Utopia Do Corpo Perfeito e a Bioetica

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    Utopia do corpo perfeito e bioética

    Lurdes Cardoso*

    Introdução

    Com o corolário de modificações de fundo naorganização da vida humana, nas estruturas derepresentação simbólica, nos sistemas de valores ede crenças e na missão e finalidades das institui-

    ções que regulam e orientam a vida em sociedade ,a Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti propõe um debate sobre estasproblemáticas, realizando este CongressoInternacional, onde algumas das reflexõesefectuadas no decurso do Seminário deCiências, Educação para a Saúde, da Escola 

    Superior de Educação de Castelo Branco, vão ao encontro da discussão em torno dopapel da Educação no desenvolvimentohumano.

    O conceito de Saúde, segundo a OrganizaçãoMundial de Saúde (OMS), definido comoum estado de completo bem-estar físico,mental e social, parece ser uma utopia, pois a adaptação do indivíduo ao meio _ conside-rado este a pessoa em si mesma e na sua rela-

    ção e interdependência com o mundo psico --físico, sócio-cultural e antropo-ético –poderá ser incompatível, ou não, com umabsoluto sentimento de esta r -bem .Em geral, a Saúde é sinónimo de poder rea-lizar-se as tarefas quotidianas. Sentirmo-nosbem no nosso corpo significa que nos sentimos

    em boas condições de Saúde, correspon-dendo a estados subjectivos muito diversosque vão desde os de uma pessoa jovem com

     vitalidade e com boa disposição aos de uma pessoa mais idosa com diabetes e um poucoobesa, em que ambas se declaram estar de boa

     saúde.Também o Papa João Paulo II considerou a Saúde, não apenas a ausência de doença masno condicionalismo próprio de cada indiví-duo, como a harmonia perfeita do serhumano, sendo realmente um desafio levarcada um a aceitar os seus limites e a desen-

     volver uma atitude nova perante as dificul-dades.Nesta perspectiva, tome-se como exemplo, a 

     vida de Stephen Hawking, matemático e

    físico, professor Lucasiano na Universidadede Cambridge _ título que corresponde a um grau ilustre outrora ostentado por New-ton _ e um dos maiores cientistas da actua-lidade na sua área de especialidade que, ape-sar de estar dependente de uma cadeira derodas e de um computador devido a sofrer,desde 1963, de esclerose amiotrófica lateralou doença de Lou Gehring que afecta os neuró-nios motores, se apresenta com boas capaci-dades cognitivas e emocionais, capaz de

    casar, de construir uma família e de ser feliz(Ferguson, 1993), pelo que poderá ser consi-derado em estado perfeito de saúde.

    No que respeita à Saúde do corpo, esta acom-panha a história do Homem desde os tem-pos mais remotos até ao presente. Por exem-

    * Escola Superior de Educação do IPP de Castelo Branco;

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    plo, existem alguns crânios de antepassadoseuropeus em que é possível encontrar sinaisde terem sobrevivido depois das técnicas da trepanação, assim como foram encontradosmais de 10 000 crânios trepanados, comsucesso, nas civilizações da América do Sul

    (Peru, região de Cuzco). Contudo, os pro-gressos actuais da Biologia Molecular, desig-nadamente a descoberta e a descodificaçãodos genes, marcam uma etapa do conheci-mento científico que não deixa de serinquietante. De facto, se o fígado, os rins ouo coração estiverem doentes, poderão sersubstituídos e ao fim de algum tempo deadaptação, a pessoa permanecerá a mesma.No entanto, partilho com Lucien Sfez(1997), sociólogo francês e professor na 

    Universidade de Paris I (Sorbonne) que agirsobre os genes é manipular não só aquilo quenos constitui mas agir também sobre a sua transmissão e arriscarmo-nos a transformara espécie humana…

     Assim, não é possível deixar-se de analisar a Saúde do corpo, este corpo intermédio entre sie si, entre si e os outros e entre si e o mundoplanetário sem uma leitura atenta da Decla-ração Universal sobre Bioética e DireitosHumanos.

    A transformação do mundo…

     A transformação do mundo parece estarbem evidente no título deste Congresso, DoBerlinde à Playstation, levando-me à análiseda recriação da natureza humana nas obrasUtopia de Thomas More versus  A Saúde Per-

      feita : Crít icas de uma Utopia de Lucien Sfez,apoiando-se esta última no poder das tecno-logias.

     A Utopia Moriana (1516), uma das obras doHumanismo Renascentista europeu, era baseada na excelência do governo da socie-

    dade e tinha como ponto de partida a crítica da realidade presente e a necessidade de uma narrativa ficcional que criasse uma realidadealternativa, situando-se num lugar imaginário,cujo objectivo era recriar a natureza humana a partir de normas e de regras que delimitavamcom precisão o Outro a ser excluído da comu-nidade utópica. Já a Utopia da Saúde Perfeita tem como ponto de partida a reconstrução da realidade pela intervenção prática das tecno-ciências no Corpo e no Planeta, sendo menos

    uma narrativa e mais um projecto realizável,isto é, o lugar da utopia é real, pois o corpohumano e o planeta Terra não são lugaresimaginários nem distantes.

     Assim, a Utopia da Saúde Perfeita é uma nova figura bio-ecológica que sugere uma purificação do Homem e do Planeta atravésdas tecnociências. Os pilares de tal Utopia assentam em três projectos, a saber: Genoma Humano, Biosfera II e Vida Artificial.

    · Genoma Humano, projecto mundial quepretende identificar todos os genes huma-nos até 2015.

    · Biosfera II, projecto que pretende a repro-dução artifical da Natureza numa imensa estufa no Arizona.

    · Vida Artificial, projecto que pretende criarem computador uma forma de vida total-mente artificial.

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    Esta Utopia não visa apenas os laços sociaisque unem os indivíduos mas, igualmente, opróprio indivíduo na sua existência, pressu-pondo que a felicidade passa, obrigatoria-mente, por cada um ter um corpo e uma mente saudáveis, ou mesmo, que os seres

    humanos devessem ser imortais. Estes projec-tos formam a base da crença que a biotecno-logia pode criar um novo Homem, próximodo conceito do super-Homem de Nietzche.Com efeito, historicamente, a medicina fun-cionou como um impulso poderoso da génesedas utopias mas, actualmente, é a própria uto-pia que impulsiona a mesma medicina, aper-feiçoando as aptidões físicas, a longevidade,ou seja, a Saúde do Corpo.Lucien Sfez (op. cit: 47-56) leva-nos a repen-

    sar um certo número de princípios e a pô-losem causa, como o da crença numa ordem danatureza , numa distinção necessária entre o

     ser  e o  parecer , numa ordem do destino versusa liberdade e numa universalidade da ciência.

    1. A ordem da Naturez a é co ntestad a, já que osseres humanos tentam não só decifrar masintervir no processo. Com efeito, o factode se transformar a escrita dos genes quefazem de nós aquilo que somos, não será ir

    contra a Natureza e as suas leis? De facto,se as manipulações genéticas dizem res-peito à identidade do eu profundo e agemsobre os mecanismos de transmissão,então agem também sobre o destino sin-gular dos seres humanos.

    2. A dis tin ção entre o ser e o parec er é pertu r-bada, já que na filosofia clássica, dualista, a «alma», essa substância do ser distinta do

    corpo, a aparência, transmigrou e, agora,são os genes que compõem a nossa alma, a nossa essência individuada.

    3. O equilíbrio entre o destino e a liberdade está comprometido, já que não é um fantasma dofuturo. É possível conhecer o nosso des-

    tino e o dos nossos filhos, assim como odireito de dispor de nós mesmos.4. A universalidade da Ciência é discutida, já 

    que se perde quando a Ciência deixa deser um domínio reservado e se torna umobjecto comum.

     Assim, as descobertas recentes da Genética redistribuem os poderes de forma diferente,perdendo-se a confiança intelectual na omnipotência da Ciência, a admiração sem

    limites nas suas descobertas e o respeitoassombroso por aquilo que ela inventa.

    No entanto, para os alunos do Seminário deCiências, a Utopia do Corpo Perfeito passa pelo culto da performance através de modi-ficações dos comportamentos alimentaresque dão origem a novas patologias sociais,como sejam: a anorexia, a bulimia e a obesidade.Num inquérito junto de cem alunos doensino secundário, de escolas urbanas e sub -

    -urbanas, 30% das raparigas disse que estava a fazer regime alimentar, 5% jejuava, por vezes,e 1% já tinha induzido o vómito, enquanto osrapazes não se mostraram preocupados como peso nem com o regime alimentar.Para Gérard Apfeldorfer (1997), médicofrancês, psiquiatra, psicoterapeuta e autor dolivro,  Ano rex ia, Bul imi a e Obesid ade , as causasdestes distúrbios têm sempre duas vertentes:

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    a biomédica e a psicosocial. A pessoa sujeita a estas perturbações passa de um fenómenode moda, à busca da pureza, rejeitando toda a corporeidade, onde a solução passa poruma modificação das suas relações consigo,com os outros e com o mundo planetário.

     Ainda, no Seminário de Ciências e porque oprimeiro espaço ocupado pelo Homem é oútero materno, onde no início, mãe e criança se fundem num único corpo, não se deixoude analisar o corpo gestacional. Por sua vez, osavanços tecnocientíficos nesta área justifica-ram também uma abordagem actualizada à luz de diferentes experiências, como as doseu tratamento médico e as do seu enqua-dramento bioético.Não é possível ignorar um novo ramo de

    profissionais que são os bioéticos e citando oartigo sobre Bioética: A aventura de uma utopia sau dável de Daniel Serrão (1996: 59), profes-sor na Faculdade de Medicina do Porto,membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e de numerosascomissões internacionais para a Bioética: estaé referida como a grande e generosa utopia do

     século XXI, sobre a qual se irá construir uma eco-nomia global mais justa, uma ecologia mais sen-

     sat a, uma polít ica m ais res ponsável e u ma rel igi ão

    mais alegre, tudo isto c ontribuindo para a realiza-ção do melhor bem dos seres humanos, em Paz.

    Breves considerações finais

    No Seminário de Ciências, Educação para a Saúde, da Escola Superior de Educação deCastelo Branco, foram criadas oportunida-

    des de análise e de discussão críticas na sala de aula em torno do corpo humano, centro efoco de uma identidade, já que com osadventos da sociedade de consumo e da glo-balização, a par dos avanços biotecnológicos,os indivíduos estão cada vez mais preocupa-

    dos com o seu corpo. A Saúde do Corpo parece ser o primeiroanteparo contra o fracasso social, sentidoindividualmente, nesta procura da felicidadee do sucesso. Neste horizonte utópico oindividuo precisa apenas do seu corpo. Con-tudo, o efeito deste individualismo talvezseja a suprema solidão. Daí que o papel da Educação deva ser o de levar cada pessoa a tomar consciência de si e da sua interdepen-dência com todos os seres vivos do planeta.

    É importante reconhecer que os desenvolvi-mentos científicos e tecnológicos têm sido epodem ser de grande benefício para a huma-nidade no aumento da expectativa e na melhoria da qualidade de vida. No entanto,tais desenvolvimentos devem promoversempre o bem-estar do indivíduo e da humanidade, como um todo, no que respeita à dignidade da pessoa e no respeito universalpelo cumprimento dos Direitos Humanos eliberdades fundamentais.

     Assim, cita-se um excerto da DeclaraçãoUniversal sobre Bioética e Direitos Huma-nos (UNESCO, 2005, artigo 23º a):

    De modo a promover os princípios estabelecidos

    na presente Declaração e a alcançar uma melhor compreensão das implicações éticas dos desenvol-

    vimentos científicos e tecnológicos, em especial  para os jov ens, os Estado s devem envidar es forço s

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