vida adulta; quando o

indivíduo se integra com um grupo de amigos; quando se vê parte de

uma comunidade racial ou nacional. Da mesma forma, a expressão

mais sofisticada destes fenômenos atenuadores da desagradável

sensação de existir por si só são a convicção religiosa — Deus é

onipresente e acompanha a pessoa sempre — ou o idealismo político

— o indivíduo está completamente diluido no grupo humano. Em

ambos os casos se justifica intelectualmente o exercício do prazer da

renúncia, contentamento íntimo gerador de sensação de

superioridade. Não é necessário muita argumentação para se dizer

que a religiosidade não exclui o idealismo político; pelo contrário,

seria de se supor que estes dois modos de lidar com o desamparo

coexistissem até de uma forma mais freqüente do que se observa na

prática. O idealismo político ateu tem sido o mais freqüente nos

últimos tempos, talvez o mais ativista por ser a única forma de

expressão mais elaborada deste esforço de fugir da dor do

desamparo nas pessoas que não creem em Deus.

A sensação de desamparo existe em todas as pessoas, mas é

provável que existam circunstâncias atenua- doras e agravantes

desta dor. Acredito que, do ponto de vista psicológico, a grande

agravante seria uma capacidade intelectual maior; crianças mais

inteligentes perguntam mais sobre a origem da vida e sobre as coisas

da morte, se satisfazem mal com as respostas que ouvem; não se

contentam com explicação alguma, pois dela são capazes de criar

novas perguntas, novos dilemas; aquelas de inteligência menor se

satisfazem com as respostas usuais e se sentem mais serenas com

isto.

Creio também que uma ordem social e familiar mais estável

atenue esta sensação na maioria das pessoas, pois as rupturas dos

vínculos familiares nunca chegam a se dar de modo completo. Na

arcaica estrutura do clã, por exemplo, os jovens gravitavam em torno

dos patriarcas por longo tempo; e depois sua descendência fazia o

mesmo com eles; desta forma, a vida de família era bastante mais

intensa e as pessoas se sentiam mais solidárias e menos solitárias.

Da mesma forma, a existência de um rei, de classes sociais estáveis

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e imutáveis, determinava pontos de segurança e de apôio mais

sólidos dos que existem nos tempos atuais. E isto não significa que

deveríamos retornar a este tipo de vida familiar e social; apenas

mostra que as alterações havidas realçaram este importante

componente da psicologia humana.

Não creio que haja dúvidas de que o enfraquecimento das convicções religiosas tradicionais tenha sido importante fator capaz de tornar evidente a dpr do desamparo; inversamente, me parece provável que a religiosidade como foi exercida — e o é por muitas pessoas — servia aos propósitos de atenuar esta dor. A idéia de um Deus onipresente pode ter surgido como solução para a sensação de solidão do homem, perplexo diante do mundo, se sentindo abandonado e solto na medida em que se torna mais consciente de si mesmo e mais desligado dos pais de uma maneira compulsória e contra a sua vontade. Outra vez reafirmo que não se pode usar estas observações como prova da inexistência de Deus.

Resumindo, a dor do desamparo seria máxima numa criança extremamente inteligente, com maior capacidade de abstração — coisa que a faz aceitar melhor a separação edipiana — e maior tolerância a frustrações — os mais intolerantes tratam de fugir rapidamente desta dor através de todos os recursos disponíveis: apego a coisas materiais e empenho em conseguí-los a qualquer cus-to, persistência nos vínculos familiares cuja separação é muito dolorosa, apego às convicções religiosas ou materialistas com pouca reflexão crítica, ligações com outros seres humanos sob a forma de grupos de amizades, etc. O desamparo é maior ainda quando a vida familiar é conturbada e instável, o mesmo se dando na vida política e também no plano das idéias, situação na qual não há no que se apegar para atenuar o desespero. Talvez porque estejamos vivendo uma época deste tipo que tal aspecto do homem esteja tão ressaltado, de modo a podermos observá-lo melhor; e isto pode ser o início de um outro modo de reflexão capaz de trazer algum tipo de proposta nova, coisa que só costuma ocorrer quando a condição humana se torna insuportável.

A dor do desamparo surge de modo mais evidente a partir da ruptura edipiana e em decorrência do desenvolvimento da razão, capaz de ficar confusa e cheia de dúvidas a respeito do mundo que nos cerca. Mas, de certa forma, creio que é sensação similar à que a

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criança sente ao nascer, ao se perceber longe da mãe nos primeiros tempos de vida. A sensação é física, profundamente desagradável, ligada a um desconforto difuso — talvez mais localizada na região gástrica. Seria uma espécie de revolta contra o .fato de ter nascido, o que vale dizer estar sujeito a todo o tipo de desprazer físico. Segundo acredito, porém, a dor do desamparo assume sua expressão máxima através de um processo racional, da reflexão — apesar de que ela persiste sendo sentida como desconforto também físico. Ou seja, se nascer é uma coisa dramática e grave, muito pior é se perceber que a origem da vida é desconhecida.

E quando me refiro à origem da vida, não estou falando das

primeiras curiosidades infantis acerca da reprodução nos mamíferos,

fenômeno que costuma aparecer pelos 5-6 anos de idade; para estas

já temos algumas explicações, ao menos as noções suficientes para

saciar a curiosidade de uma criança. A questão é bastante mais

complexa e as dúvidas crescem com a sofisticação da razão capaz

de perceber a grandeza do universo, as distâncias entre estrelas

medidas em milhões de anos- -luz, os fenômenos da natureza

vegetal e animal todos recheados de mistérios intrigantes. Afinal de

contas, donde surgiu tudo isto? Para que existem todas estas

coisas? Quem as criou? Sempre existiram? O universo é finito ou

infinito? Qual o sentido da vida? Estas são as perguntas capazes de

atormentar o espírito cada vez mais, desde a infância até à velhice,

de uma forma crescente. Sim, porque quanto mais tentamos saber e

nos informar, maiores são as dúvidas e os mistérios.

Já disse que o desconforto da razão são as dúvidas,

as perguntassem resposta. E elas funcionam de modo si

milar à fome para o corpo. Surge um desejo intenso de resolvê-las

com a finalidade de atenuar o sofrimento, agora originado

exclusivamente da capacidade racional do homem, perplexodiante da

realidade que o cerca. E isto

explica o fato

da maioria das pessoas se apegarem às

concepções em vigor na sua época, se contentarem superficialmente

com elas e tratarem de deixar este tipo de questão de lado e, mais

que depressa, se dedicarem às de ordem prática, ligadas ao

aprendizado de uma profissão, ganhar a vida, ter prazeres sexuais e

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afetivos, etc.

Numa reflexão mais acurada, podemos perceber que o grande

e dramático evento determinante da dor do desamparo é o fato de

que a origem da vida e do universo é um mistério, e mais, que jamais

será decifrado.Todas as sensações físicas infantis similares se reforçam brutalmente através desta constatação intelectual posterior e verdadeira. Quaisquer que fossem os esforços psico-pedagógicos capazes de atenuar este sofrimento físico infantil esbarrariam com o obstáculo intelectual, que é intransponível e definitivo; com isto fica evidente que o grande e fundamental problema do ser humano não é de natureza psicológica por si, mas sim de tipo filosófico: como existir, como ser, como se comportar uma criatura que tem que aceitar que desconhece sua origem? Como pode o ser humano mais maduro e sábio se sentir amparado se ele não sabe de onde veio?

Sendo a dúvida um desconforto difícil de ser suportado por si e reforçador da dor do desamparo, é evidente que o espírito humano tem se esforçado para encontrar soluções convincentes. A idéia de um ser criador do universo, da terra, dos animais e dos homens - um Deus — sempre foi a mais atraente para os nossos ancestrais, per-plexos diante do mistério da vida. A idéia é lógica, e até bastante provável, já que a hipótese oposta — que tomou corpo a partir de algumas importantes descobertas da física, astronomia e biologia, importantes mas também bastante superficiais em relação à magnitude do mistério — seria a de que o universo sempre existiu, que não foi criado, coisa bastante difícil de ser compreendida e sustentada com argumentos.

Já disse que o pensamento materialista se vale do fato de que as concepções de Deus são obviamente humanas para provarem sua inexistência. Usa também certas descobertas científicas sugestivas de que existem indícios de uma evolução casual e espontânea da matéria inanimada para a com vida e desta até o homem como prova de que tudo se construiu sem a intervenção de uma força superior, uma divindade. Outra vez o raciocício é primário, pois a descoberta de determinados processos absolutamente não é argumento suficiente para se acreditar que o universo sempre existiu. Mesmo que se possa demonstrar que a vida pode ter surgido espontaneamente, muitas são as dúvidas que sobram e que jamais

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poderão ser respondidas. A fé no desenvolvimento da ciência é da mesma natureza que a fé em Deus: duas formas, opostas na formulação, para se fugir ao desconforto determinado pela verdade. E a verdade indiscutível é que a origem da vida é um mistério.

Sou tentado a escrever Mistério — com inical maiúscula — da

mesma forma que sempre se escreveu assim sobre as divindades. A

idéia básica seria esta: o homem não é filho de Deus e nem

descendente do macaco; é fruto de um Mistério original. Sua

desgraça e o fascínio de sua vida se alicerçam no fato de que ele

tem que existir ignorante acerca de sua origem e, obviamente, de seu

destino. Qualquer explicação será precária e apenas terá a finalidade

de atenuar o desconforto da dúvida original. 0 desamparo é

sensação natural e obrigatória deste ser, de modo que sua tarefa

maior é aprender a conviver com esta dor e não tratar de fugir dela a

qualquer custo. E não será bastante provável que uma boa parte da

nossa energia nós a gastemos exatamente no sentido de fugir desta

verdade?

Quem crê em Deus se apazigua, vive conforme o "bem", se alimenta do prazer da renúncia e da certeza de uma vida futura melhor. Quem acredita que a vida termina com a morte trata de aproveitá-la da melhor forma possível do ponto de vista dos prazeres materiais, sempre meio apressado pois o medo da morte antes do tempo determina este estado, além de desenvolver seu eventual idealismo na direção da ação política. E como é que vive a pessoa que se sabe fruto do Mistério?

Não deixa de ser curioso e perturbador pensar com seriedade

que se é filho do Mistério. Que existe uma coisa ao menos maior que

o homem: o Mistério acerca de sua origem. Que a partir desta

verdade primária, tudo é possível de existir, tudo é tema de interesse

e reflexão, não há nada definido ou pré-estabelecido. Nem é verdade

que há vida depois da morte e nem que a vida termina com a morte.

Tudo é mistério, tudo pode ser pensado. Interessa o progresso da

ciência tanto quanto interessa o poema. Pode existir alma de outros

mundos que venham nos visitar, e tudo pode ser fruto da fabulação

humana. Podem existir — ou não — discos voadores; porque sim? e

porque não? O conteúdo dos sonhos podem ser de uma natureza

que transcenda as experiência já vividas e mesmo conter sabedoria

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para além daquela que o indivíduo experimentou; ou não.De repente me apercebo que a idéia — a meu ver indiscutível

— de que o homem é filho do Mistério abre uma perspectiva intelectual e de vivências nunca antes proposta. O homem que se aceita como tal, que suporta a dor desta dúvida original e não tenta encontrar uma explicação para ela, se aproxima daquilo que sou tentado a chamar de homem livre. E o medo da liberdade, evento indiscutivelmente existente no ser humano, seria a incapacidade de lidar com a dor e o desespero próprio do desamparo real e característico da espécie. Os outros componentes, ligados ao medo de desafeto, medo de perda de privilégios, etc., aos quais estão sujeitas as pessoas que se comportam de um modo diferente do esperado, nada mais são do que casos particulares do medo do de-samparo, próprio da solidão à qual supostamente estaria condenado o homem livre.

Qualquer criatura capaz de viver de um modo diferente e original desperta imediatamente um enorme fascínio na grande maioria, que se comporta exatamente conforme os padrões da época. O fascínio mostra que a maioria das pessoas está absolutamente insatisfeita com o seu modo de vida; mas nem porisso se modifica e busca uma conduta mais de acordo com suas idéias. E o temor que impede é sempre o medo das críticas, de perda de posições sociais — nem sempre geradoras de privilégios capazes de justificar tal medo — e principalmente a perda do afeto das pessoas, o que significa abandono e solidão, ao menos como expectativa psicológica. E a situação é obviamente contraditória, posto que estas pessoas sabem que o fascínio das outras será até maior se elas ousarem um modo de ser original; mas existe o risco do desprezo geral, e isto é suficiente. Fica claro mais um aspecto ligado ao pavor da maioria das pessoas de experimentar a dor do desamparo, que é o de se comportar conforme os seus pares, se misturar com eles, ser mais um dentro da multidão, se diluir na massa. Tal tendência se opõe ao componente sexual que chamo de prazer de se exibir, que desta forma se frustra. Sobra a solução da fantasia, da imaginação: as pessoas vivem a vida de todo o mundo e sonham com a extravagância, com o luxo ou a miséria, com a promiscuidade ou com a austeridade monástica. E todos os sonhos deste tipo têm conotação sexual em virtude do exibicionismo que a extravagância de

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qualquer tipo contém.O meio social usa o temor do desamparo como forma de

acovardar e amestrar a massa, de modo que as pressões no sentido do comportamento convencional existem e as represálias para as excentricidades são reais. Talvez não sejam, em certos casos, tão ameaçadoras quanto as criaturas imaginem, mas elas realmente existem. Um educador que se declare homossexual, por exemplo, dificilmente manterá o seu cargo. E estas coisas são tanto mais verdadeiras quanto mais importante e destacada for a posição de uma pessoa; isto até um certo limite superior, onde a extravagância passa a ser de novo tolerada.

Aos artistas em geral, o meio social autoriza o máximo de extravagância. E eles servem de alimento para a fantasia da maioria da população, sendo esta uma função interessante para fins de repressão: as pessoas se divertem em falar sobre a vida íntima conturbada dos artistas e com isto se esquecem da sua própria monotonia.

Ao mesmo tempo, se sabe que a função criativa só pode ser

exercida com este estado de espírito e modo de vida mais livre, de

maneira que uma parte da população terá que viver assim para que

surjam as novas idéias, as novas músicas, as novas pinturas, etc. É

evidente que não basta uma pessoa ter coragem de viver com

excentricidade — capacidade de lidar com o desamparo — para que

seja um artista. Será um homem livre, porém só será criativo se tiver

talento verdadeiro; e muitas são as pessoas que acham que viver a

vida de artista é o mesmo que virar um artista. Da mesma forma,

nem toda extravagância se manifesta na forma de se vestir e de viver

o cotidiano; este é o seu aspecto superficial e mais visível, ab-

solutamente secundário para muitas pessoas: Essencialmente

extravagante é o indivíduo que pensa por conta própria, que é capaz

de se livrar das amarras das convenções em sua maneira de refletir

sobre a vida, coisas e pessoas; esta extravagância subjetiva pode ou

não ter uma repercussão no modo de ser exterior da pessoa.

Em resumo, acredito que o desamparo seja a sensação

dolorosa mais típica do ser humano; apesar de existirem razões

psicológicas para justificá-la, creio que sua fonte maior é a

descoberta de que a origem da vida é um Mistério indecifrável. A

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aceitação disto como uma verdade contra a qual não se pode lutar —

e a luta tem sido feita no sentido de se encontrar explicações

precipitadas e incompletas para o Mistério — e a capacidade de con-

viver com esta dúvida original, que é a causa da perpetuação na vida

adulta do desamparo infantil, cria uma nova perspectiva para o modo

de pensar e de ser do homem, no sentido de aproximá-lo muito

rapidamente de um dos seus maiores anseios: a liberdade.

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II

100

Colocada a proposição de liberdade como uma enorme

abertura luminosa que deriva da aceitação de que a

condição humana consiste na existência de um estado de

consciência acerca do Mistério da vida e da morte — e

tal concepção substitui aquela que vê a tragédia humana

como derivada dele se saber mortal — devemos nos

encaminhar no sentido de tentar saber como é o homem

livre. A questão é complexa, pois não podemos deixar de

reconhecer que tais criaturas são muito poucas, se é que

verdadeiramente existem; e não dispomos de experiências

subjetivas para ilustrar tal condição, posto que todos

nós fomos educados dentro do princípio de que a conduta

excêntrica era castigada com o desafeto dos pais, o que

nos levaria ao estado de desamparo insuportável. Depois

de crescidos, além do medo similar — agora em relação ao

meio social como um todo — se acrescenta aquele que

deriva de se perceber que não há respostas às perguntas

fundamentais, o que abala brutalmente a auto-confiança e

a coragem para existir; nos apegamos então a convicções

de qualquer tipo apenas com a finalidade de dar sentido

à vida e fugir das dolorosas questões acerca do

Mistério; o tema em geral é abandonado após a puberdade

e só eventualmente é retomado na velhice, quando a luta

pela vida se abrandou e a morte se aproxima de modo

assustador.

Assim, o que nós todos temos feito é nos entupirmos de

obrigações e atividades com a finalidade de fugir' da

dor do desamparo, consciência sofrida que só aparece em

horas de acalmia, ou, pior ainda, de grande felicidade.

A luta pela sobrevivência é o tema básico da grande

massa da população da terra e é claro que ela assume

prioridade tal que estas criaturas não podem cogitar de

outras questões; seu sonho é a riqueza e com ela a

suposição de que todos os problemas estarão resolvidos.

Aqueles que resolveram as questões fundamentais da

sobrevivência material podem agir de dois modos: ou

reinventar problemas nesta área aumentando o nível de

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101

suas ambições, ou encalhar nas questões chamadas exis-

tênciais e que são, em essência, as insatisfações amoro-

sas. Problemas econômicos podem ser sempre recriados,

especialmente numa sociedade como a nossa capaz de gerar

novidades atraentes e dignas de serem possuidas — e não

é impossível que isto se faça justamente com a fi-

nalidade de afastar o homem contemporâneo, materialista,

dos problemas metafísicos básicos. Alguém que mora numa

boa casa e tem situação econômica estável poderá decidir

mudar para outra do dobro do tamanho, a pretexto de

viver mais comodamente e com a finalidade real de poder

passar mais alguns anos ocupado com as questões

materiais. A experiência clínica é também sugestiva de

que as pessoas complicam sua vida amorosa muitas vezes

desnecessariamente; tantos casais vivem se atritando

quando poderiam viver felizes; do mesmo modo, quase

todos os encontros amorosos de grande afinidade e

intensidade sentimental máxima terminam em separação.

Outra vez parece claro que o homem foge de resolver

questões com a finalidade de evitar a complexa dor

derivada de se perceber filho de um Mistério.

Quase tudo que observamos na realidade é, portanto,

um esforço do homem de fugir de si mesmo, de fugir do

tempo livre que o levaria à reflexão. Nestas condições,

penso que o medo da liberdade deriva do fato de que ela

traria condições para o homem pensar acerca de si mesmo

e de sua origem; a idéia de liberdade é atraente, mas

vivê-la é assustador. E quantos não são os homens que

trabalham ininterruptamente e vivem sonhando com o dia —

sempre adiado — em que irão gozar das delícias de morar

numa praia semi-deserta? O que os impede de ir é que

terão forçosamente de pensar em si e na vida; enquanto

não vão, gastam o tempo livre a sonhar com a ida, o que

é mais uma forma de se distraírem de suas verdades.

Parece claro, portanto, que o homem foge da liberdade

através de uma vida massacrante e também através da

ilusão da liberdade que é o seu devaneio constante; se

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102

realizar o devaneio terá que pensar na sua condição real

e isto é bastante doloroso, sentido como insuportável

para a maioria.

Os que têm uma convicção religiosa definida e pro-

funda — e estes são poucos — lidam melhor com uma vida

mais calma e serena; porém, fogem da verdade através da

própria convicção, que apazigua a dor do desamparo.

Apesar disto, vivem sem dúvida um estado interior mais

sereno do que aqueles que não creem em Deus. Mas, são

obrigados a se comportar conforme os mandamentos de sua

religião, de modo que também não são criaturas livres,

capazes de decidir sobre o seu próprio destino. Gastam

boa parte do tempo num esforço contínuo de entender os

desígnios de Deus, para depois tentar se comportar de

acordo. Já disse que deste esforço derivaram muitas das

mais belas e importantes criações do homem; e isto

talvez signifique que aqueles que crêem em Deus se vêem

com mais coragem para chegar mais perto das questões

humanas fundamentais, posto que estão escorados por esta

convicção.

Desta forma parece claro que o homem vive continua-

damente querendo se ocupar das questões objetivas com a

finalidade de se distrair de si mesmo; é evidente que

não é esta a única razão para o interesse pelas coisas

que o cercam, pois elas despertam também a curiosidade

natural do homem, além de ser necessário para a sobrevi-

vência da espécie o domínio sobre certos fenômenos da

natureza. Me refiro ao exagero de ocupação objetiva pró

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103

prio do homem contemporâneo, e que não existe, por

exemplo, na maioria daqueles que têm verdadeira convic-

ção religiosa.

Tentar saber como é o homem livre implica, pois, em

um esforço de imaginação, pois que ele é muito raramente

encontrado na realidade. E é conveniente registrar que

acredito que se possam atingir importantes progressos

através deste recurso, talvez o único capaz de gerar

inovações. Se chega a uma nova idéia, a um novo con-

ceito, que servirá depois de modelo para a aplicação

prática, que será atingida através do tempo — e não

imediatamente — e com as devidas deformações e

limitações. A idéia sempre poderá estar mais próxima da

perfeição do que a realidade (Platão).

E a primeira idéia que tenho acerca dos homens

livres é que não serão todos iguais e não viverão todos

de uma só maneira. A realidade nos ensina um fato que

pode ser percebido com desgosto por muitos por causa de

suas convicções: não nascemos todos iguais. Há incríveis

diferenças individuais em todos os níveis, desde a

constituição física à inteligência; os homens diferem em

beleza, capacidade de trabalho, intensidade do instinto

sexual, competência para lidar com a dor física e com

frustrações, capacidade criativa, etc. E seria fugir aos

fatos supor que tais diferenças derivam apenas das

condições sócio-culturais e econômicas ligadas à origem

de cada pessoa, bem como pensar que são apenas os aspec-

tos psicológicos próprios da história infantil os

responsáveis pelo adulto que cada um de nós é. O inverso

também é verdadeiro: há importantes influências

psicológicas e sócio-econômicas na determinação do

homem; mas alguns limites inatos são intransponíveis, de

modo a ser impossível cogitar de alguma ordem social na

qual todos os homens seriam iguais. As diferenças

individuais não implicam obrigatoriamente em uma

sociedade onde existam privilégios e privilegiados; mas

o anseio de so

m*

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104

ciedades mais justas não pode ser alicerçado em uma

inverdade, ligada a uma idéia simpática, mas falsa, de

que somos todos iguais.

Não deixa de me parecer surpreendente como certos

absurdos podem tomar corpo e fazer parte de doutrinas de

influência capital para a evolução da humanidade. Não é

improvável que a idéia da existência de diferenças

básicas entre os indivíduos seja desagradável por razões

psicológicas, no sentido de que ela traria várias

conseqüências importantes. Todos nós tentamos entender o

outro à nossa imagem e semelhança; supomos os so-

frimentos alheios através de nos imaginarmos naquelas

situações. E acreditamos que estamos obtendo dados reais

através deste processo, o que nem sempre será verdade. O

indivíduo mentalmente sadio que se imaginar internado à

revelia num sanatório, e submetido a determinados

tratamentos mais dramáticos, sentirá uma dor e uma

sensação de humilhação que o louco não sente.

Se as pessoas não são iguais, o processo de enten-

dimento do outro através do colocar-se no lugar dele

deixa de ser válido. E isto não significa que se deva

deixar de exercer esta função imaginativa; apenas não

pode ser entendida como sendo a forma de captação da

verdade efetiva do outro. Jsto complicaria o

desenvolvimento de certo tipo de idealismo salvador, tão

a gosto dos humanistas; apenas a título de exemplo,

poderíamos dizer que os estudantes universitários — que,

paradoxalmente, se reconhecem como elite pensante — não

estão autorizados a participar da luta operária, e muito

menos tentar influir sobre suas diretrizes. Apenas os

operários conhecem sua verdadeira situação e anseios;

tudo o que imaginarmos a respeito deles e do modo como

se sentem terá que ser percebido como hipótese e não

como expressão do que efetivamente se passa.

Em outras palavras, a idéia da igualdade entre as

pessoas autoriza a uma minoria decidir quais são os an-

seios da maioria, através do que a imaginação das

primeiras pode supor sobre a segunda. Assim, a própria

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105

idéia igualitária determina o surgimento de elites

salvadoras da massa, e que, a partir daí, não precisam

sequer ser consultadas. Ela acaba desembocando sempre

num procedimento totalitário, mesmo quando a serviço de

conceitos humanistas, além de alimentar a vaidade dos

heróis que se sacrificam pela causa supostamente comum.

Outra vez insisto que o reconhecimento de diferen-

ças individuais não pode ser o motivo para justificar

uma sociedade em que existam nobres e escravos, raças

superiores e outras que devem ser exterminadas. Se

trata, aqui também, da utilização de verdades com a

finalidade de dar validade a ações voltadas para a

resolução de desejos de uma minoria que se atribui

direitos especiais.

A aceitação do fato de que os homens não são todos

iguais só pode ter uma conseqüência legítima: temos que

respeitar o modo de ser e de pensar do outro. Temos que

tentar saber como é o outro ao invés de querer imaginá-

lo; temos que nos aproximar efetivamente das pessoas,

conversar com elas, conviver com elas; e fazer isso sem

querer modificar o modo como elas pensam, sem nos

colocarmos como mais sábios, melhores. Poderemos

aprender dos outros e ensiná-los, apenas através de

ouví- -los e falar-lhes; e cada um falando de si e de

suas vivências. Cada criatura acha — e sempre será assim

— que suas idéias são as melhores; mas terá que

compreender que o outro também pensa do mesmo modo, de

sorte que se sentirá ofendido se quisermos impor as

nossas. E não temos este direito mesmo quando

acreditamos existir indícios evidentes de que o outro

está cometendo equívocos.

O reconhecimento da existência de diferenças indi-

viduais determina uma postura em relação ao outro tanto

de respeito como de curiosidade. Se fôssemos todos

iguais, pequeno seria o interesse de conhecermos outras

pessoas. Fica absolutamente sem sentido a tendência dos

pais de moldar seus filhos à sua imagem e semelhança; e

o lógico seria tentar perceber desde cedo quais são as

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características de cada um deles para que sejam

respeitadas e eventualmente estimuladas. Não se pode

querer moldar criancas e nem outros adultos à nossa

imagem e semelhança, mesmo que continuemos a achar que o

nosso modo de ser, de viver e de pensar seja o mais

certo.

Não é o caso de desenvolver exaustivamente a ques-

tão, de modo a se saber quais sejam os modos de pensar

mais válidos e consistentes; apesar de acreditar que

existam diferenças e meios de se provar se certas

concepções são verdadeiras ou falsas, penso que cada

homem tem o direito de se guiar pelo seu julgamento. E,

no seu íntimo, ele percebe quais são as suas verdadeiras

crenças, quais as coisas que ele diz ou pensa apenas por

conveniência ou para se tranqüilizar; no limite, cada

criatura tem também o direito de viver continuamente a

se iludir.

O homem que se reconhece filho do Mistério sabe que

ele não tem acesso a verdades absolutas. Mas sabe também

que elas podem existir ou não, dependendo da natureza

deste Mistério que jamais será desvendado. A aceitação

desta condição traz consigo duas atitudes concomitantes:

uma certa docilidade e resignação diante do fato de que

jamais terá acesso ao Mistério — no que esta concepção

se aproxima da atitude religiosa diante da vida — ao

mesmo tempo que tem sua curiosidade aguçada, no sentido

de tentar decifrar todos os enigmas que sua inteligência

puder criar — nisto se aproximando da atitude científica

diante da vida.

O homem livre — o que aceita docilmente sua con-

dição de filho do Mistério — é calmo e sereno diante

deste fato definitivo de que jamais terá acesso às

respostas primeiras. Mas tem sua curiosidade justificada

pelo próprio Mistério original, curiosidade que se torna

mais atra

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ente na medida em que ele poderá atuar conforme

suas convicções e descobertas, ainda que saiba que elas

são incompletas e parciais. Na medida em que sua origem

é desconhecida, ele se torna livre para construir suas

idéias e sua vida, coisa absolutamente fascinante e

atraente; e pode mudar o rumo de tudo quantas vezes isto

lhe parecer interessante.

O homem que se reconhece filho de Deus tem sua vida

e seu destino traçados por Ele; tem serenidade interior,

mas tem que viver conforme Sua bondade. O homem que se

reconhece como a evolução do macaco percebe a vida como

sendo sem sentido e se apressa em usufruir dos prazeres

do corpo, pois vive atormentado com o medo da morte. O

que se reconhece filho do Mistério — e aceita isto —

vive em paz, portador de um fatalismo próprio dos que se

reconhecem impotentes diante de coisas maiores, mas

extremamente curioso e livre, pois não está obrigado a

seguir nenhum mandamento superior. Nada é impossível,

nenhuma questão está fechada. Tudo é interessante. A

vida ganha um sentido enorme, pois ela pode ser vivida

conforme se queira; tudo o que se conseguir inventar ou

imaginar pode vir a ser fato um dia. O único limite para

o ser humano são os direitos dos outros, filhos do mesmo

Mistério; e não creio haver necessidade de grandes

argumentações para se estabelecer este princípio básico

de convivência como legítimo.

O homem livre faz suas concepções a partir do que

ele observa na realidade externa e também do que ele

imagina. Não é governado por concepções rígidas que o

impedem de aceitar alguns aspectos da realidade apenas

porque estas não se encaixam nos conceitos aceitos como

verdadeiros. O homem livre não se aterroriza com os pro-

gressos da ciência — capazes de abalar as doutrinas

religiosas — e nem se afasta de fenômenos estranhos,

porém verificáveis, nos quais parece que certas pessoas

possuem propriedades especiais — capazes de abalar as

concepções materialistas. Tudo o interessa, pois tudo é

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possível. E a ele caberá julgar a validade das coisas,

concluir e formular seus próprios conceitos, que serão

sempre mutáveis em função de novas observações e novas

idéias. Com isto ele se aproxima cada vez mais de

concepções mais convincentes para si mesmo, se aprimora

cada vez mais; aceita e mistura conhecimentos obtidos a

partir da dedução científica com aqueles que derivam da

intuição mágica. O processo é similar ao descrito por

Platão; é como se os absolutos existissem mas não fossem

revelados ao homem; este, através de sua razão, tenta se

aproximar cada vez mais deles, mesmo ciente de que

jamais os alcançará.

O filho do Mistério não tem nenhum modelo pré- -

estabelecido de conduta. O filho de Deus deve se guiar

conforme aquilo que o homem supõe ser a Sua vontade; e

esta sempre esteve em relação com o usufruto do prazer

da renúncia, prazer secundário e que dá dignidade e

grandeza para pessoas enfraquecidas pelo sentimento de

culpa. O homem livre terá que reconhecer também muitos

equívocos em relação aos seus sentimentos de culpa, pois

eles também se constroem em função da idéia da igualdade

entre as pessoas; ou seja, muitos dos sofrimentos que se

imagina o outro esteja padecendo não correspondem à

verdade, de modo que o sentimento de culpa poderá ser

maior do que o justificado em muitas situações.

Aquele que aceita a dor do desamparo se sentirá

solidário com os outros seres humanos. Não substituirá o

amparo familiar pela idéia de Deus e nem dará sentido à

sua vida através do anseio heróico de salvar os seus

semelhantes da miséria ou de qualquer outra peste. Mas

se sentirá solidário, partícipe do mesmo curioso — e não

trágico — destino. O se sentir parte integrante do

coletivo humano define o princípio moral único do homem

livre: o respeito ao próximo e a seus direitos,

idênticos aos atribuidos a sí mesmo. Apesar das

diferenças individuais, não é difícil se chegar a um

consenso acerca dos limites de direitos de cada pessoa,

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109

posto que os homens têm também entre si enormes

semelhanças. Assim, não matar, não roubar, não impor sua

própria vontade e suas convicções aos outros, etc

seriam postulados facilmente aceitáveis para a

totalidade das pessoas. O detalhamento- to deste

princípio geral para cada grupo social teria que ser

feito em função do modo como se dá cada tipo de or-

ganização, sempre em função da vontade da maioria dos

seus membros.

Assim o homem livre não é "bom" ou "mau", como

seria o filho de Deus, conforme se comportasse segundo

Sua vontade ou em oposição a ela. 0 homem livre é justo

ou injusto, conforme aceite o direito dos outros ou não.

Isto para cada situação em particular, pois no global

terá que ser uma pessoa justa. A ação continuada- mente

injusta — subtração de direitos de terceiros em causa

própria ou vice-versa — determinará a reação das outras

pessoas, que agora não têm mais a docilidade própria

daqueles que têm prazer na renúncia. Além do mais o

homem livre é crítico em relação a si mesmo e se saberá

injusto; e mais, sabe da experiência empírica, que tal

conduta não lhe faz bem. O generoso e o egoísta — os

dois tipos usuais de criaturas injustas — estão

absolutamente cientes de como tais tendências lhes fazem

sofrer. 0 homem livre não busca o sofrimento, pois isto

só teria sentido para aquele que quer se aproximar da

grandeza divina; do mesmo modo, não busca o privilégio

porque sabe que isto, direta ou indiretamente, gera

outro tipo de sofrimento.

O homem livre, ciente e conformado com o Mistério

original, tem sua atuação voltada para a vida na terra,

o que não significa negar a possibilidade da existência

de uma continuidade após a morte. Não tem um modelo a

seguir; é livre para existir conforme sua convicção. Não

tem que ser "bom" mas tem que ser justo, pois em caso

contrário perde sua própria liberdade. Sua meta não é a

salvação da alma após a morte, apesar de poder se

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interessar também por isto, visto ser esta uma possibi-

lidade. A meta do homem livre é a felicidade em vida; ou

seja, aquilo que a religião prometeu para depois da

morte e a ciência sugeriu que é impossível.

Não existindo um modelo pré-determinado de como se

deve ser e não havendo limites à liberdade humana a não

ser os idênticos direitos dos outros, cabe a cada um de

nós tratarmos de nos pesquisar ao máximo e descobrirmos,

de uma forma não preconceituosa, nossas características

instintivas e racionais. Quanto mais formos capazes de

nos conhecer, não como gostaríamos de ser, mas como

somos, mais seremos capazes de encontrar modos de

existir satisfatórios para nossos múltiplos, e às vezes

contraditórios, anseios. Não é impossível que muitos dos

aspectos apontados como antagonismos irre- conciliáveis

dentro do psiquismo humano não o sejam de fato, sendo

isto apenas um sinal de que ainda não fomos capazes de

entender completamente a condição humana e,

principalmente, não fomos capazes de analisá-la de uma

maneira livre das pretensões de transcendência e de

"bondade" próprias do pensamento religioso.

O homem livre sabe que tudo é possível, apesar de

que isto não pode significar a subestimação dos obstá-

culos e dificuldades próprias das grandes tarefas.

Buscar a felicidade do homem na terra é projeto

ambicioso e ainda não atingido; e isto não significa que

seja impossível; e nem a descoberta de obstáculos

aparentemente intransponíveis nos autoriza a uma atitude

pessimista e de desânimo. O próprio progresso da ciência

é exemplo claro de como uma nova concepção teórica pode

permitir a abertura de caminhos práticos insuspeitados.

Genericamente, o homem livre de modelos externos a

si mesmo buscará na sua natureza humana e na realização

de todas as suas tendências a harmonia interior

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111

e a alegria de viver próprias do estado de

felicidade. Se reconhecer dentro de si tendências no

sentido de desrespeitar os direitos dos outros —

especialmente os de natureza agressiva — não creio que

se sentirá muito frustrado de ter que limitá-los,

reprimí-los; isto porque a repressão terá o aval da

razão, aparecerá como lógica e razoável. Creio que o

homem se ressente muito mais quando se vê forçado a

reprimir tendências que absolutamente não prejudicam aos

outros seres humanos, como é o caso da maioria dos

freios aos quais estamos sujeitos. E mais, este excesso

de repressões — mais repressão, termo bastante próprio

introduzido por H. Marcuse — determina, a meu ver, uma

irritação interior capaz de tornar o homem mais

agressivo, mais injusto e, portanto, anti- -social.

Do ponto de vista psicológico, será tanto mais

feliz o homem quanto mais ele for capaz de satisfazer as

necessidades e os desejos do corpo, bem como se alimen-

tar de gratificações de natureza racional. As

necessidades do corpo são de tipo material — comida,

vestuário, medicamentos em caso de doença, etc. — e quem

se ocupa de percebê-las e satisfazê-las na medida do

possível é a razão concreta. Os desejos do corpo são os

chamados instintos, o do amor e o sexual, cujos anseios

também chegam à razão concreta para serem realizados

através desta entidade psicológica que tem a função de

perceber e tentar satisfazer todas as necessidades e

desejos. A própria razão, através da componente

abstrata, cria seus dilemas e busca suas resoluções

através do que se pode chamar de curiosidade

intelectual; ou seja, a busca de explicações capazes de

atenuar o desconforto da dúvida. Os órgãos dos sentidos,

além de sua função de trazer à razão informações da

realidade externa, podem ser fonte de prazer estético,

como seria o caso da música para os ouvidos e da pintura

para os olhos — nestes casos a senso- -percepção

determina prazeres ligados à razão abstrata.

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112

A sofisticação de necessidades físicas podem trazer

novos tipos de prazer, como é o caso de uma comida de

bom paladar ou uma roupa extravagante. Através do prazer

de se exibir, todas as funções humanas ganham uma co-

notação também sexual — porém, como já assinalei, não

exclusiva — e isto é mais um estímulo para o homem bus-

car novas formas de ser e de pensar.

Em resumo, a natureza do homem é curiosa e ainda

incompletamente compreendida. Ele busca a paz e a

harmonia através da ausência de desprazeres; e busca

também ativamente novos prazeres, coisa que o põe em mo-

vimento, e que às vezes gera alguns novos desprazeres,

que deverão ser resolvidos para que ele volte a experi-

mentar a harmonia. Não se trata de uma incompatibilidade

de tendências para a estagnação e para o movimento, mas

sim de um desejo de que os desequilíbrios sejam apenas

prazeirosos, o que talvez seja impossível. Cabe ao homem

tolerar certa dose de desprazer para poder usufruir ao

máximo de sua condição. Aliás, o primeiro e principal

desconforto deriva da dor do desamparo próprio dele se

reconhecer filho do Mistério, dor esta que tem que ser

suportada para que o homem atinja sua plenitude.

Seu único e fundamental limite é o direito dos ou-

tros homens. Além disso, cabe a cada um de nós fazer

valer os nossos direitos, de sorte que o sentimento de

culpa e o medo de represálias, bem como o eventual pra-

zer da renúncia, não podem ser argumento válido para o

indivíduo se deixar envolver e dominar.

O homem livre se percebe filho do Mistério, é dócil

em relação a isto, ao mesmo tempo que curioso e ativo em

relação à vida terrena. Reconhece que não somos todos

iguais e respeita as diferenças entre as pessoas, de

modo que não se atribui, em hipótese alguma, o papel

heróico de salvar os seus semelhantes — que não são

iguais. É homem justo, de modo que não se aproveita de

eventuais fraquezas dos outros para tirar vantagem, pois

sabe que com isto perde sua liberdade. Não se guia por

modelos pré-fabricados e se percebe como o autor de sua

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113

própria história. Não pretende a transcendência e sim a

felicidade, de modo que trata de se conhecer da melhor

forma possível para realizar um modo de ser e de viver

compatível com a sua natureza. Vive em concordância com

o que acredita e influi sobre os seus semelhantes

através do exemplo pessoal; não teme abandonos e desa-

fetos, pois já se familiarizou com a dor original, que é

a do desamparo própria da condição humana. Não se

submete sem crítica a nenhuma doutrina e não se coloca

como criatura estática, aceitando rever suas próprias

posições a partir de novos dados obtidos da realidade ou

através da intuição; se encanta e se alegra com a pos-

sibilidade sempre presente de chegar a novos

conhecimentos e novas sínteses — que determinarão

alterações na sua maneira de viver — de modo que viver

passa a ser um processo extremamente atraente e cheio de

surpresas.

É fácil perceber como quase todos nós estamos dis-

tantes do tipo descrito em múltiplos aspectos, mas

principalmente em função do problema original que é a

dor do desamparo, para muitos de nós percebida como

insuportável. Como disse inicialmente, trata-se de um

tipo de vida que se pode atingir apenas através da

imaginação, ao menos por hora; na medida das forças de

cada um, pode haver a possibilidade de se aproximar

deste modo de ser na realidade, ao menos para aqueles

que reconhecem a idéia como atraente.

Fica claro também que o homem livre não será jamais

um tipo só, padronizado, e a sociedade que contiver o

homem livre terá que absorver e se resolver levando em

conta uma multiplicidade de modos de vida, todos coe-

xistindo em clima de respeito às opiniões e direitos uns

dos outros. Cada homem encontrará o seu caminho pessoal,

respeitando as regras criadas pelo grupo social, todas

elas ligadas ao princípio do respeito mútuo e das deci-

sões sujeitas à aprovação da maioria. Nenhuma outra

restrição deverá existir para ele.

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114

Se um homem preferir uma vida material miserável em

favor de convicções pessoais ou do direito de dispor de

todo o seu tempo para o que desejará trabalhar o mínimo,

ele é livre para isso. Se desejar mais benefícios

materiais e estiver disposto a grandes desgastes no

trabalho para este fim, assim deverá proceder.

Aquele que julgar que as ligações amorosas estáveis

são um impecilho à liberdade individual e principalmente

ao livre exercício do desejo sexual — sentido como

prioritário — viverá só. O que acreditar que o homem se

resolve — e inclusive atenua a sensação de desamparo —

através do amor, viverá a dois em ligações sólidas ou

efêmeras. Os que preferirem ver o homem como mais capaz

de estabelecer múltiplas ligações de amizade e so-

lidariedade para fins práticos, e acreditarem que as

relações sexuais devem ser múltiplas, viverão em

comunidades.

Os que julgarem fundamental a perpetuação de suas

vidas através da reprodução terão filhos; outros optarão

por não tê-los. Uns serão homossexuais, outros hetero-

xessuais e outros bissexuais; e assim por diante. As

soluções mais sólidas e estáveis serão aquelas mais de

acordo com a natureza psicológica e biológica do homem e

serão encontradas e se perpetuarão naturalmente. Sempre

que o homem vive de uma maneira que o afasta de sua

natureza passa a experimentar a desagradável sensação de

desprazer, de modo a se poder supor que naturalmente ele

tenderá a buscar um equilíbrio mais adequado; e se isto

não acontece sempre é porque o homem — e as sociedades

que ele criou — não é livre.

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7. O MEDO DA FELICIDADE

I

O homem livre, aquele que vive de acordo com suas

convicções e seus anseios, se aproxima da sensação sub-

jetiva de felicidade. É um estado no qual sente paz,

equilíbrio interior e alegria íntima derivado de ter

conseguido atingir os objetivos propostos. A experiência

mostra que é o encontro amoroso o evento capaz de mais

completamente levar o homem a experimentar a sensação de

felicidade; além disso, no amor ela é vivida como estado

mais estável e contínuo, isto quando as pessoas toleram

se sentir assim.

A prática mostra também que o atingimento de ob-

jetivos parciais nos quais uma pessoa se empenhou muito

determina sensação de felicidade similar, apesar de que

de duração mais efêmera. Assim, um indivíduo envolvido

com sua carreira profissional se sentirá feliz ao

atingir o destaque procurado; aquele que se dedica ao

sucesso financeiro sentirá a mesma emoção ao alcançar o

objetivo previsto; o jovem que for aprovado nos exames

para o ingresso na faculdade desejada se sentirá feliz;

assim ocorrerá quando ele ganhar o seu automóvel, o

mesmo se dando com um casal que conseguir construir a

casa dos seus sonhos, etc.

Em linhas gerais, a sensação de felicidade — paz

interior associada a um estado de alegria — surgirá

numa pessoa sempre que ela conseguir atingir, ainda que

momentaneamente, as metas a que se propôs. Qualquer

progresso, ainda que parcial, determina o sentimento;

ele será tanto mais intenso quando maior for a

evolução, quanto mais conduzir o indivíduo para as suas

metas finais, tanto em termos de pretensões subjetivas

como materiais. A sensação é máxima nos estados

amorosos de intensidade maior, o que vem a ser o

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encontro de pessoas afins (vide "Falando de Amor" e "0

Instinto do Amor").

É a prática que, mais uma vez, nos mostra um fato

surpreendente e indiscutível: o atingimento do estado

de felicidade determina em todos os seres humanos o

surgimento de uma sensação desagradável de medo. A

sensação é difusa na maioria das vezes; o indivíduo

feliz se sente imediatamente ameaçado, não sabendo nem

explicar esta sensação e nem qual é a ameaça efetiva.

Tenderá a localizar o medo em alguma coisa, conforme as

circunstâncias de sua vida: se perceberá ameaçado de

perder posição profissional, de perder a saúde, de

perder algum ente amado por morte, de perder o afeto do

cônjuge, etc. Na verdade creio que as pessoas preferem

concentrar o medo em algo aparentemente mais concreto

do que experimentá-lo como sensação difusa e

inexplicável.

É este temor que surge nas pessoas — e insisto no

fato de que isto é universal — quando se sentem felizes

que explica expressões como: "a situação está boa de-

mais"; "estou morrendo de felicidade", etc. Também se

explicam em função da existência do medo associado à

felicidade os rituais de proteção, de natureza

supersticiosa, próprios para a finalidade de afastar a

possibilidade —

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118

ao que parece sentida como muito maior — de coisas

ruins virem a acontecer. A idéia que governa a todos

nós é de que a felicidade atrai a desgraça, de que não

é possível que ela dure longo tempo. É como se

existisse claramente presente a idéia de que deverá

existir um certo equilíbrio entre eventos alegres e

tristes; se existe uma momentânea sobrecarga de coisas

positivas, será inevitável que as desgraças venham em

quantidade proporcional, com a finalidade de equilibrar

a balança. Desta maneira, as coisas favoráveis são

recebidas com alegria e também com temor, pois elas

seriam sempre o prenúncio de tragédias; e isto dentro

do princípio de que a felicidade do homem na terra é

impossível, conforme os pensamentos religiosos de maior

influência sobre nós.

Se é verdadeira a tese que venho defendendo neste

livro, de que Deus não se revelou aos homens e que es-

tes é que o pressentiram e trataram de imaginar Suas

propriedades e Sua vontade, não é impossível que a

idéia de transferir a felicidade para depois da morte

tenha sido criada em decorrência da percepção dos

homens mais inteligentes de que existe um freio humano

— o medo — que surge quando alguém se aproxima deste

estado. É como se tivessem constatado a existência de

um limite superior para o ser humano, cuja aproximação

gera uma sensação de pânico intransponível; e tal

percepção justificaria a idéia de que a vida terrena

seria para ser vivida dentro de um equilíbrio de

alegrias e tristezas, sendo impossível ao homem

experimentar a felicidade sem um medo insuportável; e

tal constatação passaria a ser mais um dos desígnios de

Deus em relação ao homem, que teria que se contentar

com uma vida limitada.

Por vontade de Deus ou por qualquer outra razão, o

fato é que existe no homem um brutal medo da feli-

cidade, imediatamente associada a alguma tragédia, mais

concretamente à morte. E a associação de felicidade com

morte é o tema fundamental do romance de amor, emoção

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119

que — conforme já afirmei — é capaz de conduzir o homem

à sensação máxima de felicidade. O medo do amor,

presente em quase todas as pessoas, não é mais do que

um caso particular do medo da felicidade (vide "O

Instinto do Amor").

Não é difícil perceber que o medo da felicidade —

um elemento universal — determina inevitavelmente a

vida das pessoas no sentido de afastá-las deste estado.

A ameaça aumentada de eventos trágicos é sempre perce-

bida como exterior: ou será a inveja das pessoas o

ingrediente capaz de perturbar a alegria conquistada, e

este é o aspecto valorizado por certas religiões de

grande influência no Brasil, ou será algum processo

mágico ligado a uma lei da vida ou de Deus o

determinante da interrupção do estado atingido. As

pessoas não percebem claramente a possibilidade de que

elas próprias, em função de temores de desgraças

maiores, sejam capazes de criar as condições para uma

atenuação da felicidade e, por conseqüência, do medo da

felicidade. É bastante fácil perceber que as pessoas,

quando estão bem, superdimensionam qualquer evento

negativo que surja, de modo a usarem isto como fator

capaz de equilibrá-las num estado de menor felicidade,

porém, sem tanto medo. Também é comum que as pessoas

fabriquem pequenos problemas, na maioria das vezes de

modo desproporcional às suas inteligências, com a

finalidade de compor sua cota de tristeza capaz de

equilibrar a felicidade sentida como ameaçadora.

Como regra geral, pode-se afirmar que o atingimen-

to do estado de felicidade determina uma sensação sub-

jetiva de medo e uma tendência — nascida dentro do pró-

prio indivíduo — para a criação de sensações ou situa-

ções destruidoras do estado conquistado. Assim se ex-

plicam, a meu ver, as chamadas tendências auto-destru-

tivas do homem, e que na realidade são apenas fórmulas

— rituais — de proteção contra a desgraça maior li-

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120gada à felicidade, que seria a morte. A pessoa feliz

pode desenvolver um estadohipocondríaco, o que será

suficiente para determinar a perda de todaa

serenidade e

alegria de viver; poderá se tornar implicante com peque-

nas coisas do cotidiano e viver eternamente amargurado;

poderá criar atritos com as pessoas que mais ama e se

sentir frustrado quanto a esta emoção; e assim por dian

te.

Também acredito ser possível fazer a generalização

seguinte: o tipo humano adulto egoísta — narcisista — se

apavora com a felicidade mais rapidamente do que o

generoso. E isto por razões várias, sendo que a mais ob-

servável é o fato do generoso experimentar nas renúncias

sucessivas uma sensação de engrandecimento pessoal e

também um sofrimento que lhe autoriza uma certa cota de

alegrias. O egoísta, já privilegiado em decorrência de

sua atitude, vive continuamente a sensação de estar para

além de sua cota de alegrias e desenvolverá mais preco-

cemente as tendências auto-destrutivas próprias do medo

da felicidade. Desta forma, o egoísta teria um limite

mais baixo para o seu desenvolvimento pessoal também por

esta razão; abandona projetos de todos os tipos —

ligados ao aprimoramento pessoal, profissional,

material, etc. — tanto por temor do fracasso como do

sucesso.

De uma maneira simplista, pode-se pensar que não é

tão difícil e nem tão complexo o atingimento do estado

de felicidade. Uma pessoa que tenha saúde física, que

não tenha dificuldades materiais básicas, que se ligue

afetivamente a outra pessoa semelhante em temperamento e

anseios e que tenha prazer nas atividades intelectuais

ligadas ao trabalho e em outras escolhidas livremente

para as horas de lazer estaria muito próxima da

felicidade. E nenhum destes ingredientes é tão difícil

de se obter, bem como não é difícil a existência de

todos eles, ao menos para os 10% de pessoas que não

tenham grandes problemas ligados à sobrevivência

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121

material; mas a prática nos mostra que as pessoas em

geral não são felizes.

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122 A maior parte daqueles que resolvem o problema da

sobrevivência material se perdem na questão sentimental,

estabelecendo vínculos por diferença de temperamentos e

anseios, o que obviamente tenderá a determinar atritos e

frustrações recíprocas. E a própria cultura sugere que

este é o tipo de ligação amorosa ideal, o que vale dizer

que os homens são induzidos a caminhos definitivamente

ilógicos, com a finalidade de se afastarem da

felicidade. A própria supervalorização das riquezas

materiais é outra indução na direção oposta da felicida-

de, posto que o dinheiro, para além de um certo limite

determina mais preocupações e limitações do que bene-

fícios para a pessoa. O desenvolvimento do modo de vida

contemporâneo tem se dado de uma forma insalubre,

criando hábitos sedentários, dietas inconvenientes,

etc., de modo a afastar o homem do bem estar físico.

Estes exemplos são suficientes para mostrar que os

homens — e suas sociedades — tendem a caminhar numa

direção oposta àquela que os conduziria à felicidade. É

evidente que este desvio de rota não é percebido e que

as pessoas acreditam estar indo na direção certa; porém,

muitos são aqueles que percebem, no meio de suas vidas,

os equívocos. Quantos não foram iludidos pela idéia de

que a fortuna lhes traria a felicidade sonhada?

Estamos diante do impasse fundamental: felicidade

versus medo da felicidade. Diante disto, todo o resto é

detalhe, é caso particular. Na medida em que se constata

que o homem não suporta a felicidade, pois isto lhe

determina o surgimento do medo da morte, não se pode

supor que nenhuma fórmula seja capaz de viabilizar, na

prática, condições sociais mais justas e gratificantes.

Não se pode cogitar da criação de condições psicológicas

para a existência do homem livre, contente consigo mesmo

e justo para com os outros. Nada dará certo enquanto não

se resolver o impasse primeiro; toda a criação positiva

do homem trará consigo obrigatoriamente o elemento auto-

destrutivo, neutralizador — ao menos em parte — do

benefício conseguido. E isto será verdadeiro para cada

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123

um de nós e também para as sociedades que criamos. Todo

"bem" trará consigo o "mal"; todo o progresso técnico

terá uma contrapartida destrutiva; toda sociedade mais

justa terá uma população mais deprimida e altos índices

de alcoolismo e outras toxicomanias. Todo o progresso

humano trará consigo o germe de sua própria destruição.

Não deixa de ser surpreendente e absolutamente

perturbador quando nos apercebemos da existência de um

limite superior para o ser humano. Não é difícil

compreender, em função disto, o pessimismo da maioria

dos pensadores acerca das possibilidades dos homens na

terra e a transferência para depois da morte da questão

da felicidade. O homem terá que se reconhecer filho de

um Mistério e, mais ainda, impedido de ser feliz. Se

Deus é o criador, tal impedimento será Sua vondade. Se

a origem da vida é um Mistério estamos autorizados a

pesquisar mais, no sentido de aclararmos eventuais

razões psicológicas capazes de justificar esta

associação absoluta de felicidade com morte presente em

todos nós. O encontro de explicações convincentes não

implica em solução do impasse, ao menos imediatamente;

porém, abre uma perspectiva otimista, há muito perdida,

para a vida terrena, ainda que não se deva subestimar

as dificuldades a serem, lentamente, vencidas.

Não creio que exista nenhum problema psicológico

mais fundamental do que este, da mesma forma que não

acredito que se possam resolver as questões sociais

enquanto não se conseguir avanços neste campo. Não vejo

este impasse como definitivo, do mesmo modo como não

vejo como definitiva nenhuma questão humana, pois o

filho do Mistério não tem elementos para ver nada desta

maneira. As observações que farei em seguida são o

pecialmente para aqueles capazes de acreditar nisto e

que, segundo creio, seriam os que estão internamente

mais predispostos a abrir mão do estado de bem-estar

alcançado porque estão muito assustados. Da mesma for-

ma, não é possível saber se existe um malefício vindo

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128

de fora ou se a própria pessoa age destrutivamente

contra si mesma com a finalidade de atenuar o medo da

inveja, que é o mesmo medo da felicidade. Parece-me

impossível responder, por hora, a todas estas questões

com certeza, mas sou tentado a acreditar que toda a

ação destrutiva é gerada dentro da própria pessoa,

sendo o temor da inveja apenas um componente mais

observável da ameaça que paira para os que estão

felizes. O quanto mecanismos deste tipo podem estar em

correlação com o surgimento de doenças na própria

pessoa é assunto que creio valer a pena ser melhor

estudado.

O que de essencial está por trás do medo da inveja

é que forças externas poderiam impulsionar o invejado

na direção da morte. E é este o grande medo do homem

feliz; a sensação da iminência de sua morte ou a de al-

guém que lhe seja muito especial. Para podermos con-

tinuar buscando as origens do medo da felicidade, tere-

mos obrigatoriamente que tentar entender um pouco mais

da questão da morte, e principalmente do medo da morte.

Já disse que o homem compõe uma vida prática a mais

conturbada possível com a finalidade de se distrair das

questões metafísicas, capazes de provocar grande

sofrimento. E isto é tanto mais verdadeiro quanto mais

inteligente for o indivíduo, mais capaz de fazer per-

guntas perturbadoras. O único evento da vida adulta que

expõe o indivíduo, devidamente distraído pela prática,

às questões das quais ele foge é a morte de alguém ou o

temor de sua própria morte; e é comum que o indivíduo

se reconheça mortal apenas quando chega a sentir algum

mal-estar físico mais significativo, orgânico ou de

natureza psicológica.

As pessoas evitam pensar na questão da morte, do

mesmo modo que evitam as dúvidas acerca da origem da

vida, posto que se trata do mesmo problema, apenas

visto do ângulo de "para onde vamos?" ao invés de "de

onde viemos?". Apesar de se saberem mortais, tratam de

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125

viver de modo a não cogitarem deste fato, o que terá

que conduzir a óbvios equívocos, pois se está fugindo

da verdade. O pensar sobre a própria morte provoca ime-

diata sensação de pânico, de modo que é automático o

desvio da atenção para outro assunto.

Parece-me bastante claro que são dois os problemas:

o medo da morte e a morte propriamente dita. Isto por-

que a morte é um acontecimento que não deveria provocar

medo. Se se considera mais provável a hipótese ma-

terialista de que a morte é o fim, não há razão para

temê- -la pois ela implica na parada do processo de

pensar e, portanto, na possibilidade de haver qualquer

tipo de sofrimento e consciência. A própria condição de

iminência de morte não deve ser dolorosa, pois o

psiquismo é portador de mecanismos adaptativos — de

defesa — capazes de atenuar todos os grandes golpes.

Se considerarmos como mais provável a hipótese de

que existe um Criador, a vida não se extingue com a

morte; esta seria apenas uma passagem para um outro

estágio, uma outra forma de existência. Seria difícil

supor, ao menos para a maioria das pessoas, que esta

transição fosse para pior, de modo que outra vez não

faz muito sentido o pavor da morte, especialmente para

aqueles que levam uma vida infeliz.

A experiência nos mostra que o medo da morte exis

te tanto nas pessoas de convicção religiosa como nas

materialistas. Não creio que essa sensação tenha

relação com o desconhecido, pois não acredito que as

pessoas todas se vejam intimidadas pelas coisas que não

conhecem. A morte por sí, não deveria provocar pânico,

a não ser que esta idéia esteja associada a algum outro

evento ou ex-

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126

fruto de reflexões recentes, associados à vivência

codi- diana com os meus pacientes e comigo mesmo.

I I

A primeira série de pensamentos que tomam corpo

nas pessoas que estão momentaneamente — ou mais

solidamente — felizes é relacionada com sentimentos de

culpa e temor da inveja dos outros, o que seria uma

forma de represália. Estes pensamentos refletem de modo

claro o surgimento do medo associado à sensação de fe-

licidade; a ameaça difusa assume alguma coerência ló-

gica através deste tipo de formulação. O sentimento de

culpa é próprio das pessoas mais maduras e fácil de ser

entendido: o homem feliz se coloca no lugar dos mais

desgraçados e imagina a tristeza que eles estejam

sentin-- do em virtude de sua condição. Só este processo

já é capaz de subtrair uma boa parte de sua alegria e

não é impossível que esteja a serviço disto. Surge a

intenção de ajudar os menos favorecidos, o que poderá

vir a reforçar tendências heróicas derivadas do anseio

de dar sentido à sua vida, e cujo tema já expus

anteriormente. Além do mais, o privilégio aparece como

fútil e empobrecedor, de modo a reforçar a tendência

acima. Os sentimentos de culpa são mais intensos quando

se voltam para pessoas mais ligadas ao que está feliz,

como seria o caso, por exemplo, do sucesso material

maior obtido por um membro de uma família pobre.

É desnecessário demonstrar que o sentimento de

culpa é, como regra, injustificado, pois o sucesso das

pessoas não se faz obrigatoriamente em função de se

estar impondo prejuízos àqueles nos quais o sentimento

surge com maior intensidade; se este fosse o caso, o

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127

sentimento seria justificado; mas são as pessoas

capazes de tais atitudes aquelas que não possuem

sentimentos de culpa, cuja existência impediria a

consecução dos seus propósitos. A sensação é difusa e

apenas existe com a finalidade de empobrecer a alegria

da felicidade e tirar dela validade moral.

Associado a ele, ou existindo isoladamente, toma

corpo obrigatoriamente o temor da inveja das outras

pessoas. Se o sentimento de culpa é próprio das pessoas

mais generosas, o medo da destrutividade da inveja é

universal. A inveja corresponde, de fato, ao surgimento

de um ódio gratuito; ou seja, um desejo agressivo em

relação a pessoas contra as quais objetivamente não se

tem nenhuma queixa. É o sentimento que os menos

favorecidos pela vida sentem pelos privilegiados em

geral, e em particular por aqueles sucedidos nas áreas

mais valorizadas pelo que sente a inveja.

0 invejoso deseja, de fato, que tudo de negativo

ocorra para o invejado. Este, por sua vez, ao tomar

consciência da existência deste sentimento, entra em

pânico, pois isto encontra eco subjetivo no pavor que

ele próprio já estava sentindo. Aparece então a

correlação fácil: a ameaça ao estado agradável atingido

vem de fora, vem daqueles que, com inveja, sonham com a

sua ruína. E mesmo pessoas pouco familiarizadas com o

pensamento mágico são capazes de supor que tal desejo

destrutivo tenha o poder de determinar estragos. Surgem

imediatamente os rituais de proteção contra a inveja.

A experiência de vida mostra a todos nós, exemplos

de pessoas que, estando muito felizes, logo a seguir

foram acometidas de graves tragédias, quais sejam a

morte de um filho, uma doença incurável, etc. Não é

possível saber se se trata apenas de coincidência — uma

vez que as tragédias existem também para as pessoas

infelizes — ou se, de fato, a inveja tem poderes

nocivos, es- periência vital. Conforme acredito, a

morte é capaz de provocar sensação profunda de

tristeza, tanto para o que se percebe partindo como

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128para os que aqui ficam. Mas tristeza e medo são emoções

bastante diferentes e a maioria das pessoas pensa na

morte com tamanho pavor que talvez nem cheguem a

perceber a emoção verdadeira, que é a de tristeza;

talvez só percebam a tristeza quando são obrigados a se

expor ao acontecimento, situação em que o medo tende a

se desfazer.

Para aqueles que estão mais felizes é evidente que

a idéia da morte é percebida como muito triste, pois im-

plicaria na renúncia da situação agradável, do usufruto

dos prazeres do corpo. Para aqueles que estão mais infe-

lizes a ideía da morte aparece como menos triste, ao me-

nos com relação a este aspecto.

Talvez o aspecto mais dramático e doloroso asso-

ciado à idéia da morte seja relacionado com a ruptura de

vínculos afetivos. A morte afasta, ao menos do ponto de

vista dos vivos, os pais dos seus filhos, os homens de

suas mulheres. Morrer significa se separar daqueles a

quem se ama, o que é vivência profundamente triste. Ver

morrer alguém a quem se ama é a mesma experiência

dolorosa que existe ao se imaginar a própria morte. É a

separação, a ruptura de vínculos que dão sentido à

existência de uma forma que nada mais é capaz de dar. É minha convicção que a questão da morte, do ponto de

vista psicológico, não se distingue da persistente

temática humana ligada ao desamparo de se sentir só e

aos esforços instintivos para recuperar ligações sólidas

com outros seres humanos. As perdas amorosas entre

adultos — não determinados pela morte — representam um

tipo de sofrimento similar ao experimentado quando se

perde o convívio com uma pessoa querida em virtude de

sua morte. E não é impossível que a morte nos pareça —

aos que ficamos vivos — como um estado extremamente

solitário, desamparado e triste. O indivíduo morre e é

enterrado só, abandonado; apenas as crianças costumam

verbalizar a condição de morte desta forma, pois não

possuem o aglomerado de racionalizações e sofisticações

que nós dispomos, com a finalidade de nos enganarmos e,

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129

eventualmente, nos afastarmos dos problemas básicos.

Insisto no fato de que a morte é evento triste, mas

não capaz de provocar medo. É triste pela perda da con-

dição conhecida de vida terrena quando esta é

agradável, de modo que é lógico supor que as pessoas

mais felizes imaginem suas mortes como coisa mais

dolorosa. Porém a idéia de que a felicidade traz

maiores probabilidades — senão certeza — de que

aconteçam desgraças não tem fundamento na realidade

objetiva. Também não fica explicado o medo da morte nas

pessoas em geral e o aumento da intensidade desta

sensação nas pessoas mais felizes. É bem provável que

exista uma tendência em todos nós de associarmos a

morte a alguma outra experiência vital; e isto me

parece tanto mais provável quanto mais se entender a

dor da morte como relacionada com as rupturas de

ligações afetivas e afastamento de pessoas que se amam,

o que provoca tristeza e a sensação dolorosa de desam-

paro da qual a maioria das pessoas tratam de fugir con-

tinuamente.

I I I

É minha convicção de que a idéia da morte durante a

vida adulta está francamente comprometida com a forma

confusa e insuficiente pela qual o cérebro humano

registrou o nascimento de cada um de nós. A vida é o

intervalo entre estes dois eventos críticos, ambos

cercados de mistério e incompreensão; o nascimento e a

morte são duas passagens, duas mudanças, e não é

difícil supor que sensações ligadas à primeira sejam

supostas como próprias da segunda. Não temos elementos

concretos para fazer afirmações sobre o assunto, pois

não existem nos adultos reminiscências ligadas ao

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130nascimento; porém existem alguns sonhos, presentes

desde os 4 anos de idade, sugestivos de que o cérebro

humano registra, de forma não verbal e sem clareza, os

últimos tempos da vida uterina e a violência do nascer.

Um dos sonhos característicos é ligado ao desejo —

ou medo — da criança de ser engolida por outra pessoa

ou animal. Outras vezes uma pessoa sonha estar em um

ambiente familiar e agradável — sua casa, por exemplo —

e se vê empurrada para fora por uma força estranha. O

elemento mais sugestivo de reminiscências ligadas à

situação uterina é o desejo intenso das pessoas que se

amam de engolir uma à outra, desejo este claramente

consciente e relacionado com a angústia de ver fora de

si uma criatura tão vital, como é percebido o amado.

Também curioso é o fato de que as pessoas que se amam

se tratem como se fossem dois bebês, usando todas as

palavras no diminutivo e fazendo carinhos próprios

daqueles que se fazem aos récem-nascidos.

As evidências são indiretas e insuficientes do

ponto de vista mais científico e rigosoro. Porém, cada

vez mais tenho a impressão de que o nascer é o evento

mais crítico da história do homem. Apesar da alegria

dos adultos envolvidos — inversamente do que ocorre

quando alguém morre — acredito que a criança

experimenta esta passagem como extremamente dolorosa e

desagradável. É a circunstância em que ela fica exposta

a desequilíbrios homeostáticos extremamente mais

dramáticos do que aqueles que eventualmente

experimentou enquanto feto. Comparado com o ato mesmo

de nascer, e também com a vida como se segue, creio que

a condição uterina é percebida como paradisíaca, como

ótima.

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131

Assim, acredito que a criança registra sua condição

uterina de razoável homeostase como primeira sensação.

E a segunda, em correlação imediata com esta, é a ter-

rível experiência de nascer. Ou seja, se compõe uma es-

pécie de vivência que conecta intimamente estas duas

sensações: homeostase seguida de ruptura brusca e dolo-

rosa. E é possível que esta seja a experiência primeira

de todos nós, da qual jamais nos livramos

completamente. Cada vez que nos aproximamos da sensação

de felicidade em fases posteriores da vida — o que

eqüivale à homeostase para o feto — imediatamente temos

a impressão de que estamos em ameaça, pois homeostase

está associada à idéia de que ela será rompida e de

modo dramático.

É possível que a criança experimente forte sensação

de medo diante do fenômeno do nascimento. E este medo

surge nos adultos sempre que ele se aproxima da

sensação de felicidade. E o temor, difuso e inexpli-

cado, é entendido como prenúncio de perda deste estado,

o que agora terá que ser associado à idéia de morte. Ou

seja, fica transferida para a morte — outra passagem -

o pânico experimentado pela criança ao nascer. Como já

disse, não me parece razoável o medo da morte, pois só

posso relacionar este evento com tristeza; ele é uma

projeção para esta passagem do medo experimentado

durante o evento do nascimento.

Não é impossível que tudo aquilo que imaginemos

relacionado com a situação de morte tenha a ver com

reminiscências difusas do nascimento. Talvez a morte

seja uma passagem bastante mais doce e mais fácil do

que tendemos a supor, posto que nossa razão pode estar

colocando nela propriedades experimentadas na condição

dolorosa do nascer. A própria forma como imaginamos

ser, do ponto de vista religioso, a passagem desta vida

para outra pode estar em relação com o fenômeno do nas-

cimento. Sempre vale insistir que isto não significa

afirmar a inexistência de vida após a morte, mas sim

Page 132: untitled.docx

132que a supomos conforme nossas vivências anteriores.

Em síntese: a vivência primeira do homem é do tipo

harmônico — ou quase — ligada à situação uterina; a esta

se associa a noção de ruptura dramática e cheia de medo,

que é o nascimento. Tal associação persiste durante a

vida adulta, sem que haja consciência de sua origem; em

vista disto, sempre que o homem experimente um estado de

felicidade vê crescer nele um desconforto difuso, ao

qual ele atribui a significação de ser prenúncio de

alguma desgraça, algo que venha destruir a alegria con-

quistada. O evento desastroso e capaz de interromper o

estado de felicidade é entendido como sendo a morte, que

passa a determinar no homem um medo, por sí, in-

justificado.

O adulto teme sua morte ou a dos que lhe são caros

e se sente tanto mais ameaçado por ela quanto mais feliz

estiver se sentindo. Este fenômeno é geral, só se tor-

nando mais evidente ou mais próximo para os que estão

bem. O pavor ligado ao evento do nascimento, corresponde

ao medo da felicidade, fenômeno universal por estar em

estreita ligação com uma experiência própria de todos

nós. O clareamento desta correlação — e sua ul- terior

confirmação através de dados mais concludentes — poderá

lançar grande luz no impasse humano fundamental, de

sorte a podermos supor que os homens sejam capazes de

dar mais um passo adiante no sentido de encontrar mais

harmonia na vida terrena.

Outro fenômeno da psicologia humana descrito como

universal é o sentimento de inferioridade. E não é

impossível que ele também esteja em correlação com o

nascer. Não é difícil supor que o nascimento seja vi-

venciado como situação de medo, mas também como profunda

rejeição. A criança é expulsa do útero, colocada fora em

situação bastante mais complexa e pior. Experimenta a

sensação de insegurança, própria do que tenho chamado de

desamparo, pela primeira vez, ainda que sem nenhum tipo

de consciência clara, como pode ocorrer aos 8-9 anos de

idade. Só encontra alívio para esta sensação quando está

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133

se sentindo bem e, principalmente, quando se aproxima

fisicamente da mãe, situação a mais próxima possível

daquela que foi perdida com o nascimento.

Há evidências de que a criança, durante os primei-

ros anos de vida, correlaciona o ter nascido com alguma

característica negativa que possua; é como se tivesse

sido expulsa do útero por não possuir todas as

qualidades desejadas pela mãe. E isto é tanto mais

verdadeiro quanto mais inteligentes sejam as crianças,

situação na qual têm mais habilidade para correlacionar

eventos, ainda que de uma maneira falsa. Assim, um

menino pode concluir que foi rejeitado pela mãe em

virtude de ser muito pequeno, ter nariz grande, etc., de

modo a compor um sentimento claro de inferioridade desde

muito cedo; na realidade estes exemplos sugerem algum

tipo de consciência deles de que o nascimento foi vivido

como rejeição; e creio que esta é a vivência de todos,

só mais evidente nos mais inteligentes por causa do tipo

de correlação que fazem e em idade muito precoce.

Se o nascer é vivido como rejeição e em correlação

com o se sentir pouco digno de permanecer na simbiose

uterina, fica evidente a constituição de um sentimento

de inferioridade em todos nós; tal sensação poderá ser

agravada ou atenuada em função dos eventos posteriores

da vida, do tipo de vivência familiar e social que

experimentarmos. Porém, em algum grau estará presente em

cada um de nós, expulsos do paraiso por contermos alguma

característica negativa.

A atitude da criança é, até certo ponto, uma briga

contra o fato de ter nascido. Ela precisa ser fortemente

estimulada para todas as atividades pessoais, só encon-

trando prazer espontâneo no convívio com a mãe — além do

prazer auto-erótico de natureza sexual derivado da

estimulação das zonas erógenas. Com o desenvolvimento da

razão ela passa a se interessa pelos fenômenos da vida,

sem contudo perder o desejo de se sentir em paz através

do aconchego físico • com a mãe.

Pode-se dizer que o amor, como instinto, corres-

Page 134: untitled.docx

134ponde à manifestação de inconformismo do ser humano

contra o fato de ter nascido, de ter sido obrigado a

romper a relação dual original. É o desejo persistente

de refazer a sensação própria da simbiose uterina,

sensação de paz e harmonia; é o desejo de negar o fato

de ter nascido e talvez, em virtude do que disse antes,

porisso tenha sido tão claramente relacionado com a

morte. Em outras palavras, não creio que o homem busque

a morte, conforme supunha Freud; acho que o homem não

se conforma de ter nascido e o desejo de recuperar uma

relação a dois — o amor — é a manifestação disto. Aqui

outra vez existe confusão acerca das duas passagens

fundamentais, de modo a se colocar na morte

características próprias do nascimento; talvez isto

ajude a compreender a razão pela qual prefiro entender

a busca de harmonia no ser humano como instinto do

amor, em substituição à idéia de Freud de instinto de

morte. Além disso, tal modificação de conceitos é

fundamental e básica, pois implica na alteração de

todas as perspectivas para o homem; implica na passagem

de uma atitude pessimista e sem esperanças para uma

proposição em que se pode imaginar soluções mais

positivas e capazes de aproximar o homem da felicidade

em vida.

Na medida em que a criança cresce e se reconhece

só, experimenta a sensação de desamparo; não suportando

esta vivência dolorosa se afasta do caminho da liber-

dade e trata de agir de modo a permanecer vinculada às

figuras familiares e depois conforme as regras do meio

social. E isto significa que, por não suportarmos o

desamparo, não conseguimos nos colocar como criaturas

inteiras e livres.

Page 135: untitled.docx

135

A contrapartida adulta da solidão seria o encontro

amoroso. Porém, quando este é bem sucedido, corresponde

à aproximação máxima do paraiso perdido com o

nascimento. Não é por acaso, portanto, que o medo da

morte associado ao amor seja também máximo, de tal forma

que as pessoas são obrigadas a renunciar a esta sensação

tão ansiada. Tem restado ao homem apenas a possibilidade

de sonhar com o amor, sendo sua vivência proibida pela

idéia de morte que se associa imediatamente à felicidade

assim atingida.

Desta forma as pessoas se vêem limitadas nas duas

perspectivas básicas, que são o desejo da liberdade —

felicidade individual — e o de recuperar a plenitude

perdida com o nascimento através de ligações amorosas

intensas. A liberdade é limitada pelo medo do desamparo

e também pelo medo da felicidade, ao passo que o encon-

tro amoroso determina a máxima intensidade deste último.

E, de certa forma, todos nós temos chegado até a este

ponto, que se resolve de uma maneira curiosa através de

ligações afetivas precárias. Estas atenuam a dor do

desamparo, e também servem como vínculos amorosos

medíocres e frustradores de modo que não determinam o

bem estar próprio desta emoção, o que significa que não

fazem surgir o medo da felicidade e, por conseqüência, o

medo da morte. Ligações afetivas deste tipo correspondem

a uma espécie de saída de compromisso, na qual o ser

humano se vê minimamente gratificado em seus anseios e

não se vê ameaçado pela felicidade. Não é preciso muito

esforço para se perceber também que as ligações desta

natureza determinam uma importante limitação à liberdade

humana, pois o usual é que as pessoas envolvidas gastem

grande parte de sua energia a criticar e restringir o

desenvolvimento do outro. E, na medida em que isto é

aceito, fica claro que é o que os indivíduos desejam, em

virtude de não suportarem os temores ligados a situações

melhores.

0 medo da liberdade e o medo da felicidade têm sido

Page 136: untitled.docx

136os claros limitadores da evolução do homem e de suas

sociedades. O entendimento de suas características abre

importantes perspectivas novas, desde que se esteja com

coragem para enfrentar e tentar superar estes limites.

As observações que fiz neste trabalho me levam a

tomar o nascimento como a mais dramática variável da

constituição psicológica do ser humano. A dor do parto

tem sido observada apenas do ponto de vista da mulher;

porém, para a criança a condição é, provavelmente, vi-

vida como um estado de pânico, além de envolver dores e

sensações novas absolutamente desagradáveis. Não é

difícil perceber a expressão de terror própria da crian-

ça na hora do seu nascimento. Qualquer que seja o tipo

de desconforto experimentado durante os meses de vida

uterina, esta condição se altera bruscamente para pior a

partir da ruptura da bolsa e início do trabalho de

parto. Não há como provar se existe registro e memória

destes eventos, a não ser através de evidências disto

nos processos psíquicos da vida adulta.

As características do homem que mais sugerem a

existência de algum tipo de registro dramático deste

acontecimento primeiro são o sentimento de inferioridade

c o medo da felicidade. Estas são propriedades

universais, de modo que não podem estar em correlação

com as circunstâncias da vida infantil e de condições

posteriores

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da vida; se assim .fosse, alguma proporção de

pessoas não deveria possuir tais características; estas

seriam as que foram criadas segundo o modo mais correto

de educação, modo este que não pode ser descrito

justamente porque todas as diferentes condutas

pedagógicas determinam resultados bastante similares,

ao menos quanto a estes aspectos da personalidade.

Características universais devem estar

forçosamente em relação com vivências próprias de todos

os seres humanos. Assim, o nascimento como dolorosa

ruptura do vínculo original é uma hipótese bastante

provável para explicar o sentimento de inferioridade e

o medo da felicidade. Além do mais, tais elementos são

bastante sólidos dentro da constituição psíquica das

pessoas, sendo muito difícil se conseguir progressos em

relação à auto- -avaliação e à capacidade de tirar

prazer da vida mesmo nas pessoas que têm todas as

condições objetivas favoráveis e indicativas de um bom

nível de desenvolvimento emocional, profissional,

social, etc.

Crianças mais inteligentes mostram sinais próprios

do sentimento de inferioridade — se acharem menos dig-

nas de afeto por parte dos adultos e de outras crianças

em virtude de alguma característica física destoante do

usual, como exemplo mais comum — desde os 3-4 anos de

idade. Desde modo, a sensação negativa a respeito de si

mesmo se compõe antes dos difíceis eventos afetivos

próprios do período edipiano, de sorte que não se pode

atribuir a estes a gênese de tais dificuldades. E não

existem condições anteriores capazes de explicar o sen-

timento de inferioridade, bem como os pretextos

justifi- cadores da sensação não são significativos. De

fato, a melhor hipótese que me ocorre é que a criança

vivência — ainda que sem registro sob a forma de

linguagem, e porisso mesmo de uma maneira difusa e

nebulosa — o nascer como rejeição e trata de entender

Page 138: untitled.docx

138que foi rejeitada por não ser digna de permanecer

vinculada à mãe; ain-

da que se trate de uma correlação falsa, e que a

própria criança entenda depois que o nascer era

inevitável, sobra a sensação, que nos acompanha por

toda a vida.

Colocadas as coisas nestes temos, não deixa de ser

surpreendente perceber que o homem nasce já marcado, e

de uma maneira negativa. Não é um livro em branco onde

serão registradas suas experiências e reflexões fu-

turas. O próprio nascimento já corresponde aos primei-

ros e mais profundos registros, que são capazes de fal-

sear e deturpar as vivências que se seguirão. E quanto

mais o homem se mantiver ignorante a respeito destes

aspectos — como o foi até hoje — maior será sua

influência posterior.

O homem nasce através de uma vivência dramática;

experimenta a sensação de existir com independência

como algo que ocorreu contra a sua vontade e cheio de

desconfortos; completamente dependente dos cuidados da

mãe, não pode deixar de se sentir desamparado, des-

protegido. Cresce e se torna cada vez mais consciente

de sua condição através da razão, propriedade

característica da espécie. Capaz de refletir, se vê

perplexo diante do mundo que o cerca. Ao mesmo tempo

que é capaz de compreender melhor as condições

específicas de seu nascimento e a inevitabilidade deste

evento, vai percebendo que não existem respostas claras

para o problema maior que é a existência da vida, da

terra, das estrelas e do universo. O problema do seu

nascimento se torna ínfimo diante desta questão maior.

E se já havia feito progressos no sentido de atenuar a

sensação de desamparo original através do

desenvolvimento pessoal no sentido de se tornar mais

independente e também através do estabelecimento dos

vínculos afetivos, esta toma corpo de novo em função

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139

das dúvidas maiores. E tais dúvidas de natureza

metafísica serão tanto mais dolorosas quanto mais

inteligentes forem as pessoas; elas aparecem desde os

6-7 anos de idade em muitas crianças e são máximas

pelos 13-14 anos de idade, depois do que a vida prática

toma conta da maior parte do tempo e da energia

racional.

O homem — e o seu sentimento de inferioridade —

tem no desamparo a sensação mais dolorosa e sofrida. E

este é ligado tanto a aspectos da vida pessoal como,

através da reflexão, ao problema geral da origem do

mundo e da vida. Aqueles que suportam mal o sofrimento

e as frustrações — e devem existir variações inatas

quanto a esta capacidade de suportar dor — se vêem tão

fracos e ameaçados que têm que dar ênfase absoluta à

au- to-preservação. Isto significa a desistência do

processo imaginativo que surge através de poder se

colocar no lugar do outro e supor quais sejam suas

sensações; tal processo determipa novos sofrimentos e

também conflitos de interesse capazes de determinar

impasses complicados. Persiste assim, na maioria das

pessoas, como processo racional único a atitude

egocêntrica primária, condição que considero o

princípio do narcisismo. Tais criaturas, por não

suportarem o desamparo, tratam de compor vínculos

afetivos múltiplos e mais superficiais, sendo que

dificilmente conseguem atingir um estado mais indepen-

dente ou serem capazes de estabelecer ligações amorosas

mais profundas. Não têm coragem para atitudes próprias

do homem livre, pois são muito necessitados de

aprovação externa, nem para os vínculos amorosos in-

tensos, pois temem rejeição e abandono.

O narcisista terá forçosamente o seu sentimento de

inferioridade perpetuado — senão ampliado — em de-

corrência do modo como se desenvolve sua própria his-

tória. Tratará cada vez mais apenas de disfarçar este

Page 140: untitled.docx

140estado e aparecer socialmente como quem está contente

consigo mesmo e feliz. Além do mais costuma se sentir

brutalmente ameaçado quando, por acaso, se sente efe-

tivamente mais feliz; tal estado se acompanha de uma

sensação de medo e ameaça percebida como insuportável,

de modo que a atitude usual destas pessoas é destruir

as coisas boas que estão determinando a alegria mas tam

bém o medo. Suas perspectivas são sombrias e, desde

logo, se percebem num beco sem saída.

Aqueles que suportam melhor frustrações persis tem

no processo de observar o mundo também tentando se

colocar no papel das outras pessoas, coisa possí vel

através do desenvolvimento da razão conforme ocor re

por volta dos 6-7 anos de idade. Percebem as situações

de modo mais completo e com múltiplas versões; per-

cebem, através da imaginação, mais claramente os mis-

térios da vida e da existência. Nas situações de dilema

sofrem quando são beneficiados, por causa da capacidade

de avaliar a dor do prejudicado, dor esta que, em ge-

ral, é superestimada. Tal sofrimento — o sentimento de

culpa — leva estas pessoas a uma tendência no sentido

da renúncia pessoal em favor de terceiros, o que é

reforçado pelo temor de represálias vindas delas.

0 se sentir capaz de renunciar determina uma sen-

sação íntima de contentamento e superioridade, coisa

extremamente bem-vinda pois atenua o sentimento de

inferioridade sempre presente. O prazer da renúncia

assim composto é reforçado pelo pensamento religioso

mais corrente, que sugere ser este o caminho da

transcendência do homem e sua aproximação com o modo de

ser de Deus. E o desejo de transcendência é outro

indício indicativo da existência do sentimento de

inferioridade e do inconformismo quanto à condição

humana.

O prazer da renúncia assim composto determina

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141

ostabilidade a este tipo de comportamento que aparen-

temente implica em prejuízo pessoal. Este é o

princípio, /i meu ver, da conduta generosa, forma mais

sofisticada «li? atenuação do sentimento de

inferioridade. A sensação dc desamparo se apazigua

através do indivíduo se sentir mais próximo de Deus ou

mais solidário com* os outros sores humanos. Tal

atitude reforça o egoísmo de outras pessoas, que se

aproveitam, em termos práticos, dos ge-

nerosos. Estes dependem também da existência do

tipo

narcisista para exercerem o prazer da renúncia, de modo

a se estabelecer uma inter-dependência curiosa e que

tem sido a forma das pessoas existirem em termos de

vida pessoal e de organização social.

0 generoso tem capacidade de amar, pois é menos

temeroso de rejeições. Mas não suporta ser amado, pois

isto implicaria numa condição em que não poderia exer-

cer o prazer da renúncia e também porque teria que re-

ceber os agrados do que o ama, o que seria o oposto da

renúncia. Assim, o exemplo maior da interdependência

dos dois tipos humanos básicos seria a ligação de amor

por diferença, na qual o generoso ama e não é amado

e o egoísta é amado e não ama.

0 generoso não é um homem livre, pois precisa do

sofrimento para atenuar seu sentimento de inferiorida-

de; precisa, pois, se cercar de criaturas narcisistas,

exigentes e possessivas, pelas quais se deixa

tiranizar. Além disto, quando ligado ao pensamento

religioso, tem que se comportar conforme os preceitos

que se supõe seja a vontade de Deus no sentido de

garantir sua salvação. Quando de convicção

materialista, tende a assumir uma atitude heróica no

sentido de se sentir responsável pelos destinos dos

seus concidadãos e se filiar de modo fanático a

ideologias políticas, o que também restringe a li-

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142

berdade de pensar e de existir.

O homem livre — figura hipotética até o momento —

seria aquele que, tendo aceitado mais docilmente o fato

de ter nascido, se curva diante daquilo que pode ser

encarado como a verdade maior: o homem é filho de um

Mistério. O homem nasce, vive e morre sem saber de onde

veio e para onde vai; e, mais, é consciente disto. É

esta a condição deste animal, condição difícil,

dolorosa e fascinante ao mesmo tempo. Tal atitude cria

um espectro de curiosidades intelectuais e de

interesses

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143

máximo, de modo que se pode afirmar que, sendo a

origem da vida um Mistério, tudo é possível.

O homem livre não teria pretensões de transcendên-

cia, pois não teria nenhum modelo divino a seguir; nada

estaria pré-fixado como sendo o modo de existir típico

do ser humano. Não buscaria o sentido de sua existên-

cia, pois teria aceito com serenidade o fato de ser

filho do Mistério. Nestas condições, saberia que não

teria outro princípio de reflexão senão a sua natureza

humana. Teria como meta o encontro de soluções

harmônicas para as várias componentes de sua estrutura

psíquica; quanto mais próximo estivesse delas, mais se

sentiria feliz. Continuaria curioso, pois esta seria a

atitude inevitável para os espíritos que se percebem

cercados de mistérios. Entenderia seus limites com

tranqüilidade, ao mesmo tempo que sem resignação.

O homem livre não é nem egoísta e nem generoso,

posto que ambos são dependentes. Ele é justo; ou seja,

não é governado nem pelo prazer da renúncia — que é uma

elaboração em cima do sentimento de culpa — e nem pela

intolerância a frustrações. Reconhece direitos iguais

para si e para os outros, de modo a tentar agir de modo

equilibrado. Renuncia em determinadas condições e

defende seus direitos em outras. Não se engrandece às

custas da fraqueza dos outros e nem se atribui direitos

especiais. Não busca a transcendência e nem os privilé-

gios terrenos; busca a felicidade, a alegria de

existir. Tem como único limite o direito das outras

pessoas.

Não é difícil perceber que acredito que é pré-

requisito para a liberdade do homem a superação do

sentimento de inferioridade. Também fica evidente que

está mais próximo disto o tipo generoso, pois é mais

fácil abrir mão do prazer da renúncia — que aí existe

em exagero — do que se tornar mais independente e mais

tolerante ao sofrimento. Na medida em que vinculei o

sentimento de inferioridade à dor do nascimento — sem

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144 dúvida aumentado ou atenuado em função de experiências

posteriores — fica óbvio que sua superação é difícil e

talvez impossível de modo integral, ao menos por hora.

Tais dificuldades e obstáculos não devem ser

entendidos, do meu ponto de vista, com pessimismo. E

nem me vejo impedido de tentar especular, ainda que

através da imaginação, como seriam as soluções do homem

livre. Elas podem parecer utópicas e inatingíveis;

porém, tenho a firme convicção de que aquilo que o

homem consegue imaginar um dia ele conseguirá executar,

ainda que com as limitações próprias da passagem das

idéias para a realidade.

O homem tem na sua razão — e esta é a mais fasci-

nante e misteriosa de suas propriedades — uma entidade

centralizadora. A razão percebe — e, através da lin-

guagem, formaliza — necessidades do corpo, desejos do

corpo, a realidade externa tanto no sentido material

como humano e social. Além disto, a razão tem a capaci-

dade de imaginar, ou seja, ir para além das percepções

internas e externas; assim, o homem tem o poder de in-

ventar coisas que não existem — através da razão

abstrata — além de descobrir as coisas que existem —

através da razão concreta. Certas coisas que são

inventadas eventualmente poderão vir a existir; outras

ficarão apenas como parte do mundo das idéias.

Já disse que a meta do homem livreseria a busca

da felicidadena terra, dentro do princípio moral de que

isto não deve implicar em prejuízo para terceiros, pois

isto estimularia os sentimentos de culpa, agora de modo

justificado. E o surgimento da culpa determinaria uma

limitação definitiva ao atingimento de um estágio máxi-

mo de bem estar e alegria interior. O homem com sen-

timentos de inferioridade atenuados não busca a trans-

cendência e sim a resolução de suas contradições e o

seu equilíbrio.

A razão reconhece como prioridade aresolução das

necessidades do corpo. Destaforma, a primeira condição

Page 145: untitled.docx

145para a felicidade do homem seria o bem estar físico —

saúde — e a inexistência de dificuldades maiores quanto

às questões de sobrevivência. O homem que passa fome,

frio e outras formas de desconforto não poderá se

sentir feliz, ao menos segundo os critérios do homem

livre que venho tentando definir. Aqueles que pretendem

a transcendência através do exercício do prazer da

renúncia poderão sentir alegria própria da sensação de

se perceber superior à sua condição de portador de um

corpo; e podem basear a sua vida nestes tipos de mar-

tírio, mas estarão fugindo à verdade da condição humana

e se comprometendo de modo definitivo com um modo de

pensar que limita as possibilidades do homem.

Inversamente, não acredito que as necessidades do

corpo sejam tão grandes como as que sugerem as socie-

dades contemporâneas, capazes de criar uma infinidade

de produtos novos e atraentes. Os processos que regem a

criação de novidades não estão a serviço de agradar e

beneficiar as pessoas; creio que fazem parte de um

sistema econômico que ganhou vida própria — eventual-

mente em relação com o desejo das pessoas de fugir das

questões fundamentais — e cresce como uma bola de neve,

cada vez mais sem relação com a natureza e as pre-

tensões dos homens. E uma atitude crítica em relação a

isto se impõe, e com urgência, sob pena desta bola de

neve gigantesca vir a destruir toda a humanidade.

O homem livre terá uma atitude própria a respeito

do que sejam suas necessidades materiais. Alguns se

deleitarão muito com aquisições de coisas novas; outros

terão uma atitude mais contemplativa em relação à vida

e serão mais fascinados pelas idéias. Alguns acharão

muita graça em observar o que existe, enquanto que ou-

tros terão preferência pelo mundo da imaginação. Porém,

as necessidades mínimas terão que ser satisfeitas e o

prazer da contemplação não terá relação com a renúncia

aos prazeres do corpo.

Page 146: untitled.docx

146 0 homem livre terá no trabalho a forma de se sen-

tir útil e de exercer o prazer ligado à sua competência

física ou intelectual. É o meio de retribuir ao grupo

social os benefícios que recebe dele em termos de

resolução de suas necessidades físicas. Alguns obterão

do trabalho maior gratificação pessoal e se dedicarão a

ele com afinco. Outros acharão mais graça numa vida

mais pacata e trabalharão menos. Na medida em que o

sentimento de inferioridade se atenua o aspecto

competitivo do homem deverá se atenuar também, de modo

que as pretensões de ser mais capaz que os outros serão

bastante menores para a maioria das pessoas. Também uma

vida em que a sexualidade se exerça de modo mais livre

tenderá para a atenuação das disputas e rivalidades. O

homem perceberá que o seu esforço de ser um vencedor

poderá estar afastando-o da sua meta real, que é ser

feliz.

A razão perceberá também a existência de um per-

sistente anseio do homem de se ligar de modo mais es-

tável a outro ser humano; é o desejo amoroso, ligado à

busca de recuperação da harmonia e bem-estar experi-

mentada na situação dual original. O homem livre deseja

amar e ser amado, situação que efetivamente realiza o

instinto de modo completo e integral. Sendo justo, será

capaz de receber tanto quanto é capaz de dar; sendo

independente, as trocas se darão mais no nível dos

agrados do que de necessidades, é O prazer de agradar e

ser agradado que existe no amor e não a aproximação de

duas pessoas com a finalidade de complementar carências

e resolver incompetências de um através do outro.

A única forma de se chegar à realização amorosa

efetiva é por um critério de escolha que se baseie no

máximo de afinidades, tanto de nível prático como no

plano das idéias. Quanto mais homens e mulheres forem

livres e independentes, maior será a necessidade da

existência de semelhanças entre eles para que o

convívio não se transforme num contínuo processo de

Page 147: untitled.docx

147concessões e restrições à liberdade de cada um. Pessoas

muito parecidas vivem juntas de um modo muito similar

ao que viveriam se estivessem sós.

O homem poderá reconhecer em si o desejo de amar e

ser amado, porém optar por viver certos períodos de sua

vida como criatura independente, solitária. Nestas

condições experimentará o máximo de liberdade indivi-

dual, o que também pode ser sentido como extremamente

gratificante. Do mesmo modo, haverá casais cohabitando

e outros optando por morar cada um em uma casa.

Crianças e adultos reconhecerão o desejo sexual —

a sensação de excitação própria da estimulação das

zonas erógenas e também do se exibir — como agradável,

estimulante e gratificante. Exercerão este prazer sem

culpa e livremente, respeitado o princípio moral básico

dos direitos das outras pessoas. A sociedade criada por

homens livres não se ocupará de estabelecer outros

limites ao livre exercício do prazer sexual. E é

interessante repetir que todos os grupos humanos

conhecidos regulamentaram as práticas sexuais segundo

normas variadas, o que para mim aparece como um dos

pontos mais obscuros acerca deste instinto e da

necessidade de limitá- lo com a finalidade de subtrair

do homem a possibilidade de ser livre e feliz.

Conforme penso (vide "O Instinto Sexual"), o sexo

é fenômeno pessoal, assumindo características inter-

pessoais apenas quando vinculados ao fenômeno amoroso.

É possível que as regras limitadoras do seu livre

exercício tenham sido estabelecidas como decorrência da

não separação do amor e do sexo como eventos autônomos,

de modo que os limites seriam mais compreensíveis em

decorrência da característica possessiva e ciumenta do

amor. A pretexto de elementos próprios do amor se

acabou reprimindo o livre exercício do prazer sexual,

sendo que este instinto ficou cercado de mistérios e

proibições que deram a ele uma importância que talvez

não tenha. A frustração sexual determina uma

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148exacerbação do desejo de destaque social, de modo a

aumentar as rivalidades e competitividades entre os

homens, coisa que certas sociedades valorizaram como

positivo por conduzir as pessoas a uma vida mais

voltada para o trabalho, mais produtiva em termos

materiais. E isto tem sido mais verdadeiro para os

homens, frustrados por não se perceberem desejados

ativamente pelas mulheres e também proibidos de exercer

livremente a extravagância pessoal característica do

prazer de se exibir.

O homem livre é extravagante do ponto de vista

físico e exerce o prazer de se exibir, através de sua

sofisticação posterior que é a vaidade. Isto tanto os

homens como as mulheres. Tal atitude determina uma

diminuição do desejo de obter destaque social através

de atividades competitivas. As práticas sexuais serão

ao gosto das pessoas envolvidas. O modo como será a

vida sexual dos casais que se amam será definida pelas

decisões que fizeram, de comum acordo. Certos casais

entenderão que o sexo e o amor deverão se expressar

sempre em concomitância e outros julgarão mais

apropriada a possibilidade de experiências sexuais para

além dos limites da ligação amorosa.

O homem experimentará ainda os prazeres e des-

confortos próprios da existência da razão. Poderá usu-

fruir do prazer intelectual de entender conceitos

novos, ver obras de arte de todos os tipos; sentirá as

emoções da música e da poesia. Sentirá os desconfortos

próprios das dúvidas, das coisas que ainda não pode

compreender. Terá o desprazer permanente de saber que

sua origem é um Mistério, do mesmo modo que assim é o

seu fim. Na medida que aceita esta verdade dolorosa,

percebe que nela reside também o estímulo à curiosidade

e a justificativa para tentar saber e se interessar por

tudo o que estiver ao seu alcance. O filho do Mistério

não é prepotente; está sempre disposto a rever suas

posições e ouvir outros pontos de vista. Está, pois, em

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149contínua evolução e se sente gratificado com isto.

Finalmente, o homem livre não subestima o fato de

que ele é possuidor de um limite superior, de que a

felicidade é o seu anseio maior mas também o seu maior

temor. Sabe que o atingimento de um estado de harmonia

e bem estar lhe traz uma sensação de medo, como se es-

tivesse para ocorrer a qualquer momento algum tipo de

desgraça ou sofrimento. Talvez este seja o resíduo mais

profundo ligado à situação de paz uterina e à dor do

nascimento associada a ela. Tratará de aceitar esta

limitação, não como obstáculo definitivo, mas com o

respeito que se deve ter pelas coisas que aproximam o

homem dos mistérios maiores e primordiais. Terá coragem

e prudência ao mesmo tempo, sempre extremamente atento

para o surgimento de tendências destrutivas geradas

dentro de si mesmo quando se chega perto do limite da

felicidade.

Ousará, lentamente, colocar cada vez mais distante

este limite, de modo a ir se familiarizando com cada

nova aquisição. Não terá dúvidas quanto ao fato de que

o elemento mais capaz de gerar o estado de felicidade —

e de pavor — é a realização amorosa. Entenderá que terá

que se preparar como criatura para poder suceder nesta

área. Perceberá que sentimentos de culpa ligados a

excessivos privilégios em outras áreas da vida prática

tornam este limite mais baixo e tratará de viver de um

modo equilibrado e justo não com a finalidade de

agradar aos deuses mas sim com o objetivo de atingir

sua própria felicidade.

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Impressão e Acabamento

Gráfica Editora Camargo Soares Ltda.Rua da Independência. 767 •CEP 01524 - Cambuci • São Paulo • SP Tel.: 274-6088

Filmes fornecidos pelo editor

sk

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Também de Flávio Gikovate

Dificuldades do Amor7? edição

Falando de Amor6? ediçào

Sexo e Amor7? ediçào

Você é Feliz?7? ediçào

O Instinto do Amor5? ediçào

O Instinto Sexual3? ediçào

O Homem, a Mulher e o Casamento3! ediçào

Ser Livre8? ediçào

O Amor nos Anos 806? edição

Deixar de Ser Gordo4? ediçào

Vício dos Vícios2? edição

Homem: o Sexo Frágil?6? ediçào

Cigarro: Um Adeus Possível.2? edição

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Em Busca da Felicidade

“Todas as pessoas se tomam como exemplo de perfeição, apesar de falarem de modo diferente.”“O intelectual satisfaz sua vaidade ao exibir seus conhecimentos; o políti co, ao falar de suas obras; o artista plástico, ao mostrar seus quadros; o mú sico, ao se apresentar para grandes platéias, e assim por diante. Do mesmo modo, o missionário e o pregador religioso se envaidecem por se exibirem como criaturas puras e capazes de todo o tipo de renúncia material. O mesmo vale para o monge budista, para os bispos e cardeais. (...) A vaidade — prazer erótico de se exibir — está, pois, presente em todas as atitudes e atividades humanas. A ambição é a força que impulsiona o homem para a realização da vaidade."

“O homem generoso está, pois, buscando gratificação pessoal antes de qualquer coisa, o que pode ser entendido como uma forma mais sofisticada de egoísmo. Se, para satisfazer esse novo prazer egoísta, lhe parecer interessante ajudar a outras pessoas, assim ele procederá. (...)O ajudar, tanto* materialmente como dando conforto emocional, a pessoas que sabemos ser do tipo egoísta, e que nos procuram apenas quando estão em dificuldades, é uma ação efetivamente generosa? (...)Ou estaremos efetivamente exibindo nossa magnanimidade, nos deleitando com nossa su-perioridade e apaziguando nossos sentimentos de culpa?”“A generosidade corresponde à substituição de um tipo de prazer por outro — os do corpo que são substituídos pelos do espírito.’'

“A idéia de liberdade é atraente, mas vivê-la é assustador. (...) O homem foge da liberdade através de uma vida massacrante e também através da ilusão da liberdade, que é o seu devaneio constante; se realizar o devaneio, terá que pensar na sua condiçãoreal e isto é bastante doloroso, sentido como insuportável pela maioria.”

“O atingimento do estado de felicidade determina uma sensação subjetiva de medo e uma tendência — nascida dentro do próprio indivíduo — para a criação de sensações ou situações destruidoras do estado conquistado. (...) Não creio que exista nenhum problema psicológico mais fundamental do que este, da mesma forma que não acredito que se possam resolver as ques tões sociais enquanto não se conseguir avanços neste campo.”

Flav io G ikova t e