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Regina Novaes J UVENTUDE, RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO: EXEMPLOS BONS PARA PENSARTEMPOS E SINAIS Para minha querida amiga Santuza Cambraia Naves, a antropóloga da música, com imensa saudade. As relações entre religião e política continuam delicadas. Em pleno século XXI, nessas alturas dos “tempos modernos”, transformações sociais recentes se encarregam tanto de (re)produzir conhecidos distanciamentos e permanentes tensões quanto de produzir inéditas aproximações entre essas dimensões da vida social. Com efeito, a dimensão religiosa tem resistido a se circunscrever à vida privada, ao foro íntimo e hoje ganha outros fôlegos não previstos na grande narrativa que separou religião e política, o público e o privado, magia e religião. Na geopolítica mundial, vertentes religiosas alimentam sectarismos, fundamentam embates políticos e econômicos. Ao mesmo tempo, e também pelo mundo afora, Estados laicos se relacionam com múltiplas expressões religiosas que adentram pelo campo da cultura e da política. Assim sendo, valores e símbolos religiosos têm frequentado o espaço público. Nas atuais circunstâncias, é preciso sublinhar que a noção de espaço público, pensado como lugar de encontro (de divergências, disputas e negociações) entre sociedade e Estado, também vem se modificando. As demandas

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Regina Novaes

JUVENTUDE, RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO:EXEMPLOS “BONS PARA PENSAR” TEMPOS E

SINAIS

Para minha querida amiga Santuza Cambraia Naves,a antropóloga da música, com imensa saudade.

As relações entre religião e política continuam delicadas. Em pleno séculoXXI, nessas alturas dos “tempos modernos”, transformações sociais recentes seencarregam tanto de (re)produzir conhecidos distanciamentos e permanentes tensõesquanto de produzir inéditas aproximações entre essas dimensões da vida social.

Com efeito, a dimensão religiosa tem resistido a se circunscrever à vidaprivada, ao foro íntimo e hoje ganha outros fôlegos não previstos na grandenarrativa que separou religião e política, o público e o privado, magia e religião.Na geopolítica mundial, vertentes religiosas alimentam sectarismos, fundamentamembates políticos e econômicos. Ao mesmo tempo, e também pelo mundo afora,Estados laicos se relacionam com múltiplas expressões religiosas que adentrampelo campo da cultura e da política. Assim sendo, valores e símbolos religiosostêm frequentado o espaço público.

Nas atuais circunstâncias, é preciso sublinhar que a noção de espaçopúblico, pensado como lugar de encontro (de divergências, disputas enegociações) entre sociedade e Estado, também vem se modificando. As demandas

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da sociedade atual não comportam hoje uma base única de representação cujaunidade poderia ser garantida por interesses comuns, corporativos ou de classe.Mudanças mundiais no mundo do trabalho (desemprego, flexibilização,terceirização, auto-emprego etc.) resultaram em descentralização das negociações.Neste “espaço público ampliado” evidenciam-se velhas e novas contradições,disputas entre variados atores, surgimento de novas demandas e de múltiploscentros de negociação de interesses. Com conteúdos, formatos, performances erituais diversificados, indivíduos, grupos e instituições levam diferentes demandasao espaço público onde são disputados recursos materiais e simbólicos.

Em sociedades cada vez mais policêntricas, as novas tecnologias deinformação e comunicação também pesam na ampliação do espaço público noqual surgem inéditas maneiras de incidir. No decorrer desse processo histórico,sem estar sujeito a um poder soberano específico e às fronteiras geográficas deum país, também o “espaço público internacional” é “configurado pela geometriavariável das relações entre Estados e atores globais” tais como as multinacionais,as religiões, os criadores culturais, os intelectuais e cosmopolitas globais (Calderóne Lechner 1998:22)

Dessa maneira, em diferentes territórios, atores religiosamente motivadosse encontram com outros atores políticos – civis e secularizados – contribuindopara o aumento do estoque de ideias e de posicionamentos que alimentam odebate público nacional e internacionalmente. Assim sendo, valores culturaisclassificados como religiosos (e vice versa) e valores religiosos classificados comopolíticos (e vice-versa) se intercruzam no campo da convivência civil e chegam,até mesmo, a se incorporar nos projetos e ações de setores governamentaisencarregados da formulação de políticas públicas.

Pode-se dizer, portanto, que hoje são muitos os usos (e abusos) políticosdo conceito de cultura e, por decorrência, de diversidade cultural, onde tambémse inclui a dimensão religiosa. Não é difícil observar como, sobretudo em situaçõesem que se explicitam disputas de poder e conflitos sociais, as ideias de“multiculturalismo” e “interculturalidade” são contraditoriamente acionadas.Por um lado, acionar a noção de “diversidade” pode significar produzir isolamentosestratégicos, mantendo culturas, grupos, identidades e religiões em seus “devidoslugares”. Por outro lado, simultaneamente, em espaços de disputas democráticas,o “reconhecimento da diversidade” tem contribuído para aumentar o peso devalores e pertencimentos religiosos por meio de uma afirmação ética que prega“a paz e justiça” e evoca universais “direitos humanos”.

No presente artigo, com o objetivo de refletir sobre tais questões, pretendoretomar informações de pesquisas, realizadas nos últimos dez anos, sobredeterminados segmentos de jovens brasileiros que – de maneiras diversas – sefazem presentes no espaço público. A ideia é explorar as experiências dessesjovens do ponto de vista de sua atuação na chamada “sociedade civil”. Isto é,

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sem desconhecer as ambiguidades e sem minimizar o hiato existente entre asretóricas e as práticas do poder público, gostaria de explorar algumas das(re)apropriações da noção de diversidade cultural (e religiosa) entre jovens quese movem em espaços da ciência, cultura e da política.

1 – Secularização e diversidade religiosa em um espaço de ciência

Berger (2001) reconhece que o conceito de “secularização” contribuiupara a separar a religião da ciência e da política e, ao mesmo tempo, reconhecetambém que – no processo histórico – a secularização não atingiu com a mesmaintensidade e da mesma forma todas as culturas, povos, nações, classes e grupos.Ou seja, seus efeitos são múltiplos e nem sempre convergentes.

Nesse mesmo texto, Berger faz uma intrigante referência às crenças queprevalecem no mundo acadêmico. O autor afirma que

existe uma subcultura internacional composta por pessoas deeducação superior no modelo ocidental, em particular no campodas humanidades e das ciências sociais, que é de fato secularizada.Essa subcultura é o vetor principal de valores iluministas. Emboraseus membros sejam relativamente poucos, são muito influentes,pois controlam instituições que definem ‘oficialmente’ a realidade,principalmente o sistema educacional, os meios de comunicação demassa e os níveis mais altos do sistema legal. São notadamentesemelhantes em todo mundo atual (...) (idem:11).

Ou seja, trata-se de uma “cultura de elite globalizada” que tem “às vezesum choque cultural com o povo”. Contudo, como se sabe, embora a aposta nasecularização tenha estado na base da existência da “comunidade científicainternacional”, sendo uma espécie de denominador comum que une os “cientistassociais secularizados”, nem mesmo no espaço acadêmico se logrou a pretendidahomogeneidade. Em vários países, cientistas sociais com vínculos religiosos sefizeram presentes em espaços legitimados de produção da antropologia e dasociologia da religião. Bourdieu (2004), no clássico artigo “Sociólogos da crençae as crenças de sociólogos”, reconhece essa presença e aconselha que se abandoneo jogo duplo com a teologia e que se faça a objetivação sem complacência detoda a crença religiosa.

Nessa mesma perspectiva, em um instigante trabalho sobre os “sociólogosda religião” no Brasil, Antonio Flávio Pierucci (1997) identificou três grupos.Um primeiro grupo é composto por “religiosos praticantes” que exercemcompetentemente a antropologia e a sociologia da religião, um segundo grupode “religiosos praticantes/profissionais da religião” é composto por aqueles “que

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não sabem separar as esferas, não exercitam a vigilância epistemológica, fazemum produto híbrido e mal definido, que alegam ser antropologia ou sociologiada religião”. Por fim, um terceiro grupo, menos numeroso e “puramenteacadêmico”, caracterizado como “profissionais da ciência”.

Considerando o tempo histórico em que foram socializados os cientistassociais aos quais se referem Berger, Bourdieu e Pierucci, talvez no esquemaacima falte identificar um quarto grupo: aquele que é “puramente acadêmico”– sem vínculos com instituições religiosas – mas que não faz a “objetivação semcomplacência” de sua inabalável crença na “secularização” como um “valor”para o estabelecimento das modernas sociedades republicanas, tal como foiformulado no início do século XX. Isto é, ao afirmar “o valor (de uma vertente)da ciência” eles também estariam deixando de lado a “vigilância epistemológica”na medida em que não consideram a historicidade da própria produção declassificações e conceitos no âmbito das ciências sociais.

Faz algum tempo que venho me perguntando como os ventos secularizantesse combinam com os “sinais dos tempos” pós-modernos na formação de jovensestudantes de ciências sociais. De fato, comecei a pesquisar as crenças religiosasentre estudantes de Ciências Sociais quando ofereci a disciplina “Ritual eSimbolismo”, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, o IFCS, da UFRJ.Como trabalho final de curso, uma parte dos alunos escolheu pesquisar rituaisde distintas tradições religiosas. Em sala de aula, esses alunos justificaram suasescolhas pela visibilidade de certas crenças, ou por ser a religião dos pais, oupor se tratar da religião em que foram criados. Ou, ainda, e sem osconstrangimentos impostos aos estudantes de ciências sociais de minha geração,para compreender “antropologicamente” suas próprias buscas ou pertencimentosreligiosos.

Um texto discutido no curso foi usado para legitimar aquelas escolhas. Era umtexto de Roberto Cardoso de Oliveira (1998) que discorria sobre os diferentesparadigmas da antropologia, valorizando justamente o mais recente: o“interpretativismo”. Neste paradigma, que o autor classifica como “hermenêutico”,a subjetividade, liberada da coerção da “objetividade”, toma sua forma socializada,assumindo-se como “intersubjetividade”. O que justificaria ao antropólogo estudaralgo que não lhe é indiferente como sua religião ou sua religiosidade. Naquelaocasião, diferentes estudos dos alunos revelaram conexões entre aquele espaçouniversitário laico e o campo religioso brasileiro (no qual já se detectava a diminuiçãodo catolicismo, o crescimento do pentecostalismo e a emergência de um conjuntode alternativas místico-esotéricas, também chamadas de “nova era”).

Depois disso fiz duas pesquisas quantitativas com alunos do IFCS. Naprimeira, em 1994, obtivemos 56% de declarações afirmativas para a pergunta“você tem religião?” (católicos 33%, evangélicos 11%, espíritas 8% e adeptos docandomblé 4%) e 44% de “sem religião”. Outras perguntas e outras abordagens

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complementares permitiram captar trajetórias e itinerários nos quais se verificaramalternâncias, mudanças, combinações entre crenças religiosas. Recordo algunsexemplos: um aluno ateu que se tornou católico quando se engajou como agentepastoral negro (APN); um católico não-praticante que no IFCS se tornou ateu“petista” mas depois, em contato com outros alunos, se converteu aopentecostalismo da Assembleia de Deus, atuando na “renovação” de sua igreja;um católico que combinava sua militância nas “progressistas” ComunidadesEclesiais de Base (CEBs) com a frequência em missas da Renovação CarismáticaCatólica, então considerada como reação conservadora da Igreja Católica.Diferentes combinações entre tradições afro-brasileiras, religiões orientais eesoterismo também se davam a conhecer nas conversas, nos adereços e nos livrossagrados que se faziam visíveis no IFCS dos anos de 1990.

Na segunda pesquisa, quatro anos depois2, apenas 34% dos alunosentrevistados disseram ter uma religião e 64% se declararam “sem religião”. Emuma primeira leitura parecia que enfim os ventos secularizantes estavam soprandomais fortemente naquele espaço de ciência. No entanto, o cruzamento entrediferentes respostas, assim como as entrevistas complementares, revelaram queo número de ateus não crescia em relação à pesquisa anterior. Ou seja, entreos 64% dos “sem religião”, apenas 9,1% se declaram ateus enquanto 39,8%escolheram a alternativa “sem religião institucional”. Nas respostas abertas, umaparcela considerável dos entrevistados se declaravam “em trânsito”, entre escolhasreligiosas. Outros, indicando uma aproximação entre técnicas de auto-conhecimento, expedientes terapêuticos e crenças religiosas, diziam dispensar amediação institucional em prol de uma síntese pessoal. Muitas respostasapontavam para combinações inéditas e para novos sincretismos. Dessa maneira,recompondo percursos e trajetórias religiosas foi possível identificar pontos departida, interregnos e pontos de chegada entre os quais os jovens se moviam nadimensão religiosa de suas vidas.

Lembrando que o Censo de 2000 do IBGE também apontava para ocrescimento dos “sem religião”, particularmente no Rio de Janeiro (15,5%), paraanalisar os resultados dessa pesquisa explorei a noção de “experiência geracional”.Além de viverem em um tempo de intensa experimentação de novas tecnologiasde informação e comunicação virtual, os entrevistados, alunos do IFCS, faziamparte de uma geração marcada por processos de globalização que ampliaram suasincertezas tanto diante de um mercado de trabalho restritivo e mutante quantofrente às distintas formas de violência física e simbólica às quais estavamsubmetidos em uma cidade marcada pela presença do tráfico de drogas e pelacorrupção policial. Nesse contexto, em comparação com as gerações anteriores,tanto os “problemas sociais” (aos quais dirigir perguntas sociológicas e construirobjetos de investigação), quanto os elementos socioculturais disponíveis para aconstrução do ethos de cientista social não eram os mesmos.

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Ou seja, naquele finalzinho de século, o curso de Ciências Sociais não eramais um espaço de socialização onde se produziam estratégias de ocultamentode “crenças não científicas” e onde se projetava um almejado “perfil de aluno”sem pertencimento religioso, tal como constava em minha memória (certamenteseletiva) de ex-aluna daquele mesmo estabelecimento de ensino. Além disso,também questionando o percurso de outras gerações – que via de regra obedeciaa linear sequência entre a religião de família >>> o ingresso no curso de ciênciassociais >>> “secularização pessoal”/ateísmo >>> engajamento político – a pesquisarevelou outra inesperada correlação: situados entre os “sem religião”, os alunosque se declaram ateus eram os que tinham menores intenções e práticas deengajamento político. Portanto, idas, vindas e novas buscas na religião e naparticipação política pareciam indicar outros parâmetros de cognição e ação.

Assim sendo, as informações obtidas indicavam que, também no âmbitodas ciências sociais, cada experiência geracional é inédita. Historicamentedefinidas, mostravam-se mutáveis as relações entre: as regras do fazer acadêmico;as formas de incidência no espaço público e os significados de pertencimentose buscas religiosas. Para os jovens cientistas sociais formados a partir daquelesanos, ampliavam-se as referências geográficas e bibliográficas e, também,modificavam-se as perguntas e os objetos de estudo construídos em torno dadimensão religiosa da vida social.

Desse ângulo, naquele momento da história, mesmo as quatro possibilidadesde classificação dos “sociólogos da religião” acima sugeridas já se mostraminsuficientes e outros jogos de posições e oposições precisam ser identificados.Por exemplo, para definir hoje o “puramente acadêmico”, seria necessáriorelacionar vários tipos de crenças e pertencimentos com as distintas maneiras deexercer a necessária “objetivação reflexiva” e a “vigilância epistemológica”. Paracada uma das posições, que se apresentam neste campo de possibilidades,haveríamos de indagar como valores iluministas são reafirmados, complementadosou negados entre sociólogos e antropólogos que, mutuamente, reconhecem-seaqui e na comunidade acadêmica internacional.

De fato, tornar a religião um objeto de investigação sempre é se submetera um considerável esforço de objetivação reflexiva. Isto, não só porque é necessárioassumir e refletir sobre a própria pertença ou crença religiosa, caso haja. Mas,também, porque é preciso não subestimar a necessidade de objetivação – nãomenos dolorosa – dos conceitos (e preconceitos acadêmicos) que habitam omundo ao qual os cientistas sociais pertencem.

A “secularização” (ideia, acontecimento histórico e conceito sociológico)teve grande importância para reinventar o mundo em um momento histórico deafirmação do Estado “de direito”, laico, sobretudo para limitar o poder político-religioso de Roma. Passados muitos anos, já é hora de investigar como e quantoa narrativa da secularização foi (re)apropriada, por diferentes atores, no curso

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da história, na constituição diferenciada dos Estados-nacionais (Giumbelli 2006).Porém, hoje, com a intensificação da globalização e tensionamento das fronteirasnacionais, é preciso indagar que outros conceitos ocupam lugares semelhantesna configuração do espaço público.

A noção de “diversidade cultural” (conceito antropológico e suas diferentesapropriações bem mais recentes), tal como ocorreu com o conceito desecularização, também transpõe fronteiras acadêmicas e “espirala pela sociedade”,para usar uma conhecida expressão de Giddens (1990). Este “efeito teoria” –usando agora uma expressão cunhada por Pierre Bourdieu (2004) – também nãoé sem consequências para o que acontece no interior e, também, no exterior domundo acadêmico. Vejamos alguns exemplos.

2 – Religiosidade e política em espaços da chamada cultura hip hop

O rap, o break e o grafite compõem a trilogia da cultura Hip Hop. NoBrasil nas favelas e conjuntos habitacionais, nas chamadas “periferias”, desde osanos de 1990, destacam-se grupos culturais que, através do movimento hip hop,denunciam a violência física e simbólica presente na sociedade e clamam pela“união dos manos”.

Cada manifestação de rap (com seus DJs e MCs) é um resultado singulardo encontro de elementos e informações locais e globais3. O rap é ritmo e poesia.O ritmo valoriza a palavra que, por sua vez, produz a atitude. A batida, a palavrae atitude se somam para disseminar uma “visão crítica” frente às desigualdadessociais, ao preconceito racial, a precariedade das ações do Estado, a corrupçãoe a truculência policial.

Referências e símbolos socialmente reconhecidos como religiosos não estãopresentes em todas suas letras, mas nelas são bastante recorrentes. Escrevendosobre letras de rap que continham referências religiosas, propus (Novaes 2003)um continuum no qual em um extremo teríamos o pertencimento confessionalevangélico, o chamado “rap gospel”. Na zona intermediária, estavam as expressõessincréticas entre as quais destacam-se aquelas que evocam Jesus Cristo e osOrixás, remetendo-nos, sobretudo, à nossa tradição cultural de duplopertencimento ao catolicismo e às religiões de matriz africana. Assim como, maisrecentemente, outras misturas que incluem referências orientais, da tradiçãobudista ou hinduísta. E, finalmente, no outro extremo, estariam letras de “rapsfeitos de salmos” nos quais se fala diretamente de (ou com) Deus interpretandolivremente a Bíblia, dispensando pertencimentos e mediações institucionais.Vejamos alguns elementos dessa classificação (que, como toda classificação,deve ser vista como provisória).

O rap Gospel expressa o segmentado mundo evangélico no qual o“pertencimento denominacional” sempre foi visto como uma característica

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constitutiva. Os grupos que foram observados na pesquisa combinam duas missões:a do movimento hip hop, que através da palavra cantada faz denúncias sociais para“conscientizar” os jovens da periferia, e a missão religiosa que, através de diferentesbeats e rimas4, propõe a adesão ao evangelho e um estilo de vida cristão.

Seguem alguns exemplos. O grupo Provérbio X é de Brasília e seu objetivomaior se resume na seguinte frase “Ide e Pregai o evangelho”. O grupo AlternativaC “prega a evangelização dos povos, a união, paz e crescimento sem esqueceros problemas da sociedade”. O Eclesiastes, de Carapicuíba – São Paulo, apresenta-se em rádios comunitárias e em programas de rap nacional, fazendo a“evangelização dos que os escutam”. Apocalipse 16 também é composto de“rappers” paulistas que dizem combinar “crítica social” com a evangelizaçãoonipresente em suas letras. Além dos grupos, existem também os DJs que atuamindividualmente. Este é o caso do DJ ALPISTE, que diz fazer “música comconsciência cristã” e que espera encontrar no hip hop “uma fórmula mais segurapara encontrar a paz” (Novaes 2003).

Em seguida, no mesmo artigo já mencionado, vinha o rap sincrético. Areferência ao “sincretismo” buscava passar longe das definições que o remetema desvios da religião cristã pura, sem misturas e confusões rituais ou doutrinárias.Buscava-se fugir de correlação de sincretismo e “falta” (de capacidade dasIgrejas de bem evangelizar e dos fiéis de bem compreender dogmas e doutrinas).A ideia era pensar o “fenômeno do sincretismo” enquanto um processo incessantede apropriação e troca cultural (Sanchis 2001), atualmente potencializado pelacirculação mais veloz de informações e símbolos religiosos.

Como exemplo de “rap sincrético”, na ocasião, recorri a Thaíde e DJ Hum,considerados os “irmãos mais velhos” do Hip Hop brasileiro. Na letra denominadaSabe quem eu sou?, eles dizem: “Evoco espíritos no atabaque/ mas também precisoda benção do padre”. O “duplo pertencimento” – ao catolicismo e às religiõesde matriz africana – já foi bastante estudado no Brasil.

Na mesma linha, podemos citar o grupo O Rappa, do Rio de Janeiro, queem uma de suas letras também evoca Cristo e Oxalá. Descrevendo a “vida nomorro” e suas relações tensas com a polícia, afirmando que “o próprio Cristo eramulato”, a letra termina dizendo: “Se eu me salvei, foi pela fé/Minha fé é minhacultura /Minha fé, minha fé/É meu jogo de cintura, minha fé”.

A Polícia, Deus e os Orixás também estão presentes em um rap do grupoJuventude Sangrenta de Caruaru, Pernambuco, que diz assim: “Eu tenho Deuscomigo para me guardar, eu tenho as forças dos meus Orixás, por aqui não vouparar, vou te explicar do trabalho da Polícia Militar, ainda desses caras eu tenhomuito a falar”.

Mas, sendo a violência bastante recorrente nas letras do “rap sincrético”,neste espaço também vale introduzir informações estatísticas. A letra do rap aFórmula Mágica da Paz, do grupo Racionais MCs, exemplifica bem a questão:

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“Agradeço a Deus e aos orixás. Cheguei aos 27 anos, tá ligado? Agradeço aDeus, agradeço a Deus. Cheguei aos 27 anos contrariando as estatísticas”.Dados do IBGE são citados demonstrando o entrelaçamento de diferentes domíniosde saber da sociedade.

Também como exemplo de ampliação de “matéria prima” para alimentarprocessos de convivência sincrética entre jovens artistas das chamadas periferiasbrasileiras, podemos citar o filme documentário intitulado Favela Rising – dirigidopor Jeff Zimbalist e Matt Mochary. Ao retratar a realidade das favelas do Riode Janeiro, o documentário destaca a trajetória de Anderson, um dos integrantesda banda Afro Reggae. A morte rondou de perto a vida de Anderson e odocumentário mostra como diferentes crenças e rituais se combinaram em buscade sua cura, reinserção pessoal e profissional. Na luta por essa vida, tornam-sealiados os santos católicos, os orixás, as mães de santo e o deus Shiva datradição hindu. Nessa banda, em que o “afro” é exibido na raiz e no próprionome, Shiva, deus da transformação e da reconstrução, tornou-se uma importante“referência espiritual” para “disputar com o tráfico de drogas, transformar ereconstruir”, trajetórias juvenis por meio de atividades culturais5.

Depois de caracterizar o rap gospel e o rap sincrético, chegamos ao “rapfeito de salmos”. Suas letras foram consideradas distintas do “rap gospel” namedida em que não se vinculavam a uma missão ou denominações evangélicas.E, por outro lado, foram consideradas distintas do rap sincrético pois não faziamreferências aos santos, aos orixás, à “benção do padre” ou a outras autoridadesreligiosas. Caracterizavam-se por leituras inéditas da Bíblia relacionandolivremente seus salmos e versículos com os dramas sociais que pontuam suasvivências cotidianas.

As letras classificadas como “Rap feito de salmos” introduziam a Bíbliacomo matéria prima poética. A proliferação de edições baratas da Bíblia, o seualcance via internet, o trabalho religioso de grupos evangélicos com visibilidadecrescente nas praças, trens e a cada esquina favoreceram, naquele início demilênio, o acesso à Bíblia e sua apropriação pelos rappers. Estas letras explorarama fragilidade das fronteiras que separam o sagrado e o profano. Seguem algunsexemplos.

O CD dos Racionais, Sobrevivendo no Inferno, vendeu um milhão de cópias,e em sua capa aparece escrito: “Refrigere minha alma e guia-me pelo caminhoda justiça” – Livro dos Salmos, Salmo 23, cap.3". Na contracapa outra frasebíblica: Salmo 23, cap. 4 “e mesmo que eu ande no vale das sombras e da morte,não temerei mal algum porque tu estás comigo” (Novaes 2003).

Na vinheta falada na faixa “Gênesis”, do mesmo CD, pode-se ouvir “Deusfez o mar, as árvores, as crianças e o amor/O homem lhe deu favela, o crack,as armas, a bebida, as putas/Eu tenho a Bíblia e a pistola automática. Estoutentando sair desse inferno”.

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Na faixa Diário de um detento, ouve-se:

(...) O ser humano é descartável no Brasil/como Modess usado ouBombril (...)Rá-tá-tá-tá, sangue jorra como água/do ouvido, boca enariz/O senhor é meu pastor/perdoai o que seu filho fez/morreu debruços no Salmo 23/Sem padre, sem repórter, sem arma, sem socorro/Vai pegar HIV na boca do cachorro....

Em outra faixa, denominada Capítulo 4, Versículo 3, esclarece-se:

60% dos jovens de periferia, sem antecedentes criminais, já sofreramviolência policial; A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras;Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; Acada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo;Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.

Na imprensa os Racionais foram chamados de “Canudos Urbanos” e, entreestudiosos progressistas, indagou-se se a presença de referências religiosas, emletras de forte conteúdo social e político, poderia ser considerada uma “regressãoa Deus”, um expediente conformista, por si mesmo como incongruente com omundo da política Porém, a meu ver, para além da grande importância queCanudos e outros movimentos messiânicos tiveram em nossa história, a ideia de“regressão à Deus”, que supõe uma evolução linear entre percepção religiosa econsciência política, não contribuía para explicar a “produção cultural” daquelesjovens inconformados moradores das favelas e conjuntos habitacionais privatizadospelo tráfico e submetidos à violência e corrupção policial. Com efeito, asreferências bíblicas, com a força das ideias “fora do lugar”, tanto potencializama mensagem política imediata que estes rappers queriam transmitir, quantoexpressam na busca de Deus um “sentido” para suportar as “mazelas da sociedade”.Isso sem ordem de prioridade entre ação e cognição, representações e práticas.

Nesse cenário, classificar as letras destes raps tornou-se um exercício derelativização de pares de oposição e esquemas explicativos forjados em outrostempos e para outras sociedades, simples ou complexas. De fato, em suas letras,gírias, palavrões e estatísticas – ao lado de referências bíblicas – produziramuma rica e impactante complementaridade entre o sagrado e o profano, o eruditoe o popular, o sabido e o profético.

Passados esses anos, ao retomar essa classificação creio ser importanteatentar para outras mudanças no campo religioso, particularmente no meioevangélico. O continuum que classifica as letras entre o rap gospel, sincrético ou“feito de salmos”, já não dá conta do conjunto das letras que tenho analisadomais recentemente. Naquele momento, o rap “feito de salmos”, caracterizado

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pela ampliação do acesso à Bíblia, conectava-se com uma novidade na época,a saber, o aumento dos “religiosos sem religião”. O rap gospel, por sua vez, secaracterizava por seus vínculos a denominações pré-existentes ou constantementecriadas no mundo evangélico pentecostal. Hoje essas fronteiras ficaram cada vezmenos nítidas.

O pertencimento exclusivo e a assiduidade aos cultos já não podem servistos como o principal denominador comum do “ser crente”, do “ser protestante”6,do “ser pentecostal”7, “ser evangélico”. Existe hoje um segmento de jovens quepode ser classificado como “evangélico genérico”8. Estes jovens, além de játerem encontrado um mundo em que a equação ser católico/ser brasileiro jáestava desnaturalizada, também já cresceram naturalizando a presença de múltiplasigrejas evangélicas pelos quatro cantos do país, das cidades e em suas periferias.Se é verdade que tem crescido aquela “população flutuante”, tal comocaracterizada por Almeida (2006), é nessa paisagem que foram socializados osjovens das diferentes “periferias” que tenho pesquisado.

À primeira vista os “evangélicos genéricos” guardariam alguma semelhançacom os “católicos não praticantes” na medida em que ambos se definiriamsimplesmente como “evangélicos” ou como “católicos” e ambos não sãoencontrados regularmente nos cultos e missas. Contudo, a comparação ésimplificadora porque deixa de lado o peso da histórica hegemonia católica nasociedade brasileira e, assim, não leva em conta as características próprias dasvertentes cristãs não católicas que, como “minorias religiosas”9, foram provocandorupturas e conquistando adesões nesse país tantas vezes definido por suascapacidades sincréticas.

Deixando para outra ocasião as necessárias – mas complexas –comparações10, nos limites deste texto, o importante é levantar a hipótese deque essa possibilidade – ser evangélico genérico – deve ser levada em conta nasavaliações do lugar do pertencimento religioso na configuração do espaço público.

Afinal, trata-se também de uma possibilidade que modifica o peso daautoridade religiosa em decisões que dizem respeito à participação social. Comotem sido observado, há situações em que jovens deixam de participar de atividadesartísticas, ligadas à cultura afro-brasileira, em ONGs e Projetos governamentais,por conta de proibições de seus pastores. Assim como há relatos de pastores quecriam obstáculos para a inserção de jovens em espaços em que se valoriza adiversidade sexual ou onde se questiona a proibição do aborto. Alguns desistemde “participar” e outros mudam de pastor ou de denominação. Nesse cenário,definir-se apenas como “evangélicos” pode ser também uma outra maneira paracontornar conflitos e proibições. Reafirmando elos com este universo religioso,mas não se sentindo presos a denominações, jovens evangélicos (genéricos)inserem mais uma possibilidade no repertório dos modos de estar e se movimentarno espaço público.

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Desse ângulo, esse “evangélico genérico” não poderia ser visto apenas umconsumidor de bens ou serviços atualmente disponibilizados na mídia e em agenciasreligiosas reconhecidas pelo “estilo evangélico”. Esta explicação parece não darconta dos aspectos simbólicos e da produção de sentidos presentes tanto no chamado“consumo de bens religiosos” quanto nas maneiras de se apresentar e se envolver emdisputas e criar alianças no espaço público. Nesse sentido, voltando ao interior domovimento hip hop, é possível perceber que ali se gestou uma específica forma deconfluência entre religiões que se antagonizam na sociedade.

Como se sabe, os evangélicos demonizam as religiões afro-brasileiras e, aomesmo tempo, o movimento negro se preocupa com as repercussões negativas doavanço evangélico sobre manifestações da “cultura afro-brasileira” nas escolas enas comunidades. Certamente, esses pontos de conflito, sempre latentes, nãodevem estar ausentes no interior do movimento hip hop. Porém, e não por acaso,desde o ano de 2001, o Prêmio Hutus, considerado como o maior evento desteestilo do Brasil, incluiu o rap gospel como uma das categorias concorrentes11.

Em outras categorias disputam raps e personalidades que podem (ou não)sincreticamente evocar seus orixás, seus santos, suas igrejas e terreiros, quepodem (ou não) utilizar a Bíblia, ou outros livros sagrados, sem pertencimentoou controle institucional. Já o lugar de destaque do rap gospel naquele espaçode afirmação identitária de “jovens da periferia” revela o reconhecimento deuma categoria advinda do mundo da religião (gospel) e, ao mesmo tempo, umexpediente de neutralização das disputas mais acirradas que se dão no camporeligioso. Dessa maneira – na prática – no interior do hip hop amplia-se oescopo da assim chamada “cultura afro-brasileira”, via de regra identificadaapenas com as religiões de matriz africana. “Ser do rap” evoca “atitude” e esseelo identitário comporta/suporta a diversidade religiosa.

Nutrindo esse imaginário político específico – cujo slogan poderia ser“periferia é periferia em qualquer lugar”, como afirmou Mano Brown – essanarrativa de “unidade na diversidade” foi ganhando repercussões no espaçopúblico. O que ficou evidente, em janeiro de 2003, em Porto Alegre, Rio Grandedo Sul, durante o Fórum Social Mundial quando rappers, vindos de diferentesestados do Brasil, se reuniram para “se organizar”. Depois, ano após ano,representantes do “movimento hip hop” foram sendo cada vez mais requisitadosem outras edições do FSM e em outros eventos similares. Retomaremos esseponto mais adiante.

3 – Fóruns, Acampamentos, Conselhos, Marchas: moedas (de uso e detroca) na religião e na política

O mundo está marcado pelos processos que a globalização promove. Comojá foi dito, nem o todo, nem todos estão globalizados, mas processos e redes

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globais afetam o todo e a todos. Nesse contexto, visando incidir nas disputas do“espaço público internacional”, nasceu o Fórum Social Mundial (FSM).

Precedido por conexões internacionais nos encontros de Seatle, Gênova,nas ações “contra-cúpulas”, na Ação Global dos Povos, nos EncuentrosIntergalácticos dos Zapatistas, o FSM se propôs a desenvolver um processo

catalisador dos esforços e lutas acumuladas pelos movimentos sociais,sindicais, eclesiásticos e camponeses, de organizações civis e setorespolíticos populares a nível global como resistência ao modelocapitalista, enfrentamento ao neoliberalismo, em oposição ao FórumEconômico de Davos (reunião dos oito países mais ricos do mundo)12.

No âmbito do FSM, em 2001, surgiu o Acampamento Internacional daJuventude (AIJ). Isso porque, por um lado, havia a necessidade de ofereceralojamento em Porto Alegre para os jovens que iriam participar do FSM e, poroutro lado, entre jovens militantes havia a intenção de juntar forças para inserira temática da juventude nas pautas propostas pelo Fórum (Fischer et alli 2007).

No primeiro ano, segundo memória dos organizadores do Acampamento(idem), o acesso ao Acampamento esteve subordinado a inscrições dasorganizações da sociedade civil às quais os jovens estivessem ligados. Mas, apartir do 2º Acampamento, já criado um “Comitê Organizador da Juventude”,evitando uma lógica de organização verticalizada, que prevalece no mundo dapolítica, chegou-se a uma proposta mais horizontal que, além de representaçõesde grupos, movimentos e organizações conhecidas, acolhesse também indivíduose outros tipos de grupos até então considerados “não políticos”.

No terceiro ano, ganhou força a ideia de fazer do Acampamento um“espaço plural e autogestionado”. Como diz André Mombach um dos jovensorganizadores: “Em 2003 soubemos fazer da diversidade a nossa maior força”13.Segundo descrição de Fischer et elli (idem), nos primeiros anos no Acampamento“destacavam-se jovens ligados aos movimentos internacionais anticapitalistas,movimentos sociais, estudantil e independentes, juventudes partidárias,juventudes ligadas a pastorais e igrejas, grupos e expressões culturais”. A descriçãodos anos seguintes é menos concisa: lá estavam

intelectuais, militantes, poetas, loucos, mochileiros, turistas e curiosos,os estudantes universitários, os festeiros, os engajados, os artistas, osmísticos, ‘pastoralistas’ e religiosos, os jovens da periferia, do Hip-Hop, os meninos e meninas de rua, os rebeldes, os punks eanarquistas (idem:26).

Dessa maneira, foram se intensificando as situações de convivência entre

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os tradicionais documentos e panfletos políticos e os rituais místicos, cantos,celebrações, manifestações culturais, sons de vários estilos e modalidades. Aopor do sol, nas margens do Rio Guaíba, as cerimônias místicas/políticas contaramcom a presença significativa de jovens não só de pastorais engajadas, católicasou evangélicas, mas também de religiões de matriz afro-brasileira, orientais eesotéricas.

Certamente, no decorrer dos anos, no Acampamento, surgiram conflitosinternos e externos que merecem ser conhecidos e analisados14. Porém, tambémchama a atenção o seu modo de funcionamento, organização e gestão, comsistemas de segurança, alimentação, comércio solidário, espaços bioconstruídose plano diretor de ocupação dos espaços. Também o ideário ecológico e abandeira por software e hardware livre foram ganhando crescente destaque nasedições do Acampamento Internacional da Juventude.

Pesquisadores (Fischer et elli 2007), estudando a edição de 2005 doAcampamento Internacional da Juventude, destacam alguns espaços pelos quaisos jovens circulavam. O Espaço Lògún Ede onde ganhou visibilidade a discussãoda temática sobre homossexualidade e diversidade sexual, sexismo efundamentalismo. O Espaço Ernesto Che Guevara voltado para discussão e aplicaçãode práticas alternativas de saúde e construção de novas políticas nesta área. ACidade Hip-Hop para congregar rappers vindos de todo o país. A Tenda Kairóse o Espaço Interreligioso surgiram para abrigar iniciativas de diálogo e vivênciasinter-religiosas. Ou seja, os espaços religiosamente motivados ganhavam sentidojustamente por estarem ao lado de outros com outras motivações ou causas.

Naquele contexto, a quem interessaria demarcar as fronteiras entremanifestações religiosas e políticas? De fato, no Fórum Social Mundial e noAcampamento Internacional da Juventude, a diversidade cultural tornou-se umaindispensável moeda política. A eficácia desta moeda aumentava na medida emque, naquele espaço, tornava-se possível – “sem pudores ou ocultações” (Pace1997) – relativizar as clássicas definições que separam o religioso e o político.A categoria “diversidade” se tornou assim um amálgama essencial para possibilitara existência do evento e garantir suas repercussões no espaço público. Entre asrepercussões da experiência do Acampamento Internacional da Juventude – navisão de vários jovens entrevistados – tem sido contabilizada a criação, em 2005,da Política de Juventude, e mais particularmente do Conselho Nacional deJuventude (Conjuve).

Certamente existem muitos outros fatores que determinaram a criação dachamada Política Nacional de Juventude. Contudo, é possível afirmar que aexibição da “diversidade de grupos juvenis” durante as edições do Fórum SocialMundial, em Porto Alegre, teve repercussões na composição do Conjuve15. Emsua primeira composição, em 2005, além das representações do movimentoestudantil e de jovens sindicalistas, foram convidados para compor o Conjuve:

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representantes do movimento Hip hop, jovens feministas e movimentos LBGT,assim como movimentos e grupos católicos, evangélicos, entre outros. Com opassar dos anos, em todas eleições para o Conjuve, para compor a “representaçãodos grupos religiosos”, concorrem diversos grupos16. Assim, no âmbito do ConselhoNacional da Juventude, e também durante as duas edições da ConferênciaNacional de Políticas Públicas de Juventude, a dimensão religiosa tem motivadoparticipação de jovens na busca de “direitos dos jovens”.

Nos espaços onde se demanda “Políticas Públicas de Juventude” encontram-se jovens das Pastorais de Juventude Católica e dos grupos evangélicos dediferentes denominações e movimentos (como a Rede FALE e Aliança BíblicaUniversitária), movimentos de jovens negros que reavivam referências religiosasde matriz africana (como do movimento denominado “Povos dos Terreiros”,grupos de Hip Hop, coletivos de juventude negra), jovens de diferentes gruposétnicos que reivindicam direitos acionando cosmologias religiosas (tais comopovos indígenas e ciganos); jovens que destacam a espiritualidade no seuengajamento em lutas ambientalistas; jovens que participam de redes emovimentos ecumênicos e inter-religiosos que se envolvem em lutas contra aviolência e pela paz. No Conselho e nas Conferências de Juventude – duasmodalidades previstas no modelo da almejada democracia participativa – jovens,religiosamente motivados, são vistos como parte da “sociedade civil organizada”.

Por outro lado, é importante sublinhar ainda, o papel das novas tecnologiasde informação e comunicação na própria caracterização de “sociedade civil”.Certamente, as chamadas TICs podem (re)produzir as mais severas formas dedesigualdades sociais, segregação, individualismo e consumismo. Mas, também,têm produzido expedientes que favorecem a comunicação e a identificaçãoentre jovens, gerando coletivos virtuais, quebrando isolamentos, ampliando aspossibilidades de ações e disseminação de causas sociais e modificando as relaçõesentre elas.

Vejamos um exemplo. Recentemente, no dia 26 de maio de 2012, váriosjornais anunciaram a segunda edição da “Marcha das Vadias” em várias cidadesdo Brasil. Para quem não sabe, o movimento mundial intitulado “Slut Walk”começou em 2011, após um oficial da polícia de Toronto, no Canadá, dizer que,para evitar estupros, as mulheres deviam deixar de “se vestir como vadias”. Omovimento mobilizou segmentos juvenis e se espraiou via internet. Em seusprotestos contra o machismo as mulheres usam roupas provocantes e criamperformances engraçadas e irreverentes.

Recentemente, ao observar a “Marcha das Vadias” em Copacabana noRio de Janeiro pude também observar, naquele espaço de “unidade nadiversidade”, consideráveis espaços para a heterogeneidade. No momento emque um grupo gritava slogans a favor do aborto em frente a uma Igreja Católica,não pude deixar de observar algumas jovens que se apresentavam como da

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“Comunidade Betel” do Rio de Janeiro17 – e carregavam cartazes dizendo “sou cristãe sou lésbica, pela diversidade sexual” –, não se aproximaram da Igreja Católica.Não sei se elas ficaram esperando porque estavam cansadas, se não quiseram seaproximar da Igreja Católica por questões religiosas ou por tática política de evitarprovocações ou se era a palavra de ordem a favor do aborto que justificava estaespera quase que em separado do grupo maior. Só sei que quando a Marcha seguiuaté a Delegacia de Polícia, como estava na programação distribuída, elas sereincorporaram à Marcha. Não me senti à vontade para perguntar. Mas esse exemplo,que expõe a conhecida segmentação evangélica, também demonstra diferenças quenão são anuladas no interior de espaços de participação civil, particularmentequando essa participação é religiosamente motivada.

E essa questão nos leva ao controverso tema da “identidade”. Pesquisasrecentes têm demonstrado que, em suas atuações no espaço público, os jovenssomam “causas”, sobrepondo diferentes identidades. Múltiplas causas eexperiências de discriminação podem se somar na vida de um mesmo jovem (serjovem, ser negro, ser favelado, ser homossexual, ser mulher, ser lésbica e “sercristã”...). A predominância de uma identidade sobre outra ou a combinação deidentidades e causas não acontece em abstrato, mas em processos sociais etrajetórias individuais concretas. Daí a necessidade de evitar esquemasempobrecedores que se ancoram em substantivação de identidades como sefossem únicas e fixas.

Um outro exemplo. Dessa vez para ilustrar o uso das ideias de diversidadee identidade na seara da Igreja Católica. Recentemente, no jornal O Globo,uma notícia na página 3, chamou minha atenção. A notícia reproduzia o cartazdo grupo Gays Cristãos, que contém: a) uma ovelha cor de rosa como o símbolodo grupo; b) uma frase em letras maiores: “o amor de Cristo nos uniu”; c) outrafrase com letras menores: “gays na Igreja Católica”; c) a logomarca do grupo, nocanto esquerdo, uma espécie de cruz estilizada com os dizeres “diversidadecatólica”. Segundo a colunista: seus integrantes se definem como “leigos católicosque entendem viver duas identidades aparentemente antagônicas: ser católicoe gay, incluindo a diversidade sexual”. O primeiro encontro, semana passada,marcou o inicio de uma série de reuniões para “unir católicos em comunhãocom o mundo GLS” (O Globo, 9 de junho, 2012).

Nessas circunstâncias, o que vem a ser diversidade católica? Não tenhoelementos para responder a essa pergunta. Mas, pela maneira que a expressãofoi usada na logomarca do grupo, fica claro que se trata de uma moeda simbólicaque tem valor nos embates, internos e externos à Igreja Católica. Tanto nessecaso, no qual se busca “unir católicos em comunhão com o mundo GLS”, comoem outros exemplos acima citados, trata-se de investigar por que, como e emquais circunstâncias do debate público as identidades religiosas são naturalizadase passam desapercebidas, ou são ocultadas ou acionadas.

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4 – Entre jovens mobilizados: o “mantra” e o “direito” à diversidade

Podemos agora indagar sobre o atual estado do pluralismo religioso nasociedade brasileira. É verdade que nos dados censitários o pluralismo é poucoevidente. Nas estatísticas prevalecem majoritariamente as religiões cristãs(primeiramente católica e, em segundo lugar, evangélica). Também é verdadeque em várias situações são (re)confirmados conhecidas hierarquias do camporeligioso brasileiro.

Por exemplo, no que diz respeito ao estabelecimento do calendário cívico,a (ainda considerável) hegemonia católica logra estabelecer novos feriados e aemergente influência evangélica chega no máximo (até o presente momento) aestabelecer dias comemorativos (Pitrez 2012). Já as decisões tomadas, no estadodo Rio de Janeiro, sobre o ensino religioso nas escolas públicas fizeram confluirinteresses católicos e evangélicos (Giumbelli e Carneiro 2004) submetendo osinteresses de outras religiões. Por outro lado, quando estão em jogo definiçõessobre o patrimônio cultural brasileiro, os evangélicos é que saem de cena. SegundoClara Mafra, enquanto agentes de outras religiões, em especial, católicos e afro-brasileiros, investiram em negociações e subordinações do “religioso” ao “cultural”– como estratégia de ganho em termos de reconhecimento e de legitimidadesocial via inclusão de si no leque da diversidade cultural que compõe a nação– “os evangélicos tendem a desenvolver relações externalistas com as políticasculturais propostas pelo Estado e por agências transnacionais de aporte secular”(Mafra 2011).

Nesses exemplos podemos perceber que o “leque da diversidade culturalque compõe a nação” ganha e/ou perde visibilidade, legalidade e apoio do poderpúblico de acordo com diferentes disputas e alianças no campo religioso e nocampo político. Contudo, a meu ver, para além das estatísticas e visibilidade noespaço público, para perceber ampliação do pluralismo no interior do camporeligioso é preciso olhar, mais atentamente, para as relações entre gerações. Namedida em que diminui a transmissão religiosa intergeracional, e aumentam asfamílias multireligiosas, modificam-se as maneiras socialmente disponíveis paralidar com a questão da diversidade religiosa.

Em entrevistas que realizei recentemente, jovens negros na Bahiaestranharam o “estranhamento” da pesquisadora que insistia em indagar sobreconflitos na convivência entre pais evangélicos e filhos do candomblé e viceversa. Algo similar aconteceu quando, também recentemente, entrevistei umjovem católico que organiza uma festa de São Sebastião no interior do Rio deJaneiro e em casa convive com a mãe evangélica da Igreja Universal do Reinode Deus, com o pai do candomblé e seus irmãos budistas... Pelas respostasobtidas, pode-se afirmar que, nesses contextos familiares, os laços afetivos secombinam com argumentos que remetem à noção de “diversidade” enfraquecendo

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certas disposições para intolerâncias e sectarismos. “Tem que respeitar”, “cadaum tem direito de escolher”, “é o caminho dele”, “não pode ter preconceito”,são frases recorrentes que parecem indicar um “impacto prático” da disseminaçãodesse slogan. O que não quer dizer que, tanto no espaço doméstico como noespaço público, não existam situações de conflito em que essas fissuras – ao ladode outras – deixem de ser acionadas. Mas, ainda assim, a categoria “diversidade”permanece no estoque de argumentos socialmente disponível para produzirdisputas, convivências e alianças.

Nessa perspectiva, a análise de Birman (2006) sobre a noção de“espiritualidade” nos eventos da ECO-92 e no interior do MIR (MovimentoInter-Religioso), criado na mesma ocasião, é reveladora. Diz o texto:

A noção de espiritualidade, amplamente utilizada na ECO 92 e,após, em todos os desdobramentos das atividades do MIR, possibilitouuma passagem do afro-brasileiro para um novo campo de sentidos.Neste novo campo, os elos do “afro” com a sociedade abrangentenão serão mais pensados através de uma cultura nacional que teriauma base africana, fundamentada no candomblé. O afro se transformaem uma “tradição” entre outras em escala global: a imagem domundo é construída por meio de uma constelação de “tradições”,basicamente religiosas (ainda que algumas vistas como étnicas) –que explicam a sua diversidade por um lado e seus conflitos poroutro (Birman 2006:202).

E, referindo-se particularmente à vigília inter-religiosa que ocorreu durantea ECO-92, continua a mesma autora: “nesta, as tradições presentes aceitaramo conceito de ‘Unidade na Diversidade’ e sentiram a importância de acabar comos preconceitos e a incompreensão, levando o MIR para uma esfera mais ampla(..)”. Concluindo, Birman destaca: “a diversidade como valor possibilita abrirum novo campo de negociações para a defesa do candomblé, em nome datolerância e da paz entre os povos” (idem:203).

Certamente a abertura deste “novo campo de negociações” não foi osuficiente para eliminar, nos anos seguintes, sectarismos e certas “guerras santas”(presenciais, radiofônicas ou televisivas). Contudo, tais expedientes não parecemestar mais entre as principais estratégias para recrutar fiéis e lotar certas Igrejas.O que, em certa medida, também está relacionado com as mudanças no espaçopúblico onde a referência aos “direitos humanos” ganha espaço e justifica aemergência de demandas por dispositivos legais para conter discriminações,inclusive religiosas. Nesse contexto, a dimensão religiosa se recoloca justamentena confluência entre os chamados “direitos de cidadania” e os “direitos humanos”,antes pertencentes a áreas e a narrativas bem destacadas.

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Com efeito, frutos de disputas e conquistas sociais, cada geração de direitospropiciou historicamente a emergência da outra. A primeira geração se refereaos direitos civis e políticos dos indivíduos. Estes direitos visam garantir a democraciapolítica, o direito à propriedade, a resistência à opressão e a segurança e têmcomo fundamento a liberdade. A segunda se refere aos direitos econômicos, sociaise culturais. Remetem à educação, cultura, à previdência social, às garantiastrabalhistas e liberdade sindical, seu fundamento é a igualdade. Já a terceira,produto de acordos internacionais, refere-se aos direitos difusos. Estes últimos secaracterizam pela consagração de direitos de incidência coletiva e dizem respeitoa grupos específicos (mulheres, jovens, negros, migrantes), à garantia de Paz, aodesenvolvimento, ao cuidado com o meio ambiente e ao patrimônio comum dahumanidade. Remetem à valorização da diversidade e seu fundamento é asolidariedade.

Cada vez mais acionados no discurso de diferentes atores, os “direitoshumanos”, como se costuma dizer, “caíram na boca do povo”. São os vilões paragrupos e indivíduos que se sentem ameaçados frente a iniciativas “do pessoaldos direitos humanos” consideradas por eles complacentes com “os pobres, osbandidos e os criminosos”. Mas, ao mesmo tempo, a referência aos direitoshumanos produziu uma espécie de “esperanto” capaz de fornecer uma chave deleitura comum para diferentes segmentos juvenis que levam demandas dedistribuição, de reconhecimento ou de participação ao espaço público18.

Tais demandas contemplam uma avaliação de suas “condições objetivas”de vida (evocando, sobretudo, mais igualdade) e derivam de vivências subjetivasde discriminação (evocando solidariedade e o direito à diversidade). Em outraspalavras, para os jovens mobilizados de hoje, dívidas históricas (“direitos decidadania”) se combinaram com outras tantas ausências advindas dos processosde segregação espacial, discriminação social e degradação ambiental. Nessascircunstâncias, além ser convocado para implantar políticas de redução dedesigualdades sócio-econômicas, o Estado é chamado para atuar na área dos“direitos humanos” reconhecendo “atores e territórios vulnerabilizados”, criandoleis e serviços para a denúncia e a punição de discriminação racial, de violênciacontra a mulher, de discriminação por orientação sexual e, também, dediscriminação religiosa. Assim, a partir de pressões surgidas no espaço público,os governos também são convocados para criar serviços e canais jurídicos paraa denúncia de discriminação e perseguição religiosa. Nesse contexto, para alémde garantia de “liberdade de culto”, o Estado laico é convocado para criarcanais de reconhecimento e garantia do “direito à diversidade religiosa”.

Trata-se, de fato, de movimentos de mão dupla que produzem novosruídos, fluxos e confluências entre diferentes dimensões da vida social. Algunsexemplos foram relatados no decorrer desse texto. O Prêmio Hutus, oAcampamento Internacional de Juventude, o Fórum Social Mundial, a Marcha

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das Vadias, gestados no âmbito da chamada “sociedade civil”, envolveram gruposreligiosos que se fortaleceram ostentando sua “diversidade”. O Conselho Nacionalde Juventude (Conjuve) e as Conferências Nacionais de Políticas Públicas deJuventude, espaços gestados no âmbito do poder público federal, se legitimaramconvocando a “juventude em sua diversidade”, inclusive religiosa. Essas iniciativasdevem ser compreendidas como parte de um mesmo processo de pressões,negociações e mudanças, no qual a ideia de “diversidade” (cultural e religiosa)– por meio da chave de leitura “direitos humanos” – passou a ser moeda de usoe de troca no espaço público.

Certamente em uma época de inocência perdida já não se trata de apenascelebrar o “respeito à diversidade” (que, em certas circunstâncias, como já foidito, pode significar apenas preservar, manter distante, isolar grupos e culturas).Assim como não é o bastante afirmar a versão mais atual, politicamente correta,na qual se substitui o verbo “respeitar” por “valorizar”. Embora a “valorização dadiversidade” traga consigo a ideia de enriquecimento mútuo, e seja mais dinâmicaindicando a produção contínua de diferenças, ela também pode ser apenas um“mantra” que, por si, não modifica relações de poder no espaço público. Comefeito, é preciso aproximar esse mantra da área dos direitos, sem esquecer quetambém nesse caso trata-se de um campo de disputas.

Referindo-se à América Latina, Grimson lembra que:

en la extensa época de formación de los estados nacionales, lasnarrativas homogeneizantes postulaban que cada país tenía unacultura y una identidad. Este imaginario estaba vinculado a unaconcepción del desarrollo, que sólo podía desplegarse evitando losobstáculos culturales. Esos obstáculos eran las alteridades “internas”que no adoptaban, siempre y para todo, los valores productivistascomo único criterio de constitución e ilusión comunitaria (...)Después de ese nacionalismo homogeneizante, sin embargo, se impusouna nueva concepción, bastante extendida en la región, queacompañó las nuevas políticas neoliberales con el multiculturalismo,desde pequeñas insinuaciones en algunos países, hasta reformasconstitucionales en otros. La construcción clásica de hegemonía,que incluía alguna ilusión de ciudadanía universal con un relatocultural homogenizador, se había roto. Entrábamos a la época de lasidentidades múltiples, fragmentarias, particulares, muy útiles alproyecto de deconstruir los estados como un todo. Si el primermodelo le otorgaba a veces a la nación y otras a la clase unaprelavencia supuestamente objetiva para el cambio social, elneoliberal y posmoderno le otorgaba el predominio a la multiplicidad(2011:7).

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A partir dessa contextualização histórica, o autor afirma que o

reconocimiento de diferencias culturales no tiene un valor ético-político esencial, sino que su sentido depende de la situación social.El problema surge cuando distintos sectores entablan una disputasobre las valoraciones y consecuencias de unas diferencias que seconsideran autoevidentes. Sin embargo, la diversidad no debecomprenderse como un mapa esencializado y trascendente dediferencias, sino como un proceso abierto y dinámico, un procesorelacional vinculado a desigualdades y relaciones de poder (idem:13).

O mesmo pode ser dito sobre a questão da diversidade religiosa quetambém se configura em um processo relacional. Se é verdade que hoje tantoas grandes religiões mundiais quanto as novas religiosidades têm sidocircunstancialmente impelidas a se apresentar no espaço público por meio demensagens e ações contra sectarismos e fundamentalismos e em defesa da paz,dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental, isto não parece significarqualquer ameaça de “religiogização da política”. Gestadas na sociedade civil,tais iniciativas só tem sentido na medida em que partem da afirmação docaráter laico do Estado. No Brasil é, justamente, no reconhecimento do caráterrepublicano e secular do Estado que reside tanto a possibilidade de que lhe sejaatribuído o papel de “guardião de nossa diversidade”, quanto a possibilidade deque os posicionamentos de diversos grupos religiosos – ao lado de outros atorespolíticos – possam incrementar dinâmicas e disputas no espaço público.

Por outro lado, “a politização de categorias religiosas”, por parte dedeterminados segmentos juvenis que declaram “lutar por direitos”, não dependesó da vontade do observador, dos ideais republicanos dos cientistas sociais ou doque foi escrito por autores clássicos de nossas disciplinas. Aos antropólogos e aossociólogos da religião de hoje cabe, por obrigação profissional, compreender taisdeslocamentos e confluências como parte da realidade que se quer conhecer.

No contexto, bem delimitado deste artigo, pode-se dizer que certasapropriações da noção de “diversidade religiosa” e de “direitos humanos” produzemefeitos de renovação do fazer político e justificam presenças de jovensreligiosamente motivados nos embates que se dão no espaço público. Trata-seagora de dialogar e se reapropriar do legado da literatura sociológica eantropológica que identificou clássicos pares de oposição (sagrado/profano;religioso/civil; público/privado; individual/coletivo), buscando identificar os fluxoscomunicacionais entre esses polos. Bem como, trata-se também de buscar outrascategorias e costuras explicativas que nos aproximem um pouco mais daexperiência social dos jovens desta geração.

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Notas

1 As ideias contidas neste trabalho foram apresentadas no Encontro Anual da ANPOCS de 2011,em Mesa Redonda organizada por Cristina Pompa, a quem agradeço o convite e a oportunidadede instigante discussão acadêmica com Paula Montero e Patrícia Birman. Para Patrícia registrotambém um particular e afetuoso agradecimento pelas contribuições e leitura crítica deste artigo.

2 Desta vez participei de uma pesquisa coordenada pelo NER da UFRGS, envolvendo váriasuniversidades brasileiras. Ver DEBATES DO NER (2001). Para um cuidadoso balanço destaspesquisas, ver Camurça e Tavares (2004).

3 Sobre as demais características do movimento hip hop, ver Novaes (1999 e 2003). Nos últimosanos, como estilo musical, o rap está presente em outros espaços e entre outros grupos sociais. Mas,ainda, se vê e é visto como a expressão maior da chamada “cultura de periferia”.

4 A mensagem é praticamente a mesma, mas as músicas não são necessariamente parecidas. O rapgospel tem influências estéticas do rap alternativo, do R&B, do dirty south, do rock e até do gangstarap.

5 Recentemente entrevistei uma jovem negra, criada por mãe católica, que relatou como, buscandopela internet, iniciou-se em praticas esotéricas de tradição lusitana. Depois de um tempo de buscase experimentações religiosas virtuais, hoje ela está ligada a um espaço local liderado por um “mestre”baiano, onde se “faz um trabalho” de aproximação entre figuras míticas e princípios da “bruxaria”,ligada ao esoterismo europeu, da ancestralidade dos orixás. Verifica-se aí uma possibilidade desincretismo “nova era”.

6 Mendonça (2006) menciona o “cansaço religioso” como causa que levaria fiéis protestantes aenfraquecerem vínculos institucionais.

7 Almeida (2006:112/3) chamou a atenção para a “circulação de ideias e práticas evangélicas pra alémdas fronteiras institucionais” e para flexibilidade do vínculo institucional para uma populaçãoflutuante que “se serve” da religiosidade pentecostal. O autor caracterizou um “pentecostalismo deserviços”, uma espécie de “magia de matriz cristã”, que abre a possibilidade do pentecostalismoaparecer como segunda religião e que, também, introduz certa tolerância no interior das igrejaspentecostais.

8 Esta expressão foi cunhada a partir do uso corrente de “remédio genérico”.9 Para uma sugestiva análise sobre “minorias religiosas” ver Giumbelli (2006).10 Para aprofundar o assunto deveríamos levar em conta os contextos e as estratégias de apresentação

social em jogo quando alguém responde “qual é a sua religião?”.11 As demais categorias correspondentes foram: personalidade hip hop; produtor musical; melhor

música; melhor álbum; melhor DJ; melhor demo; veículo de comunicação; gravadora ou selo; melhorvídeo clip; melhor grupo feminino; revelação do ano; melhor grupo. Após dez anos o prêmio Hutusdeixou de existir em 2011. Em 2007 o Ministério da Cultura criou o Premio Hip Hop Brasil.

12 Ver documento oficial de fundação do Fórum Social Mundial citado por Fischer et alli (2007).13 Naquele ano de 2003, o Fórum Social Mundial, por vezes definido como “Woodstock da Cidadania”,

realizado em Porto Alegre, entre 23 e 28 de janeiro, reuniu 100 mil pessoas e mais de 5 milorganizações não-governamentais de 156 países. Através de painéis, conferências, workshops,testemunhos, atividades culturais e diálogos informais. A mídia enviou 4.094 jornalistas de mais de51 países para divulgar o Fórum ao redor do mundo.

14 Ver Fischer et alli (2007) onde os autores analisam conflitos entre diferentes grupos de jovens; entreacampados e a polícia da cidade de Porto Alegre; entre os organizadores e grande mídia.

15 O Conjuve foi criado em 2005 e reúne 1/3 de representantes do poder público e 2/3 de grupos,movimentos e redes de jovens ou que trabalham com jovens.

16 Ver Rodrigues (2012) para uma sugestiva ideia sobre um possível “efeito Conjuve” no campo dasjuventudes religiosas. A autora lembra que, em um primeiro momento, o reconhecimento doengajamento político justificou a presença de jovens religiosos no Conjuve (por exemplo, os jovens

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da Pastoral da Juventude e da Aliança Bíblica Universitária do Brasil). Depois, uma vez definidas“cadeiras” para candidaturas de “juventudes religiosas”, outras organizações juvenis religiosas passama disputar essas vagas, pelo simples fato de aglutinarem jovens, independentemente do tipo de açõesque desenvolvem no campo social ou no espaço público. Resta analisar quais as repercussões destaparticipação seja no próprio Conjuve, seja nos espaços religiosos de onde vêm estes jovens.

17 Segundo consulta na internet: “A Comunidade Betel do Rio de Janeiro, filiada às Igrejas daComunidade Metropolitana (ICM), é uma Igreja Inclusiva, onde LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAISE TRANSGÊNEROS são bem vindos e não discriminados pela sua orientação sexual. Nós afirmamosque A BÍBLIA NÃO CONDENA A HOMOSSEXUALIDADE e que ‘Deus não faz acepção depessoas’ (At 10.34). A Comunidade Betel é também uma Igreja que rejeita o fundamentalismobíblico, o legalismo cristão e doutrinas religiosas opressoras como a Teologia da Prosperidade. Quersaber mais sobre nós, nossas visões e crenças? www.betelrj.com”. Consultado em 30 de maio de2012.

18 A consigna da II Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juventude, realizada em Brasília emdezembro de 2011, foi “Conquistar direitos e desenvolver o Brasil”. Os eixos do documento-baseforam: 1) Direito ao desenvolvimento integral (Trabalho, Educação, Cultura e Comunicação); 2)Direito ao território (Povos tradicionais, Jovens Rurais, Direito à Cidade, ao Transporte, ao Meioambiente); 3) Direito à experimentação e qualidade de vida (saúde, esporte, lazer e tempo livre);4) Direito à diversidade e vida segura (segurança, diversidade e direitos humanos); e 5) Direito àparticipação. A religião aparece no eixo 4 entre as diversidades sujeitas a discriminações e quesuscitam políticas públicas específicas.

Recebido em dezembro de 2011Aprovado em março de 2012

Regina R. Novaes ([email protected])Antropóloga, com graduação em Ciências Sociais no IFCS-UFRJ; mestradoem Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutorado em CiênciasHumanas pela USP. Foi professora do IFCS-UFRJ, atualmente é pesquisadorado CNPq, desenvolvendo o Projeto Juventude, Religião e Política e, também, éConsultora da UNESCO para a Agenda Juventude.

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Resumo:

Juventude, religião e espaço público: exemplos “bons para pensar”tempos e sinais

Com o objetivo de refletir sobre determinadas confluências entre as dimensões políticase religiosas da vida social contemporânea, o artigo retoma informações de pesquisasrealizadas pela autora entre segmentos de jovens brasileiros que – de maneiras diversas– se apresentam no espaço público por meio referências, valores ou identidades religiosas.Sem minimizar o hiato existente entre as retóricas e as ações práticas do poder públicoe reconhecendo sobreposições identitárias nas estratégias de apresentação social, noâmbito da chamada sociedade civil, o artigo discute algumas das (re)apropriações danoção de direitos humanos e diversidade cultural (e religiosa) entre jovens que hojese movem em espaços da ciência, da cultura e da política, suscitando reinvenção deconceitos e novas costuras explicativas.

Palavras-chave: geração, diversidade religiosa, política.

Abstract:

Youth, Religion and public space: examples “good to think” times andsigns

In order to reflect on certain confluences between religious and political dimensionsof contemporary social life, the article incorporates information from researches conductedby the author between segments of young Brazilians that – in different ways – projectyourselfs in public space through religious references, values or identities. Withoutminimizing the gap between the rhetoric and the practicalities of government andrecognizing identity overlap in the strategies of social presentation in the context of thecivil society, the article discusses some of the (re)appropriations of the concept of humanrights and cultural (and religious) diversity among young people wich moves today inspace of science, culture and politics, inspiring reinvention of new concepts andexplanatory seams.

Keywords: generation, religious diversity, politics.