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valen te gu erreiro d o C l d o T ro v o , em d esven d ar ... · E ste vo lu m e m o stra a d eterm in a o d e C o ra o d e F o go , ago ra u m valen te gu erreiro d o C l d o T

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Este volume mostra a determinação de Coração de Fogo, agora um valente guerreiro do Clã do Trovão, em desvendar a verdade sobre a misteriosa morte de Rabo Vermelho, o antigo representante do Clã do Trovão.Ao procurar respostas, no entanto, Coração de Fogo desvenda segredos que, para muitos, seria melhor se ficassem ocultos. O determinado guerreiro descobre, ainda, que é cada vez mais difícil saber em quem realmente confiar.

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ASALIANÇAS

clãdotrovão

LÍDER ESTRELAAZUL–gataazul-acinzentada,defocinhoprateado.

REPRESENTANTE GARRA DE TIGRE – gatãomarrom-escuro, de pelomalhado, comgarrasdianteirasexcepcionalmentelongas.

CURANDEIRA PRESA AMARELA – velha gata de pelo escuro e cara larga eachatada,queantesfaziapartedoClãdasSombras.

APRENDIZ,PATADECINZA–GATACINZA-ESCURO

GUERREIROS (gatosegatassemfilhotes) NEVASCA–gatãobranco. APRENDIZ,PATABRILHANTE

RISCADECARVÃO–gatodepelomacio,malhadodepretoecinza.

RABOLONGO–gatodepelodesbotadocomlistaspretas.

APRENDIZ,PATALIGEIRA

VENTOVELOZ–gatomalhadoeveloz.

PELE DE SALGUEIRO – gata cinza-claro, com excepcionais olhosazuis.

PELODERATO–pequenagatadepelomarrom-escuro.

APRENDIZ,PATADEESPINHO

CORAÇÃODEFOGO–belogatodepeloavermelhado.

APRENDIZ,PATADENUVEM

LISTRACINZENTA–gatodelongopelocinza-chumbo.

APRENDIZ,PATADESAMAMBAIA

PELAGEMDEPOEIRA–gatomalhadoemtonsmarrom-escuros.

TEMPESTADEDEAREIA–gatadepeloalaranjado.

APRENDIZES (com idade superior a seis luas, em treinamento para setornaremguerreiros)

PATALIGEIRA–gatopretoebranco.

PATADESAMAMBAIA–gatomalhadoemtonscastanhos.

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PATADENUVEM–gatobranco,depelolongo.

PATABRILHANTE–gatabranca,cobertademanchasalaranjadas.

PATADEESPINHO–gatomalhadoemtonscastanhos.

RAINHAS (gatasqueestãográvidasouamamentando)

PELEDEGEADA–combelíssimopelobrancoeolhosazuis.

CARARAJADA–bonitaemalhada.

FLORDOURADA–peloalaranjadoclaro.

CAUDASARAPINTADA–malhada,corespálidas,arainhamaisvelhadoberçário.

ANCIÃOS (antigosguerreiroserainhas,agoraaposentados)

MEIORABO–gatãomarrom-escuro,semumpedaçodacauda.

ORELHINHA – gato cinza, de orelhasmuito pequenas; gatomaisvelhodoClãdoTrovão.

RETALHO–pequenogatodepelopretoebranco.

CAOLHA – gata cinza-claro, membro mais antigo do Clã doTrovão,praticamentecegaesurda.

CAUDA MOSQUEADA – gata atartarugada, belíssima em outrostempos,combonitopelosarapintado.

CAUDA PARTIDA – gato malhado de marrom-escuro, pelo longo;cego,antigolíderdoClãdasSombras.

clãdassombras

LÍDER MANTODANOITE–gatopreto.

REPRESENTANTE PELOCINZENTO–gatocinzentoemagro.

GUERREIROS CAUDATARRAXO–gatomalhado,marrom.

APRENDIZ,PATAMARROM

PÉMOLHADO–gatomalhadodecinza.

APRENDIZ,PATADECARVALHO

NUVENZINHA–gatobempequeno,malhado.

RAINHAS NUVEMDAAURORA–pequenagatamalhada.

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FLORDOANOITECER–gatapreta.

PAPOULA ALTA – gata malhada em tons de marrom-claro, delongaspernas.

clãdovento

LÍDER ESTRELAALTA–gatobrancoepreto,decaudamuitolonga.

REPRESENTANTE PÉMORTO–gatopretocomumapatatorta.

CURANDEIRO CASCADEÁRVORE–gatomarrom,decaudacurta.

GUERREIROS GARRADELAMA–gatomalhado,marrom-escuro.

APRENDIZ,PATADETEIA

ORELHARASGADA–gatomalhado.

APRENDIZ,PATAVELOZ

BIGODERALO–jovemgatomalhado,marrom.

APRENDIZ,PATAALVA

RAINHAS PÉDECINZAS–gatadepelocinza.

FLORDAMANHÖgataatartarugada.

clãdorio

LÍDER ESTRELATORTA–gatoenorme,depeloclaroemandíbulatorta.

REPRESENTANTE PELODELEOPARDO–gatadepelodouradoemanchasincomuns.

CURANDEIRO PELODELAMA–gatodepelolongo,cinza-claro.

GUERREIROS GARRANEGRA–gatonegro-acinzentado.

APRENDIZ,PATAPESADA

PELO DE PEDRA – gato cinza com cicatrizes de batalhas nasorelhas.

APRENDIZ,PATADESOMBRA

VENTRERUIDOSO–gatomarrom-escuro.

APRENDIZ,PATADEPRATA

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ARROIODEPRATA–gatamalhadadeprateado,bonitaeelegante.

RAINHAS PÉDEBRUMA–gatadepelocinza-escuro.

ANCIÃOS POÇACINZENTA–gatacinzentaeesbelta,commanchasirregularesnopeloecicatrizesnofocinho.

gatosquenãopertencemaclãs CEVADA–gatopretoebrancoquemoraemuma fazendaperto

dafloresta.

PÉ PRETO – gatão branco, com enormes patas pretas retintas,antigorepresentantedoClãdasSombras.

ROCHEDO–gatoprateadoegorducho,antigomembrodoClãdasSombras.

PRINCESA – gata malhada em tonsmarrom-claros, com peito epatasbrancos.Gatinhadegente.

PATA NEGRA – gato negro, magro, com cauda de ponta branca;vivenafazendacomCevada.

BORRÃO–gatinhoroliçoesimpático,depelopretoebranco,quemoraemumacasaàbeiradafloresta.

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PRÓLOGO

COMOUMAGARRADEGELO,ofriodominaafloresta,oscamposeacharneca.Aneve,comseubrilhofracosobaluanova,cobretudo.Osilêncionaflorestaéquebradoapenasporumeventual e suave ruídodaneveescorregandopelos galhosdas árvores epelo somrascantedovento soprando sobreojuncoseco.Atémesmoomurmúriodoriosilenciou,porcausadogeloqueocobredeumamargemàoutra.Na beira do rio, um súbito movimento. Um gato grande, com o pelo

rajado em tons demarrome preto arrepiado por causa do frio, saiu dosjuncos.Impaciente,elesacodeanevedaspatas,que,acadapasso,afundamnasuperfíciemaciaÀsuafrente,doisminúsculosfilhotesseesforçamparaprosseguir,com

miados fracose cheiosdeangústia. Imergemnaneveainda fofa, eopelodas pernas e da barriga se prende amontículos de plantas gelados;massemprequetentamparar,ogatoadulto,comdelicadeza,osempurraparaafrente.Ostrêsfelinoscaminhamcomesforçoaolongodorioatéopontoemque

este se alarga, e alcançamumapequena ilha,não longedamargem.Umadensa camada de juncos, cujas pontas secas perfuram o gelo, circunda ailha. Salgueiros atrofiados e sem folhas escondem o centro dela comgrandesgalhoscobertosdeneve.–Estamosquasechegando–encorajaogatorajado.–Venhamcomigo.Eledeslizapelamargematéumcaminhoestreitoe congeladoentreos

juncosepulaparao terreno secoequebradiçoda ilha.Omaiordosdoisfilhotes o segue, desajeitado, mas o menor cai no gelo e ali permanece,agachado, miando desconsolado. Depois de um instante de hesitação, ogatopulaparaoladodofilhote,tentandoempurrá-loparaqueelefiquedepé,mas o pequeno está cansado demais para semexer. O gato lambe asorelhasdofilhote, tentandoconfortaropobrebichano,e,então, levanta-opelocangoteeolevaparaailha.Alémdossalgueirosháumtrechodecampoaberto,comalgunsarbustos

espalhados.Eleestácobertodeneveemarcadopelovaivémdaspatasdemuitos gatos. A clareira parece deserta, mas, do abrigo, brilham olhoscintilantes,queobservamogatoenquantoelecaminhaàfrentedosfilhotesatéamaiormoitadearbustoseatravessaomurodegalhosemaranhados.Oargeladodoexteriordálugaraoquentinhodoberçárioeaocheirode

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leite.Nofundodeumninhodemusgoeurze,umagatacinzaamamentaumúnico bebêmalhado. Ela levanta a cabeça quando o gato se aproxima e,gentil, depõe no ninho o filhote que carrega. O segundo bebê entracambaleanteetenta,desajeitado,alcançaroninho.–CoraçãodeCarvalho?–miouagata.–Oquevocêtemaí?– Filhotes, Poça Cinzenta. Você poderia cuidar deles? Eles precisamde

umamãe.– Mas… – Os olhos de âmbar de Poça Cinzenta estão perplexos. – De

quemsãoessesbebês?NãosãodoClãdoRio.Ondevocêosencontrou?–Euosencontreinafloresta–respondeCoraçãodeCarvalho,evitando

queosolhosdagataencontremosseus.–Elestiveramsortedenãoteremsidoencontradosporumaraposaantes.– Na floresta? – mia a rainha, com a voz rouca de incredulidade. –

Coração de Carvalho, não fale comigo como se eu tivesse miolo decamundongo. Que gata abandonaria seus filhotes na floresta, aindamaiscomumtempodesses?Coração de Carvalho dá de ombros. – Gatos renegados, talvez, ou os

Duas-Pernas.Comoéquevou saber?Nãopodiadeixá-los lá,nãoé?–Eleencostaofocinhonofilhotemenor,queestádeitado,inerte,anãoserpelascostelinhasquesobemedescemnoritmodarespiração.–PoçaCinzenta,por favor… Seus outros bebêsmorreram, e estes também vãomorrer sevocênãoosajudar.Osolhosda rainhasenublamdedor.Ela contemplaos filhotescomas

boquinhas rosadas abertas, enquanto miam tristemente. – Tenho muitoleite–sussurra,meioparasimesma.–Éclaroquevoucuidardeles.Coraçãode Carvalho solta um suspiro de alívio. Pegaprimeiro umdos

filhotes, depois o outro, levando-os até Poça Cinzenta. Ela os aninha nacurvadabarriga,empurrando-osdelicadamenteparapertodoseuprópriobebê;ávidos,eleslogocomeçamamamar.–Aindanãoentendi–miaPoçaCinzenta,osbebêsjáacomodados.–Por

que dois filhotes estariam sozinhos na floresta, nomeio da estação semfolhas?Amãedelesdeveestarmuitoaflita.O gato rajado cutuca um pedaço de musgo com sua enorme pata

dianteira.–Eunãoosroubei,seéissooquevocêestápensando.PoçaCinzentaofitaporumbomtempo.–Não,nãoestouachandoisso–

elamia,enfim.–Masvocênãoestámedizendotodaaverdade,nãoé?–Eudissetudooquevocêprecisasaber.

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–Não,nãodisse!–OsolhosdePoçaCinzentalampejamderaiva.–Ondeestáamãedeles?Euseioqueéperderumfilho,CoraçãodeCarvalho.Nãodesejoessadoranenhumoutrogato.Coração de Carvalho levanta a cabeça e a olha com firmeza, deixando

escaparumlevesibilodofundodagarganta.–Amãedelesdeveserumavilã.Comessetemponãohácomoirprocurá-la.–MasCoraçãodeCarvalho…–Sóqueroquetomecontadosfilhotes,porfavor!–Ogatorajadosepõe

depéemumpuloe,emummovimentobrusco,saidoberçário.–Voulhetrazer um pouco de presa fresca – mia por sobre o ombro enquanto seafasta.Assim que ele parte, Poça Cinzenta se inclina sobre os filhotes,

lambendo-lhesopeloparaaquecê-los.Anevederretidatinhalevadoquasetodoo cheirodos bebês,mas a rainha ainda sente o odorda floresta, defolhasmortasedeterracastigadapelofrioextremo.Eháaindaoutracoisaporbaixo,emboramaisfraca…PoçaCinzentaparadelamberosfilhotes.Serámesmoaquelecheiroem

que está pensando ou está imaginando coisas? Curvando novamente acabeça,elaabreabocaparaaspirarosodoresdosbebês.Agataarregalaosolhose,sempiscar,fitaassombrasescurasaoredor

doberçário.Elatemrazão.Apelagemdosdoisfilhotesórfãos,cujaorigemCoraçãodeCarvalhonãoquisexplicar,traz,semdúvida,ocheirodeumclãinimigo!

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ÍNDICE

Prólogo

Capítulo1

Capítulo2

Capítulo3

Capítulo4

Capítulo5

Capítulo6

Capítulo7

Capítulo8

Capítulo9

Capítulo10

Capítulo11

Capítulo12

Capítulo13

Capítulo14

Capítulo15

Capítulo16

Capítulo17

Capítulo18

Capítulo19

Capítulo20

Capítulo21

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Capítulo22

Capítulo23

Capítulo24

Capítulo25

Capítulo26

Capítulo27

Capítulo28

Capítulo29

Capítulo30

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CAPÍTULO1

OVENTO GELADO RODOPIAVA, JOGANDONEVE NO focinhodeCoraçãodeFogo; eledesciaaravinacomdificuldade,rumoaoacampamentodoClãdoTrovão;ocamundongoqueacabaradematarestavaseguroemsuaboca.Osflocosdeneveeramtãoabundantesqueelemalpodiaenxergarocaminho.Oguerreirosentiaabocaseencherdeáguacomocheirodapresaque

subiapelassuasnarinas.Nãocomiadesdeanoiteanterior,umtristesinaldaescassezdepresasdaestaçãosemfolhas.Afomelheapertavaabarriga,masCoraçãodeFogonãoiriaquebraroCódigodosGuerreiros:oclãdeveseralimentadoemprimeirolugar.Por um instante o brilho do orgulho afastou o frio da neve que lhe

salpicavaopeloavermelhadoquandoCoraçãodeFogolembrouabatalhadeapenastrêsdiasatrás.EleseuniraaoutrosguerreirosdoClãdoTrovãopara dar apoio ao Clã do Vento, pois os gatos da charneca tinham sidoatacadospelosoutrosdoisclãsna floresta.Muitosgatos tinhamse feridonoconflito;entãoeraimportantequealgunsgatosaindapudessemcaçarelevarpresasparacasa.À medida que Coração de Fogo abria caminho pelo túnel de tojo que

levavaaoacampamento,deslocavaanevedosgalhospontudosacimadelee agitava as orelhas quando as pelotas geladas lhe caíam na cabeça. Asárvores cheiasde espinhosque rodeavamoacampamentoprotegiamumpouco o local do vento, mas a clareira central estava deserta; quando acamadadeneveatingiaessaespessura,todososgatospreferiamficaremsuastocas,parasemanteremaquecidos.Troncospartidosegalhosdeumaárvorecaídasobressaíamdacoberturadeneve.Umalinhaúnicademarcasdepatasatravessavaochãoda tocadosaprendizesatéadensamoitadeamoreiras,ondeosfilhotesrecebiamcuidados.AtrilhafezCoraçãodeFogolembrarqueestavasemaprendiz,poisPatadeCinzatinhasidoferida,aoladodoCaminhodoTrovão.Trotandosobreaneveatéocentrodoacampamento,CoraçãodeFogo

colocouocamundongonapilhadepresasfrescas,pertodoarbustoondeosguerreirosdormiam.Apilhaestavamelancolicamentepequenaesóhaviapresas magras, sem carne, que mal davam para uma bocada de umguerreiro faminto. Só haveria camundongos gordinhos novamente naestaçãodorenovo,queaindaestavaamuitasluasdedistância.Coração de Fogo já estava indo embora, pronto para voltar a caçar,

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quandoouviuummiadoalto.Elesevoltoudepressa.Garra de Tigre, o representante do clã, saiu de súbito da toca dos

guerreiros.–CoraçãodeFogo!Ogatodepelagemcordechamaseaproximou,abaixandoacabeçaem

atitudederespeito,masconscientedequeaquelesenormesolhoscordeâmbar o fitavam, queimando. Toda a apreensão que sentia em relação aGarra de Tigre voltou a inundá-lo. O representante do clã era forte,respeitadoeumcombatenteexemplar,masCoraçãodeFogosabiaqueeletinhaumcoraçãosombrio.–Vocênãoprecisavoltaracaçarhoje–grunhiuGarradeTigre.–Estrela

AzuldesignouvocêeListraCinzentaparairemàAssembleia.As orelhas de Coração de Fogo coçaram, tal sua empolgação. Era uma

honra acompanhar a líder do clã à Assembleia, quando os quatro clãs seencontravamempaz,naluacheia.–Émelhorvocêcomeralgumacoisaagora–acrescentouorepresentante

de pelo escuro. – Vamos partir assim que a lua nascer. – Ele começou acruzaraclareiranadireçãodaPedraGrande,ondeficavaatocadeEstrelaAzul,alíderdoclã.Então,parouegirouaenormecabeçaparaolharparaCoraçãodeFogo.–NaAssembleia,estejabemcertodeselembraraqueclãvocêpertence–ciciou.CoraçãodeFogo sentiuopeloeriçar, a fúriaqueimandodentrodele. –

Porquevocêestádizendoisso?–eleperguntou,emtomaudacioso.–Achaqueeuseriadeslealaomeuclã?GarradeTigrevoltou-separaencará-lo,eCoraçãodeFogotentounãose

intimidar com a ameaça dos ombros retesados do felino. – Vi você naúltima batalha. – A voz do representante saiu como um grunhido surdo,quando,comasorelhasjuntoàcabeça,elecuspiu.–VivocêdeixaraquelaguerreiradoClãdoRioescapar.CoraçãodeFogoestremeceuaoselembrardabatalhanoacampamento

doClãdoVento.Eraverdade.ElepermitiraqueumaguerreiradoClãdoRiofugissesemumúnicoarranhão,masnãoporcovardiaoudeslealdade.EraArroiodePrata.OsoutrosmembrosdoClãdoTrovãonãosabiam,masseumelhoramigo,ListraCinzenta,estavaapaixonadoporela,eCoraçãodeFogonãopoderiaferi-la.CoraçãodeFogofizeraopossívelparaconvenceroamigoaparardese

encontrar com Arroio de Prata; esse namoro ia contra o Código dosGuerreirose,porisso,colocavaosdoisemgranderisco.Masdeumacoisa

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eletinhacerteza:jamaistrairiaListraCinzenta.Alémdisso,GarradeTigrenãotinhaodireitodeacusarnenhumgatode

deslealdade. Ele ficara ao largodabatalha, apenas observando, enquantoCoraçãodeFogo lutavapela vidaemumembate contraumguerreirodoClã do Rio, e fora embora, em vez de ajudá-lo. E essa não era a pioracusação que Coração de Fogo poderia fazer contra o representante.SuspeitavaqueelefosseoculpadodoassassinatodoantigorepresentantedoClãdoTrovão,RaboVermelho,etalveztivesseatéplanejadoselivrardapróprialíderdoclã.–Sevocêachaqueeusoudesleal,digaaEstrelaAzul–desafiouCoração

deFogo.GarradeTigrearreganhouosdentesemumbramidoeagachou-seum

pouco,expondoas longasgarras.–Nãopreciso incomodarEstrelaAzul–sibilou.–Possolidarsozinhocomumgatinhodegentecomovocê.Ele encarou Coração de Fogo por mais algum tempo. Pasmo, o jovem

guerreiro percebeu que havia um traço de medo, e também dedesconfiança, no intenso olhar cor de âmbar. Garra de Tigre está seperguntandoquantoeusei,elepensouderepente.PataNegra,amigodeCoraçãodeFogoeaprendizdeGarradeTigre,fora

testemunha do assassinato de Rabo Vermelho. O representante tentaramatá-loparaseassegurardeseusilêncio;porissoCoraçãodeFogoolevaraparavivercomCevada,umgatosolitárioqueviviapertodeuma fazendadosDuas-Pernas,dooutro ladodo territóriodoClãdoVento.CoraçãodeFogoquiscontarahistóriadePataNegraaEstrelaAzul,masalíderdoclãrecusou-seaacreditarnaculpadeseuvalenterepresentante.AoolharparaGarradeTigre,CoraçãodeFogosentiuafrustraçãovoltar;pareciaqueumaárvoretinhacaídoemcimadele,imobilizando-onosolo.Semdizernadamais,GarradeTigrevirou-see foiembora.Enquantoo

observava seafastando,CoraçãodeFogoouviuumbarulhoquevinhadatocadosguerreiros;acabeçadeListraCinzentaapareceuentreosgalhos.–Quemaluquicevocêestáfazendo?–elemiou.–Trocandofarpasdesse

jeitocomGarradeTigre!Elevaitransformarvocêemcarniça!–Nenhumgatotemodireitodedizerquesoudesleal–CoraçãodeFogo

reclamou.ListraCinzentainclinouacabeçaedeuumaslambidasrápidasnopeito

doamigo.–Sintomuito,CoraçãodeFogo–eledisseemvozbaixa.–SeiquetudoissoéporcausadomeunamorocomArroiodePrata…

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–Não,vocêsabequenãoé.OproblemaéGarradeTigre,nãovocê.–Elesesacudiuparaselivrardaneveemseupelo.–Venha,vamoscomer.Oguerreirocinzentoafastouorestodosgalhoserumouparaapilhade

presas frescas.CoraçãodeFogooseguiu,escolheuumratosilvestree foicomernatocadosguerreiros.ListraCinzentaagachou-seaseulado,pertodacortinadegalhosexterna.Nevasca e uma dupla de outros guerreiros veteranos estavam

enroscados,dormindo,nocentrodoarbusto;alémdeles,nãohavianenhumoutrogatona toca. Seus corposaqueciamoar, epouquíssimaneve tinhaatravessadoaespessacoberturadegalhos.CoraçãodeFogoarrancouumnacodoratosilvestre.Acarneeradurae

fibrosa,maseleestavacomtantafomequelhepareceuumadelícia.Acabourápidodemais,porémeramelhordoquenadaelhedariaaforçanecessáriaparacaminharatéolocaldaAssembleia.Quando Listra Cinzenta terminou a refeição, avidamente devorada, os

doisgatosdeitaramladoalado,umpenteandoopelofriodooutro.FoiumalívioparaCoraçãodeFogovoltara trocar lambidascomListraCinzenta,depois de umperíodo atribulado emque parecera que o amor do amigoporArroiodePratadestruiriaaamizadedosdois.EmboraCoraçãodeFogoaindasepreocupassecomonamoroproibido,desdeabatalha,eleeListraCinzenta tinham reatado a amizade, que estava tão intensaquanto antes.Parasobreviveràlongaestaçãosemfolhas,umprecisavaconfiarnooutro;e, sobretudo, Coração de Fogo sabia que precisava do apoio de ListraCinzentacontraacrescentehostilidadedeGarradeTigre.– Estou aqui pensando, tentando adivinhar que notícias vamos ouvir à

noite–elecochichounaorelhacinzentadoamigo.–EsperoqueoClãdoRioeoClãdasSombrastenhamaprendidoalição.OClãdoVentonãoseráexpulsodeseuterritórionovamente.ListraCinzentamexeu-se,incomodado.–Omotivodalutanãofoiapenas

aganânciapeloterritório,destacou.–Aspresasestãoaindamaisescassasdoqueonormal.Os felinosdoClãdoRioestãomorrendode fomedesdequeosDuas-Pernassemudaramparaoterritóriodeles.– Eu sei. – Coração de Fogo agitou as orelhas com relutante

compreensão,entendendoqueoamigoquisessedefenderoclãdeArroiodePrata.–Masexpulsarumclãdopróprioterritórionãoéaresposta.ListraCinzentaconcordoucomummurmúrio;depois,silenciou.Coração

de Fogo sabia como ele devia estar se sentindo. Fazia poucas luas que

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tinham cruzado o Caminho doTrovão para encontrar os gatos do Clã doVento e trazê-los para casa.Mas Listra Cinzenta, por causa do amor quesentiaporArroiodePrata,estavainclinadoaapoiartambémoClãdoRio.Não havia uma resposta fácil. A escassez de presas seria um problemadesesperadorparatodososquatroclãs,pelomenosatéqueaestaçãosemfolhasafrouxassesuasgarras.Sonolento comas continuadas lambidasdeListraCinzenta,Coraçãode

Fogodeuumpuloquandoouviuobarulhodosgalhosdoladodefora.Garrade Tigre entrou, seguido por Risca de Carvão e Rabo Longo. Os trêsfuzilaramCoraçãodeFogocomosolhosaoseaninharempertodocentrodoarbusto.CoraçãodeFogosemicerrouosolhosparaobservá-los, loucopara saber o que estavam conversando. Era muito fácil imaginar o queestavam tramandocontraele.Os seusmúsculos se retesaramquandoeleentendeu que enquanto a traição de Garra de Tigre continuasse emsegredo,elenãoestariaasalvodentrodeseupróprioclã.–Algumproblema?–quissaberListraCinzenta,levantandoacabeça.CoraçãodeFogoseespreguiçou,tentandovoltararelaxar.–Nãoconfio

neles–murmurou, apontandocomasorelhasGarradeTigreeosoutrosgatos.–Eunãooculpo–miouListraCinzenta.–SealgumdiaGarradeTigre

descobrirsobreArroiodePrata…–Eleestremeceu.Coração de Fogo se achegou, confortando o amigo; mas suas orelhas,

aindaempinadas,tentavamouviroqueGarradeTigredizia.Elepensouterescutadoseunomeeficoutentadoachegarmaisperto,porémpercebeuoolhardeRaboLongo.– O que você está olhando, gatinho de gente? – sibilou o guerreiro

malhado.–OClãdoTrovãoquerapenasfelinosleais.–Acintosamente,elevirouascostasparaCoraçãodeFogo.Ogatocordefogologosepôsdepé,deumsalto.–Equemdeuavocêo

direitodequestionarnossalealdade?RaboLongooignorou.–Éisso!–CoraçãodeFogomiouemumtommaisbaixoeraivosopara

ListraCinzenta.–ÉóbvioqueGarradeTigreestáespalhandoboatosameurespeito.–Masoquevocêpodefazer?–ListraCinzentapareciaconformadocom

ahostilidadedorepresentante.–Quero voltar a falar comPataNegra. Ele talvez se lembrede alguma

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coisasobreabatalha,algoqueeupossausarparaconvencerEstrelaAzul.–MasPataNegraagoravivenafazendadosDuas-Pernas.Vocêteriade

atravessar todo o território do Clã do Vento. Como iria explicar suaausência do acampamento por tanto tempo? Isso só faria asmentiras deGarradeTigreparecerverdade.Coração de Fogo estava disposto a correr o risco. Jamais perguntara a

PataNegranenhumdetalhedamortedeRaboVermelhonoconflitocontraoClãdoRio,muitas luasantes.Naocasião,parecera-lhemais importantetiraroaprendizdocaminhodeGarradeTigre.Agoraele sabiaqueprecisavadescobriroque, exatamente,PataNegra

tinhavisto.PorqueestavacadavezmaiscertodequeoamigosabiaalgumacoisaquepoderiaprovaroperigoqueGarradeTigrerepresentavaparaoclã.– Vou esta noite – Coração de Fogo miou baixinho. – Depois da

Assembleia, vou escapulir. Se eu trouxer presa fresca, posso dizer queestavacaçando.–Vocêestácorrendoumgranderisco–miouListraCinzenta,comuma

lambidarápidaecarinhosanaorelhadePatadeFogo.–MasGarradeTigretambéméproblemameu.Sevocêestádeterminadoair,voujunto.

AnevecessaraeasnuvensjátinhamsedissipadoquandoosfelinosdoClã do Trovão, entre eles Coração de Fogo e Listra Cinzenta, deixaram oacampamento e seguiram pela floresta, rumo a Quatro Árvores. O solocobertodenevepareciabrilhar soba luzbrancada lua cheia, e todososgalhosepedrascintilavamporcausadogelo.Abrisaqueavançavafaziaondularasuperfíciedaneveetraziaocheiro

demuitosgatos.CoraçãodeFogotremiadeempolgação.Osterritóriosdetodos os quatro clãs faziam fronteira no vale sagrado, e a cada lua cheiauma trégua era declarada para que os clãs se reunissem sob os quatrograndescarvalhos,nocentrodaclareiracercadadeencostasíngremes.Coração de Fogo ficou atrás de Estrela Azul, que já tinha se agachado

parasearrastarpelasúltimascaudasdedistânciaatéoaltodaencostae,láde cima, observar a clareira. Uma grande pedra erguia-se entre oscarvalhos, seu contorno irregular e negro contrastando com a neve.Coração de Fogo esperava pelo sinal da líder para se movimentar eobservava, lá embaixo, os gatosdos outros clãs se cumprimentando.Nãopôdedeixardenotarosolharesferozeseoscangoteseriçadosdosfelinos

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doClãdoVentoaodepararemcomosintegrantesdoClãdoRioedoClãdasSombras.Claroquenenhumdelesesqueceraa recentebatalha;não fossepelatrégua,estariamenfiandoasgarrasunsnosoutros.Coração de Fogo reconheceu Estrela Alta, o líder do Clã do Vento,

sentadopertodaPedradoConselho,comseurepresentante,PéMorto,aolado.Nãomuitolonge,NarizMolhadoePelodeLama,oscurandeirosdoClãdasSombrasedoClãdoRio,ladoalado,observavamosoutrosfelinoscomolhosquerefletiamalua.AoladodeCoraçãodeFogo,ListraCinzentatinhaosmúsculosretesados,

osolhosamarelosbrilhandodeempolgaçãoaomiraraclareira.Seguindoseuolhar,CoraçãodeFogoviuArroiodePratasurgirdassombras,comsuabelapelagempretaeprateadabrilhandosoboluar.Coração de Fogo prendeu a respiração. – Se vai falar com ela, cuidado

paranãoseremvistos–alertouoamigo.–Nãosepreocupe–ListraCinzentamiou.Elearranhavaochãocomas

patas dianteiras enquanto esperava pelomomento de reencontrar a gatadoClãdoRio.CoraçãodeFogoolhouparaEstrelaAzul,aguardandoosinalparadescer

atéaclareira,masoqueviufoiNevascaselevantareseagacharnaneve,aoladodalíder.–EstrelaAzul–eleouviuonobreguerreirobrancomurmurar–,oquevocêvaifalararespeitodeCaudaPartida?Vaidizeraosoutrosclãsqueestamoslhedandoproteção?Tenso, Coração de Fogo esperou a resposta de Estrela Azul. Outrora,

Cauda Partida fora Estrela Partida, líder do Clã das Sombras. Mas tinhamatadooprópriopai,EstrelaAfiada,eroubadofilhotesdoClãdoTrovão.Em retaliação, o Clã doTrovão ajudara o clã de Estrela Partida a bani-loparaa floresta.Poucodepois,EstrelaPartida lideraraumbandodegatosrenegados em um ataque ao acampamento do Clã do Trovão. Durante aluta,GarraAmarela,acurandeiradoclã, tinharasgadoosolhosdeCaudaPartida,que,agora,eraumprisioneiro,cegoederrotado.Emboraoantigolíder tivesse perdido o direito ao nome que lhe fora dado pelo Clã dasEstrelaseestivessesobrigorosavigilância,CoraçãodeFogosabiaqueosoutros clãs esperavam que o Clã do Trovão o tivesse matado, ou que otivessemabandonadonaflorestaparamorrer.NãogostariamdesaberqueCaudaPartidacontinuavavivo.Estrela Azul manteve o olhar fixo nos felinos na clareira. – Não direi

nada. Isso não diz respeito aos outros clãs. Cauda Partida agora é

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responsabilidadedoClãdoTrovão–foisuarespostaaNevasca.–Palavrascorajosas–grunhiuGarradeTigre,dooutro ladodeEstrela

Azul.–Ouestamosenvergonhadosdeadmitiroquefizemos?– O Clã do Trovão não precisa se envergonhar por demonstrar

misericórdia – a líder respondeu friamente. – Mas não vejo razão deprocurar problema. –Antes queGarra deTigre pudesse protestar, ela sepôsdepéemumsaltoesedirigiuaosdemaisfelinos.–Ouçam.Nãofalemnada sobreo ataquedos renegadosnemmencionemCaudaPartida. Esseassuntoésónosso.Elaesperouatéouvirmiadosdeconcordânciadosgatosreunidos.Com

ummovimentodacauda,sinalizouqueosfelinosdoClãdoTrovãopodiamjuntar-se aosdemais, embaixo, na clareira. E saiu emdisparada emmeioaos arbustos, seguida por Garra de Tigre, que, com suas patas enormes,espalhavaneve.CoraçãodeFogoos seguiu.Aoescorregardosarbustosparaa clareira,

viuGarradeTigrealiperto,parado,olhando-ocomdesconfiança.–ListraCinzenta–ogatoavermelhadociciouporcimadoombro.–AchoquevocênãodeveseencontrarcomArroiodePrataestanoite.GarradeTigrejá…De repente, Coração de Fogo se deu conta de que Listra Cinzenta não

estava mais a seu lado. Olhando à sua volta, viu quando seu amigodesapareceu por trás da Pedra do Conselho. Um ou dois tique-taques decoraçãodepois,ArroiodePrataseafastoudeumgrupodoClãdasSombraseoseguiu.Ogatoavermelhadosuspirou.OlhouparaGarradeTigre,imaginandose

eleviraocasal.MasorepresentantetinhaidosereunircomBigodeRalo,do Clã do Vento, e Coração de Fogo deixou que o pelo eriçado de seusombrosabaixassenovamente.Andandosempararpelaclareira,indodeláparacá,inquieto,Coraçãode

Fogoviu-sepertodeumgrupodeanciãos–Retalho,doClãdoTrovão,eoutrosqueelenãoconheciaestavamagachadossobumazevinhodefolhaslustrosas que tinha acumulado pouca neve. Enquanto vigiava ListraCinzenta,ogatoavermelhadosentou-separaouviraconversa.–Eumelembrodeumaestaçãosemfolhasaindapiorqueesta.–Falava

um gato idoso e negro, cujo focinho se tornara prateado e com o corpocheio de cicatrizes demuitas batalhas. Seu pelo curto emalhado tinha oodordoClãdoVento.–Orioficoucongeladopormaisdetrêsluas.–Você temrazão,PelodeCorvo–concordouumarainhamalhada.–E

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haviamenospresas,também,mesmoparaoClãdoRio.Por um tique-taque de coração, Coração de Fogo se surpreendeu que

anciãos de dois clãs que havia pouco tempo tinham se hostilizadoconversassememharmonia,semcuspiródioumnooutro.Maseleseramanciãos, refletiu. Deviam ter presenciadomuitas guerras em suas longasvidas.–Osjovensguerreirosdehoje–acrescentouogatonegroeidoso,fitando

CoraçãodeFogo–nãosabemoqueédureza.CoraçãodeFogosemexeuentreas folhassecassoboarbustoetentou

parecer respeitoso. Retalho, agachado perto dele, saudou-o com ummovimentoamigáveldacauda.– Deve ter sido a estação em que Estrela Azul perdeu os filhotes –

recordouoanciãodoClãdoTrovão.CoraçãodeFogoficoucomasorelhasdepé.Lembrou-sedeCaudaMosqueadatermencionadoumavezosbebêsde Estrela Azul, que tinham nascido pouco antes de ela se tornarrepresentantedoclã.Maselejamaissouberaquantosfilhoteseramoucomqueidadeelestinhammorrido.– E você se lembra do degelo daquela estação sem folhas? – Pelo de

Corvo interrompeuospensamentosdeCoraçãodeFogo,que,perdidoemlembranças,tinhaoolhardisperso.–Orio,emsuagarganta,elevou-seatéquaseastocasdostexugos.Retalho estremeceu. – Eu me lembro bem. O Clã do Trovão não

conseguiucruzarorioparaviràAssembleia.–Houvegatosafogados–recordouarainhadoClãdoRio,comtristeza.– E presas também – Pelo de Corvo acrescentou. – Os gatos que

sobreviveramquasemorreramdefome.–QueoClãdasEstrelaspermitaqueesta estaçãonão seja tão ruim!–

Retalhomioucomfervor.Pelo de Corvo cuspiu. – Esses gatos jovens não aguentariam. Naquele

tempoéramosmaisfortes.Coração de Fogo não conteve um protesto. – Temos guerreiros fortes

agora…–Alguémpediu suaopinião?– grunhiuo ancião rabugento–Vocênão

passadeumfilhote!–Masnós…–CoraçãodeFogosecalou,poisumberroagudoencherao

ar,etodosfizeramsilêncio.Elevirouacabeçaeviuquatrogatosnoaltoda

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PedradoConselho,assilhuetasrecortadasnoluarprateado.– Shh! – sibilou Retalho. – A reunião vai começar. – Ele contraiu as

orelhas na direção de Coração de Fogo e ronronou baixinho. – Não dêatençãoaPelodeCorvo.EleencontrariadefeitoaténoClãdasEstrelas.CoraçãodeFogodeuumolharagradecidoaRetalho,escondeuaspatas

sobocorpoeseacomodouparaescutar.EstrelaAlta,olíderdoClãdoVento,começouanunciandoqueosfelinos

doseuclãestavamserecuperando,depoisdarecentebatalhacontraoClãdoRioeoClãdasSombras.–Perdemosumdenossosanciãos,mastodososnossosguerreirosvãosobreviver–paraoutraslutas–acrescentou,comconvicção.MantodaNoiteabaixouasorelhaseestreitouosolhos,enquantoEstrela

Tortadeixouescaparumrugidoameaçador,dofundodagarganta.OpelodeCoraçãodeFogoseeriçou.Seoslíderescomeçassemabrigar,

os gatos dos clãs fariam omesmo. Será que isso já tinha acontecido emalguma Assembleia? – ele perguntou a seus bigodes. Certamente nemmesmo Manto da Noite, o valente novo líder do Clã das Sombras, searriscariaàfúriadoClãdasEstrelas,quebrandoatréguasagrada!EnquantoCoraçãodeFogo,apreensivo,observavaosgatoscomospelos

arrepiados,EstrelaAzuldeuumpassoà frente.–Queboanotícia,EstrelaAlta–elamiousuavemente.–FicamostodosfelizesemsaberqueosfelinosdoClãdoVentoestãovoltandoàboaforma.Seusolhosazuisbrilharamaoluarquandoeladeuumaolhadelaparaos

líderesdoClãdasSombrasedoClãdoRio.MantodaNoitedesviouoolhar,eEstrelaTortaabaixouacabeça,comumaexpressãoindecifrável.Fora o Clã das Sombras, sob o cruel comando de Estrela Partida, que,

primeiro,expulsaraoClãdoVento,afimdeestenderseuterritóriodecaça.OClãdoRiotinhaaproveitadoesseexílioparacaçarnoterritóriodeserto.Mas depois que Estrela Partida fora banido, Estrela Azul convencera osoutroslíderesdequeavidanaflorestadependiadosquatroclãsedequeoClã doVento devia voltar. Coração de Fogo tremeu ao lembrar a longa epenosa viagem que fizera com Listra Cinzenta para encontrar o Clã doVentoetrazerosfelinosdevolta,paraseudesoladoterritórionoplanalto.Isso o fez lembrar que, para encontrar Pata Negra, seria preciso

atravessaroplanaltonovamente,e,desconfortável,mudoudeposição.Elenãoestavaansiosopelaviagem.PelomenosoClãdoVentosedábemcomoClãdoTrovão,pensou.Assim,nãoseremosatacadosnocaminho.

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–Os felinos do Clã do Trovão também estão se recuperando – EstrelaAzulcontinuou.–E,desdeaúltimaAssembleia,doisdenossosaprendizesse tornaram guerreiros. Eles agora serão conhecidos como Pelagem dePoeiraeTempestadedeAreia.Gritos de aprovação vieram da multidão de gatos abaixo da Pedra do

Conselho–sobretudo,CoraçãodeFogopercebeu,doClãdoTrovãoedoClãdoVento.DeuumaolhadaparaTempestadedeAreia;orgulhosa,elaestavacomopeloalaranjadoeriçado.A Assembleia prosseguiu, mas, agora, mais calma. Coração de Fogo

lembrou-se da anterior, em que os líderes se acusaram mutuamente decaçar forade seus territórios,masnenhumgatomencionouo fato agora.Um grupo de renegados, liderados por Cauda Partida, tinha sidoresponsável, mas a notícia de que esses gatos tinham atacado oacampamento do Clã do Trovão e sido vergonhosamente derrotados nãoparecia ter se espalhado. O segredo de Estrela Azul, sobre o cego CaudaPartida,estavaasalvo.Quandoareuniãoterminou,CoraçãodeFogoprocurouListraCinzenta.

SeelesiamverPataNegra,precisavamsairlogo,enquantoosdemaisgatosdoClãdoTrovãoaindaestivessemnovale, pois assimnão saberiamquedireçãoosdoisamigostinhamtomado.NomeiodeumgrupodejovensfelinosdoClãdasSombras,Coraçãode

Fogo percebeu o olhar do aprendiz de Rabo Longo, Pata Ligeira, que,sentindo-seculpado,desviouoolhar.Emoutrasituação,CoraçãodeFogooteriachamadoeditoqueprocurasseseumentorevoltasseparacasa;mas,agora,sópensavaemencontrarListraCinzenta.EsqueceuPataLigeiralogoqueviuoamigo,quelheacenavaevinhaaoseuencontro.NãohaviasinaldeArroiodePrata.–Aíestávocê!–ListraCinzentaexclamou,osolhosamarelosbrilhando.CoraçãodeFogopodiaverqueseuamigogostaradaAssembleia,embora

duvidasse que ele tivesse ouvido boa parte do que fora discutido. – Estápronto?–miou.–ParairverPataNegra?–Falebaixo!–CoraçãodeFogociciou,ansioso,olhandoemvolta.–Estou,sim–ListraCinzentarespondeu,reduzindoovolumedavoz.–

Não posso dizer que esteja ansioso. Mas faço qualquer coisa para tirarGarradeTigredomeupelo–ouvocêtemideiamelhor?–Esseéoúnicojeito–respondeuCoraçãodeFogo,balançandoacabeça.

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Ovaleaindaestavacheiodegatos,preparando-separapartiremquatrodireções. Nenhum deles pareceu prestar atenção em Coração de Fogo eListra Cinzenta até eles quase terem alcançado a encosta que levava aoterritóriodoClãdoVento,noplanalto.Derepente,ouviramummiado.–Ei,CoraçãodeFogo!Aondevocêsvão?EraTempestadedeAreia.–Bem…–CoraçãodeFogoolhouemdesesperoparaListraCinzenta.–

Vamosfazerocaminhomais longo–ele improvisou.–GarradeLama,doClãdoVento,nosdissequeháumatocadejovenscoelhosbememnossoterritório.Pensamosem irbuscaralgumaspresas frescas.–Alarmado,aopensar que Tempestade de Areia poderia querer ir junto, acrescentou: –VocêpodedizeraEstrelaAzul,seelaperguntarpornós?– Claro. – A gata respondeu aos bocejos, revelando dentes afiados e

brancos. – Vou pensar em vocês, correndo atrás de coelhos, quando euestiverenroscadaemumninhoquenteegostoso!–Elaseafastou,comummovimentorápidodacauda.CoraçãodeFogoficoualiviado;elenãosesentiuàvontadeemmentir.–

Vamos–miouparaListraCinzenta.–Antesqueoutrogatonosveja.Os dois jovens guerreiros escorregaram para o abrigo dos arbustos e

subiram a encosta. No alto, Coração de Fogo parou por um instante,virandoacabeçaparatercertezadequenãotinhamsidoseguidos.Então,ele e Listra Cinzenta foram até a beirada da clareira e correram para acharnecae,maisalém,rumoàfazendadosDuas-Pernas.Esseéoúnicojeito,CoraçãodeFogorepetiaasimesmoenquantocorria.

Precisavadescobriraverdade.NãoapenasporcausadeRaboVermelhoePataNegra,masportodooclã.EraprecisodeterGarradeTigre…antesqueelevoltasseamatar.

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CAPÍTULO2

CORAÇÃODEFOGO,PRUDENTE,FAREJOUUMCAMINHOemqueaneveforapisoteadapelosDuas-Pernas.Luzesbrilhavam,vindasdoninhodosDuas-Pernas, e,em algum lugar perto dali, ele ouvia um cachorro latir. Lembrou-se deCevadadizerqueosDuas-Pernasdeixavamoscachorrossoltosduranteanoite.ElesóesperavalocalizarPataNegraantesqueeleeListraCinzentafossemvistos.ListraCinzentaescorregoupelacercaefoiatéele.Oventogeladocolava

seupelocinzaaocorpo.–Sentealgumcheiro?Coração de Fogo levantou a cabeça para sentir o ar e, quase

imediatamente, percebeu o cheiro que procurava, fraco, mas conhecido.PataNegra!–Poraqui–miou.Elesearrastoupelocaminho,comabarriganochãoeogelodurosobas

patas.Comcuidadoseguiuoodoratéumburaconaportadeumceleiro,ondeamadeiraestavacarcomida.Aspirouoar,sorvendoocheirodefenoeoodordegatos,forteefresco.–

PataNegra?–dissebaixinho.Semouvirresposta,repetiumaisalto:–PataNegra?–CoraçãodeFogo,évocê?–ummiadosurpresoveiodaescuridão,do

outroladodaporta.– PataNegra! – Coração de Fogo se esgueirou pelo buraco, agradecido

por se livrar do vento. Os odores do celeiro o tentavam, e sua boca seencheu de água quando ele detectou o cheiro de camundongo. O celeiroestavapoucoiluminado;contavaapenascomaluzdoluarqueseinfiltravapor uma pequena janela sob o telhado. Quando os seus olhos seacostumaram à luz fraca, Coração de Fogo viu o outro gato, a algumascaudasdedistância.Seuamigopareciaaindamaisbrilhanteerobustodoquedaúltimavez

emqueeleovira.CoraçãodeFogopercebeucomoeleprópriodeviaestarmagroeesfarrapadopertodele.PataNegraronronou,feliz,efoiparapertodogatodepeloavermelhado;

trocaramtoquesdenariz.–Bem-vindo–miou.–Quebomvervocê!–Ébomvervocê–ListraCinzentamiou,passandotambémpeloburaco

daporta.–VocêslevaramoClãdoVentoasalvodevoltaaoacampamento?–Pata

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Negra perguntou. Os dois guerreiros tinham estado com ele durante ajornadaparalevaroClãdoVentoparacasa.–Levamos–miouCoraçãodeFogo–,masessaéumalongahistória.Não

podemos…–Oque está acontecendo aqui? – Foram interrompidos pelomiadode

outrogato.Coração de Fogo girou o corpo, abaixando as orelhas, pronto para o

combate, caso o recém-chegado representasse uma ameaça. Entãoreconheceu Cevada, o solitário gato preto e branco que se dispusera adividir sua casa com Pata Negra. – Olá, Cevada –miou Coração de Fogo,maiscalmo.–PrecisamosfalarcomPataNegra.–Entendo–miouCevada.–Edeveserimportante,paravocês,cruzarem

acharnecacomessetempo.– E é mesmo – concordou Coração de Fogo. Ele olhou para o antigo

aprendizdoClãdoTrovão,aurgênciadamissãofazendoseupelopinicar.–PataNegra,nãotemostempoaperder.Pata Negra estava confuso. – Você sabe que pode falar comigo quanto

quiser.–Voudeixarvocêssozinhos,então–disseCevada.–Fiquemàvontade

para caçar. Temos ummonte de camundongos aqui. – Cumprimentou osvisitantes comumacenoamigávelde cabeçaeespremeu-seporbaixodaporta.– Caçar? É mesmo? – miou Listra Cinzenta. Coração de Fogo sentia

pontadasagudasdefomenabarriga.–Claro –miouPataNegra. –Olhe, porquenão comemosprimeiro?Aí

vocêpodemedizerarazãodavisita.

–EuseiqueGarradeTigrematouRaboVermelho–PataNegrainsistiu.–Euestavaláeviquandoeleomatou.Os três gatos estavam agachados no depósito de feno do celeiro dos

Duas-Pernas. A caçada não demorara muito. Depois do empenhodesesperadoparaacharpresasnaflorestacobertadeneve,oceleiro,paraos famintos guerreirosdoClãdoTrovão,parecia estar transbordandodecamundongos. Agora Coração de Fogo estava aquecido, o estômagoconfortavelmente cheio. Ele bem que gostaria de se enroscar e dormirsobreofenofofoecheiroso,massabiaqueprecisavafalarcomPataNegradeimediato,jáqueeleeListraCinzentatinhamdevoltaraoacampamento

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antes que sua ausência fosse notada. – Conte-nos tudo de que você selembra–elepediu,comumencorajadormovimentodecabeça.Pata Negra fitava um ponto à sua frente, com os olhos escurecendo à

medida que, em pensamento, voltava à batalha nas Rochas Ensolaradas.CoraçãodeFogopodiaversuaautoconfiançadiminuir.Ogatonegroestavaperdido nas próprias lembranças, revivendo o medo e o peso daquelesegredo.–Fuiferidonoombro–elecomeçou.–RaboVermelho,que,comovocê

sabe,eraorepresentantedenossoclãnaépoca,disseparaeumeesconderem uma fissura na rocha até que fosse seguro escapar. Eu estavacomeçando a fazer o que eleme recomendara quando viRaboVermelhoatacarumgatodoClãdoRio.AchoqueeraoguerreirocinzachamadoPelodePedra.RaboVermelhooderrubouepareciaprestesaenfiarasgarrasnele,paramachucá-lodeverdade.–Eporquenãoofez?–ListraCinzentaindagou.–CoraçãodeCarvalhosurgiudonada–PataNegraexplicou.–Elecravou

osdentesnocangotedeRaboVermelhoeoarrancoudecimadePelodePedra.–Suavoz tremiaàmedidaqueas lembrançasvoltavam.–PelodePedra fugiu. – O gato fez uma pausa, agachando-se inconscientementecomoseestivessecommedodealgumacoisamuitopróxima.–Edepois?–CoraçãodeFogoquestionou,comdelicadeza.–RaboVermelhocuspiuemCoraçãodeCarvalho.Perguntou,ironizando,

seosguerreirosdoClãdoRionãoeramcapazesdedarcontadasprópriasbatalhas.RaboVermelhofoicorajoso.OrepresentantedoClãdoRiotinhaodobro do seu tamanho. E então… então, Coração de Carvalho disse umacoisaestranhaaRaboVermelho:“NenhumgatodoClãdoTrovãojamaisvaiferiresseguerreiro.”–Oquê?– ListraCinzenta estreitouosolhos empequeníssimas fendas

amarelas.–Issonãofazsentido.Temcertezadequeouviudireito?–Tenho,sim–insistiuPataNegra.–Masosclãslutamotempotodo–miouCoraçãodeFogo.–OquePelo

dePedratemdeespecial?–Nãosei.–PataNegradeudeombros,esquivando-sedasindagações.– Então o que Rabo Vermelho fez depois das palavras de Coração de

Carvalho?–perguntouListraCinzenta.AsorelhasdePataNegraseempinarameelearregalouosolhos.–Voou

paracimadeCoraçãodeCarvalho.Derrubou-oejogou-oparabaixodeuma

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saliênciadarocha.Eu…eunãoconseguiavê-los,masouviaseusbramidos.Entãoescuteiumbarulhão,earochacaiuemcimadeles!–Tremendo,eleinterrompeuahistória.–Porfavor,continue–CoraçãodeFogomiou.EledetestavacolocarPata

Negranessasituação,masprecisavasaberaverdade.–OuviumguinchodeCoraçãodeCarvalhoeviquesuacaudaaparecia

sobarocha.–PataNegrafechouosolhos,comosequisesseevitaraquelavisão,masvoltouaabri-los.–AíouviGarradeTigreatrásdemim.Elememandouvoltarparaoacampamento,mas,depoisdedarunspoucospassos,percebi quenão sabia seRaboVermelho estava bemdepois que a pedracaíra.Entãorastejeidevolta,passandopor todososguerreirosdoClãdoRio, que estavam fugindo. Quando cheguei às rochas, vi Rabo Vermelhosacudindo a poeira do corpo. Tinha a cauda empinada, o pelo arrepiado,masestavabem,semnenhumarranhãovisível,ecorreuemdireçãoaGarradeTigre,queestavanassombras.–Efoiaíque…–ListraCinzentacomeçou.–Sim.–PataNegradobrousuasgarrascomoseestivessenovamentena

batalha.–GarradeTigreagarrouRaboVermelhoeo imobilizounochão.RaboVermelholutou,masnãoconseguiusesoltar.E…–PataNegraengoliuem seco, os olhos fixos no chão – Garra de Tigre enfiou os dentes nagargantadeRaboVermelho,e tudoseacabou.–PataNegradeixoucairoqueixosobreaspatas.CoraçãodeFogoseaproximou,deuumabraçoapertadoemPataNegra.

– Então Coração de Carvalho morreu porque as pedras caíram em cimadele.Foiumacidente–sussurrou.–Elenãofoimortoporoutrogato.–IssoaindanãoprovaqueGarradeTigresejaumassassino–ressaltou

ListraCinzenta.–Nãovejocomoissopodenosajudar.Porumtique-taquedecoração,ogatoavermelhadoofitou,semânimo.

De repente, arregalou os olhos e se sentou, as patas formigando deempolgação.–Podeajudar,sim.Seconseguirmosprovarqueahistóriadarochaquedespencouéverdadeira,ficaráclaroqueGarradeTigrementiuaodizerqueCoraçãodeCarvalhomatouRaboVermelho,etambémmentiuquandoalegoutermatadoCoraçãodeCarvalhoparasevingar.– Um momento – Listra Cinzenta interrompeu. – Pata Negra, na

Assembleia, você não disse nada sobre pedras caindo. Fez parecer queRaboVermelhotinhaassassinadoCoraçãodeCarvalho.–Fiz?–dissePataNegra,abrindoefechandoosolhos,tentandofocaro

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gato cinza. – Não foi minha intenção. O que acabei de contar foi o queaconteceu,eujuro.– E é por isso queEstrelaAzul não podenos ouvir – Coração de Fogo

continuou, empolgado. – Ela não acredita que Rabo Vermelho tenhamatadooutrorepresentante.Maselenãomatou.EstrelaAzulagoraterádenoslevarasério!Na mente de Coração de Fogo as novas descobertas rodopiavam. Ele

queria fazer mais perguntas a Pata Negra, mas sentiu medo no odor doamigo e percebeu o seu velho olhar de pavor, como se contar a históriativesse trazidode volta as lembranças infelizes doClã doTrovão. –Vocêteriaalgomaisanosdizer,PataNegra?–elemiou,gentil.Ogatofezquenão.– Isso émuito importantepara o clã – Coraçãode Fogo falou. –Agora

temosumaoportunidadedeconvencerEstrelaAzuldoperigoqueGarradeTigrerepresenta.–Seelanosderouvidos–ListraCinzentalembrou.–Éumapenavocêter

contado a ela a primeira versão de Pata Negra – ele acrescentou paraCoraçãodeFogo.–Agoraelemudoutodaahistóriaeelanãosaberáemqueacreditar.–Maselenãofezisso–CoraçãodeFogoprotestou,enquantoPataNegra

se encolhia com o tom irritado de Listra Cinzenta. – Nós é que nãoentendemosdireito, foi isso.Voudarum jeitode convencerEstrelaAzul.Pelomenosagorasabemosaverdade.Ogatonegropareceuumpoucomaisfeliz,masCoraçãodeFogoviaque

elenãoqueriamaispensarnopassado.Então,ficouaoladodePataNegra,ronronandoparalhedarcoragem,e,porumbrevemomento,ostrêsgatostrocaramlambidas.CoraçãodeFogosepôsdepé.–Estánahoradeirmosembora–miou.–Tenhacuidado–dissePataNegra.–SobretudocomGarradeTigre.–Nãosepreocupe–CoraçãodeFogooacalmou.–Vocênosdeutudoque

precisávamos para lidar com ele. – Com Listra Cinzenta atrás dele,escorregoupelaportaesearriscounaneve.– Está um gelo aqui fora! – o gato cinza reclamou ao pularem para a

cerca,no limiteda fazendadosDuas-Pernas.Devíamos ter trazidoalgunsdaquelescamundongosparaalimentaroclã–acrescentou.–Claro–CoraçãodeFogoreplicou.–EoquevocêdiriaaGarradeTigre

se ele quisesse saber onde conseguimos camundongos gordos com um

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tempodesses?A lua começava a descer no céu, que logo ganharia as cores do

amanhecer. O frio da neve penetrou a espessa pelagem de inverno deCoração de Fogo e pareceu ainda maior depois do calor do celeiro. Aspernas do felino doíam de exaustão; tinha sido uma longa noite, e elesainda precisavam atravessar o território do Clã doVento antes de poderdescansarnopróprio acampamento. CoraçãodeFogo sópensavanoquePataNegradissera.Estavacertodequeoamigofalaraaverdade,masseriadifícilconvencerorestodoclã.EstrelaAzul tinhaserecusadoaacreditarnahistóriaoriginaldePataNegra.Mas isso acontecera quando Coração de Fogo pensava que Rabo

Vermelho tinhamatadoCoração de Carvalho. EstrelaAzul não aceitava aideia de que Rabo Vermelho matara outro guerreiro semmotivo. AgoraCoraçãodeFogocompreendiaahistóriaverdadeira:amortedeCoraçãodeCarvalhoforaumacidente…MascomovoltaraacusarorepresentantesemumagarantiadaspalavrasdePataNegra?–OsgatosdoClãdoRiodevemsaber–eleconcluiuemvozalta,parando

sobumasaliênciarochosanodeclivedacharneca,ondeanevenãoestavatãoespessa.–Oquê?–miouListraCinzenta,aproximando-separadividiroabrigo.–

Saberoquê?–ComoCoraçãodeCarvalhomorreu–CoraçãodeFogoreplicou.–Eles

devemtervistoseucorpo.Poderãonosdizerseelemorreuporcausadaquedadapedraoudosgolpesdeumguerreiro.–Sim,asmarcasnocorpopodemprovar–concordouListraCinzenta.– E talvez eles saibam o que Coração de Carvalho quis dizer ao

mencionar que nenhum gato do Clã do Trovão jamais iria ferir Pelo dePedra–CoraçãodeFogoacrescentou.–PrecisamosfalarcomumguerreirodoClã doRio que tenha participado da batalha, talvez o próprio Pelo dePedra.–MasvocênãopodesimplesmenteentrarpeloacampamentodoClãdo

Rio e fazerperguntas – ListraCinzentaprotestou. – Lembre comoestavatensooclimanaAssembleia–abatalhaérecentedemais.–SeideumguerreirodoClãdoRioquereceberiavocê–CoraçãodeFogo

sussurrou.–SeestásereferindoaArroiodePrata,sim,eupoderiaperguntaraela–

ListraCinzentaconcordou.–Agora,porfavor,vamosvoltarparacasaantes

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queminhaspatascongelemdevez?Os dois gatos foram em frente, mais devagar agora porque o cansaço

deixavasuaspernaspesadas.ElesjápodiamverasQuatroÁrvoresquandodescobriramtrêsoutrosgatossubindoalateraldamontanha.AbrisalevouatéCoraçãodeFogoocheirodeumapatrulhadoClãdoVento.Comonãoqueria ter de explicar a presença deles no território inimigo, elerapidamente examinou os arredores, procurando um esconderijo, mas anevemaciaestavaportodolado,enãohaviarochasouarbustosporperto.E logo ficou claro que os gatos do Clã do Vento já os tinham visto, poismudaramdedireçãoparafalarcomeles.CoraçãodeFogoreconheceuoandar irregulardorepresentantedoclã,

Pé Morto, que estava com o guerreiro malhado Orelha Rasgada e seuaprendiz,PataVeloz.–Olá, Coraçãode Fogo – saudouPéMorto,mancando e comumolhar

surpreso.–Vocêsnãoestãomuitolongedecasa?– Bem… sim – Coração de Fogo admitiu, abaixando a cabeça com

respeito.–Éque…sentimosocheirodoClãdasSombrasna trilha,e issonostrouxeatéaqui.– O Clã das Sombras em nosso território! – Os pelos de Pé Morto

começaramaseeriçar.–Calculoquesejaumodorantigo–ListraCinzentalogoreplicou.–Nada

quepossanospreocupar.Lamentamostercruzadosuafronteira.– Vocês são bem-vindos aqui –miouOrelha Rasgada. – Os outros clãs

teriam nos destruído na última batalha se felinos do seu clã não nostivessem ajudado. Agora temos certeza de que eles vão ficar afastados.SabemquetêmdeprestarcontasaoClãdoTrovão.CoraçãodeFogo ficou sem jeito comoelogiodeOrelhaRasgada.Elee

ListraCinzentatinhamajudadoosfelinosdoClãdoVentonopassado,masagora ele estava pouco à vontade por ser visto no território deles. – Émelhorvoltarmos–disseemvozbaixa.–Tudoparececalmoobastanteporaqui.– Que o Clã das Estrelas ilumine seu caminho – miou Pé Morto,

agradecido.OsoutrosgatosdoClãdoVentodesejaramaosdoisamigosvotosdeboa

caçadaerumaramparacasa.– Isso foi azar –CoraçãodeFogo grunhiu, enquanto caminhavampara

QuatroÁrvores.

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–Porquê?–indagouListraCinzenta.–OsgatosdoClãdoVentonãoseimportaram com nossa presença no território deles. Agora todos somosamigos.–Useacabeça,ListraCinzenta–CoraçãodeFogomiou.–EsePéMorto,

napróximaAssembleia, disser aEstrelaAzulquenosviu?Ela vaiquerersaberoqueestávamosfazendoaqui!ListraCinzentaparou. –Camundongosmemordam! – cuspiu. – Jamais

pensei nisso. – Seus olhos encontraram os de Coração de Fogo, que viurefletido neles o seu própriomal-estar. – Estrela Azul não vai gostar desaberqueestivemosporaíinvestigandoGarradeTigre.CoraçãodeFogodeudeombros.–Tomaraquetudoseresolvaantesda

próximaAssembleia. Agora vamos, precisamos tentar caçar alguma coisaparalevarconosco.Elesepôsaandarnovamente,acelerandocadavezmaisopasso,atéos

doispassaremacorrersobreaneve.Assimqueultrapassaramafronteiradovale,emQuatroÁrvores,eentraramnopróprio território,na floresta,elerelaxouumpouco,parandoparasorveroar,procurandoalgumcheirode presa. Cheio de esperança, Listra Cinzenta farejou as raízes de umaárvorepróxima,masvoltoudesapontado.–Nada–resmungou.–Nemumsócamundongo,sequerumbigode!– Não temos tempo de procurar – Coração de Fogo decidiu. O céu já

estava claro acima das árvores. O tempo corria e, a cada tique-taque decoração, aumentavaapossibilidadedea ausênciadelesdoacampamentosernotada.A luz do amanhecer ficava cada vez mais forte, à medida que se

aproximavamda ravina. Combraços e pernas doloridos pelo cansaço, osmúsculosrijosporcausadofrio,CoraçãodeFogoiaàfrente,emsilêncio,entreasrochas,parachegaraotúneldetojo.Agradecidoporestaremcasa,elesaltouparaabocaescuradotúnel.Aochegaraoacampamento,paroutão de repente que Listra Cinzenta, que vinha logo atrás, praticamente oatropelou.– Saia daí, sua grande bolota de pelo! – Listra Cinzenta deu ummiado

abafado.CoraçãodeFogonãorespondeu.Sentadoaalgumascaudasdedistância,

nomeioda clareira, estavaGarradeTigre.Tinhaa cabeçaenterradanosenormesombros,osolhosamarelosbrilhando,triunfantes.–Talvezvocêsqueirammedizerondeestiveram…–elebramiu.–Epor

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quedemoraramtantoparavoltardaAssembleia?

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CAPÍTULO3

–EENTÃO?–DESAFIOUGARRADETIGRE.–Pensamosemircaçar.–CoraçãodeFogolevantouacabeçaesustentou

oolharcordeâmbardorepresentante.–Oclãprecisadepresafresca.–Masnãoconseguimosnada–ListraCinzentaacrescentou,colocando-se

aoladodoamigo.– As presas estavam enroscadas nos ninhos, não é? – Garra de Tigre

ciciou.EledeuumpassoàfrenteatéficarnarizcomnarizcomCoraçãodeFogo; farejou o guerreiro avermelhado, fazendo o mesmo com ListraCinzenta.–Então,comoexplicamessecheirodecamundongoemvocês?Coração de Fogo trocou olhares comListra Cinzenta. Parecia que fazia

muito tempo que tinham caçado no celeiro dos Duas-Pernas, e ele tinhaesquecidoqueaindapodiamexalarocheirodoscamundongosquetinhamcomido.Listra Cinzenta o fitou, desamparado, com os olhos arregalados pela

ansiedade.–EstrelaAzulprecisasaberdisso–orepresentantegrunhiu.–Sigam-me.Semopção, osdois jovensguerreirosobedeceram.GarradeTigre foi à

frente, cruzando a clareira até a toca de Estrela Azul, ao pé da PedraGrande.Alémdacortinade líquenquecobriaaentrada,CoraçãodeFogoviualíderdoclãtodaenrolada,aparentementeadormecida,masquandoorepresentanteabriucaminho,entrandonatoca,elalogolevantouacabeçaeficoudepé.–Oquehá,GarradeTigre?–miou,intrigada.–Essesdoisbravosguerreirosestiveramcaçando.–AvozdeGarrade

Tigre estava marcada pelo desprezo. – Estão de barriga cheia, mas nãotrouxeramsequerumapeçadepresafrescaparaoclã.– É verdade? – Estrela Azul desviou os olhos azuis para os jovens

guerreiros.–Nãoestávamosemumapatrulhadecaça–ListraCinzentasussurrou.Isso era verdade, pensou Coração de Fogo. Tecnicamente, não tinham

quebradooCódigodosGuerreirospelo fatodenão trazerempresas,maselesabiaquenãoeraumaboadesculpa.–Comemosaprimeirapresaquepegamos,paramanteraenergia–ele

miou. – E então não achamosmais nada. Queríamos trazer presa fresca,

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masnossasorteacabou.GarradeTigrerosnou, insatisfeito,comosenãoacreditasseemumasó

palavra.–Mesmoassim–EstrelaAzulmiou–,comaspresas tãoescassas, todo

gatodeveriapensarnoclãantesdepensaremsimesmo,epartilharoquetivesse.Estoumuitodesapontadacomvocêsdois.CoraçãodeFogoficouenvergonhado,claro.EstrelaAzuloaceitaranoclã

quando ele era um gatinho de gente, e ele queria mostrar à líder quemereciasuaconfiança.SeestivessesozinhocomEstrelaAzul,podiatentarexplicaraverdadeirarazãodetervoltadotãotardeaoacampamento.Mas,comGarradeTigreoencarando,eraimpossível.Alémdomais,CoraçãodeFogonãoestavaprontoparafalarcomEstrela

AzularespeitodaúltimaversãodePataNegrasobreabatalhanasRochasEnsolaradas.QueriaconversarprimeirocomosgatosdoClãdoRio,paraconfirmaraverdadesobreamortedeCoraçãodeCarvalho.–Desculpe-me,EstrelaAzul–elemioubaixinho.–Desculpasnãoenchemabarrigadeninguém–EstrelaAzuladvertiu.–

Éprecisocompreenderqueasnecessidadesdoclãvêmemprimeirolugar,aindamais na estação sem folhas. Até o próximo nascer do sol, terão decaçar primeiro para o clã, depois para vocês. Só poderão se alimentarquandoosdemaisfelinostiveremcomido.–Seuolharficoumaissuave.–Osdoisparecemexaustos–elaobservou.–Vãodormiragora,masquerovê-lossairparacaçarantesdosolalto.–Sim,EstrelaAzul.–CoraçãodeFogoinclinouacabeçaesaiu.Listra Cinzenta o seguiu, o pelo afofado, em um misto de medo e

vergonha.–Juravaqueelaiaarrancarnossascaudas!–elemiou,quandoosdoissedirigiamàtocadosguerreiros.–Então,considerem-segatosdesorte.–Ogrunhidoabafadotinhavindo

de trás deles. Coração de Fogo olhou por cima do ombro e viu Garra deTigre.–Seeufosseolíder,teriadadoavocêsocorretivodevido.Coração de Fogo sentiu o pelo eriçar de raiva. Os seus dentes se

arreganharam, em um início de ronco surdo. Ouviu, então, um sibilar deadvertênciadeListraCinzentaeengoliuoquequeriadizer,voltandoaseafastardeGarradeTigre.– Está certo, gatinho de gente – o representante debochou. – Vá se

abrigar no seu ninho. Estrela Azul pode confiar em você,mas eu não. VivocênabatalhadoClãdoVento,nãoseesqueça.–Eleadiantouopassoe

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tomouafrentedosdoisamigos,rumoàtocadosguerreiros.ListraCinzentadeixouescaparumsuspirolongoetremido.–Coraçãode

Fogo–elemiou,solene–,ouvocêéogatomaisvalentedetodososclãsouémesmolouco!PeloamordoClãdasEstrelas,nãoprovoquemaisGarradeTigre.–Nãopediparaelemeodiar–ressaltouCoraçãodeFogo,zangado.Elese

esgueirouentreosgalhoseviuGarradeTigreseajeitandoemseu lugar,pertodocentro.Ogatodemanchasescurasoignorou,dandoumasduasoutrêsvoltasantesdeseenroscarparadormir.Coração de Fogo preparou um local de dormir para si. Perto dali,

TempestadedeAreiaePelagemdePoeiraestavamespichados,ladoalado,oscorposrelaxados.TempestadedeAreialevantou-sequandoCoraçãodeFogochegouperto.

–GarradeTigreestávigiandovocêdesdequevoltamosdaAssembleia–elacochichou.–Deiseurecado,masachoqueelenãoacreditou.Oquevocêfezparadeixá-locomraiva?CoraçãodeFogosentiu-seconfortadopeloolharsolidáriodagata,mas

nãoconseguiuevitarumlongobocejo.–Desculpe,TempestadedeAreia–sussurrou.–Precisodormirumpouco.Falocomvocêmaistarde.Eleachouqueagataficariamagoada,mas,aocontrário,elaselevantoue

se aproximou dele. Quando o guerreiro se ajeitou no musgo macio quecobriaochãodatoca,elaseagachouaoladodeleeoabraçou.Pelagem de Poeira abriu um olho e fitou Coração de Fogo. Bufou e,

ostensivamente,virou-lheascostas.MasCoraçãode Fogo estava cansadodemais para se preocupar como

ciúmedePelagemdePoeira.Jáembarcavanosono.Aofecharosolhos,suaúltimasensaçãofoiadocalordopelodeTempestadedeAreia.

CoraçãodeFogopercorreuatrilhadecaça.Seucorpoeraenergiapura,eeleabriuabocaparasentirocheirodepresa.Sabiaqueeraumsonho,masaansiedadepelapresafrescafezsuabarrigaroncar.Assamambaiasformavamumarcosobresuacabeça.Umaluzbrilhantee

cordepéroladerramava-sesobreele,comosefossenoitedeluacheiaemum céu sem nuvens. Cada folha de samambaia, cada lâmina de capimreluzia,easformasdesbotadasdasprímulas,emespessosgruposladeandoo caminho, pareciambrilhar com luzprópria. Por todaparte, CoraçãodeFogo sentiao calorúmidodaestaçãodo renovo.Oacampamentogelado,

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cobertodeneve,pareciaestaranovevidasdedistância.Em uma subida do caminho, um gato surgiu à sua frente. O guerreiro

parou,ocoraçãodisparadoquandoelereconheceuFolhaManchada.Agataatartarugadaadiantou-se,tocandoonarizdoguerreirocomoseu,rosadoemacio.CoraçãodeFogoesfregouofocinhonodela,comumrom-romdofundo

dopeito.Quandoelechegouàfloresta,FolhaManchadaeraacurandeiradoClãdoTrovão,mas tinhasidomortaasangue-frioporum invasordoClãdasSombras.Ogatoavermelhadoaindasentiasuafalta,masoespíritodelaàsvezesovisitavaemsonhos.Folha Manchada deu um passo atrás. – Venha, Coração de Fogo – ela

miou. – Tenho uma coisa para lhemostrar. – Ela se afastou suavemente,olhandoaoredordevezemquandoparatercertezadequeeleaseguia.Ogatoaacompanhou,admirandoossalpicosdeluaremsuapelagem.No

cumedomorro,agataoconduziupelotúneldesamambaiaatéumacadeiademontanhas,altaecobertadecapim.–Olhe–elamiou,elevandoonarizparaapontar.CoraçãodeFogo ficou surpreso comoque viu.No lugardas árvores e

camposconhecidos,viaàsuafrenteumabrilhanteexpansãodeáguaqueseestendiaatéondeavistaalcançava.Aintensidadedaluzrefletidaoobrigoua fechar os olhos.De onde viera toda aquela água?Ele nãopodia sequerdizersese tratavado territóriodealgumclã–oclarãoprateadodeixavatudoplanoeescondiaosmarcosconhecidos.OdoceodordeFolhaManchadadominouoaraoseuredor.Eleouviusua

voz bem pertinho. – Lembre, Coração de Fogo – ela sussurrou –, a águapodeextinguirofogo.Abalado, o guerreiro voltou a abrir os olhos. Uma brisa fria agitava a

superfície da água e penetrava a pelagem avermelhada do gato. FolhaManchada tinhapartido. CoraçãodeFogoprocurou-apor todosos lados,masaluzcomeçouaenfraquecer.Ocalorfoiemboracomela,assimcomoasensaçãodocapimsobaspatas.Emmenosdeumtique-taquedecoraçãoeleestavaimersoemfrioeescuridão.

–CoraçãodeFogo!CoraçãodeFogo!Elesentiuumacutucada.Tentouseesquivar,evoltouaouvirseunome.

Era a voz de Listra Cinzenta. Coração de Fogo abriu os olhos comdificuldadeeviuograndegatocinza,ansioso,agachadopertodele.

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–CoraçãodeFogo–elerepetiu.–Acorde,jáéquasesolalto.Resmungandoporcausadoesforço,ogatosaiudeseuninhoeficoude

pé.Umaluzpálidaefriafiltrava-sepelosgalhosdaaberturadatoca.PelodeSalgueiroeRiscadeCarvãoaindadormiampertodocentrodoarbusto,masTempestadedeAreiaePelagemdePoeirajátinhamsaído.–Vocêestavafalandoduranteosono–ListraCinzentalhedisse.–Você

estábem?–Oquê?–CoraçãodeFogoaindanãotinhasaídodosonho.Erasempre

desagradáveldespertaretomarconsciênciadequeFolhaManchadaestavamorta,saberquejamaisvoltariaafalarcomela,excetoemsonhos.–Osoljáestáquaseapino–repetiuListraCinzenta.–Devemossairpara

caçar.–Eusei–CoraçãodeFogomiou,esforçando-separadespertardevez.–Entãoseapresse.–Oamigolhedeuumaúltimacutucadaantesdesair

datoca.–Encontrovocênotúneldetojo.Coração de Fogo lambeu uma das patas e a esfregou no focinho. Foi

colocandoasideiasemordeme,derepente,lembrou-sedaadvertênciadeFolhaManchada:“Aáguapodeextinguirofogo.”Oqueelaestavatentandodizer?CoraçãodeFogopensounaprimeiraprofeciadeFolhaManchada,adequeofogosalvariaoclã.EnquantoseguiaListraCinzentaparaforadatoca,CoraçãodeFogopercebeuqueestavatremendo,masnãodefrio.Elesentia que os problemas estavam se acumulando, como nuvens pesadasqueanunciamumatempestade.Seaáguaqueestavachegandoextinguiriao fogo, quem salvaria o clã? Será que as palavras de Folha ManchadaqueriamdizerqueoClãdoTrovãoestavacondenado?

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CAPÍTULO4

CORAÇÃODEFOGOSUBIUARAVINA,ANEVEESTALANDOsobsuaspatas.Nocéuazulpálido,osolbrilhavae,emboraseusraiosemitissempoucocalor,avisãojáalegravaoguerreiroeoenchiadeesperançadeque faltavapoucoparaaestaçãodorenovo.Logoatrás,ListraCinzenta faziaecoaospensamentosdoamigo.–Com

umpoucodesorte,osolvaitrazeralgumaspresasparafora.–Nãoseouviremvocêbatendoospésdessejeito!–brincouTempestade

deAreia,quepassoucorrendoporele.Pata de Samambaia, o aprendiz de Listra Cinzenta, protestou,

demonstrando lealdade. – Ele não bate os pés! – mas o gato cinzarespondeu apenas com um grunhido bem-humorado. Coração de Fogosentiaumnovofluxodeenergiacorrerporseucorpo.Emboraatarefadehojefosseumcastigo,ninguémdisseraqueteriamdecaçarsozinhos.Eeramuitobomestarcomamigos.Coração de Fogo fez uma careta ao lembrar o olhar gelado de Estrela

Azul quando ela o repreendeu, e também Listra Cinzenta, por,aparentemente, teremcaçadoapenaspara sipróprios.Ele compensariaamentira trazendoomáximopossíveldepresas frescas.O clãpassavapormuitanecessidade.Quandoosamigossaíramnaquelamanhã,oestoquedepresasdoacampamentoestavaquasenofim,eamaioriadosgatosjátinhasaído para caçar. Coração de Fogo avistara Garra de Tigre na ravina,voltando com a patrulha da manhã. Ele trazia na boca um esquilo, cujalonga cauda ia varrendo a neve. Quando passou por Coração de Fogo, orepresentanteestreitouosolhosameaçadoramente,masnãosoltouapresaparafalar.No alto da encosta, Tempestade de Areia corria na frente, e Listra

Cinzenta começava a mostrar a Pata de Samambaia onde procurarcamundongosentreas raízesdasárvores.CoraçãodeFogoosobservava,semevitarumapontade tristezaaopensaremPatadeCinza, suaantigaaprendiz.Nãofosseseuinfortúnio,elaestariacomelesagora.Masapernaaleijada,consequênciadoacidentenoCaminhodoTrovão,amantinhanatocacomPresaAmarela,acurandeiradoClãdoTrovão.Afastandoessespensamentosperturbadores,elerastejouparaafrente,a

boca aberta para conferir os cheiros da floresta. Uma brisa leve agitou asuperfíciedanevetrazendoumodorfamiliar.Coelho!

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CoraçãodeFogo levantouacabeçaeviuumacriaturadepelomarromfungando sob umamoita de samambaia, onde algumas pontas de capimdespontavam na neve. O gato se agachou em posição de caça e, comcuidado,pataapata,seaproximou.Noúltimomomento,ocoelhopercebeuepulou,mas era tardedemais. Antes que ele soltasse umúnico guincho,CoraçãodeFogodeuumsaltoeoagarrou.Oguerreirovoltoutriunfanteaoacampamento,arrastandoocoelho.Ao

entrar na clareira viu, com alívio, que a pilha de presas frescas voltara acrescerdepoisdaspatrulhasde caçadamanhã.EstrelaAzul, ao ladodaspresas, miou quando o guerreiro chegou com o coelho. – Muito bem,CoraçãodeFogo.Vocêpodelevá-lodiretoàtocadePresaAmarela?Agradecidopela aprovaçãoda líder, CoraçãodeFogo cruzou a clareira

com a presa. Um túnel de samambaias, agora marrons e quebradiças,levava ao canto isolado do acampamento onde, em uma grande rochapartidaaomeio,viviaacurandeiradoClãdoTrovão.Abaixando-sesobassamambaias,CoraçãodeFogoviuagatadeitadana

entradadatoca,aspatasrecolhidassobopeito.PatadeCinzaestavaàsuafrente,comopelocinza-escuroafofadoeosolhosazuisfixosnacaralargadacurandeira.– Agora, Pata de Cinza – miou a velha gata, com sua voz rouca. – As

almofadinhasdaspatasdaCaolhaestãorachadasporcausadofrio.Comovamosajudá-la?–Folhasdecravo-da-índia,emcasodeinfecção–PatadeCinzareplicou

depronto.–Unguentodemilefólioparaamaciarasalmofadinhasdaspataseajudarnacicatrização.Sementesdepapoulaseelaestiversentindodor.–Muitobem–ronronouPresaAmarela.PatadeCinzasentou-seaindamaisempertigada,osseusolhosbrilhavam

de orgulho. Como Coração de Fogo sabia muito bem, a curandeira nãodesperdiçavaelogios.–Certo.Vocêpodelevarasfolhaseounguento–miouPresaAmarela.–

Elanãovaiprecisardesementesdepapoula,amenosqueoscortespiorem.PatadeCinzaselevantoue,acaminhodatoca,avistouCoraçãodeFogo

perto do túnel. Com um miado de prazer e seu andar desajeitado ecambaleante,foiencontrá-lo.CoraçãodeFogo sentiu o remorso atingir-lheopeito, comoumagarra

afiada.AntesdoacidentenoCaminhodoTrovão,quelheesmagaraaperna,PatadeCinzaeradeumaenergia inesgotável.Agora,nuncamaispoderia

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corrercomoantesedesistiradosonhodesetornarumaguerreiradoClãdoTrovão.Porém o monstro do Caminho do Trovão não tinha esmagado seu

espírito brilhante. Seus olhos dançavam quando ela alcançou Coração deFogo.–Presafresca!–exclamou.–Éparanós?Ótimo!– Também, já não era sem tempo! – resmungou Presa Amarela, ainda

dentrodatoca.–Esaibaqueocoelhoémuitobem-vindo–acrescentou.–Desdeoamanhecer,meioclãjápassouporaqui,reclamandodeumadorououtra.CoraçãodeFogoatravessouaclareiracomocoelhonabocaeocolocou

diantedacurandeira.PresaAmarelacutucouapeça.–Talveztenhaumpoucodecarnenesses

ossos,pelomenosdestavez–comentoudemávontade.–Tudobem.PatadeCinza,pegueasfolhasdecravo-da-índiaeomilefólioparaCaolhaevoltelogo.Sevocêforrápida,talvezsobrealgumcoelhoparavocê.Pata de Cinza fez um rom-rom e acariciou o ombro de Presa Amarela

comapontadacauda,aopassarporela.Comcarinho,CoraçãodeFogomiou:–Comovaiela?Estásecuidando?–Elaestábem–retorquiuPresaAmarela.–Paredesepreocupar.CoraçãodeFogobemquegostaria.PatadeCinzatinhasidosuaaprendiz.

Ele se considerava, em parte, responsável pelo acidente. Deveria terimpedidoqueelafossesozinhaaoCaminhodoTrovão.Parandoderepente,lembroucomexatidãocomotudoocorrera.Garrade

TigrepediraaEstrelaAzulqueoencontrassenoCaminhodoTrovão,masalíder estavamuitodoente.Haviapoucosguerreirosnoacampamento; elepróprioestavaparasairemmissãourgente, iapegargatáriaparatrataratosseverdedalíder.EletinhaditoaPatadeCinzaquenãofosseencontrarGarradeTigreemseulugar,masaaprendiz ignorouaordem.Oacidenteaconteceu porque o representante deixou marcas de seu cheiro pertodemaisdabeiradoCaminhodoTrovão.Paraogatoavermelhado,foraumaarmadilhaparaEstrelaAzul,eGarradeTigreeraoresponsável.QuandoCoraçãodeFogosedespediudePresaAmarelaevoltouacaçar,

sentiuumanovaondadedeterminaçãopara revelar a culpadeGarradeTigre.EmnomedeRaboVermelho,assassinado;dePataNegra,expulsodoclã;dePatadeCinza,manca.Edetodososgatosdoclã,vivosoupornascer,queestavamemperigoporcausadasededepoderdorepresentante.

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Era o dia seguinte ao do castigo. Coração de Fogo decidira não perdertempo e visitar logo o território do Clã do Rio para tentar descobrir averdade sobre a morte de Coração de Carvalho. Agachou-se à beira dafloresta e olhou para o rio congelado. O vento produzia um barulhosussurrante ao fazer farfalhar o junco seco que despontava do gelo e daneve.Aoseulado,ListraCinzentafarejavaabrisa,alertaparaoodordeoutros

felinos.–SintoocheirodosgatosdoClãdoRio–sussurrou.–Maséantigo.Achoquepodemosatravessarcomsegurança.CoraçãodeFogopercebeuqueestavamaispreocupadoemnãoservisto

pelosgatosdeseupróprioclãdoqueemencontrarumapatrulhainimiga.GarradeTigrejádesconfiavaqueelefosseumtraidor.Sedescobrisseoqueos dois estavam fazendo, eles virariam carniça. – Certo – sussurrou. –Vamos.Confiante,ListraCinzentaliderouopercursoatravésdogelo,pisandode

leve para não escorregar. A princípio, Coração de Fogo ficou admirado;depoisconcluiuqueoamigo,provavelmente,vinhaatravessandoorioemsegredohaviaalgumasluasparaencontrarArroiodePrata.Eleseguiacommais cuidado, com certo receio de que o gelo se rompesse sob seu peso,fazendo-o afundar na água gelada e escura. Aqui, em um ponto do rioabaixo das Rochas Ensolaradas, ficava a fronteira entre os dois clãs.Durantetodaatravessia,opelodeCoraçãodeFogoficoueriçado,eatodomomentoeleolhavaparatrásparasecertificardequenenhumgatodeseuclãosobservava.Assimquechegaramàoutramargem,osdoisgatossearrastarampara

umabrigode juncosenovamente farejaramoaràprocurade sinaisdosgatosdoClãdoRio.CoraçãodeFogotinhaconsciênciadomedoinconfessodeListraCinzenta;cadamúsculodoguerreirocinzaestavatensoenquantoeleperscrutavaoscaulesdosjuncos.–Achoquenósdoisestamosloucos–ele sussurrou para Coração de Fogo. – Você me fez prometer encontrarArroiodePratanasQuatroÁrvoressemprequeeuquisessevê-la,e,agora,aquiestamos,noterritóriodoClãdoRiomaisumavez.– Eu sei – respondeu Coração de Fogo. – Mas é a única maneira.

PrecisamosconversarcomumgatodoClãdoRio,enossamaiorchanceéArroiodePrata.Eleestavatãoapreensivoquantooamigo.Estavamcercadosdeodores

do Clã doRio, ainda que não fossem recentes. Para Coração de Fogo eracomo se tivesse voltado a ser um gatinho de gente pela primeira vez na

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floresta,perdidoemumlugarassustadoredesconhecido.Usandoos juncosparaseesconder,osdoisgatoscomeçaramasubiro

rio.CoraçãodeFogotentavapisardeleve,comoseperseguisseumapresa,abarrigaarrastandonaneve.Elesesentiadesconfortávelemsaberquesuapelagemcordefogosobressaíanasuperfíciebranca.ComoocheirodoClãdo Rio estava cada vez mais forte, ele desconfiou que o acampamentoestivesseperto.–Quantofalta?–mioubaixinhoparaListraCinzenta.–Nãomuito.Estávendoaquelailhalánafrente?Elestinhamchegadoaumpontoemqueorio,emumacurva,seafastava

do territóriodoClãdoTrovãoe ficavamais largo.Nãomuito longe,umapequena ilha rodeada de juncos sobressaía na superfície congelada. Ossalgueirosdasmargensseinclinavam,easpontasdosgalhosmaisbaixosestavampresasnogelo.–Umailha?–repetiuCoraçãodeFogo,perplexo.–Masoqueacontece

quandoorionãoestácongelado?Elesatravessamanado?–ArroiodePratadizqueaáguanaquelepontoémuitorasa–explicou

ListraCinzenta.–Maseumesmonuncaestivenoacampamento.Aoladodeles,oterrenoseelevavaligeiramente,paralongedamargem

de juncos. No alto, tojos e pilriteiros cresciam em tufos espessos, e umazevinho aqui, outro ali, mostravam folhas verdes e reluzentes sob umacamadadeneve.Mas,entreosjuncoseosarbustosprotetores,haviaumaextensãodemargemnua,quenãoserviaparaesconderpresasnemgatos.Listra Cinzenta avançara agachado, devagar; depois, levantou a cabeça

farejandoo ar e olhando emvolta com cautela. Então, semavisar, saltouparalongedosjuncosedisparouencostaacima.CoraçãodeFogocorreutambém,derrapandonaneve.Aochegaremaos

arbustos,osdoisseenfiaramentreosgalhosepararamparatomarfôlego.O guerreiro de pelagem vermelha procurou ouvir o uivo de alerta dealguma patrulha, mas não havia nenhum som vindo do acampamento.Então,comumsuspirodealívio,elesejogousobreasfolhasmortas.–Daqui podemos ver a entrada – disse Listra Cinzenta. – Era onde eu

costumavaesperarArroiodePrata.CoraçãodeFogoesperavaqueelachegasselogo.Quantomaistempoeles

ficassemali,maioresaschancesdeseremdescobertos.Mudoudeposiçãopara ter uma boa visão da encosta e do acampamento da ilha, masconseguiu ver apenas silhuetasdos gatos semovimentando. E estava tãoempenhado em espreitar através da densa vegetação que protegia a ilha

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que só viu a gata malhada que passava por seu esconderijo quando elaestavaaquaseumacaudadedistância.Elacarregavaumpequenoesquilonaboca,eseuolharestavaatentoaosolocongelado.Coração de Fogo permaneceu imóvel, agachado, acompanhando a gata

com o olhar e pronto para saltar se ela o visse. Felizmente, pensou oguerreiro,ocheirodapresaqueelatraziaconsigotinhadisfarçadooodordos intrusosdoClãdoTrovão.Derepenteelepercebeuqueumgrupodequatrogatos,lideradospelarepresentantedoClãdoRio,PelodeLeopardo,saía do acampamento. A representante era ferozmente hostil ao Clã doTrovão desde que a sua patrulha encontrara Coração de Fogo e ListraCinzenta invadindoseu território,depoisde terem levadooClãdoVentoparacasa.Na lutaqueseseguira,umgatodoClãdoRio tinhamorrido,ePelo de Leopardo não estava disposta a perdoar. Se descobrisse os doisamigosagora,nemosdeixariaexplicaroqueestavamfazendodesse ladodorio.ParaalíviodeCoraçãodeFogoapatrulhanãoveionasuadireção,mas

seguiupeloriocongelado,rumoàsRochasEnsolaradas–parapatrulharafronteira,elepensoucomseusbigodes.Enfim,umasilhuetafamiliar,cinza-prateado,apareceu.–ArroiodePrata!–ronronouListraCinzenta.CoraçãodeFogoobservouagatadoClãdoRiopisandocomdelicadeza

nogelopara chegaràmargem.Elaeramesmobonita, coma cabeçabemtorneada e o pelo espesso e macio. Não era de estranhar que o amigoestivesseapaixonado.ListraCinzentapôs-sedepé,prontoparachamá-la,quandodoisoutros

felinos saíramdo acampamento e correramao encontro da gata.UmeraGarra Negra, guerreiro de pelo negro, facilmente reconhecível nasAssembleiasporcausadaspernas longasedocorpodelgado;ooutroeraumgatomenor,queCoraçãodeFogodesconfiouserseuaprendiz.–Patrulhadecaça–murmurouListraCinzenta.Ostrêsgatoscomeçaramasubiraencosta.CoraçãodeFogosibilou,em

ummistode impaciência emedo.Ele esperavaquepudessem falar a sóscom Arroio de Prata. Como separá-la de seus companheiros? E se GarraNegrasentisseocheirodosintrusos?Afinal,elenãoestavacarregandoumavaliosapresa,capazdebloquearsuasglândulasolfativas.GarraNegraassumiuafrente,juntocomoaprendiz,enquantoArroiode

Prata os seguia a uma ou duas caudas de distância. Quando a patrulha

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chegouaosarbustos,agataprateadaparou,empinandoasorelhas,comosetivessedetectadoumodor familiar,aindaque inesperado.ListraCinzentasoltou um silvo curto e preciso, e as orelhas da namorada giraram emdireçãoaosom.–ArroiodePrata!–ListraCinzentamiou,carinhoso.A gata agitou as orelhas, e Coração de Fogo pôde soltar a respiração,

aliviado.Elaouvira.–GarraNegra!–elachamouoguerreiroàsuafrente.–Voutentarpegar

umcamundongoaquinosarbustos.Nãomeespere.CoraçãodeFogoouviuGarraNegramiaremresposta.Momentosdepois

Arroio de Prata escorregou por entre os galhos até onde os jovensguerreiros do Clã do Trovão estavam agachados. Ela deu um abraçoapertado em Listra Cinzenta, com um sonoro rom-rom, e os doisencostaramosfocinhoscomevidenteprazer.–PenseiquevocêsóqueriaquenosencontrássemosnasQuatroÁrvores

–miouArroiodePrataquandoacabaramoscumprimentos.–Oquevocêestáfazendoaqui?–TrouxeCoraçãodeFogoparavê-la.Elequerlhefazerumapergunta.OsdoisnãoseviamdesdeabatalhaemqueCoraçãodeFogoadeixara

escapar. Ele imaginou que Arroio de Prata estivesse se lembrando domesmofato,poiselaabaixougraciosamenteacabeçaparaele,semnenhumtraço da hostilidade defensiva que mostrara quando Coração de Fogotentara dissuadi-la de ver Listra Cinzenta, logo no início do namoro dosdois.–Sim,CoraçãodeFogo?–OquevocêsabearespeitodabatalhanasRochasEnsolaradas,quando

CoraçãodeCarvalhomorreu?–Elefoidiretoaoassunto.–Vocêestavalá?–Não–elareplicou.Pareciapensativa.–Issoémuitoimportante?–Ésim.Vocêpoderiaperguntaraalgumgatoquetenhaparticipadoda

batalha?Eupreciso…–Voufazermelhor–interrompeuArroiodePrata.–Voutrazeraprópria

PédeBrumaparafalarcomvocê.CoraçãodeFogotrocouumolharcomListraCinzenta.Seráqueerauma

boaideia?– Tudo bem – miou a gata, adivinhando o que o preocupava. – Pé de

BrumasabesobremimeListraCinzenta.Elanãogosta,masnãovairevelaronossosegredo.Elaviráagora,seeupedir.

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CoraçãodeFogohesitou,masacabouconcordando.–Certo.Obrigado.Ele mal acabara de falar e Arroio de Prata já deslizava para fora dos

arbustosdenovo.CoraçãodeFogoaobservousaltandonaneve,rumoaoacampamento.–Elanãoéfantástica?–murmurouListraCinzenta.CoraçãodeFogonadadisse,apenasseacomodouparaesperar.Eleficava

maisnervosoacadamomento.SeelessedemorassemmuitonoterritóriodoClãdoRio,acabariamsendodescobertos.Nessecaso,teriammuitasortese conseguissem escapar com o pelo intacto. – Listra Cinzenta – elecomeçou.–SeArroiodePratanãopuder…Entãoeleviuagatacinzaeprateadaatravessarogelo,voltando,seguida

por outra gata. Elas subiram a encosta, com Arroio de Prata abrindocaminho entre os arbustos. A gata que a acompanhava era uma rainhamagra, compeloespessoecinzentoeolhosazuis.Porumtique-taquedecoração o guerreiro doClã doTrovão achouque ela lhe parecia familiar.CertamenteeleaviraemumaAssembleia.QuandoarainhaviuCoraçãodeFogoeListraCinzenta,ficouparalisada.

Desconfiada, seu pelo começou a se eriçar e as orelhas se abaixaram,colando-seàcabeça.–PédeBruma–miouArroiodePratabaixinho.–Essessão…– Gatos do Clã do Trovão! – ciciou Pé de Bruma. – O que eles estão

fazendoaqui?EsteéoterritóriodoClãdoRio!– Pé de Bruma, ouça… – Arroio de Prata foi até a amiga e tentou

gentilmentecutucá-laparaqueseaproximassedosguerreiros.A rainha não se mexeu. Coração de Fogo assustou-se com a franca

hostilidade em seus olhos. Teria sido bobagem pensar que o Clã do Riopoderiaajudá-lo?–Euguardeiseusegredosobreele–PédeBrumalembrouaArroiode

Prata,apontandoonamoradodelacomoqueixo.–MasnãovouficarquietasevocêcomeçaratrazeroClãdoTrovãointeiroparacá.–Nãosejaridícula–retorquiuArroiodePrata.–Tudobem,PédeBruma–CoraçãodeFogo logo retrucou. –Nósnão

roubamossuaspresas,nemestamosaquiparaespionar.Precisamos falarcom alguém que tenha participado da batalha das Rochas Ensolaradas,aquelaemqueCoraçãodeCarvalhomorreu.–Porquê?–PédeBrumaestreitouosolhos.

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–É…difícilexplicar.MasnãoénadaquepossaprejudicaroClãdoRio.JuropeloClãdasEstrelas.A jovem rainha pareceu relaxar e deixou que Arroio de Prata a

conduzisseatéqueelaestivesseaoladodeCoraçãodeFogo.ListraCinzentaficoudepé,curvandoacabeçaparaevitarosgalhosmais

baixos.–Sevocêsdoisvãoconversar,ArroiodePrataeeuvamosdeixá-losàvontade.CoraçãodeFogo abriu a bocaparaprotestar, alarmado coma ideiade

estar sozinho em território inimigo, mas o casalzinho já escapulia pelosarbustos.Pouco antes de desapareceremnomeio dos galhos de pilriteiro, Listra

Cinzentavirou-seemioubaixinho.–Ah,CoraçãodeFogo,antesdevoltar,roleocorposobrealgumacoisacomcheirobemforteparaesconderoodordoClãdoRio.–Elepiscouosolhos,constrangido.–Cocôderaposaébom.–Espere,ListraCinzenta…–CoraçãodeFogodeuumpulo.Masfoiinútil,

oamigoeanamoradajátinhamido.–Nãosepreocupe–miouPédeBruma.–Nãovoucomervocê.Euteria

dor de barriga. – O gato se virou e viu os olhos azuis dela brilhando,curiosos. – Você é Coração de Fogo, não é? – disse ela. – Eu o vi nasAssembleias. Dizem que você era gatinho de gente. – A voz era fria edemonstravaumadesconfiançamaldisfarçada.– É verdade – ele admitiu, constrangido, sentindo uma pontada

conhecida, o desprezo que os gatos nascidos nos clãs tinham pelo seupassado.–Masagorasouumguerreiro.Pé de Bruma lambeu a pata e passou-a lentamente sobre uma orelha,

mantendoos olhos fixosnele. – Certo –mioupor fim. – Eu lutei naquelabatalha.Oquevocêquersaber?CoraçãodeFogoparouummomentopara colocaras ideiasemordem.

Teria apenas uma chance de descobrir a verdade. Não podia cometernenhumerro.–Vamoslogocomisso–elaresmungou.–Deixeimeusfilhotesparavir

conversarcomvocê.–Écoisarápida–prometeuCoraçãodeFogo.–Oquevocêpodemedizer

sobreamortedeCoraçãodeCarvalho?– Coração de Carvalho? – Pé de Bruma abaixou a cabeça e fitou as

própriaspatas.Depoisderespirarprofundamente, levantouosolhosparaCoraçãodeFogomaisumavez.–Eleerameupai,vocêsabia?

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– Não, não sabia. Sinto muito. Não o conheci, mas dizem que era umbravoguerreiro.– O melhor e o mais corajoso. E ele não deveria ter morrido. Foi um

acidente.Oguerreirosentiuocoraçãobatermaisrápido.Eraissooqueprecisava

saber!–Temcerteza?Nãofoiumgatoqueomatou?–Ele foi feridonabatalha,masnãomortalmente.Depois, encontramos

seu corpo sobumaspedras caídas.Nossa curandeiradisseque essa foi acausadamorte.–Então,nenhumgatofoiresponsável…–CoraçãodeFogosussurrou.–

PataNegraestavacerto.–Oquê?–Arainhacinza-azuladofranziuatesta.–Nada–miouapressadamenteCoraçãodeFogo.–Nadadeimportante.

Muitoobrigado,PédeBruma.Erasóissoqueeuqueriasaber.–Então,seétudo…– Não, espere! Há mais uma coisa. Na batalha, um dos nossos felinos

ouviu Coração de Carvalho dizer que nenhum gato do Clã do TrovãodeveriaferirPelodePedra.Vocêsabeoqueelequisdizercomisso?A rainhadoClãdoRio ficouemsilêncioporum tempo,osolhos azuis

distantes.Emseguida,meneouacabeçacomfirmeza,comoseasacudisseparatiraráguadopelo.–PelodePedraémeuirmão–elamiou.– Então Coração de Carvalho era pai dele também – Coração de Fogo

deduziu.–Porissoelequeriaprotegê-lodosgatosdoClãdoTrovão?– Não! – Os olhos de Pé de Bruma brilhavam com um fogo azulado. –

CoraçãodeCarvalhonuncatentouprotegernenhumdenós.Elequeriaquefôssemosguerreiroscomoeleequehonrássemosoclã.–Então,porque…?–Nãosei.–Elapareciaperplexadeverdade.Coraçãode Fogo tentounão se sentir decepcionado. Pelomenos agora

sabia ao certo como Coração de Carvalho tinha morrido. Mas nãoconseguira se livrar da sensação de que o que ele dissera sobre Pelo dePedraeraimportante.Seaomenoselepudesseentender…– Talvez minha mãe saiba – miou Pé de Bruma inesperadamente.

Coração de Fogo virou-se para ela, suas orelhas formigando. – PoçaCinzenta–elaacrescentou.–Seelanãopuderexplicar,nenhumoutrogatopoderá.

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–Vocêpoderiaperguntaraela?– Talvez… – Sua atitude ainda era de defesa, mas Coração de Fogo

imaginou que ela estava tão curiosa quanto ele sobre o significado daspalavras de Coração de Carvalho. – Mas talvez seja melhor vocêmesmofalarcomela.O guerreiro ficou surpreso com a sugestão, já que a gata parecera tão

hostilaprincípio.–Posso?Agora?–Não–dissePédeBrumadepoisdeumapausa.–Éarriscadodemais

vocêficaraqui.ApatrulhadePelodeLeopardologoestarádevolta.Alémdisso,PoçaCinzentaagoraéumaanciãequasenãodeixaoacampamento.Voudemorarumpoucoparaconvencê-laasair.Masnãosepreocupe;voudarumjeito.Coração de Fogo fez que sim com a cabeça, ainda que um pouco

relutante.UmapartedeleestavaimpacienteparaouviroquePoçaCinzentatinhaadizer,masaoutrasabiaquePédeBrumaestavacerta.–Comovouencontrá-la?–MandareiumamensagemporArroiodePrata–prometeuarainha.–

Agoravá.SePelodeLeopardopegarvocêaqui,nãopodereiajudá-lo.CoraçãodeFogopiscouparaela.Teriagostadodedar-lheumalambida

de agradecimento, mas teve medo de receber em troca uma patada naorelha.PédeBrumapareciaestarmenoshostil,porémdeixarabemclaroqueelespertenciamaclãsdiferentes.–Obrigado,PédeBruma–elemiou.–Nuncavoumeesquecerdisso.Ese

eupuderfazeralgumacoisaporvocê…–Apenasváembora!–elasibilou.CoraçãodeFogodeslizouparaovão

entre os arbustos, enquanto ela acrescentava, com um rom-rom bem-humorado:–Enãoseesqueçadococôderaposa.

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CAPÍTULO5

–NÃOACREDITONOQUEESTOUFAZENDO–CORAÇÃODE FOGO resmungoubaixinhoaopassarpelotúneldetojoparachegaraoacampamento.Eletinhaachadococôfrescoderaposanaflorestaerolaraocorposobre

ele até ficar impregnado do cheiro. Agora, nenhum gato seria capaz deadivinharqueeleestiveranoterritóriodoClãdoRio.Seodeixariamentrarnatocadosguerreiroseraoutrahistória.Pelomenos,aovoltar,elepegaraumesquilo,então,nãoestavaretornandodepatasvazias.Quandosaiudotúneldetojo,viuEstrelaAzulnoaltodaPedraGrande.

Percebeuque tinhaacabadodeperderaconvocaçãohabitualdoclã,poisviuoutrosgatossaindodesuastocasparasereunirnaclareira.CoraçãodeFogodeixouoesquilonapilhadepresafrescaefoisejuntar

aosdemais.Dooutroladodaclareira,osfilhotesdeCaraRajadasaíramdoberçário aos trancos e barrancos, seguidos pela mãe. O guerreiroidentificou com facilidadeo filhode sua irmã,FilhotedeNuvem,por suapelagembrancaebrilhante.Princesa,queaindavivianoLugardosDuas-Pernas,nãotinhavontadededeixaravidaconfortáveldegatinhodegente,mas as histórias que Coração de Fogo contava sobre a vida no clã aencantaram,eelalheentregaraseuprimogênito.Os gatos do clã ainda tinham dificuldade de aceitar outro gatinho de

genteentreeles,emboraCaraRajadatratasseFilhotedeNuvemcomoumde seus filhos. Coração de Fogo sabia, por experiência própria, quantadeterminaçãodeveriaterparaconquistarseuespaço.Ao se aproximar, Coração de Fogo ouviu o filhote branco reclamar em

voz alta paraCaraRajada. – Por queeu nãoposso ser umaprendiz? SouquasetãograndequantoqualquerumdosfilhotesbobosealaranjadosdePeledeGeada!OinteressedeCoraçãodeFogoaumentou.Deviaestarquasenahorade

EstrelaAzulrealizaracerimôniadenomeaçãodosdoisúltimosfilhotesdePeledeGeadacomoaprendizes.Osirmãosdeles,PatadeSamambaiaePatadeCinza,tinhamsidonomeadoshaviaalgumasluas,eosdoisdeviamestarloucos para que chegasse a sua vez. Ficou feliz de voltar a tempo detestemunharoacontecimento.– Shh! –CaraRajada fezbaixinhoparaFilhotedeNuvem, ao reunir os

filhotesàsuavolta,procurandoumbomlugarparasesentarem.–Vocêsópoderáseraprendizdepoisdecompletarseisluas.

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–Masqueroseraprendizagora!CoraçãodeFogodeixouCaraRajada tentandoexplicaros costumesdo

clã ao insistente Filhote de Nuvem e foi se sentar bem na fila da frente,pertodeTempestadedeAreia.Agatagirouacabeça,alarmada.–CoraçãodeFogo!Ondevocêesteve?

Estácomocheirodeumaraposamortaháumalua!–Desculpe.Foiumacidente.–Eledetestavafedorcomoqualqueroutro

gatoenãogostavadeserobrigadoamentirparaTempestadedeAreiaarespeitodecomotinhaficadocomaquelecheiro.– Bem, fique longe demim até que esse fedor suma! – Embora a gata

falasse firme, ela ria comosolhos enquanto se afastava, pondo-se a umacaudadedistância.– E trate de se limpar antes de entrar na toca – grunhiu uma voz

conhecida.CoraçãodeFogovirou-seeviuGarradeTigre.–Nãovoudormircomessacatinganonariz!Oguerreirocurvouacabeça,envergonhado,quandoorepresentantese

afastou, caminhando com arrogância; então, olhou para cima, porqueEstrelaAzulcomeçaraafalar.–Estamosaqui reunidosparadaradois filhotesdo clã seusnomesde

aprendiz. – Ela olhou para baixo, onde Pele de Geada, orgulhosa, estavacomacaudaenroscada,arrumadinhaemtornodaspatas.Osdoisfilhotesaladeavam e, enquanto Estrela Azul falava, o maior, alaranjado como seuirmãoPatadeSamambaia,pôs-sedepécomumpulo,impaciente.–Venham,aproximem-seosdois–EstrelaAzulconvidou,calorosamente.Ofilhotealaranjadocorreucomoumloucoe,derrapando,parouaopéda

PedraGrande.Airmãoseguiu,maisdevagar.Erabrancacomoamãe,mascommanchasalaranjadasnascostas;acaudatambémeraalaranjada.Coração de Fogo fechou os olhos por um momento. Não fazia muito

tempo que recebera Pata de Cinza como aprendiz. No fundo queria sermentordeumdessesfilhotes,massabiaque,seEstrelaAzulfosselhedaressahonra,jáoteriaprevenido.Talvezelanuncamaisoescolhesse,elepensou,comumapertoquegelou

seucoração;afinal,tinhafalhadocomPatadeCinza.–PelodeRato–miouEstrelaAzul–,vocêmedissequeestáprontapara

cuidardeumaprendiz.VocêseráamentoradePatadeEspinho.CoraçãodeFogoobservouPelodeRato,umagatamagrinha,masforte,

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de pelagem marrom, dar um passo à frente e ficar ao lado do filhotealaranjado,quedeuumacorridaparaencontrá-la.–PelodeRato–EstrelaAzulcontinuou–,vocêsemostrouumaguerreira

corajosae inteligente.Nãodeixedetransmitirsuacoragemesabedoriaaseunovoaprendiz.Enquantoalíderfalava,PelodeRatomostrava-setãoorgulhosaquantoo

recém-nomeado, Pata de Espinho. Os dois trocaram toques de nariz eforam para a beira da clareira. Coração de Fogo ouviu Pata de Espinhomiando,ansioso,jápressionandoamentoracommilperguntas.A filhotebranca e alaranjada ainda estava sob aPedraGrande, fitando

EstrelaAzulláemcima.CoraçãodeFogoestavapertoobastanteparaverosbigodesdelatremeremdeansiedade.–Nevasca–EstrelaAzulanunciou–,vocêestálivreparacuidardeoutro

aprendiz, agora queTempestade deAreia tornou-se uma guerreira. VocêserámentordePataBrilhante.Ogatãobranco,queestavaespichadonafrentedogrupo, levantou-see

foiatéPataBrilhante,queesperavaporelecomosolhosbrilhando.–Nevasca–miouEstrelaAzul–,vocêéumguerreirodemuitotalentoe

experiência. Sei que vai transmitir todos os seus conhecimentos a essajovemaprendiz.–Comcerteza–Nevascaronronou.–Bem-vinda,PataBrilhante.–Elese

inclinouparaqueosdoistrocassemtoquesdenarizeaescoltoudevoltaaogrupodegatos.Os outros felinos começaram a se aproximar, cumprimentando os

aprendizes, chamando-ospelosnovosnomes.Enquanto se juntavaaeles,CoraçãodeFogoviuListraCinzentaportrásdosgatos,aoladodotúnel.Oamigodevia tervoltadoaoacampamentosemservisto,enquantoorestodoclãestavaouvindoEstrelaAzul.–Está tudoacertado–ListraCinzentamioubaixinho, indoatéCoração

de Fogo. – Se amanhã fizer sol, Arroio de Prata e Pé de Bruma vãoconvencerPoçaCinzentaa sairdoacampamentopara fazerumpoucodeexercício.Elasvãonosencontrarquandoosoljáestiveralto.–Onde?–CoraçãodeFogoindagou,semsaberaocertosequeriaentrar

doisdiasseguidosnoterritóriodoClãdoRio.EraperigosodeixaralimuitocheirofrescodoClãdoTrovão.– Há uma clareira na floresta, bastante sossegada, nãomuito longe da

ponte dos Duas-Pernas – Listra Cinzenta explicou. – Era onde Arroio de

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Prataeeucostumávamosnosencontrar,antes,vocêsabe…Coração de Fogo compreendeu que Listra Cinzenta estavamantendo a

promessadeseencontrarcomArroiodePrataapenasnasQuatroÁrvores,eera sóporcausadodesejodedescobrirmaisa respeitodabatalhadasRochasEnsolaradasqueelesestavamcorrendoesseriscoextra.–Obrigado–elesussurrou,sincero.Quandofoiescolherumapresafrescanapilha,CoraçãodeFogosentiaas

patas formigarem de ansiedade pelo próximo sol a pino, quando iriadescobriroquePoçaCinzentasabiaacercadessemistério.

–Olugaréeste.–ListraCinzentafaloubaixinho.EstavamaapenasalgunspulosdecoelhodafronteiradoClãdoRio,mas

do lado do Clã do Trovão. Havia no local um grande vale, protegido porarbustoscheiosdeespinhos.Anevetinhaseacumuladoalieumpequenocórrego, agora congelado em pingentes, criara um canal profundo entreduas rochas. Coração de Fogo ficou imaginando que, quando chegasse aestação do renovo e o gelo derretesse, ali seria um belo lugar, bastanteescondido.Os dois gatos escorregaram para debaixo de um dos arbustos

espinhentos e ajeitaram as folhas secas para fazer ninhos confortáveisenquantoesperavam.CoraçãodeFogotinhaapanhadoumcamundongonocaminho e o trouxera como presente para Poça Cinzenta. Tentandoesqueceraprópria fome,colocou-onochão,ondeas folhasestavammaissecas,eseinstalou,comaspatassobocorpo.Sabiaque,comessareunião,estavacolocandoasieaosseusamigosemperigo,semcontarqueestavaquebrando o Código dos Guerreiros e mentindo para o seu clã, emboraacreditasse que tudoo que estava fazendo era para o bemdo grupo. Elequeriaapenastercertezadeterescolhidoocaminhocerto.Osolfracodaestaçãosemfolhasbrilhavananevedovale.Osolapino

tinhachegadoeidoembora,eCoraçãodeFogoestavacomeçandoapensarqueosoutrosgatosnão iamaparecerquandosentiuumcheirodoClãdoRioeouviu,vindadorio,umavozfina,envelhecida,reclamando.– Este lugar é longe demais para os meus velhos ossos. Vou morrer

congelada.– Bobagem, Poça Cinzenta, o dia está lindo. – EraArroio de Prata. –O

exercíciovailhefazerbem.Coração de Fogo ouviu um resfolegar de desdém como resposta. Três

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gatosapareceram,descendopelalateraldovale.DoisdeleseramArroiodePrataePédeBruma.Oterceiroeraumaanciãqueelenãoconhecia,magra,depelomalhado,comumfocinhocheiodecicatrizes,embranquecidoporcausadaidade.Nametadedadescida,elaparou,enrijeceuocorpoe farejouoar.–Há

gatosdoClãdoTrovãoaqui!–ciciou.CoraçãodeFogoviuArroiodePrataePédeBrumatrocaremumolhar

preocupado.–É,eusei–PédeBrumafaloubaixinhoparaaanciã.–Estátudobem.PoçaCinzentaolhouparaela,desconfiada. –Comoassim, tudobem?O

queelesestãofazendoaqui?– Querem apenas falar com você – Pé de Bruma disse gentilmente. –

Confieemmim.Coração de Fogo tevemedode que a anciã fosse virar as costas e sair

gritandoparadaroalarme;mas,paraseualívio,PoçaCinzentamalpodiaconter a curiosidade. Ela seguiu Pé de Bruma, sacudindo comaborrecimentoaspatas,queafundavamnanevefofa.–ListraCinzenta?–ArroiodePratamioubaixinho.Oguerreirocolocouacabeçaparaforadoarbusto.–Estamosaqui.OstrêsgatosdoClãdoRioentraramnoabrigoespinhento.PoçaCinzenta

ficoutensaaoseverfrenteafrentecomCoraçãodeFogoeListraCinzenta,eseusolhosamarelosbrilharamcomhostilidade.–EsteéCoraçãodeFogo,eeste,ListraCinzenta–miouArroiodePrata.–

Eles…–Dois deles – Poça Cinzenta interrompeu. – Émelhor terem uma boa

explicação.– Nós temos – Pé de Bruma assegurou. –Trata-se de gatos decentes –

embora sejam do Clã do Trovão, claro. Dê a eles a oportunidade de seexplicar.PédeBrumaeArroiodePrataolharamesperançososparaCoraçãode

Fogo.– Precisamos falar com você – Coração de Fogo começou, sentindo os

bigodes se movimentarem com o nervosismo. Com uma das patas, eleempurrouparaagataapeçadepresafresca.–Tome,trouxeparavocê.PoçaCinzentaolhouocamundongo.–Bem,sendodoClãdoTrovãoou

não,pelomenosvocêéeducado.–Elaseagachouecomeçouamastigara

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presafresca,deixandoàmostraosdentesquebradosporcausadaidade.–Fibroso,masserve–dissecomavozrouca,engolindocomavidez.Enquanto ela comia, Coração de Fogo tentava encontrar as palavras

certas.–GostariadesabersobrealgoqueCoraçãodeCarvalhodissepoucoantesdemorrer–elearriscou.AsorelhasdePoçaCinzentativeramumsúbitoestremecimento.–SoubedoqueaconteceunabatalhanasRochasEnsolaradas–Coração

deFogocontinuou.–Poucoantesdemorrer,CoraçãodeCarvalhodisseaum de nossos guerreiros que nenhum felino do Clã do Trovão jamaisdeveriaferirPelodePedra.Vocêsabeoquesignificamessaspalavras?Sódepoisdeengoliroúltimopedaçodecamundongoepassaraenorme

línguacor-de-rosaàvoltadofocinho,PoçaCinzentarespondeu.Sentou-seeenroscouacaudaemtornodaspatas.Porumbomtempo,fixounogatoumolharpensativo,atésentirquepodialersuamente.–Achoqueémelhorvocêssaírem–elamiou,enfim,paraasgatasdoClã

doRio.–Vamos lá, saiam.Você também–elaacrescentou,dirigindo-seaListraCinzenta.–VoufalarapenascomCoraçãodeFogo.Vejoqueeleéoúnicoqueprecisasaber.Ogatodepelagemcordechamaengoliuumprotesto.Seeleinsistissena

permanênciadeListraCinzenta,aanciãdoClãdoRiopoderiaserecusarafalar.Eleolhouparaoamigoeviusuaprópriaexpressãointrigadarefletidanos olhos amarelos de Listra Cinzenta. O que Poça Cinzenta tinha paradizerquenãoqueriaqueos felinosdopróprio clãouvissem?CoraçãodeFogoestremeceu,enãofoiporcausadofrio.Alguminstintolhediziaquehaviaumsegredoali,escurocomoasombradasasasdeumcorvo.MasseeraumsegredodoClãdoRio,elenãopodiaimaginaroqueteriaavercomoClãdoTrovão.Pelos olhares que trocaram, Arroio de Prata e Pé de Bruma também

estavamconfusas,mascomeçaramaseafastardoarbustosemprotestos.–VamosesperarvocêpertodapontedosDuas-Pernas–ArroiodePrata

miou.– Não há necessidade – Poça Cinzenta ciciou, impaciente. – Posso ser

velha,masnãosouincapaz.Seimuitobemvoltarsozinha.Arroio de Prata deu de ombros e as duas gatas do Clã do Rio foram

embora,seguidasporListraCinzenta.Poça Cinzenta ficou em silêncio até os odores dos felinos que saíram

começaremadesaparecer.–Bem–elacomeçou–,PédeBrumalhedisse

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queeusouamãedelaedePelodePedra?– Disse. – O nervosismo inicial de Coração de Fogo tinha diminuído,

transformando-se em respeito à rainha, sua velha inimiga, àmedida quepercebiaasabedoriasobseuaparentepaviocurto.–Bem–grunhiuagata.–Nãosou.–CoraçãodeFogoabriuabocapara

falar,maselacontinuou.–Eduqueiosdoisdesdebebês,masnãosãomeusfilhos. Coração de Carvalho trouxe-os paramim nomeio da estação semfolhas,quandotinhamapenasalgunsdiasdenascidos.–MasondeCoraçãodeCarvalhoapanhouosfilhotes?–CoraçãodeFogo

deixouescapar.Os olhos da gata se estreitaram. – Eleme disse que os encontrou na

floresta,comosetivessemsidoabandonadosporrenegadosoupelosDuas-Pernas. Mas de burra eu não tenho nada, emeu nariz sempre foi muitoeficiente.Osfilhotescheiravamàfloresta,claro,mashaviaoutroodorportrás:ocheirodoClãdoTrovão.

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CAPÍTULO6

–OQUÊ?–CORAÇÃODEFOGO,ATÔNITO,malconseguiafalar.–VocêestádizendoquePédeBrumaePelodePedravieramdoClãdoTrovão?– Estou. – Poça Cinzenta deu algumas lambidas no pelo do peito. – É

exatamenteoqueestoulhedizendo.O guerreiro estava atordoado. – Coração de Carvalho os roubou? –

perguntou.Opelodaanciãseeriçoueelaarreganhouosdentes,emitindoumronco.

– Coração de Carvalho era um nobre guerreiro. Nunca se rebaixaria aroubarfilhotes!–Sintomuito.–Alarmado,CoraçãodeFogoseagachouecolouasorelhas

àcabeça.–Eunãoquisdizer…Équeétãodifícildeacreditar!Poça Cinzenta torceu o nariz e, aos poucos, seu pelo se abaixou

novamente.CoraçãodeFogoaindadigeriaoqueelaacabarade lhedizer.SeCoraçãodeCarvalhonão roubaraos filhotes, talvezeles tivessemsidolevadosdoacampamentodoClãdoTrovãoporrenegados–masporquê?Epor que abandoná-los logo em seguida, quando ainda tinham no pelo ocheirodeseuclã?–Então…seeramfilhotesdoClãdoTrovão,porquevocêcuidoudeles?–

balbuciou.Queclã cuidariadebomgradode filhotesdoadversário,eemumaestaçãoemqueaspresasjáeramescassas?PoçaCinzentadeudeombros.–PorqueCoraçãodeCarvalhomepediu.

Embora, na época, ele ainda não fosse representante, era um jovemguerreirodefuturo.Eutinhadadoàluzhaviapouco,mastodososbebês,excetoum,morreramporcausadofriointenso.Eutinhaleitedesobra,eospobrezinhos não teriam visto o sol nascer novamente se algum gato nãotivesse cuidado deles. O cheiro do Clã do Trovão, que eles traziam, logodesapareceu–elacontinuou.–EapesardeCoraçãodeCarvalhonãoter-meditoaverdadesobreaorigemdosfilhotes,euorespeitavaosuficienteparanão fazer mais perguntas. Graças a ele, e também a mim, os filhotes setornaramfortes,eagorasãobonsguerreiros:pontoparaoclãdeorigem.–PédeBrumaePelodePedrasabemdisso?–CoraçãodeFogoindagou.– Agora me escute – disse asperamente Poça Cinzenta. – Os dois não

sabemdenada,esevocê lhescontaroqueacabeiderelatararrancoseufígadoedoude comeraos corvos. –Ao falar, ela esticoua cabeçapara afrenteearreganhouosdentes.Apesardaidadedagata,CoraçãodeFogose

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encolheu.–Elessempreacreditaramqueeuerasuaverdadeiramãe–resmungoua

gata.–Gostodepensarqueelesatéseparecemumpoucocomigo.Enquantoelafalava,CoraçãodeFogosentiualgogirandoemsuamente,

como o súbito movimento de uma folha caída que trai o camundongoescondidosobela.ElesabiaqueosfatosquePoçaCinzentatinhaacabadode lhe confiar deviam significar alguma coisa, mas ele não conseguiadescobriroqueera.–Elessempre foramleaisaoClãdoRio– insistiuPoçaCinzenta.–Não

queroqueessa lealdade fiquedivididaagora.Ouvi fofocasa seurespeito,Coração de Fogo – sei que você já foi gatinho de gente –, então deveentendermaisdoquequalqueroutrogatooquesignificaterumapataemcadamundo.Coração de Fogo sabia que jamais deixaria um gato passar pelas

incertezas que ele experimentara enquanto ainda não pertenciacompletamenteaoclã.–Prometojamaiscontaraeles–miou,solene.–JuropeloClãdasEstrelas.A anciã se mostrou mais aliviada e, esticando as patas da frente e

levantandootraseironoar,espreguiçou-se.–Aceitoasuapalavra,CoraçãodeFogo–eladisse.–Nãoseise issooajudoudealgummodo,maspodeexplicarporqueCoraçãodeCarvalho jamaisdeixariaqueumgatodoClãdoTrovãomaltratassePédeBrumaouPelodePedra.Mesmoafirmandonada saber sobre a origem dos filhotes, Coração de Carvalho pode tersentidoocheirodoClãdoTrovão,comoeusenti.Noquelhesdizrespeito,eles são leais apenas ao Clã do Rio,mas poderia parecer que, por causadeles,alealdadedeCoraçãodeCarvalhotenhaficadodividida.–Fico-lhemuitoagradecido–ronronouCoraçãodeFogo,tentandosero

maisrespeitosopossível.–Nãoseiqualéaimportânciadissoparaoqueeuprecisodescobrir,masrealmenteachoqueéimportante,paraosdoisclãs.–Assimseja–miouPoçaCinzenta,franzindoatesta.–Masagoraqueeu

jálhereveleitudo,vocêdevedeixarnossoterritório.– Claro –miou Coração de Fogo. – Você não vai nem saber que estive

aqui.EPoçaCinzenta…–Elefezumapausaantesdeabrircaminhoatravésdosarbustos,fitouosolhosamarelodesbotadodagataporummomentoedisse:–Muitoobrigado.

Enquanto Coração de Fogo retornava ao seu acampamento, suamente

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davavoltas.PédeBrumaePelodePedratinhamsanguedoClãdoTrovão!MasagorapertenciaminteiramenteaoClãdoRio,semteramínimaideiade sua herança dividida. Lealdade ao sangue e lealdade ao Clã não eramsempreamesmacoisa,elerefletia.SuasprópriasraízesdegatinhodegentenãotornavamseucompromissocomoClãdoTrovãomenosforte.E agora que Pé deBruma confirmara comoCoração de Carvalho tinha

morrido,talvezEstrelaAzulestivessedispostaaaceitarqueGarradeTigretinha assassinado Rabo Vermelho. Coração de Fogo decidiu questioná-latambémsobreasúltimasrevelaçõesdePoçaCinzenta;quemsabea líderlhecontassesobreumpardefilhotesroubadodoacampamento.Quando chegou à clareira, Coração de Fogo foi direto para a Pedra

Grande.AoseaproximardatocadeEstrelaAzul,ouviudoisgatosmiandoesentiuocheirodeGarradeTigrejuntocomodalíder.Rapidamente,eleseespremeu contra a pedra, na esperança de não ser visto, pois orepresentanteabriacaminhopelacortinadelíquenqueprotegiaabocadatoca.–Vou tentarenviarumapatrulhadecaçaparaasRochasdasCobras–

disseporcimadoombroogatomalhadodetonsescuros.–Fazalgunsdiasquenenhumgatocaçaporlá.–Boaideia–concordouEstrelaAzul,saindotambém.–Aspresasainda

estãoescassas.QueoClãdasEstrelaspermitaqueodegelocheguelogo.Com um grunhido, Garra de Tigre concordou e se dirigiu, em largas

passadas, à tocadosguerreiros, semperceberCoraçãodeFogoagachadopertodapedra.OrepresentantefoiemboraeCoraçãodeFogofoiatéaentradadatoca.–

Estrela Azul – ele chamou, quando a líder se virava para entrar. – Eugostariadefalarcomvocê.–Muitobem–mioualíder,calma.–Entre.Coração de Fogo a seguiu. A cortina de líquen voltou para o lugar,

impedindoaentradadaintensaluminosidadedaneve.Noescurodatoca,defrenteparaoguerreiro,alíderperguntou:–Oquefoi?Elerespiroufundo.–VocêselembradahistóriaquePataNegracontou,

que foi Rabo Vermelho que matou Coração de Carvalho na batalha dasRochasEnsolaradas?Estrela Azul se empertigou. – Coração de Fogo, isso já passou – ela

grunhiu. – Já lhe disse que tenhomotivos suficientes para acreditar queissonãoéverdade.

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–Eusei.–Ogatoabaixouacabeça,respeitoso.–Masdescobriumdadonovo.EstrelaAzulesperouemsilêncio.Oguerreironãoconseguiasaberoque

elaestavapensando.–CoraçãodeCarvalhonãofoimortoporumgato,nempor Rabo Vermelho nem por Garra de Tigre – continuou, nervoso,consciente de que era tarde demais para mudar de ideia. – Coração deCarvalhomorreuquandoumapedracaiuemcimadele.EstrelaAzulfranziuatesta.–Comovocêsabedisso?–Eu…eufuiverPataNegradenovo–admitiuoguerreiro.–Depoisda

últimaAssembleia.–Jásepreparavaparaenfrentarafúriadalíder,depoisdaconfissão,maselapermaneceucalma.–Porissovocêseatrasou–elaobservou.–Eutinhadedescobriraverdade–miouCoraçãodeFogorapidamente.

–Eeu…– Espere ummomento. – A gata interrompeu. – Antes, Pata Negra lhe

dissequeRaboVermelhotinhaassassinadoCoraçãodeCarvalho.Agoraelemudousuahistória?–Não,de jeitonenhum– jurouoguerreiro.–Euéqueentendierrado.

RaboVermelhofoiresponsávelapenasempartepelamortedeCoraçãodeCarvalho,porquefoielequemlevouCoraçãodeCarvalhoparadebaixodapedra,queacaboucaindoemcimadele.MasissonãoquerdizerqueRaboVermelhoquisessematá-lo.Eeranissojustamentequevocênãoacreditava– ele lembrou. – Que Rabo Vermelho pudesse matar algum gatodeliberadamente.Alémdisso…–Bem,edaí?–questionouEstrelaAzul,calmacomosempre.– Atravessei o rio e falei com uma gata do Clã do Rio – confessou o

guerreiro. – Apenas para ter certeza. Ela me confirmou: Coração deCarvalhomorreuporcausadaquedadapedra.–Oguerreiroolhouparaaspróprias patas, esperando a manifestação de fúria da líder por ele terentradoemterritórioinimigo;mas,quandolevantouacabeça,oqueviunoolhardeEstrelaAzulfoiumgrandeinteresse.Elafezumpequenogestocomacabeça,aquiescendo,eCoraçãodeFogo

continuou. – Então sabemos que Garra de Tigre, de fato,mentiu sobre amortedeCoraçãodeCarvalho–nãofoiGarradeTigrequeomatou,comovingançapelamortedeRaboVermelho.Apedraomatou.SeráqueGarrade Tigre não está mentindo também a respeito da morte de RaboVermelho?

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Àmedidaque ele falava, EstrelaAzul ia dando sinaisde estar abalada,semicerrando os olhos até que restasse apenas uma pálida linha azul napenumbradatoca.Elasoltouumlongosuspiro.–GarradeTigreéumbomrepresentante–murmurou.–Eessasacusaçõessãograves.–Eu sei –CoraçãodeFogo concordou, de forma tranquila. –Mas você

nãovê,EstrelaAzul,comoeleéperigoso?Alíderafundouacabeçanopeito.Ficouemsilêncioportantotempoque

Coração de Fogo ponderou se deveria ir embora, mas ela não o tinhadispensado.– Há outra coisa – arriscou ele. – Algo estranho a respeito de dois

guerreirosdoClãdoRio.Ao ouvir a afirmação, Estrela Azul levantou os olhos; as orelhas se

moveramparaafrente.Porumtique-taquedecoraçãooguerreirohesitouemespalharahistóriadeumaanciãtemperamentaldoClãdoRioquenãotinhanenhumacomprovação,massuanecessidadedesaberaverdadelhedeu coragemparaprosseguir. –PataNegramedisseque, nabatalhadasRochas Ensolaradas, Coração de Carvalho impediu Rabo Vermelho deatacarumguerreirochamadoPelodePedra.CoraçãodeCarvalhoafirmouque jamais nenhum felino do Clã do Trovão deveriamaltratá-lo. Eu… eutive a oportunidade de falar com uma das anciãs do Clã do Rio, quemedissequeCoraçãodeCarvalhotrouxePédeBrumaePelodePedraparaelacuidar, quando eles ainda eram bebês. Era a estação sem folhas, e elagarantiuqueosfilhotesteriammorridosenãotivessemrecebidocuidados.Poça Cinzenta – a anciã – os amamentou. Disse que… que eles tinham ocheirodoClãdoTrovão.Poderiaserverdade?Algumavezforamroubadosfilhotesdonossoacampamento?EstrelaAzulestavatãoquietaque,poralgunstique-taquesdecoração,o

guerreiropensouqueelanãootivesseescutado.Entãoelaselevantouefoiaté ele, até ficarem quase nariz com nariz. – E você deu ouvidos a essabobagem?–elasibilou.–Apenaspenseiquedeveria…–Esperavamaisdevocê,CoraçãodeFogo–grunhiua líder.Seusolhos

brilhavam como gelo, o pelo do pescoço eriçado. – Entrar no territórioadversárioeouvirpapofurado?AcreditaremumgatodoClãdoRio?Vocêfariamelhorpensandonosseusprópriosdeveresdoquevindoaquicontarhistórias sobre Garra de Tigre. – Ela o observou por um longo tempo. –Talvezeletenharazãoemduvidardesualealdade.

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–Sin…Sintomuito–gaguejouojovemguerreiro.–MaspenseiquePoçaCinzentaestivessedizendoaverdade.EstrelaAzulsoltouumlongosuspiro.Todoointeressequedemonstrara

antestinhadesaparecido,deixandoseusemblantefrioedistante.–Vá–elaordenou.–Encontrealgumacoisaútilparafazer–algumacoisaapropriadaa um guerreiro. E nunca – nunca – fale sobre isso comigo de novo.Entendeu?– Sim, Estrela Azul. – Coração de Fogo começou a recuar para sair da

toca.–EsobreGarradeTigre?Ele…–Vá!–alídercuspiuaordemcomraiva.Emsuapressaparaobedecer,aspatasdeCoraçãodeFogoderrapavam

na areia. Uma vez fora da toca, o gato se precipitou pela clareira, sódescansandoquandohaviaalgumasraposasdedistânciaentreeleealíder.Sentia-se perdido. No começo Estrela Azul parecia pronta a ouvi-lo,masassimqueelemencionouos filhotesroubadosdoClãdoTrovãonãoquismaissaberdenada.UmsúbitoarrepiopercorreuCoraçãodeFogo.EseEstrelaAzulquisesse

saber como ele tinha conseguido falar com os gatos do Clã do Rio? E sedescobrisse a respeito de Listra Cinzenta e Arroio de Prata? E quanto aGarradeTigre?Porumcurtoperíodo,CoraçãodeFogotiveraaesperançadefazeralíderentenderquantoorepresentanteeraperigoso.Que problemão, ele pensou. Agora ela não vai querer ouvir mais nada

contraGarradeTigre.Estragueitudo!

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CAPÍTULO7

CONFUSO E INFELIZ, CORAÇÃO DE FOGO FOI para a tocadosguerreiros.Antesdeentrar, hesitou. Não queria se arriscar a encontrar Garra de Tigre, e nãoestavacomhumorsuficienteparatrocarlambidascomosamigos.De forma quase inconsciente, rumou para o túnel de samambaias que

levava à toca de Presa Amarela. Pata de Cinza, mancando, quase colidiucom ele. Coração de Fogo caiu sentado, fazendo barulho, e a gata paroubruscamente,espirrandonevenele.–Desculpe,CoraçãodeFogo–elabufou.–Nãovivocê.Oguerreiro sacudiuanevedapelagem.AoverPatadeCinza, osolhos

azuis brilhando, sem graça, o pelo arrepiado em todas as direções, seucoração de súbito se abrandou. Ela era assim na época em que era suaaprendiz;depoisdoacidente,poralgumtempoCoraçãodeFogotevemedode que essa Pata de Cinza tivesse desaparecido para sempre. – Para quetantapressa?–eleperguntou.–VouprocurarervasparaPresaAmarela.Tantosgatosficaramdoentes,

com toda essa neve, que seus estoques de medicamentos estão muitobaixos.Queroconseguiromáximopossívelantesqueescureça.–Voucomvocêparaajudar–CoraçãodeFogoseofereceu.EstrelaAzul

lhedisseraparafazeralgumacoisaútil,nemmesmoGarradeTigrepodiaacharerradocolherervasparaacurandeira.–Ótimo!–PatadeCinzamiou,feliz.Ladoalado,atravessaramaclareira

para chegar ao túnel de tojo. CoraçãodeFogoprecisoudiminuir opassoparaacompanharagata,mas,seelapercebeu,nãopareceuseimportar.Pouco antesde alcançaremo túnel, o guerreiroouviu vozes agudasde

filhotes.Voltou-separaos galhosdeumaárvore caída,pertoda tocadosanciãos. Um grupo tinha cercado Cauda Partida, que tinha recebido umninhoentreosgalhos.DesdequeEstrelaAzulofereceraabrigoaoantigolíder,eleviviasozinho

emsuatoca,comguerreirosmontandoguarda.Poucosgatospassavamporali,enãohaviarazãodeosfilhotesestaremporperto.–Vilão!Traidor!–EraavozdeFilhotedeNuvem,queseelevavaemum

miado entrecortado. Coração de Fogo, alarmado, viu o gato brancodisparar,darumapatadanascostelasdoprisioneiroerolarparatrás,paranãoseralcançado.Umdosoutrosjovensfezomesmo,guinchando:–Vocênãomepega!

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RiscadeCarvão,queestavadeguarda,nãotentouexpulsá-los.Sentou-seaumaraposadedistância,aspatassobocorpo,observandoacenacomumbrilhodedivertimentonosolhos.CaudaPartidabalançouacabeçadeumladoparaooutro,frustrado,mas,

com seus olhos nublados e cegos, ele não podia retaliar. O pelo escuro emalhado parecia sem brilho e irregular, e a cara larga tinha muitascicatrizes, algumas decorrentes dos golpes que tinham destruído seusolhos.Nãohavianenhumvestígiodo antigo líder arrogante e sedentodesangue.Coração de Fogo trocou um olhar preocupado com Pata de Cinza. Ele

sabiaquemuitosgatospensavamqueCaudaPartidamereciasofrer;mas,vendoo antigo líder tão velho e desamparado, sentia certa pena.A raivacomeçouaqueimardentrodeleàmedidaqueaprovocaçãocontinuava.–Esperepormim–elemiouparaPatadeCinza,ecorreuparaabeiradadaclareira.Ele viu Filhote de Nuvem agarrar de repente a cauda do gato cego e

mordê-la várias vezes com dentes afiados como agulha. Cauda Partidaconseguiusesafar,caminhandocomsuaspernasinstáveis,elançouapatanadireçãodofilhote.Emuminstante,RiscadeCarvãodeuumpulo,sibilando:–Sevocêtocar

nessefilhote,seutraidor,voufazersuapeleemtiras!CoraçãodeFogoestavazangadodemaisparafalar.PulouatéFilhotede

Nuvem,agarrou-opelocangoteeojogouparalongedeCaudaPartida.Osobrinhochoramingouemumprotesto.–Pare!Issodói.Otioolargoudequalquerjeitonaneveesoltouumgrunhidosecoentre

osdentesexpostos.–Vãoparacasa!–ordenou.–Vãoficarcomsuasmães.Agora!Os jovens fixaram nele o olhar arregalado de medo, e então saíram

correndo,desaparecendonoberçário.–Quantoavocê…–CoraçãodeFogosibilouparaFilhotedeNuvem.–Deixe-oempaz–RiscadeCarvãointerrompeu,colocando-seaoladodo

jovem.–Elenãoestáfazendonadademais.–Fiqueforadisso–grunhiuCoraçãodeFogo.RiscadeCarvãopassoupor

ele,quaseoderrubando,antesdevoltar,compassosfirmes,aseupostodevigilância.–Gatinhodegente!–eledebochouporcimadoombro.CoraçãodeFogosentiuosmúsculostensos.ElequeriapularemRiscade

Carvãoefazê-loengoliroinsultogoelaabaixo,massedeteve.Nãoerahora

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para os guerreiros do clã começarem a brigar entre si. Além disso,precisavalidarcomFilhotedeNuvem.– Você ouviu só? – ele indagou, olhando para baixo, para falar com o

filhotebranco.–Gatinhodegente?–Edaí?–FilhotedeNuvemsussurrou,rebelde.–Oqueéumgatinhode

gente?Coração de Fogo engoliu em seco ao perceber que o jovem ainda não

sabia o que suas origens significavam para o clã. – Bem, um gatinho degenteéumgatoquevivecomosDuas-Pernas–elecomeçou,cuidadoso.–Paraalgunsgatosdeclã,umfelinonascidogatinhodegentejamaisseráumbomguerreiro.E issome inclui,pois, comovocê,nasci emumLugardosDuas-Pernas.Enquanto Coração de Fogo falava, os olhos de Filhote de Nuvem se

arregalavamcadavezmais.–Comoassim?Eunasciaqui!–elemiou.O tio o olhou firmemente. – Não, não nasceu. Sua mãe é minha irmã,

Princesa.ElaviveemumninhodeDuas-Pernas.Elaentregouvocêaoclãaindabemjovem,paraquevocêsetornasseumguerreiro.Poralgunsmomentos,FilhotedeNuvemficourijo,comosefossefeitode

neveegelo.–Porquenãomedisse?–eleperguntou.–Sintomuito–CoraçãodeFogomiou.–Eu…Euacheiquevocêsoubesse,

queCaraRajadatinhalhecontado.Filhote de Nuvem recuou algumas caudas. O assombro em seus olhos

azuisaospoucosfoisendosubstituídoporumfrioentendimento.–Entãoépor issoqueosoutrosgatosmeodeiam–ele cuspiucomraiva.–Achamquenuncasereibomporquenãonascinestadrogadefloresta.Queburrice!CoraçãodeFogolutouparaencontraraspalavrascertasparaconfortá-

lo.SóselembravadecomoPrincesaficaraempolgadaaoentregarseufilhoaoclã,edecomoele lheprometeraqueFilhotedeNuvemteriaumavidamaravilhosa.AgoraeleestavaforçandoFilhotedeNuvemapensaremseupassadoenosproblemasqueteriaantesdeseraceitopeloclã.EseojovemachassequeeleePrincesatinhamtomadoadecisãoerrada?Coração de Fogo suspirou. – Pode ter sido burrice, mas foi assim. Eu

devia saber. Ouça – ele explicou, paciente. – Guerreiros como Risca deCarvão achamque ser gatinhode gente é ruim.Mas significa apenasquetemosdetrabalharduasvezesmaisparaquevejamquenãoprecisamostervergonhadonossosangue.FilhotedeNuvemseaprumou.–Nãoqueronemsaber!–miou.–Vouser

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omelhorguerreirodoclã.VoubrigarcomqualquergatoquedigaquenãosoucorajosoobastanteparamatarforasdaleicomoovelhoCaudaPartida.CoraçãodeFogoficoualiviadoporveroespíritodeFilhotedeNuvemse

recuperando do choque da descoberta. Mas não tinha certeza se elecompreenderarealmenteosignificadodoCódigodosGuerreiros.–Serumguerreiroébemmaisdoquematar–eleadvertiuojovem.–Umverdadeiroguerreiro–omelhor–nãoécrueloumalvado.Elenãousaasgarrasparaatacaroinimigoquenãopoderevidar.Ondeficaahonranessasituação?Filhote de Nuvem virou a cabeça, evitando o olhar do tio. O guerreiro

esperavaterditoacoisacerta.Olhandoaoredor,viuquePatadeCinzaforaatrásdeCaudaPartidapara examinar a caudamachucadaporFilhotedeNuvem.–Nãoénadasério–elamiouaogatocego.Cauda Partida agachou-se e ficou imóvel, os olhos inúteis fixos nas

próprias patas, e nada respondeu. Relutante, Coração de Fogo seaproximoueoajudouaselevantar.–Vamoslá.Vamosvoltarparasuatoca.O antigo líder nada disse e deixou-se guiar até o buraco sob os galhos

mortos.RiscadeCarvãoobservou-ospassarvagarosamenteemostrouseudesdémcomummovimentodacauda.–Certo, PatadeCinza –miouCoraçãodeFogoquandoo velho gato já

estavainstalado.–Vamosprocuraressaservas.– Aonde vocês vão? – Filhote de Nuvem chegou agitado, com toda a

energiarestaurada.–Possoirtambém?O tio do jovem hesitou, mas Pata de Cinza miou: – Ah, deixe-o vir,

Coração de Fogo. Ele só se mete em confusão porque está aborrecido.Assimpoderemoscontarcommaisajuda.OsolhosdeFilhotedeNuvembrilharamdeprazereumronronarsaiude

suagarganta,umsomenormeparaumcorpotãopequenoefofo.Coração de Fogo deu de ombros. – Tudo bem. Mas se você der uma

patadaemfalso,vaivoltarparaoberçárioantesdedizer“camundongo”!Mancando,mascomfirmeza,PatadeCinzaosconduziupelaravinaatéo

valeondeosaprendizestinhamsessõesdetreinamento.Osoljácomeçavaa baixar, lançando sombras azuis e alongadas sobre a neve. Filhote deNuvem ia correndona frente, investigandoburacosnas rochas e fazendotocaiaparapresasimaginárias.–Comovocêvai conseguir achar ervas como chão cobertodeneve?–

CoraçãodeFogoquestionou.–Nãoestãotodascongeladas?– Ainda deve haver algumas frutinhas vermelhas – Pata de Cinza

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lembrou. – Presa Amarelame disse para procurar zimbro – que émuitobomparatosseedoresdebarriga–egenista,parafazercataplasmaparapernasquebradaseferidas.Ah,ecascadeamieiro,paradoresdedente.–Frutinhasvermelhas!–FilhotedeNuvemsaltavade láparacá.–Vou

encontrarummontãoparavocês!–Eledisparounovamentenadireçãodeunsarbustosquecresciamnaslateraisdovale.PatadeCinzabalançavaacauda,divertida.–Eleéesperto–observou.–

Quandoforaprendiz,vaiaprenderdepressa.CoraçãodeFogoproduziuumruídoevasivocomagarganta.Aenergiade

Filhote de Nuvem o fazia lembrar Pata de Cinza quando ela se tornaraaprendiz.MasajovemjamaisteriaatacadoumgatoindefesocomoocegoCaudaPartida.–Eseeleémeuaprendiz,émelhorcomeçarameouvir–murmurouo

gatoavermelhado.–Ah,é?–PatadeCinzalançou-lheumolharprovocador.–Vocêémesmo

ummentorrígido;todososseusaprendizesvãotremerdebaixodopelo!CoraçãodeFogoencontrouosolhossorridentesdagataerelaxou.Como

sempre,estarcomaantigaaprendizfaziamuitobemparaoseuestadodeespírito. Era melhor parar de se preocupar com Filhote de Nuvem econtinuaratarefaquetinhamacumprir.–PatadeCinza!–FilhotedeNuvemchamouládelonge.–Háfrutinhas

vermelhasaqui–venhamver!Oguerreiro levantouopescoçoeviuofilhotebrancoagachadosobum

arbusto pequeno, de folhas escuras, que crescia entre duas rochas.Frutinhasvermelhasebrilhantescresciampertodocaule.–Parecemapetitosas–ojovemmiouquandoosoutrosseaproximaram.

Eleabriubemasmandíbulasparaconseguirumgrandebocado.Nomesmoinstante,umsomdesufocamentoveiodePatadeCinza.Para

espantodeCoraçãodeFogo,elaseatirouparaafrentenaneve,comtantavelocidadequantopermitiasuapernamanca.–Não,FilhotedeNuvem!–elagritou.Ela correu para cima dele, derrubando-o. Filhote de Nuvem guinchou,

pasmado, e os dois caíram embolados no chão. Coração de Fogo logo seaproximou, ansioso, pensando que Filhote de Nuvem pudesse termachucado Pata de Cinza, mas quando se aproximou ela já afastava ofilhoteeselevantava,ofegante.–Vocêtocouemalgumadasfrutas?–N-Não–FilhotedeNuvemgaguejou,atrapalhado.–Euestavasó…

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– Olhe. – Pata de Cinza o empurrou até o nariz dele ficar a umcamundongodedistânciadoarbusto.CoraçãodeFogonuncaatinhavistotãozangada.–Olhe,masnãotoque.Essasfrutinhassãotãovenenosasquesãochamadasdefrutinhasmortais.Umateriabastadoparamatarvocê.Os olhos de Filhote de Nuvem estavam redondos como a lua cheia.

Emudecidopelaprimeiravez,eleolhavahorrorizadoparaPatadeCinza.–Tudobem–elamiou,agoramaisgentil,dando-lheumaslambidasde

conforto no ombro. – Não aconteceu desta vez. Mas observe bem agora,paranãocometeromesmoerro.Enunca,vocêouviu?,nuncacomaoquevocênãoconhece.–Sim,PatadeCinza–FilhotedeNuvemprometeu.–Entãocontinueaprocurarfrutinhas.–Agataoajudouaselevantar.–E

mechameassimqueencontraralgumacoisa.FilhotedeNuvemseafastou,olhandoporcimadoombro,umaouduas

vezesenquantoprosseguia.CoraçãodeFogonãoselembravadetê-lovistotão arrasado.Metido comoera, tinha levadoum sustode verdade. –Quebomquevocêestavaaqui,PatadeCinza–elemiou,comumapontadadeculpa por não saber o suficiente para alertar Filhote de Nuvem. – VocêaprendeuumbocadocomPresaAmarela.–Elaéumaexcelentemestra–PatadeCinzareplicou.Sacudiudiversos

flocos de neve do pelo e começou a seguir Filhote de Nuvem pelo vale.Coração de Fogo foi também, novamente diminuindo o ritmo paraacompanhá-la.DessavezPatadeCinzapercebeu.–Sabe,minhapernaestábemmelhor

–mioubaixinho.–VoulamentardeixaratocadePresaAmarela,masnãopossoficarláparasempre.–ElasevirouparafitarCoraçãodeFogo.Seusolhos não demonstravam mais enfado; em suas profundezas azuis, elesrevelavamdoreincerteza.–Nãoseioquevoufazer.CoraçãodeFogosealongoueesfregouofocinhonodaantigaaprendiz,

confortando-a.–EstrelaAzulvaisaber.– Talvez. – Pata de Cinza deu de ombros. – Desde que eu era bem

pequena,tudooqueeuqueriaeraserigualaEstrelaAzul.Elaétãonobre,ededicoutodaavidaaoclã.Mas,CoraçãodeFogo,oqueeupossoofereceragora?–Nãosei–eleadmitiu.Avidadeumgatonoclãtinhaumasequênciaclara:defilhoteaaprendiz,

daí a guerreiro, às vezes, a rei ou rainha, e, enfim, aposentado, em uma

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idade honrosa, entre os anciãos. Coração de Fogo não tinha ideia do queaconteciacomumgatoquesofriaferimentosgravesqueoimpedissemdeser um guerreiro, partir em longas patrulhas, dedicar-se à caça e à luta.Mesmo as rainhas que cuidavam dos filhotes no berçário já tinham sidoguerreiras um dia, com habilidades que as capacitavam a alimentar edefenderospequeninos.Pata de Cinza era corajosa e perspicaz e, antes do acidente, tinha

mostradoenergiainfindávelecompromissocomoclã.Aquilonãopoderiaser jogado fora. Isso é culpa de Garra de Tigre, Coração de Fogo pensou,sombrio.Ele preparou a trilha que a levou ao acidente. – Você deve falarcomEstrelaAzul–elesugeriuemvozalta.–Vejaoqueelapensa.–Talvezeufale.–PatadeCinzadeudeombros.–PatadeCinza!–UmmiadoagudodeFilhotedeNuvemosinterrompeu.

–Venhaveroqueencontrei!– Estou indo, Filhote de Nuvem! – Pata de Cinza seguiu, mancando,

miando bem-humorada para Coração de Fogo ao longo do caminho: –Talvezagorasejaamortaldama-da-noite.Coração de Fogo a observou afastar-se. Tomara que Estrela Azul

encontrasseumaformadedaràsuaantigaaprendizumavidadignadentrodoclã.PatadeCinzaestavacerta.EstrelaAzuleraumagrandelíder,enãoapenasnasbatalhas.Elarealmenteseimportavacomseusgatos.Justamente por saber disso, Coração de Fogo sentia-se ainda mais

confusoquandoselembravadareaçãodelaàhistóriadePoçaCinzenta.PorqueelareagiratãoestranhamentequandoelecontouquedoisguerreirosdoClãdoRio tinhamsido filhotesdoClãdoTrovão?AhistóriaaabalaratantoqueelafecharaosolhosaoperigorepresentadoporGarradeTigre.Coração de Fogo balançava a cabeça enquanto, vagarosamente,

acompanhavaPatadeCinzaemsuacaminhada.Haviaumgrandemistérioenvolvendoessesgatos,eelecomeçavaasentirquecompreendê-lopodiaestaralémdesuasforças.

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CAPÍTULO8

CORAÇÃODEFOGOAGACHOU-SENOBERÇÁRIO,OBSERVANDOaninhadadefilhotesquemamava namãe. Por ummomento, ao ver aquelasminúsculas criaturasquerepresentavamofuturodoclã,eleseencheudeemoção.Entãoalgumacoisalheveioàmente.OClãdoTrovãonãotinhafilhotes

tãojovensquantoaqueles.Deondeelesteriamvindo?Seuolharpassoudosfilhotes para a mãe, mas ele nada viu além de uma ondulante pelagemcinza-prateado.Arainhanãotinhafocinho.CoraçãodeFogosufocouumgritodehorror.Enquantoeleobservava,a

forma prateada da rainha começou a desaparecer, deixando apenasescuridão.Osfilhotessecontorciamesoltavamguinchosdeterroreperda.Umventofriolevantou-seevarreuoscheirosquentesdoberçário.Coraçãode Fogo pôs-se de pé em um pulo e tentou seguir o som dos filhotesindefesos, perdidos na escuridão trazida pelo vento. – Não consigoencontrá-los!–gritouemumlamento.–Ondevocêsestão?Entãoapareceuumaluzsuaveedourada.CoraçãodeFogoviuoutragata

àsuafrente,osfilhotinhosabrigadosentresuaspatas.EraFolhaManchada.O guerreiro abriu a boca para falar com ela, que lhe deu um olhar de

bondadeinfinitaantesquesuaimagemdesaparecesse,eCoraçãodeFogoacordouagitadonacamademusgodatocadosguerreiros.– Precisa fazer tanto barulho? – resmungou Pelagem de Poeira. –

Ninguémconseguetirarsequerumcochilinho.CoraçãodeFogo levantou.–Desculpe–sussurrou.Elenãopôdedeixar

dedarumaolhadaparao centroda toca, ondeGarradeTigredormia.Orepresentantejátinhasequeixadodobarulhoqueelefaziaaosonhar.Paraseualívio,GarradeTigrenãoestavalá.Ogatodepeloavermelhado

podiaver,pelaluzquepassavaatravésdosgalhos,queosoljáestavaacimadas árvores. Lavou-se rapidamente, tentando esconder de Pelagem dePoeiraquantoosonhooabalara.Medo,filhotessolitários…bebêscujamãedesaparecera. Seria uma profecia? E se fosse, qual seria seu significado?Nãohaviafilhotestãojovensassimnoclãagora.OuseráqueerasobreosantigosbebêsdoClãdoTrovão–PédeBrumaePelodePedra?Seráqueamãeverdadeiradelestinhadesaparecido?Enquantoeleselavava,PelagemdePoeiralhedeuumaúltimaolhadae

abriucaminhoentreosgalhos,deixando-onacompanhiadeRaboLongoeVentoVeloz,quedormiamnolugardesempre.

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CoraçãodeFogopercebeuquenãohaviasinaldeListraCinzenta,equesuacamaestavafriacomoseeleestivesseforadesdeamadrugada.Foi seencontrar comArroiodePrata, adivinhou.Ele tentouentender a forçadosentimentodoamigo,masnãopodiadeixardesepreocupar,nemdesentirsaudadedosdiasdescomplicadosdaépocaemqueeleseramaprendizes.Enfiando a cabeça entre os galhos, viu o acampamento coberto de neve,brilhando sob o sol frio do inverno. Ainda não se percebiam indícios dodegelo.Aoladodocanteirodeurtiga,TempestadedeAreia,agachada,sefartava

com uma peça de presa fresca. – Bom dia, Coração de Fogo – elacumprimentou, alegre. – Se quiser comer, émelhor ser rápido, enquantoaindatemalgumacoisa.Coração de Fogo sentiu a barriga doer de fome. Parecia que ele não

comiahaviaumalua.Pulousobreapilhadepresaseviuqueagatatinharazão.Haviaapenasalgumaspeças.Eleescolheuumestorninhoe levou-oparaocanteirodeurtiga,paracomercomTempestadedeAreia.–Vamosterdecaçarhoje–miouentreumabocadaeoutra.–NevascaePelodeRatojásaíramcomseusnovosaprendizes–contou

TempestadedeAreia.–PataBrilhanteePatadeEspinhoestavamansiosos!CoraçãodeFogoseperguntavaseListraCinzentatambémsaíracomseu

aprendiz,maslogodepoisPatadeSamambaiaapareceusozinho,vindodatocadosaprendizes.Ogatomalhadocastanho-claroolhouàsuavoltaantesdecorrerparaCoraçãodeFogo.–VocêviuListraCinzenta?–perguntou.–Sintomuito–CoraçãodeFogodeudeombros.–Quandoacordei,elejá

tinhasaído.–Elenuncaestáaqui–PatadeSamambaiamiou, triste.–Secontinuar

assim,PataLigeiraseráguerreiroantesdemim–PataBrilhanteePatadeEspinhotambém.– Bobagem – Coração de Fogo miou. De repente, ficou zangado com

ListraCinzentaesuaobsessãopelagatadoClãdoRio.Nenhumgatotinhaodireitodenegligenciarseuaprendizassim.–Vocêestá indobem,PatadeSamambaia.Vocêpodesairparacaçarcomigo,sequiser.–Obrigado–oaprendizfezrom-rom,começandoaparecermaisalegre.–Tambémvou– seofereceuTempestadedeAreia, engolindooúltimo

pedaçodecomidaelambendoosbeiços.Elatomouafrentequandoostrêssaírampelotúneldetojo.–Agora,PatadeSamambaia–miouCoraçãode

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Fogoquandoeleschegaramàbordadovaledetreinamento.–Ondeéumbomlugarparaprocurarpresas?–Debaixodasárvores–replicouojovem,apontandocomummovimento

da cauda. – É onde os camundongos e os esquilos vão buscar nozes esementes.–Bom–miouoguerreiro.–Vamosversevocêestácerto.Eles forammais longe, contornandoo vale; passaramporCaraRajada,

que olhava carinhosamente seus filhotes brincando na neve. – Elesprecisavam esticar as pernas – explicou. – Toda essa neve os deixouinquietos.FilhotedeNuvemestavasobumarbustodeteixocomalgunscolegasde

ninhada,explicando,solene,queaquelaseramfrutinhasmortaisequeelesnunca, nunca, deveriam comê-las. Divertido com a seriedade do jovem,CoraçãodeFogomiouumasaudaçãoquandopassouporele.Sobasárvoresdapartemaisaltadovale,anevenãoeratãoespessaena

superfície branca podiam ser vistos trechosmarrons, da terra à mostra.Enquantoostrêsgatosrastejavam,CoraçãodeFogoouviuosomdepassosmiúdos e farejou camundongo. Automaticamente, agachou-se emposiçãodecaçaedeslizouparaafrente,colocandopoucopesonaspatasparanãoassustarapresa.Ocamundongocontinuavalá,semconsciênciadoperigo,de costas para o guerreiro, mordiscando uma semente caída. Quandoestavaaumacaudadedistânciadele,CoraçãodeFogosaltoue,triunfante,voltouparaseusamigoscomapresaentreosdentes.–Boapegada!–bradouTempestadedeAreia.Coraçãode Fogo cobriu a presade terra para buscá-lamais tarde. –A

próximaseráasua,PatadeSamambaia–elemiou.O aprendiz levantou a cabeça com orgulho e começou a perscrutar à

frente, os olhos dardejando de um lado para o outro. Coração de Fogoavistou um melro bicando entre as frutinhas ao pé de um arbusto deazevinho,masdestavezeleseconteve.OaprendizpercebeuopássaroquaseaomesmotempoqueCoraçãode

Fogo.Furtivamente,pataapata,eleseagachou,balançandoosquadrisdeumladoparaooutro,preparando-separaatacar.ParaCoraçãodeFogooaprendizestavaesperandomuito,umtique-taquedecoraçãoalémdoquedeveria.Omelroopercebeuevoou,masPatadeSamambaiadeuumsaltopoderosoeogolpeounoar.Mantendo uma pata sobre a presa, virou-se para Coração de Fogo. –

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Calculeimal–admitiu.–Espereidemais,nãofoi?–Talvez– replicouCoraçãodeFogo.–Masnão fique tão triste.Vocêo

pegou,éoqueinteressa.– Quando você voltar, pode levar essa presa para os anciãos – miou

TempestadedeAreia.Pata de Samambaia se animou. – Sim, eu… – começou. Mas foi

interrompidoporumlamentoestridenteeapavoradovindodovale.CoraçãodeFogoolhouemvolta.–Pareceumfilhote!ComTempestadedeAreiaePatadeSamambaia,elecorreunadireçãodo

som.Irrompendodasárvores,lançou-separaapartemaiselevadaeolhouparabaixo.–GrandeClãdasEstrelas!–TempestadedeAreiagritou,ofegante.Logo abaixo, os três gatos viram um enorme animal preto e branco;

Coração de Fogo reconheceu o cheiro repulsivo de um texugo. Era aprimeira vez que via um deles, embora muitas vezes tivesse ouvido obarulhoquefaziamnosarbustos.Comsuapataenormeecheiadegarras,obicho tentava alcançar uma fenda entre duas pedras, onde Filhote deNuvemestavaagachado.–CoraçãodeFogo–elegemeu.–Porfavor,meajude!Oguerreirosentiutodosospelosdeseucorpoarrepiar.Lançou-serumo

ao vale, as patas dianteiras estendidas, prontas para atacar. Tinha vagaconsciência da presença de Tempestade de Areia e Pata de Samambaia,logoatrásdele.CoraçãodeFogoenterrouasgarrasnalateraldocorpodotexugo, e o enorme animal voltou-se contra ele, soltando um rugido etentandoabocanhá-lo.Foitudomuitorápido,e,sePatadeSamambaianãotivesse pulado, enfiando as garras nos olhos da fera, ela poderia terconseguidoapanharCoraçãodeFogo.O texugo virou a cabeça, pois Tempestade de Areia tinha enfiado os

dentesemumadesuaspatastraseiras.Chutandocomtodaa força, jogoulongeagata,querolounaneve.Coração de Fogo correu para enfiar novamente as garras no flanco do

animal. Gotas de sangue vermelho vivo caíam na neve. O texugo rosnou,masagorajárecuava,equandoTempestadedeAreiaseergueueavançou,cuspindo, o animal voltou-se e seguiu pela ravina com um andardesajeitado.CoraçãodeFogovoltou-separaosobrinho.–Vocêsemachucou?

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Filhote de Nuvem rastejou para fora da fenda na pedra, tiritandoincontrolavelmente.–N…não.CoraçãodeFogosentiuumestremecimentodealívio.–Oqueaconteceu?

OndeestáCaraRajada?–Nãosei.Estávamostodosbrincando,eentão,quandomevirei,nãovi

maisnenhumdeles.Penseiemirmeencontrarcomvocê,eaíapareceuotexugo… – Soltou ummiado apavorado e se agachou, deitando a cabeçasobreaspatas.CoraçãodeFogoestavaesticandoopescoçopara lhedaruma lambida

reconfortantequandoTempestadedeAreiadisse:–CoraçãodeFogo,olhe.PatadeSamambaiaestavadeitadodelado;desuapatatraseira,osangue

escorriasobreaneve.–Nãoénada–grunhiuoaprendiz,tentandoselevantar,corajoso.–Fiquequieto enquantodamosumaolhada–ordenouTempestadede

Areia.CoraçãodeFogoseadiantoueexaminouaferida.Paraseualívio,ocorte

na perna, apesar de extenso, não era profundo, e o sangramento estavaquaseparando.–Vocêtevesorte,graçasaoClãdasEstrelas–elemiou.–Eme salvou de uma mordida horrível. Foi um ato de coragem, Pata deSamambaia.Os olhos do aprendiz brilharam com o elogio. – Não fui corajoso de

verdade–miou,trêmulo.–Nãotivetempodepensar.– Um guerreiro não teria feitomelhor –miou Tempestade de Areia. –

Masoqueéqueumtexugoestavafazendoaquiemplenaluzdodia?Elessemprecaçamànoite.–Deveestarmortode fome.Comonós–adivinhouoguerreiro.–Caso

contrárionãoatacariaalgodo tamanhodeFilhotedeNuvem.–Voltou-separa o sobrinho e o empurrou com delicadeza para que ficasse de pé. –Venha,vamosvoltarparaoacampamento.Tempestade de Areia ajudou Pata de Samambaia a se levantar e,

caminhando ao lado do aprendiz, que mancava, dirigiram-se à ravina.CoraçãodeFogoseguiacomFilhotedeNuvem,quesemantinhabempertodele.Quando chegaram ao local, Cara Rajada surgiu, chamando

freneticamente por Filhote de Nuvem. Outros gatos vinham atrás dela,atraídosparaforadoacampamentoporseusgritosdesesperados.CoraçãodeFogoviuVentoVelozePelagemdePoeirae,então,sentiuumapertono

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peitoaoverGarradeTigre,queosseguira.Cara Rajada correu para Filhote de Nuvem e cobriu-o de lambidas

ansiosas.–Ondevocêestava?–repreendeu.–Procureivocêportodaparte.Vocênãodevefugirassim.–Nãofugi!–protestouojovem.–Oque está acontecendo? –perguntouGarradeTigre, colocando-se à

frentedogrupo.Coração de Fogo explicou, enquanto Cara Rajada continuava a alisar o

pelo arrepiado do filhote. – Nós expulsamos o texugo – ele disse aorepresentante.–PatadeSamambaiafoimuitocorajoso.Enquantoele falava,GarradeTigreo encarava comseus ferozesolhos

cordeâmbar,masCoraçãodeFogomantinhaacabeçaalta;dessaveznãotinhaporquesesentirculpado.– É melhor você ir ver Presa Amarela e mostrar a perna para ela –

grunhiu o representante para Pata de Samambaia. – Quanto a você… –Virou-seameaçadoramenteparaFilhotedeNuvem.–Oqueestavafazendo,arriscando-sedessamaneira?Achaqueosguerreirosnãotêmnadamelhorparafazerdoquesalvarvocê?Filhote de Nuvem colou as orelhas à cabeça. – Sinto muito, Garra de

Tigre.Nãoqueriamemeteremperigo.–Nãoqueria!Nenhumgatolheensinounadamelhordoquesairporaí

semrumo?–Eleéapenasum filhote–protestouCaraRajada,voltandoodelicado

olharverdeparaorepresentante.GarradeTigrearreganhouosdenteseemitiuumronco.–Elejácausou

maisproblemasdoquetodososoutrosfilhotesjuntos–grunhiu.–Éhorade aprender uma lição. Só pra variar, ele pode fazer um trabalho deverdade.CoraçãodeFogoabriuabocaparaprotestar.PelaprimeiravezFilhotede

Nuvemnãotiveraaintençãodecausarproblema;osustojábastavacomocastigoporeleterseafastadodeCaraRajada.Orepresentante,porém,continuou.–Vocêpodeircuidardosanciãos–

ordenou.–Limpeascamassujasepeguemaismusgolimpo.Certifique-sedequeelestenhambastantepresafrescaecateoscarrapatosnopelodeles.–Carrapatos!–exclamouFilhotedeNuvemofendido,perdendooresto

do medo que sentia. – Não vou fazer isso! Por que eles não tiram os

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próprioscarrapatos?–Porquesãoanciãos–ciciouGarradeTigre.–Vocêprecisacomeçara

entender mais sobre o clã se quiser ser um aprendiz. – Olhou feio paraFilhotedeNuvem.–Vá.Efaçaissoatésegundaordem.Ofilhotepensouemserebelar,masnemmesmoeledesafiariaGarrade

Tigre duas vezes. Seus olhos azuis chispavam quando encarou orepresentante, e ele então fugiu rumo ao túnel. Cara Rajada soltou ummiadodesesperadoeoseguiu.–Sempredissequetrazergatinhodegenteparaoclãeraumamáideia–

rugiuGarradeTigreparaPelagemdePoeira.EfalouolhandoparaCoraçãodeFogo,comosedesafiasseojovemguerreiroaprotestar.Entretanto, Coração de Fogo desviou o olhar. – Venha, Pata de

Samambaia–miou,engolindoaraiva.Nãoviasentidoementraremumabriga.–VamosverPresaAmarela.– Vou voltar e tentar encontrar as presas que capturamos – propôs

TempestadedeAreia.–Nãoqueremosqueotexugoaspegue!–Começou,então,acorrerdevoltaàravina.CoraçãodeFogomiouumobrigadoefoipara o acampamento com Pata de Samambaia. O aprendiz, mancandobastante,pareciacansado.Aoseaproximaremdotúneldetojo,CoraçãodeFogosesurpreendeuao

verCaudaPartida,queandavaaostrancosaoladodePresaAmarela.Doisguardas,RiscadeCarvãoeRaboLongo,osseguiamdeperto.–Devemosestarloucosdeixando-osairassim–resmungouRaboLongo.

–Eseelefugir?–Fugir?–ralhouPresaAmarela.–Suponhoquevocê tambémacredite

queporco-espinhovoa.Elenãovaia lugarnenhum, suaestúpidaboladepelo.–Comtodoocuidado,elatirouanevedecimadeumapedraeguiouCaudaPartidaatéolocal.Eleseacomodou,osolhoscegosvoltadosparaosol,efarejouoar.–Estáum lindodia–murmurouPresaAmarela,enroscandoseucorpo

magro perto do dele. Coração de Fogo jamais a ouvira falar tãodelicadamente. –Embreveanevevaiderreterea estaçãodo renovovaichegar.Aspresasestarãoapetitosasegordas.Aívocêvaisesentirmelhor.Ao ouvir isso, Coração de Fogo lembrou que nenhumoutro gato sabia

que Presa Amarela era mãe de Cauda Partida. Nem o próprio CaudaPartida,quesequerdeusinaldeterouvidopalavrastãogentis.Oguerreirodepelagemcordechamaestremeceuaoveradorestampadanosolhosda

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velha gata. Ela fora obrigada a entregar Cauda Partida logo após seunascimentoporqueascurandeiraseramproibidasde ter filhotes.E,maistarde, teve de cegá-lo para salvar seu clã de adoção do ataque dosrenegados.ParaCaudaPartida,PresaAmarelaeracomoqualqueroutrogatodoClã

doTrovão,masacurandeiraaindaoamava.CoraçãodeFogoquaserugiuparademonstrarsuasolidariedade.–VouterdedizerissoaGarradeTigre–miouRiscadeCarvão,afetado,

andandodeláparacáaopédarochaondeosgatossesentaram.–Elenãoautorizouasaídadoprisioneirodoacampamento.Decidido,CoraçãodeFogoseaproximouepressionouseufocinhocontra

odooutrogato.–Atéondesei,EstrelaAzuléalíderdoclã–cuspiu.–Eaquemvocêachaqueelavaidarouvidos?Avocêouàcurandeira?Risca de Carvão se ergueu nas patas traseiras, a boca arreganhada

mostrando as presas. Atrás dele, Coração de Fogo ouviu um sibilar dealarme de Pata de Samambaia. Retesou-se, pronto para o ataque doguerreiromaisvelho,mas,antesquecomeçasseumaluta,PresaAmarelaosinterrompeucomumgrunhidofurioso.–Paremcomessabobagem!Oque aconteceu aPatade Samambaia? –

Suacaraachatadasurgiunapontadapedra,crispadadepreocupação.– Um texugo o arranhou – disse-lhe Coração de Fogo, lançando um

últimoolharparaRiscadeCarvão.AvelhacurandeiradesceucomdificuldadeeexaminouapernadePata

deSamambaia,farejandoaferida.–Vocêvaisobreviver–resmungou.–Váparaaminha toca.PatadeCinzaestá láevai lhedaralgumaservasparapressionarsobreomachucado.–Obrigado,PresaAmarela–miouojovem,quesaiumancando.CoraçãodeFogoo seguiu,mas, antesdeentrarno túnelde tojo,olhou

para trás. A curandeira tinha voltado para o alto da pedra; sentada,abraçaraCaudaPartida,lambendogentilmenteopelodogato.Oguerreiroaindaouviuossussurrosdelicadosqueumarainhadiriaaosseusfilhotes.Cauda Partida, porém, continuava tão insensível quanto antes. Nem

mesmosevirouparatrocaremlambidas.Muito triste,CoraçãodeFogodirigiu-seao túnel.Hápoucos laçosmais

fortes do que os que existem entre amãe e seus filhotes. PresaAmarelaaindasentiaessa ligação,mesmodepoisde todaadorqueCaudaPartidalhecausara–matandooprópriopai,destruindoseuclãcomsualiderança

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sanguinária, atacando o Clã do Trovão unido a um bando de renegados.ParaumapartedePresaAmarela,entretanto,eleaindaeraseufilhote.Então, questionou-se Coração de Fogo, como Pé de Bruma e Pelo de

Pedra tinham sido separados da mãe? Por que Coração de Carvalho oslevaraparaoClãdoRio?E,sobretudo,porqueosgatosdoClãdoTrovãonãotinhamtentadoencontrá-los?

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CAPÍTULO9

NA TOCA DE PRESA AMARELA, CORAÇÃO DE FOGO EXPLICOU O QUE aconteceraenquanto Pata de Cinza inspecionava o corte na perna de Pata deSamambaia,providenciandoumcataplasmaparacolocarnomachucado.– É melhor você descansar aqui esta noite – disse a gata cinza ao

aprendiz.–Podedeixar,suapernavaiestarnovaemfolhaemumoudoisdias.–Elafalavacomalegria,semnenhumaamargurapelofatodequesuaprópria perna jamais ficaria curada. Virando-se para Coração de Fogo,acrescentou:–AcabeidereceberFilhotedeNuvem.Comoelemedissequetinhadecatarcarrapatosnopelodosanciãos,dei-lheumpoucodebiledecamundongo.–Paraqueserve?–perguntouPatadeSamambaia.– Se você colocar um pouco sobre os carrapatos, eles caem em um

instante–dissePatadeCinza.Seusolhosazuisbrilharam,bem-humorados.–Masnãopassealínguanaspatasdepois.Énojento.– Tenho certeza de que Filhote de Nuvem vai gostar de fazer isso. –

CoraçãodeFogofezumacareta.–PenaqueGarradeTigreotenhapunido;nãoachoquetenhasidoculpadeleoataquedotexugo.PatadeCinzadeudeombros.–ComGarradeTigrenãosepodediscutir.–Éverdade–CoraçãodeFogoconcordou.–Dequalquerforma,achoque

voumecertificardequeFilhotedeNuvemestábem.Assim que ele colocou a pata na toca dos anciãos, franziu o nariz por

causadofedordabiledecamundongo.OrelhinhaestavadeitadodeladoeFilhotedeNuvemprocuravacarrapatosemseupelo.Oanciãosecontraiuquando ele colocou um pouco da bile em sua perna traseira. – Cuidado,garoto!Mantenhaasgarrasrecolhidas.– Mas elas já estão – sussurrou Filhote de Nuvem, com uma careta,

enojado.–Pronto,jáfoi.Vocêestápronto,Orelhinha.CaudaMosqueada,queestiveraobservando,dirigiu-seaCoraçãodeFogo

com voz rouca: – Seu sobrinho é muito eficiente. – Quando o filhote seaproximou, comomusgo encharcadodebile, eladisse: –Não, FilhotedeNuvem. Garanto que não tenho carrapatos. E, se eu fosse você, nãoacordariaCaolha.–Elaapontouparaondeavelhagatadormia,enroscadaperto do tronco da árvore caída. – Ela não vai gostar nada se você lheperturbarosono.

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FilhotedeNuvemolhouàvolta,cheiodeesperança.Osdemaisanciãosnãoestavam.–Entãopossoir?–VocêpoderáverCaolhamaistarde–CoraçãodeFogomiou.–Enquanto

isso,émelhortirardaquiessesrestossujosdecama.Vamos,euajudovocê.– E trate de providenciar outros bem sequinhos! – grunhiu Orelhinha.

Juntos, tio e sobrinho removeram o musgo e a urze velhos, fazendodiversas viagens para levar aquilo tudo para fora do acampamento.CoraçãodeFogoensinouFilhotedeNuvemalimparabiledecamundongodaspatas,esfregando-asnaneve.–Agoravamospegarmusgofresco–elemiou.–Venhacomigo.Conheçoumbomlugar.–Estoucansado–FilhotedeNuvemreclamou.–Nãoquerofazerisso.–Sintomuito,épreciso.Anime-se,poderiaserpior.Eujálheconteique,

quandoeueraaprendiz,preciseicuidarsozinhodePresaAmarela?–PresaAmarela!–Ojovemarregalouosolhos.–Uau,apostoqueelaera

rabugenta!Elaatacouvocêcomagarra?–Não, só coma língua – Coraçãode Fogo replicou. – E já era afiada o

bastante!FilhotedeNuvememitiuumcurtorom-romcomumarisada.Paraalívio

do guerreiro, seu sobrinho parou de reclamar, e, quando chegaram aocanteiro de musgo, o filhote fez sua parte, cavando a neve e imitandoCoraçãodeFogo,quemostroucomosacudirapataeselivrardaumidade.Eles estavam voltando para o acampamento, com as mandíbulas

carregadasdemusgo,quandoCoraçãodeFogoviuumgatosairdotúneldetojo e subir a lateral da ravina. O corpo maciço e o pelo listrado nãodeixavamdúvida.EraGarradeTigre.CoraçãodeFogosemicerrouosolhos.Orepresentanteprocuravapassar

despercebido;olhouparaosladosantesdesairdotúneledesapareceunabeira da ravina o mais rápido possível. Coração de Fogo sentiu umdesconforto.Algumacoisaestavaerrada.– Filhote deNuvem – elemiou, colocando a bola demusgo no chão. –

Leve sua parte para fazer a cama dos anciãos e depois venha buscar aminha.Tenhoumacoisaparafazer.O jovemmiouatravésdomusgoque lheenchiaaboca, concordando,e

foiparaotúnel.CoraçãodeFogovirou-see,correndo,subiuaencostaatéondeGarradeTigretinhadesaparecido.Não se via o representante,mas com a ajuda da trilha de cheiro e das

enormesmarcasdepatananeveCoraçãodeFogonãotevedificuldadeem

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segui-lo, tomandocuidadoemnãochegarmuitopertoparaqueGarradeTigrenãoovissenemsentisseseucheiro.A trilha seguiadiretamente atravésdosPinheirosAltos, passandopelo

PontodeCortedeÁrvores.CoraçãodeFogo,assustado,percebeuqueGarradeTigreestavaindoparaoLugardosDuas-Pernas.Sentiuopeitoapertar.Será que ele estava indo procurar Princesa, irmã de Coração de Fogo?Talvez,detãozangadocomFilhotedeNuvem,quisessemachucarsuamãe.O gato avermelhado nunca dissera ao clã onde exatamente Princesamorava,masnãoseriaimpossívelparaGarradeTigreachá-lapelocheiro,jáqueconheciaFilhotedeNuvem.Elesemantinhaabaixado, tentandosedeslocarsemfazerbarulho.Quandoatrilhasedesviouparaumamoitadetojo, ele percebeu, com o canto do olho, um movimento. Era umcamundongo,quearranhavaaterrasobumdosarbustos.Coração de Fogo não queria parar e caçar, mas o bicho estava

praticamente implorandopara serapanhado.Por instinto, ele seagachouemposiçãodecaçaesearrastouparapegarapresa.Oimpulsoofezcairbemem cimado camundongo,mas ele perdeuumpoucomais de tempoparaenterraroanimalnaneve,antesdevoltaraseguirGarradeTigre.Oguerreiro acelerou o passo, commedo do que o representante podia terfeitoenquantoelesedetivera.Quando rodeava o tronco de uma árvore caída, ele quase colidiu com

GarradeTigre,quevinhacorrendonadireçãooposta.O representante recuou, surpreso. – Seu miolo de camundongo! – ele

sibilou.–Oquevocêestáfazendoaqui?Aprimeirareaçãodoguerreirofoidealívio.GarradeTigrecertamente

nãotiveratempodechegaraoLugardosDuas-PernasemachucarPrincesa.Ele então percebeu uma profunda suspeita nos olhos cor de âmbar dorepresentante.Elenãopodesaberqueeuoseguia,pensouCoraçãodeFogo,desesperado.– Eu… Eu saí para mostrar a Filhote de Nuvem um bom lugar para

encontrarmusgoparapreparar as camas– gaguejou. –Entãopenseiquepodiaaproveitarecaçarumpouco.–Nãoestouvendopresaalguma–grunhiuGarradeTigre.–Ela está enterrada logoali. –CoraçãodeFogoapontou coma cabeça

trêmulaolugardeondeviera.Oguerreiroestreitouosolhos.–Vamos,mostre.–FuriosoporGarrade

Tigre não acreditar nele,mas tambémbastante aliviado pela sorte que o

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levaraaconseguirumapresa,CoraçãodeFogovoltoupelatrilhaecavouaneve, descobrindo o camundongo que tinha acabado de enterrar. –Satisfeito?Orepresentantedoclãfranziuatesta.CoraçãodeFogoquasepodialer

seuspensamentos;GarradeTigre estava loucopara culpá-lopor algumacoisa,masdestaveznãoderacerto.Enfim,orepresentantegrunhiu:–Vamoslogocomisso.–E,curvandoa

cabeça, tomou o camundongo de Coração de Fogo e dirigiu-se aoacampamento.O jovem guerreiro o observou se afastar e voltou a correr pela trilha,

rumo ao Lugar dos Duas-Pernas. E finalmente descobriu onde Garra deTigreestivera.Devezemquandoelegiravaasorelhasparatrás,commedode que o representante voltasse e o seguisse,mas não ouviu nada e, aospoucos,começouarelaxar.O cheiro de Garra de Tigre acabava perto das cercas quemarcavam o

território dos Duas-Pernas. Coração de Fogo andou de lá para cá sob asárvores, estudando o solo. A neve tinha a marca de muitas patas, patasdemais para que ele pudesse identificá-las.Havia tambémmuitos odoresestranhos.Diversosfelinostinhamestadoali,erecentemente.CoraçãodeFogotorceuonariz.Oscheirosdosgatosestavammisturados

comos de presasmortas haviamuito tempo e o fedor do lixo dosDuas-Pernas. A não ser pelo cheiro do próprio Garra de Tigre, era impossívelsaberquemeramosoutrosgatos.CoraçãodeFogosentou-seecomeçoualavar aspatas enquantopensava intensamente.Nãohavia como saber seGarradeTigretinhaencontradoaquelesgatosdesconhecidosouseapenascruzara suas trilhas. Ele já estava voltando para o acampamento quandoouviuummiado.–CoraçãodeFogo!CoraçãodeFogo!Elegirounaspatas.Nacerca,naextremidadedojardimdosDuas-Pernas

estava sua irmã, Princesa. Imediatamente o guerreiro saiu correndo epulouparaoladodela.Princesa emitiu um rom-rom do fundo da garganta e esfregou sua

bochecha na do irmão. – Coração de Fogo, como você está magro! –exclamou,afastando-se.–Vocêestácomendodireito?–Não,tampouconenhumoutrogatonoclã–eleadmitiu.–Háescassez

depresasporcausadotempo.–Vocêestácomfome?Háumatigeladecomidanomeuninhonacasa

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dosDuas-Pernas.Podeficarcomelasequiser.Poralgunstique-taquesdecoraçãooguerreirovermelhoficoutentadoa

aceitar. Ficou com água na boca quando ele pensou em encher a barrigacomcomidaqueelenãoprecisaracaçar.Masobom-sensovenceu.Elenãopodiade jeitoalgumvoltaraoacampamentocobertodocheirodosDuas-Pernas,eoCódigodosGuerreirosoproibiadecomerantesdealimentarorestodoclã.–Obrigado,Princesa,masnãoposso.– Espero que esteja alimentando Filhote de Nuvem – Princesa miou,

ansiosa.–Hádiasesperoporvocê,paraquemedigacomoeleestá.–Eleestábem.Logoseráumaprendiz.OsolhosdePrincesabrilharamdeorgulho,eCoraçãodeFogosentiuno

pelo uma pontada de incerteza. Sabia quanto significava para a irmã terdado o primogênito para o clã. Ele não podia deixar que ela tivessequalquerdúvidasobreaadaptaçãodojovem.–FilhotedeNuveméforteevalente – ele lhe disse. – E inteligente. – E enxerido, mimado, malcriado,acrescentouparasimesmo.Mascertamenteeleiriaaprendercomotempo,crescendonomeiodoclãeaprendendoseushábitos.–Estoucertodequeelevaisetornarumótimoguerreiro.Princesaronronou.–Claroquesim,vocêvaiensinaraele.As orelhas deCoraçãode Fogo se contraíram, coma vergonhaque ele

sentiu. Princesa pensava que era fácil para ele ser um guerreiro. Ela nãoconheciaosproblemasqueele tinha,vivendodentrodoclã,oucomoeradifícilsaberqualaatitudecertaatomarquandosedescobriamcoisasqueafetavamogrupo.–Émelhoreuir–elemiou.–Logovoltareiavisitá-la.Equandoaestação

dorenovochegartrareiFilhotedeNuvemcomigo.Deu uma carinhosa lambida de despedida em Princesa e deixou-a

ronronandoaindamaisfortecomopensamentodereveroamadofilhote.Coração de Fogo voltou seguindo a trilha de cheiro de Garra de Tigre,

atentoparaverseencontravaalgumapresanocaminho.Depoisdedizeraorepresentante que estava caçando, sabia que eramelhor voltar comumapresa que impressionasse. Aos poucos começou a ouvir um somdesconhecido.Precisoupararparaentenderdoquese tratava.Emalgumlugar,haviaáguapingando.Olhandoaoredor,viuumglóbuloprateadonapontadeumgalhoespinhento.Agotainchouebrilhoualuzdosol,antesdecairederreterumpequenoburaconaneve.Oguerreiro levantouacabeça.Obarulhodeáguaestavaportodo lado,

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agora,eumabrisamornaeriçouseupelo.Umaondadealegriaopercorreuquando ele percebeu que a cruel estação sem folhas estava chegando aofim. Logo viria o renovo e haveriamontes de presas outra vez. O degelotinhacomeçado!

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CAPÍTULO10

DE VOLTA AO ACAMPAMENTO, CORAÇÃO DE FOGO VIU Estrela Azul saindo doberçário.Rapidamente,elecolocouacaçanapilhaefoiatéalíder.–Sim,CoraçãodeFogo,oqueé?–alíderquissaber.Suavozeracalma,

mastinhaumtoquesombrio;oguerreirosabiaqueafriezasignificavaqueela ainda não o perdoara pelas perguntas a respeito dos filhotesdesaparecidosdoClãdoTrovão.Eleabaixouacabeçarespeitosamente.–EstrelaAzul,euestavacaçando

pertodoLugardosDuas-Pernas,e…–Porque lá?–ela interrompeu.–Àsvezesachoquevocêpassamuito

tempopertodoLugardosDuas-Pernas,CoraçãodeFogo.– P… pensei que poderia haver presas por ali – ele gaguejou. – De

qualquerforma,quandoestavalá,sentiocheirodegatosestranhos.Nomesmomomentoalíderficoualerta;suasorelhassemoveramparaa

frenteeelafixouosolhossignificativamentenoguerreiro.–Quantosgatos?Dequeclã?– Não estou certo quanto ao número – admitiu. – Cinco ou seis, pelo

menos. Mas eles não tinham o odor de nenhum dos clãs. – O guerreirotorceu o nariz e lembrou. – Eles cheiravam a carniça, o que me fez tercertezadequenãoeramgatinhosdegente.Estrela Azul ficou pensativa; para alívio de Coração de Fogo, sua

hostilidadepareceuirembora.–Dequandoéocheiro?–elaindagou.–Muitorecente.Masnãovinenhumgatoporlá.–ExcetoGarradeTigre,

acrescentou para si mesmo, em silêncio. Coração de Fogo resolveu nãocontarà líderessapartedahistória.Elanãoestavadispostaaouvirmaisacusaçõescontraorepresentante,eelenãotinhaprovasdequeGarradeTigretivessealgumacoisaavercomosgatosdesconhecidos.– Quem sabe renegados vindos do Lugar dos Duas-Pernas? Obrigada,

CoraçãodeFogo.Direiàspatrulhasque fiquematentasquandopassarempor ali. Não acho que seja uma ameaça ao Clã do Trovão, mas cuidadonuncaédemais.

Com um rato silvestre entre os dentes, Coração de Fogo foi para oacampamento.O solbrilhavaemumcéuazul resplandecentee,doisdiasdepois de seu encontro com Princesa, a maior parte da neve já tinha

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desaparecido.Osbrotostinhamaumentadodetamanhoeumafinacamadadefolhasverdesse insinuavanasárvores.Eomais importante,aspresascomeçavamareaparecernafloresta.Jáeramaisfácilreabastecerapilhadoacampamentoe,pelaprimeiravezemluas,oclãestavabemalimentado.CoraçãodeFogochegouàclareiraeencontrouasrainhasretirandodo

berçárioomusgovelhoqueforravaascamas.Oguerreirodeixouacaçanapilhaefoiajudá-las,satisfeitoporverqueFilhotedeNuvemfaziaomesmo.– Vou mostrar aos outros filhotes onde se pode encontrar o melhor

musgo!–miou,cheiodeorgulho,opequenogatobranco,cambaleantecomopesodosforrosvelhos.–Boaideia–concordouCoraçãodeFogo.Elenotaraque,mesmodepois

que Garra de Tigre o liberara das funções com os anciãos, o filhotecontinuavaaajudar.Talvez,afinaldecontas,elesentisseumacentelhadelealdadepeloclãdeadoção.–Mastomecuidadocomostexugos!Só então viu Flor Dourada sair do berçário, empurrando uma bola de

musgosujo.Suabarrigaestavaredondaporcausadopesodosbebêsquecarregava.–Olá,CoraçãodeFogo–elamiou.–Nãoémaravilhosovernovamenteo

sol?Oguerreirorespondeucomumalambidaamigávelnoombrodarainha.–

Logo chegará a estação do renovo – ele miou. – Bem a tempo para achegada dos seus filhotes. Se você… – Ele se calou, virando-se ao ouvirGarradeTigrechamá-lo.–CoraçãodeFogo, senão tivernadamelhorpara fazerdoque fofocar

comasrainhas,tenhoumserviçoparavocê.Ogatoengoliuumarespostazangada.Estiveracaçandoamanhãinteirae

sótinhaparadoporalgunsminutosparafalarcomFlorDourada.– Quero que você leve uma patrulha para a fronteira do Clã do Rio –

continuouorepresentante.–Fazdiasquenenhumgatoandaporlá,eagoraqueanevesefoi,precisamosrenovarnossasmarcasdecheiro.Certifique-sedequeosgatosdoClãdoRionãoestejamcaçandoemnossoterritório.E,seestiverem,jásabeoquefazer.–Sim,GarradeTigre–miouCoraçãodeFogo.Osouriçosdeviamestar

criando asas, pensou, se Garra de Tigre o escolhera para liderar umapatrulha!Masorepresentanteeraespertodemaisparasecomportarcomhostilidadeempúblico;aocontrário,eleseriacuidadoso,tratando-ocomoaosdemaisguerreirosdoclã,poisEstrelaAzulpoderiaperceber.

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Maseuaindanãoconfioemvocê!CoraçãodeFogopensou.Emioualto:–Quemdevolevarcomigo?–Qualquer gatodeque você goste.Ouvocêprecisaque eu segure sua

pata?–orepresentanteacrescentoucomdesdém.– Não, Garra de Tigre. – Coração de Fogo mal conseguia segurar sua

língua;eleadorariasocaraquelefocinhocheiodecicatrizes.DeuummiadoapressadoparaFlorDouradaefoiparaatocadosguerreiros.TempestadedeAreiaestavalá,deitadadelado,lavando-secomvontade;aliperto,ListraCinzentaeVentoVeloztrocavamlambidas.– Quem está a fim de sair em patrulha? – Coração de Fogo chamou. –

DevemosverificarafronteiradoClãdoRio.À menção do Clã do Rio, Listra Cinzenta, atrapalhado, ficou de pé

imediatamente, enquanto Vento Veloz se levantou mais devagar.Tempestade de Areia interrompeu o banho e reclamou com Coração deFogo. – Logo agora que eu estava querendo um pouco de paz. Estivecaçandodesdeamadrugada.–Masotomerabem-humorado,semomenortraço daquela hostilidade que ele experimentara quando chegara ao clã,pensouCoraçãodeFogo;quaseaomesmotempoelaselevantou,sacudiu-seedisse:–Tudobem;vánafrente.– E Pata de Samambaia? – perguntou o guerreiro a Listra Cinzenta. –

Vamoslevá-lo?– Nevasca e Pelo de Rato saíram com os aprendizes – explicou Vento

Veloz. –Todos os aprendizes – são loucos! Estão caçando presas frescasparaosanciãos.Coração de Fogo tomou a frente, sentindo uma comichão nas patas

quando saltou para a ravina. Parecia fazermuitas luas que ele não davaumacorridasemqueanevelhecongelasseaspatas,eelequeriaesticarosmúsculos. – Vamos para as Rochas Ensolaradas – miou –, e entãoseguiremosaolongodafronteiraatéQuatroÁrvores.Oguerreirodepeloavermelhadoestabeleceuumritmoacelerado,mas,

mesmo assim, podia perceber as folhas verdes e brilhantes dassamambaias novas começando a se desenrolar, e os primeiros brotospálidos das prímulas saindo de suas coberturas verdes. O canto dospassarinhoseoaromafrescodebrotossedesenvolvendoenchiamoar.Quandoapatrulhaseaproximoudabeiradafloresta,eledesacelerouo

passoecomeçouacaminhardevagar.Àfrente,ouvia-seosomdorio,livre,enfim, das amarras do gelo. – Já estamos quase na fronteira – ele miou

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baixinho.–Apartirdaquitemosdeficaralertas.PodehavergatosdoClãdoRio.ListraCinzentaparoueabriuabocaparasorveroaromadabrisa.–Não

sinto cheiro algum – anunciou. Coração de Fogo imaginou que estavadecepcionadoporqueArroiodePratanãoestavaporperto.–Alémdisso,elesterãopresasemabundânciaagoraqueoriodescongelou–acrescentouListraCinzenta.–Porqueviriamroubarasnossas?–NãoponhoaminhapatanofogopeloClãdoRio–grunhiuVentoVeloz.

–Elesroubamatéopelodesuascostassevocênãoficardeolho.Coração de Fogo viu que o pelo de Listra Cinzenta começava a ficar

arrepiado.–Venha,então–elemiou,compressa,tentandodistrairoamigoantesqueeledissessealgoquedenunciassesualealdadedividida.–Vamos.–Passoucorrendopelasúltimasárvoresechegouaocampoaberto.Oqueeleviufezcomqueestacasse,ealembrançadeseusonhooatingiucomooestrondodeumtrovão.Diantedeles,aterraseinclinavasuavementeparaorio–ouparaoque

tinha sido o rio. Avolumadas pela neve derretida, as águas tinhamextravasadoasmargensesubidoatéchegaràvegetação,aquaseumcoelhodedistânciadaspatasdeCoraçãodeFogo. Sóestavamvisíveis aspontasdosjuncos;umpoucoadiante,rioacima,asRochasEnsolaradaseramilhascinzentasnomeiodeumlagoprateadoecintilante.O degelo tinha chegado, isso era certo,mas o rio, agora, transbordara

completamente.

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CAPÍTULO11

–GRANDECLÃDASESTRELAS!–MURMUROUTEMPESTADEDEAREIA.Os outros dois gatos emitiram um som gutural, concordando, mas

CoraçãodeFogoestavamudo,horrorizado.Eleimediatamentereconheceuabrilhanteextensãodeágua,eagoralembravaasameaçadoraspalavrasdeFolhaManchada:“Aáguapodeextinguirofogo.”Omedo o deixou arrepiado, enquanto ele tentava entender como essa

cheia poderia ameaçar seu clã, e ele não percebeu que Listra Cinzentatentavaatrairsuaatençãoatéqueograndegatocinzaseencostassenele,pressionando-o. O medo chamejava nos olhos cor de âmbar de ListraCinzenta, e não era necessário indagar a razão; ele temia por Arroio dePrata.OterrenoeramaisbaixonamargemdoClãdoRio,oquepermitiaquea

inundação chegasse até muito longe. Com relação ao acampamento nailha…CoraçãodeFogoimaginavaquantodeleestariadebaixodaágua.ElepassaraagostardeArroiodePrata,apesardesuaspreocupações,esentiatambém um relutante respeito por Pé de Bruma e Poça Cinzenta. Nãoqueria pensar na possibilidade de elas terem de abandonar oacampamento,oupior,deseafogarem.VentoVelozfoiatéabeiraeseuolharcruzouorio.–OClãdoRionãovai

gostar disto. Mas há um lado bom, também. A enchente vai mantê-losafastadosdonossoterritório.Coração de Fogo percebeu que Listra Cinzenta ficara tenso ao notar

satisfaçãonotomdeVentoVeloz.Elelançouaoamigoumolhardeaviso.–Bem, não podemos patrulhar a fronteira agora – salientou. – É melhorvoltarmosaoacampamentoecontaroquevimos.Vamos,ListraCinzenta–ele acrescentou com firmeza, vendo o guerreiro olhar novamente,angustiado,paraaoutramargemdovolumosorio.

Tão logo soube da notícia, Estrela Azul pulou para o topo da PedraGrande e fez a convocação habitual. – Que todos os gatos com idadesuficienteparacaçaraprópriacomidasereúnamaospésdaPedraGrande.Imediatamente os felinos começaram a sair das tocas para a clareira.

CoraçãodeFogotomouseulugaràfrentedogrupo,percebendo,comumapontadeaborrecimento,queFilhotedeNuvemvinha,aospulos,atrásdeCaraRajada,emboraaindafossejovemdemaisparaassistiràreunião.Viu

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PresaAmarelaePatadeCinzaescutandodabocadotúneldesamambaias.AtéCaudaPartidasaiudatoca,empurradoporPelodeRato.Obelotempodamanhãderalugaranuvens,quecomeçavamasejuntar,

encobrindoosol, eabrisa suave transformara-seemumvento fortequevarriaaclareira,achatandoopelodosgatosqueestavamagachadosàvoltadaPedraGrande.CoraçãodeFogoestremeceu,semsabersedefriooudeapreensão.– Gatos do Clã do Trovão – miou Estrela Azul. – Nosso acampamento

podeestaremperigo.Anevesefoi,masorioextravasouasmargens.Partedenossoterritóriojáestáinundada.Um coro de desânimo se elevou, mas Estrela Azul impôs sua voz. –

CoraçãodeFogo,digaaoclãoqueviu.Ogatodepelo corde chamase levantouedescreveucomoo rio tinha

transbordadonasproximidadesdasRochasEnsolaradas.–Nãoparece tãoperigoso–miouRiscadeCarvãodepoisdeouvi-lo. –

Sobrouaindamuitoterritórioparacaçar.VamosdeixarqueoClãdoRiosepreocupecomacheia.Ouviu-se ummurmúrio de aprovação, embora Coração de Fogo tenha

percebidoqueGarradeTigrepermanecia calado.O representante estavanabasedaPedraGrande,imóvel,excetopelapontadacauda,queelemoviacomosefosseumchicote.– Silêncio! – cuspiuEstrelaAzul. –Ovolumedeáguapodeaumentar e

chegaratéaquiantesquepercebamos.Umproblemadessetipoépiordoquearivalidadeentreclãs.NãogostariadeouvirquealgumgatodoClãdoRiomorreuporcausadaenchente.CoraçãodeFogopercebeuumbrilhoardentenosolhosdalíder,comose

suaspalavras tivessemumsentidomaior.Confuso, lembroucomoEstrelaAzul se zangarapor ele ter conversado comos guerreiros doClã doRio;embora,nessascircunstâncias,suaforteempatiapudessesignificarapenasqueelaestavatomadaporsolidariedade.Retalhoelevouavozentreosanciãos.–Lembroaúltimavezqueorio

transbordou, muitas luas atrás. Gatos de todos os clãs se afogaram, epassamosfome,também,emboranossaspatastenhampermanecidosecas.EsseproblemanãoésódoClãdoRio.–Muito bem dito, Retalho –miou Estrela Azul. – Tambémme lembro

desse tempo, e esperava que isso nuncamais se repetisse.Mas, como jáaconteceu, minhas ordens são: nenhum gato pode sair do acampamento

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sozinho.Os filhoteseaprendizessósaemacompanhadosporpelomenosum guerreiro. As patrulhas vão sair para conferir até onde as águaschegaram.–GarradeTigre,providencieisso.– Sim, Estrela Azul – miou o representante. – Vou mandar também

patrulhas de caça. Precisamos providenciar um estoque de presas antesqueaságuassubammais.–Boaideia–concordoualíder.Elavoltouasubirotomdevozparase

fazer ouvir por todoo clã. –A reunião está encerrada. Vão cumprir suastarefas.–Elapulou,graciosa,daPedraGrandeefoiconversarcomRetalhoeosdemaisanciãos.Enquanto esperava para ver se Garra de Tigre iria escolhê-lo para

integrarumapatrulha, CoraçãodeFogoviuListraCinzenta se afastardocírculo de gatos. O guerreiro de pelagem rubra o seguiu, alcançando-oassimqueeleseencaminhouparaotúneldetojo.–Aondevocêpensaquevai? – cochichou no ouvido do guerreiro cinza. – Estrela Azul acabou dedizerquenenhumgatodevesairsozinho.Listra Cinzenta o olhou apavorado e protestou: – Coração de Fogo,

precisoverArroiodePrata.Precisotercertezadequeelaestábem.CoraçãodeFogosoltouumsuspirolongoeexasperado.Compreendiao

sentimentodoamigo,maselenãopodiaterescolhidohorapiorparavisitaranamorada.–Comovocêvaiatravessarorio?–perguntou.–Eumearranjo–respondeuListraCinzenta,grosseiro.–Ésóágua.– Não seja tão miolo de camundongo! – Coração de Fogo cuspiu,

lembrandoaocasiãoemqueListraCinzentacaíranogeloeforaresgatadoporArroiodePrata.–Umavezvocêjáquaseseafogou.Nãochega?ListraCinzentanãorespondeu;apenasvoltouparaotúnel.CoraçãodeFogoolhouporcimadoombro.Naclareira,osdemaisgatos

formavampequenosgrupos,sobabatutadeGarradeTigre,prontosparasairempatrulha.–Pare,ListraCinzenta!–eleciciou,detendooamigonaentradadotúnel.–Espereaí.Quando teve certeza de que Listra Cinzenta ia fazer o que ele pediu,

Coração de Fogo cruzou a clareira para falar com o representante. – Ei,Garra de Tigre, Listra Cinzenta e eu estamos prontos. Vamos verificar afronteira do Clã do Rio depois das Rochas Ensolaradas rio abaixo, tudobem?Garra de Tigre estreitou os olhos, deixando clara sua insatisfação por

Coração de Fogo ter decidido que área iria patrulhar. Mas ele não tinha

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razãoparanegar, especialmenteporqueEstrelaAzulpodiaouvir. –Tudobem–grunhiu.–Tentetambémtrazeralgumapresa.–Claro,GarradeTigre–CoraçãodeFogoreplicou,abaixandoacabeça

antes de correr até Listra Cinzenta. – Certo – ele arfou. – Estamos empatrulha,pelomenosassimnenhumgatovaificarimaginandoaondevocêfoi.–Masvocê…–ListraCinzentacomeçouaprotestar.–Seiquevocêtemdeir–CoraçãodeFogomiou.–Maseuvoujunto.Enquantodiziaisso,elesentiuumapontadeculpa.Mesmoempatrulha,

eleeListraCinzentanãodeveriamultrapassarasfronteirasdoclã.EstrelaAzul ficaria furiosa se soubesse que dois de seus guerreiros estavamarriscando a vida no território inimigo quando seu próprio clã precisavatantodeles.MasCoraçãodeFogonão tinha como ficarali edeixarListraCinzentaseguirsozinho.Elepoderiaserlevadopelaságuasejamaisvoltar.–Obrigado,CoraçãodeFogo–murmurouListraCinzentaaosaíremdo

túnel.–Nãovouesquecerisso.Ladoalado,osdoisguerreirossubiramaostrancospelaencostarochosa

e íngreme. Entrando pela floresta, refazendo os passos da patrulhaanterior, Coração de Fogo percebeu que o chão sob suas patas estavaenlameado. A neve derretida encharcara a terra como a mais forte daschuvas,mesmosemamortalinvasãodaságuasdorio.Quando chegaram à beira da floresta, Coração de Fogo viu que a água

subira aindamais. As Rochas Ensolaradas estavam quase submersas e acorrenteza turbilhonava entre elas, em círculos estreitos. –Nunca vamosconseguiratravessaraqui–elemiou.–Vamosdescerorio–ListraCinzentasugeriu.–Talvezpossamosusaro

caminhodepedras.– Vamos tentar – Coração de Fogomiou, incrédulo. Ia seguir o amigo

quandopensou terouvidoalgumacoisa–um lamento fino sobressaíaaobarulhodoventoedoímpetodatorrente.–Espere.Vocêouviu?ListraCinzentaolhouparatráseosdois felinos ficarameretos,orelhas

depé,tentandoidentificarosom.EntãoCoraçãodeFogoouviunovamente:omiadoapavoradodefilhotesemagonia.–Ondeestãoeles?–elemiou,olhandoaoredoreacima,nasárvores.–

Nãoconsigovê-los!– Ali! – Listra Cinzenta apontou com a cauda a área das Rochas

Ensolaradas.–CoraçãodeFogo,elesvãoseafogar!

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A correnteza tinha jogado um emaranhado de galhos e lixo contra asRochasEnsolaradas.Sobreeledoisfilhotesseequilibravamprecariamente,asboquinhasabertas,gritandoporajuda.NomomentoemqueCoraçãodeFogo observava, a correnteza empurrava o tapete flutuante, ameaçandolevá-loembora.–Vamos!–gritouparaListraCinzenta.–Temosdealcançá-los.Depois de tomar fôlego, ele entrou na água, que imediatamente

encharcouseupelo;umtremorgeladoeparalisantelhesubiupelaspernas.Oimpulsodacorrentezatornavamaisdifícilmanter-sedepéacadapasso.Listra Cinzenta também se jogou na água,mas parou quando sentiu a

barrigamolhada.–CoraçãodeFogo…–elemiou,avozsufocada.O amigo o encorajou com um aceno. Compreendia como o rio devia

apavorarListraCinzenta, depoisde seuquaseafogamentohavia algumasluas.–Fiqueaí.Voutentarempurrarosgalhosatévocê.ListraCinzenta fezque simcoma cabeça, tremendodemaispara falar.

CoraçãodeFogodeuunspassosàfrentee,então,sejogounacorrentezaecomeçou a nadar, batendo instintivamente as pernas para vencer a águaturva.ElesestavamemumpontodorioacimadasRochasEnsolaradas;seoClãdasEstrelaspermitisse,acorrentezaolevariaatéosfilhotes.Por um momento os perdeu de vista em meio às ondas que o vento

formava,emboraaindaouvisseseusgritosdeterror.Entãoapedracinzaelisa de uma das Rochas Ensolaradas surgiu ao seu lado. Ele chutou comforça, temendo, por um assustador tique-taque de coração, ser arrastadoparalongedali.Acorrenteza formavaumredemoinho.CoraçãodeFogomexiaaspatas

comvigor,eorioojogavacontraarocha,fazendo-operderofôlego.Eleseesforçavaparachegarà tona, tentandoseequilibrarnaságuasrevoltas,eseviudiantedosdoisfilhotes.Eles eram bem pequeninos; provavelmente ainda não desmamaram,

imaginou Coração de Fogo. Um era preto, o outro cinza; o pelo estavagrudado nos seus minúsculos corpos e eles tinham os brilhantes olhosazuis esbugalhados de pavor. Estavam agachados no emaranhado degalhos,folhaselixodosDuas-Pernas,mas,quandoviramCoraçãodeFogo,desajeitados, tentaram alcançá-lo. O tapete flutuante balançou e elesgritaram,poisaáguaoscobriu.– Fiquem parados! – Coração de Fogo falou, mal respirando, lutando

loucamente contra a correnteza. Por um instante se perguntou se

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conseguiria subir na pedra e levar os filhotes, mas não tinha certeza dequantotempoaindafaltavaparaasRochasEnsolaradasficaremtotalmentesubmersas. Seu melhor plano ainda era empurrar o tapete flutuante atéListraCinzenta.Olhouparatráseviuqueoamigo jádesceraumpoucoorioeestavaemumaboaposiçãoparaagarraroemaranhadoquandoeleoempurrasseemsuadireção.–Aquivamosnós–CoraçãodeFogosussurrou.–QueoClãdasEstrelas

nosajude!–Ele seafastouda rochae, como focinho,empurrouo tapetepara a correnteza. Os dois filhotes choramingavam abaixados sobre osgalhos.Coração de Fogo buscou o resto de energia de que ainda dispunha e

empurrouosgalhosemaranhadoscomonarizeaspatas.Sentiaaexaustãodrenando-lheaforçadosbraçosedaspernas.Opeloestavaencharcadoeele, tão gelado que mal podia respirar. Levantou a cabeça e, com águaescorrendodosolhos,constatou,aterrorizado,quetinhaperdidodevistaamargem e Listra Cinzenta. Era como se, nomundo, só existissem a águaagitada,ofrágilemaranhadodegalhoseosdoisfilhotesempânico.Então, ouviu a voz de Listra Cinzenta, bem perto. – Coração de Fogo!

CoraçãodeFogo,aqui!Oguerreiroempurrounovamenteotapeteflutuante,tentandodirecioná-

loaopontodeondevinhaavoz.Masoemaranhadorodopiouecobriu-lheacabeça.Tossindo,engasgado,eleusouasgarrasparachegarà tona,eviuListraCinzentacaminhandonaterraseca,apoucascaudasdedistância.Por um tique-taque de coração, o guerreiro avermelhado sentiu alívio

porestarperto.Entãofixounovamenteosolhosembaçadosnosfilhotesesentiuomedopulsardentrodele.Otapeteestavaquaseserompendo.CoraçãodeFogo,sempoderfazernada,viuotapetedegalhose lixose

abrirsobofilhotecinzaeapequenacriaturasertragadapelacorrenteza.

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CAPÍTULO12

–NÃO!–GRITOULISTRA CINZENTA,MERGULHANDO ATRÁS DO filhotequeestava seafogando.Coração de Fogo os perdeu de vista. O filhote que restara no tapete

gritava desesperadamente, tentando se agarrar aos galhos que sedesprendiam por causa da correnteza. Com o resto de suas forças, oguerreiroavançouparaele,cravouosdentesnocangotedacriaturinhaealançouparaaterraseca.Logoele sentiuquehaviapedras sob suaspatas e se levantou.Comas

pernasdurasdecansaço, cambaleouatéamargemecolocouo filhotinhopreto no capim, à beira das águas torrenciais. Os olhos do bebê estavamfechados;oguerreironãosabiaseeleaindaestavavivo.Olhandorioabaixo,eleviuListraCinzentasaindodaáguaemumaparte

mais rasa, segurando firmemente o filhote cinza com os dentes. Foi atéCoraçãodeFogoecolocouobebêdelicadamentenochão.CoraçãodeFogotocouosdoisfilhotescomonariz.Elesestavamimóveis,

mas quando o guerreiro os olhoumais de perto percebeu o sutil sobe edesce da respiração. –Muito obrigado, Clã das Estrelas – elemurmurou.Começou a lamber o filhotinho preto como vira as rainhas do berçáriofazer, passando a língua no sentido oposto ao do pelo para despertar obebêeaquecê-lo.ListraCinzentaseagachouaseuladoefezamesmacoisacomofilhotecinza.Logoo filhotepretosecontorceue tossiuumabocadadeágua.Ocinza

levoumaistempopararesponder,mas,porfim,eletambémcuspiuaáguaeabriuosolhos.–Estãovivos!–exclamouListraCinzenta,avozcheiadealívio.–Sim,masnãovãoaguentarmuitotemposemamãe–observouCoração

de Fogo. Ele farejou o filhote preto cuidadosamente. A água do rio tinhalavadomuitodocheirodoclã,maselepodiadetectarumlevevestígio.–ClãdoRio–miou,semsurpresa.–Vamosterdelevá-losparacasa.AcoragemdeCoraçãodeFogoporumtriznãooabandonouquandoele

pensou que teriamde atravessar o rio de águas volumosas. Ele quase seafogara resgatando os filhotes e estava exausto. Tinha as pernas frias eduras,opeloencharcado.Tudooquequeriaerarastejaratéaprópriatocaedormirporumalua.Aindaagachadopróximoaofilhotecinza,ListraCinzentapareciasentira

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mesmacoisa.Suapelagemcinzaeespessaestavacoladaaocorpo,osolhoscor de âmbar, arregalados de ansiedade. – Você acha que conseguiremosatravessar?–Temosdeconseguir,ouosbebêsvãomorrer.–Forçando-seaficarde

pé, Coração de Fogo pegou novamente o filhote preto pelo cangote ecaminhou um pouco rio abaixo. – Vamos ver se conseguimos atravessarpelo caminho de pedras, como você disse. – Listra Cinzenta foi atrás,carregando o bebê cinza pelo capim molhado na beira das águastransbordantes.Quandoorioestavaemseunívelnormal,ocaminhodepedraserauma

rotafácilparaatravessiadosgatosdoClãdoRio.Amaiordistânciaentreduas pedras não passava de uma cauda de comprimento, e o Clã do Riocontrolavaoterritórionasduasmargens.Agoraaságuascobriamcompletamenteaspedras.Masondeelastinham

extravasadoasmargens,umaárvoremorta,comacascaarrancada,estavaatravessadanorio.CoraçãodeFogodeduziuquealgunsdosgalhostinhamficado presos nas pedras submersas. – Obrigado, Clã das Estrelas! –exclamou. – Podemos usar a árvore para passar para o outro lado. –Ajustousuamordidanocangotedobebêeseguiupelospontosmaisrasosaté a extremidade lascada do tronco. O filhote, vendo a água revolta aapenas um camundongo abaixo de seu nariz, começou a miar e a lutardebilmente.– Fiquem quietos, os dois – resmungou Listra Cinzenta suavemente,

apoiandoofilhotenochãoporummomentoparaajustaramordidaemseucangote.–Vamosprocuraramãedevocês.Coração de Fogo não estava certo se o bebê aterrorizado tinha idade

suficiente para entender, mas ao menos ele relaxou novamente, o quefacilitava a tarefa de carregá-lo. O guerreiro, aos tropeços, precisavalevantar bem a cabeça para manter fora da água a criaturinha que sedebatia. Alcançou a árvore sem precisar nadar e pulou, agarrando-se àmadeiramacia e apodrecida.Assimque subiu, suaprincipalpreocupaçãoera conseguir semanter sobre o tronco liso e escorregadio. Caminhandocuidadosamente, pata ante pata, em uma linha reta, Coração de Fogodirigiu-se àmargem oposta, o rio se agitando sob ele, sugando a árvorecomo se quisesse arrastá-la, e também sua carga de gatos, correntezaabaixo. Olhou para trás e viu que Listra Cinzenta o seguia, carregando ofilhotecinza,ofocinhovincadodedeterminação.Em sua outra extremidade, o tronco se dividia em um emaranhado de

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galhosquebrados.CoraçãodeFogocurvou-separaseespremerentreeles,tomandocuidadoparanãodeixaropelodobebêseprenderàsfarpas.Eramais difícil encontrar onde se apoiar porque, como os galhos estavamficando mais finos, faltava alguma coisa que suportasse seu peso, e erapreciso atravessar aindaumvãode duas raposas de comprimento que oseparavadaoutramargem.Oguerreirorespiroufundo,flexionouaspatastraseirasesaltou.Aspatasdafrentealcançaramoterreno,enquantoasdetrás esperneavam loucamente na correnteza impetuosa. Como a águaespirrava, o filhote começou a se debater de novo. Mantendo os dentescerradosemseucangote,CoraçãodeFogoafundouasgarrasdafrentenaterramacia,movimentando-se comdificuldade até subir e ficar de pé namargem, em segurança. Então, dando alguns passos cambaleantes para afrente,colocousuavementeobebênochão.Olhando ao redor, Coraçãode Fogo viu Listra Cinzenta saindoda água

um pouco abaixo. Ele colocou o filhote cinza na terra, se sacudiu ereclamou.–Aáguadoriotemumgostohorrível.–Vejaoladopositivo–sugeriuCoraçãodeFogo.–Pelomenosdisfarça

seucheiro.OsgatosdoClãdoRionãovãosaberqueévocêoguerreiroqueteminvadidooterritóriodeles.Sealgumdiadescobrirem…Parou de falar quando três gatos surgiram de trás dos arbustos, um

poucoalémdeListraCinzenta.CoraçãodeFogosepreparavamentalmenteparaumamánotíciaquandoreconheceuPelodeLeopardo,arepresentantedoClã doRio, e os guerreirosGarraNegra e Pelo de Pedra. Forçando aspernascansadasasemover,pegouo filhotenegroeseguiupelamargematé ficar ao lado de Listra Cinzenta, que se levantou. Os dois jovensguerreirosdeixaramsuascargasnochãoe,juntos,encararamosrivais.CoraçãodeFogo imaginava se os gatosdoClãdoRio tinhamouvidoo

queeleestavadizendoaListraCinzenta.Eleeoamigoestavamexaustosdemaispararesistiraumapatrulhadeguerreiros fortesevigorosos; suacabeça girava enquanto ele tentava reunir, nas patas congeladas, energiasuficiente para uma luta. Mas, para seu alívio, os gatos do Clã do Riopararamaalgumascaudasdedistância.– O que é isso? – rugiu Pelo de Leopardo. Seu pelo com manchas

douradasseeriçou,easorelhascolaram-seàcabeça.AoladodelaestavaGarraNegra,comosdentesarreganhados,emsinal

deameaça.–Porquevocêsestãoinvadindonossoterritório?–Nãoestamosinvadindo–CoraçãodeFogomioubaixinho.–Retiramos

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doisdeseusfilhotesdorioequisemostrazê-losparacasa.–Vocêachaquequasenosafogamossópordiversão?–ListraCinzenta

faloudeformaabrupta.PelodePedrachegoupertoosuficienteparacheirarosdoisfilhotes.–É

verdade!–Seusolhosazuissearregalaram.–SãoosbebêsdePédeBrumaquetinhamdesaparecido!CoraçãodeFogoseretesoudeespanto.ElesabiaquePédeBrumatinha

tidofilhotesrecentemente,masnãotinhapercebidoqueeramosgatinhosqueelestinhamresgatado.Agoraeleestavaaindamaisfelizporelesteremconseguido salvar a vida dos bebês,mas sabia que não devia deixar queessesgatossoubessemquePédeBrumatinhaamigosnoClãdoTrovão.PelodeLeopardonãorelaxouapelagemdoombro.–Comopodemoster

certeza de que vocês salvaram os bebês? – ela grunhiu. – Vocês podiamestartentandoroubá-los.Coração de Fogo a encarou. Depois de eles terem arriscado a vida na

enchente, não acreditava que estivessem sendo acusados de roubar osfilhotes.–Miolodecamundongo!–elecuspiu.–SenenhumgatodoClãdoTrovão tentou roubar seus bebês quando podíamos atravessar o rio porcimadogelo,porquetentaríamosagora?Nósquasenosafogamos!Pelo de Leopardo ficou pensativa, mas Garra Negra empertigou-se e

impeliuagressivamenteacabeçanadireçãodeCoraçãodeFogo,querugiu,prontoparadesferirumgolpe.–GarraNegra! –mioudemodo ríspidoPelodeLeopardo. –Para trás!

Deixe que esses gatos se expliquem para Estrela Torta e vejamos se eleacreditaneles.CoraçãodeFogoabriuabocaparaprotestar,masaspalavrasficarampor

dizer. Eles teriam de ir com os gatos do Clã do Rio; naquele estado deexaustão,eleeListraCinzentanão tinhamnenhumaesperançadevencerumaluta.PelomenosListraCinzentapoderiaverArroiodePrata.–Tudobem–CoraçãodeFogomiou.–Sóesperoqueolíderdoseuclãconsigaveraverdadediantedeseunariz.Pelo de Leopardo guiou o caminho ao longo damargem; Garra Negra

pegouumdosfilhoteseseguiu,ameaçador,ao ladodeCoraçãodeFogoeListraCinzenta.PelodePedravinhaatrás,carregandoooutrobebê.AochegaremàilhaondeficavaoacampamentodoClãdoRio,Coraçãode

Fogoviuqueumamplocanaldeáguacorrenteaseparavadaelevaçãodeterra seca e mudava de rumo subitamente no ponto em que os galhos

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pendiamdossalgueiros.Nãoseviamgatosatravésdosjuncos,eCoraçãodeFogo percebeu que a água prateada se estendia pelos arbustos queescondiamoacampamento.Pelo de Leopardoparou, os olhos se arregalaram, alarmados. –A água

subiudesdequedeixamosoacampamento.Enquantoelafalava,ouviu-seumgritovindodetrás,dotopodaencosta,

onde, algum tempo antes, Coração de Fogo e Listra Cinzenta tinham seescondido para falar com Arroio de Prata. – Pelo de Leopardo! Aqui emcima!CoraçãodeFogovirou-seeviuolíderdoClãdoRio,EstrelaTorta,saindo

doabrigodearbustos.Estavaencharcado,opelomalhado todo revirado;com sua mandíbula torta, parecia zombar da patrulha e de seusprisioneiros.–Oqueaconteceu?–PelodeLeopardoperguntou,aoalcançarolíder.– O acampamento está inundado – replicou Estrela Torta, com a voz

arrasada.–Tivemosdenosmudarláparacima.Nisso, dois ou três outros felinos saíram cautelosamente dos arbustos.

CoraçãodeFogopercebeuqueListraCinzentaseiluminouaoverArroiodePrataentreeles.–Eoquevocêsnostrouxeram?–EstrelaTortacontinuou.Eleestreitou

osolhosparafitarCoraçãodeFogoeListraCinzenta.–EspiõesdoClãdoTrovão?Comosenãotivéssemosproblemasosuficiente!–ElesencontraramosfilhotesdePédeBruma–dissePelodeLeopardo,

acenando para que Pelo de Pedra e Garra Negra trouxessem os bebês. –Elesalegamtê-lostiradodorio.– Não acredito em uma só palavra! – cuspiu Garra Negra, soltando o

filhotequecarregava.–NãosepodeconfiaremumgatodoClãdoTrovão.À menção dos filhotes, Arroio de Prata rapidamente desapareceu de

novo sob os arbustos. Estrela Torta avançou e farejou os pacotinhosreclamões. Naquele momento, embora ainda estivessem completamenteensopados,eles tinhamcomeçadoaserecuperardapenosaexperiênciaetentavamficardepé.– Os filhotes de Pé de Bruma desapareceram quando o acampamento

inundou – comentou Estrela Torta, voltando o olhar frio e verde paraCoraçãodeFogoeListraCinzenta.–Comofoiquevocêsospegaram?Coração de Fogo trocou um olhar exasperado com Listra Cinzenta, a

exaustãodeixando-odepaviocurto.–Atravessamosoriovoando–miou,

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sarcástico.Umurroo interrompeu.PédeBrumasurgiudosarbustose correuaté

eles.–Meusbebês!Ondeestãoosmeusbebês?–Elaseagachousobreospedacinhosdepelo,olhandofreneticamenteaoredor,comoseachassequeos outros felinos iam tentar tomá-los. Então começou a lambê-losfuriosamente,querendoconsolarosdoisaomesmotempo.PelodePedrapressionou com força seu corpo contra o dela e miou ao seu ouvido,confortando-a.ArroiodePrataseguiu-amaisvagarosamenteesecolocouaoladodopai,

Estrela Torta, observando os gatos do Clã do Trovão. Coração de FogoestavaaliviadoporverseuolharpassarporListraCinzentacomaparenteindiferença.Elanãoostrairia,oguerreirotinhacerteza.Outrosgatosaparecerameficaramaoredor,curiosos.CoraçãodeFogo

reconheceuPoçaCinzenta,quenãodeunenhumsinaldetê-lovistoantes,ePelodeLama,ocurandeirodoClãdoRio,queseagachouaoladodePédeBrumaparaexaminarosbebês.Todosos gatosdoClãdoRio estavamencharcados, eopelo coladoao

corpodeixavaevidentequeestavammaismagrosdoquenunca.CoraçãodeFogosemprepensaranosgatosdoClãdoRiocomogordose

lustrosos, bem alimentados com os peixes do rio. Isso até que Arroio dePratalhecontaraqueosDuas-Pernastinhamficadopertodorioduranteaestaçãodas folhasverdese tinhamroubadoouafugentadoamaioriadaspresas.OsDuas-Pernastinhamdeixadoaflorestaagora,duranteaestaçãosem folhas, mas o Clã do Rio não tinha conseguido caçar com o riocongelado. E, no lugar de trazer o alimento tão necessário, o degelo osexpulsaradevezdeseuacampamento.Apesardesentirumapontadadepena,CoraçãodeFogotambémpodia

ver animosidade em seus olhos, hostilidade em suas orelhas coladas àcabeçaenaspontasdascaudasemespasmo.Ogatoavermelhadosabiaqueele e Listra Cinzenta teriam de se esforçarmuito para convencer EstrelaTortadequetinhamsalvadoosfilhotes.O líder do clã estava ao menos preparado para lhes dar uma

oportunidade de se explicar. – Digam-nos o que aconteceu – ordenouEstrelaTorta.CoraçãodeFogocomeçouseurelatodomomentoemqueouviuochoro

dosbebêseosviu,isolados,sobreotapetededetritosnorio.–Desde quando os gatos do Clã doTrovão arriscam a vida por nós? –

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GarraNegrainterrompeu,comdesdém,enquantoCoraçãodeFogonarravacomotinhaempurradoosfilhotespelacorrentezaatéamargem.Coração de Fogo engoliu uma resposta furiosa e Estrela Torta sibilou

para o guerreiro: – Silêncio, Garra Negra! Deixe-o falar. Se ele estivermentindo,logovamosdescobrir.–Elenãoestámentindo.–PédeBrumalevantouoolhardeondeainda

estava acariciando os bebês com o focinho. – Por que o Clã do Trovãoroubaria filhotes quando todos os clãs estão tendo dificuldades para sealimentar?–AhistóriadeCoraçãodeFogofazsentido–ArroiodePratacomentou

comcalma.–Tivemosdeabandonaroacampamentoenosabrigarnessesarbustosquandoaáguacomeçouasubir–elaexplicouaCoraçãodeFogo.–Quando viemos pegar os filhotes de Pé de Bruma, só encontramos dois.Faltavam outros dois. Todo o chão do berçário tinha sido levado pelaságuas. Eles devem ter sido carregados pelo rio até onde vocês osencontraram.EstrelaTortaassentiacomacabeça,emumlentomovimento,eCoração

deFogopercebeuqueahostilidadedosgatosestavadiminuindo–excetoporGarraNegra,quevirouascostasaosguerreirosdoClãdoTrovãocomumgrunhidodeinsatisfação.– Nesse caso, somos gratos a vocês – miou Estrela Torta, embora

parecesserelutante,comosemalpudessesuportarestaremdívidacomumpardegatosdoClãdoTrovão.– Sim –miou Pé de Bruma. Fitou-os novamente, os olhos brilhantes e

suaves,agradecidos.–Semvocês,meusfilhotesteriammorrido.Coração de Fogo abaixou a cabeça, confirmando. Impulsivamente,

indagou:–Háalgumacoisaquepossamosfazerporvocês?Senãopodemvoltaraoacampamentoeseháescassezdepresasporcausadaenchente…–NãoprecisamosdaajudadoClãdoTrovão–grunhiuEstrelaTorta.–Os

gatosdoClãdoRiopodemcuidardesi.–Nãosejatolo.–FoiPoçaCinzentaquefalou,fitandoseulíder.Coração

de Fogo sentiu que seu respeito por ela aumentava; ele supunha quepoucosseatreveriamausaraqueletomcomEstrelaTorta.–Cuidadocomesseexcessodeorgulho.Issopodesevirarcontravocê–disseasperamenteaanciã.–Comovamosnosalimentar,mesmocomodegelo?Nãohápeixesparacomer.Orioestápraticamenteenvenenado;vocêsabequeestá.– O quê? – Listra Cinzenta exclamou; Coração de Fogo estava abalado

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demaisparadizerqualquercoisa.– É tudo culpa dosDuas-Pernas – Poça Cinzenta explicou. –No último

renovo,orioestavalimpoecheiodepeixes.AgoraestáimundocomolixodoacampamentodosDuas-Pernas.– E os peixes estão envenenados – acrescentou Pelo de Lama. –Quem

comeficadoente.Trateimaisgatoscomdordebarriganessaestaçãosemfolhasdoqueemtodaaminhavidadecurandeiro.Coração de Fogo olhou para Listra Cinzenta e depois de novo para os

gatos famintos do Clã do Rio. A maioria não conseguia encará-lo, comvergonha de expor seus problemas a um felino de outro clã. – Então,deixem-nosajudar– elepediu. –Atéqueas águas abaixemeo rio estejalimpo,vamoscaçarpresasemnossoterritórioetrazê-lasparavocês.Ao fazer a oferta, sabia estar quebrando o Código dos Guerreiros, que

exige lealdade apenas ao próprio clã. Estrela Azul ficaria furiosa sedescobrissequeeleestavaprontoapartilharaspreciosaspresasdoseuclã.MasCoraçãodeFogonãopodiaabandonaroutroclãemummomentodenecessidade.A própria Estrela Azul disse que nosso bem-estar depende dehaver quatro clãs na floresta, lembrou a simesmo.– Certamente esse é odesejodoClãdasEstrelas.–Vocêrealmentefariaissopornós?–EstrelaTortaperguntoucomavoz

lenta,osolhossemicerradosdedesconfiança.–Faria–miouCoraçãodeFogo.– Também vou ajudar – prometeu Listra Cinzenta, com um olhar para

ArroiodePrata.–Entãooclãagradece–grunhiuEstrelaTorta.–Nenhumdosmeusgatos

vai desafiá-los em nosso território até que as águas baixem e possamosretornaraonossoacampamento.Mas,depoisdisso,vamosvoltaracuidarde nós. – Ele retomou o caminho dos arbustos. Seus gatos, obedientes, oseguiram, lançando olhares a Coração de Fogo e a Listra Cinzenta. Oguerreiroavermelhadopercebiaquenemtodosconfiavamouacreditavamnaquelaofertadeajuda.A última a sair foi Pé de Bruma, empurrando os filhotes para fazê-los

andareguiando-osencostaacima.–Obrigadaaosdois–ela sussurrou.–Nãovouesquecer.OsfelinosdoClãdoRiodesapareceramnosarbustos,deixandoCoração

deFogoeListraCinzentasozinhos.Nadescidadaencosta,emdireçãoaorio, Listra Cinzenta balançou a cabeça sem acreditar. – Caçar para outro

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clã?Devemosestarloucos.– Que opção nós tínhamos? – Coração de Fogo retorquiu. – Deixá-los

morrerdefome?–Não!Mastemosdesercuidadosos.VamosvirarcarniçaseEstrelaAzul

descobrir.OuGarradeTigre, acrescentou para simesmo Coração de Fogo.Ele já

suspeita queListraCinzenta e eu tenhamosamigosnoClã doRio. E talvezestejamosprestesaprovarqueeleestácerto.

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CAPÍTULO13

ERA UMA MANHÃ FRIA E CINZENTA. RELUTANTE, CORAÇÃO DE FOGO se arrastou doninhoquenteefoicutucarListraCinzenta.–O q…? – Listra Cinzenta semexeu e voltou a se ajeitar, com a cauda

enroladasobreonariz.–Caiafora,CoraçãodeFogo.O guerreiro de pelagem rubra curvou a cabeça e cutucou os ombros

largos e cinzentos do amigo, cochichando em seu ouvido: – Vamos lá.PrecisamoscaçarparaoClãdoRio.Aoouvirisso,ListraCinzentalevantou-seeabriuabocaemumenorme

bocejo. Coração de Fogo estava tão cansado quanto o amigo; caçar parafornecerpresafrescaparaoClãdoRio,alémdecumprirseusdeveresnoClã do Trovão, tomava-lhes tempo e energia. Tinham atravessado o riocarregando presas várias vezes e, até então, tinham tido sorte. NenhumfelinodoClãdoTrovãodescobriraoqueestavamfazendo.CoraçãodeFogoseespreguiçoue,cauteloso,examinouatoca.Amaioria

dos guerreiros estava enroscadanomeiodomusgo, emum sonopesadodemaisparaquepudesse fazerperguntas inconvenientes.GarradeTigreeraapenasummontedepelomalhadoeescuronoseuninho.CoraçãodeFogoescorregouentreosgalhosdatoca.Achavaquetodosos

outrosgatosestavamdormindo;mas,desúbito,viuCaraRajadaaparecerna entrada do berçário e elevar o focinho para farejar o ar. Como seimportunadapeloventoúmidoedesagradávelqueacumprimentou,quaseimediatamentevoltouparadentro.O guerreiro de pelagem avermelhada olhoumais uma vez para Listra

Cinzenta,quetiravapedaçosdemusgodopelo.–Tudobem–elemiou.–Agorapodemosir.Os dois cruzaram a clareira rumo ao túnel de tojo. Ao chegarem lá,

ouviramumavozfamiliar:–CoraçãodeFogo!CoraçãodeFogo!Ogatoavermelhadosesentiucongelarevoltou-se.FilhotedeNuvemse

aproximava,aosgritos:–CoraçãodeFogo!Esperepormim!– Por que esse seu sobrinho aparece sempre nos pioresmomentos? –

grunhiuListraCinzenta.–SóoClãdasEstrelassabe–suspirouCoraçãodeFogo.– Aonde vocês vão? – Filhote de Nuvem, entusiasmado e ofegante,

chegou correndo e paroude repente na frente dos guerreiros. – Posso ir

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junto?– Não – Listra Cinzenta respondeu. – Só aprendizes podem sair com

guerreiros.FilhotedeNuvemlançou-lheumolhardedesagrado.–Maslogovouser

umaprendiz.Nãovou,CoraçãodeFogo?–“Logo”nãoé“agora”–otiolembrou,lutandoparasemantercalmo.Se

ficassemmuitomaistempoali,todooclãacordaria,querendosaberaondeeles estavam ido. – Desta vez não dá, Filhote deNuvem. Vamos em umamissãoespecialdeguerreiros.Os olhos azuis do jovem ficaram redondos, maravilhados. – É um

segredo?– É, sim – sibilou Listra Cinzenta. – Especialmente para filhotes

enxeridos.–Não conto para ninguém – o jovemprometeu, ansioso. – Coração de

Fogo,porfavor,medeixeir.– Não. – Coração de Fogo trocou um olhar exasperado com Listra

Cinzenta.–Olhe,FilhotedeNuvem,volteparaoberçário,talvezdepoiseulevevocêparaumtreinamentodecaça,certo?–Certo…Euacho.–Ogatinhobrancopareciademauhumor,masvirou-

seetomouadireçãodoberçário.CoraçãodeFogoobservou-oatéqueelechegasseàentradaedeslizasse

pelabocadotúnel.LogodepoisoguerreirosubiaaravinaaoladodeListraCinzenta.–Esperoqueeleconteatodooclãquesaímoscedoemmissãoespecial–

bufouListraCinzenta.–Depoisnospreocupamoscomele–CoraçãodeFogofalou,arfando.Osdoisguerreirossedirigiramparaocaminhodepedras.Aárvorecaída

ainda estava lá para ajudá-los a atravessar o rio, e caçar mais pertosignificavacarregaraspresaspormenordistância,emenorprobabilidadedeseremlocalizados.Quandochegaramàbeiradafloresta,aclaridadetinhaaumentado,maso

sol se escondia atrás de uma massa de nuvens cinzentas. Havia umchuvisco no vento. Coração de Fogo sabia que todas as presas de bom-sensoestariamenroscadasemsuastocas.Elelevantouacabeçaefarejouoar. A brisa trazia cheiro de esquilo, fresco e de não muito longe. Comcuidado,começouaespreitarentreasárvores.Logoviusuapresafuçando

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entre as folhas caídas, ao pé de um carvalho. Enquanto ele observava, oesquiloselevantou,mordiscandoumabolota,queseguravaentreaspatas.–Seelesouberqueestamosaqui–ListraCinzentacochichou–,vaisubir

correndonaquelaárvore.CoraçãodeFogofezquesim.–Dêavolta–murmurou.–Venhadaquele

lado.ListraCinzentaseafastoudelequasedeslizando,umaformasilenciosae

cinza entre as sombras das árvores. Com a facilidade da longa prática,CoraçãodeFogoseagachounaposiçãodocaçadore,rastejando,começouaseaproximardoesquilo.Viuasorelhasdoanimalseretesaremeacabeçagirarcomosealgumtipodealarmehouvessesoado;talvezeletivessevistoumrelancedomovimentodeListraCinzenta,oupercebidoseucheiro.Enquanto ele estava distraído, Coração de Fogo se atirou no campo

aberto. Suas garras imobilizaram o esquilo no chão da floresta, e ListraCinzentacorreuparafinalizarasituação.–Muitobem!–CoraçãodeFogogrunhiu.Listra Cinzenta cuspiu uma bocada de pelo. – É um pouco velho e

fedorento,masserve.Osdoisguerreiroscontinuaramacaçadaatémataremumcoelhoeuma

dupla de camundongos. Àquela altura, embora não pudesse ver o sol,Coração de Fogo sabia que ele devia estar quase a pino. – É melhorlevarmos issopara oClã doRio.Daqui a pouco vão sentir nossa falta noacampamento.Cambaleando um pouco por causa do peso do esquilo e de um dos

camundongos,CoraçãodeFogoseguiurumoàárvorecaída.Paraseualívio,aáguanãotinhasubidomais,eatravessiapareciamaisfácilagora,depoisdetantasvezesrealizada.Aindaassim,CoraçãodeFogo,sabendo-sevisívelaqualquerfelinodoClãdoTrovãoqueestivesse,poracaso,patrulhandoabeira da floresta, sentia-se pouco à vontade enquanto atravessava, atrancosebarrancos,acortinadegalhos.EleeListraCinzentanadaramosúltimosdoiscomprimentosderaposae

saíramdorionamargemquepertenciaaoClãdoRio.Sacudiramaáguadopeloe rapidamente rumaramparaosarbustos,ondeos felinosdoClãdoRiotinhammontadoumacampamentotemporário.Devia haver um gato de guarda, porque, quando eles se aproximaram,

PelodeLeopardosurgiudosarbustos.–Bem-vindos–elamiou,parecendomais amigável do que quando os encontrara com os filhotes salvos das

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águas.CoraçãodeFogoaseguiuatéoabrigodegalhosdepilriteiro,lembrando

comoeleeListraCinzentatinhamseescondidoaliparaesperarporArroiodePrata.OsgatosdoClãdoRiotinhamtrabalhadoduramentedesdequeacheia os forçara a sair do acampamento; tinham trazido musgo para ascamas e removido a terra ao lado das raízes de um grande arbusto paraestocar presa fresca. Hoje ali havia apenas uma pobre coleção de algunscamundongos e uma dupla de melros, o que tornava a colaboração dosgatos do Clã do Trovão aindamais necessária. Coração de Fogo colocousuaspresasnapilhaeListraCinzentafezomesmo.–Maispresafresca?–PelodePedraapareceu,comArroiodePratalogo

atrás.–Ótimo!– Primeiro temos de alimentar os anciãos e as rainhas que estão

amamentando–lembrouPelodeLeopardo.–Voulevaralgumacoisaparaosanciãos–ArroiodePratasedispôs.Deu

um longo olhar para o namorado e miou: – Você pode me ajudar. Podepegarocoelho,nãopode?CoraçãodeFogosentiuumrepentinotremordealarme.SeráqueArroio

dePratairiasearriscarapassarumtemposozinhacomListraCinzentanopróprioacampamento?Nasvisitasanteriores,elamantiveradistância.O gato cinza não precisou de um segundo convite. – Claro – miou,

agarrandoocoelhoeseguindoArroiodePrataparaforadosarbustos.– Eles tiveram a ideia certa –miou Pelo de Pedra. – Coração de Fogo,

vocêquer trazeroesquiloparaas rainhasqueestãoamamentando?Elaspoderãolheagradecerpessoalmente.Meiosurpreso,eleconcordou.SeguindoPelodePedra,voltouapensar

emcomoeraestranhoolharparaoguerreirodoClãdoRioesaberqueeleerametadeClãdoTrovão,especialmenteporqueopróprioPelodePedranãosabiadisso.No berçário improvisado, Coração de Fogo ficou feliz em rever Pé de

Bruma,deitadadelado,osfilhotesmamando,felizes.Masnãodeixavadesepreocupar com Listra Cinzenta. Depois de cumprimentar as rainhas eajudá-lasarepartiroesquilo,elesussurrouaPelodePedra:–Vocêpodememostrar aonde Listra Cinzenta foi? Temosde voltar antes quenotemnossafalta.– Claro, por aqui. – Ele levou Coração de Fogo a um local afastado da

margem,ondetrêsouquatroanciãosestavamagachadosemumacamade

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urze e samambaia, engolindo a presa fresca. Do coelho restavam apenasunspedaçosdepelo.Osnamoradosobservavamemsilêncio,ladoalado,massemsetocar,a

caudaenroscadaemtornodaspatas.AssimqueviramCoraçãodeFogo,selevantarameforamencontrá-lo.Os olhos amarelos de Listra Cinzenta brilhavam em um misto de

empolgaçãoemedo.–CoraçãodeFogo!–eledeixouescapar.–VocênãovaiacreditarnoqueArroiodePrataacaboudemedizer!Oguerreiroolhoupara trás,masPelodePedra jádesapareciaentreos

arbustos. Os anciãos tinham acabado de comer e pareciam sonolentos;nenhumdelesestavaprestandoatençãoemListraCinzenta.–O que foi? – o gatomiou, desconfortável, a pelagem começando a se

eriçar.–Masfalebaixo.Ogatocinzapareciaprontoparaexplodir,sairdaprópriapele.–Coração

deFogo–eledissebaixinho–,ArroiodePratavaidaràluzmeusfilhotes!

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CAPÍTULO14

COMOCORAÇÃOBATENDOFORTE,OGATODEPELOAVERMELHADOFITOUListraCinzentae depois Arroio de Prata. Ela tremia de felicidade, os olhos verdesbrilhandodeorgulho.–Seusfilhotes?–elerepetiu,alarmado.–Vocêsdoisestãomalucos?Issoéumdesastre!ListraCinzentadesviouoolhar,semconseguirencararoamigo.–Não…

nãonecessariamente.Significaqueessesfilhotesvãonosunirparasempre.–Mas vocês são de clãs diferentes! – Coração de Fogo protestou. Pelo

desconfortoquevianafisionomiadeListraCinzenta,oguerreiroimaginouque ele sabiamuito bem as dificuldades que os bebês causariam. – Vocênemmesmopodedeclararqueessesfilhotessãoseus.E,ArroiodePrata–acrescentou, virando-se para a gata do Clã do Rio –, você não vai poderdizeraninguémdoseuclãqueméopai.–Nãomeimporto–agatainsistiu,dandoumalambidarápidanopelodo

peito.–Eusaberei.Étudooqueinteressa.ListraCinzentaparecianãoestarmuitocerto.–Ébobagemqueelesnão

possamsaber–faloubaixinho.–Nãofizemosnadaquenosenvergonhe.–ElepressionouseucorpocontraodanamoradaelançouaCoraçãodeFogoumolhardesamparado.–Seiqueéassimquevocêsesente–CoraçãodeFogoconcordou,com

convicção. – Mas isso não é bom, Listra Cinzenta, você sabe. Eles serãofilhotesdoClãdoRio.–Seucoraçãoseapertouaopensarnoproblemaqueissopoderia causarno futuro.Quandoosbebês crescereme se tornaremguerreiros, Listra Cinzenta talvez precise lutar contra eles! Ele ficariadividido entre a lealdade ao sangue e a lealdade ao clã e ao Código dosGuerreiros.CoraçãodeFogonãovia comoseriapossívelmanter-se fiel aambos.Será que o mesmo não acontecera com Pé de Bruma e Pelo de Pedra?,

pensouCoraçãodeFogo,curioso.Seráque,algumavez,ospaisdeles,quepertencemaoClãdoTrovão,nãotiveramdelutarcontraeles?Lembrou-sedeCoraçãodeCarvalhotentandodefendê-losdoataquedoClãdoTrovão;comooguerreirodoClãdoRiolhesteriaexplicadoisso?Eraumasituaçãoimpossível,eagoracomeçariatudodenovo,comumanovaninhada.MasCoraçãode Fogo sabia que era inútil dizer isso agora.Olhandode

altoabaixoalinhadosarbustos,paraversenenhumgatoseaproximava,miou:–Éhoradeirmosembora.Jádevesersolapino.Vãosentiranossa

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faltanoacampamento.ListraCinzentaencostoucomcarinhoseunariznodeArroiodePrata.–

Coração de Fogo está certo – sussurrou. – Precisamos ir agora. E não sepreocupe.Elesserãoosbebêsmaisbonitosdafloresta.OsolhosdeArroiodePrataseestreitaramcomafeto,esuavozveiocom

umronronarprofundo.–Eusei.Vamosencontrarumamaneiradesuperarisso.–Elaobservouosdoisamigosseafastaremdosarbustosedesceremaencostaemdireçãoaoriodeáguasvolumosas.ListraCinzentacontinuouaolharparatrás,comosenãosuportassedeixaranamorada.Coraçãode Fogo tinha a impressãode levar nopeito umapedra fria e

pesadaepensava:Quantotempovaidemoraratéquealgumgatodescubra?

Emboraseesforçasseparanãopensarnoproblema,eleaindaerapuraansiedadequandoatravessaramorio,passandopelotronco,evoltaramaoterritório do Clã do Trovão. Agora o mais importante era decidir o quedizersealguémtivessepercebidoaausênciadeles.–Achoquedevíamoscaçarumpouco–disseListraCinzenta.–Aí,pelo

menos…Um miado empolgado vindo da beira da floresta o interrompeu. –

CoraçãodeFogo!CoraçãodeFogo!Oguerreiroolhouincréduloocorpinhobrancoquesaiudassamambaias

nolimitedasárvores.FilhotedeNuvem!–Ah,camundongosmemordam!–ListraCinzentamurmurou.CoraçãodeFogoatravessouocapim,opeitodoído.–FilhotedeNuvem,o

quevocêestáfazendoaqui?Eulhedisseparaficarnoberçário.–Rastreeivocê–FilhotedeNuvemanuncioucomorgulho.–Ocaminho

todo,desdeoacampamento.Quando fitou os olhos azuis brilhantes do filhote, Coração de Fogo

sentiu-semal,detãopreocupado.Aschancesderetornaraoacampamentocomumahistóriadecaçadabemcedotinhamsimplesmentedesaparecido.Osobrinhodeviatê-losvistoatravessandoorio.– Segui a trilha do seu cheiro até o caminho de pedras – continuou

FilhotedeNuvem.–OquevocêsdoisestavamfazendonoterritóriodoClãdoRio?Antes que o guerreiro pensasse em uma resposta, outra voz o

interrompeu – um rugido baixo e ameaçador. – Sim, é o que eu também

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gostariadesaber.Ogatodepelagemavermelhadasentiuasforçasseesvaindopelaspatas

aoverGarradeTigreabrindocaminhoatravésdas samambaiasmarronsressecadas.– Coração de Fogo é realmente corajoso! – Filhote de Nuvem miou,

enquanto o guerreiro permanecia com a boca entreaberta, o pânicoembaralhando-lheospensamentos.–Elesaiuemumamissãoespecialdeguerreiro;elemecontou.–Contouagora?–ciciouGarradeTigre,umbrilhodeinteressenosolhos.

–Econtouquemissãoespecialdeguerreiroeraessa?– Não, mas posso imaginar. – Filhote de Nuvem tremia de tanta

empolgação.–ElefoicomListraCinzentaespionaroClãdoRio.CoraçãodeFogo,você…–Caleaboca,filhote!–retrucouGarradeTigreasperamente.–Então?–

orepresentantedesafiouCoraçãodeFogo.–Issoéverdade?CoraçãodeFogoolhouparaListraCinzenta.Seuamigoestavacongelado,

os olhos amarelos fitavam com horror o representante; com certeza dapartedelenãoviriamboassugestões.–Queríamosveratéondeaságuaschegaram–miouCoraçãodeFogo.O

quenãoeraexatamenteumamentira.– Ah! – O representante fez uma pausa e olhou deliberadamente em

todas as direções; então, quis saber: – O que aconteceu ao resto da suapatrulha? E algum gato deve ter enviado vocês para essa missão – eleacrescentou,semaguardarresposta.–Nãofuieu,emboratenhadesignadotodasasoutraspatrulhas.–Nósapenaspensamos…–começouListraCinzenta,comavozdébil.GarradeTigreoignorou.AproximoutantoaenormecabeçadeCoração

de Fogo que o guerreiro chegou a sentir o hálito quente e rançoso dorepresentante.–Sequersaber,gatinhodegente, você é amigáveldemaiscom o Clã do Rio. Talvez tenha ido lá para espionar – ou talvez estejaespionandoparaeles.Dequeladovocêestá?–Vocênãotemdireitodemeacusar!–Araivafezopelodoguerreirose

eriçar.–SoulealaoClãdoTrovão.UmguinchoprofundosaiudagargantadeGarradeTigre.–Entãovocê

não vai se importar se falarmos a EstrelaAzul sobre essa expedição quevocês fizeram.Everemosseela achavocê tão leal.Quantoavocê…–ElefitouFilhotedeNuvem,quetentouencararcomousadiaoseuolharcorde

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âmbar,mastevederecuarumoudoispassos.–EstrelaAzulordenouquenenhum filhote saísse do acampamento sozinho.Ou será que você, comoseu parente gatinho de gente, pensa que as ordens do clã não lhe dizemrespeito?Pela primeira vez Filhote de Nuvem não respondeu; seus olhos azuis

pareciamassustados.Garra de Tigre deu meia-volta e caminhou devagar em direção às

árvores. – Vamos, estamos desperdiçando tempo. Sigam-me todos – elerugiu.

Quandochegaramaoacampamento,CoraçãodeFogoviuEstrelaAzulnabasedaPedraGrande.Umapatrulha formadaporNevasca,RaboLongoePelodeRatolheapresentavaumrelatório.– As águas chegaram ao Caminho do Trovão – Coração de Fogo ouviu

Nevasca dizer. – Se a água não abaixar, não conseguiremos ir à próximaAssembleia.–Aindahátempoantes…–EstrelaAzulseinterrompeuquandoviuque

GarradeTigreseaproximava.–Sim,oqueé?– Trouxe estes gatos para você – resmungou o representante. – Um

filhotedesobedienteedoistraidores.– Traidores! – repetiu Rabo Longo. Seus olhos encontraram os de

Coração de Fogo com um brilho desagradável. – Exatamente o que euesperariadeumgatinhodegente–zombou.–Basta–ordenouEstrelaAzul,comumleverugido.Elainclinouacabeça

nadireçãodosgatosdapatrulha.–Podemiragora,todosvocês.–Virou-separa Garra de Tigre enquanto os outros se afastavam. – Diga-me o queaconteceu.– Vi este filhote saindo do acampamento – o representante começou,

apontandoacaudaparaFilhotedeNuvem–depoisdevocêterordenadoque nenhum filhote ou aprendiz saísse sem um guerreiro. Fui buscá-lo,mas,quandoentreinaravina,percebiqueeleestavaseguindoumatrilhadecheiro.–FezumapausaeolhoudesafiadoramenteparaCoraçãodeFogoe Listra Cinzenta. – A trilha levava ao caminho de pedras, adiante dasRochas Ensolaradas rio abaixo. E o que vejo lá se não estes bravosguerreiros–elecuspiaaspalavras–atravessandodevoltadoterritóriodoClã do Rio. Quando indaguei o que estavam fazendo, vieram com umahistóriaparacamundongodormirsobreverificaratéondeaságuastinham

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chegado.Coração de Fogo se preparou para a fúria de Estrela Azul, mas ela

permaneceucalmaeinquiriu:–Issoéverdade?Enquantovoltavamdocaminhodepedras,CoraçãodeFogotiveratempo

de pensar. Sabia que estaria emmaus lençóis se voltasse a mentir paraEstrela Azul. Vendo a sabedoria estampada em seus penetrantes olhosazuis, soube que tinha de dizer a verdade. – Sim – admitiu. – Podemosexplicar,mas…–EledisparouumolharparaGarradeTigre.EstrelaAzul fechouosolhosporum longomomento.Quandoosabriu,

seusemblanteeraindecifrável,comosempre.–GarradeTigre,voutratardisto.Vocêpodeir.O representante parecia pronto a se opor, mas sob o olhar claro de

Estrela Azul ele se manteve em silêncio. Fez um aceno com a cabeça erumouparaapilhadepresasfrescas.– Agora, Filhote deNuvem –miou a líder, virando-se para o jovemde

pelagembranca.–Vocêsabeporqueordeneiquefilhoteseaprendizesnãosaíssemsozinhos?– Porque a enchente é perigosa – replicou Filhote de Nuvem, com ar

carrancudo.–Maseu…–Vocêmedesobedeceuedeveserpunido.Essaéaleidoclã.Porummomento,CoraçãodeFogopensouqueosobrinhoiaprotestar;

mas, para seu alívio, ele apenas abaixou a cabeça emiou: – Sim, EstrelaAzul.– Recentemente Garra de Tigre mandou você ajudar os anciãos por

algunsdias,nãofoi?Muitobem,podecontinuarcomessasfunções.Éumahonraserviraosoutrosgatos,evocêtemdeaprenderquetambéméumahonraobedeceràsordensdoclã.Agoraváevejaseelestêmalgumatarefaparavocê.O jovem curvou a cabeça e saiu em disparada pela clareira, a cauda

erguida. Coração de Fogo suspeitava de que ele gostasse de cuidar dosanciãosedeque suapuniçãonão tinha sido tão ruim.Maselenãopodiadeixar de se preocupar pelo fato de Filhote de Nuvem ainda não teraprendidoarespeitarasdiretrizesdoclã.EstrelaAzulsentou-secomaspatasescondidassobocorpo.–Contem-

meoqueaconteceu.Respirandofundo,CoraçãodeFogoexplicoucomoeleeListraCinzenta

tinhamresgatadoosbebêsdoClãdoRio, e como tinhamsido levadosao

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acampamentopelosguerreirosdoClãdoRio.–Entretanto,nãopudemosentrarnoacampamento–miouoguerreiro.–

Ele está debaixo d’água. Por enquanto os gatos do clã estão entre osarbustos,emumterrenomaisalto.–Entendo…–sussurrouEstrelaAzul.–Elesestãomalinstalados,semproteção–continuouCoraçãodeFogo.–

Comdificuldadespara encontrarpresas. Elesnos contaramqueosDuas-Pernasenvenenaramorio.Osgatosficamdoentesquandocomempeixe.Enquantofalava,elepercebeuumolharpreocupadodeListraCinzenta,

comoseoamigoachassequeeraperigosorevelartantasfraquezasdoClãdoRio.CoraçãodeFogosabiaquealgunsgatosveriamissocomoumaboaoportunidadeparaatacaroclãrival.MasacreditavaqueEstrelaAzulnãoera assim. Ela jamais se aproveitaria dos problemas de outros felinos,especialmentenaestaçãosemfolhas.–Entãosentimosqueprecisávamosfazeralgumacoisa–eleconcluiu.–

Nós… nos oferecemos para caçar para eles em nosso território, e temoslevadopresa frescaparaooutro ladodorio.HojeGarradeTigrenosviuquandovoltávamos.– Não somos traidores – Listra Cinzenta acrescentou. – Só queríamos

ajudar.EstrelaAzulsevirouparaelee,então,denovoparaCoraçãodeFogo.Seu

ar era austero,mas havia um lampejo de compreensão em seus olhos. –Entendo–faloubaixinho.–Eatérespeitoaboaintençãodevocês.Todososgatos têm o direito de sobreviver, não importa o clã. Mas vocês sabemperfeitamente que não podem tomar os problemas nas próprias patascomo fizeram. Agiram de forma dissimulada, escapando sozinhos.Mentiram para Garra de Tigre, ou, pelomenos, não lhe disseram toda averdade–acrescentou,antesqueCoraçãodeFogoprotestasse.–Ecaçarampara outro clã antes de caçar para o seu. Não é assim que guerreiros secomportam.CoraçãodeFogoengoliuemseco,desconfortável,eolhoudesoslaiopara

ListraCinzenta.Acabeçadoamigoestavabaixa;envergonhado,elefitavaochão.–Sabemosdissotudo–CoraçãodeFogoadmitiu.–Mildesculpas.– Pedir desculpas é pouco – Estrela Azulmiou, comum tom agudo na

voz.–Vocêsterãodesercastigados.E,jáquenãoagiramcomoguerreiros,vamosverseaindaselembramcomoéseraprendiz.Deagoraemdiante,

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vãocaçarparaosanciãosecuidardasnecessidadesdeles.E,quandoforemcaçar,serãosupervisionadosporoutroguerreiro.–Como?–CoraçãodeFogodeixouescaparummiadodeindignação.– Vocês quebraram o Código dos Guerreiros – Estrela Azul lembrou. –

Comonãoforamcorretos,irãocomalguémqueseja.NãodevehavermaisvisitasaoClãdoRio.–Mas…nãovoltaremosaseraprendizes,nãoé?–ListraCinzentamiou,

ansioso.– Não. – A gata permitiu que um brilho gaiato suavizasse seu olhar. –

Vocês ainda são guerreiros. Uma folha não pode voltar a ser broto. Masviverãocomoaprendizesatéqueeuachequeaprenderamalição.Coração de Fogo forçou-se a controlar sua respiração. Tinha tanto

orgulho de ser um guerreiro do Clã do Trovão, e foi dominado pelavergonha ao pensar em perder seus privilégios.Mas sabia que era inútildiscutircoma lídere,pordentro,reconheciaqueapuniçãoera justa.Eleabaixouacabeçacomrespeito.–Estácerto,EstrelaAzul.–Nósrealmentesentimosmuito–ListraCinzentaacrescentou.–Eusei.–Elafezumaceno.–Podeir,ListraCinzenta.CoraçãodeFogo,

espereuminstante.Surpreso e um pouco nervoso para saber o que Estrela Azul queria,

CoraçãodeFogoesperou.QuandoListraCinzentanãopodiamaisouvi-la,a líderfalou.–Diga-me,

Coração de Fogo, algum gato do Clã do Rio morreu nessa cheia? – Elaparecia distraída, e pela primeira vez seus olhos não encontraram os dogatoavermelhado.–Algumguerreiro?–Nãoqueeusaiba–eleadmitiu.–EstrelaTortanãocomentousealgum

gatotinhaseafogado.Estrela Azul franziu a testa, mas não perguntou mais nada. Fez um

pequenomeneiodecabeça,comosefosseparasimesma.Então,depoisdeumabrevehesitação,liberouoguerreiro.–EncontreListraCinzentaediga-lhe que vocês dois podem ir comer – ela ordenou, coma voznovamenteinexpressivaefirme.–EdigaaGarradeTigreparaviraqui.CoraçãodeFogocurvouacabeçaeselevantouparasair.Atravessandoa

clareira, olhou para EstrelaAzul. A gata cinza ainda estava agachada aospésda rocha,osolhos fixosemumpontodistante.Foi impossívelnão sesentirintrigadocomaquelasperguntasinsistentesdalíder.

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PorqueelaestariatãopreocupadacomosguerreirosdoClãdoRio?,elecismava.

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CAPÍTULO15

–ORA,SENÃOÉONOSSOMAISNOVOAPRENDIZ,PatadeFogo!Coração de Fogo comia um rato silvestre e levantou o focinho ao ver

RaboLongoseaproximar,comarinsolente,acaudabalançando.–Prontoparaumasessãodetreinamento?–oguerreirozombou.–GarradeTigremedesignoucomoseumentor.Devagar,CoraçãodeFogoengoliuoúltimopedaçodepresaesepôsde

pé. Imaginouoque tinhaacontecido.EstrelaAzul falara aGarradeTigresobre o castigo, e o representante logo organizara a primeira patrulha.Claro que escolheria o gato que mais detestasse Coração de Fogo parasupervisionaracaçada.Ao ladodele,ListraCinzentase levantouemumpulo, foinadireçãode

RaboLongoerugiu:–Dobrealíngua!Nãosomosaprendizes!–Nãofoioqueeuouvi–replicouRaboLongo,lambendoosbeiçoscom

prazer,comosetivesseacabadodeengolirumpedaçosaboroso.–Entãoémelhorficarsabendo–CoraçãodeFogosibilou,começandoa

batercomacauda.–Vocêquerqueeurasguesuaoutraorelha?RaboLongodeuumpassoatrás.Estavaclaroqueeletinhaselembrado

da chegada de Coração de Fogo ao acampamento, quando este lutaraferozmente com Rabo Longo, sem mostrar nenhum medo, apesar dasprovocaçõesdoguerreiro,chamando-o“gatinhodegente”.CoraçãodeFogosabiaque,aindaqueosoutrosgatosnãomencionassemaderrotadeRaboLongo,suaorelharasgadaofarialembrarofatoparasempre.–Émelhorprestarematenção–oguerreiroameaçou.–GarradeTigre

lhesarrancaascaudassevocêsmetocarem.–Poisvaleriaapena–CoraçãodeFogoreplicou.–Vocêvaiveroquelhe

acontecesemechamardePatadeFogodenovo.RaboLongonadadisse,apenasvirouacabeçaparaoladoparalambero

pelodesbotado.CoraçãodeFogorelaxouocomportamentoameaçador.–Então,vamos–elegrunhiu.–Seéparacaçar,vamoslogo.Osdoisamigosforamàfrente,saindodotúneldetojoesubindoaravina.

RaboLongoosseguia,sugerindo,emvozalta,ondecaçar,comosefosseoencarregado;mas,umaveznafloresta,CoraçãodeFogoeListraCinzentatrataramdeignorá-lo.O dia estava frio e cinzento e uma chuva fina tinha começado a cair.

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Estava difícil encontrar presas. Listra Cinzenta percebeu ummovimentoemumasfolhasdesamambaiaefoiinvestigar,masCoraçãodeFogoestavaapontodedesistirquandoviuumpintassilgobicandoaoredordasraízesdeumaaveleira.Eleseagachouefoirastejando,pataantepata,enquantoopássaro,semsedarcontadoperigo,continuavaabicar.Ele se preparou para o bote, o quadril balançando de um lado para o

outro.RaboLongozombou:–Issoláéjeitodeseagachar?Jáviumcoelhode três pernas fazer melhor! – Assim que ele falou, o pintassilgo voou,apavorado,soltandoumgritodealarme.CoraçãodeFogovoltou-separa ele, furioso. – Foi culpa sua! – rugiu. –

Quandoeleouviuasuavoz…–Quenada!–miouRaboLongo.–Nãoarrumedesculpas.Vocênãoseria

capazdepegarumcamundongoqueestivessesentadinhoentresuaspatas.CoraçãodeFogocolouasorelhasàcabeçaemostrouosdentes,pronto

paraaluta,mas,derepente,pensouqueRaboLongopoderiaestarfazendoprovocaçõesdepropósito.EleteriaumaboahistóriaparacontaraGarradeTigreseCoraçãodeFogooatacasse.–Certo–ogatovermelhoresmungouentredentes.–Sevocêéqueéo

bambambã,mostrecomosefaz.– Como se tivesse sobrado alguma presa depois do barulhão que o

pássarofezquandovocêoassustou–RaboLongozombou.– Quem é que está arrumando desculpas agora? – Coração de Fogo

devolveu,comraiva.Antes que Rabo Longo respondesse, Listra Cinzenta surgiu da

samambaiacomumratosilvestreentreosdentes.EleocolocouaoladodeCoraçãodeFogoe começoua cavar a terrapara enterrá-lo atéque fossehoradevoltaraoacampamento.RaboLongoaproveitouainterrupçãoparasemeternotúnelqueListra

Cinzentafizeranassamambaias.ListraCinzentaoobservou.–Qualéoproblemadele?Parecequeengoliu

biledecamundongo.CoraçãodeFogodeudeombros.–Nãoénada.Vamoscontinuar.Depois disso, Rabo Longo os deixou sozinhos e, no pôr do sol, os dois

jovens guerreiros tinham juntado uma respeitável pilha de presas paralevarparaoacampamento.–Levealgumaspeçasparaosanciãos–CoraçãodeFogosugeriuaListra

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Cinzenta quando eles colocaramas últimaspresas na pilha. Eu levoparaPresaAmarelaePatadeCinza.–Eleescolheuumesquiloerumouparaatoca da curandeira. Presa Amarela estava do lado de fora, na fenda dapedra, com Pata de Cinza à sua frente. A antiga aprendiz de Coração deFogoestavafelizealerta.Ereta,tinhaacaudaemtornodaspatas,osolhosazuisgrudadosemPresaAmarela,aquemouviacomatenção.– Podemos mascar folhas de senécio e misturá-las com frutinhas de

junípero amassadas – disse Presa Amarela com voz rouca. – É um bomcataplasmaparajuntasdoloridas.Querexperimentar?–Quero!–PatadeCinzamiou,entusiasmada.Eladeuumpuloefarejouo

montedefolhasquePresaAmarelatinhapostonochão.–Ogostoéruim?–Não,porémtentenãoengolir.Umpouquinhonãovai fazermal,mas,

emexcesso,vailhedarumaboadordebarriga.Sim,CoraçãodeFogo,oquevocêquer?O guerreiro cruzou a clareira, arrastando o esquilo entre as patas

dianteiras.PatadeCinzajáestavaagachadanafrentedomontedesenécio,mascandocomvigor,masocumprimentoucomummovimentodacauda.–Trouxeparavocês.–CoraçãodeFogomiouaocolocaroesquiloaolado

dePresaAmarela.–Ah, sim.VentoVelozmedissequevocêestavadevolta às tarefasde

aprendiz – ela grunhiu. – Seu miolo de camundongo! Você devia terimaginado que algum gato ia acabar descobrindo que vocês estavamajudandooClãdoRio.–Agoraestáfeito.–CoraçãodeFogonãoqueriafalardocastigo.Paraseualívio,PresaAmarelapareceufelizemmudardeassunto.–Que

bomqueestáaqui,porquequeroterumapalavrinhacomvocê.Estávendoestecataplasma?–ElalevantouofocinhonadireçãodamaçarocadefolhasmascadasquePatadeCinzaestavapreparando.–Estou.–ÉparaOrelhinha.Eleestánaminhatoca,sofrendocomopiorcasode

juntasendurecidasqueviemmeses.Malconseguesemexer.Esevocêmeperguntarporquêsaibaquetudoaconteceuporqueseuninhofoiforradocom musgo úmido. – O tom era gentil, mas os seus olhos amarelosqueimavamosdeCoraçãodeFogo.Oguerreirosentiuocoraçãoapertar.–IssoécoisadeFilhotedeNuvem,

nãoé?–Achoquesim–miouPresaAmarela.–Elenãotevecuidadonahorade

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fazer a cama, não se deu o trabalho de sacudir as folhas para eliminar aágua.–Maseuensinei issoaele–CoraçãodeFogointerrompeu.Ele játinha

problemas suficientes, pensou; não era justo ter de resolver a vida deFilhotedeNuvemtambém.Elesuspiroueprometeu:–Voufalarcomele.–Façaisso–grunhiuPresaAmarela.Pata de Cinza se sentou, cuspindo pedaços de senécio. – Já mascou

bastante?PresaAmarelainspecionouotrabalho.–Excelente.OsolhosazuisdePatadeCinzabrilharamcomoelogio.CoraçãodeFogo

olhoucomadmiraçãoparaavelhacurandeira.VercomoelafizeraPatadeCinzasentir-seútilenecessáriadava-lheumgrandeprazer.–Agoravocêpodeapanharasfrutinhasdejunípero–continuouavelha

gata.–Vejamos…trêsdevembastar.Vocêsabeondeeuasguardo?–Sei,PresaAmarela.–Comacaudaempinadaemuitaenergia,apesarde

coxear,PatadeCinzadirigiu-seàfendanarocha.Nabocadatocaelaolhoupara trás. – Obrigada pelo esquilo, Coração de Fogo – miou antes dedesaparecer.PresaAmarelaprestavaatençãoeaprovouseucomportamentocomum

rom-romdevelha.–Ora!Aquitemosumgatoquesabeoqueestáfazendo–sussurrou.Coração de Fogo concordou. Gostaria de poder dizer o mesmo do

sobrinho.–VouprocurarFilhotedeNuvemimediatamente.–Elesuspirou,tocandoPresaAmarelacomonarizantesdesairdatoca.Ofilhotebranconãoestavanoberçário.CoraçãodeFogotentou,então,a

tocadosanciãos.Quandoentrou,ouviuavozdeMeioRabo.–Entãoolíderdo Clã do Tigre tocaiou a raposa por uma noite e um dia, e na segundanoite…Ei,você,CoraçãodeFogo.Querouvirestahistória?O gato avermelhado olhou em torno. Meio Rabo estava enroscado no

musgo, perto de Retalho e Cauda Mosqueada. O sobrinho, agachado norefúgio do corpo do gatão malhado, tinha os olhos azuis bem abertos,maravilhados,imaginandoosgatosgrandeselistradosdepretodoClãdoTigre.Haviapeçasdepresa frescanochãoe,pelocheirodecamundongoquevinhadopelodopequenogatobranco,CoraçãodeFogoimaginouqueosanciãostinhamdeixadoqueelepartilhasseacomida.–Não,obrigado,MeioRabo–elemiou.–Nãopossoficar.Sóqueriafalar

com Filhote de Nuvem. Presa Amarela disse que ele tem trazido folhas

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úmidasparafazerascamas.CaudaMosqueadabufou.–Quebobagem!–ElaestádandoouvidosaOrelhinha–miouRetalho.–Elereclamariaaté

seosgatosdoClãdasEstrelasdescessempessoalmentedoTuledePrataparalhetrazermateriaisparaacama.OpelodeCoraçãodeFogoseeriçoudevergonha.Nãoesperavaveros

anciãosarrumandodesculpasparaFilhotedeNuvem.–Afinal,vocêtrouxeounãotrouxemusgoúmido?–eleperguntou,encarandoofilhote.O jovem o olhou de forma evasiva. – Eu tentei fazer certo, Coração de

Fogo.–Eleésóumfilhote–CaudaMosqueadacomentou,comcarinho.–Sim,bem…–CoraçãodeFogoarranhoucomaspatasochãodatoca.–

Orelhinhaestácomdornasjuntas.–Orelhinhajátemdornasjuntashámuitasestações–miouMeioRabo.–

Desdeantesdeesse filhotecomeçaramamar.Cuidedesuavida,CoraçãodeFogo,edeixequecuidemosdanossa.–Desculpe.Jávou,então.FilhotedeNuvem,vejaseapartirdeagoratem

maiscuidadocomomusgo,certo?Elejáestavasaindodatoca,masaindapôdeouviromiadodeFilhotede

Nuvem:–Continue,MeioRabo.OqueolíderdoClãdoTigrefezentão?CoraçãodeFogoficoufelizemfugirparaaclareira.Nãopodiadeixarde

pensar que Filhote de Nuvem provavelmente não tivera cuidado com omusgo, mas parecia que os demais anciãos não reclamariam dele. Livrepara garantir sua presa fresca, agora que tinha caçado para os anciãos,Coraçãode Fogo trotava emdireção à pilha depresas quando viuCaudaPartidadeitadodoladodeforadatoca.GarradeTigreestavaaoseulado,eosdoisgatostrocavamlambidascomovelhosamigos.Inesperadamente tocado coma cena,CoraçãodeFogoparou.Estariao

ladopiedosodeGarradeTigrefazendoumararaaparição?Elesóouviaosomsurdodavozdorepresentante;estavalongedemaisparaentenderaspalavras. Cauda Partida replicou rapidamente, parecendo muito mais àvontade,comoseestivesseretribuindoagentilezadorepresentante.Derepente, todasasvelhasdúvidasdeCoraçãodeFogoquantoa levar

Garra de Tigre a julgamento o assaltaram. Qualquer gato sabia que orepresentante era um lutador feroz e corajoso, que cumpria suasobrigaçõescomsegurança.CoraçãodeFogo jamaisviraneleacompaixãodeumverdadeirolíder,pelomenosatéagora,comCaudaPartida…

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AmentedeCoraçãodeFogoseagitavaemumturbilhão;talvezEstrelaAzul tivesse razão, talvez Garra de Tigre não tivesse culpa na morte deRaboVermelho.TalvezoocorridocomPatadeCinza tivessesidomesmoum acidente, não uma armadilha.E se você esteve errado o tempo todo?,CoraçãodeFogopensou.EseGarradeTigreéexatamenteoquepareceser:umrepresentantelealeeficiente?Mas ele não conseguia acreditar nisso. E, aproximando-se devagar da

pilhadepresasfrescas,desejou,atéapontadasgarras,libertar-sedopesodeseusegredo.

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CAPÍTULO16

CORAÇÃO DE FOGO SAIU DO MEIO DAS SAMAMBAIAS que circundavam a toca dosaprendizeseesticouaspatasdianteiras.Osoltinhaacabadodenascereocéu já parecia uma casca de ovo azul-clarinho, prometendo tempo bomdepoisdetantosdiasdenuvensechuva.Paraele,apiorpartedocastigoeraterdedormirnatocadosaprendizes.

Cada vez que entrava, Pata de Espinho e Pata Brilhante arregalavam osolhos, como se não conseguissem acreditar no que viam. Pata deSamambaiapareciaapenasbastanteenvergonhado,enquantoPataLigeira– que Coração de Fogo imaginava ser incentivado por seumentor, RaboLongo – zombava abertamente. Para o guerreiro era difícil relaxar, e seusonoerainterrompidoporsonhosemqueFolhaManchadasaltavaemsuadireção, alertando-o commiados sobrealgumacoisadequeelenunca selembravaaoacordar.Coração de Fogo abriu a boca em enorme bocejo e se ajeitou para

começarumbanhocaprichado.ListraCinzentaaindadormia;logoteriadeacordá-lo e encontrar um guerreiro para supervisioná-los em outrapatrulhadecaça.Enquanto se lavava,CoraçãodeFogoviuEstrelaAzul eGarradeTigre

aospésdaPedraGrande,emumaconversaséria.Emvão,tentavaimaginarde que estariam falando. Então, com um movimento rápido de cauda,Estrela Azul o chamou. Coração de Fogo deu um salto e atravessou oacampamento.–CoraçãodeFogo–miouEstrelaAzulaovê-loseaproximar.–Garrade

Tigre e eu achamosque vocêsdois já forampunidoso suficiente. Podemvoltaràcondiçãodeguerreirosplenosnovamente.CoraçãodeFogo,quasetontodealívio,miou:–Obrigado,EstrelaAzul.–Esperoquetenhamaprendidoalição–rugiuGarradeTigre.–GarradeTigrevailiderarumapatrulhaatéQuatroÁrvores–continuou

alíder,semesperarCoraçãodeFogoresponder.–Daquiaduasnoitesseráluacheia,eprecisamossaberseconseguiremoschegaràAssembleia.GarradeTigre,vocêlevaráCoraçãodeFogocomvocê?Coraçãode Fogonão sabia como interpretar o brilhonos olhos cor de

âmbar do representante, que não parecia contente – e ele nunca estavamesmo –, mas demonstrava certa satisfação soturna, como se sentisseprazer em impor seu ritmo ao jovem guerreiro. Coração de Fogo não se

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importava.EstavaemocionadoporqueEstrelaAzullheconfiavanovamenteumamissãodeverdadeiroguerreiro.–Elepodevir–miouGarradeTigre.–Massederumapatadaemfalso,

vou querer explicações. – Sua pelagem escura ondulou quando ele seergueu.–Vouprocuraroutrogatoparairconosco.CoraçãodeFogoobservou-oatravessaraclareiraedesaparecernatoca

dosguerreiros.–EssaseráumaAssembleiaimportante–murmurou,aoseulado,Estrela

Azul. – Precisamos descobrir como os outros clãs estão lidando com acheia.Éfundamentalestarmospresentes.–Vamosdarumjeito,EstrelaAzul–assegurou-lheCoraçãodeFogo.No entanto, sua confiança logo se esvaiu ao verGarra deTigre sair da

toca. O gato que o seguia era Rabo Longo. O representante parecia terescolhido a dedo o terceiro membro da patrulha, com a intenção deprejudicá-lo.CoraçãodeFogo,apreensivo,sentiuumapertonoestômago.Não tinha

certezadequequeriasairsozinhocomGarradeTigreeRaboLongo,poisalembrança da batalha com o Clã do Rio ainda estava bem viva em suamente.Orepresentanteodeixaralutarcomumguerreiroferozsemfazernenhummovimentoparaajudá-lo.ERaboLongoforaseuadversáriodesdequeelepuseraaspatasnoacampamento.Porummomento,imagensterríveisdosdoisgatossevoltandocontraele

e tentandomatá-lo nas profundezas da floresta rodopiaramnamente deCoraçãodeFogo,maseleafastouaquelespensamentos.Estavaparecendoum filhote assustado com as histórias dos anciãos. Certamente Garra deTigre faria exigências absurdas, e Rabo Longo se deleitaria a cadamomento, mas Coração de Fogo não temia desafios. Não importa o queacontecesse,mostrariaqueeraumguerreiroigualaeles!Com todo respeito, disse adeus a Estrela Azul e correu pela clareira,

seguindoGarradeTigreeRaboLongo.Osolestavamaisalto,eàmedidaqueosgatosatravessavamafloresta,

rumoaQuatroÁrvores,oazuldocéu ficavamaisescuro.Assamambaiaspareciampesadascomasgotasdeorvalhobrilhante,quegrudavamnopelode Coração de Fogo quando ele roçava nelas ao passar. Os pássaroscantavamegalhoscheiosde folhasnovas farfalhavam.Orenovochegara,enfim.Enquanto seguia Garra de Tigre, Coração de Fogo distraía-se o tempo

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todo por movimentos de presas tentadoras correndo de lá para cá navegetação rasteira. Passado algum tempo, o representante permitiu queparassem e caçassem para si mesmos. Ele estava com um bom humorbastante incomum.Relaxado apontode elogiarCoraçãodeFogoquandoesteselançousobreumratosilvestreespecialmenteágil.AtéRaboLongoguardouparasioscomentáriosdesagradáveis.Quando eles prosseguiram, Coração de Fogo sentia o estômago

quentinhoecheiodepoisdetercomidooratosilvestre.Suasdesconfiançastinham desaparecido. Em um dia como aquele, ele era puro otimismo.TinhacertezadequelogoteriamumaboanotíciaparalevaraEstrelaAzul.Logodepois, atingiramoaltodeumaencosta eolharamnadireçãodo

riachoqueatravessavaoterritóriodoClãdoTrovão,isolando-odeQuatroÁrvores.GarradeTigresibiloulongaesuavemente,enquantoRaboLongomiavadesanimado.CoraçãodeFogocompartilhouaexasperaçãodosdois.Normalmente,o

riacho era raso o suficiente para permitir que os gatos o cruzassem comfacilidade, pulando de pedra em pedra para manter as patas secas. Masagora a água tinha se espalhado de um lado a outro, como uma placareluzente,enquantoacorrentezaseagitavanocursooriginaldaságuas.–Atravessaraquilo?–cuspiuRaboLongo.–Eunão.Sem uma palavra, Garra de Tigre começou a andar, riacho acima, em

direçãoaoCaminhodoTrovão.Oterrenoseelevava ligeiramentee,empoucotempo,CoraçãodeFogo

viu que a superfície brilhante era quebrada por tufos de capim, e quemoitasdesamambaiasdespontavamnaágua.– Não é tão profundo quanto Nevasca disse – miou Garra de Tigre. –

Vamostentaratravessaraqui.CoraçãodeFogotinhadúvidasquantoàprofundidadedaágua,masnão

dissenada.Sabiaque,seprotestasse,zombariamdele,comodehábito,porcausadesuadelicadaorigemdegatinhodegente.Aocontrário,seguiacomtranquilidadeGarradeTigre,quejáavançavaparaaáreainundada.Enãopôde deixar de notar que as orelhas de Rabo Longo se contraíramnervosamentequandoeleentrounoriacho.Oguerreirodepelagemcorde fogosentiuaágua friabatendoemsuas

pernas, e escolhia com cuidado onde pisar, fazendo um zigue-zague emdireçãoàmargem,saltandodeumtufodecapimparaoutro.Gotas-d’águabrilhavamaosolàmedidaqueeleavançava.Derepente,sentiuumsapose

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contorcersobsuaspatasequaseperdeuoequilíbrio.Mascravoucomforçaasgarrasemumtufoencharcadoeconseguiu,então,sereequilibrar.Diante dele, onde a lama do leito do riacho tinha sido revirada, a

correntezaeramarrom.Adistânciaeramuitograndeparaumgatopular,eocaminhodepedrasestavacompletamentesubmerso.EsperoqueGarradeTigrenãoqueiranosfazernadar,pensouCoraçãodeFogo,estremecendo.AspalavraspassavamporsuamentequandoouviuogritodeGarrade

Tigre,queestavabemacima.–Venhamaqui!Vejamisso!Coração de Fogo correu, espalhando água. Garra de Tigre, com Rabo

Longo ao lado, estava de pé, na beira do riacho. Diante deles, um galhotrazidopelacorrentezaseestendiadeumamargemaoutra.–Exatamentedoqueprecisávamos–grunhiuGarradeTigre,satisfeito.–

CoraçãodeFogo,váverificarseéseguro,sim?O jovemguerreiroolhouparaogalhomeioemdúvida.Eramuitomais

finodoqueaárvorecaídaqueusaraparaatravessarparao territóriodoClã do Rio. Galhosmais finos enfiavam-se em todas as direções, e aindahavia folhas mortas penduradas neles. De vez em quando, um levesolavancosacudiaogalho,comoseacorrentezaquisessearrastá-lodali.Comqualqueroutroguerreiroveterano,eatémesmocomEstrelaAzul,

CoraçãodeFogoteriadiscutidoasegurançadogalhoantesdecolocarsuaspatasnele.MasninguémousavaquestionarumaordemdeGarradeTigre.–Estácommedo,gatinhodegente?–zombouRaboLongo.A barriga de Coração de Fogo ardia de determinação. Ele não

demonstraria medo diante desses gatos, para não lhes dar o prazer derelatar o que acontecera ao resto do clã. Rangendo os dentes, pisou napontadogalho.Imediatamenteogalhocedeusobsuaspatas,epararecobraroequilíbrio

Coração de Fogo cravou suas garras nele. Via a água marrom correndoabaixodele,aumcamundongodedistância,e,poralgunstique-taquesdecoração,pensouquelevariaumcaldo.Porfim,conseguiusefirmar.Começouaavançarcomcautela,umapata

atrásdaoutra,emuma linhareta.Acadapasso,ogalhooscilavasobseupeso.Algunsgravetosprendiam-seàsuapelagem,dificultandooequilíbrio.DessaformanuncachegaremosàAssembleia,pensouoguerreiro.Aospoucos,aproximou-sedomeiodoriacho,ondeacorrentezaeramais

forte. O galho estava cada vezmais fino, chegando quase à espessura dacaudadeCoraçãodeFogo,eeramaisdifícilencontrarumlugarparafirmar

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a pata. O guerreiro parou para calcular quanto faltava; será que já davaparapularcomsegurança?Ogalhoentãobalançousobseucorpo.Instintivamente,fincouasgarras

commaisforçaainda.Então,ouviuoberrodeGarradeTigre:–CoraçãodeFogo!Volte!Por um tique-taque de coração, o guerreiro de pelo rubro balançou

perigosamente.Emseguida,ogalhoosciloudenovoe,derepente,sesoltouefoilevadopelaságuasemmovimento.CoraçãodeFogoescorregouparaolado e, antes que as ondas se fechassem sobre sua cabeça, pensou terouvidomaisumavezoberrodeGarradeTigre.

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CAPÍTULO17

AO CAIR NO RIACHO, Coração de Fogo conseguiumanter umade suas garraspresaaogalho.Sentiucomoselutassecontrauminimigocobertodepontasdemadeira, gravetosqueo açoitavamemachucavam seupelo, enquantosua respiração fazia bolhas na água escura. Sua cabeça veio à tonarapidamente,mas,antesquepudesserespirar,ogalhodeuumaguinadaeCoraçãodeFogoafundoudenovo.O terror o deixou estranhamente calmo, como se o tempo tivesse

desacelerado.Umapartedesuamentelhediziaparasoltarogalhoelutarpara chegar à superfície, mas sabia que se o fizesse arriscaria a vida; acorrentezaerafortedemais.Aforçadaágualhediziaquenãohavianadaafazer, salvocravarasgarraseaguentar firme.ClãdasEstrelas,meajude!,pensavafreneticamente.Quando começava a perder os sentidos e a entrar em uma tentadora

escuridão, o galho rolou mais uma vez e o trouxe de volta à superfície.Sufocadoecuspindo,comaáguabatendocomforçanosdoisladosdeseucorpo, agarrou-se a ele. Não conseguia ver amargem. Tentou arrastar ocorpoparaforadaágua,masopeloencharcadotornava-opesadodemais,esuaspernascomeçavamaenrijecerporcausadofrio.Nãosabiaporquantotempoaindapoderiasesegurar.Quando Coração de Fogo estava quase desistindo, algo fez com que o

galhoparasseruidosamente,estremecendoporinteiroe,porpouco,nãoolançando longe. Enquanto se agarrava, em desespero, ouviu um gatoguincharseunome.Virouacabeçaeviuqueooutroladodogalhoestavaprensadocontraumapedra,queseprojetavaparaoriacho.Rabo Longo, agachado sobre a pedra, inclinou-se para ele e rugiu: –

Mexa-se,gatinhodegente!Comumaúltimagotadeenergia,CoraçãodeFogoarrastou-seaolongo

dogalho.Osgravetosbatiamemseufocinho.Sentiuogalhodarmaisumaguinada e, então, atirou-se para a pedra, arranhando-a com as patasdianteirasenquantoastraseirasdavamimpulsodentrodaágua.Malsuaspatastocaramapedra,ogalhofoiarrastadodesobseucorpo.Porumtique-taquedecoração,o jovemguerreiropensouque também

serialevado.Apedraeralisa;nãohaviaondeapoiaraspatas.EntãoRaboLongooalcançoueCoraçãodeFogosentiu-lheosdentesnospelosdanuca.Com essa ajuda, o guerreiro avermelhado usou as garras para galgar a

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rocha até o alto. Tremendo, ele cuspiumuitas bocadas de água antes deolharparacima.–Obrigado,RaboLongo–arfou.Osemblantedoguerreiroerainexpressivoquandorespondeu:–Nãofoi

nada.GarradeTigresaiudetrásdapedra.–Vocêestáferido?–perguntou.–

Consegueandar?Tremendo, Coração de Fogo ficou de pé. Ele se sacudiu e muita água

escorreudeseupelo.–E…euestoubem,GarradeTigre–gaguejou.Orepresentanterecuouparaevitarasgotasqueespirravamdopelode

Coração de Fogo. – Cuidado, já estamos molhados o suficiente. –Aproximou-se e farejouo felinoavermelhadopor inteiro. –Horadevocêvoltar para o acampamento – ordenou. – Na verdade, vamos todos.Nenhum gato faria essa travessia. Pelo menos foi o que você acabou deprovar.Coração de Fogo concordou e, calado, seguiu o representante de volta

paraa floresta.Commais frioemuitomais cansadodoqueemqualqueroutraocasiãodequepudesseselembrar,tudooquequeriaeraseenroscaredormiremumpedacinhodesol.Seusbraços epernaspareciamumapedra submersa,mas amente era

umturbilhãodemedoesuspeita.GarradeTigreordenaraqueeletestasseogalho,masqualquerumpodiaperceberquantoeraperigoso.CoraçãodeFogo imaginava se o representante não deslocara o galho de propósito,paratercertezadequeeleseriaarremessadonovolumosoriacho.NãonafrentedeRaboLongo,decidiu.Afinal,eleosalvara.E,aindaque

nãogostassedele,tinhadeadmitirqueRaboLongorespeitararigidamenteocódigodoclã,socorrendoumguerreiroqueprecisavadeajuda.Mesmoassim,GarradeTigrepoderiatermovimentadoogalhosemque

RaboLongovisse,ou talvezoguerreirodepelodesbotadonão tivessesedado conta do que estava acontecendo. Coração de Fogo gostaria de lheperguntar, mas sabia que, se o fizesse, Rabo Longo contaria a Garra deTigre.Entãoolhoude relanceparao representanteeviuqueesteoencarava

comódioindisfarçável.Aoencontrarosseusolhoscordeâmbar,CoraçãodeFogopercebeuqueeles seestreitavamemumaameaçavelada.Soube,então, naquele momento, que de alguma maneira o representante tinhatentado matá-lo. Dessa vez fracassara, mas e da próxima? O cérebrocansadodeCoraçãodeFogoserecusavaaveroqueeraóbviodemais.Da

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próximavez,GarradeTigreiriadarumjeitodenãofracassar.

Quando Coração de Fogo chegou ao acampamento, o sol quente dorenovojátinhasecadoseupelo,mas,detãoexausto,malconseguiacolocarumapatanafrentedaoutra.Tempestade de Areia, que tomava sol do lado de fora da toca dos

guerreiros,levantou-selogoqueoviuecorreuatéele.–CoraçãodeFogo!Vocêestáhorrível!Oqueaconteceu?–Nadademais.Euestava…–CoraçãodeFogofoidarummergulho,sóisso–interrompeuGarrade

Tigre. Olhou para o jovem guerreiro. – Vamos lá. Precisamos fazer umrelatórioparaEstrelaAzul.–Compassoslargos,dirigiu-seàPedraGrande,seguidoporRaboLongo.TempestadedeAreiaseaproximoudeCoraçãodeFogo,quevinhalogoatrás,bastanteatordoado,eaconchegouseucorpoaodele,emumgestodeapoio.– E então? – perguntou Estrela Azul aos gatos à sua frente. –

Encontraramumlugarparaatravessar?Garra de Tigre balançou a enorme cabeça. – É impossível. A água está

altademais.–MastodososclãsdevemparticipardaAssembleia–observoualíder.–

OClãdasEstrelasvaificarbravosenãotentarmosencontrarumcaminhoseco.GarradeTigre,conte-meexatamenteaondevocêsforam.GarradeTigrecomeçouadescreverosacontecimentosdaquelamanhã

emdetalhes, incluindoatentativadeCoraçãodeFogodeatravessaroriopelogalho.–Elefoicorajoso,masimprudente–resmungou.–Penseiquepagariacomavida.TempestadedeAreiaolhouaoredor,boquiaberta,masCoraçãodeFogo

sabiatãobemquantoGarradeTigrequenãotiveraescolha.–Sejamaiscuidadosonofuturo,CoraçãodeFogo–alertouEstrelaAzul.

–ÉmelhorvocêirverPresaAmarela,paraocasodeterseresfriado.–Estoubem.Precisodormir,sóisso.Osolhosdalíderseestreitaram.–Issoéumaordem,CoraçãodeFogo.Reprimindo um bocejo, ele inclinou a cabeça respeitosamente. – Sim,

EstrelaAzul.– Venha para a toca quando terminar – miou Tempestade de Areia,

dando-lheumalambida.–Voupegarumapresafrescaparavocê.

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Coração de Fogo agradeceu e foi tropeçando para a toca de PresaAmarela.Aclareiraestavavazia,mas,quandochamouacurandeira,avelhagatamostrouacabeçapelafendanapedra.– Coração de Fogo? Grande Clã das Estrelas, você está parecendo um

esquiloquecaiudaárvore!Oqueaconteceu?Elaseaproximouenquantoouviaaexplicação.Logoatrásdacurandeira,

mancando, vinha Pata de Cinza que se sentou ao lado dele, arregalandoseusolhosazuisaoouvirqueelequaseseafogara.Quandoaviu,CoraçãodeFogonãopôdedeixardelembrarcomoPatade

Cinza tinha se ferido no Caminho do Trovão – teria sido outro acidentepreparadoporGarradeTigre? Sem falarno assassinato a sangue-friodeRabo Vermelho. Sua cabeça girava por causa do cansaço, e ele seperguntava como deter Garra de Tigre antes que outro gato morresse,vítimadaambiçãoimpiedosadorepresentante.– Certo – respondeu Presa Amarela, interrompendo aqueles

pensamentosperturbadores.–Vocêéumgato forteeprovavelmentenãose resfriou, mas vamos examinar para ter certeza. Pata de Cinza, o quedevemosprocurarquandoumgatoficaensopado?Ajovemendireitou-se,acaudacircundandoaspatas.Olhoufixamentea

curandeiraerecitou:–Respiraçãofraca,náuseas,sanguessugasnopelo.–Bom–resmungouPresaAmarela.–Mãosàobra,então.Commuitocuidado,PatadeCinzafarejoutodoocorpodoguerreiropara

secertificardequenenhumasanguessugatinhaseagarradoàpeledele.–Você está respirando bem? – ela quis saber, gentil. – Está se sentindonauseado,indisposto?–Não,estátudobem.Sóprecisodormirporumalua.– Acho que ele está bem, Presa Amarela – disse Pata de Cinza,

encostando a bochecha na de Coração de Fogo e dando-lhe umaslambidinhasrápidas.–Sónãovámaispularemrios,certo?Presa Amarela soltou um ronronar gutural. – Tudo bem, Coração de

Fogo,vocêpodeirdormiragora.Pata de Cinza mexeu as orelhas, surpresa. – Você não vai examiná-lo

também?Eseeutiverdeixadoescaparalgumacoisa?–Nãoépreciso–miouPresaAmarela.–Confioemvocê.A velha gata se espreguiçou arqueandoas costasmagras e em seguida

relaxou. – Estou querendo dizer uma coisa a você já faz algum tempo –

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continuou. – Vejo tantos gatos com miolo de camundongo, que é umaverdadeira alegria encontrar um que tenha bom-senso. Você aprendeurápidoeémuitoboaparalidarcomdoentes.–Obrigada,PresaAmarela!–exclamouPatadeCinza,olhosarregalados,

surpresacomoelogio.– Fique quieta, ainda não terminei. Estou ficando velha e é hora de

começarapensaremencontrarumaprendiz.OquevocêachadesetornarapróximacurandeiradoClãdoTrovão?Ajovemgatapôs-sedepéemumpulo.Seusolhosbrilhavameelatremia

deemoção.–Deverdade?–sussurrou.–Éclaroqueédeverdade–resmungouPresaAmarela.–Nãofalopelo

prazerdeouvirminhaprópriavoz,aocontráriodecertosgatos.–Nessecaso,aceito, sim–sussurrouPatadeCinza,erguendoacabeça

comdignidade.–Issovalemaisquetudonomundo!Coração de Fogo sentiu o coração bater mais rápido, feliz. Ele se

preocupara muito com Pata de Cinza. Primeiro quando pensou que elamorreria,depoisquandoficouclaroqueapernamachucadaaimpediriadese tornar uma guerreira. Lembrava-se dela questionandodesesperadamente sobre o que fazer da vida. E agora parecia que PresaAmarela tinhaencontradoa soluçãoperfeita.Vera jovemgata tão feliz eanimadaquantoaofuturoeramuitomaisdoqueeleesperava.Ele voltou à toca dos guerreiros com passosmais leves para partilhar

algumaspresasfrescascomTempestadedeAreiaedepoisdormir.Quandoacordou,osraiosvermelhosdosolpoenteinvadiamatoca.Listra Cinzenta o cutucou. – Acorde. Estrela Azul acabou de convocar

umareunião.CoraçãodeFogosaiudatocaeviuquealíderjáestavanotopodaPedra

Grande.PresaAmarelaestavaaseuladoe,assimqueogruposereuniu,foiaprimeiraafalar.–GatosdoClãdoTrovão–dissecomavozrouca–,tenhoumanúncioa

fazer. Como todos sabem, não sou mais jovem. É hora de eu ter umaprendiz.Escolhioúnicogatoqueconsigoaturar.–PresaAmarelasoltouumrom-rombem-humorado.–Equetambéméoúnicoquemeatura.SuapróximacurandeiraseráPatadeCinza.Um coro de miaus satisfeitos ecoou. Com os olhos brilhando e o pelo

elegantemente arrumado, Pata de Cinza sentou-se aos pés da pedra.Abaixouacabeça,tímida,enquantooclãlhedavaosparabéns.

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–PatadeCinza.–EstrelaAzulelevouavozparase fazerouvir.–VocêaceitaseraaprendizdePresaAmarela?Ajovemergueuacabeçaparaolharalíder.–Sim,EstrelaAzul.–Então, nameia-lua você viajarápara aBocadaTerrapara ser aceita

peloClãdasEstrelasdiantedosoutroscurandeiros.QueosbonsvotosdetodooClãdoTrovãoaacompanhem.Meiopulando,meiodeslizando,PresaAmareladesceudapedraefoiaté

PatadeCinzaparatrocaremtoquesdefocinho.Orestodoclãseaglomerouemtornodanovaaprendiz.CoraçãodeFogoviuPatadeSamambaiapertoda irmãeseusolhosbrilharamdeorgulho;atémesmoGarradeTigre foiaté ela e miou algumas palavras. Era evidente que a escolha de Pata deCinzaparaaquelaposiçãotãoimportanteforaacertada.Enquanto esperavapara felicitarPatadeCinza, tudooqueCoraçãode

Fogodesejavaeraqueseusproblemasseresolvessemdeformaigualmentetranquila.

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CAPÍTULO18

ERA O TERCEIRO PÔR DO SOL desde que Coração de Fogo quase se afogara. Ojovemguerreiro estava se lavando fora da toca, esfregandoo pelo comalíngua. Parecia que ele ainda sentia o gosto da águabarrenta.Quando sevirouparalavarascostas,ouviuoruídodepatasseaproximando;GarradeTigresurgiuàsuafrente.–EstrelaAzulquerquevocêváàAssembleia–rugiuorepresentante.–

Elaoesperanaportadatoca.EleveTempestadedeAreiaeListraCinzentacomvocê.–Eleseafastousemesperarresposta.CoraçãodeFogoselevantoueseespreguiçou.Olhandoaoredor,avistou

Listra Cinzenta e Tempestade de Areia comendo ao lado do canteiro deurtigas,ecorreuparasejuntaraeles.–EstrelaAzulnosescolheuparairàAssembleia–anunciou.Agataacaboudecomeromelroelimpouabocacomalínguarosa.–Mas

comovamoschegar?–miou,surpresa.–Penseiserimpossívelatravessaroriacho.–EstrelaAzuldissequeoClãdasEstrelasficaráfuriososenãotentarmos

–miouCoraçãodeFogo.–Elaquerconversarconoscoagora.Talveztenhaumplano.ListraCinzenta falou comaboca cheia: –Sóesperoqueelanãoqueira

nos fazer nadar. – Apesar dessas palavras, seus olhos brilhavam deempolgaçãoenquantoeleengoliaorestodoratosilvestreesepunhadepécomumpulo.CoraçãodeFogosabiaqueoamigoaguardavaansiosamenteporumaoportunidadedereverArroiodePrataeimaginavaseelestinhamse encontrado desde que Listra Cinzenta e ele tinham sido pegosatravessandoorio,depoisdadesastradamissãodecaçaparaoClãdoRio.CoraçãodeFogopensounosfilhotesdeArroiodePrataeseperguntou

como Listra Cinzenta suportaria vê-los crescer em outro clã. Será queArroiodePratacontariaaelesqueseupaieraListraCinzenta,guerreirodoClã do Trovão? Coração de Fogo tentou tirar essas questões da cabeçaenquanto atravessava a clareira com os amigos, rumo à Pedra Grande.EstrelaAzulestavaforadatoca,nacompanhiadeNevasca,PelodeRatoePele de Salgueiro. Logo depois, Garra de Tigre e Risca de Carvão sejuntaramaogrupo.– Como vocês sabem, a lua está cheia esta noite – começou a líder,

quandotodososfelinosestavamàsuavolta.–SerádifícilchegaraQuatro

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Árvores,masoClãdasEstrelas esperaque façamos todoopossível paraencontrarum caminho seco. Então, só escolhi guerreiros –não seráumajornadaparaanciãoseaprendizes,ourainhasesperandofilhotes.RiscadeCarvão, esta manhã você guiou uma patrulha para examinar o riacho.Relateoqueviu.–A água está baixando,masnão rápido o bastante. Patrulhamos até o

CaminhodoTrovão,enãohánenhumpontoquepossaseratravessadoporumgato,anãoseranado.– O riacho é mais estreito lá em cima – miou Pele de Salgueiro. –

Podemosatravessarsaltando?–Talvez, sevocêcriarasas– respondeuRiscadeCarvão.–Mas tudoo

quevocêtemsãosuaspatas…–Masaqueledeveseromelhorlugarparatentar–insistiuNevasca.EstrelaAzulconcordou.–Começaremospor lá–eladecidiu.–Talvezo

ClãdasEstrelasnosguieatéum lugarseguro.–Ela sepôsdepéeguiouseusgatosparaforadoacampamento,emsilêncio.O sol já tinha seposto e o crepúsculodeixava indistintas as formasda

floresta. Ao longe, uma coruja piou e Coração de Fogo ouviu o farfalharcausado pelas presas na vegetação rasteira, mas os guerreiros estavamconcentradosdemaisemsuajornadaparacaçar.EstrelaAzulosguiouporentre as árvores até onde o riacho surgia de um túnel de pedra sob oCaminhodoTrovão.ArotahabitualparaQuatroÁrvoresnãopassavatãopertodoCaminhodoTrovão,eCoraçãodeFogotentavaimaginaroquealíder estariaplanejando.Quando chegaramao túnel, ele viuqueas águastinham transbordado nas duas margens, refletindo a luz pálida da luanascente.AáguatambémcobriaoCaminhodoTrovão,eosgatosviramummonstro passar, movendo-se lentamente, levantando uma onda deimundíciecomaspataspretaseredondas.Quandoeledesapareceunadistância,EstrelaAzullevouseusgatosatéa

beiradaáguasobreasuperfícieduradoCaminhodoTrovão.Ela farejou,franzindoofocinhoporcausadofedor,e,cuidadosa,colocoualiumapata:–Aquiérasoobastante–miou.–PodemosseguirpeloCaminhodoTrovãoaté o outro lado do riacho e chegar a Quatro Árvores acompanhando afronteiradoterritóriodoClãdasSombras.Andar pelo Caminho do Trovão! Coração de Fogo sentiu a pelagem se

eriçardemedoaopensaremseguirastrilhasdosmonstros.OacidentedePatadeCinzatinhamostradooqueelespodiamfazeraumgato,eelasó

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estiveranabeiradocaminho.–Eseoutromonstrovier?–perguntouListraCinzenta,manifestandoem

vozaltaomedodeCoraçãodeFogo.–Vamosnosmanternalateral–EstrelaAzulrespondeucalmamente.–

Você viu como aquele monstro estava se movendo devagar. Talvez nãogostemdeficarcomaspatasmolhadas.Coração de Fogo viu que Listra Cinzenta ainda parecia em dúvida. Ele

compartilhava as preocupações do amigo, mas não fazia mais sentidoprotestar.GarradeTigreapenasosrepreenderiaporseremcovardes.– Estrela Azul, espere – chamou Nevasca enquanto a líder entrava na

água.–Vocênãoselembradecomoonossoterritórioébaixodooutroladodo riacho? Claro que lá também vai estar inundado. Não acho queconseguiremoschegaraQuatroÁrvoressementrarnoterritóriodoClãdasSombras,queémaisalto.UmgatopertodeCoraçãodeFogodeixouescaparumsilvo fracoeele

sentiu outra pontada de medo. Um bando de guerreiros atravessando afronteira de um clã com o qual tinham lutado recentemente? Se umapatrulhaospegasse,iaparecerumainvasão.Estrela Azul parou, com a água lhe cobrindo as patas, e olhou para

Nevasca.–Talvez–elareconheceu.–Masvamosterdearriscar,jáqueesteéoúnicojeito.Ela retomou os seus passos sem dar tempo para protestos. Só restava

seguir adiante. Chapinhando na água ao longo da beira do Caminho doTrovão,CoraçãodeFogocontinuou,logoatrásdeNevasca.GarradeTigrecobriaaretaguardaparavigiarosmonstrosqueseaproximassem.Nocomeçotudoestavacalmo,excetoporumúnicomonstroqueviajava

na direção contrária, no lado oposto do caminho. Coração de Fogo entãoouviu um rugido familiar e o barulho da água de um monstro que seaproximava.–Cuidado!–GarradeTigreurrounofimdafila.CoraçãodeFogocongelou,espremendo-secontraamuretaquebeiravao

CaminhodoTrovãonocruzamentocomoriacho.RiscadeCarvãoescalouamureta e agachou-se lá em cima dela, arreganhando os dentes para omonstroquepassava.Porummomentoascoresestranhasebrilhantesdomonstro se refletiram na água fétida, e uma onda que se levantouencharcouCoraçãodeFogoatéospelosdabarriga.Eentãoelesefoi,eoguerreiropôdevoltararespirar.

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Quandoelesjáestavamdooutroladodoriacho,CoraçãodeFogoviuqueNevasca estava certo. Daquele lado, as terras baixas do Clã do Trovãoestavamcobertasdeágua.SólhesrestavacontinuarpelabeiradoCaminhodoTrovãoatéquesurgisseumterrenosecoosuficienteparacaminharporele.Aliviado por sair do Caminho do Trovão, que lhemachucava as patas,

Coração de Fogo levantou a cabeça e entreabriu a boca. Umodor forte efétido encheu suas glândulas olfativas – o odordoClãdas Sombras!Elestinham seguido ao longo do Caminho do Trovão, mas tinham saído dopróprio território e agora havia uma faixa de terra do Clã das SombrasentreeleseaAssembleia,emQuatroÁrvores.–Nósnãodeveríamosestaraqui–PeledeSalgueirosussurrou,inquieta.Se Estrela Azul ouviu, ignorou o comentário, acelerando o passo até

todospassaremacorrerpelarelvaencharcada.Existiampoucasárvoresalienãohaviacomoseescondernocapimbaixo.CoraçãodeFogosentiuseupeitoacelerar,enãoapenasporcausadavelocidade.SeosgatosdoClãdasSombras os pegassem ali, estariam em apuros. Mas Quatro Árvores nãoestavamuitolonge,easortedelespoderiaduraratélá.Entãoelepercebeuumasombraescura riscandoochãodiantedeles,a

caminhodeinterceptarEstrelaAzul,quelideravaapatrulha.Maissombrasseseguiram,eumgritofuriosorompeuosilênciodanoite.Porum tique-taquede coração,EstrelaAzulacelerouopasso, comose

pudesseescapardosfelinosqueosdesafiavam.Então,diminuiuoritmoeparou.Seusguerreirosfizeramomesmo.CoraçãodeFogoestavaofegante;assombrasseaproximaram;eramgatosdoClãdasSombras,guiadospelolíder,MantodaNoite.–EstrelaAzul! – ele cuspiu, parandona frenteda gata. –Porque você

trouxeseusgatosaonossoterritório?– Com essa cheia, era a única maneira de chegar a Quatro Árvores –

EstrelaAzulrespondeu,comavozbaixaefirme.–Nãoqueremoslhesfazermal,MantodaNoite.VocêsabequeháumatréguaparaaAssembleia.O gato ciciou, as orelhas coladas à cabeça e o pelo eriçado. – A trégua

aconteceemQuatroÁrvores–rugiu.–Nãohátréguaaqui.Instintivamente, CoraçãodeFogo se agachou emposiçãodefensiva.Os

gatos do Clã das Sombras – aprendizes e idosos, além de guerreiros –deslizaramsilenciosamente,formandoumsemicírculoemtornodosfelinosdo Clã do Trovão, em minoria. Como Manto da Noite, eles tinham as

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pelagenseriçadaseagitavamascaudas,emfúria.Osolhoshostisrefletiamaluzfriadalua.Sehouvesseluta,oClãdoTrovãoestavaemesmagadoradesvantagemnumérica.–MantodaNoite,medesculpe–miouEstrelaAzul.–Nuncainvadiríamos

oseuterritóriosemumbommotivo.Porfavor,deixe-nospassar.Tais palavras em nada ajudaram a apaziguar os felinos do Clã das

Sombras. Pelo Cinzento, seu representante, colocou-se ao lado do líder,umaformaescuraàluzdoluar.–Achoqueelesestãoaquiparaespionar–resmungoubaixinho.–Espionar?–GarradeTigreabriucaminhoparasecolocarao ladode

Estrela Azul, empurrando sua cabeça na direção de Pelo Cinzento, seusnarizes a menos de um camundongo de distância. – O que podemosespionaraqui?Nãoestamosnempertodoseuacampamento.Pelo Cinzento arreganhou a boca, revelando dentes afiados como

espinhos.–Dêaordem,MantodaNoite,evamosfazê-losempedaços.–Vocêspodemtentar–resmungouGarradeTigre.Por alguns tique-taques de coração, Manto da Noite permaneceu em

silêncio.OsmúsculosdeCoraçãodeFogoseretesaram.Aseu lado,ListraCinzenta soltou um rugido seco, que vinha da garganta. Pelo de Ratomostrou os dentes ao guerreiro do Clã das Sombrasmais próximo, e osolhosdeouroclarodeTempestadedeAreiabrilhavam,prontosparaumaluta.– Para trás – Manto da Noite resmungou, enfim, a seus guerreiros. –

Vamosdeixá-lospassar.QuerotergatosdoClãdoTrovãonaAssembleia.–As palavras eram amigáveis, mas foram sibiladas com os dentesarreganhados. De súbito, desconfiado, Coração de Fogo sussurrou paraListraCinzenta:–Oqueelequerdizercomisso?O gato cinza deu de ombros. – Sei lá. Não tivemos notícia do Clã das

Sombras desde que a inundação começou. Quem sabe o que andamfazendo?– Vamos até mesmo escoltá-los – continuou Manto da Noite, com os

olhossemicerrados.–SóparagarantirquecheguemaQuatroÁrvoresemsegurança. Não queremos que o Clã do Trovão se assuste com umcamundongozangado,nãoé?Ummurmúrio de aprovação se ergueu entre os guerreiros do Clã das

Sombras.ElessedeslocaramdemodoaenvolverosgatosdoClãdoTrovão.Com um ligeiro aceno de cabeça, Manto da Noite se colocou ao lado de

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EstrelaAzul.Osoutrosfelinososseguiram,apatrulhadoClãdasSombrasemparelhadacomoClãdoTrovão,passoapasso.O Clã do Trovão dirigiu-se à Assembleia completamente cercado por

adversários.

AluaestavaemseuapogeuquandoCoraçãodeFogoeosoutrosgatosdoClãdoTrovãoforamlevadosaovalesobosquatrocarvalhos.UmaintensaluzfriacaíasobreosmembrosdoClãdoRioedoClãdoVento,járeunidos.Todosseviraramparaolharcomcuriosidadeogrupoquedesciaaencosta.Coração de Fogo sabia que ele e seu clã deviam estar parecendoprisioneiros.Eleseempertigouorgulhosamente,cabeçaecaudaerguidas,desafiandoqualquergatoadizerqueelestinhamsidoderrotados.Para seu alívio, os gatos do Clã das Sombras mergulharam nas trevas

logoque chegaramao vale. EstrelaAzul foi diretamente para a PedradoConselho,comGarradeTigreaoseulado.CoraçãodeFogoprocurouListraCinzenta e descobriu que o amigo já tinha desaparecido; um momentodepois ele o viu se aproximando de Arroio de Prata, mas a gata estavacercadadegatosdoClãdoRio,eListraCinzentasópôde ficarporperto,sentindo-sefrustrado.Coração de Fogo reprimiu um suspiro. Sabia quanto Listra Cinzenta

deviaestarcomvontadedereveranamorada,especialmenteagoraqueelaesperava filhotes,mas havia um risco enorme em umaAssembleia, ondequalquergatopoderiaflagrá-losjuntos.– O que há com você? – Pelo de Rato o fez pular. – Parece que está

tramandoalgumacoisa.Coração de Fogo olhou para a guerreira marrom. – Eu… eu estava

pensandonoqueMantodaNoitedisse–eleimprovisourapidamente.–PorqueelefazquestãodeteroClãdoTrovãoaqui?– Bem, tenho certeza de que não é por gentileza ou atenção – miou

TempestadedeAreia,quechegavacomPeledeSalgueiro.Elalambeuumapataepassou-aacimadaorelha.–Vamosdescobrirembreve.– Problemas a caminho – Pele de Salgueiromiou por cima do ombro,

indo se juntar a um grupo de rainhas do Clã do Rio. – Posso sentir nasminhaspatas.Mais desconfortável do que nunca, Coração de Fogo andava para lá e

para cá sob as árvores, esforçando-se para ouvir os gatos ao redor. Amaioria trocava fofocas inofensivas, pondo emdia as notícias dos outros

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clãs,eelenadaouviusobreplanosdoClãdasSombras.Masnotouqueosfelinos do Clã das Sombras que passavam o olhavam de maneiraferozmentehostil.EpegouumoudoisdeleslançandoolharesparaaPedradoConselho,comoseestivessemimpacientesparaareuniãocomeçar.Porfim,umbradoveiodotopodapedra,calandoomurmúriodosgatos.

Coraçãode Fogo encontrouum lugar nabeira do vale, de onde ele tinhaumaboavisãodosquatrolíderes,suassilhuetasnegrascontraocéu.Tempestade de Areia se acomodou ao seu lado, agachando-se com as

patassobopeito.–Elávamosnós–elasussurrou,esperançosa.MantodaNoitedeuumpassoà frente,aspernasrijas,ecomfúriamal

disfarçada falou: –Gatos de todos os clãs, ouçam-me!Ouçame lembrem.Até a última estação do renovo, Estrela Partida era o líder do Clã dasSombras.Eleera…EstrelaAlta, líderdoClãdoVento,deuumpassoà frentepara ficarao

lado deManto da Noite. – Por que você pronuncia esse nome odioso? –rugiu. Seus olhos brilhavam, e Coração de Fogo sabia que ele estavapensandoemcomoEstrelaPartidae seusguerreiros tinhamexpulsadooClãdoVentodeseuterritório.–Odioso,sim–concordouMantodaNoite.–Eporummotivoquevocê

conhece tão bem quanto qualquer outro gato, Estrela Alta. Ele rouboubebêsdoClãdoTrovãoeempurrouparaabatalha,muitocedo,filhotesdeseu clã, que morreram. Finalmente, ficou tão sanguinário que nós – seupróprio clã – o expulsamos. E onde ele está agora? – a voz deManto daNoite tornou-se aguda como um guincho. – Foi deixado para morrer nafloresta?Oupararevirarolixo,vivendoentreosDuas-Pernas?Não!Porquehágatos,presentesaquiestanoite,queoacolheram.ElestraíramoCódigodosGuerreirosetodososgatosdafloresta.CoraçãodeFogotrocouumolharpreocupadocomTempestadedeAreia.

Sentia o que estava por vir; e, pelo olhar perturbado que a gata lhedevolveu,elasentiaomesmo.– Clã do Trovão! – Manto da Noite roncou. – O Clã do Trovão está

abrigandoEstrelaPartida!

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CAPÍTULO19

GRITOS ESTRIDENTES, DE SURPRESA E RAIVA, ECOARAM entre os gatos à volta daPedradoConselho.CadamúsculodocorpodeCoraçãodeFogooobrigouarastejarpara trás, nadireçãodos arbustos, para se esconderde tamanhafúria.Eleprecisoudetodasuaforçaparaficarondeestava.TempestadedeAreia encostou o corpo no dele, tremendo tanto quanto o guerreiroavermelhado;ocalordeuaelealgumconforto.NoaltodaPedradoConselho,EstrelaAlta,derepente,encarouEstrela

Azulerugiu:–Éverdade?Elanãorespondeudepronto.Commuitadignidade,deuumpassoparaa

frenteeencarouoolhardeMantodaNoite.Oluarbrilhavanopelodalíder,deixando-oprateado,apontodeCoraçãodeFogoquaseacreditarqueumguerreirodoClãdasEstrelastinhadescidodoTuledePrataparajuntar-seaeles.Elaesperouatéqueobarulhoabaixodiminuísse.–Comovocêficousabendo?–elaindagoufriamentequandoconseguiusefazerouvir.–Vocêesteveespionandoonossoacampamento?– Espionando! – Manto da Noite cuspiu com raiva. – Não é preciso

espionar quando os seus aprendizes deixam a fofoca correr solta. MeusguerreirossouberamanotícianaúltimaAssembleia.Agora,vocêousadizerqueémentira?Enquanto ele falava, Coração de Fogo lembrou-se de ter visto Pata

Ligeira com os aprendizes do Clã das Sombras no final da últimaAssembleia. Não lhe causava espanto o ar de culpa do jovem, já quecomentaracomosamigossobreoprisioneirodoClãdoTrovãologodepoisdeEstrelaAzulterordenadosegredoaosintegrantesdoclã!EstrelaAzulhesitou.CoraçãodeFogosentiu-sesolidáriocomela.Emseu

próprioclã,muitosgatosnãoestavamsatisfeitoscomadecisãodeladedarabrigoaocegoCaudaPartida.Comoelasedefenderiaanteosoutrosclãs?EstrelaAltaagachou-sediantedela,asorelhascoladasàcabeça.–Issoé

verdade?–quissaber.Por um instante, Estrela Azul nada disse. Até que levantou a cabeça,

desafiadora,emiou:–Sim,éverdade.–Traidora!–cuspiuEstrelaAlta.–VocêsabeoqueEstrelaPartidanos

fez.A ponta da cauda de Estrela Azul agitou-se; mesmo de onde estava,

Coração de Fogo podia ver a tensão estampada nosmúsculos da líder, e

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sabiaqueelaestavalutandoparasemantercalma.–Nenhumgatoousamechamardetraidora!–elasibilou.–Euouso–retorquiuEstrelaAlta.–Vocênãopassadeumatraidorado

CódigodosGuerreirosseestádispostaadarabrigoaesse…essemontedecocôderaposa!EmtodaaclareiraosgatosdoClãdoVentopuseram-sedepé,gritando

emapoioaolíder.–Traidora!Traidora!Na base da Pedra do Conselho, Garra de Tigre e Pé Morto, o

representante do Clã do Vento, se encararam, com o pelo dos cangoteseriçado,oslábiosarreganhadosparamostrarosdentesafiados,osnarizesaapenasumcamundongodedistância.Coraçãode Fogo também se levantoudeum salto, seu instinto de luta

enviandoenergiaàspatas.ViuPeledeSalgueirorosnandoparaasrainhasdo Clã do Vento, com quem, momentos antes, trocava lambidas. Doisguerreiros do Clã das Sombras, vagarosa e ameaçadoramente, foram nadireçãodeRiscadeCarvão,ePelodeRatopulouparao ladodele,prontoparaatacar.–Parem!–bramiuEstrelaAzul,doaltodaPedradoConselho. –Como

podemdesrespeitar a trégua assim?Querem se arriscar à ira do Clã dasEstrelas?Enquantoelafalava,o luarcomeçouaenfraquecer.Osgatosnaclareira

congelaram. Coração de Fogo olhou para cima e viu um fragmento denuvempassandodianteda lua.Eleestremeceu.SeriaumavisodoClãdasEstrelas,pelaameaçadosclãsdequebraratréguasagrada?Jáaconteceraumavezdeasnuvenscobriremalua,umsinaldairadoClãdasEstrelas,oqueprovocaraofimdaAssembleia.Entretanto,anuvemsefoieo luarvoltouabrilhar,agoramais forte.A

crise tinha passado. Amaioria dos gatos estava sentada, embora com osolhosfixosunsnosoutros.NevascasecolocouentrePéMortoeGarradeTigreecomeçouamiarcominsistêncianoouvidodorepresentantedoClãdoTrovão.NoaltodaPedradoConselho,EstrelaTortadeuumpassoàfrentepara

ficaraoladodeEstrelaAzul.Elepareciacalmo.CoraçãodeFogoentendeuque,detodososclãs,oClãdoRioeraoquetinhamenosmotivosparaodiarCaudaPartida.Elenãocruzaraorioparainvadirseuterritório,nemtinharoubadoseusfilhotes.–EstrelaAzul–elemiou–,diga-nosporquefezisso.

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– Cauda Partida está cego – a líder respondeu, falando alto para serouvida por todos os gatos na clareira. – Está velho e derrotado. Nãorepresentaperigo,nãomais.Vocêodeixariamorrerdefomenafloresta?–Claro!–AvozdeMantodaNoiteseelevou,agudaeinsistente.–Nãohá

mortecruelosuficienteparaele!–Gotasdeespumasaíamdeseuslábios.Agressivo,elejogouacabeçanadireçãodeEstrelaAltaerugiu:–Vocêvaiperdoarogatoqueoexpulsou?PoruminstanteCoraçãodeFogoseperguntouporqueMantodaNoite

estava tãoagitado, tãodispostoa incitaroódiodeEstrelaAlta.Eleeraolíderdoclãagora.Quemalumprisioneirocegopoderialhecausar?Estrela Alta se encolheu ante o líder do Clã das Sombras, claramente

abaladoporsuafúria.–Vocêsabequantoissosignificaparaomeuclã–elemiou.–NuncavamosperdoarEstrelaPartida.–Poiseulhedigoquevocêestáerrado–miouEstrelaAzul.–OCódigo

dos Guerreiros nos diz para termos compaixão. Estrela Alta, você nãolembra o quemeu clã fez por você quando você estava derrotado e foraexpulso?Nósoencontramoseolevamosparacasa;depois,lutamosaseuladocontraoClãdoRio.Vocêesqueceuquenosdeveisso?LongedeatingiremEstrelaAlta,aspalavrasdeEstrelaAzulaumentaram

sua ira. Ele se aproximou, com a pelagem eriçada, e cuspiu: – O Clã doTrovãoestápensandoqueénossodono?Sóporquevocêsnos trouxeramde volta acham que devemos nos curvar à sua vontade e aceitar suasdecisõessemquestionar?AchamqueoClãdoVentonãotemhonra?Estrela Azul inclinou a cabeça ante tal fúria. – Estrela Alta, você está

certo,umclãnãopodepertenceraoutro.Nãofoioqueeuquisdizer.Maslembre-se de como você se sentiu quando estava fraco e tente sentircompaixão agora. Se abandonássemos Cauda Partida e o deixássemosmorrer,nosigualaríamosaele.– Compaixão? – cuspiuManto da Noite. – Nãome venha com história

para filhote dormir, Estrela Azul! E Estrela Partida, algum dia, mostroualguma compaixão? – Ouviram-se gritos de apoio. Manto da Noiteacrescentou:–Vocêprecisaexpulsá-loagora,EstrelaAzul; senãoo fizer,vouquerersaberporquê.Os olhos da gata se estreitaram em brilhantes fendas azuis. – Nãome

digacomocomandarmeuclã!–Entãoouça–MantodaNoitegrunhiu.–SeoClãdoTrovãoinsistirem

darabrigoaEstrelaPartida,podeesperarproblemas.OClãdas Sombras

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vaitomarprovidências.–EtambémoClãdoVento–rugiuEstrelaAlta.Por um instante Estrela Azul ficou em silêncio. Coração de Fogo sabia

queelaestavacientedoperigode terdoisclãscomo inimigosaomesmotempo, sobretudo quando, em seu próprio clã, havia felinos insatisfeitoscomsuadecisãodecuidardeCaudaPartida.–OClãdoTrovãonãorecebeordens dos demais – ela fechou a questão. – Fazemos o que achamoscorreto.–Correto?–MantodaNoitedebochou.–Darabrigoaessesanguinário…–Chega!–EstrelaAzulinterrompeu.–Acabouadiscussão.Temosoutras

coisasparatratarnestaAssembleia,ouvocêesqueceu?MantodaNoiteeEstrelaAltatrocaramumolhare,enquantohesitavam,

EstrelaTortaseadiantouparafalardaenchenteedosdanoscausadosaoacampamento do Clã doRio.Deixaram-no falar, embora, pensouCoraçãodeFogo,nãohouvessemuitosgatosprestandoatenção.Dovalesubiaummurmúrio,todosespeculandosobreCaudaPartida.TempestadedeAreia se aproximoudeCoraçãodeFogoe cochichou: –

AssimqueMantodaNoitecomeçoua falar,eusoubequeoproblemaeracomCaudaPartida.–Eusei–elerespondeu.–MasEstrelaAzulnãopodeexpulsá-loagora.Ia

soarcomoumarendição.Nenhumgatoarespeitariadepoisdisso,nemdoClãdoTrovãonemdosoutrosclãs.TempestadedeAreiaronronoubaixinho,concordando.CoraçãodeFogo

tentouseconcentrarparaacompanharorestodaAssembleia,masestavadifícil.Elenãopodiadeixardenotarosolhareshostisvindosde todososlados,dosfelinosdoClãdoVentoedoClãdasSombras;tudooquequeriaeraqueaAssembleiaacabasse.Pareceu passar-se um longo tempo até que a lua começasse seu

mergulho no horizonte e os gatos formassem patrulhas para voltar paracasa.Emumacordo silencioso, os guerreirosdoClãdoTrovão foram tercomEstrelaAzul tão logo ela deixou a Pedra do Conselho, formando umcírculoprotetoràsuavolta.CoraçãodeFogoimaginouque,assimcomoele,todostemiamqueatréguapudesseserquebrada.QuandoosguerreirosrodearamEstrelaAzul,CoraçãodeFogoviuBigode

Ralo indo se juntar a outros gatos do Clã do Vento. Seus olhares seencontraram e Bigode Ralo parou. – Sinto muito que isso estejaacontecendo, Coração de Fogo – elemiou, suave. –Eu não esqueci como

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vocênoslevouparacasa.–Obrigado,BigodeRalo.Euqueria…Elese interrompeuquandoGarradeTigreabriucaminhonocírculode

gatos, encarando-os e arreganhando os dentes para Bigode Ralo, queretrocedeuparaondeestavamosfelinosdoClãdoVento.CoraçãodeFogosepreparouparaumacensura,masorepresentantepassoudiretoporele.–Esperoqueestejasatisfeita–GarradeTigrerugiuparaEstrelaAzulaosecolocar a seu lado. – Agora dois clãs estão clamando por seu sangue.Devíamosterjogadoforaaquelevermehámuitotempo.Coração de Fogo se surpreendeu com aquela hostilidade de Garra de

TigreemrelaçãoaoprisioneirodoClãdoTrovão.Nãofaziamuitotempo,ele vira o representante trocando lambidas com Cauda Partida, como seestivesse de acordo com a permanência dele. Mas talvez não fosse tãosurpreendente ele estar contrariado – como todos os outros – com oconflitocriadocomoClãdoVentoeoClãdasSombras.– Garra de Tigre, orelha suja se lava em casa – Estrela Azul disse

baixinho.–Quandovoltarmosparaoacampamento…– E como pretendem voltar? – Foi Manto da Noite que interrompeu,

aproximando-sedosguerreirosdoClãdoTrovão.–Nãopelomesmolugarde onde vieram, espero. Se puserem uma pata no território do Clã dasSombras, vamos fazê-los em pedaços. – E desapareceu nas trevas, semesperarresposta.PoruminstanteEstrelaAzulpareceuconfusa.CoraçãodeFogosabiaque

nãohaviaoutrojeitodevoltarparacasa;anãoseranado,atravessandooriacho.Eleestremeceuaopensarnafortecorrentezaquequaselhecustaraa vida. Teriam de ficar em Quatro Árvores até a água baixar? Então elepercebeu o odor do Clã do Rio e, ao se virar, viu Estrela Torta seaproximando,comalgunsdeseusguerreiros.–Euouviisso–disseaEstrelaAzulogatodesbotado.–MantodaNoite

está errado. Em uma hora assim, todos os gatos devem se ajudar. – ElefitavaCoraçãodeFogo,queimaginouqueeleestivessepensandoemcomoeleeListraCinzentaostinhamajudado,partilhandoaspresascomoClãdoRio.MasosgatosdoClãdoTrovãoalipresentesnãosabiamdisso,anãoserEstrela Azul, e o guerreiro de pelagem avermelhada ouviu ao redormurmúriosdegatosdesconfortáveiscomasituação.– Posso oferecer uma solução – Estrela Torta continuou. – Para

chegarmos aqui, cruzamos o rio pela ponte dos Duas-Pernas. Se fizerem

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esse caminho, podem passar pelo nosso território e atravessar para seuterritórioemumpontomaisabaixo–háumaárvoremortaquesealcançapelocaminhodepedras.AntesqueEstrelaAzulpudessefalar,GarradeTigreciciou:–Eporque

devemosconfiarnoClãdoRio?EstrelaTortaoignorou,fixandoosolhoscordeâmbaremEstrelaAzul,

esperando uma resposta. Ela curvou a cabeça, respeitosa. – Obrigada,EstrelaTorta.Aceitamosaoferta.O líder do Clã do Rio fez um rápidomovimento de cabeça e voltou-se

para acompanhá-lana saídada clareira.Aindahaviamurmúrios entre osgatos do Clã do Trovão quando Estrela Azul liderou seus guerreiros nacaminhadaentreosarbustoseencostaacima,deixandoovale.OsgatosdoClãdasSombrasedoClãdoVento sibilavamà suapassagem,emboraosfelinos do Clã do Rio os ladeassem, protegendo-os. Chocado, Coração deFogopercebeuque,duranteumaúnicaAssembleia,asdiscórdiasdentrodaflorestatinhamsealterado.Foiumalíviochegaraoaltodaencostaedeixarparatrásahostilidadeda

Assembleia.CoraçãodeFogoviuListraCinzentatentandoseaproximardeArroiodePrata,masumadasrainhasdoClãdoRioestavapertodagata,emquemdava,devezemquando,umalambida.–Temcertezadequenãoestácansada?–arainhainsistia.–Éumalonga

jornadaparaquemestáesperandofilhotes.–Não,FlordaRelva,estoubem–ArroiodePratarespondeu,paciente,

lançandoumolhar frustradopara Listra Cinzenta por cimada cabeça daamiga.GarradeTigre,agressivo,protegiaosúltimosgatosdapatrulhadoClãdoTrovão,balançandoaenormecabeçadeumladoparaoutro,comoseesperasseaqualquermomentoumataquedoClãdoRio.EstrelaAzul,porsuavez,pareciamuitoàvontadeentreosgatosdooutro

clã. Quando estavam longe de Quatro Árvores, ela deixou Estrela Tortatomar a frente e foi para perto de Pé de Bruma. – Soube que você tevebebês–elamiou,avozbaixinha.–Elesestãobem?PédeBrumaficouligeiramentesurpresaportersidoabordadapelalíder

do Clã do Trovão. – Dois… dois deles foram carregados pelo rio – elagaguejou.–CoraçãodeFogoeListraCinzentaossalvaram.– Sinto muito. Você deve ter temido por eles – Estrela Azul falou

baixinho,osolhosazuissuaves,solidários.–Ficofelizpormeusguerreirosterempodidoajudar.Osfilhotesserecuperaram?

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– Sim, agora estão bem, Estrela Azul. – A rainha ainda parecia atônitapelaaproximaçãodalíder.–Elesestãobem,logoserãoaprendizes.–Etenhoacertezadequeserãoótimosguerreiros–EstrelaAzulmiou,

carinhosa.Observando as gatas lado a lado, ficou evidente para Coração de Fogo

como a pelagem azul-acinzentada das duas brilhava de forma quaseidêntica ao luar. Tinham omesmo corpo benfeito e compacto e, quandoprecisavam pular um tronco no meio do caminho, flexionavam as patascom a mesma ondulação moderada dos músculos. Pelo de Pedra, maisatrás, era uma cópia da irmã, com um brilho prateado no pelo e umainvejáveldestrezademovimentos.Segatosdeclãsdistintospodiamser tãoparecidos,pensouCoraçãode

Fogo,porque tambémnãopodempensardomesmo jeito?Porque tantadiscussão? Desconfortável, lembrou o antagonismo entre o Clã dasSombraseoClãdoVentoeaintransigênciadestescomEstrelaAzulporeladefenderCaudaPartida.Enquantosedirigiaàponte,alertaparaoodordosDuas-Pernas, Coração de Fogo sentiu que os ventos frios da guerracomeçavamavarrerafloresta.

NosegundoamanhecerapósaAssembleia,CoraçãodeFogoacordounatocadosguerreiroseviuqueListraCinzentajátinhasaído.Omusgoondeoamigoestiveradeitadojáestavafrio.FoiencontrarArroiodePrata,elepensou,comumsuspiroderesignação.

Nãoerasurpresa,jáqueoamigoagorasabiaqueanamoradaiaterfilhotes;masissosignificavaque,maisumavez,CoraçãodeFogoteriadedisfarçarsuaausência.Bocejando com vontade, o gato avermelhado se embrenhou entre os

galhosexternosdoarbusto,sacudindoomusgodopeloenquantoolhavaàvoltadaclareira.Osolcomeçavaapercorrerseucaminhoacimadomurodesamambaias,fazendosurgiremsombrassobreochãodescoberto.Océuestava limpo, azul e semnuvens. O cantar dos pássaros prometia presasfáceis.–Ei,PatadeSamambaia!–CoraçãodeFogogritouparaoaprendiz,que

estavacomardesligadonaentradadesuatoca.–Vamoscaçar?Ojovempôs-sedepécomumpuloeatravessouaclareira,correndoatéo

guerreiro.–Agora?–eleperguntou,comosolhosbrilhandodeprazer.–É,agora–elerespondeu,derepente,tãoansiosoquantooaprendiz.–

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Eubemquepoderiaarrumarumbelocamundongofresco,evocê?PatadeSamambaiaseguiuoguerreironocaminhoparaotúneldetojo.

ElenemquissaberondeestavaListraCinzenta,percebeuCoraçãodeFogo.Oamigonuncalevaramuitoasérioseusdeverescomomentor,elepensou,com uma pontada de preocupação. Desde o início, estivera maisinteressadoemArroiodePrata.Enquanto isso,CoraçãodeFogo,decertaforma, tinha assumidoo treinamentodePatade Samambaia. Ele gostavadessaocupaçãoe tambémdosérioe compenetrado jovemdepelo ruivo;maspreocupava-seporquea lealdadeaoclãparecianão termaissentidoparaListraCinzenta.Entretanto, pôs esses pensamentos de lado enquanto ele e Pata de

Samambaiasubiamatéaravina,evitandooterrenoenlameadoondeaáguaestavasecando.Eradifícilficartristeouansiosoemumdiaclaroequenteassim.Comaságuasbaixandomaisemaisacadadia,nãohaviamaisperigodeoClãdoTrovãoserexpulsodoacampamentopelaenchente.Noaltodaravina,CoraçãodeFogoparou.–Certo,PatadeSamambaia–

elemiou–,farejecomvontade.Quecheirovocêsente?O jovemelevoua cabeça, fechouosolhos e abriu a bocapara sorver a

brisa.–Camundongo–miou,finalmente.–Coelho,melroe…outraavequenãoidentifico.–Éumpica-pau–CoraçãodeFogodisse.–Maisalgumacoisa?Ojovemseconcentrou;seusolhossearregalaram,alarmados.–Raposa!–Viva?O aprendiz voltou a farejar e, então, relaxou, parecendo meio

envergonhadodesimesmo.–Não,morta.Hádoisoutrêsdias,euacho.– Ótimo, Pata de Samambaia. Agora, se você for por ali, até os dois

carvalhosvelhos,euvouporaqui.–Eleobservou,poralgunsmomentos,oaprendizsedirigirlentamenteparaasombradasárvores,parandodevezemquandoparasentiroar.UmfarfalhardeasassobumarbustodistraiuCoraçãodeFogo;aoviraracabeça,viuumtordobatendoasasasparaseequilibrarenquantotiravaumaminhocadochão.Oguerreiroseagachouerastejou,pataantepata,atéotordo.Opássaro

puxou a minhoca e começou a comê-la com gosto; o gato retesou osmúsculosparaobote.–CoraçãodeFogo!CoraçãodeFogo!Omiado frenéticodePatadeSamambaiaquebrouo silêncio.As folhas

mortas crepitavamsobsuaspatasquandoele seaproximou, caminhando

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entreasárvores.CoraçãodeFogoatirou-sesobreotordo,mastinhahavidomuito alarde. O pássaro voou até um galho baixo, piando apavorado,enquantoaspatasdeCoraçãodeFogobatiamnosolovazio.–Oquevocêachaqueestáfazendo?–oguerreirosevirou,zangado,para

o aprendiz. – Eu teria conseguido apanhar o tordo. E agora, ouça isso!Todasaspresasdaflorestavão…–CoraçãodeFogo!–PatadeSamambaiaarfou,deslizandoatépararna

frentedele.–Elesestãochegando!Primeiro,sentiocheirodeles,depois,euosvi!–Quecheiro?Quemestávindo?Osolhosdojovemestavamredondosdemedo.–OClãdasSombraseo

ClãdoVento!Vãoinvadirnossoacampamento!

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CAPÍTULO20

–ONDE?QUANTOSGUERREIROS?–CORAÇÃODEFOGOPERGUNTOU.–Lá.–PatadeSamambaiabalançouacaudanadireçãodasprofundezas

dafloresta.–Nãoseiquantos.Estãosearrastandopelavegetação.–Estábem.–Oguerreiropensourapidamente,tentandoignorarosúbito

estrondodostique-taquesdeseucoração.–Volteaoacampamento.AviseEstrelaAzuleGarradeTigre.Precisamosdealgunsguerreirosaqui,agora.–Podedeixar.–Oaprendizvirou-see,correndo,desceuaravina.Assim que ele saiu, Coração de Fogo se dirigiu à floresta, espreitando

commaiscuidadodebaixodosarcosdesamambaia.Inicialmente,tudolhepareceu tranquilo, mas ele logo percebeu o odor fétido de uma grandequantidade de gatos invasores – o cheiro do Clã do Vento e do Clã dasSombras.Em algum lugar à sua frente, um pássaro, gaguejando, emitiu um

chamadodealarme.CoraçãodeFogoseescondeusobumaárvore.Aindanãovianada.Seupeloseeriçoudeansiedade.Então,contraindoocorpo,saltoue,usandoasgarras,subiupelotronco

daárvoreatérastejarparaumgalhobaixo,deondeolhouatentoporentreasfolhas.O chão da floresta parecia vazio, nem sequer um besouro se

movimentava. Então Coração de Fogo percebeu um tremor em umasamambaia.Algumacoisabrancaseagitouesefoi.Momentosdepoisumacabeçaescurasurgiunavegetaçãosobaárvore.ElereconheceuMantodaNoite.Veiodeleummiadobaixo.–Sigam-me!O líder do Clã das Sombras emergiu das samambaias e correu por um

trechodecampoaberto.Umbandodegatososeguia.CoraçãodeFogoficouaindamaistensoaoverqueerammuitos.GuerreirosdoClãdoVentoedoClã das Sombras invadindo o acampamento juntos. Estrela Alta e PeloCinzento, PéMorto e Cauda Tarraxo, PéMolhado e Bigode Ralo corriamladoalado,comoirmãos.Nãofaziamuitotempo,essesfelinostinhamlutadounscontraosoutros

noacampamentocobertodenevedoClãdoVento.AgoraestavamunidospeloódioaCaudaPartidaeaoClãdoTrovão,quederaabrigoaele.Coração de Fogo sabia que teria de entrar no combate. Embora

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considerasseosguerreirosdoClãdoVentoamigos,teriadeficaraoladodesualíderedeseuclã.Quandosepreparavaparapular,ouviuummiadoúnicoefuriosovindo

dadireção do acampamento e reconheceuGarra deTigre convocando osguerreirosparaabatalha.Apesardetodaasuadesconfiançaemrelaçãoaorepresentante,CoraçãodeFogosesentiualiviado.Naquelemomento,oClãdoTrovãoprecisavadetodaacoragemferozedashabilidadesdecombatedeGarradeTigre.CoraçãodeFogodesceuprecipitadamentepelotronco,atingindoochão

comasquatropatasechispouemdireçãoaocampodebatalha,nãomaistentandoseesconderdosinvasores.Quandoseafastoudasárvores,viu,nocampo aberto, no alto da ravina, uma massa de gatos se contorcendo,cuspindo. Garra de Tigre e Manto da Noite lutavam, arranhando-sefuriosamente. Risca de Carvão tinha derrubado um guerreiro do Clã doVento. Pelo de Rato atirara-se sobre Pelo Cinzento, gritando, enfurecida.FlordaManhã,rainhadoClãdoVento,cravaraasgarrasemRaboLongo,fazendo-odesceraencostaaosgritos.Coração de Fogo pulou sobre Flor da Manhã, a raiva martelando nas

veias.Elebemselembravadecomoajudaraarainhaacarregarseufilhotena volta ao acampamento do Clã do Vento, depois de eles terem sidoexpulsos por Estrela Partida. Ela saltou quando Coração de Fogo seaproximou,masoguerreiroconseguiudesviarquandoelaestavaprestesaatacá-lo violentamente com suas garras. Por alguns tique-taques decoraçãoosdoisgatosseencararam.Osolhosdarainhaestavamcheiosdetristeza,eCoraçãodeFogoviuqueelatambémselembravadoquetinhamsofridojuntos.Elenãopoderiagolpeá-la,eummomentodepoiselarecuouedesapareceunotumultodegatos.AntesqueCoraçãodeFogopudesserespirar,umgatooatingiuportrás,

derrubando-onochãoúmido.Emvãoelesearrastouetentouselevantar.Virandoopescoço,encontrouosolhosferozesdeCaudaTarraxo,guerreirodo Clã das Sombras; um tique-taque de coração depois, os dentes doguerreiro do Clã das Sombras se afundaram em seu ombro. Deixandoescaparumgritodedor,CoraçãodeFogodeuumapancadanabarrigadoadversáriocomaspernas traseiras,arrancando-lhegrandes tufosdepelomalhadodemarrom.OsanguedeCaudaTarraxorespingouneleenquantooguerreirodoClãdasSombrasrecuavaemagoniaeiaembora.Coração de Fogo se levantou agilmente e olhou à volta, ofegante. O

combatemaisferozacontecia,agora,nofundodaravina.Osrivaisestavam

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forçando os limites, claramente determinados a invadir o acampamento.Em desvantagem numérica, os guerreiros do Clã do Trovão nãoconseguiammantê-losafastados.EondeestavaEstrelaAzul?EntãoCoraçãodeFogoaviu.ComNevascaePelagemdePoeira,elase

agachara na entrada do túnel de tojo, pronta a barrar o caminho com opróprio corpo. BigodeRalo e PéMolhado já tinham rompido a defesa deGarradeTigree,soboolharhorrorizadodeCoraçãodeFogo,PéMolhadoatirou-sesobreEstrelaAzul.CoraçãodeFogocorreupelotopodaravina.DetodooClãdoTrovão,só

eleePresaAmarelasabiamqueEstrelaAzulestavanaúltimadesuasnovevidas.Seelamorressenaquelabatalha,oClãdoTrovãoficariasemlíder–oupior,ficariasobocontroledeGarradeTigre.Quando estava sobre a entrada do túnel, Coração de Fogo mergulhou

direto, encosta abaixo, quase sem tocar com as patas as rochastraiçoeiramente íngremes, para aterrissar, derrapando, no meio da luta.SeusdentesrasgaramopescoçodePéMolhado,arrastando-oparalongedeEstrelaAzul.A líderdoClãdoTrovãousouasgarrasparadesferirgolpesnogatomalhadodecinzaatéele,aostrancos,recuarefugir.UmaondadegatosemlutaseatirousobreCoraçãodeFogoeosoutros

felinosnotúneldetojo.CoraçãodeFogomordiaearranhavaporinstinto,semsabercomquemestavalutando.Garrasafiadaslanharamsuatestaeosanguecomeçouagotejaremseusolhos.Elerespirouofegante,sentindo-seprestesasufocarcomocheirofétidodosinimigos.Então Estrela Azul miou perto do seu ouvido. – Eles estão forçando a

entradapelasparedes!Recue!Defendaoacampamento!Coração de Fogo se esforçou para ficar de pé enquanto os invasores

levavam a batalha para o próprio túnel. O tojo rasgava seu pelo comogarras hostis. Era impossível lutar ali; então, ele deu meia-volta e, comdificuldade,passoupelotojoemdireçãoaoacampamento.Naclareira,PeledeSalgueiro,VentoVelozeTempestadedeAreiatinham

corrido para guardar o berçário, prontos a proteger as rainhas e seusfilhotes. Rabo Longo, lambendo as feridas rapidamente, ficou do lado deforadatocadeCaudaPartida,comPatadeSamambaiaaoseulado.Entreosgalhosdaárvore caída,CoraçãodeFogo só conseguiaperceberopelomalhado escuro e os olhos cegos do antigo líder do Clã das Sombras. Oguerreiro sentiu uma pontada de frustração por eles estarem sendoatacadosporcausadaquelegatocrueleassassino.

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Manto da Noite e Bigode Ralo foram os primeiros a sair do túnel,cruzandoocampoabertoemdireçãoàtocadeCaudaPartida.EstrelaAltaabriucaminhopelasebedeespinhosesejuntouaeles.Outrosinvasoresoseguiram.– Detenham esses gatos! – bramiu Coração de Fogo, convocando os

guerreirosdoclãenquantoatravessavacorrendoaclareira.–ElesqueremCauda Partida! – Ele se atirou sobre Manto da Noite, rolando no chãoempoeiradocomogatopreto.CoraçãodeFogoimaginavaquantosgatosdoClã do Trovão realmente desejavam defender o antigo líder do Clã dasSombras.Semdúvida,muitosficariambemfelizesementregá-loaosoutrosclãs. Mas o guerreiro também tinha certeza de que eles permaneceriamleaisaoclã;oquequerquesentissememseuscorações,lutariamporele.Ele jogou Manto da Noite no chão, os dentes enterrados no ombro

ossudo do líder. O gato preto se contorceu e se soltou. Coração de Fogoperdeuoequilíbrioe,de repente,percebeuqueestavapreso–apesardevelho,ooponenteaindaeraferozmenteforte.MantodaNoitearreganhouosdentes,seusolhosbrilhavam.Desúbito,

ele recuou, soltando o gato avermelhado. Sacudindo o sangue dos olhos,CoraçãodeFogoviuquePatadeSamambaiatinhapuladono líderdoClãdasSombraseestavaagarradoàssuascostascomasquatropatas.MantodaNoitetentava,emvão,selivrar;então,rolouocorpo,ficandoporcimaeesmagando Pata de Samambaia contra o chão. O aprendiz soltou umbramidofurioso.Comasgarrasàmostra,CoraçãodeFogodavagolpesemMantodaNoite,

mas Estrela Alta semeteu entre eles, tentando alcançar a toca de CaudaPartida.Parasuadecepção,CoraçãodeFogosentiu-seforçadoarecuar.Então Garra de Tigre estava lá. O enorme representante tinha muitas

feridasquesangravameapelagemduradelama,masemseusolhoscordeâmbaraindaqueimavaofogodabatalha.EledesferiuumapatadacerradaemEstrelaAlta,fazendo-oiremboraaostrambolhões.MaisgatosdoClãdoTrovãoapareceram:Nevasca,PelodeRato,Vento

Veloz e a própria Estrela Azul. A maré da batalha virou. Os invasorescomeçaramabateremretirada,correndoparaotúneleparaosvãosentreassamambaiasaoredordaclareira.CoraçãodeFogoobservavaofegante,enquantoBigodeRalodesaparecianofinaldafiladeinvasoresemfuga.Abatalhatinhaterminado.Cauda Partida, agachado em sua toca, de cabeça baixa, olhava para o

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chão, sem nada ver. Ele não emitira sequer um som durante a batalha.CoraçãodeFogoseindagavaseoantigolíderaomenossabiaoqueseuclãdeadoçãotinhaarriscadoporele.Pertodali,PatadeSamambaiaseesforçavaparase levantar.Doombro

pendia-lheumpedaçodepeloesgarçado,eeleestavacobertodepoeiraesangue;masosolhosbrilhavam.–Muitobem–miouCoraçãodeFogo.–Vocêlutoucomoumguerreiro.Osolhosdoaprendizbrilharammaisainda.Enquanto isso, os gatosmachucadosdoClãdoTrovão se reuniramem

torno de Estrela Azul. Enlameados e sangrando, pareciam tão exaustosquantoCoraçãodeFogosesentia.Noinícioestavamemsilêncio,ascabeçasbaixas.Oguerreirodepelagemcordeflamanãoviatriunfoalgumnaquelavitória.–Aculpaésua!–FoiRiscadeCarvãoquemfalou,confrontandoEstrela

Azul,comraiva.–VocênosfezmanterCaudaPartidaaqui,eagoraestamosaospedaçospordefendê-lo.Quantotempofaltaparaqueumdenóstenhademorrerporcausadele?EstrelaAzulpareciaperturbada.–Nuncapenseiqueseriafácil,Riscade

Carvão.Mastemosdefazeroqueacreditamossercerto.RiscadeCarvãocuspiucomdesprezo.–PorCaudaPartida?Poralgumas

caudasdecamundongoeumesmoomataria!Váriosguerreirosmiaramconcordando.– Risca de Carvão – Garra de Tigre abriu caminho entre os felinos

reunidosparacolocar-seao ladodeEstrelaAzul,que,derepente,pareciavelhaefrágilaoladodoenormegatomalhadoeescuro–,vocêestáfalandocomasualíder.Mostrealgumrespeito.Porumtique-taquedecoração,RiscadeCarvãoolhouparaosdois,em

seguidafitouochão.Orepresentantebalançouaenormecabeça,varrendotodososgatoscomseuolharcordeâmbar.–CoraçãodeFogo,vábuscarPresaAmarela–miouEstrelaAzul.Ogatofoinadireçãodatocadacurandeira,que jávinhacorrendopela

clareira,seguidadepertoporPatadeCinza.Rapidamenteelascomeçarama examinar os guerreiros, vendo quem precisava de tratamento maisurgente. EnquantoCoraçãode Fogo esperava a sua vez, viu umgato quevinha da entrada do acampamento. Era Listra Cinzenta. Seu pelo estavalustroso e semmanchas; algumas peças de presa fresca lhe pendiam daboca.

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AntesqueCoraçãodeFogopudessesemover,GarradeTigreseafastoudePatadeCinzaefoiaoencontrodeListraCinzenta,nomeiodaclareira.–Ondevocêesteve?–perguntou.Ogato cinzapareciadesnorteado.Largouaspresasemiou:–Caçando.

Quediabosaconteceuaqui?–Oquelheparece?–rugiuorepresentante.–OClãdoVentoeoClãdas

Sombras invadiram o acampamento, tentando chegar a Cauda Partida.Precisávamosdetodososguerreiros,masparecequevocênãoestavaporperto.Ondevocêandava?ComArroiodePrata,disseparasimesmoCoraçãodeFogo.Eleagradeceu

aoClãdasEstrelaspeloamigoteraomenostrazidoalgumacaça,oquelhedavaumarazãogenuínaparaestarfora.–Bom, como é que eupodia saber? – Listra Cinzenta protestou como

representante,começandoaseirritar.–Ouseráquetenhodepedirasuapermissãoantesdepôrapataforadoacampamento?Coração de Fogo estremeceu – Listra Cinzenta não deveria provocar

GarradeTigreassim,mastalvezaculpaofizesseimprudente.GarradeTigregrunhiubaixo.–Vocêcirculademaisparaomeugosto–

vocêeCoraçãodeFogo.– Espere aí! – Coração de Fogo sentiu-se provocado a responder. – Eu

estavaaquiquandoosgatosatacaram.EnãoéculpadeListraCinzentaeleestarausente.Garra de Tigre pousou o olhar gelado, primeiro, em Listra Cinzenta,

depois,emCoraçãodeFogo.–Tomemcuidado–elecuspiu.–Estoudeolhoemvocês–nosdois.–ElesevirouevoltouparapertodePatadeCinza.–Comoseeumeimportasse–ListraCinzentasussurrou,massemdeixar

seuolharencontrarodeCoraçãodeFogo.ListraCinzentalevouacaçaparaapilhadepresasfrescas,eCoraçãode

Fogo,mancando,voltouaprocurarascurandeirasparaqueelascuidassemdeseusferimentos.– Hum! – Presa Amarela grunhiu, correndo sobre ele seu olhar de

especialista. – Se eles tivessem arrancado mais do seu pelo, você iriaparecer uma enguia. Mas nenhum dos ferimentos é profundo. Você vaisobreviver.PatadeCinzaveiocomumchumaçodeteiadearanha,queapertousobre

oarranhãoacimadoolhodeCoraçãodeFogo.Elatocoudelicadamenteonarizdoguerreirocomoseu.–Vocêfoicorajoso.

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–Nemtanto.–Eleestavaembaraçado.–Todosfizemosoquetínhamosdefazer.– Mas não é fácil – Presa Amarela falou inesperadamente, com a voz

rouca.–Luteiemmuitasbatalhasnomeutempoeseicomoé.EstrelaAzul– ela continuou, virando-separa a líder e encarando-a–,muitoobrigada.Significamuitoparamimvocê terpostooseuclãemriscoparaprotegerCaudaPartida.Alíderbalançouacabeça.–Nãoprecisaagradecer,PresaAmarela.Éuma

questão de honra. Apesar do que Cauda Partida fez, ele agora merece anossacompaixão.Avelhacurandeirainclinouacabeça.Bembaixinho,demodoqueapenas

EstrelaAzuleCoraçãodeFogoconseguissemouvir,elamiou:–Eletrouxegrandeperigoaomeuclãdeadoçãoe,porisso,eupeçodesculpas.EstrelaAzulaproximou-seedeu-lheumalambidareconfortantenopelo

cinza. Por um momento a expressão em seus olhos era a de uma mãeacalmandoumfilhoteirritado.VeioàmentedeCoraçãodeFogoaimagemdalídercaminhandopelafloresta,nanoitedaAssembleia,comaluzdaluabrilhando sobre três pelagens prateadas – a de Estrela Azul, a de Pé deBrumaeadePelodePedra.CoraçãodeFogoficousemar.Eletinhavistoissomesmo?Trêsgatostão

idênticosquesópoderiamserparentes?PédeBrumaePelodePedraeramirmãos,elesabia…ePoçaCinzentatinhaditoqueelestinhamocheirodoClãdoTrovão.Seria possível que os filhotes de Estrela Azul não tivessem morrido

muitasluasatrás?SeráquePédeBrumaePelodePedraeramosfilhotesperdidosdalíderdoClãdoTrovão?

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CAPÍTULO21

QUANDOPATADECINZA ACABOU DE CUIDAR dos ferimentosdeCoraçãodeFogo,ele foi procurar Listra Cinzenta. O amigo estava agachado na toca dosguerreiros,osolhosdouradosnublados.Ele levantou o focinho quando Coração de Fogo escorregou entre os

galhos.–Sintomuito–falouemumrompante.–Seiquedeviaestarlá.MaseutinhadeverArroiodePrata.NãoestivecomelananoitedaAssembleia.Coração de Fogo suspirou. Por um instante, pensara empartilhar suas

suspeitas a respeito de Pé deBruma e Pelo de Pedra,mas entendeu queListra Cinzenta já tinha suficientes preocupações. – Tudo bem. Qualquerum de nós poderia estar em patrulha ou emmissão de caça. Mas, se eufossevocê,ficariaporpertonospróximosdias,eteriacertezadeservistoporGarradeTigre.ListraCinzenta,meiodesligado,arranhavaumpedaçodemusgo.Coração

deFogoimaginouqueelejátinhamarcadoumencontrocomanamorada.–Temoutracoisaquequerofalar–elemiou,decididoanãodiscutiraqueleassunto naquele momento. – É sobre Pata de Samambaia. – Em poucaspalavras, descreveu como tinha saído cedo com o aprendiz, quereconhecera o cheiro dos gatos invasores. – Ele foi ótimo na batalha,também.Achoqueestánahoradesetornarumguerreiro.ListraCinzentaconcordoucomumrom-rom.–EstrelaAzulsabedisso?–Aindanão.VocêéomentordePatadeSamambaia.Deverecomendá-lo.–Maseunãoestavalá.–Nãoimporta.–CoraçãodeFogodeuumacutucadanoamigo.–Venha,

vamosfalarcomEstrelaAzul.A líder do Clã do Trovão e amaioria dos guerreiros ainda estavamna

clareira. PresaAmarela e Pata de Cinza distribuíam teias de aranha parahemorragias e sementes de papoula para dor. Cara Rajada tinha trazidoseusfilhotesparaveroqueestavaacontecendoeFilhotedeNuvempulavaporali,perturbandoumguerreiroapósoutro,querendosabersobrealuta.Pata de Samambaia tomava um banho caprichado; Coração de Fogo sesentiualiviadoporeletersofridoapenasferimentosleves.OsdoisguerreirosforamfalarcomEstrelaAzul,eCoraçãodeFogo,mais

uma vez, contou como o aprendiz farejara os adversários e sobre suabravuranabatalha.–FoigraçasaPatadeSamambaiaquefomosavisados–elemiou.

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– Achamos que ele devia ser feito guerreiro – Listra Cinzentaacrescentou.EstrelaAzul,pensativa,fezquesim.–Concordo.PatadeSamambaiahoje

mostrouseuvalor.–Elaselevantou,foiatéocentrodocírculodegatoseelevouavoz.–QuetodososgatoscomidadesuficienteparacaçaraprópriacomidasereúnamaospésdaPedraGrande.Flor Dourada veio de imediato do berçário, seguida por Cauda

Sarapintada. Orelhinha, mancando lentamente, saiu da toca dos anciãos.Quando estavam todos em torno de Estrela Azul, ela miou: – Pata deSamambaia,venhaaqui.Oaprendizlevantouofocinhoeseaproximou,nervoso.CoraçãodeFogo

percebeuqueelenãotinhaamenorideiadoqueestavaparaacontecer.– Pata de Samambaia, foi você quem alertou o clã hoje e lutou

bravamentenabatalha–EstrelaAzulmiou.–Estánahoradesetornarumguerreiro.O aprendiz ficou de boca aberta. Seus olhos brilhavam de empolgação

enquantoalíderpronunciavaaspalavrasdoritual.– Eu, Estrela Azul, líder do Clã do Trovão, conclamo meus ancestrais

guerreiros para que contemplem este aprendiz. Ele treinou arduamenteparacompreenderseunobrecódigoeeuoentregoavocêscomoguerreiro.– Ela fixou seu olhar azul no jovem. – Pata de Samambaia, prometerespeitar oCódigodosGuerreiros eproteger e defender este clã,mesmoqueissopossacustarasuavida?O gato tremeu ligeiramente,mas sua voz estava firme quandomiou. –

Prometo.– Então, pelos poderes do Clã das Estrelas, dou a você seu nome de

guerreiro.ApartirdeagoravocêseráconhecidocomoPelodeSamambaia.OClãdasEstrelashomenageiasuabravuraesuaforçaenóslhedamosasboas-vindascomoumguerreirodoClãdoTrovão.Estrela Azul deu um passo à frente e repousou o focinho no alto da

cabeça de Listra Cinzenta. Ele abaixou-se ainda mais para lamberrespeitosamenteoombrodalíder;depois,aprumou-seecolocou-seentreCoraçãodeFogoeListraCinzenta.Osgatoselevaramsuasvozesparacantaronomedonovoguerreiro.–

Pelo de Samambaia! Pelo de Samambaia! – Eles o rodearam,cumprimentando-oedesejando-lhetudodebom.PeledeGeadaapertouofocinhocontraocorpodofilho,comosolhosazuisbrilhandodeprazer.

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– Esta noite você deve ficar em vigília sozinho –miou Tempestade deAreia, dando um empurrãozinho amigável em Pelo de Samambaia. –Obrigada,ClãdasEstrelas!Orestodenóspoderáterumanoitedefolga!O novo guerreiro estava emocionado demais para responder à altura,

masemitiuumrom-romprofundoefeliz.–Obr…obrigado,ListraCinzenta–gaguejou.–Eavocê,CoraçãodeFogo.Coração de Fogo se encheu de orgulho em ver o jovem enfim

transformado em guerreiro, quase como se ele fosse seu aprendiz.Compensava umpouco o fato de saber que jamais teria esse prazer comPata de Cinza. O Clã das Estrelas lhe reservara outro destino. Finda acerimônia, o cansaço o dominou. Ele ia voltar para a toca dos guerreirosquandoviuPatadeCinzamancando,vivaz,atéoirmão.– Parabéns, Pelo de Samambaia! – ela miou, os olhos azuis brilhando

enquantocobriadelambidasasorelhasdojovem.Orom-romdePelodeSamambaiafoihesitante,eseuolharpareciatriste.

–Vocêdeviaestaraquicomigo–elefaloubaixinho,fazendocomonarizumcarinhonapernamachucadadagata.–Não,estoubemassim–insistiuPatadeCinza.–Vocêvaiterdeserum

guerreiro por nós dois. E eu tenho de me estabelecer como a maiorcurandeiraqueestaflorestajáviu!CoraçãodeFogoolhoucomadmiraçãoparaagatacinza-escuro.Elesabia

queelaestavamuitocontentecomoaprendizdePresaAmarela.Elaseriaumaboaespecialista,mastambémteriasidoumaboaguerreira.Eradeboaíndole, não invejava o triunfo do irmão. Como sempre, vê-la mancandofaziaCoraçãodeFogoselembrardeGarradeTigre.Eleestavacertodequeorepresentanteeraculpadopeloacidentedagataetambémpelarecentetentativa de afogá-lo. Embora, hoje, Garra de Tigre tivesse lutado com aforça do Clã das Estrelas. Sem ele, o clã poderia ter perdido a batalha.Coração de Fogo perguntava a si mesmo: Se você provar que ele é umtraidor,quemvaidefenderoClãdoTrovão?

Depois do ataque, Coração de Fogo ficou aliviado por Listra Cinzentamanterapromessade ficarnosarredoresdoacampamento,patrulhando,caçando, ou ajudandoPresaAmarela e Pata de Cinza a repor os itens dafarmácia. Garra de Tigre nada comentou,mas Coração de Fogo esperavaqueeletivessenotado.Entretanto, na terceira manhã, Coração de Fogo acordou com um

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movimentononinhoaolado;aoabrirosolhos,aindatevetempodeveroamigosairdatocasorrateiramente.–ListraCinzenta?–elesussurrou,masogatodesapareceusemresponder.Com cuidadopara não perturbarTempestadedeAreia, que dormia do

outro lado da toca, Coração de Fogo se levantou e escorregou entre osgalhos.Aindacomosolhossemicerrados,saiuparaaclareiraeviuListraCinzentasumindonotúneldetojo.TambémviuRiscadeCarvão,agachadoaoladodapilhadepresafresca,olhandoparacima,comumratosilvestrependurado entre os dentes. Seus olhos estavam grudados na entrada dotúnel.Coração de Fogo sentiu um peso na barriga, como se tivesse engolido

umapedrafria.SeRiscadeCarvãoviraListraCinzentasair,GarradeTigrelogo seria informado e iria querer saber aonde, exatamente, o gato cinzatinhaido.Elepoderiaatésegui-loeflagrá-locomArroiodePrata.Quase sem se dar conta, Coração de Fogo começou a caminhar, com

energia, mas sem pressa. Passando pela pilha de presa fresca,cumprimentou:–Bomdia,RiscadeCarvão!Jávamossairparacaçar.OClãdas Estrelas ajuda a quem cedo madruga, você sabe! – Sem esperarresposta, ele entrou no túnel. Deixando a clareira, acelerou o passo,correndo até o alto da ravina. Já não podia ver Listra Cinzenta,mas seuodoreramuitoacentuadoe,semdúvida,levavaàsRochasEnsolaradas.MaselescombinaramdesóseencontraremQuatroÁrvores,elepensou.Coração de Fogo percorreu o local, ignorando os sons e odores das

presasnavegetaçãorasteira.Esperavaencontraroamigoefazê-lomudarde rumo antes que ele encontrasseArroio de Prata, no caso deGarra deTigre já estar pela floresta;mas, quando viu as Rochas Ensolaradas, nãohaviasinaldogatocinza.CoraçãodeFogoparoupertodasárvoresesorveuoar.ListraCinzentaestavaperto,comcerteza,eeletambémsentiaoodordeArroiodePrata,masoutrocheirosesobrepunhaaoscheirosdocasal,oquefezopelodeCoraçãodeFogoseeriçar–eracheirodesangue!Nessemomento,eleouviuumchorofraco,demedo,vindodasrochasà

frente, com certeza um gato em grande agonia. – Listra Cinzenta! – elegritou.Então,correueescalouo ladoinclinadodapedramaispróxima.Oqueviudoaltoofezescorregaraoestacar.Abaixo, em uma vala profunda entre a pedra em que ele estava e a

próxima,ArroiodePrataestavadeitadadelado.CoraçãodeFogoarregalouosolhos,horrorizado, eviuum forteespasmopercorrero corpodagata,

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fazendosuaspernassecontrair.Elaemitiuoutroberroterrível.–ListraCinzenta!–CoraçãodeFogogritou,arfando.O gato cinza, agachado ao lado da namorada, lambia freneticamente a

lateraldeseucorpo,quesubiaedescia.Eleergueuosolhosaoouviravozdoguerreiroamigo.–CoraçãodeFogo!Sãoos filhotes–os filhotesestãochegandoeestátudodandoerrado.VábuscarPresaAmarela!–Mas…–CoraçãodeFogoensaiouumprotesto,porémsuaspatas jáo

faziamdescer da rocha e voltar pelo trechode campo aberto, na direçãodasárvores.O guerreiro correu como nunca,mas,mesmo assim, uma parte de sua

mente, uma parte pequena e fria, lhe dizia que aquilo era o fim. Agora,todososclãsiamsaberdonamoroentreListraCinzentaeArroiodePrata.OqueEstrelaAzuleEstrelaTortafariamquandotudoterminasse?Antesdesedarconta,ele jáestavadevoltaaoacampamento.Desceua

ravinacorrendo,quaseatropelandoPatadeCinzanaentradadotúnel.Elase afastou com um miado de protesto, derrubando as ervas que tinhacoletado.–CoraçãodeFogo,oque…–OndeestáPresaAmarela?–eleperguntou,arfando.–PresaAmarela?–Aaprendizderepenteficoumaisséria,aopercebero

desesperodoguerreiro–ElafoiatéasRochasdasCobras.Éomelhorlugarparaencontrarmilefólio.O gato se recompôs para continuar a correr, mas parou, frustrado.

Levaria muito tempo até buscar a curandeira nas Rochas das Cobras.ArroiodePrataprecisavadeajudanaquelemomento!–Qualéoproblema?–miouPatadeCinza.–Háumagata,ArroiodePrata,nasRochasEnsolaradas.Elaestátendo

bebês,masalgumacoisaestáerrada.–Ah,queoClãdasEstrelasaajude!–exclamouPatadeCinza.–Euvou.

Espereaqui.Precisoapanharmedicamentos.–Eladesapareceunabocadotúnel de tojo. Coração de Fogo a esperou, arranhando o chão comimpaciência,atépercebernovamenteummovimentonotúnel.MasnãoeraPatadeCinza,eraPelodeSamambaia.–PatadeCinzamepediuparabuscarPresaAmarela–elefalouaopassar

porCoraçãodeFogo,subindoaravina.Enfim,PatadeCinzareapareceu.Entreosdentes,elatraziaummolhode

ervasembrulhadoemumafolha.Aoseaproximar,balançouacaudapara

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CoraçãodeFogo,emumsinalparaqueeletomasseadianteira.Cadapassoda jornada foium tormentoparaCoraçãodeFogo.Patade

Cinza fazia o possível,mas a pernamachucada não a deixava correr. E otempo parecia se esgotar. Com uma pontada de terror, Coração de Fogolembrouosonhoemqueumarainhaprateadaesemfocinhodesaparecia,deixandoseusbebêschorando,desamparados,noescuro.SeriaArroiodePrata?Assim que se vislumbraram as Rochas Ensolaradas, Coração de Fogo

pulouàfrentedePatadeCinza.Quandochegouaopédarocha,viuumgatonoalto, fitando a vala onde estavao casal. Ele sentiuo coração apertadoporgarrasgeladas.Semdúvida,eraGarradeTigre,comseucorpoenormee o pelo escuro. Risca de Carvão devia tê-lo avisado, e o representanteseguiraocheirodeListraCinzenta.CoraçãodeFogopassaraporelenasuarápidavoltaaoacampamento,masnãosederaconta.–CoraçãodeFogo–grunhiuGarradeTigre,virandoacabeçaenquantoo

guerreirogalgavaapedra–,oquevocêsabearespeitodisso?Oguerreiro avermelhadoolhouparabaixoe viuArroiodePrata ainda

deitada de lado, mas os grandes espasmos tinham se transformado emmovimentos fracos. Ela não gritava mais de dor; devia estar esgotada.ListraCinzentaestavaagachadopertodela.Eledeuumgemidobaixo,quevinha do fundo do peito, com os olhos amarelos fixos no focinho danamorada. Coraçãode Fogopensouque eles nãodeviam ter percebido apresençadeGarradeTigre.Antes queCoração de Fogopudesse responder, Pata de Cinza deslizou

pelarochae,esgueirando-sepelavala,ficouaoladodeArroiodePrata.Elacolocounochãoomaçodeervaseseinclinouparafarejararainhacinza-prateado.– Coração de Fogo! – ela chamou um momento depois. – Desça aqui!

Precisodevocê!Ignorandoumsibilar furiosodeGarradeTigre,CoraçãodeFogopulou

paraavala,machucando-seaoarranharasgarrasnarocha íngreme.Patade Cinza foi encontrá-lo. Ela trazia um dos filhotes, que tinha os olhosfechados e as orelhas achatadas contra a cabeça, o pelo cinza-escuroemplastradonocorpo.–Estámorto?–CoraçãodeFogoindagoubaixinho.–Não!–PatadeCinzacolocouofilhotenochãoefoiatéoguerreiro.–

Passealínguasobreocorpodele,CoraçãodeFogo!Aqueça-o,façaosangue

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delecircular.Depoisdessasinstruções,elaentrounoespaçoapertado,voltandopara

pertoda jovemmãe.Seucorpo impediaqueCoraçãodeFogovisseoqueestavaacontecendo,maseleouviuaaprendizdecurandeiramiarcomavozreconfortanteeumaperguntaansiosadeListraCinzenta.CoraçãodeFogo se inclinou sobreo filhote, passando a língua sobreo

pequeno corpo. Por um bom tempo, não houve resposta, e o guerreirocomeçouaacharquePatadeCinza tinhaseenganado,queobebêestavamesmomorto.Então,um leve tremorpercorreuo corpinhodobebê,queabriuabocaemummiadosemsom.–Estávivo!–eleexclamou.– Bem que eu disse – Pata de Cinza observou. – Continue passando a

língua sobre ele. O outro vai chegar a qualquer momento. Muito bem,ArroiodePrata…vocêestáindobem.Garra de Tigre descera da rocha e estava na boca da vala, furioso. – É

umagatadoClãdoRio.Quemvaimeexplicaroqueestáacontecendo?Antesquealguémrespondesse,PatadeCinzasoltouumgritodetriunfo.

–Vocêconseguiu,ArroiodePrata!–MomentosdepoiselaseviroucomosegundobebêmiudinhoentreosdenteseocolocounafrentedeGarradeTigre.–Vamos.Passealínguanele.GarradeTigreaolhoucomraiva.–Nãosoucurandeiro.Osolhosazuisde

Pata de Cinza brilhavamquando ela rodeou o representante. – Você temuma língua,não tem?Poisuse-a, seumontedepelo inútil.Ouquerqueobebêmorra?CoraçãodeFogoseencolheu,achandoqueGarradeTigreiapularsobre

agataegolpeá-lacomsuasgarraspoderosas.Emvezdisso,ogatomalhadoinclinouaenormecabeçaecomeçoualamberosegundofilhote.PatadeCinzaimediatamentevoltouparaajudarArroiodePrata.Coração

de Fogo ouviu seu miado: – Você precisa engolir essa erva. Tome aqui,Listra Cinzenta, faça-a engolir omáximo possível. Precisamos estancar ahemorragia.Coração de Fogo parou por um instante de passar vigorosamente a

línguanofilhote,queagorarespiravadeformaregularepareciaestarforade perigo. Ele gostaria de saber o que estava acontecendo na vala, aliadiante.OuviuPatadeCinzagrunhir: –Aguente,ArroiodePrata! – eummiadoapavorado,quaseumgrito,queveiodeListraCinzenta:–ArroiodePrata!Aoperceberosofrimentodoamigo,CoraçãodeFogonãopôdemaisficar

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longe.DeixouofilhoteeseesforçouparaprosseguiratéseagacharaoladodePatadeCinza.ChegouatempodeverArroiodePratalevantaracabeçae, sem forças, passar a língua no focinho do namorado. – Adeus, ListraCinzenta–elabalbuciou.–Amovocê.Cuidedenossosfilhotes.Ocorpoprateadodagatasacudiu-seviolentamente.Acabeçacaiupara

trás,aspatastiveramumespasmoeelaficouimóvel.–ArroiodePrata!–PatadeCinzafaloubaixinho.–Não,ArroiodePrata,não.–ErasuaveomiadodeListraCinzenta.–Não

sevá.Nãomedeixe.–Eleseinclinousobreocorposemvida,acariciando-ocomonariz.Elacontinuousemsemexer.– Arroio de Prata! – Listra Cinzenta recuou e deixou a cabeça pender

paratrás.Seuslamentosdetristezaecoavamnosilêncio.–ArroiodePrata!Pata de Cinza agachou-se sobre o corpo por mais alguns momentos,

tocando o pelo de Arroio de Prata, até que admitiu a derrota. Ela selevantoueseusolhosazuis,desoladosefrios,olhavamparaonada.Coração de Fogo foi até a aprendiz. – Pata de Cinza, os filhotes estão

salvos–elemurmurou.Oolhardagata fezocoraçãodoguerreirocongelar.–Masamãedeles

estámorta.Euaperdi.AsrochasaindaecoavamoterrívellamentodeListraCinzenta.Garrade

Tigre apareceu,passandoaceleradopelosoutros gatos, usandoa enormepataparadarumtapaatrásdaorelhadoguerreirocinza.–Parecomessachoradeira.Listra Cinzenta ficou em silêncio,mais de surpresa e exaustão, pensou

CoraçãodeFogo,doqueporobediênciaàordemdorepresentante.Garra de Tigre olhou ao redor, encarando a todos. – Será que agora

alguémvaimedizeroqueestáacontecendo?ListraCinzenta,vocêconheceessagatadoClãdoRio?Oguerreirocinzalevantouoolhar,agoraopacoefrio,comoseseusolhos

fossemseixos.–Euaamo–elesussurrou.–Oque…Essesfilhotessãoseus?–GarradeTigrepareciasurpreso.–MeusedeArroiodePrata.–Umalevecentelhadedesafioseinflamou

emListraCinzenta. – Sei o quevocê vai dizer,GarradeTigre.Nãopercatempoemexplicar.Nemligo.–Elevoltouparao ladodeArroiodePrata,tocando-lheopelocomonariz,murmurandopalavrascarinhosas.Enquantoisso,PatadeCinzajáestavabemobastanteparaexaminaros

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dois bebês. – Acho que eles vão sobreviver – elamiou; no entanto, paraCoraçãodeFogo, ela pareciamenos segura. –Precisamos levá-losparaoacampamento,paraencontrarumarainhaqueosamamente.GarradeTigregirouocorpoparaencará-la.–Vocêestálouca?Porqueo

Clã do Trovão deve cuidar deles? São mestiços. Nenhum clã vai querersaberdeles.PatadeCinzaoignorou.–CoraçãodeFogo,leveeste–elamandou.–Eu

levoooutro.Ogatoavermelhadomovimentouosbigodes,concordando,mas,antesde

pegar o filhote, foi até Listra Cinzenta e apertou seu corpo contra o doamigo.–Vocêquervir?O guerreiro cinza fez que não. – Preciso ficar e enterrá-la – falou

baixinho.–Aqui,entreoClãdoRioeoClãdoTrovão.Depoisdisso,nemseupróprioclãvaiquerercuidardeseuvelório.Coração de Fogo, solidário, sentiu o peito doer, mas nada mais podia

fazer.–Voltologo–prometeu.Commaisdelicadezaainda,semseimportarque Garra de Tigre ouvisse, acrescentou: – Vou velar por ela com você,ListraCinzenta.Elafoicorajosa,eseiquetambémestavaapaixonada.Nãoseouviuresposta.CoraçãodeFogoapanhouofilhotecomosdentes

esaiu,deixandoListraCinzentaaoladodagataqueeletinhaamadomaisque do que seu próprio clã,mais do que a honra,mais do que a própriavida.

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CAPÍTULO22

GARRA DE TIGRE SE ADIANTOU E, QUANDO Coração de Fogo e Pata de CinzachegaramaoacampamentocomosfilhotesdeArroiodePrata,oclãinteirojásabiaoquetinhaacontecido.Guerreiroseaprendizes,reunidosforadastocas,observavamemsilêncio.CoraçãodeFogoquasepodiasentiroodordasurpresaedaincredulidadedetodos.EstrelaAzul,naentradadoberçário,pareciaesperá-los.CoraçãodeFogo

achava que ela poderia mandá-los embora, recusando-se a cuidar defilhotesdeoutroclã,maselaapenasmioutranquilamente:–Entrem.Nocentrodamoitadeamoreiras, tudoestavaescuroesilencioso.Cara

Rajada, formando um monte de pelo cinza e amarelo-escuro, dormiaenroladaà voltados filhotes, comFilhotedeNuvembrilhandoentre elescomo umamancha de neve. Perto, em um ninho demusgo forrado compenasmacias,FlorDouradaamamentavaseusnovosbebês.Umeracordelaranjadesbotado,comoamãe;ooutro,malhadoescuro.–FlorDourada–sussurrouEstrelaAzul–,tenhoumpedidoalhefazer.

Vocêpoderiaamamentarmaisdois?Acabamdeperderamãe.Arainhalevantouacabeça.Seuolharsurpresoseabrandouquandoela

viuos indefesospedacinhosdepeloqueCoraçãodeFogoePatadeCinzatraziamnaboca.Elestinhamcomeçadoasecontorcerdebilmente,soltandomiadinhosagudosdemedoefome.–Achoque…–elacomeçouafalar.– Espere – Cauda Sarapintada a interrompeu; ela entrara no berçário

logodepoisdeCoraçãodeFogo.–Antesdeconcordar,FlorDourada,peçaaEstrelaAzulquelhecontequemsãoospaisdeles.Coração de Fogo sentiu uma pontada de ansiedade. Embora Cauda

Sarapintada fosse uma boa mãe, seu temperamento era feroz, e elacertamente não veria com bons olhos tomar conta de filhotes que nãopertenciamnemaumclãnemaoutro.– Eu não esconderia dela uma coisa assim – Estrela Azul miou

calmamente.–FlorDourada,sãoosfilhotesdeListraCinzenta.AmãeeraArroiodePrata,doClãdoRio.Os olhos da rainha se arregalaram de espanto, e Cara Rajada,

despertando,empinouasorelhas.– Listra Cinzenta deve ter escapado durante luas para vê-la – sibilou

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CaudaSarapintada.–Quegato leal faria isso?Ambos traíramseusclãs.Osanguedessesbebêséruim.– Bobagem – Estrela Azul cuspiu em resposta, o pelo do cangote se

eriçandoderepente.CoraçãodeFogoestremeceu–rarasvezesviraalídertãozangada.–NãoimportaoquepensamosdeListraCinzentaedeArroiodePrata,os filhotessão inocentes.Vocêvaiamamentá-los,FlorDourada?Elesvãomorrersenãotiveremumamãe.A gata hesitou, depois soltou um longo suspiro. – Como dizer não? Eu

tenhobastanteleite.Cauda Sarapintada bufou, desaprovando, e virou as costas de forma

incisiva, enquanto Coração de Fogo e Pata de Cinza, delicadamente,colocavamosfilhotesnoninho.Arainhaalaranjadaseinclinou,guiando-ospara a sua barriga, e o choro sentido dos filhotes parou quando eles seaninharamnocalordocorpodagataeencontraramumlugarparamamar.–Muitoobrigada,FlorDourada–ronronouEstrelaAzul.CoraçãodeFogoreparouquealíderolhavaosbebêscomumaexpressão

desaudade.Estariapensandonosseusfilhotesperdidos?,eleseperguntou,assaltado novamente pelas dúvidas sobre o destino deles. Não poderiamser,afinal,PédeBrumaePelodePedra,queestavamvivosebemnoClãdoRio?Seráqueelafaziaalgumaideiadisso?SeuspensamentosforaminterrompidosquandoPatadeCinza,virando-

seabruptamente,saiudatoca.CoraçãodeFogofoiatrásdelaeaencontrouagachada,acabeçaapoiadanaspatasdafrente.–Qualéoproblema?–ArroiodePratamorreu.–Ogatomalouviuarespostaabafada.–Eua

deixeimorrer.–Issonãoéverdade!PatadeCinzaolhouparacima,desanimada.Seusolhoserampoçasazuis

detristeza.–Souumacurandeira.Deviasalvarvidas.– Você salvou os bebês – o guerreiro lembrou, chegandomais perto e

apertandoseufocinhocontraodagata.–Masnãoconseguisalvá-la.UmaondadecompaixãoinvadiuCoraçãodeFogo.Eleentendiaajoveme

querialhedizerparanãoseculpar,masnãoencontravapalavras.Sentindo-seinútiletriste,começoualamberagatacomdelicadeza.–Oqueestáacontecendo?–EraPresaAmarela,umsemblanteperplexo

em seu largo focinho cinza. –Que história é essa sobre Listra Cinzenta e

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umarainhadoClãdoRio?A jovemcurandeira sequerpercebeusuamentoraali.CoubeaCoração

deFogoexplicar.– Pata de Cinza foi brilhante – ele contou à anciã. – Sem ela, aqueles

bebêsteriammorrido.PresaAmarelaassentiu.–EuviGarradeTigre–eladisse,irritada.–Pata

de Samambaia estavame levando às Rochas Ensolaradas quando demoscomele.Eleestáfuriosoporcausadosfilhotes.Masnãocomvocê,PatadeCinza. Sabe que você cumpriu o seu dever, como qualquer outrocurandeiro.PatadeCinzalevantouacabeçaeolhouparaaanciã.–Nuncasereiuma

curandeira–ela cuspiu, amarga. –Souuma inútil.DeixeiArroiodePratamorrer.– O quê? – rugiu Presa Amarela, zangada, arqueando o corpomagro e

cinza.Essaideiaébemdignadeummiolodecamundongo.–PresaAmarela…–CoraçãodeFogocomeçouaprotestarporcausada

rispidezdotomdela,masacurandeiraoignorou.–Vocêfezomelhorpossível,PatadeCinza–elagrunhiu.–Nenhumgato

fariamais.–Masnãofoibomosuficiente–ajovemassinalou,aborrecida.–Sevocê

estivesselá,poderiatê-lasalvado.–Oquê?FoioClãdasEstrelasquelhedisseisso?PatadeCinza,alguns

gatos morrem, e ninguém pode fazer nada. – Ela soltou um miadoenferrujado,meiorindo,meioralhando.–Nemmesmoeu.–Maseuaperdi,PresaAmarela.–Eusei.Eessaéumaliçãodifícil.–Agorahaviapoucacomplacênciano

miado da anciã. – Mas eu já perdi pacientes antes, mais do que consigocontar.Todosos curandeirosdomundoperderam.Vocêvive com isso.Esegue adiante. – Com seu focinho cheio de cicatrizes, ela empurrou comdelicadezaa jovemgata,atéqueela,vacilante,se levantasse.–Vamos.Hátrabalhoafazer.Orelhinhaestáreclamandodenovodedornasjuntas.Ao guiar Pata de Cinza à sua toca, ela parou um pouco e falou com

CoraçãodeFogoporcimadoombro.–Nãosepreocupe.Elavaificarbem.O guerreiro observou as duas gatas atravessando a clareira e

desaparecendonatocadacurandeira.–VocêpodeconfiaremPresaAmarela.–Aoouviressemiadotranquilo,

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Coração de Fogo se virou e viu Estrela Azul. – Ela vai cuidar de Pata deCinza.A líder estava sentada fora do berçário, a cauda enrolada

cuidadosamente sobre as patas. Apesar de toda a agitação da morte deArroio de Prata e da descoberta do relacionamento proibido de ListraCinzenta,elapareciacalmacomosempre.–EstrelaAzul–CoraçãodeFogomiou,hesitante–,oquevaiacontecer

comListraCinzentaagora?Elevaisercastigado?Alíder,pensativa,admitiu:–Nãopossoresponderainda.Precisodiscutir

comGarradeTigreeosoutrosguerreiros.– Listra Cinzenta não conseguiu resistir – deixou escapar Coração de

Fogo,lealaoamigo.–Nãoconseguiu resistir a trair seu clãeoCódigodosGuerreirospara

estarcomArroiodePrata?–OsolhosdeEstrelaAzulbrilhavam,masotomnãoeratãobravoquantooguerreiroesperava.–Prometoquenadafareiatéqueeleestejamenosabalado.Temosdeconsiderartodaaquestãocommuitocuidado.– No entanto, você não está realmente surpresa, está? – ele ousou

indagar.–Vocêsabiaoqueestavaacontecendo?–Decertaforma,elenãoesperava resposta. A líder o deixou estático por vários tique-taques decoraçãocomseupenetranteolharazul.Haviasabedoriaemseusolhos,elepercebeu,eatémesmodor.–Sim,eususpeitava–elamiouporfim.–Éfunçãodeumlídersaberdas

coisas.EnãoficoceganasAssembleias.–Então…então,porquenãoimpediu?–Eu esperavaqueListraCinzenta se lembrasseda lealdade ao clãpor

contaprópria.Sabiaque,mesmoquenãoofizesse,aquiloterminaria,maiscedooumaistarde.Sónãoqueriaumfimtãotrágicoparaosdois.EmboranãosaibacomoListraCinzentaterialidadocomofatodeverseusfilhotescrescendoemoutroclã.–Vocêentende isso,nãoé?–AspalavrassaíramantesqueCoraçãode

Fogopensassenoqueestavadizendo.–Aconteceucomvocê.Estrela Azul se empertigou e, diante da repentina chama de raiva nos

olhos da líder, Coração de Fogo vacilou.Depois, ela relaxou, e a raiva foisubstituídaporumolhardistantedelembrançaeperda.– Você adivinhou – ela murmurou. – Achei que isso ia acontecer. É

verdade,CoraçãodeFogo.EusouamãedePédeBrumaePelodePedra.

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CAPÍTULO23

–VENHA!–ESTRELAAZULORDENOU.ELACOMEÇOUAcaminhardevagar,cruzandooacampamentoatésuatoca,nãodandoescolhaaCoraçãodeFogosenãosegui-la.Quandochegaramlá,disseaelequesesentasseese instalounacama.–Oqueexatamentevocêsabe?–elaperguntouaoguerreiro,seuolhar

azulprocurandoodele.–SóseiqueCoraçãodeCarvalho,certavez,levoudoisfilhotesdoClãdo

Trovão ao Clã do Rio. Ele disse a Poça Cinzenta, a rainha que osamamentou,quedesconheciaaorigemdeles.Estrela Azul fez um sinal com a cabeça, ela agora tinha o olhar mais

suave. – Sabia que Coração de Carvalho não me trairia. Ele era o pai –acrescentou.–Vocêdeduziuissotambém?CoraçãodeFogofezquenão.Maspassavaafazersentidoodesesperode

Coração de Carvalho para que Poça Cinzenta cuidasse dos filhotesindefesos.–Oqueexatamenteaconteceucomseusbebês?–eleindagou,acuriosidade fazendo-o baixar a guarda. – Coração de Carvalho não osroubou,roubou?Asorelhasdalíderdoclãseagitaram,impacientes.–Claroquenão.–Ela

o fitou com o olhar subitamente encoberto por uma dor que Coração deFogosequerimaginava.–Não,nãoroubou.Euabrimãodeles.Oguerreiroaolhoufirme,incrédulo.Sólherestavaesperaraexplicação.–MeunomedeguerreiraeraPeloAzul.Comovocê,tudooqueeumais

queriaeraserviraomeuclã.CoraçãodeCarvalhoeeunosconhecemosemumaAssembleia,malcomeçaraaestaçãosemfolhas.Éramosaindajovense tolos. O namoro não durou muito. Quando descobri que teria bebês,minha intenção era entregá-los ao Clã do Trovão. Nenhum gato meperguntouquemeraopai–seumarainhanãoquerdizer,temessedireito.–Eaí…?–CoraçãodeFogoquissaber.Oolhardagataestavafixoemumpontodistante,comoseestivesseno

passado.–Entãoorepresentantedonossoclã,ManchaAmarela,decidiuseaposentar.Tiveasortedeserescolhidasuasucessora.NossacurandeirajámerevelaraqueoClãdasEstrelastinhaumgrandedestinoparamim.Maseutambémsabiaqueoclãjamaisaceitariacomorepresentanteumarainha

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comfilhotesparaamamentar.–Entãovocêabriumãodeles?–CoraçãodeFogonãodisfarçouotomde

incredulidade. – Não podia ter esperado até deixarem o berçário? Comcerteza ainda poderia ser a representante quando os filhotes estivessemumpoucomaioreseindependentes.–Nãofoiumadecisãofácil.–EstrelaAzuldisse,comavozmarcadapela

dor. – Aquela foi uma amarga estação sem folhas. O clã praticamentepassavafome,eeumaltinhaleiteparaalimentarmeusbebês.Sabiaque,noClã do Rio, seriam bem cuidados. Naquela época, o rio estava cheio depeixes,eosgatosdoClãdoRiojamaispassavamfome.–Masficarsemeles…–Oguerreiroficousurpresocomaagudezadador

quesentiu,emsolidariedade.–Vocênãoprecisamedizercomofoidifícilaminhaescolha.Adecisão

me custou muitas noites de sono. O que seria melhor para os filhotes…melhorparamim…melhorparaoclã.– Não havia outros guerreiros aptos para o cargo de representante? –

CoraçãodeFogoaindarelutavaemaceitarqueEstrelaAzultivessesidotãoambiciosaapontodedesistirdosprópriosfilhos.A lídermovimentou o queixo, desafiadora. – Ah, claro. Havia Garra de

Cardo. Era um ótimo guerreiro, forte e valente. Mas a solução que elepropunhaparatodososproblemasera lutar.Seráqueeudeveriaficardefora,apenasobservando,enquantoelesetornavarepresentantee,depois,líder, forçando o clã a entrar em guerras desnecessárias? – Ela abanou acabeça,triste.–Elemorreucomoviveu,CoraçãodeFogo,poucasestaçõesantesdevocêchegar,atacandoumapatrulhadoClãdoRionafronteira.Foiselvagem e arrogante até o final. Eu não podia ficar parada e deixá-lodestruirmeuclã.–VocêmesmaentregouosbebêsparaCoraçãodeCarvalho?–Entreguei.FaleicomeleemumaAssembleia,eeleaceitoucuidardeles.

Assim, uma noite, escapei do acampamento e os levei até as RochasEnsolaradas. Coração de Carvalho estava esperando, e cruzou o rio comdoisdosbebês.–Doisdosbebês?–CoraçãodeFogoficouperturbado.–Querdizerque

erammais?–Eramtrês.–EstrelaAzulcurvouacabeça;malseouviaseumiado.–O

terceiroerafracodemaisparasuportarajornada.Morreunosmeusbraços,pertodorio.

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–Oquevocêdisseaorestodoclã?–CoraçãodeFogovoltouapensarnaAssembleia, quando Retalho dissera apenas que Estrela Azul tinha“perdido”osfilhotes.–Eu…eufizparecerqueelestinhamsidolevadosdoberçárioporuma

raposa ou um texugo. Fiz um buraco na parede antes de sair e, quandovoltei,dissequeforacaçareosdeixaradormindo,asalvo.–Todoseucorpotremia,eCoraçãodeFogopercebeuqueaconfissãoestavacausandomaisdoraEstrelaAzuldoqueaperdadeumavida.–Todososgatosprocuraramporeles.Eeu também,embora soubesse

quenãohaviaesperançadeencontrá-los.Oclã ficouarrasadopormim.–Ela deixou a cabeça pender sobre as patas. Esquecendo por um instanteque ela era sua líder, Coração de Fogo se aproximou e passou a línguacarinhosamentenaorelhadeEstrelaAzul.Maisumavezeleselembroudeseusonho,edarainhasemfocinho,que

desaparecia e deixava os seus filhotes chorando. Ele imaginara que fosseArroiodePrata,masagorapercebiaqueeratambémEstrelaAzul.Osonhoforaprofeciaememóriadoclã.–Porquevocêestámedizendoisso?–eleperguntou.Quando Estrela Azul levantou o olhar, Coração de Fogo mal pôde

suportaratristezaqueeletransmitia.– Por muitas estações não pensei nos filhotes. – Tornei-me

representante,depoislíder,emeuclãprecisavademim.Mas,ultimamente,comaenchenteeoriscoparaoClãdoRio,etambémporsuasdescobertas,Coração de Fogo, eume vi novamente em uma situação que já conheciamuitobem…EagoraquemaisdoisfilhotessãometadeClãdoRio,metadeClãdoTrovão,quemsabe,destavez,eupossatomarmelhoresdecisões.–Masporquecontarparamim?–CoraçãodeFogorepetiu.–Talvezporque,depoisdetantotempo,euqueiraqueumgatosaibaa

verdade –miou Estrela Azul, franzindo ligeiramente a testa. – Achei quevocê, entre todos, poderia compreender. Às vezes, não há uma escolhacerta.CoraçãodeFogo,porém,nãotinhacertezadeterentendido.Suacabeça

girava. Parte dele imaginava a jovem guerreira, Pele Azul, valente eambiciosa, determinada a dar omelhor de si para o clã,mesmoque issosignificassesacrifíciosinimagináveis.Aoutraparteviaamãequechoravapelosfilhotesabandonadostantotempoatrás.Eoqueprovavelmenteeramaisrealparaeledoquetudoisso,alídercheiadequalidadesquetinhase

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decididopeloqueachavaseromelhorequesofrerasozinhaadordessaresolução.–Vouguardaroseusegredo–eleprometeu,percebendoaconfiançaque

eladepositaraneleaolherevelarsuahistória.–Obrigada.Temostemposdifíceispelafrente.Oclãnãoprecisademais

problemas.–Elaselevantoueseespreguiçou,comosetivesseestadotodaenroladaedormindopormuitotempo.–AgoraprecisofalarcomGarradeTigre.Evocê,CoraçãodeFogo,émelhorprocurarseuamigo.

QuandoCoraçãodeFogovoltouàsRochasEnsolaradas,osolcomeçavaasepôr,transformandoorioemumafaixadefogorefletido.ListraCinzentaestavaagachadoaoladodeumpunhadodeterrarecém-reviradanoaltodamargemdorio,oolharfixonaáguaquebrilhava.–Euaenterreinabeiradaágua–ele sussurrouparaCoraçãodeFogo

quando este foi se sentar a seu lado. – Ela amava o rio. – Ele levantou acabeça para ver as primeiras estrelas do Tule de Prata. – Ela agora estácaçandocomoClãdasEstrelas–elemiou,comavozgentil.–Umdiavoureencontrá-la,eficaremosjuntos.Coração de Fogo não conseguia falar. Estreitou seu corpo junto ao do

amigo e os dois gatos ficaram agachados, em silêncio, enquanto a luzvermelho-sangueenfraquecia.–Paraondevocêlevouosfilhotes?–ListraCinzentamiou.–Deviamser

enterradoscomela.–Enterrados?Entãovocênãosabe?Elesestãovivos.Listra Cinzenta fitou-o, a boca aberta, os olhos dourados começando a

brilhar.–Estãovivos–os filhotesdeArroiodePrata–osmeus filhotes?Ondeelesestão?–NoberçáriodoClãdoTrovão.–CoraçãodeFogodeu-lheumarápida

lambida.–FlorDouradaosestáamamentando.–Maselanãovaificarcomeles,vai?ElasabequesãofilhosdeArroiode

Prata?–Todoo clã sabe – Coraçãode Fogodisse, relutante. –GarradeTigre

tratoudecontar.MasFlorDouradanãoculpaosfilhotes,nemEstrelaAzulosconsideraresponsáveis.Eles terãooscuidadosdequeprecisam,ListraCinzenta,nãosepreocupe.ListraCinzentalevantou-secomdificuldade,ocorpoenrijecidodepoisda

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longavigília.Fitouoamigocomosemblantecobertodedúvidas,comosenão pudesse acreditar que o Clã do Trovão fosse realmente aceitar osbebês,edisse:–Querovê-los.–Venhacomigo,então–miouCoraçãodeFogo,aliviadoporverogato

cinzanovamenteprontoparaencararoclã.–EstrelaAzulmeencarregoudelevarvocêparacasa.Eleseguiunafrente,atravésdaflorestaquecomeçavaaescurecer.Listra

Cinzenta o seguiu, mas sempre olhando para trás, como se não pudessesuportaraideiadeseafastardeArroiodePrata.Iaemsilêncio,eCoraçãodeFogoodeixoucomsuaslembranças.Quando eles chegaram ao acampamento, os grupos de guerreiros e

aprendizes curiosos, reunidos para comentar o assunto, já tinham sedispersado, e tudo parecia normal para uma noite quente da estação dorenovo.PelodeSamambaiaePelagemdePoeiraestavamagachadospertodeumcanteirodeurtiga,partilhandoumapeçadepresafresca.Doladodeforadatocadosaprendizes,PatadeEspinhoePataBrilhantebrincavamdelutar, observados por Pata Ligeira. Garra de Tigre e Estrela Azul nãoestavamàvista.Coração de Fogo deu um suspiro de alívio. Queria que Listra Cinzenta

ficasse em paz, pelomenos até visitar os bebês, sem ser perturbado poracusaçõesouhostilidade.No caminho para o berçário, passaram por Tempestade de Areia. Ela

parou de repente, alternando o olhar entre Coração de Fogo e ListraCinzenta.– Olá! – Coração de Fogo miou, tentando parecer amigável como de

costume. – Estamos indo visitar os bebês. Vamos nos encontrar na tocadepois?–Você,sim.–TempestadedeAreiagrunhiu,comumolharraivosopara

ListraCinzenta.–Masele,tratedemantê-lolongedemim.–Elaseafastou,comacabeçaeacaudaerguidas.O guerreiro avermelhado sentiuumapertono coração. Lembrou-sede

comoTempestadedeAreiaohostilizaranasuachegadaaoclã.Demoraramuito para ela se tornar menos formal. Quanto tempo levaria para elavoltaratratarListraCinzentaamistosamente?Ogatocinzacolouasorelhasàcabeça.–Elanãomequeraqui.Nenhum

gatoquer.–Euquero–CoraçãodeFogomiou,esperandotertransmitidoforçaao

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amigo.–Vamos,vamosverseusfilhotes.

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CAPÍTULO24

CORAÇÃODEFOGOPULOUDEUMAPEDRAAOUTRA,cruzandoorio,quecorriaveloz.As águas tinham recuado, as pedras estavam de novo visíveis. Era o diaseguinteàmortedeArroiodePrata;océuestavacinzentoecaíaumagaroafina,comoseoClãdasEstrelastambémestivessedeluto.EleialevaranotíciadamortedeArroiodePrataaoClãdoRio,embora

não tivessepedidopermissãoaEstrelaAzul.Escapulirasemdizernadaaninguémporqueachavaqueoclãdarainhatinhaodireitodesaberoqueacontecera.Esuspeitavaqueorestodeseupróprioclãnãopensavacomoele.Ao chegar à margem oposta, Coração de Fogo manteve a cabeça

levantada, buscando no ar cheiros recentes. Captou um odor quaseimediatamente e, um tique-taque de coração depois, um pequeno gatomalhadosurgiudassamambaiasnoaltodocaminho.Ele hesitou, parecendo assustado, antes de deslizar pelamargem para

confrontaroguerreiro:–VocêéCoraçãodeFogo,nãoé?–elemiou.–EuoreconhecidaúltimaAssembleia.Oquevocêestáfazendodonossoladodorio?O jovem tentava parecer confiante, mas o guerreiro de pelo rubro

percebia o nervosismo em sua voz. Era um aprendiz, Coração de Fogoimaginou,ansiosoporestarforadoacampamentosemseumentor.–Nãoestouaquiparabrigarnemparaespionar.PrecisofalarcomPéde

Bruma.Vocêpodeirchamá-laparamim?O gato hesitou novamente, como se quisesse protestar. Depois,

acostumadoaobedeceràsordensdosguerreiros,beirouorioemdireçãoaoacampamentodoseuclã.CoraçãodeFogooobservouseafastare,então,subiu a margem para se esconder nas samambaias, à espera de Pé deBruma.Elademorouumbocado,mas,enfim,CoraçãodeFogoavistouumaforma

familiar, azul-acinzentada, que vinha apressada encontrá-lo. Era familiarporcausadeEstrelaAzul,elesedeuconta,comumsobressalto.Afilhadalídererapraticamentesuacópia.Foiumalívioverqueelaestavasozinha.Quandoelaparouparafarejaroar,eleachamoubaixinho:–PédeBruma!Aquiemcima!As orelhas da gata se contraíram. Alguns instantes depois, ela abriu

caminho pelas samambaias, aproximou-se e perguntou, com ar

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preocupado:–Oqueé?ÉsobreArroiodePrata?Nãoavejodesdeontem.CoraçãodeFogosentiucomoseumossoestivessepresoàsuagarganta.

Engoliu em seco. – Pé de Bruma – ele miou –, são más notícias. Sintomuito…ArroiodePratamorreu.Sem acreditar, a gata fixou nele os olhos azuis arregalados. –Morreu?

Não pode ser! – Sem esperar resposta, ela acrescentou, ríspida: – AlgumdosguerreirosdoClãdoTrovãoapegou?–Não,não.ElaestavanasRochasEnsolaradascomListraCinzenta,eos

bebêscomeçaramanascer.Algodeuerrado…haviamuitosangue.Fizemostodoopossível,mas…Ah,PédeBruma,sintomuito.Enquanto ele explicava, a dor inundou os olhos da gata. Ela soltou um

longo e profundo lamento, escondendo a cabeça entre os ombros earranhando o chão com as garras. Coração de Fogo se aproximou paratentarconfortá-laesentiuqueelaestavarijadetensão.Nãohaviapalavrascapazesdeconsolá-la.Porfim,oterrívellamentoarrefeceu,ePédeBrumarelaxouumpouco.–

Eusabiaquenadadebompoderiavirdali–elasussurrou.Nãohaviaraivaouacusaçãonavoz,apenas tristezaedesgosto.–Eudisseparaelanão irencontrarListraCinzenta,masfoiinútil.Eagora…Nãopossoacreditarquenuncamaisaverei.– Listra Cinzenta a enterrou nas Rochas Ensolaradas. Se quiser, nos

encontramosumdiadesseseeulhemostroolugar.PédeBrumaassentiu.–Gostariamuito,CoraçãodeFogo.–Osfilhotesestãovivos–oguerreiroacrescentou,natentativadealiviar

umpoucoadordarainha.– Os bebês de Arroio de Prata? – Pé de Bruma sentou-se, alerta

novamente.–Doisbebês.Elesvãoficarbem.PédeBrumasemicerrouosolhosderepente,emumaprofundareflexão.

–OClãdoTrovãovaiquererficarcomeles,jáqueelessãometadeClãdoRio?–Umadasnossasrainhasosestáamamentando.Oclãestáfuriosocom

ListraCinzenta,masnenhumgatosevingarianosbebês.– Compreendo. – Pé de Bruma ficou em silêncio por um tempo, ainda

pensativa,eentãosepôsdepé.–Precisovoltareinformaraoclã.ElesnemsabemdeListraCinzenta.Nãoconsigoimaginaroquevoudizeraopaide

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ArroiodePrata.CoraçãodeFogoentendiaoqueelaqueriadizer.Muitospaisguerreiros

se afastavam de seus filhotes, mas Estrela Torta mantivera um vínculoestreitocomArroiodePrata.Atristezaporsuamortesemisturariaàraivaporelatertraídooclã,aoescolherListraCinzentacomocompanheiro.Pé de Bruma deu uma lambida rápida na testa de Coração de Fogo. –

Muitoobrigada–miou.–Muitoobrigadaportervindomedizer.Entãoelase foi,deslizandorapidamentepelassamambaias.Coraçãode

Fogo esperou até perdê-la de vista para descer a costa pedregosa eatravessardevoltapelocaminhodepedras,rumoaseuterritório.

AfomefezCoraçãodeFogodespertar.Espiandoatravésdaluzfracadatocadosguerreiros,eleviuqueListraCinzentajádeixaraoninho.Irritado,pensou:Ah,não!ElesaiuparaencontrarArroiodePratadenovo!Entãoselembrou.Duasmadrugadastinhamsepassadodesdeamortedagataprateada.O

choque causado por seu romance com Listra Cinzenta começava adesaparecer, embora nenhum dos guerreiros, exceto Coração de Fogo ePelo de Samambaia, estivesse falando com Listra Cinzenta ou saindo empatrulhascomele.EstrelaAzulaindanãotinhaanunciadoapunição.CoraçãodeFogoseespreguiçouebocejou.Durantetodaanoiteseusono

tinha sidoperturbadoporListraCinzenta, que se contorcia e gemia,masseucansaçosesobrepusera.Não imaginavacomooclã se recuperariadogolpe que sentira com a descoberta da traição de Listra Cinzenta. Haviauma atmosfera de incerteza e desconfiança embotando as conversas,reduzindoosconhecidosrituaisdetrocadelambidas.Com um movimento determinado, Coração de Fogo saiu através dos

galhos e foi até a pilha de presas frescas. O sol nascente banhava oacampamento com uma luz dourada. Quando se abaixou para pegar umgordoratosilvestre,ouviu:–CoraçãodeFogo!CoraçãodeFogo!Filhote de Nuvem vinha do berçário, correndo pela clareira em sua

direção.CaraRajadaeorestodeseusfilhotesoseguiam,caminhandomaisdevagar,e,parasurpresadeCoraçãodeFogo,EstrelaAzulestavacomeles.–CoraçãodeFogo!–FilhotedeNuvemarfava,deslizandoatépararna

frentedele.–Vouseraprendiz!Vouseraprendizagora!Coração de Fogo largou o rato silvestre. Sentiu-se inevitavelmente

contagiadopelaempolgaçãodosobrinho,massentiatambémumapontada

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de culpa por ter esquecido completamente que Filhote de Nuvem seaproximavadesuasextalua.– É claro que você vai ser omentor dele, não é? –miou Estrela Azul,

assimqueseaproximou.–Éhoradevocêteroutroaprendiz.EmboranãofosseomentordePelodeSamambaia,fezumbomtrabalhocomele.–Muitoobrigado–miouoguerreiro,curvandoacabeçaparaagradecero

elogio.Era inevitávelpensar com tristezaemPatadeCinza. Sentia-seemparteresponsávelpeloacidentedagata,eentãoresolveufazermelhorcomFilhotedeNuvem.–Voutrabalharmaisdoquequalqueroutrogato!–o jovemprometeu,

arregalandoosolhos.–Sereiomelhoraprendizquejáexistiu!– Isso é o que veremos – Estrela Azul miou, enquanto Cara Rajada

ronronava,divertida.– Ele temmeperturbadodia e noite – elamiou com carinho. – Tenho

certezadequefaráomelhorpossível.Éforteeinteligente.Os olhos de Filhote de Nuvem brilharam com o elogio. Ele parece ter

conseguidosuperaradescobertadesergatinhodegente,pensouCoraçãodeFogo.MaséarroganteemalconheceoCódigodosGuerreiros,emuitomenoso respeita. Será que fiz a coisa certa ao trazê-lo para cá?, questionou-se,maisumavez.Serseumentornãoseriafácil,elesabia.– Vou convocar a reunião – Estrela Azul miou, dirigindo-se à Pedra

Grande.ComumolharparaCoraçãodeFogo,FilhotedeNuvemfoiatrás,saltitante,seguidopelosdemaisfilhotes,queiamaostrambolhões.–CoraçãodeFogo–miouCaraRajada.–Tenhoumpedidoalhefazer.O guerreiro reprimiu um suspiro. – O que é? – Obviamente ele não

conseguiria comer seu rato silvestre antes da cerimônia de Filhote deNuvem.– É sobre Listra Cinzenta. Sei o que ele passou, mas ele nunca sai do

berçário, fica tomando conta dos bebês. É como se achasse que FlorDouradanãopodecuidardelesdireito.Eleestánosatrapalhando.–Vocêsdisseramissoaele?–Demosumasindiretas.CaudaSarapintadaatéperguntouseelemesmo

iaterbebês.Elenemsedáconta.CoraçãodeFogodeuumaúltimaolhadatristeparaoratosilvestre.–Vou

falarcomele,CaraRajada.Eleestáláagora?–Sim,esteveláamanhãtoda.

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– Vou buscá-lo para a reunião. – Coração de Fogo cruzou a clareira e,quando chegou ao berçário, viu Estrela Azul no topo da Pedra Grande,convocandooclã.Aoentrar,surpreendeu-seemcruzarcomGarradeTigre.Eleseafastou

paraorepresentantepassar, imaginandooqueeleestariafazendoali,atéque se lembrou de que um dos filhotes de Flor Dourada era malhadoescuro.GarradeTigredeviaseropai.O berçário estava quente e repleto de reconfortantes cheiros de leite.

Flor Dourada estava deitada em seu ninho; agachado ao seu lado, ListraCinzentafarejavaomontedefilhotes.– Eles estão mamando o suficiente? – ele miou ansioso. – São tão

pequenos.– É porque são novinhos – Flor Dourada respondeu pacientemente. –

Elesvãocrescer.CoraçãodeFogo foiverosquatrobebês,queestavammuitoocupados,

mamando, no calor do corpo da mãe. O malhado escuro com certezapareciacomGarradeTigre.OsdoisdeListraCinzentaerammenores,mas,agora, com o pelo seco e fofo, tinham a mesma aparência saudável dosdemais.Umeracinza-escurocomoopai;ooutrotinhaapelagemprateadadamãe.–Sãolindos–CoraçãodeFogosussurrou.–Muitomais doque elemerece – bufouCauda Sarapintada, ao passar

paraatenderàconvocaçãodeEstrelaAzul.–Não dê ouvidos a Cauda Sarapintada –miou FlorDourada quando a

rainhamaisvelhasaiu.Elasedebruçousobreosbebêse tocouodepeloprateadocomonariz.–Elaserátãolindaquantoamãe,ListraCinzenta.–Eseelesmorrerem?–ogatocinzadeixouescapar.–Eles não vãomorrer – insistiuCoraçãode Fogo. – FlorDourada está

cuidandodeles.FlorDouradaolhavaparaosquatrobebêscomigualamoreadmiração,

mas Coração de Fogo achou-a cansada e tensa. Cuidar de quatro filhotestalvezfossedemais.Eleafastouaquelepensamento.Ovínculoentreamãeeseusbebêseraforte,elerefletiu,masalealdadeaoclãerafortetambém,earainhadariaomelhordesiàquelesbebêsporqueeleserammetadeClãdoTrovãoeocoraçãodelaerabondoso.– Vamos. – Coração de Fogo cutucou Listra Cinzenta. – Estrela Azul

convocouumareunião.FilhotedeNuvemvaiserfeitoaprendiz.

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ListraCinzentahesitouporum instanteeCoraçãodeFogopensouqueele fossesenegara ir.Maselese levantouedeixouoamigoguiá-loatéaentrada,otempotodoolhandoparatrás.Lá fora, na clareira, o resto do clã já estava reunido. Coração de Fogo

ouviuPeledeSalgueiroanunciar, feliz,paraPelodeRatoeVentoVeloz:–Vouterdememudarparaoberçárioembreve.Estouesperandobebê.Vento Veloz murmurou suas felicitações, enquanto Pelo de Rato dava

umalambidaalegrenaorelhadaamiga.CoraçãodeFogobemquetentouimaginar quem seria o pai e, quando olhou em volta, notou queNevascaobservavaa cenaadistância, orgulhoso.Anotíciados filhotesdePeledeSalgueiro acalmouo guerreiro.Não importavamas catástrofes, a vida doclãcontinuava.ComListra Cinzenta ao lado, o guerreiro se colocou à frente do grupo,

bemnabasedaPedraGrande.FilhotedeNuvemestavalá,empertigadoeimportante,aoladodeCaraRajada.GarradeTigreestavasentadoaliperto,com uma pesada nuvem de censura no focinho. Coração de Fogo tentouimaginaroqueteriaacontecidoparadevolveraorepresentanteoseumauhumorhabitual.–GatosdoClãdoTrovão–EstrelaAzulcomeçouafalar,doaltodaPedra

Grande –, convoquei-os aqui por duas razões, uma boa e outra ruim.Começandocomaruim,todosvocêssabemoqueaconteceuháalgunsdias,quandoArroiodePrata,doClãdoRio,morreuedemosabrigoaosbebêsqueelatevecomListraCinzenta.Um murmúrio hostil varreu a multidão de gatos. Listra Cinzenta se

agachou,recuando,eCoraçãodeFogoapertouseucorpocontraodoamigoparaconfortá-lo.–MuitosgatosmeperguntaramqualseriaocastigodeListraCinzenta–

EstrelaAzul continuou. –Pensei cuidadosamentea esse respeito edecidique a morte de Arroio de Prata já é castigo suficiente. Que punição sepoderiaimporaumgatoquejásofreutanto?Seuquestionamentodesencadeouindignadosmiadosdeprotesto.Rabo

Longogritou:–Nãooqueremosnoclã!Eleéumtraidor!– Se você um dia se tornar líder, Rabo Longo, poderá decidir – miou

EstrelaAzul,friamente.–Atélá,respeiteasminhasdecisões.Digoquenãohaverápunição.Noentanto,ListraCinzenta,por três luasvocênão iráàsAssembleias. Issonãoéparapuni-lo,maspara ter certezadequenãohárisco de os gatos do Clã do Rio, com raiva, serem tentados a quebrar a

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trégua,porcausadoquevocêfez.ListraCinzentaabaixouacabeça.–Euentendo,EstrelaAzul.Obrigado.–Nãomeagradeça.Mastrabalheduroedefendalealmenteoseuclãde

agoraemdiante.Umdiavocêseráumbommentorparaaquelesfilhotes.CoraçãodeFogoviuqueListraCinzentaseanimouumpouco,comose

passasseaterummotivodeesperança.GarradeTigre,noentanto,fezumacaretaaindamaisferoz,eogatoavermelhadoimaginouqueelequeriaumapuniçãoseveraparaoguerreiro.–Agorapossopassarparaumatarefamaisalegre–miouEstrelaAzul.–

FilhotedeNuvemchegouàsuasexta luaeestáprontoparasetornarumaprendiz.–Elapuloudapedrae,comummovimentodacauda,fezumsinalpara que o jovem se aproximasse. Ele o fez com um salto, tremendo deemoção,acaudaparacima,osbigodesagitados.Osolhosazuisbrilhavamcomoestrelasgêmeas.–CoraçãodeFogo–EstrelaAzulmiou–,vocêestáprontoparareceber

outroaprendiz,ePatadeNuveméfilhodesuairmã.Vocêseráseumentor.CoraçãodeFogoselevantou,masantesquepudesseandaremdireçãoà

PedraGrandeosobrinhocorreuaoseuencontroelevantouacabeçaparatrocaremtoquesdenariz.–Aindanão!–CoraçãodeFogosussurrouporentreosdentes.– Coração de Fogo, você sabe o que é ser umde nós, ainda que tenha

nascido fora do clã – continuou a líder, ignorando a impulsividade dojovem.–ConfioemvocêparapassartudooqueaprendeuaPatadeNuveme ajudá-lo a se tornar um guerreiro de quem o Clã do Trovão possa seorgulhar.–Sim,EstrelaAzul.–CoraçãodeFogobaixouacabeçarespeitosamente

e,porfim,trocoutoquesdenarizcomojovem.–PatadeNuvem!–onovoaprendizmiou, triunfante.–EusouPatade

Nuvem!– Pata de Nuvem! – Coração de Fogo sentiu uma onda de orgulho no

sobrinho quando osmembros do clã se comprimiam ao redor dele parafelicitá-lo.Osanciãos,CoraçãodeFogopercebeu,faziammuitasfestasparaonovoaprendiz.Mas o guerreiro tambémnotou que alguns gatos não se aproximaram.

GarradeTigrenãosemoveudabasedapedraeRaboLongofoisesentarao seu lado, com ar sinistro. Enquanto Coração de Fogo se mantinhaafastadoparaqueosoutrospudessemalcançaronovoaprendiz,Riscade

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Carvãopassouporeleacaminhodatocadosguerreiros.Oguerreirodepelagemavermelhadaouviuseumiadocheiodedesgosto

e deliberadamente alto. – Traidores e gatinhos de gente! Será que nãosobrounenhumgatodecentenesteclã?

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CAPÍTULO25

CORAÇÃODEFOGOPAROUPERTODOLIMITEdasárvores.–Espere–avisouaPatade Nuvem. – Estamos perto do Lugar dos Duas-Pernas; é preciso tercuidado.Vocêsentecheirodequê?PatadeNuvem,obediente, levantouonarize farejou.EleeCoraçãode

Fogo acabavam de completar a primeira longa expedição de seuaprendizado,seguindopistasnasfronteirasdoclãerenovandoasmarcasde cheiro. Agora estavam perto do antigo lar de Coração de Fogo, dequando ele era gatinho de gente, do lado de fora do jardim onde viviaPrincesa,amãedePatadeNuvem.– Posso farejar montes de gatos – Pata de Nuvem miou. – Mas não

reconheçonenhum.–Muitobem.Namaioriasãofilhotesdegatinhodegente,talvezumou

dois solitários. Não são gatos de clã. – Ele detectou também o cheiro deGarradeTigre,masnãochamouaatençãodePatadeNuvemparaofato.Lembrou-se do dia em que, haviamuito tempo, quando a neve cobria ochão,eleseguiraorepresentanteatéaliedescobriraseuodormisturadoaodemuitosgatosestranhos.AgoraocheirodeGarradeTigreprovavaqueeleestiveraali.Coraçãode

Fogo ainda não sabia se ele se encontrara com os outros gatos ou se osodores,poracaso, tinhamapenassecruzado.MasporqueGarradeTigrechegara tão perto do Lugar dos Duas-Pernas, quando os desprezava, e atudooqueaelessereferia?– Coração de Fogo, podemos ir ver minha mãe? – Pata de Nuvem

perguntou.–Vocêsentecheirodecachorro?OudeDuas-Pernas,umodorrecente?PatadeNuvemfarejoudenovoefezquenão.– Vamos, então – miou Coração de Fogo. Olhando à sua volta com

cuidado,elesaiudoesconderijo.PatadeNuvemoseguiu,exageradamentealerta,comosequisessemostrarcomoaprendiadepressa.Desde a cerimônia da véspera, Pata deNuvem estivera estranhamente

quieto. Claro que estava se esforçando para se tornar um bom aprendiz,prestandoatençãoatudooqueotiodizia,sempresério,comosolhosbemabertos. Mas o guerreiro se perguntava quanto tempo essa humildadeatípica iria durar. Disse a Pata deNuvempara esperar, pulou na cerca eolhou para o jardim. Ali perto cresciam flores de cores esmaecidas e, no

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centrodocapim,algumaspelesdosDuas-Pernasestavampenduradasemuma árvore cheia de galhos, mas sem folhas. – Princesa? – ele chamoubaixinho.–Princesa,vocêestáaí?Algumasfolhassemovimentaramemumamoitapertodacasa,eafigura

malhadademarromebrancodePrincesapisouocapimcomdelicadeza.Aoverogato,elasoltouummiadodeprazer.–CoraçãodeFogo!Numimpulso,Princesapulouacercaeapertousuabochechacontraado

guerreiro.Háquantotempo!–elaronronou.–Quebomvervocê!–Trouxealguémcomigo.Olheparabaixo.Porsobreacerca,PrincesaviuPatadeNuvem.–CoraçãodeFogo!Esse

nãopodeserFilhotedeNuvem!Elecresceutanto!Sem esperar por convite, Pata de Nuvem pulou para a cerca, as patas

arranhandoamadeiralisa.CoraçãodeFogosedebruçoue,comosdentes,pegou o sobrinho pelo cangote, puxando-o pela distância de uns doiscamundongosparaqueeleficasseaoladodamãe.Pata de Nuvem arregalou os olhos azuis para Princesa e perguntou: –

Vocêémesmominhamãe?– Sou, sim – ela ronronou, examinando o filho de cima a baixo, com

admiração.–Ah,étãobomvervocêdenovo,FilhotedeNuvem.–Naverdade,nãosouFilhotedeNuvem–anunciou,todoprosa,ogato

depelofofoebranco.–AgorasouPatadeNuvem.Souumaprendiz.–Quemaravilha!–Princesacomeçouacobriro filhode lambidas,com

rom-ronstãofortesqueelamaltinhafôlegoparafalar.–Ah,vocêestátãomagrinho…vocêtemcomidoobastante?Temamigosláondeestá?EsperoqueobedeçaaCoraçãodeFogo.Pata de Nuvem nem tentou responder à torrente de indagações.

Desvencilhou-se dos carinhos da mãe e se afastou. – Logo serei umguerreiro–elesegabou.–CoraçãodeFogoestámeensinandoalutar.Princesa fechou os olhos por um instante e falou baixinho: – Vai ser

precisotercoragem.–CoraçãodeFogochegouapensarqueagataestavalamentandoadecisãodeentregarofilhoaoclã,maselaabriuosolhosdenovoedeclarou:–Estoutãoorgulhosadevocês!Entusiasmado, Pata de Nuvem ficou aindamais vaidoso ao receber os

elogios. Ele virou a cabeçapara se pentear com rápidos golpes da línguapequena e cor-de-rosa, e Coração de Fogo, aproveitando que ele estavadistraído,sussurrou:–Princesa,vocêalgumavezviugatosestranhosporaqui?

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– Estranhos? – ela pareceu confusa, e Coração de Fogo imaginou sehaveria algum problema com a pergunta. A irmã certamente não sabiadistinguirgatosrenegadosousolitáriosdosgatosdoClãdoTrovão.Princesa estremeceu. – Sim, eu os escutei uivar à noite. O meu Duas-

Pernasselevantaegritacomeles.–Vocêviuumgatogrande,malhadoeescuro?–oguerreiroquissaber,o

coração começando a bater com força. – Com um focinho cheio decicatrizes?Princesafezquenãocomacabeça,osolhosarregalados.–Eusóosouvi,

nãovinenhum.–Sevirogatoescuro,nãoseaproxime–CoraçãodeFogoavisou.Elenão

sabiaoqueGarradeTigreestavaquerendotãolongedoacampamento,seéqueeramesmoGarradeTigre,mas,porviadasdúvidas,estavaavisando,poisnãoqueriaPrincesapertodorepresentante.Entretanto, Princesa ficou tão apavorada que ele mudou de assunto,

encorajando Pata de Nuvem a descrever a cerimônia de aprendiz e aexpediçãopertodas fronteiras.Logoelaestavanovamente feliz, soltandogritinhosdeadmiraçãoparatudooqueofilhodizia.O sol já passara do apogeu quando Coração de Fogo miou: – Pata de

Nuvem,estánahoradevoltarparacasa.PatadeNuvemabriuaboca,ensaiandoumprotesto,masse lembroua

tempo.–Sim,CoraçãodeFogo–miou,obediente.Edisseàmãe:–Porquevocênãovemconosco?Possopegarcamundongosparavocê,evocêpodedormirnaminhatoca.Princesa ronronou de prazer. – É uma tentação – respondeu com

sinceridade. –Mas, honestamente, soumais feliz como gatinho de gente.Nãoqueroaprenderalutarouterdedormirdoladodefora,nofrio.Ésóvocêvoltaramevisitarembreve.–Euvenho,prometo–PatadeNuvemmiou.–Voutrazê-lo.–miouCoraçãodeFogo.–EPrincesa…–eleacrescentou,

quandosepreparavaparasaltarparaochão–sevocêviralgumacoisa…estranhaporaqui,porfavor,mediga.

Nocaminhodevolta,CoraçãodeFogoparouparaquepudessemcaçar.Quando chegaramà ravina, o sol ia sepondo,banhandoa florestade luzvermelhaelançandolongassombrasnochão.

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Pata de Nuvem, gabola, trazia na boca uma cobra, que ia levar aosanciãos.Pelomenos,comabocacheia,eleparavacomaquelaconversasemfim. Coração de Fogo se sentia esgotado depois de um dia inteiro com osobrinho, mas tinha de admitir que ficara mais impressionado do queesperava. A coragem de Pata de Nuvem e suas observações inteligenteseram a promessa de um excelente guerreiro. Ao descerem a ravina nadireçãodo túnel, CoraçãodeFogoparou.Umodorestranho, trazidopelabrisaquepercorriaafloresta,despertousuasnarinas.PatadeNuvemparoue colocoua cobrano chão. –CoraçãodeFogo, o

queéisso?–Eleinspirouparatestaroar.–Vocêmeensinouestamanhã.ÉoClãdoRio!–Muitobem–CoraçãodeFogomiou, tenso.Elemesmoreconhecerao

cheiroumtique-taquedecoraçãoantesdePatadeNuvemfalar.Olhandonadireção do alto da ravina, distinguiu três gatos procurando um caminho,andandodevagarentreaspedras.–ÉoClãdoRio.Eparecequeestãovindoparacá.VolteaoacampamentoedigaaEstrelaAzul.Expliquebemquenãoéumataque.–Mas eu quero… – O jovem aprendiz interrompeu a frase quando viu

Coração de Fogo franzir a testa. – Desculpe. Já vou. – Ele rumou para aentradadotúnel,semseesquecerdelevaracobra.Coração de Fogo ficou onde estava. Ajeitou o corpo e esperou que os

felinos se aproximassem. Reconheceu Pele de Leopardo, Pé de Bruma ePelodePedra.Quandoelesestavamaapenasalgumascaudasdedistância,ele perguntou: – Gatos do Clã do Rio, o que querem? Por que estão emnossas terras? – Embora tivesse de enfrentá-los por eles terem entradosemconviteno territóriodoClãdoTrovão, tentounãoserhostildemais.NãoqueriamaisproblemascomoClãdoRio.Pele de Leopardo parou, com Pé de Bruma e Pelo de Pedra atrás. –

Viemos em paz – ela miou. – Há assuntos a resolver entre nossos clãs.EstrelaTortanosenviouparafalarcomsualíder.

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CAPÍTULO26

CORAÇÃO DE FOGO TENTOU ESCONDER SEUS RECEIOS enquanto guiava os trêsguerreirosdoClãdoRiopelo túnel, rumoaoacampamento.Osgatosdosclãs raramente visitavamos outros territórios, e ele seperguntavaoqueseriatãourgentequenãopodiaesperaratéapróximaAssembleia.AlertadoporPatadeNuvem,EstrelaAzul jáestavasentadanabaseda

PedraGrande,eaapreensãodeCoraçãodeFogoaumentouquandoeleviuGarradeTigreaoladodela.–Obrigada,PatadeNuvem.–EstrelaAzuldispensouoaprendizquando

CoraçãodeFogoseaproximoucomos recém-chegados.–Levesuapresafrescaparaosanciãos.Pata de Nuvem ficou desapontado por ser dispensado, mas foi sem

protestar.Pelo de Leopardo foi até a líder e curvou a cabeça, respeitosamente. –

Estrela Azul, viemos em paz ao seu acampamento. Há um assunto queprecisamosdiscutir.Garra deTigre soltouum rugidobaixo e incrédulo, como se preferisse

estararrancandoopelodosintrusos,masEstrelaAzuloignorou.–Possoimaginaroqueostrazaqui–elamiou.–Masoqueháparadiscutir?Oqueestá feito está feito. Qualquer punição para Listra Cinzenta será decididaporseupróprioclã.EnquantoalíderfalavacomPelodeLeopardo,CoraçãodeFogopercebeu

queelaalternavaoolharentrePédeBrumaePelodePedra.EraaprimeiravezqueaviacomosguerreirosdoClãdoRiodesdequeelaadmitiraqueeleseramsuascrias.Erareal–enão imaginaçãodele–amelancolianosolhosdagataquandoelafitavaseusfilhotes.– O que você diz é verdade – Pelo de Leopardo concordou. – Os dois

jovens foramtolos,masArroiodePrataestámorta,enãocabeaoClãdoRio decidir uma punição para Listra Cinzenta. Viemos por causa dosfilhotes.–Comoassim?–ElessãofilhotesdoClãdoRio–miouPelodeLeopardo.–Viemospara

levá-losparacasa.–FilhotesdoClãdoRio?–OsolhosdeEstrelaAzulseestreitaram.–Por

quevocêestádizendoisso?

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–Ecomoéquevocêsoubearespeitodeles?–GarradeTigrequissaber,seuolhar faiscandode raiva, enquantoele sepunhadepé. –Vocêesteveespionando?Oualgumgatolhecontou?O representante se virou para Coração de Fogo, mas o guerreiro se

mantevefirme,ePédeBrumaficouquieta,nãootraindonemmesmoporumolhar.GarradeTigrenãopoderiatercertezadequeelefalaracomPédeBruma,eCoraçãodeFogonãolamentavatê-lofeito.OClãdoRiotinhaodireitodesaber.–Sente-se,GarradeTigre.–EstrelaAzulmurmurou.Elalançouumolhar

paraCoraçãodeFogo,quepercebeuquealídersabiaoqueelefizera,comoseotivessevistoatravessarorio,masnãotinhaaintençãodedenunciá-lo.–Quemsabe,talvez,umapatrulhadoClãdoRiotenhatestemunhadooqueaconteceu?Essascoisasnãopodemserescondidaspormuitotempo.Mas,PelodeLeopardo–elacontinuou,voltando-separaavisitante–,osfilhotessão metade Clã do Trovão, e uma de nossas rainhas está cuidando bemdeles.Porqueeuosentregariaavocês?–Osbebêspertencemaoclãdamãe–PelodeLeopardoexplicou.–OClã

doRioosteriacriadoseArroiodePrataestivesseviva,mesmosemsaberquemeraopai,oqueostornanossospordireito.– Estrela Azul, você não pode mandar esses filhotes para longe! –

CoraçãodeFogonãoconseguiuficarquietoeinterrompeu.–ElessãotudooqueListraCinzentatemnavida.UmgrunhidoressoounovamentenagargantadeGarradeTigre,masfoi

EstrelaAzulquerespondeu.–CoraçãodeFogo, fiquequieto. Issonão lhedizrespeito.–Diz, sim– o gato avermelhado se atreveu amiar. – ListraCinzenta é

meuamigo.– Silêncio! – ciciou Garra de Tigre. – Será que a sua líder vai ter de

repetir? Listra Cinzenta traiu seu clã. Ele não tem direito a filhotes ou aqualqueroutracoisa.A raiva inundou Coração de Fogo. O representante não tinha respeito

algum pela terrível dor de Listra Cinzenta? O guerreiro avermelhado fezumapiruetaesónãopulouemcimadoenormegatoporqueosfelinosdooutroclãestavamolhando.GarradeTigrerugiu,mostrandoosdentes.Estrela Azul agitou a cauda, furiosa com os dois. – Basta! Pelo de

Leopardo, admitoqueoClãdoRio tenha algumdireito sobreos filhotes,mas o Clã do Trovão também tem. Além disso, os bebês são pequenos e

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fracos.Nãopodemviajar ainda, especialmente através do rio. É perigosodemais.OpelodocangotedePelodeLeopardocomeçouaseeriçareseusolhos

ficaramestreitoscomofendas.–Vocêestáapenasdandodesculpas.–Não–EstrelaAzulinsistiu.–Nãoédesculpa.Vocêarriscariaavidados

filhotes? Vou pensar sobre o que você disse e discutir com os meusguerreiros,elhedareiumarespostanapróximaAssembleia.–Agoracaiamforadonossoacampamento–grunhiuGarradeTigre.PelodeLeopardohesitou,comosetivessealgomaisadizer,masestava

claroqueEstrelaAzuladispensara.Depoisdealgunstensosinstantes,elaabaixou a cabeça novamente e se virou para partir, seguida por Pé deBrumaePelodePedra.GarradeTigreosacompanhoupelaclareiraatéotúnel.Sozinho com Estrela Azul, Coração de Fogo sentiu sua raiva diminuir,

masnãopodiadeixarderefazerseusapelos.–Nãopodemospermitirquelevemosfilhotes.VocêsabecomoListraCinzentasesentiria.OolhargeladodeEstrelaAzul fezCoraçãodeFogopensarsenão teria

ido longedemais,masela foi suaveao responder: – Sim, eu sei. Eudariamuitoparamanteressesfilhotes.MasatéondeoClãdoRioiriaparalevá-los? Será que eles lutariam? Quantos guerreiros do Clã do TrovãoarriscariamavidaporbebêsquesãometadeClãdoRio?O pelo de Coração de Fogo se eriçou com o medo que ele sentiu da

imagempintadaporela.Clãsemguerraporcausadefilhotinhosmiando–ou o Clã do Trovão dividido, guerreiros lutando entre si. Seria esse odestinoqueoClãdasEstrelasdecretaraparaseuclã,conformeoavisodeFolhaManchada,dequeaáguapoderiaapagarofogo?Talveznãofosseaenchente a causa da destruição do Clã do Trovão, mas os felinos quevinhamdoterritóriopróximoaorio.–Coragem,CoraçãodeFogo–pediuEstrelaAzul.–Aindanãoestamos

em uma batalha. Consegui algum tempo para nós, até a próximaAssembleia,equemsabeoquevaiacontecerantesdisso?O guerreiro não estava tão confiante. O problema dos filhotes

continuaria.Massólhecabiacurvaracabeçarespeitosamenteeseretirarparaatocadosguerreiros.Eagora,pensoudesesperado,oquevoudizeraListraCinzenta?

QuandooTuledePratatinhaseestendidoportodoocéu,todooClãdo

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TrovãojápareciasaberarazãodavindadosgatosdoClãdoRio.CoraçãodeFogo imaginavaqueGarradeTigre tinha contadoaos seusguerreirosfavoritos,queteriamespalhadoanotíciaaorestodoclã.ComoEstrela Azul previra, as opiniões estavamdivididas. Paramuitos

gatos, quanto antes o clã se livrasse daqueles bebês,melhor.Mas outrosestavam preparados para lutar; afinal, desistir dos filhotes significaria avitóriadoClãdoRio.Durante todo esse tempo, Listra Cinzenta permaneceu em silêncio,

refletindo, na toca dos guerreiros. Saíra apenas uma vez, para visitar oberçário.QuandoCoraçãodeFogolhetrouxeumapresafresca,elevirouofocinho.Atéondeelesabia,seuamigonãocomiadesdeamortedeArroiodePrata,epareciamagroedoente.–Comopossoajudá-lo?–CoraçãodeFogoperguntouaPresaAmarela,

bemcedo,namanhãseguinte.–Elenãodorme,nãocome…Avelhacurandeirameneouacabeça.–Nãoháervaquecureumcoração

partido.Sóotempoécapazdefazê-lo.–Eumesintotãoimpotente–CoraçãodeFogoconfessou.–Asuaamizadeajuda–respondeuPresaAmarelacomavozrouca.–Ele

podenãoperceberissoagora,masumdiaele…AcurandeiraparoudefalarquandoPatadeCinzaapareceuecolocouum

montedeervasaosseuspés.–Sãoessas?–elaperguntou.PresaAmarela cheirou as ervas rapidamente. – Sim, issomesmo. Você

não pode comer antes da cerimônia, mas eu posso. Estoumuito velha ealquebrada para ir às Pedras Altas e voltar sem alguma coisa para mesustentar.–Elaseagachouecomeçouaengoliraservas.–PedrasAltas?–CoraçãodeFogorepetiu.–Cerimônia?PatadeCinza,o

queestáacontecendo?–Émeia-luaestanoite–agatamiou,feliz.–PresaAmarelaeeuestamos

indo para a Boca da Terra para que eu possa ser oficialmente investidacomoaprendiz.–Elaseremexeu,alegre.CoraçãodeFogosentiuumaondade alívio ao perceber que a gata parecia ter superado o desespero pelamortedeArroiodePrata.Elavoltavaaolharparaofuturo,paraasuanovavida comocurandeira. Seusolhos tinhamrecobrado todoobrilhoantigo,masagorahaviasabedoriaeponderaçãonaquelasprofundezasazuis.Ela está amadurecendo, pensou Coração de Fogo, com uma estranha

sensaçãodepesar.Suaaprendizentusiasta,distraídaalgumasvezes,estavaconsciente, tornando-se um ser de grande força interior. Ele sabia que

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deviasealegrarpelocaminhoqueoClãdasEstrelastinhaescolhidoparaela,masaindadesejavaquepudessempercorrerjuntosatrilhadecaça.–Voucomvocêsestanoite,sequiserem.AtéQuatroÁrvores,pelomenos.–Vocêviria,CoraçãodeFogo?Muitoobrigada!–PatadeCinzamiou.–MasnãoalémdeQuatroÁrvores–PresaAmarelaadvertiu,ficandode

péepassandoa línguaem tornodaboca. –Hojea cerimônianaBocadeTerraésóparacurandeiros.–Elasesacudiuetomouafrentenocaminhodesamambaiasqueiadarnaclareira.Quando Coração de Fogo estava seguindo Pata de Cinza, viu Pata de

Nuvem se lavando perto de um resto de árvore, fora da toca dosaprendizes.Ogatobrancodeuumpulologoqueviuotioecorreuparaele.–Aonde

vocêsestãoindo?Possoirtambém?Coração de Fogo olhou para Presa Amarela e, como a anciã não fez

objeção,elerespondeu:–Tudobem.Vaiserumbomexercícioparavocê,epodemos caçar na volta. – Trotando pela ravina, atrás das gatas, eleexplicava a Pata de Nuvem aonde iam, e como Garra Amarela e Pata deCinza iriam sozinhas até as Pedras Altas. No fundo do túnel conhecidocomo Boca da Terra estava a Pedra da Lua, que cintilava um brancodeslumbrantesobaluzdoluar.AcerimôniadePatadeCinzaserealizariasobaquelaluzsobrenatural.–Oqueacontece,então?–PatadeNuvemperguntou,curioso.–As cerimônias são secretas – grunhiuPresaAmarela. –Portanto,não

questionePatadeCinzaquandoelavoltar.Nãoépermitidocontar.–MastodososgatossabemqueelavaireceberpoderesespeciaisdoClã

dasEstrelas–CoraçãodeFogoacrescentou.–Poderesespeciais!–OsolhosdePatadeNuvemsearregalaram,eele

fitouPatadeCinzacomoseelafossecomeçarafazerprofeciasatortoeadireito.– Não se preocupe, ainda serei a mesma velha Pata de Cinza – ela

asseguroucomumrom-rombrincalhão.–Issonãovaimudarnunca.O sol esquentou no caminho de ida para Quatro Árvores. Coração de

Fogoestavaagradecidopela sombradas árvores epelo frescordo capimlongoedostufosdesamambaiaqueroçavamseupeloavermelhado.TodososseussentidosestavamalertaseelemantinhaPatadeNuvemocupado,farejandooarerelatandooscheirosquesentia.Oguerreironãoesquecerao ataque do Clã das Sombras e do Clã do Vento. Apesar da derrota, eles

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provavelmente voltariam a tentar matar Cauda Partida. Além disso,CoraçãodeFogo,decertaforma,esperavaproblemascomoClãdoRioporcausa dos filhotes de Listra Cinzenta. Ele suspirou. Em uma bela manhãcomo aquela, com folhas verdes nas árvores e as presas praticamentepulando dos arbustos para serem apanhadas, ficava difícil pensar emataquesemorte.Apesardaspreocupaçõesdoguerreiro,ogrupochegouaQuatroÁrvores

semproblemas.Àmedidaquedeslizavamporentreosarbustos,rumoaovale, Coração de Fogo recuou para acertar seu passo com o de Pata deCinza. – Você tem certeza do que está fazendo? – ele perguntoucalmamente.–Éoquevocêquer,mesmo?–Claroquesim!Vocênãoestávendo?–Osolhosdagataprocuraramos

dele,repentinamentesérios.–Tenhodeaprenderomáximopossívelparaque nenhum gatomorra porque não pude salvá-lo, como aconteceu comArroiodePrata.CoraçãodeFogoseencolheu.Ansiavaconvenceraamigadequeelanão

tinha culpa na morte de Arroio de Prata, mas sabia que ia desperdiçarfôlego.–E issovai fazê-la feliz?Vocêsabequeascurandeirasnãopodemter filhos – ele lembrou, pensando em como Presa Amarela tivera dedesistir de Cauda Partida e precisara manter seu vínculo com ele emsegredo.Pata de Cinza ronronou para confortá-lo. – Todos do clã serão meus

filhos – ela prometeu. –Até os guerreiros. PresaAmarela diz que eles àsvezestêmojuízodeumrecém-nascido!–Comumpassoàfrente,ficouaoladodeCoraçãodeFogoeesfregoucarinhosamenteseufocinhonodele.–Masvocêsempreseráomeumelhoramigo.Jamaisesquecereiquevocêfoiomeuprimeiromentor.Oguerreirodeu-lheumalambidanaorelha.–Adeus,PatadeCinza–ele

miousuavemente.–Nãoestouindoparasempre–elaprotestou.–Vouestardevoltaatéo

pôrdosoldeamanhã.MasCoraçãodeFogosabiaque,sobalgunsaspectos,PatadeCinzaestava

indo embora para sempre. Ao voltar, teria novos poderes eresponsabilidades, concedidos não por um líder de clã,mas pelo Clã dasEstrelas.Ladoalado,atravessaramovalesobosquatroenormescarvalhosesubiramaencostaatéondePresaAmarelaePatadeNuvemjáestavamesperando.Acharnecaseestendiaemfrenteaeles,umventofriodobrava

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asresistentesmoitasdeurze.–OClãdoVentonãovaiatacarsevocêspassarempeloterritóriodeles?–

PatadeNuvemperguntou,ansioso.–TodososclãspodempassarcomsegurançaacaminhodasPedrasAltas

–PresaAmareladisse.–Enenhumguerreiroousariaatacarcurandeiros.OClãdasEstrelasproíbe!–Virando-separaPatadeCinza,perguntou:–Estápronta?– Sim, já vou. – Pata de Cinza deu umaúltima lambida emCoração de

Fogo e seguiu a anciã em direção ao capim macio da charneca. A brisaarrepiava seu pelo enquanto ela seguia rapidamente, claudicante, semolharparatrás.Com o peito apertado, Coração de Fogo assistiu-a partir. Sabia que a

amiga estava começando uma vida nova emais feliz,mas,mesmo assim,nãopôdedeixardesentirumapontadadepesarpelavidaqueelapoderiatertido.

Coração de Fogo observou o sol subir pelas árvores. – Garra de TigrequerqueeumandePatadeNuvemsozinhoemumamissãodecaçahoje–miouparaListraCinzenta.Ograndeguerreirocinzaofitou,surpreso.–Écedo,nãoé?Eleacaboude

setornaraprendiz.Coração de Fogo deu de ombros. – Garra de Tigre acha que ele está

pronto.Dequalquerforma,elemedisseparasegui-loevercomoelesesai.Vocêgostariadeajudar?PatadeCinzatinharetornadodaBocadaTerranavéspera.Coraçãode

Fogo a encontrara quando ela descia a ravina, no crepúsculo. Embora otivesse cumprimentado carinhosamente, os dois sabiam que ela nãopoderiarelataroqueacontecera.Seufocinhoaindamostravaumolhardeêxtase, e a própria lua parecia emanar dos seus olhos. Coração de Fogoesforçou-separanãosentirqueaperderaparaumcaminhodesconhecido.Agora ele estava ao lado do canteiro de urtigas, saboreando um

suculentocamundongo.ListraCinzenta,agachadoaliperto,escolheraumaagáciadapilhadepresafresca,masmalatocara.–Não,obrigado,CoraçãodeFogo.PrometiaFlorDouradaqueiriaveros

bebês.Elesjáabriramosolhos–acrescentoucomumapitadadeorgulho.Coração de Fogo imaginava que Flor Dourada preferia que Listra

Cinzenta ficasse longe,mas sabia que o amigo nunca seria convencido a

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deixar seus filhotes. – Está bem – ele miou. – Vejo você mais tarde. –Engolindo o último bocado de camundongo, ele foi encontrar Pata deNuvem.GarradeTigreestiveraocupadonaquelamanhãenviandoumapatrulha

comNevascapararenovarasmarcasdecheirosao longoda fronteiradoClãdoRio,eoutra,comTempestadedeAreia,paracaçarpertodasRochasdasCobras.Porisso,seesqueceradedizeraCoraçãodeFogoaondePatadeNuvemdeveriairparaamissãodecaça,eCoraçãodeFogonãosentiunecessidadedelembrá-lo.– Vá para o Lugar dos Duas-Pernas – o guerreiro miou para Pata de

Nuvem.–Assimnãoficaránarotadasoutraspatrulhas.Mesmovocênãomevendo,estareiobservando.Vouencontrá-lonacercadePrincesa.–Possofalarcomela,seelaestiverporlá?– Pode, contanto que você já tenha caçadomuitas presas. Mas não vá

procurarporelanosjardinsdosDuas-Pernas.Nememseusninhos.–Podedeixar.–Osolhosdojovembrilhavam,esuapelagemcordeneve

estava arrepiada de entusiasmo. Coração de Fogo lembrou-se de seunervosismoantesdesuaprimeiraavaliação.PatadeNuvem,aocontrário,estavacheiodeconfiança.–Então,pronto,podeir–miouotio.–Tentechegarlánosolapino.–O

jovem aprendiz correu em direção ao túnel. – Vá com calma! – gritouCoraçãodeFogo.–Vocêtemumlongocaminhoapercorrer!MasPatadeNuvemnãodiminuiuavelocidadeenquantodesapareciano

túneldetojo.Dandodeombros,maisdivertidodoqueirritado,CoraçãodeFogo procurou Listra Cinzenta, mas ele não estava à vista. Sua agácia,comidapelametade,foradeixadaaoladodocanteirodeurtigas.Elejádeveestarnoberçário,pensouCoraçãodeFogo,virando-separaseguirPatadeNuvem.Ocheirodoaprendizera forte,mostrandocomocircularapela floresta

em busca de presa. Um monte de penas soltas falava de um tordocapturado,emanchasdesanguenocapimmostravamqueumcamundongotinhacaídoemsuasgarras.NãomuitolongedolimitedosPinheirosAltos,Coração de Fogo encontrou o lugar onde Pata de Nuvem enterrara aspresasfrescasparabuscá-lasmaistarde.Admiradocomo fatodeoaprendizestarcaçandotãobemno iníciode

sua formação, Coração de Fogo aumentou a velocidade, na esperança dealcançá-loevê-loperseguindoapresa.Mas,antesdechegaraoLugardos

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Duas-Pernas,avistouosobrinhocorrendoaolongodesuaprópriatrilhadecheiro,opeloeriçadoeumaluzselvagemnosolhos.– Pata de Nuvem! – Coração de Fogo foi ao seu encontro, o corpo

formigandocomummedorepentino.O jovemdeslizouaopararderepente,asgarrasespalhandoagulhasde

pinheiro,mal conseguindo evitar uma colisão com omentor. – Algo estáerrado!–eledisse,ofegante.– O quê? – Coração de Fogo sentiu garras de gelo na barriga. – Com

Princesa?–Não,nadadisso.MaseuviGarradeTigre,eeleestavacomunsgatos

estranhos.–No Lugar dosDuas-Pernas? – Coração de Fogomiou, contundente. –

OndesentimosocheirodelesnaquelediaquevisitamosPrincesa?– Isso mesmo. – Os bigodes de Pata de Nuvem se agitaram. – Eles

estavamamontoados,bemnolimitedasárvores.Tenteichegarmaispertopara ouvir o quediziam,mas fiquei commedode quepercebessemmeupelobranco.Então,vimencontrarvocê.– Você fez a coisa certa – disse Coração de Fogo, amente acelerada. –

Comoeramessesgatos?Tinhamcheirodealgumclã?–Não.–PatadeNuvemtorceuonariz.–Cheiravamacarniça.–Evocênãoosreconheceu?PatadeNuvemfezquenão.–Erammagrosepareciamfamintos.Opelo

todosarnento.Eramhorríveis,CoraçãodeFogo!–EstavamconversandocomGarradeTigre.–CoraçãodeFogofranziua

testa. Esse eraodetalhequeopreocupava. Ele tinhauma ideiadequemeramos gatos estranhos – os antigos guerreirosdoClãdas SombrasquetinhamdeixadooclãcomCaudaPartidaquandoesteforaexpulso.Elesjátinham causado problemas antes, e até onde Coração de Fogo sabia nãohavia outros renegados na floresta agora – mas por que Garra de Tigreestavacomeleseraummistério.–Tudobem–elemiouparaPatadeNuvem.–Siga-me.E fiquequieto,

como se estivesse perseguindo um camundongo. – Ele rumoucautelosamente para o Lugar dos Duas-Pernas, pisando, pata ante pata,sobreasagulhasquebradiçasdepinheiro.Muitoantesdeatingirolimitedafloresta,sentiuofedorfortedosgatos.Oúnicocheiroquereconheceufoiode Garra de Tigre, e, como se tivesse sido chamado, o representanteapareceu naquele instante, saltando em meio às árvores em direção ao

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acampamento.Sobospinheiros,nãohaviavegetaçãorasteirapara lhesdarcobertura.

TudooqueCoraçãodeFogoePatadeNuvempodiamfazereraficarbemrentesaochãoemumdossulcosesculpidospelomonstroCorta-ÁrvoreserezaraoClãdasEstrelasparanãoseremvistos.Um grupo de guerreiros esquálidos seguia Garra de Tigre. Suas

mandíbulas estavam abertas, ávidas, e seus olhos brilhavam. Todos osgatosestavamtãointeressadosnatrilhaquenemperceberamCoraçãodeFogoePatadeNuvemagachadosemsuaparcaproteção,apoucospulosdecoelhodedistância.Coração de Fogo levantou a cabeça e os observou correr até que

desaparecessem. Por um instante, ficou congelado de horror eincredulidade. Ele se deu conta de que havia mais deles do que os quetinhamdeixadooClãdasSombrascomCaudaPartida,algumasluasatrás.Garra de Tigre devia ter recrutado mais solitários de outros lugares. EagoraoslevavadiretoparaoacampamentodoClãdoTrovão!

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CAPÍTULO27

–CORRA! –CORAÇÃO DE FOGO ORDENOU AO APRENDIZ. –CORRA deverdade, comovocênuncacorreuantes!Eledisparoupelafloresta,semesperarparaversePatadeNuvempodia

acompanhá-lo.Havia apenasuma leveesperançadeultrapassarGarradeTigreeosrenegadoseavisaroclã.Eledespachou todasaspatrulhaspelamanhã, CoraçãodeFogopensou,

lutando contra o pânico.Eme disse para seguir Pata deNuvem.Deixouoacampamentopraticamentesemdefesa.GarradeTigreplanejoutudo!CoraçãodeFogocorriaporentreasárvores, contraindoeesticandoos

fortesmúsculosàmedidaqueavançava.Mas,quandochegouàravina,viuque não fora rápido o bastante. A traseira e a cauda do último dosrenegadosdesapareciamnotúneldetojo.Lançando-se ravina abaixo, pela íngreme lateral, com Pata de Nuvem,

meio atrapalhado, atrás dele, Coração de Fogo soltou umberro: – Clã doTrovão! Inimigos! Ataquem! – Ele se enfiou pelo túnel e, no mesmoinstante,ouviuoutrogritovindodoacampamento.–Comigo,ClãdoTrovão!Erao conhecidogritodebatalha,masavozeradeGarradeTigre.Um

pensamento passou pelamente – em estado de choque – de Coração deFogo. E se ele estivesse errado? E se os renegados estivessem caçando enãoseguindoGarradeTigre?Ele irrompeu na clareira exatamente quandoGarra de Tigre, comuma

pirueta, caiu no meio do bando dos renegados, que se espalharam, aosguinchos, fugindo do ataque. O representante parecia estar tentandoexpulsar os adversários,mas Coração de Fogo, perto o bastante, via quesuas garras estavam recolhidas. Seu coração pesou. A corajosa defesa deGarradeTigreeraumafraude.Eletinhatrazidoosinimigos,mas,comsuacapacidadedefingir,iaconseguirescondersuatraição.Nãohaviamais tempoparapensar.Não importava comoos renegados

tinham chegado, o que importava é que eles estavam atacando oacampamento.CoraçãodeFogovirou-serapidamenteparaPatadeNuvem.–Váprocuraraspatrulhasedigaquevoltem–mandou.–Nevascaestá

emalgumlugarpertodafronteiradoClãdoRio,eTempestadedeAreiafoiparaasRochasdasCobras.

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–Podedeixar.–Ojovementroudenovonotúnel,correndo.Coração de Fogo pulou sobre o renegado mais próximo, um gato

malhadoeescuro,edeslizouasgarrasnalateraldocorpodele.Orenegadorugiu e virou-se para atacar com as patas abertas. Ele tentou imobilizarCoração de Fogo no chão, mas, com as patas traseiras, o guerreiroavermelhadochutouabarrigadooponente,quefugiuaosberros.Coração de Fogo ficou de pé e se agachou com a cauda em um

movimentodechicote,opeloeriçado,olhandoaoredoràprocuradeoutroadversário. Perto da entrada do berçário, Listra Cinzenta lutava com umrenegadodepelodesbotado,osdoisrolandodeláparacá,ambostentandodefender-secomgarrasedentes.CaraRajadaeCaudaSarapintadaestavamengalfinhadascomumguerreiroqueeraodobrodotamanhodelas.Pertoda toca dos guerreiros, Pelo de Rato enterrou as garras dianteiras noombrodeumgatodepeloriscado,usandoastraseiraspararasgaroflancodoopositor.Pasmo, Coração de Fogo congelou. Do outro lado da clareira, o

prisioneiro,CaudaPartida,atacouoguarda,PelagemdePoeira,afundando-lheosdentesna garganta.O guerreiro lutou ferozmentepara se libertar.Embora cego, Cauda Partida ainda era ótimo combatente e não desistia.CoraçãodeFogoentendeu,apavorado,queogatocegoestavado ladodeseus velhos companheiros, os felinos que saíram com ele do Clã dasSombras – e não a favor do Clã do Trovão, que tanto se arriscara paradefendê-loquandoeleestavamachucadoesozinho.Numrelance,CoraçãodeFogolembrou-sedeumacena:GarradeTigree

CaudaPartidadeitadosladoalado,trocandolambidas.Nãoeraumaprovadecompaixãodapartedorepresentante.GarradeTigretinhaplanejadooataquecomoantigotiranodoClãdasSombras!Não havia tempo para pensar sobre isso agora. Coração de Fogo

atravessoucorrendoa clareiraparaajudarPelagemdePoeira,masantesdametade do percurso foi derrubado por um gato renegado. Seu flancolatejou, rasgado por garras de cima a baixo. Olhos verdes e brilhantesestavam a um camundongo de distância de seu rosto. Coração de Fogomostrou os dentes afiados e tentou atingir o ombro do adversário, masacaboutomandoumfortegolpe.Sentiuasgarrascortando-lheaorelha.Suabarriga estava exposta e ele não conseguia se virar para se proteger. Derepente, o renegado soltou um uivo e o soltou. Coração de Fogo viu derelanceojovemaprendizPatadeEspinhocomosdentesfincadosnacaudadorenegado;oinimigoarrastouojovempelochão,atéquePatadeEspinho

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osoltoueogatodeolhosverdesfugiu.Semar,CoraçãodeFogopôs-sedepécomdificuldade.–Obrigado–ele

arfou.–Foiperfeito.PatadeEspinhofezumacenodecabeçaantesdecorrerparaafrentedo

berçário, ondeListraCinzenta ainda lutava. CoraçãodeFogoolhou à suavoltamaisumavez.PelagemdePoeiratinhadesaparecidoeCaudaPartidaandavameiosemrumolálonge,naclareira,soltandogritosestranhos,quedoíamnopeitodeCoraçãodeFogo.Mesmocego,oantigolíderdoClãdasSombraspossuíaum terrível poder, queparecia impulsionadopor forçasdoalém.A clareira fervia com os gatos em luta, mas, quando Coração de Fogo

parouparaserecompor,sentiuumapontadaaindamaisintensademedopercorrer-lheaespinha.OndeestavaEstrelaAzul?Em um tique-taque de coração, percebeu que também não sabia por

onde andava Garra de Tigre. Todos os seus instintos lhe diziam que operigo se avizinhava. Ele contornou Pele de Salgueiro, que estavapenduradonascostasdeumrenegadomuitomaior,osdentescravadosnaorelha do rival, e foi para a toca de Estrela Azul. Para seu alívio, ao seaproximardaentrada,ouviuomiadodalíderládentro:–Depoiscuidamosdisso,GarradeTigre.Oclãprecisadenósagora.Por alguns instantes não houve resposta. Então o guerreiro ouviu

novamente a voz da gata, surpresa. – Garra de Tigre? O que você estáfazendo?A resposta veio com um rugido. – Dê lembranças minhas ao Clã das

Estrelas,EstrelaAzul.–GarradeTigre,oqueéisso?–Omiadoagoraeramaisagudo,incisivoe

raivoso,massemmedo.–Soualíderdoseuclã,ouvocêseesqueceu?–Nãopormuito tempo –Garra deTigre grunhiu. –Voumatar você, e

matar de novo. Quantas vezes forem necessárias para mandá-la parasempreparaoClãdasEstrelas.Estánahoradeeuserolíderdoclã!O protesto de Estrela Azul foi subitamente cortado pelo som de patas

batendocontraochãodurodatoca,acompanhadodeumterrívelrugido.

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CAPÍTULO28

CORAÇÃODEFOGODEUMPULOirrompeupelacortinadelíquen.GarradeTigreeEstrela Azul estavam embolados no chão. Com as garras, ela golpeavarepetidamenteorepresentantenosombros,mas,sendomaispesado,eleamantinhaimobilizadanaareiamacia.AspresasdeGarradeTigreestavamenterradas no pescoço da gata, e suas garras poderosas lhe rasgavam ascostas.– Traidor! – vociferou Coração de Fogo. Ele se atirou sobre Garra de

Tigre,arranhando-lheosolhos.Orepresentanterecuou,forçadoasoltaragarganta de Estrela Azul. Coração de Fogo usou as garras para rasgar aorelhadorepresentante,fazendoesguicharsanguepeloar.Aos tropeços, Estrela Azul foi para a lateral da toca, parecendo meio

atordoada. Coração de Fogo não sabia quão ferida ela estava. A dor oatravessouquandoGarradeTigre atingiu a lateralde seu corpo comumgolpepoderosodesuaspatastraseiras.CoraçãodeFogoderrapounaareiaeperdeuoequilíbrio,batendonochão,comoadversárioemcimadele.Osolhoscordeâmbardorepresentantepenetraramnosdoguerreiro.–

Seucocôdecamundongo!–sibilou.–Euvouesfolarvocê,CoraçãodeFogo.Espereimuitotempoporisso.O guerreiro juntou toda habilidade e força de quedispunha. Sabia que

podia morrer ali, mas, apesar disso, sentia-se estranhamente livre. Asmentiraseanecessidadedeenganartinhamacabado.Ossegredos–osdeEstrela Azul e os de Garra de Tigre – estavam todos descobertos. Haviaapenasoperigodabatalha.GarradeFogomirouagargantadorepresentante,quedesviouacabeça,

easgarrasdoguerreiroapenas lherasparamopeloespesso.Mas,comogolpe,GarradeTigresoltouoguerreiro,queroloupara longe,escapandoporpoucodeumamordidamortal.– Gatinho de gente! – Garra de Tigre insultou, flexionando os quadris

para atacar de novo. – Venha ver como um verdadeiro guerreiro luta. –Atirou-se sobre Coração de Fogo, que, no últimomomento, saiu de lado.Garra de Tigre tentou se virar na toca estreita, mas suas patasescorregaramemumapoçadesangueeelecaiudemaujeito.Coração de Fogo viu imediatamente sua oportunidade. Com as garras,

abriu uma fenda na barriga de Garra de Tigre. O sangue jorrou,encharcando o pelo do representante, que soltou um uivo estridente.

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CoraçãodeFogosaltousobreele,enfiouasgarrasemsuabarrigadenovoecravou-lheosdentesnopescoço.Ooponentelutouemvãoparaselibertar,ficandocadavezmaisfracoàmedidaqueosanguefluía.Coração de Fogo soltou seu pescoço, cravando uma pata na perna

estendidadeGarradeTigre,eaoutra,nopeito.–EstrelaAzul!–chamou.–Ajude-measegurá-lo!A líder estava atrásdele, agachada em seuninhodemusgo.Apesardo

sanguequeescorriadatestadela,oquealarmouCoraçãodeFogofoiseuolhar,queeradeumazulvagoenebuloso.Horrorizada,elapareciaestartestemunhandoadestruiçãodetudoporquetinhatrabalhado.QuandoCoraçãodeFogo falou,elasaltoucomoumgatoqueacordade

repente. Com a lentidão de um sonho, cruzou a toca e se jogou sobre atraseira de Garra de Tigre, imobilizando-o. Mesmo com ferimentos queteriamabatidoumgatomenor,orepresentanteaindalutavaparasesoltar.Seus olhos cor de âmbar queimavam de ódio, e ele cuspia pragas contraCoraçãodeFogoeEstrelaAzul.Umasombracaiusobreaentradadatoca,eCoraçãodeFogoouviuuma

respiração roucae áspera.Virou-se achandoqueveriaumdos invasores,maseraListraCinzenta.Sentiuocoraçãoemdesalentoaoveroamigo.Alateral de seu corpo e uma de suas patas dianteiras estavam sangrandomuito,eosangueborbulhavaemsuabocaquandoelegaguejou:–EstrelaAzul,nós…–Eleinterrompeu-se,estarrecido.–CoraçãodeFogo,oqueestáacontecendo?– Garra de Tigre atacou Estrela Azul – ele respondeu, de pronto. –

Estávamoscertosotempotodo.Eleéumtraidor.Trouxegatosrenegadosparanosatacar.ListraCinzentacontinuavaatônito,edepoissesacudiucomoseestivesse

saindodeáguasprofundas.–Estamosperdendo–miou.–Elessãomuitos.EstrelaAzul,precisamosdesuaajuda.Alíderofitousemresponder.CoraçãodeFogoviuqueseusolhosainda

estavamsembrilhoevagos,comoseadescobertadaverdadesobreGarradeTigretivesseirremediavelmenteabatidoseuespírito.– Eu vou – Coração de Fogo se ofereceu. – Listra Cinzenta, você pode

ajudar Estrela Azul a segurar Garra de Tigre? Vamos nos ocupar delequandoabatalhativerterminado.–Vocêpode tentar,gatinhodegente–o representantezombou, coma

bocacheiadeareia.

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ListraCinzenta,mancando,atravessouatocaetomouolugardoamigo,plantandosuasgarrasnopeitodeGarradeTigre.Porum tique-taquedecoraçãooguerreiroavermelhadohesitou,semmuitacertezadequeListraCinzenta,ferido,eEstrelaAzul,emestadodechoque,seriampáreoparaorepresentante.Maselecontinuavaaperdersangue,esedebatiacommuitomenosenergia.CoraçãodeFogosaiucorrendodatoca.Àprimeiravistaaclareirapareciacheiaderenegados,comosetodosos

guerreiros do Clã do Trovão tivessem sido expulsos. Em seguida, oguerreiroteveumvislumbredeformasfamiliaresaquieali–RaboLongosecontorciadebaixodeumenormegatomalhado;Retalhosedebatiaparasair do alcance de um renegado cinza esquálido, girando o corpo paraarranharonarizdelecomasgarrasàmostraantesdeseatirarnabarrigadorenegadoinimigo.Coração de Fogo tentou reunir forças. A luta com Garra de Tigre o

esgotara, eas feridasdeixadaspelasgarrasdo representantequeimavamcomo fogo. Ele não sabia quanto tempo iria aguentar. Instintivamente,rolouocorpoquandoumagataalaranjadatentoucravarasgarrasemsuascostas. Com o canto dos olhos, viu um corpo ágil, azul-acinzentado,correndopelaclareira,gritandoemdesafio.EstrelaAzul!,pensou,espantado,eimaginouoqueteriaacontecidocom

GarradeTigre.EntãopercebeuqueaguerreiranãoeraEstrelaAzul,esimPédeBruma!Comumesforçoenorme,CoraçãodeFogoselivroudagataalaranjadae

se levantou. Os guerreiros do Clã do Rio chegavam pelo túnel. Pelo deLeopardo, Pelo de Pedra, Garra Negra… Atrás deles vinhamNevasca e oresto de sua patrulha. Fortes e cheios de energia, eles caíram sobre osinvasorescomasgarrasestendidaseascaudaschicoteandoemfúria.Aterrorizados pela repentina chegada de reforços, os renegados

dispersaram.Agataalaranjadafugiu,soltandoumgritodesurpresa.Outrosa seguiram. Coração de Fogo cambaleou alguns passos, perseguindo-os,sibilando e cuspindo para apressá-los, mas não havia mais necessidade.Surpreendidos, quando pensavam que a vitória estava garantida, e semlíder, agora que Garra de Tigre tinha sido capturado, os renegados nãotinhammaisforçaparalutar.Em alguns tique-taques de coração, eles tinham ido embora. O único

inimigoquerestavaeraCaudaPartida,sangrandobastantenacabeçaenosombros.Ogatocegoarranhavaochão,miandodebilmentecomoumfilhotedoente.

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OsgatosdoClãdoRioestavamreunidosdenovoesoltavammurmúriosde preocupação enquanto Coração de Fogo mancava até eles. – Muitoobrigado–elemiou.–Nuncaemminhavidafiqueitãofelizemverumgato.– Reconheci alguns dos antigos guerreiros do Clã das Sombras – disse

PelodeLeopardo,comargrave.–OsquesaíramdoclãcomEstrelaPartida.–Sim.–CoraçãodeFogonãoqueriaaindafalarsobreoenvolvimentode

Garra de Tigre. – Como vocês souberam que precisávamos de ajuda? –perguntou,intrigado.–Nãosabíamos–retrucouPédeBruma.–ViemosfalarcomEstrelaAzul

sobre…–Agoranão–PelodeLeopardointerrompeu,emboraCoraçãodeFogo

pudesse imaginar que ela ia dizer “sobre os filhotes”. – O Clã do Trovãoprecisadetempoparaserecuperar.–ElaabaixouacabeçagraciosamentenadireçãodeCoraçãodeFogo. –Estamos felizespor ter ajudado.Diga àsualíderquevoltaremosembreve.–Sim,voudizer–prometeuoguerreiro.–Eobrigadonovamente.–Ele

observouosgatosdoClãdoRiosaindoe,então,olhouaoredor,sentindoosombrospesadosde cansaço.A clareira estava cobertade sangue epelos.Presa Amarela e Pata de Cinza estavam começando a examinar os gatosferidos. EmboraCoraçãode Fogonão as tivesse percebidona batalha, asduastraziammarcasdasgarrasdosadversários.Elerespirouprofundamente.ErahoradelidarcomGarradeTigre,mas

não sabia se conseguiria reunir forças. Suas feridas pulsavam de dor, etodos os seus músculos protestavam a cada passo. Enquanto se dirigia,mancando, à toca de Estrela Azul, ele ouviu um chamado. – Coração deFogo!Oqueaconteceu?Era Tempestade de Areia, que acabara de voltar da patrulha de caça,

seguidaporPata deNuvem, ofegante. A gata alaranjada olhou à volta daclareiracomosenãopudesseacreditarnoquevia.Cansado,CoraçãodeFogobalançouacabeça.–Os forada leideCauda

Partida–resmungou.–Denovo?–agatacuspiu,desgostosa.–TalvezEstrelaAzulpenseduas

vezesantesdedarabrigoaCaudaPartidaagora.–Émaiscomplicadodoqueisso.–CoraçãodeFogosesentiaincapazde

explicarnaquelemomento.–TempestadedeAreia,vocêpodemefazerumfavor,massemfazerperguntas?Aguerreiraoolhou,desconfiada.–Depende.

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– Vá à toca de Estrela Azul e resolva a situação que encontrar lá. Émelhorlevaroutroguerreirotambém–PelodeSamambaia,vocêpodeir?EstrelaAzulvailhesdizeroquefazer.Pelomenos,assimespero,pensouCoraçãodeFogoquandoagata,ainda

franzindoatesta,fezumsinalparaPelodeSamambaiaeosdoisseguirampara a Pedra Grande. De tudo o que tinha acontecido, o que maisperturbava Coração de Fogo era o fato de que Estrela Azul parecia terperdidoavontadedelideraroclã.De pé no centro da clareira, meio entorpecido, Coração de Fogo

observavaPresaAmarelaexaminarCaudaPartidaedepoiscomeçaraoraempurrá-lo,oraarrastá-loparasuatoca.OantigolíderdoClãdasSombrasestava quase inconsciente, e um fio de sangue escorria do canto de suaboca.Elaobviamenteaindasepreocupacomele,pensouCoraçãodeFogo,confuso.Mesmodepoisdetudoisso,nãoconsegueesquecerqueele,umdia,foiseufilhote.Afastando-se de Presa Amarela, o guerreiro viu Tempestade de Areia

surgir da toca sob a Pedra Grande. Atrás dela vinha Garra de Tigre, queandava com esforço, de forma estranha e cambaleante. Seu pelo estavaempapado de poeira e sangue e ele tinha um olho meio fechado.Tropeçando,caiuemfrenteàpedra.PelodeSamambaiaoseguiadeperto,atentoaqualquersinaldeintenção

deataqueou fuga.AtrásdelevinhaEstrelaAzul.A cabeçadagataestavainclinada,acaudaarrastavanapoeira.UmdosmaioresmedosdeCoraçãodeFogovoltou.A líder fortequeele respeitavaparecia terdesaparecido,dandolugaràquelagatafrágileferida.Porúltimo,saiudatocaListraCinzenta;elevinhamancandoesedeixou

cairàsombradaPedraGrande.PatadeCinzacorreuparaeleecomeçouaexaminar-lheasferidas,comosemblantecontraído.EstrelaAzullevantouacabeçaeolhouaoredor.–Venhamtodosaqui–

eladisse,acenandocomummovimentodacauda.Enquantoorestodoclãsereunia,CoraçãodeFogofoiatéPatadeCinza.–SeráquevocêpodedaralgumacoisaaGarradeTigre?–perguntou.–Paraaliviarador?–Maisdoquetudonomundo,queriaderrotarGarradeTigre,masagoraperceberaque não podia suportar a visão do representante, outrora tão poderoso,sangrandoatéamorte,jogadonapoeira.Pata de Cinza interrompeu o exame de Listra Cinzenta e olhou para o

guerreiro. Para alíviodeCoraçãodeFogo, elanão contestouopedidode

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tratar do gato traidor. – Claro – elamiou. – Vou buscar algo para ListraCinzentatambém.–ElarumouparaatocadePresaAmarela.Os felinos do clã já tinham tomado seus lugares quando ela voltou.

Coração de Fogo podia vê-los inquietos, olhando uns para os outros,querendoentenderosignificadodetudoaquilo.PatadeCinzavoltoucomumchumaçodeervasnaboca.DeixouumpoucodaservaspertodeGarrade Tigre e deu o resto para Listra Cinzenta. O representante farejou asfolhascomdesconfiançae,emseguida,começouamastigá-las.EstrelaAzuloobservouporuminstantee,logodepois,começouafalar.–

Apresento-lhesGarradeTigre,agoraumprisioneiro.Ele…Um coro de murmúrios preocupados a interrompeu. Os gatos do clã

entreolhavam-seemestadodechoqueeconsternação.CoraçãodeFogoviaqueelesnãoentendiamoqueestavaacontecendo.– Prisioneiro? – Risca de Carvão repetiu. – Garra de Tigre é seu

representante.Oqueelefez?–Voulhescontar–avozdeEstrelaAzulsoavamaisfirme,masCoração

deFogoviabemquantolhecustava.–Aindaagora,naminhatoca,GarradeTigre me atacou. E teria me matado se Coração de Fogo não tivessechegadoatempo.Ouviram-se sons de protesto e descrença, agora ainda mais altos. Do

fundo do grupo um ancião soltou um estranho gemido. Risca de Carvãoficoudepé.CoraçãodeFogosabiaqueeleeraumdosmaioresdefensoresde Garra de Tigre, mas até ele estava duvidando. – Deve haver algumengano–elevociferou.EstrelaAzulergueuoqueixo.–Vocêachaqueeunãoseiquandoumgato

tentamematar?–elaperguntousecamente.–MasGarradeTigre…CoraçãodeFogodeuumsalto.–GarradeTigreéumtraidordoclã!–ele

cuspiu.–Foielequetrouxeosrenegadosparacáhoje.Risca de Carvão voltou-se para ele. – Ele nunca teria feito isso. Prove,

gatinhodegente!OguerreirodepeloavermelhadoolhouparaEstrelaAzul.Comumaceno

decabeça,elaochamouàfrente.–CoraçãodeFogo,conteaoclãoquevocêsabe.Tudo.O gato se aproximou devagar. Agora que chegara omomento de tudo

revelar,elesesentiaestranhamenterelutante.Sentia-secomoseestivessejogandoporterraaPedraGrande,enadamaisseriaigual.–GatosdoClãdo

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Trovão–elecomeçou.Suavozpareciaoguinchodeumfilhote,eeleparouparacontrolá-la.–GatosdoClãdoTrovão,vocêsselembramdamortedeRaboVermelho?GarradeTigredissequeCoraçãodeCarvalhoomatara,maseleestavamentindo.FoiGarradeTigrequematouRaboVermelho!–Comovocêsabe?–foiRaboLongoquemfalou,comodesdémhabitual

norosto.–Vocênãoestavanabatalha.– Sei porque conversei com alguém que esteve lá – Coração de Fogo

respondeucomfirmeza.–PataNegramedisse.– Ah, muito útil! – grunhiu Risca de Carvão. – Pata Negra estámorto.

Vocêpodeafirmarqueeledissequalquercoisa,eninguémpodeprovarquevocêestáerrado.CoraçãodeFogohesitou.ElemantiveraemsegredoafugadePataNegra

para protegê-lo de Garra de Tigre, mas agora que o representante eraprisioneiro, não havia mais perigo. E ele precisava revelar tudo. – PataNegra não está morto – ele explicou calmamente. – Eu o levei emboradepoisqueGarradeTigretentoumatá-loporsaberdemais.Mais tumulto, cada gato uivava suas dúvidas e protestos. Enquanto

CoraçãodeFogoesperavaquesossegassem,olhouparaGarradeTigre.AservasdePatadeCinzatinhamfeitoseutrabalho,eoenormegatomalhadocomeçava a recuperar parte de sua força. Sentou-se nas patas de trás eficou olhando o grupo com olhos que pareciam de pedra, como sedesafiasse qualquer gato a se aproximar. As notícias sobre Pata Negradeviam tê-lo abalado, mas ele não demonstrava, nem mesmo por umapequenacontraçãodosbigodes.O tumulto não dava sinal de acabar; então, Nevasca ergueu a voz. –

Calem-se! Deixem Coração de Fogo falar. – O gato curvou a cabeça emagradecimentoaoguerreiromaisvelho.–PataNegramedissequeCoraçãodeCarvalhomorreuquandoumaspedrascaíramsobreele.RaboVermelhoescapoudaspedrasecorreuparaGarradeTigre,queselançousobreeleeomatou.– É verdade. – Listra Cinzenta, deitado na sombra, levantou a cabeça;

PatadeCinzacuidavadeseusferimentos.–EuestavaláquandoPataNegradissetudoissoaCoraçãodeFogo.–EeufaleicomosgatosdoClãdoRio–CoraçãodeFogoacrescentou.–

Elescontaramamesmahistória,queumarochaquecaiumatouCoraçãodeCarvalho.Oguerreiroesperavamaisbarulho,masissonãoaconteceu.Umestranho

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silêncio tinha caído sobre o clã. Os felinos entreolhavam-se como sequisessem encontrar, um no rosto do outro, uma razão para as terríveisrevelações.–GarradeTigre esperava se tornar representante, então–Coraçãode

Fogocontinuou.–MasEstrelaAzulescolheuCoraçãodeLeão.Emseguida,Coração de Leão morreu lutando contra o Clã das Sombras, e Garra deTigre, enfim, realizou sua ambição. Mas ser representante não erasuficienteparaele.Eu…euachoquefoielequemcolocouumaarmadilhaparaEstrelaAzulaoladodoCaminhodoTrovão,sóquefoiPatadeCinzaquemcaiunela.–Olhouparaajovemgataenquantofalavaeviuseusolhosarregaladoseabocaaberta,emumarquejodesurpresa.EstrelaAzultambémpareciaatônita.–CoraçãodeFogofalou-medesuas

suspeitas–ela sussurrou.Suavoz tremeu.–Eunão…eunãoconseguia…acreditar nele. Confiava emGarra de Tigre. – Ela inclinou a cabeça. – Euestavaerrada.–Mas como ele esperava ser feito lídermatando você? – Pelo deRato

quissaber.–Oclãnuncaoapoiaria.– Acho que foi por isso que planejou o ataque damaneira como fez –

CoraçãodeFogosearriscouadizer.–QueriaquepensássemosqueEstrelaAzul foramortaporumdos forada lei.–Avozdoguerreirocresceu.–Equemesperaria queGarradeTigre, o representante leal, quisessepôr asgarras emnossa líder? –Ele fez silêncio.Todoo seu corpo tremia, ele sesentiamolecomoumrecém-nascido.– Estrela Azul – Nevasca falou. – O que acontecerá a Garra de Tigre

agora?Houveumcrescendodeuivosfuriososnoclã.–Mate-o!–Vamoscegá-lo!–Vamosexpulsá-lodafloresta!EstrelaAzulficouimóvel,osolhosfechados.CoraçãodeFogosentiaque

ondasdedora tomavam, tantopelo choqueamargoda traição comopordescobrir quão sombrio era o coração do representante em quem elaconfiaraportantotempo.–GarradeTigre–elamiou,porfim–,vocêtemalgumacoisaadizeremsuadefesa?Garra de Tigre virou a cabeça e fixou na líder seu olhar amarelo. –

Desculpar-mecomvocê, uma covarde,umaguerreirademeia-tigela?Quetipodelíderévocê?Mantendoapazcomosoutrosclãs.Ajudando-os!Você

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malpuniuCoraçãodeFogo e ListraCinzentaquando eles alimentaramoClãdoRio,emandouquelevassemoClãdoVentoparacasa!Eununcateriamostradoessasuavidadedegatinhodegente.TeriatrazidodevoltaosdiasdoClãdoTigre.EuteriatornadograndeoClãdoTrovão!– E quantos gatos teriam morrido por isso? – Estrela Azul sussurrou

quase que para si mesma. Coração de Fogo se perguntava se ela estariapensandoemGarradeCardo,oguerreiroarroganteesanguinárioqueelanãoqueriaquefosseorepresentantedoclã.–Senãotemmaisnadaadizer,então eu o sentencio ao exílio – a líder anunciou comuma voz insegura.Cadapalavrapareciaser-lhearrancada.–VocêvaideixaroterritóriodoClãdoTrovãoagora,esealgumgatooencontraraquiamanhã,depoisdeodiaclarear,temminhapermissãoparamatá-lo.–Matar-me? –Garra deTigre falou, rosnando emdesafio. –Quero ver

quemvaiousar.–CoraçãodeFogoderrotouvocê!–gritouListraCinzenta.– Coração de Fogo. – Garra de Tigre voltou os olhos pálidos e cor de

âmbarparaorival,eojovemguerreirosentiuopeloseeriçarcomaqueleódio irrestrito. – Cruze o meu caminho novamente, sua bola de pelofedorenta,everemosqueméomaisforte.CoraçãodeFogoficoudepé,araivadava-lheenergia.–Quandoquiser,

GarradeTigre–elecuspiu.– Parem! – grunhiu Estrela Azul. – Chega de lutas. Garra de Tigre, vá

embora!Lentamenteogatoselevantou.Suaenormecabeçagirouparatrásepara

afrente,olhandoamultidãodegatos.–Nãopensemqueestouacabado–eleciciou.–Aindasereilíder.Equemviercomigoserábemtratado.RiscadeCarvão?CoraçãodeFogoesticouopescoçoparaveroprincipalseguidordeGarra

deTigre.EsperavaqueRiscadeCarvãofosseaceitar,masoelegantegatomalhadonãosemexeu,osombroscurvados,mostrandosuainfelicidade.–Confiei emvocê,GarradeTigre–eleprotestou.–Penseique fosseo

melhor guerreiro da floresta. Mas você armou um complô com aquele…aqueletirano…–CoraçãodeFogosabiaqueelefalavadeCaudaPartida–enãomedissenada.Agoraesperaqueeuvácomvocê?–Deliberadamente,elevirouorosto.GarradeTigredeudeombros.–EuprecisavadaajudadeCaudaPartida

para entrar em contato com os renegados. Se prefere levar para o lado

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pessoal,problemaseu–elegrunhiu.–RaboLongo?Rabo Longo, nervoso, começou a falar. – Ir com você, Garra de Tigre?

Paraoexílio?Suavoztremia.–Eu…não,eunãoposso.SoulealaoClãdoTrovão!E também um covarde, Coração de Fogo acrescentou para si mesmo,

captando o odor demedo quando Rabo Longo se encolheu no grupo defelinos.Pela primeira vez um olhar de incerteza brilhou no rosto de Garra de

Tigre,quandoospoucosgatosemquemconfiavaserecusaramasegui-lo.–Evocê,PelagemdePoeira?Vocêvai termais lucrocomigodoque jamaisteránoClãdoTrovão.Ojovemgatomalhadoemarromselevantoueabriucaminhoatéparar

diantedeGarradeTigre.–Eurespeitavavocê–mioucomavoznítida.–Queriasercomovocê.MasRaboVermelhofoimeumentor.Devoaelemaisdoqueaqualquergato.Evocêomatou.–Pesarefúriafaziamsuaspernastremerem,maselecontinuou.–Vocêomatouetraiuoclã.Prefiromorreraseguirvocê.–Eleseafastou.Ummurmúriodeaprovaçãosubiudaaudiência,eCoraçãodeFogoouviu

Nevascasussurrar:–Falouedisse,jovem.–GarradeTigre–EstrelaAzulcomeçou.–Chegadisso.Váagora.GarradeTigreficoudepé,emsuaalturaplena,osolhosbrilhandocom

uma fúria fria. – Eu vou. Mas voltarei; estejam certos. E me vingarei detodosvocês!–E,compassosirregulares,seafastoudaPedraGrande.ParoupertodeCoraçãodeFogoearreganhouaboca,mostrandoosdentes, emum rugido. – E quanto a você… – ciciou. – Mantenha os olhos abertos.Mantenha os ouvidos atentos. E continue olhando para trás. Porque, umdia,vouencontrá-lo,evocêvaivirarcarniça.–Vocêjáécarniça–CoraçãodeFogoretorquiu,lutandoparaescondero

medoquepercorreusuaespinha.GarradeTigrecuspiu,virou-seefoiembora.Osgatosdoclãseafastaram

paradeixá-lopassar,todososolhososeguiam.CoraçãodeFogoviuqueoex-representante caminhava sem firmeza – as feridas deviam estarincomodando,apesardaservasdePatadeCinza–,maselenãoparounemolhouparatrás.Otúneldetojooengoliu,eelesefoi.

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CAPÍTULO29

ENQUANTO CORAÇÃO DE FOGO OBSERVAVA O INIMIGO derrotado desaparecer, nãopassavaporsuacabeçaomenorsentimentodetriunfo.Surpreendeu-seaoexperimentar mesmo certa lástima. Garra de Tigre poderia ter sido umguerreiro cujos feitos seriam relatados geração após geração – se eletivesse escolhido a lealdade, não a ambição. O gato avermelhado tevevontadedegritarportamanhodesperdício.À volta dele as conversas recomeçaram, pois os felinos comentavam,

agitados,ossurpreendentesacontecimentos.–Quemseráorepresentanteagora?–VentoVelozquissaber.CoraçãodeFogoolhouparaEstrelaAzulparaverseelapretendiafazer

umanúncio,masalíderescorregoupelalateraldaPedraGrandenadireçãode sua toca.Tinhaa cabeçabaixaearrastavaaspatas, comoseestivessedoente.Aindanãohaverianenhumtipodeanúncio.–AchoqueorepresentantedeviaserCoraçãodeFogo!–declarouPata

deNuvem,pulando,empolgado.–Elefezumótimotrabalho!–CoraçãodeFogo?–OsolhosdeRiscadeCarvãoseestreitaram.–Um

gatinhodegente?–Equaloproblemadesergatinhodegente?–PatadeNuvemsepostou

depénafrentedoguerreiro,muitomaiorqueele.CoraçãodeFogoestavaapontodeinterferirquandoNevascasecolocou

entreRiscadeCarvãoeo jovemaprendiz.– Jáchega–grunhiu.–EstrelaAzulvainosrevelaronomeantesdaluaalta.Assimrezaatradição.CoraçãodeFogorelaxouosombrosretesadosenquantoPatadeNuvem

corriapara se juntar aosdemais aprendizes.O guerreiropercebeuqueojovemnãosederacontadaseriedadedoquetinhaocorrido.Osguerreirosmais velhos, que conheciam bem Garra de Tigre, olhavam uns para osoutroscomoseseumundotivesseacabado.–Eagora,CoraçãodeFogo?–ListraCinzentalevantouoolharquandoo

amigo se aproximou dele e de Pata de Cinza. – Você quer ser orepresentante?–Haviadoremseusolhoseosangueaindaescorriadesuaboca,mas ele agora pareciamais animado do que na época damorte deArroio de Prata, como se a batalha e a revelação da vilania de Garra deTigre tivessem, por um instante, livrado seu pensamento das garras datristeza.CoraçãodeFogonãoconteveumcalafriodeempolgação.Representante

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doClãdoTrovão!Sabiaqueatarefaseriaárdua,manterunidosessesgatosabalados, para que voltassema formarum clã. –Não – ele disse a ListraCinzenta. – E Estrela Azul jamais me escolheria. – Ele se levantou,balançandoacabeçaparatentarafastaressespensamentos.–Comoestásesentindo?Osferimentossãomuitograves?–Elevaificarbem–miouPatadeCinza.–Massualínguafoiarranhadae

aindaestásangrando.Nãoseioquefazerpara línguaarranhada.CoraçãodeFogo,vocêpodeirbuscarPresaAmarelaparamim?–Claro.Da última vez que Coração de Fogo vira a curandeira, ela estava

arrastandoCaudaPartidaparasua toca;enãovoltaraparaacondenaçãodeGarradeTigre.Elecruzouaclareiraeentrounotúneldesamambaia.Aoafastarafolhagemverdeeaveludada,ouviuavozdavelhagata.Algoali–talvezotommacio,tãoraro–ofezpermanecerumpoucomaisaoabrigodoarcodesamambaias.–Não semexa, CaudaPartida. Vocêperdeuumavida – PresaAmarela

murmurava.–Vocêvaificarbem.– Como assim? – grunhiu Cauda Partida, a voz fraca pela perda de

sangue.–Seaindatenhooutravida,porqueminhasferidasaindadoem?–OClãdasEstrelascurouaferidaqueomatou–PresaAmarelaexplicou,

com a voz macia e baixa, que dava calafrios em Coração de Fogo. – Asoutrasprecisamdashabilidadesdeumacurandeira.–Entãooquevocêestáesperando,suapestevelhaemagricela?Mexa-se.

Dê-mealgumacoisaparaessador.–Certo,jávai.–AvozdePresaAmareladerepentetornou-sefriacomo

gelo,eumaondademedopercorreuCoraçãodeFogo.–Tome.Comaessasfrutinhasvermelhaseadorvaipassarparasempre.Coração de Fogo espiava das samambaias e viu Presa Amarela

amassandoalgumacoisacomaspatas.Comcuidadoe intenção,elaroloutrêsbrilhantesfrutinhasvermelhasnadireçãodeCaudaPartida,guiando-lhe a pata até que ele as alcançasse. De repente, Coração de Fogo foitransportadoparaumdiademuitaneve,naestaçãosemfolhas.FilhotedeNuvem fitava um pequeno arbusto de folhas escuras, que dava umasfrutinhasvermelhas, ePatadeCinzadizia: “–As frutinhasvermelhas sãotão venenosas que as chamamos de frutinhas mortais. Basta uma paramatar.”Ele buscou ar para gritar, avisando, mas Cauda Partida já estava

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mascandoasfrutinhas.PresaAmarelaoobservavacomumrostodepedra.–Vocêemeuclãme

expulsaram e eu vim para cá – ela sibilou em seu ouvido. – Eu eraprisioneira,exatamentecomovocê.MasoClãdoTrovãometratoubeme,finalmente,tiveramconfiançabastanteemmimparamefazercurandeira.Vocêpodia termerecidoamesmaconfiança.Masagora–seráquealgumgatoaindavaiconfiaremvocê?Cauda Partida soltou um grito de desprezo. – Você acha que eu me

importo?PresaAmarelaseagachouaindamaisperto,osolhosbrilhando.–Seique

vocênãorespeitanada,CaudaPartida.Nemseuclãnemsuahonraousuafamília.–Nãotenhofamília–elecuspiu.–Vocêestáerrado.Suafamíliaestámaispertodoquevocêpensa.Eusou

suamãe,CaudaPartida.Um ruído curioso e estridente escapou da garganta do guerreiro cego,

como uma terrível tentativa de rir. – As aranhas teceram teias na suacabeça,suavelha.Ascurandeirasnuncatêmfilhos.–Foipor issoquetivedeabrirmãodevocê–PresaAmarela lhedisse,

estaçõesdeamargorpingandodecadapalavra.–Masnuncadeixeidemepreocupar… nunca. Ao vê-lo como um jovem guerreiro, fiquei muitoorgulhosa.–Suavoz tornou-seumroncoabafado:–E,então,vocêmatouEstrelaAfiada.Seuprópriopai.Matoufilhotesdonossoclãedeixouqueeulevasseaculpa.Vocêteriadestruídonossoclãinteiramente.Assim,estánahoradeacabarcomtodaessatraição.–Acabar?Oquevocêquerdizer com isso, suavelha…–CaudaPartida

tentou se levantar, mas suas pernas falharam e ele caiu, fazendo umbarulhão.SuavozseelevoueotomemquefalougelouCoraçãodeFogoatéosossos.–Oquevocêfez?Eunão…nãoconsigosentirminhaspatas.Nãoconsigorespirar…–Deiavocêfrutinhasmortais.–OsolhosdePresaAmarelaerammeras

fendas enquanto ela o observava. Sei que esta é sua última vida, CaudaPartida. As curandeiras sempre sabem. Nenhum gato aqui serámagoadonovamenteporsuacausa.AbocadeCaudaPartidaseabriuemumgritodechoqueemedo.Coração

deFogopensouquepoderiaouviralgumademonstraçãoderemorso,maso guerreiro cego era incapaz de traduzir esse sentimento em palavras.

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Tinha braços e pernas exaustos, e suas patas arranhavam a poeira; seupeitoseelevouembuscadear.Incapazdecontinuarolhando,CoraçãodeFogorecuoueseagachouno

outro extremo do túnel de samambaia, tremendo, até não ouvirmais ossonsdaúltimalutadeCaudaPartida.Então, lembrouopedidodePatadeCinza e se obrigou a voltar, assegurando-se de que Presa Amarela, destavez,oouviriaabrircaminhoentreassamambaias.CaudaPartidajaziaimóvelnocentrodapequenaclareira.Acurandeira,

agachada,tinhaonarizencostadonalateraldeseucorpo.QuandoCoraçãodeFogoentrou,elalevantouacabeça,osolhoscheiosdedor;pareciamaisvelhaemais frágil doquenunca.MasCoraçãodeFogo sabiaqueela eraforte e que a tristeza que sentia por causa de Cauda Partida não iriadestruí-la.–Fiztudooqueeupude,maselemorreu–elaexplicou.Coração de Fogo não podia dizer que sabia que era mentira. Jamais

contariaaninguémoquetinhaacabadodevereouvir.Tentandomanteravozfirme,elemiou:–PatadeCinzapediuparaeuvirsabercomotratardeumalínguaarranhada.Presa Amarela lutou para ficar de pé, como se também sentisse o

formigamentocausadopelasfrutinhasmortais.–Digaqueeuestouindo–faloucomavozrouca.–Sóprecisoapanharaervacerta.Aindasemequilíbrio,elafoiatéatoca.Nãosevirousequerumavezpara

olharocorpoinertedeCaudaPartida.

Coração de Fogo pensou que não conseguiria dormir, mas estava tãoexaustoque,logoqueseajeitouemseuninho,caiuemumestadoprofundodeinconsciência.Sonhouqueestavaemumlugarmuitoalto,oventofaziaseu pelo ondular, e as estrelas do Tule de Prata brilhavam como fogoacetinadosobresuacabeça.Umodorquenteeconhecidoentrouemsuasnarinaseelesevirou.Era

FolhaManchada.Elaseaproximou,encostandocarinhosamenteseunariznodele. –O Clã das Estrelas está chamando você, Coração de Fogo – elafaloubaixinho.–Nãotenhamedo.–Elaentãodesapareceu,deixandocomeleapenasoventoeasestrelas.OClãdasEstrelasmechamando?CoraçãodeFogopensou,intrigado.Será

queestoumorrendo?Omedo o sacudiu, fazendo-o acordar, e ele arfou aliviado ao se ver a

salvo na luz obscura da toca. Suas feridas ainda doíam, e quando ele se

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levantoubraçosepernasprotestaram,rijos,massuaforçaestavavoltando.Alémdisso,eradifícilcontrolaro tremor.SeráqueFolhaManchadatinhaacabadodeprofetizarsuamorte?Então ele entendeu que o arrepio não era apenas de medo. A toca,

normalmentequenteporcausadoscorposdosgatosadormecidos,estavafria,semninguém.Láfora,eleouviaomurmúriodemuitosfelinos.Quandosaiu para encontrá-los, viu que quase todo o clã já estava reunido naclareira,comacorpálidadoamanhecererguendo-seacimadasárvores.TempestadedeAreiaabriucaminhoentreumgrupodegatos.–Coração

deFogo!–elamiou, incisiva.–A luaalta jáveioe jáse foieEstrelaAzulaindanãoindicouonovorepresentante!–Oquê?–CoraçãodeFogoolhoualarmadoparaagatadepelolaranja.O

CódigodosGuerreirosforaquebrado!–OClãdasEstrelasvaisezangar–elesussurrou.– Precisamos ter um representante – Tempestade de Areia continuou,

fazendocomacaudaummovimentodechicote.–MasEstrelaAzulsequersaiudatoca.Nevascatentoufalarcomela,porémelaomandouembora.–ElaaindaestáchocadaporcausadeGarradeTigre–CoraçãodeFogo

lembrou.–Maselaéa líderdoclã–retorquiuTempestadedeAreia.–Nãopode

simplesmenteficarenroladanatocaeseesquecerdenós.Coração de Fogo sabia que ela estava certa,mas não pôde evitar uma

fisgadadecompaixãoporEstrelaAzul.Elesabiaquantoalíderdependerade Garra de Tigre, defendendo-o lealmente contra as acusações. Ela oescolheracomorepresentante,confiandoneleparaajudá-laacomandaroclã. Devia estar arrasada por concluir que estivera errada todo o tempo,quenuncamaispoderiacontarcomaforçaeadestrezadebomlutadordeGarradeTigre.–Elanãovaiesquecer…–elecomeçou,semprosseguir.EstrelaAzulsaiudatocaefoi,aostropeços,atéaPedraGrande.Parecia

velhaecansadaquandosesentouemfrenteàrocha,semtentargalgá-la.–GatosdoClãdoTrovão–elafaloucomavozrouca,malsendoouvidaemmeioaosmurmúriosansiosos.–Prestematenção,poisvounomearonovorepresentante.Todososgatosjásevoltavamparaela,eaclareiraficouemumsilêncio

sepulcral.–DigoessaspalavrasanteoClãdasEstrelas;queosespíritosdenossos

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antepassadospossamouvireaprovarminhaescolha.–EstrelaAzulparounovamente, abaixou a cabeça, fixando o olhar nas patas por tanto tempoqueCoraçãodeFogoatéachouqueelaseesqueceradoqueiadizer.Talveznãotivessesequerdecididoquemseriaonovorepresentante.Um ou dois gatos tinham começado a cochichar,mas pararam quando

EstrelaAzullevantouacabeçanovamente.–OnovorepresentanteseráCoraçãodeFogo–elaanunciou,emaltoe

bomsom.Emseguida,pôs-sedepéecirculouarocha,emumandarduro,enrijecido.Todo o clã congelou. Parecia que um espinho perfurara o peito de

CoraçãodeFogo.Eleseriaorepresentante?Quischamaralíderdevoltaedizerquedeviaserumengano.Elemaldavacontadeserumguerreiro!Ouviu-seavozagudadePatadeNuvemseelevar,exultante.–Eusabia!

CoraçãodeFogoéonovorepresentante!Aliperto,RiscadeCarvãoresmungou:–Ah,é?Poiseunãovoureceber

ordensdeumgatinhodegente!AlgunsgatosforamatéCoraçãodeFogoeocumprimentaram.Entreos

primeirosestavamListraCinzentaeTempestadedeAreia;PatadeCinza,ronronando comentusiasmo, atirou-senadireçãodonovo representanteparalhedarumalambidacompleta.Masoutrosgatos,CoraçãodeFogoreparou,saíramdefininhoenãolhe

dirigiram a palavra. Ficou claro que estavam tão atônitos pela escolhaquanto ele mesmo. Teria sido esse o sentido das palavras de FolhaManchada no sonho, ela avisava que o Clã das Estrelas o chamava?Chamavaparanovasresponsabilidadesparacomoclã?–Nãotenhamedo–eladissera.Ah,FolhaManchada,pensouCoraçãodeFogodesesperado,inundadode

medoedúvida.Comonãotermedo?

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CAPÍTULO30

–ENTÃO,REPRESENTANTEDOCLÖNEVASCAMIOUbaixinhoaoseuouvido.–Oquevocêgostariaqueeufizesseagora?CoraçãodeFogopercebeuqueaoferta era sincera e lançouaogrande

guerreiro branco um olhar agradecido. Ele sabia que o próprio Nevascatalvez esperasse ser o representante, e seu apoio seria valioso nospróximos dias. – Bem… agora… – ele começou, tentando freneticamentedecidir as prioridadesmais urgentes. Comum sobressalto, percebeu queestava tentando imaginar o que Garra de Tigre faria em seu lugar. –Comida. Nós todos precisamos comer. Pata de Nuvem, comece levandopresas frescas aos anciãos. Chame os outros aprendizes para ajudar asrainhasnoberçário.–PatadeNuvemdisparoucomummovimentorápidoda cauda. – Pelo de Rato, Risca de Carvão, encontrem dois ou trêsguerreiroscadaumesaiamempatrulhadecaça.Dividamoterritórioentrevocês.Vamosprecisardemaispresasfrescasimediatamente.EmantenhamavigilânciaquantoaosrenegadosouaGarradeTigre.PelodeRatoseafastoucomumtranquiloacenodecabeça,levandojunto

Pelo de Samambaia e Pele de Salgueiro.Mas Risca de Carvão ficou tantotempo olhando para Coração de Fogo que o representante começou aimaginar o que faria se o guerreiro negro realmente se recusasse aobedecê-lo.Elesustentoucomfirmezaoolharazulpálidoe,porfim,RiscadeCarvãodesviouosolhos,miandoparaRaboLongoePelagemdePoeiraoseguirem.–TodossimpatizantesdeGarradeTigre–Nevascacomentouaovê-los

partir.–Vocêvaiterdeficardeolhoneles.–Eusei–CoraçãodeFogoadmitiu.–Mas,de fato,mostraram-semais

leaisaoclãdoqueaGarradeTigre.Esperoquemeaceitemseeunãopisarnacaudadeles.Nevascadeuumgrunhidoevasivo.–Temalgumacoisaparaeufazer?–perguntouListraCinzenta.–Sim–respondeuCoraçãodeFogocomumalambidaamigávelnaorelha

do amigo. – Volte ao seu ninho e descanse. Você foi gravemente feridoontem.Voulhelevarumapeçadepresafresca.–Ah,estábem.Obrigado,CoraçãodeFogo.–ListraCinzentadevolveua

lambidaedesapareceunatoca.CoraçãodeFogofoiatéapilhadepresasfrescas,ondeencontrouPatade

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Cinza apanhando uma agácia no minguado monte. – Levarei isso paraEstrelaAzul–elapropôs.–Precisoexaminarseuferimento.EdepoisvoupegarumapresafrescaparaPresaAmarela.–Boaideia–CoraçãodeFogomiou,maisconfiante, jáquesuasordens

diligentespareciamestarrestaurandoaordem.–Digaaelaque,seprecisardeajudaparacolherervas,podecontarcomPatadeNuvem,depoisqueeletiveratendidoosanciãos.–Estábem.–PatadeCinzadeuumarisadinha.–Vocêcertamentesabe

comofazerosseusaprendizestrabalhar,CoraçãodeFogo.–Elamordeuaagácia,mas jogou-a no chão com ânsia de vômito. A carne da avemortadescolava dos ossos, revelando uma massa de larvas brancas, que secontorciam.UmfedorhorrívelatingiuCoraçãodeFogo,eeleestremeceu.PatadeCinzarecuou,passandoalínguaemtornodabocarepetidamente

enquantoolhavaacarcaçapodre.Seupelocinza-escuroestavaarrepiado,os olhos azuis, arregalados. – Carniça – ela sussurrou. – Carniça nomeiodaspresasfrescas.Oqueissosignifica?Coração de Fogo não sabia como a agácia podre tinha ido parar lá.

Nenhumgatoteriatrazidoaquilo;nemomaisjovemaprendiz.–Oquesignificaisso?–PatadeCinzarepetiu.Derepente,CoraçãodeFogopercebeuqueelanãoestavapensandoem

razões práticas para o fato. – Você acha que é um presságio? – eleresmungou.–UmamensagemdoClãdasEstrelas?–Talvez.–PatadeCinzaestremeceueolhouparaelecomosenormes

olhosazuis.–OClãdasEstrelasaindanãofaloucomigo,CoraçãodeFogo,pelo menos desde a cerimônia na Pedra da Lua. Eu não sei se é umprenúncio,massefor…–DeveserparaEstrelaAzul–completouCoraçãodeFogo.Seupelose

eriçou quando ele entendeu que aquele era o primeiro sinal dos novospoderes de Pata de Cinza como aprendiz de curandeira. – Você estavalevandoaagáciaparaela.–Elesentiuumarrepiodehorroraopensarnoqueoagouropodiasignificar.SeriaumavisodoClãdasEstrelasdequealiderançadeEstrelaAzulestavaapodrecendodedentroparafora,emboraaameaçaexternadeGarradeTigretivesseterminado?–Não–elemioucomfirmeza. – Isso não pode estar certo. Os problemas de Estrela Azulacabaram.Algumgatofoinegligente,sóisso,etrouxecarniçaparacáporengano.MaselenãoacreditavanasprópriaspalavraseestavacertodequePata

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deCinzatampoucoacreditava.–VouperguntaraPresaAmarela–elamiou,balançandoacabeça,perplexa.–Elasaberá.–PatadeCinza,lépida,pegouum rato silvestre na pilha e atravessou a clareira com seu andarclaudicante.Coração de Fogo a chamou: – Não conte a mais ninguém, só a Presa

Amarela.Oclãnãodevesaberdisso.Vouenterraracarniça.Ela sacudiu a cauda em concordância e desapareceu entre as

samambaias.CoraçãodeFogoolhouaoredorparasecertificardequeninguémouvira

aconversaouviraoanimalemdecomposição.Abilesubiu-lheàgargantaquandoelesegurouopássaropelapontadeumaasaparaarrastá-loatéolimitedaclareira.Esósossegouquandoescavouosuficienteparaenterraraquelacoisapodre.Mesmoassim,elenãoconseguia tirardacabeçaoqueacontecera.Sea

carniçacheiadelarvaserarealmenteumpresságio,quaisseriamosnovosdesastresqueoClãdasEstrelasreservaraparaoClãdoTrovãoesualíder?

Quando o sol estava quase a pino, o clã já voltara a se acalmar. Aspatrulhas de caça tinham retornado, todos os gatos estavam bemalimentadoseCoraçãodeFogocomeçavaapensarquejáeratempodeiràtocadeEstrelaAzulparaverseelafalariacomelearespeitodaconduçãodoclã.Ummovimentono túnel de tojo odistraiu.Quatro gatosdoClãdoRio

apareceram,osmesmosque,nodiaanterior,tinhamsejuntadoàbatalha:PelodeLeopardo,PédeBruma,PelodePedraeGarraNegra.PelodeLeopardotraziaumaferidarecém-curadanoombro,eaorelha

de Garra Negra estava rasgada na ponta, prova do quanto eles tinhamcombatido ao lado do Clã do Trovão para expulsar os gatos renegados.CoraçãodeFogoqueriaacreditarqueelestinhamvindoapenasparasaberseosguerreirosdoClãdoTrovãoestavambem.Mas,nofundo,sabiaqueaquelamissãotinhaavercomosfilhotesdeListraCinzenta.Lutandoparaesconder a tristeza em seu coração, cruzou a clareira e curvou a cabeçaparaPelodeLeopardo–nãoosinal respeitosodeumguerreiroparaumrepresentante,masumcumprimentocortêsentreiguais.– Saudações – miou Pelo de Leopardo, seus olhos demonstravam

surpresacomanovaatitudedeCoraçãodeFogo.–Temosdefalarcomasualíder.

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O novo representante hesitou, imaginando quanto deveria explicar.Levariao restododiapara relatarahistória todada traiçãodeGarradeTigreedescrevercomoelepróprioforanomeadorepresentante.Napausadeumtique-taquedecoração,decidiunadacontaraosvisitantes.Emboraparecessemamistososagora,atémesmooClãdoRiopoderiaficartentadoaatacarumclãqueparecessefraco.Embreve,napróximaAssembleia,elesficariamsabendo.EleinclinoumaisumavezacabeçaefoiprocurarEstrelaAzul.Para seu alívio, a líder estava em sua toca, terminando de comer uma

peça de presa fresca. Parecia mais com ela mesma do que na época doataque de Garra de Tigre. Quando Coração de Fogo se anunciou, EstrelaAzullevantouosolhos,engolindoorestodocamundongo.Passoualínguaaoredordabocaemiou:–CoraçãodeFogo?Entre.Temosmuitacoisaadiscutir.– Sim, Estrela Azul, mas não agora. Os guerreiros do Clã do Rio estão

aqui.– Ah. – Ela se ergueu e se espreguiçou. – Estava esperando por eles,

embora tivesse esperança de que não viessem assim tão cedo. – Saiu datoca e foi encontrá-los. Listra Cinzenta já tinha surgido e parecia estartrocando notícias com Pé de Bruma. Coração de Fogo esperava que seuamigo não estivesse falando demais agora que ele decidira manter umadistânciarespeitosadapatrulhadoClãdoRio.Outrosgatostambémosrodeavam,eseusrostosrevelavamcuriosidade

arespeitodomotivodavisita.QuandoEstrelaAzulacaboudecumprimentarosrecém-chegados,Pelo

de Leopardo começou. – Conversamos longamente sobre os filhotes deArroio de Prata e decidimos que eles pertencem ao Clã do Rio. Dois dosnossosbebêsmorreramontem.Elesnasceramcedodemais.FlordaRelva,amãe,concordouemamamentaressesrecém-nascidos.AchamosquepodeserumsinaldoClãdasEstrelas.Osfilhotesserãobemcuidados.–Elesestãosendobemcuidadosaqui!–exclamouCoraçãodeFogo.PelodeLeopardoolhouparaele,mas,aindaassim, faloudiretamentea

EstrelaAzul.–EstrelaTortanosenviouparabuscá-los.–Avozeracalma,porémdeterminada,mostrandoqueelarealmenteacreditavanodireitodeseuclãdelevarosfilhotes.–Alémdomais–PédeBrumaacrescentou–,os filhotesestãomaiores

agora,eoriobaixouosuficienteparapermitirumatravessiasegura.Eles

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farãoaviagematénossoacampamento.– Sim – miou Pelo de Leopardo, com um olhar de aprovação para a

guerreira mais jovem. – Podíamos ter levado os filhotes antes, mas nosimportamoscomobem-estardelestantoquantovocês.Estrela Azul se ergueu. Embora se mexesse com rigidez e ainda

parecesseexausta,aomenosexteriormenteelarecuperaraaautoridadedelíder. – Os filhotes são metade Clã do Trovão – ela lembrou a Pelo deLeopardo.–JálhedissequedareiaminhadecisãonapróximaAssembleia.–Nãocabeavocêdecidir.–OtomdarepresentantedoClãdoRiocortava

comogelo.Àssuaspalavras,miadosdeprotestoseergueramdamultidãodegatos.– Que descaramento! – cuspiu Tempestade de Areia, de onde estava,

pertodeCoraçãodeFogo.–Quemelapensaqueéparaviraquienosdizeroquefazer?CoraçãodeFogofoiatéEstrelaAzulesussurrou-lheaoouvido:–Sãoos

filhotesdeListraCinzenta.Vocênãopodemandá-losembora.EstrelaAzulcontraiuasorelhase,calma,disseaosvisitantes:–Digama

EstrelaTortaqueoClãdoTrovãovailutarparamanteressesfilhotesaqui.Os dentes de Pelo de Leopardo se arreganharam em uma espécie de

rugido, enquanto os gatos do Clã do Trovão uivavam aprovando EstrelaAzul.Entãoummiadosesobrepôsatudo.–Não!OspelosdeCoraçãodeFogocomeçaramaseeriçar.EraListraCinzenta.Ograndegatocinzacolocou-seaoladodeEstrelaAzul.CoraçãodeFogo

estremeceuquandoviuosolharesdedesconfiançaqueosgatosdoClãdoTrovãolhelançaram,ecomoelesrecuavamàpassagemdeseuamigo.MasListraCinzentapareciaestarempedernidoquantoaessahostilidade.OlhandoprimeiroparaapatrulhadoClãdoRioe,depois,paraosgatos

de seu próprio clã, ele miou: – Pelo de Leopardo está certa. Os filhotespertencemaoclãdamãe.Achoquedevíamosdeixá-lospartir.CoraçãodeFogocongelou.Queriaprotestar,masnãoachavaaspalavras.

Orestodoclãestavaemsilêncioabsoluto,excetoporPresaAmarela,quedissebaixinho:–Eleestálouco.–ListraCinzenta,penseduasvezes–EstrelaAzulpediu.–Seeudeixar

Pelo de Leopardo levar os filhotes, você os perderá para sempre. Elescrescerãoemoutroclã.Nãosaberãodoseuparentesco.Umdiatalvezvocê

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tenhaatémesmodelutarcontraeles.–CoraçãodeFogosentiuatristezanavozdalídereviuseuolharsedesviandoparaPédeBrumaePelodePedra.As palavras revelavam um amargo conhecimento de causa, e, para oguerreiro, parecia impossível que um gato a ouvisse sem perceber averdadesobreosfilhotesquealíderperderamuitotempoatrás.– Entendo, Estrela Azul – Listra Cinzenta concordou. – Mas já causei

problemasosuficienteparaesteclã.Nãovoupedirquelutempelosmeusfilhotes.–EleparoueacrescentouparaPelodeLeopardo:–SeEstrelaAzulconcordar,levareiosfilhotesatéocaminhodepedrasaopôrdosol.Dou-lheaminhapalavra.–ListraCinzenta,não…–deixouescaparCoraçãodeFogo.ListraCinzentavoltouosolhosamarelosparaoamigo,queviunelesdor

eumainfelicidadeimensurável,mastambémumadeterminaçãoqueofezperceberqueogatocinzatinhaalgumacoisaemmente,queele,CoraçãodeFogo,aindanãoentendia.–Não…–elerepetiubaixinho,masListraCinzentanãorespondeu.TempestadedeAreiacutucoucomonarizopelodeCoraçãodeFogoe

sussurrou-lhe algumas palavras de conforto, mas o guerreiro sentia-sedemasiadamenteentorpecidopararesponder.PercebiavagamentePatadeCinza, que, do outro lado, cutucavaTempestade deAreia e sussurrava: –Agoranão,TempestadedeAreia.Nãohánadaquepossamosdizer.Deixeestar.EstrelaAzulinclinouacabeçaeassimficouporumbomtempo.Coração

deFogo via como suas forças, reunidas às pressas, tinham se esvaídonoconfronto,ecomoelaprecisavadesesperadamentedescansar.Atéqueelafalou.–ListraCinzenta,vocêtemcerteza?Oguerreirocinzalevantouoqueixo.–Certezaabsoluta.–Nessecaso–continuouEstrelaAzul–,concordocomsuasexigências,

Pelo de Leopardo. Ao pôr do sol, Listra Cinzenta levará os filhotes até ocaminhodepedras.PelodeLeopardoparecia assustadapor ter conseguidoumacordo tão

rapidamente. Ela trocou um olhar comGarraNegra, como se imaginasseque ali havia algum truque. – Então, vamos confiar na sua palavra – elamiou,virando-separaa líder. –EmnomedoClãdasEstrelas, esperamosquevocêamantenha.ElaabaixouacabeçaparaEstrelaAzulefoiemboracomsuapatrulha.CoraçãodeFogoosviupartiresevirouparaargumentarumavezmaiscomListraCinzenta,masoamigojádesaparecianoberçário.

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Quandoosoldeslizouportrásdasárvores,CoraçãodeFogoesperounotúneldetojo.Asfolhasfarfalhavamacimadesuacabeçaeoarestavacheiodeodoresmornosdofinaldorenovo,masoguerreiromalprestavaatençãoao seu entorno. Sua mente estava cheia de pensamentos sobre ListraCinzenta. De maneira nenhuma ele deixaria o amigo desistir de seusfilhotessemumaúltimatentativadeimpedi-lo.Enfim, Listra Cinzenta apareceu; vinha do berçário e acompanhava os

dois filhotes, que, à sua frente, andavam com pouca firmeza. O pequenogatocinza-escurojátinhaaresdequeiacresceresetornarumguerreiroforte, enquanto a gata, com sua pelagemprateada, era a cópia damãe, eprometiaigualar-seembelezaevivacidade.Flor Dourada seguiu-os para fora do berçário e curvou a cabeça para

trocartoquesdenarizcomosdoisbebês.–Adeus,meusqueridos–mioucomtristeza.Os dois filhotes soltarammiados perplexos quando Listra Cinzenta os

empurrouparafora;osbebêsdeFlorDouradaacariciaramoflancodamãe,comosequisessemconfortá-la.–ListraCinzenta–CoraçãodeFogocomeçou,adiantando-senadireção

doamigo,queseaproximavacomosfilhotes.– Não diga nada – Listra Cinzenta o interrompeu. – Você vai entender

logo.Vocêvemcomigoatéocaminhodepedras?Eu…precisodesuaajudaparalevá-los.–Claro,sevocêquiser.–CoraçãodeFogoestavaprontoaconcordarcom

qualquer coisa que significasse amínima chance de fazer Listra Cinzentamudardeideiaeficarcomosbebês.Osdois guerreiros caminharam juntospela floresta, como tinham feito

tantas vezes antes. Cadaumcarregavaum filhote; osdois pedacinhosdepelomiavame se contorciam, como sequisessemandar comasprópriaspatas. Coração de Fogo não sabia como o amigo poderia suportarabandoná-los. SeráqueEstrelaAzul tinha se sentidoassimquandoolhouseusfilhotespelaúltimavez,antesdedeixarCoraçãodeCarvalholevá-los?Quandochegaramaocaminhodepedras, a luzvermelhadopôrdo sol

estavadesaparecendo.Aluacomeçavaasubireorioeraumafitaprateadaquerefletiaocéudesbotado.Seumurmúriolíquidoenchiaoar,eocapimlongodamargemeranovoefrescosobaspatasdeCoraçãodeFogo.Orepresentantedeixouofilhotequeestavacarregandoemumamoitade

capim macio, e Listra Cinzenta, delicadamente, colocou o outro ao lado

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dele.Entãoseafastouumoudoispassos,fazendoumsinaldecabeçaparaCoraçãodeFogo segui-lo. –Vocêestá certo.Nãopossodesistirdosmeusfilhotes.Uma súbita alegria inundou Coração de Fogo. Listra Cinzenta tinha

mudadodeideia!Poderiamlevarosfilhotesdevoltaparacasaeenfrentara ameaça do Clã doRio, qualquer que fosse. Então seu coração congelouquandooamigocontinuou.–Euvoucomeles.ElessãotudooquerestoudeArroiodePrata,eelame

pediuparacuidardeles.Eumorreriaseelesfossemafastadosdemim.CoraçãodeFogooencarou,abocaaberta.–Oquê?Vocênãopode!–ele

engasgou.–VocêpertenceaoClãdoTrovão.ListraCinzentafezquenão.–Nãomais.Elesnãomequerem,nãodesde

que descobriram sobremim e Arroio de Prata. Não vão confiar emmimnovamente.Eeunemmesmoseiseaindaquero essaconfiança.Achoquenãomesobrounenhumalealdadeaoclã.SuaspalavrasapertaramabarrigadeCoraçãodeFogocomoasgarrasde

um adversário tentando rasgá-la em pedaços. – Ah, Listra Cinzenta – elesussurrou.–Equantoamim?Euquerovocêlá.Euconfiariaaminhavidaavocêenuncaotrairia.OsolhosamarelosdeListraCinzentaestavamcheiosdetristeza.–Eusei

–murmurou.–Nenhumgatojamaisteveumamigocomovocê.Vocêsabequeeudariaaminhavidaporvocê.–EntãofiquenoClãdoTrovão!– Não posso. Essa é a única coisa que não posso fazer por você. Eu

pertençoaosmeusfilhoteseelespertencemaoClãdoRio.Ah,CoraçãodeFogo, Coração de Fogo… – Sua voz se transformou em um gemidoangustiado.–Estousendopartidoaomeio!Coração de Fogo abraçou o amigo, lambendo sua orelha e sentindo o

tremorqueatingiaseucorpoforte.Tinhampassadoportantacoisajuntos.ListraCinzentaforaoprimeirogatodoclãcomquemfalara,quandoeraumgatinhode gente perdidona floresta. Fora seuprimeiro amigonoClã doTrovão. Tinham treinado juntos, tornaram-se guerreiros juntos. Tinhamcaçadonosdiasquentesda estaçãode folhas verdes, quandoo ar estavaimpregnadodecheirosecheiodozumbidodasabelhas,enosdiasamargosda estação sem folhas, quandoomundo inteiro estava congelado. Juntos,tinhamdescobertoaverdadesobreGarradeTigre,arriscando-seà iradeEstrelaAzul.

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Eagoratudoestavachegandoaofim.MasopioreraCoraçãodeFogonãoterargumentos.Eraverdadequeo

ClãdoTrovãoaindadesconfiavadoguerreirocinzaporcausadeseuamorporArroiodePrata, eelesnão tinhamdadonenhumsinaldeque, algumdia, aceitariam os filhotes. Se tivessem lutado para mantê-los, teria sidosomentepelahonradoclã.CoraçãodeFogonãoviafuturoparaoamigoouparaosfilhotesnoClãdoTrovão.Listra Cinzenta se afastou e voltou para chamar os bebês. Eles vieram

tropeçando,miando comsuasminúsculas vozes agudas. –Estánahora–ele miou baixinho para Coração de Fogo. – Verei você na próximaAssembleia.–Nãoseráamesmacoisa.ListraCinzentamanteveoolharfixoporumlongomomento.–Não,não

será. – Então ele levou um dos filhotes pela margem até o caminho depedras, saltando sobre os vãos comobebêpreso, com toda a segurança,pelocangote.Namargemoposta,umasombracinzasaiudosjuncoseficoudepéesperando,enquantoListraCinzentaretornavaparapegarooutro.CoraçãodeFogoreconheceuPédeBruma,amelhoramigadeArroiode

Prata. Sabia que ela amaria aqueles bebês como se fossem seus. Masnenhum gato gostaria tanto de Listra Cinzenta quanto Coração de Fogotinhagostadoaolongodessasquatrolongasestações.Nuncamais, seucoraçãoestavachorando.Nuncamaispatrulhas, nunca

maisbrincardelutar,nemtrocarlambidasnatocadepoisdeumdiadecaça.Nuncamaiscompartilharrisosnemenfrentarjuntososperigos.Acabou.Não havia nada a fazer ou dizer. Impotente, observou Listra Cinzenta

chegaràmargemopostacomosegundofilhote.PédeBrumatrocoutoquesdenariz como guerreiro cinza, depois se inclinoupara cheirar osbebês.Em um acordo tácito, cada um pegou um deles, e os quatro gatosdesapareceramnosjuncos.CoraçãodeFogoficoualiporumlongotempo,olhandoaáguaprateada

que passava pelamargem. Quando a lua subiu acima das árvores, ele seesforçouparaseerguerevoltouparaafloresta.No peito, tristeza e solidão maiores que qualquer outro sentimento

conhecido,mas, aomesmo tempo, ele sentia umaondade energia, vindadasprofundezasde seu ser.Ele revelara a verdade sobreGarradeTigre,que fora impedido de causar mais destruição no clã. Estrela Azul oprestigiaraaomáximo,escolhendo-ocomoosegundonocomando.Apartir

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deagora,elepodiadeixaropassadoparatráseprosseguir,guiadoporsualíderecomFolhaManchadaeoClãdasEstrelasolhandoporele.Inconscientemente, acelerou o passo; quando chegou à ravina, estava

correndo,apelagemcordefogoeraumborrãonapenumbralilás.Coraçãode Fogo estava ansioso por retornar ao Clã do Trovão e à sua nova vidacomorepresentante.

CONTINUA