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Filipa Alexandra Vilar 24-25 Agosto de 2016 UTMB - TDS "É preciso ter o caos dentro de si para dar luz a uma estrela dançante" Clube Millennium BCP, Página 1 Uma grande parte de vós sabe o quão difícil é ortografar a panóplia de emoções que esta epopeia foi para mim. Não era a mais dura do planeta, a mais duradoura, a mais altimétrica nem a mais técnica. Mas, para mim, era "A" prova. E a maior lição que a vida me podia ter dado. E é com muito orgulho e lágrimas que gravo nestas linhas que sou FINISHER da 7ª edição da TDS com o registo de 26:38:54, 347º lugar da geral, 28º lugar da geral feminina e 12º lugar no escalão.

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Filipa Alexandra Vilar 24-25 Agosto de 2016

UTMB - TDS "É preciso ter o caos dentro de si para dar luz a

uma estrela dançante"

Clube Millennium BCP, Página �1

Uma grande parte de vós sabe o quão difícil é ortografar a panóplia de emoções que esta epopeia foi para mim. Não era a mais dura do planeta, a mais duradoura, a mais

altimétrica nem a mais técnica. Mas, para mim, era "A" prova. E a maior lição que a vida me podia ter dado.

E é com muito orgulho e lágrimas que gravo nestas linhas que sou FINISHER da 7ª edição da TDS com o registo de 26:38:54, 347º lugar

da geral, 28º lugar da geral feminina e 12º lugar no escalão.

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Princípio "O princípio é o fim. Uma página que se vira"

Mundialmente famoso, o Ultra Trail du Mont-Blanc, é o sonho de milhões de atletas! Ano após ano, aguardam ansiosos a abertura das inscrições, declaram as melhores provas do percurso atlético como se de uma carta ao papa se tratasse e entram na roleta russa. Muitos fazem-no sem grande confiança na aceitação. Mas quando os resultados saem...Oh Mon Dieu!! E agora? Entrei mesmo!!

A vida é feita de segundos que nos mudam para sempre. E, aceitar ter sido aceite, é um desses segundos. Tudo muda! Objetivos, foco, treinos, atitudes, experiências, formas de pensar e de agir, formas de planejamento, a vida pessoal, social, económica, física e cultural...

Sumariamente vou enquadrar-vos "no meu sonho".

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No ano de 2015, candidatei-me à TDS, porque se iniciava no meu dia de anos e eu sonhava estar em prova nesse dia. Soube, desde que me candidatei, que o meu destino era passar o dia que completava 30 anos na prova mais técnica do UTMB. Quando fui notificada, inscrevi-me de imediato! Tinha 7 meses até ao grande dia.

Vivia uma fixação com a prova. Muitos não a compreendiam. E eu não compreendia o espanto. Era o tudo ou nada!

Porque é que esta prova era tão importante? O importante desta prova não era a competição em si, mas o desafio individual pelo teste aos limites físicos e pessoais, a entrada triunfal nos 30, a oportunidade de estar próxima do trono celeste e pedir benção para os anos vindouros, "viver" o verdadeiro trail por ser uma prova exigente em termos técnicos e por percorrer zonas mais selvagens dos Alpes e a glorificação de entrar na mágica Chamonix sob o aplauso de centenas de espectadores!

Se era o meu sonho? Claro que sim! Como digo "tudo o que um sonho precisa para ser realizado é alguém acreditar que ele pode ser realizado. Não há impossíveis! Só há momentos em que não esgotamos todas as possibilidades!" E eu esgotei-as!!

Estava na forma ideal da época mas a prestação que ambicionava foi-me vetada pelo próprio corpo. Nos 15 dias anteriores à prova estive gravemente doente. No dia 25 de Agosto de 2015, as análises clínicas realizadas em Chamonix confirmavam o pior. Padecia de uma gigantesca anemia. Jamais conseguiria iniciar quanto mais terminar. Mas eu acreditei! Não havia impossíveis! A minha cabeça dizia "vai que tu consegues".

No dia 26 de Agosto alinhei à partida e contra todas as expectativas médicas, cheguei aos 37K de prova sem ser barrada. Mas tive de tomar a destruidora decisão de desistir. Desejo que nunca ninguém sinta a exterminação de vida que eu senti naquele momento e durante os meses seguintes.

Mas como diz a frase-chave "É preciso ter o caos dentro de si para dar luz a uma estrela dançante". Não vivi o sonho que idealizei mas aprendi uma lição de vida muito importante. Das mais duras desta curta vida.

Prometi regressar. Aguardei um ano. E a Montanha esperou por mim. Assim, este ano, juntas, concluímos "O" sonho.

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Prólogo O Ultra Trail du Mont-Blanc decorreu de 22 a 28 de Agosto de 2016.

Durante 7 dias, 6.584 atletas completaram uma das 5 provas de montanha percorrendo os três países que circundam o maçico do MontBlanc.

As 5 provas são: 1 UTMB (Ultra Trail du MontBlanc com 170 quilómetros e 10.000 metros de desnível acumulado), 2 CCC (Courmayeur-Champex-Chamonix, considerada a "irmã" do UTMB com 100 quilómetros e 6.100 metros de desnível acumulado), 3 PTL ("Petite Trotte à Leon, realizado por equipas de 2 ou 3 elementos com 290 quilómetros e 26.500 metros de desnível acumulado), 4 TDS ("Sur les Traces des Ducs de Savoie" com 120 quilómetros e 7.250 metros de desnível acumulado), 5 OCC (Orsiéres-Champex-Chamonix com 55 quilómetros e 3.500 metros de desnível acumulado)

O meu objetivo era terminar e desfrutar do meu momento de montanha. A grandiosidade estava lá mas não a exteriorizava.

Como objetivo específico defini as 26 horas de prova. E, um pouco mais auspicioso, 24 a 25 horas.

Na realidade, o caminho já estava escrito. Eu só iria percorrê-lo. 

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Ficha Técnica

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24 DE AGOSTO DE 2016 Às 4 horas da manhã acordei, equipei-me, fiz o pequeno-almoço e uma hora depois encontrei-me com o Eduardo e o Neville na entrada do Hotel.

Com os dois sacos (um para a base de vida e o outro para a meta) encaminhamo-n o s p a ra o c e n t ro d e Courmayeur.

Colocámos os sacos nos cestos disponibilizados pela organização e fomos beber um café. No regresso vejo o Miro Cerqueira que nos tira uma foto.

Acho que a minha expressão diz tudo. Não era um reviver mas a oportunidade de escrever uma nova história.

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1º Abastecimento: Courmayeur (1.220 metros) a Col Checrouit (1.956 metros) em 6.5 quilómetros com 801 metros de desnível positivo e 65 metros de desnível negativo

Os dois primeiros quilómetros percorrem a comuna italiana de Courmayeur e encaminham os atletas para a subida a Arête du Mont-Favre. Uma ascensão bastante pacífica num estradão largo e não acidentado. Demoro 1h06 minutos a chegar ao primeiro abastecimento, onde bebo água e introduzo sais na mesma.

Do 4º ao 10ª quilómetro a inclinação acentua com passagem em trilhos estreitos e ligeiramente acidentados. Os atletas seguem "em fila" uma grande parte do tempo. Neste troço completamos 968 metros positivos.

2º Abastecimento: Col Checrouit (1.956 metros) a Lac Combal (1.970 metros) em 9 quilómetros com 528 metros de desnível positivo e 514 metros de desnível negativo

Ao 12º quilómetro atinjo o primeiro pico da prova - Arête du Mont-Favre, com 2 horas de subida. E inicio a descida a Lac Combal. Um descida gulosa e pouco técnica que me permite saltitar e testar a aderência das sapatilhas ao piso.

No final da descida seguem-se dois quilómetros, quase planos, até ao 2º abastecimento. Corro a totalidade do troço numa média confortável. Chego a Lac Combal com 17 quilómetros em 2h30.

Demoro entre 5-8 minutos no abastecimento e continuo. À saída do abastecimento encontro o Miro Cerqueira que me tira umas fotos em acção.

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3º Abastecimento: Lac Combal (1.970 metros) a Col du Petit Saint-Bernard (2.188 metros) em 20 quilómetros com 1.273 metros de desnível positivo e 1.055 metros de desnível negativo

A subida a Col Chavannes é agressiva, não pelo piso mas pela inclinação. Mas a vista vale cada segundo da progressão. Alguns troços são críticos porém a bagagem que trazia da mítica Haute Route (Chamonix a Zermatt) sobrepõem-se.

No ano anterior tinha sofrido imenso nesta subida. A baixa de oxigénio, à medida que subia em altitude, tinha sido mortificante. Este ano não sofri, em nenhum momento da prova, com a altitude.

Com 3h23 minutos estava vencida a segunda subida do dia. Consultei o relógio. Contabilizava vinte e um quilómetros. Ora bem, só faltavam 100!

Na descida de Col Chavannes a Alpetta (817 metros de desnível positivo) rolo sempre a uma média de 6 min/km. E começo a sentir duas bolhas nos pés.  Mau! Bem suspeitei que trazer as palmilhas não seria inteligente em virtude de só ter treinado com elas até aos 20K de distância e sentir sempre sensibilidade naquela zona.

Um pequeno aparte sobre as palmilhas. Foram desenhadas face às minhas necessidades atléticas, biomecânica e anatomia do pé. Na arcada plantar possuem duas almofadas. Justamente onde se desenvolveram as duas amigas que me acompanharam durante mais de 100 quilómetros.

Na descida vou sempre a "segurar os cavalos". Aquele era o ritmo. E não podia puxar mais. Fui ultrapassada por vários atletas mas não me preocupei.

De repente, um atleta brasileiro ao perceber que era portuguesa decide meter conversa comigo. Pretendia saber em que zona residia e onde treinava. Mencionei Lisboa.

Questionou "treinas com a Carla André? com a Sofia Roquete? nas Salamandras?" e eu respondia a tudo não. Derrotado diz "mas és muito forte". Sorri.

Como não desenvolvi o tema, despede-se dizendo "isto é muito mais fácil que o MIUT!". Penso para mim, em breve vais descobrir o diamante em bruto. 

Alpetta é o ponto mais baixo que atingimos. A descida infinita, em estradão, tinha desembocado num trilho hortícola muito bonito e após transpor uma ponte de madeira segue-se a subida a Col du Petit Saint-Bernard com 640 metros de desnível positivo e 238 metros de desnível negativo.

Muitos entusiastas e apoiantes estavam sentados nos campos desta subida. Motivadores, enérgicos, sorridentes e acolhedores! Era impossível não me sentir feliz naquele cenário e agradecida por tanto acolhimento.

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Um sobe e desce num trilho estreito encaminhamo-nos ao longo do Lago de Verney.

Por esta altura, a saltar por cima de uns laguachos de lama e dejetos de vaca coloco mal o pé e parto um bastão (ele já estava debilitado da Haute Route...e naquele momento ficou inoperacional).

Contorno o lago e subo por um trilho densamente arborizado e extremamente inclinado até ao terceiro cume do dia. No topo muitos aplausos, forças e vivas energizam os atletas a correr os metros que separam o ponto mais alto da localização do abastecimento.

Aquela subida era uma velha conhecida. No ano transacto tinha tomado a arrasadora decisão de desistir ali. O meu corpo não aguentava mais. Não tinha oxigénio suficiente para a subir. Ia caindo no meio dos arbustos de tão fraca que estava. Este ano foi tão diferente!

O abastecimento do Col du Petit Saint-Bernard "engana". O perfil altimétrico situa-o ao K34 e quando lá chegamos já contabilizamos 37K nas pernas. Acresce ainda que como está escondido por detrás do cume, fitar o horizonte torna-se desolador. Eu já sabia "o truque" por isso, nunca esmoreci e no topo da subida, deslizei até ao posto de controlo.

O meu relógio marcava 6h04 minutos quando entrei no terceiro abastecimento.

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Um baque no coração congelou-me durante um segundo. Era impossível não sentir nada ali. Estava tudo igual. Parecia que via as mesmas caras. O banco onde me debruçei a chorar estava sem ninguém mas ao lado estavam atletas com olhares mortiços.

Desviei o olhar e dirigi-me ao lixo. Deixei ali o meu bastão. Ironia...karma...destino...por alguma razão ficava ali. Pertencia aos Alpes. Aqueles bastões tinham-me salvo a vida durante a Haute Route. Por isso nutria deferência em levá-los à prova. Teria sido sensato levar uns bastões enfraquecidos?

A lógica diz-me que deveria ter acautelado esta situação mas a afecção falou mais alto. E, no fundo, acreditava que esta ocorrência não era por acaso. Um ano antes tinha ficado eu. Agora ficava o bastão. Exatamente no mesmo local.

Cogitando fui buscar uma sopa e comi ameixas secas. Decidido tirar as palmilhas dos ténis e correr sem elas. Uma nova

experiência, correr sem palmilhas nenhumas. Mas não o fiz dentro do abastecimento. Sai e uns metros à frente parei para as tirar.

4ª Abastecimento: Col du Petit Saint-Bernard (2.188 metros) a Bourg Saint Maurice (816 metros) em 15 quilómetros com 47 metros de desnível positivo e 1.419 metros de desnível negativo

A partir do momento que tirei as palmilhas senti um alívio imenso. E parti a correr, cheia de vitalidade. Não por esta efeméride mas porque, a partir de aquele momento, era um território novo para mim. Já tinha ultrapassado a fronteira. Estava em solo francês. A caminho do meu sonho. Corri sempre. Eram 15 quilómetros de descida com mais de 1.400 negativos, sendo que os últimos três eram quase planos. Contive-me, de novo. Nada de excessos. O meu objetivo era chegar ao K51 fresca e fofa pois sabia que a subida seguinte era a "arruinadora" de sonhos. E cheguei! Corri aos últimos três quilómetros até ao quarto abastecimento a uma média de 6 min/km, sem acusar nenhum desgaste. Desta forma, Bourg Saint Maurice recebeu-me a correr às 14.15, com 52K em 8h15 de prova! Estava a fazer uma média boa para alta montanha e sem "puxar pelos cavalos". Tudo dentro do previsto. Excepto os bastões e as palmilhas! Demorei um pouco neste posto. Não comia nada desde o abastecimento anterior. O calor tinha apertado e só aguentava líquidos. Comi duas sopas, pus sais na água, isotónico nos softflask e comi alguns pedaços de pão branco. Precisava de glicose imediata para a subida

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e de glicose lenta para aguentar até à base de vida (que se situava a dezasseis quilómetros de distância). Atestei mais um softflask que levava exatamente para esta subida e levei-o na mão. O calor já apertava e teria de beber golinhos de água ao longo da subida para não desidratar. Antes de sair fizeram um controle do material obrigatório.

5ª Abastecimento: Bourg Saint Maurice (816 metros) a Fort de la Platte (1.976 metros) em 5 quilómetros com 1.170 metros de desnível positivo e 10 metros de desnível negativo

Atravessei uma das vias principais da comunidade francesa Bourg Saint Maurice a trotar e dirigi-me à "parede de escalada".

Aqui começava a prova! Ao K52. E estes 16K eram apenas a primeira grande dificuldade. Os primeiros dois quilómetros e meio correspondem a um trilho de raízes em ziguezague no interior de um bosque, com algumas sombras. Ao longo da subida vi imensos atletas sentados nas sombras e outros a descer o trilho em direcção ao abastecimento. Do terceiro quilómetro em diante ficámos totalmente expostos ao sol abrasador, em terreno inóspito e sem civilização, sem fontes de água e com inclinações brutas! Numa zona em que a estrada cruzava com o trilho encontro atletas completamente desidratados e despojados no chão, sem ânimo para prosseguir. Imagens desoladoras que retratam o móbil dos alertas fornecidos pela organização.

Ainda na subida ao Col de la Forclaz recordei-me do Paulo Garcia quando, no ano transacto, no briefing do K100+ do Oh Meu Deus disse que a prova se iniciava em Unhais da Serra ao K50. Em boa verdade todas se iniciam em algum momento. O mais incrível é que as minhas duas únicas provas de endurance (> 100K) se iniciavam ao K50!

Um terço da subida estava vencida com a chegada a Fort de la Platte. Estava sem água e com o cérebro a ferver.

Este local não era um abastecimento, mas sim um posto de controlo e ponto de água. A organização tinha água gelada dentro de um depósito de onde extraia as garrafas de água que oferecia aos atletas e noutro depósito esponjas embebidas em água para que os atletas se pudessem refrescar.

A minha vontade era mergulhar dentro do depósito. Com o calor que se fazia sentir em poucos minutos secava.

Utilizei as esponjas para molhar os braços, as pernas, a face e a nuca. E antes de continuar para Col de la Forclaz, atestei os três softflask.

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6ª Abastecimento: Fort de la Platte (1.976 metros) a Cormet de Roselend (1.967 metros) em 11 quilómetros com 769 metros de desnível positivo e 778 metros de desnível negativo

Esta subida era, indiscutivelmente, pujante! 2.000 metros positivos disseminados em 11 quilómetros. Sendo que na aproximação ao Col de la Forclaz e a permear o Passeur Pralognan escalamos puras rochas.

A paisagem era impetuosa! E o trilho quase inexistente. Era basicamente tudo pedras com passagens perigosas e impróprias para quem sofresse de vertigens. Nestas zonas problemáticas, todo o cuidado era pouco. Mas uma vez mais, depois dos riscos que corri na Haute Route, aquelas zonas pareciam quase seguras.

Veio-me à memória o atleta brasileiro. Achava que não havia dureza?...Ei-la! O que diria por esta altura?...

Atinjo o quinto pico do dia com 12h38minutos. Segundo viria a saber mais tarde, o meu dorsal não foi ativado neste

posto de controlo mas analisando o gráfico e no terreno era inegável a minha passagem nesta zona.

Suplantada a titânica subida seguia-se uma descida corpolenta em rocha e com várias cordas.

Elementos da organização forneciam indicações e sobreavisavam para o perigo eminente.

Eu saltava de pedra em pedra, umas com as mãos, outras com o rabo.

Muito concentrada desci a parede até desembocar num estradão largo. Não existia trilho. Era simplesmente um aglomerado de pedras a desafiar a mente, a agilidade e o equilibro dos atletas.

Transcendida a subida e a descida, era altura de dar corda às sapatilhas. E lá fui eu. No speed! Sentia-me a levitar! Foram dois quilómetros a descer muito ligeiramente até à base de vida sita em Cormet de Roselend.

Passei por vários atletas que me ultrapassaram na descida. Iam a caminhar...

Eu só desejava chegar a Cormet para poder, por fim, comer alguma coisa. Estava há mais de 5 horas sem ingerir nada. Tudo o que tinha tentado comer, era imediatamente expelido.

Cormet de Roselend! Tinha idealizado algo bem diferente. Consultei o relógio que já apitava com pouca bateria. 69,23K com 4.316 metros de desnível positivo e 3.576 metros de

desnível negativo em 13:20:05. Recolhi o saco que tinha enviado através da organização e procurei um local para me sentar.

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Cormet de Roselend: Cheguei à base de vida com 69,23K (D+4.316 / D-3.576) pelas 19h20 minutos locais e prossegui às 20h11 minutos locais

Despi a mochila e coloquei-a em cima da mesa. Abri o saco e extraí isotónicos para municiar-me até Chamonix. Não necessitei de guarnecer a mochila com barras pois só tinha comido uma. E coloquei as tâmaras à mão de semear esperando que de ali em diante conseguisse comê-las. De seguida, fui buscar uma sopa e pasta para abastecer o corpo. Sentei-me a comer com muita calma. O corpo precisava de algum tempo para processar os alimentos. Enquanto mastigava lentamente, retirei o abacate que tinha no saco e cortei-o em pedaços para dentro da pasta. Ia dialogando com alguns atletas que se encontravam na mesma mesa. Retirei a segunda muda de roupa e constatei que me tinha enganado a colocar a t-shirt no saco. Ao invés de uma t-shirt térmica, tinha somente a t-shirt técnica do clube. Ainda ponderei seguir com a mesma e no último abastecimento vestir a t-shirt do BCP para atravessar a meta mas acabei por efetuar a troca ali. Arrepender-me-ia mais à frente. A sopa já tinha marchado e sem vómitos. Boa! Vamos à pasta! Desligo a banda cardíaca e ponho o relógio à carga com a powerbank. Estou a dar as primeiras garfadas na pasta quando entra um atleta português que conheci na prova nos Açores. Informa-me que o Eduardo e o Neville não demoram a chegar. Fico muito feliz! Podíamos seguir juntos. Decido esperar por eles. A meio da pasta já consigo mastigar decentemente. O corpo já está ávido de nutrientes. E assim, termino a refeição num ápice. Vou atestar os softflask e trago um copo de café. Como está a ferver, aproveito para ir mudar de roupa no "gabinete feminino". Troco apenas a saia e a t-shirt, e visto uns manguitos para a noite. Quando regresso vejo a Ana Lúcia, companheira de muitas provas. Interpelo-a pelo Eduardo e pelo Neville ao que me refere que estão atrasados. Fico desolada. Estive a fazer tempo e não valeu a pena. Fecho o saco para a organização, coloco a Salomon às costas e despeço-me. Tinha demorado cinquenta e um minutos na base de vida.

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7ª Abastecimento: Cormet de Roselend (1.967 metros) a Col du Joly (1.989 metros) em 20 quilómetros com 1.265 metros de desnível positivo e 1.243 metros de desnível negativo

Iniciei a subida a Col de la Sauce num lusco-fusco estonteante. As cores no horizonte eram fortes e vivas. Uma imagem de sonho! Primeiramente, uma subida leve que empina nos dois quilómetros seguintes. O terreno era acidentado e fortemente enlameado. E sem demora, uma descida abrupta de 4.5K até La Gitte. Por esta altura já percebo o porquê de a TDS ser considerada a mais técnica, a mais dura e a mais selvagem. O terreno é bastante irregular e agressivo. Ao invés de conseguirmos progredir nas descidas enfrentamos trilhos pedregosos e instáveis que obrigam a atenções redobradas. A descida de La Gitte deve ser linda de dia. Passamos por uns locais tipo "cavernas" onde o trilho literalmente contorna e "escava" a montanha. La Gitte é um refúgio de controlo dos tempos de passagem com uma fonte de água bastante fresca. Como o frontal estava acusar pouca bateria, decido trocar de pilhas. Aguentariam a noite toda sem qualquer problema. Enquanto executo este procedimento deleito-me a fitar o horizonte. Uma sucessão de luzinhas desce a montanha e no lado oposto, outra série efetua a subida. Simplesmente magnífico! Inicio a sexta grande subida da prova até Col Est de la Gitte por um trilho pastorício estreito de baixa tecnicidade mas com uma inclinação bruta em determinados troços. A aragem era fresca e só não arrefeço porque o corpo estava em movimento e numa subida. No topo da subida encontram-se alguns elementos da organização a fornecer garrafas de água de 33cl e a inquirir a progressão na prova. Segue-se uma "montanha russa". Uma falsa descida no prolongamento da subida. Esta duas descidas são especialmente duras, com muita pedra solta e num piso bastante irregular. Surgem novamente cordas e correntes escavadas na rocha. Num troço mais agreste encontram-se três atletas sentados, um deles com sangue na cabeça. E os outros embrulhados nas respectivas mantas térmicas. Atenta à direcção das luzinhas que seguem à minha frente, percebo que ainda terei de contornar o vale antes de chegar a Col du Joly. Toda esta zona sacrificou bastante os meus pés e as minhas amigas bolhas decidem começar a reclamar forte e feio comigo.

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Filipa Alexandra Vilar 24-25 Agosto de 2016

8ª Abastecimento: Col du Joly (1.989 metros) a Les Contamines (1.170 metros) em 10 quilómetros com 39 metros de desnível positivo e 858 metros de desnível negativo

Cheguei a este abastecimento a correr como se tivesse apenas dez quilómetros nas pernas. Mas já somava 18h54 minutos em prova. Nos planos e nas descidas vingava-me. E que bem que sabia! Entrei no abastecimento e dirigi-me de imediato aos sanitários. A não alimentação e o excesso de glúten estava a irritar todo o meu aparelho gastro-intestinal. Mas uma coisa era positiva. Estava faminta! Comi duas sopas e ataquei o pão branco com brie! Era o alimento mais improvável mas o corpo pedia e eu nem hesitei. Atestei os softflask com os meus isotónicos e pus-me na alheta. A descida a Notre Dame de la Gorge era potente. Aproximadamente 6K com mais de 800 metros de desnível positivo. Como o piso era duro forçava imenso os quadricipes, que, por esta altura, cantavam com as bolhas uma musiquinha irritante. Chegada a Notre Dame de la Gorge remanesciam entre três a quatro quilómetros, quase planos, até Les Contamines. Foi um mimo! Fui sempre a correr. Incrivelmente corria a 6.30 min/km. E "arrastei" quatro atletas comigo. Nos metros finais a entrar nesta localidade francesa, como subia ligeiramente, perdi os meus companheiros. Mas eu não esmoreci. Continuei a correr e fui largamente aplaudida pela população, entusiastas e familiares de outros atletas que ali se encontravam. Atravessei o posto de passagem a correr e só parei em frente às sopas! 100K!! Woww!!! 20h45 minutos com 5.900 metros de desnível positivo e 5.950 metros de desnível negativo!!! Que onda de alegria me inundou. A minha primeira prova de 100K com aproximadamente 4.000 metros de desnível positivo, em solo português, tinha sido completada em 21h28 minutos. A dimensão, tecnicidade, terreno, clima, média de altitude e altimetria não se comparavam e ainda assim estava em vantagem quase 45 minutos. Era, de facto, muito bom! E o melhor é que só me faltavam 25K para chegar ao meu destino. Comi mais duas sopas, umas ameixas e uns golinhos de café. E ainda ajudei um atleta a vestir o casaco e a descalçar as sapatilhas pois tinha perdido sensibilidade nas mãos. A sair deste posto oiço um voz familiar. Era o Eduardo! Estava a chegar ao abastecimento. Sem o Neville... Digo-lhe para se despachar que me apanha na subida e prossigo.

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Filipa Alexandra Vilar 24-25 Agosto de 2016

9ª Abastecimento: Les Contamines (1.170 metros) a Les Houches (1.012 metros) em 16 quilómetros com 1.296 metros de desnível positivo e 1.454 metros de desnível negativo

Tinha ouvido dizer que os 16K que separam estas duas localidades eram a segunda grande dificuldade da prova mas confesso que não tinha tomado atenção ao assunto. Mas, num ápice, descobri porque é que a última grande subida da TDS é memorável! 7K com 1.157 metros de desnível positivo que inclui uma parede de 600 metros positivos. Uma parede arrasadora! E sem bastões, foi para dar o litro todo! E ainda por cima fiquei sem água a meio da subida! Eu já não conseguia comer, só hidratava o corpo entre abastecimentos. Por isso esta situação não era nada benéfica. Chalets du Truc, Col de Tricot e Bellevue são densamente arborizadas. Obliterando a parede que escalei, deduzo que seja uma zona lindíssima. Tipo floresta laurissilva. Recordo o desnível (tanto positivo como negativo), as cascatas, o piso instável e pedregoso, troços de escalada com raízes, percursos com cordas, uma ponte suspensa e uma variada e farta vegetação. O dia estava a nascer. E eu andava algures nesta floresta. Protegida. Amada. Em harmonia com a mãe natureza. Viva pela montanha. Depois de descer a Bellevue pensava que não existiam mais subidas mas estava redondamente enganada. Não eram extensas. Eram sim curtas e potentes. Subia algumas de quatro, tais eram os elementos da natureza a vencer. Por fim, desemboco na estância de ski de Bellevue. E agora sim, era sempre a descer até Les Houches. Eu bem queria descer rápido mas os pés não permitiam. Todavia, a força de vontade imperou e consegui impor ritmo. Desci o mais rápido que conseguia face às condicionantes. E às 7h30 da manhã, com 25h30 minutos de prova entro no último abastecimento da prova, a correr. Não sabia que horas eram porque o relógio tinha sucumbido no meio da floresta. Meu Deus, parecia quase irreal! Só faltavam 9K até ao pórtico da meta. Tão pouco...e eu já tinha percorrido tanto!

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10ª Abastecimento: Les Houches (1.012 metros) a Chamonix (1.035 metros) em 9 quilómetros com 150 metros de desnível positivo e 127 metros de desnível negativo

Atestei os softflask e olhei para a mesa do abastecimento. Não me apetecia comer nada mas precisava de glicose rápida para correr até à meta.

"Come as bananinhas, Filipa" e assim foi. Ingeri dois pedaços e pus sais na água.

Entrementes ocorre-me perguntar que horas eram. Um atleta que estava sentado a bebericar uma sopa profere "7h36". E naquele instante uma luz acende na minha cabeça.

Saio disparada do abastecimento. 7h36 significava que, com sorte, chegava dentro das 26h de prova a

Chamonix. "Filipa, é o tudo ou nada! A dor é passageira mas a glória é eterna." E é com esta máxima que me proponho a correr os 9K que separam a

localidade de Les Houches da mítica Chamonix. Havia algumas subidas, mas na maioria era sobe e desce. E eu nunca

parei. Somente numa subida mais acentuada mas retomei logo de seguida. Tive a grande sorte de ver muitos atletas a efetuar o seu jogging

matinal naquela mata e ser abençoada com muitos "força" e algumas palmas.

O trilho seguia paralelo ao rio L`Avre. E eu conhecia bem aquela zona. Por isso ia estimando o tempo que me faltava.

Passei alguns atletas que caminhavam e incentivei-os a seguirem-me. Mas nenhum seguiu.

Estimo que a 2K da meta atravesso a placa Chamonix. Foi um abalo emocional tremendo. Até ali tinha suprimido as lágrimas de emoção mas aquela placa destronou-as.

Escorreram pela face, grossas e silenciosas. Mas consegui dizer ao cérebro "não". Não queria atravessar a meta a chorar, mas sim, a irradiar felicidade!

Já tinha chorado tudo o que tinha a chorar. Estava ali a completar o meu sonho. O meu momento de montanha. A finalizar os trinta como tinha sonhado entrar. E estava prestes a fechar um capítulo duro, penoso e igualmente glorioso da minha vida.

Subi a ladeira nestes confrontos emocionais e atravessei a estrada sob comando de um voluntário que me diz "falta 1K". Naquele momento até podiam faltar três que eu já só parava na meta!

Atravessei uma das vias principais de Chamonix debaixo de aplausos, incentivos, expressões de ânimo e reconhecimento. E junto ao pórtico da meta, o Neville deu-me a mão visivelmente orgulhoso do meu feito.

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Filipa Alexandra Vilar 24-25 Agosto de 2016

O pórtico dos sonhos estava à minha frente! Toda a glória estava ali. Todo o sofrimento de um ano terminava ali. E ali iniciava uma nova etapa de vida.

Atravessei-o sem chorar, só com um sorriso de encanto nos lábios e um "não posso acreditar" na alma.

Posei para a fotografia e dirigi-me à zona de levantamento do colete de finisher.

Os elementos da organização foram extremamente atenciosos. Mas eu ainda não estava em mim. Entregaram-me o colete e indicaram o local onde podia comer e/ou beber algo.

Agarrei no colete como se de um diamante se tratasse e segurei-o junto ao coração. E antes de prosseguir para a saída perguntei que horas eram. Disseram-me "8h40".

A minha expressão de espanto e de vitória deve ter sido tão grande que fui obrigada a explicar que aquela hora significava que tinha completado o meu objetivo de tempo inicial. Atravessar a meta com 26h de prova.

Tinha percorrido os últimos 9K com 150 metros de desnível positivo em 1h02 minutos.

Dirigi-me à escadaria da famosa igreja de Chamonix e liguei para a Mummy. A voz do outro lado vibrava de euforia. Tinha acabado de me ver chegar à meta.

Chorámos as duas de alegria. Estávamos a mais de 1.600K de distância mas naqueles breves instantes senti-a ali. Ao meu lado. Tanto ou mais feliz por mim. Era uma vitória das duas.

A 26 de Agosto de 2015 sofremos de formas inimagináveis a doença e a distância. E eu tinha-lhe prometido recuperar e não agravar a doença com as minhas "loucuras" atléticas. Cumpri!

Voltei ao palco dos sonhos mais forte, mais determinada, mais confiante, mais adulta e mais experiente.

Não obstante, a minha viagem não terminava ali. Terminava sim em Lisboa, no aeroporto, a ser recebida pela melhor mãe do Mundo.

Desliguei a chamada e fui ter com o Neville ao café para juntos assistirmos à chegada do Eduardo a Chamonix.

Com 27h de prova, aplaudimos a completude de mais uma prova de endurance. Segundo me constou, a sua décima nona prova superior a 100K.

Quando o Eduardo se juntou a nós encaminhei-me para o centro desportivo, a fim de, levantar os sacos e tomar um banho quentinho. Estava enregelada!

De seguida fui almoçar num restaurante vegan uma sopa bem composta. Encontrei-me com os rapazes e descansei no jardim enquanto o transfer para o aeroporto não chegava.

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Filipa Alexandra Vilar 24-25 Agosto de 2016

Sínopse Como foi patente, a TDS era quase a prova de uma vida! Confesso

que em 2015 assumiu esta dimensão. Em 2016 assumiu diferentes contornos. Mas o peso da responsabilidade era superior.

No decorrer da TDS estive sempre muito calma, consciente da  dimensão da prova, das dificuldades que encerrava, atenta ao corpo, e a gerir o melhor que conseguia a não alimentação e a hidratação.

Sozinha, numa viagem de concretização pessoal,  sofri três imponderáveis que, me atrasaram a progressão mas que nunca me esmoreceram. Fiquei sem um bastão ao K37, deixei de conseguir comer entre abastecimentos a partir do K52 e desenvolvi duas grandes bolhas na arcada plantar a partir do K20. Percebi que tinha margem de progressão e que teria alcançado as ambiciosas 25 horas. Estas ocorrências impediram-me de fazer um melhor resultado mas acredito que serão "armas" para no futuro fazer melhor noutras montanhas. 

Foram muitos erros e muitas lições que extraí desta magnificente aventura alpina. Todavia, sendo a minha segunda prova de endurance (> 100K) "mutilar-me" com o que poderia ter sido não está na mesa. Guardo para a vida esta viagem e todas as preciosas lições que me permitiu extrair.

Que tipo de treino e/ou alimentação faço? Não sigo nenhum plano de treino e/ou alimentar específico. Basicamente "oiço o corpo".

Não tomo suplementos de qualquer género. Simplesmente ingiro o que o meu corpo me pede e quando pede.

Em termos de treino, optei por fazer 5 provas de Trail antes da TDS e a Haute Route como preparação final para esta prova. Nunca fiz treinos de corrida superiores a 4 horas nem sequer treinos noturnos. Sei que deveria ter efetuado mais treinos e/ou mais específicos, todavia, a promessa de não exagerar nos treinos e de estar sempre atenta a toda e qualquer reacção do corpo sibilava sempre que me sentia mais desgastada.

2016 foi um ano muito intenso em termos emocionais e muito leve em termos físicos. Muitos médicos, muitas análises, duas doses de ferro, muitas sessões de fisioterapia, bem como, outros tratamentos médicos para duas lesões que padecia. O meu target era concluir a TDS sem baixar novamente as minhas reservas de ferro e não agravar a fratura de stress antiga que descobri antes da viagem.

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Falando especificamente da prova: não é UTMB com os seus 170K e duas noites em claro, mas também não precisa. Para mim é "A" prova pois tem um piso bastante mais destruidor que o UTMB, subidas e algumas descidas bem mais agressivas e perigosas, apresenta 5 abastecimentos que distam entre 15 a 21K o que para atletas de pelotão corresponde a mais de 6h em contacto com a natureza e em auto-suficiência e é uma prova de montanha genuína e selvagem pelas paisagens alpinas que nos apresenta e pelo isolamento que é quase total.

Na minha singela opinião, é "A" experiência. Não tem de ser encarada como prova. Pode ser efetuada em modo de trekking que não perde o seu esplendor e dureza. Se algum dia decidirem visitar esta zona da Europa sugiro esta rota para passeio de montanha.

Para não me alongar mais que o relato já vai extenso, farei uns breves agradecimentos.

Agradeço ao Clube Millennium BCP a oferta da inscrição na prova e todo o carinho com que me fazem sentir "uma de vós".

Ao meu porto de abrigo, tanto o sol como a tempestade vincam a tua forte personalidade. Que nunca me faltes porque não sei viver sem ti.

Ao Eduardo Ferreira por todo o apoio prestado na minha primeira abordagem à TDS e no decorrer deste ano.

A todas as generosas almas que se cruzaram na minha vida, com incidência neste último ano, e que me ajudaram a concluir este desafio. Quer em conselhos, boas energias, um "como estás", um "força", smiles, e incentivos de diversas ordens.

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Classificação Final Filipa Alexandra Vilar

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