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VALTAIR AFONSO MIRANDA
HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO DE PATMOS E NO
EXPOSITIO IN APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE
um estudo comparativo
Rio de Janeiro
2017
Valtair Afonso Miranda
HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO DE PATMOS E NO
EXPOSITIO IN APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE
um estudo comparativo
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Instituto de Histoacuteria Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Histoacuteria
Orientadora
Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva
Rio de Janeiro
2017
CIP ndash Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo
Miranda Valtair Afonso
M672h Histoacuteria e Milenarismo no Apocalipse de Joatildeo de Patmos e no
Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore um estudo
comparativo Valtair Afonso Miranda -- Rio de Janeiro 2017
215 f
Orientadora Andreia Cristiana Lopes Frazatildeo da Silva
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria
Comparada 2017
1 Apocalipse de Joatildeo 2 Joaquim de Fiore 3 Milenarismo
4 Expositio in Apocalypsim I Silva Andreia Cristina Lopes
Frazatildeo da Orient II Tiacutetulo
BANCA EXAMINADORA
Titulares
Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (orientadora)
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profa Dra Leila Rodrigues da Silva
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof Dr Paulo Duarte Silva
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof Dr Paulo Augusto de Souza Nogueira
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo
Universidade Metodista de Satildeo Paulo
Profa Dra Monica Selvatici
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social
Universidade Estadual de Londrina
Suplentes
Prof Dr Andreacute Chevitarese
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profa Dra Carolina Fortes
Instituto de Histoacuteria
Universidade Federal Fluminense
DEDICATOacuteRIA
Agrave Elizete Rafael e Caroline
pela parceria e pelo companheirismo durante a produccedilatildeo desta pequisa
Agrave Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva
pelas orientaccedilotildees pacientes e significativas para esta jornada acadecircmica
Ao Programa de Estudos Medievais e seus coordenadores
pelo ambiente saudaacutevel de trocas e partilhas
ldquoOs milenaristas tiveram razatildeo de natildeo
desviar seu olhar da cidade terrestre e de natildeo
ver nela apenas um lugar de expiaccedilatildeo do
pecado Queriam realizar na terra um
primeiro esboccedilo da cidade celeste fazer
surgir nela o maacuteximo de felicidade e de
fraternidaderdquo
Jean Delumeau
RESUMO
Esta pesquisa analisou de forma comparativa os elementos milenaristas presentes no
Apocalipse de Joatildeo e no Expositio in Apocalypsim O profeta Joatildeo produziu um texto que
propotildee um milenarismo revolucionaacuterio que rejeita a ordem social romana e convida sua
comunidade a abandonar as estruturas religiosas imperiais especialmente a instituiccedilatildeo do
culto imperial esperando que isso provoque o martiacuterio dos seus membros e instaure os
eventos que culminaratildeo no retorno do Jesus Glorificado agrave terra para derrotar todos os
inimigos dos fieis ressuscitar os martirizados e implementar um reino durante mil anos Este
ldquoreino dos maacutertiresrdquo com Cristo parece ser o resultado de tradiccedilotildees messiacircnicas e
apocaliacutepticas do Judaiacutesmo antigo materializado no final do seacuteculo I no Apocalipse em
funccedilatildeo de traumas da guerra judaico-romana (66-70) de conflitos entre igrejas e sinagogas
e das diferentes respostas de lideres carismaacuteticos agrave questatildeo do relacionamento com a
sociedade romana Joaquim por seu turno esperava que a Terceira Era da histoacuteria da
humanidade culminasse num descanso sabaacutetico sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Apesar
de ser um periacuteodo relativamente curto a Era do Espiacuterito iria trazer sobre a humanidade o fim
dos conflitos que caracterizavam a histoacuteria eclesiaacutestica sob a lideranccedila de um pai espiritual
que governaria a sociedade nos moldes de uma casa monaacutestica Este ldquodescanso dos mongesrdquo
natildeo teve como ponto de partida entretanto diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim
as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que aguardava uma
fase de felicidade na terra anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica do milenarismo
joaquita na parte final do seacuteculo XII pode estar relacionada com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos
como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica
Palavras-chave Milenarismo Apocalipse de Joatildeo Joaquim de Fiore Filosofia da Histoacuteria
ABSTRACT
This research has analyzed in a comparative way the millenarian elements wich are present
in the Revelation of John and in the Expositio in Apocalypsim The prophet John produced
a text that proposes a revolutionary millenarianism which rejects the Roman social order and
invites its community to abandon the imperial religious structures especially the institution
of the imperial cult hoping that this provokes the martyrdom of its members and establishes
the events that will culminate in the return of the Glorified Jesus to the earth to defeat all
enemies of the faithful and to resurrect the martyred and to implement a kingdom for a
thousand years This kingdom of martyrs with Christ seems to be the result of messianic
and apocalyptic traditions of ancient Judaism which were materialized at the end of the first
century in the Apocalypse as a result of traumas of the Jewish-Roman War (66-70) of
conflicts between churches and synagogues and the different responses of charismatic
leaders to the question of the relationship with Roman society Joachim for his part hoped
that the Third Age of human history would culminate in a Sabbath rest under the inspiration
of the Holy Spirit In spite of being a relatively short period the Age of the Spirit would
bring to humanity the end of the conflicts that characterized ecclesiastical history under the
leadership of a spiritual father who would govern society in the mold of a monastic house
This rest of the monks did not have as its starting point however directly the millennium
of the Revelation but rather the historical reflections of Joachim and the tradition of the
refreshing of the saints that awaited a phase of happiness in the land before parousia The
historical emergency of Joachite millenarism in the late 12th century may be related to the
combination of phenomena such as apocalypticism and monastic reform
Abstract Millenarianism Revelation of John Joachim of Fiore Philosophy of History
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA 11
I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO 27
11 O autor do Apocalipse 27
12 A data do Apocalipse 35
13 O propoacutesito do Apocalipse 38
14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse 44
15 Resumo 47
II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA 48
21 Patmos o ponto de partida 48
22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia 50
23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia 52
24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia 54
25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo 59
26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo 61
27 Resumo 63
III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO 65
31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse 65
32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo 67
33 O contexto narrativo do reino milenar 69
34 O episoacutedio do reino milenar 71
35 O reinado messiacircnico interino na terra 76
36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 82
37 Resumo 88
IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 89
41 O autor do Expositio in Apocalypsim 89
42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim 98
43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim 100
44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse 106
45 Resumo 107
V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA SICIacuteLIA 108
51 A chegada dos normandos 110
52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia 111
10
53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen 113
54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada 114
55 A Igreja no Reino da Siciacutelia 118
56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda 121
57 Resumo 124
VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA DE JOAQUIM 126
61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo 126
62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo 130
63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde 134
64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas 137
65 Sensus typicus histoacuteria e profecia 139
66 O dom da exegese 142
67 Resumo 143
VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 144
71 Estrutura literaacuteria do Expositio 144
72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim 146
73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio 154
74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito 159
75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito 165
76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 171
77 Resumo 176
CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO DOS MONGES 178
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 196
ANEXOS 209
Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1 210
Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2 211
Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia 212
Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185) 213
Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum 214
Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios 215
INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA
Possivelmente as igrejas espalhadas pela Aacutesia Menor no final do seacuteculo I se
originaram da atividade religiosa de Paulo de Tarso na regiatildeo a partir do ano 58 da Era
Comum Natildeo havia centralizaccedilatildeo religiosa e cada comunidade se organizava e sobrevivia
do seu proacuteprio jeito Em termos de lideranccedila estas comunidades levantavam seus quadros
internamente privilegiando formatos colegiados Mesmo assim uma antiga atividade
religiosa ainda se manifestava entre as igrejas a profecia Profetas itinerantes viajavam para
pregar suas mensagens em cada comunidade e se moviam em funccedilatildeo da ajuda que recebiam
destes grupos
Um destes profetas ainda dentro do primeiro seacuteculo mas vaacuterias deacutecadas apoacutes o iniacutecio
do movimento de Jesus ficou conhecido por causa de um livro em que registrou o que seriam
visotildees relacionadas com o final dos tempos conhecido como Apocalipse Nesta obra ele se
identificou simplesmente como Joatildeo e escreveu suas ldquorevelaccedilotildees divinamente recebidasrdquo a
respeito de fenocircmenos histoacutericos e realidades sobrenaturais durante uma permanecircncia ou
visita agrave Patmos uma pequena ilha do mar Egeu proacutexima de Mileto e Eacutefeso
O livro de Joatildeo escrito em grego comeccedila com a expressatildeo ldquorevelaccedilatildeo de Jesus
Cristordquo (ldquoApokaluyij vIhsou Cristourdquo) Tal ldquorevelaccedilatildeordquo pode ser dividida em linhas gerais
em trecircs partes cada uma apresentando um conjunto de pequenos episoacutedios interconectados1
Na primeira (Apocalipse 1-3) Joatildeo descreve o aparecimento do ldquoFilho do Homemrdquo que lhe
revela o conteuacutedo de sete cartas que deveriam ser encaminhadas para sete igrejas A segunda
seccedilatildeo da obra (Apocalipse 4-11) registra o que Joatildeo teria visto apoacutes uma viagem espiritual
ao ceacuteu O conteuacutedo desta segunda visatildeo eacute narrado por meio da abertura de um rolo selado
com sete selos Eacute uma histoacuteria modelada pelas tradiccedilotildees judaicas sobre o fim do mundo que
culmina na implantaccedilatildeo de um esperado reino messiacircnico A uacuteltima seccedilatildeo do livro eacute bem
maior (Apocalipse 12-22) consumindo a metade da obra Nela se desdobra a histoacuteria da
guerra entre uma figura demoniacuteaca o Dragatildeo Vermelho e o Cordeiro siacutembolo usado por
Joatildeo para fazer referecircncia a Jesus fundador do movimento morto em Jerusaleacutem no iniacutecio
do seacuteculo No Apocalipse entretanto Jesus estaacute vivo e aparece descrito em categorias
1 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa
Polebridge Press 1998 p 10-16 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro Representaccedilatildeo e
construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 32-38
12
exaltadas como um ser angelical ou mesmo divino Esta narrativa de guerra escatoloacutegica eacute
uma estrateacutegia do autor para descrever a histoacuteria na forma de conflitos violecircncia e morte
tanto dos seguidores de Jesus quanto dos seguidores do Dragatildeo num processo contiacutenuo que
terminaria na intervenccedilatildeo divina para a construccedilatildeo de uma realidade paradisiacuteaca
transcendental que Joatildeo chamou de Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 211-27) Esta realidade
para aleacutem da histoacuteria entretanto seria precedida pela realizaccedilatildeo histoacuterica de um reino na
terra durante um periacuteodo de mil anos (Apocalipse 201-10)
Haacute evidecircncias de leitura e uso religioso do Apocalipse durante os dois primeiros
seacuteculos por parte de diversos liacutederes de igrejas Estes primeiros leitores enfatizavam
especialmente a passagem do Apocalipse que fala do periacuteodo de mil anos de governo de
Jesus Cristo na terra ao lado dos seus seguidores Por causa desta ecircnfase no milecircnio estes
primeiros leitores foram chamados eventualmente de quiliastas (termo derivado da palavra
grega traduzida como ldquomilrdquo)2
Nem todas as igrejas entretanto deram o mesmo tratamento para o Apocalipse No
periacuteodo de Euseacutebio de Cesareia (265-339) algumas rechaccedilavam a obra joanina enquanto
outras o contavam entre ldquoos livros admitidosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XXV 1-4) De
qualquer forma a obra de Joatildeo de Patmos acabou se fixando no cacircnon do Novo Testamento
cristatildeo fenocircmeno que no Ocidente se deu mais cedo do que no Oriente Em 397 o Siacutenodo
de Cartago reconheceu-o como texto sagrado e na igreja grega no fim do seacuteculo quinto ele
jaacute tinha aceitaccedilatildeo geral3 A partir de entatildeo ele seraacute lido como obra sagrada pelas diversas
comunidades cristatildes tornando-se elemento significativo no fornecimento de imagens e
siacutembolos para composiccedilatildeo de diversas representaccedilotildees sociais antigas e medievais
Mais de mil anos depois de Joatildeo nasceu em Celico na Calaacutebria sul da Peniacutensula
Itaacutelica um homem chamado Joaquim Quando jovem foi educado para atuar como notaacuterio
a serviccedilo do Reino Normando da Siciacutelia mas acabou deixando a corte para abraccedilar a vocaccedilatildeo
monaacutestica Ele comeccedilou a vida religiosa como eremita mas depois ingressou em um
pequeno cenoacutebio em Corazzo na Calaacutebria terminando por fundar no final da vida uma
casa monaacutestica em Fiore a fim de receber os vaacuterios disciacutepulos que desejavam segui-lo Este
monge de meados do seacuteculo XII produziu uma longa reflexatildeo sobre a histoacuteria lastreada
sobre a exegese dos textos biacuteblicos sobre o dogma trinitaacuterio e principalmente sobre o livro
2 WAINWRIGHT Arthur W Mysterious Apocalypse interpreting the Book of Revelation Wipf and Stock
Publishers Eugene 2001 p 21 3 Idem p 33-34
13
do visionaacuterio de Patmos Segundo ele o curso inteiro da histoacuteria estaria ldquoescondidordquo no
Apocalipse embora suas reflexotildees sejam primariamente dirigidas para a histoacuteria da igreja
desde o nascimento de Jesus ateacute a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de felicidade na terra Joaquim
escreveu vaacuterias obras em que trabalhou este mesmo tema4
- Expositio de prophetia ignota Romae reperta Foi composta em 1184 apoacutes o
encontro entre Joaquim e o papa Luacutecio III e consiste na interpretaccedilatildeo de um texto encontrado
entre os documentos do falecido cardeal Matias de Angers relacionado com profecias cristatildes
tradicionais a respeito do fim dos tempos
- De septem sigillis Eacute um pequeno opuacutesculo composto por Joaquim para servir de
guia e resumo do seu esquema das perseguiccedilotildees paralelas do Antigo e Novo Testamentos
baseado nos sete selos do Apocalipse de Joatildeo
- Enchiridion super Apocalypsim Eacute um manual sobre o Apocalipse e deveria servir
de introduccedilatildeo agrave obra joanina Foi escrito durante o periacuteodo que Joaquim passou em
Casamari entre os anos 1183 e 1184
- Praephatio super Apocalypsim Eacute a reuniatildeo de dois pequenos sermotildees de Joaquim
sobre o Apocalipse de Joatildeo pregados possivelmente para os monges de Corazzo Foram
reunidos posteriormente e circularam como uma uacutenica obra por causa de afinidades
temaacuteticas Eacute a uacutenica obra de Joaquim traduzida para a liacutengua portuguesa5
- Adversus Iudaeos No formato de tratado este texto descreve uma expectativa de
conversatildeo geral dos judeus no final dos tempos
- De ultimis tribulationibus Pequeno texto em forma de oraccedilatildeo possivelmente
declamado durante um encontro lituacutergico no mosteiro de Fiore
- Expositio in Apocalypsim Joaquim o iniciou em 1183-1184 mas soacute foi concluiacutedo
entre 1198 e 1200 Eacute tambeacutem a maior obra de Joaquim escrita num latim denso e complexo
Eacute possiacutevel dizer entatildeo que o abade de Fiore desde que abraccedilou a vocaccedilatildeo
monaacutestica decidiu fazer o que Bernard McGinn chamou de ldquocomer o Apocalipserdquo ou digeri-
lo lentamente analogia ao texto do Apocalipse em que o visionaacuterio eacute convidado a comer um
4 Quanto agrave data das obras cf TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di
Gioacchino da Fiore In GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p
73-106 Para uma lista dos manuscritos joaquimitas cf REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the
Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 511-519 5 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse Veritas Porto Alegre v 47 n 3 p 453-471 2002
BERNARDI Orlando Comentaacuterio ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla
Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010
14
livro entregue por um anjo 6 Dentre seus vaacuterios textos evidentemente o destaque fica para
o Expositio jaacute que representa o trabalho final do abade sobre a obra joanina
A partir destes dois personagens o que fizemos nesta tese foi analisar de forma
comparativa o Apocalipse de Joatildeo e o Expositio de Joaquim Em funccedilatildeo mesmo da extensatildeo
das obras e das dificuldades provocadas pelas distacircncias geograacuteficas e temporais entre elas
focaremos na categoria descrita como ldquomilenarismordquo7 e os recortes textuais de Apocalipse
201-10 bem como sua apropriaccedilatildeo na seacutetima parte do Expositio in Apocalypsim (209v-
213r) Em termos especiacuteficos indagaremos sobre a forma como Joaquim interpretou o
milecircnio do Apocalipse e a concepccedilatildeo milenarista que aparece no final
Eacute preciso destacar que cada um de nossos objetos de pesquisa tem sua proacutepria
historiografia Sobre Joatildeo de Patmos e seu Apocalipse por exemplo eacute preciso mencionar
primeiramente o grande volume de obras que se propotildee a fazer uma interpretaccedilatildeo semi-
literal esperando que as visotildees de Joatildeo se convertam em cenas histoacutericas de futuro proacuteximo
tomando o livro joanino como um depoacutesito de profecias predominantemente de
cumprimento iminente Esta tradiccedilatildeo interpretativa nas suas principais configuraccedilotildees
contemporacircneas parecem retroceder a John Nelson Darby (1800-1882) e agraves notas da Biacuteblia
de Estudo Scofield cuja primeira ediccedilatildeo saiu em 19098 Nesta linha eacute possiacutevel mencionar
obras de enorme circularidade como The Late Great Planet Earth (1970) de Hal Lindsey
que vendeu mais de 20 milhotildees de exemplares na sua primeira deacutecada de publicaccedilatildeo9 ou a
seacuterie de dez novelas de Tim LaHaye e Jerry Jenkins intitulada Left Behind escritas de 1995
ateacute 2002 que ultrapassou a quantia de 63 milhotildees de coacutepias vendidas em 37 paiacuteses e 33
liacutenguas diferentes10 Esta tradiccedilatildeo pode ser caracterizada por algumas ecircnfases gerais como
a ideia de um arrebatamento secreto dos crentes fieacuteis a Jesus a conversatildeo final dos judeus
ao Cristianismo e um periacuteodo milenar de felicidade na terra O Apocalipse eacute tratado como
6 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale Gecircnova
Casa Editrice Marietti 1990 p 159 A passagem em questatildeo se encontra em Apocalipse 10 7 Adotamos aqui a concepccedilatildeo de ldquomilenarismordquo do historiador inglecircs Norman Cohn entendendo-a como um
tipo particular de utopia salvacionista que apresenta os seguintes traccedilos gerais coletiva jaacute que todos os fieacuteis
experimentariam a felicidade terrena em funccedilatildeo do fato de que essa felicidade seria alcanccedilada neste mundo e
natildeo numa realidade transcendente total pois aguarda uma completa inversatildeo de todos os males da terra
iminente jaacute que essa transformaccedilatildeo completa estaria perto de comeccedilar e miraculosa agrave luz da certeza de que
essa mudanccedila contaria com a ajuda de seres sobrenaturais Cf COHN Norman Na senda do milecircnio
milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 8 Sobre o papel significativo de John Nelson Darby e a Biacuteblia de Estudo Scofield na interpretaccedilatildeo
contemporacircnea do Apocalipse cf KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford
Blackwell Publishing 2004 p 24-25 WAINWRINGHT op cit p 82-83 9 WAINWRINGHT op cit p 84 10 MONAHAN Torin Marketing the beast Left Behind and the apocalypse industry Media Culture amp
Society Thousand Oaks n 30 p 813-830 2008 p 817
15
parte de um grande quebra-cabeccedila que revelaria por meio de coacutedigos e imagens eventos
dos dias contemporacircneos como o papel dos Estados Unidos no aparecimento do Anticristo
ou o surgimento de um liacuteder poliacutetico de origem socialista como o falso profeta de Apocalipse
13
Do outro lado normalmente vinculados a instituiccedilotildees universitaacuterias estatildeo
pesquisadores cujo foco reside em aspectos histoacutericos do Apocalipse Estudiosos desta linha
histoacuterica se preocupam com a relaccedilatildeo entre Joatildeo e o tempo de produccedilatildeo do Apocalipse
Sendo assim eles procuram perceber ateacute onde o autor na sua narrativa apocaliacuteptica reflete
os medos e esperanccedilas dos grupos que representa ou antagoniza Esses autores tendem a
procurar similaridades entre as visotildees de Joatildeo e eventos contemporacircneos do primeiro seacuteculo
Eles estudam as razotildees que teriam levado o autor ateacute a ilha de Patmos ateacute que ponto o
Impeacuterio Romano promoveu algum tipo de desconforto para as igrejas e as implicaccedilotildees do
governo de Domiciano sobre o movimento de Jesus no final do primeiro seacuteculo Essas
ecircnfases histoacutericas podem ser encontradas por exemplo em R H Charles11 G B Caird12
A Y Collins13 C Rowland14 Leonard Thompson15 C Bauckham16 E S Fiorenza17 e
David Aune18 Estudos como os de C J Hemer19 ainda podem ser uacuteteis para esclarecer
aspectos especiacuteficos das igrejas da Aacutesia menor
Uma significativa tendecircncia de pesquisa eacute a que busca trabalhar o livro de Joatildeo agrave luz
de questotildees como retoacuterica20 e gecircnero21 Esta linha transita do meacutetodo histoacuterico e literaacuterio
para um paradigma de interpretaccedilatildeo retoacuterica Dentro dessa tendecircncia estuda-se a obra de
11 CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New York Charles
Scribner amp Sons 1920 12 CAIRD G B A Commentary on the Revelation of St John the Divine New York Harper amp Row Publishers
1966 13 COLLINS Adela Yarbro The Apocalypse Wilmington Michael Grazier Inc 1982 14 ROWLAND Christopher The Open Heaven A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity
London SPCK 1982 15 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University
Press 1990 16 BAUCKHAM Richard The cliacutemax of Prophecy London T amp T Clark 1993 17 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation Vision of a Just World Minneapolis Augsburg Fortress 1991 18 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 AUNE David E Revelation
6-16 Nashville Thomas Nelson Publishers 1998 AUNE David E Revelation 17-22 Nashville Thomas
Nelson Publishers 1998 19 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield
Academic Press Ltd 1986 20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In
BARR David L (ed) The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta
Society of Biblical Literature 2006 p 243-269 21 PIPPIN Tina The heroine and the whore fantasy and the female in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 60 p 67-90 1992
16
Joatildeo em busca da funccedilatildeo almejada para cada seccedilatildeo ou narrativa do livro percebendo-as
como discursos que buscavam retoricamente convencer uma audiecircncia determinada acerca
das posturas idealizadas por Joatildeo vistas de uma maneira geral como asceacuteticas e sectaacuterias
O Apocalipse assim refletiria a tendecircncia de um profeta judeu que cria em Jesus como o
Messias e se percebia em crise com a sociedade22
A sociologia e a antropologia forneceram aos estudiosos importantes instrumentos
de anaacutelise que nas uacuteltimas deacutecadas comeccedilaram igualmente a resultar em influentes
publicaccedilotildees Festinger23 Norman Cohn24 e John Gager25 trabalharam o apocalipse
vinculando-o aos estudos de milenarismo e a movimentos religiosos sectaacuterios A obra de
Joatildeo poderia ser vista entatildeo como o resultado de uma comunidade oprimida em confronto
com uma dissonacircncia cognitiva difiacutecil de ser conciliada com a realidade O resultado eacute a
construccedilatildeo de um mundo simboacutelico alternativo e a projeccedilatildeo de temores e ressentimentos
para o futuro por meio das imagens apocaliacutepticas
No contexto latino-americano eacute possiacutevel apontar a contribuiccedilatildeo de autores que
aplicam ao Apocalipse uma hermenecircutica da libertaccedilatildeo O livro eacute utilizado para interpretar
realidades poliacuteticas e sociais de opressatildeo contra pobres e marginalizados Dentro desta
perspectiva a obra joanina deveria servir de instrumento para promoccedilatildeo de esperanccedila de
uma vida melhor bem como para estimular resistecircncia a situaccedilotildees de violecircncia e injusticcedila
Leituras deste tipo podem ser encontradas por exemplo em Mester e Orofino26 e Pablo
Richard27
Surgiu em Satildeo Paulo na virada do seacuteculo um grupo de estudiosos vinculados agrave
UMESP voltados para trabalhar o Apocalipse literaturas a ele relacionadas e o cristianismo
dos primoacuterdios por uma oacutetica multi-disciplinar onde os temas satildeo analisados com o apoio
de diversos olhares derivados das ciecircncias da religiatildeo Antropologia da religiatildeo sociologia
da religiatildeo fenomenologia da religiatildeo psicologia da religiatildeo histoacuteria das religiotildees religiotildees
22 Entre outros conferir SILVA David A de The Revelation to John a case study in apocalyptic propaganda
and the maintenance of sectarian identity Sociological Analysis Oxford v 53 n 4 p 375-395 1992 SILVA
David A de The social setting of the Revelation to John Conflicts within fears without Westminster
Theological Journal Philadelfia v 54 p 273-302 1992 23 FESTINGER Leon (ed) When prophecy fails a social and psychological study of a modern group that
predicted the destruction of the world London Pinter amp Martin Ltda 2008 24 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 25 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 26 MESTERS Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo A teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis
Vozes 2003 27 RICHARD Pablo Apocalipse reconstruccedilatildeo da esperanccedila Petroacutepolis Vozes 1996
17
comparadas e estudos literaacuterios Nesta linha trabalham autores como Paulo Nogueira28 e Joseacute
Adriano Filho29 entre outros
Jaacute a historiografia de Joaquim de Fiore parece ter sofrido um incremento a partir das
pesquisas de Herbert Grundmann no iniacutecio do seacuteculo XX30 Grundmann focava na produccedilatildeo
de uma biografia de Joaquim daiacute seu interesse nas hagiografias e narrativas antigas sobre o
abade Em 1960 ele editou duas destas antigas narrativas uma anocircnima e outra atribuiacuteda a
Rainers de Ponza que se tornaram entatildeo fontes fundamentais dos estudiosos
contemporacircneos sobre o abade de Fiore
No mesmo periacuteodo em que Grundmann pesquisava na Alemanha Ernesto Buonaiuti
especialmente a partir de 1930 trabalhava na Itaacutelia na ediccedilatildeo das obras de Joaquim de
pequeno porte O pesquisador italiano chegou a produzir uma anaacutelise abrangente do
pensamento joaquimita31 poreacutem concentrou-se em disponibilizar para os pesquisadores
ediccedilotildees criacuteticas das obras Ele tambeacutem traduziu algumas dessas obras para a liacutengua italiana
Outros estudiosos se envolveram no mesmo ofiacutecio de Buonaiuti fazendo com que as
seguintes obras jaacute apresentassem ediccedilotildees criacuteticas Tractatus super Quatuor Evangelia
(1930) De articulis fidei e Sermotildees (1936) Epistola universis Christi fidelibus e Epistola
domini Valdonensi (1937) Dialogi de prescientia Dei et predestinatione electorum (1938)
Enchiridion in Apocalypsim (1938) Hymnus de paacutetria coelesti (1899) Visio admiranda de
gloria paradisi (18991938) De vita sancti Benedicti et de officio divino secundum ejus
doctrinam (1951) Liber Figurarum (1953) Super flumina Babylonis (1953) De septem
sigillis (1954) Adversus Iudeos (1957) Carta Testamentaacuteria (1960)
Das grandes obras de Joaquim entretanto apenas uma recebeu ediccedilatildeo parcial E
Randolph Daniel editou Liber Condordiae Novi ac Veteris Testamenti32 As outras duas
Expositio in Apocalypsim e Psalterium decem chordarum somente estatildeo acessiacuteveis pelas
ediccedilotildees da Junta de Veneza (seacuteculo XVI) reimpressas em 19641965 pela Editora Minerva
de Frankfurt
28 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza (org) Religiatildeo de visionaacuterios apocaliacuteptica e misticismo no
cristianismo primitivo Satildeo Paulo Loyola 2005 29 ADRIANO FILHO Joseacute O Apocalipse de Joatildeo como relato de uma experiecircncia visionaacuteria Anotaccedilotildees em
torno da estrutura do livro Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana Satildeo Paulo n 34 p 7-29 1999 30 GRUNDMANN Herbert Studien uumlber Joachim von Floris GMBH Springer Fachmedien Wiesbaden
1927 Para a historiografia anterior a Grundmann cf LA PINA George Joachim of Flora a critical survey
Speculum Cambridge v 7 n 2 p 257-282 1932 31 BUONAIUTI Ernesto Gioacchino da Fiore I tempi La vita Il messaggio Roma Consenza 1931 32 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Noui ac Veteris Testamenti
Independence Square American Philosophical Society 1983
18
O trabalho editorial das obras de Joaquim tem sido pontual e esporaacutedico Ainda haacute
muito espaccedilo para reflexotildees nesta aacuterea mesmo do material jaacute editado no iniacutecio do seacuteculo
XX em funccedilatildeo do avanccedilo no trabalho de restauraccedilatildeo de manuscritos antigos Vaacuterias obras
de Joaquim ainda precisam ser traduzidas para liacutenguas modernas o que facilitaria a pesquisa
e a compreensatildeo de seus textos Neste sentido eacute uacutetil apontar o trabalho de um dos membros
do conselho editorial do Centro Internazionale di Studi Gioachamiti Gian Luca Potestagrave Este
conselho desde que foi formado em 199533 tem como propoacutesito reeditar as obras de
Joaquim do iniacutecio do seacuteculo e promover a ediccedilatildeo de obras ainda natildeo editadas Potestagrave precisa
ser mencionado por ser um dos principais bioacutegrafos atuais de Joaquim especialmente depois
de sua obra Il tempo dellacuteApocalisse34
O professor alematildeo Kurt-Victor Selge outro membro do conselho editorial acima
mencionado argumentou que pelo menos trecircs fatores atrasaram a produccedilatildeo de ediccedilotildees
criacuteticas de Joaquim Primeiramente faltou apoio de alguma instituiccedilatildeo religiosa como
aquele que o luteranismo alematildeo deu para as Ediccedilotildees de Weimar das obras de Lutero ou o
papado para a Editio Leonina de Tomaacutes de Aquino a Ordem Florense fundada pelo abade
que poderia ser este apoio se enfraqueceu apoacutes sua morte ateacute desaparecer no seacuteculo XVI
por fim Joaquim se converteu num marginalizado da histoacuteria do pensamento cristatildeo Mesmo
sendo saudado por revolucionaacuterios e iluministas tal aceitaccedilatildeo natildeo se traduziu na fundaccedilatildeo
de alguma instituiccedilatildeo Nesse sentido o renovado interesse em Joaquim a partir do iniacutecio do
seacuteculo XX poderia ser explicado pelo aparecimento de uma ala modernista dentro da Igreja
Catoacutelica que buscava uma figura que legitimasse seu interesse por uma igreja mais livre e
pela busca de historiadores e filoacutesofos que se perguntavam por formas adequadas de vida
comunitaacuteria que poderiam mitigar a crise que a sociedade europeia carregava desde o seacuteculo
XIX As ideias de Joaquim chamaram a atenccedilatildeo desses estudiosos em nuacutemero cada vez
maior especialmente na Itaacutelia e Alemanha e depois tambeacutem na Espanha Inglaterra e
Estados Unidos35
Um outro tipo de pesquisa se debate natildeo com o proacuteprio Joaquim mas com o
desdobrar do seu pensamento dando origem ao que se convencionou chamar de
joaquimismo Pesquisadores desta linha se concentram em encontrar a influecircncia de Joaquim
33 HONEacuteE Eugegravene Joachim of Fiore The development of his life and the genesis of his works and doctrines
About the merits of Gian Luca Potestagraveacutes new biography Church History and Religious Culture Leida v 87
n 1 p 47-74 2007 p 49 34 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 35 Conferir esta anaacutelise em SELGE Kurt-Victor La edicioacuten criacutetica de las Opera omnia de Joaquiacuten de Fiore
Anuario de Historia de la Iglesia Navarra n 11 p 89-94 2002
19
em pensadores e escritores posteriores Em especial alguns estatildeo envolvidos em demonstrar
quais ideias de Joaquim deram iacutempetos a outras figuras e movimentos importantes Neste
acircmbito se situam autores como Marjorie Reeves36 Bernard McGinn37 e Henri de Lubac38
Estes livros se tornaram ponto de partida recente para os estudos sobre a influecircncia de
Joaquim e o desenvolvimento do joaquimismo
Nesta tendecircncia ainda se situam estudos que procuram sua contribuiccedilatildeo para a
teologia e a filosofia da histoacuteria em especial No primeiro caso apontamos Juumlrgen
Moltmann e o seu livro The Trinity and the Kingdom (1981) No segundo indicamos
pesquisadores brasileiros como Vicente Dobroruka e a busca pela relaccedilatildeo de Joaquim com
o pensamento de Ephraim Lessing (1995)39 e Noeli Dutra Rossatto sobre a relaccedilatildeo entre
Trindade e histoacuteria (2004)40 Eacute do historiador brasileiro Dobroruka a avaliaccedilatildeo de que o
sistema profeacutetico de Joaquim eacute considerado um dos pilares da moderna reflexatildeo acerca do
sentido da histoacuteria41
A partir das pontes levantadas pela historiografia aproximamo-nos das questotildees por
meio de um conjunto de conceitos oriundos da abordagem da histoacuteria cultural especialmente
promovidos pelo historiador francecircs Roger Chartier praacutetica representaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo42
Uma de suas aacutereas de pesquisa busca compreender as formas como a produccedilatildeo e recepccedilatildeo
de objetos culturais atuam na configuraccedilatildeo do mundo social Essa abordagem se mostra
revelante para nossa pesquisa justamente por promover uma histoacuteria do livro da leitura ou
das interpretaccedilotildees sociais o que nos ajuda a entender a operaccedilatildeo realizada por Joaquim de
Fiore e Joatildeo de Patmos em seus respectivos contextos Ambos satildeo produtores e receptores
de textos e tradiccedilotildees e consequemente por meio de suas praacuteticas e apropriaccedilotildees atuaram
na construccedilatildeo de novas representaccedilotildees sociais
36 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976
REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit 37 MCGINN Bernard The calabrian abbot Joachim of Fiore in the history of Western Thought New York
Macmillan Pub Co 1985 38 De LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore Madri Ediciones Encuentro 2011 39 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore Revista
Muacuteltipla Brasiacutelia v 5 n 8 p 9-28 2000 Cf tambeacutem sua obra DOBRORUKA Vicente Histoacuteria e
milenarismo ensaios sobre tempo histoacuteria e o milecircnio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 40 ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 41 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore op cit p 9 42 A noccedilatildeo de ldquopraacuteticardquo eacute intercambiaacutevel com produccedilatildeo cultural ldquoapropriaccedilatildeordquo tem relaccedilatildeo com recepccedilatildeo
cultural ldquorepresentaccedilatildeordquo entretanto carrega certa ambiguidade Em alguns momentos Chartier a usa para
falar de estruturas em outro do conteuacutedo das estruturas Cf CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre
praacuteticas e representaccedilotildees Algeacutes Difusatildeo Editorial 2002 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo
Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191 1991
20
Eacute possiacutevel entender as representaccedilotildees como classificaccedilotildees divisotildees e delimitaccedilotildees
que organizam a apreensatildeo do mundo social Elas satildeo categorias intelectuais elementos
mentais estruturantes da realidade exterior subjetivaccedilotildees de realidades materiais
organizadas segundo determinados padrotildees O ser humano jaacute nasce mergulhado num mundo
construiacutedo Ele natildeo participou de sua construccedilatildeo mas em algum momento precisou introjetaacute-
lo e estruturaacute-lo subjetivamente para que ele se tornasse o seu proacuteprio mundo43 Estas
representaccedilotildees individuais ou coletivas geram praacuteticas culturais como a produccedilatildeo de um
livro a verbalizaccedilatildeo dos discursos a idealizaccedilatildeo de comportamentos e valores especiacuteficos
em detrimento da estigmatizaccedilatildeo de outros
A noccedilatildeo dupla de representaccedilotildees e praacuteticas se constitui como poacutelo de um processo
amplo jaacute que natildeo apenas as representaccedilotildees geram praacuteticas mas tambeacutem as praacuteticas geram
representaccedilotildees O tal mundo social como representaccedilatildeo eacute formado por um processo
contiacutenuo de moldes e formas manifestados em discursos que tanto o apreendem quanto o
estruturam44 Numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre as praacuteticas e representaccedilotildees Chartier aponta
a apropriaccedilatildeo entendida como o processo pelo qual um sentido eacute historicamente
produzido45 Apropriaccedilatildeo tem a ver com construccedilatildeo de sentido interpretaccedilatildeo categoria uacutetil
para problematizar a dinacircmica entre sujeito produtor de cultura e sujeito consumidor de
cultura Um livro como objeto da cultura eacute o resultado da produccedilatildeo de sentido de um autor
mas tambeacutem gerador de sentidos nas matildeos de um leitor que se apropria da obra e cria novos
significados Uma anaacutelise das apropriaccedilotildees teria relaccedilatildeo com as condiccedilotildees e os processos de
produccedilatildeo de sentido Cabe descobrir como isso se daacute e verificar as novas formas
constitutivas de mundo46 a partir da leitura ou audiccedilatildeo jaacute que textos podem ser lidos ou
ouvidos em espaccedilos privados ou puacuteblicos Segundo Chartier a apropriaccedilatildeo natildeo se daacute de
forma passiva jaacute que quem recebe um texto pode promover uma apropriaccedilatildeo seletiva ou
mesmo criativa transformando e ateacute negando o sentido do texto lido47 Joaquim por
exemplo construiu um comentaacuterio biacuteblico gecircnero literaacuterio voltado primariamente para
buscar e criar sentidos atraveacutes da apropriaccedilatildeo do texto do Apocalipse de Joatildeo
43 BERGER Peter LUCKMANN Thomas A construccedilatildeo social da realidade tratado de sociologia do
conhecimento Petroacutepolis Vozes 1973 p 87 44 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 23 45 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 179 46 Para os socioacutelogos Berger e Luckmann ldquomundordquo eacute aquilo que as pessoas reconhecem ou entendem existir
independente de sua vontade ou independente delas Cf BERGER Peter LUCKMANN Thomas op cit p
10 47 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 10
21
Daiacute a necessidade de buscar as praacuteticas que organizam os modos de relacionamento
com os textos diferenciadas histoacuterica e socialmente48 Cada comunidade grupo ou
sociedade tem sua proacutepria maneira de ler e interpretar Haacute processos historicamente
condicionados de padronizaccedilatildeo de escrita (gecircnero literaacuterio) da mesma forma como de
leitura que criam limites para o que eacute possiacutevel escrever mas tambeacutem para o que eacute possiacutevel
ver no que estaacute escrito Satildeo as determinaccedilotildees enquadramentos e condicionamentos que
viabilizam tanto a produccedilatildeo quando a apropriaccedilatildeo de uma obra
A apropriaccedilatildeo eacute para o historiador francecircs uma relaccedilatildeo sempre dinacircmica e
dependente de uma seacuterie de fatores Neste sentido as determinaccedilotildees podem se materializar
em situaccedilotildees como a forma em que o manuscrito foi acessado o tipo de material os
procedimentos de leitura a competecircncia dos inteacuterpretes os viacutenculos sociais dos leitores ou
o espaccedilo da audiccedilatildeo49 Os atos de ler e interpretar estatildeo situados no limite entre leitores
determinados por suas posiccedilotildees e textos cujos significados dependem da forma como se
apresentam os discursos e as maneiras como eles satildeo acessados
A leitura neste caso pode gerar tanto representaccedilotildees quanto praacuteticas que natildeo se
identificam completamente com as do texto lido ou com o que o autor tentou imprimir em
sua obra50 Leitores inventam nos textos algo diferente daquilo que seria alguma intenccedilatildeo
autoral A leitura fragmenta o texto junta partes distantes preenche brechas e cria sentidos
Essa dinacircmica entre autor e leitor viabiliza o que Chartier chama de histoacuteria social
das interpretaccedilotildees ou anaacutelise das determinaccedilotildees fundamentais (sociais institucionais
culturais) dos textos e das leituras51 Daacute origem tambeacutem a uma histoacuteria da exegese ou da
hermenecircutica dos textos
O relacionamento das praacuteticas representaccedilotildees e apropriaccedilotildees se articulam com o
mundo social principalmente por trecircs aspectos
- o mundo eacute construiacutedo de forma contraditoacuteria pelos diferentes grupos que compotildeem
uma sociedade a partir de classificaccedilotildees e recortes que produzem as representaccedilotildees
- as praacuteticas promovem uma determinada identidade social uma definida maneira de
ser no mundo a indicaccedilatildeo simboacutelica de uma posiccedilatildeo ou um estatuto
- a proacutepria existecircncia do grupo ou da comunidade eacute marcada e confirmada pelas
formas institucionalizadas e objetivadas que se derivam das praacuteticas Eacute neste sentido que
48 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 181 49 Idem 50 Idem p 59 51 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 26 e 131
22
indiviacuteduos representam instituiccedilotildees e textos se tornam representativos de determinadas
posiccedilotildees sociais
Aqui Chartier alerta para um tipo de luta que natildeo eacute entre classes sociais mas entre
representaccedilotildees diferentes ou formas rivais defendidas por cada grupo para ordenar e
hierarquizar o mundo social52
Chartier nos ajudou a entender Joatildeo e Joaquim como mergulhados em diferentes lutas
de representaccedilotildees53 Nos seus textos eles manifestam conflitos sociais viacutenculos
institucionais e praacuteticas culturais Ambos em suas respectivas conjunturas histoacutericas satildeo
simultaneamente autor e leitor Eles se apropriam de fontes anteriores ou contemporacircneas
imprimindo nelas suas proacuteprias estrateacutegias de consumo de texto produzindo novos sentidos
que se materializaram em suas subsequumlentes obras Em vaacuterios momentos desta pesquisa nos
detemos em questotildees sobre as fontes que cada um leu como elas foram lidas e os sentidos
entatildeo construiacutedos Especialmente no caso do abade ele eacute um leitor expliacutecito do Apocalipse
de Joatildeo e seu comentaacuterio o resultado formal desta leitura
Nosso corpus documental assim leva em conta estes dois objetos de pesquisa com
histoacuterias textuais bem diferentes Enquanto o Apocalipse por fazer parte do cacircnon cristatildeo
tem o suporte das chamadas Sociedades Biacuteblicas54 o Expositio nem mesmo tem uma ediccedilatildeo
criacutetica
Em termos concretos existem cinco tipos de testemunhas55 do texto do Apocalipse
- seis papiros todos fragmentaacuterios
- onze manuscritos unciais trecircs deles com o texto completo
- 293 manuscritos minuacutesculos
- citaccedilotildees patriacutesticas
52 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 182 53 Em algum momento eacute possiacutevel que mesmo universos conflitantes sobrevivam simultaneamente Eacute o caso de
um grupo que constroacutei uma subsociedade dentro da sociedade maior formando uma espeacutecie de refuacutegio e base
para a manutenccedilatildeo do seu mundo dissidente Para isso ele precisa criar procedimentos para proteger a
existecircncia precaacuteria dessa subsociedade das ameaccedilas que vecircm de fora Um dos mais importantes procedimentos
seraacute a limitaccedilatildeo dos relacionamentos significativos para exclusiva ou predominantemente dentro do grupo
Os membros do grupo devem evitar se relacionar significativamente com pessoas de fora que possuem visotildees
divergentes de mundo surgindo entatildeo um comportamento sectaacuterio Cf NEWSOM Carol A The Self as
Symbolic Space Constructing Identity and Community at Qumran Atlanta Society of Biblical Literature
2007 p 12 54 Sobre a produccedilatildeo do texto criacutetico do Apocalipse cf DELOBEL J Le texte de lApocalypse Problegravemes de
meacutethode In Lambrecht (ed) LrsquoApocalypse Johannique et lrsquoApocalyptique dans le Nouveau Testament
Louvain University Press 1980 p 151-166 AUNE David E Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-clix 55 O termo ldquotestemunhardquo eacute usado em ediccedilotildees criacuteticas e obras de criacutetica textual do Novo Testamento para fazer
referecircncia a fontes que conteacutem de forma completa ou fragmentaacuteria o texto biacuteblico como por exemplo um
manuscrito uma traduccedilatildeo antiga uma citaccedilatildeo antiga ou uma transcriccedilatildeo em artefatos arqueoloacutegicos
23
- traduccedilotildees antigas
Estas testemunhas formam a base sobre a qual trabalham os estudiosos que preparam
ediccedilotildees criacuteticas do Apocalipse Dentre essas as trecircs primeiras (papiros unciais e
minuacutesculos) destacam-se na reconstruccedilatildeo do que teria sido o autoacutegrafo56 do Apocalipse pela
relaccedilatildeo direta com o grego idioma de origem da obra joanina
Os seis papiros (P18 P24 P43 P47 P85 e P98) contecircm apenas fragmentos de texto O
mais antigo destes o P98 datado para um periacuteodo tatildeo recuado quanto o seacuteculo II e
consequentemente a mais antiga testemunha textual do Apocalipse preserva apenas
Apocalipse 113-20 Os demais papiros foram produzidos entre os seacuteculos III e V57
Dentre os 11 manuscritos unciais relacionados com o Apocalipse (a A C P 046
051 052 0163 0169 0207 0229) apenas trecircs deles possuem o Apocalipse na sua forma
completa (a A e 046) Os demais preservaram apenas fragmentos como o MS 0169 que
conteacutem apenas Apocalipse 319-43Trecircs deles satildeo datados para o seacuteculo IV (a 0169 e 0207)
trecircs para o seacuteculo V (A C e 0163) um para os seacuteculos VII-VIII (0229) um para o seacuteculo IX
(P) e trecircs para o seacuteculo X (046 051 e 052) Isso significa que a coacutepia completa mais antiga
do texto grego do Apocalipse estaacute no MS a do seacuteculo IV localizado no London British
Museum58
293 manuscritos minuacutesculos satildeo conhecidos por conter pelo menos alguma parte do
Apocalipse Um eacute coacutepia do seacuteculo IX oito do seacuteculo X 35 do seacuteculo XI 30 do seacuteculo XII
58 do seacuteculo XIV 57 do seacuteculo XV 40 do seacuteculo XVI 13 do seacuteculo XVII cinco do seacuteculo
XVIII e dois do seacuteculo XIX Os outros 44 manuscritos minuacutesculos apresentam dificuldades
para a dataccedilatildeo com sugestotildees que variam do seacuteculo IX ateacute o XV59
O conjunto das jaacute mencionadas testemunhas textuais com a inclusatildeo das citaccedilotildees
patriacutesticas e as traduccedilotildees antigas pode ser estruturado em quatro tradiccedilotildees textuais
56 Termo utilizado para fazer referecircncia a um hipoteacutetico texto original Como os originais se perderam a funccedilatildeo
dos estudiosos eacute reconstruiacute-los por meio de comparaccedilatildeo e colagem de diversos tipos de testemunhas seguindo
criteacuterios como antiguidade estilo origem do manuscrito famiacutelia de manuscritos entre outros Conferir uma
descriccedilatildeo destes procedimentos em ALAND Kurt ALAND Barbara The text of the New Testament an
introduction to the critical editions and to the theory and practice of modern textual criticism Grand Rapids
William B Eerdmans Publishing Company 1989 p 280-316 ELLIOTT J K New Testament textual
criticism the application of thoroughgoing principles Leiden Brill 2010 p 13-52 VAGANAY Leon An
introduction to the New Testament textual criticism Cambridge Cambridge University Press 1982 p 52-88 57 AUNE David Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-cxxxviii 58 Idem p cxxxviii 59 Conferir a lista completa dos 293 manuscritos com dataccedilatildeo e descriccedilatildeo do conteuacutedo em AUNE David E
Revelation 1-5 op cit p cxxxix-cxlviii
24
- A primeira eacute denominada de ldquotexto neutrordquo por Aune que a considera a ldquoa melhor
testemunha do texto grego do Apocalipserdquo60 Ela consiste dos unciais A e C bem como do
minuacutesculo 2053
- A segunda consiste no P47 o mais antigo manuscrito do Apocalipse datado para o
segundo seacuteculo junto com o uncial a e as citaccedilotildees de Oriacutegenes
- A terceira parte do texto encontrado no comentaacuterio do Apocalipse de Andreas de
Cesareia na Capadoacutecia que escreveu entre 563-614 Tambeacutem se inscrevem nesta tradiccedilatildeo
textual as duas coacutepias da versatildeo geoacutergica do Apocalipse datadas para o seacuteculo X
- A quarta eacute a mais numerosa e recebe o tiacutetulo de ldquotexto bizantinordquo definida em linhas
gerais como de pouca confianccedila para a restauraccedilatildeo do autoacutegrafo61
A maioria dos manuscritos gregos do Apocalipse62 bem como as demais
testemunhas em linhas gerais guardam relaccedilatildeo predominantemente com o texto bizantino
Isso significa que os textos criacuteticos tendem a partir do texto neutro confrontando-o com a
segunda e terceira tradiccedilatildeo63 e em alguns poucos casos com o texto bizantino
A perspectiva desta histoacuteria textual do Apocalipse eacute uacutetil para o caso de confronto
entre as variantes textuais de alguma passagem especiacutefica do texto de Joatildeo mas o trabalho
eacute enormemente facilitado pelas ferramentas jaacute disponiacuteveis nas duas ediccedilotildees criacuteticas
publicadas
- ALAND Kurt (ed) The Greek New Testament Stuttgart Deutsche
Bibelgesellschaft 1994
- NESTLE Eberhard NESTLE Erwin ALAND Kurt (org) Novum Testamentum
Graece 27 ed Stuttgart Gesamtherstellung Biblia-Druck 1993
Ambas as ediccedilotildees utilizam o mesmo texto criacutetico mas variam na forma como
apresentam e organizam as variantes textuais Destacamos ainda que o papel da ediccedilatildeo
criacutetica do Apocalipse eacute de indicar o autoacutegrafo provaacutevel produzido por Joatildeo natildeo
necessariamente o texto lido por Joaquim nas bibliotecas monaacutesticas por onde passou
(Sambucina Corazzo Casamari e Fiore) Esta uacuteltima por sinal foi destruiacuteda num incecircndio
apoacutes a morte do seu fundador
60 Idem p clvi 61 Idem p clvii 62 Uma lista ampla destes manuscritos com anaacutelise individualizada pode ser encontrada em HOSKIER H
C Concerning the text of the Apocalypse London Bernard Quaritch Ltd 1929 2 v Outra anaacutelise estaacute
disponiacutevel em CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New
York Charles Scribner amp Sons 1920 2 v V 2 p 227-385 63 ELLIOTT op cit p 150
25
Natildeo se sabe quantas coacutepias dos manuscritos de Joaquim foram queimados neste
incecircndio De qualquer forma como jaacute argumentamos foram outros os motivos que
limitaram a difusatildeo dos manuscritos do abade Muito diferente do nuacutemero de testemunhas
de Apocalipse o Expositio in Apocalypsim sobreviveu em apenas seis manuscritos64
- MS 249 em Troyes na Biblioteca Municipal nos foacutelios 38-107 do seacuteculo XIII
- MS H 15 em Milatildeo na Biblioteca Ambrosiana nos foacutelios 65-160 do seacuteculo XIII
ou XIV
- MS Chig A VIII 231 em Roma na Biblioteca do Vaticano nos foacutelios 1-104 do
seacuteculo XIV
- MS 1411 em Roma na Biblioteca Casanatense foacutelios 1-91 do seacuteculo XIV
- MS Cent II 51 em Nuremberg na Stadtbibliothek nos foacutelios 127-373 do seacuteculo
XV
- MS Harley 3049 em Londres no Museu Britacircnico nos foacutelios 137-220 do seacuteculo
XV
- MS A 450 em Rouen na Biblioteca Municipal nos foacutelios 1-31 do seacuteculoXVI
No seacuteculo XVI entretanto a Junta de Veneza editou na forma de incunaacutebolo as trecircs
obras principais de Joaquim Concordia no ano 1519 Expositio e Psalterium em 1527 Estas
foram reimpressas no seacuteculo XX pela Editora Minerva Eacute esta ediccedilatildeo do Expositio in
Apocalypsim65 que usamos em nossa anaacutelise Ela estaacute composta por foacutelios escritos na frente
e no verso Apenas as partes frontais dos foacutelios satildeo numeradas de 1 a 224 Cada foacutelio ainda
tem duas colunas Sendo assim o Expositio eacute referenciado indicando-se o nuacutemero do foacutelio
e se eacute frente ou verso (ldquorrdquo quando for a parte frontal ldquovrdquo para o verso do foacutelio) Neste sentido
ele comeccedila em 26v ou seja no verso do foacutelio 26 e termina em 224r ou seja na parte frontal
do foacutelio 224
Nosso trabalho estaacute estruturado em sete capiacutetulos Usaremos o primeiro capiacutetulo para
analisar a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso implica discutir as condiccedilotildees
histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento de Jesus ateacute a ilha de Patmos
para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na proviacutencia da Aacutesia
Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destinataacuterios data e propoacutesito do Apocalipse bem
64 REEVES Marjorie The influence of prophecy in the later Midlle Ageshellip p 513 65 JOAQUIM VON FIORE Expositio in Apocalypsim Frankfurt Minerva 1964
26
como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com forma e conteuacutedo
definidos
No capiacutetulo segundo nos deteremos na anaacutelise da situaccedilatildeo das igrejas da proviacutencia
romana da Aacutesia em especial as disputas de poder os conflitos com as comunidades judaicas
e as tentativas de interaccedilatildeo com a sociedade romana O objetivo eacute definir as condiccedilotildees de
produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo
O terceiro capiacutetulo analisaraacute Apocalipse 201-10 tendo em vista sua relaccedilatildeo com a
obra como um todo por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos partindo da
traduccedilatildeo do texto grego para definir suas representaccedilotildees de histoacuteria e milenarismo bem
como seus pontos de partida e condiccedilotildees de emergecircncia
O quarto capiacutetulo aplicaraacute no Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram
lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar
elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso
este seraacute o espaccedilo privilegiado para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando
apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o
livro joanino
O quinto capiacutetulo analisa as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia
meridional normanda bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio
Hohenstaufen Estes aspectos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim seus
condicionados e viacutenculos poliacuteticos e religiosos
O sexto capiacutetulo problematizaraacute as estrateacutegias de leitura de Joaquim e sua
metodologia hermenecircutica para tanto analisando formas de apropriaccedilatildeo mediadas pela
diacronia O seacutetimo capiacutetulo partindo de uma siacutentese do texto latino trataraacute da seacutetima parte
do Expositio por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos Analisamos nele as
representaccedilotildees milenaristas e histoacutericas do abade e igualmente seus antecedentes e fatores
de emergecircncia Por fim na conclusatildeo nos perguntamos pelas convergecircncias e divergecircncias
entre Joatildeo e Joaquim profeta e monge Apocalipse e Expositio Patmos e Calaacutebria
I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO
Neste capiacutetulo analisaremos a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso
implica discutir as condiccedilotildees histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento66
de Jesus ateacute a ilha de Patmos para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na
proviacutencia da Aacutesia Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destino data e propoacutesito do
Apocalipse bem como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com
forma e conteuacutedo definidos
11 O autor do Apocalipse
A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta pelo menos dois
elementos principais Primeiramente busca-se em fontes antigas ou paralelas algo que
indique quem escreveu o texto Satildeo as chamadas evidecircncias externas Num segundo instante
observa-se a obra para verificar o que ela mesma consegue indiciar sobre seu autor no que
se pode denominar de evidecircncia interna No caso do Apocalipse tanto um quanto outro
levam em conta a aparente auto-identificaccedilatildeo do autor como ldquoJoatildeordquo (Ἰωάννhj)
- ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas
que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao
seu servo Joatildeordquo (Apocalipse 11)67
- ldquoJoatildeo agraves sete igrejas que se encontram na Aacutesia graccedila e paz a voacutes outros da parte
daquele que eacute que era e que haacute de vir da parte dos sete Espiacuteritos que se acham diante do seu
tronordquo (Apocalipse 14)
66 O termo ldquomovimentordquo eacute uacutetil para descrever a fase preacute-institucional do que viria a se tornar o Cristianismo
Quanto ao uso deste termo conferir o socioacutelogo THEISSEN Gerd Sociologia do Movimento de Jesus Satildeo
Leopoldo Sinodal 1997 p 11 tambeacutem STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria
social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo
Satildeo Leopoldo Sinodal 2004 p 218 Sobre a relaccedilatildeo entre essas comunidades e o restante do Judaiacutesmo Cf
FRIESEN Steve Sarcasm in Revelation 2-3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In
BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta
Society of Biblical Literature 2006 p 142 67 Usaremos para as citaccedilotildees biacuteblicas em portuguecircs a Versatildeo Revista e Atualizada de Almeida salvo quando
se tratar de traduccedilatildeo proacutepria como encontrada em BIacuteBLIA SAGRADA Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1980
28
- ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila
em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho
de Jesusrdquo (Apocalipse 19)
- ldquoEu Joatildeo sou quem ouviu e viu estas coisas E quando as ouvi e vi prostrei-me
ante os peacutes do anjo que me mostrou essas coisas para adoraacute-lordquo (Apocalipse 228)
Essas passagens do Apocalipse indicam que Joatildeo eacute o nome assumido pelo autor
autor este que se insere na obra na forma de um personagem enquanto descreve eventos e
experiecircncias religiosas Natildeo haacute qualquer outro nome vinculado a Joatildeo Identificaccedilotildees
romanas levavam em conta geralmente preacute-nome nome e poacutes-nome como o Imperador
Titus Flavius Domitianus Identificaccedilotildees judaicas seguiam nome e filiaccedilatildeo geralmente o
nome do pai (Isaque ben Abraatildeo) mas agraves vezes a identificaccedilatildeo da cidade (Jesus de Nazareacute)
O Joatildeo do Apocalipse entretanto parece ser suficientemente conhecido da sua audiecircncia
para que natildeo precise se apresentar com nada mais aleacutem do que um nome Kuumlmmel entende
em funccedilatildeo disso que ldquoo simples nome de Joatildeo indica uma personalidade comumente
conhecida e a maneira auto-evidente com que ele coloca seus apelos no sentido de ser
ouvido mostra dever tratar-se de um homem que goza de grande autoridaderdquo68
O autor do livro tambeacutem se apresenta como irmatildeo e companheiro (ldquoἀδελφς καὶ
συγκοινωνςrdquo) daqueles que iratildeo receber sua mensagem (Apocalipse 19) o que reforccedila a
sugestatildeo de que ele era bem conhecido de sua audiecircncia
O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse pelo que se conhece foi
Papias bispo de Hierapolis uma cidade proacutexima de Laodiceia uma das cidades que aparece
como destinataacuteria do livro (Apocalipse 314-22) Ele atuou como liacuteder eclesiaacutestico no inicio
do segundo seacuteculo e escreveu uma obra intitulada ldquoInterpretaccedilotildees de ditos do Senhorrdquo Esta
obra se perdeu mas foi citada por muitos autores antigos Andreas bispo de Cesareia na
Capadoacutecia escrevendo um comentaacuterio do Apocalipse no seacuteculo VI registrou que Papias
conheceu o Apocalipse considerava-o inspirado por Deus e comentou uma de suas
passagens (A interpretaccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo o Teoacutelogo 1011) Infelizmente natildeo haacute
nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menccedilatildeo clara sobre quem escreveu o
Apocalipse
Justino Maacutertir chegou a residir em Eacutefeso outra das cidades mencionadas diretamente
no Apocalipse (Apocalipse 21-7) por volta do ano 135 Ele escreveu no seu ldquoDialogo com
68 KUumlMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 618
29
Trifordquo na seccedilatildeo em que defende o cumprimento literal de profecias judaicas que esperavam
um reinado literal do Messias na terra que um homem chamado Joatildeo um dos apoacutestolos de
Cristo ldquonuma revelaccedilatildeo que lhe foi feita profetizou que os que tiverem acreditado em nosso
Cristo passaratildeo mil anos em Jerusaleacutemrdquo (Diaacutelogo com Trifo 814) Nos seus termos ele fez
uma referecircncia ao mais tradicional ciacuterculo de disciacutepulos de Jesus descrito regularmente
como ldquoos doze apoacutestolosrdquo Os Evangelhos canocircnicos (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo)
descrevem Jesus durante sua atividade religiosa pela Palestina cercado de um grupo de
disciacutepulos que o acompanhava a todos os lugares O Evangelho de Marcos o mais antigo
dos quatro escrito no final da deacutecada de 60 do seacuteculo I69 relaciona os seguintes nomes neste
ciacuterculo de seguidores Simatildeo Pedro Tiago e Joatildeo filhos de Zebedeu Andreacute Filipe
Bartolomeu Mateus Tomeacute Tiago filho de Alfeu Tadeu Simatildeo o cananeu e Judas
Iscariotes (Marcos 316-19) Aparentemente entatildeo Justino entendeu que o ldquoJoatildeordquo
mencionado no iniacutecio do Apocalipse era o mesmo ldquoJoatildeordquo dos primoacuterdios do movimento de
Jesus um dos seus disciacutepulos originais
Irineu fez o mesmo que Justino em torno de 180 e natildeo soacute ligou o Apocalipse ao
filho de Zebedeu como tambeacutem ao quarto Evangelho canocircnico conhecido como Evangelho
de Joatildeo (Contra as Heresias V30) Apesar de bispo na cidade de Leon na Gaacutelia ele passou
parte da infacircncia em Esmirna na Aacutesia outra das sete cidades do Apocalipse (Apocalipse
28-11)
Autores antigos como Hipolito de Roma (170-236) Tertuliano de Cartago (160-220)
e Origenes de Alexandria (morreu em 254) seguiram Irineu na opiniatildeo de que o Apocalipse
e o Evangelho de Joatildeo foram escritos pela mesma pessoa um dos disciacutepulos diretos de Jesus
o filho de Zebedeu70
No seacuteculo III entretanto Gaio um presbiacutetero da igreja de Roma promoveu forte
criacutetica contra o Apocalipse Na base deste ataque estava uma oposiccedilatildeo ao movimento
montanista Como Montano e seus seguidores eram fervorosos leitores do Apocalipse Gaio
entendeu que o livro precisava ser totalmente rejeitado pelas igrejas Ele argumentou entatildeo
que a obra natildeo era nem do apoacutestolo Joatildeo nem do presbiacutetero Joatildeo mas de um homem
chamado Cerinto Sua criacutetica foi registrada por Euseacutebio
No entanto tambeacutem Cerinto por meio de revelaccedilotildees que diz serem escritas
por um grande apoacutestolo apresenta milagres com a mentira de que lhe
69 KUumlMMEL op cit p 117 70 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The Westminster
Press 1984 p 26
30
teriam sido mostradas por ministeacuterios dos anjos e diz que depois da
ressurreiccedilatildeo o reino de Cristo seraacute terrestre e que novamente a carne que
habitaraacute em Jerusaleacutem seraacute escrava de paixotildees e prazeres Como inimigo
das Escrituras de Deus e querendo fazer errar diz que haveraacute um nuacutemero
de mil anos de festa nupcial (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XVIII 2)
Entretanto tanto a sugestatildeo de Justino e Irineu quanto a de Gaio se mostram fraacutegeis
A relaccedilatildeo do Apocalipse com um disciacutepulo direto de Jesus natildeo encontra eco dentro do
proacuteprio livro O autor se autodenomina realmente Joatildeo mas natildeo declara viacutenculo algum com
Zebedeu com um apoacutestolo ou com qualquer outro disciacutepulo de Jesus dos tempos iniciais
Se as doze pedras mencionadas na descriccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 2119-21)
evocam realmente os doze apoacutestolos como Adela Collins argumenta71 isso indicaria que os
apoacutestolos no tempo do Apocalipse jaacute haviam alcanccedilado um alto e elevado status dentro das
comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da feacute e base para a existecircncia das
igrejas Mas nada sugere que o autor se veja entre estes Os indiacutecios indicam que os apoacutestolos
eram figuras do seu passado
Nesta mesma linha se os apoacutestolos eram figuras tatildeo importantes para as igrejas e o
livro fosse uma obra pseudocircnima escrita por uma figura histoacuterica de nome Cerinto mas
atribuiacuteda retroativamente ex eventu a um grande liacuteder do passado esperava-se que o
Apocalipse contivesse viacutenculos mais expliacutecitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de
Nazareacute Mas natildeo haacute qualquer elemento no livro que pudesse levar os primeiros leitores a
fazer essa identificaccedilatildeo a natildeo ser a curta auto-apresentaccedilatildeo do autor homocircnima de um dos
antigos disciacutepulos O proacuteprio Jesus que aparece no livro estaacute bem distante daquele que se
movimenta nos Evangelhos Eacute uma figura exaltada e glorificada descrita por meio de
categorias angelicais ou divinas (Apocalipse 113-18) A ausecircncia de traccedilos ou indiacutecios de
natureza biograacutefica inviabiliza a hipoacutetese do presbiacutetero Gaio de que a obra seja pseudocircnima
O vinculo do Apocalipse com o Evangelho de Joatildeo eacute igualmente fraacutegil Dionisio um
bispo de Alexandria na segunda metade do seacuteculo III apesar de natildeo simpatizar em linhas
gerais com o Apocalipse rejeitou o ataque que Gaio e outros fizeram agrave obra Ele argumentou
que Apocalipse e Evangelho satildeo obras muito diferentes para terem sido escritas pela mesma
pessoa Sua conclusatildeo registrada por Euseacutebio foi no sentido de que os textos satildeo de autoria
diferente
Portanto natildeo contradirei que ele se chamava Joatildeo e que este livro eacute de
Joatildeo Porque inclusive estou de acordo de que eacute obra de um homem santo
e inspirado por Deus Mas eu natildeo poderia concordar facilmente em que
71 Idem p 27
31
este fosse o apoacutestolo o filho de Zebedeu e irmatildeo de Tiago de quem eacute o
Evangelho intitulado de Joatildeo e a carta catoacutelica (Histoacuteria Eclesiaacutestica VII
XXV 7)
Em funccedilatildeo de um grande nuacutemero de pessoas possuir o mesmo nome teria sempre a
possibilidade de equiacutevocos de identificaccedilatildeo Alem disso havia a tendecircncia de associar livros
sagrados a grandes figuras do passado Este era um criteacuterio comum para que estas obras
fossem aceitas e usadas nas igrejas ao lado das Escrituras judaicas
Dionisio ainda argumentou que deveria haver outro liacuteder cristatildeo de nome Joatildeo na
Aacutesia Ele faz referencia neste sentido a dois tuacutemulos ainda encontrados nos seus dias na
cidade de Eacutefeso dedicados a liacutederes antigos que levavam este nome Euseacutebio resumiu esta
perspectiva
De forma que tambeacutem isto demonstra que eacute verdade a histoacuteria dos que
dizem que na Aacutesia houve dois com este mesmo nome e em Eacutefeso dois
sepulcros dos quais ainda hoje se afirma que satildeo um e outro de Joatildeo Eacute
necessaacuterio prestar atenccedilatildeo a estes fatos porque eacute provaacutevel que fosse o
segundo ndash se natildeo se prefere o primeiro ndash o que viu a Revelaccedilatildeo
(Apocalipse) que corre sob o nome de Joatildeo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III
XXXIX 6)
Eacute difiacutecil entretanto relacionar o Joatildeo do Apocalipse com qualquer tiacutetulo eclesiaacutestico
Ele natildeo usa epiacutetetos conhecidos do periacuteodo como apoacutestolo evangelista mestre bispo
presbiacutetero ou diaacutecono Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas e
possivelmente ele as conhecia ele se recusou a usaacute-las Essa recusa pode indicar que ele natildeo
se enxergava nesses tiacutetulos ou entatildeo que as comunidades que receberam o Apocalipse natildeo
o reconheciam nos mesmos
Desta forma ainda assumindo que o nome que aparece no iniacutecio do livro eacute uma
referecircncia autecircntica (natildeo-pseudocircnima) a seu autor e que ele se chamava realmente Joatildeo as
evidecircncias externas acumuladas sobre ele natildeo representam muito O Joatildeo do Apocalipse natildeo
parece ser entatildeo o filho de Zebedeu um dos disciacutepulos originais de Jesus ou o autor do
Evangelho de Joatildeo ou uma figura antiga das igrejas conhecida como Joatildeo o presbiacutetero
Possivelmente foi a tendecircncia das igrejas em identificar os autores das obras
sagradas como apoacutestolos de Jesus e o fato do livro identificar seu autor com um ldquoJoatildeordquo que
levou Justino Irineu e os outros antigos escritores cristatildeos a associaacute-lo com o filho de
Zebedeu ou com o autor do quarto Evangelho O que parece eacute que o livro foi escrito por um
homem chamado Joatildeo que se tornou significativo para a histoacuteria do cristianismo pela
32
produccedilatildeo de apenas um livro livro esse que se constitui entatildeo na fonte mais expressiva
para indicar outros aspectos de sua identidade e seu lugar social
Aleacutem das observaccedilotildees anteriores de que Joatildeo era bem conhecido de sua audiecircncia
um segundo elemento interno a respeito de sua identidade social eacute a ligaccedilatildeo com uma
atividade conhecida como ldquoprofeciardquo Joatildeo natildeo se denomina explicitamente profeta mas o
faz implicitamente em vaacuterios lugares do Apocalipse Ele intitula sua mensagem de profecia
(Apocalipse 13 227 10 18) e narra uma experiecircncia de vocaccedilatildeo de forma muito
semelhante a profetas da tradiccedilatildeo judaica (Isaiacuteas 61-13 Jeremias 14-10 Ezequiel 28-333)
Por isso Lohse argumenta que Joatildeo foi um ldquoprofeta dos primoacuterdios do cristianismo que
atuou nas comunidades da Aacutesia com grande vigorrdquo72 Assim tambeacutem entende Bovon para
quem Joatildeo como profeta apresenta-se como um instrumento da revelaccedilatildeo divina e uma voz
do Cristo exaltado73
Estudiosos tendem a relacionar o fenocircmeno da profecia no movimento de Jesus ateacute
o inicio do segundo seacuteculo com a atividade de lideranccedila itinerante principalmente como
encontrada nas proviacutencias da Aacutesia Menor74 As comunidades locais eram dirigidas por
liacutederes assentados no meio delas que moravam nas cidades e dirigiam as congregaccedilotildees
Documentos do movimento de Jesus do iniacutecio do segundo seacuteculo denominavam estes liacutederes
de epiacutescopos presbiacuteteros e diaacuteconos (1Timoacuteteo 31-13 Tito 15-9) Do outro lado existiam
liacutederes itinerantes que viajavam de igreja em igreja de um lugar para outro normalmente
denominados de profetas apoacutestolos evangelistas ou mestres Estas distinccedilotildees natildeo eram tatildeo
riacutegidas jaacute que liacutederes locais poderiam viajar enquanto liacutederes itinerantes poderiam parar
durante certo tempo em uma igreja Um liacuteder local poderia ser itinerante num momento o
itinerante poderia eventualmente residir numa cidade Mesmo assim as definiccedilotildees
funcionais ou carismaacuteticas podem iluminar a atividade de Joatildeo como profeta na regiatildeo da
Aacutesia No Apocalipse ele faz referecircncia a sete igrejas em sete cidades (Apocalipse 111) o
que indica que ele transitava por elas O conteuacutedo das cartas do Apocalipse (Apocalipse 2-
3) sugere tambeacutem que as igrejas o conheciam o que aponta para uma atividade religiosa
mais ampla do que uma especiacutefica igreja local
Por ser profeta e profeta itinerante Joatildeo pode ter abraccedilado um estilo de vida asceacutetico
como o seu livro parece sugerir (Apocalipse 141-5) Este tipo de vida seria derivado do
72 LOHSE Eduard Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Leopoldo Sinodal 1985 p 249 73 BOVON Franccedilois Johnrsquos Self-presentation in Revelation 19-10 Catholic Biblical Quaterly Washington
n 62 p 693-700 2000 p 700 74 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 34
33
formato da atividade religiosa que Jesus desenvolveu com os seus disciacutepulos Nos
Evangelhos eles satildeo vistos constantemente viajando de lugar para lugar sem casa fixa
Ditos dos Evangelhos (Marcos 820 Mateus 1023 entre outros) ainda reforccedilam essa postura
que foi chamada por Gerd Theissen de carismatismo itinerante com a expectativa de uma
vida sem paacutetria sem famiacutelia sem posses e sem proteccedilatildeo75
Viajar de lugar para lugar rompia com os laccedilos locais de estabilidade social Os
disciacutepulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida asceacutetica e mesmo apoacutes a morte do
fundador do movimento alguns continuaram na vida andarilha Talvez seja por isso que o
autor do Didaqueacute no iniacutecio do seacuteculo II chamou a itineracircncia de ldquomodo de vida do Senhorrdquo
(Didaqueacute 118) Aleacutem dos laccedilos sociais os andarilhos tambeacutem renunciavam agrave famiacutelia Um
logia de Jesus encontrado no Evangelho de Marcos aponta neste sentido
Tornou Jesus Em verdade vos digo que ningueacutem haacute que tenha deixado
casa ou irmatildeos ou irmatildes ou matildee ou pai ou filhos ou campos por amor
de mim e por amor do evangelho que natildeo receba jaacute no presente o cecircntuplo
de casas irmatildeos irmatildes matildees filhos e campos com perseguiccedilotildees e no
mundo por vir a vida eterna (Marcos 1029-30)
Poucos dos missinaacuterios destacados pelo autor dos Atos dos Apoacutestolos satildeo descritos
em atividade familiar Natildeo haacute qualquer referecircncia agrave famiacutelia de Paulo Estes itinerantes
renunciavam tambeacutem a propriedades ou recursos financeiros o que dava ao pregador
condiccedilotildees de fazer a criacutetica contra a riqueza Quem perambulava pela Palestina Siacuteria e Aacutesia
Menor em pobreza demonstrativa poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em
descreacutedito76 Por isso o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades de Jesus
localmente constituiacutedas para ter uma porccedilatildeo miacutenima para sobreviver Isso lhes parecia bem
como aos olhos das comunidades locais uma demonstraccedilatildeo da bondade divina que natildeo
deixava o itinerante carismaacutetico morrer de fome ou sede
De qualquer forma a praacutetica do carismatismo itinerante demandava abraccedilar um estilo
radical de vida religiosa com niacutetidas consequecircncias asceacuteticas e combinava amplamente com
uma perspectiva escatoloacutegica de fim iminente da histoacuteria como provavelmente pregada por
Jesus77
75 THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op cit p 18 76 Na anaacutelise da atividade carismaacutetica itinerante cf THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op
cit p 16-22 77 ALLISON Dale C Jesus of Nazareth Millenarian prophet Minneapolis Fortress Press 1998 p 60-61
34
Aleacutem do seu papel religioso como profeta autores sugerem que Joatildeo era judeu por
nascimento um nativo da Palestina onde passou um bom tempo de sua vida78 Haacute
possibilidade de ele ter residido na Judeacuteia ateacute a instauraccedilatildeo da guerra contra os romanos (66-
70) que terminou com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico79 Esse tipo de
identificaccedilatildeo ilumina a forma como Joatildeo compreendia a relaccedilatildeo entre Israel e Igreja Ele natildeo
entendia o movimento de Jesus e suas comunidades como uma religiatildeo nova e independente
do grande e plural fenocircmeno religioso que os estudiosos chamam de Judaiacutesmo80
Joatildeo reinvidica o uso do termo ldquojudeurdquo (Ἰουδαίος) para os seguidores de Jesus
(Apocalipse 29 39) e demonstra tensatildeo com sinagogas locais que poderia indiciar mais
uma crise interna do que um conflito entre religiotildees distintas Seu uso das Escrituras judaicas
o grego semitizante do Apocalipse81 o domiacutenio da tradiccedilatildeo religiosa do periacuteodo do Segundo
Templo como apocalipses e oraacuteculos indicam uma pessoa fortemente envolvida com as
tradiccedilotildees do antigo Israel Muitas de suas perspectivas sociais e poliacuteticas poderiam derivar
de determinadas tradiccedilotildees judaicas mais do que de correntes especiacuteficas do movimento de
Jesus
Mesmo assim um aspecto significativo da identidade social do autor do Apocalipse
tem relaccedilatildeo justamente com essa ldquoseita judaicardquo O Judaiacutesmo no periacuteodo que vai da ascenccedilatildeo
hasmoneana (167 aC) ateacute pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 dC) abarcava
diversos partidos e grupos religiosos82 Um destes grupos teve iniacutecio com a atuaccedilatildeo da pessoa
de Jesus de Nazareacute entre 27-30 inicialmente na Galileacuteia para terminar com sua morte em
Jerusaleacutem O autor do Apocalipse afirma ser seguidor de Jesus (Apocalipse 19) de quem
recebeu a sua revelaccedilatildeo
Apesar de choques eventuais entre os grupos eles se reconheciam mutuamente como
herdeiros das mesmas tradiccedilotildees religiosas antigas das alianccedilas dos patriarcas das Escrituras
judaicas e da Lei de Moiseacutes Provavelmente Joatildeo se via como um judeu e membro do
fenocircmeno religioso judaico83 O mesmo poderia ser afirmado a respeito das comunidades
78 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 p 276 79 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 47 80 Sobre a pluralidade de perspectivas no interior do Judaiacutesmo cf BAUMGARTEN Albert I Ancient Jewish
Sectarianism Judaism Genebra v 47 n 4 p 387-403 1998 81 Para uma discussatildeo da linguagem do Apocalipse sua sintaxe e seu vocabulaacuterio cf CALLAHAN Allen
Dwight The Language of Apocalypse Harvad Theological Review Cambridge v 88 n 4 p 453-470 1995 82 Para uma anaacutelise ampla sobre a questatildeo da identidade judaica na antiguidade cf GOODMAN Martin
Judaism in the Roman World collected essays Leiden Brill 2007 p 21-32 83 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 277
35
que receberam o Apocalipse Elas faziam parte de um movimento que ainda se entende
judaico84 apesar da identificaccedilatildeo com um grupo especiacutefico dentro do Judaiacutesmo Eacute possiacutevel
denomina-los mesmo como judeus que reconhecem Jesus como o messias
Duas deacutecadas depois na mesma regiatildeo do Apocalipse entretanto Inaacutecio de
Antioquia falaria em suas cartas de ldquoCristianismordquo () e descreveraacute seus membros
como ldquocristatildeosrdquo () o que indica que o movimento naquele periacuteodo e na sua
expressatildeo asiaacutetica jaacute tem formulado uma identidade autocircnoma em relaccedilatildeo ao Judaismo Nos
termos de Inaacutecio ldquoeacute melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaiacutesmo
de incircuncisordquo (Carta aos Filipenses 61)85
12 A data do Apocalipse
O Apocalipse de Joatildeo eacute uma obra escrita no chamado grego koinecirc liacutengua comum
aos territoacuterios do antigo Impeacuterio de Alexandre o Grande A obra de grande porte para os
padrotildees do periacuteodo comeccedila desta forma ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para
mostrar aos servos dele as coisas que devem acontecer em breve e enviou-a sinalizando
atraveacutes do seu anjo para o seu servo Joatildeordquo86
Como boa parte das fontes antigas a obra natildeo tem tiacutetulo ou marca de identificaccedilatildeo
Mas durante seu uso logo passou a ser identificada por meio da sua primeira palavra
apocalipse transliteraccedilatildeo simples de ποκάλυψις O termo pode ser traduzido como
ldquorevelaccedilatildeordquo87
No momento de definir a data da obra o testemunho de Irineu eacute novamente invocado
pelos estudiosos Ele registrou que ldquoo Apocalipse foi visto natildeo haacute muito tempo em nossa
proacutepria geraccedilatildeo no fim do reinado de Domicianordquo (Contra as Heresias 5303) Grande parte
dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definiccedilatildeo entendendo que mesmo
que o testemunho de Irineu quanto ao nome do autor natildeo seja confiaacutevel a data ainda pode
84 Enquanto categoria religiosa e natildeo eacutetnica jaacute que natildeo era preciso ser etnicamente judeu para fazer parte do
Judaiacutesmo 85 Noutro lugar ldquoEacute preciso natildeo soacute levar o nome de cristatildeo mas ser de fatordquo (Carta aos Magneacutesios 4) A respeito
do cristianismo e judaiacutesmo em oposiccedilatildeo nas cartas de Inaacutecio cf COHEN Shaye J D Judaism without
Circumcision and ldquoJudaismrdquo without ldquoCircumcisionrdquo in Ignatius Harvard Theological Review Cambridge v
95 n 4 p 395-415 2002 86 ldquoἈποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ ἣν ἔδωκεν αὐτῷ ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐν τάχει καὶ
ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃrdquo (Apocalipse 11) 87 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 67
36
ser mantida para o fim do reinado de Domiciano em meados de 95-9688 Segundo Adela
Yarbro Colllins natildeo existe nenhuma boa razatildeo para duvidar da sugestatildeo de Irineu quanto agrave
eacutepoca do Apocalipse89 Ela pressupotildee neste caso que a obra na sua forma atual eacute o
resultado de um uacutenico autor O Apocalipse apresenta uso de fontes tradicionais ou literaacuterias
mas ainda possui uma unidade coerente subjacente a uma uacutenica autoria Nos termos de
Collins ldquoa unidade de estilo e a cuidadosa complexa e deliberada estrutura do livro como
um todo torna supeacuterflua a hipoacutetese da compilaccedilatildeo de extensas fontes escritas ou uma seacuterie
de ediccedilotildeesrdquo90
Vitorino de Pettau morto em 303 escreveu o mais antigo comentaacuterio completo do
Apocalipse a sobreviver Ao comentar a passagem do Apocalipse em que Joatildeo come um
livro (Apocalipse 103) ele escreveu
Joatildeo teve esta visatildeo quando estava na ilha de Patmos condenado agraves minas
por Cesar Domiciano Parece pois que Joatildeo escreveu dali o Apocalipse
quando jaacute era um anciatildeo Depois de seus sofrimentos quando foi
assassinado Domiciano e anulados todos os seus decretos foi Joatildeo
liberado das minas e transmitiu este mesmo Apocalipse que recebeu do
Senhor (Comentaacuterio ao Apocalipse 103)
Euseacutebio de Cesareacuteia faz comentaacuterio parecido com o de Vitorino ldquoEacute tradiccedilatildeo que
neste tempo o apoacutestolo e evangelista Joatildeo que ainda vivia foi condenado a habitar a ilha
de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deusrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III VIII 1)
Ainda ldquoFoi entatildeo que o apoacutestolo Joatildeo voltando de seu desterro na ilha retirou-se para viver
em Eacutefeso segundo relata a tradiccedilatildeo de nossos antigosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XX 9)
Esses dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante o reino de
Domiciano Ambos acrescentam que Joatildeo foi banido para Patmos pelo Imperador tendo
sido liberado apoacutes a morte do mesmo A tradiccedilatildeo neles preservada do desterro de Joatildeo ou
de Patmos como uma colocircnia penal entretanto natildeo eacute apoiada pela historiografia91 Mesmo
assim os testemunhos de Vitorino e de Euseacutebio satildeo importantes para definir a data do
Apocalipse mais ateacute do que para descrever a situaccedilatildeo em que isso se deu
Em termos de evidecircncia interna Adella Collins indicou alguns elementos que
reforccedilam a hipoacutetese da deacutecada de 90 Um primeiro pode ser encontrado no uso muito
especiacutefico que o Apocalipse faz do nome Babilocircnia (Apocalipse 148 1619 175 182
88 Entre outros KUumlMMEL op cit p 613-617 89 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57 90 Idem p 54 91 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University
Press 1990
37
10 21) Eacute muito difiacutecil que o autor da obra esteja fazendo referecircncia a antiga cidade da
Mesopotacircmia presente nas tradiccedilotildees literaacuterias judaicas por ter destruiacutedo o reino de Judaacute em
586 aC derrubado a capital Jerusaleacutem e o templo de Salomatildeo Em Apocalipse 17 Joatildeo
descreve Babilocircnia como uma mulher e pelo menos duas marcas na fala do anjo indicam
que a mulher representa a cidade de Roma O versiacuteculo nove descreve-a assentada sobre sete
montanhas ldquoAqui estaacute o sentido da sabedoria as sete cabeccedilas satildeo sete montanhas onde a
mulher estaacute assentada Tambeacutem satildeo sete reisrdquo (Apocalipse 179) O versiacuteculo 18 a apresenta
como uma cidade ldquoque tem poder sobre os reis da terrardquo Estas indicaccedilotildees para uma
audiecircncia da Aacutesia no final do primeiro seacuteculo indicariam que Babilocircnia era um siacutembolo para
a cidade de Roma A capital do Impeacuterio aparece frequentemente como a cidade das sete
montanhas (Capitoacutelio Quirinal Viminal Esquilino Ceacutelio Aventino e Palatino) e era a
cidade mais importante politicamente do Mediterracircneo
E o que essa associaccedilatildeo entre Babilocircnia e Roma poderia indicar em termos de dataccedilatildeo
para o Apocalipse A maioria das ocorrecircncias de Babilocircnia como nome simboacutelico para
Roma na literatura judaica estaacute em 4Esdras 2Apocalipse de Baruque e no quinto livro dos
Oraculos Sibilinos Nestas obras Roma eacute chamada de Babilocircnia porque ela como a antiga
cidade mesopotacircmica destruiu Jerusaleacutem e o Templo Ou seja o nome simboacutelico de Roma
Babilocircnia eacute forte indiacutecio de que o Apocalipse foi escrito apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e o
Templo no ano 7092
Aleacutem do uso simboacutelico do termo Babilocircnia para descrever Roma tiacutepico de obras
judaicas posteriores ao ano 70 Collins aponta outros elementos internos
- A lenda do retorno de Nero em Apocalipse 13 e 17 principalmente a referecircncia agraves
cabeccedilas da besta (Apocalipse 179-11) reforccedila a hipoacutetese de que o Apocalipse eacute posterior agrave
morte de Nero em 68 dC e ao aparecimento da tradiccedilatildeo de que ele retornaria para retomar
o poder93
- A concepccedilatildeo de Joatildeo de que a comunidade de Jesus eacute o novo templo de Deus bem
como a profecia de que na Nova Jerusaleacutem natildeo haveria mais templos indicariam que o
Apocalipse eacute posterior agrave destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem (70 dC)94
92 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57-58 PAGELS Elaine The Social History of
Satan Part Three John of Patmos and Ignatius of Antioch Contrasting Visions of ldquoGods Peoplerdquo Harvad
Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006 p 494 93 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 58-64 94 Idem p 64-69
38
Outros elementos como os indiacutecios de conflitos com sinagogas locais em Esmirna e
Filadeacutelfia as referecircncias a perseguiccedilotildees por parte do Impeacuterio Romano ou a crise com a
instituiccedilatildeo do Culto Imperial satildeo muito vagos para precisar melhor a data do Apocalipse
A partir dos dados internos muito provavelmente o livro eacute posterior ao ano 70 e agrave
destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico Se a hipoacutetese de que o autor saiu da Palestina
em funccedilatildeo do conflito for autecircntica era preciso algum tempo para que ele consolidasse uma
atuaccedilatildeo profeacutetica fora da sua terra na Aacutesia Menor e especificamente na proviacutencia
proconsular da Aacutesia Dado o conhecimento que Papias teve da obra seria preciso algum
tempo entre sua produccedilatildeo e circulaccedilatildeo entre as igrejas Isso nos leva a tomar o testemunho
de Irineu realmente como a hipoacutetese mais provaacutevel localizando o livro no fim do governo
do Imperador Titus Flavius Domitianus assassinado no dia 18 de setembro de 96 Segundo
o bispo de Leon (Contra as Heresias 5303) foi em algum momento anterior agrave morte do
Imperador que Joatildeo de Patmos escreveu o Apocalipse
13 O propoacutesito do Apocalipse
Se aceitarmos as indicaccedilotildees do Apocalipse ele foi escrito para ser encaminhado para
sete igrejas da proviacutencia proconsular da Aacutesia ldquoAchei-me em espiacuterito em o dia do Senhor e
ouvi atraacutes de mim uma voz grande como de trombeta dizendo O que vecircs escreve em livro
e envia para as sete igrejasrdquo (Apocalipse 110-11)
As cartas em questatildeo aparecem um pouco depois na estrutura da obra
- Apocalipse 21-7 Carta agrave Igreja em Eacutefeso
- Apocalipse 28-11 Carta agrave Igreja em Esmirna
- Apocalipse 212-17 Carta agrave Igreja em Peacutergamo
- Apocalipse 218-29 Carta agrave Igreja em Tiatira
- Apocalipse 31-6 Carta agrave Igreja em Sardes
- Apocalipse 37-13 Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia
- Apocalipse 314-22 Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia
As cartas escritas como oraacuteculos profeacuteticos apresentam terceirizados o remetente e
o destinataacuterio Concretamente eacute o profeta Joatildeo que escreve contudo retoricamente satildeo
palavras diretas do Cristo exaltado entre os candelabros (Apocalipse 113) Eacute uma mensagem
39
para os membros das igrejas mas dirigidas aos anjos que estariam ali presentes (Apocalipse
21 28 212 218 31 37 314) Joatildeo se coloca como o intermediaacuterio entre duas
personalidades celestiais Mesmo que algueacutem se recuse a ouvi-lo natildeo poderia deixar de
atender ao anjo da igreja principalmente porque a mensagem do anjo teria origem direta no
Jesus glorificado Neste sentido as cartas se tornam proclamaccedilotildees profeacuteticas do soberano
Cristo exaltado95
Esta estrateacutegia literaacuteria eacute um instrumento retoacuterico de legitimaccedilatildeo o que denuncia
algum tipo de conflito ou tensatildeo entre Joatildeo o autor e os membros das igrejas Ao usar este
esquema para atingir o seu puacuteblico o autor indica toda a dificuldade que enfrentava para se
fazer ouvir96 A agressividade do texto e as diversas ameaccedilas indicam ainda mais a forccedila
necessaacuteria para que as cartas e o livro como um todo pudessem ser recebidos Segundo
Friedrich
as sete proclamaccedilotildees satildeo semelhantes aos antigos editos reais e imperiais
na medida em que exibem normalmente e estruturalmente semelhantes
praescriptiones narrationes dispositiones e sanctiones Em termos de
conteuacutedo as narrationes e dispositiones exibem caracteriacutesticas da profecia
do cristianismo das origens influenciada pela profecia do Antigo
Testamento97
As cartas indicam dois tipos baacutesicos de tensatildeo Internamente haacute algum tipo de
conflito entre Joatildeo e a lideranccedila de algumas igrejas e algum tipo de crise com sinagogas
locais98 Externamente a sociedade urbana da aacutesia parece representar algum desconforto
especialmente em funccedilatildeo das demandas relacionadas com as interaccedilotildees sociais
Para as tensotildees internas entre os liacutederes das igrejas Paul Duff sugeriu a seguinte
tipologia99
95 Conferir neste sentido FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria
Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 96 RUIZ Jean-Pierre Hearing and seeing but not saying a rhetoric de authority in Revelation 104 and 2
Corinthians 124 In BARR David L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of
Revelation Atlanta Society of Biclical Literature 2006 p 91-111 p 93 97 FRIEDRICH Nestor Paulo O edito-profeacutetico para a Igreja em Tiatira (Apocalipse 218-29) uma anaacutelise
literaacuteria soacutecio-poliacutetica e teoloacutegica Tese (Doutor em Teologia) ndash Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia Escola
Superior de Teologia Satildeo Leopoldo 2000 p 60 98 DUFF Paul B ldquoThe synagogue of Satanrdquo Crisis mongering and the Apocalypse of John In BARR David
L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biclical
Literature 2006 p 164-165 p 148 99 DUFF Paul B Who Rides the Beast Prophetic Rivalry and the Rhetoric of Crisis in the Churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 p 25
40
- Igrejas divididas entre a lideranccedila de Joatildeo e alguma outra lideranccedila local Eacutefeso
Peacutergamo Tiatira Para estas igrejas Joatildeo fornece nas respectivas cartas uma elaboraccedilatildeo dos
problemas da comunidade Consistiriam no principal foco do Apocalipse
- Igrejas onde Joatildeo tem pouca ou mesmo nenhuma influecircncia Sardes e Laodiceacuteia Eacute
provaacutevel que ele tenha aliados em potencial nessas comunidades mas estatildeo em nuacutemero
muito pequeno Por isso o seu tom menos conciliador Para elas o autor natildeo fornece
nenhuma elaboraccedilatildeo de problemas e pouco se tiver algum encorajamento
- Igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo Esmirna e Filadeacutelfia Natildeo haacute chamada ao
arrependimento ou qualquer tipo de ameaccedila ao mesmo tempo em que recebem fortes
louvores Satildeo igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo e ao tipo de mensagem que ele defendia
Com relaccedilatildeo aos membros das sinagogas locais Joatildeo assim se expressou ldquose dizem
judeus mas natildeo o satildeordquo Para o autor do Apocalipse eles natildeo eram verdadeiros judeus mas
ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo (Apocalipse 29 39)100 O professor Nogueira argumenta que essa
crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga estar ldquoenvolvida em um processo
sincreacutetico de interaccedilatildeo com os gentios Eles falavam grego expressavam suas crenccedilas e
praacuteticas religiosas com categorias helenistas e estavam em maior ou menor grau envolvidos
na vida puacuteblica de suas cidadesrdquo101
O Apocalipse fala da morte de Antipas (Apocalipse 213) que pode ter ocorrido em
funccedilatildeo de algum conflito com a sociedade O Apocalipse apresenta a expectativa que o
mesmo fenocircmeno que promoveu a morte deste membro do movimento de Jesus proveraacute
dentro em breve a prisatildeo e a ruiacutena de muitos outros (Apocalipse 210)102 Para Thompson
ldquoa descriccedilatildeo do visionaacuterio de guerra e conflito contem suficientes referecircncias e alusotildees a
Roma e ao culto imperial para concluir que o visionaacuterio esperava tribulaccedilatildeo e opressatildeo de
instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas na Aacutesiardquo103 Como Prigent enfatiza ldquoo autor de
100 FRANKFURTER David Jews or Not Reconstructing the ldquoOtherrdquo in Rev 29 and 39 Harvard
Theological Review Cambridge v 4 n 94 p 403-425 2001 Duff argumenta que o comentaacuterio negativo de
Joatildeo sobre as sinagogas foi feito para exacerbar a tensatildeo entre as igrejas e as sinagogas Ao promover inimizade
contra as sinagogas e medo de hostilidade de judeus locais Joatildeo desejava desencorajar aliados iacutentimos
(membros das igrejas de Esmirna e Filadeacutelfia) de apostastar para as sinagogas Cf DUFF Paul B ldquoThe
synagogue of Satanrdquo op cit p 148 101 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza Experiecircncia religiosa e criacutetica social no cristianismo primitivo Satildeo
Paulo Paulinas p 137 102 HOWARD-BROOK Wes GWYTHER Anthony Desmascarando o imperialismo interpretaccedilatildeo do
Apocalipse ontem e hoje Satildeo Paulo Paulus 2003 p 120-155 103 THOMPSON Leonard A Sociological Analysis of Tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 36 p 147-174 1986 p 148
41
Apocalipse afirma com grande energia que o Impeacuterio estaacute a serviccedilo de Satatilde comprovado
pela idolatria que embasa todo o sistemardquo104
Durante boa parte da histoacuteria da leitura do Apocalipse105 a descriccedilatildeo de mundo no
seu livro cheia de conflitos e violecircncia era tomada como equivalente da situaccedilatildeo concreta
de vida do autor e de suas comunidades O contexto histoacuterico era precisamente como
transparecia atraveacutes das imagens do livro106 Foi somente a partir de meados do seacuteculo XX
quando alguns estudiosos deixaram de assumir que o mundo do texto de Apocalipse
espelhava diretamente o contexto histoacuterico em torno do mesmo Neste caso eles se voltaram
para oferecer sugestotildees de como conciliar e relacionar a tensatildeo entre o mundo do Apocalipse
e o mundo concreto das comunidades de seguidores de Jesus no final do primeiro seacuteculo na
Aacutesia romana
Uma destas pesquisadoras Fiorenza sugeriu que as imagens que o livro constroacutei
foram produzidas como instrumentos retoacutericos de persuasatildeo Ela entende que o visionaacuterio
parece estar realmente convencido de que o Impeacuterio Romano eacute uma ameaccedila para seguidores
de Jesus e escreve para persuadir sua audiecircncia a aceitar sua leitura da realidade
empurrando-a para uma determinada posiccedilatildeo frente ao contexto social em que viviam107
Adela Collins por sua vez argumentou que Joatildeo escreveu em resposta ao conflito
entre a feacute em Jesus como Joatildeo a entendia e a situaccedilatildeo social como ele a percebia Para esta
autora o autor realiza seu propoacutesito por meio da construccedilatildeo de um universo simboacutelico com
valores terapecircuticos Diante do Apocalipse leitores e ouvintes alcanccedilariam uma catarse de
medo e ressentimento e uma internalizaccedilatildeo de demandas para sustentar-se agrave parte de uma
ordem social opositora por meio da praacutetica de abstinecircncia sexual pobreza e martiacuterio108
Outro pesquisador Steven Friesen definiu o Apocalipse de Joatildeo como uma obra
engajada na construccedilatildeo de um mundo simboacutelico com o objetivo de produzir resistecircncia
simboacutelica Enquanto a ideologia imperial construiacutea seus mitos e os disseminava para afirmar
104 PRIGENT P O Apocalipse In COTHENET E et al Os escritos de Satildeo Joatildeo e a Epiacutestola aos Hebreus
Satildeo Paulo Paulinas 1998 p 229-306 p 255 105 Para a histoacuteria da recepccedilatildeo do livro conferir WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse
Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 KOVACS Judith
ROWLAND Christopher C Revelation Oxford Blackwell Publishing 2004 KYRTATAS Dimitris The
Transformations of the Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text
The Writing of Ancient History London Duckworth 1986 p 144-162 106 Conferir neste sentido o comentaacuterio de Euseacutebio de Cesareacuteia ldquoDomiciano deu provas de uma grande
crueldade para com muitos [] e foi o segundo a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutesrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica
III VII 1) 107 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Apocalipsis Visioacuten de un mundo justo Estella Editorial Verbo Divino
1997 p 58 108 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsis op cit p 127-131
42
que o Imperador era o rei dos reis Joatildeo ressignifica estes mitos para afirmar que a autoridade
uacuteltima sobre o mundo proveacutem no fim de fora mesmo deste mundo109 Eacute um conflito de
mundos construiacutedos de siacutembolos de identidades de ideologias110
Em termos concretos entretanto Domiciano natildeo parece ter instigado uma
perseguiccedilatildeo oficial aos seguidores de Jesus Existe pouca evidecircncia de que ele tenha
perseguido diretamente as igrejas e como insistiu Thompson nenhuma evidecircncia de que ele
tenha banido Joatildeo para a Ilha de Patmos111
Isso natildeo significa que conflitos locais natildeo pudessem se manifestar dentro de cada
cidade da Aacutesia conflitos estes que poderiam ter ligaccedilatildeo com o relacionamento entre os
membros do movimento de Jesus e a instituiccedilatildeo do culto imperial112 Possivelmente ao falar
do culto agraves bestas Joatildeo entra em polecircmica com a praacutetica do culto ao Imperador no contexto
urbano da proviacutencia onde a primeira Besta (Apocalipse 131-10) representa o Impeacuterio
Romano ou o proacuteprio Imperador e a segunda Besta (Apocalipse 1311-18) eacute possivelmente
o sacerdote do culto imperial113 Acompanhar a posiccedilatildeo do Apocalipse neste sentido poderia
gerar suspeiccedilatildeo e hostilidade por parte da populaccedilatildeo local e causar as acusaccedilotildees subjacentes
aos processos descritos por Pliacutenio o Jovem ao Imperador Trajano pouco mais de uma deacutecada
depois de Joatildeo na proviacutencia de Bitiacutenia e Ponto vizinha das igrejas da Aacutesia (Epiacutestola
10965)
O culto imperial era uma expressatildeo de religiosidade individual e coletiva e uma
demonstraccedilatildeo de coesatildeo e ordem social e poliacutetica do Impeacuterio Para propoacutesitos imperiais o
culto ao Imperador servia como uma expressatildeo de lealdade e gratidatildeo por parte dos cidadatildeos
Pagels tenta resumir este processo Para ela anteriormente os membros do
movimento de Jesus se identificavam com os grupos judaicos ao serem expulsos desses
109 FRIESEN Steven J Myth and Symbolic Resistance in Revelation 13 Journal of Biblical Literature
Atlanta v 2 n 123 p 281-313 2004 p 281 e 311 110 FRIESEN Steven J Satanrsquos throne imperial cults and the social settings of Revelation Journal for the
Study of the New Testament Cambridge v 27 n 3 p 351-373 2005 p 352 111 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L Reading the
Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 34 DUFF Paul B ldquoThe
Synagogue of Satanrdquo op cit p 149 112 Para uma anaacutelise das distintas formas que o culto imperial poderia assumir nas diferentes regiotildees do Impeacuterio
cf SCHERRER Steven J Signs and Wonders in the Imperial Cult a New Look at a Roman Religious
Institution in the Light of Rev 1313-15 Journal of Biblical Literature Atlanta v 4 n 103 p 599-610 1984
SORDI Marta The Christians and the Roman Empire London and New York Routledge 1994 Sobre a
relaccedilatildeo das comunidades judaicas com o culto imperial conferir MCLAREN James S Jews and the Imperial
Cult from Augustus to Domitian Journal for the Study of the New Testament Cambridge n 27 p 257-278
2005 113 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p
34
43
grupos eles precisavam criar novas identidades em oposiccedilatildeo agravequeles que antes eram seus
irmatildeos Entretanto quando essas mesmas comunidades passam a ser formadas
predominantemente de natildeo-judeus agora eram excluiacutedos natildeo mais de ciacuterculos judaicos mas
dos ciacuterculos sociais que antes conviviam Era desses ciacuterculos que as ameaccedilas agora partiam
de ldquooficiais romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu lsquoateiacutesmorsquo que temiam que
pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteirasrdquo114
O cenaacuterio descrito por Pagels talvez se aplique agrave Bitiacutenia e Ponto dos tempos de Pliacutenio
mas ainda natildeo o eacute para o tempo do Apocalipse A ecircnfase na ruptura com a sociedade
encontrada no texto joanino indica que boa parte dos membros das igrejas da Aacutesia ainda
vivia suas vidas com seus vizinhos sem grandes conflitos Eacute Joatildeo que espera por tensatildeo e
crise Ele aguarda uma violenta perseguiccedilatildeo contra as comunidades para um futuro
proacuteximo115 Subjacentes aos roacutetulos da oposiccedilatildeo interna (os balamitas e nicolaiacutetas de
Peacutergamo Jezabel e seus seguidores em Tiatira e os falsos apoacutestolos de Eacutefeso) parecem estar
pessoas que ocupavam posiccedilatildeo de lideranccedila dentro das igrejas nas quais estavam inseridas
consideradas como adversaacuterias por Joatildeo O que estes liacutederes de diferentes igrejas teriam em
comum Aparentemente eles natildeo estavam de acordo quanto agrave forma de conduzir os fieacuteis
nas suas relaccedilotildees com o Impeacuterio116 Assim diante da diferenccedila de respostas existente entre
os proacuteprios liacutederes sobre a interaccedilatildeo com a sociedade Joatildeo reage com forccedila Para ele
qualquer acomodaccedilatildeo social eacute prostituiccedilatildeo e idolatria categorias religiosas retiradas da
antiga profecia judaica
Como sintetizou Norman Cohn ldquoo propoacutesito de Joatildeo era estimular os cristatildeos a se
verem em conflito com ciacuterculos mais amplos da sociedaderdquo117 Para tanto ele descreveu o
governo romano natildeo como reflexo de uma ordem divina mas do poder de Satatilde A alianccedila
com o Jesus Glorificado do Apocalipse inviabilizaria qualquer relacionamento com a
sociedade romana
Joatildeo por meio de sua obra demoniza praacuteticas de interaccedilatildeo social poliacutetica e religiosa
com o Impeacuterio118 Sua estrateacutegia eacute exacerbar a situaccedilatildeo para promover uma crise na sua
114 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na
sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996 p 134 115 SILVA David A de The Revelation to Johnhellip op cit 116 FRIESEN Steven J Satanrsquos Throne Imperial Cults and the Social Settings of Revelation op cit p 368 117 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 280 118 MESTERS Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das
comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n 69 p 72-82 2001 p 77
Conferir tambeacutem BIGUZZI Giancarlo Ephesus its Artemision its Temple to the Flavian Emperors and
idolatry in Revelation Novum Testamentum Leida v 3 n 40 p 276-290 1998
44
audiecircncia119 pelo menos nas igrejas nas quais tinha alguma influecircncia e invibializar os
relacionamentos significativos com pessoas de fora da comunidade Para isso ele provecirc
motivaccedilotildees tanto positivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos demais
grupos judaicos Em termos sinteacuteticos ele demoniza seus adversaacuterios estressa fortemente
as diferenccedilas de padrotildees e valores escala antagonismo e vaticina um tempo proacuteximo de
rejeiccedilatildeo muacutetua120
14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse
Aparentemente os antigos inteacuterpretes do Apocalipse o liam da mesma forma como
liam outros livros profeacuteticos da tradiccedilatildeo judaica Para eles Joatildeo era profeta e seu livro uma
profecia Foi somente no seacuteculo XIX que se levantou a sugestatildeo de que o Apocalipse de Joatildeo
deveria ser visto como um tipo distinto de literatura121 O argumento era de que o livro natildeo
era como as demais obras da tradiccedilatildeo profeacutetica judaica Aleacutem disso as evidecircncias indicavam
que existia um corpo de escritos parecidos com o Apocalipse formando uma corrente
literaacuteria na qual a obra de Joatildeo poderia ser inserida122 Esta corrente se estenderia para cerca
de trecircs seacuteculos antes do aparecimento do Apocalipse de Joatildeo com acentuada produccedilatildeo em
torno da Guerra dos Macabeus e avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70)123
A partir de entatildeo os estudiosos passaram a tentar definir o que seria o gecircnero
ldquoapocalipserdquo Estas tentativas de definiccedilatildeo consistiam de listas de caracteriacutesticas tiacutepicas
119 Segundo Paul Duff ldquopor causa da fragilidade da fonte do seu poder liacutederes carismaacuteticos atraveacutes da histoacuteria
tecircm usado uma variedade de estrateacutegias para combater as ameaccedilas agrave perda do controle Uma destas estrateacutegias
eacute o fomento das crises ou seja criar crises ou exacerbar uma situaccedilatildeo instaacutevel ao ponto que isso resulte numa
crise Esta taacutetica tem o potencial para acentuar a indispensabilidade do liacuteder inspiradordquo Cf DUFF Paul B
ldquoThe Synagogue of Satanrdquohellip op cit p 164-165 120 Idem p 164-165 121 BARR David L Beyond Genre In BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics
in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p 71-79 p 75 122 COLLINS Adela Yarbro The Early Christian Apocalypses Semeia Atlanta n 14 p 61-121 1979 p 70
Para ela o Apocalipse de Joatildeo poderia ser definido como um apocalipse histoacuterico sem a presenccedila de viagem
celestial Conferir tambeacutem KUumlMMEL op cit p 602 ldquoO material miacutetico os nuacutemeros secretos as visotildees e os
fenocircmenos do ceacuteu como meios a serviccedilo da revelaccedilatildeo de coisas do mundo do aleacutem a representaccedilatildeo das visotildees
atraveacutes de imagens fantaacutesticas e ricamente embelezadas bem como a frequumlente dependecircncia do Antigo
Testamento caracterizam o Apocalipse como uma obra pertencente ao mesmo gecircnero literaacuterio dos apocalipses
judaicosrdquo 123 LOHSE op cit p 240 Sotelo propocircs trecircs hipoacuteteses gerais sobre a origem deste gecircnero literaacuterio Uma delas
entende que ele surgiu de tradiccedilotildees persas sendo completamente estranho aos autores anteriores de Israel
outra argumenta que ele veio da tradiccedilatildeo sapiencial de Israel e uma terceira o liga ao profetismo claacutessico
israelita Cf SOTELO Daniel Origem da apocaliptica In MARASCHIN Jaci Correia (ed) Apocaliptica
Satildeo Bernardo do Campo Instituto Metodista de Ensino Superior 1983 p 17-21 p 17
45
Autores como D S Russell124 procuraram apontar poucos traccedilos distintivos para abraccedilar um
nuacutemero maior de obras Entretanto o resultado eacute que obras que se parecem muito pouco
passaram a ser vistas igualmente como apocalipses
Muitas outras listas surgiram Cada uma apresentava um traccedilo diferente que
considerava ser tiacutepico de um apocalipse Isso fazia com que um livro que um determinado
autor apontava como apocalipse fosse considerado por outro estudioso como de gecircnero
diferente
Um princiacutepio baacutesico subjacente agrave pesquisa do gecircnero destes textos eacute que um
apocalipse como outros tipos de literatura natildeo poderia ser considerado como obra literaacuteria
estanque pois estaria relacionado com outras obras e tradiccedilotildees atraveacutes de uma seacuterie de traccedilos
e conexotildees Por isso definir um apocalipse passou a ser uma questatildeo de precisar os limites
ou paracircmetros dentro dos quais as obras seriam recebidas por seus leitores
Essa definiccedilatildeo avanccedilou consideravelmente como resultado das pesquisas publicadas
no nuacutemero 14 da revista Semeia Ela continuou na tradiccedilatildeo de gerar listas de caracteriacutesticas
para tipificar um apocalipse mas deu um passo a mais por causa da precisatildeo com que estes
traccedilos foram postulados Os resultados foram resumidos por Collins
Apocalipse eacute um gecircnero de literatura de revelaccedilatildeo com uma estrutura
narrativa no qual uma revelaccedilatildeo eacute mediada por um ser sobrenatural para
um ser humano revelando uma realidade transcendente que eacute tanto
temporal enquanto considera salvaccedilatildeo escatoloacutegica quanto espacial
enquanto envolve outro mundo sobrenatural125
A lista de caracteriacutesticas de Collins apresenta um apocalipse do ponto de vista da
forma (literatura de revelaccedilatildeo de estrutura narrativa) e do conteuacutedo (mediaccedilatildeo sobrenatural
realidades transcendentes temporal e espacial) Ao aplicar esta lista de caracteriacutesticas ao
livro de Joatildeo Collins entende que a obra se enquadra com precisatildeo no interior da tradiccedilatildeo
literaacuteria que gerou os apocalipses
Escritores natildeo conseguem escrever sem ter em mente outros textos que eles leram
os quais se tornam modelos para serem imitados transformados ou contrapostos A inserccedilatildeo
de um texto num determinado veio tradicional ou literaacuterio assim tem funccedilatildeo natildeo somente
promotora de caracteriacutesticas (forma conteuacutedo e funccedilatildeo) mas tambeacutem hermenecircutica Afinal
124 RUSSELL D S Desvelamento divino uma introduccedilatildeo agrave apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo Paulus 1997 125 COLLINS John J Introduction Towards the Morphology of a Genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979
p 9
46
leitores natildeo conseguem ler e entender uma obra se eles natildeo estiverem habilitados para
relacionaacute-la com outras que eles tiveram a oportunidade de ler ou conhecer
O propoacutesito da identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo de uma obra eacute orientar e guiar a produccedilatildeo
ou a recepccedilatildeo da mesma Este processo eacute normalmente deliberado e consciente por parte
do autor do livro como um de seus recursos para guiar o seu leitor
A classificaccedilatildeo de textos consiste no levantamento de um conjunto de convenccedilotildees
impliacutecitas ou expliacutecitas O escritor conhece estas convenccedilotildees do contexto no qual e contra o
qual escreve No processo de produccedilatildeo de sua obra ele ajuda o leitor por meio de indicaccedilotildees
para-textuais como tiacutetulos subtiacutetulos prefaacutecios ou outros sinais menos oacutebvios Com isso se
forma um tipo de ldquocontratordquo que orienta antecipadamente a leitura e a apropriaccedilatildeo da obra
Afinal estas marcas estatildeo ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido
Paul Duff destaca que Joatildeo como todo escritor ou orador precisou antecipar a reaccedilatildeo
dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem126 As tais marcas
viabilizam as classificaccedilotildees ou categorizaccedilotildees e formam uma espeacutecie de guia de leitura que
pode ser aceito ou natildeo pelos leitores
Linton insiste que mesmo que uma obra natildeo tenha estes sinais claramente os leitores
tenderatildeo a construir seus proacuteprios guias de interpretaccedilatildeo normalmente comparando a obra
com outras similares de forma a construir um corpo de convenccedilotildees para guiar a leitura127
A praacutetica da leitura se torna entatildeo um contiacutenuo processo de comparaccedilatildeo com leituras
anteriores
Autores se valem de categorias Leitores se aproveitam delas Em ambas as situaccedilotildees
a construccedilatildeo do texto e a busca pelo seu sentido eacute uma atividade de comparaccedilatildeo na qual as
categorias se tornam ferramentas heuriacutesticas significativas Ao escrever sua obra Joatildeo
deliberadamente revestiu-a de marcas e traccedilos de obras que viriam posteriormente a ser
conhecidas como ldquoapocalipsesrdquo Ao assim fazer ele forneceu a forma como ele esperava
que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Aacutesia e com quais textos o Apocalipse deveria
ser comparado
126 DUFF Paul B Who rides the beast op cit p 72 127 LINTON Gregory L Reading the Apocalypse as Apocalypse In BARR David L (ed) The Reality of
Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p
9-41 p 15
47
15 Resumo
O Apocalipse foi escrito por um judeu de nome Joatildeo que migrou da Palestina apoacutes a
guerra judaico-romana (66-70) e desenvolvou uma atividade profeacutetica entre as comunidades
do movimento de Jesus na Aacutesia menor Perto do final do seacuteculo pouco antes do fim do
governo do Imperador Domiciano (96) ele se deslocou ou foi descolocado para a ilha de
Patmos onde escreveu um texto marcado por traccedilos da tradiccedilatildeo literaacuteria judaica denominada
pelos estudiosos como ldquoapocalipserdquo Com sua obra ele desejava convencer alguns membros
especialmente de sete igrejas da proviacutencia asiaacutetica a romperem relacionamentos
significativos com a sociedade romana
II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA
Como discutimos no capiacutetulo anterior o Apocalipse de Joatildeo foi escrito nos anos 90
do primeiro seacuteculo da Era Comum provavelmente nos uacuteltimos anos do principado do
imperador Domiciano (Titus Flavius Domitianus)128 A partir de uma referecircncia interna
(Apocalipse 19) eacute possiacutevel circunscrever seu local de origem como sendo a pequena ilha
do mar Egeu de nome Patmos e seu destino como um conjunto de comunidades do
movimento de Jesus localizadas na proviacutencia proconsular da Aacutesia (Apocalipse 111) Eacutefeso
Esmirna Peacutergamo Tiatira Sardes Filadeacutelfia e Laodiceacuteia
Este Joatildeo de Patmos estaacute longe de Roma capital do Impeacuterio Apesar dos atos e gestos
do Imperador poderem refletir diretamente na vida de Joatildeo e no puacuteblico de sua obra em
termos sociais poliacuteticos econocircmicos ou culturais o contexto especiacutefico do Apocalipse eacute
mesmo a Aacutesia romana Em funccedilatildeo disso neste capiacutetulo nos deteremos em analisar a situaccedilatildeo
desta proviacutencia focando em aspectos que poderiam iluminar de alguma forma o processo
histoacuterico de produccedilatildeo do Apocalipse
21 Patmos o ponto de partida
Segundo o Apocalipse seu autor Joatildeo recebeu a seacuterie de visotildees que deu origem agrave
obra enquanto estava na ilha de Patmos no mar Egeu ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro
na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por
causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo (Apocalipse 19)
Patmos eacute uma ilha pequena Em termos gerais satildeo treze quilocircmetros de extensatildeo por
oito de largura Poreacutem sua costa recortada reduz consideravelmente suas dimensotildees Sua
margem fica a 64 quilocircmetros da foz do rio Maeander o ponto mais proacuteximo da peniacutensula
da Aacutesia Menor129 Esta distacircncia relativa tambeacutem a separava de Mileto seu principal viacutenculo
128 Domiciano foi assassinado no dia 18 de setembro de 96 por uma conspiraccedilatildeo palaciana e substituido no
mesmo dia por um dos seus amici o senador M Cocceius Nerva Cf JONES Brian W The emperor Domitian
Londres Routledge 1992 p 93 129 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield
Academic Press Ltd 1986 p 27
49
social com o continente Das cidades mencionadas no Apocalipse entretanto a mais
proacutexima era Eacutefeso distante da ilha cerca de 100 quilocircmetros130
A associaccedilatildeo de Patmos com Mileto era formal fazendo parte do seu territoacuterio junto
com as ilhas de Lipsos e Leros Nas trecircs ilhas havia algum tipo de povoamento Em Patmos
especificamente seu povo era conhecido como frouroi e seus liacutederes frourarchoi atuando
como parte do governo de Mileto para a populaccedilatildeo local131
Eacute preciso insistir no fato de que Patmos natildeo era uma ilha deserta ou mesmo uma
colocircnia penal O professor David Aune argumenta neste sentido e aponta como evidecircncia
duas inscriccedilotildees encontradas na ilha Uma datada para o seacuteculo II aC faz referecircncia a uma
associaccedilatildeo local de atletas agrave presenccedila de um gymnasium e agrave figura de um gymnasiarcha
eleito sete vezes para a mesma funccedilatildeo Outra de duzentos anos depois jaacute na Era Comum
fala de uma hidrophore sacerdotisa de Artemis e a presenccedila de um templo local bem
estabelecido para esta deusa132
Joatildeo escreve de uma ilha pertencente agrave Mileto a polis mais proacutexima de onde ele ldquose
achavardquo133 Curiosamente entretanto ela estaacute ausente da lista de cidades mencionadas no
Apocalipse Talvez a resposta a esta questatildeo tenha relaccedilatildeo com a falta de uma comunidade
do movimento de Jesus em Mileto O livro Atos dos Apoacutestolos escrito de um lugar
indeterminado entre os anos 80 e 90134 conteacutem uma narrativa que parece indiciar a ausecircncia
de uma comunidade na cidade Nela (Atos 2017-38) Paulo se prepara para fazer uma
viagem a Roma Entre seus preparativos estaacute uma visita agrave igreja de Jerusaleacutem Durante sua
viagem ele se detem em Mileto para conversar natildeo com disciacutepulos da cidade mas com
liacutederes que vieram da igreja de Eacutefeso O autor anocircnimo explicita que ldquode Mileto mandou a
Eacutefeso chamar os presbiacuteteros da igrejardquo (Atos 2017) Natildeo haacute qualquer menccedilatildeo agrave presenccedila de
seguidores do movimento de Jesus pelo menos perto do ano 60 quando os eventos narrados
por Atos se deram135 Neste sentido a omissatildeo do Apocalipse pode indicar que as trecircs
deacutecadas que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de Joatildeo por ela natildeo foram
suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar
130 Conferir os mapas da Aacutesia romana nos anexos 1 e 2 131 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 p 76 132 Idem p 77 133 Ele usa o termo grego ldquoἐγενόμηνrdquo primeira pessoa do aoristo do indicativo meacutedio ldquoachei-merdquo 134 KUMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 238 135 GALBIATTI Enrico Rodolfo ALETTI Aldo Atlas histoacuterico da Biacuteblia e do Antigo Oriente Petroacutepolis
Vozes 1991 p 216
50
22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia
Para Ciacutecero (107-43 aC) a ldquoAacutesia eacute oacutetima e feacutertilrdquo (ldquoAsia vero tam optima est ac
fertilisrdquo) e acrescentou que ldquona riqueza de seus oacuteleos na variedade de seus produtos na
extensatildeo de seus pastos e no nuacutemero de suas exportaccedilotildees ela ultrapassa todas as outras
terrasrdquo (De Imperio cn Pompei ad qurites oratio 14) A Aacutesia Menor era uma das regiotildees
mais ricas do Impeacuterio e dentre as seis proviacutencias da peniacutensula a Aacutesia era a mais rica136
Formalmente ela era uma proviacutencia senatorial governada por um prococircnsul indicado pelo
senado romano137 Entretanto tanto o imperador quanto o senado poderiam promover
regulamentos que afetariam a proviacutencia Justamente por isso nela havia representantes
imperial e senatorial
Durante o governo da dinastia Flaacutevia a gestatildeo da Aacutesia foi marcada pela recuperaccedilatildeo
econocircmica138 A aclamaccedilatildeo de Vespasiano se deu em Alexandria no dia 1 de julho de 69
sendo prontamente reconhecido pelas proviacutencias orientais O novo imperador viajando de
navio parou em vaacuterias cidades da costa da Aacutesia onde oficiais locais fizeram os juramentos
habituais de fidelidade139
Apoacutes sua ascensatildeo ao poder Vespasiano encontrou o tesouro imperial falido pelas
guerras civis que se seguiram agrave morte de Nero Para restaurar as financcedilas puacuteblicas ele adotou
uma poliacutetica econocircmica que reduziu os gastos do governo e procurou aumentar as receitas
do estado reorganizando o recolhimento das taxas puacuteblicas ou criando novas como o fiscus
Alexandrinus e o fiscus Iudaicus Esta segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus para
substituir um imposto recolhido para subsidiar o Templo de Jerusaleacutem recentemente
destruiacutedo pelas legiotildees de Tito filho de Vespasiano140
Uma mudanccedila importante se deu na forma como tais taxas eram cobradas A
cobranccedila saiu das matildeos dos publicani para um agente do governo liderado por um
procurador em Roma e outro em cada proviacutencia Posteriormente Domiciano criou o oficio
136 MAGIE David Roman rule in Asia Minor to the end of third century after Christ Princenton Princenton
University Press 1950 p 34-52 Cf tambeacutem KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no
Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 89 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation
Apocalypse and Empire Oxford Oxford University Press 1990 p 146 137 MAGIE op cit p 569 138 Para uma anaacutelise da reorganizaccedilatildeo efetuada por Vespasiano na proviacutencia mantida e ampliada por Tito e
Domiciano cf LEVICK Barbara Greece and Asia Minor In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient
History Cambridge Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 604-634 p 604 139 MAGIE op cit p 566 140 GRIFFIN Miriam The Flavians In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient History Cambridge
Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 1-83 p 27
51
de curator civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus recursos
Este processo de centralizaccedilatildeo financeira diminuiu a autonomia da proviacutencia contudo
ajudou suas cidades
Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Aacutesia Menor pelo incremento na
construccedilatildeo e manutenccedilatildeo de estradas Estradas importantes foram construiacutedas apoacutes a
ascensatildeo dos Flaacutevios como duas estradas que saiam de Peacutergamo no ano 75 Uma descia na
direccedilatildeo de Esmirna e Eacutefeso margeando a costa Outra seguia pelo interior na direccedilatildeo de
Tiatira e Sardes Estas mesmas estradas foram restauradas por Domiciano Aleacutem das
vantagens para o comeacutercio e a comunicaccedilatildeo o foco nas estradas tinha tambeacutem como objetivo
facilitar o acesso para a regiatildeo oriental da Aacutesia Menor e para as fronteiras com o Impeacuterio
Persa no Eufrates Por elas deveriam circular as legiotildees romanas e o suprimento para as
tropas141 Mas natildeo havia uma legiatildeo especiacutefica estacionada em qualquer proviacutencia da Aacutesia
Menor A defesa da regiatildeo dependia inteiramente das legiotildees fixadas na Siacuteria
O governo de Tito deu sequecircncia agraves poliacuteticas de seu pai ateacute que em setembro de 81
apoacutes sua morte ele foi sucedido por Domiciano Haacute um juiacutezo tradicional negativo a respeito
deste uacuteltimo imperador da dinastia Flaacutevia como ilustrado pela opiniatildeo de Euseacutebio de
Cesareacuteia (263-339)
Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos
dando morte sem julgamento razoaacutevel a natildeo pequeno nuacutemero de
patriacutecios e de homens ilustres e castigando com desterro fora das
fronteiras e confisco de bens a outras inuacutemeras personalidades sem
causa alguma Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero
na animosidade e guerra contra Deus Efetivamente ele foi o segundo
a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutes apesar de que seu pai
Vespasiano nada de mal planejou contra noacutes (Histoacuteria Eclesiaacutestica
III XVII 1)
Este juiacutezo se reflete tambeacutem na historiografia David Magie descreve inicialmente o
governo de Domiciano como inescrupuloso e impiedoso142 mas pouco depois reconhece
que
nas proviacutencias existe pouca evidecircncia de crueldade por parte de
Domiciano ou mesmo de pretensotildees de grandeza exageradas No
oriente mesmo o tiacutetulo de ldquodeusrdquo que incomodava os ouvidos
romanos era tido como normal Ainda o tiacutetulo completo ldquoDeus
invisiacutevel fundador da cidaderdquo inscrito no peacute de uma estatua do
imperador em Priene natildeo era mais extravagante do que outros dados
141 MAGIE op cit p 571 142 Idem p 577
52
a muitos de seus antecessores e a outorga do epiacuteteto de ldquofundadorrdquo
parece indicar que ele realmente beneficiou a cidade143
A relaccedilatildeo de Domiciano com a Aacutesia assim natildeo foi diferente da forma como seu
irmatildeo Tito e seu pai Vespasiano trataram a proviacutencia A proviacutencia se beneficiou com a
gestatildeo dos Flaacutevios que terminou com a morte de Domiciano em setembro de 96 jaacute que o
imperador natildeo deixou herdeiro
Um testemunho da prosperidade do periacuteodo pode ser encontrado em um dos livros
dos Oraacuteculos Sibilinos surgido perto do ano 80 O oraacuteculo escrito na perspectiva do
Judaiacutesmo da diaacutespora na Aacutesia atacou o Impeacuterio Romano mas natildeo deixou de evidenciar a
riqueza da proviacutencia segundo seu autor espoliada em favor de Roma
Grande riqueza viraacute para Aacutesia riqueza que uma vez Roma tendo
tomado-a por rapina armazenou em uma casa de insuperaacuteveis
riquezas mas sem demora ela faz uma dupla restituiccedilatildeo para a Aacutesia
entatildeo haveraacute um excesso de conflitos (Oraacuteculo Sibilino IV I 42)144
Durante as deacutecadas da dinastia Flaacutevia a situaccedilatildeo econocircmica da Aacutesia se refletiu no
volume de novas construccedilotildees natildeo apenas por meio de recursos puacuteblicos mas tambeacutem atraveacutes
de subsiacutedios de pessoas ricas Estas liturgias incluiacuteam recursos para as edificaccedilotildees para o
reparo de construccedilotildees para a manutenccedilatildeo de centros sociais e para a realizaccedilatildeo de
festivais145
A cidade mais beneficiada no periacuteodo foi possivelmente a sede da proviacutencia Eacutefeso
Nela residia o proconsul da cidade O procurador ou vice-proconsul com alguma
probabilidade tambeacutem morava nela A partir da deacutecada de 90 mesmo sem uma precisatildeo
maior trecircs pessoas se sucederam no governo da Aacutesia ateacute a morte de Domiciano Sextus
Vettulenus Civica Cerialis C Minicius e L Junius Caesennius Paetus146
23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia
Os mais antigos membros das igrejas da Aacutesia eram oriundos de comunidades judaicas
da Aacutesia Menor Das centenas de cidades da proviacutencia asiaacutetica a presenccedila do movimento de
143 Idem p 577 144 Citado a partir de MAGIE op cit p 582 145 Idem p 583 146 Idem p 1582-1583
53
Jesus era atestada onde existia tambeacutem uma comunidade judaica147 Eacute plausiacutevel mesmo
tratar o movimento de Jesus na Aacutesia como parte do Judaiacutesmo da diaacutespora
Frequentadores de sinagogas ou de igrejas viviam na Aacutesia Menor no final do
primeiro seacuteculo e iniacutecio do segundo em grandes aacutereas urbanas e o que puder ser dito sobre
o primeiro grupo vale tambeacutem para o segundo O movimento de Jesus estaacute em processo de
ruptura e construccedilatildeo de identidade proacutepria todavia esse movimento ainda natildeo se completou
na regiatildeo como o proacuteprio Apocalipse pode evidenciar Apesar de membros da sociedade
romana especialmente seus magistrados jaacute perceberem alguma diferenccedila entre um e outro
na vida cotidiana eles permaneciam histoacuterica social e teologicamente envolvidos Esse
parece ser o motivo que levou Joatildeo de Patmos a se envolver em disputas com membros das
sinagogas locais (Apocalipse 29 39)148
A crise com as sinagogas de Esmirna (Apocalipse 29) e Filadeacutelfia (Apocalipse 39)
pode ter relaccedilatildeo com a forma como as comunidades judaicas se adaptaram ao contexto
urbano da proviacutencia Judeus habitavam a regiatildeo desde que Antioco III ordenou a realocaccedilatildeo
de duas mil famiacutelias judaicas da Babilocircnia para a Frigia como uma colocircnia militar a fim de
minimizar revoltas na regiatildeo149 Desde entatildeo judeus estavam amplamente presentes na parte
ocidental da Aacutesia Menor vivendo suas praacuteticas religiosas mas com relativa integraccedilatildeo na
vida ciacutevica das cidades150
Mesmo depois da guerra judaico-romana (66-70) os judeus da Aacutesia continuaram a
compartilhar da prosperidade da proviacutencia sem ameaccedila de puniccedilotildees por algum tipo de
conexatildeo com a guerra na Judeacuteia151 Com exceccedilatildeo do Fiscus Iudaicus nenhuma outra
consequecircncia poliacutetica ou social foi imposta aos judeus da diaacutespora pelo Impeacuterio Romano
apoacutes a guerra Segundo Josefo ldquoo mesmo soberano ordenou tambeacutem que os judeus em
qualquer lugar onde morassem deveriam pagar cada qual todos os anos duas dracmas ao
Capitoacutelio como antes pagavam ao templo de Jerusaleacutemrdquo (Guerra dos Judeus 27) A
identificaccedilatildeo dos judeus com a sociedade romana tambeacutem eacute testemunhada por este
sobrevivente da guerra Em Antiguidades Judaicas ele argumenta que judeus em Sardes
eram sardianos em Eacutefeso eram efeacutesios em Antioquia eram antioquenos (Antiguidades
Judaicas 239)
147 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 133 148 Idem p 145 149 TREBILCO Paul Jewish communities in Asia Minor Cambridge Cambridge Univesity Press 1991 p 5 150 Idem p 173 151 Idem p 32
54
Judeus eram membros ativos de associaccedilotildees comerciais e sindicatos Tambeacutem eram
agricultores vinhateiros marinheiros trabalhadores com metal e perfumaria Estavam
envolvidos ainda em manufaturas tecircxtil como tintureiros vendedores e fabricantes de
roupa152
Em cada uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse judeus viviam suas vidas
segundo as tradiccedilotildees judaicas poreacutem sem desprezar a participaccedilatildeo em atividades urbanas
locais Foi a partir destas comunidades judaicas engajadas na vida cotidiana do Impeacuterio que
o movimento de Jesus da Aacutesia formou suas igrejas
24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia
A proviacutencia da Aacutesia se situava na costa ocidental da peniacutensula da Aacutesia Menor O
autor do Apocalipse Joatildeo aponta a ilha de Patmos pertencente agrave cidade de Mileto como o
local de origem do livro Todas as cidades mencionadas explicitamente na obra satildeo cidades
de grande porte dentro da proviacutencia
As principais evidecircncias da presenccedila de cristatildeos nestas cidades vecircm de fontes do
proacuteprio movimento (cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos cartas de Pedro Apocalipse e
Inaacutecio de Antioquia) A mais antiga referecircncia a igrejas na regiatildeo vem de cartas que Paulo
de Tarso escreveu para comunidades de disciacutepulos de Corinto na deacutecada de 50 Ele estava
em Eacutefeso enquanto escrevia estas cartas (1Coriacutentios e 2Coriacutentios) O autor do livro Atos dos
Apoacutestolos tambeacutem falou do tempo em que Paulo ficou em Eacutefeso Segundo ele Paulo ficou
na cidade por trecircs anos (Atos 2031)
Tanto as cartas a Coriacutentios quanto Atos dos Apoacutestolos evidenciam que na capital da
proviacutencia existiam outros liacutederes do movimento Paulo natildeo era o uacutenico Outros como
Aacutequila Priscila e Apolo tambeacutem satildeo mencionados Estes liacutederes eram artesatildeos
independentes oriundos de comunidades judaicas da Aacutesia Menor Isso se nota por meio de
sua mobilidade sua ocupaccedilatildeo e a hospedagem de igrejas em suas casas Pessoas com a
mobilidade que eles possuiacuteam deveriam possuir recursos Para acomodar pessoas suas casas
tambeacutem deveriam ter razoaacutevel espaccedilo Natildeo eram pessoas de classes inferiores da sociedade
romana
152 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 144
55
Jaacute nos tempos de Paulo se manifestou a questatildeo da interaccedilatildeo das comunidades com
a vida urbana da cidade especialmente na questatildeo da alimentaccedilatildeo em atividades religiosas
ou ciacutevicas Em cidades gregas e romanas as pessoas tinham vaacuterias oportunidades para
participar de refeiccedilotildees cuacutelticas Isso poderia acontecer em ocasiotildees puacuteblicas (funerais
celebraccedilotildees festas ciacutevicas etc) ou privadas (clubes organizaccedilotildees comerciais refeiccedilotildees
privadas etc) Tanto em uma quanto em outra situaccedilatildeo as refeiccedilotildees expressavam conexatildeo
social em torno de causas comuns153
Fazer refeiccedilotildees puacuteblicas e comer carne oriunda de sacrifiacutecios religiosos satildeo
elementos diretamente ligados agrave questatildeo da participaccedilatildeo nas instituiccedilotildees sociais da cidade e
do Impeacuterio Este tipo de pressatildeo poderia ser diferente para status sociais distintos Segundo
Gerd Theissen cristatildeos ricos teriam mais oportunidades de se envolver em refeiccedilotildees cuacutelticas
de caraacuteter puacuteblico do que cristatildeos pobres154
Quando Paulo tratou deste assunto em 1Coriacutentios 8-10 ele relacionou a participaccedilatildeo
nas refeiccedilotildees com a situaccedilatildeo dos fracos e fortes dentro da comunidade Seu argumento
caminha na direccedilatildeo de que somente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto
os ldquofracosrdquo e os ldquofortesrdquo (ἀσθενεiς kai ἰσχυροί) participassem juntos como em festivais
puacuteblicos eacute que os disciacutepulos deveriam se abster (1Coriacutentios 87-13) Nas instacircncias privadas
poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela origem da comida
(1Corintios 1027) As igrejas da Aacutesia provavelmente nasceram a partir de mensagens e
perspectivas semelhantes agraves de Paulo de Tarso
O autor do Apocalipse quatro deacutecadas depois de missionaacuterios como Paulo Aacutequila
Priscila e Apolo terem fundado essas comunidades escreve uma obra na qual defende
posiccedilotildees divergentes Os adversaacuterios de Joatildeo descritos em sua obra como os nicolaiacutetas
baalamitas ou Jesabel satildeo atacados por promoveram algum tipo de interaccedilatildeo com a
sociedade interaccedilatildeo essa que parece ter relaccedilatildeo com a mesma questatildeo respondida por Paulo
na sua carta aos Coriacutentios a participaccedilatildeo em refeiccedilotildees ou atividades sociais que envolviam
a ingestatildeo de carne originada em sacrifiacutecio religioso Aqueles que Joatildeo enxerga como
adversaacuterios satildeo provavelmente membros do movimento de Jesus que possuem uma
perspectiva semelhante agrave que Paulo deu aos crentes de Corinto155 Thompson analisa a
153 Idem p 123 154 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva Satildeo Leopoldo Sinodal 1983 p 146 155 Assim resumiu Pagels ldquomuitas praacuteticas que Joatildeo atacava eram as mesmas que Paulo anteriormente
recomendavardquo Cf PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation
New York Penguin Books 2012 p 54
56
questatildeo e sugere que como as respostas que os adversaacuterios de Joatildeo datildeo satildeo semelhantes agrave
do antigo missionaacuterio de Tarso possivelmente eles possuiacuteam posiccedilotildees sociais semelhantes
ou seja estavam envolvidos em atividades comerciais possuiacuteam responsabilidades ciacutevicas
e pertenciam a um estrato mais rico da lideranccedila das igrejas da Aacutesia156 Este mesmo autor
defende que as igrejas da Aacutesia deveriam ter em linhas gerais uma mesma composiccedilatildeo
social Elas possuiacuteam em seus quadros pessoas livres e escravas homens e mulheres ricos
e pobres e deveriam se parecer com muitas associaccedilotildees religiosas ou sociais que existiam
na Aacutesia157 Estas associaccedilotildees synodos proliferavam consideravelmente desde a instauraccedilatildeo
do Impeacuterio e se manifestavam no Ocidente e no Oriente Segundo Meeks elas surgiam a
partir da decisatildeo de um grupo de doze a quarenta pessoas de se encontrarem em algum lugar
para reuniotildees158
Nestas reuniotildees era comum haver certa semelhanccedila de status social entre seus
membros Entretanto o proacuteprio fenocircmeno ldquostatusrdquo eacute complexo e possui vaacuterias dimensotildees
No status social de uma pessoa ou famiacutelia influiam elementos como poder prestiacutegio da
ocupaccedilatildeo renda ou riqueza educaccedilatildeo e cultura religiatildeo e pureza ritual famiacutelia ou grupo
eacutetnico status da comunidade local em que se estava envolvido Cada um destes elementos
poderia ser conjugado de forma diferente em uma dada circunstacircncia histoacuterica Na praacutetica
o status de um cidadatildeo romano era o resultado de como estas variaacuteveis eram consideradas
na sociedade local Mesmo que existisse certa perspectiva geral um sacerdote de Eacutefeso
poderia ter mais status do que um comerciante rico da cidade Em outra cidade o
conhecimento poderia ser mais importante do que a etnia em outra a pureza ritual poderia
valer mais do que a descendecircncia familiar A riqueza poderia dar mais status do que o
conhecimento mas em algumas circunstacircncias pertencer a uma famiacutelia nobre era mais
importante do que ter recursos financeiros159
Atentando para esses elementos o que as fontes geradas pelo movimento de Jesus
poderiam apontar sobre o status social dos seus membros O missionaacuterio Paulo de Tarso na
mesma carta que escreveu para a comunidade de Corinto informa que ldquonatildeo muitos da
comunidade eram saacutebios segundo o mundo nem poderosos nem de nobre nascimentordquo
(1Coriacutentios 126) Dizer que natildeo havia muitos significa afirmar que havia alguns Entre os
156 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 129 157 Idem p 127 158 MEEKS Wayne A Os primeiros cristatildeos urbanos o mundo social do Apoacutestolo Paulo Satildeo Paulo Paulinas
1992 p 54 159 Conferir esta discussatildeo em MEEKS op cit p 91
57
membros do movimento na cidade havia pessoas cultas (ldquordquo) ricas
(ldquordquo) ou bem-nascidas (ldquordquo) Pelo argumento de Paulo estes formavam uma
minoria dentro da comunidade apesar de se constituiacuterem numa minoria dominante160
Outro testemunho sobre as posiccedilotildees sociais dentro das comunidades da Aacutesia pode vir
de uma carta que Pliacutenio o Jovem escreveu em 112 enquanto atuava como governador da
proviacutencia da Bitiacutenia e Ponto tambeacutem na Aacutesia Menor O quadro descrito por Pliacutenio parece
ser bem parecido com a composiccedilatildeo da igreja de Eacutefeso ou das demais cidades mencionadas
no Apocalipse Pliacutenio resolveu tratar deste assunto com o Imperador Trajano porque
entendeu que a questatildeo era digna de consideraccedilatildeo imperial em funccedilatildeo do nuacutemero de pessoas
que se engajavam no movimento Estes ldquochristianirdquo eram de todas as idades (ldquoominis
aetatisrdquo) todas as ordens (ldquoomnis ordinisrdquo) tanto homem quanto mulher (ldquoutrisque sexusrdquo)
(Epiacutestolas 10968)
Uma carta que Paulo escreveu a Filemon jaacute na deacutecada de 60 no periacuteodo em que
esteve preso em Roma indica outro aspecto significativo da composiccedilatildeo destas
comunidades Filemon era proprietaacuterio de escravo Um deles Oneacutesimo fugiu encontrou-se
com Paulo em Roma converteu-se ao movimento e foi orientado a voltar para seu antigo
dominus este tambeacutem um convertido morador da Aacutesia Uma igreja se reunia na casa deste
senhor de escravos (Filemon 2) Natildeo eacute possiacutevel saber quantos escravos Filemon possuiacutea
mas ele recebe a orientaccedilatildeo de Paulo para que aceitasse seu antigo escravo de forma
amistosa natildeo mais como escravo (ldquow`j doulonrdquo) e sim como algueacutem mais do que escravo
(ldquou`per doulonrdquo) O escravo agora deveria ser tratado como irmatildeo (ldquow`j avdelfonrdquo) A taacutebua
domeacutestica registrada na carta aos Efeacutesios (Efeacutesios 65) documento deuteropaulino anocircnimo
escrito em algum momento entre os anos 80-100 possivelmente da Aacutesia161 especifica que
os escravos deveriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor (ldquometa fobou kai
tromourdquo)
Isso indica que as comunidades de Jesus tinham a presenccedila de pessoas livres e
escravas senhores e servos mas as orientaccedilotildees de seus liacutederes tendiam a tomar o lado dos
senhores em vez dos escravos
Outros elementos tambeacutem podem iluminar o quadro social destas comunidades da
Aacutesia162 Primeiramente o fato de alguns de seus membros escreverem livros e cartas para
160 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva op cit p 146-147 161 KUMMEL op cit p 480 162 Sobre estas sugestotildees cf THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 128-129
58
serem lidas no interior do movimento indica uma presenccedila significativa de pessoas que
sabiam escrever e ler numa sociedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas
mas parcamente encontradas Um segundo aspecto pode ser localizado naqueles que
hospedavam a comunidade em sua casa os quais deveriam ter certa ascendecircncia sobre os
membros do movimento Possivelmente eles agiam como ldquopatronosrdquo da igreja da mesma
forma como outros patronos da cidade suportavam clubes e associaccedilotildees comerciais Por fim
cristatildeos viajavam muito num periacuteodo em que viagens eram muito custosas Meeks sugeriu
a partir dos itineraacuterios apresentados nos Atos dos Apoacutestolos que o missionaacuterio Paulo de
Tarso pode ter viajado aproximadamente dezesseis mil quilocircmetros durante sua carreira
religiosa163 Estas viagens eram bancadas geralmente por atividades profissionais proacuteprias
mas em algumas circunstacircncias como no caso de Joatildeo de Patmos algum tipo de patrociacutenio
poderia ser buscado entre as comunidades visitadas
Com comunidades assim constituiacutedas de que maneira seus membros se
relacionavam com a sociedade Como jaacute indicamos no capiacutetulo anterior os membros do
movimento de Jesus da Aacutesia estavam inseridos na vida cotidiana da proviacutencia e natildeo
buscavam ruptura com seus vizinhos Apesar da dificuldade em se situar geograficamente a
origem ou o destino escrevendo em meados do segundo seacuteculo o autor da carta a Diogneto
resumiu
Os cristatildeos de fato natildeo se distinguem dos outros homens nem por sua
terra nem por liacutenguas ou costumes Com efeito natildeo moram em cidades
proacuteprias nem falam liacutengua estranha nem tecircm algum modo especial de
viver Sua doutrina natildeo foi inventada por eles graccedilas ao talento e
especulaccedilatildeo de homens curiosos nem professam como outros algum
ensinamento humano Pelo contraacuterio vivendo em cidades gregas e
baacuterbaras conforme a sorte de cada um e adaptando-se aos costumes do
lugar quanto agrave roupa ao alimento e ao resto testemunham um modo de
vida social admiraacutevel e sem duacutevida paradoxal Vivem na sua paacutetria mas
como forasteiros participam de tudo como cristatildeos e suportam tudo como
estrangeiros Toda paacutetria estrangeira eacute paacutetria deles e cada paacutetria eacute
estrangeira (Carta a Diogneto 51-5)
Tertuliano no final do segundo seacuteculo argumentou de modo semelhante para a
sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia Segundo ele os cristatildeos tinham a mesma
maneira de vida as mesmas roupas e os mesmos costumes eles frequentavam juntos o
mercado o accedilougue os banhos puacuteblicos as lojas as faacutebricas as tavernas as feiras e outros
163 MEEKS op cit p 32
59
negoacutecios Cristatildeos eram marinheiros soldados agricultores e se envolviam no comeacutercio
com natildeo cristatildeos Defendendo sua comunidade ele argumentou que eles proviam
habilidades e serviccedilos para o benefiacutecio de toda a sociedade romana (Apologia 42)
Tanto a Carta a Diogneto quanto Apologia natildeo dizem respeito especiacutefico agrave Aacutesia do
final do primeiro seacuteculo mas pelo menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a
interaccedilatildeo social no movimento de Jesus A perspectiva do missionaacuterio Paulo na deacutecada de
50 e 60 parece estar replicada em Diogneto e Apologia no segundo seacuteculo Isso significa
dizer que os seguidores de Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas
situaccedilotildees que os demais membros da sociedade romana Eles tinham contatos com pessoas
de outros viacutenculos religiosos na economia sociedade famiacutelia e poliacutetica Os seguidores de
Jesus tocavam suas vidas de forma paciacutefica com seus vizinhos tentando viver sem
distuacuterbios ou mesmo sem chamar muita atenccedilatildeo
25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo
No mesmo periacuteodo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse mas longe de Patmos cerca
de 1600 quilocircmetros um dos liacutederes da igreja de Roma o presbiacutetero Clemente escreveu
uma carta para a igreja de Corinto Clemente romano alcanccedilou grande prestiacutegio em vaacuterias
comunidades cristatildes posteriormente a ponto de sua carta aparecer em diversas listas
canocircnicas O que levou Clemente a se manifestar aparentemente foi algum tipo de tumulto
interno do movimento de Jesus em Corinto Alguns liacutederes da igreja teriam sido destituiacutedos
sem motivo aparente o que gerou o protesto de Clemente Ele escreveu ldquoCariacutessimos eacute
vergonhoso muito vergonhoso e indigno de conduta cristatilde ouvir dizer que a firme e antiga
Igreja de Corinto por causa de uma ou duas pessoas estaacute em revolta contra os seus
presbiacuteterosrdquo (1Clemente 476)
Na saudaccedilatildeo inicial ele descreve a igreja da capital como ldquoestrangeira em Romardquo A
expressatildeo poderia ser indiacutecio de algum tipo de desconforto da comunidade em relaccedilatildeo agrave
sociedade romana Outra passagem de sua carta talvez aponte para a mesma direccedilatildeo
ldquoIrmatildeos pelas desgraccedilas e adversidades imprevistas que nos aconteceram uma apoacutes outra
acreditamos ter demorado muito para dar atenccedilatildeo agraves coisas que entre voacutes se discutemrdquo
(1Clemente 11) O autor faz referecircncia a algum tipo de crise que impediu que ele se
60
manifestasse anteriormente sobre a situaccedilatildeo de Corinto mas ele evita descrever a natureza
desta crise em qualquer outro lugar da obra
Ao sugerir o fim para os conflitos internos da comunidade ele toma o exeacutercito
romano como exemplo de organizaccedilatildeo e ordem
Irmatildeos militemos com toda nossa prontidatildeo sob as ordens irrepreensiacuteveis
dele Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos
governantes com que disciplina docilidade e submissatildeo eles executam as
funccedilotildees que lhes satildeo designadas (1Clemente 371-2)
Ao demonstrar certa admiraccedilatildeo pela estrutura militar do Impeacuterio ou quando
denomina os oficiais romanos de ldquonossos governantesrdquo a carta de Clemente parece
evidenciar que os membros da comunidade de Jesus estabelecida na capital do Impeacuterio natildeo
possuem uma crise aberta com a sociedade Em funccedilatildeo de suas analogias o mesmo poderia
ser dito a respeito da igreja de Corinto Essa parece ser tambeacutem a postura que adotou o autor
anocircnimo de 1Pedro possivelmente entre os anos 90-95164 escrevendo talvez de Roma
ldquoSujeitai-vos a toda instituiccedilatildeo humana por causa do Senhor quer seja ao rei como
soberano quer agraves autoridades como enviadas por ele tanto para castigo dos malfeitores
como para louvor dos que praticam o bemrdquo (1Pedro 213-14)
Alguns argumentos de Clemente (1Clemente 552-3) indicam que a igreja jaacute passou
por dificuldades mas ele minimiza a crise inserindo-a numa exortaccedilatildeo em benefiacutecio do bem
comum O presbiacutetero Clemente natildeo atribui agrave sociedade romana a responsabilidade pelas
dificuldades que a comunidade enfrentou Isso sugere a existecircncia de uma comunidade
estabelecida na capital do Impeacuterio engajada em evitar problemas com a sociedade
experiecircncia essa que parecia estar replicada em comunidades da proviacutencia da Aacutesia
Mas se os membros do movimento de Jesus de uma forma geral tentavam manter
laccedilos regulares com a sociedade romana o inverso tambeacutem poderia ser afirmado Da parte
dos governantes geralmente havia certa toleracircncia para com costumes e mesmo divindades
locais desde que natildeo se opusessem aos interesses romanos Esta atitude de toleracircncia relativa
deve ter favorecido o desenvolvimento das igrejas Muitas comunidades existiram sem
serem notadas por quase um seacuteculo165 Accedilotildees oficiais da parte dos prococircnsules procuradores
ou outros magistrados locais como as noticiadas por Pliacutenio o Jovem ao imperador Trajano
no iniacutecio do segundo seacuteculo eram raras
164 KUumlMMEL op cit p 557-558 165 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 p 124
61
Tensotildees se manifestavam de forma intermitente como perseguiccedilotildees eventuais mas
normalmente natildeo eram oficiais Segundo Thompson para pessoas de fora da comunidade o
movimento de Jesus era uma religiatildeo suspeita por quatro motivos era nova estrangeira
secreta e exclusiva166 Provavelmente foi em consequecircncia de uma suspeiccedilatildeo desta natureza
que cristatildeos foram acusados diante do governador da Bitiacutenia algum tempo depois do
Apocalipse
As cartas de Pliacutenio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusaccedilotildees
predominantemente vagas Natildeo havia um crime especiacutefico para o processo contra os cristatildeos
O governador perguntou ldquoHaacute de punir-se o simples fato de algueacutem ser cristatildeo mesmo que
inocente de qualquer crime ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nomerdquo
(Epistola 10962) Ainda assim na duacutevida sobre o que fazer Pliacutenio inaugurou um teste
Os que negarem ser cristatildeos considerei-os merecedores de absolviccedilatildeo De
fato sob minha pressatildeo devotaram-se aos deuses e reverenciaram com
incenso e libaccedilotildees vossa imagem colocada para este propoacutesito ao lado das
estaacutetuas dos deuses e pormenor particular amaldiccediloaram a Cristo coisa
que um genuiacuteno cristatildeo jamais aceita fazer (Epiacutestola 10965)
A proviacutencia governada por Pliacutenio era vizinha da Aacutesia e fazia parte do complexo
cultural da mesma peniacutensula Ainda que o problema principal natildeo fosse o culto imperial o
gesto do governador colocou o movimento em colisatildeo com atividades religiosas locais As
epiacutestolas do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos entendiam ser crime
renegar ritos sagrados locais especialmente o culto imperial
26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo
Nos termos de Leonard Thompson ldquonas proviacutencias rituais imagens templos altares
associados com o culto imperial contribuiacuteam de forma importante para a compreensatildeo das
pessoas acerca da sua relaccedilatildeo com o imperadorrdquo167 Isso fazia da instituiccedilatildeo do culto imperial
uma importante representaccedilatildeo do imperador e do Impeacuterio na Aacutesia Havia entretanto
reciprocidade no seu estabelecimento Era uma honra para a cidade ter um templo ou altar
do culto imperial ao mesmo tempo que era importante para o imperador Impeacuterio e senado
aceitavam a existecircncia do culto imperial e promoviam seu estabelecimento e manutenccedilatildeo
166 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 132 167 Idem p 158
62
como igualmente o faziam as proviacutencias Isso significa que a rede de relaccedilotildees alimentadas
pelo culto imperial entre Roma e Aacutesia era uma rede de poder um instrumento poliacutetico de
vaacuterios niacuteveis168
Simon Price analisou a presenccedila do culto na Aacutesia insistindo na dificuldade de
circunscrever o papel do culto imperial apenas agraves esferas poliacuteticas Ele tinha igualmente um
papel religioso Segundo ele rituais de sacrifiacutecio e devoccedilatildeo puacuteblica ou privada eram
simultaneamente expressotildees religiosas e poliacuteticas169
O culto imperial natildeo foi criado pelo imperador do periacuteodo do Apocalipse Otaacutevio
Augusto recebeu honras das cidades da Aacutesia semelhantes agraves oferecidas aos deuses locais
Sacerdotes do primeiro imperador poderiam ser encontrados em mais de trinta cidades da
Aacutesia Menor e mais parentes seus receberam culto do que qualquer outro imperador depois
dele Durante o governo de Claacuteudio surgiram ao lado do sacerdote exclusivo para o
imperador vivo outros sacerdotes com a responsabilidade de promover culto tambeacutem para
os imperadores mortos Em funccedilatildeo da antiguidade da praacutetica e sua permanecircncia no decorrer
dos governos imperiais eacute possiacutevel afirmar que Domiciano alvo de uma forte criacutetica no
Apocalipse (Apocalipse 13) natildeo foi nem mais nem menos insistente com relaccedilatildeo agraves suas
prerrogativas divinas que qualquer imperador antes ou depois dele170
Todas as cidades do Apocalipse tinham manifestaccedilatildeo do culto imperial em algum
niacutevel cinco delas tinham altares imperiais (com exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia) seis
tinham templos imperiais (com exceccedilatildeo de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com
exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia)171
Aleacutem das praacuteticas e sacrifiacutecios religiosos nos templos e altares dedicados ao
Imperador sacerdotes imperiais promoviam festivais puacuteblicos que eram importantes
expressotildees religiosas e ciacutevicas na Aacutesia Estes festivais poderiam acontecer em diversas datas
mas estavam normalmente vinculados ao aniversaacuterio do Imperador Durante as celebraccedilotildees
os templos e santuaacuterios eram enfeitados e animais eram sacrificados em diversos altares
espalhados pela cidade Em cada local a participaccedilatildeo puacuteblica era aberta e esperada tendo
como cliacutemax uma refeiccedilatildeo ritual172
168 Idem p 159 169 PRICE Simon R F Rituals and Power The Roman imperial cult in Asia Minor Cambridge Cambridge
University Press 1984 p 235 170 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 159 171 PRICE op cit p 55-58 172 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation op cit p 163
63
Dentro dos templos imperiais como nos templos dedicados a outros cultos havia
estaacutetuas do imperador vivo e de outros imperadores alguma iconografia imperial e mesas
para os diversos sacrifiacutecios Estaacutetuas do imperador tambeacutem eram encontradas ao longo das
cidades ou em centros da vida puacuteblica urbana Nem todas as estaacutetuas do imperador
encontradas numa polis eram objeto de culto mas aquelas que estavam em um lugar sagrado
ou quando usadas em um tempo sagrado (um festival religioso por exemplo) tinham um
significado ritual Estas estaacutetuas e imagens tinham sentido religioso e poliacutetico e
funcionavam como um lembrete permanente uma representaccedilatildeo do poder do Imperador173
A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Aacutesia fez com que a
questatildeo do relacionamento com a sociedade se tornasse significativo para o movimento de
Jesus na proviacutencia Era difiacutecil se relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma
de suas celebraccedilotildees puacuteblicas Para alguns liacutederes das igrejas da regiatildeo natildeo havia problema
no envolvimento em atividades proacuteprias da cidade e em comer da comida oriunda dos
sacrifiacutecios religiosos Se participassem destas celebraccedilotildees diminuiriam a tensatildeo com a
sociedade e continuariam envolvidos nos diversos negoacutecios da vida urbana Alguns
entretanto como Joatildeo de Patmos possuiacuteam uma perspectiva distinta Possivelmente ele
representava uma minoria dentro das igrejas da Aacutesia que instava fortemente as comunidades
a exacerbar a tensatildeo com a sociedade e a se isolar das estruturas sociais da peniacutensula174
27 Resumo
A ilha de Patmos de onde partiu o Apocalipse e a proviacutencia romana da Aacutesia seu
destino partilhavam de uma mesma conjuntura social Era uma das regiotildees mais ricas do
Impeacuterio Romano com a presenccedila de comunidades judaicas espalhadas por vaacuterias de suas
cidades Membros destas comunidades que criam em Jesus como o Messias estavam na base
das mais antigas igrejas da regiatildeo Tanto as sinagogas quanto a maioria das igrejas
buscavam desenvolver seus ritos e crenccedilas sem conflito com a sociedade romana local
mesmo diante de tensotildees que poderiam se manifestar em relaccedilatildeo ao culto imperial Alguns
liacutederes buscavam manter orientaccedilotildees que poderiam proceder do apoacutestolo Paulo e assim
permitir a participaccedilatildeo dos membros em atividades ciacutevicas e religiosas locais Essas
173 Idem p 163 174 Idem p 167
64
comunidades natildeo desejavam que suas praacuteticas religiosas inviabilizassem seus
relacionamentos com a sociedade romana Joatildeo de Patmos entretanto manifesta em sua
obra uma postura oposta a liacutederes como seu contemporacircneo Clemente Romano Na
perspectiva do autor do Apocalipse para ser fiel ao seu fundador o movimento de Jesus
precisava rejeitar o Impeacuterio
III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE
JOAtildeO
Joatildeo de Patmos judeu emigrante da Palestina apoacutes a guerra contra os romanos por
meio de narrativas imagens e siacutembolos se apropriou de determinadas tradiccedilotildees religiosas
judaicas e construiu um apocalipse que pretendia explicar a conjuntura histoacuterica que o
movimento de Jesus experimentou e experimentava no interior da proviacutencia romana da Aacutesia
A obra culmina na descriccedilatildeo do juiacutezo final e da nova criaccedilatildeo divina Antes disso entretanto
o autor apresenta um periacuteodo de governo messiacircnico iminente terrenal intra-histoacuterico por
mil anos (Apocalipse 201-10) Apesar de curta a narrativa do milecircnio acabaraacute no centro dos
debates e das interpretaccedilotildees subsequentes do livro joanino175 Queremos neste capiacutetulo
analisar a produccedilatildeo desta periacutecope no contexto da obra joanina a partir de suas apropriaccedilotildees
tradicionais e literaacuterias na direccedilatildeo de novas representaccedilotildees individuais e coletivas
histoacutericas e milenaristas Procuramos refletir tambeacutem sobre a forma como estas
representaccedilotildees poderiam interferir no mundo social de Joatildeo e suas comunidades176
31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse
Adela Y Collins sugeriu que a obra joanina apesar de apresentar certos sinais que
indicariam uma estrutura clara (sete igrejas sete selos sete trombetas e sete taccedilas por
exemplo) natildeo eacute tatildeo transparente assim deixando a audiecircncia com certa expectativa
frustrada Isso poderia explicar os longos debates a respeito da estrutura da obra de Joatildeo177
Entre as alternativas David L Barr preferiu construir um esboccedilo do livro acompanhando o
desenvolvimento de suas narrativas Por isso ele dividiu o Apocalipse joanino em trecircs seccedilotildees
principais emolduradas por uma estrutura epistolar (os versiacuteculos 11-3 formariam o
prefaacutecio enquanto 226-21 a conclusatildeo) Ele as chamou de Seccedilatildeo das Cartas (14-322)
Seccedilatildeo do Culto Celestial (41-1118) e Seccedilatildeo da Guerra Escatoloacutegica (1119-225)178 Nossa
175 Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene
Wipf and Stock Publishers 2001 p 21-87 KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation
Oxford Blackwell Publishing 2004 p 200-219 176 Pensamos aqui nos papeacuteis sociais instituiccedilotildees sociais e relacionamentos sociais 177 Conferir uma histoacuteria da estruturaccedilatildeo do Apocalipse em COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in
the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 13-44 178 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa
Polebridge Press 1998
66
proposta de esboccedilo para o Apocalipse parte das sugestotildees de Barr em funccedilatildeo da forma como
ele compreendeu o desenvolvimento narrativo do livro joanino e o enquadramento
particular de cada episoacutedio literaacuterio no interior da obra como um todo Por meio deste esboccedilo
eacute possiacutevel entatildeo verificar o lugar do milecircnio dentro do Apocalipse Em termos literaacuterios ele
faz parte da narrativa da guerra escatoloacutegica ao descrever a vitoacuteria do Jesus exaltado sobre
Satanaacutes e as bestas num evento que termina com o juiacutezo final e a Nova Jerusaleacutem
- Introduccedilatildeo epistolar (11-3)
- Primeira seccedilatildeo ndash O Filho do Homem e as sete igrejas da Aacutesia (14-322)
Carta agrave Igreja em Eacutefeso (21-7)
Carta agrave Igreja em Esmirna (28-11)
Carta agrave Igreja em Peacutergamo (212-17)
Carta agrave Igreja em Tiatira (218-29)
Carta agrave Igreja em Sardes (31-6)
Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia (37-13)
Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia (314-22)
- Segunda seccedilatildeo ndash O rolo selado com sete selos (41-1119)
O culto ao Anciatildeo no trono (41-11)
O culto ao Cordeiro (51ndash14)
Selo 1 ndash Cavalo branco (61ndash2)
Selo 2 ndash Cavalo vermelho (63ndash4)
Selo 3 ndash Cavalo preto (65-6)
Selo 4 ndash Cavalo amarelo (67-8)
Selo 5 ndash Os maacutertires debaixo do altar (69-11)
Selo 6 ndash Juiacutezo escatoloacutegico (612-17)
Interluacutedio (71-17)
144000 selados (71-8)
Grande multidatildeo (79ndash17)
Selo 7 - Sete trombetas (81ndash1119)
O anjo das oraccedilotildees (81ndash6)
Trombeta 1 ndash Granito e fogo sobre a terra (88-7)
Trombeta 2 ndash Mar se torna em sangue (88-9)
Trombeta 3 ndash Estrelas tornam rios amargos (810-11)
Trombeta 4 ndash Sol lua e estrelas escurecem (812-13)
Trombeta 5 ndash Gafanhotos sobem do abismo (91-12)
Trombeta 6 ndash Quatro anjos e um exeacutercito matam pessoas (913-21)
Interluacutedio (101-1114)
Um livro para ser comido (101-11)
As duas testemunhas (111-14)
Trombeta 7 ndash A chegada do reino de Deus (1115ndash19)
- Terceira seccedilatildeo ndash A guerra escatoloacutegica (121-225)
A origem da guerra (121-18)
Os aliados do Dragatildeo (131-18)
A besta do mar (131-10)
A besta da terra (1311-18)
67
Os 144000 guerreiros do Cordeiro (141-5)
O anuacutencio dos trecircs anjos (146-12)
A bem-aventuranccedila dos mortos (1413)
O juiacutezo como uma ceifa (1414-20)
As sete taccedilas da ira (151-1621)
Os maacutertires diante de Deus (151-8)
Taccedila 1 Dores nos marcados pela besta (161-2)
Taccedila 2 O mar se torna em sangue (163)
Taccedila 3 Os rios se tornam em sangue (164-7)
Taccedila 4 O sol provoca feridas (168-9)
Taccedila 5 Trevas no trono da besta (1610-11)
Taccedila 6 A seca do Rio Eufrates e a coalizatildeo do Dragatildeo (1612-16)
Taccedila 7 Juiacutezo sobre Babilocircnia (1617-21)
A prostituta destruiacuteda (171-18)
Hino fuacutenebre pela queda da Babilocircnia (181-24)
Celebraccedilatildeo no ceacuteu pela queda da Babilocircnia (191-4)
O culto no ceacuteu anuncia as bodas do Cordeiro (195-10)
A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre as bestas (1911-21)
A prisatildeo do Dragatildeo (201-3)
O reino messiacircnico milenar (204-6)
A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre o Dragatildeo (207-10)
O juiacutezo final (2011-15)
A Nova Jerusaleacutem (211-225)
- Conclusatildeo epistolar (226-21)
32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo
Uma das caracteriacutesticas recorrentes nos apocalipses segundo John Collins eacute a
ldquorevelaccedilatildeordquo179 O proacuteprio termo ldquoapocalipserdquo () significa ldquorevelaccedilatildeordquo180 Seus
autores se propotildeem a revelar algo para sua audiecircncia Em linhas amplas estas revelaccedilotildees
poderiam ser divididas em dois eixos um vertical e outro horizontal
No eixo horizontal os autores queriam revelar o passado e o futuro O foco varia de
texto a texto com algumas obras com ecircnfase no passado ao descreverem os primoacuterdios da
histoacuteria da humanidade o iniacutecio da saga do povo de Deus ou mesmo uma descriccedilatildeo
cosmogocircnica sobre como as coisas vieram a ser o que satildeo no seu presente momento Quando
o foco estava no futuro os autores pretendiam descrever a intervenccedilatildeo final de Deus que
promoveria uma inversatildeo escatoloacutegica com todas as suas consequecircncias (cataclismos
coacutesmicos e juiacutezo sobre os inimigos de um lado nova criaccedilatildeo e recompensa para os membros
179 COLLINS John J Introduction towards the morphology of a genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979
p 9 180 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 66
68
do grupo do outro) Nesta perspectiva haacute a construccedilatildeo de um esquema teleoloacutegico da
histoacuteria no qual um fim glorioso resolveria a violecircncia e os traumas do passado e do presente
da comunidade destinataacuteria do apocalipse em questatildeo
No eixo vertical uma obra apocaliacuteptica se propotildee a revelar o que estaacute para aleacutem do
mundo humano o que estaacute acima e o que estaacute abaixo os ceacuteus e os submundos bem como
as coisas e seres que existem nestes espaccedilos Haacute aqui uma preocupaccedilatildeo em entender como
o universo funciona como o mundo sobrenatural interfere no mundo dos seres humanos e
na natureza e como controlar ou pelo menos ter acesso a essas realidades sobrenaturais
O Apocalipse de Joatildeo como outros apocalipses antes dele e depois dele tambeacutem
possui essas preocupaccedilotildees horizontais e verticais Como as revelaccedilotildees apocaliacutepticas satildeo
transmitidas no formato de narrativas o conteuacutedo do livro do profeta de Patmos estaacute
apresentado no interior de trecircs histoacuterias distintas mas inter-relacionadas181 A primeira
histoacuteria a ser narrada eacute a do aparecimento do Filho do Homem que promove o ditado de sete
cartas para um grupo de igrejas da Aacutesia romana Nestas cartas a figura celestial conhecida
das tradiccedilotildees de Daniel182 e 1Enoque183 faz ameaccedilas elogios e promessas e termina cada
carta com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores As mensagens
das cartas giram em torno de distuacuterbios entre os proacuteprios membros do movimento de Jesus
por causa das diferentes posturas de relacionamento com a sociedade romana em cada
contexto local184
Na segunda seccedilatildeo do livro o narrador das revelaccedilotildees eacute levado em espiacuterito (ldquoἐν
πνεύματιrdquo) por uma porta aberta no ceacuteu Neste lugar ele presencia uma sucessatildeo de atos
lituacutergicos e eacute apresentado aos principais personagens celestiais o Anciatildeo sobre o trono os
Quatro Viventes os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais e vaacuterios seres angelicais A figura
181 Interpretamos as narrativas do Apocalipse agrave luz do contexto em que ele foi composto Isso significa que as
analogias que constroacutei as imagens que utiliza os siacutembolos recorrentes na obra seratildeo compreendidos como
referecircncia a eventos histoacutericos do seu tempo ou como elementos escatoloacutegicos proacuteprios ao movimento de
Jesus no final do seacuteculo I especialmente no contexto da regiatildeo Aacutesia-Siacuteria-Palestina Cf COLLINS Adela
Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E J Brill 1996 p 198
Diversas outras formas de interpretar o mesmo conteuacutedo satildeo resumidas e analisadas em WAINWRIGHT op
cit 182 Daniel 7 narra a sucessatildeo de reinos e governos na forma de quatro animais mitoloacutegicos No interior desta
revisatildeo histoacuterica apocaliacuteptica o texto descreve a figura do Anciatildeo celestial e o Filho do Homem que o
representa Cf COLLINS John J Daniel with in introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William
B Eerdmans Publishing Company 1984 p 83 183 Em 1Enoque 7114-17 Enoque ascende aos ceacuteus onde encontra o proacuteprio Deus Ali o patriarca recebe a
informaccedilatildeo que ele eacute realmente o Filho do Homem figura que teria um papel significativo na salvaccedilatildeo
escatoloacutegica dos eleitos de Deus Cf OLSON Daniel C Enoch and the Son of Man in the Epilogue of the
Parables Journal for the Study of the Pseudepigrapha Thousand Oaks n 18 p 27-38 1998 184 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 p 58
69
fundamental entretanto eacute descrita como o Cordeiro (ἀρνίον) Eacute ele que recebe um rolo selado
com sete selos estrateacutegia simboacutelica para interpretar eventos e fenocircmenos histoacutericos A cada
selo corresponde uma revelaccedilatildeo ateacute o seacutetimo que por sua vez se desdobra em outro grupo
de sete elementos desta vez sete trombetas Como os selos cada trombeta estaacute relacionada
com um evento numa escala crescente de intensidade que culmina com a audiccedilatildeo de um
hino que comemora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuaacuterio celestial
A terceira parte do livro conta a histoacuteria de uma guerra que comeccedila quando uma
figura demoniacuteaca o Dragatildeo vermelho fracassa no seu propoacutesito de destruir uma crianccedila e
sua matildee sendo por isso expulso do ceacuteu para a terra Sua reaccedilatildeo eacute instaurar uma guerra contra
outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas Em contrapartida o
Cordeiro reuacutene seu exeacutercito convocando 144000 guerreiros dispostos a lutar ateacute a morte O
confronto resulta no nuacutemero determinado de maacutertires necessaacuterios para instaurar a
intervenccedilatildeo escatoloacutegica de Deus na forma de sete taccedilas de ira Apoacutes o derramamento das
taccedilas Jesus agora como um cavaleiro celestial desce do ceacuteu com uma hoste de anjos para
derrotar o Dragatildeo e seus aliados Num primeiro ato as bestas satildeo lanccediladas num lago de fogo
todo o exeacutercito adversaacuterio eacute morto e o Dragatildeo eacute aprisionado por mil anos O segundo ato
coloca fim agrave guerra quando o Dragatildeo eacute novamente solto somente para ser vencido e lanccedilado
no mesmo espaccedilo de juiacutezo onde jaacute estavam as duas bestas Entre os dois atos a narrativa
apresenta o reino messiacircnico com a participaccedilatildeo da figura exaltada de Jesus e os maacutertires
ressuscitados agora como reis e sacerdotes de Deus Com o fim do milecircnio e da guerra
escatoloacutegica o autor do Apocalipse descreve o fim da histoacuteria marcada pelo juiacutezo final e a
chegada da Nova Jerusaleacutem
33 O contexto narrativo do reino milenar
A sequecircncia narrativa e temporal da terceira seccedilatildeo (Apocalipse 121-225) natildeo eacute
linear Haacute muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como repeticcedilotildees ou incidentes
similares Existe um iacutentimo paralelo entre a sequecircncia das taccedilas (Apocalipse 161-21) e a
sequecircncia das trombetas (Apocalipse 88-1119) bem como vaacuterias cenas que parecem
interromper o fio narrativo Normalmente estas interrupccedilotildees funcionam para apresentar uma
interpretaccedilatildeo de algum aspecto da narrativa Mesmo assim ainda existe um sentido de
movimento para frente O primeiro episoacutedio apresenta o nascimento de uma crianccedila descrita
70
em termos messiacircnicos (Apocalipse 125) o que parece ser alusatildeo ao nascimento de Jesus
nove deacutecadas antes do Apocalipse surgir em Patmos e termina com o juiacutezo final e a
restauraccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo agora descrita como a Nova Jerusaleacutem A primeira cena estaacute
no passado da audiecircncia do Apocalipse e a uacuteltima estaacute no futuro Isso parece evidenciar o
desenvolvimento de uma narraccedilatildeo contiacutenua com princiacutepio meio e fim nos moldes dos
chamados apocalipses histoacutericos da tipologia de John Collins185
Em Apocalipse 121-18 Joatildeo narra uma guerra no ceacuteu e a expulsatildeo do Dragatildeo para
a terra Este tenta destruir a crianccedila messiacircnica mas falha no momento em que ela eacute
arrebatada para o ceacuteu Diante disto o Dragatildeo procura destruir a Mulher que eacute protegida no
deserto Depois de fracassar na perseguiccedilatildeo da Mulher o Dragatildeo parte para a perseguiccedilatildeo
dos outros filhos da Mulher (σπέρματος αὐτῆς) aqueles que ldquoguardam os mandamentos de
Deus e sustentam o testemunho de Jesusrdquo (ldquoτῶν τηρούντων τὰς ἐντολὰς τοῦ θεοῦ καὶ ἐχόντων
τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦrdquo) Tal descriccedilatildeo pretendia explicar para sua audiecircncia que uma iminente
perseguiccedilatildeo das igrejas teria como causa um conflito fora do mundo humano que envolveu
o fracasso de Satanaacutes em destruir Jesus e sua consequente expulsatildeo para a terra186
Um proacuteximo estaacutegio na narrativa apresenta os aliados do Dragatildeo duas bestas (qhria)
descritas em termos que apontavam para o Impeacuterio Romano e suas estruturas na proviacutencia
da Aacutesia como agentes demoniacuteacos187 Com esta estrateacutegia o profeta de Patmos queria indicar
que uma guerra coacutesmica jaacute comeccedilara e o conflito iria se acentuar enormemente mas em
breve Deus iria intervir nos acontecimentos por meio de Jesus Para o Apocalipse as igrejas
da Aacutesia e seus membros se encontravam no meio da luta depois do levantamento das bestas
mas antes que elas instaurassem a perseguiccedilatildeo generalizada
O estaacutegio seguinte da guerra pode ser denominado de ldquoresposta do Cordeirordquo Este
comeccedila sua reaccedilatildeo com a reuniatildeo de um exeacutercito de oposiccedilatildeo sobre o monte Siatildeo
(Apocalipse 141-5) provavelmente uma descriccedilatildeo dos seguidores de Jesus logo
martirizados Como resultado dessas mortes completa-se o nuacutemero dos maacutertires
185 Segundo Collins haacute tipos diferentes de apocalipses Uns como Daniel 7-12 4Esdras e 2Baruque focam
em descriccedilotildees histoacutericas e descrevem julgamentos coacutesmicos Outros como 2Enoque ou 3Baruque se
concentram em viagens celestiais e revelaccedilotildees sobre a realidade da alma apoacutes a morte O Apocalipse de Joatildeo
enfatiza o autor eacute um apocalipse de tipo misto que apesar de apresentar algum tipo de revelaccedilatildeo de mundo
sobrenatural se concentra na reflexatildeo histoacuterica Cf COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura
apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 4 COLLINS John J
Introductionhellip op cit p 13 186 HENTEN Jan Willem Dragon Myth and Imperial Ideology in Revelation 12-13 In BARR David L (ed)
The Reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical
Literature 2006 p 181-203 p 202 187 COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation op cit p 232
71
mencionados no quinto selo (Apocalipse 69-11) dando iniacutecio agraves sete pragas finais sobre a
terra na forma de sete taccedilas O cliacutemax das taccedilas de julgamento estaacute na descriccedilatildeo da queda da
Babilocircnia caracterizaccedilatildeo simboacutelica de Roma
Finalmente chega a fase final da guerra O cavaleiro celestial aparece do ceacuteu e
alcanccedila vitoacuteria sobre as bestas Um anjo desce do ceacuteu e prende o Dragatildeo Um periacuteodo
interino de paz por mil anos eacute estabelecido durante o qual os martirizados retornam agrave vida
como juiacutezes reis e sacerdotes de Cristo Apoacutes o milecircnio Satatilde eacute novamente libertado Ele
reuacutene um exeacutercito demoniacuteaco mas eacute derrotado definitivamente
34 O episoacutedio do reino milenar
Texto Grego188 Traduccedilatildeo proacutepria 1 Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ
οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ
ἅλυσιν μεγάλην ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ
1 E vi um anjo189 descendo do ceacuteu tendo a
chave do abismo190 e uma grande corrente
em suas matildeos 2 καὶ ἐκράτησεν τὸν δράκοντα ὁ ὄφις ὁ
ἀρχαῖος ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς
καὶ ἔδησεν αὐτὸν χίλια ἔτη191
2 E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente
que eacute o Diabo e Satanaacutes192 aprisionando-o
por mil anos 3 καὶ ἔβαλεν αὐτὸν εἰς τὴν ἄβυσσον καὶ
ἔκλεισεν καὶ ἐσφράγισεν ἐπάνω αὐτοῦ ἵνα
μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ
χίλια ἔτη μετὰ ταῦτα δεῖ λυθῆναι αὐτὸν
μικρὸν χρόνον
3 E lanccedilou-o para o abismo fechou e selou
o abismo para que natildeo engane mais as
naccedilotildees ateacute que se complete os mil anos
Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele
seja solto por pouco tempo 4 Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽
αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς καὶ τὰς
ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν
4 E vi tronos e sentaram neles e
[autoridade de] julgamento foi dada a
eles193 tambeacutem as almas dos
188 ALAND Kurt et all The Greek New Testament 4 ed rev London United Bible Society 2008 p 737-
738 O texto grego apresenta muitas dificuldades em funccedilatildeo de deficiecircncias e imprecisotildees sintaacuteticas Faltam
sujeitos haacute um acusativo solto um nominativo no lugar de um acusativo um pronome relativo que poderia
natildeo ter viacutenculos com seu antecedente mais oacutebvio A traduccedilatildeo proposta reflete uma tentativa de ordenaccedilatildeo Cf
MILLOS Samuel Peacuterez Apocalipsis comentario exegeacutetico al texto griego del Nuevo Testamento Barcelona
Editorial Clie 2010 p 1213 189 A expressatildeo aparece indefinida ldquoum anjordquo Natildeo haacute qualquer ecircnfase ou destaque no papel do anjo que prende
Satatilde Todo o destaque da narrativa vai para o Cristo que reina e os martirizados ressuscitados Cf POHL
Adolf Apocalipse de Joatildeo Curitiba Editora Evangeacutelica Esperanccedila 2001 2v V II p 221 190 O abismo natildeo eacute idecircntico ao lago de fogo e parece ser referecircncia agrave morada dos seres demoniacuteacos Cf
PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 363 191 A expressatildeo ldquoχίλια ἔτηrdquo soacute aparece no Novo Testamento nesta passagem do Apocalipse e em 2Pedro 38 192 Todos os tiacutetulos aqui mencionados apareceram antes nos episoacutedios do confronto entre o Dragatildeo e a Mulher
e o Dragatildeo e Miguel em Apocalipse 12 Laacute Satatilde foi lanccedilado para a terra Aqui ele eacute jogado no abismo Cf
FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991 p
107 193 Literalmente ldquoe julgamento foi dado a elesrdquo Pode significar que finalmente um julgamento terminou em
favor dos maacutertires ou como aqui optamos que o julgamento foi confiado a eles ou seja a autoridade para
exercer o juiacutezo Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 365
72
μαρτυρίαν Ἰησοῦ καὶ διὰ τὸν λόγον τοῦ
θεοῦ καὶ οἵτινες οὐ προσεκύνησαν τὸ
θηρίον οὐδὲ τὴν εἰκόνα αὐτοῦ καὶ οὐκ
ἔλαβον τὸ χάραγμα ἐπὶ τὸ μέτωπον καὶ ἐπὶ
τὴν χεῖρα αὐτῶν καὶ ἔζησαν καὶ
ἐβασίλευσαν μετὰ τοῦ Χριστοῦ χίλια ἔτη
decapitados194 por causa do testemunho de
Jesus e da palavra de Deus e todos195 que
natildeo adoraram a besta nem sua imagem e
natildeo receberam a marca dela na fronte e na
matildeo Viveram e reinaram com Cristo por
mil anos 5 οἱ λοιποὶ τῶν νεκρῶν οὐκ ἔζησαν ἄχρι
τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη αὕτη ἡ ἀνάστασις ἡ
πρώτη
5 Os demais mortos natildeo viveram ateacute que
terminasse os mil anos Esta eacute a primeira
ressurreiccedilatildeo196 6 μακάριος καὶ ἅγιος ὁ ἔχων μέρος ἐν τῇ
ἀναστάσει τῇ πρώτῃmiddot ἐπὶ τούτων ὁ
δεύτερος θάνατος οὐκ ἔχει ἐξουσίαν ἀλλ᾽
ἔσονται ἱερεῖς τοῦ θεοῦ καὶ τοῦ Χριστοῦ
καὶ βασιλεύσουσιν μετ᾽ αὐτοῦ [τὰ] χίλια
ἔτη
6 Bendito e santo o que tem parte na
primeira ressurreiccedilatildeo Sobre estes a
segunda morte197 natildeo tem poder poreacutem
seratildeo sacerdotes de Deus e de Cristo e
reinaratildeo com ele por mil anos
7 Καὶ ὅταν τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη λυθήσεται
ὁ Σατανᾶς ἐκ τῆς φυλακῆς αὐτοῦ
7 E quando concluir os mil anos seraacute solto
Satanaacutes da sua prisatildeo 8 καὶ ἐξελεύσεται πλανῆσαι τὰ ἔθνη τὰ ἐν
ταῖς τέσσαρσιν γωνίαις τῆς γῆς τὸν Γὼγ
καὶ Μαγώγ συναγαγεῖν αὐτοὺς εἰς τὸν
πόλεμον ὧν ὁ ἀριθμὸς αὐτῶν ὡς ἡ ἄμμος
τῆς θαλάσσης
8 E viraacute a enganar as naccedilotildees198 que estatildeo
nos quatro cantos da terra Gog e Magog199
e reuni-las para a guerra das quais o
nuacutemero eacute como a areia do mar
9 καὶ ἀνέβησαν ἐπὶ τὸ πλάτος τῆς γῆς καὶ
ἐκύκλευσαν τὴν παρεμβολὴν τῶν ἁγίων
9 E subiram200 entatildeo pela superfiacutecie da terra
e cercaram o acampamento dos santos e a
194 Literalmente ldquodegolados por um machadordquo Termo arcaizante jaacute que este tipo de supliacutecio usado na
Repuacuteblica Romana natildeo era comum nos tempos do Impeacuterio Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p
366 195 Alguns autores argumentam que o pronome relativo οἵτινες daria margem para dois grupos de exaltados (os
ressuscitados e os que natildeo adoraram a besta) Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 366-367
Acompanhamos entretanto o argumento de David Aune que entende a claacuteusula relativa como uma descriccedilatildeo
de um uacutenico grupo os martirizados A expressatildeo fornece as causas positivas para o martiacuterio (testemunho de
Jesus e da Palavra de Deus) e as negativas (natildeo adoraram a besta e natildeo receberam sua marca) Cf AUNE
David E Revelation 17-22 op cit p 1088-1089 196 Segundo este episoacutedio do Apocalipse apenas os maacutertires participam da primeira ressurreiccedilatildeo O livro de
Daniel localizou a ressurreiccedilatildeo dos mortos no iniacutecio do reino messiacircnico 4Esdras e 2Baruque a localizam no
final Aparentemente o Apocalipse harmonizou duas tradiccedilotildees diferentes afirmando duas ressurreiccedilotildees uma
no iniacutecio do reino milenar outra no final Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1090-1091 197 Segundo Aune a expressatildeo ldquosegunda morterdquo pode significar a exclusatildeo da ressurreiccedilatildeo do final dos tempos
ou a eterna danaccedilatildeo Ele sugere a segunda opccedilatildeo como mais plausiacutevel neste contexto da narrativa do
Apocalipse Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1093 198 As naccedilotildees aqui seduzidas oriundas dos quatro cantos da terra que precisam subir pela superfiacutecie para cercar
o acampamento dos santos parecem aludir a um exeacutercito de seres demoniacuteacos que estavam no submundo com
Satatilde Cf FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 106 POHL op cit p 236 199 Alusatildeo a Ezequiel 38-39 que vaticinou um ataque de naccedilotildees hostis aos habitantes da Palestina nos uacuteltimos
dias No Apocalipse entretanto Gog e Magog natildeo satildeo descriccedilotildees de povos ou naccedilotildees mas referecircncia
metafoacuterica ao exeacutercito demoniacuteaco de oposiccedilatildeo final Cf POHL op cit p 237 200 Haacute nos versiacuteculos 9 e 10 uma curiosa inconsistecircncia verbal Os verbos que descrevem a prisatildeo inicial de
Satatilde estatildeo no aoristo indicativo traduzidos normalmente pelo preteacuterito A partir do versiacuteculo 7 as claacuteusulas
temporais passam para o futuro (ldquoenganaraacute as naccedilotildeesrdquo ldquoreuniraacute para a guerrardquo) mas retornam para o aoristo
no relato do confronto final (ldquosubiram pela superfiacutecierdquo ldquocercaram o acampamentordquo ldquodesceu fogordquo etc)
Possivelmente isto tenha origem na jaacute mencionada desordenaccedilatildeo gramatical da passagem Cf MILLOS op
cit p 1213
73
καὶ τὴν πόλιν τὴν ἠγαπημένην καὶ κατέβη
πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e os
queimou 10 καὶ ὁ διάβολος ὁ πλανῶν αὐτοὺς ἐβλήθη
εἰς τὴν λίμνην τοῦ πυρὸς καὶ θείου ὅπου
καὶ τὸ θηρίον καὶ ὁ ψευδοπροφήτης καὶ
βασανισθήσονται ἡμέρας καὶ νυκτὸς εἰς
τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων
10 E o diabo o enganador deles foi jogado
para o lago201 de fogo e enxofre onde
tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta e
seratildeo atormentados dia e noite para todo o
sempre
O episoacutedio do milecircnio pode ser dividido em trecircs partes a prisatildeo do Dragatildeo
(versiacuteculos 1-3) os maacutertires ressuscitados (versiacuteculos 4-6) a condenaccedilatildeo do Dragatildeo
(versiacuteculos 7-10) Satildeo trecircs partes contudo apenas duas histoacuterias que se unem pela expressatildeo
temporal ldquomil anosrdquo (χίλια ἔτη) aqui narradas como parte da revelaccedilatildeo vertical ou seja
eventos que ocorreratildeo no futuro em relaccedilatildeo ao tempo da audiecircncia A narrativa do juiacutezo
sobre Satanaacutes segue do versiacuteculo 1 ao 3 e eacute retomada nos versiacuteculos 7-10 No meio dela estaacute
a narraccedilatildeo do reinado dos maacutertires202 Se narrada de forma linear sem a interrupccedilatildeo este
seria o episoacutedio da prisatildeo e destruiccedilatildeo do Dragatildeo
E vi um anjo descendo do ceacuteu tendo a chave do abismo e uma grande
corrente em suas matildeos E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente que eacute o
Diabo e Satanaacutes aprisionou-o por mil anos E lanccedilou-o para o abismo
fechou e selou o abismo para que natildeo enganasse mais as naccedilotildees ateacute que se
completasse os mil anos Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele seja
solto por pouco tempo E quando concluir os mil anos Satanaacutes seraacute solto
da sua prisatildeo E viraacute a enganar as naccedilotildees que estatildeo nos quatro cantos da
terra Gog e Magog e reuni-las para a guerra das quais o nuacutemero eacute como
a areia do mar E subiram entatildeo pela superfiacutecie da terra e cercaram o
acampamento dos santos e a cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e as
queimou E o diabo o enganador delas foi jogado para o lago de fogo e
enxofre onde tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta E seratildeo
atormentados dia e noite para todo o sempre
A prisatildeo e condenaccedilatildeo de Satanaacutes concluem a cena da vitoacuteria de Jesus sobre seus
adversaacuterios que aparece em Apocalipse 1911 como um cavaleiro montado sobre um cavalo
branco Aparentemente toda a seccedilatildeo posterior ao aparecimento do Jesus exaltado estaacute
estruturada segundo um esquema encontrado em Ezequiel203 Eacute possiacutevel relacionar por
201 O termo λίμνην pode significar lago tanque ou neste caso especiacutefico charco pacircntano ou lodaccedilal A
expressatildeo λίμνην τοῦ πυρὸς parece fazer referecircncia ao lugar conhecido como geena descrita em Mateus 522
como geenan tou puroj Era um vale que se estendia para fora da muralha sul de Jerusaleacutem conhecido tambeacutem
como Vale de Hinom local que servia nos tempos de Jesus como depoacutesito de lixo O portatildeo para o vale chegava
a ser chamado de Portatildeo do Esterco O lixo era constantemente incendiado fazendo do vale um espaccedilo de
fumaccedila e fedor Alguns judeus o tinham como o lugar mais asqueroso do mundo Daiacute a relaccedilatildeo com a descriccedilatildeo
do sofrimento escatoloacutegico ser feita com traccedilos do Vale de Hinom Cf POHL op cit p 219 202 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 107 203 ULFGARD Hakan Biblical and para-biblical origins of millennarianism Religiologiques Montreal n 20
p 25-49 1999 p 34
74
exemplo a ressurreiccedilatildeo dos maacutertires com o levantamento dos ossos secos de Ezequiel 37 o
confronto final de Satanaacutes com o ataque de Gog de Magog (Ezequiel 38)204 a nova
Jerusaleacutem de Apocalipse com o novo templo e a nova cidade de Ezequiel 40-48205
No interior desta longa cena de conquista dos adversaacuterios Satanaacutes eacute aprisionado
provisoriamente A noccedilatildeo de uma prisatildeo temporaacuteria para seres sobrenaturais natildeo era
desconhecida do Judaiacutesmo antigo O autor do Mito dos Vigilantes (1Enoque 1-36) em algum
momento do seacuteculo II antes da Era Comum apoacutes descrever a transgressatildeo dos vigilantes
celestiais narra o destino deles em duas versotildees Em 1Enoque 104-6
- Deus envia o anjo Rafael
- Azazel eacute amarrado por um anjo
- Azazel eacute lanccedilado na escuridatildeo e aprisionado para sempre
- o tempo do aprisionamento eacute descrito como o grande dia do julgamento
- Azazel eacute lanccedilado no fogo no grande dia do julgamento
Logo depois outra versatildeo do juiacutezo eacute narrada em 1Enoque 1011-13
- Deus envia o anjo Miguel
- o anjo amarra Semjaza e seus associados
- eles satildeo aprisionados sob a terra
- o periacuteodo de prisatildeo eacute limitado a 70 geraccedilotildees
- no dia do julgamento eles seratildeo lanccedilados no abismo de fogo
Esta narrativa dupla parece ser o resultado da fusatildeo de tradiccedilotildees que vinculavam a
presenccedila dos males no mundo a seres demoniacuteacos que receberam de Deus uma dupla
sentenccedila o aprisionamento em alguma regiatildeo do cosmos e a destruiccedilatildeo no final dos tempos
Nestas tradiccedilotildees judaicas os adversaacuterios sobrenaturais possuem nomes diferentes mas satildeo
condenados igualmente agrave prisatildeo enquanto aguardam a destruiccedilatildeo final (Jubileus 56 107-
11 2Enoque 72 2Apocalipse de Baruque 5613 Judas 6)
David Aune sugeriu que a base comum a essas tradiccedilotildees poderia ser uma releitura de
Isaias 2421-22 ldquoNaquele dia o Senhor castigaraacute no ceacuteu as hostes celestes e os reis da
terra na terra Seratildeo ajuntados como presos em masmorra e encerrados num caacutercere e
204 A passagem de Ezequiel 382 fala do rei Gog da terra de Magog Apocalipse entretanto nivelou as duas
expressotildees como se fossem dois reis ou dois povos Gog e Magog Esta apropriaccedilatildeo joanina do texto de
Ezequiel parece refletir a expectativa presente em alguns apocalipses antigos que o povo de Deus seria atacado
por um ajuntamento de forccedilas inimigas no final dos tempos Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p
371 205 Cf tambeacutem PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 350 POHL op cit p 235
75
castigados depois de muitos diasrdquo206 Na adaptaccedilatildeo joanina entretanto a histoacuteria do
aprisionamento dos seres demoniacuteacos aparece secionada em duas partes pois entre elas o
Apocalipse apresentou o reinado dos maacutertires exaltados (versiacuteculos 4-6)
Estes maacutertires aparecem em diversas passagens do Apocalipse Uma das mais
significativas eacute a cena do quinto selo (Apocalipse 69-11) Debaixo do altar estatildeo pessoas
que morreram por causa da palavra de Deus e do testemunho () Elas querem saber
quando eacute que o seu sangue seraacute vingado por Deus Como resposta ouvem uma espeacutecie de
enigma apocaliacuteptico ldquofoi-lhes dito que repousassem por mais um pouco de tempo ateacute que
se completasse o nuacutemero de seus companheiros e irmatildeos que iriam ser mortos como eles
foramrdquo (Apocalipse 611) O autor do Apocalipse argumenta que Deus vai trazer justiccedila
sobre todos os que mataram seus seguidores poreacutem antes eacute preciso que se complete uma
determinada cota de disciacutepulos que deveratildeo morrer O juiacutezo viraacute quando um nuacutemero
especiacutefico de pessoas tiver morrido da mesma forma como aqueles que jaacute estatildeo debaixo do
altar o foram
Joatildeo promete que estes maacutertires seratildeo recompensados por Deus mais do que os outros
disciacutepulos de Jesus Afinal somente eles ressuscitariam para reinar com Jesus na terra207
Esta expectativa jaacute aparecera bem no iniacutecio da segunda seccedilatildeo Quando o Cordeiro pegou o
livro selado os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais cantaram a canccedilatildeo ldquoDigno eacutes de tomar
o livro e de abrir-lhe os selos porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus
os que procedem de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e para o nosso Deus os constituiacuteste reino
e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo (Apocalipse 59-10) Na narrativa do Apocalipse o
milecircnio seria o cumprimento deste hino cantado no ceacuteu por figuras sobrenaturais
Segundo Aune a cena dos tronos em contexto escatoloacutegico eacute uma cena tiacutepica de
julgamento apesar de estar em estado fragmentaacuterio Afinal os maacutertires sentam em tronos
mas nenhum julgamento eacute descrito neste contexto Eles sentam para julgar todavia o
julgamento natildeo ocorre Tambeacutem natildeo haacute a identificaccedilatildeo de quem seraacute julgado Isso daacute agrave cena
o papel de exaltaccedilatildeo dos maacutertires em vez da descriccedilatildeo de algum ofiacutecio escatoloacutegico208
Neste mesmo sentido Fiorenza argumenta que Joatildeo descreve o reinado interino dos
maacutertires para garantir agrave sua audiecircncia que aqueles que morressem durante o confronto contra
as forccedilas romanas seriam exaltados no futuro como co-governantes com Cristo209 Ao indicar
206 AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1078 207 Idem p 1084 208 Idem p 1085 209 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 109
76
que os maacutertires receberatildeo um tipo de recompensa especial diferente de todos os outros a
cena dos maacutertires no trono desejava incentivar a participaccedilatildeo no martiacuterio
Para Joatildeo mais do que reis os maacutertires seriam juiacutezes e sacerdotes O episoacutedio do
milecircnio entretanto natildeo menciona a identidade de quem serviraacute aos reis de quem seraacute
julgado pelos juiacutezes ou de quem seraacute ministrado pelos sacerdotes Natildeo haacute ningueacutem para ser
condenado oprimido ou orientado porque segundo o profeta de Patmos todos os que
voltarem agrave vida no reino milenar seratildeo reis juiacutezes e sacerdotes
O milecircnio entatildeo como descrito pelo Apocalipse parece ser a junccedilatildeo de dois
episoacutedios nos quais a ecircnfase de um estaacute na destruiccedilatildeo dos inimigos de Deus e do outro na
exaltaccedilatildeo dos maacutertires
35 O reinado messiacircnico interino na terra
Aleacutem do Apocalipse duas outras obras judaicas igualmente produzidas no final do
seacuteculo I apresentam a expectativa de um reino messiacircnico provisoacuterio na terra 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque A primeira210 registrou
Pois eis que viraacute o tempo em que os sinais que tenho predito para vocecirc
aconteceratildeo a cidade que agora natildeo eacute vista apareceraacute e a terra que agora
estaacute escondida seraacute revelada E todo aquele que for libertado dos males que
eu anunciei veraacute as minhas maravilhas Porque meu filho o Messias seraacute
revelado junto com aqueles que estatildeo com ele e estes que permanecerem
regozijar-se-atildeo por quatrocentos anos E depois desses anos meu filho o
Messias morreraacute e todos os seres humanos E o mundo voltaraacute ao silecircncio
primordial por sete dias como foi nos primoacuterdios de modo que ningueacutem
seraacute deixado E depois de sete dias o mundo que ainda dormia seraacute
despertado e o que for corruptiacutevel pereceraacute (4Esdras 72631)211
Posteriormente a narrativa eacute complementada em 4Esdras 1232-34
[] este eacute o Messias que o Altiacutessimo guardou ateacute o fim dos dias que surgiraacute
da posteridade de Davi e viraacute e falaraacute para eles ele os denunciaraacute por seus
erros e por suas maldades e lanccedilaratildeo diante dele seus desprezos
Primeiramente ele os traraacute para julgamento diante de seu tribunal e
quando forem reprovados entatildeo ele os destruiraacute Mas ele livraraacute com
misericoacuterdia o remanescente do meu povo aqueles que estiverem salvos
210 4Esdras foi escrito em algum lugar da Palestina no periacuteodo posterior agrave guerra judaico-romana (66-70) Cf
COLLINS John J A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica uma introduccedilatildeo agrave literatura apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo
Paulus 2010 p 281 211 As citaccedilotildees de 4Esdras vem de METZGER B M The Fourth Book of Ezra In CHARLESWORTH
James H The Old Testament Pseudepigrapha New York Doubleday and Company Inc 1983 2v V 1 p
517-559
77
do meu lado ele os tornaraacute alegres ateacute o fim o dia do juiacutezo do qual falei
com vocecirc no iniacutecio
A outra obra 2Apocalipse de Baruque surgiu na mesma conjuntura posterior agrave
guerra na Judeacuteia possivelmente tambeacutem originada na Palestina Seu autor anocircnimo tratou
do futuro periacuteodo messiacircnico nos capiacutetulos 29-30 Segue o texto
Ele falou-me O que vai acontecer atingiraacute toda a terra dessa forma
experimentaacute-lo-atildeo todos os que estiverem em vida Mas naquele tempo eu
protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste paiacutes Uma
vez cumprido aquilo que deve acontecer nos periacuteodos do tempo o Messias
comeccedilaraacute a sua revelaccedilatildeo Tambeacutem Behemoth viraacute dos seus domiacutenios e
Leviatatilde se levantaraacute do mar os dois imensos monstros marinhos por mim
criados no quinto dia da Criaccedilatildeo e que reservo para aqueles dias eles
serviratildeo de alimento para todos os que sobreviverem Entatildeo a terra
produziraacute os seus frutos ao cecircntuplo numa cepa de videira haveraacute mil
ramos um ramo carregaraacute mil racimos e um racimo mil bagos e um bago
daraacute ateacute quarenta litros de vinho Os que sofreram fome comeratildeo
regiamente e a cada dia lhes estatildeo reservadas novas maravilhas Pois de
mim procederatildeo ventos que traratildeo todas as manhatildes o perfume de frutos
saborosos e faratildeo gotejar ao final do dia o orvalho salviacutefico Do alto cairaacute
de novo grande quantidade de manaacute dele comeratildeo eles naqueles anos por
haverem participado do final dos tempos Terminado o tempo vigente do
Messias ele voltaraacute de novo agrave gloacuteria do ceacuteu Entatildeo haveratildeo de ressuscitar
todos aqueles que outrora adormeceram na sua esperanccedila Naquele tempo
aconteceraacute que se abriratildeo as cacircmaras onde se demoram as almas dos
piedosos elas sairatildeo e todas essas numerosas almas como legiatildeo de um
soacute coraccedilatildeo apareceratildeo todas juntas abertamente As que foram as
primeiras alegrar-se-atildeo as que foram as uacuteltimas natildeo estaratildeo tristes Cada
uma delas sabe que foi chegado o tempo previsto como o fim de todos os
tempos As almas dos pecadores perder-se-atildeo em anguacutestia ao
presenciarem tudo isso Pois elas jaacute sabem que o tormento as atingiraacute e
que a hora da sua condenaccedilatildeo eacute chegada212
O autor anocircnimo retoma o assunto mais agrave frente ao descrever a prisatildeo e destruiccedilatildeo
dos adversaacuterios do Messias (2Apocalipse de Baruque 397-404) Apesar de algumas
diferenccedilas em ecircnfase Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e 2Apocalipse de Baruque descrevem o
aparecimento de uma figura messiacircnica no fim dos tempos para inaugurar um periacuteodo
interino de becircnccedilatildeo especial para o povo de Deus na terra antes do juiacutezo final Entretanto a
funccedilatildeo e o papel do messias variam entre os textos Segundo 4Esdras o messias avanccedilaraacute
sem armas contra seus inimigos e os venceraacute com um rio de fogo que sairaacute de sua boca
(4Esdras 135) Depois de quatrocentos anos de tranquilidade ele e todos os seus seguidores
morreratildeo durante uma semana de silecircncio primordial 2Apocalipse de Baruque por sua vez
212 As citaccedilotildees de 2Apocalipse de Baruque vecircm de TRICCA Maria Helena de Oliveira Apoacutecrifos os proscritos
da Biacuteblia Satildeo Paulo Mercuryo 1995 4v V III p 303-348
78
descreve o messias trazendo vinganccedila militar com um governo limitado no tempo Jaacute no
Apocalipse a figura messiacircnica surge sobre um cavalo branco derrota seus adversaacuterios e
reina com os maacutertires ressuscitados durante o periacuteodo milenar da prisatildeo de Satanaacutes
Apesar das divergecircncias nos detalhes as trecircs obras possuem a mesma perspectiva de
um interluacutedio de felicidade no interior da histoacuteria antes do final dos tempos Segundo
Kovacs e Rowland isto sugeriria que esta expectativa de dois estaacutegios escatoloacutegicos era
comum entre grupos judaicos da Palestina no periacuteodo entre as duas guerras judaicas contra
os romanos (66-136)213 Estes autores ainda argumentam que o surgimento do montanismo
na metade do segundo seacuteculo poderia ser indiacutecio de que a espera por um reino messiacircnico
terreno estava bem espalhada pela Aacutesia menor e natildeo somente pela proviacutencia da Aacutesia214
Teriacuteamos entatildeo um fenocircmeno difundido pelas regiotildees da Palestina Siacuteria e Aacutesia menor pelo
menos no periacuteodo em questatildeo resultado da fusatildeo de antigas noccedilotildees judaicas o messianismo
a reflexatildeo apocaliacuteptica sobre as etapas da histoacuteria o retorno ao paraiacuteso215 Estas noccedilotildees
surgiram em contextos histoacutericos e literaacuterios distintos mas foram reunidas para formar o
milenarismo como encontrado no Apocalipse de Joatildeo e parcialmente em 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque
A primeira noccedilatildeo a crenccedila numa figura messiacircnica que promoveria a restauraccedilatildeo do
povo de Deus tem relaccedilatildeo histoacuterica com as diversas aspiraccedilotildees judaicas de restauraccedilatildeo de
Israel posteriores ao domiacutenio helenista da Palestina (seacuteculo IV AEC)216 Alguns grupos
combinavam passagens das Escrituras judaicas para produzir a expectativa de uma
restauraccedilatildeo poliacutetica de Israel na terra sob a lideranccedila de uma figura ungida por Deus217
O segundo elemento a reflexatildeo sobre as etapas da histoacuteria reflete o interesse de
grupos apocaliacutepticos judaicos em compreender o desenvolvimento da histoacuteria O fenocircmeno
pode ser encontrado particularmente nas tradiccedilotildees de Enoque e de Daniel O texto chamado
213 KOVACS ROWLAND op cit p 210 Leva-se em conta que o Apocalipse surgido na proviacutencia da Aacutesia
teve um autor que emigrou da Palestina durante a guerra de 66-70 214 Idem p 211 215 A sugestatildeo da fusatildeo destas trecircs noccedilotildees vem de ULFGARD op cit p 25-49 216 Charlesworth prefere colocar como ponto de partida as guerras dos macabeus do seacuteculo II AEC Cf
CHARLESWORTH James H From messianology to christology problems and prospects In
CHARLESWORTH James H (ed) The Messiah developments in earliest Judaism and Christianity
Minneapolis Fortress Press 1987 p 3-35 p 3 217 Desroche define o messianismo em termos restritos como o conjunto de crenccedilas judaicas relacionadas com
um ungido de Deus proclamado no antigo Testamento Num sentido mais largo poreacutem designa ensinamentos
ou movimentos que prometem a chegada de um enviado divino para trazer ordem ao mundo com justiccedila e paz
edecircmicas Neste uacuteltimo sentido o fenocircmeno ultrapassa as tradiccedilotildees religiosas judaico-cristatildes Cf DESROCHE
Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo
Paulo 2000 p 22
79
Apocalipse das Semanas (1Enoque 931-10 9112-17) eacute um exemplo deste fenocircmeno
quando o passado e o futuro aparecem divididos em dez semanas O autor subjacente a este
antigo apocalipse escreve da perspectiva da seacutetima semana esperando a restauraccedilatildeo do povo
de Deus para a oitava semana
Altas expectativas escatoloacutegicas originadas de uma conjuntura de deterioraccedilatildeo de
condiccedilotildees poliacuteticas e sociais agraves vezes de perseguiccedilatildeo e sofrimento podem promover nesta
reflexatildeo sobre os periacuteodos da histoacuteria a ideia de que se vive perto do fim do mundo Eacute assim
que esta noccedilatildeo aparece nos apocalipses de Daniel 7-12 produzidos no contexto da Guerra
dos Macabeus (167-163 AEC) Daniel 9 por exemplo faz uma releitura de Jeremias
(Jeremias 2511 2910) acerca da desolaccedilatildeo de Jerusaleacutem por 70 anos Os setentas anos satildeo
interpretados como semanas de anos O apocalipse de Daniel garante que faltam poucas
destas semanas para o fim dos tempos
Estas antigas tradiccedilotildees judaicas representadas por 1Enoque e Daniel exemplificam o
interesse pela periodizaccedilatildeo da histoacuteria mundial e manifestam a convicccedilatildeo de seus autores
provavelmente compartilhada com a comunidade destinataacuteria do texto de que eles viviam a
uacuteltima e crucial fase da histoacuteria antes da intervenccedilatildeo final de Deus que traraacute a salvaccedilatildeo e o
julgamento218 A histoacuteria eacute imaginada linearmente como uma sucessatildeo de tempos
determinados de adversidades antes que venham dias de felicidade219
A terceira noccedilatildeo eacute o retorno agraves condiccedilotildees paradisiacuteacas quando o paraiacuteso dos tempos
primordiais (urzeit) seria restabelecido no fim dos tempos (endzeit) Os benefiacutecios esperados
seriam aqueles que o ser humano experimentara em suas origens220 Esta ideia foi
desenvolvida nos textos apocaliacutepticos por meio de vaticiacutenios acerca da restauraccedilatildeo da
prosperidade da criaccedilatildeo da fertilidade e da paz no mundo 1Enoque 10-11 por exemplo ao
falar da queda dos vigilantes combina estruturaccedilatildeo da histoacuteria com a expectativa de um
retorno agraves condiccedilotildees do paraiacuteso na era da salvaccedilatildeo Eacute possiacutevel notar que este texto tem
elementos que seratildeo apropriados de vaacuterias maneiras posteriormente como a fertilidade da
terra a destruiccedilatildeo das forccedilas demoniacuteacas e os justos ressuscitados Segue o texto
E a Raphael disse o Senhor Amarra Azazel de matildeos e peacutes e lanccedila-o nas
trevas Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo Deposita
218 ULFGARD op cit p 44 219 Frankfurt sugeriu que tal conceito de histoacuteria eacute dependente de tradiccedilotildees zoroastrianas que apresentavam a
histoacuteria dividida em periacuteodos alternados de domiacutenio entre as figuras divinas de Ahura Mazda e Angra Mainyu
que culminariam no fim na vitoacuteria do bem sobre o mal Cf FRANKFURTER David Early Christian
Apocalypticism literature and social world In COLLINS John J (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism
the origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity New York Continuum 1999 p 415-456 p 441 220 PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 353
80
pedras aacutesperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridatildeo Deixa-
o permanecer laacute para sempre e veda-lhe o rosto para que natildeo veja a luz
No dia do grande Juiacutezo ele deveraacute ser arremessado ao tremedal de fogo
Purifica a terra corrompida pelos Anjos e anuncia-lhe a Salvaccedilatildeo para
que terminem os seus sofrimentos e natildeo se percam todos os filhos dos
homens em virtude das coisas secretas que os Guardiotildees revelaram e
ensinaram aos seus filhos Toda a terra estaacute corrompida por causa das obras
transmitidas por Azazel A ele atribui todos os pecados E a Gabriel disse
o Senhor Levanta a guerra entre os bastardos os monstros os filhos das
prostituiacutedas e extirpa-os do meio dos homens juntamente com todos os
filhos dos Guardiotildees Instiga-os uns contra os outros para que na batalha
se eliminem mutuamente Natildeo se prolongue por mais tempo a sua vida
Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deveraacute ser atendido eles
esperam ter vida para sempre e que cada um viva quinhentos anos A
Michael disse o Senhor Vai e potildee a ferros Semjaza e os seus sequazes que
se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as
suas impurezas Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente
e quando os pais tiverem presenciado o extermiacutenio dos seus amados filhos
amarra-os por sele geraccedilotildees nos vales da terra ateacute o dia do seu julgamento
ateacute o dia do Juiacutezo Final Nesse dia eles seratildeo atirados ao abismo de fogo
na reclusatildeo e no tormento onde ficaratildeo encerrados para todo o sempre E
todo aquele que for sentenciado agrave condenaccedilatildeo eterna seja juntado a eles e
seja com eles mantido em correntes ateacute o fim de todas as geraccedilotildees
Extermina os espiacuteritos de todos os monstros juntamente com todos os
filhos dos Guardiotildees porque eles maltrataram os homens Purga a terra de
todo ato de violecircncia Toda obra maacute deve ser eliminada Que floresccedila a
aacutervore da Verdade e da Justiccedila O sinal da becircnccedilatildeo seraacute o seguinte as obras
da Verdade e da Justiccedila sempre seratildeo semeadas na alegria verdadeira
Entatildeo floresceratildeo os justos e haveratildeo de viver ateacute gerarem mil filhos e
completaratildeo em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice Entatildeo
toda a terra seraacute cultivada com a Justiccedila inteiramente plantada de aacutervores
e cheia de becircnccedilatildeo Toda espeacutecie de aacutervore boa seraacute plantada sobre ela
igualmente videiras e as videiras produziratildeo uvas em abundacircncia De
todas as sementes que forem semeadas uma medida produziraacute mil outras
e uma medida de olivas daraacute dez cubas de oacuteleo Purifica a terra de todo ato
de violecircncia de toda injusticcedila de todo pecado e impiedade elimina toda a
impudiciacutecia que sobre ela se pratica Todos os homens seratildeo justos todos
os povos me prestaratildeo honra e gloacuteria e todos me adoraratildeo A terra entatildeo
ficaraacute expurgada de toda maldade de todo pecado de toda praga de todo
tormento e nunca mais mandarei sobre ela um diluacutevio ao longo de todas
as geraccedilotildees por toda a eternidade Naqueles dias eu abrirei as cacircmaras dos
depoacutesitos da becircnccedilatildeo do ceacuteu e deixaacute-las-ei derramar-se sobre a terra sobre
as obras e os trabalhos dos filhos dos homens Entatildeo a Verdade e a Paz
juntar-se-atildeo por todos os dias da terra e por todas as geraccedilotildees dos homens
(1Enoque 1012-112)221
Assim a expectativa do reino messiacircnico interino na histoacuteria parece ser uma
combinaccedilatildeo de antigas noccedilotildees sobre o messias o retorno ao paraiacuteso e a periodizaccedilatildeo dos
221 A citaccedilatildeo de 1Enoque veio de TRICCA op cit p 117-202
81
tempos 4Esdras falou em quatrocentos anos de duraccedilatildeo o Apocalipse de Joatildeo registrou mil
anos
Ulfgard sugeriu que o caminho para compreender o tempo do reino messiacircnico na
terra estaria no uso tipoloacutegico do Salmo 9015 ldquoAlegra-nos pelos dias em que nos afligiste
e pelos anos em que vimos o malrdquo Esta era uma foacutermula usada por grupos judaicos para
calcular os dias do messias Deus iria recompensar o povo na terra pelo tempo em que ele
foi maltratado sobre ela Alguns propunham 40 anos para fazer frente ao tempo que o povo
passou no deserto antes de entrar em Canaatilde Outros sugeriam quatrocentos anos
correspondente ao periacuteodo de permanecircncia no Egito A sugestatildeo dos mil anos entretanto
poderia ter relaccedilatildeo com o versiacuteculo 4 deste mesmo Salmo 90 ldquoporque mil anos aos teus
olhos satildeo como o dia de ontem que passou e como uma vigiacutelia de noiterdquo222 De qualquer
forma tanto em 4Esdras quanto no Apocalipse de Joatildeo as expressotildees temporais natildeo satildeo o
elemento principal Afinal em ambas as obras o governo messiacircnico na terra tem um fim
A ecircnfase dos autores destes textos estaacute na expectativa de que a terra experimentaraacute ainda
dentro da histoacuteria um uacuteltimo periacuteodo de paz
Dentro do contexto narrativo maior que comeccedila em Apocalipse 1911 e conclui em
225 Joatildeo inseriu a expectativa do reino messiacircnico na terra quando o Jesus glorificado
retornaria para vencer seus inimigos ressuscitaria seus seguidores martirizados e viveria
com eles por um periacuteodo de mil anos Tomamos esta expectativa como a objetivaccedilatildeo de um
conjunto de representaccedilotildees natildeo apenas derivado de praacuteticas sociais mas tambeacutem promotor
de outras tantas Enquanto tal o milecircnio pode ser visto como uma arma nas lutas de
representaccedilotildees entre certas comunidades religiosas do final do primeiro seacuteculo a resposta
de um liacuteder religioso agraves praacuteticas plurais do movimento de Jesus diante das conjunturas
histoacutericas da proviacutencia romana da Aacutesia O que buscamos nos paraacutegrafos a seguir satildeo fatores
ou condiccedilotildees de emergecircncia para este determinado sistema de representaccedilotildees
222 ULFGARD op cit p 49 Prigent por sua vez sugere que o tempo messiacircnico poderia ser uma alusatildeo a
Jubileus 430 Aqui a morte de Adatildeo com 930 anos eacute entendida como consequecircncia dele natildeo ter alcanccedilado a
idade perfeita de 1000 anos Aleacutem do mais seria cumprimento da profecia de Genesis 217 que declarou que
no dia que ele comesse da arvore ele morreria Nestes termos Apocalipse 204-6 simbolizaria a restauraccedilatildeo da
vida humana ideal nos moldes do paraiacuteso na era messiacircnica No reino messiacircnico as consequecircncias do pecado
de Adatildeo satildeo canceladas Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 358
82
36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia
Jaacute tratamos no capiacutetulo anterior a respeito dos conflitos de lideranccedila do movimento
de Jesus no periacuteodo do Apocalipse numa fase de consolidaccedilatildeo das comunidades dentro da
sociedade romana e de construccedilatildeo de uma identidade separada do Judaiacutesmo Aparentemente
o tema da prisatildeo e destruiccedilatildeo de Satanaacutes223 no interior do complexo narrativo da destruiccedilatildeo
dos adversaacuterios do Jesus glorificado pode ter relaccedilatildeo justamente com essa conjuntura
conflitiva
David Frankfurt analisou vaacuterios apocalipses judaicos e cristatildeos no periacuteodo entre 200
anos antes e 200 depois da Era Comum tentando construir uma tipologia geograacutefica dos
textos apocaliacutepticos224 Segundo ele o milenarismo sectaacuterio eacute um traccedilo significativo do
apocalipsismo asiaacutetico em funccedilatildeo da atuaccedilatildeo privilegiada de figuras profeacuteticas com
performances orais itinerantes a necessidade de forte legitimaccedilatildeo carismaacutetica e o
envolvimento eventual em conflitos de lideranccedila Ele o denomina como ldquomilenarismo
sectaacuteriordquo porque o seu proponente se entende representar natildeo a totalidade da sociedade ou
mesmo do seu grupo social mas uma parcela dentro dele As demais pessoas e grupos satildeo
vistos como adversaacuterios e destinados agrave destruiccedilatildeo escatoloacutegica Este milenarismo eacute
geralmente centrado em figuras profeacuteticas e manifesta algum tipo de luta pela lideranccedila nas
comunidades quando liacutederes carismaacuteticos usam a estigmatizaccedilatildeo para deslegitimar os
adversaacuterios e afirmar a proacutepria autoridade225 Neste contexto de disputa como Elaine Pagels
tentou demonstrar a oposiccedilatildeo eacute frequentemente associada a seres demoniacuteacos e aos
monstros do caos226
O bispo Inaacutecio de Antioquia ao passar pela Aacutesia menor registrou em uma carta uma
justaposiccedilatildeo entre Cristianismo e Judaiacutesmo (Carta aos Magneacutesios X) Ele parece evidenciar
assim que pelo menos alguns seguidores de Jesus naquela regiatildeo e naquele periacuteodo tinham
a percepccedilatildeo de que faziam parte de um movimento independente e mesmo superior ao
Judaiacutesmo Esse debate sobre a identidade das comunidades poderia ser ampliado ainda pelas
distinccedilotildees jaacute feitas pelos magistrados romanos (como as cartas de Pliacutenio jaacute mencionadas) e
223 Como jaacute argumentamos o episoacutedio do milecircnio relata duas narrativas ligadas entre si pelo marco temporal
(mil anos) A narrativa da prisatildeo de Satanaacutes faz parte de uma cena maior que descreve a vitoacuteria do Jesus
glorificado sobre seus adversaacuterios A outra narrativa descreve a exaltaccedilatildeo dos maacutertires 224 FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit 225 Idem 435 226 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na
sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996
83
por pressotildees de sinagogas locais que natildeo queriam ser identificadas com as igrejas227
Possivelmente pouco mais de uma deacutecada antes de Inaacutecio quando as igrejas da Aacutesia jaacute
viviam um momento de instabilidade identitaacuteria os projetos distintos das lideranccedilas geraram
uma crise de legitimidade e a consequente percepccedilatildeo de que o mal poderia vir de dentro da
comunidade
A pequena obra canocircnica conhecida como 3Joatildeo entre os anos 90-110228 registra
um embate entre seu autor anocircnimo e um liacuteder adversaacuterio conhecido como Dioacutetrefes
ldquoEscrevi alguma coisa agrave igreja mas Dioacutetrefes que gosta de exercer a primazia entre eles
natildeo nos daacute acolhidardquo (3Joatildeo 19) Situaccedilotildees como essa geravam respostas diferentes para os
mesmos problemas entre os liacutederes das igrejas Natildeo bastava a um profeta dar a orientaccedilatildeo
para a comunidade jaacute que ele precisava tambeacutem atacar quem divergia de seu
posicionamento Este senso de mal interno foi trabalhado por Joatildeo de duas maneiras Ele
desejava purgar a comunidade de membros que dele divergiam vinculando-os a adversaacuterios
externos da comunidade (membros de sinagogas locais e magistrados romanos) Ao mesmo
tempo ele projeta o conflito para o mundo celestial indicando laccedilos entre seus desafetos e
figuras demoniacuteacas tradicionais como Satatilde229
Este parece ser o caso da polecircmica contra ldquoJezabelrdquo no Apocalipse (Apocalipse 218-
29) A mulher assim intitulada por Joatildeo era uma das liacutederes da comunidade de disciacutepulos de
Tiatira As acusaccedilotildees contra ela indicam que o cerne do conflito estava em aspectos sociais
ldquoJezabelrdquo defendia o engajamento com a sociedade maior e Joatildeo recomendava o
afastamento na direccedilatildeo de um gueto religioso Em termos religiosos eacute possiacutevel que Jezabel
possuiacutesse uma vantagem sobre o profeta de Patmos jaacute que ela tinha amparo no ensino que
o apoacutestolo Paulo deixara trinta anos antes para as igrejas da regiatildeo230 Como argumenta Duff
uma das estrateacutegias de Joatildeo neste confronto foi conectar sua rival com Babilocircnia e por
implicaccedilatildeo com Satatilde231 Em escala maior os membros do movimento de Jesus que Joatildeo
227 Uma evidecircncia neste sentido pode ser o uso do termo ldquominimrdquo para descrever os membros do movimento
de Jesus em maldiccedilotildees pronunciadas em sinagogas em periacuteodo tatildeo recuado quanto 80-85 Para que pudesse ser
disseminada por diversas comunidades judaicas uma maldiccedilatildeo foi inserida entre as 18 becircnccedilatildeos conhecidas
como ldquobirkat-hamminimrdquo que dizia ldquoQue os nosrim (nazarenos) e os minim (hereges) morram subitamente
e sejam excluiacutedos do livro da vida para que natildeo sejam ali recordados juntamente com os justos Bendito sejas
Tu oacute Senhor que abaixas os orgulhososrdquo Cf BAGATTI Bellarmino A igreja da circuncisatildeo histoacuteria e
arqueologia dos judeu-cristatildeos Petroacutepolis Vozes 1975 p 44 228 KUumlMMEL op cit p 593 229 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 230 Idem p 71 231 Idem p 72
84
considerava desviantes passaram a ser rotulados como chamou Pagels de ldquoagentes secretosrdquo
de forccedilas demoniacuteacas sobrenaturais232
Portanto Joatildeo natildeo demoniza apenas a sociedade romana em sua manifestaccedilatildeo
asiaacutetica ou o Impeacuterio na figura das bestas de Apocalipse 13 Ele tambeacutem entende que
mesmo dentro das igrejas existiam aliados de Satanaacutes os ldquoinimigos iacutentimosrdquo233 Este tipo de
perspectiva poderia explicar o grande espaccedilo dado agraves descriccedilotildees dos poderes demoniacuteacos no
Apocalipse bem como a necessidade de um milecircnio que tem como pano de fundo a
destruiccedilatildeo destas mesmas forccedilas de oposiccedilatildeo
Um reino milenar precedido pelo sangue dos adversaacuterios pode refletir entatildeo um
contexto social cheio de tensotildees dentro das proacuteprias igrejas (divergecircncias sobre a identidade
do movimento) entre as igrejas e grupos judaicos (hostilidade contra sinagogas locais) entre
as comunidades de Jesus e a sociedade romana (demandas por acomodaccedilatildeo cultural) e entre
os seguidores de Jesus e o Impeacuterio (interaccedilatildeo entre religiatildeo sociedade e poliacutetica)234
Nosso argumento eacute que a situaccedilatildeo das comunidades envolvidas em distuacuterbios
identitaacuterios com sinagogas locais e em conflitos de lideranccedila acabou se tornando um fator
plausiacutevel no surgimento do milecircnio do Apocalipse ao provocar a expectativa de um tempo
em que todos os inimigos internos e externos seriam destruiacutedos violentamente
Um segundo aspecto frequentemente sugerido pelos autores eacute a oposiccedilatildeo de Joatildeo a
Roma235 A forma como o Apocalipse ataca a sociedade romana o coloca ao lado de outros
grupos judaicos anti-romanos posteriores ao conflito que terminou com a destruiccedilatildeo do
templo e da cidade de Jerusaleacutem (66-70) como os zelotes da Palestina236 Nestes grupos e
movimentos manifestou-se a perspectiva criacutetica de que o Impeacuterio Romano era incompatiacutevel
com o reino de Deus frequentemente traduzida por uma forte rejeiccedilatildeo dos siacutembolos e
232 PAGELS Elaine H The Social History of Satan part three John of Patmos and Ignatius of Antiochi
Contrasting Visions of Gods People Harvard Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006
p 489 233 Idem p 494 234 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The
Westminster Press 1984 p 84-99 SILVA David A de The social setting of the Revelation to John conflicts
within fears without Westminster Theological Journal Philadelfia n 54 p 273-302 1992 p 287 235 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In
BARR David L The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society
of Biblical Literature 2006 p 243-269 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de
Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 MESTER Carlos e OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano
e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n
69 p 72-82 2001 PAGELS Elaine Revelationshellip op cit 236 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p
213
85
imagens do poder romano entre eles o culto imperial Outros fatores ainda poderiam ter
atuado para produzir esta oposiccedilatildeo como expectativas religiosas de um Israel independente
de poderes estrangeiros ou medidas financeiras dos procuradores romanos237
De qualquer forma Pagels historiadora da religiatildeo chamou o Apocalipse de
ldquoliteratura de guerrardquo238 porque Joatildeo teria saiacutedo da Judeacuteia sua terra natal logo apoacutes
testemunhar o iniacutecio do confronto de seus conterracircneos judeus contra as forccedilas romanas em
66 Mesmo ausente ele pode ter ouvido falar dos 60 mil soldados romanos que cercaram
Jerusaleacutem e destruiacuteram a cidade Quando finalmente o cerco terminou eles a invadiram e a
deixaram em ruiacutenas O templo judaico que terminara de ser reformado poucos anos antes
foi destruiacutedo junto com a cidade O responsaacutevel inicial pelo cerco o general Vespasiano
acabou como o Imperador de Roma No tempo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse era
seu filho Domiciano que dirigia o Impeacuterio O impacto da destruiccedilatildeo do Templo e de
Jerusaleacutem foi significativo para diversos setores do Judaismo mas teve um impulso
particular em Joatildeo e pode ser considerado mesmo como ponto de partida para sua oposiccedilatildeo
a Roma
Para o Apocalipse entatildeo o Impeacuterio era um peso opressor que deveria ser eliminado
antes que o mundo viesse a conhecer a justiccedila Seu milecircnio pode ser visto como a
manifestaccedilatildeo do desejo pelo fim da ldquoRoma eternardquo Por isso como em outros apocalipses
judaicos a histoacuteria no Apocalipse eacute uma sequecircncia de poderes Aquele era o tempo de Roma
mas ela iria passar para ser sucedida pelo reino milenar do Messias Este ldquooacutediordquo pela
sociedade do presente histoacuterico parece ser assim mais um fator na promoccedilatildeo da expectativa
milenarista de Joatildeo de que um novo reino se levantaria em breve para substituir o atual
O milecircnio de Joatildeo o futuro reino do Messias expressa a condenaccedilatildeo joanina da
presente ordem romana Nos termos de John Collins em nenhum outro lugar a queda dos
poderosos eacute imaginada com tal alegria como neste apocalipse cristatildeo onde um anjo de peacute
sobre o sol convida os paacutessaros a comer a carne dos reis dos capitatildees e dos poderosos
(Apocalipse 1918)rdquo239
237 Uma anaacutelise dos conflitos entre judeus e romanos no seacuteculo I pode ser encontrada em GOODMAN Martin
Rome and Jerusalem the clash of ancient civilizations London Pinguin Books 2007 Especificamente sobre
a guerra de 66-70 cf REICKE Bo Histoacuteria do tempo do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 1996 p 282-
294 238 PAGELS Elaine Revelations op cit p 7 239 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica op cit p 18
86
Outro fator de emergecircncia do milecircnio joanino pode ter relaccedilatildeo com a situaccedilatildeo
perigosa de vida dos membros da comunidade de Jesus240 com a jaacute mencionada memoacuteria de
mortes violentas de disciacutepulos na guerra judaico-romana e na crise nerodiana da deacutecada de
60 e com a crucificaccedilatildeo de Jesus Isso parece estar subjacente agrave representaccedilatildeo dos maacutertires
no episoacutedio do milecircnio Afinal mesmo que natildeo haja evidecircncias de uma perseguiccedilatildeo e morte
generalizada dos membros das igrejas no periacuteodo do Apocalipse e o livro faccedila referecircncia a
apenas uma morte (Apocalipse 213) o milecircnio gira em torno dos maacutertires
O contexto mais amplo do aparecimento dos apocalipses judaicos foi de rejeiccedilatildeo ao
domiacutenio pagatildeo241 A resistecircncia poderia vir em forma ativa como a revolta dos macabeus
ou em forma passiva como a elaborada nos apocalipses de Daniel 7-12 no qual se anseia
pela destruiccedilatildeo dos poderes estrangeiros por forccedilas sobrenaturais mas sem qualquer
participaccedilatildeo humana no confronto Um tipo de resistecircncia intermediaacuteria envolve a
expectativa de sinergismo entre forccedilas divinas e humanas na destruiccedilatildeo escatoloacutegica dos
adversaacuterios como aparece na frase de Assunccedilatildeo de Moiseacutes ldquonosso sangue seraacute vingado pelo
Senhorrdquo (97) Esperava-se que a morte voluntaacuteria do judeu piedoso provocaria a vinganccedila
de Deus242 Eacute neste sentido que o Apocalipse descreve um nuacutemero fixado de maacutertires que
devem encontrar a morte antes que chegue o fim
Joatildeo advoga uma ruptura das comunidades de Jesus com a sociedade romana o que
na sua oacutetica provocaria a perseguiccedilatildeo e morte dos membros das igrejas Contudo seria
justamente essa perseguiccedilatildeo que ao promover o martiacuterio dos disciacutepulos iria apressar a
chegada do reino messiacircnico de Jesus243 O milecircnio assim pode ser visto como uma
propaganda martiroloacutegica Afinal os maacutertires satildeo os mais abenccediloados seguidores de Jesus e
as consequecircncias de seus atos continuam mesmo apoacutes suas mortes Nos termos do
Apocalipse ldquoFelizes os mortos que desde agora morrem no Senhor Sim diz o Espiacuterito
para que descansem das suas fadigas pois as suas obras os acompanhamrdquo (Apocalipse
1413)
240 A correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano na proviacutencia vizinha alguns anos apoacutes o Apocalipse pode ser
evidecircncia de que as comunidades jaacute corriam risco no final do seacuteculo I 241 Esta anaacutelise da relaccedilatildeo entre Apocalipse e poliacutetica pode ser encontrada em COLLINS Adela Yarbro The
political perspective of the Revelation to John Journal of Biblical Literature Atlanta v 96 n 2 p 241-256
1977 242 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p
209 243 Frankfurt descreve o periacuteodo entre a produccedilatildeo do evangelho de Marcos e o Apocalipse de Joatildeo (70-100)
como um periacuteodo de ldquofasciacutenio com o martiacuterio e a necessidade de imaginar a perseguiccedilatildeordquo entre algumas igrejas
Cf FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit p 436
87
O tema da morte violenta domina muitas visotildees de Joatildeo De vaacuterias formas forccedilas
demoniacuteacas ameaccedilam o movimento de Jesus a besta que persegue as duas testemunhas
(Apocalipse 111-13) o Dragatildeo que persegue a Mulher e sua semente (Apocalipse 121-17)
as bestas do mar e da terra que perseguem os ldquosantosrdquo (Apocalipse 131-1412) a Babilocircnia
que persegue as testemunhas de Jesus (Apocalipse 171-195)244
Eacute neste contexto que se entende a memoacuteria da crucificaccedilatildeo de Jesus Joatildeo vecirc paralelos
entre a situaccedilatildeo dos fieacuteis e do fundador do movimento e com isso constroacutei uma narrativa
que idealiza a imitaccedilatildeo de Cristo atraveacutes do sofrimento e martiacuterio Um significativo texto
neste sentido eacute Apocalipse 1210-12 onde os santos imitam Cristo vencendo o Dragatildeo pelo
sangue do Cordeiro (ldquoτὸ αἷμα τοῦ ἀρνίουrdquo) e pela palavra do testemunho (ldquoδιὰ τὸν λόγον τῆς
μαρτυρίας αὐτῶνrdquo) porque natildeo amaram a proacutepria vida mesmo diante da morte (ldquoοὐκ ἠγάπησαν
τὴν ψυχὴν αὐτῶν ἄχρι θανάτουrdquo) Segundo essa formulaccedilatildeo joanina a vitoacuteria sobre os poderes
demoniacuteacos estaacute ligada diretamente agrave morte (de Jesus e dos disciacutepulos) Para Thompson esta
identificaccedilatildeo com ldquoo Cordeiro crucificadordquo (ldquoἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένονrdquo - Apocalipse
56) tinha como objetivo promover uma especiacutefica identidade no fiel e suportar
determinados comportamentos245
Este imaginaacuterio de tribulaccedilatildeo funciona independente das experiecircncias concretas de
perseguiccedilatildeo das comunidades de disciacutepulos jaacute que deriva da construccedilatildeo de viacutenculos com
traumas no passado do movimento (a morte de Jesus as perseguiccedilotildees de Nero em Roma as
guerras na Judeacuteia a morte de Antipas) Assim a memoacuteria de mortes passadas e a expectativa
de muitas outras pode ser considerado mais um fator para o surgimento do milecircnio sectaacuterio
de Joatildeo ao aguardar a participaccedilatildeo seletiva de um grupo especial de fieacuteis os martirizados
no reino do Jesus exaltado246
Assim diante de fatores como estes entatildeo apontados a resposta de Joatildeo veio na
forma de apropriaccedilatildeo de tradiccedilotildees apocaliacutepticas a respeito do messias da periodizaccedilatildeo da
histoacuteria e do retorno ao paraiacuteso e da construccedilatildeo de um conjunto de representaccedilotildees
milenaristas que convidava ao levantamento dos muros da comunidade a ruptura sectaacuteria
244 THOMPSON Leonard A sociological analysis of tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 36 p 147-174 1986 p 148 245 Idem p 170 246 Em Daniel 123 tambeacutem apenas um grupo especial de fieacuteis os saacutebios passaria pela ressurreiccedilatildeo Cf
COLLINS John J Danielhellip op cit p 103
88
com membros divergentes a espera ansiosa pelo martiacuterio e finalmente o governo vitorioso
dos maacutertires durante o milecircnio
Existiam outros liacutederes como a liacuteder estigmatizada Jezabel (Apocalipse 220) que
propunham praacuteticas diferentes por entenderem que o relacionamento com a sociedade era
necessaacuterio para a sobrevivecircncia da comunidade247 Para estes a sociedade romana era o
espaccedilo de sobrevivecircncia e natildeo do confronto Mesmo que as categorias propostas por Joatildeo
tenham sido eventualmente abraccediladas em subsequentes apropriaccedilotildees sectaacuterias do milecircnio248
isso natildeo promoveu necessariamente a ruptura com a sociedade249 Isso levou Thompson a
afirmar com certa ironia que a continuidade do movimento de Jesus foi viabilizada porque
seus membros natildeo conseguiram objetivar as representaccedilotildees do Apocalipse250
37 Resumo
Joatildeo encerra seu Apocalipse com a narrativa daquilo que ele entendia ser o fim do
mundo e da histoacuteria Antes disso entretanto ele descreve um periacuteodo de governo milenar
do Jesus Glorificado e seus maacutertires ressuscitados O milecircnio aparece no livro joanino como
o tempo do aprisionamento de Satanaacutes e do reinado messiacircnico interino na terra Estas
expectativas parecem ter origem em tradiccedilotildees literaacuterias judaicas que combinavam noccedilotildees
sobre um redentor ungido por Deus um retorno aos tempos paradisiacuteacos e periodizaccedilotildees da
histoacuteria Estas antigas noccedilotildees parecem ter se reunido de uma forma muito semelhante na
regiatildeo da Aacutesia-Siacuteria-Palestina no final do seacuteculo I nas obras Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque por causa entre outros fatores dos traumas da guerra judaico-
romana No caso especiacutefico da versatildeo joanina sua emergecircncia ainda pode ter relaccedilatildeo com
conflitos de lideranccedila das comunidades de Jesus em funccedilatildeo de respostas diferentes agrave questatildeo
do relacionamento com a sociedade romana
247 DUFF Paul B Who rides the Beast op cit p 77 248 Como os movimentos milenaristas analisados em COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas
revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 249 Como a apropriaccedilatildeo do milecircnio em Agostinho Cf KYRTATAS Dimitris The Transformations of the
Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text The Writing of Ancient
History London Duckworth 1986 p 144-162 250 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L (ed) Reading
the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 46
IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM
Neste capiacutetulo aplicaremos ao Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram
lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar
elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso
este seraacute o espaccedilo principal para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando
apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o
livro joanino
41 O autor do Expositio in Apocalypsim
A obra intitulada Expositio in Apocalypsim editada pela Junta de Veneza em 1527 e
reimpressa pela Editora Miverva em 1964 reuacutene de fato trecircs textos distintos todos
vinculados a uma mesma pessoa O primeiro no foacutelio 1r na parte superior eacute aberto nestes
termos Incipit epistola prologalis domini Abbatis Joachim florensis O segundo comeccedila
no foacutelio 1v com estas palavras Incipit prologus domini Joaquim Abbatis florensis in expone
libri Apocalipsis e termina no 16v Explicit liber primus dictus introductorius Somente
entatildeo comeccedila o terceiro texto neste mesmo foacutelio 16v (Incipit prima septem partius in
expositione Apocalipsis) que se estende longamente ateacute o final da obra veneziana no foacutelio
224r (Explicit admiranda Expositio venerabilis Abbatis Joachim in Librus Apocalipsis Beati
Joannis Apostoli et Evangeliste) Eacute apenas este uacuteltimo e longo texto que se trata do
Expositio in Apocalypsim identificado no explicit como de autoria de Joaquim de Fiore No
interior do Expositio natildeo haacute outras auto-identificaccedilotildees Mesmo assim estudiosos do assunto
satildeo unacircnimes em aceitar o texto como obra do abade de S Joatildeo de Fiore bem como as outras
duas que abrem a versatildeo veneziana seiscentista A primeira eacute intitulada Carta Testamentaacuteria
pela historiografia251 a segunda recebe o tiacutetulo de Liber Introductorius que funciona como
uma siacutentese do Expositio
Tomando como ponto de partida este viacutenculo aceitando-o como autecircntico o que eacute
possiacutevel dizer sobre este Venerabilis Abbatis Joachim Nos seacuteculos posteriores agrave sua morte
ele foi estigmatizado por exemplo por Tomaacutes de Aquino que tratou as obras de Joaquim
251 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 69
90
como conjecturas252 contudo louvado por Dante Aliguiere que no final do canto XII de sua
Divina Comeacutedia colocou na boca de Satildeo Boaventura ldquoSabe que ao meu lado brilha o
calabrecircs abade Giovachino que tem o dom de profetizarrdquo253 Ele apareceu em cataacutelogo de
santos e em lista de heresias254 mas nunca chegou a ser oficialmente declarado herege ou
santo255 No meio deste ambiacuteguo rastro muitas lendas se acumularam a respeito desta figura
do medievo italiano Por isso uma reconstruccedilatildeo biograacutefica de Joaquim precisa levar em
conta os seguintes elementos
- os poucos dados deixados por ele na sua Carta Testamentaacuteria por volta de 1200 jaacute
no final de sua vida endereccedilada a um abade de sua Ordem
- estes poucos dados da Carta Testamentaacuteria precisam ser comparados com duas
hagiografias sobre Joaquim de Fiore escritas por contemporacircneos seus uma produzida pelo
seu secretaacuterio Lucas de Consenza Virtutum Beati Joachimi synopsis e Vita beati Joachimi
abbatis escrita provavelmente pouco depois de sua morte obra de um monge anocircnimo que
trabalhou com Joaquim enquanto ele era abade de Corazzo acompanhou-o posteriormente
para Petralata e por fim para S Joatildeo em Fiore256
- narrativas de caraacuteter lendaacuterio sobre ele encontradas em outras fontes que precisam
ser avaliadas pelo caraacuteter de plausibilidade e podem ajudar a esclarecer aspectos obscuros
de sua biografia
Com estes elementos cotejados eacute que estudiosos de Joaquim reconstroem sua vida257
Seu nascimento se deu provavelmente em 1135 em Celico uma vila pequena agrave leste de
Consenza na Calaacutebria proviacutencia do Reino normando da Siciacutelia Seu pai era Mauro um
notaacuterio do Arcebispo Sancio de Consenza Sobre sua matildee soacute se conhece seu nome Gema
Ele era o sexto de oito filhos do casal e o mais velho a sobreviver258
Joaquim foi enviado ainda jovem para trabalhar tambeacutem em Consenza como oficial
da Chancelaria normanda da Calaacutebria Sua famiacutelia o treinava para ser um notaacuterio como seu
252 MC GINN Bernard The abbot and the doctors scholastic reactions to the radical eschatology of Joaquim
of Fiore Church History Cambridge v 40 n 1 p 30-47 1971 p 19 253 DANTE ALIGUIERE A divina comeacutedia Satildeo Paulo Nova Cultural 2002 p 338 254 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London
University of Notre Dame Press 1993 p 3 255 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 256 TRONCARELLI Fabio Gioacchino da Fiore la vita il pensiero le opere Roma Cittagrave Nuova Editrice
2002 p 15 257 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4 TRONCARELLI op cit p 15 DANIEL E Randolph Abbot
Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical
Society 1983 p xii REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 258 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii
91
pai259 Isso lhe forneceu preparo intelectual com o domiacutenio do grego liacutengua predominante
nos registros de governo da Calaacutebria e Siciacutelia bem como do Latim O aacuterabe era bem
conhecido nos espaccedilos da corte da Siciacutelia poreacutem natildeo haacute indiacutecios de que Joaquim dominava
este idioma apesar dos provaacuteveis contatos com ele durante o tempo em que esteve na corte
do reino em Palermo
Apoacutes um periacuteodo inicial em Consenza o ainda jovem Joaquim foi encaminhado para
a corte de William II na Siciacutelia onde trabalhou para o chanceler Estevatildeo de Perche Apoacutes
algum tempo na corte foi com o notaacuterio Santoro para Apuacutelia e Val di Crati onde foi
acometido de uma doenccedila Possivelmente para tratar da enfermidade ele retornou para a
corte em Palermo
Em meados de 1167 Joaquim decidiu fazer uma peregrinaccedilatildeo agrave Jerusaleacutem Eacute difiacutecil
saber as causas desta accedilatildeo de Joaquim apesar da probabilidade de sua doenccedila ter alguma
relaccedilatildeo com o evento tanto com o abandono da corte quanto com a viagem para a Terra
Santa260 Troncarelli argumenta que jaacute na base desta peregrinaccedilatildeo estava a decisatildeo juvenil
de Joaquim de abraccedilar o eremitismo e todo o desenvolvimento da sua viagem jaacute seria parte
deste propoacutesito de vida eremita261 Para Randolph Daniel entretanto a vocaccedilatildeo de Joaquim
se deu durante a peregrinaccedilatildeo quando ao passar por Tripoli na Siria ele teria enfrentado
outra enfermidade desta vez por causa de uma epidemia local Como sobreviveu a ela
tomou a decisatildeo de abraccedilar o monasticismo ainda que neste periacuteodo a opccedilatildeo tenha sido por
um tipo de monasticismo natildeo-cenobiacutetico em isolamento e ascetismo262 Independentemente
entretanto do momento especiacutefico em que se deu a vocaccedilatildeo religiosa de Joaquim ela deve
ter tido alguma relaccedilatildeo com sua peregrinaccedilatildeo ao oriente263
Joaquim concluiu a peregrinaccedilatildeo a Jerusaleacutem e voltou para Siciacutelia em 1171264 natildeo
para a corte mas como outros monges gregos da ilha para uma regiatildeo montanhosa e isolada
Ele escolheu a proximidade do Monte Etna perto de um antigo monasteacuterio oriental265
Alguns meses depois atravessou o estreito de Messina na direccedilatildeo da Calaacutebria sua terra natal
259 TRONCARELLI op cit p 16 260 Adeline Rucquoi analisa as motivaccedilotildees provaacuteveis de peregrinos na Idade Meacutedia e menciona a relaccedilatildeo entre
enfermidade e voto de peregrinaccedilatildeo como uma causa frequente Cf RUCQUOI Adeline Peregrinos
medievales Tiempo de historia Salamanca v VII n 75 p 82-99 1981 p 85 261 TRONCARELLI op cit p 18 262 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii 263 SANTI Francesco La Bibbia in Gioacchino da Fiore In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio
(ed) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 257-267 p 259 264 AFFLECK Toby Joachim of Fiore Access History Brisbane v 1 n 1 p 45-54 1997 p 45 265 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der
Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98
92
Buscou um abrigo ou mesmo uma caverna em Guarassanum perto de Consenza e da vila
onde nasceu Narrativas de caraacuteter lendaacuterio entatildeo narram um encontro entre Joaquim e
Mauro Eacute um topos recorrente na biografia de grandes figuras religiosas do periacuteodo quando
o pai tenta dissuadir o filho de sua missatildeo religiosa para retomar uma vida social em
ascensatildeo Randolph Daniel destaca entretanto que apesar da natureza artificial da narrativa
encontros como este poderiam ser frequumlentes quando filhos de famiacutelias bem situadas na
sociedade decidiam abandonar uma carreira de sucesso para abraccedilar uma vocaccedilatildeo religiosa
de pouco prestiacutegio como era a vida isolada de um eremita266 O proacuteprio Joaquim parece falar
de um conflito com sua famiacutelia no interior de sua Concordia com a mensagem de que havia
recusado a promoccedilatildeo social a escala de sucesso no interior do Reino da Siciacutelia para abraccedilar
a ascese267
Apoacutes um periacuteodo recluso em Guarassanum Joaquim aceitou a hospitalidade da
abadia cisterciense de Sambucina ainda perto de Consenza Mas natildeo ficou muito tempo ali
pois se deslocou para Rende cerca de 10 quilocircmetros a noroeste onde por um ano pregou
agraves pessoas da regiatildeo Receoso de estar cometendo algum ato de desobediecircncia por pregar
sem autorizaccedilatildeo procurou o bispo Roberto de Catanzaro de quem recebeu o ordenamento
sacerdotal e a referida autorizaccedilatildeo para pregar Foi neste periacuteodo que Joaquim conheceu o
monasteacuterio de S Maria de Corazzo jaacute que tanto para ir quanto para voltar de Catanzaro ele
precisou se hospedar ali
Ele retomou sua atividade em Rende como pregador itinerante mas natildeo demorou
muito para tomar a decisatildeo de abandonar o clero secular e ingressar no monasteacuterio de
Corazzo como noviccedilo268 Este monasteacuterio fora fundado em 1157 por Rogeacuterio de Martirano
O abade desde o tempo da fundaccedilatildeo era Columbano Em 1177 entretanto por algum
motivo natildeo explicitado apenas relatado como scandala os monges de Corazzo resolveram
afastaacute-lo e na sequecircncia elegeram Joaquim para substituiacute-lo o que indica o status de
lideranccedila que o ex-peregrino jaacute havia adquirido entre eles Os monges podem ter percebido
que a formaccedilatildeo cultural de Joaquim o havia capacitado para dirigir a casa funccedilatildeo essa que
266 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xiii 267 Idem p xx Troncarelli entende que esse conflito poderia ser ainda mais significativo em funccedilatildeo do fato de
Joaquim ter se afastado da chancelaria normanda durante um periacuteodo de desenvolvimento do Reino da Siciacutelia
ldquoperiacuteodo de prosperidade e paz sem igualrdquo Cf TRONCARELLI op cit p 19 268 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p iv
93
envolvia certo grau de relacionamento com os poderes sociais circundantes na defesa da
propriedade e dos direitos do monasteacuterio269
Joaquim natildeo aceitou a eleiccedilatildeo rejeitou o cargo e saiu do mosteiro Foi inicialmente
para S Trindade em Acri monasteacuterio fundado em 1080 pelo conde Rogeacuterio I270 Insatisfeito
com o pouco isolamento do local deixou-o igualmente e procurou a abadia de Sambucina
na qual jaacute havia se hospedado Esta era a uacutenica casa da Ordem de Cister no Reino da Siciacutelia
ateacute o momento Joaquim tentou nela seu ingresso mas foi rejeitado por estar jaacute filiado a
Corazzo
Enquanto estava em Sambucina ele foi pressionado pelo abade da casa pelo
arcebispo Ruffus de Consenza e por Melis um juiz de Rende a retornar ao seu monasteacuterio
e aceitar o resultado da eleiccedilatildeo Diante dos apelos Joaquim assumiu a direccedilatildeo da abadia de
Corazzo ainda no ano de 1177271
Enquanto abade ele dedicou boa parte de suas energias na tentativa de filiar sua casa
agrave Ordem Cisterciense Uma carta do bispo Miguel de Martirano datada de 1177 faz menccedilatildeo
a um privileacutegio outorgado pelo papa Alexandre III (1159-1181) a Corazzo para que os
monges adotassem os costumes cistercienses Natildeo daacute para saber se a adoccedilatildeo destes costumes
eacute anterior ou posterior agrave eleiccedilatildeo de Joaquim De qualquer forma para conseguir ingressar
efetivamente na Ordem era preciso ser aceito como casa-filha de uma casa jaacute estabelecida
na Ordem de Cister272
A primeira tentativa de Joaquim foi Sambucina proacutexima de Corazzo igualmente na
Calaacutebria e com quem ele jaacute tinha tido contatos em mais de uma ocasiatildeo O pleito poreacutem
foi rejeitado aparentemente em funccedilatildeo de questotildees ligadas agrave propriedade do monasteacuterio de
Joaquim273 Com a rejeiccedilatildeo de Sambucina o abade calabrecircs se voltou para Casamari uma
casa cistersiense fora do Reino da Siciacutelia fundada em 1140 a leste de Roma274 Ali ele
chegou em 1183 e ficou por oito meses partindo somente no ano seguinte A resposta de
Casamari foi semelhante agrave de Sambucina mas durante este periacuteodo Joaquim encontrou a
269 Graham Loud analisou o processo de eleiccedilatildeo no interior das abadias da Itaacutelia meridional em LOUD
Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007 p 462-467 270 Idem p 86 271 DESROCHE Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade
Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 269 272 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xv 273 TRONCARELLI op cit p 21 274 DUBY Georges Atlas Histoacuterico Mundial Madrid Editorial Debate 1987 p 49
94
hospitalidade do abade Geraldo (abade de 1183-1209) e dedicou a maior parte do tempo no
estudo do acervo da rica biblioteca do monasteacuterio275
No mecircs de maio de 1184 aproveitou a oportunidade para visitar o papa Luacutecio II
(papa de 1181-1185) que se encontrava em Veroli Segundo Marjorie Reeves esta visita ao
Papa era uma tentativa de Joaquim de legitimar a produccedilatildeo de suas obras o que naquele
momento era sua missatildeo de vida276 Diante do pontiacutefece ele teve a oportunidade de explicar
um manuscrito encontrado em Roma entre os documentos do falecido Cardeal Mathias de
Angers O texto tratava de profecias tradicionais sobre o final dos tempos cobrindo temas
como o Anticristo a grande tribulaccedilatildeo e o fim do mundo Diante de Luacutecio III Joaquim
aplicou no documento anocircnimo a mesma forma de exegese que ele jaacute aplicava nos textos
biacuteblicos buscando elementos do seu tempo que pudessem corresponder agraves profecias
narradas na obra277 Posteriormente ele transcreveu sua exposiccedilatildeo deste documento num
pequeno tratado intitulado Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno 1184278
onde trata da tribulaccedilatildeo futura da Igreja originada em forccedilas do Impeacuterio Germacircnico como
parte do processo divino de purificaccedilatildeo da Igreja279
Como resultado do encontro o papa Luacutecio aprovou o meacutetodo hermenecircutico de
Joaquim e exortou-o a concluir os escritos que desejava produzir280 Entendendo que o papa
havia dado a ele a licenccedila que ele queria o abade calabrecircs iniciou ainda em Casamari a
produccedilatildeo simultacircnea de vaacuterias obras Ele natildeo se contentava em comeccedilar e terminar cada
uma mas trabalhava nelas de forma concomitante auxiliado por dois escribas e um
secretaacuterio Lucas de Consenza que se tornou seu amigo a partir de entatildeo Ele ditava e
revisava o material que os seus ajudantes escreviam281
Joaquim retornou para Corazzo em 1184 Segundo West e Zimdars-Swartz ele
voltou com a clara perspectiva de que as questotildees administrativas vinculadas ao seu cargo o
atrapalhavam natildeo soacute a escrever suas ideias mas tambeacutem a divulgaacute-las para preparar a igreja
para os eventos iminentes que estavam por vir282
Em 1186 Joaquim foi a Verona para render homenagem ao novo pontiacutefice Urbano
III (papa de 1185-1187) onde o papa renovou a autorizaccedilatildeo dada anteriormente por Luacutecio
275 TRONCARELLI op cit p 21 276 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 6 277 SANTI op cit p 261-265 278 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 90 279 TRONCARELLI op cit p 23-24 280 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 7 281 TRONCARELLI op cit p 22 282 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4
95
II e ainda ldquoincitou-o a continuar seus escritosrdquo283 Diante da autorizaccedilatildeo de dois papas para
que escrevesse ele procurou na primavera desde mesmo ano uma sela mais reservada num
local perto de Corazzo chamado Petralata sem rompimento formal ainda com o seu
monasteacuterio
Em 1188 Joaquim foi a Roma onde Clemente III (papa de 1187-1191) emitiu uma
carta na qual renovou as autorizaccedilotildees anteriores e solicitou que fossem levadas apoacutes
concluiacutedas para a avaliaccedilatildeo da cuacuteria romana O pontiacutefece ainda teria aprovado a resignaccedilatildeo
de Joaquim do cargo de abade de Corazzo no momento exato em que Corazzo finalmente
conseguiu ingresso na ordem Cisterciense como filha da abadia de Fossanova uma das
maiores casas da Ordem no territoacuterio papal fundada em 1135 ao sul de Roma284 O
abandono de Corazzo agora cisterciense rendeu a Joaquim o ressentimento dos seus
monges e do proacuteprio Capiacutetulo Geral da Ordem que passou a exigir sua volta Eles o
acusaram de transgredir o primeiro voto da profissatildeo monaacutestica beneditina que eacute a
estabilidade no monasteacuterio285
Em vez de retornar entretanto de posse da resignaccedilatildeo papal ele continuou por um
tempo em Petralata contando com a ajuda de Rainer um eremita da ilha de Ponza que se
juntou a ele No inverno de 1188 insatisfeitos com as interrupccedilotildees e visitas eles foram atraacutes
de um lugar mais isolado e o encontraram nas montanhas calabresas de Fiore para onde se
mudaram em maio de 1189 Naquele lugar agrave medida que disciacutepulos vinham se juntar a
Joaquim nasceu a necessidade de organizar um monasteacuterio O resultado foi a fundaccedilatildeo da
abadia de S Joatildeo de Fiore286
A fundaccedilatildeo da casa entretanto se deu no contexto adverso da transiccedilatildeo dinaacutestica
entre a morte de William II no final de 1189 o curto governo de Tancredo (entre 1190-1194)
e a coroaccedilatildeo de Henrique VI (final de 1194) Eacute um periacuteodo no qual apesar de ter renunciado
anteriormente agrave direccedilatildeo do monasteacuterio de Corazzo Joaquim estaacute nos termos de Troncarelli
ldquoapaixonadamenterdquo envolvido na fundaccedilatildeo de uma casa proacutepria287 Ele renunciara agrave
283 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xviii 284 DUBY op cit p 49 285 TRONCARELLI op cit p 24 Alguns autores sugerem entretanto que Joaquim deixou Corazzo por
entender que a Ordem de Cister jaacute natildeo era riacutegida o suficiente principalmente na questatildeo da disciplina
monaacutestica Ele desejava o cumprimento estrito da Ordem de S Bento o que para o abade significava o
abandono das questotildees temporais uma vida de simplicidade a pureza de coraccedilatildeo e a vida contemplativa Cf
DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997
p 41 286 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5 287 TRONCARELLI op cit p 27
96
lideranccedila de uma casa para ser liacuteder de outra Esta mudanccedila de perspectiva de Joaquim
poderia ter relaccedilatildeo com o papel que ele imaginou ter nos tempos que estariam por vir sobre
a Igreja Segundo este professor da Universitagrave della Tuscia ele entendeu que precisava do
apoio de uma nova casa monaacutestica na promoccedilatildeo de sua missatildeo de preparar as pessoas para
a intervenccedilatildeo iminente do Espiacuterito Santo288
Por isso se antes ele queria o isolamento agora ele precisa de apoio natildeo apenas dos
papas mas tambeacutem dos poderes poliacuteticos Entre 1190-1191 ele passou um periacuteodo em
Palermo enquanto solicitava ajuda de Tancredo para as obras de S Joatildeo de Fiore A resposta
do rei normando foi favoraacutevel a Joaquim por meio de uma ldquogenerosa doaccedilatildeordquo289
Enquanto esteve na Siciacutelia em negociaccedilatildeo com Tancredo a ilha se tornou ponto de
parada de uma cruzada a caminho de Jerusaleacutem Joaquim foi convocado para se encontrar
com Ricardo Coraccedilatildeo de Leatildeo da Inglaterra e um grupo de ingleses em Messina290 Ricardo
desejava de Joaquim algum tipo de vaticiacutenio a respeito da cruzada em Jerusaleacutem o que
demonstra que neste periacuteodo o calabrecircs havia alcanccedilado a reputaccedilatildeo de profeta entre alguns
de seus conterracircneos291 O abade usou a visatildeo de Apocalipse 179-10 que descreve uma
besta com sete cabeccedilas para interpretar a Cruzada A passagem apocaliacuteptica fala de sete reis
dos quais caiacuteram cinco um existe e outro ainda natildeo chegou Segundo o autor do Expositio
as cinco cabeccedilas que caiacuteram seriam Herodes Nero Constantino Maomeacute e Melsemuto A
sexta cabeccedila neste caso seria Saladino aquele ldquoum que existerdquo que seria destruiacutedo em
breve para que a seacutetima cabeccedila o que ldquoainda natildeo chegourdquo o derradeiro Anticristo se
manifestasse Este teria jaacute 15 anos e estaria pronto para assumir seu poder
O rei Ricardo perguntou a Joaquim onde o Anticristo teria nascido e onde iria reinar
Joaquim respondeu que ele nascera in urbe Romana e obteria a Seacute Apostoacutelica A visatildeo
aparentemente pouco ortodoxa de Joaquim sobre o Anticristo agradou o monarca inglecircs
adversaacuterio do papa Reeves argumenta entretanto que ao apontar Roma como o local de
nascimento do Anticristo Joaquim estava somente traduzindo a antiga expectativa em seus
proacuteprios termos Joaquim esperava um falso papa como uma de suas manifestaccedilotildees mas
288 Idem p 29 289 Idem p 28 290 Conferir a siacutentese e uma anaacutelise do encontro em REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later
Middle Ageshellip op cit p 7-9 291 Segundo Mc Ginn ldquoreis e rainhas papas e priacutencipes buscavam seus conselhosrdquo a ponto de se tornar uma
das figuras religiosas mais significativas do periacuteodo Cf MC GINN Bernard Apocalyptic Spiritualityhellip op
cit p 98
97
sem implicar neste caso que a Igreja romana deveria ser identificada com a Babilocircnia de
Apocalipse 17-19292
Apoacutes os eventos de Messina o fundador de Fiore voltou para Calaacutebria Mas em 1191
precisou descer novamente da regiatildeo montanhosa na direccedilatildeo de Naacutepoles para um encontro
com Henrique VI que em disputa pela coroa da Siciacutelia viera destituir Tancredo do trono O
abade exortou o monarca germacircnico a natildeo agir com violecircncia contra a coroa siciliana ou
seus aliados Ele usou uma passagem do Antigo Testamento Ezequiel 267 para criticar a
accedilatildeo de Henrique relacionando os eventos de Babilocircnia e Tiro com Henrique e a Siciacutelia293
Independentemente do peso que as palavras de Joaquim tiveram na decisatildeo de
Henrique o monarca realmente decidiu abandonar a regiatildeo e voltar para a Germacircnia Os
eventos posteriores viriam a mostrar um Henrique realmente disposto a ajudar a casa de
Fiore Apoacutes a morte de Tancredo a caminho para assumir o reino da Siciacutelia Henrique
encaminhou uma carta em que fazia uma doaccedilatildeo ao novo monasteacuterio Nela Joaquim eacute pela
primeira vez declarado abade de S Joatildeo em Fiore Em 6 de marccedilo de 1195 alguns meses
apoacutes a coroaccedilatildeo o monarca germacircnico escreveu uma segunda carta garantindo a S Joatildeo um
dote anual em moedas de ouro Bizantinas294
Agora com o apoio do Imperador Joaquim retornou ao papa Celestino III (1191-
1198) e pediu a ele sua aprovaccedilatildeo para S Joatildeo de Fiore Em Roma no dia 25 de agosto de
1196 Celestino emitiu uma bula na qual formalmente aprovou S Joatildeo e a Regra da nova
Ordem Florense295 Ainda nesta bula Joaquim aparece descrito como o abade de Fiore
indicando que pelo menos aos olhos do papa ele natildeo tinha mais conexotildees com Corazzo nem
com a Ordem Cisterciense A mesma aprovaccedilatildeo se deu em 1204 por Inocecircncio III e duas
vezes por Honoacuterio em 1216 e 1220 Mesmo assim desde 1192 Joaquim era considerado
fugitivus pelo Capiacutetulo Geral Cisterciense296
Em 1196 Joaquim retornou a Palermo na qualidade de confessor da rainha
Constacircncia que veio a confirmar todas as doaccedilotildees da coroa para Fiore apoacutes a morte de
Henrique VI em 1197
292 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 9 293 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 66 294 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 295 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n
1 p 217-240 2004 p 219 Esta Regra se perdeu apesar de estudiosos entenderem que ela deveria ser bem
proacutexima da Regra Cisterciense 296 TRONCARELLI op cit p 30
98
O abade Joaquim escreveu em marccedilo de 1200 um documento narrando as
autorizaccedilotildees que entendeu ter recebido do papado de Roma para escrever suas obras e o
compromisso assumido para enviaacute-las quando estivessem prontas (Expositio in
Apocalpysim 1r-v) Ele encaminhou suas trecircs principais obras (Expositio in Apocalypsim
Concordia Novi ac Veteris Testamenti e Psalterium decem Chordarum) para anaacutelise da
cuacuteria papal Mas natildeo teve tempo para receber de Roma a tal avaliaccedilatildeo pois no dia 30 de
marccedilo de 1202 na abadia de S Martino di Giove que havia sido dada para a Ordem de Fiore
em 1201 pelo Arcebispo Andreas de Cosenzza ele veio a falecer297 sendo transferido
posteriormente para S Joatildeo de Fiore
42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim
Um fenocircmeno significativo nas obras de Joaquim eacute a forma como ele reelabora e
repete os mesmos temas seguidamente num processo contiacutenuo e dinacircmico Torna-se
importante entatildeo apontar data e momento de produccedilatildeo natildeo apenas para o Expositio in
Apocalysim mas para as demais obras do abade relacionadas com o Apocalipse de Joatildeo que
sobreviveram e estatildeo disponiacuteveis para consulta Praephatio super Apocalypsim Enchiridio
super Apocalypsim e Liber Introductorius298 A produccedilatildeo do comentaacuterio maior (Expositio)
se deu por meio da produccedilatildeo de obras menores (em formato de sermatildeo e tratado) desde os
primeiros anos da deacutecada de 1180 ateacute os anos proacuteximos de sua morte299
A mais antiga destas obras entretanto o Praephatio super Apocalypsim eacute marcada
pela natureza compoacutesita Antes de ser um uacutenico texto eacute formado pela reuniatildeo de dois
pequenos sermotildees nos quais o abade faz uma apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o Apocalipse de
Joatildeo e a histoacuteria da Igreja300
O primeiro sermatildeo comeccedila com a expressatildeo ldquoO Livro do Apocalipse eacute o uacuteltimo de
todos os livros escritos com espiacuterito de profecia incluiacutedo no cataacutelogo das Sagradas
297 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 298 Haacute ainda um ldquoindependente e curto comentaacuterio do Apocalipserdquo ineacutedito e sem publicaccedilatildeo denominado pela
historiadora Marjorie Reeves como Apocalypsis Nova presente em dois manuscritos do seacuteculo XIII Cf
REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 513 299 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p
286 300 SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 Foi desta
ediccedilatildeo que partiu a traduccedilatildeo para o portuguecircs do professor Rossatto ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao
Apocalipse op cit Outra traduccedilatildeo em portuguecircs pode ser encontrada em BERNARDI Orlando Comentaacuterio
ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010
99
Escriturasrdquo301 O segundo inicia com a frase ldquoAntes de dizer qualquer coisa sobre o livro do
Apocalipse devemos considerar que este livro estaacute provido de um tiacutetulo de uma saudaccedilatildeo
de um prefaacuteciordquo302 Cada sermatildeo tem sua proacutepria unidade interna e foram reunidos em
circunstacircncias desconhecidas por causa de afinidades temaacuteticas Iremos distingui-los como
faz Potestagrave pelas primeiras palavras latinas de cada um303 O primeiro e mais antigo pode
ser denominado Apocalipsis liber ultimus O segundo Locuturi aliquid Ambos foram
escritos por Joaquim para servir de base para a pregaccedilatildeo em contexto lituacutergico num periacuteodo
anterior agrave sua passagem por Casamari (1183-1184)304 Estes tratados constituem uma
primeira aproximaccedilatildeo exegeacutetica de Joaquim ao Apocalipse de Joatildeo cujo puacuteblico alvo
imediato era formado pelos monges do monasteacuterio de Corazzo
A proacutexima obra de Joaquim a desenvolver uma leitura do Apocalipse eacute o Enchiridion
super Apocalypsim Ele foi escrito no periacuteodo em que o abade pousou em Casamari (1183-
1184)305 Nele Joaquim faz uma apresentaccedilatildeo ampla da obra de Joatildeo sem discutir frase a
frase como faraacute no Expositio mas jaacute expondo suas partes principais O termo ldquoEnchiridionrdquo
pode ser traduzido como ldquomanualrdquo e foi escrito segundo o abade para ldquoapresentar o
conteuacutedo de todo o livro do Apocalipserdquo (Enchiridion l 56-57)306 Eacute uma siacutentese portanto
do conteuacutedo que ele entendia estar presente no uacuteltimo livro da Biacuteblia cristatilde e poderia ser
utilizado como ldquotexto introdutoacuterio e explicativordquo307 do seu Expositio Isto daacute ao Enchiridion
tambeacutem um papel de esquema ou projeto do comentaacuterio ao Apocalipse que o abade
comeccedilaria a produzir em Casamari
O texto comeccedila com ldquoIncipit Enchiridion abbatis Joachim super Apocalypsimrdquo (l
1) seguido da primeira frase do texto ldquoComo catoacutelicos e ortodoxos lutamos (certatum) com
os mais fortes entusiasmos (studiis) para lanccedilar os fundamentos da Igreja (ecclesiae
fundamenta)rdquo (l 2-3)308 Este texto foi produzido por Joaquim para apresentar o Expositio e
lhe servir de resumo mas no momento em que o Expositio estava para ser concluiacutedo o
301 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse op cit p 453 302 Idem p 462 303 POTESTAgrave op cit p 290 e 294 304 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 75 Potestagrave entretanto sugere um periacuteodo
posterior agrave Casamari entre 1185-1186 para Apocalipsis liacuteber ultimus e uma data subsequente para Locuturi
aliquid Cf POTESTAgrave op cit p 290 e 294 305 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 92 Potestagrave entretanto prefere datar o Enchiridion
para uma data posterior a 1194 Cf POTESTAgrave op cit p 328 306 As citaccedilotildees do Enchridion seguem o texto criacutetico de BURGER Edward K Joachim of Fiore Enchiridion
super Apocalypsim Toronto Pontifical Institute of Mediaeval Studies 1986 307 POTESTAgrave op cit p 327 308 BURGER op cit p 9
100
Enchiridion sofreu uma revisatildeo tatildeo profunda com alteraccedilatildeo de aspectos significativos do
seu conteuacutedo que os estudiosos preferem mudar seu nome chamando-o entatildeo de Liber
introductorius309 Gian Luca Potestagrave estima que esta revisatildeo do Enchiridion pode ter ficado
pronta no uacuteltimo ano do pontificado do papa Celestino III (papa de 1191-1198) ainda com
a funccedilatildeo de ldquosimplificar e sintetizar os resultados da obra maiorrdquo310
Uma comparaccedilatildeo entre a primeira redaccedilatildeo (Enchiridion iniacutecio da deacutecada de 1180) e
essa segunda redaccedilatildeo (Liber introductorius 1198) revela mudanccedilas por exemplo na postura
quanto ao Impeacuterio Germacircnico que eacute tratado de forma criacutetica no Enchiridion mas de forma
branda no Liber introductorius Afinal a monarquia Hohenstaufen antes temida por
Joaquim havia se manifestado concretamente apoacutes 1191 na figura generosa de Henrique VI
e suas doaccedilotildees para a casa de S Joatildeo de Fiore311
Com relaccedilatildeo ao Expositio in Apocalypsim como jaacute argumentado anteriormente ele
eacute o resultado de mais de uma deacutecada de trabalho e elaboraccedilatildeo Joaquim o comeccedilou ainda em
Casamari (1183-1184) e soacute o concluiu no final do seacuteculo A informaccedilatildeo sobre a conclusatildeo eacute
dada pelo proacuteprio Joaquim na Carta Testamentaacuteria (Expositio in Apocalypsim 1r) Se a data
de 1198 para o Liber introductorius estiver correta as repetidas referecircncias a ele encontradas
no interior do Expositio indicam que Joaquim usou o periacuteodo entre 1198 e 1200 para fazer
uma revisatildeo completa de seu grande comentaacuterio do Apocalipse312
43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim
O Expositio in Apocalypsim eacute certamente a maior obra de Joaquim de Fiore Nas
ediccedilotildees seiscentistas de Veneza o Expositio tem 224 foacutelios contra 135 da Concordia O
abade denominou o Expositio na sua Carta Testamentaacuteria de ldquoexpositione Apocalipsisrdquo
(Expositio in Apocalypsim 1r) Mas o que consistiria em termos formais esta ldquoexposiccedilatildeo
do Apocalipserdquo Ela natildeo segue a forma literaacuteria da Concordia nem do Psalterium ou
mesmo do Enchiridion Eacute importante neste caso aplicar ao Expositio uma questatildeo que jaacute
aplicamos ao Apocalipse de Joatildeo justamente porque a definiccedilatildeo do gecircnero literaacuterio de uma
obra eacute parte da escolha do autor para definir a forma como ele desejaria que seu livro fosse
309 POTESTAgrave op cit p 327 310 Idem p 329 311 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 108 312 POTESTAgrave op cit p 287
101
lido313 A obra de Joatildeo eacute enquanto gecircnero literaacuterio um ldquoapocalipserdquo e se insere na longa
tradiccedilatildeo literaacuteria judaica apocaliacuteptica que retrocede ao seacuteculo II antes de Cristo O Expositio
entretanto natildeo eacute um apocalipse antes eacute um comentaacuterio biacuteblico do Apocalipse
Um comentaacuterio biacuteblico eacute formalmente uma explicaccedilatildeo sistemaacutetica abrangente e
sequencial de um determinado livro da Biacuteblia cujo propoacutesito eacute adaptar o material biacuteblico
para as circunstacircncias das novas audiecircncias314 A explicaccedilatildeo de apenas algumas porccedilotildees
capiacutetulos versiacuteculos ou periacutecopes natildeo poderia formalmente ser definida como um
comentaacuterio jaacute que ele precisava cobrir todo o livro biacuteblico Por sequencial entende-se o
acompanhamento da estrutura do texto biacuteblico que se estaacute comentando No caso do
Apocalipse o comentarista o seguia nos blocos ou periacutecopes natildeo necessariamente versiacuteculo
a versiacuteculo ou capiacutetulo por capiacutetulo jaacute que essa padronizaccedilatildeo soacute comeccedilaria a partir do seacuteculo
XIII315
O embate narrado por Euseacutebio de Cesareacuteia entre o bispo Neacutepos e Dioniacutesio serve para
ilustrar a forma como o Apocalipse era usado nos trecircs primeiros seacuteculos (Histoacuteria
Eclesiaacutestica VII XXIV 1-9) Neacutepos era um quiliasta316 cuja mensagem enfatizava a
realidade de um futuro governo terreno de Cristo na terra Para se contrapor a uma exegese
alegoacuterica do Apocalipse que tentava minimizar a realidade histoacuterica deste reinado
messiacircnico este bispo do Egito escreveu um livro intitulado Refutaccedilatildeo dos alegoristas
Contra Neacutepos e seu livro se levantou Dioniacutesio que escreveu Sobre as promessas tambeacutem
para discutir o Apocalipse de Joatildeo Euseacutebio ainda narrou que neste periacuteodo aconteceu um
longo debate acerca da forma como o livro de Joatildeo deveria ser interpretado
O bispo de Cesareacuteia fala de dois liacutederes cristatildeos que escreveram textos e recorrem
parcialmente ao Apocalipse para defender suas ideias Em linhas gerais a maioria das
pessoas que recorriam ao Apocalipse neste periacuteodo o usa em contexto de polecircmica
doutrinaacuteria ou apologeacutetica para responder a uma heresia dar suporte a uma determinada
posiccedilatildeo teoloacutegica encorajar cristatildeos perseguidos Papias Justino Martir Irineu Tertuliano
313 Conferir esta discussatildeo no primeiro capiacutetulo desta tese 314 MATTER E Ann The Apocalypse in Early Medieval Exegesis In EMMERSON Richard K MCGINN
Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 38-50 p 38-
39 315 SMALLEY Beryl The study of the Bible in the Middle Ages Oxford Basil Blackwell 1952 p 222-224 316 O quiliasmo eacute definido por Wainwright como ldquoa crenccedila de que Cristo retornaraacute para a terra e inauguraraacute
uma era de prosperidade de mil anos sobre o planetardquo Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious
Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 21
102
Hipolitus Vitorino Lactantius Metodius e Comodianus317 Destes com exceccedilatildeo de
Vitorino todos fizeram uso apenas de pequenas porccedilotildees do Apocalipse
Eacute de Vitorino em diante que surge a praacutetica de comentar o Apocalipse inteiro ldquocomo
resposta a problemas particulares da igreja de cada eacutepocardquo318 O bispo de Pettau na Panocircnia
Superior romana escreveu um comentaacuterio ao Apocalipse em grego cerca do ano 300 Sobre
ele opinou Jerocircnimo ao falar da praacutetica de explicar um livro biacuteblico inteiro ldquoentre os latinos
por outra parte haacute um grande silecircncio exceccedilatildeo feita do maacutertir Vitorino de santa memoacuteria
que podia dizer com o apoacutestolo que apesar de carecer de eloquumlecircncia natildeo carecia de
ciecircnciardquo319 No Oriente o primeiro comentaacuterio em grego surgiu apenas no sexto seacuteculo de
um autor anocircnimo conhecido apenas como Ecumecircnio320 sendo seguido de perto pelo
Comentaacuterio de Andreas de Cesareia na Capadoacutecia321
O original grego do Comentarius de Vitorino estaacute perdido mas seu texto eacute bem
conhecido por meio da recensatildeo feita por Jerocircnimo para o Latim O bispo de Pettau morreu
no tempo das perseguiccedilotildees de Diocleciano e isso aparece marcado em sua interpretaccedilatildeo do
Apocalipse322 Ele entendia que os eventos narrados no livro de Joatildeo eram iminentes pois
diziam respeito agraves tribulaccedilotildees das igrejas de sua eacutepoca Ele segue a estrutura do Apocalipse
procurando destacar e explicar as passagens do texto joanino que julgava serem mais
difiacuteceis Ao comentar Apocalipse 20 Vitorino expressou a expectativa quiliasta de um reino
milenar de Cristo na terra
Assim pois os que natildeo tomarem a dianteira ao ressuscitar na primeira
ressurreiccedilatildeo e reinar com Cristo sobre toda a terra (super ordem) e sobre
todas as gentes (super gentes universae) ressuscitaratildeo ao toque da
trombeta final depois de mil anos (Commentarius in Apocalypsim 167-
169 PLS)323
Esta expectativa entretanto tornou-se um problema para a Igreja posterior a
Constantino e ao Edito de Toleracircncia de 313 em funccedilatildeo das novas formas eclesiaacutesticas e o
desenvolvimento de redes de relacionamento com o poder temporal324 Por isso a recensatildeo
317 WAINWRIGHT op cit CONSTANTINOU Eugenia Scarvelis Andrew of Caesarea and the Apocalypse
in the Ancient Church of the East Quebec Universiteacute Laval 2008 p 126 318 MATTER op cit p 38 319 Citado a partir de TORROacute Joaquiacuten Pascual Introduccioacuten general In VICTORINO DE PETOVIO
Comentaacuterio al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 9-26 p 11 320 ECUMENIO Comentario sobre el apocalipsis Madrid Cidad Nueva 2008 321 CONSTANTINOU op cit p 134 322 TORROacute op cit p 9 323 VITORINO DE PETOVIO Comentario al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 208-
209 324 MATTER op cit p 39
103
de Jerocircnimo procurou moldar a obra de Vitorino expurgando as afirmaccedilotildees milenaristas
fazendo-a corresponder a uma eacutepoca em que a Igreja estava em paz com o Impeacuterio e com a
sociedade A leitura literal do milecircnio foi transformada em leitura alegoacuterica Segundo
Jerocircnimo na sua revisatildeo do comentaacuterio de Vitorino de Apocalipse 20 ldquoo nuacutemero denaacuterio
significa o decaacutelogo e o centenaacuterio eacute a coroa da virgindaderdquo o que indicaria que o texto
joanino queria ensinar que os cristatildeos virgens natildeo apenas do corpo mas tambeacutem da liacutengua
e do pensamento seratildeo exaltados pelo Cristo do fim dos tempos325
Quase um seacuteculo depois de Vitorino outro autor resolveu escrever uma exposiccedilatildeo
completa do Apocalipse Ele eacute conhecido como Ticocircnio (330-395) e era membro da igreja
donatista do norte da Aacutefrica326 Ele expocircs todo o livro do Apocalipse utilizando os princiacutepios
que havia formulado numa outra obra intitulada Liber regularum327 O comentaacuterio de
Ticocircnio se perdeu mas estudiosos tecircm acesso aos princiacutepios que ele usou para escrevecirc-lo
bem como a reconstruccedilotildees parciais do seu conteuacutedo a partir das citaccedilotildees que dele fizeram
entre outros Primasio Beda e Beato de Liebana
As regras do Liber regularum levaram Ticocircnio a fazer uma leitura do Apocalipse
com ecircnfase na encarnaccedilatildeo de Jesus (Regra 1) no relacionamento entre o Antigo e o Novo
Testamento (Regra III) no simbolismo dos nuacutemeros (Regra V) na recapitulaccedilatildeo (Regra VI)
e na espiritualizaccedilatildeo do milecircnio com uma forte rejeiccedilatildeo do quiliasmo328
O proacuteximo exegeta latino a compor um comentaacuterio ao Apocalipse foi Primasio329
Sua obra Commentarius in Apocalypsim faz uma siacutentese de Vitorino e Ticocircnio Primasio
foi bispo de Justiniapolis no norte da Aacutefrica proviacutencia da Numidia de 527-565 num periacuteodo
de colapso da accedilatildeo imperialista bizantina Apesar de envolvido num clima de instabilidade
social o interesse do bispo africano continuou na linha de Jerocircnimo e Agostinho ao fazer
uma exegese alegoacuterica do Apocalipse330 Como o Apocalipse ainda natildeo tinha marcas de
capiacutetulo e versiacuteculo as definiccedilotildees estruturais do seu comentaacuterio se tornaram importantes na
interpretaccedilatildeo do livro joanino Ele o dividiu em cinco partes 1) sete igrejas 2) sete selos 3)
sete trombetas e a mulher ensolarada 4) as bestas da terra e mar as sete pragas e as sete
325 O texto de Vitorino estaacute publicado em duas seccedilotildees A superior apresenta o texto do proacuteprio bispo de Pettau
traduzido para o Latim A inferior registra a anaacutelise feita por Jerocircnimo sobre a exegese de Vitorino A anaacutelise
de Jerocircnimo mencionada no corpo deste texto estaacute em VITORINO DE PETOVIO op cit p 211 326 CALVO Juan Joseacute Ayaacuten Introduccioacuten In TICONIO Livro de Las Reglas Madri Cidad Nueva 2009 p
11-78 p 14 327 Idem p 28 328 Idem p 39-44 329 MATTER op cit p 41 330 Idem p 42
104
taccedilas 5) o cordeiro sobre o trono o novo ceacuteu e a nova terra331 Matter avalia que todos os
comentaristas do Apocalipse no Ocidente posteriores a Primasio ateacute o seacuteculo XII foram
influenciados por este comentaacuterio332
Autor Data Lugar
Primasio 540 Numiacutedia
Cesaacuterio de Arles 540 Sul da Gaacutelia
Apringius 550 Ibeacuteria
Cassiodoro 575 Sul da Itaacutelia
Beda 730 Northumbria
Ambrosio Autpert 760 Benevento
Beato de Liebana 780 Ibeacuteria
Alcuino 800 Franccedila
Haimo 840 Franccedila
Anocircnimo Seacuteculo IX Franccedila
Glossa Ordinaria 1100 Regiatildeo de Leon
O Beato de Liebana aleacutem de depender de Primasio recorreu pesadamente a Vitorino
e Ticocircnio Em funccedilatildeo do seu papel dentro do cristianismo hispacircnico do seacuteculo VIII os temas
recorrentes no seu comentaacuterio eram a santidade da Igreja e a defesa da divindade de Cristo
contra a teologia adocionista dos seguidores do bispo Elipando de Toledo333
Haacute no Beato uma combinaccedilatildeo significativa de exegese eclesiologia e cristologia que
se tornou recorrente em ambientes monaacutesticos a partir do seacuteculo VIII A perspectiva era de
que o Apocalipse deveria ser interpretado tendo como referecircncia a histoacuteria da Igreja na terra
Beda e Ambrosio Autpert incorporaram as contribuiccedilotildees de Primasio e se tornaram
as grandes bases de interpretaccedilatildeo do Apocalipse no periacuteodo caroliacutengio334 Por meio da obra
Explanatio Apocalypsis Beda apresenta a histoacuteria da Igreja e ao mesmo tempo mantem um
olhar sobre a histoacuteria de toda a criaccedilatildeo Ele fez uso das sete regras de Ticocircnio para descrever
sete periacuteodos da histoacuteria do mundo no Apocalipse 1) as sete igrejas da Aacutesia que descrevem
na realidade as igrejas de Cristo 2) os quatro animais e a abertura dos sete selos revelam os
331 Idem p 43 332 Idem p 44 333 Idem p 46 334 Idem p 47
105
conflitos futuros e triunfos da Igreja 3) as sete trombetas descrevem futuros acontecimentos
da Igreja 4) a Mulher e o Dragatildeo revelam as obras e vitoacuterias da Igreja 5) as sete pragas que
infestaratildeo a terra 6) o castigo da prostituta ou cidade iacutempia 7) a Jerusaleacutem como noiva que
desce do ceacuteu335
O comentaacuterio de Ambrosio Autpert construiu uma leitura alegoacuterica detalhada do
Apocalipse Foi escrito entre 758-767 no ducado Lombardo de Benevento Ele absorveu os
comentaacuterios de Vitorino Ticocircnio Primasio aleacutem das anaacutelises de Agostinho e Gregoacuterio o
Grande Ele estava motivado a fazer uma siacutentese de suas fontes com ecircnfase no ldquocasamento
espiritualrdquo entre Cristo e a Igreja336
Os comentaristas posteriores ao periacuteodo caroliacutengio insistiam em ver no Apocalipse
uma alegoria da histoacuteria da Igreja e procuravam nos comentaacuterios anteriores elementos para
apoiar seus pressupostos exegeacuteticos Haacute pouco interesse na perspectiva da iminecircncia do fim
do mundo que aparecia nos leitores quiliastas dos seacuteculo II e III A insistecircncia dos
comentaristas posteriores a Ticocircnio de rejeitar o quiliasmo levou a uma interpretaccedilatildeo do
Apocalipse que o entende como um guia para a Igreja na terra esperar a uniatildeo com uma
Igreja que jaacute se encontra no ceacuteu337
Neste sentido quando surgem no seacuteculo XII a Glossa ordinaria e os comentaacuterios
de Ruperto de Deutz o conteuacutedo tratado por meio de um comentaacuterio ao Apocalipse era de
cunho mais eclesioloacutegico do que escatoloacutegico Eacute nesta grande tradiccedilatildeo entatildeo que retrocede
a Vitorino e Ticocircnio no Ocidente e Ecumecircnio e Andreas de Cesareia no Oriente que se
insere o Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore
Ao discutir o gecircnero literaacuterio ldquocomentaacuterio biacuteblicordquo entretanto natildeo queremos indicar
que o milenarismo soacute poderia nele se manifestar Nem mesmo afirmar algum tipo de
dependecircncia do Expositio em relaccedilatildeo a um comentaacuterio especiacutefico338 O objetivo eacute demonstrar
que desde Vitorino existiu a praacutetica de comentar de maneira sistemaacutetica e abrangente o
livro do Apocalipse de Joatildeo Um comentaacuterio biacuteblico era um tipo de texto voltado
principalmente para a lideranccedila das igrejas mas com potencial de alcance muito maior jaacute
que logo era transformado em base para os sermotildees dos cleacuterigos339
335 Idem 336 Idem p 48 337 Idem 338 Os autores West e Zindars-Swartz encontram indiacutecio no Expositio de recurso a pelo menos dois comentaacuterios
latinos do Apocalipse Haimo de Auxerre e Beda Cf WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 37 339 Comparar com a anaacutelise de Raquel Parmegiani em PARMEGIANI Raquel de Faacutetima Leituras Medievais
do Apocalipse Comentaacuterio ao Beato de Liebana Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernardo do Campo v 23 n 36
107-125 2009 p 122-124
106
44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse
No Liber introductorius Joaquim explicitou o que o teria levado a escrever o
Expositio
Aceitei expor o Apocalipse que o beato Joatildeo isolado na ilha de Patmos
narrou a partir da sequecircncia de eventos (ex cuius serie) como eu penso (ut
ego extimo) para demonstrar claramente o que eu havia previsto e se estas
coisas satildeo dignas de maior aprofundamento de modo que possam incitar
ao desprezo do mundo (possint ad conseptus seculi) a esposa e os filhos do
reino e endossar a palavra do Senhor que disse ldquoexultai e erguei a cabeccedila
porque a vossa salvaccedilatildeo estaacute proacuteximardquo (Lucas 2128) (Expositio in
Apocalypsim 2b)340
Por meio do seu comentaacuterio ao Apocalipse de Joatildeo o abade queria promover o seu
ideal de pureza para a Igreja latina bem como produzir na audiecircncia do seu Expositio
ldquodesprezo pelo mundordquo (conseptus seculi) O termo conseptus traduzido por
constrangimento desprezo aparece num dicionaacuterio como ldquocom cerca ao redor derdquo ldquocercado
por todos os ladosrdquo ldquofechado completamenterdquo341 Neste sentido tanto Joatildeo quanto Joaquim
parecem se valer de seus textos para incitar e promover ascetismo entre suas respectivas
audiecircncias
Joaquim usou o Expositio para apresentar uma ldquohistoacuteria teoloacutegica do
Cristianismordquo342 narrando o desenvolvimento da Igreja Para o abade desde os dias do seu
aparecimento a Igreja estava se desenvolvendo na direccedilatildeo da sua mais plena expressatildeo
quando deixaraacute de ser a instituiccedilatildeo de Pedro e se transformaraacute na instituiccedilatildeo de Joatildeo um tipo
de monasticismo contemplativo no periacuteodo do descanso sabaacutetico343
Uma das metas de Joaquim era encontrar sentido na histoacuteria humana e ele entendeu
que o Apocalipse poderia ser a fonte para isso344 Ao encaminhar o Expositio para a cuacuteria
papal o abade de Fiore desejava disseminar a ideia de que uma cristandade reformada e
purificada era o objetivo de um processo histoacuterico dinacircmico que tinha suas raiacutezes na
340 Traduzido a partir de TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 80 341 DICIONAacuteRIO LATIM PORTUGUEcircS Porto Editora Porto 2001 p 171 342 POTESTAgrave op cit p 297 343 LERNER Robert E The medieval return to the thousand-year Sabbath In EMMERSON Richard K
MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 51-
71 p 57 344 SMALLEY op cit p 289 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the
Apocalypse In EMMERSON Richard K MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages
London Cornell University Press 1992 p 72-88 p 87
107
antiguidade da histoacuteria de Israel345 A chave para enxergar esta histoacuteria estava no uacuteltimo livro
da Biacuteblia o Apocalipse de Joatildeo
45 Resumo
Joaquim foi um notaacuterio da Calaacutebria que abraccedilou a vocaccedilatildeo monaacutestica depois de uma
peregrinaccedilatildeo agrave Palestina Ingressou num monasteacuterio em Corazzo e se esforccedilou para
incorporaacute-lo a Ordem Cisterciense mas abandonou-o para fundar uma casa monaacutestica nas
montanhas calabresas de Fiore Desde seu retorno agrave Calaacutebria ele manifestou o interesse em
promover ideias a respeito de uma eminente e imimente intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina
Sua estrateacutegia para divulga-las envolveu a produccedilatildeo de vaacuterios livros entre eles o Expositio
in Apocalypsim uma apresentaccedilatildeo da histoacuteria da Igreja na forma de um comentaacuterio ao
Apocalipse de Joatildeo
345 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 87
V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA
SICIacuteLIA
Em 1191 Joaquim desceu do isolamento de Fiore na Calaacutebria e foi ao encontro de
Henrique VI Imperador Germacircnico perto dos muros de Naacutepoles346 William II rei da
Siciacutelia morrera sem deixar herdeiros e a coroa do Reino fora entregue com o apoio da cuacuteria
romana para o conde Tancredo sobrinho do falecido rei O imperador entretanto entendia
que a coroa da Siciacutelia lhe pertencia Por isso atravessou a Itaacutelia e iniciou uma ofensiva contra
os aliados de Tancredo Joaquim foi ateacute o imperador cujas tropas estavam sofrendo com
uma epidemia e declarou que o evento era consequecircncia do juiacutezo divino Citando a
passagem biacuteblica de Ezequiel 26 Joaquim comparou o sul da Itaacutelia com Tiro e Henrique
com o rei da Babilocircnia Se o monarca persistisse Deus o derrotaria mas se ele se retirasse
em poucos anos Deus daria a ele a vitoacuteria sem que precisasse lutar347
Eacute difiacutecil saber como as palavras de Joaquim influiacuteram nos eventos que se seguiram
Talvez por causa da forccedila de resistecircncia dos aliados de Tancredo ou porque a ajuda naval
que Henrique esperava atrasara ou porque surgira problemas na Germacircnia que precisavam
de sua atenccedilatildeo no final o Imperador e seus cavaleiros voltaram para o norte dos Alpes
Poucos anos depois em 1194 Tancredo morreu e deixou a coroa da Siciacutelia para seu
pequeno filho chamado entatildeo de William III Novamente Henrique reclamou o Reino para
si e sua esposa Constacircncia princesa normanda filha legiacutetima de Rogeacuterio II o fundador do
Reino da Siciacutelia Segundo o Tratado de Veneza de 1177 entre o Reino da Siciacutelia e o Impeacuterio
Germacircnico caso William II morresse sem filhos Constacircncia sua tia seria a herdeira da
Coroa348 Desta vez Henrique entrou na Itaacutelia meridional atravessou o canal de Messina na
direccedilatildeo da Siciacutelia retirou sem grandes dificuldades o filho de Tancredo do trono venceu
pequenos focos de resistecircncia em Palermo e nesta mesma cidade na catedral real foi
coroado rei no natal de 1194 Com isso ele repetiu o gesto que o fundador do Reino Rogeacuterio
II realizara no natal de 1130
346 TURLEY Thomas Joachim of Fiore In EMMERSON Richard K (org) Key figures in medieval Europe
an encyclopedia New York Routledge 2006 p 372-374 p 373 347 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti
Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xix REEVES Marjorie The influence of
Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993
p 11 348 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south In ABULAFIA David (org) Italy in the Central
Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 58-81 p 69
109
Independentemente do papel de Joaquim nos eventos de 1191 ele deve ter sido
significativo porque outro encontro entre o abade de Fiore e o imperador germacircnico se deu
em Palermo Joaquim compareceu agrave coroaccedilatildeo e foi recebido respeitosamente Em outubro
de 1194 pouco antes de receber a coroa da Siciacutelia Henrique VI escreveu uma carta na qual
descreveu Joaquim como ldquoabade de Fiorerdquo e falou claramente do monasteacuterio de Satildeo Joatildeo
em Fiore antes mesmo de uma autorizaccedilatildeo papal para a fundaccedilatildeo da ordem Florense o que
soacute ocorreu em 1196349 Em marccedilo de 1195 Henrique escreveu outra carta garantindo a Satildeo
Joatildeo um dote anual de cinquenta moedas de ouro Bizantinas350 No pouco tempo que
Henrique sobreviveu a estes eventos (ele morreu em 1197) Joaquim e seus monges se
tornaram protegidos do imperador germacircnico e rei da Siciacutelia A rainha Constacircncia fez do
abade seu confessor pessoal ateacute morrer em Palermo em novembro de 1198
Joaquim de Fiore viveu num momento significativo da Itaacutelia meridional entre o auge
e o fim da dinastia normanda no Reino da Siciacutelia periacuteodo descrito pelo historiador inglecircs
Graham Loud como eacutepoca de ouro para o sul da Peniacutensula quando comparada com os
distuacuterbios sociais anteriores agrave chegada dos normandos e a crise da transiccedilatildeo dinaacutestica
posterior agrave morte de William II351 Foi uma eacutepoca em que reis da dinastia Hauteville
conseguiram unificar sob um mesmo governo toda a regiatildeo inferior ao Patrimocircnio de Satildeo
Pedro do rio Garigliano ateacute a ilha da Siciacutelia territoacuterio marcado fortemente pela presenccedila
grega e muccedilulmana espaccedilo de sobrevivecircncias interaccedilotildees e trocas culturais entre grupos
eacutetnicos e religiotildees distintas Espaccedilo onde mesmo o Cristianismo era pluralizado nas formas
grega e latina Para compreender o papel social e religioso do monge calabrecircs eacute importante
atentar para as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia meridional normanda
bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio Hohenstaufen Estes
elementos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim e seus objetivos enquanto
ermitatildeo monge abade escritor e fundador da Ordem Florense
349 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx 350 Idem 351 LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007
p 524
110
51 A chegada dos normandos
Os primeiros normandos chegaram ao sul da Itaacutelia por volta do ano 1000 em
circunstacircncias natildeo tatildeo claras Jaacute eacute possiacutevel discernir a presenccedila deles na revolta de nobres da
Apuacutelia contra autoridades bizantinas em 1017 e 1018352 O quadro encontrado na regiatildeo
manifestava uma divisatildeo poliacutetica complexa com estruturas culturais pluralizadas sem um
poder central Sob este contexto cavaleiros normandos se colocaram como mercenaacuterios a
serviccedilo da populaccedilatildeo lombarda contra os bizantinos de um territoacuterio lombardo contra outro
de liacutederes bizantinos contra sarracenos e eventualmente ateacute mesmo a serviccedilo dos
muccedilulmanos da Siciacutelia contra outros poderes em conflito na ilha353 Inicialmente eles natildeo
passavam de algumas dezenas de cavaleiros que vendiam seus serviccedilos a poderes locais em
vez de se reunirem sob a lideranccedila de outro normando
Nos principados e ducados lombardos eles encontraram um tipo de aristocracia
sobre a qual foram constituiacutedos como condes Em Apuacutelia a estrutura social em funccedilatildeo dos
traccedilos da administraccedilatildeo bizantina era baseada nos encastelamentos um tipo de cidadela ou
vila fortificada e um significativo nuacutemero de pequenos proprietaacuterios Estas vilas fortificadas
(castella) ficavam em posiccedilotildees estrateacutegicas e serviam como centros administrativos da
aristocracia local Na Calaacutebria um terceiro tipo de domiacutenio se manifestou atraveacutes da
construccedilatildeo de castelos utilizados para controlar a regiatildeo circundante por meio de tratados
com as cidades juramento de fidelidade e implementaccedilatildeo de tributos Apoacutes a conquista os
castelos foram entregues a parentes e vassalos dos normandos
Os assentamentos e conquistas dos normandos natildeo tinham como base algum tipo de
acordo amplo para a conquista da Itaacutelia meridional Na busca pelo domiacutenio das regiotildees os
proacuteprios normandos se envolviam em conflitos No final do seacuteculo XI entretanto dois
liacutederes de uma mesma famiacutelia assumiram o poder sobre quase todo o sul da Itaacutelia Roberto
Guiscard com o domiacutenio dos territoacuterios abaixo do Patrimocircnio de Satildeo Pedro ateacute a Calaacutebria
e seu irmatildeo Rogeacuterio de Hauteville que dirigiu a conquista da ilha da Siciacutelia
Roberto Guiscard morreu em 1085 deixando o territoacuterio conquistado para seus
filhos Rogeacuterio de Hauteville entretanto posteriormente conhecido como Rogeacuterio I
sobreviveu ao seu irmatildeo mais de uma deacutecada promovendo um estaacutevel governo sobre a
Siciacutelia O conde Rogeacuterio I se casou trecircs vezes mas foi com sua terceira esposa Adelaide
352 Idem p 17 353 CHIBNALL Marjorie The Normans Oxford Blackwell Publishing 2006 p 76
111
filha do marquecircs Manfredo de Savona do norte da Itaacutelia que ele teve seus herdeiros Simatildeo
e Rogeacuterio posteriormente Rogeacuterio II Sua morte em 1101 legou o condado da Siciacutelia para
seus filhos ainda menores Simatildeo era o sucessor imediato mas faleceu logo deixando
Rogeacuterio como uacutenico herdeiro Adelaide de Savona no periacuteodo de menoridade governou o
ducado Uma de suas accedilotildees foi levar a corte para Palermo na Siciacutelia que fora a sede do
domiacutenio muccedilulmano Em 1112 finalmente Rogeacuterio II assumiu o poder e no ano seguinte
Adelaide deixou a Siciacutelia para se casar com o rei Balduiacuteno de Jerusaleacutem354
52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia
A partir de 1121 Rogeacuterio II avanccedilou sobre a Calaacutebria agrave custa de seu primo o duque
William de Apuacutelia No ano seguinte jaacute era senhor de todo o territoacuterio calabrecircs e a partir de
1129 o sul italiano estava unificado sob um uacutenico poder mais uma vez coisa que natildeo
acontecia desde o imperador Justiniano no seacuteculo VI355 A extensatildeo do seu domiacutenio pela
Sicilia Calaacutebria Apuacutelia e outros territoacuterios que se estendiam quase ateacute Roma356 poderiam
justificar um status real mas a transiccedilatildeo para a monarquia teve como ponto de partida um
conflito dentro da Igreja de Roma
Em fevereiro de 1130 apoacutes a morte do papa Honoacuterio II um coleacutegio de cardeais
dividido provocou um cisma papal Anacleto II foi eleito papa e permaneceu em Roma
Inocecircncio II recebeu o tiacutetulo e deixou a cidade em busca de apoio357 Anacleto II recorreu ao
conde Rogeacuterio II da Siciacutelia com a disposiccedilatildeo de coroaacute-lo como rei em troca de proteccedilatildeo e
suporte financeiro Apoacutes a efetivaccedilatildeo do acordo nasceu o Reino da Siciacutelia atraveacutes da bula
papal de setembro de 1130 A coroaccedilatildeo se deu no natal deste mesmo ano na catedral de
Palermo358
Anacleto II morreu em 1138 e Inocecircncio II voltou para Roma como uacutenico papa Ele
declarou nulas todas as accedilotildees de Anacleto e ainda promoveu uma cruzada contra Rogeacuterio
354 MAYER Hans Eberhard The Latin east 1098-1205 In LUSCOMBE David (org) The New Cambridge
Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v V 4 p
644-674 p 648 355 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century In LUSCOMBE David (org) The New
Cambridge Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v
V 4 p 442-474 p 447 356 Conferir um mapa do Reino Normando da Siciacutelia no anexo 3 357 CHIBNALL op cit p 86 358 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 448
112
Aleacutem da inimizade papal a alianccedila entre um papa cismaacutetico e Rogeacuterio havia colocado o
Reino da Siciacutelia em conflito com as forccedilas do Impeacuterio Germacircnico e do Impeacuterio Bizantino
ambos se declarando senhores legiacutetimos da Itaacutelia meridional e rejeitando a prerrogativa
normanda
Mesmo assim a liga construiacuteda por Inocecircncio II para enfrentar o Reino da Siciacutelia natildeo
conseguiu impedir a estabilizaccedilatildeo e o desenvolvimento das estruturas monaacuterquicas359
Finalmente em julho de 1139 o proacuteprio papa foi capturado pelas forccedilas de Rogeacuterio II
forccedilando o reconhecimento da monarquia Rogeacuterio foi aclamado como Rei da Sicilia duque
da Apuacutelia e Priacutencipe de Caacutepua (Rex Siciliae ducatus Apuliae et principatus Capuae) Apoacutes
o fim de uma deacutecada de conflitos o rei Rogeacuterio finalmente conseguiu derrotar as grandes
frentes de oposiccedilatildeo ao Reino
Rogeacuterio II se casou trecircs vezes Com a primeira esposa Elvira filha de Alfonso VI de
Castela teve quatro filhos Rogeacuterio Anfusus Tancredo e William Casou-se ainda com
Sibilia filha do duque Hugo da Burgundia na Franccedila e por fim com Beatriz filha do conde
Rethel igualmente francesa360 Com esta uacuteltima ele teve uma filha que nasceu pouco depois
de sua morte Constacircncia posteriormente desposada por Henrique VI da Germacircnia
Quando Rogeacuterio II morreu em 1154 o sucessor escolhido William posteriormente
conhecido como William I ainda era uma crianccedila O reino precisou ser governado por
Beatriz durante o tempo de menoridade do novo rei Um periacuteodo de instabilidade poliacutetica se
manifestou principalmente na parte continental do reino e se estendeu por todo o tempo de
governo (1154-1166)361
Siciacutelia continuava debaixo da hostilidade do Imperador Germacircnico e do Impeacuterio
Bizantino A cuacuteria papal ainda era hostil com o argumento de que o reino fora reconhecido
por Inocecircncio II apenas sob coaccedilatildeo A nobreza das proviacutencias fronteiriccedilas como o
principado de Caacutepua e as bordas de Abruzzi entraram em revolta As cidades de Apuacutelia
igualmente saiacuteram do controle real e reivindicaram autonomia Mas novamente os
adversaacuterios do reino natildeo se juntaram e perseguiram propoacutesitos distintos O imperador
Frederico Barbarroxa precisou rapidamente se concentrar na luta contra as comunas do norte
da Itaacutelia o que deixou o reino circunstancialmente fora de suas investidas O papa Adriano
IV finalmente fechou um acordo com o rei William I em Benevento em 1156 que
359 Idem 360 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily
Mediterranean Studies State College Pennsylvania v 12 p 1-15 2003 p 12 361 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 454
113
restaurou as boas relaccedilotildees entre o Reino da Siciacutelia e o papado A ameaccedila de Bizacircncio por
sua vez conseguiu ser parcialmente neutralizada com um tratado em 1158
Mas se as ameaccedilas internacionais foram minimizadas principalmente por meio de
acordos a situaccedilatildeo interna do Reino ainda era conflituosa As agitaccedilotildees internas
acompanharam William I praticamente ateacute o fim do seu governo Ele morreu em 1166
deixando o reino para o filho igualmente chamado William ainda menor O reino foi
governado pela matildee do jovem sucessor a rainha Margarete filha do rei Garcia de Navarra
na Espanha ateacute 1171 quando William II atingiu a maioridade
William II como o pai viveu a maior parte de sua vida em seu palaacutecio em Palermo
governando por meio do coleacutegio familiares362 Ele conseguiu pacificar internamente o reino
inclusive trazendo de volta opositores que tinham sido exilados no governo anterior
Externamente os antigos adversaacuterios foram pacificados por meio de tratados O rei renovou
o tratado com o papado e com o Impeacuterio Bizantino Soacute faltava mesmo vencer a resistecircncia
do Impeacuterio Germacircnico o que foi alcanccedilado com o Tratado de Veneza de 1177 que
assegurou a treacutegua em troca do casamento da tia de William II Constacircncia com Henrique
VI filho de Frederico Barbarroxa O casamento aconteceu em Milatildeo em janeiro de 1186
Com esse acordo o Impeacuterio Germacircnico finalmente reconheceu a legitimidade do Reino da
Siciacutelia O preccedilo a ser pago foi a designaccedilatildeo de Constacircncia como herdeira da coroa real caso
William morresse sem herdeiros Quando o acordo foi feito a idade do rei e da rainha Joana
filha do rei Henrique II da Inglaterra era um fator de confianccedila na descendecircncia real A
maior probabilidade era que o casal viesse a ter um herdeiro o que automaticamente
invalidaria o direito de Constacircncia363 Mas este acordo com a Germacircnia colocou um fim na
dinastia Hauteville na Itaacutelia meridional jaacute que William II morreu bruscamente no dia 11 de
novembro de 1189 sem deixar herdeiros
53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen
A morte de William II foi seguida por uma divisatildeo dentro do reino Um grupo de
oficiais proeminentes da corte liderados por um membro do coleacutegio familiares Mateus de
Salerno levantou um candidato proacuteprio o conde Trancredo de Lecce primo de William II
362 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p
10-11 363 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 472
114
rejeitando os direitos de Constacircncia e Henrique Tancredo foi coroado rei em 18 de janeiro
de 1190 com o apoio do papado que natildeo desejava a uniatildeo do Reino da Siciacutelia com o Impeacuterio
Germacircnico364
Henrique ateacute tentou destituir Tancredo mas acabou retornando para a Germacircnia apoacutes
o cerco a Naacutepolis jaacute mencionado na abertura deste capiacutetulo Com isso Tancredo conseguiu
governar o Reino da Siciacutelia com o apoio da Igreja de Roma ateacute morrer em fevereiro de
1194 O filho de Tancredo William III foi declarado rei mas era apenas uma crianccedila
Henrique VI novamente reivindicou o direito sobre a coroa da Siciacutelia Desta vez suas
investidas foram mais eficientes Palermo caiu em novembro de 1194 e Henrique foi
coroado rei da Siciacutelia no dia 25 de dezembro na catedral da cidade
Mesmo que Constacircncia fosse uma herdeira normanda legiacutetima filha do fundador do
Reino Rogeacuterio II o rei agora era um monarca estrangeiro de linhagem germacircnica Frederico
II filho de Constacircncia e Henrique apoacutes a morte dos pais e um longo periacuteodo de menoridade
sob a tutela do papa Inocecircncio III implementaraacute um novo governo forte e centralizado365
Todavia mesmo carregando o sangue Hauteville por parte da matildee tambeacutem era herdeiro dos
Hohenstaufen por parte do pai Ele precisou se dividir em ser rei na Itaacutelia e Imperador na
Germacircnia
54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada
Em 1140 o filho mais velho do rei Rogeacuterio II e Elvira de Castela o duque Rogeacuterio
de Apuacutelia foi ateacute a regiatildeo central da Siciacutelia Ele precisava averiguar o patrimocircnio da coroa
que estava em uso irregular de um monasteacuterio grego O monasteacuterio em questatildeo era Satildeo
Cosme de Gonato que tinha se apossado de terras de cultivo algumas vinhas e um moinho
real O duque Rogeacuterio durante a investigaccedilatildeo interrogou o abade local Metoacutedio que alegou
ter recebido o patrimocircnio em possessatildeo durante a gestatildeo do governador Caid Maimunes366
Apoacutes a investigaccedilatildeo o duque Rogeacuterio emitiu um documento para o monasteacuterio em
1142 que comeccedilava com as seguintes palavras
364 Idem 365 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south op cit p 70 366 Conferir a anaacutelise deste evento bem como uma reproduccedilatildeo do documento em grego e espanhol em
ANDREacuteS Gregoacuterio de Um diploma griego del Duque Normando Roger Priacutencipe de Sicilia (A 1142)
Erytheia Revista de estuacutedios bizantinos y neogriegos Madri v 1 n 6 p 61-68 1985
115
Diploma dado por mim Rogeacuterio ilustriacutessimo Duque e filho do piedoso e
grande rei dirigido a ti Metoacutedio abade do monasteacuterio de Satildeo Cosme
chamado o Gonato situado nos montes de Petraacutelia no mecircs de abril dia 6
quinta-feira Depois que entrei em completo domiacutenio e governo da regiatildeo
de Petraacutelia que o poderosiacutessimo rei e meu pai me entregou chegou a meus
ouvidos que muitas e diversas pessoas tecircm se apossado de campos
cultivados e vinhas de domiacutenio real como se fossem proacuteprios367
Rogeacuterio argumentou que as posses eram da coroa e natildeo do governador e neste caso
a doaccedilatildeo fora irregular No decorrer do diploma Rogeacuterio reinvindicou a propriedade real
sobre o moinho mas ciente de que o monasteacuterio precisava dele prometeu um dote de trigo
anual procedente de terras reais com a ldquocondiccedilatildeo de que se rogue pela salvaccedilatildeo espiritual
do pai Rogeacuterio II e a matildee Elvira pela sua proacutepria e pela paz do mundordquo368 Quanto agraves terras
e vinhas Rogeacuterio tanto declarou-as como propriedade da Coroa como devolveu-as como
dote real definitivo para o monasteacuterio ldquoenquanto o mundo natildeo acabarrdquo369
Este evento bem como o diploma do conde Rogeacuterio apresentam um elemento
significativo do Reino da Siciacutelia no periacuteodo dos Hauteville elemento que apesar de se
alterar com o passar do tempo esteve presente ateacute o fim do seacuteculo XII a diversidade cultural
e religiosa bem como as interaccedilotildees franqueadas entre estas diversas culturas Trecircs grupos
sociais aparecem no diploma O normando representado pelo duque Rogeacuterio filho do rei
Rogeacuterio II o grego representado pelo abade Metoacutedio e seu monasteacuterio o aacuterabe
representado pelo Caid Maimunes administrador da regiatildeo de Petraacutelia370 O termo caid
era um vocaacutebulo de dignidade entre os sarracenos mas foi usado frequentemente no Reino
da Siciacutelia para descrever um muccedilulmano que se convertia ao cristianismo e atuava em algum
espaccedilo do governo geralmente na administraccedilatildeo financeira como coletor de impostos ou
tesoureiro
O monasteacuterio grego de Satildeo Cosme de Gonato na Petraacutelia evidencia a presenccedila de
diversas casas gregas espalhadas pelo reino isentas da jurisdiccedilatildeo episcopal latina que
viviam um tipo de monasticismo oriental basiliano Vaacuterios deles podem ter se instalado na
Itaacutelia meridional durante a perseguiccedilatildeo dos imperadores iconoclastas e sobreviveram na
Siciacutelia mesmo durante o domiacutenio muccedilulmano371
367 Idem p 66 368 Idem p 67-68 369 Idem p 68 370 Idem p 63 371 BUONAIUTI Ernesto Storia del Cristianesimo II - Evo Medio Milano DallOglio 1960 p 365
116
Em termos literaacuterios o diploma do duque Rogeacuterio de Apuacutelia foi escrito em grego
tendo em vista que o abade e seus monges eram gregos Possivelmente o duque Rogeacuterio I
instaurador da dinastia Hauteville na Siciacutelia tinha dificuldades com a liacutengua grega ou aacuterabe
e precisou da ajuda de autoacutectones para se comunicar com a populaccedilatildeo dominada Mas seu
filho Rogeacuterio II criado na Calaacutebria primeira sede do ducado natildeo apresentava a mesma
dificuldade Ele conhecia as liacutenguas grega e aacuterabe e marcou a corte do Reino da Siciacutelia com
elementos dessas culturas Quase todas as suas assinaturas sobreviventes foram escritas em
grego Selos reais continham a seguinte legenda grega ldquoRogerioj Krataioj Eusebhj Rhxrdquo
(ldquoRogeacuterio forte e poderoso reirdquo) Posteriormente ele acrescentou uma inscriccedilatildeo latina
ldquoRogerius Dei Gracia Sicilie Calabrie Apulie Rexrdquo (ldquoRogeacuterio pela graccedila de Deus rei da
Siciacutelia Calabria e Apuliardquo)372 Segundo Takayama tanto Rogeacuterio II quanto seus
descendentes William I e William II tiveram interesse em aprender artes e reuniram saacutebios
astroacutelogos filoacutesofos e geoacutegrafos de origem grega e aacuterabe no palaacutecio real de Palermo373 Este
historiador japonecircs avalia que ldquoos reis normandos da Siciacutelia com o suporte destes burocratas
gregos e aacuterabes eram reis cristatildeos mergulhados ateacute os joelhos nas culturas islacircmica e
gregardquo374
Em termos administrativos a Calaacutebria antes bizantina manteve muito de sua
estrutura administrativa sob o domiacutenio Hauteville O mesmo se deu na Siciacutelia com os
elementos estruturais criados pelos muccedilulmanos Em ambas as regiotildees oficiais indiacutegenas
locais continuaram sendo aproveitados pelos reis normandos na administraccedilatildeo do reino375
Apoacutes a unificaccedilatildeo em 1130 como parte da organizaccedilatildeo da coroa novas leis foram
criadas No prefaacutecio das Leis de Ariano de 1140 por exemplo a questatildeo das interaccedilotildees
culturais chama a atenccedilatildeo ao assinalar que ldquodiferentes povos sob o governo poderiam
manter seus proacuteprios costumes e leis desde que natildeo se colocassem em direto confronto com
as novas leis do Reinordquo376 Especialmente durante o governo de Rogeacuterio II os muccedilulmanos
poderiam guardar a lei coracircnica entre eles e os gregos o direito justiniano377
372 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p
5 373 Idem p 6 374 Idem p 15 375 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 460 376 Idem p 461 cf tambeacutem DRELL Joanna H Cultural syncretism and ethnic identity The Norman
lsquoconquestrsquo of Southern Italy and Sicily Journal of Medieval History Amsterdam v 25 n 3 p 187-202 1999
p 201 377 SZAacuteSDI LEON-BORJA Istvaacuten CORREIA DE LACERDA Vitaline Alfonso Henriques y Roger II de
Sicilia dos vidas paralelas de condes a reyes Una clave para la comprensioacuten del nascimento del Reino de
Portugal Estudios de Historia de Espantildea Buenos Aires v 13 p 55-72 2011 p 64 Hubert Houben
117
Isso significava a autorizaccedilatildeo para que os nativos italianos ainda chamados de
lombardos bem como gregos e muccedilulmanos permanecessem sob o poder de costumes
proacuteprios administrados por seus juiacutezes especialmente nas cidades ou por aristocratas que
possuiacuteam autoridade judicial em suas proacuteprias terras A justiccedila real se encarregaria
particularmente da ordem puacuteblica e das disputas de propriedade funcionando mais como
uma corte de apelaccedilatildeo378 Aleacutem disso especialmente na ilha da Siciacutelia sede do governo as
leis e decretos reais eram publicados em grego latim e aacuterabe379
Mesmo com as mudanccedilas demograacuteficas provocadas pelas migraccedilotildees latinas
favorecidas com a presenccedila do domiacutenio normando o Reino da Siciacutelia chegou ao final do
seacuteculo XII como uma entidade unificada politicamente mas pluralizada etnicamente380
fenocircmeno que Marjorie Chibnall definiu como ldquomulti-culturalrdquo381
No caso dos gregos havia uma presenccedila substancial desta populaccedilatildeo na ilha da
Siciacutelia e na Calaacutebria principalmente na parte sul desta proviacutencia Eles se concentravam tanto
nas cidades quanto nos campos onde construiacuteam suas igrejas com ritos e liturgia orientais382
Com a chegada dos Hauteville natildeo havia mais qualquer impedimento para que essa
populaccedilatildeo buscasse fazer novos membros atraveacutes do proselitismo O mesmo natildeo poderia
mais se dar por parte dos muccedilulmanos Isso fazia com que conversotildees de muccedilulmanos para
o cristianismo grego se tornassem um fenocircmeno relativamente frequente Jaacute a conversatildeo
muccedilulmana para o cristianismo latino era mais rara383
Em relaccedilatildeo ao elemento muccedilulmano Rogeacuterio I jaacute havia prometido no momento da
conquista natildeo promover accedilotildees agressivas contra essa parte da populaccedilatildeo da Siciacutelia As
maiores mesquitas foram confiscadas mas os muccedilulmanos receberam a garantia de que
poderiam praticar sua religiatildeo em troca do pagamento de uma taxa a gesia384 Nesta fase
entretanto problematiza esta questatildeo argumentando que ldquoa liberdade religiosa eram somente garantida onde
a maioria dos habitantes era muccedilulmana como era o caso de Palermo onde havia a necessidade de contiacutenua
cooperaccedilatildeordquo Cf HOUBEN Hubert Religious toleration in the South Italian Peninsula during the Norman and
Staufen Periods In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002 p
319-339 p 322 378 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 461 379 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 64 380 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 471 381 CHIBNALL op cit p 88 382 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in
Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 22 383 ABULAFIA David The Italian other Greeks Muslims and Jews In ABULAFIA David (org) Italy in
the Central Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 215-236 p 220 384 Idem p 223
118
da conquista o objetivo de Rogeacuterio era pragmaacutetico Ele precisava da populaccedilatildeo muccedilulmana
para dar estabilidade agrave ilha
Com o passar do tempo entretanto a populaccedilatildeo muccedilulmana declinou
substancialmente ateacute que durante o governo de Frederico II (rei de 1198-1250) natildeo
restassem mais do que 40 mil muccedilulmanos que acabaram sendo deportados para o
continente formando uma colocircnia em Lucera A causa mais imediata desse decliacutenio foi o
fluxo migratoacuterio de cristatildeos latinos para a ilha principalmente oriundos do norte da Itaacutelia
Mas outros fatores podem ser mencionados como a saiacuteda de muccedilulmanos para outros
espaccedilos de domiacutenio muccedilulmano como o norte da Aacutefrica a conversatildeo de muccedilulmanos para
o cristianismo mesmo que sob a forma de pseudo-conversatildeo e a escravizaccedilatildeo Os poucos
muccedilulmanos que ainda sobreviveram na Siciacutelia no seacuteculo XIII em sua maioria eram
escravos ou comerciantes
55 A Igreja no Reino da Siciacutelia
Formalmente o reino da Siciacutelia era um feudo papal da mesma forma que o ducado
de Apuacutelia e o principado de Caacutepua tinham sido a partir de 1059 Em 1130 o tiacutetulo real foi
dado pelo papa Anacleto II durante o cisma em 1139 Rogeacuterio II fez homenagem ao papa
Inocecircncio II em 1156 William I repetiu o gesto do pai diante de Adriano IV Ambos os reis
concordaram em pagar um census anual ao papado como recompensa pelo feudo385 Essa
relaccedilatildeo feudal entretanto precisa ser problematizada Os Hauteville jaacute eram governantes
antes de receberem o reconhecimento papal O domiacutenio natildeo foi criado pela homenagem
papal Eacute neste sentido que se daacute a sugestatildeo de Istvaacuten Szaacuteszdi Leoacuten-Borja e Vitaline Correia
de Lacerda de que este relacionamento feudal era parte de uma estrateacutegia dos liacutederes
normandos para obter o reconhecimento da Cristandade quanto a seus domiacutenios386 No caso
da igreja de Roma poderia ser uma estrateacutegia para aumentar a autoridade papal dentro do
reino o que natildeo aconteceu necessariamente apoacutes a fundaccedilatildeo do Reino da Siciacutelia em funccedilatildeo
do cisma papal A relaccedilatildeo entre a coroa e o papado foi difiacutecil principalmente entre 1139 e
1156 A reorganizaccedilatildeo episcopal feita na Siciacutelia a pedido do papa cismaacutetico Anacleto II
entre 1130-1131 especialmente era inaceitaacutevel para a cuacuteria papal
385 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 465 386 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 55
119
Aleacutem disso a forma como o duque e posteriormente rei Rogeacuterio II exercia o
controle sobre a Igreja dentro do seu territoacuterio era considerado uma infraccedilatildeo agrave autonomia da
igreja387 Suas accedilotildees tinham como fundamento um antigo acordo realizado por Rogeacuterio I e
o papa Urbano II para a organizaccedilatildeo da Igreja da Siciacutelia Em um dos elementos do acordo
o papa se comprometia a natildeo eleger o legado papal para a ilha sem a aquiescecircncia de Rogeacuterio
e na ausecircncia do legado o proacuteprio conde exerceria este papel388 Rogeacuterio II entendeu que
este benefiacutecio pouco usual para um leigo era hereditaacuterio e passou a agir como legado papal
na Siciacutelia389
Finalmente o Tratado de Benevento em junho de 1156 entre o papa Adriano IV e
William I marcou o fim do periacuteodo de hostilidade Graham Loud destaca trecircs aspectos do
tratado como significativos para as relaccedilotildees entre a coroa e o papado Primeiramente
Adriano IV recebeu a homenagem do rei normando e investiu-o no seu reino Com isso a
natureza hereditaacuteria do tiacutetulo real estava confirmada Em segundo lugar as fronteiras ateacute
entatildeo em disputa foram confirmadas comeccedilando em Abruzzi no norte e terminando na
ilha da Siciacutelia Terceiro os direitos reais sobre a Igreja do reino foram definidos Bispos e
abadias faziam suas proacuteprias eleiccedilotildees devendo o rei apenas aceitar ou vetar a escolha O
privileacutegio ainda dado por Urbano II a Rogeacuterio I foi confirmado mas exclusivamente para a
ilha da Siciacutelia no sentido de que os legados papais precisariam ser confirmados pelo rei e
na ausecircncia deles o proacuteprio rei exerceria este papel390
Com a chegada dos normandos a relaccedilatildeo entre igreja latina e grega sofreu o impacto
das mudanccedilas poliacuteticas391 Em 1059 Roberto Guiscard estabeleceu com o Papa Nicolau II o
compromisso de transferir para a jurisdiccedilatildeo papal todas as igrejas de seus domiacutenios Ele fez
juramento similar diante do papa Gregoacuterio VII em 1080 Em outros instantes entretanto o
liacuteder normando poderia dar um arcebispado ou um monasteacuterio importante sob seu domiacutenio
para um cleacuterigo de sua terra natal da Normandia ou Franccedila Contudo natildeo havia por parte
dos governantes algum movimento expliacutecito de latinizaccedilatildeo das igrejas gregas392 Isso porque
387 Idem p 465 388 Idem p 61 389 SKINNER Patricia Roger I (1031-1101 r 1085-1101) In EMMERSON Richard K (org) Key figures
in medieval Europe an encyclopedia New York Routledge 2006 p 575-576 p 574 390 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 164-165 391 HERDE Peter The Papacy and the Greek Church in the Sourthern Italy between the eleventh and the
thirteenth century In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002
p 213-251 p 216 392 Para James Morton a hipoacutetese de uma poliacutetica expliacutecita de latinizaccedilatildeo por parte dos normandos ou do
papado eacute fruto de uma perspectiva ldquofrancocecircntricardquo da histoacuteria medieval Cf MORTON op cit p 8
120
uma igreja grega poderia sobreviver debaixo da jurisdiccedilatildeo de um bispo latino desde que se
fizesse juramento de fidelidade ao bispo de Roma393 Bispos e cleacuterigos gregos poderiam
manter seus ofiacutecios e seus ritos bastando declarar ou admitir a prerrogativa papal de
primazia e o direito de investidura dos papas sobres os bispos da Itaacutelia394
Divergecircncias menores entre as duas igrejas poderiam aparecer no campo da
linguagem do rito e dos costumes Enquanto na Igreja Latina a liacutengua lituacutergica era o latim
na Igreja Grega a liacutengua era o grego395 Os ritos poderiam variar principalmente a Eucaristia
por causa da divergecircncia sobre o patildeo apropriado para a celebraccedilatildeo ou a mistura de aacutegua no
vinho No campo dos costumes debates poderiam aparecer a respeito das vestimentas dos
cleacuterigos e ateacute mesmo sobre a presenccedila ou ausecircncia de barba nos sacerdotes
A divergecircncia significativa entretanto estava no espaccedilo do dogma com a questatildeo
da claacuteusula filioque Do periacuteodo caroliacutengio para frente a Igreja latina passou a professar que
o Espiacuterito procedia do Pai e do Filho uma alteraccedilatildeo do antigo credo que os gregos nunca
aceitaram396
A questatildeo do celibato dos cleacuterigos era outro significativo elemento de distinccedilatildeo entre
igreja grega e latina Enquanto a Igreja Latina proibia bispos e sacerdotes de se casarem na
Igreja Grega eles poderiam continuar casados397 Na Itaacutelia meridional onde cleacuterigos gregos
e latinos viviam lado a lado era difiacutecil impor a observacircncia do celibato sobre todos os latinos
No iniacutecio do seacuteculo XIII Inocecircncio III demandou que bispos gregos da Itaacutelia
meridional atuassem apenas onde a populaccedilatildeo fosse exclusivamente grega e desde que estes
bispos gregos se submetessem ao papado Em dioceses onde a populaccedilatildeo contivesse a
presenccedila de gregos e latinos o bispo deveria ser latino Com o pontificado deste papa natural
de Anagni os ritos gregos passaram a ser limitados398 O resultado foi o desaparecimento da
Igreja Grega na Itaacutelia meridional convertida em latina com algumas poucas exceccedilotildees como
o monasteacuterio de Theotokos de Patiron em Rossano que permaneceu grego quanto agrave
linguagem e rito ateacute meados do seacuteculo XIX399
393 HERDE op cit p 217 394 Idem p 222 395 Idem p 224 396 Idem p 234 397 Idem p 237 398 Idem p 243 399 MORTON op cit p 6
121
56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda
A Itaacutelia meridional nos seacuteculos XI e XII contava com a presenccedila tanto do
monasticismo ocidental quanto do oriental O oriental especificamente era encontrado sob
algumas formas baacutesicas koinobion comunidades monaacutesticas vivendo segundo uma regra
em comum normalmente uacutenica para aquele monasteacuterio a lavra uma comunidade de
monges que viviam perto uns dos outros e compartilhavam serviccedilos lituacutergicos a kella que
era uma rejeiccedilatildeo da comunidade usualmente natildeo tendo mais do que um monge e seus poucos
disciacutepulos vivendo em uma caverna ou casa desabitada400
Segundo Morton em periacuteodos de crise econocircmica e social predominava o tipo anti-
comunitaacuterio Em periacuteodos de estabilidade poliacutetica e social predominavam as comunidades
melhor organizadas do tipo cenoacutebio401 O periacuteodo anterior agrave chegada dos normandos na Itaacutelia
Meridional foi marcado por instabilidade consequentemente com predomiacutenio do
monasticismo anti-comunitaacuterio com foco em ascetas individuais e itinerantes Estas
fundaccedilotildees monaacutesticas eram efecircmeras e sumiam assim que o fundador morria Os disciacutepulos
se juntavam em torno de uma pessoa e natildeo em torno de uma instituiccedilatildeo As comunidades
poderiam ter alguma propriedade mas eram relativamente independentes
As comunidades sentiam o impacto das invasotildees no sul da Itaacutelia que se sucederam a
partir da chegada dos lombardos no seacuteculo VI Lombardos sarracenos e bizantinos
disputaram a regiatildeo durante os seacuteculos anteriores agrave chegada dos normandos promovendo
instabilidade para as casas monaacutesticas O monasteacuterio de Monte Cassino pode ser um
exemplo neste caso A casa foi fundada na primeira metade do seacuteculo VI mas abandonada
em 581 durante as invasotildees lombardas Em 718 foi novamente povoada ateacute que em 883 foi
capturada pelos sarracenos Seus monges fugiram para a Campanha e parecem ter retornado
apenas algumas deacutecadas depois O periacuteodo das invasotildees era marcado por saques e violecircncias
contras as casas estabelecidas Em funccedilatildeo disso predominava no Sul o monasticismo
itinerante em torno de ascetas carismaacuteticos Quando a situaccedilatildeo poliacutetica ganhava alguma
estabilidade os novos poderes lombardos ou bizantinos imprimiam nas casas o caraacuteter
descentralizado da regiatildeo Os priacutencipes ou duques patrocinavam a reconstruccedilatildeo das casas
monaacutesticas mas sem organizaccedilatildeo ou centralizaccedilatildeo eclesiaacutestica Segundo Loud tanto o
400 Idem p 39 401 Idem p 40
122
papado quanto Bizacircncio tentaram controlar as casas e as igrejas do Sul com a criaccedilatildeo de
novos arcebispados gregos e latinos mas o resultado foi muito pequeno402
A maioria das fundaccedilotildees deste periacuteodo seguiam na teoria a Regra de Satildeo Bento
apesar das praacuteticas e costumes variarem consideravelmente Especialmente na Calaacutebria
havia uma grande presenccedila do monasticismo grego tanto na sua versatildeo cenobiacutetica quanto
na eremita
Apoacutes a consolidaccedilatildeo da conquista normanda os novos condes e duques logo se
tornaram tambeacutem patronos dos monasteacuterios gregos e latinos403 Em linhas gerais eles se
envolviam mais no patrociacutenio de casas monaacutesticas jaacute presentes na regiatildeo do que fundando
casas rivais Mesmo assim numerosas casas foram criadas pelos novos governantes Dos
cerca de 20 monasteacuterios gregos surgidos durante o governo do conde Rogeacuterio I ele esteve
pessoalmente envolvido em 14 deles404
Ateacute cerca de 1150 os maiores monasteacuterios do sul da Itaacutelia eram todos de rito
beneditino Monte Cassino Cava Venosa Lipari e Catania405 Segundo Loud ldquoa conquista
normanda sem duacutevida beneficiou o monasticismo beneditinordquo406 que ganhou a proteccedilatildeo dos
novos governantes expandiu suas congregaccedilotildees adquiriu novas propriedades e aumentou a
aacuterea geograacutefica de seus domiacutenios Montecassino liderou o processo de crescimento Durante
o periacuteodo de 1058-1105 este monasteacuterio recebeu 134 igrejas tanto por dote quanto pela
compra de igrejas subordinadas407 A forte criacutetica contra a igreja privada apesar de natildeo ter
eliminado completamente o fenocircmeno incentivou muitas transferecircncias de igrejas das matildeos
de leigos para instituiccedilotildees monaacutesticas
A conquista normanda poderia ter aberto o monasticismo meridional italiano para
influecircncias externas mas isso se deu de forma muito lenta Somente uma casa cluniesense
foi fundada na ilha da Siciacutelia durante o seacuteculo XII talvez sob o iacutempeto de Elvira a esposa
de Rogeacuterio II cujo pai Alfonso VI de Castela era um patrono do movimento de Cluny408
Outros novos movimentos religiosos tambeacutem natildeo tiveram impacto significativo no sul da
Itaacutelia antes do final do seacuteculo XII O conde Rogeacuterio I fundou uma casa Agostiniana em
402 LOUD G The Latin Church in the Norman Italy op cit p 35 403 MORTON op cit p 45 404 Idem p 50 405 Idem p 56 406 LOUD Graham H The Latin Church in the Norman Italy op cit p 430 Este historiador acrescenta ldquoas
pequenas casas independentes tendiam a ser absorvidas pelas congregaccedilotildees das grandes casas beneditinas e
novas fundaccedilotildees observavam a Regra de Satildeo Benedito desde o seu iniacuteciordquo Idem p 470 407 Idem p 434 408 Idem p 484
123
Bagnara sul da Calaacutebria em 1085 Posteriormente em 1090 convidou Bruno de Cologne
fundador da ordem Cartusiana para fundar uma comunidade na mesma regiatildeo em 1090
Comparado com o norte da Europa entretanto o nuacutemero destas casas sob o domiacutenio
normando era muito pequeno
Neste mesmo sentido se deu a chegada dos Cistercienses O primeiro monasteacuterio da
Ordem de Cister na regiatildeo foi Santa Maria Sambucina perto de Cosenza Calabria terra
natal de Joaquim de Fiore pouco antes de 1145409 Outro monasteacuterio cisterciense foi
estabelecido na Siciacutelia em Prizzi em 1155 mas como seu fundador esteve envolvido na
morte do primeiro ministro Maio de Bari isto tirou a possibilidade de que esta casa tivesse
progresso dentro do reino A proacutexima casa cisterciense fundada foi Santa Maria de Ferraria
na diocese de Teano principado de Caacutepua em 1171 como um priorado de Fossanova e se
tornou abadia de fato em 1184 Em 1188 o arcebispo Walter de Palermo converteu um
monasteacuterio grego na Calaacutebria que estava com dificuldades para recrutar novos membros
em uma casa da Ordem Em 1191 uma abadia cisterciense foi fundada em Palermo pelo
arcebispo Mateus mas esta ficou em dificuldades apoacutes a consagraccedilatildeo de Henrique VI jaacute
que foi organizada por algueacutem contraacuterio agrave chegada dos Hohenstaufen Com isso o imperador
entregou a casa agrave ordem dos Cavaleiros Teutocircnicos em 1197
Assim ainda em 1200 natildeo havia mais do que 13 abadias da ordem cisterciense no
reino da Siciacutelia em grande parte inseridas no movimento Cisterciense na uacuteltima deacutecada A
maioria destas fundaccedilotildees se deram por conversatildeo de casas jaacute estabelecidas jaacute que para
fundar uma casa nova era preciso o envio pela casa-matildee de pelo menos doze monges410 A
dificuldade que Joaquim teve para inserir o monasteacuterio de Corazzo na Ordem Cisterciense
parece indicar a forma lenta como a ordem se desenvolvia na Itaacutelia meridional dentro do
seacuteculo XII O monasteacuterio do qual ele fora abade entre 1177 e 1186 possivelmente jaacute seguia
os costumes de Cister antes mesmo de Joaquim ingressar na casa Enquanto abade ele fez
vaacuterios esforccedilos para concluir o processo de filiaccedilatildeo Para tanto era necessaacuterio que fosse
recebido por uma abadia que lhe servisse como casa-matildee Joaquim tentou essa filiaccedilatildeo com
duas abadias cistercienses e natildeo obteve sucesso Sambucina e Casamari A filiaccedilatildeo soacute se
completou quando a abadia de Fossanova uma das principais casas cistercienses do territoacuterio
papal recebeu Corazzo como casa-filha em 1188411
409 Idem p 486 410 Idem p 489 411 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx
124
A Ordem de Joaquim a Florense nasceu sob a inspiraccedilatildeo de Cister aprovada pelo
papa Celestino III em 1196 A Regra da nova ordem possivelmente era uma adaptaccedilatildeo
daquela que o abade jaacute seguia em Corazzo412 A Ordem Florense comeccedilou a se expandir
rapidamente depois de 1195 pelo menos ateacute o seacuteculo seguinte quando veio a estagnar413
Ela chegou a ter 60 casas mas 300 anos depois em 1505 a maioria dos membros se uniu
aos Cistercienses enquanto outros se juntaram aos Cartusianos ou Dominicanos414 De
qualquer forma seraacute no interior do movimento franciscano que Joaquim encontraraacute seus
principais seguidores
Ateacute o fim do periacuteodo normando o Reino da Siciacutelia manifestou um monasticismo
predominantemente beneditino com grandes casas dominando a regiatildeo continental Elas jaacute
existiam antes da chegada dos normandos poreacutem foram grandemente beneficiadas por eles
Elas conviviam ao lado de outros tipos de inspiraccedilatildeo ou movimentos religiosos como os
monasteacuterios gregos e os movimentos eremitas com seu ascetismo e desejo de reclusatildeo
Estes uacuteltimos em especial eram de curta duraccedilatildeo e logo eram inseridos nas tradiccedilotildees
beneditinas ou basilianas Apenas no final do seacuteculo XII as novas ordens religiosas
especialmente os cistercienses conseguiram ter um papel predominante na sociedade iacutetalo-
meridional
57 Resumo
Este capiacutetulo demonstrou o caraacuteter culturalmente plural do Reino da Siciacutelia espaccedilo
de convivecircncias trocas relacionamentos e conflitos entre normandos latinos gregos e
muccedilulmanos Esta sociedade viabilizou a manifestaccedilatildeo de praacuteticas sociais e religiosas de
uma forma rica com a presenccedila de igrejas gregas e latinas e monasticismos beneditinos e
basilianos frequentemente lado a lado O seacuteculo XII foi tambeacutem o periacuteodo em que a cuacuteria
romana expandiu seu controle sobre as igrejas e comunidades da Itaacutelia meridional a partir
de acordos com governantes normandos No fim do seacuteculo entretanto o poder sairia das
matildeos normandas para cair sob o controle da dinastia germacircnica Hohenstaufen Essa
412 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n
1 p 217-240 2004 p 219 413 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der
Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98 414 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5
125
conjuntura de instabilidade social provocada pela transiccedilatildeo poliacutetica acabaraacute transparecendo
no Expositio in Apocalypsim
VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA
DE JOAQUIM
Enquanto consomem textos leitores criam sentidos inventam significados Mas a
forma muacuteltipla como Joaquim fez isso produziu na historiografia curiosas avaliaccedilotildees O
historiador italiano Ernesto Buonaiuti descreveu a metodologia do abade de ldquoorgia
simboacutelicardquo415 A pesquisadora inglesa Marjorie Reeves resumiu sua obra como resultado de
uma ldquoimaginaccedilatildeo caleidoscoacutepicardquo em funccedilatildeo do enlace iacutentimo entre texto e imagem416 O
cardeal francecircs Henri de Lubac historiador da exegese medieval definiu seu pensamento
como ldquodesorbitadordquo pois gerava sem cessar siacutembolos e tipos que se entrelaccedilavam
cruzavam e harmonizavam entre si417 Este capiacutetulo descreveraacute as tais formas de leitura de
Joaquim e sua metodologia hermenecircutica em confronto com a tradiccedilatildeo exegeacutetica e com
padrotildees de leitura encontrados especialmente no chamado novo monaquismo418
61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo
Jean Leclercq estudioso francecircs da cultura monaacutestica419 sintetizou os usos da Biacuteblia
nas diversas esferas sociais e religiosas ocidentais entre Gregoacuterio Magno e o seacuteculo XII
sugerindo que era ela utilizada para auto-instruccedilatildeo e para o ensino puacuteblico manual para
catequeze livro base da adoraccedilatildeo puacuteblica e privada (gerando tanto a liturgia da comunidade
quando a piedade individual) fonte de material para a pregaccedilatildeo a arte e a iconografia
415 Citado por DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling
Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 47 416 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976 p
8 417 DE LUBAC La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 47 418 O termo ldquonovo monaquismordquo eacute aqui usado para fazer um contraponto ao monaquismo do tipo beneditino
(Monges Negros) Cf VAUCHEZ Andreacute A espiritualidade na Idade Meacutedia ocidental (seacuteculos VIII a XIII)
Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 p 86 LOGAN F Donald A history of the Church in the Middle
Ages London Routledge 2002 p 136-145 LAWRENCE C H El monacato medieval formas de vida
religiosa en Europa occidental durante la Edad Media Madrid Editorial Gredos 1989 p 234-239 419 Sua obra mais significativa neste campo eacute LECLERCQ Jean The love of learning and the desire for God
A study of monastic culture New York Fordham University Press 1961
127
Segundo Leclercq apesar destes usos amplos os principais inteacuterpretes das Escrituras cristatildes
eram encontrados no monasticismo420
Eacute certo que as casas monaacutesticas poderiam receber monges natildeo-letrados mas a
vivecircncia no seu interior requeria certo envolvimento com a cultura escrita Afinal eles
precisavam ler ou cantar na liturgia421 Aleacutem destas praacuteticas outras se somariam como o
manuseio a preservaccedilatildeo e a ilustraccedilatildeo de manuscritos Isso fazia do monasteacuterio um lugar
privilegiado para o desenvolvimento da leitura e interpretaccedilatildeo da Biacuteblia
Ainda segundo o estudioso francecircs no interior dos muros monaacutesticos os monges
imprimiam na praacutetica da leitura biacuteblica um traccedilo muito proacuteprio da clausura Sem grandes
controveacutersias teoloacutegicas quando comparado com os tempos patriacutesticos e com a
efervescecircncia intelectual da escolaacutestica apenas comeccedilando a tendecircncia geral era usar a
leitura biacuteblica como ferramenta da vida contemplativa422 O professor Reventlow
acompanhou Leclercq neste sentido generalizando que o objetivo dos leitores da Biacuteblia
nestes espaccedilos ateacute o seacuteculo XI seria meditar sobre o texto promover a adoraccedilatildeo e fomentar
a contemplaccedilatildeo423
Natildeo muito diferente do francecircs Leclercq e do alematildeo Reventlow o historiador
italiano Ambrogio Piazzoni tambeacutem entende a exegese monaacutestica como um modo particular
de interpretar a Escritura na Idade Meacutedia O professor da Universitagrave degli Studi della Tuscia
entretanto argumenta em prol de uma inflexatildeo significativa dos estudos biacuteblicos no final do
seacuteculo XI e durante o seacuteculo XII caracterizada por uma nova sensibilidade na leitura e no
uso dos textos424 Perspectiva semelhante levou de Lubac a intitular este revigoramento
biacuteblico de ldquouma nova primavera da exegeserdquo425 muito em funccedilatildeo dos representantes do
420 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard In LAMPE G W H (ed) The Cambridge
History of the Bible The West from the Fathers to the Reformation Cambridge Cambridge University Press
1969 p 183-197 p 184 421 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in
Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 3
Sobre este tema conferir uma antiga exortaccedilatildeo a este respeito presente na regra de Ferreol (553-581) bispo de
Uzegrave na Gaacutelia em PARKES Malcom La alta Edad Media In CAVALLO Guglielmo CHARTIER Roger
(eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 153-178 p 157 ldquoaquele que
deseja se chamar monge natildeo pode se permitir ficar na ignoracircncia das letrasrdquo (ldquoOmnis qui nomem vult monachi
vidicare litteras ei ignorare non liceatrdquo) 422 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard op cit p 184 423 REVENTLOW Henning Graf History of Biblical Interpretation From Late Antiquity to the End of the
Middle Ages Atlanta Society of Biblical Literature 2009 3 v V 2 p 172 424 PIAZZONI Ambrogio M Lesegesi neomonastica In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio
(eds) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 217-237 p 218 425 DE LUBAC Henri Medieval exegesis the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans
Publishing Company 2000 2 v V II p 151
128
chamado neomonasticismo destacadamente os cistercienses mas sem esquecer tambeacutem
alguns expoentes do ldquovelho monaquismordquo426
A praacutetica da leitura biacuteblica era um dos pilares da vida do monge Para um religioso
a Biacuteblia era nos termos de Piazzoni o livro de ldquocada dia todo o dia e muitas vezes ao
diardquo427 Ele percorria suas paacuteginas escutava sua leitura lia-a sozinho cantava-a com seus
irmatildeos na liturgia
A lectio428 monaacutestica poderia ser ilustrada pelo testemunho do cartusiano Guigo II
abade entre 1174 e 1180 da casa-matildee da Ordem dos Cartuxos em Saint-Pierre-de-
Chartreuse na Franccedila Segundo este abade o desenvolvimento espiritual comeccedila com a
lectio passa pela meditatio conduz agrave oratio e conclui com a contemplatio Eacute uma escala
ascendente429 Neste mesmo sentido registrava ainda um opuacutesculo anocircnimo destinado aos
novos monges ldquoQuando ler procure o sabor e natildeo o saberrdquo (ldquoSi ad legendum accedat non
quaerat scientiam sed saporemrdquo) E acrescentava ldquono momento da leitura poderaacute
contemplar e orarrdquo (ldquoin ipsa lectione poterit contemplari et orarerdquo)430 Desta forma a lectio
entrava na vida do monge como uma forma de oraccedilatildeo ou culto
Esta exegese monaacutestica se fundava sobre as bases de um relacionamento contiacutenuo
com o texto sagrado de uma memoacuteria impregnada das Escrituras Como resumiu ainda
Piazzoni era uma memoacuteria visual de palavras escritas muscular de palavras pronunciadas e
auditiva de palavras escutadas431 O aspecto visual nascia tanto das leituras quanto das
representaccedilotildees da Biacuteblia em imagens espalhadas por quadros esculturas e iacutecones nas
paredes nas colunas e nos tetos das construccedilotildees O aspecto muscular se desenvolvia por
causa da leitura em voz alta ao articular-se as palavras lidas com a boca432 A leitura era
murmurada mesmo se feita sozinha o que gerou a expressatildeo ruminatio433 Como
426 PIAZZONI op cit p 218 427 Idem p 219 428 Leitura e explicaccedilatildeo das Escrituras Cf BLAISE Albert Lexicon Latinitatis Medii Aevi Turnholti
Typografhi Brepols 1975 p 528 429 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 221 430 Idem p 222 431 Idem 432 Ao menos para a alta Idade Meacutedia cf PARKES op cit p 160 Segundo Hamesse essa praacutetica de leitura
sofreu uma profunda transformaccedilatildeo no seacuteculo XII em funccedilatildeo de novos padrotildees exercitados nas escolas ou
universidades Cf HAMESSE Jacqueline El modelo escolastico de la lectura In CAVALLO Guglielmo
CHARTIER Roger (eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 179-210
p 207 Entretanto o argumento de Hamesse natildeo impede a perspectiva de que estas ldquonovidadesrdquo natildeo alteraram
a ruminatio entre os monges 433 O termo ldquoruminatiordquo vem do verbo ldquoruminarerdquo que expressa a ideia de ruminaccedilatildeo girar na mente accedilatildeo
cotidiana Cf LEWIS Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p
1604 Albert Blaise entatildeo preferiu traduzir como ldquocantar sozinhordquo Cf BLAISE op cit p 806
129
consequecircncia tambeacutem da memoacuteria muscular desenvolvia-se a memoacuteria auditiva enquanto
ouvia a proacutepria voz ou em funccedilatildeo de outros processos em que o monge escutava a leitura
Biacuteblica implementados na liturgia na pregaccedilatildeo ou durante as refeiccedilotildees
A praacutetica de ruminar a Biacuteblia de ldquomastigaacute-lardquo todo o dia e o dia todo criava o
fenocircmeno da reminiscecircncia Assim para explicar uma passagem da Biacuteblia o monge fazia
uso de outra passagem que em sua mente se associava remanejando suas frases e
construindo novos textos Neste sentido Piazzoni argumenta que certo desprendimento em
relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo eacute um significativo traccedilo da exegese monaacutestica e neomonaacutestica do seacuteculo
XII Guilherme (1085- 1148) abade de Sant-Thierry escreveu ldquoA escritura deve ser lida no
espiacuterito em que foi gerada Neste espiacuterito deve ser compreendidardquo434 Segundo ele o mesmo
Espiacuterito que inspirou os textos estaria com aqueles que entatildeo os interpretavam
Ruperto (1075-1130) abade na cidade germacircnica de Deutz representante do
monasticismo beneditino insistia que a interpretaccedilatildeo da Biacuteblia depende de uma
compreensatildeo especial que eacute dom do Espiacuterito Santo dom esse similar agravequele que ele deu aos
apoacutestolos para que pudessem compreender o Antigo Testamento Quem recebe tal dom de
interpretaccedilatildeo tem o dever de expor o que percebe na Biacuteblia Ele afirmou assim a existecircncia
de um ldquodom da exegeserdquo nos moldes dos antigos dons do apostolado e profecia435 o que
promovia a autonomia do inteacuterprete em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde
Neste sentido tambeacutem o cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153) que insistia
que tudo na Biacuteblia tinha um sentido para o leitor e nenhum detalhe dos textos biacuteblicos
poderia ser negligenciado Como os textos tinham vaacuterios sentidos Deus o mestre das
Escrituras ajudaria os leitores a compreender da mesma forma como ajudou os autores a
escrever O resultado desta leitura sagrada eacute entatildeo um cacircntico de amor (carmen spiritus) um
ato lituacutergico Cada leitor da Biacuteblia poderia ser inspirado quase como os proacuteprios autores
originais o que justificaria a diversidade de interpretaccedilatildeo dos textos sagrados436
A exegese praticada por representantes tanto do antigo monasticismo quanto das
novas casas monaacutesticas ocidentais no seacuteculo XII conhecia os sentidos tradicionais praticados
desde Oriacutegenes (185-254) histoacuterico alegoacuterico tropoloacutegico e anagoacutegico437 Este sistema de
alegorizaccedilatildeo foi desenvolvido de acordo com o qual quatro significados deveriam ser
434 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 223 435 Idem p 228 436 Idem p 229 437 Uma anaacutelise diacrocircnica dos quatro sentidos pode ser encontrada em DE LUBAC Henri Medieval exegesis
the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2000 2 v V I p 15-
267
130
procurados em cada texto biacuteblico O nuacutemero de sentidos variava entre os autores Alguns
trabalhavam com dois sentidos outros com ateacute sete Mas o nuacutemero mais frequentemente
usado era quatro438 Um pequeno diacutestico presente na obra Rotulus pugillaris do dominicano
Agostinho de Dacia em 1260 ilustra os quatro sentidos ldquoA letra nos mostra os eventos a
alegoria nos mostra a feacute o significado moral nos ensina a agir a anagogia nos indica para
onde vamosrdquo439
Os monges dos tempos reformistas em funccedilatildeo do anseio pela contemplaccedilatildeo tinham
o sentido tropoloacutegicomoral como alvo maior A letra deveria ser superada em prol de um
sentido mais elevado de compreensatildeo das Escrituras O resultado eacute uma leitura biacuteblica
interiorizante ldquoespiritualrdquo que prosperava dentro do monasteacuterio Do lado de fora dos seus
muros entretanto outro padratildeo de hermenecircutica comeccedilava a se fortalecer em que se
buscava natildeo mais a meditatio mas a disputatio Esta forma extra claustrum de interpretaccedilatildeo
biacuteblica feita por pessoas ldquoque por meios escolaacutesticos se enchem de conhecimentordquo (ldquoqui
scholastica inflantur scientiardquo)440 aborrecia alguns monges entre eles o autor do Expositio
in Apocalypsim
62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo
No iniacutecio do Expositio Joaquim resumiu sua maneira de relacionar Biacuteblia e histoacuteria
O primeiro dos trecircs status dos quais noacutes falamos era no tempo da Lei
quando o povo do Senhor serviu como uma crianccedila pequena por um tempo
debaixo dos elementos (rudimentos) do mundo Eles natildeo estavam
habilitados ainda a alcanccedilar a liberdade do Espiacuterito ateacute que venha de quem
se disse ldquoSe o Filho libertar vocecircs vocecircs verdadeiramente seratildeo livresrdquo
(Joatildeo 866) O segundo status estava sob o Evangelho e permaneceu ateacute o
presente com liberdade em comparaccedilatildeo com o passado mas natildeo com
liberdade em comparaccedilatildeo com o futuro Porque o Apoacutestolo disse ldquoAgora
noacutes conhecemos em parte e profetizamos em parte o que eacute perfeito tiver
vindo o que eacute em parte passaraacuterdquo (1Coriacutentios 1312) E em outro lugar
ldquoOnde o Espiacuterito do Senhor estaacute aqui haacute liberdaderdquo (2Coriacutentios 317) Por
conseguinte o terceiro status viraacute ao se aproximar o fim do mundo natildeo
distante sob o veacuteu da carta mas na plenitude do Espiacuterito quando apoacutes a
destruiccedilatildeo e cancelamento do falso evangelho do Filho da Perdiccedilatildeo e seus
profetas aqueles que ensinaratildeo a muitos sobre justiccedila seratildeo como o
438 TRACY Robert TRACY David A short history of the interpretation of the Bible Minneapolis Fortress
Press 1984 p 136-145 439 ldquoLittera gesta docet quid credas allegoria Moralis quid agas quo tendas anagogiardquo Citado a partir de
DE LUBAC Henri Medieval exegesishellip v I op cit 1 440 Expressatildeo de Joaquim de Fiore no Tractatus Super Quatuor Evangelia citado a partir de DE LUBAC La
posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 16
131
esplendor do firmamento e como as estrelas para sempre (Expositio in
Apocalypsim 5r-v)441
Nesta mesma passagem algumas linhas agrave frente o abade faz referecircncia a uma certa
forma de ler e interpretar a Biacuteblia ldquoA carta do Primeiro Testamento parece por certa
propriedade de semelhanccedila pertencer ao Pai A carta do Novo Testamento pertence ao Filho
Entatildeo a compreensatildeo espiritual que procede de ambos pertence ao Espiacuterito Santordquo Mas que
hermenecircutica ldquoespiritualrdquo eacute essa que Joaquim chamou de ldquonovo tipo de exposiccedilatildeordquo (ldquonovo
saltem generi exponendirdquo)442 Ela seria ldquonovardquo em que sentido
A insistecircncia do abade em chamar sua forma de exponere a Biacuteblia de ldquonovardquo indica
algum tipo de insatisfaccedilatildeo com as metodologias exegeacuteticas que ele encontrou nos espaccedilos
religiosos Isso pode ter relaccedilatildeo com sua ansiedade apocaliacuteptica Apoacutes uma peregrinaccedilatildeo agrave
Palestina ele possui a convicccedilatildeo de que a humanidade estaacute se aproximando de um estaacutegio
histoacuterico decisivo Ele deseja compreender estes sinais dos tempos e procura ler os textos
biacuteblicos agrave procura de uma explicaccedilatildeo religiosa Contudo as ferramentas exegeacuteticas
disponiacuteveis natildeo lhe satisfazem ou pelo menos lhe parecem ineficientes para interpretar os
textos sagrados e encontrar algum sentido para a conjuntura histoacuterica dos seus dias Seria
preciso entatildeo elaborar uma metodologia ldquonovardquo para interpretar a Biacuteblia e a histoacuteria443
Essa perspectiva de ldquonovidaderdquo em Joaquim tambeacutem teria relaccedilatildeo com sua
compreensatildeo da natureza da exegese Como Ruperto de Deutz jaacute anteriormente
mencionado o abade parece falar de um ldquodom da exegeserdquo uma capacitaccedilatildeo sobrenatural
necessaacuteria para apreender o que natildeo estaria disponiacutevel para a compreensatildeo de todos As
passagens da Biacuteblia natildeo conteriam apenas palavras e frases acessiacuteveis de imediato a qualquer
leitor mas igualmente misteacuterios (mysteria) e segredos (secreta) especialmente relacionados
com os propoacutesitos divinos quanto agrave histoacuteria humana
Para Joaquim o Apocalipse de Joatildeo narraria a histoacuteria de como Deus entregou um
livro para o Cordeiro fechado com sete selos (Apocalipse 51-14) Esta narrativa biacuteblica
indicaria que o sentido dos personagens e dos eventos da histoacuteria humana estatildeo encobertos
A revelaccedilatildeo se encontraria inteiramente nas matildeos do Cristo do Apocalipse Estava completa
441 Traduccedilatildeo a partir de MC GINN Bernard Visions of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages
New York Columbia University Press 1979 p 133-134 442 O verbo ldquoexponerordquo pode ser traduzido como ldquorevelaccedilatildeordquo ldquoexposiccedilatildeordquo ldquoproduccedilatildeordquo Cf BLAISE op cit
p 363 443 REVENTLOW op cit p 173 tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval a compreensatildeo
espiritual de Joaquim de Fiore Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 35 p 99-118 2012 p 101
132
mas escondida tornando-se disponiacutevel apenas com ajuda divina Sem este amparo os textos
biacuteblicos seriam hermeacuteticos pelo menos no que tange ao sentido ldquoespiritualrdquo jaacute que sentidos
inferiores ainda poderiam ser acessados pela razatildeo humana (como os escolaacutesticos ldquoinchados
de ciecircnciardquo que ele critica) Em outras palavras para o abade algumas coisas estatildeo
encobertas outras estatildeo escondidas algumas pessoas podem acessar as coisas encobertas
outras somente compreendem a superfiacutecie dos textos sagrados
Entre as coisas escondidas na Biacuteblia estatildeo os eventos e tribulaccedilotildees do final dos
tempos os falsos profetas os anticristos e a materializaccedilatildeo do reino divino na histoacuteria Deus
por meio de Cristo teria disponibilizado uma ldquocompreensatildeo espiritualrdquo a algumas pessoas
permitindo a elas adentrarem as profundezas das Escrituras e alcanccedilarem os segredos e
misteacuterios Joaquim faz assim uma distinccedilatildeo entre a capacidade de ler as Escrituras e a de
penetrar nos misteacuterios sagrados por meio de uma diferenciaccedilatildeo entre pessoas naturais (viri
animales) e pessoas espirituais (viri spirituales) Os misteacuterios da Escritura seriam
conhecidos apenas das pessoas espirituais jaacute que as naturais natildeo os podem perceber A
praacutetica da interpretaccedilatildeo biacuteblica ldquoespiritualrdquo consequentemente se daria pela obtenccedilatildeo da
ldquointeligecircnciardquo necessaacuteria por meio da iluminaccedilatildeo do Espirito Santo que permitiria aos assim
escolhidos (electi) duas coisas a capacidade de discernir a Biacuteblia e a habilidade de entender
o sentido da histoacuteria especialmente os ldquosinais dos temposrdquo444
Joaquim se apoiava em ideias paulinas como a oposiccedilatildeo entre compreensatildeo natural
e espiritual (1Coriacutentios 26-16) e a indicaccedilatildeo de uma forma infantil em oposiccedilatildeo agrave uma
forma adulta de entender as coisas de Deus (1Coriacutentios 139-12)445 Como consequecircncia ele
afirma pelo menos dois tipos de interpretaccedilatildeo uma que trabalha com a letra (secundum
litteram) e outra que se move para um niacutevel mais profundo (secundum spiritum)
A partir destes dois procedimentos baacutesicos (segundo a letra e segundo o espiacuterito) o
abade daacute mais um passo na estruturaccedilatildeo do seu meacutetodo relacionando a lectio com a Trinitas
Desta reflexatildeo trinitaacuteria surgiu o conjunto das ferramentas do seu sistema hermenecircutico
composto por trecircs partes a concordia equivalente agrave leitura segundo a letra e a alegoria e a
444 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 19 445 Esta segunda passagem de Paulo eacute uma das preferidas de Joaquim retornando constantemente em suas
explicaccedilotildees metodoloacutegicas ldquoPorque em parte conhecemos e em parte profetizamos Quando poreacutem vier o
que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino falava como menino sentia
como menino pensava como menino quando cheguei a ser homem desisti das coisas proacuteprias de menino
Porque agora vemos como em espelho obscuramente entatildeo veremos face a face Agora conheccedilo em parte
entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Coriacutentios 139-12)
133
tipologia como leituras espirituais446 Jaacute que a Trindade eacute formada por trecircs pessoas divinas
que atuam como se fossem uma soacute as ferramentas exegeacuteticas de Joaquim tambeacutem deveriam
operar como se fossem apenas uma Somadas elas resultam na denominada ldquonova forma de
exposiccedilatildeordquo
Mas seria realmente ldquonovardquo esta metodologia exegeacutetico-hermenecircutica A resposta
da historiografia eacute dupla neste caso A tendecircncia eacute afirmar algum tipo de viacutenculo tradicional
ao mesmo tempo em que se indica em que sentido seu caminho poderia ser novo como o
professor Rossatto ao considerar que Joaquim teria partido da tradiccedilatildeo por assumir e
revigorar antigos meacutetodos de interpretaccedilatildeo poreacutem simultaneamente proposto um modo
ineacutedito de compreensatildeo no caso a concordia447 Isso significa dizer que a primeira parte do
sistema eacute nova enquanto a segunda jaacute era longamente utilizada pelos inteacuterpretes da Biacuteblia
A historiadora italiana Tagliapietra explica esta relaccedilatildeo entre novidade e tradiccedilatildeo
com o recurso aos jaacute mencionados quatro sentidos da exegese medieval O sentido literal foi
transformado por Joaquim na sua concordia A alegoria foi multiplicada pelo abade em cinco
tipos diferentes (histoacuterica moral tropoloacutegica contemplativa e anagoacutegica) A estes o abade
acrescentou o antigo meacutetodo da tipologia subdivido em sete formas diferentes Como
resultado os sentidos tradicionais se transformaram nas matildeos do abade em doze
possibilidades de significaccedilatildeo448 Contudo ele natildeo os chama todos do mesmo jeito Apenas
trecircs satildeo denominados ldquosentidosrdquo a letra (concordia) a alegoria (allegoricus intellectus) e a
tipologia (intelligentia typica)449 As demais divisotildees satildeo chamadas de espeacutecies (species)
inteligecircncias espirituais (inteligentiae spirituales) ou interpretaccedilatildeo espiritual (mystica
interpretatio)
Assim em siacutentese o sistema hermenecircutico de Joaquim de Fiore se articula sobre trecircs
bases a exposiccedilatildeo dos diversos tipos de alegoria dos diversos tipos de tipologia e a
concordia que funciona como o elemento que coloca o sistema em movimento450
446 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 101 447 Idem p 100 448 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 26 449 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 44 450 SANTI op cit p 261
134
63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde
A noccedilatildeo fundamental do sistema exegeacutetico de Joaquim eacute chamada por ele de
concordia Blaise no seu Lexicon Latinitatis Medi Aevi traduz o substantivo feminino
concordia como entre outras acepccedilotildees ldquoato de organizarrdquo e o verbo concordiare como
ldquofazer acordordquo451 Outro uso muito comum aparece em Suetocircnio (69-141) historiador dos
doze ceacutesares que apresenta uma divindade chamada Concordia a quem os romanos
dedicavam cultos e festas apoacutes distuacuterbios beacutelicos especialmente no final de uma guerra civil
(De vita caesarum III 20)452 Como antocircnimo de discordia o termo era relativamente
frequente tanto na prosa quanto na poesia latina
Mas como as palavras natildeo satildeo estaacuteticas e podem variar de sentido com o tempo e a
situaccedilatildeo Tagliapietra analisou as ocorrecircncias de concordia em Joaquim de Fiore e reuniu
quatro possibilidades de significado harmonia semelhanccedila correlaccedilatildeo e compensaccedilatildeo A
ldquoharmoniardquo poderia lembrar ao leitor moderno o sentido de sinopse como exemplificado
pelo Diatessaron de Taciano (120-180) que resumiu quatro evangelhos de Jesus em uma
uacutenica narrativa Jaacute ldquosemelhanccedilardquo tem relaccedilatildeo com paralelismo e aparece no tiacutetulo da obra
mais conhecida de Joaquim (Liber de Concordia Novi ac Veteris Testamenti) que comeccedila
com a expressatildeo ldquoIncipit praephatio libri concordantiarumrdquo (1r) O terceiro significado
ldquocorrelaccedilatildeordquo tem ligaccedilatildeo com periodizaccedilatildeo da histoacuteria uma espeacutecie de lei estrutural do
curso do tempo ou uma filosofia da histoacuteria O quarto significado ldquocompensaccedilatildeordquo indica
que cada pessoa cada evento da histoacuteria reverbera no futuro segundo uma reserva de
sentido fazendo com que o estudo do passado se torne tambeacutem um exerciacutecio de vaticiacutenio453
O proacuteprio Joaquim deu a sua definiccedilatildeo do termo concordia ldquouma similaridade de
igual proporccedilatildeo entre o Novo e o Antigo Testamentos igual eu digo quanto ao nuacutemero natildeo
quanto a dignidaderdquo454 (Liber de Concordia 7rb) Ele a ilustrou com a imagem de uma
estrada contiacutenua que liga uma cidade a um deserto cujos viajantes passam por vales e
montanhas Nos vales eles podem admirar a paisagem Nas montanhas eles conseguem ver
451 BLAISE op cit p 222 452 Esta eacute a referecircncia especiacutefica ldquoDedicavit et Concordiae aedem item Pollucis et Castoris suo fratrisque
nomine de manubiisrdquo Uma traduccedilatildeo seria Tibeacuterio ldquodedicou um templo agrave deusa Concordia e outro a Castor e
Polux em seu nome e em nome de seu irmatildeordquo Conferir uma ediccedilatildeo biliacutengue em SUETONIUS Lives of the
Caesars Cambridge Harvard University Press 1979 2 v V 1 p 322 Outra traduccedilatildeo para o inglecircs pode ser
encontrada em SUETONIUS Lives of the Caesars Oxford Oxford University Press 2000 p 109 453 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 21-25 454 ldquoConcordiam proprie esse dicimus similitudinem eque proportionis novi ac veteris testamenti eque dico
quo ad numerum non quo ad dignitatemrdquo
135
o que veio antes e o que vem depois Ele costumava usar tambeacutem duas imagens biacuteblicas para
explicar sua ferramenta metodoloacutegica os dois querubins que estavam sobre a tampa da arca
(Ecircxodo 2520)455 e as duas rodas da visatildeo de Ezequiel (Ezequiel 116)456 No primeiro caso
duas figuras angelicais estatildeo voltadas uma para a outra em cima da arca da alianccedila No
segundo caso duas rodas giram uma dentro da outra embaixo do trono-carruagem de Javeacute
A primeira imagem reforccedila o senso de paralelismo entre os dois testamentos (concordia
duorum testamentorum) jaacute que um se volta para o outro No caso da segunda imagem ela
desenvolve o sentido de correlaccedilatildeo entre os trecircs status (concordia trium statuum) ao apontar
para eventos que se desenvolvem dinamicamente na histoacuteria
Tanto no caso dos dois testamentos quanto no dos trecircs estados o meacutetodo da
concordia consiste entatildeo em encontrar posiccedilotildees semelhantes de pessoas e eventos dentro
de tempos (tempora ou status) diferentes e apontar em que sentido eles satildeo similares (em
caracteriacutesticas ou atos)457 Um exemplo poderia ser dado pelo caso do patriarca Jacoacute que
ocupa a mesma posiccedilatildeo dentro do primeiro status que o homem Jesus ocupa no segundo
Ocupando posiccedilotildees semelhantes no interior de seus respectivos status eles manifestam atos
espirituais parecidos e exercem papeis religiosos paralelos Entretanto natildeo satildeo iguais em
dignidade Eacute isso que significa ser ldquosimilar quanto a nuacutemerordquo e natildeo quanto a ldquodignidaderdquo
As pessoas ocupam as mesmas posiccedilotildees em suas proacuteprias geraccedilotildees e tecircm papel semelhante
mas natildeo possuem o mesmo status espiritual O homem Jesus foi maior em dignidade que
Jacoacute o que significa dizer que ele possuiacutea uma compreensatildeo espiritual maior e realizou obras
maiores458
Joaquim comeccedila o exerciacutecio de sua concordia por meio da distinccedilatildeo entre histoacuteria
geral e histoacuteria especial Segundo o abade
Toda a floresta de histoacuterias que ofusca o Antigo Testamento eacute dividida em
cinco partes das quais uma eacute geral e quatro satildeo especiais Porque haacute uma
roda que tem quatro faces Existe uma histoacuteria geral agrave qual quatro histoacuterias
especiais satildeo unidas A histoacuteria geral eacute aquela que comeccedila no iniacutecio do
mundo e caminha direto ateacute o livro de Esdras [] Existem quatro histoacuterias
especiais pequenas das quais a primeira eacute Joacute a segunda eacute Tobias a
terceira eacute Judite e a quarta eacute Ester Aquela eacute a roda Estas satildeo as faces
(Enchridion super Apocalypsim 2r-3r)459
455 ldquoOs querubins estenderatildeo as asas por cima cobrindo com elas o propiciatoacuterio estaratildeo eles de faces voltadas
uma para a outra olhando para o propiciatoacuteriordquo (Ecircxodo 2520) 456 ldquoO aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o berilo tinham as quatro a mesma aparecircncia
cujo aspecto e estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outrardquo (Ezequiel 116) 457 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip p 79 458 Idem 459 Traduccedilatildeo a partir da versatildeo italiana GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Traduzione e cura di
Andrea Tagliapietra Milano Feltrinelli 2008 p 133
136
O que ele chama de ldquohistoacuteria geralrdquo eacute uma grande narrativa presente no Antigo
Testamento que parte do livro de Gecircnesis e se estende ateacute a obra de Esdras Usando a
imagem das duas rodas concecircntricas de Ezequiel o abade denomina esta ldquohistoacuteria geralrdquo de
ldquoroda exteriorrdquo agrave qual estatildeo vinculadas quatro pequenas histoacuterias (denominadas ldquohistoacuterias
especiais) presentes em obras menores Joacute Tobias Judite e Ester As histoacuterias especiais se
vinculam agrave roda exterior como as ldquoluzesrdquo nas rodas da visatildeo ezequieacutelica460
A operaccedilatildeo da concordia encontrou esta mesma estrutura no Novo Testamento
Tambeacutem nele haacute uma histoacuteria geral e quatro histoacuterias especiais Joaquim identificou a
histoacuteria geral com o Apocalipse de Joatildeo enquanto as quatro especiais correspondem aos
quatro evangelhos canocircnicos Mateus Marcos Lucas e Joatildeo E se o Antigo Testamento
forma a roda exterior o Apocalipse corresponde agrave roda interior da visatildeo do profeta do exiacutelio
babilocircnico Como satildeo duas rodas concecircntricas ambas giram de forma paralela de tal
maneira que uma pessoa dotada da ldquointeligecircncia espiritualrdquo poderia perceber os eventos que
se repetem Voltando a uma imagem anterior a concordia eacute a estrada que liga as duas rodas
permitindo aos viajantes visualizar por meio de suas montanhas o que jaacute aconteceu e o que
estaacute por acontecer461
Sendo assim como insistiu o professor Emmett Randolph Daniel o que acontece na
concordia natildeo pode ser confundido nem com alegoria nem com tipologia Seu trabalho
precede as outras duas atividades hermenecircuticas do abade462 Este sentido ldquosegundo a letrardquo
era a percepccedilatildeo de narrativas biacuteblicas como uma descriccedilatildeo natildeo apenas do que teria
acontecido mas tambeacutem do que ainda aconteceria Por meio destas narrativas seria possiacutevel
discernir o passado o presente e futuro463 Natildeo haacute na concordia uma relaccedilatildeo horizontal entre
anuacutencio e realizaccedilatildeo como na tipologia ou vertical entre letra e espiacuterito como na alegoria464
O que haacute eacute um paralelismo histoacuterico dinacircmico e progressivo
460 Na visatildeo de Ezequiel aparentemente haviam luzes que brilhavam tanto na roda exterior quanto na interior
enquanto o trono de Deus se movia (Ezequiel 11-25) 461 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 78 462 Idem p 79 tambeacutem MC GINN Bernard Visions of the Endhellip op cit p 126-141 WEST ZIMDARS-
SARTZ op cit p 42 463 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard
K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-
88 79 464 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 106 DE LUBAC Henri La posteridad
espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 44
137
64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas
Durante um dos mais antigos exerciacutecios exegeacuteticos conhecidos de Joaquim presente
no primeiro sermatildeo do Praephatio super Apocalypsim datado para o iniacutecio da deacutecada de
1180 no periacuteodo em que ainda era abade de Corazzo apoacutes usar a concordia para apontar
paralelos entre as doze tribos de Israel e a histoacuteria da igreja ele afirma ldquoMas deixemos estas
coisas no invoacutelucro externo da noz para mostrar agora algo de sua casca de maneira que
num terceiro momento possamos extrair um viscoso alimentordquo465
Mais agrave frente apoacutes algumas frases ele retoma a imagem da noz ldquoEis que jaacute eacute viziacutevel
o nuacutecleo que estava encoberto pela casca aparece a verdadeira vida que os panos envolviam
no sepulcrordquo466 Desta vez ele faz alusatildeo ao sepultamento de Jesus e aos panos que
envolviam seu corpo467
As imagens das camadas da noz e do corpo enrolado pelos panos refletem o convite
do abade para ir aleacutem da concordia dos textos biacuteblicos coisa que ele colocou em praacutetica em
suas vaacuterias obras de exposiccedilatildeo biacuteblica (entre elas o Expositio in Apocalypsim) movendo-se
de uma compreensatildeo segundo a letra para justificar uma compreensatildeo segundo o espiacuterito (da
concordia para os princiacutepios espirituais)468
Neste processo contiacutenuo de aprofundamento na direccedilatildeo do ldquoviscoso alimento da
nozrdquo ele toma a alegoria469 e a subdivide em cinco princiacutepios alegoacutericos Por que cinco A
Trindade tambeacutem usada para justificar as trecircs partes de sua metodologia (concordia
alegoria e tipologia) agora eacute usada como base para as cinco subdivisotildees alegoacutericas
465 O sermatildeo eacute o Apocalipsis liber ultimus citado a partir de ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao
Apocalipse op cit p 460 466 Idem p 461 467 ldquoTomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lenccediloacuteis com os aromas como eacute de uso entre os judeus
na preparaccedilatildeo para o sepulcrordquo (Joatildeo 1940) 468 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 46 Estes princiacutepios espirituais satildeo derivados da operaccedilatildeo
alegoacuterica e tipoloacutegica Uma descriccedilatildeo das duas tradiccedilotildees pode ser encontrada em YOUNG Frances
Alexandrian and Antiochene Exegesis In HAUSER Alan J WATSON Duane F (eds) A history of biblical
interpretation The Ancient Period Grande Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2003 2 v V
1 p 334-354 469 Segundo Stefaniw este tipo de interpretaccedilatildeo concebia o texto como um meio de revelaccedilatildeo de misteacuterios
escondidos ldquopor traacutes das letrasrdquo Cf STEFANIW Blossom Reading Revelation Allegorical Exegesis in Late
Antique Alexandria Revue de lrsquohistoire des religions Paris n 2 p 231-251 2007 p 231-232 Ulleacuten distingue
alegoria como gecircnero literaacuterio como utilizado por Dante na obra ldquoDivina Comeacutediardquo de alegoria como forma
de interpretaccedilatildeo Aparentemente o primeiro fenocircmeno nasceu em consequecircncia do segundo que por sua vez
eacute tatildeo antigo quanto as primeiras interpretaccedilotildees dos eacutepicos de Homero Sua definiccedilatildeo de alegoria como meacutetodo
hermenecircutico eacute ldquouma forma sistemaacutetica de compreender o texto que se baseia em uma norma
intersubjetivamente determinadardquo Cf ULLEacuteN Magnus Dante in Paradise The End of Allegorical
Interpretation New Literary History Baltimore v 32 n 1 p 177-199 2001 p 183
138
Sua confissatildeo trinitaacuteria foi resumida por West e Zimdars-Swartz como ldquoDeus eacute um
Deus sem confusatildeo de pessoas e trecircs pessoas sem divisatildeo de substacircnciardquo470 Ele faz uma
distinccedilatildeo das trecircs Pessoas divinas baseadas em sua origem O Pai natildeo eacute gerado (ingenitus)
o Filho eacute gerado pelo Pai (genitus) e o Espiacuterito Santo procede de ambos (ab utroque
procedens) Associado com a origem das Pessoas da Trindade estaacute tambeacutem o relacionamento
entre elas expresso na forma como satildeo nomeados O Pai eacute assim chamado porque tem um
Filho igualmente o Filho porque tem um Pai jaacute o Espiacuterito eacute assim nominado porque
procede de ambos O abade entatildeo enumera as cinco possiacuteveis relaccedilotildees entre as Pessoas
divinas ligando cada uma com um tipo diferente de alegoria
ndash alegoria histoacuterica a relaccedilatildeo do Pai com o Filho afinal ele eacute Pai de um Filho
ndash alegoria moral a relaccedilatildeo do Filho com o Pai afinal ele eacute Filho de um Pai
ndash alegoria tropoloacutegica a relaccedilatildeo entre o Pai e o Filho com o Espiacuterito afinal este vem
de ambos
ndash alegoria contemplativa a relaccedilatildeo do Filho e do Espiacuterito com o Pai afinal ambos
satildeo enviados pela primeira Pessoa divina
ndash alegoria anagoacutegica a relaccedilatildeo das trecircs Pessoas com cada criatura afinal as trecircs satildeo
Deus e Criador471
Como jaacute indicamos Joaquim soacute denominava de ldquosentidosrdquo a concordia a alegoria e
a tipologia As subdivisotildees (tanto da alegoria quanto da tipologia) por sua vez ele as
denomina species ou intelligentia Assim a primeira species de alegoria eacute a historica
intelligentia ou compreensatildeo histoacuterica Apesar do nome ela natildeo corresponde agrave letra do
texto mas indica o significado de um evento ou figura histoacuterica como exemplo de uma
condiccedilatildeo espiritual Joaquim ilustrou esta species com as duas esposas de Abraatildeo A alegoria
histoacuterica veria em Sara a representaccedilatildeo de uma mulher livre enquanto Hagar representaria
uma escrava Este sentido alegoacuterico teria um caraacuteter mais cognoscitivo apesar de
implicitamente convidar agrave associaccedilatildeo com a esposa livre em vez da escrava
A alegoria moral (moralis intelligentia) indica que haacute uma semelhanccedila entre coisas
visiacuteveis e coisas invisiacuteveis que se exprime na forma de uma qualidade eacutetica Sara neste niacutevel
representaria o prazer espiritual enquanto Hagar a escravidatildeo da carne Esta secunda
species alegoacuterica quer fornecer ensinamentos e demandas de ordem moral
470 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 53 Para uma anaacutelise da doutrina trinitaacuteria em Joaquim cf
ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 471 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 44 tambeacutem TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo
Gioachimita op cit p 27-28
139
A alegoria tropoloacutegica (tropologica intelligentia) tem relaccedilatildeo com doutrina Neste
niacutevel o inteacuterprete busca reforccedilos e componentes para a doutrina cristatilde Nele Hagar significa
a letra enquanto Sara significa a compreensatildeo espiritual da Palavra de Deus
A alegoria contemplativa (contemplativa intelligentia) centraliza-se na vida
contemplativa e nos dons do Espiacuterito Santo Por exemplo Hagar significa a vida ativa
enquanto Sara significa a vida contemplativa
A alegoria anagoacutegica (anagogica intelligentia) a quinta species convida para a
prospectiva escatoloacutegica tradicional com o olhar para o mundo transcendental para aleacutem da
histoacuteria e por meio da oposiccedilatildeo ceacuteu-terra Neste caso Hagar significa a vida presente
enquanto Sara indica a vida futura
Apesar de apresentar o meacutetodo472 nas suas maiores obras de exposiccedilatildeo biacuteblica
(Expositio in Apocalypsim Psalterium decem Chordarum e Tractatus super quatuor
Evangelion) o abade nem sempre faz uso dos cinco princiacutepios alegoacutericos ou mesmo indica
qual princiacutepio estaacute usando em cada caso Eacute comum que ele apenas indique que um
personagem ou evento ldquosignificardquo ou ldquodesignardquo outra coisa
65 Sensus typicus histoacuteria e profecia
Durante os trecircs meses passados em Corinto entre os anos 55 e 56 ao escrever sua
epiacutestola para os disciacutepulos de Roma o apoacutestolo Paulo tratou da relaccedilatildeo entre Adatildeo e Jesus
(Romanos 514) descrevendo o primeiro como uma ldquofigura do que haveria de virrdquo (ldquoτύπος
τοῦ μέλλοντοςrdquo) Os termos usados foram o substantivo ldquoτύποςrdquo e o verbo ldquomέλλwrdquo O
primeiro significa ldquosinal marca vestiacutegio imagem figura tipo modelo exemplordquo473 A
segunda palavra pode ser traduzida como ldquodever estar destinado ardquo que daacute origem agrave forma
adjetivada do verbo (ldquoo` mέλλwnrdquo) o melhor o aguardado o futuro474
Em termos semacircnticos um ldquotipordquo era a marca impressa de um golpe em entalhe ou
em relevo de tal forma que um aponta para a outro Mas o uso que Paulo fez do termo jaacute lhe
deu um sentido hermenecircutico Ele o usou para descrever uma releitura das Escrituras
judaicas agrave luz da sua feacute em Jesus como o Messias
472 Em especial na segunda parte do Liber de Concordia 473 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 464 474 Idem p 300
140
Posteriormente autores cristatildeos do seacuteculo II como Tertuliano de Cartago
latinizaram o termo (typos) mas tanto em autores gregos ou latinos (Melito de Sardes
Justino Irineu Clemente de Alexandria Oriacutegenes Cipriano de Cartago Tertuliano) a
praacutetica de Paulo continuou a ser exercida geralmente com o propoacutesito de encontrar nas
Escrituras judaicas as promessas que se cumpriram na vida de Jesus ou como uma estrateacutegia
para vincular estas mesmas Escrituras com o Novo Testamento cristatildeo em formaccedilatildeo475 A
tipologia se constituiu entatildeo como uma ferramenta usada pelos exegetas cristatildeos a partir do
segundo seacuteculo para ver unidade entre as Escrituras judaicas e cristatildes como uma linha
horizontal de continuidade e progresso histoacutericos que culmina em Jesus e no
Cristianismo476
Eacute entatildeo este antigo procedimento que Joaquim usaraacute na sua proacutexima fase exegeacutetica
As cinco espeacutecies de alegoria formam apenas um momento de sua interpretaccedilatildeo e
normalmente natildeo constituem o final do processo477 No manejo da tipologia natildeo se trata
mais de opor verticalmente letra e espiacuterito como na alegoria mas de relacionar uma letra
com outra letra um elemento com outro elemento segundo uma dinacircmica horizontal de
promessa e cumprimento478
De qualquer forma apesar da metodologia tipoloacutegica jaacute ser conhecida na tradiccedilatildeo
exegeacutetica cristatilde o uso que dela faz Joaquim tambeacutem natildeo deixa de ser singular A forma
como o abade relacionava histoacuteria e Escritura o levou a natildeo ver mais distinccedilotildees entre ambas
Assim enquanto a tipologia claacutessica interrompia o fluxo tipoloacutegico nos eventos do Novo
Testamento Joaquim ampliou o olhar do exegeta encontrando antiacutetipos em toda a histoacuteria
da Igreja479
475 Conferir esta anaacutelise em ETCHEVERRIacuteA Ramoacuten Trevijano La Biblia em el cristianismo antiguo
Prenicenos Gnoacutesticos Apoacutecrifos Estella Editorial Verbo Divino 2001 p 92-108 476 Natildeo se sustenta mais um reducionismo que vincula a tipologia a uma ldquotradiccedilatildeo antioquianardquo e a alegoria a
uma ldquotradiccedilatildeo alexandrinardquo Tanto tipologia quanto alegoria satildeo efetivamente ferramentas hermenecircuticas que
tecircm como meta ir aleacutem da ldquoletrardquo ou do sentido mais imediato das palavras Etcheverriacutea chega a classificar a
tipologia como um tipo de alegoria Ambas satildeo ldquoformas de representaccedilatildeordquo como tambeacutem a metaacutefora a
metoniacutemia e a sineacutedoque Cf ETCHEVERRIacuteA op cit p 85 Aleacutem do mais mesmo em um exegeta
ldquorepresentativordquo da denominada escola antioquiana como Teodoro de Mopsueacutestia (350-428) eacute possiacutevel
encontrar o uso tanto da alegoria quanto da tipologia Cf WILES M F Theodore of Mopsuestia as
representative of the antiochene school In ACKROYD P R EVANS G F (eds) The Cambridge history
of the Bible from the beginnings to Jerome Cambridge Cambridge University Press 1970 3 v V 1 p 489-
509 477 SANTI op cit p 263 478 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 28 479 A estrutura ldquotipordquo e ldquoantiacutetipordquo natildeo daacute conta da praacutetica joaquimita Tipo seria a promessa antiacutetipo o
cumprimento Em Joaquim o fenocircmeno poderia ser descrito como ldquotipo-tipo-antiacutetipordquo
141
A tipologia em Joaquim fornece significado a eventos e personagens histoacutericos no
formato de anuacutencio e realizaccedilatildeo mas hierarquiza-os no interior dos trecircs status do mundo
Adatildeo personagem do primeiro status corresponderia a Cristo um tipo mais elevado do
segundo Ambos convergem entretanto num antiacutetipo ainda mais superior que se
concretizaraacute num personagem futuro do terceiro status
O abade de Fiore denominou a tipologia de ldquosensus typicusrdquo ou inteligecircncia tiacutepica
e a subdividiu em sete species baseadas numa estrutura derivada igualmente de sua
especulaccedilatildeo trinitaacuteria correspondendo agraves sete possiacuteveis formas de uma pessoa professar a
Trindade 1) sob o sinal do Pai 2) sob o sinal do Filho 3) sob o sinal do Espiacuterito 4) sob o
signo do Pai e do Filho 5) sob o signo do Pai e do Espiacuterito 6) sob o signo do Filho e do
Espiacuterito 7) sob o signo da Trindade inteira480
Desta vez o abade natildeo diferencia cada tipo dando um nome ou mesmo definindo
mas apenas fornecendo um exemplo Segundo a primeira compreensatildeo tipoloacutegica que eacute
apropriada ao Pai Abraatildeo representa os sacerdotes dos judeus Hagar o povo israelita Sara
a Tribo de Levi que foi chamada para a obra de Deus No segundo tipo de tipologia que eacute
apropriada ao Filho Abraatildeo representa os bispos Hagar a igreja dos leigos Sara a igreja
dos cleacuterigos Segundo o terceiro tipo de tipologia que eacute apropriada ao Espiacuterito Abraatildeo
representa os sacerdotes que servem monasteacuterios Hagar representa a Igreja do povo leigo
que vive sob regras monaacutesticas (conversi) e Sara representa a igreja dos monges Segundo
a seacutetima compreensatildeo tipoloacutegica que pertence agraves trecircs pessoas da Trindade Hagar representa
as igrejas da primeira e segunda eacutepoca (status) que vive a vida ativa Sara representa a igreja
da contemplaccedilatildeo paz e descanso da seacutetima era (aetas) Estes foram os quatro usos
tipoloacutegicos mais usados por Joaquim481
A quarta quinta e sexta species de tipologia natildeo satildeo normalmente usadas Mesmo
assim ele faz uma breve apresentaccedilatildeo delas (Liber de Concordia 61v-73v) A quarta
tipologia pertence ao Pai e ao Filho Nela Abraatildeo significa os bispos dos judeus e gregos
Hagar a sinagoga Sara a igreja dos Gregos A quinta tipologia pertence ao Pai e ao Espiacuterito
e nela Abraatildeo significa os sacerdotes dos judeus e os bispos do povo latino Hagar a
sinagoga (como na tipologia anterior) e Sara a igreja do povo Latino A sexta compreensatildeo
tipoloacutegica pertence ao Filho e ao Espiacuterito Santo Nela Abraatildeo significa os sacerdotes da
480 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 29 481 Em termos gerais a primeira species tipoloacutegica trata da primeira eacutepoca a segunda da segunda eacutepoca a
terceira da terceira eacutepoca A seacutetima tenta englobar a histoacuteria como um todo
142
segunda e terceira eacutepoca Hagar a igreja dos trabalhadores (vida ativa) e Sara a igreja
espiritual da contemplaccedilatildeo482
66 O dom da exegese
O ex-eremita agora no interior de um cenoacutebio em Fiore parece ver no Novo
Testamento natildeo mais do que uma segunda letra em concordacircncia com a primeira Daiacute resulta
a conclusatildeo de que ldquonatildeo se pode considerar o segundo testamento como mais definitivo que
o primeirordquo483 Ele natildeo chega a abolir o Novo Testamento mas entende que ele seraacute
transformado por meio de uma nova interpretaccedilatildeo espiritual Entatildeo se abriratildeo as ldquoportasrdquo
dos dois Testamentos e pessoas que antes natildeo conseguiam ler mais do que a letra entatildeo
conseguiratildeo penetrar nos sentidos espirituais da Escritura
Apesar de ser o porta-voz desta ldquodescoberta espiritualrdquo Joaquim se recusou a assumir
o tiacutetulo de profeta que outros lhe atribuiacuteam Mas ele natildeo esconde que teve suas
ldquoiluminaccedilotildeesrdquo Ele parece falar de trecircs destas experiecircncias que quase o aproximam do termo
ldquovisionaacuteriordquo Em uma delas ele recebeu a concordia dos Testamentos em outra
compreendeu a relaccedilatildeo entre Trindade Escritura e histoacuteria por fim uma terceira abriu seus
olhos para o papel do Apocalipse na sua estrutura hermenecircutica484 Aleacutem destas experiecircncias
narradas em suas obras o abade estava persuadido de ter recebido um ldquoespiacuterito de
inteligecircnciardquo para interpretar as Escrituras485 a fim de alertar e despertar os ldquosonolentos
espiacuteritos de seu tempordquo a respeito dos ldquoextrema temporardquo486 Aos olhos de Joaquim sua
capacidade exegeacutetica era um dom de Deus Natildeo era apenas fruto de uma investigaccedilatildeo
humana Era como a estrela brilhante que guiou os magos ateacute Jesus
O abade via brilhar agrave sua frente um novo tempo (ldquoIta felices homines illius
statusrdquo)487 e o espera para breve Ele o descreve sem cessar em suas obras por meio das
482 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 45-46 483 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 46 484 Conferir uma descriccedilatildeo das trecircs visotildees em DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de
Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xiii-xviii 485 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London
University of Notre Dame Press 1993 p 16 486 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 48 487 Expressatildeo encontrada em Expositio in Apocalypsim 175v
143
duas combinaccedilotildees da concordia das cinco inteligecircncias espirituais (alegoria) e dos sete tipos
de inteligecircncia tiacutepica (tipologia)488
Considerado profeta chamado de visionaacuterio descrito como miacutestico Joaquim natildeo
queria ser como resumiu de Lubac outra coisa a natildeo ser um exegeta489
67 Resumo
Este capiacutetulo procurou apresentar as formas e procedimentos de leitura e
interpretaccedilatildeo de Joaquim de Fiore Comeccedilando pela concordia passando pela alegoria e
terminando na tipologia o abade estruturou um meacutetodo que foi aplicado por ele tanto em
textos biacuteblicos quanto em eventos e fenocircmenos histoacutericos Justamente essa relaccedilatildeo iacutentima
entre Biacuteblia e histoacuteria parece ser a raiz loacutegica do seu sistema milenarista490 A praacutetica
exegeacutetica do abade em vaacuterios momentos se constituiu num exerciacutecio de reflexatildeo sobre o
sentido da histoacuteria
488 O sistema metoloacutegico de trecircs partes formado pela concoacutercia e por doze sentidos ldquoespirituaisrdquo (cinco
alegoacutericos e sete tipoloacutegicos) eacute o mais recorrente nas exposiccedilotildees de Joaquim mas natildeo eacute o uacutenico Ele usa no
Psalterium um sistema compreendido por quinze sentidos baseado no nuacutemero total dos salmos Estes sistemas
indicam o esforccedilo do abade de Fiore para multiplicar e entrelaccedilar as imagens biacuteblicas Cf SANTI op cit p
264 O medievalista Falbel denomina o meacutetodo do abade de ldquoalegoacuterico-trinitaacuteriordquo Cf FALBEL Nachman
Satildeo Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202) Revista USP Satildeo Paulo n 30 p 273-276
1996 p 273 489 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 53 Talvez seja possiacutevel falar
numa exegese profeacutetica (projetada para o futuro) ou uma exegese visionaacuteria (materializada em imagens) ou
mesmo uma exegese miacutestica (com foco na contemplaccedilatildeo) 490 Idem p 43
VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN
APOCALYPSIM
Este capiacutetulo se deteraacute principalmente no Expositio in Apocalypsim a maior e mais
bem estruturada obra de Joaquim de Fiore491 Eacute um texto que acompanhou o abade por quase
vinte anos concluiacutedo apenas dois anos antes de sua morte Em um trabalho desta natureza
escrito ao sabor dos anos eacute possiacutevel encontrar alteraccedilatildeo nas proacuteprias pespectivas do abade492
De qualquer forma o trecho que nos interessa especialmente estaacute ao final na seacutetima parte
quando apoacutes deixar Corazzo e jaacute no isolamento das montanhas de Fiore Joaquim se deteacutem
a construir sua exegese de Apocalipse 201-10 a periacutecope joanina que descreveu o reino
milenarista dos martirizados com Cristo Para analisaacute-la entretanto precisamos antes situaacute-
la no interior do Expositio por meio de alguns apontamentos sobre a estrutura geral da obra
e de uma siacutentese de conteuacutedo
71 Estrutura literaacuteria do Expositio
O Expositio in Apocalypsim na sua versatildeo presente no incunaacutebalo veneziano eacute
precedido por trecircs documentos distintos O primeiro eacute a Carta Testamentaacuteria (1r) na qual o
abade calabrecircs relata suas motivaccedilotildees ao escrever suas grandes obras e manifesta o desejo
de apresentaacute-las agrave cuacuteria papal Em seguida haacute uma carta de Clemente III (papa de 1187-
1191) para Joaquim (1v) datada para o dia 8 de junho de 1188 solicitando que o abade
encaminhe suas obras para a Seacute romana493 Apoacutes as duas cartas comeccedila o Liber
Introductorius in Apocalypsim (1v-25v) um longo texto que teria a funccedilatildeo de apresentar o
Expositio suas partes baacutesicas uma siacutentese das principais ideias do abade especialmente os
trecircs status do mundo a concordia dos dois Testamentos e as sete fases (aetas) da histoacuteria
491 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 79 492 A visatildeo de Joaquim quanto ao Impeacuterio Germacircnico por exemplo variou de uma postura criacutetica no iniacutecio da
obra para uma postura neutra no final Cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di
Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p 325-327 493 Uma ediccedilatildeo latina da carta pode ser encontrada em ELLIOTT E B Horae Apocalypticae a commentary
on the Apocalypse critical and historical Londres Seeley 1862 4 v V 4 p 386
145
da Igreja Finalmente no foacutelio 26v tem iniacutecio o Expositio por meio da expressatildeo ldquoIncipit
prima septem partius in expositione Apocalipsisrdquo494
A forma como o comentaacuterio de Joaquim foi construiacutedo permite visualizar as
seguintes seccedilotildees495
26v Parte I Sete Igrejas
51v Eacutefeso
67r Esmirna
69r Peacutergamo
73v Tiatira
78r Sardes
82v Filadeacutelfia
92v Laodiceacuteia
99r Parte II Sete selos
113v Primeiro Selo
114r Segundo Selo
114v Terceiro Selo
115v Quarto Selo
116v Quinto Selo
117v Sexto Selo
123v Seacutetimo Selo
123v Parte III Sete Trombetas
127v Primeiro Anjo
128v Segundo Anjo
128v Terceiro Anjo
129v Quarto Anjo
130v Quinto Anjo
133v Sexto Anjo
152r Seacutetimo Anjo
153r Parte IV A Mulher vestida de Sol e o Dragatildeo
154r Primeira distinccedilatildeo
158r Segunda distinccedilatildeo
160v Terceira distinccedilatildeo
161v Quarta distinccedilatildeo
172v Quinta distinccedilatildeo
173r Sexta distinccedilatildeo
174v Seacutetima distinccedilatildeo
177r Parte V Sete Taccedilas
187r Primeira Taccedila
187r Segunda Taccedila
494 Por esta expressatildeo eacute possiacutevel perceber uma ambiguidade estrutural na obra Joaquim anunciou sete seccedilotildees
mas terminou a obra com oito 495 Adaptamos aqui a estrutura sugerida por WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of
Fiore a Study in Spiritual Perception and History Bloomington Indiana University Press 1983 p 74-75
146
188v Terceira Taccedila
189r Quarta Taccedila
189v Quinta Taccedila
190r Sexta Taccedila
191r Seacutetima Taccedila
191v Parte VI A queda da Babilocircnia e a derrota das bestas
191v Primeira distinccedilatildeo
202v Segunda distinccedilatildeo
206r Terceira distinccedilatildeo
209v Parte VII Descanso sabaacutetico
Pars prima
Pars secunda
Pars tertia
Pars quarta
215r Parte VIII Jerusaleacutem Celestial
72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim496
Joaquim se propotildee a escrever um comentaacuterio exegeacutetico do Apocalipse de Joatildeo tarefa
que o coloca na tradiccedilatildeo de outros exegetas medievais da obra joanina como Beda o
Veneraacutevel ou Beato de Lieacutebana497 Mas o resultado entretanto vai aleacutem de discussotildees
teoloacutegicas para se tornar o que Potestagrave chamou de ldquohistoacuteria teoloacutegica do Cristianismordquo498
Esta histoacuteria aparece no Expositio de duas formas linear e ciacuteclica Tanto na narrativa linear
quanto na ciacuteclica haacute uma preocupaccedilatildeo contiacutenua do abade em vincular cada texto do
Apocalipse a eventos histoacutericos da forma mais estreita possiacutevel499
A revelaccedilatildeo linear aparece quando o abade estrutura o uacuteltimo livro do Novo
Testamento em oito partes sendo que as sete primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da
histoacuteria da Igreja Das sete seis relatam algum tipo de confronto da Igreja As quatro
primeiras fases apresentam protagonistas diferentes (apoacutestolos maacutertires doutores monges
496 Para esta siacutentese cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297-325 ELLIOTT E
B Horae Apocalypticae op cit p 384-420 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit
p 79-84 497 Conferir a discussatildeo anterior sobre o gecircnero literaacuterio do Expositio na qual indicamos autores anteriores agrave
Joaquim que tambeacutem escreveram exposiccedilotildees exegeacuteticas do Apocalipse 498 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297 MCGinn acompanha Potestagrave nesta
avaliaccedilatildeo e toma Joaquim como criador da mais imponente teologia da histoacuteria desde De civitate Dei de
Agostinho Cf MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero
occidentale Gecircnova Casa Editrice Marietti 1990 p 172 499 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 298
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e virgens) Na quinta e na sexta eacute a Igreja em geral que enfrenta a Babilocircnia e o Anticristo
A seacutetima seria de descanso na forma de um sabbatum500 especial Finalmente viria o oitavo
periacuteodo que seria a consumaccedilatildeo final da histoacuteria e a eternidade transcendental501 Esta seria
a relaccedilatildeo esquemaacutetica entre a histoacuteria da Igreja e as partes do Apocalipse
- Primeira parte (Apocalipse 19-322) os apoacutestolos lutam contra os judeus
- Segundo parte (Apocalipse 41-81) os maacutertires lutam contra a Roma pagatilde
- Terceira parte (Apocalipse 82-1119) os doutores da Igreja lutam contra Aacuterio e os
governantes arianos
- Quarta parte (Apocalipse 121-1420) os monges e as virgens lutam contra os
sarracenos
- Quinta parte (Apocalipse 151-1617) a Igreja em geral luta contra a Babilocircnia
- Sexta parte (Apocalipse 1618-1921) a Igreja em geral luta contra o Anticristo
- Seacutetima parte (Apocalipse 201-10) o descanso sabaacutetico
- Oitava parte (Apocalipse 2011-2221) a Nova Jerusaleacutem
A histoacuteria da igreja aparece de forma ciacuteclica (recapitulatio) nas cinco primeiras
seccedilotildees do Apocalipse justamente aquelas em que Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura
seacutetupla Em cada uma delas ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma
histoacuteria que comeccedilaria na encarnaccedilatildeo de Cristo502 Aparentemente todas terminam no
descanso sabaacutetico um tempo de felicidade na terra Isso indica que a seacuterie de recapitulaccedilotildees
pode ter se restringido apenas agraves cinco primeiras partes do Expositio em funccedilatildeo da
perspectiva do abade de estar vivendo no tempo da sexta seccedilatildeo quando os eventos lhe satildeo
contemporacircneos ou estatildeo para acontecer em breve503
A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentaacuterios de Joaquim sobre
Apocalipse 11-322 (a seccedilatildeo das sete cartas para sete igrejas) Eacute a mais longa seccedilatildeo do
comentaacuterio Na estrutura geral eacute o primeiro tempo da Igreja a luta dos apoacutestolos contra a
sinagoga dos judeus Na histoacuteria da salvaccedilatildeo ela corresponde a sete geraccedilotildees com cada
500 Termo de origem hebraica (בת aparece na Vulgata como sabbatum (substantivo neutro de segunda (ש
declinaccedilatildeo) Seu significado eacute o seacutetimo dia da semana no calendaacuterio judaico ou o dia de descanso Cf LEWIS
Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p 1609 Ele retornaraacute de
forma recorrente no Expositio para descrever um periacuteodo de ldquodescansordquo para a Igreja de suas tribulaccedilotildees 501 COURT John M Approaching the Apocalypse a short history of Christian millenarianism New York I
B Tauris 2008 p 73 502 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 162 503 O abade entende o proacuteprio tempo como a hora da abertura do sexto selo e o iniacutecio do terceiro status Cf
MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 167
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igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos A igreja de Eacutefeso apresenta a
ordem dos apoacutestolos em luta contra os inimigos judaizantes a de Esmirna descreve a ordem
dos maacutertires no confronto contra inimigos pagatildeos a de Peacutergamo simboliza a ordem dos
doutores e seus adversaacuterios arianos e sabelianos a de Tiatira aponta para a ordem dos virgens
em confronto contra os falsos contemplativos a de Sardes indica a ordem dos monges
cenobiacuteticos cujos inimigos eram monges hipoacutecritas a de Filadeacutelfia revela a ordem dos
eremitas e contemplativos numa luta contra falsos cristatildeos e falsos profetas a de Laodiceacuteia
por fim representa a ordem dos monges do terceiro status
Na seccedilatildeo das cartas o abade ainda apresenta o relacionamento entre Pedro e Joatildeo
questatildeo que ele retoma repetidas vezes no Expositio O primeiro eacute typos504 de Cristo e
representa a Ordem Ativa enquanto o segundo eacute typos do Espiacuterito Santo e representa a
Ordem Contemplativa Ao passo que Pedro deixou Jerusaleacutem para fundar a sede apostoacutelica
em Roma Joatildeo saiu da Judeacuteia e foi para a Aacutesia escrever o Apocalipse para as sete igrejas
Pedro morreu primeiro Joatildeo sobreviveu-lhe cerca de trecircs deacutecadas Isso indicaria que a Igreja
Contemplativa (de Joatildeo) vai ultrapassar historicamente a Igreja Ativa (de Pedro)
Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a seccedilatildeo dos selos
(Apocalipse 41-81) Na estrutura geral eacute o segundo tempo da Igreja quando os principais
personagens satildeo os maacutertires em luta contra os pagatildeos em um tempo que vai ateacute o momento
de paz da Igreja no tempo de Constantino e Silvestre Corresponde tambeacutem a sete tribulaccedilotildees
paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos Desta forma o abade desenvolveu um sistema
de duplo septenaacuterio um trata de eventos da histoacuteria de Israel e o outro aponta para a histoacuteria
da Igreja Durante todo o seu comentaacuterio os meacutetodos hermenecircuticos do abade permitem que
ele encontre vaacuterios significados para os mesmos personagens e eventos do Apocalipse
O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi imaginado por
Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho enquanto eacute perseguida pelos judeus
No Antigo Testamento significa o nascimento de Israel por meio do cativeiro egiacutepcio
A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo vermelho cujo
cavaleiro carrega uma espada mortal O cavalo simboliza a Roma pagatilde com seus sacerdotes
e exeacutercitos Na histoacuteria da Igreja este selo inaugura a perseguiccedilatildeo dos fieacuteis sob o antigo
Impeacuterio Romano Corresponde na histoacuteria dos judeus agrave conquista de Canaatilde que vai do
tempo dos juiacutezes ateacute o governo de Davi
504 Conferir a discussatildeo sobre tipologia no capiacutetulo anterior
149
O terceiro selo que descreve um homem com um par de balanccedilas eacute a heresia de
Aacuterio cujo clero aparece representado no cavaleiro que traz terror e escuridatildeo para a feacute cristatilde
O ser angelical que anuncia este selo representa a ordem de doutores que proclamou a
verdade e enfrentou os arianos Na histoacuteria do Antigo Testamento corresponde ao periacuteodo
de enfrentamento dos siacuterios
Na abertura do quarto selo um cavalo paacutelido aparece trazendo pragas e eacute seguido
pelo Hades Este representa a ameaccedila sarracena cujo cavaleiro eacute Maomeacute que persegue os
cristatildeos Durante este periacuteodo os monges e virgens tentaram sobreviver e manter a feacute cristatilde
Corresponde ao tempo da tribulaccedilatildeo de Israel sob os assiacuterios
Ao abrir o quinto selo o Apocalipse descreve um grupo de almas debaixo do altar
Nos quatro primeiros selos cristatildeos foram perseguidos e mortos na Judeacuteia Roma Greacutecia e
Araacutebia Esta quinta perseguiccedilatildeo vem da Mauritacircnia e Espanha onde sarracenos mataram
muitos cristatildeos Tambeacutem significa o sofrimento da Igreja romana em luta contra os
imperadores germacircnicos As roupas brancas significam que os maacutertires passaram do luto
para a alegria A expressatildeo ldquoateacute que seus irmatildeos sejam mortosrdquo indica para Joaquim que
ainda resta um conflito final que promoveraacute o martiacuterio de muitos cristatildeos
O sexto selo descreve cataclismos coacutesmicos Ele representa o dia do julgamento da
Babilocircnia cujo significado eacute ldquoquem quer que ataque a Igreja de Pedro moral ou
fisicamenterdquo505 especialmente os falsos cristatildeos ou falsos membros da Igreja romana O
abade espera perseguiccedilotildees para os fieacuteis com papel significativo na histoacuteria jaacute que por meio
delas a Igreja seraacute purificada de sua corrupccedilatildeo
Na abertura do seacutetimo selo um silecircncio se manifesta no ceacuteu Para Joaquim ele
representa o sabbatum de descanso no qual um silecircncio contemplativo seraacute trazido agrave
realidade Em comparaccedilatildeo na correspondente era do Antigo Testamento depois de Esdras
e Malaquias cessou a produccedilatildeo de Escritura Entatildeo sob o seacutetimo selo natildeo seraacute mais preciso
a pregaccedilatildeo
A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas do Apocalipse
(Apocalipse 82-1118) Na estrutura geral eacute o tempo terceiro quando a ordem dos doutores
digladia contra os hereges em particular os arianos Mas tambeacutem corresponde a sete fases
A trombeta de nuacutemero um eacute a fase dos Apoacutestolos principalmente Paulo pregando contra o
Judaiacutesmo e o legalismo O granizo misturado com fogo e sangue significa o espiacuterito de
505 ldquoQuicumque Petri ecclesiam moribus viribusque impugnantrdquo (117v) As traduccedilotildees do Expositio neste
capiacutetulo satildeo proacuteprias a natildeo ser que haja indicaccedilotildees em contraacuterio
150
escuridatildeo dos coraccedilotildees dos judeus Como resultado um terccedilo dos judeus convertidos
apostatou de volta para o Judaiacutesmo
A segunda trombeta significa os Maacutertires da era poacutes-apostoacutelica pregando contra a
heresia dos nicolaiacutetas Nicolau eacute a montanha que caiu no ldquomar dos gentiosrdquo Por causa dele
um terccedilo dos pagatildeos convertidos abandonou a feacute A terceira trombeta simboliza os doutores
do tempo de Constantino O meteoro que cai eacute Aacuterio cujo erro desabou sobre bispos e
sacerdotes e contaminou a aacutegua pura das escrituras A quarta trombeta tipifica os monges e
as virgens que como luminares celestiais caminhando em contemplaccedilatildeo iluminam o
mundo Seratildeo em larga medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos A quinta
trombeta descreve gafanhotos-escorpiotildees que representam os pathareni506 As arvores que
os gafanhotos destroem indicam a Igreja catoacutelica A couraccedila dos escorpiotildees aponta para o
coraccedilatildeo duro dos perfecti entre os pathareni Neste ponto de seu comentaacuterio o abade fala de
um homem que escapou de uma prisatildeo em Alexandria no ano anterior (1195) Joaquim o
encontrou em Messina e ouviu dele notiacutecias de uma alianccedila entre sarracenos e pathareni A
esta alianccedila outras naccedilotildees hostis se juntaratildeo como os turcos do Oriente os mouros e os
berberes do sul
Entre a sexta e a seacutetima trombeta o Apocalipse descreveu trecircs cenas distintas a
convocaccedilatildeo para que se coma um livro a descriccedilatildeo da medida do templo e a atuaccedilatildeo das
duas testemunhas martirizadas pela besta Na cena em que o livro eacute comido o abade
descreveu a ordem monaacutestica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne)
A cidade santa que aparece na mediccedilatildeo do templo significa a Igreja romana A Igreja grega
por ter se afastado da seacute apostoacutelica eacute a parte externa do templo que seraacute dada aos gentios
Aos olhos de Joaquim isso jaacute aconteceu em grande medida mas os gregos podem esperar
por novas desolaccedilotildees A rejeiccedilatildeo ao filioque era para o abade a maior prova de apostasia da
Igreja grega507 Sobre as duas testemunhas Joaquim as entende como Moiseacutes e Elias ou
duas ordens espirituais que viratildeo no poder destes antigos personagens biacuteblicos para pregar
contra o Anticristo Segundo o abade ldquoMoiseacutes foi um Levita e pastor do povo de Israel
506 Joaquim usa o termo pathareni para se referir ao movimento dissidente conhecido como ldquocatarismordquo Cf
POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 308 Especificamente sobre esta dissidecircncia
medieval cf AGUSTIacute David Los caacutetaros el desafio de los humildes Madrid Siacutelex Ediciones 2006 507 WHALEN Brett Edward Dominion of God Christendom and Apocalypse in the Middle Ages Cambridge
Harvard University Press 2009 p 111 O filioque era uma foacutermula latina de descriccedilatildeo do relacionamento entre
as pessoas da Trindade Ela afirma a dupla origem do Espiacuterito procedendo simultaneamente do Pai e do Filho
Sobre a importacircncia do filioque para o pensamento de Joaquim cf DANIEL Randolph E The double
procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiores Understanding of History Speculum Chicago v 55 n 3
p 469-483 1980
151
Elias foi um homem solitaacuterio que natildeo teve esposa ou filhos Logo um representa a ordem
dos cleacuterigos o outro a ordem dos mongesrdquo508 Finalmente surge a seacutetima trombeta Eacute tempo
do julgamento da besta e do falso profeta O Anticristo e os seus seguidores seratildeo
exterminados Comeccedilaraacute entatildeo a fase final da histoacuteria da Igreja ldquoo terceiro status do mundo
que seraacute um tempo de descanso e contemplaccedilatildeo Nele apoacutes o fim das pessoas corruptas da
terra reinaraacute o povo santo do Altiacutessimordquo509 Esta seccedilatildeo termina com uma longa descriccedilatildeo da
conversatildeo final dos gregos e judeus agrave Igreja latina
A quarta parte do Expositio (153r-174v) natildeo apresenta uma estrutura clara no
Apocalipse (Apocalipse 1119-1420) mas mesmo assim o abade optou pela divisatildeo em sete
distinccedilotildees (distinctiones) A seccedilatildeo comeccedila na abertura do santuaacuterio celestial mas tem como
foco a histoacuteria do Dragatildeo510 Eacute o quarto tempo da histoacuteria da Igreja no qual a ordem dos
monges e das virgens luta contra Maomeacute a quarta cabeccedila do Dragatildeo Igualmente
corresponde a sete fases
A primeira distinccedilatildeo apresenta o conflito entre a mulher vestida de sol e o Dragatildeo
Nesta primeira batalha os protagonistas foram Pedro e seus sucessores O inimigo por sua
vez agiu atraveacutes de Herodes e Nero A segunda distinccedilatildeo apresenta a guerra entre Miguel e
o Dragatildeo (Apocalipse 127-12) como siacutembolo da perseguiccedilatildeo pagatilde aos cristatildeos ateacute o tempo
de Constantino A terceira distinccedilatildeo descreve a fuga da mulher para o deserto que representa
a perseguiccedilatildeo agrave igreja atraveacutes das monarquias arianas Ela fugiraacute para uma vida de retiro e
contemplaccedilatildeo durante 42 meses ou 1260 dias
A quarta distinccedilatildeo comeccedila em Apocalipse 1217 com o levantamento das duas
bestas e vai ateacute 145 (o ajuntamento das 144000 testemunhas do Cordeiro) A besta
representa a perseguiccedilatildeo sarracena aos eremitas e virgens mas tambeacutem indica por meio de
suas cabeccedilas uma seacuterie de adversaacuterios histoacutericos da igreja As quatro primeiras cabeccedilas
respectivamente eram os judeus pagatildeos romanos arianos e sarracenos Esta cabeccedila
sarracena parecia ter morrido em funccedilatildeo da tomada de Jerusaleacutem da conquista normanda
na Siciacutelia e da expulsatildeo dos mouros na Espanha Para Joaquim entretanto ela voltou a
viver tatildeo terriacutevel quanto antes e a tomada de Jerusaleacutem seria uma demonstraccedilatildeo disso Eacute a
508 ldquoMoses fuit Levita et pastor Populi Israel Helyas vir solitarius no habens filios aut uxorem Ille ergo
significat ordinem clericorum iste ordinem monachorumrdquo (148v) Muito se especularaacute posteriormente na
recepccedilatildeo do pensamento joaquimita sobre a relaccedilatildeo entre as duas testemunhas de Apocalipse e as ordens de
Francisco e Domingos Cf REEVES Marjorie The influence of prophecy in the Later Middle Ages a study
in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 72-73 509 ldquoEt ad tertium statum mundi qui erit in sabbatum et quietem in quo exterminatis prius corruptoribus
terrae regnaturus est populus sanetorum Altissimirdquo (152v) 510 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 314
152
cabeccedila que parecia ter morrido mas reviveu para impressionar o mundo todo Joaquim
interpretou a segunda besta de Apocalipse como um falso-profeta que se levantaraacute do meio
da igreja conhecendo e falando como um cristatildeo Este faraacute alianccedila com a ldquocabeccedila sarracenardquo
da primeira besta Satildeo os pathareni ldquoa escoacuteria dos heregesrdquo (haereticorum fex) Os 144000
que aparecem em Apocalipse 14 satildeo para o abade os monges e virgens da igreja que se
opotildee agravequeles que tecircm a marca da besta
A quinta distinccedilatildeo cobre apenas dois versiacuteculos do Apocalipse (Apocalipse 146-7)
Eacute o anuacutencio do Evangelho Eterno e do juiacutezo511 Tambeacutem eacute o tempo da desolaccedilatildeo da
Babilocircnia A sexta distinccedilatildeo (Apocalipse 148-12) descreve o anuacutencio dos dois uacuteltimos anjos
no ceacuteu Eacute o tempo do advento da Besta e do falso-profeta No momento de descrever a seacutetima
distinccedilatildeo (Apocalipse 1413-20) a cena do Filho do Homem e a ceifa Joaquim anuncia a
idade sabaacutetica final quando os fieacuteis viveratildeo na terra com aqueles que sobreviverem agrave queda
do Anticristo
Potestagrave alerta que o Expositio eacute um comentaacuterio biacuteblico e natildeo um tratado escolaacutestico
Aleacutem do mais ele foi escrito no transcurso de quase vinte anos de trabalho Isso faz com que
ele comporte algumas contradiccedilotildees ou oscilaccedilotildees Nesta seacutetima distinccedilatildeo por exemplo o
descanso sabaacutetico parece ter a presenccedila de Cristo na terra com os santos Nas outras
referecircncias ao mesmo periacuteodo Cristo natildeo exerce um papel pessoal na transiccedilatildeo para a era
do Espiacuterito512
A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seccedilatildeo das sete taccedilas do Apocalipse
(Apocalipse 151-1617) Eacute o quinto tempo da Igreja indicando o confronto da Igreja
romana simbolizada pelo trono de Deus contra Babilocircnia Cada taccedila representa tambeacutem
sete destinataacuterios da ira divina A primeira taccedila da ira foi despejada sobre os judaizantes que
adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica A segunda sobre a igreja infiel
antes de Constantino A terceira sobre os bispos arianos e seus ensinos depois de
Constantino A quarta sobre os hipoacutecritas das ordens contemplativas A quinta sobre os
falsos cleacuterigos e monges A sexta sobre os perversos do mundo A seacutetima taccedila sobre os
proacuteprios eleitos na forma de uma perseguiccedilatildeo purificadora
511 A expressatildeo ldquoEvangelho Eternordquo estaacute na origem da condenaccedilatildeo imposta a algumas ideias de Joaquim em
Anagni no ano de 1255 em funccedilatildeo da atividade do franciscano Geraldo de Borgo san Donnino Cf
ROSSATTO Noeli Dutra et all Evangelho eterno a hermenecircutica condenada Filosofia Unisinos Satildeo
Leopoldo v 11 n 3 p 298-339 2010 512 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 317
153
A sexta parte do Expositio (191v-209v) natildeo apresenta mais a divisatildeo septenaacuteria Esta
seccedilatildeo do Apocalipse descreve a queda da Babilocircnia e o juiacutezo sobre as bestas (Apocalipse
1618-1921) Eacute o sexto tempo da histoacuteria e trata da luta dos viri spirituales primeiramente
contra o Dragatildeo depois contra a besta que veio do mar e a besta que veio da terra O abade
viu nesta longa passagem biacuteblica trecircs distinccedilotildees A primeira (Apocalipse 1618-1824)
descreve a queda da Babilocircnia e da besta que a sustenta Potestagrave destaca que um aspecto
marcante desta distinccedilatildeo estaacute no fato de Joaquim ter retirado o Impeacuterio Germacircnico da seacuterie
de inimigos finais da igreja No seu sermatildeo de 1184 (Apocalipsis liber ultimus) o Impeacuterio
seria o adversaacuterio que iria purificar a Igreja dos seus pecados O mesmo aparece no texto
Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno (1184) Mas no momento em que o
abade escreve a sexta parte do Expositio o Impeacuterio natildeo representa mais um inimigo a ser
temido A cidade que cairaacute agora natildeo representa Roma ou o Impeacuterio Germacircnico mas
Constantinopla e o Impeacuterio Bizantino Babilocircnia se torna siacutembolo para qualquer oposiccedilatildeo agrave
Igreja de Roma513
A segunda distinccedilatildeo (Apocalipse 191-10) apresenta a exultaccedilatildeo dos fieacuteis diante da
ruiacutena da Babilocircnia A terceira distinccedilatildeo (Apocalipse 1911-21) apresenta a derrota da besta
e do falso-profeta Ambos representam inimigos da igreja desde o tempo dos apoacutestolos Nos
termos de Joaquim satildeo as ldquonaccedilotildees increacutedulas que uma vez estiveram sujeitas ao Impeacuterio
Romano e entatildeo perseguem a Cristo e sua Igrejardquo514 Suas sete cabeccedilas sucessivas satildeo a)
Herodes e seus judeus no reino da Judeacuteia b) os pagatildeos do Impeacuterio Romano ateacute o tempo de
Diocleciano c) reino grego ariano d) reino godo ariano e) reino vacircndalo ariano f) reino
lombardo ariano g) o impeacuterio de Maomeacute O tempo da seacutetima cabeccedila eacute o tempo da desolaccedilatildeo
da Babilocircnia Esta terceira distinccedilatildeo descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo branco
Segundo o abade esse cavaleiro pode indicar a manifestaccedilatildeo de Cristo para destruir a besta
atraveacutes de sua volta pessoal ou o poder de Cristo operado por meio de outras figuras
Inicialmente ele se inclina para uma vinda pessoal Depois entretanto admite que isso pode
ser explicado pela accedilatildeo invisiacutevel de Cristo em sua Igreja militante
Finalmente as duas proacuteximas seccedilotildees do Expositio fecham o livro A parte seacutetima
(209v-215r) discute o milecircnio (Apocalipse 201-10) e a oitava (215r-224r) a Jerusaleacutem
513 Idem p 319-320 514 ldquoUniversas gentes infideles quae aliquando subjectae fuerunt Romano imperio et persecutae sunt Christum
et ecclesiam ejusrdquo (196r)
154
Celestial (Apocalipse 2011-2221) Esta uacuteltima corresponde ao oitavo aetas natildeo mais
dentro da histoacuteria mas no seculum futurum posterior ao uacuteltimo tempo da humanidade
73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio
A seacutetima seccedilatildeo do Expositio eacute a menor do comentaacuterio de Joaquim o que natildeo significa
status diminuiacutedo O episoacutedio do milecircnio de Apocalipse 201-10 foi transformado em uma
espeacutecie de aacutepice antes do cliacutemax O fim do mundo com o juiacutezo final e a esfera porvir
continuam no horizonte (a seccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem) do abade mas este fim aguardado para
a ldquoeternidaderdquo recebeu uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica na histoacuteria Como argumentou Potestagrave a
estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade ldquoa descoberta que
a primeira parte de Apocalipse 20 trata daquele grande saacutebado futuro no final do mundo515
Curiosamente se Joaquim procura com sua metodologia hermenecircutica ldquoinventarrdquo
muacuteltiplos sentidos nas outras seccedilotildees do comentaacuterio nesta ele eacute econocircmico em detalhes sobre
as figuras e os eventos Em outros lugares do Expositio como na anaacutelise das duas
testemunhas do capiacutetulo 11 de Apocalipse ele multiplica os significados por meio da
alegoria tipologia e concordia516 Ao interpretar os dez versiacuteculos do reino messiacircnico de
Joatildeo (Apocalipse 201-10) entretanto ele se contenta em fornecer um agraves vezes dois
sentidos mas ainda vagos e imprecisos Diferente de Papias que chega a descrever o
tamanho das uvas do reino milenar517 o abade de Fiore no final de sua vida entende que
alguns poucos aspectos espirituais jaacute seriam suficientes para alimentar a expectativa da
Igreja
Joaquim dividiu esta seacutetima seccedilatildeo do Expositio em quatro partes precedidas de uma
introduccedilatildeo
- Introduccedilatildeo 209v-210v
- Pars prima 210v-212r (comentaacuterio de Apocalipse 201-3)
- Pars secunda 212r-214v (comentaacuterio de Apocalipse 204)
515 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 299 516 Extrateacutegias hermenecircuticas apresentadas no capiacutetulo anterior 517 Conferir a citaccedilatildeo em DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1997 p 23 ldquoViratildeo dias em que as vinhas cresceratildeo em que cada uma teraacute dez mil
vides e em cada vide dez mil ramos e em cada ramo dez mil bototildees e em cada botatildeo dez mil cachos e em
cada cacho dez mil uvas e cada uva prensada daraacute vinte e cinco medidas de vinho E quando um dos santos
colher um cacho o outro lhe diraacute sou melhor colha-me e abenccediloa o Senhor atraveacutes de mimrdquo
155
- Pars tertia 214v (comentaacuterio de Apocalipse 205-6)
- Pars quarta 214v-215r (comentaacuterio de Apocalipse 207-10)
A introduccedilatildeo eacute aberta logo com a frase ldquoestatildeo completadas seis partes do livro de
Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de trabalho Vem agora a seacutetima parte na
qual vemos aquele saacutebado futuro no fim do mundo que em outro lugar chamamos de terceiro
statusrdquo518 Fica clara assim a relaccedilatildeo construiacuteda por Joaquim entre o milecircnio de Apocalipse
20 e um periacuteodo de paz na terra durante o fim do terceiro status da histoacuteria da humanidade
Ele completa ainda que se trata do ldquotertium statum sive etiam septimam mundi statemrdquo (do
terceiro status ou da seacutetima idade do mundo) Corresponde tambeacutem agrave seacutetima aetas da Igreja
que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do seu Expositio
Apoacutes estas frases de definiccedilatildeo ou mesmo de contextualizaccedilatildeo o abade recorre a
Agostinho e uma figura que ele chama de St Remigius Do primeiro ele toma a ideia de que
a expressatildeo ldquodia finalrdquo nas Escrituras natildeo precisa ser entendida como significando o uacuteltimo
momento do mundo podendo antes ser uma uacuteltima fase ou entatildeo o tempo do fim Por isso
os autores biacuteblicos poderiam dizer haacute mais de mil anos que ldquojaacute era a uacuteltima horardquo No
segundo ele busca apoio para a afirmaccedilatildeo de que haveraacute um certo tempo de duraccedilatildeo
indeterminada posterior agrave derrota do Anticristo Esse parece ser o motivo dele ter buscado
nesta figura de identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua
interpretaccedilatildeo Segundo Potestagrave provavelmente este Remigius foi um exegeta do seacuteculo XII
cuja obra foi atribuiacuteda a um certo Aimone de Halberstadt519
A ideia de um periacuteodo sabaacutetico na terra representa descontinuidade com a tradiccedilatildeo
exegeacutetica de Agostinho520 Joaquim estaacute ciente disso e gasta algumas linhas do seu
comentaacuterio para explicar que a expectativa da vinda agrave terra de uma seacutetima aetas na qual a
Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e reinaria sem perturbaccedilatildeo na plena possessatildeo da
ldquointeligecircncia espiritualrdquo natildeo eacute um erro mas uma maior compreensatildeo Segundo o abade eacute
uma ldquoopiniatildeo racional natildeo contraacuteria agrave feacuterdquo521
518 ldquoPeractis sex partibus libri Apocalypsis in quibus notata sunt sex tempora laboriosa Veniendum est
quandoque ad septimam partem im qua agitur de magno illo sabbato in fine mundi futuro quod vocari placluit
tertium statumrdquo (209v) 519 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 323 520 Segundo MC Ginn ldquoem nenhuma outra parte do seu longo comentaacuterio Joaquim mostra a ruptura com
setecentos anos de tradiccedilatildeo exegeacutetica latina como na descriccedilatildeo do reino milenar de Cristo e dos santos na terra
de Apocalipse 20rdquo Cf MCGINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 521 ldquoTamen esse potest rationabilis opinio que non sit contra fidemrdquo (210v)
156
Apoacutes isso ele usa boa parte da introduccedilatildeo para retomar aspectos que precederiam o
periacuteodo sabaacutetico o diabo lanccedilaraacute os sarracenos contra o impeacuterio cristatildeo apoacutes a queda da
Babilocircnia haveraacute um pequeno periacuteodo de tranquilidade para a Igreja entatildeo a besta que
parecia morta se ergueraacute novamente para uma segunda batalha contra os exeacutercitos de fieacuteis
o resultado seraacute a derrota da besta e do falso profeta e finalmente se seguiraacute uma grande
paz o descanso sabaacutetico
A partir de entatildeo ele analisa os versiacuteculos de Apocalipse 201-10 por meio da
estrateacutegia que jaacute utilizou no restante do comentaacuterio haacute uma transcriccedilatildeo de uma pequena
porccedilatildeo do texto na sua versatildeo latina522 seguido de comentaacuterios exegeacuteticos filoloacutegicos e
histoacutericos
A primeira parte da seccedilatildeo corresponde a Apocalipse 201-3 (a prisatildeo de Satanaacutes) Eacute
possiacutevel notar uma pequena diferenccedila entre o texto latino usado por Joaquim e a Vulgata
Clementina No versiacuteculo trecircs a Clementina usou o termo consummentur (seja concluiacutedo)
enquanto Joaquim transcreveu compleant (seja completado) De qualquer forma satildeo termos
intercambiaacuteveis sem grandes implicaccedilotildees textuais para a periacutecope
O abade comeccedila com a discussatildeo do significado da expressatildeo ldquomil anosrdquo O nuacutemero
natildeo eacute literal jaacute que ele significa um nuacutemero perfeito523 Isso indicaria que a duraccedilatildeo da prisatildeo
de Satanaacutes seria durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo Mesmo assim o abade aplica ao tempo
milenar dois significados secundum parte et secundum plenitudinem O primeiro teve um
cumprimento inicial (incipient) no tempo da ressureiccedilatildeo de Cristo Neste sentido o milecircnio
se estenderia daquela eacutepoca ateacute o fim do mundo durante todo o tempo da histoacuteria da Igreja
(ldquoad totum tempus ecdesierdquo) Mas seu perfeito e completo cumprimento seraacute no tempo
sabaacutetico (ldquoad sabbatumrdquo) depois da destruiccedilatildeo da besta
Nos seus termos o milecircnio do Apocalipse teria um cumprimento duplo
ldquoparcialmente a partir daquele saacutebado em que o Senhor descansou no sepulcro plenamente
apoacutes a destruiccedilatildeo da Besta e do Falso-profetardquo524 Eacute uma forma curiosa de afirmar a posiccedilatildeo
de Agostinho (milecircnio como o tempo de existecircncia histoacuterica da Igreja) para logo em seguida
522 Natildeo haacute marcaccedilatildeo de capiacutetulos ou versiacuteculos na versatildeo latina usada por Joaquim Ela difere levemente da
Vulgata Clementina usada nesta tese COLUNGA Alberto TURRADO Laurentio Biblia Sacra iuxta
Vulgatam Clementinam Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1965 523 ldquoMillenarius numerus perfectissimus estrdquo (210v) 524 ldquoSecundum partem incipit ab illo sabbato quo requievit Dominus in sepulchro secundum plenitudinem sui
a ruina Bestiae et Pseudo-Profhetaerdquo (211r)
157
abandonaacute-la em prol da retomada da antiga posiccedilatildeo quiliasta (milecircnio como um periacuteodo
futuro intra-histoacuterico)525
Para Joaquim o autor de ldquoConfessionesrdquo estava correto apenas parcialmente Como
ele o abade insiste em afirmar que o milecircnio natildeo seraacute literal Pode ser longo ou curto mas
sua ldquoduraccedilatildeo seraacute segundo o arbiacutetrio de Deusrdquo526 Talvez seja mesmo curto mas o tempo
esclareceraacute isto
Sobre a atuaccedilatildeo do Espiacuterito o abade afirma que ele manteraacute a chave da prisatildeo de
Satanaacutes Neste periacuteodo a terceira pessoa da Trindade atuaraacute sobre toda a terra natildeo apenas
sobre os fieacuteis mas tambeacutem sobre os pagatildeos Por isso ldquohaveraacute uma grande paz como nunca
antes desde o princiacutepio dos seacuteculosrdquo527
Ele volta a mencionar Agostinho que afirmara inicialmente uma opiniatildeo sobre o
milecircnio e depois mudou de ideia528 Seu argumento eacute que o bispo de Hipona soacute deixou a
perspectiva de um milecircnio histoacuterico por causa das expressotildees exageradamente ldquocarnaisrdquo dos
defensores do quiliasmo daquela eacutepoca Mas o fato de crer na vinda sobre a terra de uma
seacutetima aetas muito melhor que as anteriores natildeo constitui um erro mas eacute sim uma
ldquocompreensatildeo tranquilardquo529
No foacutelio 211r o abade fala do ldquoreinar do Espiacuterito Santordquo (ldquoregnare Spiritus divinusrdquo)
no que se constitui uma significativa alternativa ao ldquoreino de Cristordquo de Apocalipse 201-10
Haacute ainda uma insistecircncia de Joaquim em caracterizar este periacuteodo como um tempo de paz
ldquoGenuiacutena paz fruiraacute para a Igreja de Cristordquo530
A segunda parte da seacutetima seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 204-5a531 e
ocupa apenas uma coluna do foacutelio 212r Joaquim comeccedila indicando a relaccedilatildeo do texto de
Joatildeo com ldquoo povo santo do altiacutessimordquo descrito por Daniel ldquocujo reino eacute eternordquo532 O abade
entende que os ldquomille annirdquo destes versiacuteculos devem ser paralelos agrave prisatildeo de Satanaacutes ldquoO
525 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 324 MC GINN Bernard LrsquoAbate
Calabrese op cit p 169 526 ldquoCujus terminus erit in arbitrio Deirdquo (210b) 527 ldquoErit magna pax qualis non fuit aprincipio seculirdquo (210v) 528 ldquoVera fuit illo opinio immo non jam opiniordquo (211r) A citaccedilatildeo veio de De Civitate Dei 2071 Versatildeo
consultada SANTO AGOSTINHO A cidade de Deus Petroacutepolis Vozes 2012 2 v V 1 p 514 529 ldquoSerenissimus intellectusrdquo (211r) 530 ldquoVera pace frui poterit ecclesia Christirdquo (211r) 531 No texto joanino o bloco comeccedila com a menccedilatildeo dos tronos passa pela descriccedilatildeo dos maacutertires que
reviveram e termina na explicaccedilatildeo de que os demais natildeo reviveram ateacute o fim dos mil anos 532 ldquoCuius regnum sempiternum estrdquo (212r)
158
tempo do reino dos Santos seraacute interligado com o tempo da prisatildeo do Dragatildeordquo533 Seraacute um
tempo breve de duraccedilatildeo incerta no qual a Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e alcaccedilaraacute a
plena possessatildeo da ldquointelligentia spiritualisrdquo
A ressurreiccedilatildeo mencionada por Joatildeo eacute tambeacutem entendida como a prevista em Daniel
12 Jaacute os mortos que natildeo reviveram ateacute o final do milecircnio segundo Joaquim seratildeo os fieacuteis
que ressuscitaratildeo e entraratildeo direto na Nova Jerusaleacutem sem passar pelo julgamento do ldquotrono
brancordquo descrito a partir de Apocalipse 2011 Mas ele admite dificuldades neste ponto e
entende que eacute preciso esperar por novos esclarecimentos espirituais
A terceira parte da seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 205b-6 que natildeo passa
de uma declaraccedilatildeo do estado daqueles que participam da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo Eacute um bloco
muito pequeno soacute ocupando 19 linhas de uma coluna do foacutelio 214v A versatildeo latina citada
pelo abade declara ldquobeatus et sanctus qui habet partem in resurrectione primardquo (Exp Ap
214v) Percebe-se que Joaquim natildeo tem muito para falar sobre estes versiacuteculos do
Apocalipse Ele se contenta em afirmar que aqueles que experimentarem a ldquoprimeira
ressurreiccedilatildeordquo seratildeo realmente felizes (felicius viro) pois natildeo estaratildeo mais ao alcance da
morte
A quarta e uacuteltima seccedilatildeo da seacutetima parte do Expositio corresponde a Apocalipse 207-
10 (a volta de Satanaacutes e o confronto contra Gog e Magog) Joaquim recorre agrave passagem
paulina de 1Tessalonicenses 413 para descrever duas ressurreiccedilotildees Segundo o abade
alguns ressuscitaratildeo logo outros depois Tambeacutem vincula o texto de Joatildeo com uma profecia
de Ezequiel 38 ao descrever um conflito no final dos tempos A paz do periacuteodo sabaacutetico
seraacute interrompida quando Satanaacutes for solto do abismo e instaurar a tribulaccedilatildeo de Gog e
Magog que significa uma uacuteltima ameaccedila para os cristatildeos vinda dos confins do Oriente
talvez de povos que no passado longiacutenquo foram aprisionados por Alexandre o Grande Este
exeacutercito se levantaraacute contra a ldquocidade amada no fim dos seacuteculosrdquo534 mas seraacute logo destruiacutedo
Assim a besta e o falso-profeta foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine
sexte etatis) e Satanaacutes o seraacute no fim da seacutetima (in fine septime)
Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto e fala em muacuteltiplas
ldquoopinionesrdquo Por fim conclui com outra alusatildeo a Daniel no sentido de que quando for vista
533 ldquoIdem tempu intelligatur incarcerationis draconis et regni Santorumrdquo (212r) 534 ldquoCivitatem dilectam in consumatione seculirdquo (214v)
159
a ldquoabominaccedilatildeo da desolaccedilatildeordquo (ldquoabominationem desolationisrdquo) eacute porque ldquoestas coisasrdquo estatildeo
para se cumprir535
74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito
Segundo Bernard MCGinn Joaquim era um ldquoum convicto utopista no sentido de
que ele sentia ardentemente a iminecircncia da condiccedilatildeo ideal de vida sobre a terrardquo536 Sua
descriccedilatildeo desta eacutepoca futura parece realmente estar marcada pela ansiedade Ele desejava
ver o que naquele momento apenas podia imaginar e esperava estar vivo quando tudo
acontecesse jaacute que aguardava a manifestaccedilatildeo deste periacuteodo histoacuterico para breve Mas que
tipo de vida o abade esperava Quais seriam as tais ldquocondiccedilotildees ideaisrdquo de existecircncia humana
sobre a terra
Acima de tudo seria o reino do Espiacuterito (regnus Spiriti Divini) O Espiacuterito eacute a mais
frequente referecircncia de Joaquim para este periacuteodo Ele eacute o ldquoanjordquo que amarraraacute Satanaacutes por
ldquomil anosrdquo ou seja durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo de tempo Talvez por uma geraccedilatildeo (30
anos)537 Assim o ministeacuterio de Cristo a segunda pessoa da Trindade e o ministeacuterio do
Espiacuterito Santo a terceira pessoa durariam igualmente 30 anos Seraacute um periacuteodo curto mas
necessaacuterio agrave luz da revelaccedilatildeo trinitaacuteria agrave humanidade jaacute que o Pai se manifestou no primeiro
status e o Filho no segundo O terceiro status pertence ao Espiacuterito
Durante este tempo o Espiacuterito atuaraacute sobre toda a terra enchendo-a de paz Essa seraacute
sua principal caracteriacutestica Finalmente teraacute acabado a longa seacuterie de conflitos e perseguiccedilotildees
que marcou os dois povos de Deus (Israel e Igreja) desde o iniacutecio da histoacuteria Neste periacuteodo
ambos estaratildeo unidos (judeus e gentios) debaixo da plena posse da ldquointeligecircncia espiritualrdquo
para conhecer os segredos das Escrituras Joaquim fala de uma ldquocidade amadardquo no final da
seacutetima seccedilatildeo do Expositio o que pode ser uma indicaccedilatildeo de que Joaquim esperava que
535 Em Daniel 927 registra-se que algueacutem viraacute sobre ldquoas asas da abominaccedilatildeordquo A mesma imagem eacute usada em
Daniel 1131 e 1211 mas a referecircncia primaacuteria em termos histoacutericos e literaacuterios eacute mesmo Daniel 9 quando
o autor apocaliacuteptico descreve a profanaccedilatildeo do templo por Antiacuteoco Epiacutefanes A funccedilatildeo principal desta narrativa
apocaliacuteptica era garantir que o tempo de anguacutestia dos leitores estava para chegar ao fim e por isso o relato
anuncia uma iminente ldquogrande abominaccedilatildeordquo (referecircncia agrave profanaccedilatildeo do templo de Jerusaleacutem) mas garante
que quando isso acontecer a libertaccedilatildeo divina viraacute em seguida Cf COLLINS John J Daniel with in
introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 1984 p 93 536 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 537 Joaquim usa o termo ldquogeraccedilatildeordquo para descrever periacuteodos histoacutericos Uma geraccedilatildeo teria a duraccedilatildeo de trinta
anos Do nascimento de Jesus ateacute o descanso sabaacutetico 1260 anos 42 geraccedilotildees passaram Cf WEST
ZIMDARS-SWARTZ op cit p 32-35
160
Jerusaleacutem fosse o lugar desta reuniatildeo universal dos ldquopovos do altiacutessimordquo no final dos
tempos538 Assim se a graccedila de Deus se moveu do Oriente para o Ocidente no periacuteodo
sabaacutetico ela voltaraacute do Ocidente para o Oriente
Joaquim denomina o periacuteodo de sabbatum e abre a seacutetima seccedilatildeo do Expositio falando
dos seis ldquotemposrdquo anteriores (tempore laboriosa) Se o ocasiatildeo anterior foi de trabalho este
uacuteltimo tempo da histoacuteria seraacute de descanso Por isso eacute um ldquosaacutebadordquo expressatildeo que faz alusatildeo
agrave semana primordial de criaccedilatildeo das Escrituras hebraicas cuja narrativa descreve a divindade
criando o mundo em seis dias No seacutetimo entretanto descansou ldquode toda a sua obra que
tinha feito E abenccediloou Deus o dia seacutetimo e o santificou porque nele descansou de toda a
obra que como Criador fizerardquo (Gecircnesis 22-3) Esse relato dos primoacuterdios retorna vaacuterias
vezes nas narrativas biacuteblicas Em uma delas surge no coacutedigo legal judaico conhecido como
ldquodez mandamentosrdquo ldquoem seis dias fez o Senhor os ceacuteus e a terra o mar e tudo o que neles
haacute e ao seacutetimo dia descansou por isso o Senhor abenccediloou o dia de saacutebado e o santificourdquo
(Ecircxodo 2011) O texto da Vulgata assim traduziu uma das expressotildees ldquobenedixit Dominus
diei sabbatirdquo Tomando esta semana da criaccedilatildeo como uma das estruturas da histoacuteria da
humanidade o abade vinculou os tempos anteriores de trabalho com os seis primeiros dias
aguardando com muita ansiedade o ldquoseptimum mundi statemrdquo o saacutebado de descanso
espiritual539
Na seacutetima parte do Expositio a descriccedilatildeo deste saacutebado final permanece vaga em
muitos aspectos Joaquim fala de caracteriacutesticas como pax e spiritualis intellectus A
primeira eacute uma inversatildeo dos sucessivos conflitos que caracterizaram a histoacuteria da
humanidade A segunda aponta para um aperfeiccediloamento da sabedoria dos homens e
mulheres do final da histoacuteria que excederaacute a sabedoria dos livros e tornaraacute desnecessaacuteria a
pregaccedilatildeo Mas se desejamos uma caracterizaccedilatildeo mais abrangente precisamos recorrer a
outra fonte do pensamento do abade de Fiore
Joaquim transformou algumas de suas ideias em imagens e esquemas o que faz com
que uma forma de aproximaccedilatildeo ao saacutebado do Espiacuterito esteja no documento conhecido como
Liber Figurarum540 Esta obra sobreviveu como uma coletacircnea de figuras do abade Algumas
538 WHALEN op cit p 123 539 Idem p 106 540 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 169 Para uma anaacutelise ampla do Liber Figurarum cf
REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiore Genuine and spurious collections Medieval and
Renaissance Studies Los Angeles v 3 p 170-199 1954 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo
Gioachimita op cit p 99-106 Usamos a ediccedilatildeo encontrada em GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio
del mistero Le tavole del Liber Figurarum di Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi
Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000
161
destas aparecem no contexto dos livros autecircnticos Outras exclusivamente no Liber No
total satildeo 26 figuras resultado da ediccedilatildeo dos disciacutepulos de Joaquim que natildeo apenas
organizaram suas principais imagens mas tambeacutem desenharam outras seguindo de perto
suas ideias541 Para a professora Reeves estas imagens ldquosatildeo exposiccedilotildees do seu sistema de
pensamento natildeo meramente ilustraccedilotildees para seus textos Satildeo projetos independentes que
incorporam as diversas estruturas do pensamento de Joaquim eventualmente de forma mais
adequada do que palavras poderiam fazerrdquo542
Uma das figuras que mais claramente tratou do periacuteodo sabaacutetico foi a Dispositio novi
ordinis pertinens ad tertium statum (Liber Figurarum Tav XII)543 Eacute um diagrama da
sociedade do final dos tempos Percebe-se que o abade apresenta essa nova sociedade com
elementos de descontinuidade e continuidade em relaccedilatildeo ao tempo anterior A Igreja por
exemplo seraacute transformada mas natildeo necessariamente descontinuada
A nova sociedade foi desenhada na forma de uma cruz grega com suas partes
transformadas em oratoacuterios o que define o centro desta nova realidade humana como uma
grande instituiccedilatildeo religiosa generalizada e universal A figura eacute formada por um oratoacuterio
central cercada por outros quatro oratoacuterios que correspondem a diversos tipos de vida
monaacutestica tendo na parte inferior da figura dois outros oratoacuterios maiores em circunferecircncia
mas distantes dos oratoacuterios centrais Ou seja satildeo cinco oratoacuterios dedicados a tipos distintos
de monges (ordo monachorum) um para os cleacuterigos (ordo clericorum) e outro para os leigos
(ordo coniugatorum)
A imagem foi baseada na passagem de 1Coriacutentios 1212 quando Paulo descreve o
corpo com muitas partes que formam um soacute organismo quando estatildeo todas juntas Joaquim
combinou esta imagem com a visatildeo dos ldquoseres viventesrdquo de Apocalipse 4 um leatildeo um boi
um homem e uma aacuteguia Em seguida ele aplicou a estes seres os ldquocarismasrdquo de Efeacutesios 4
apoacutestolos profetas evangelistas e pastores-mestres O resultado dessa amaacutelgama eacute uma
comunidade que daacute unidade e plenitude ao ldquopovo do altiacutessimordquo na terra
Nesta comunidade religiosa perfeita do fim do mundo numa posiccedilatildeo correspondente
ao ldquonarizrdquo da sociedade estaacute o pater spiritualis que guia pelo exemplo e dedicaccedilatildeo Este
541 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 13-125 p 100 MC GINN Bernard
Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der Joachim of Fiore the
Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 103 542 REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiorehellip op cit p 199 543 Conferir esta imagem no anexo 4 retirada de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op
cit p 13 Para a anaacutelise da Dispositio cf MCGINN Bernard Apocalyptic Spirituality op cit p 111-112
TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 103-104
162
oratoacuterio eacute dedicado agrave ldquoMaria e a Santa Jerusaleacutemrdquo Ele eacute simbolizado pela pomba e funciona
como um conselho para o restante da sociedade Joaquim o denomina tambeacutem de ldquotrono de
Deusrdquo como em Apocalipse 4 O ldquopai espiritualrdquo e os demais membros deste oratoacuterio
seguem a ldquoregrardquo na pureza da forma No interior do oratoacuterio aparece a descriccedilatildeo ldquoEste local
seraacute a matildee de todos os locais Seraacute o pai espiritual que presidiraacute todos os lugaresrdquo544
Agrave esquerda do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPedro e de Todos os Santos
Apoacutestolosrdquo Esta parte representa a matildeo Eacute simbolizada pelo Leatildeo e funciona como uma
casa para pessoas idosas e doentes se recuperarem por meio do ldquoespiacuterito de fortalezardquo
Apesar da fragilidade dos seus membros eles ainda seguem a regra religiosa
Neste oratoacuterio vatildeo viver estes irmatildeos delicados e velhos que por
fraqueza de estocircmago natildeo podem suportar a austeridade da regra e do
jejum mas ainda assim como podem se esforccedilam para proceder de
acordo com a pureza da regra Eles natildeo seratildeo obrigados a sair para os
campos para fazer trabalhos manuais mas vatildeo executar seus trabalhos
em casa debaixo de cuidados Natildeo seraacute permitida a entrada neste oratoacuterio
por vontade proacutepria ou escolha mas apenas aqueles a quem ordenou o
abade545
Agrave direita do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPaulo e de todos os Doutores da
Igrejardquo Esta casa representa a ldquoorelhardquo e eacute simbolizada por um ldquohomemrdquo Funciona como
um centro de aprendizagem onde pessoas iratildeo estudar com a ajuda do ldquoespiacuterito de
inteligecircnciardquo ldquoNeste oratoacuterio vivem homens eruditos entretanto com desejo de aprender as
coisas de Deus e que desejam dedicar-se mais do que os outros para ler e estudar a doutrina
espiritualrdquo546
Acima do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoJoatildeo evangelista e dos Santos Virgensrdquo
Esta parte representa os ldquoolhosrdquo Eacute simbolizada pela aacuteguia e seu papel eacute a contemplaccedilatildeo
debaixo da completa clausura O ldquoespiacuterito de sabedoriardquo estaacute sobre aqueles que estatildeo nesta
casa Eacute aqui que os ldquoviri spiritualesrdquo viveratildeo vidas perfeitas atraveacutes do louvor e da
contemplaccedilatildeo Segundo a descriccedilatildeo na imagem ldquoneste oratoacuterio viveratildeo homens perfeitos e
virtuosos que inflamados pelo desejo de vida espiritual querem levar uma vida
contemplativardquo547 Eles ldquojejuam o tempo todo exceto por motivo de doenccedila Natildeo bebem
544 GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 13-14 545 Idem 546 Idem 547 Idem
163
vinho e nem comem alimentos temperado com oacuteleo exceto nos domingos e nos principais
dias festivosrdquo548
Abaixo do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoEstevatildeo e de todos os Santos
Martirizadosrdquo Ele eacute simbolizado pelo ldquoboirdquo e representa a ldquobocardquo da comunidade Por meio
do ldquoespiacuterito de ciecircnciardquo estes membros seratildeo preparados e treinados em grande disciplina
espiritual Neste oratoacuterio ldquovivem os irmatildeos que tecircm forccedila para a atividade exterior e natildeo
podem progredir na disciplina espiritual como apropriadordquo Esta descriccedilatildeo jaacute indica um
decliacutenio de status em relaccedilatildeo aos membros dos oratoacuterios superiores e seus representantes de
alto ideal de vida religiosa
Na parte inferior da figura haacute ainda outros dois oratoacuterios que consomem um grande
espaccedilo da imagem Haacute um intervalo maior entre eles e a parte superior da Dispositio mas
ainda haacute uma ligaccedilatildeo como aparece no registro ldquoentre o mosteiro e a sede do clero deve
existir uma distacircncia de quase trecircs milhasrdquo Elemento semelhante seraacute repetido para o espaccedilo
que separa as duas casas de baixo
O oratoacuterio do clero eacute chamado de ldquoJoatildeo Batista e dos Profetasrdquo Eacute uma casa larga e
representa os ldquopeacutesrdquo da comunidade Eacute simbolizada por um ldquocachorrordquo Por meio do ldquoespiacuterito
de devoccedilatildeordquo sacerdotes e cleacuterigos vivem em continecircncia e comunidade sob a abstinecircncia
de alguns tipos de alimento e de roupa festiva
Entre o oratoacuterio do clero e o mais inferior que forma a base surge novamente a
menccedilatildeo do espaccedilo de separaccedilatildeo entre os edifiacutecios tema que aponta para um distanciamento
natildeo apenas espacial entre os personagens de cada um mas tambeacutem de poder funccedilatildeo e papel
ldquoentre estes dois oratoacuterios deve existir um espaccedilo de cerca de trecircs estaacutediosrdquo549
Na parte inferior da figura estaacute o oratoacuterio de ldquoAbraatildeo e dos Patriarcasrdquo representado
por uma ovelha cuja funccedilatildeo eacute servir de casa para pessoas casadas e seus filhos sob o ldquotemor
pela salvaccedilatildeordquo Estes viveratildeo em casas privadas mas suas vidas seguiratildeo as ordens do pater
spiritualis e seus supervisores Eles trabalharatildeo regularmente daratildeo o diacutezimo e viveratildeo uma
vida nivelada sem distinccedilatildeo de classes e com bens materiais em comum A imagem ainda
registra ldquoSob o nome deste oratoacuterio estaratildeo reunidos os cocircnjuges com seus filhos e filhas
em forma comunitaacuteria para ter relaccedilotildees com as esposas mais para produzir descendentes
do que para satisfazer os desejosrdquo550
548 Idem 549 Idem 550 Idem
164
Por meio da Dispositio surge a descriccedilatildeo de uma realidade social fortemente
estruturada com espaccedilos geograacuteficos marcados por status funccedilatildeo e dinacircmica religiosa e
social Joaquim recorreu ao texto de Efeacutesios 43 para falar da metaacutefora do corpo de Cristo
com oacutergatildeos diferentes Usou tambeacutem Joatildeo 142 para trazer a imagem das vaacuterias casas
divinas Por meio destas metaacuteforas ele compocircs a imagem de sete ldquocasas espirituaisrdquo nas
quais leigos diferentes niacuteveis de monges cleacuterigos e sacerdotes habitaratildeo551 Estas sete casas
satildeo ordenadas como se fossem a futura Jerusaleacutem transcendental de Apocalipse 22 Natildeo eacute
ainda aquela mas uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica de suas qualidades Esta comunidade
monaacutestica se manifestaraacute no periacuteodo sabaacutetico em ldquosemelhanccedila agrave Jerusaleacutem Celesterdquo552
A Dispositio conteacutem o plano de um monasteacuterio perfeito no qual a vida contemplativa
desempenha o papel central da existecircncia humana553 Apesar do predomiacutenio da ordo
monachorum haveraacute tambeacutem possivelmente sob os influxos da espiritualidade
cisterciense554 espaccedilo para trabalho e estudo Daiacute a existecircncia dos leigos para trabalhar dos
cleacuterigos para ministrar os sacramentos aos leigos e do ldquooratoacuterio do boirdquo formado por
monges que teratildeo contato com cleacuterigos
Mesmo se recusando a definir Joaquim como milenarista em funccedilatildeo de uma definiccedilatildeo
estreita do fenocircmeno555 o francecircs Jean Delumeau descreve longamente o sistema do calabrecircs
na segunda obra de sua trilogia dedicada ao estudo do paraiacuteso556 No momento de resumir a
natureza do repouso sabaacutetico o historiador francecircs recorreu a diversas expressotildees do abade
e forneceu esta siacutentese que dificilmente poderia deixar de ser definida como milenarista
Depois do tempo da ldquolei e da ldquograccedilardquo viraacute portanto o da ldquomaior graccedilardquo
durante o qual a natureza se transformaraacute e se embelezaraacute A liberdade
espiritual floresceraacute no mundo Entatildeo ldquonatildeo haveraacute mais sofrimentos e
gemidos Reinaratildeo ao contraacuterio o repouso a calma a abundacircncia da pazrdquo
Seremos voltados agrave contemplaccedilatildeo ao louvor ldquoDanccedilaremos de alegria ao
contemplar os admiraacuteveis desiacutegnios de Deusrdquo Natildeo haveraacute mais
necessidade de escrever livros para explicar as Escrituras A preacutedica se
deteraacute O tempo da letra teraacute terminado Os fieis contemplaratildeo os misteacuterios
551 Idem 552 Idem 553 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 25 554 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango v
1 p 217-240 2004 p 229 555 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias
Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria
mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 556 A trilogia de Delumeau eacute formada pelas seguintes obras DELUMEAU Jean Une histoire du paradis Le
Jardin des deacutelices Fayard Hachette Litteacuteratures 2002 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma
histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 DELUMEAU Jean O que sobrou do paraiacuteso
Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003
165
em plena luz O Evangelho segundo a letra seraacute substituiacutedo pelo
ldquoEvangelho eternordquo que procede do Evangelho de Cristo A verdade nos
seraacute dada em sua simplicidade557
O saacutebado do Espiacuterito descrito por Joaquim eacute sim um tipo de milenarismo uma
forma de utopia social558 que espera por um periacuteodo de felicidade para toda a humanidade
mesmo que afirme alguns benefiacutecios especiais para um grupo dentro dela Este periacuteodo seraacute
terreno e natildeo numa realidade transcendental eacute iminente pois a transformaccedilatildeo estaacute proacutexima
de comeccedilar seraacute miraculosa jaacute que as mudanccedilas aconteceratildeo por meio da atuaccedilatildeo
sobrenatural do Espiacuterito divino Tal felicidade seraacute total com a inversatildeo dos males da terra
mas natildeo com a destruiccedilatildeo de todas as instituiccedilotildees anteriores A Igreja sobreviveraacute
completamente transformada e sob a direccedilatildeo de um novo tipo de papado o ldquouniversalis
scilicet pontifex nove Ierusalemrdquo (certamente o pontiacutefice universal da nova Jerusaleacutem) ou
ldquopapa angelicusrdquo559
75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito560
O historiador inglecircs Norman Cohn no momento de apresentar Joaquim de Fiore
como o ldquoinventorrdquo do sistema profeacutetico ldquomais influente de todos os conhecidos na Europa
ateacute ao aparecimento do marxismordquo argumenta que a origem do seu sistema estaacute na
conjugaccedilatildeo de ldquoescatologias derivadas do Apocalipse e dos Oraacuteculos Sibilinosrdquo561 Ao
discutir o conceito de milenarismo na Idade Meacutedia o medievalista Robert Lerner argumenta
557 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 45 As aspas pertencem ao texto citado 558 Assim se expressou Cohn ldquoPor mais respeito que Joaquim tivesse agraves doutrinas exigecircncias e interesses da
Igreja o que ele propusera era na verdade um novo tipo de milenarismo ndash e aliaacutes um tipo que as geraccedilotildees
futuras haveriam de elaborar num sentido antieclesiaacutestico e depois num sentido abertamente secularrdquo Cf
COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia
Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 90 559 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard
K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-
88 p 85 560 Em alguns momentos a busca pelas fontes dos textos eacute uma tarefa ingloacuteria Os autores natildeo informam seus
pontos de partida e o maacuteximo que encontramos satildeo alusotildees mais ou menos transparentes Aleacutem dos topoi
disponiacuteveis para dada conjuntura histoacuterica o que sobra eacute um conjunto de hipoacuteteses com graus diferentes de
plausibilidade Conferir a argumentaccedilatildeo neste sentido em FLANAGAN Sabina Twelfth-Century apocalyptic
imaginations and the coming of the Antichrist The Journal of Religious History v 24 n 1 p 57-69 2000 p
59 561 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 89 O viacutenculo que Cohn fez entre Joaquim e Sibila natildeo
faz muito sentido As sibilas como a Tiburtina eram bem conhecidas no periacuteodo de Joaquim mas
manifestavam um tipo de milenarismo distinto Elas esperavam por um periacuteodo de paz na terra antes do
Anticristo normalmente dirigido por um imperador do final dos tempos ou por um papa poderoso
166
de forma parecida afastando ainda mais o abade do livro joanino e aproximando-o natildeo
necessariamente das Sibilas sugeridas por Cohn mas do poacutes-milenarismo da Glossa
Ordinaria562
Ambos sugerem por caminhos diferentes que o milenarismo de Joaquim de Fiore
natildeo depende inicialmente ou mesmo diretamente do milenarismo de Joatildeo de Patmos
Algumas evidecircncias poderiam reforccedilar as hipoacuteteses destes historiadores O sermatildeo
conhecido como Locuturi aliquid563 escrito por Joaquim em algum momento no iniacutecio da
deacutecada de 1180 em suas uacuteltimas linhas apoacutes descrever o que seria a sexta parte do
Apocalipse termina de forma lacocircnica ldquoEntatildeo viraacute o saacutebado apoacutes a ressurreiccedilatildeo pelo juiacutezo
e finalmente seraacute revelada a gloacuteria da cidade celestialrdquo564 No iniacutecio do sermatildeo ele jaacute
anunciara que o livro de Joatildeo ldquoestaacute dividido e limitado em sete partes e temposrdquo565 Este
texto tambeacutem indica que o abade jaacute tinha consolidada uma perspectiva sobre a estrutura das
seis primeiras partes do Apocalipse elemento que natildeo sofreria mudanccedila ateacute a conclusatildeo do
Expositio quase duas deacutecadas depois A sexta parte encerraria com a derrota da besta e o
falso profeta no final de Apocalipse 19 A seacutetima entatildeo iria de Apocalipse 20 ateacute o capiacutetulo
22 Como jaacute indicamos neste mesmo capiacutetulo Joaquim explicita nas partes iniciais do seu
grande comentaacuterio que ele planejava fazer uma obra de sete partes Se ele mudou para oito
em algum momento do processo foi justamente para dar destaque aos dez versiacuteculos do
texto milenar (a uacutenica mudanccedila significativa na estrutura) destaque que antes ele natildeo dava
A estrutura final do Expositio assim indica como o abade acentuou significativamente o
papel de Apocalipse 201-10 no conjunto da obra ao relacionaacute-lo com o terceiro status e a
seacutetima aetas do mundo
Tanto no Liber de Concordia quanto no Psalterium o abade jaacute apresentou o
desenvolvimento da histoacuteria humana na direccedilatildeo de um cliacutemax de beatitude Talvez uma das
passagens mais claras neste sentido esteja na Concordia
562 LERNER Robert E Millennialism In MC GINN Bernard (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism
Apocalypticism in Western History and Culture New York Continuum 1998 3v V 2 p 326-360 p 346
As Sibilas aludidas por Cohn como a Tiburtina e a Glossa Ordinaria manifestam tipos diferentes de
milenarismos O preacute-milenarismo da Tiburtina descreve um periacuteodo de felicidade na terra anterior ao advento
do Anticristo A Glossa Ordinaria apresenta um poacutes-milenarismo com o periacuteodo de felicidade para depois da
derrota do Anticristo Em ambos os fenocircmenos a parousia (segundo advento de Jesus) natildeo exerce papel na
instauraccedilatildeo da felicidade 563 Sobre este sermatildeo conferir o capiacutetulo IV supra 564 ldquoEt tunc erit sabbatum deinde resurectio ad iudicium et tunc revelabitur gloria civitates supernerdquo Texto
latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 p
130-131 565 ldquoSeptem partibus distinctus et temporibus terminaturrdquo Texto latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino
da Fiore op cit p 130-131
167
Os misteacuterios das divinas paacuteginas mostram-nos enfim os Trecircs Estados do
mundo O primeiro eacute aquele no qual estivemos sob a lei o segundo no qual
estamos sob a graccedila o terceiro que esperamos iminente sob uma graccedila
ampliada [] Por isso o primeiro Estado foi na ciecircncia o segundo na posse
da sabedoria o terceiro na plenitude do sentido O primeiro na servidatildeo
servil o segundo na servidatildeo filial o terceiro na liberdade O primeiro nos
flagelos o segundo na accedilatildeo o terceiro na contemplaccedilatildeo O primeiro no
temor o segundo na feacute o terceiro na caridade O primeiro eacute dos servos o
segundo eacute dos filhos o terceiro eacute dos amigos O primeiro eacute dos velhos o
segundo eacute dos jovens o terceiro das crianccedilas O primeiro na luz da estrela
o segundo na aurora o terceiro ao meio-dia O primeiro no inverno o
segundo na primavera o terceiro no veratildeo O primeiro produz urtigas o
segundo rosas o terceiro liacuterios O primeiro ervas o segundo espigas o
terceiro trigo O primeiro a aacutegua o segundo o vinho o terceiro o oacuteleo O
primeiro pertence agrave Setuageacutegima o segundo agrave Quaresma o terceiro agrave festa
pascal O primeiro Estado pertence ao Pai que eacute criador de todas as coisas
o segundo ao Filho que se dignou assumir nosso limite o terceiro ao
Espiacuterito Santo do qual diz o apoacutestolo Onde se achar o Espiacuterito do Senhor
aiacute estaacute a liberdade (Liber de Concordia 112r)566
O sistema acima apresentado relaciona cada status da histoacuteria da humanidade com
uma pessoa divina explicitando pelo acuacutemulo de imagens e analogias que o segundo
ultrapassou o primeiro e o terceiro ultrapassaraacute o segundo Para o abade a Era do Espiacuterito
seria muito melhor do que as duas anteriores o que significa que a humanidade poderia
esperar por um tempo de esplendor para o futuro sob a tutela do Espiacuterito divino
Sem chamar-se historiador o abade de Fiore se dedicava nos termos de Adeline
Rucquoi agrave ldquoanaacutelise da economia do tempordquo567 A forma como Joaquim entendia a histoacuteria
(preteritae rei) o levou a vaticinar o futuro em uma perspectiva de progresso e de evoluccedilatildeo
loacutegica Para o abade a histoacuteria era uma constante que se desdobrava de forma contiacutenua Se
ele compreende o passado ele pode prever o futuro Neste sentido eacute uacutetil ter uma perspectiva
de siacutentese dos sistemas histoacutericos do abade e verificar a forma como eles demandavam o
periacuteodo sabaacutetico
O editor do Liber de Concordie568 Randolph Daniel professor da Universidade de
Kentucky ao explicar a reflexatildeo histoacuterica de Joaquim o faz por meio daquilo que ele chamou
566 Esta longa citaccedilatildeo estaacute no Livro V capiacutetulo 84 ainda sem ediccedilatildeo criacutetica A traduccedilatildeo em questatildeo eacute de
BAUCHWITZ Oscar Federico A histoacuteria em Joaquim de Fiore Princiacutepios revista de filosofia Natal v 1
n 1 p 109-130 1994 p 110 567 A historiadora Adeline Rucquoi destaca que o seacuteculo XII foi um periacuteodo significativo para a reflexatildeo da
histoacuteria quando filoacutesofos e teoacutelogos se debruccedilaram a buscar uma ratio preterita rei ou o sentido do tempo
Aleacutem de Joaquim ela menciona Hugo de Satildeo Vitor Oton de Freising Anselmo de Havelberg e Petrus
Comestor Cf RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 223-224 568 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti
Philadelphia The American Philosophical Society 1983 O autor sintetiza os sistemas histoacutericos de Joaquim
168
de ldquoinflexotildees do pensamentordquo que aparecem nas poucas notas auto-biograacuteficas que o abade
deixou em suas obras569 A primeira se deu em algum momento durante a peregrinaccedilatildeo agrave
Palestina e deveria jaacute ser o conteuacutedo principal de suas pregaccedilotildees depois que ele retornou
para a Calaacutebria e atuava como pregador itinerante em Rende no iniacutecio da deacutecada de 1170
entremente o pontificado de Alexandre III (papa de 1159-1181)
Este sistema foi chamado por Joaquim de concordia duorum testamentorum ou os
paralelos entre as perseguiccedilotildees de Israel e as perseguiccedilotildees da Igreja Eacute uma maneira de
dividir a histoacuteria em duas grandes etapas Uma se chamava Antigo Testamento e se estendia
da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus A outra era o Novo Testamento e iria do nascimento
de Jesus ateacute o final dos tempos A histoacuteria da humanidade eacute o palco da atuaccedilatildeo de Deus para
salvar seus povos O primeiro era Israel O segundo a Igreja Neste esquema a histoacuteria
avanccedila por meio de tribulaccedilotildees e perseguiccedilotildees que se repetem paralelamente nos dois
testamentos e nos dois povos
As tensotildees poliacuteticas entre o papado e Impeacuterio Germacircnico estavam particularmente
altas depois de deacutecadas de conflito entre o papa Alexandre III (papa de 1159-1181) e o
Imperador Frederico I Barbarorroxa (1122-1190) Este ambiente parece estar traduzido no
alinhamento que Joaquim fez entre as ldquoperseguiccedilotildeesrdquo dos judeus na eacutepoca do Antigo
Testamento com as batalhas contra a Igreja no tempo do Novo Testamento
Joaquim aplicou esta estrutura de perseguiccedilotildees aos sete selos do Apocalipse e a
abordou repetidamente em vaacuterias de suas obras desde Genealogia570 ateacute De Septem
Sigillis571 embora os detalhes mudem de texto para texto Posteriormente este esquema de
dois tempos foi definido pelo abade de secunda diffinitio e o simbolizou pela letra grega
cursiva ocircmega572 Os Testamentos assim satildeo expressotildees tanto canocircnicas quanto histoacutericas
Se toda a histoacuteria de Israel da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus pode ser encontrada no
primeiro testamento Joaquim espera que a histoacuteria completa da Igreja desde sua origem ateacute
o final dos tempos esteja contida no segundo testamento especialmente no Apocalipse de
Joatildeo Mesmo neste esquema de dois tempos ainda haacute um momento sabaacutetico A seacuterie de sete
perseguiccedilotildees de Israel e da Igreja terminam ambas em um periacuteodo de descanso No caso de
em DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of
History Speculum Chicago v 55 n 3 p 469-483 1980 569 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xiii-xviii 570 Genealogia eacute provavelmente a obra mais antiga de Joaquim escrita segundo Potestagrave em 1176 Cf
POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 16 571 Possivelmente de 1198 Cf TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I Sigilli dellrsquoApocalisse In
GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 45 572 Conferir o esquema na posiccedilatildeo inferior esquerda do anexo 6
169
Israel o descanso veio apoacutes os conflitos com os gregos representados por Antiacuteoco Epiacutefanes
e se estendeu ateacute o nascimento de Jesus De maneira paralela apoacutes a seacutetima perseguiccedilatildeo pelo
Anticristo viraacute um descanso para a Igreja O princiacutepio fundamental eacute uma divisatildeo da histoacuteria
em duas partes cada uma delas marcada por perseguiccedilatildeo julgamento e batalha do povo de
Deus No futuro que Joaquim imaginava ser iminente a terceira pessoa da Trindade iria
libertar completamente os cristatildeos fieacuteis do sofrimento e das tribulaccedilotildees que caracterizaram
a histoacuteria desde os tempos de Israel ateacute os dias do abade Os conflitos entre os poderes
temporais e eclesiaacutesticos terminariam de vez jaacute que o periacuteodo sabaacutetico seria caracterizado
principalmente pela paz
A segunda inflexatildeo se deu no fim de 1183 ou iniacutecio de 1184 enquanto Joaquim
esteve em Casamari para tratar de aspectos burocraacuteticos para Corazzo Ali desenvolveu seu
mais conhecido sistema de tria statum em que a Trindade se relaciona com a histoacuteria
imprimindo nela a natureza das pessoas divinas Pai Filho e Espiacuterito573 Este uacuteltimo por sua
vez seria responsaacutevel por implantar uma era de perfeiccedilatildeo espiritual na terra Estes status
eram marcados ainda por initiatio frutificatio e consumatio Ou seja eles apresentavam
um iniacutecio um momento em que frutificam de maneira especial e uma fase de teacutermino No
caso da Era do Pai esta comeccedilou com Adatildeo frutificou em Abraatildeo e terminou em Cristo O
segundo status comeccedilou com Uzias frutificou em Zacarias (pai de Joatildeo Batista) e terminaria
algum tempo depois de Joaquim O terceiro status comeccedilou com Satildeo Bento de Nuacutersia
frutificaria na geraccedilatildeo de Joaquim e terminaria no fim da histoacuteria574 Joaquim aplicou este
esquema trinitaacuterio agrave progressatildeo da vida religiosa na histoacuteria No status do Pai predominavam
os casados no status do Filho predominavam os cleacuterigos no status do Espiacuterito
predominariam os monges Aplicou tambeacutem em trecircs povos a proteccedilatildeo de Deus deixou
Israel passou para os gregos e terminou nos latinos Esta divisatildeo em trecircs status foi definida
pelo abade como prima diffinitio representada simbolicamente pela letra grega uncial
Alfa575 Nesta estrutura a histoacuteria tem uma meta que soacute seraacute alcanccedilada no status do Espiacuterito
apoacutes o fim do segundo status quando se manifestar o descanso sabaacutetico A prima diffinitio
mais ateacute do que a secunda manifesta toda a ansiedade do abade pela perfeiccedilatildeo da vida
monaacutestica e talvez reflita a crise que acabaraacute levando-o a deixar Corazzo e fundar a Ordem
Florense
573 Conferir o diagrama dos Ciacuterculos Trinitaacuterios do anexo 6 574 WHALEN Brett Edward Dominion of God op cit 107 575 Conferir o esquema na posiccedilatildeo superior esquerda do anexo 6
170
O primeiro tempus coincide com o primeiro status O segundo tempus com o segundo
status ateacute a eacutepoca de Joaquim Apesar do saacutebado do segundo tempus natildeo ser tratado de forma
tatildeo proeminente quanto o saacutebado do terceiro status em ambas as diffinitiones a plena
realizaccedilatildeo estaacute no futuro Nas duas haacute uma evoluccedilatildeo de instituiccedilotildees e de qualidade de vida576
Finalmente apoacutes retornar para Corazzo cerca de um ano apoacutes a passagem por
Casamari Joaquim deu mais um passo na consolidaccedilatildeo dos seus sistemas histoacutericos Ele
finalmente conseguiu relacionar a concordia duorum testamentorum e a intervenccedilatildeo divina
por meio dos tria statum atraveacutes da estrutura geral do Apocalipse A obra de Joatildeo assim se
tornou aos olhos do abade a chave para a compreensatildeo inteira da histoacuteria da humanidade
Aleacutem dos sistemas histoacutericos do abade a historiografia tem sugerido outra base
significativa para o saacutebado do Espiacuterito desta vez por meio dos recursos exegeacuteticos do abade
Os leitores ocidentais do Apocalipse de Joatildeo desde as criacuteticas ao quiliasmo de Agostinho
de Hipona Jerocircnimo e Gregoacuterio Magno liam o Apocalipse de forma moralizante e
alegoacuterica sem viacutenculos expliacutecitos com a histoacuteria O milecircnio dos maacutertires de Apocalipse 20
era interpretado de forma a descrever o tempo da Igreja na terra577 Estes autores imaginavam
a histoacuteria caminhando na direccedilatildeo de vaacuterios desastres sendo o penuacuteltimo o advento do
Anticristo Ele instauraria uma grande perseguiccedilatildeo agrave Igreja depois do qual Cristo viria de
forma gloriosa para o uacuteltimo julgamento e a consumaccedilatildeo da histoacuteria do mundo578
Uma ideia surgiu entretanto entre os antigos comentaristas de Daniel Ao comentar
Daniel 1211-12 por volta do ano 400 Jerocircnimo argumentou que o tempo da tribulaccedilatildeo
(1290 dias) e do fim do mundo (1335 dias) tinha um prazo residual de 45 dias Este mecircs e
meio seria entatildeo o intervalo entre a derrota do Anticristo e o julgamento final da humanidade
Beda o Veneraacutevel no iniacutecio do seacuteculo VIII concordou com Jerocircnimo e acrescentou que
este intervalo tambeacutem poderia ser encontrado nos trinta minutos de silecircncio no ceacuteu apoacutes a
576 DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of
History op cit p 482 577 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 29-31 Segundo Desroche esta ldquoconcepccedilatildeo
alcanccedilou posiccedilatildeo hegemocircnica mas nunca deixou de ser sitiada por fileiras de dissidecircncias oriundas das trecircs
grandes confissotildees cristatildes (catolicismo protestantismo ortodoxia)rdquo Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de
messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 22
Por isso Umberto Eco fala de um ldquomillenarismus absconditusrdquo neste periacuteodo de hostilidade contra o quiliasmo
Cf ECO Umberto Wainting for the Millennium In LANDES Richard GOW Andrew VAN METER
David C (ed) The apocalyptic year 1000 religious expectation and social change ndash 950-1050 Oxford Oxford
University Press 2003 p 121-135 p 125 578 FLANAGAN op cit p 59 Flanagan acrescenta que o que variava bastante era a sequecircncia dos eventos
finais o tempo entre cada um deles bem como a perspectiva de iminecircncia
171
abertura do seacutetimo selo do Apocalipse O exegeta do seacuteculo IX Haimo de Auxerre
argumentou ainda que o periacuteodo em questatildeo natildeo precisava ser qualificado de forma precisa
jaacute que era apenas um prazo miacutenimo Estes autores natildeo estavam certos sobre os motivos para
este prazo579 ateacute que a Glossa Ordinaria no iniacutecio do seacuteculo XII em uma de suas notas
sugeriu que o tempo posterior ao advento do Anticristo e anterior agrave volta de Cristo
denominado entatildeo de refrigerium sactorum (descanso dos santos) seria uma fase de
felicidade prosperidade e paz na terra Alguns autores especialmente do mesmo periacuteodo
ampliaram ainda mais este novo conceito como Honorius Augustodunesis (1080-1156) que
argumentou que ele seria o tempo da conversatildeo de todos os pagatildeos ou Otto de Freising
(114-1158) que previu nele o ingresso dos judeus agrave Igreja Levando em conta esta corrente
exegeacutetica Robert Lerner levantou a hipoacutetese que o milenarismo do Espiacuterito de Joaquim
deveria ser entendido como uma expressatildeo exegeacutetica modificada da ldquotradiccedilatildeo do refrigeacuterio
dos santosrdquo580 Eacute possiacutevel concordar parcialmente com Lerner ao indicar uma fonte
plausiacutevel para a escatologia do abade mas natildeo de forma isolada Os sistemas histoacutericos dele
jaacute demandavam a expectativa de um futuro melhor
De qualquer forma o que se percebe eacute que o descanso sabaacutetico que Joaquim
descreveu na passagem de Apocalipse 201-10 teve pontos de partida bem mais amplos do
que o texto joanino O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim parece ser o resultado de sua reflexatildeo
histoacuterica e da tradiccedilatildeo exegeacutetica do refrigeacuterio dos santos Assim nos momentos finais do
Expositio ao fazer a exegese de Apocalipse 20 o abade aplica no milecircnio de Joatildeo as ideias
que jaacute trazia consolidadas que apoacutes a queda do Anticristo e antes da volta de Jesus haveria
na terra natildeo necessariamente um reinado dos maacutertires mas o descanso da Igreja e acima de
tudo o refrigeacuterio dos monges sob a direccedilatildeo final da terceira pessoa da Trindade
76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia
Segundo Sabina Flanagan explicaccedilotildees histoacutericas para as opccedilotildees dos autores podem
ter relaccedilatildeo entre outros fatores com crenccedilas e restriccedilotildees dogmaacuteticas religiosas com
engajamentos poliacuteticos e viacutenculos sociais ou com confrontos contra dissidecircncias581 Essa eacute
579 LERNER Robert E Millennialism op cit p 344 TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I
Sigilli dellrsquoApocalisse op cit p 34 580 LERNER Robert E Millennialism op cit p 347 581 FLANAGAN op cit p 64
172
uma forma de dizer que as representaccedilotildees que se materializaram nas praacuteticas e discursos de
Joaquim configuram respostas a conjunturas poliacuteticas sociais culturais e eclesiaacutesticas que
caracterizavam o Ocidente medieval582
Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai Mauro um notaacuterio a
serviccedilo da chancelaria normanda Inicialmente estes passos foram dados sem sobressaltos
comeccedilando na Calaacutebria e se deslocando em seguida para a corte do Reino da Siciacutelia em
Palermo Ele nasceu em 1135 um pouco depois da fundaccedilatildeo do Reino por Rogeacuterio II e
abandonou a carreira na corte em 1167 um ano depois da morte do rei William I Estas
primeiras deacutecadas de vida e o treinamento recebido para o trabalho na corte devem ter lhe
capacitado para o relacionamento com as diversas populaccedilotildees e etnias do reino Um notaacuterio
especialmente em Palermo deveria ter conhecimento do grego e do aacuterabe para promover
seus registros583 Estas qualidades possivelmente estiveram envolvidas em sua raacutepida
ascensatildeo no monasteacuterio de Corazzo e nas negociaccedilotildees com os poderes eclesiaacutesticos e
temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore
Essa proximidade com a cultura aacuterabe da Siciacutelia ou os contatos proacuteximos que ele
possa ter tido na corte de Palermo entretanto natildeo produziram nele uma perspectiva positiva
quanto ao Islatilde Mesmo que natildeo haja em suas obras nada parecido com as convocaccedilotildees de
Satildeo Bernardo para uma guerra santa584 os muccedilulmanos satildeo descritos recorrentemente pelo
calabrecircs como agentes do diabo para perseguir a Igreja
Ele ingressou numa comunidade religiosa no iniacutecio do governo de William II no
comeccedilo da deacutecada de 1170 Quando este rei morreu em 1189 Joaquim jaacute havia passado por
Casamari comeccedilado a produccedilatildeo de suas grandes obras e tinha jaacute uma definiccedilatildeo das duas
deffinitio que ele usava para refletir a histoacuteria Aqueles foram tempos de muita instabilidade
Depois de quatro governantes de origem normanda (Rogeacuterio I Rogeacuterio II William I e
William II) o reino finalmente passou para as matildeos dos Hohenstaufen apoacutes o governo de
transiccedilatildeo do conde Tancredo Os encontros do abade com o imperador Henrique ou com a
rainha Constacircncia resultaram natildeo apenas em benefiacutecios materiais para Joaquim e seus
irmatildeos de Fiore mas tambeacutem no fim do viacutenculo entre a Babilocircnia e os imperadores
germacircnicos que se manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrecircs Com isso
582 WHALEN op cit p 115 583 Para os aspectos culturais e sociais do Reino da Siciacutelia conferir o capiacutetulo V 584 Cf AacuteLVAREZ PALENZUELA Vicente Aacutengel El Cister y las Oacuterdenes Militares em el impulso hacia
Oriente Cuardernos de Historia Medieval Madrid v 1 p 3-19 1998 p 8
173
na parte final do Expositio o Impeacuterio deixou de ser o grande adversaacuterio da Igreja no final
dos tempos
Joaquim viveu num periacuteodo de mudanccedilas profundas na sociedade medieval585 O
Impeacuterio Bizantino perdera muito do seu poder por causa das derrotas contra os turcos
muccedilulmanos as Igrejas Latina e Grega estavam em processo de consolidar a separaccedilatildeo a
exuberante monarquia normanda instalada na Siciacutelia e no sul da Itaacutelia chegava ao fim o
poder islacircmico na Peniacutensula Ibeacuterica encolhia novas formas de espiritualidade surgiam
quando antigas enfraqueciam Tudo isso pode estar subjacente agrave sua ansiedade pela
transformaccedilatildeo da realidade por meio do descanso sabaacutetico do Espiacuterito Entretanto talvez o
fator mais preponderante esteja no ldquomovimento reformadorrdquo gerado no interior da Igreja
romana586
A perspectiva de que as coisas natildeo eram como deveriam ser de que a Igreja dos
proacuteprios tempos havia se afastado dos propoacutesitos pregados pelos primeiros apoacutestolos e pelo
proacuteprio fundador principalmente na questatildeo da simplicidade de vida acabou dando origem
a partir do seacuteculo XI a movimentos de reforma em diversos setores da sociedade Ocidental
e em diferentes espaccedilos eclesiaacutesticos Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do
clero entendido como corrompido e refletir sobre o papel da Igreja na sociedade em relaccedilatildeo
principalmente com as estruturas dos poderes temporais A professora Andreacuteia Frazatildeo ao
analisar os projetos subjacentes aos conciacutelios lateranenses listou algumas destas
perspectivas reformistas como as implementadas por poderes seculares (monarquias
caroliacutengias ou imperadores germacircnicos por exemplo) as promovidas por movimentos
monaacutesticos (Cluny Gorze Metz etc) as de iniciativa ldquopopularrdquo (como o movimento
patarino) e a fomentada pelos bispos de Roma eventualmente denominada de Reforma
Gregoriana Este uacuteltimo movimento partindo da Cuacuteria Papal procurou impor Roma ldquocomo
centro poliacutetico religioso e administrativo da Igreja ocidental [] e como o principal poder
de caraacuteter universal no Ocidente ao qual todos os demais deveriam se subordinar inclusive
o imperialrdquo 587
A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em funccedilatildeo do papa Gregoacuterio VII (papa
de 1073-1085) que em diversos momentos apelou para o senso de iminecircncia do advento do
585 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 221 586 WHALEN op cit p 102 587 SILVA Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da A luta entre o Regnum et Imperium e a Construccedilatildeo da Ecclesia
Universalis uma anaacutelise comparativa dos Conciacutelios Lateranenses (1123-1215) In SILVA Francisco Carlos
Teixeira CABRAL Ricardo Pereira MUNHOZ Sidnei J (coords) Impeacuterios na Histoacuteria Rio de Janeiro
Elsevier 2009 p 95-105 p 97-98
174
Anticristo para dar legitimidade aos seus apelos reformadores Em uma de suas cartas ele
explica a oposiccedilatildeo como sinal do fim do mundo ldquoE natildeo fiquem admirados Pois quanto mais
perto o dia do Anticristo se manifestar mais ele luta para esmagar a feacute cristatilderdquo588 Este papa
na linha agostiniana evitou fazer prediccedilotildees sobre o fim do mundo mas reiteradamente
manifestou a convicccedilatildeo de que ele deveria estar perto em funccedilatildeo da manifestaccedilatildeo das
heresias e da corrupccedilatildeo da Igreja Neste tipo de visatildeo de histoacuteria os eventos finais deveriam
validar os esforccedilos para buscar pureza moral e ordem correta na instituiccedilatildeo eclesiaacutestica
Mudanccedilas no cenaacuterio poliacutetico recebiam um lugar no cenaacuterio do fim do mundo conflitos de
muacuteltiplas naturezas eram legitimados pela perspectiva do juiacutezo final de forma que a maioria
das crenccedilas apocaliacutepticas medievais passaram a ser instrumentos de retoacuterica religiosa
poliacutetica e social agrave serviccedilo de papas cleacuterigos imperadores reis e seus apologistas
Eacute certo que o senso de fim de mundo ou as representaccedilotildees escatoloacutegicas natildeo
conseguem explicar totalmente as praacuteticas dos movimentos reformadores De qualquer
forma esta relaccedilatildeo entre reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore
conectada com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos monaacutesticos
tradicionais para toda a sociedade (christianitas)589 Mas o abade acabou ultrapassando o
modelo gregoriano e mesmo o imperial em funccedilatildeo de sua ecircnfase numa nova forma de
ecclesia totalmente monasticisada com o foco no futuro O arqueacutetipo deixou de ser a era
apostoacutelica (no passado) mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro)
Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este fenocircmeno de
ldquoapocalipcismo reformadorrdquo um tipo de perspectiva apocaliacuteptica medieval que tinha como
preocupaccedilatildeo primaacuteria a reforma clerical590 Estes autores criam em uma era porvir de
desenvolvimento espiritual na qual os cleacuterigos apoacutes serem ldquopurificadosrdquo pelas tribulaccedilotildees
do final dos tempos se recuperariam de uma forma nunca vista antes Alguns focavam na
reforma de tipo tradicional com sua ecircnfase no retorno ao modelo apostoacutelico de pureza e
simplicidade outros como Joaquim insistiam que a era porvir era o zecircnite da histoacuteria
resultado de um longo processo evolutivo
588 Citado por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform 1100-1500 In MC GINN Bernard
(ed) The Encyclopedia of Apocalypticism Apocalypticism in Western History and Culture New York
Continuum 1998 3v V 2 p 74-109 p 76 589 Este modelo gregoriano buscou expandir-se para a sociedade inteira por meio da divulgaccedilatildeo do ideal da
ldquoIgreja dos tempos apostoacutelicosrdquo Cf MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 78 590 KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge
University Press 1990 p 9 MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 74-109
175
Kathryn resumiu entatildeo as marcas do apocalipticismo reformador um desejo urgente
por reforma preocupaccedilatildeo acentuada com o futuro da Igreja tentativa de entender o presente
agrave luz de esquemas escatoloacutegicos tradicionais preocupaccedilatildeo com o papel de uma ordem
religiosa particular no drama do final dos tempos ou no futuro da igreja um senso de crise
de lideranccedila eclesiaacutestica e temporal uma ansiedade por levar o clero aos princiacutepios
disciplinares dos fundadores do monasticismo ou agrave igreja dos primoacuterdios com ecircnfase
especial na pobreza e na simplicidade de vida tendecircncia conservadora em termos religiosos
e sociais591
Estes reformadores estavam continuamente avaliando as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas de
seus dias e projetavam para ela um periacuteodo dourado de vitalidade espiritual Este tipo de
expectativa eventualmente demandava accedilatildeo e sugeria que indiviacuteduos e instituiccedilotildees poderiam
participar (apropinquare) na viabilizaccedilatildeo do futuro ou pelo menos na definiccedilatildeo de quais
pessoas poderiam participar deste futuro idealizado Eacute uma espeacutecie de descriccedilatildeo de um
futuro ldquodouradordquo para confrontar o presente ldquopoluiacutedordquo
Em termos concretos tanto os movimentos reformadores quanto os apocalipcismos
medievais tiveram seus proacuteprios fatores de surgimento mas alguns destes podem ter
promovido o encontro das duas expectativas Primeiramente o desenvolvimento dos
movimentos hereacuteticos com frequecircncia o resultado de programas reformistas frustrados com
constantes criacuteticas ao clero e a corrupccedilatildeo da Igreja A persistecircncia destes grupos poderia
produzir a sensaccedilatildeo de que as heresias eram consequecircncia do pecado da Igreja e que para
acabar com elas era preciso se purificar Produzia tambeacutem a retoacuterica apocaliacuteptica por parte
das autoridades que constantemente recorriam agraves figuras negativas do final do tempo para
vinculaacute-las com as heresias Um segundo fator poderia estar nas cruzadas que acentuaram a
sensaccedilatildeo de que o cristianismo estava sob constante ameaccedila de povos pagatildeos Finalmente e
talvez o mais significativo os efeitos da controveacutersia das investiduras e o conflito entre
Igreja e poder temporal A persistecircncia dos conflitos com os imperadores germacircnicos pode
ter promovido o surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada de
conflitos histoacutericos desde os seus primoacuterdios A Igreja passa a ser vista como uma
comunidade sagrada que sofre perseguiccedilatildeo intermitente592 O discurso apocaliacuteptico se tornou
uma tentativa de dar sentido aos constantes embates contra os poderes temporais Eacute neste
591 KERBY-FULTON op cit p 9 592 RIEDL Matthias Joachim of Fiore as political thinker In WANNENMACHER Julia Eva Joachim of
Fiore and the influence of inspiration essays in memory of Marjorie Reeves (1905-2003) London Routledge
2013 p 90-116 p 94
176
sentido que os imperadores frequentemente satildeo estigmatizados com retoacuterica apocaliacuteptica
dando ao papado por seu lado um papel acentuado no drama do final dos tempos593
Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de forma milenarista
McGinn cita como exemplo a perspectiva do franciscano Roger Bacon (1214-1294) que
acreditava numa reforma realizada por meio do surgimento de um papa angelicus e de um
imperador ungido que juntos purificariam a Igreja antes do surgimento do Anticristo594 Em
Joaquim entretanto o fenocircmeno foi conjugado com o milenarismo nos moldes do antigo
quiliasmo cristatildeo e manifestou as noccedilotildees de que uma unidade cristatilde idealizada seria
alcanccedilada atraveacutes da transformaccedilatildeo da ecclesia a graccedila de Deus deixou a Igreja grega e
transitou para a Igreja latina595 o Anticristo do final dos tempos iria se manifestar a qualquer
momento para perseguir a Igreja por meio dos sarracenos e dos hereges Quando isso
acontecesse ldquojudeus gregos pagatildeos e talvez mesmo os sarracenos seriam levados agrave
salvaccedilatildeo atraveacutes de homens espirituais da Igreja latina reunidos sob a direccedilatildeo de uma igreja
romana transformadardquo596
77 Resumo
Este capiacutetulo analisou a seacutetima seccedilatildeo do Expositio in Apocalypsim e relacionou-a
com as perspectivas milenaristas de Joaquim presentes em outros lugares de sua obra Nela
Joaquim rompe com a tradiccedilatildeo agostiniana que identificou o milecircnio joanino com a histoacuteria
da Igreja e propotildee em seu lugar um periacuteodo de felicidade na terra para toda a humanidade
sob a direccedilatildeo do Espiacuterito Santo O abade esperava algum tipo de continuidade entre o
presente e o futuro mas com a transformaccedilatildeo de suas instituiccedilotildees sociais especialmente da
Igreja Este periacuteodo de descanso e contemplaccedilatildeo natildeo teve como ponto de partida entretanto
diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim as as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a
tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que esperava uma fase histoacuterica de felicidade na terra
593 KERBY-FULTON op cit p 8 594 Citato por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 81 595 Haacute neste caso aquilo que Whalen chamou de ldquopropoacutesito geograacuteficordquo divino que levou a graccedila de Deus a se
mover do Oriente para o Ocidente e no saacutebado do Espiacuterito retornar para o Oriente Cf WHALEN op cit p
121 596 WHALEN op cit p 123 Joaquim abraccedila o ideal do ldquoservo sofredorrdquo de Isaiacuteas 53 e a espera de uma
grande conversatildeo dos povos no final dos tempos que demanda mais pregaccedilatildeo e menos conflito Nos seus
termos ldquopraedicando magis quam proeliandordquo (Expositio in Apocalypsim 164v) Cf TAGLIAPIETRA
Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 54
177
anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica deste tipo de milenarismo pode estar relacionada
com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica
CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO
DOS MONGES
A tiacutetulo de recapitulaccedilatildeo cabe reafirmar nossos principais argumentos apresentados
e sustentados no decorrer deste trabalho O Apocalipse foi produzido pelo profeta Joatildeo de
Patmos na forma de um instrumento retoacuterico de caraacuteter milenarista cuja funccedilatildeo atendia a
determinadas percepccedilotildees de crise social que seu autor manifestava e que entendendo-se
como convocado divinamente para atuar entre as igrejas da proviacutencia da Aacutesia desejava levaacute-
las ao rompimento sectaacuterio com a sociedade romana Joatildeo se recusava a viver ldquoneste mundordquo
e esperava pela inauguraccedilatildeo de um ldquooutro mundordquo no tempo do milecircnio A visatildeo de histoacuteria
que aparece subjacente agrave sua narrativa religiosa se constitui em uma criacutetica agraves representaccedilotildees
sociais romanas encontradas na proviacutencia asiaacutetica
O Apocalipse foi lido como texto sagrado por Joaquim de Fiore e como base para a
construccedilatildeo de sua filosofia da histoacuteria Por meio do seu comentaacuterio da obra joanina o abade
construiu a expectativa de superaccedilatildeo do tempo presente em uma eacutepoca de ouro dirigida pela
terceira pessoa da Trindade o Espiacuterito Santo As representaccedilotildees milenaristas do calabrecircs
entretanto natildeo partiram diretamente do milecircnio joanino jaacute que dependem mais da tradiccedilatildeo
do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo e de sua reflexatildeo histoacuterico-trinitaacuteria
Convergecircncias e divergecircncias
O Apocalipse foi produzido no final do seacuteculo I na Ilha de Patmos O Expositio por
sua vez surgiu nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XII na Itaacutelia597 O judeu Joatildeo rejeitava a
Peniacutensula Itaacutelica pois nela ficava a capital do Impeacuterio que destruiu sua estimada Jerusaleacutem
Em sua obra o profeta exilado se alonga na imaginaccedilatildeo de como Roma seria devorada pelo
fogo 1100 anos depois um italiano da Calaacutebria se ldquoencantardquo pelo texto de Joatildeo e resolve
gastar os uacuteltimos anos de sua vida para divulgaacute-lo Ao produzir seu escrito Joaquim
transcreveu integralmente o material joanino (na sua traduccedilatildeo latina) fazendo do Expositio
efetivamente uma coacutepia comentada do Apocalipse Haacute aqui um viacutenculo formal entre os dois
textos Mas isso natildeo esclarece totalmente os relacionamentos as recepccedilotildees as adaptaccedilotildees
597 Conferir esta relaccedilatildeo geograacutefica no anexo 4
179
as mutilaccedilotildees as invenccedilotildees os horizontes de leitura criados pela natureza diacrocircnica de tal
viacutenculo Por isso ainda eacute preciso promover anaacutelises comparativas que pressuponham os dois
objetos (apocalipse e comentaacuterio) como fenocircmenos distintos em funccedilatildeo de suas proacuteprias
conjunturas condiccedilotildees de emergecircncia e pontos de partida
Segundo Juumlrgen Kocka comparaccedilatildeo eacute a discussatildeo de ldquodois ou mais fenocircmenos
histoacutericos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenccedilas de modo a se
alcanccedilar determinados objetivos intelectuaisrdquo598 Eacute o que faremos nesta conclusatildeo com
ecircnfase nas diferenccedilas e especificidades599 para assim descrever explicar e interpretar
elementos especiacuteficos de cada um dos objetos de comparaccedilatildeo600 Tomando uma expressatildeo
irocircnica de Kocka e Haupt mesmo que natildeo pudeacutessemos comparar ldquomaccedilatildes e laranjasrdquo (como
um apocalipse e um comentaacuterio biacuteblico) ainda assim poderiacuteamos apontar as peculiaridades
de cada objeto e seus usos particulares601
Para efeitos de comparaccedilatildeo pressupomos as discussotildees dos capiacutetulos anteriores
quando analisamos separadamente os aspectos formais de Apocalipse 201-10 e seu
respectivo comentaacuterio exegeacutetico na seacutetima parte do Expositio contextualizamos cada
unidade de comparaccedilatildeo apontando suas respectivas condiccedilotildees de produccedilatildeo analisamos o
conteuacutedo recortado de cada texto explicitando as representaccedilotildees milenaristas os pontos de
partida e os fatores de emergecircncia No caso especiacutefico de Joaquim ainda discutimos suas
formas de leitura e posturas hermenecircuticas
O que comparamos Eacute o tipo de milenarismo que se objetiva em cada texto Para
tanto analisamos os pontos de contato as convergecircncias e divergecircncias e as compreensotildees
de tais aspectos agrave luz de seus respectivos contextos Usamos como fio norteador para a
anaacutelise comparativa a definiccedilatildeo de milenarismo anteriormente pressuposta e agora
desdobrada602
598 KOCKA Juumlrgen Comparison and beyond History and theory Middletown n 42 p 39-44 2003 p 39 599 Conferir uma siacutentese de modelos de observaccedilatildeo comparada em BARROS Joseacute DacuteAssunccedilatildeo Histoacuteria
comparada um novo modo de ver e fazer a histoacuteria Revista de Histoacuteria Comparada Rio de Janeiro v 1 n
1 p 1-30 2007 p 18-21 600 KOCKA Juumlrgen HAUPT Heinz-Gerhard Comparison and Beyond traditions scope and perspectives of
Comparative History In HAUPT Heins-Gerhard KOCKA Juumlrgen (orgs) Comparative and Transnational
History Central European approaches and new perspectives Oxford Berghahn Books 2009 p 1-30 p 2 601 HAUPT Heinz-Gerhard KOCKA Juumlrgen Comparative History Methods Aims Problems In COHEN
Deborah OrsquoCONNOR Maura Comparison and History Europe in cross-national perspective London
Routledge 2004 p 23-39 p 27 602 Para tanto contamos com as contribuiccedilotildees principalmente da socioacuteloga israelense Yonina Talmon e do
historiador americano Richard Landes Cf TALMON Yonina Millenarism In SILLS David L (ed)
International Encyclopedia of the Social Sciences London The Macmillan Company amp The Free Press 1968
19 v V X p 349-362 LANDES Richard A Millennialism in the Western World In LANDES Richard A
(ed) Encyclopedia of millennialism and millennial movements New York Routledge 2000 p 453-466
180
Por uma definiccedilatildeo de milenarismo
No iniacutecio desta tese anunciamos a definiccedilatildeo de milenarismo do historiador inglecircs
Norman Cohn que entendeu-o como um tipo particular de utopia salvacionista coletiva jaacute
que todos os fieacuteis experimentariam a felicidade terrena jaacute que essa felicidade seria
alcanccedilada na terra e natildeo em uma realidade transcendente total pois aguarda uma completa
inversatildeo dos males da terra iminente pois a transformaccedilatildeo completa estaria perto de
comeccedilar e miraculosa jaacute que a redenccedilatildeo contaria com a ajuda de poderes sobrenaturais603
Alguns autores entretanto como Jean Delumeau optam por uma noccedilatildeo reducionista
do fenocircmeno ldquono cristianismo deve-se chamar de milenarismo a crenccedila num reino terrestre
de Cristo e de seus eleitos ndash reino este que deve durar mil anos entendidos seja literalmente
seja simbolicamenterdquo604 A definiccedilatildeo de Delumeau parece entender por milenarismo apenas
os fenocircmenos que replicam o milecircnio de Apocalipse 20 Isso o leva agrave curiosa sugestatildeo de
que Joaquim de Fiore a quem ele dedicou quase cinquenta paacuteginas do seu livro sobre
ldquomilenarismordquo natildeo poderia ser chamado de milenarista605 Diante de tal posicionamento eacute
preciso lembrar do argumento de Paula Fredriksen ldquoa ideia de um periacuteodo de mil anos
implicada por este termo eacute menos essencial para o seu sentido que o seu foco sobre a terra
a histoacuteria humana como a uacuteltima arena da redenccedilatildeordquo606
No campo oposto ao de Delumeau Kathryn Kerby-Fulton opta por uma definiccedilatildeo
abrangente demais ldquoRefere-se agrave crenccedila num futuro de becircnccedilatildeos na terra antes do fim da
LANDES Richard A Heaven on Earth the varieties of the millennial experience Oxford Oxford Universit
Press 2011 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time In NEWPORT
Kenneth G C GRIBBEN Crawford (eds) Expecting the End millennialism in social and historical context
Waco Baylor University Press 2006 p 1-23 603 Cf COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade
Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 Pesquisadores deste tema continuam partindo das definiccedilotildees
de Cohn mesmo que sua obra sobre os milenaristas revolucionaacuterios da Idade Meacutedia jaacute tenha quase 50 anos
Por exemplo cf CLARKE Peter The origins scope and spread of the millenarian idea In LIEB Michael
MASON Emma Roberts Johathan (edss) The Oxford Handbook of the Reception History of the Bible
Oxford Oxford University Press 2011 p 235-242 604 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras
1997 p 17-18 Tambeacutem minimiza o milenarismo de Joaquim SARANYANA Josep Ignasi Sobre El
milenarismo de Joaquiacuten de Fiore Uma lectura retrospectiva Teologia y Vida Santiago v XLIV p 221-232
2003 605 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias
Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria
mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 606 FREDRIKSEN Paula Tyconius and Augustine on the Apocalypse In EMMERSON Richard K
MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 20-
37 p 20
181
histoacuteriardquo607 Ou entatildeo John Gager ldquoum movimento que espera uma nova ordem de realidade
em um futuro proacuteximordquo608 Diante de tal formulaccedilatildeo tanto o que espera a redenccedilatildeo de forma
iminente quanto aquele que a projetou para milhares de anos agrave frente satildeo tomados como
milenaristas Por isso o proacuteprio Gager refina sua definiccedilatildeo argumentando que a espera
indefinida pelo reino milenar natildeo seria propriamente milenarista Afinal os sacerdotes reais
persas que lanccedilaram o ldquotornar maravilhosordquo de Zaratrusta para sete mil anos agrave frente natildeo
poderiam ser chamados propriamente de milenaristas609 O caraacuteter iminente da crenccedila
milenarista manifesta uma rejeiccedilatildeo da presente ordem social Quando o fim da ordem
presente eacute lanccedilado para um futuro longiacutenquo e indeterminado o resultado eacute a legitimaccedilatildeo
do mundo cotidiano Nos termos de John Collins ldquojulgamento adiado providencia confianccedila
no presenterdquo610
Retomando a definiccedilatildeo de milenarismo o termo tem origem no vocaacutebulo latino
ldquomillerdquo usado para traduzir a palavra grega ldquordquo de Apocalipse 201-10 Ele ganhou um
sentido lato entretanto no campo dos estudos sociais passando a indicar uma determinada
expectativa de movimentos ou grupos611 Cohn como jaacute indicamos anteriormente descreveu
o fenocircmeno como uma ldquoutopiardquo Mas ele eacute propriamente uma reflexatildeo sobre o tempo uma
filosofia da histoacuteria um sistema de representaccedilotildees graacutevido de praacuteticas que se manifestam
em grupos comunidades cultos e movimentos Podemos falar destes entatildeo como cultos
seitas ou movimentos milenaristas Figura significativa entre estas representaccedilotildees e praacuteticas
eacute o profeta milenarista que se torna o seu vulgarizador apologeta e pregador Em algumas
circunstacircncias em torno dele surge um grupo Em outras como no caso de Joatildeo e Joaquim
haacute uma relaccedilatildeo diacrocircnica entre o fundador e os grupos que se dizem seus porta-vozes como
o movimento inspirado nas profecias joaninas de Montano Priscila e Maximila a partir da
deacutecada de 160 nas proviacutencias romanas da Aacutesia menor612 ou a inspiraccedilatildeo joaquimita do grupo
607 Cf KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge
University Press 1990 p 3 608 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 p 57 609 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no
Apocalipse Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 135 610 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do
Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 11 611 TALMON op cit p 349 Henri Desroche cunhou a expressatildeo ldquohomens da esperardquo para fazer referecircncia a
pessoas que aguardam algum tipo de mudanccedila histoacuterica a posteriori Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de
messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 16 612 PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation New York Penguin
Books 2012 p 103-107
182
em torno de Amaury de Begravene na Paris do iniacutecio do seacuteculo XIII condenado formalmente no
IV Conciacutelio de Latratildeo (1215)613
Segundo Norman Cohn um dos mais antigos destes profetas milenaristas surgiu no
Iratilde antigo e ficou conhecido como Zoroastro614 A partir do zoroastrismo em sua
manifestaccedilatildeo imperial persa o fenocircmeno teria transitado para o Judaiacutesmo quando
expressotildees de uma redenccedilatildeo futura deram origem a diversos movimentos ou seitas Uma
destas nascida das pregaccedilotildees do profeta Jesus de Nazareacute e subjacente ao Apocalipse tinha
como significativos traccedilos iniciais uma resiliente combinaccedilatildeo de milenarismo e
messianismo615
Cada profeta milenarista ou movimento milenarista tem particularidades uacutenicas
Mesmo assim eles apresentam alguns traccedilos em comum que eacute o que permite categorizaacute-
los em diferentes lugares e eacutepocas sob o mesmo termo616
Coletiva o povo feliz
A salvaccedilatildeo no milenarismo natildeo eacute de natureza individual mas expectativa de um
grupo ou para um grupo O milenarista natildeo deseja alcanccedilar a salvaccedilatildeo sozinho pois espera
compartilhaacute-la com uma comunidade de pessoas ldquoeleitasrdquo O fenocircmeno assim tem uma
orientaccedilatildeo coletiva O reino milenar do Apocalipse espera ser povoado por uma multidatildeo de
maacutertires ressuscitados O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim veraacute uma humanidade inteira em
paz e contemplaccedilatildeo quando um grande grupo de pessoas se converterem agrave feacute da Igreja latina
especialmente os judeus
Apesar dos leitores posteriores de Joatildeo terem ampliado o puacuteblico do milecircnio em
Apocalipse 20 ele eacute exclusivo daqueles que foram degolados pelas bestas do Dragatildeo o que
pode representar toda a crise do profeta com as mortes violentas ou as notiacutecias de mortes
violentas na guerra judaico-romana De fora ficam natildeo apenas os seus ldquoirmatildeosrdquo que natildeo
alcanccedilarem tal morte (participariam da ldquosegunda ressurreiccedilatildeordquo) mas tambeacutem todos aqueles
que natildeo compartilham de sua perspectiva de Jesus como o Messias de Deus Estes uacuteltimos
613 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 61 614 Para Cohn Zoroastro ldquoeacute o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo especiacutefico de profeta ndash os
chamados lsquomilenaristasrsquordquo Cf COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 133 615 TALMON op cit p 350 616 Como argumentou Paul Veyne os fenocircmenos histoacutericos natildeo se organizam atraveacutes de periacuteodos e de povos
mas atraveacutes de noccedilotildees Mais do que inseridos no seu tempo eles precisam ser postos sob um conceito Cf
VEYNE Paul O inventaacuterio das diferenccedilas Lisboa Gradiva 1989 p 33
183
por sinal entendidos por Joatildeo como seguidores das bestas e do Dragatildeo seriam destruiacutedos
na parousia Natildeo haacute sobreviventes para o reino dos maacutertires O milecircnio para o Apocalipse
soacute seraacute alcanccedilado pela porta do martiacuterio
Neste tipo de milenarismo algumas pessoas alcanccedilam a redenccedilatildeo outras satildeo
destruiacutedas no processo Haacute um dualismo baacutesico uma divisatildeo fundamental da humanidade
entre fieis e infieacuteis entre seguidores e natildeo-seguidores entre crentes e increacutedulos entre justos
e perversos A histoacuteria humana eacute vista como uma luta contiacutenua entre os filhos de Deus contra
os aliados de Satanaacutes De qualquer forma nem no Apocalipse ou no Expositio haacute criteacuterios
de raccedila grupo eacutetnico ou naccedilatildeo para compor a terra da felicidade Em ambos os casos a
participaccedilatildeo se daria em funccedilatildeo de opccedilotildees religiosas
Haacute uma forte ecircnfase na exclusatildeo em Joatildeo e um relativo inclusivismo em Joaquim
com sua expectativa de conversatildeo geral apoacutes o levantamento do Anticristo Apesar de sua
ecircnfase nos monges o descanso natildeo eacute soacute para eles A sociedade da Terceira Era natildeo seria
formada apenas por membros do corpo monaacutestico mas caberiam diversos outros grupos
sociais como a Dispositio o demonstra617 Em seus esquemas o abade fala de uma era de
casados outra de cleacuterigos outra de monges expressotildees que precisam ser entendidas na oacutetica
do protagonismo Na primeira Era o protagonismo foi dos casados na segunda dos cleacuterigos
na terceira dos monges A Dispositivo representaccedilatildeo da sociedade ideal de Joaquim
apresenta sete oratoacuterios cinco satildeo de monges um para o clero e um para os casados Ele vecirc
uma loacutegica de procedecircncia entre as ordens dos casados procedem os cleacuterigos dos cleacuterigos
os monges Mas um natildeo significa o fim do outro Neste tipo de perspectiva a Trindade se
revela na histoacuteria imprimindo nela as caracteriacutesticas peculiares de cada pessoa divina e um
caraacuteter dinacircmico e progressivo cuja meta eacute uma sociedade protagonizada por monges
contemplativos
Eacute possiacutevel fazer ainda uma reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo entre a comunidade futura ideal
e a comunidade real do presente do milenarista Apocalipse e Expositio satildeo produccedilotildees de
liacutederes carismaacuteticos Joatildeo era um profeta itinerante das igrejas da Aacutesia Joaquim era um
abade que conseguiu atrair um grupo de disciacutepulos para as montanhas de Fiore e a partir
deles fundou uma casa monaacutestica e uma ordem religiosa Neste sentido suas obras visavam
a uma comunidade seus textos buscavam operar no interior de um grupo Representaccedilotildees
617 Cf Anexo 5
184
individuais natildeo satildeo elementos estanques mas se relacionam com representaccedilotildees sociais618
Joatildeo e Joaquim representam determinados grupos Suas falas satildeo representativas de
expectativas mesmo que parcialmente compartilhadas entre profeta e comunidade No caso
de Joatildeo sua audiecircncia natildeo lhe eacute totalmente amistosa Ele enfrenta adversaacuterios no interior
das igrejas e deseja com seu Apocalipse simultaneamente convocar os aliados e atacar os
inimigos Joaquim tambeacutem tem alguns adversaacuterios mesmo que seja em escala diferente Ele
enfrenta resistecircncia da Ordem Cisterciense em funccedilatildeo de ter abandonado a abadia de
Corazzo Mas os grandes adversaacuterios de ambos os autores estatildeo ldquodo lado de forardquo de seus
ciacuterculos a sociedade romana para Joatildeo619 os muccedilulmanos para Joaquim Satildeo estes
adversaacuterios os grandes excluiacutedos do reino dos maacutertires ou do saacutebado do Espiacuterito
Terrena o lugar perfeito
Joatildeo de Patmos pode ter testemunhado a morte de muitos de seus irmatildeos e ouvido
falar do martiacuterio de vaacuterios outros Seu texto manifesta a expectativa de acentuada
perseguiccedilatildeo da sociedade romana para um futuro proacuteximo Estes aspectos parecem marcar
sua descriccedilatildeo do passado e do futuro das comunidades de Jesus Tal conjunto de
representaccedilotildees tem o potencial de produzir ruptura em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano e gerar
ansiedade pelo reino milenar Apesar de sua breve descriccedilatildeo no episoacutedio de Apocalipse 20
Joatildeo tambeacutem registrou a mesma expectativa no iniacutecio da segunda seccedilatildeo de sua obra
(Apocalipse 5) Nesta passagem o autor relatou o hino que ele teria ouvido da parte de Vinte
e quatro Presbiacuteteros Celestiais ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste
morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e
naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo
(Apocalipse 59-10) Este hino ao ldquoCordeirordquo eacute uma metaacutefora para descrever Jesus e sua
morte seis deacutecadas atraacutes Segundo Joatildeo a morte daquele que ele tem como Messias foi uma
estrateacutegia divina para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo
exclusivo fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus620 Mesmo que as formas verbais estejam no
618 OLIVEIRA Maacutercio de O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves
Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre v 13 n 22 p 67-94 2012 p 71 619 Eacute interessante destacar que a Palestina desde a deacutecada 60 antes da Era Comum era parte do Impeacuterio
Romano Os judeus eram formalmente membros deste Impeacuterio Isso natildeo foi o suficiente para que Joatildeo se
sentisse parte do ldquomundo romanordquo Pelo contraacuterio numa perspectiva sectaacuteria ele rejeita a sociedade que lhe
cerca 620 CHARLES J Daryl A Apocalyptic Tribute to the Lamb (Rev 51-14) Journal of the Evangelical
Theological Society Chicago v 24 n 4 p 461-473 1991 p 471
185
passado como se fossem eventos jaacute realizados por Jesus621 o final do hino manifesta a
mesma expectativa de Apocalipse 20 um reino sobre a terra622
Ao contraacuterio de Joatildeo entretanto a relaccedilatildeo de Joaquim com a sociedade circundante
eacute bem favoraacutevel Joaquim natildeo enfrentou perseguiccedilatildeo As ameaccedilas do Capiacutetulo Geral da
Ordem Cisterciense natildeo podem ser descritas como tal jaacute que o abade contava com o apoio
papal e dos poderes constituiacutedos no reino da Siciacutelia Mesmo assim como Joatildeo as
expectativas joaquitas natildeo satildeo para aleacutem Ele tem elementos concretos no interior de suas
descriccedilotildees do saacutebado do Espiacuterito Sua ecircnfase neste caso se desloca de uma ressurreiccedilatildeo de
maacutertires para o descanso contemplativo monaacutestico que ele aprendeu a admirar apoacutes o retorno
de sua peregrinaccedilatildeo agrave Palestina A situaccedilatildeo de instabilidade poliacutetica no reino normando e os
eventuais embates entre o Impeacuterio e a Igreja romana parecem ter sensibilizado o abade de
Fiore o suficiente para que ele esperasse a paz como a principal marca do tempo do Espiacuterito
Sem conflitos uma humanidade pacificada poderia gastar os dias do descanso sabaacutetico em
contemplaccedilatildeo e comunhatildeo com a divindade Apesar de transformadas pela atuaccedilatildeo
sobrenatural do Espiacuterito na sociedade dos sonhos de Joaquim ainda haveria liturgia trabalho
e estudo marcas da espiritualidade cisterciense no milenarismo do abade623
Joatildeo espera por um periacuteodo milenar em que maacutertires ressuscitados governam julgam
e cultuam e Joaquim ansiou por um descanso sabaacutetico em que viri spirituales cultuassem
trabalhassem e estudassem Com isso ambos manifestam a principal caracteriacutestica do
milenarismo que eacute sua orientaccedilatildeo terrena quando a noccedilatildeo de um tempo ideal (o tempo do
milecircnio) eacute acompanhada da noccedilatildeo de um espaccedilo ideal (a terra do milecircnio)624 Daiacute a ecircnfase
na terra ou em algum lugar especiacutefico da terra em detrimento de uma dimensatildeo
transcendental
Segundo Cohn especialmente entre as religiotildees zoroastrianas judaicas e cristatildes
surgiu a noccedilatildeo de que a histoacuteria caminha na direccedilatildeo de seu fim um eschaton o fim dos
tempos ou o fim do mundo625 No contexto cristatildeo este ldquofim do mundordquo envolveria um juiacutezo
621 PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 124 622 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991
p 62 623 O confronto de Joaquim com os cistercienses de Corazzo e com as autoridades da ordem parece derivado
de sua percepccedilatildeo de que eles estavam sendo infieacuteis ao ldquoespiacuteritordquo de Bernardo de Claraval que ele chamava de
ldquoveneraacutevel pai Bernardordquo Joaquim achava que os cistercienses natildeo deram continuidade agrave reforma que
Bernardo comeccedilou mas ainda assim eles eram uma etapa importante na histoacuteria que o monasticismo deveria
percorrer ateacute atingir sua perfeiccedilatildeo Cf DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De
Joaquiacuten a Schelling Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 21 624 TALMON op cit p 352 625 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 286-294
186
final quando a divindade julgaria as pessoas vivas e mortas o universo material seria
consumido por ldquofogo purificadorrdquo deixando para os fieacuteis uma eternidade celestial
(Apocalipse 21-22) Para o autor de 2Pedro por exemplo o eschaton eacute o fim da vida na terra
como ele e a humanidade conheciam ldquoOra os ceacuteus que agora existem e a terra pela mesma
palavra tecircm sido entesourados para fogo estando reservados para o dia do Juiacutezo e destruiccedilatildeo
dos homens iacutempiosrdquo (2Pedro 37) Em termos socioloacutegicos esta expressatildeo escatoloacutegica
poderia ser definida como teodiceia uma tentativa de encontrar sentido para o sofrimento o
mal e principalmente a morte626
Profetas milenaristas frequentemente se voltam para a questatildeo do sofrimento e suas
causas Mas as expectativas natildeo-histoacutericas transcendentais parecem natildeo os atender Eles
esperam por uma transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de existecircncia na terra e natildeo em um mundo
natildeo-material Por isso as crenccedilas milenaristas antecipam parte das expectativas posteriores
ao fim do mundo para dentro da histoacuteria quando os fieacuteis seriam recompensados em seus
corpos em suas realidades materiais dentro do saeculum627 A paz a justiccedila e as condiccedilotildees
de existecircncia esperadas para um mundo porvir satildeo antecipadas para a terra
Derivadas dessa ecircnfase terrena estatildeo algumas diferenciaccedilotildees futuras dos fieacuteis As
descriccedilotildees feitas por Joaquim da sociedade do Espiacuterito indicam alguma relaccedilatildeo entre espaccedilo
e status O status estaraacute ligado agrave posiccedilatildeo diante do centro da sociedade espiritual ocupada
pelo pater spiritualis Este tipo de diferenciaccedilatildeo foi feita apenas de forma relativa por Joatildeo
quando ele descreveu duas ressurreiccedilotildees a primeira para os martirizados e membros do reino
milenar a segunda para os demais fieacuteis No Apocalipse os maacutertires formam uma espeacutecie de
fiel ideal acentuando o valor religioso do martiacuterio
Curiosamente o ideal asceacutetico manifesta-se nas duas visotildees Joatildeo espera que os
144000 guerreiros escatoloacutegicos do Cordeiro sejam virgens e castos (Apocalipse 141-5) o
abade de Fiore lanccedilou aqueles que ainda continuaratildeo casados no Oratoacuterio mais baixo da
Dispositio separados dos demais por um grande espaccedilo Para os dois religiosos o sexo
oposto eacute perigoso e isso se reflete nas suas descriccedilotildees idealizadas do futuro
626 BERGER Peter L O dossel sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulus
1985 p 65 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 6 627 Landes toma esta expressatildeo de Agostinho para falar da passagem contiacutenua do tempo da mateacuteria e da
histoacuteria Cf LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 7
187
Total inversatildeo escatoloacutegica
O conceito milenarista de redenccedilatildeo eacute total no sentido de que a nova era natildeo traraacute
meramente uma melhora nas condiccedilotildees de vida mas um movimento na direccedilatildeo de condiccedilotildees
perfeitas de existecircncia dentro da histoacuteria As tais ldquocondiccedilotildees de perfeiccedilatildeordquo entretanto
variam em funccedilatildeo das conjunturas histoacutericas dos expoentes do milenarismo Antigas
expectativas judaicas esperavam por um tempo em que os instrumentos de guerra seriam
transformados em arados e foices para trabalhar o campo (Isaiacuteas 21-5) lobos e leotildees
andariam juntos com ovelhas e cabritos e crianccedilas brincariam com serpentes sem se
machucar (Isaiacuteas 61-9) Estas expectativas parecem fazer sentido em comunidades rurais
em crise com conjunturas de opressatildeo aristocraacutetica628 Jaacute os milenaristas de Tabor na
Boecircmia do seacuteculo XV esperavam um milecircnio literal de banquete perpeacutetuo com a supressatildeo
de toda autoridade quando as mulheres poderiam conceber seus filhos sem qualquer
participaccedilatildeo masculina e homens tambeacutem dariam agrave luz629
A inversatildeo escatoloacutegica idealizada por Joatildeo assim esperava o fim de todas as
guerras e violecircncias contra os seguidores de Jesus que viveriam na terra como reis juiacutezes e
sacerdotes expectativas que apontam para o desejo de empoderamento de pessoas agrave margem
do poder A descriccedilatildeo do milecircnio do Apocalipse pretende ser uma inversatildeo de soberanias
Os poderes do presente seriam destronados os sem poderes seriam entronizados e exaltados
Joaquim igualmente aguarda um periacuteodo de felicidade na terra mesmo que
pequeno em que os fieacuteis experimentaratildeo acima de tudo paz com o fim de todos os
conflitos No calabrecircs entretanto natildeo haacute espaccedilo para monarquias ou reis Mesmo que sua
hostilidade contra o Impeacuterio Germacircnico tenha desaparecido no final do Expositio em relaccedilatildeo
agraves suas primeiras exposiccedilotildees do Apocalipse630 ainda assim Joaquim possui a visatildeo de que
se a histoacuteria eclesiaacutestica fora marcada pelo conflito contra os poderes seculares estes
deveriam desaparecer na Terceira Era Somente a Igreja sobreviveria entatildeo transformada
em uma grande instituiccedilatildeo monacal
Gager argumenta que esta caracteriacutestica do milenarismo teria relaccedilatildeo com algum tipo
de privaccedilatildeo poliacutetica econocircmica social religiosa ou uma mistura de cada uma delas Os
milenaristas segundo este historiador aposentado da Princeton University ldquose sentem
628 LANDES Richard A Millennialism in the Western World op cit p 455 629 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 106 630 POTESTA Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p
318-319
188
desfavorecidos de alguma formardquo631 Ele estaacute ciente entretanto que existe muito mais gente
que sofre privaccedilatildeo do que membros de movimentos milenarista Por isso ele enfatiza que a
privaccedilatildeo natildeo precisa ser efetiva Ela pode ser relativa qual seja ldquouma relaccedilatildeo desigual entre
expectativa e os meios de satisfaccedilatildeordquo632 Eacute um tipo de condiccedilatildeo que surge quando novas
esperanccedilas se manifestam mas permanecem natildeo cumpridas
Esta sugestatildeo de Gager poderia ser usada para distinguir o milenarismo de Joatildeo e
Joaquim O profeta de Patmos era membro de um grupo marginal de uma das proviacutencias
orientais do Impeacuterio romano Vaacuterios de seus conterracircneos foram mortos em uma guerra
contra Roma em que causas poliacuteticas econocircmicas sociais e religiosas se encontravam
misturadas A proviacutencia da Aacutesia era uma das mais ricas do Impeacuterio mas figuras como Joatildeo
se sentiam isolados desta riqueza633
Do outro lado o calabrecircs era um abade bem situado e respeitado Norman Cohn
trabalhou em sua obra uma seacuterie de movimentos milenaristas medievais de tipo contestador
vinculados a grupos que viviam agrave margem quer da sociedade quer do poder634 Joaquim
natildeo era um milenarista deste tipo Ele natildeo estava na margem Ele estava perto do poder
Encontrou-se diversas vezes com papas monarcas rainhas e imperadores Era um dos mais
proeminentes abades do reino da Siciacutelia e talvez de toda a Itaacutelia635 Certamente entatildeo o
termo marginalizado natildeo poderia ser usado para descrever Joaquim de Fiore Ele natildeo se via
como marginalizado e natildeo era efetivamente um marginalizado636
A Era do Espiacuterito do abade natildeo parece ter relaccedilatildeo com algum tipo de privaccedilatildeo efetiva
No calabrecircs haacute mais propriamente a questatildeo das expectativas natildeo cumpridas Sua caminhada
religiosa parece evidenciar este aspecto Apoacutes o retorno da Palestina ele abraccedilou o
eremitismo depois procurou se envolver com um modelo monaacutestico cenobiacutetico em pelo
menos trecircs casas Sambucina Corazzo e S Trindade A forma como rejeitou inicialmente o
631 GAGER John G Kingdom and Community op cit p 25 632 Idem p 27 633 Conferir uma anaacutelise da criacutetica joanina agrave riqueza de Roma em KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio
imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 634 COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia
Lisboa Editorial Presenccedila 1970 635 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 636 Mc Ginn alerta que o perfil social da maioria daqueles que se valiam da retoacuterica apocaliacuteptica na Idade Meacutedia
natildeo era de um profeta isolado no alto de uma montanha mas pessoas bem-educadas cleacuterigos e liacutederes na
sociedade membros da corte e escribas Frequentemente ldquoeram poderosas figuras poliacuteticasrdquo Neste contexto
o milenarismo era uma tentativa de interpretar o seu proacuteprio tempo e assim dar suporte para patronos legitimar
a lideranccedila e perseguir determinados propoacutesitos poliacuteticos sociais e religiosos Cf MC GINN Bernard Visions
of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages New York Columbia University Press 1979 p 32
189
cargo de abade de Corazzo e deixou S Trindade indica uma ecircnfase religiosa no isolamento
e na contemplaccedilatildeo Apoacutes uma campanha para ingresso na Ordem Cisterciense abandonou
sua casa para fundar um monasteacuterio no isolamento de Fiore O ideal milenarista de Joaquim
parece revelar sua frustraccedilatildeo com a Igreja tanto latina quanto grega e com as formas de
monasticismo que ele tinha agrave disposiccedilatildeo Para o abade suas altas demandas religiosas natildeo
realizadas nas instituiccedilotildees que ele conhecia seriam atendidas finalmente quando o Espiacuterito
instaurasse a terceira Era da histoacuteria
De qualquer forma ambos os milenarismos refletem algum tipo de rejeiccedilatildeo da
presente ordem do mundo O milecircnio de Joatildeo reflete o conflito com a sociedade romana e
mesmo com outras comunidades de Jesus O de Joaquim com outras propostas de
espiritualidade cristatilde
Iminente bem perto de comeccedilar
Para Joatildeo o governo milenar de Cristo estava para acontecer a qualquer momento
Na sua perspectiva temporal as bestas estavam para iniciar o ataque final contra os fieacuteis
promovendo a morte de vaacuterios deles (Apocalipse 13) mas ao mesmo tempo viabilizando a
parousia de Jesus e a implementaccedilatildeo do milecircnio O autor do Expositio tambeacutem se entende
no limiar de uma nova era Por meio de caacutelculos complexos relacionados com sua
especulaccedilatildeo exegeacutetica o abade entendia que faltavam poucos anos para que os ldquosantosrdquo
experimentassem o refrigeacuterio tatildeo aguardado
Esta semelhante perspectiva quanto agrave urgecircncia dos tempos de Joatildeo e Joaquim
configura uma marca essencial do milenarismo um senso de premecircncia derivado da forma
como o fiel interpreta os eventos agrave sua volta Ele sente que a era salviacutefica estaacute proacutexima e
vive na expectativa de vecirc-la ou em preparaccedilatildeo para alcanccedilaacute-la O pressuposto para esta
confianccedila na proximidade da redenccedilatildeo tem relaccedilatildeo com a crenccedila na histoacuteria como um
processo preacute-determinado Neste sentido bastaria ter acesso a uma determinada chave de
leitura para que se pudesse prever cada uma de suas etapas Os profetas milenaristas
desejavam entender a histoacuteria sua unidade sua estrutura seu objetivo e seu fim637
Segundo Talmon haacute aqui uma combinaccedilatildeo entre consciecircncia histoacuterica de tempo e
consciecircncia miacutetica A perspectiva histoacuterica do tempo como uma sequecircncia de eventos um
637 Idem p 31
190
vir-a-ser de caraacuteter uacutenico e particular eacute combinada com uma consciecircncia de tempo ciacuteclico
infinito e repetitivo638 Afinal o milecircnio de Joatildeo eacute uma interrupccedilatildeo do vir-a-ser um
parecircntese na histoacuteria Natildeo eacute ainda o destino derradeiro dos maacutertires jaacute que apoacutes o juiacutezo final
o profeta descreve uma Nova Jerusaleacutem em termos meta-histoacutericos (Apocalipse 21-22) Na
perspectiva joanina o milecircnio eacute uma demanda da justiccedila divina pois os fieacuteis martirizados
precisavam reinar com seu Cristo na mesma terra que os martirizou
Em Joaquim a sociedade milenar eacute uma antecipaccedilatildeo da Jerusaleacutem celestial
igualmente revestida de historicidade e temporalidade Quando seu periacuteodo acabar chegou
o fim do mundo Joaquim natildeo reflete longamente sobre o que vem a seguir Isso faz com que
sua Nova Era tenha como alvo esta nova sociedade espiritual na terra e natildeo alguma outra
num formato transcendental Eacute uma sociedade ideal ainda com a presenccedila de estruturas
sociais (em torno dos sete oratoacuterios da Dispositio) e de papeacuteis sociais (os viri spirituales da
Dispositio ainda estudam cantam e trabalham)
Relacionado com a questatildeo da iminecircncia estaacute a seacuterie de desastres presente nos
vaticiacutenios milenaristas Para explicar tal caracteriacutestica o socioacutelogo francecircs Desroche
apontou um roteiro de trecircs tempos subjacentes aos milenarismos haacute um tempo de opressatildeo
que se agrava progressivamente ateacute atingir o auge da alienaccedilatildeo e injusticcedila haacute um tempo de
resistecircncia quando os fieacuteis satildeo separados marcados nas frontes por Deus testemunham
vestidos de saco resistem no deserto isolam-se na espera enfrentam o martiacuterio haacute um
tempo de libertaccedilatildeo quando o adversaacuterio eacute finalmente derrotado e os fieacuteis desfrutaratildeo da
paz divina639 Esta relaccedilatildeo entre opressatildeo e redenccedilatildeo gera no milenarista a sensaccedilatildeo de que
quanto pior ficar melhor eacute jaacute que as adversidades histoacutericas seriam sinais da iminecircncia da
intervenccedilatildeo divina640
Assim antes que os maacutertires ressuscitem o Apocalipse de Joatildeo descreve o funesto
convite para que abutres venham devorar as carnes mortas de reis comandantes e poderosos
ldquocarnes de cavalos e seus cavaleiros carnes de todos quer livres quer escravos tanto
pequenos como grandesrdquo (Apocalipse 1918) O refrigeacuterio dos santos de Joaquim por sua
vez soacute surgiria apoacutes a manifestaccedilatildeo do Anticristo e a morte de muitos fieacuteis Neste sentido a
638 TALMON op cit p 352 639 DESROCHE op cit p 50 640 Eacute um apelo nos termos de Desroche em desespero de causa ldquoum apelo em uacuteltima instacircncia uma vez que
as demais instacircncias desmoronaram E ateacute mesmo um apelo para que as demais instacircncias desmoronemrdquo Cf
DESROCHE op cit p 51
191
felicidade almejada natildeo chegaria antes de uma ldquoangustia temporumrdquo ou das duas
ldquotribulationesrdquo quando muitos fieis alcanccedilariam o martiacuterio641
Miraculosa a intervenccedilatildeo divina
Um movimento milenarista compartilha a crenccedila na transformaccedilatildeo do mundo
conjugando-a com um senso de mudanccedila iminente Neste contexto uma significativa
questatildeo guarda relaccedilatildeo com a agecircncia da transformaccedilatildeo ou seja quem traraacute o milecircnio e a
forma como ele viraacute Em sua definiccedilatildeo do fenocircmeno Norman Cohn chamou a atenccedilatildeo para
o aspecto miraculoso da expectativa milenarista no sentido de que uma transiccedilatildeo tatildeo
significativa da realidade precisa da intervenccedilatildeo de forccedilas sobre-humanas642
Eacute neste contexto que se insere o elemento messiacircnico quando a salvaccedilatildeo eacute esperada
sob a conduccedilatildeo de um redentor um mediador entre o ser humano e a divindade
Frequentemente milenarismo envolve messianismo apesar de que os dois fenocircmenos natildeo
necessariamente coincidem Eacute possiacutevel surgir a perspectiva messiacircnica sem a milenarista
Do outro lado nem sempre eacute preciso um messias para que haja a presenccedila do milenarismo
Milenarismo e messianismo satildeo fenocircmenos independentes que eventualmente se unem
mas o dicionaacuterio de Desroche estaacute cheio de casos de um sem o outro643
Especificamente o milenarismo de Joatildeo eacute do tipo messiacircnico jaacute que ele entende que
para que o milecircnio aconteccedila um enviado de Deus um messias o Jesus glorificado precisaria
atuar Para Joaquim entretanto este periacuteodo de paz seria alcanccedilado por meio da atuaccedilatildeo do
Espiacuterito Santo o promotor da felicidade terrena que o abade chamou de ldquodescanso sabaacuteticordquo
O saacutebado do Espiacuterito natildeo demanda a parousia para sua instauraccedilatildeo Tambeacutem natildeo haacute figuras
ungidas exercendo papeacuteis messiacircnicos nas representaccedilotildees joaquitas como um imperador
especial para trazer o ldquosaacutebadordquo ou um papa angelical para instauraacute-lo
O abade de Fiore natildeo esperava por um reino milenar de Jesus na terra Ele deslocou
o reino de Jesus para traz e o tornou um artiacutefice de um periacuteodo completo dentro da histoacuteria
(o segundo status) Com sua visatildeo de progresso contiacutenuo e natildeo de queda contiacutenua Joaquim
imaginou a humanidade se desenvolvendo por meio da atuaccedilatildeo do Pai na primeira Era
passando pela revelaccedilatildeo do Filho na segunda Era ateacute culminar na atuaccedilatildeo do Espiacuterito na
641 GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 75 642 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 11 643 DESROCHE op cit
192
terceira Era Seu milenarismo entatildeo natildeo espera por um Jesus exaltado na terra realizando
um governo com maacutertires ressuscitados Para o calabrecircs natildeo eacute o Filho a esperanccedila dos fieacuteis
e sim o Espiacuterito O tempo de um estava por terminar para que o outro pudesse comeccedilar
Joatildeo esperava um periacuteodo de paz para apoacutes o segundo advento de Jesus Sem Jesus
natildeo haveria felicidade na terra nem reinado dos martirizados nem inversatildeo escatoloacutegica
nem vitoacuteria sobre o Anticristo O milecircnio assim concebido era um parecircntese entre o
segundo advento de Jesus e o final da histoacuteria Um parecircntese que duraria mil anos
Para o abade poreacutem Jesus eacute o centro da histoacuteria mas natildeo o seu aacutepice O aacutepice estaacute
no final na etapa exclusiva do Espiacuterito e sem a demanda do segundo advento de Jesus
(parousia) Em vez de o Filho retornar para trazer a felicidade para a humanidade seu tempo
iria terminar e somente entatildeo debaixo exclusivamente do controle histoacuterico do Espiacuterito os
seres humanos experimentariam a paz Haacute um lugar para a parousia tambeacutem nas
expectativas de Joaquim mas para terminar a histoacuteria e natildeo para dentro dela Na sua visatildeo
quando o Filho retornar a histoacuteria termina o mundo acaba644 Neste sentido o milenarismo
de Joaquim natildeo eacute um milenarismo do Filho e sim do Espiacuterito
Outro aspecto ainda relacionado com a forma de instauraccedilatildeo do milecircnio se desdobra
no papel humano para seu estabelecimento Haacute alguns elementos nas representaccedilotildees
milenaristas que podem atuar para minimizar a atuaccedilatildeo do fiel como por exemplo a
perspectiva de uma redenccedilatildeo predeterminada e inevitaacutevel Neste caso o milenarista natildeo
precisa fazer a revoluccedilatildeo basta esperar pela sua manifestaccedilatildeo sobrenatural Entretanto em
algumas situaccedilotildees a certeza da operaccedilatildeo de acordo com o que estaacute determinado no plano
divino e a confianccedila na vitoacuteria final podem encorajar alguma atividade em vez de
passividade Este parece ser o caso do Apocalipse645 que atribuiu um papel significativo aos
ldquosantosrdquo na instauraccedilatildeo do reino messiacircnico (Apocalipse 69-11) Sem o martiacuterio natildeo haveria
o preenchimento da cota de mortos necessaacuteria para instaurar a parousia (Apocalipse 19) ou
para vencer o Dragatildeo (Apocalipse 12) O profeta de Patmos entende que eacute necessaacuterio algum
tipo de resistecircncia resistecircncia essa que provocaraacute o martiacuterio martiacuterio esse que provocaraacute a
parousia parousia essa que inauguraraacute o milecircnio Ele natildeo demandou uma reaccedilatildeo armada
dos seus seguidores mas esperava deles a rejeiccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo romana o culto
644 Apoacutes o terceiro ciacuterculo da Taacutevola XI do Liber Figurarum aparece a expressatildeo ldquofinis mundirdquo Cf Anexo 6 645 Adela Yarbro Collins definiu o modelo de resistecircncia presente no Apocalipse de Joatildeo como ldquopassivordquo
Mesmo assim ela admite algum tipo de sinergismo jaacute que a morte dos maacutertires aproxima o fiel do eschaton
Cf COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E
J Brill 1996 p 212
193
imperial Na perspectiva joanina quando os disciacutepulos se negassem a participar da adoraccedilatildeo
agraves ldquobestasrdquo eles seriam mortos evento que parece estar subjacente agrave descriccedilatildeo da morte das
Duas Testemunhas (Apocalipse 11) e dos 144000 Guerreiros do Cordeiro (Apocalipse
14)646
Assim no milenarismo do Apocalipse os fieacuteis participam na instauraccedilatildeo do reino
milenar por meio do derramamento do proacuteprio sangue Este tipo de milenarismo pode ser
descrito como revolucionaacuterio ao rejeitar a ordem presente e promover accedilotildees concretas dos
fieacuteis O martiacuterio eacute tomado como uma estrateacutegia de confronto contra a sociedade romana Em
sua descriccedilatildeo do milecircnio Joatildeo explicita que o fiel precisa viver de certo jeito e morrer de
certa forma para estar presente no reino milenar
Em Joaquim entretanto haacute uma reduccedilatildeo do papel humano na instauraccedilatildeo do
descanso do Espiacuterito relacionado justamente com a oacutetica do abade de que os eventos
escatoloacutegicos estatildeo jaacute definidos e determinados Compete aos saacutebios apenas entendecirc-los
anunciar sua chegada e preparar a humanidade para eles Esse caraacuteter de determinaccedilatildeo estaacute
presente no seu esquema da Concordia Natildeo se pode mudar a histoacuteria apenas se preparar
para ela O milenarismo joaquita entatildeo eacute do tipo passivo Natildeo eacute possiacutevel fazer algo para
apressar a chegada do refrigeacuterio dos monges Sua instauraccedilatildeo natildeo depende de pessoas mas
do tempo que precisa ser cumprido
A roda das apropriaccedilotildees
147 anos apoacutes a morte de Joaquim em 1349 o franciscano francecircs Jean de
Roquetaillade enquanto estava encarcerado numa prisatildeo em Avignon escreveu a obra Liber
secretorum eventuum647 Nela ele anuncia a chegada de uma grande tribulaccedilatildeo A Igreja
entatildeo liderada por um papa ldquoangeacutelicordquo saiacutedo dentre os frades menores seria ldquopurgadardquo de
seus erros A partir de entatildeo um grande tempo de paz e prosperidade invadiria o mundo
durante mil anos Roquetaillade como outros franciscanos desde Geraldo San Borgo era
um leitor de Joatildeo de Patmos e Joaquim de Fiore648 Estas apropriaccedilotildees entretanto
tencionavam o pensamento do abade de Fiore na direccedilatildeo de confrontos que natildeo estavam
646 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no
Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 169-175 647 Esta anaacutelise de Roquetaillade segue DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 55-57 648 Idem p 50-57 Conferir tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore e o franciscanismo medieval
Thaumazein Santa Maria v V n 11 p 119-139 2013
194
previstos pelo ldquopaciacuteficordquo calabrecircs649 No Liber secretorum eventuum seu autor natildeo se vale
do esquema das trecircs idades do mundo jaacute criticado pelo protocolo de Agnani durante o
processo contra Geraldo O milenarismo de Jean de Roquetaillade eacute como o de Joaquim
natildeo-messiacircnico mas retomou o quimeacuterico nuacutemero de Joatildeo mil anos Sem parousia como
Joaquim mas por mil anos como Joatildeo Apoacutes o fim deste longo periacuteodo de paz viria entatildeo
o fim do mundo O frade aprisionado tinha a convicccedilatildeo de que o milecircnio comeccedilaria em 1415
ou 1420
Roquetaillade eacute um exemplo dos diversos tensionamentos sofridos pelo pensamento
joaquita reacionaacuterios ou revolucionaacuterios religiosos ou seculares clericais ou leigos no que
se convencionou chamar de ldquojoaquimismordquo650 Quer no paraiacuteso de Dante651 ou nas cartas de
Colombo652 depois de posta em movimento a roda das apropriaccedilotildees653 joaquimitas natildeo
parou de girar para chegar ateacute nos termos de Delumeau agraves ldquoutopias ideoloacutegicas da eacutepoca
contemporacircneardquo654
De qualquer forma este foi apenas um dos veios pelos quais correu a leitura do
Apocalipse e o levou a influenciar direta ou indiretamente a arte a literatura e a cultura no
Ocidente655 O livro foi catalisador de uma seacuterie de movimentos no correr da histoacuteria como
o grupo camponecircs liderado por Thomas Muntzer no seacuteculo XVI656 e a desastrosa
comunidade de 75 pessoas em torno de David Koresh destruiacuteda por um incecircndio em 1993657
A cada nova geraccedilatildeo de leituras um conjunto de representaccedilotildees emerge com
desdobramentos em subsequentes praacuteticas sociais e religiosas Compete aos historiadores e
649 Delumeau assim descreveu Joaquim ldquoum profeta paciacutefico que semeia germes de violecircnciardquo Cf
DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 46 650 Conferir DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling Madrid
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do Apocalipse Cf PHELAN John Leddy The millennial kingdom of the Franciscans in the new world
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ANEXOS
210
Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1658
658 Mapa presente em DMITRIEV Sviatoslav City government in hellenistic and Roman Asia Minor Oxford
Oxford University Press 2005 p xiv
211
Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2659
659 Mapa presente em DMITRIEV op cit pxvi
212
Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia660
660 Mapa presente em LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge
University Press 2007 p xiii
213
Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185)661
661 Mapa presente em DITCHBURN David MACLEAN Simon MACKAY Angus (eds) Atlas de Europa
medieval Madrid Caacutetedra 2011 p 132
214
Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum662
662 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero Le tavole del Liber Figurarum di
Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000 p 13
215
Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios663
663 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 15
Valtair Afonso Miranda
HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO DE PATMOS E NO
EXPOSITIO IN APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE
um estudo comparativo
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Instituto de Histoacuteria Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Histoacuteria
Orientadora
Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva
Rio de Janeiro
2017
CIP ndash Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo
Miranda Valtair Afonso
M672h Histoacuteria e Milenarismo no Apocalipse de Joatildeo de Patmos e no
Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore um estudo
comparativo Valtair Afonso Miranda -- Rio de Janeiro 2017
215 f
Orientadora Andreia Cristiana Lopes Frazatildeo da Silva
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria
Comparada 2017
1 Apocalipse de Joatildeo 2 Joaquim de Fiore 3 Milenarismo
4 Expositio in Apocalypsim I Silva Andreia Cristina Lopes
Frazatildeo da Orient II Tiacutetulo
BANCA EXAMINADORA
Titulares
Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (orientadora)
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profa Dra Leila Rodrigues da Silva
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof Dr Paulo Duarte Silva
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof Dr Paulo Augusto de Souza Nogueira
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo
Universidade Metodista de Satildeo Paulo
Profa Dra Monica Selvatici
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social
Universidade Estadual de Londrina
Suplentes
Prof Dr Andreacute Chevitarese
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profa Dra Carolina Fortes
Instituto de Histoacuteria
Universidade Federal Fluminense
DEDICATOacuteRIA
Agrave Elizete Rafael e Caroline
pela parceria e pelo companheirismo durante a produccedilatildeo desta pequisa
Agrave Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva
pelas orientaccedilotildees pacientes e significativas para esta jornada acadecircmica
Ao Programa de Estudos Medievais e seus coordenadores
pelo ambiente saudaacutevel de trocas e partilhas
ldquoOs milenaristas tiveram razatildeo de natildeo
desviar seu olhar da cidade terrestre e de natildeo
ver nela apenas um lugar de expiaccedilatildeo do
pecado Queriam realizar na terra um
primeiro esboccedilo da cidade celeste fazer
surgir nela o maacuteximo de felicidade e de
fraternidaderdquo
Jean Delumeau
RESUMO
Esta pesquisa analisou de forma comparativa os elementos milenaristas presentes no
Apocalipse de Joatildeo e no Expositio in Apocalypsim O profeta Joatildeo produziu um texto que
propotildee um milenarismo revolucionaacuterio que rejeita a ordem social romana e convida sua
comunidade a abandonar as estruturas religiosas imperiais especialmente a instituiccedilatildeo do
culto imperial esperando que isso provoque o martiacuterio dos seus membros e instaure os
eventos que culminaratildeo no retorno do Jesus Glorificado agrave terra para derrotar todos os
inimigos dos fieis ressuscitar os martirizados e implementar um reino durante mil anos Este
ldquoreino dos maacutertiresrdquo com Cristo parece ser o resultado de tradiccedilotildees messiacircnicas e
apocaliacutepticas do Judaiacutesmo antigo materializado no final do seacuteculo I no Apocalipse em
funccedilatildeo de traumas da guerra judaico-romana (66-70) de conflitos entre igrejas e sinagogas
e das diferentes respostas de lideres carismaacuteticos agrave questatildeo do relacionamento com a
sociedade romana Joaquim por seu turno esperava que a Terceira Era da histoacuteria da
humanidade culminasse num descanso sabaacutetico sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Apesar
de ser um periacuteodo relativamente curto a Era do Espiacuterito iria trazer sobre a humanidade o fim
dos conflitos que caracterizavam a histoacuteria eclesiaacutestica sob a lideranccedila de um pai espiritual
que governaria a sociedade nos moldes de uma casa monaacutestica Este ldquodescanso dos mongesrdquo
natildeo teve como ponto de partida entretanto diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim
as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que aguardava uma
fase de felicidade na terra anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica do milenarismo
joaquita na parte final do seacuteculo XII pode estar relacionada com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos
como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica
Palavras-chave Milenarismo Apocalipse de Joatildeo Joaquim de Fiore Filosofia da Histoacuteria
ABSTRACT
This research has analyzed in a comparative way the millenarian elements wich are present
in the Revelation of John and in the Expositio in Apocalypsim The prophet John produced
a text that proposes a revolutionary millenarianism which rejects the Roman social order and
invites its community to abandon the imperial religious structures especially the institution
of the imperial cult hoping that this provokes the martyrdom of its members and establishes
the events that will culminate in the return of the Glorified Jesus to the earth to defeat all
enemies of the faithful and to resurrect the martyred and to implement a kingdom for a
thousand years This kingdom of martyrs with Christ seems to be the result of messianic
and apocalyptic traditions of ancient Judaism which were materialized at the end of the first
century in the Apocalypse as a result of traumas of the Jewish-Roman War (66-70) of
conflicts between churches and synagogues and the different responses of charismatic
leaders to the question of the relationship with Roman society Joachim for his part hoped
that the Third Age of human history would culminate in a Sabbath rest under the inspiration
of the Holy Spirit In spite of being a relatively short period the Age of the Spirit would
bring to humanity the end of the conflicts that characterized ecclesiastical history under the
leadership of a spiritual father who would govern society in the mold of a monastic house
This rest of the monks did not have as its starting point however directly the millennium
of the Revelation but rather the historical reflections of Joachim and the tradition of the
refreshing of the saints that awaited a phase of happiness in the land before parousia The
historical emergency of Joachite millenarism in the late 12th century may be related to the
combination of phenomena such as apocalypticism and monastic reform
Abstract Millenarianism Revelation of John Joachim of Fiore Philosophy of History
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA 11
I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO 27
11 O autor do Apocalipse 27
12 A data do Apocalipse 35
13 O propoacutesito do Apocalipse 38
14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse 44
15 Resumo 47
II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA 48
21 Patmos o ponto de partida 48
22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia 50
23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia 52
24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia 54
25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo 59
26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo 61
27 Resumo 63
III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO 65
31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse 65
32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo 67
33 O contexto narrativo do reino milenar 69
34 O episoacutedio do reino milenar 71
35 O reinado messiacircnico interino na terra 76
36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 82
37 Resumo 88
IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 89
41 O autor do Expositio in Apocalypsim 89
42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim 98
43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim 100
44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse 106
45 Resumo 107
V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA SICIacuteLIA 108
51 A chegada dos normandos 110
52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia 111
10
53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen 113
54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada 114
55 A Igreja no Reino da Siciacutelia 118
56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda 121
57 Resumo 124
VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA DE JOAQUIM 126
61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo 126
62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo 130
63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde 134
64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas 137
65 Sensus typicus histoacuteria e profecia 139
66 O dom da exegese 142
67 Resumo 143
VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 144
71 Estrutura literaacuteria do Expositio 144
72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim 146
73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio 154
74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito 159
75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito 165
76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 171
77 Resumo 176
CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO DOS MONGES 178
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 196
ANEXOS 209
Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1 210
Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2 211
Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia 212
Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185) 213
Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum 214
Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios 215
INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA
Possivelmente as igrejas espalhadas pela Aacutesia Menor no final do seacuteculo I se
originaram da atividade religiosa de Paulo de Tarso na regiatildeo a partir do ano 58 da Era
Comum Natildeo havia centralizaccedilatildeo religiosa e cada comunidade se organizava e sobrevivia
do seu proacuteprio jeito Em termos de lideranccedila estas comunidades levantavam seus quadros
internamente privilegiando formatos colegiados Mesmo assim uma antiga atividade
religiosa ainda se manifestava entre as igrejas a profecia Profetas itinerantes viajavam para
pregar suas mensagens em cada comunidade e se moviam em funccedilatildeo da ajuda que recebiam
destes grupos
Um destes profetas ainda dentro do primeiro seacuteculo mas vaacuterias deacutecadas apoacutes o iniacutecio
do movimento de Jesus ficou conhecido por causa de um livro em que registrou o que seriam
visotildees relacionadas com o final dos tempos conhecido como Apocalipse Nesta obra ele se
identificou simplesmente como Joatildeo e escreveu suas ldquorevelaccedilotildees divinamente recebidasrdquo a
respeito de fenocircmenos histoacutericos e realidades sobrenaturais durante uma permanecircncia ou
visita agrave Patmos uma pequena ilha do mar Egeu proacutexima de Mileto e Eacutefeso
O livro de Joatildeo escrito em grego comeccedila com a expressatildeo ldquorevelaccedilatildeo de Jesus
Cristordquo (ldquoApokaluyij vIhsou Cristourdquo) Tal ldquorevelaccedilatildeordquo pode ser dividida em linhas gerais
em trecircs partes cada uma apresentando um conjunto de pequenos episoacutedios interconectados1
Na primeira (Apocalipse 1-3) Joatildeo descreve o aparecimento do ldquoFilho do Homemrdquo que lhe
revela o conteuacutedo de sete cartas que deveriam ser encaminhadas para sete igrejas A segunda
seccedilatildeo da obra (Apocalipse 4-11) registra o que Joatildeo teria visto apoacutes uma viagem espiritual
ao ceacuteu O conteuacutedo desta segunda visatildeo eacute narrado por meio da abertura de um rolo selado
com sete selos Eacute uma histoacuteria modelada pelas tradiccedilotildees judaicas sobre o fim do mundo que
culmina na implantaccedilatildeo de um esperado reino messiacircnico A uacuteltima seccedilatildeo do livro eacute bem
maior (Apocalipse 12-22) consumindo a metade da obra Nela se desdobra a histoacuteria da
guerra entre uma figura demoniacuteaca o Dragatildeo Vermelho e o Cordeiro siacutembolo usado por
Joatildeo para fazer referecircncia a Jesus fundador do movimento morto em Jerusaleacutem no iniacutecio
do seacuteculo No Apocalipse entretanto Jesus estaacute vivo e aparece descrito em categorias
1 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa
Polebridge Press 1998 p 10-16 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro Representaccedilatildeo e
construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 32-38
12
exaltadas como um ser angelical ou mesmo divino Esta narrativa de guerra escatoloacutegica eacute
uma estrateacutegia do autor para descrever a histoacuteria na forma de conflitos violecircncia e morte
tanto dos seguidores de Jesus quanto dos seguidores do Dragatildeo num processo contiacutenuo que
terminaria na intervenccedilatildeo divina para a construccedilatildeo de uma realidade paradisiacuteaca
transcendental que Joatildeo chamou de Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 211-27) Esta realidade
para aleacutem da histoacuteria entretanto seria precedida pela realizaccedilatildeo histoacuterica de um reino na
terra durante um periacuteodo de mil anos (Apocalipse 201-10)
Haacute evidecircncias de leitura e uso religioso do Apocalipse durante os dois primeiros
seacuteculos por parte de diversos liacutederes de igrejas Estes primeiros leitores enfatizavam
especialmente a passagem do Apocalipse que fala do periacuteodo de mil anos de governo de
Jesus Cristo na terra ao lado dos seus seguidores Por causa desta ecircnfase no milecircnio estes
primeiros leitores foram chamados eventualmente de quiliastas (termo derivado da palavra
grega traduzida como ldquomilrdquo)2
Nem todas as igrejas entretanto deram o mesmo tratamento para o Apocalipse No
periacuteodo de Euseacutebio de Cesareia (265-339) algumas rechaccedilavam a obra joanina enquanto
outras o contavam entre ldquoos livros admitidosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XXV 1-4) De
qualquer forma a obra de Joatildeo de Patmos acabou se fixando no cacircnon do Novo Testamento
cristatildeo fenocircmeno que no Ocidente se deu mais cedo do que no Oriente Em 397 o Siacutenodo
de Cartago reconheceu-o como texto sagrado e na igreja grega no fim do seacuteculo quinto ele
jaacute tinha aceitaccedilatildeo geral3 A partir de entatildeo ele seraacute lido como obra sagrada pelas diversas
comunidades cristatildes tornando-se elemento significativo no fornecimento de imagens e
siacutembolos para composiccedilatildeo de diversas representaccedilotildees sociais antigas e medievais
Mais de mil anos depois de Joatildeo nasceu em Celico na Calaacutebria sul da Peniacutensula
Itaacutelica um homem chamado Joaquim Quando jovem foi educado para atuar como notaacuterio
a serviccedilo do Reino Normando da Siciacutelia mas acabou deixando a corte para abraccedilar a vocaccedilatildeo
monaacutestica Ele comeccedilou a vida religiosa como eremita mas depois ingressou em um
pequeno cenoacutebio em Corazzo na Calaacutebria terminando por fundar no final da vida uma
casa monaacutestica em Fiore a fim de receber os vaacuterios disciacutepulos que desejavam segui-lo Este
monge de meados do seacuteculo XII produziu uma longa reflexatildeo sobre a histoacuteria lastreada
sobre a exegese dos textos biacuteblicos sobre o dogma trinitaacuterio e principalmente sobre o livro
2 WAINWRIGHT Arthur W Mysterious Apocalypse interpreting the Book of Revelation Wipf and Stock
Publishers Eugene 2001 p 21 3 Idem p 33-34
13
do visionaacuterio de Patmos Segundo ele o curso inteiro da histoacuteria estaria ldquoescondidordquo no
Apocalipse embora suas reflexotildees sejam primariamente dirigidas para a histoacuteria da igreja
desde o nascimento de Jesus ateacute a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de felicidade na terra Joaquim
escreveu vaacuterias obras em que trabalhou este mesmo tema4
- Expositio de prophetia ignota Romae reperta Foi composta em 1184 apoacutes o
encontro entre Joaquim e o papa Luacutecio III e consiste na interpretaccedilatildeo de um texto encontrado
entre os documentos do falecido cardeal Matias de Angers relacionado com profecias cristatildes
tradicionais a respeito do fim dos tempos
- De septem sigillis Eacute um pequeno opuacutesculo composto por Joaquim para servir de
guia e resumo do seu esquema das perseguiccedilotildees paralelas do Antigo e Novo Testamentos
baseado nos sete selos do Apocalipse de Joatildeo
- Enchiridion super Apocalypsim Eacute um manual sobre o Apocalipse e deveria servir
de introduccedilatildeo agrave obra joanina Foi escrito durante o periacuteodo que Joaquim passou em
Casamari entre os anos 1183 e 1184
- Praephatio super Apocalypsim Eacute a reuniatildeo de dois pequenos sermotildees de Joaquim
sobre o Apocalipse de Joatildeo pregados possivelmente para os monges de Corazzo Foram
reunidos posteriormente e circularam como uma uacutenica obra por causa de afinidades
temaacuteticas Eacute a uacutenica obra de Joaquim traduzida para a liacutengua portuguesa5
- Adversus Iudaeos No formato de tratado este texto descreve uma expectativa de
conversatildeo geral dos judeus no final dos tempos
- De ultimis tribulationibus Pequeno texto em forma de oraccedilatildeo possivelmente
declamado durante um encontro lituacutergico no mosteiro de Fiore
- Expositio in Apocalypsim Joaquim o iniciou em 1183-1184 mas soacute foi concluiacutedo
entre 1198 e 1200 Eacute tambeacutem a maior obra de Joaquim escrita num latim denso e complexo
Eacute possiacutevel dizer entatildeo que o abade de Fiore desde que abraccedilou a vocaccedilatildeo
monaacutestica decidiu fazer o que Bernard McGinn chamou de ldquocomer o Apocalipserdquo ou digeri-
lo lentamente analogia ao texto do Apocalipse em que o visionaacuterio eacute convidado a comer um
4 Quanto agrave data das obras cf TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di
Gioacchino da Fiore In GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p
73-106 Para uma lista dos manuscritos joaquimitas cf REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the
Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 511-519 5 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse Veritas Porto Alegre v 47 n 3 p 453-471 2002
BERNARDI Orlando Comentaacuterio ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla
Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010
14
livro entregue por um anjo 6 Dentre seus vaacuterios textos evidentemente o destaque fica para
o Expositio jaacute que representa o trabalho final do abade sobre a obra joanina
A partir destes dois personagens o que fizemos nesta tese foi analisar de forma
comparativa o Apocalipse de Joatildeo e o Expositio de Joaquim Em funccedilatildeo mesmo da extensatildeo
das obras e das dificuldades provocadas pelas distacircncias geograacuteficas e temporais entre elas
focaremos na categoria descrita como ldquomilenarismordquo7 e os recortes textuais de Apocalipse
201-10 bem como sua apropriaccedilatildeo na seacutetima parte do Expositio in Apocalypsim (209v-
213r) Em termos especiacuteficos indagaremos sobre a forma como Joaquim interpretou o
milecircnio do Apocalipse e a concepccedilatildeo milenarista que aparece no final
Eacute preciso destacar que cada um de nossos objetos de pesquisa tem sua proacutepria
historiografia Sobre Joatildeo de Patmos e seu Apocalipse por exemplo eacute preciso mencionar
primeiramente o grande volume de obras que se propotildee a fazer uma interpretaccedilatildeo semi-
literal esperando que as visotildees de Joatildeo se convertam em cenas histoacutericas de futuro proacuteximo
tomando o livro joanino como um depoacutesito de profecias predominantemente de
cumprimento iminente Esta tradiccedilatildeo interpretativa nas suas principais configuraccedilotildees
contemporacircneas parecem retroceder a John Nelson Darby (1800-1882) e agraves notas da Biacuteblia
de Estudo Scofield cuja primeira ediccedilatildeo saiu em 19098 Nesta linha eacute possiacutevel mencionar
obras de enorme circularidade como The Late Great Planet Earth (1970) de Hal Lindsey
que vendeu mais de 20 milhotildees de exemplares na sua primeira deacutecada de publicaccedilatildeo9 ou a
seacuterie de dez novelas de Tim LaHaye e Jerry Jenkins intitulada Left Behind escritas de 1995
ateacute 2002 que ultrapassou a quantia de 63 milhotildees de coacutepias vendidas em 37 paiacuteses e 33
liacutenguas diferentes10 Esta tradiccedilatildeo pode ser caracterizada por algumas ecircnfases gerais como
a ideia de um arrebatamento secreto dos crentes fieacuteis a Jesus a conversatildeo final dos judeus
ao Cristianismo e um periacuteodo milenar de felicidade na terra O Apocalipse eacute tratado como
6 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale Gecircnova
Casa Editrice Marietti 1990 p 159 A passagem em questatildeo se encontra em Apocalipse 10 7 Adotamos aqui a concepccedilatildeo de ldquomilenarismordquo do historiador inglecircs Norman Cohn entendendo-a como um
tipo particular de utopia salvacionista que apresenta os seguintes traccedilos gerais coletiva jaacute que todos os fieacuteis
experimentariam a felicidade terrena em funccedilatildeo do fato de que essa felicidade seria alcanccedilada neste mundo e
natildeo numa realidade transcendente total pois aguarda uma completa inversatildeo de todos os males da terra
iminente jaacute que essa transformaccedilatildeo completa estaria perto de comeccedilar e miraculosa agrave luz da certeza de que
essa mudanccedila contaria com a ajuda de seres sobrenaturais Cf COHN Norman Na senda do milecircnio
milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 8 Sobre o papel significativo de John Nelson Darby e a Biacuteblia de Estudo Scofield na interpretaccedilatildeo
contemporacircnea do Apocalipse cf KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford
Blackwell Publishing 2004 p 24-25 WAINWRINGHT op cit p 82-83 9 WAINWRINGHT op cit p 84 10 MONAHAN Torin Marketing the beast Left Behind and the apocalypse industry Media Culture amp
Society Thousand Oaks n 30 p 813-830 2008 p 817
15
parte de um grande quebra-cabeccedila que revelaria por meio de coacutedigos e imagens eventos
dos dias contemporacircneos como o papel dos Estados Unidos no aparecimento do Anticristo
ou o surgimento de um liacuteder poliacutetico de origem socialista como o falso profeta de Apocalipse
13
Do outro lado normalmente vinculados a instituiccedilotildees universitaacuterias estatildeo
pesquisadores cujo foco reside em aspectos histoacutericos do Apocalipse Estudiosos desta linha
histoacuterica se preocupam com a relaccedilatildeo entre Joatildeo e o tempo de produccedilatildeo do Apocalipse
Sendo assim eles procuram perceber ateacute onde o autor na sua narrativa apocaliacuteptica reflete
os medos e esperanccedilas dos grupos que representa ou antagoniza Esses autores tendem a
procurar similaridades entre as visotildees de Joatildeo e eventos contemporacircneos do primeiro seacuteculo
Eles estudam as razotildees que teriam levado o autor ateacute a ilha de Patmos ateacute que ponto o
Impeacuterio Romano promoveu algum tipo de desconforto para as igrejas e as implicaccedilotildees do
governo de Domiciano sobre o movimento de Jesus no final do primeiro seacuteculo Essas
ecircnfases histoacutericas podem ser encontradas por exemplo em R H Charles11 G B Caird12
A Y Collins13 C Rowland14 Leonard Thompson15 C Bauckham16 E S Fiorenza17 e
David Aune18 Estudos como os de C J Hemer19 ainda podem ser uacuteteis para esclarecer
aspectos especiacuteficos das igrejas da Aacutesia menor
Uma significativa tendecircncia de pesquisa eacute a que busca trabalhar o livro de Joatildeo agrave luz
de questotildees como retoacuterica20 e gecircnero21 Esta linha transita do meacutetodo histoacuterico e literaacuterio
para um paradigma de interpretaccedilatildeo retoacuterica Dentro dessa tendecircncia estuda-se a obra de
11 CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New York Charles
Scribner amp Sons 1920 12 CAIRD G B A Commentary on the Revelation of St John the Divine New York Harper amp Row Publishers
1966 13 COLLINS Adela Yarbro The Apocalypse Wilmington Michael Grazier Inc 1982 14 ROWLAND Christopher The Open Heaven A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity
London SPCK 1982 15 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University
Press 1990 16 BAUCKHAM Richard The cliacutemax of Prophecy London T amp T Clark 1993 17 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation Vision of a Just World Minneapolis Augsburg Fortress 1991 18 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 AUNE David E Revelation
6-16 Nashville Thomas Nelson Publishers 1998 AUNE David E Revelation 17-22 Nashville Thomas
Nelson Publishers 1998 19 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield
Academic Press Ltd 1986 20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In
BARR David L (ed) The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta
Society of Biblical Literature 2006 p 243-269 21 PIPPIN Tina The heroine and the whore fantasy and the female in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 60 p 67-90 1992
16
Joatildeo em busca da funccedilatildeo almejada para cada seccedilatildeo ou narrativa do livro percebendo-as
como discursos que buscavam retoricamente convencer uma audiecircncia determinada acerca
das posturas idealizadas por Joatildeo vistas de uma maneira geral como asceacuteticas e sectaacuterias
O Apocalipse assim refletiria a tendecircncia de um profeta judeu que cria em Jesus como o
Messias e se percebia em crise com a sociedade22
A sociologia e a antropologia forneceram aos estudiosos importantes instrumentos
de anaacutelise que nas uacuteltimas deacutecadas comeccedilaram igualmente a resultar em influentes
publicaccedilotildees Festinger23 Norman Cohn24 e John Gager25 trabalharam o apocalipse
vinculando-o aos estudos de milenarismo e a movimentos religiosos sectaacuterios A obra de
Joatildeo poderia ser vista entatildeo como o resultado de uma comunidade oprimida em confronto
com uma dissonacircncia cognitiva difiacutecil de ser conciliada com a realidade O resultado eacute a
construccedilatildeo de um mundo simboacutelico alternativo e a projeccedilatildeo de temores e ressentimentos
para o futuro por meio das imagens apocaliacutepticas
No contexto latino-americano eacute possiacutevel apontar a contribuiccedilatildeo de autores que
aplicam ao Apocalipse uma hermenecircutica da libertaccedilatildeo O livro eacute utilizado para interpretar
realidades poliacuteticas e sociais de opressatildeo contra pobres e marginalizados Dentro desta
perspectiva a obra joanina deveria servir de instrumento para promoccedilatildeo de esperanccedila de
uma vida melhor bem como para estimular resistecircncia a situaccedilotildees de violecircncia e injusticcedila
Leituras deste tipo podem ser encontradas por exemplo em Mester e Orofino26 e Pablo
Richard27
Surgiu em Satildeo Paulo na virada do seacuteculo um grupo de estudiosos vinculados agrave
UMESP voltados para trabalhar o Apocalipse literaturas a ele relacionadas e o cristianismo
dos primoacuterdios por uma oacutetica multi-disciplinar onde os temas satildeo analisados com o apoio
de diversos olhares derivados das ciecircncias da religiatildeo Antropologia da religiatildeo sociologia
da religiatildeo fenomenologia da religiatildeo psicologia da religiatildeo histoacuteria das religiotildees religiotildees
22 Entre outros conferir SILVA David A de The Revelation to John a case study in apocalyptic propaganda
and the maintenance of sectarian identity Sociological Analysis Oxford v 53 n 4 p 375-395 1992 SILVA
David A de The social setting of the Revelation to John Conflicts within fears without Westminster
Theological Journal Philadelfia v 54 p 273-302 1992 23 FESTINGER Leon (ed) When prophecy fails a social and psychological study of a modern group that
predicted the destruction of the world London Pinter amp Martin Ltda 2008 24 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 25 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 26 MESTERS Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo A teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis
Vozes 2003 27 RICHARD Pablo Apocalipse reconstruccedilatildeo da esperanccedila Petroacutepolis Vozes 1996
17
comparadas e estudos literaacuterios Nesta linha trabalham autores como Paulo Nogueira28 e Joseacute
Adriano Filho29 entre outros
Jaacute a historiografia de Joaquim de Fiore parece ter sofrido um incremento a partir das
pesquisas de Herbert Grundmann no iniacutecio do seacuteculo XX30 Grundmann focava na produccedilatildeo
de uma biografia de Joaquim daiacute seu interesse nas hagiografias e narrativas antigas sobre o
abade Em 1960 ele editou duas destas antigas narrativas uma anocircnima e outra atribuiacuteda a
Rainers de Ponza que se tornaram entatildeo fontes fundamentais dos estudiosos
contemporacircneos sobre o abade de Fiore
No mesmo periacuteodo em que Grundmann pesquisava na Alemanha Ernesto Buonaiuti
especialmente a partir de 1930 trabalhava na Itaacutelia na ediccedilatildeo das obras de Joaquim de
pequeno porte O pesquisador italiano chegou a produzir uma anaacutelise abrangente do
pensamento joaquimita31 poreacutem concentrou-se em disponibilizar para os pesquisadores
ediccedilotildees criacuteticas das obras Ele tambeacutem traduziu algumas dessas obras para a liacutengua italiana
Outros estudiosos se envolveram no mesmo ofiacutecio de Buonaiuti fazendo com que as
seguintes obras jaacute apresentassem ediccedilotildees criacuteticas Tractatus super Quatuor Evangelia
(1930) De articulis fidei e Sermotildees (1936) Epistola universis Christi fidelibus e Epistola
domini Valdonensi (1937) Dialogi de prescientia Dei et predestinatione electorum (1938)
Enchiridion in Apocalypsim (1938) Hymnus de paacutetria coelesti (1899) Visio admiranda de
gloria paradisi (18991938) De vita sancti Benedicti et de officio divino secundum ejus
doctrinam (1951) Liber Figurarum (1953) Super flumina Babylonis (1953) De septem
sigillis (1954) Adversus Iudeos (1957) Carta Testamentaacuteria (1960)
Das grandes obras de Joaquim entretanto apenas uma recebeu ediccedilatildeo parcial E
Randolph Daniel editou Liber Condordiae Novi ac Veteris Testamenti32 As outras duas
Expositio in Apocalypsim e Psalterium decem chordarum somente estatildeo acessiacuteveis pelas
ediccedilotildees da Junta de Veneza (seacuteculo XVI) reimpressas em 19641965 pela Editora Minerva
de Frankfurt
28 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza (org) Religiatildeo de visionaacuterios apocaliacuteptica e misticismo no
cristianismo primitivo Satildeo Paulo Loyola 2005 29 ADRIANO FILHO Joseacute O Apocalipse de Joatildeo como relato de uma experiecircncia visionaacuteria Anotaccedilotildees em
torno da estrutura do livro Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana Satildeo Paulo n 34 p 7-29 1999 30 GRUNDMANN Herbert Studien uumlber Joachim von Floris GMBH Springer Fachmedien Wiesbaden
1927 Para a historiografia anterior a Grundmann cf LA PINA George Joachim of Flora a critical survey
Speculum Cambridge v 7 n 2 p 257-282 1932 31 BUONAIUTI Ernesto Gioacchino da Fiore I tempi La vita Il messaggio Roma Consenza 1931 32 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Noui ac Veteris Testamenti
Independence Square American Philosophical Society 1983
18
O trabalho editorial das obras de Joaquim tem sido pontual e esporaacutedico Ainda haacute
muito espaccedilo para reflexotildees nesta aacuterea mesmo do material jaacute editado no iniacutecio do seacuteculo
XX em funccedilatildeo do avanccedilo no trabalho de restauraccedilatildeo de manuscritos antigos Vaacuterias obras
de Joaquim ainda precisam ser traduzidas para liacutenguas modernas o que facilitaria a pesquisa
e a compreensatildeo de seus textos Neste sentido eacute uacutetil apontar o trabalho de um dos membros
do conselho editorial do Centro Internazionale di Studi Gioachamiti Gian Luca Potestagrave Este
conselho desde que foi formado em 199533 tem como propoacutesito reeditar as obras de
Joaquim do iniacutecio do seacuteculo e promover a ediccedilatildeo de obras ainda natildeo editadas Potestagrave precisa
ser mencionado por ser um dos principais bioacutegrafos atuais de Joaquim especialmente depois
de sua obra Il tempo dellacuteApocalisse34
O professor alematildeo Kurt-Victor Selge outro membro do conselho editorial acima
mencionado argumentou que pelo menos trecircs fatores atrasaram a produccedilatildeo de ediccedilotildees
criacuteticas de Joaquim Primeiramente faltou apoio de alguma instituiccedilatildeo religiosa como
aquele que o luteranismo alematildeo deu para as Ediccedilotildees de Weimar das obras de Lutero ou o
papado para a Editio Leonina de Tomaacutes de Aquino a Ordem Florense fundada pelo abade
que poderia ser este apoio se enfraqueceu apoacutes sua morte ateacute desaparecer no seacuteculo XVI
por fim Joaquim se converteu num marginalizado da histoacuteria do pensamento cristatildeo Mesmo
sendo saudado por revolucionaacuterios e iluministas tal aceitaccedilatildeo natildeo se traduziu na fundaccedilatildeo
de alguma instituiccedilatildeo Nesse sentido o renovado interesse em Joaquim a partir do iniacutecio do
seacuteculo XX poderia ser explicado pelo aparecimento de uma ala modernista dentro da Igreja
Catoacutelica que buscava uma figura que legitimasse seu interesse por uma igreja mais livre e
pela busca de historiadores e filoacutesofos que se perguntavam por formas adequadas de vida
comunitaacuteria que poderiam mitigar a crise que a sociedade europeia carregava desde o seacuteculo
XIX As ideias de Joaquim chamaram a atenccedilatildeo desses estudiosos em nuacutemero cada vez
maior especialmente na Itaacutelia e Alemanha e depois tambeacutem na Espanha Inglaterra e
Estados Unidos35
Um outro tipo de pesquisa se debate natildeo com o proacuteprio Joaquim mas com o
desdobrar do seu pensamento dando origem ao que se convencionou chamar de
joaquimismo Pesquisadores desta linha se concentram em encontrar a influecircncia de Joaquim
33 HONEacuteE Eugegravene Joachim of Fiore The development of his life and the genesis of his works and doctrines
About the merits of Gian Luca Potestagraveacutes new biography Church History and Religious Culture Leida v 87
n 1 p 47-74 2007 p 49 34 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 35 Conferir esta anaacutelise em SELGE Kurt-Victor La edicioacuten criacutetica de las Opera omnia de Joaquiacuten de Fiore
Anuario de Historia de la Iglesia Navarra n 11 p 89-94 2002
19
em pensadores e escritores posteriores Em especial alguns estatildeo envolvidos em demonstrar
quais ideias de Joaquim deram iacutempetos a outras figuras e movimentos importantes Neste
acircmbito se situam autores como Marjorie Reeves36 Bernard McGinn37 e Henri de Lubac38
Estes livros se tornaram ponto de partida recente para os estudos sobre a influecircncia de
Joaquim e o desenvolvimento do joaquimismo
Nesta tendecircncia ainda se situam estudos que procuram sua contribuiccedilatildeo para a
teologia e a filosofia da histoacuteria em especial No primeiro caso apontamos Juumlrgen
Moltmann e o seu livro The Trinity and the Kingdom (1981) No segundo indicamos
pesquisadores brasileiros como Vicente Dobroruka e a busca pela relaccedilatildeo de Joaquim com
o pensamento de Ephraim Lessing (1995)39 e Noeli Dutra Rossatto sobre a relaccedilatildeo entre
Trindade e histoacuteria (2004)40 Eacute do historiador brasileiro Dobroruka a avaliaccedilatildeo de que o
sistema profeacutetico de Joaquim eacute considerado um dos pilares da moderna reflexatildeo acerca do
sentido da histoacuteria41
A partir das pontes levantadas pela historiografia aproximamo-nos das questotildees por
meio de um conjunto de conceitos oriundos da abordagem da histoacuteria cultural especialmente
promovidos pelo historiador francecircs Roger Chartier praacutetica representaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo42
Uma de suas aacutereas de pesquisa busca compreender as formas como a produccedilatildeo e recepccedilatildeo
de objetos culturais atuam na configuraccedilatildeo do mundo social Essa abordagem se mostra
revelante para nossa pesquisa justamente por promover uma histoacuteria do livro da leitura ou
das interpretaccedilotildees sociais o que nos ajuda a entender a operaccedilatildeo realizada por Joaquim de
Fiore e Joatildeo de Patmos em seus respectivos contextos Ambos satildeo produtores e receptores
de textos e tradiccedilotildees e consequemente por meio de suas praacuteticas e apropriaccedilotildees atuaram
na construccedilatildeo de novas representaccedilotildees sociais
36 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976
REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit 37 MCGINN Bernard The calabrian abbot Joachim of Fiore in the history of Western Thought New York
Macmillan Pub Co 1985 38 De LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore Madri Ediciones Encuentro 2011 39 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore Revista
Muacuteltipla Brasiacutelia v 5 n 8 p 9-28 2000 Cf tambeacutem sua obra DOBRORUKA Vicente Histoacuteria e
milenarismo ensaios sobre tempo histoacuteria e o milecircnio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 40 ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 41 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore op cit p 9 42 A noccedilatildeo de ldquopraacuteticardquo eacute intercambiaacutevel com produccedilatildeo cultural ldquoapropriaccedilatildeordquo tem relaccedilatildeo com recepccedilatildeo
cultural ldquorepresentaccedilatildeordquo entretanto carrega certa ambiguidade Em alguns momentos Chartier a usa para
falar de estruturas em outro do conteuacutedo das estruturas Cf CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre
praacuteticas e representaccedilotildees Algeacutes Difusatildeo Editorial 2002 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo
Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191 1991
20
Eacute possiacutevel entender as representaccedilotildees como classificaccedilotildees divisotildees e delimitaccedilotildees
que organizam a apreensatildeo do mundo social Elas satildeo categorias intelectuais elementos
mentais estruturantes da realidade exterior subjetivaccedilotildees de realidades materiais
organizadas segundo determinados padrotildees O ser humano jaacute nasce mergulhado num mundo
construiacutedo Ele natildeo participou de sua construccedilatildeo mas em algum momento precisou introjetaacute-
lo e estruturaacute-lo subjetivamente para que ele se tornasse o seu proacuteprio mundo43 Estas
representaccedilotildees individuais ou coletivas geram praacuteticas culturais como a produccedilatildeo de um
livro a verbalizaccedilatildeo dos discursos a idealizaccedilatildeo de comportamentos e valores especiacuteficos
em detrimento da estigmatizaccedilatildeo de outros
A noccedilatildeo dupla de representaccedilotildees e praacuteticas se constitui como poacutelo de um processo
amplo jaacute que natildeo apenas as representaccedilotildees geram praacuteticas mas tambeacutem as praacuteticas geram
representaccedilotildees O tal mundo social como representaccedilatildeo eacute formado por um processo
contiacutenuo de moldes e formas manifestados em discursos que tanto o apreendem quanto o
estruturam44 Numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre as praacuteticas e representaccedilotildees Chartier aponta
a apropriaccedilatildeo entendida como o processo pelo qual um sentido eacute historicamente
produzido45 Apropriaccedilatildeo tem a ver com construccedilatildeo de sentido interpretaccedilatildeo categoria uacutetil
para problematizar a dinacircmica entre sujeito produtor de cultura e sujeito consumidor de
cultura Um livro como objeto da cultura eacute o resultado da produccedilatildeo de sentido de um autor
mas tambeacutem gerador de sentidos nas matildeos de um leitor que se apropria da obra e cria novos
significados Uma anaacutelise das apropriaccedilotildees teria relaccedilatildeo com as condiccedilotildees e os processos de
produccedilatildeo de sentido Cabe descobrir como isso se daacute e verificar as novas formas
constitutivas de mundo46 a partir da leitura ou audiccedilatildeo jaacute que textos podem ser lidos ou
ouvidos em espaccedilos privados ou puacuteblicos Segundo Chartier a apropriaccedilatildeo natildeo se daacute de
forma passiva jaacute que quem recebe um texto pode promover uma apropriaccedilatildeo seletiva ou
mesmo criativa transformando e ateacute negando o sentido do texto lido47 Joaquim por
exemplo construiu um comentaacuterio biacuteblico gecircnero literaacuterio voltado primariamente para
buscar e criar sentidos atraveacutes da apropriaccedilatildeo do texto do Apocalipse de Joatildeo
43 BERGER Peter LUCKMANN Thomas A construccedilatildeo social da realidade tratado de sociologia do
conhecimento Petroacutepolis Vozes 1973 p 87 44 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 23 45 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 179 46 Para os socioacutelogos Berger e Luckmann ldquomundordquo eacute aquilo que as pessoas reconhecem ou entendem existir
independente de sua vontade ou independente delas Cf BERGER Peter LUCKMANN Thomas op cit p
10 47 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 10
21
Daiacute a necessidade de buscar as praacuteticas que organizam os modos de relacionamento
com os textos diferenciadas histoacuterica e socialmente48 Cada comunidade grupo ou
sociedade tem sua proacutepria maneira de ler e interpretar Haacute processos historicamente
condicionados de padronizaccedilatildeo de escrita (gecircnero literaacuterio) da mesma forma como de
leitura que criam limites para o que eacute possiacutevel escrever mas tambeacutem para o que eacute possiacutevel
ver no que estaacute escrito Satildeo as determinaccedilotildees enquadramentos e condicionamentos que
viabilizam tanto a produccedilatildeo quando a apropriaccedilatildeo de uma obra
A apropriaccedilatildeo eacute para o historiador francecircs uma relaccedilatildeo sempre dinacircmica e
dependente de uma seacuterie de fatores Neste sentido as determinaccedilotildees podem se materializar
em situaccedilotildees como a forma em que o manuscrito foi acessado o tipo de material os
procedimentos de leitura a competecircncia dos inteacuterpretes os viacutenculos sociais dos leitores ou
o espaccedilo da audiccedilatildeo49 Os atos de ler e interpretar estatildeo situados no limite entre leitores
determinados por suas posiccedilotildees e textos cujos significados dependem da forma como se
apresentam os discursos e as maneiras como eles satildeo acessados
A leitura neste caso pode gerar tanto representaccedilotildees quanto praacuteticas que natildeo se
identificam completamente com as do texto lido ou com o que o autor tentou imprimir em
sua obra50 Leitores inventam nos textos algo diferente daquilo que seria alguma intenccedilatildeo
autoral A leitura fragmenta o texto junta partes distantes preenche brechas e cria sentidos
Essa dinacircmica entre autor e leitor viabiliza o que Chartier chama de histoacuteria social
das interpretaccedilotildees ou anaacutelise das determinaccedilotildees fundamentais (sociais institucionais
culturais) dos textos e das leituras51 Daacute origem tambeacutem a uma histoacuteria da exegese ou da
hermenecircutica dos textos
O relacionamento das praacuteticas representaccedilotildees e apropriaccedilotildees se articulam com o
mundo social principalmente por trecircs aspectos
- o mundo eacute construiacutedo de forma contraditoacuteria pelos diferentes grupos que compotildeem
uma sociedade a partir de classificaccedilotildees e recortes que produzem as representaccedilotildees
- as praacuteticas promovem uma determinada identidade social uma definida maneira de
ser no mundo a indicaccedilatildeo simboacutelica de uma posiccedilatildeo ou um estatuto
- a proacutepria existecircncia do grupo ou da comunidade eacute marcada e confirmada pelas
formas institucionalizadas e objetivadas que se derivam das praacuteticas Eacute neste sentido que
48 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 181 49 Idem 50 Idem p 59 51 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 26 e 131
22
indiviacuteduos representam instituiccedilotildees e textos se tornam representativos de determinadas
posiccedilotildees sociais
Aqui Chartier alerta para um tipo de luta que natildeo eacute entre classes sociais mas entre
representaccedilotildees diferentes ou formas rivais defendidas por cada grupo para ordenar e
hierarquizar o mundo social52
Chartier nos ajudou a entender Joatildeo e Joaquim como mergulhados em diferentes lutas
de representaccedilotildees53 Nos seus textos eles manifestam conflitos sociais viacutenculos
institucionais e praacuteticas culturais Ambos em suas respectivas conjunturas histoacutericas satildeo
simultaneamente autor e leitor Eles se apropriam de fontes anteriores ou contemporacircneas
imprimindo nelas suas proacuteprias estrateacutegias de consumo de texto produzindo novos sentidos
que se materializaram em suas subsequumlentes obras Em vaacuterios momentos desta pesquisa nos
detemos em questotildees sobre as fontes que cada um leu como elas foram lidas e os sentidos
entatildeo construiacutedos Especialmente no caso do abade ele eacute um leitor expliacutecito do Apocalipse
de Joatildeo e seu comentaacuterio o resultado formal desta leitura
Nosso corpus documental assim leva em conta estes dois objetos de pesquisa com
histoacuterias textuais bem diferentes Enquanto o Apocalipse por fazer parte do cacircnon cristatildeo
tem o suporte das chamadas Sociedades Biacuteblicas54 o Expositio nem mesmo tem uma ediccedilatildeo
criacutetica
Em termos concretos existem cinco tipos de testemunhas55 do texto do Apocalipse
- seis papiros todos fragmentaacuterios
- onze manuscritos unciais trecircs deles com o texto completo
- 293 manuscritos minuacutesculos
- citaccedilotildees patriacutesticas
52 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 182 53 Em algum momento eacute possiacutevel que mesmo universos conflitantes sobrevivam simultaneamente Eacute o caso de
um grupo que constroacutei uma subsociedade dentro da sociedade maior formando uma espeacutecie de refuacutegio e base
para a manutenccedilatildeo do seu mundo dissidente Para isso ele precisa criar procedimentos para proteger a
existecircncia precaacuteria dessa subsociedade das ameaccedilas que vecircm de fora Um dos mais importantes procedimentos
seraacute a limitaccedilatildeo dos relacionamentos significativos para exclusiva ou predominantemente dentro do grupo
Os membros do grupo devem evitar se relacionar significativamente com pessoas de fora que possuem visotildees
divergentes de mundo surgindo entatildeo um comportamento sectaacuterio Cf NEWSOM Carol A The Self as
Symbolic Space Constructing Identity and Community at Qumran Atlanta Society of Biblical Literature
2007 p 12 54 Sobre a produccedilatildeo do texto criacutetico do Apocalipse cf DELOBEL J Le texte de lApocalypse Problegravemes de
meacutethode In Lambrecht (ed) LrsquoApocalypse Johannique et lrsquoApocalyptique dans le Nouveau Testament
Louvain University Press 1980 p 151-166 AUNE David E Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-clix 55 O termo ldquotestemunhardquo eacute usado em ediccedilotildees criacuteticas e obras de criacutetica textual do Novo Testamento para fazer
referecircncia a fontes que conteacutem de forma completa ou fragmentaacuteria o texto biacuteblico como por exemplo um
manuscrito uma traduccedilatildeo antiga uma citaccedilatildeo antiga ou uma transcriccedilatildeo em artefatos arqueoloacutegicos
23
- traduccedilotildees antigas
Estas testemunhas formam a base sobre a qual trabalham os estudiosos que preparam
ediccedilotildees criacuteticas do Apocalipse Dentre essas as trecircs primeiras (papiros unciais e
minuacutesculos) destacam-se na reconstruccedilatildeo do que teria sido o autoacutegrafo56 do Apocalipse pela
relaccedilatildeo direta com o grego idioma de origem da obra joanina
Os seis papiros (P18 P24 P43 P47 P85 e P98) contecircm apenas fragmentos de texto O
mais antigo destes o P98 datado para um periacuteodo tatildeo recuado quanto o seacuteculo II e
consequentemente a mais antiga testemunha textual do Apocalipse preserva apenas
Apocalipse 113-20 Os demais papiros foram produzidos entre os seacuteculos III e V57
Dentre os 11 manuscritos unciais relacionados com o Apocalipse (a A C P 046
051 052 0163 0169 0207 0229) apenas trecircs deles possuem o Apocalipse na sua forma
completa (a A e 046) Os demais preservaram apenas fragmentos como o MS 0169 que
conteacutem apenas Apocalipse 319-43Trecircs deles satildeo datados para o seacuteculo IV (a 0169 e 0207)
trecircs para o seacuteculo V (A C e 0163) um para os seacuteculos VII-VIII (0229) um para o seacuteculo IX
(P) e trecircs para o seacuteculo X (046 051 e 052) Isso significa que a coacutepia completa mais antiga
do texto grego do Apocalipse estaacute no MS a do seacuteculo IV localizado no London British
Museum58
293 manuscritos minuacutesculos satildeo conhecidos por conter pelo menos alguma parte do
Apocalipse Um eacute coacutepia do seacuteculo IX oito do seacuteculo X 35 do seacuteculo XI 30 do seacuteculo XII
58 do seacuteculo XIV 57 do seacuteculo XV 40 do seacuteculo XVI 13 do seacuteculo XVII cinco do seacuteculo
XVIII e dois do seacuteculo XIX Os outros 44 manuscritos minuacutesculos apresentam dificuldades
para a dataccedilatildeo com sugestotildees que variam do seacuteculo IX ateacute o XV59
O conjunto das jaacute mencionadas testemunhas textuais com a inclusatildeo das citaccedilotildees
patriacutesticas e as traduccedilotildees antigas pode ser estruturado em quatro tradiccedilotildees textuais
56 Termo utilizado para fazer referecircncia a um hipoteacutetico texto original Como os originais se perderam a funccedilatildeo
dos estudiosos eacute reconstruiacute-los por meio de comparaccedilatildeo e colagem de diversos tipos de testemunhas seguindo
criteacuterios como antiguidade estilo origem do manuscrito famiacutelia de manuscritos entre outros Conferir uma
descriccedilatildeo destes procedimentos em ALAND Kurt ALAND Barbara The text of the New Testament an
introduction to the critical editions and to the theory and practice of modern textual criticism Grand Rapids
William B Eerdmans Publishing Company 1989 p 280-316 ELLIOTT J K New Testament textual
criticism the application of thoroughgoing principles Leiden Brill 2010 p 13-52 VAGANAY Leon An
introduction to the New Testament textual criticism Cambridge Cambridge University Press 1982 p 52-88 57 AUNE David Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-cxxxviii 58 Idem p cxxxviii 59 Conferir a lista completa dos 293 manuscritos com dataccedilatildeo e descriccedilatildeo do conteuacutedo em AUNE David E
Revelation 1-5 op cit p cxxxix-cxlviii
24
- A primeira eacute denominada de ldquotexto neutrordquo por Aune que a considera a ldquoa melhor
testemunha do texto grego do Apocalipserdquo60 Ela consiste dos unciais A e C bem como do
minuacutesculo 2053
- A segunda consiste no P47 o mais antigo manuscrito do Apocalipse datado para o
segundo seacuteculo junto com o uncial a e as citaccedilotildees de Oriacutegenes
- A terceira parte do texto encontrado no comentaacuterio do Apocalipse de Andreas de
Cesareia na Capadoacutecia que escreveu entre 563-614 Tambeacutem se inscrevem nesta tradiccedilatildeo
textual as duas coacutepias da versatildeo geoacutergica do Apocalipse datadas para o seacuteculo X
- A quarta eacute a mais numerosa e recebe o tiacutetulo de ldquotexto bizantinordquo definida em linhas
gerais como de pouca confianccedila para a restauraccedilatildeo do autoacutegrafo61
A maioria dos manuscritos gregos do Apocalipse62 bem como as demais
testemunhas em linhas gerais guardam relaccedilatildeo predominantemente com o texto bizantino
Isso significa que os textos criacuteticos tendem a partir do texto neutro confrontando-o com a
segunda e terceira tradiccedilatildeo63 e em alguns poucos casos com o texto bizantino
A perspectiva desta histoacuteria textual do Apocalipse eacute uacutetil para o caso de confronto
entre as variantes textuais de alguma passagem especiacutefica do texto de Joatildeo mas o trabalho
eacute enormemente facilitado pelas ferramentas jaacute disponiacuteveis nas duas ediccedilotildees criacuteticas
publicadas
- ALAND Kurt (ed) The Greek New Testament Stuttgart Deutsche
Bibelgesellschaft 1994
- NESTLE Eberhard NESTLE Erwin ALAND Kurt (org) Novum Testamentum
Graece 27 ed Stuttgart Gesamtherstellung Biblia-Druck 1993
Ambas as ediccedilotildees utilizam o mesmo texto criacutetico mas variam na forma como
apresentam e organizam as variantes textuais Destacamos ainda que o papel da ediccedilatildeo
criacutetica do Apocalipse eacute de indicar o autoacutegrafo provaacutevel produzido por Joatildeo natildeo
necessariamente o texto lido por Joaquim nas bibliotecas monaacutesticas por onde passou
(Sambucina Corazzo Casamari e Fiore) Esta uacuteltima por sinal foi destruiacuteda num incecircndio
apoacutes a morte do seu fundador
60 Idem p clvi 61 Idem p clvii 62 Uma lista ampla destes manuscritos com anaacutelise individualizada pode ser encontrada em HOSKIER H
C Concerning the text of the Apocalypse London Bernard Quaritch Ltd 1929 2 v Outra anaacutelise estaacute
disponiacutevel em CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New
York Charles Scribner amp Sons 1920 2 v V 2 p 227-385 63 ELLIOTT op cit p 150
25
Natildeo se sabe quantas coacutepias dos manuscritos de Joaquim foram queimados neste
incecircndio De qualquer forma como jaacute argumentamos foram outros os motivos que
limitaram a difusatildeo dos manuscritos do abade Muito diferente do nuacutemero de testemunhas
de Apocalipse o Expositio in Apocalypsim sobreviveu em apenas seis manuscritos64
- MS 249 em Troyes na Biblioteca Municipal nos foacutelios 38-107 do seacuteculo XIII
- MS H 15 em Milatildeo na Biblioteca Ambrosiana nos foacutelios 65-160 do seacuteculo XIII
ou XIV
- MS Chig A VIII 231 em Roma na Biblioteca do Vaticano nos foacutelios 1-104 do
seacuteculo XIV
- MS 1411 em Roma na Biblioteca Casanatense foacutelios 1-91 do seacuteculo XIV
- MS Cent II 51 em Nuremberg na Stadtbibliothek nos foacutelios 127-373 do seacuteculo
XV
- MS Harley 3049 em Londres no Museu Britacircnico nos foacutelios 137-220 do seacuteculo
XV
- MS A 450 em Rouen na Biblioteca Municipal nos foacutelios 1-31 do seacuteculoXVI
No seacuteculo XVI entretanto a Junta de Veneza editou na forma de incunaacutebolo as trecircs
obras principais de Joaquim Concordia no ano 1519 Expositio e Psalterium em 1527 Estas
foram reimpressas no seacuteculo XX pela Editora Minerva Eacute esta ediccedilatildeo do Expositio in
Apocalypsim65 que usamos em nossa anaacutelise Ela estaacute composta por foacutelios escritos na frente
e no verso Apenas as partes frontais dos foacutelios satildeo numeradas de 1 a 224 Cada foacutelio ainda
tem duas colunas Sendo assim o Expositio eacute referenciado indicando-se o nuacutemero do foacutelio
e se eacute frente ou verso (ldquorrdquo quando for a parte frontal ldquovrdquo para o verso do foacutelio) Neste sentido
ele comeccedila em 26v ou seja no verso do foacutelio 26 e termina em 224r ou seja na parte frontal
do foacutelio 224
Nosso trabalho estaacute estruturado em sete capiacutetulos Usaremos o primeiro capiacutetulo para
analisar a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso implica discutir as condiccedilotildees
histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento de Jesus ateacute a ilha de Patmos
para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na proviacutencia da Aacutesia
Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destinataacuterios data e propoacutesito do Apocalipse bem
64 REEVES Marjorie The influence of prophecy in the later Midlle Ageshellip p 513 65 JOAQUIM VON FIORE Expositio in Apocalypsim Frankfurt Minerva 1964
26
como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com forma e conteuacutedo
definidos
No capiacutetulo segundo nos deteremos na anaacutelise da situaccedilatildeo das igrejas da proviacutencia
romana da Aacutesia em especial as disputas de poder os conflitos com as comunidades judaicas
e as tentativas de interaccedilatildeo com a sociedade romana O objetivo eacute definir as condiccedilotildees de
produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo
O terceiro capiacutetulo analisaraacute Apocalipse 201-10 tendo em vista sua relaccedilatildeo com a
obra como um todo por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos partindo da
traduccedilatildeo do texto grego para definir suas representaccedilotildees de histoacuteria e milenarismo bem
como seus pontos de partida e condiccedilotildees de emergecircncia
O quarto capiacutetulo aplicaraacute no Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram
lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar
elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso
este seraacute o espaccedilo privilegiado para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando
apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o
livro joanino
O quinto capiacutetulo analisa as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia
meridional normanda bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio
Hohenstaufen Estes aspectos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim seus
condicionados e viacutenculos poliacuteticos e religiosos
O sexto capiacutetulo problematizaraacute as estrateacutegias de leitura de Joaquim e sua
metodologia hermenecircutica para tanto analisando formas de apropriaccedilatildeo mediadas pela
diacronia O seacutetimo capiacutetulo partindo de uma siacutentese do texto latino trataraacute da seacutetima parte
do Expositio por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos Analisamos nele as
representaccedilotildees milenaristas e histoacutericas do abade e igualmente seus antecedentes e fatores
de emergecircncia Por fim na conclusatildeo nos perguntamos pelas convergecircncias e divergecircncias
entre Joatildeo e Joaquim profeta e monge Apocalipse e Expositio Patmos e Calaacutebria
I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO
Neste capiacutetulo analisaremos a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso
implica discutir as condiccedilotildees histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento66
de Jesus ateacute a ilha de Patmos para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na
proviacutencia da Aacutesia Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destino data e propoacutesito do
Apocalipse bem como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com
forma e conteuacutedo definidos
11 O autor do Apocalipse
A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta pelo menos dois
elementos principais Primeiramente busca-se em fontes antigas ou paralelas algo que
indique quem escreveu o texto Satildeo as chamadas evidecircncias externas Num segundo instante
observa-se a obra para verificar o que ela mesma consegue indiciar sobre seu autor no que
se pode denominar de evidecircncia interna No caso do Apocalipse tanto um quanto outro
levam em conta a aparente auto-identificaccedilatildeo do autor como ldquoJoatildeordquo (Ἰωάννhj)
- ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas
que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao
seu servo Joatildeordquo (Apocalipse 11)67
- ldquoJoatildeo agraves sete igrejas que se encontram na Aacutesia graccedila e paz a voacutes outros da parte
daquele que eacute que era e que haacute de vir da parte dos sete Espiacuteritos que se acham diante do seu
tronordquo (Apocalipse 14)
66 O termo ldquomovimentordquo eacute uacutetil para descrever a fase preacute-institucional do que viria a se tornar o Cristianismo
Quanto ao uso deste termo conferir o socioacutelogo THEISSEN Gerd Sociologia do Movimento de Jesus Satildeo
Leopoldo Sinodal 1997 p 11 tambeacutem STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria
social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo
Satildeo Leopoldo Sinodal 2004 p 218 Sobre a relaccedilatildeo entre essas comunidades e o restante do Judaiacutesmo Cf
FRIESEN Steve Sarcasm in Revelation 2-3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In
BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta
Society of Biblical Literature 2006 p 142 67 Usaremos para as citaccedilotildees biacuteblicas em portuguecircs a Versatildeo Revista e Atualizada de Almeida salvo quando
se tratar de traduccedilatildeo proacutepria como encontrada em BIacuteBLIA SAGRADA Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1980
28
- ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila
em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho
de Jesusrdquo (Apocalipse 19)
- ldquoEu Joatildeo sou quem ouviu e viu estas coisas E quando as ouvi e vi prostrei-me
ante os peacutes do anjo que me mostrou essas coisas para adoraacute-lordquo (Apocalipse 228)
Essas passagens do Apocalipse indicam que Joatildeo eacute o nome assumido pelo autor
autor este que se insere na obra na forma de um personagem enquanto descreve eventos e
experiecircncias religiosas Natildeo haacute qualquer outro nome vinculado a Joatildeo Identificaccedilotildees
romanas levavam em conta geralmente preacute-nome nome e poacutes-nome como o Imperador
Titus Flavius Domitianus Identificaccedilotildees judaicas seguiam nome e filiaccedilatildeo geralmente o
nome do pai (Isaque ben Abraatildeo) mas agraves vezes a identificaccedilatildeo da cidade (Jesus de Nazareacute)
O Joatildeo do Apocalipse entretanto parece ser suficientemente conhecido da sua audiecircncia
para que natildeo precise se apresentar com nada mais aleacutem do que um nome Kuumlmmel entende
em funccedilatildeo disso que ldquoo simples nome de Joatildeo indica uma personalidade comumente
conhecida e a maneira auto-evidente com que ele coloca seus apelos no sentido de ser
ouvido mostra dever tratar-se de um homem que goza de grande autoridaderdquo68
O autor do livro tambeacutem se apresenta como irmatildeo e companheiro (ldquoἀδελφς καὶ
συγκοινωνςrdquo) daqueles que iratildeo receber sua mensagem (Apocalipse 19) o que reforccedila a
sugestatildeo de que ele era bem conhecido de sua audiecircncia
O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse pelo que se conhece foi
Papias bispo de Hierapolis uma cidade proacutexima de Laodiceia uma das cidades que aparece
como destinataacuteria do livro (Apocalipse 314-22) Ele atuou como liacuteder eclesiaacutestico no inicio
do segundo seacuteculo e escreveu uma obra intitulada ldquoInterpretaccedilotildees de ditos do Senhorrdquo Esta
obra se perdeu mas foi citada por muitos autores antigos Andreas bispo de Cesareia na
Capadoacutecia escrevendo um comentaacuterio do Apocalipse no seacuteculo VI registrou que Papias
conheceu o Apocalipse considerava-o inspirado por Deus e comentou uma de suas
passagens (A interpretaccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo o Teoacutelogo 1011) Infelizmente natildeo haacute
nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menccedilatildeo clara sobre quem escreveu o
Apocalipse
Justino Maacutertir chegou a residir em Eacutefeso outra das cidades mencionadas diretamente
no Apocalipse (Apocalipse 21-7) por volta do ano 135 Ele escreveu no seu ldquoDialogo com
68 KUumlMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 618
29
Trifordquo na seccedilatildeo em que defende o cumprimento literal de profecias judaicas que esperavam
um reinado literal do Messias na terra que um homem chamado Joatildeo um dos apoacutestolos de
Cristo ldquonuma revelaccedilatildeo que lhe foi feita profetizou que os que tiverem acreditado em nosso
Cristo passaratildeo mil anos em Jerusaleacutemrdquo (Diaacutelogo com Trifo 814) Nos seus termos ele fez
uma referecircncia ao mais tradicional ciacuterculo de disciacutepulos de Jesus descrito regularmente
como ldquoos doze apoacutestolosrdquo Os Evangelhos canocircnicos (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo)
descrevem Jesus durante sua atividade religiosa pela Palestina cercado de um grupo de
disciacutepulos que o acompanhava a todos os lugares O Evangelho de Marcos o mais antigo
dos quatro escrito no final da deacutecada de 60 do seacuteculo I69 relaciona os seguintes nomes neste
ciacuterculo de seguidores Simatildeo Pedro Tiago e Joatildeo filhos de Zebedeu Andreacute Filipe
Bartolomeu Mateus Tomeacute Tiago filho de Alfeu Tadeu Simatildeo o cananeu e Judas
Iscariotes (Marcos 316-19) Aparentemente entatildeo Justino entendeu que o ldquoJoatildeordquo
mencionado no iniacutecio do Apocalipse era o mesmo ldquoJoatildeordquo dos primoacuterdios do movimento de
Jesus um dos seus disciacutepulos originais
Irineu fez o mesmo que Justino em torno de 180 e natildeo soacute ligou o Apocalipse ao
filho de Zebedeu como tambeacutem ao quarto Evangelho canocircnico conhecido como Evangelho
de Joatildeo (Contra as Heresias V30) Apesar de bispo na cidade de Leon na Gaacutelia ele passou
parte da infacircncia em Esmirna na Aacutesia outra das sete cidades do Apocalipse (Apocalipse
28-11)
Autores antigos como Hipolito de Roma (170-236) Tertuliano de Cartago (160-220)
e Origenes de Alexandria (morreu em 254) seguiram Irineu na opiniatildeo de que o Apocalipse
e o Evangelho de Joatildeo foram escritos pela mesma pessoa um dos disciacutepulos diretos de Jesus
o filho de Zebedeu70
No seacuteculo III entretanto Gaio um presbiacutetero da igreja de Roma promoveu forte
criacutetica contra o Apocalipse Na base deste ataque estava uma oposiccedilatildeo ao movimento
montanista Como Montano e seus seguidores eram fervorosos leitores do Apocalipse Gaio
entendeu que o livro precisava ser totalmente rejeitado pelas igrejas Ele argumentou entatildeo
que a obra natildeo era nem do apoacutestolo Joatildeo nem do presbiacutetero Joatildeo mas de um homem
chamado Cerinto Sua criacutetica foi registrada por Euseacutebio
No entanto tambeacutem Cerinto por meio de revelaccedilotildees que diz serem escritas
por um grande apoacutestolo apresenta milagres com a mentira de que lhe
69 KUumlMMEL op cit p 117 70 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The Westminster
Press 1984 p 26
30
teriam sido mostradas por ministeacuterios dos anjos e diz que depois da
ressurreiccedilatildeo o reino de Cristo seraacute terrestre e que novamente a carne que
habitaraacute em Jerusaleacutem seraacute escrava de paixotildees e prazeres Como inimigo
das Escrituras de Deus e querendo fazer errar diz que haveraacute um nuacutemero
de mil anos de festa nupcial (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XVIII 2)
Entretanto tanto a sugestatildeo de Justino e Irineu quanto a de Gaio se mostram fraacutegeis
A relaccedilatildeo do Apocalipse com um disciacutepulo direto de Jesus natildeo encontra eco dentro do
proacuteprio livro O autor se autodenomina realmente Joatildeo mas natildeo declara viacutenculo algum com
Zebedeu com um apoacutestolo ou com qualquer outro disciacutepulo de Jesus dos tempos iniciais
Se as doze pedras mencionadas na descriccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 2119-21)
evocam realmente os doze apoacutestolos como Adela Collins argumenta71 isso indicaria que os
apoacutestolos no tempo do Apocalipse jaacute haviam alcanccedilado um alto e elevado status dentro das
comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da feacute e base para a existecircncia das
igrejas Mas nada sugere que o autor se veja entre estes Os indiacutecios indicam que os apoacutestolos
eram figuras do seu passado
Nesta mesma linha se os apoacutestolos eram figuras tatildeo importantes para as igrejas e o
livro fosse uma obra pseudocircnima escrita por uma figura histoacuterica de nome Cerinto mas
atribuiacuteda retroativamente ex eventu a um grande liacuteder do passado esperava-se que o
Apocalipse contivesse viacutenculos mais expliacutecitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de
Nazareacute Mas natildeo haacute qualquer elemento no livro que pudesse levar os primeiros leitores a
fazer essa identificaccedilatildeo a natildeo ser a curta auto-apresentaccedilatildeo do autor homocircnima de um dos
antigos disciacutepulos O proacuteprio Jesus que aparece no livro estaacute bem distante daquele que se
movimenta nos Evangelhos Eacute uma figura exaltada e glorificada descrita por meio de
categorias angelicais ou divinas (Apocalipse 113-18) A ausecircncia de traccedilos ou indiacutecios de
natureza biograacutefica inviabiliza a hipoacutetese do presbiacutetero Gaio de que a obra seja pseudocircnima
O vinculo do Apocalipse com o Evangelho de Joatildeo eacute igualmente fraacutegil Dionisio um
bispo de Alexandria na segunda metade do seacuteculo III apesar de natildeo simpatizar em linhas
gerais com o Apocalipse rejeitou o ataque que Gaio e outros fizeram agrave obra Ele argumentou
que Apocalipse e Evangelho satildeo obras muito diferentes para terem sido escritas pela mesma
pessoa Sua conclusatildeo registrada por Euseacutebio foi no sentido de que os textos satildeo de autoria
diferente
Portanto natildeo contradirei que ele se chamava Joatildeo e que este livro eacute de
Joatildeo Porque inclusive estou de acordo de que eacute obra de um homem santo
e inspirado por Deus Mas eu natildeo poderia concordar facilmente em que
71 Idem p 27
31
este fosse o apoacutestolo o filho de Zebedeu e irmatildeo de Tiago de quem eacute o
Evangelho intitulado de Joatildeo e a carta catoacutelica (Histoacuteria Eclesiaacutestica VII
XXV 7)
Em funccedilatildeo de um grande nuacutemero de pessoas possuir o mesmo nome teria sempre a
possibilidade de equiacutevocos de identificaccedilatildeo Alem disso havia a tendecircncia de associar livros
sagrados a grandes figuras do passado Este era um criteacuterio comum para que estas obras
fossem aceitas e usadas nas igrejas ao lado das Escrituras judaicas
Dionisio ainda argumentou que deveria haver outro liacuteder cristatildeo de nome Joatildeo na
Aacutesia Ele faz referencia neste sentido a dois tuacutemulos ainda encontrados nos seus dias na
cidade de Eacutefeso dedicados a liacutederes antigos que levavam este nome Euseacutebio resumiu esta
perspectiva
De forma que tambeacutem isto demonstra que eacute verdade a histoacuteria dos que
dizem que na Aacutesia houve dois com este mesmo nome e em Eacutefeso dois
sepulcros dos quais ainda hoje se afirma que satildeo um e outro de Joatildeo Eacute
necessaacuterio prestar atenccedilatildeo a estes fatos porque eacute provaacutevel que fosse o
segundo ndash se natildeo se prefere o primeiro ndash o que viu a Revelaccedilatildeo
(Apocalipse) que corre sob o nome de Joatildeo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III
XXXIX 6)
Eacute difiacutecil entretanto relacionar o Joatildeo do Apocalipse com qualquer tiacutetulo eclesiaacutestico
Ele natildeo usa epiacutetetos conhecidos do periacuteodo como apoacutestolo evangelista mestre bispo
presbiacutetero ou diaacutecono Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas e
possivelmente ele as conhecia ele se recusou a usaacute-las Essa recusa pode indicar que ele natildeo
se enxergava nesses tiacutetulos ou entatildeo que as comunidades que receberam o Apocalipse natildeo
o reconheciam nos mesmos
Desta forma ainda assumindo que o nome que aparece no iniacutecio do livro eacute uma
referecircncia autecircntica (natildeo-pseudocircnima) a seu autor e que ele se chamava realmente Joatildeo as
evidecircncias externas acumuladas sobre ele natildeo representam muito O Joatildeo do Apocalipse natildeo
parece ser entatildeo o filho de Zebedeu um dos disciacutepulos originais de Jesus ou o autor do
Evangelho de Joatildeo ou uma figura antiga das igrejas conhecida como Joatildeo o presbiacutetero
Possivelmente foi a tendecircncia das igrejas em identificar os autores das obras
sagradas como apoacutestolos de Jesus e o fato do livro identificar seu autor com um ldquoJoatildeordquo que
levou Justino Irineu e os outros antigos escritores cristatildeos a associaacute-lo com o filho de
Zebedeu ou com o autor do quarto Evangelho O que parece eacute que o livro foi escrito por um
homem chamado Joatildeo que se tornou significativo para a histoacuteria do cristianismo pela
32
produccedilatildeo de apenas um livro livro esse que se constitui entatildeo na fonte mais expressiva
para indicar outros aspectos de sua identidade e seu lugar social
Aleacutem das observaccedilotildees anteriores de que Joatildeo era bem conhecido de sua audiecircncia
um segundo elemento interno a respeito de sua identidade social eacute a ligaccedilatildeo com uma
atividade conhecida como ldquoprofeciardquo Joatildeo natildeo se denomina explicitamente profeta mas o
faz implicitamente em vaacuterios lugares do Apocalipse Ele intitula sua mensagem de profecia
(Apocalipse 13 227 10 18) e narra uma experiecircncia de vocaccedilatildeo de forma muito
semelhante a profetas da tradiccedilatildeo judaica (Isaiacuteas 61-13 Jeremias 14-10 Ezequiel 28-333)
Por isso Lohse argumenta que Joatildeo foi um ldquoprofeta dos primoacuterdios do cristianismo que
atuou nas comunidades da Aacutesia com grande vigorrdquo72 Assim tambeacutem entende Bovon para
quem Joatildeo como profeta apresenta-se como um instrumento da revelaccedilatildeo divina e uma voz
do Cristo exaltado73
Estudiosos tendem a relacionar o fenocircmeno da profecia no movimento de Jesus ateacute
o inicio do segundo seacuteculo com a atividade de lideranccedila itinerante principalmente como
encontrada nas proviacutencias da Aacutesia Menor74 As comunidades locais eram dirigidas por
liacutederes assentados no meio delas que moravam nas cidades e dirigiam as congregaccedilotildees
Documentos do movimento de Jesus do iniacutecio do segundo seacuteculo denominavam estes liacutederes
de epiacutescopos presbiacuteteros e diaacuteconos (1Timoacuteteo 31-13 Tito 15-9) Do outro lado existiam
liacutederes itinerantes que viajavam de igreja em igreja de um lugar para outro normalmente
denominados de profetas apoacutestolos evangelistas ou mestres Estas distinccedilotildees natildeo eram tatildeo
riacutegidas jaacute que liacutederes locais poderiam viajar enquanto liacutederes itinerantes poderiam parar
durante certo tempo em uma igreja Um liacuteder local poderia ser itinerante num momento o
itinerante poderia eventualmente residir numa cidade Mesmo assim as definiccedilotildees
funcionais ou carismaacuteticas podem iluminar a atividade de Joatildeo como profeta na regiatildeo da
Aacutesia No Apocalipse ele faz referecircncia a sete igrejas em sete cidades (Apocalipse 111) o
que indica que ele transitava por elas O conteuacutedo das cartas do Apocalipse (Apocalipse 2-
3) sugere tambeacutem que as igrejas o conheciam o que aponta para uma atividade religiosa
mais ampla do que uma especiacutefica igreja local
Por ser profeta e profeta itinerante Joatildeo pode ter abraccedilado um estilo de vida asceacutetico
como o seu livro parece sugerir (Apocalipse 141-5) Este tipo de vida seria derivado do
72 LOHSE Eduard Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Leopoldo Sinodal 1985 p 249 73 BOVON Franccedilois Johnrsquos Self-presentation in Revelation 19-10 Catholic Biblical Quaterly Washington
n 62 p 693-700 2000 p 700 74 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 34
33
formato da atividade religiosa que Jesus desenvolveu com os seus disciacutepulos Nos
Evangelhos eles satildeo vistos constantemente viajando de lugar para lugar sem casa fixa
Ditos dos Evangelhos (Marcos 820 Mateus 1023 entre outros) ainda reforccedilam essa postura
que foi chamada por Gerd Theissen de carismatismo itinerante com a expectativa de uma
vida sem paacutetria sem famiacutelia sem posses e sem proteccedilatildeo75
Viajar de lugar para lugar rompia com os laccedilos locais de estabilidade social Os
disciacutepulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida asceacutetica e mesmo apoacutes a morte do
fundador do movimento alguns continuaram na vida andarilha Talvez seja por isso que o
autor do Didaqueacute no iniacutecio do seacuteculo II chamou a itineracircncia de ldquomodo de vida do Senhorrdquo
(Didaqueacute 118) Aleacutem dos laccedilos sociais os andarilhos tambeacutem renunciavam agrave famiacutelia Um
logia de Jesus encontrado no Evangelho de Marcos aponta neste sentido
Tornou Jesus Em verdade vos digo que ningueacutem haacute que tenha deixado
casa ou irmatildeos ou irmatildes ou matildee ou pai ou filhos ou campos por amor
de mim e por amor do evangelho que natildeo receba jaacute no presente o cecircntuplo
de casas irmatildeos irmatildes matildees filhos e campos com perseguiccedilotildees e no
mundo por vir a vida eterna (Marcos 1029-30)
Poucos dos missinaacuterios destacados pelo autor dos Atos dos Apoacutestolos satildeo descritos
em atividade familiar Natildeo haacute qualquer referecircncia agrave famiacutelia de Paulo Estes itinerantes
renunciavam tambeacutem a propriedades ou recursos financeiros o que dava ao pregador
condiccedilotildees de fazer a criacutetica contra a riqueza Quem perambulava pela Palestina Siacuteria e Aacutesia
Menor em pobreza demonstrativa poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em
descreacutedito76 Por isso o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades de Jesus
localmente constituiacutedas para ter uma porccedilatildeo miacutenima para sobreviver Isso lhes parecia bem
como aos olhos das comunidades locais uma demonstraccedilatildeo da bondade divina que natildeo
deixava o itinerante carismaacutetico morrer de fome ou sede
De qualquer forma a praacutetica do carismatismo itinerante demandava abraccedilar um estilo
radical de vida religiosa com niacutetidas consequecircncias asceacuteticas e combinava amplamente com
uma perspectiva escatoloacutegica de fim iminente da histoacuteria como provavelmente pregada por
Jesus77
75 THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op cit p 18 76 Na anaacutelise da atividade carismaacutetica itinerante cf THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op
cit p 16-22 77 ALLISON Dale C Jesus of Nazareth Millenarian prophet Minneapolis Fortress Press 1998 p 60-61
34
Aleacutem do seu papel religioso como profeta autores sugerem que Joatildeo era judeu por
nascimento um nativo da Palestina onde passou um bom tempo de sua vida78 Haacute
possibilidade de ele ter residido na Judeacuteia ateacute a instauraccedilatildeo da guerra contra os romanos (66-
70) que terminou com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico79 Esse tipo de
identificaccedilatildeo ilumina a forma como Joatildeo compreendia a relaccedilatildeo entre Israel e Igreja Ele natildeo
entendia o movimento de Jesus e suas comunidades como uma religiatildeo nova e independente
do grande e plural fenocircmeno religioso que os estudiosos chamam de Judaiacutesmo80
Joatildeo reinvidica o uso do termo ldquojudeurdquo (Ἰουδαίος) para os seguidores de Jesus
(Apocalipse 29 39) e demonstra tensatildeo com sinagogas locais que poderia indiciar mais
uma crise interna do que um conflito entre religiotildees distintas Seu uso das Escrituras judaicas
o grego semitizante do Apocalipse81 o domiacutenio da tradiccedilatildeo religiosa do periacuteodo do Segundo
Templo como apocalipses e oraacuteculos indicam uma pessoa fortemente envolvida com as
tradiccedilotildees do antigo Israel Muitas de suas perspectivas sociais e poliacuteticas poderiam derivar
de determinadas tradiccedilotildees judaicas mais do que de correntes especiacuteficas do movimento de
Jesus
Mesmo assim um aspecto significativo da identidade social do autor do Apocalipse
tem relaccedilatildeo justamente com essa ldquoseita judaicardquo O Judaiacutesmo no periacuteodo que vai da ascenccedilatildeo
hasmoneana (167 aC) ateacute pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 dC) abarcava
diversos partidos e grupos religiosos82 Um destes grupos teve iniacutecio com a atuaccedilatildeo da pessoa
de Jesus de Nazareacute entre 27-30 inicialmente na Galileacuteia para terminar com sua morte em
Jerusaleacutem O autor do Apocalipse afirma ser seguidor de Jesus (Apocalipse 19) de quem
recebeu a sua revelaccedilatildeo
Apesar de choques eventuais entre os grupos eles se reconheciam mutuamente como
herdeiros das mesmas tradiccedilotildees religiosas antigas das alianccedilas dos patriarcas das Escrituras
judaicas e da Lei de Moiseacutes Provavelmente Joatildeo se via como um judeu e membro do
fenocircmeno religioso judaico83 O mesmo poderia ser afirmado a respeito das comunidades
78 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 p 276 79 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 47 80 Sobre a pluralidade de perspectivas no interior do Judaiacutesmo cf BAUMGARTEN Albert I Ancient Jewish
Sectarianism Judaism Genebra v 47 n 4 p 387-403 1998 81 Para uma discussatildeo da linguagem do Apocalipse sua sintaxe e seu vocabulaacuterio cf CALLAHAN Allen
Dwight The Language of Apocalypse Harvad Theological Review Cambridge v 88 n 4 p 453-470 1995 82 Para uma anaacutelise ampla sobre a questatildeo da identidade judaica na antiguidade cf GOODMAN Martin
Judaism in the Roman World collected essays Leiden Brill 2007 p 21-32 83 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 277
35
que receberam o Apocalipse Elas faziam parte de um movimento que ainda se entende
judaico84 apesar da identificaccedilatildeo com um grupo especiacutefico dentro do Judaiacutesmo Eacute possiacutevel
denomina-los mesmo como judeus que reconhecem Jesus como o messias
Duas deacutecadas depois na mesma regiatildeo do Apocalipse entretanto Inaacutecio de
Antioquia falaria em suas cartas de ldquoCristianismordquo () e descreveraacute seus membros
como ldquocristatildeosrdquo () o que indica que o movimento naquele periacuteodo e na sua
expressatildeo asiaacutetica jaacute tem formulado uma identidade autocircnoma em relaccedilatildeo ao Judaismo Nos
termos de Inaacutecio ldquoeacute melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaiacutesmo
de incircuncisordquo (Carta aos Filipenses 61)85
12 A data do Apocalipse
O Apocalipse de Joatildeo eacute uma obra escrita no chamado grego koinecirc liacutengua comum
aos territoacuterios do antigo Impeacuterio de Alexandre o Grande A obra de grande porte para os
padrotildees do periacuteodo comeccedila desta forma ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para
mostrar aos servos dele as coisas que devem acontecer em breve e enviou-a sinalizando
atraveacutes do seu anjo para o seu servo Joatildeordquo86
Como boa parte das fontes antigas a obra natildeo tem tiacutetulo ou marca de identificaccedilatildeo
Mas durante seu uso logo passou a ser identificada por meio da sua primeira palavra
apocalipse transliteraccedilatildeo simples de ποκάλυψις O termo pode ser traduzido como
ldquorevelaccedilatildeordquo87
No momento de definir a data da obra o testemunho de Irineu eacute novamente invocado
pelos estudiosos Ele registrou que ldquoo Apocalipse foi visto natildeo haacute muito tempo em nossa
proacutepria geraccedilatildeo no fim do reinado de Domicianordquo (Contra as Heresias 5303) Grande parte
dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definiccedilatildeo entendendo que mesmo
que o testemunho de Irineu quanto ao nome do autor natildeo seja confiaacutevel a data ainda pode
84 Enquanto categoria religiosa e natildeo eacutetnica jaacute que natildeo era preciso ser etnicamente judeu para fazer parte do
Judaiacutesmo 85 Noutro lugar ldquoEacute preciso natildeo soacute levar o nome de cristatildeo mas ser de fatordquo (Carta aos Magneacutesios 4) A respeito
do cristianismo e judaiacutesmo em oposiccedilatildeo nas cartas de Inaacutecio cf COHEN Shaye J D Judaism without
Circumcision and ldquoJudaismrdquo without ldquoCircumcisionrdquo in Ignatius Harvard Theological Review Cambridge v
95 n 4 p 395-415 2002 86 ldquoἈποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ ἣν ἔδωκεν αὐτῷ ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐν τάχει καὶ
ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃrdquo (Apocalipse 11) 87 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 67
36
ser mantida para o fim do reinado de Domiciano em meados de 95-9688 Segundo Adela
Yarbro Colllins natildeo existe nenhuma boa razatildeo para duvidar da sugestatildeo de Irineu quanto agrave
eacutepoca do Apocalipse89 Ela pressupotildee neste caso que a obra na sua forma atual eacute o
resultado de um uacutenico autor O Apocalipse apresenta uso de fontes tradicionais ou literaacuterias
mas ainda possui uma unidade coerente subjacente a uma uacutenica autoria Nos termos de
Collins ldquoa unidade de estilo e a cuidadosa complexa e deliberada estrutura do livro como
um todo torna supeacuterflua a hipoacutetese da compilaccedilatildeo de extensas fontes escritas ou uma seacuterie
de ediccedilotildeesrdquo90
Vitorino de Pettau morto em 303 escreveu o mais antigo comentaacuterio completo do
Apocalipse a sobreviver Ao comentar a passagem do Apocalipse em que Joatildeo come um
livro (Apocalipse 103) ele escreveu
Joatildeo teve esta visatildeo quando estava na ilha de Patmos condenado agraves minas
por Cesar Domiciano Parece pois que Joatildeo escreveu dali o Apocalipse
quando jaacute era um anciatildeo Depois de seus sofrimentos quando foi
assassinado Domiciano e anulados todos os seus decretos foi Joatildeo
liberado das minas e transmitiu este mesmo Apocalipse que recebeu do
Senhor (Comentaacuterio ao Apocalipse 103)
Euseacutebio de Cesareacuteia faz comentaacuterio parecido com o de Vitorino ldquoEacute tradiccedilatildeo que
neste tempo o apoacutestolo e evangelista Joatildeo que ainda vivia foi condenado a habitar a ilha
de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deusrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III VIII 1)
Ainda ldquoFoi entatildeo que o apoacutestolo Joatildeo voltando de seu desterro na ilha retirou-se para viver
em Eacutefeso segundo relata a tradiccedilatildeo de nossos antigosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XX 9)
Esses dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante o reino de
Domiciano Ambos acrescentam que Joatildeo foi banido para Patmos pelo Imperador tendo
sido liberado apoacutes a morte do mesmo A tradiccedilatildeo neles preservada do desterro de Joatildeo ou
de Patmos como uma colocircnia penal entretanto natildeo eacute apoiada pela historiografia91 Mesmo
assim os testemunhos de Vitorino e de Euseacutebio satildeo importantes para definir a data do
Apocalipse mais ateacute do que para descrever a situaccedilatildeo em que isso se deu
Em termos de evidecircncia interna Adella Collins indicou alguns elementos que
reforccedilam a hipoacutetese da deacutecada de 90 Um primeiro pode ser encontrado no uso muito
especiacutefico que o Apocalipse faz do nome Babilocircnia (Apocalipse 148 1619 175 182
88 Entre outros KUumlMMEL op cit p 613-617 89 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57 90 Idem p 54 91 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University
Press 1990
37
10 21) Eacute muito difiacutecil que o autor da obra esteja fazendo referecircncia a antiga cidade da
Mesopotacircmia presente nas tradiccedilotildees literaacuterias judaicas por ter destruiacutedo o reino de Judaacute em
586 aC derrubado a capital Jerusaleacutem e o templo de Salomatildeo Em Apocalipse 17 Joatildeo
descreve Babilocircnia como uma mulher e pelo menos duas marcas na fala do anjo indicam
que a mulher representa a cidade de Roma O versiacuteculo nove descreve-a assentada sobre sete
montanhas ldquoAqui estaacute o sentido da sabedoria as sete cabeccedilas satildeo sete montanhas onde a
mulher estaacute assentada Tambeacutem satildeo sete reisrdquo (Apocalipse 179) O versiacuteculo 18 a apresenta
como uma cidade ldquoque tem poder sobre os reis da terrardquo Estas indicaccedilotildees para uma
audiecircncia da Aacutesia no final do primeiro seacuteculo indicariam que Babilocircnia era um siacutembolo para
a cidade de Roma A capital do Impeacuterio aparece frequentemente como a cidade das sete
montanhas (Capitoacutelio Quirinal Viminal Esquilino Ceacutelio Aventino e Palatino) e era a
cidade mais importante politicamente do Mediterracircneo
E o que essa associaccedilatildeo entre Babilocircnia e Roma poderia indicar em termos de dataccedilatildeo
para o Apocalipse A maioria das ocorrecircncias de Babilocircnia como nome simboacutelico para
Roma na literatura judaica estaacute em 4Esdras 2Apocalipse de Baruque e no quinto livro dos
Oraculos Sibilinos Nestas obras Roma eacute chamada de Babilocircnia porque ela como a antiga
cidade mesopotacircmica destruiu Jerusaleacutem e o Templo Ou seja o nome simboacutelico de Roma
Babilocircnia eacute forte indiacutecio de que o Apocalipse foi escrito apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e o
Templo no ano 7092
Aleacutem do uso simboacutelico do termo Babilocircnia para descrever Roma tiacutepico de obras
judaicas posteriores ao ano 70 Collins aponta outros elementos internos
- A lenda do retorno de Nero em Apocalipse 13 e 17 principalmente a referecircncia agraves
cabeccedilas da besta (Apocalipse 179-11) reforccedila a hipoacutetese de que o Apocalipse eacute posterior agrave
morte de Nero em 68 dC e ao aparecimento da tradiccedilatildeo de que ele retornaria para retomar
o poder93
- A concepccedilatildeo de Joatildeo de que a comunidade de Jesus eacute o novo templo de Deus bem
como a profecia de que na Nova Jerusaleacutem natildeo haveria mais templos indicariam que o
Apocalipse eacute posterior agrave destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem (70 dC)94
92 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57-58 PAGELS Elaine The Social History of
Satan Part Three John of Patmos and Ignatius of Antioch Contrasting Visions of ldquoGods Peoplerdquo Harvad
Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006 p 494 93 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 58-64 94 Idem p 64-69
38
Outros elementos como os indiacutecios de conflitos com sinagogas locais em Esmirna e
Filadeacutelfia as referecircncias a perseguiccedilotildees por parte do Impeacuterio Romano ou a crise com a
instituiccedilatildeo do Culto Imperial satildeo muito vagos para precisar melhor a data do Apocalipse
A partir dos dados internos muito provavelmente o livro eacute posterior ao ano 70 e agrave
destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico Se a hipoacutetese de que o autor saiu da Palestina
em funccedilatildeo do conflito for autecircntica era preciso algum tempo para que ele consolidasse uma
atuaccedilatildeo profeacutetica fora da sua terra na Aacutesia Menor e especificamente na proviacutencia
proconsular da Aacutesia Dado o conhecimento que Papias teve da obra seria preciso algum
tempo entre sua produccedilatildeo e circulaccedilatildeo entre as igrejas Isso nos leva a tomar o testemunho
de Irineu realmente como a hipoacutetese mais provaacutevel localizando o livro no fim do governo
do Imperador Titus Flavius Domitianus assassinado no dia 18 de setembro de 96 Segundo
o bispo de Leon (Contra as Heresias 5303) foi em algum momento anterior agrave morte do
Imperador que Joatildeo de Patmos escreveu o Apocalipse
13 O propoacutesito do Apocalipse
Se aceitarmos as indicaccedilotildees do Apocalipse ele foi escrito para ser encaminhado para
sete igrejas da proviacutencia proconsular da Aacutesia ldquoAchei-me em espiacuterito em o dia do Senhor e
ouvi atraacutes de mim uma voz grande como de trombeta dizendo O que vecircs escreve em livro
e envia para as sete igrejasrdquo (Apocalipse 110-11)
As cartas em questatildeo aparecem um pouco depois na estrutura da obra
- Apocalipse 21-7 Carta agrave Igreja em Eacutefeso
- Apocalipse 28-11 Carta agrave Igreja em Esmirna
- Apocalipse 212-17 Carta agrave Igreja em Peacutergamo
- Apocalipse 218-29 Carta agrave Igreja em Tiatira
- Apocalipse 31-6 Carta agrave Igreja em Sardes
- Apocalipse 37-13 Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia
- Apocalipse 314-22 Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia
As cartas escritas como oraacuteculos profeacuteticos apresentam terceirizados o remetente e
o destinataacuterio Concretamente eacute o profeta Joatildeo que escreve contudo retoricamente satildeo
palavras diretas do Cristo exaltado entre os candelabros (Apocalipse 113) Eacute uma mensagem
39
para os membros das igrejas mas dirigidas aos anjos que estariam ali presentes (Apocalipse
21 28 212 218 31 37 314) Joatildeo se coloca como o intermediaacuterio entre duas
personalidades celestiais Mesmo que algueacutem se recuse a ouvi-lo natildeo poderia deixar de
atender ao anjo da igreja principalmente porque a mensagem do anjo teria origem direta no
Jesus glorificado Neste sentido as cartas se tornam proclamaccedilotildees profeacuteticas do soberano
Cristo exaltado95
Esta estrateacutegia literaacuteria eacute um instrumento retoacuterico de legitimaccedilatildeo o que denuncia
algum tipo de conflito ou tensatildeo entre Joatildeo o autor e os membros das igrejas Ao usar este
esquema para atingir o seu puacuteblico o autor indica toda a dificuldade que enfrentava para se
fazer ouvir96 A agressividade do texto e as diversas ameaccedilas indicam ainda mais a forccedila
necessaacuteria para que as cartas e o livro como um todo pudessem ser recebidos Segundo
Friedrich
as sete proclamaccedilotildees satildeo semelhantes aos antigos editos reais e imperiais
na medida em que exibem normalmente e estruturalmente semelhantes
praescriptiones narrationes dispositiones e sanctiones Em termos de
conteuacutedo as narrationes e dispositiones exibem caracteriacutesticas da profecia
do cristianismo das origens influenciada pela profecia do Antigo
Testamento97
As cartas indicam dois tipos baacutesicos de tensatildeo Internamente haacute algum tipo de
conflito entre Joatildeo e a lideranccedila de algumas igrejas e algum tipo de crise com sinagogas
locais98 Externamente a sociedade urbana da aacutesia parece representar algum desconforto
especialmente em funccedilatildeo das demandas relacionadas com as interaccedilotildees sociais
Para as tensotildees internas entre os liacutederes das igrejas Paul Duff sugeriu a seguinte
tipologia99
95 Conferir neste sentido FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria
Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 96 RUIZ Jean-Pierre Hearing and seeing but not saying a rhetoric de authority in Revelation 104 and 2
Corinthians 124 In BARR David L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of
Revelation Atlanta Society of Biclical Literature 2006 p 91-111 p 93 97 FRIEDRICH Nestor Paulo O edito-profeacutetico para a Igreja em Tiatira (Apocalipse 218-29) uma anaacutelise
literaacuteria soacutecio-poliacutetica e teoloacutegica Tese (Doutor em Teologia) ndash Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia Escola
Superior de Teologia Satildeo Leopoldo 2000 p 60 98 DUFF Paul B ldquoThe synagogue of Satanrdquo Crisis mongering and the Apocalypse of John In BARR David
L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biclical
Literature 2006 p 164-165 p 148 99 DUFF Paul B Who Rides the Beast Prophetic Rivalry and the Rhetoric of Crisis in the Churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 p 25
40
- Igrejas divididas entre a lideranccedila de Joatildeo e alguma outra lideranccedila local Eacutefeso
Peacutergamo Tiatira Para estas igrejas Joatildeo fornece nas respectivas cartas uma elaboraccedilatildeo dos
problemas da comunidade Consistiriam no principal foco do Apocalipse
- Igrejas onde Joatildeo tem pouca ou mesmo nenhuma influecircncia Sardes e Laodiceacuteia Eacute
provaacutevel que ele tenha aliados em potencial nessas comunidades mas estatildeo em nuacutemero
muito pequeno Por isso o seu tom menos conciliador Para elas o autor natildeo fornece
nenhuma elaboraccedilatildeo de problemas e pouco se tiver algum encorajamento
- Igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo Esmirna e Filadeacutelfia Natildeo haacute chamada ao
arrependimento ou qualquer tipo de ameaccedila ao mesmo tempo em que recebem fortes
louvores Satildeo igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo e ao tipo de mensagem que ele defendia
Com relaccedilatildeo aos membros das sinagogas locais Joatildeo assim se expressou ldquose dizem
judeus mas natildeo o satildeordquo Para o autor do Apocalipse eles natildeo eram verdadeiros judeus mas
ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo (Apocalipse 29 39)100 O professor Nogueira argumenta que essa
crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga estar ldquoenvolvida em um processo
sincreacutetico de interaccedilatildeo com os gentios Eles falavam grego expressavam suas crenccedilas e
praacuteticas religiosas com categorias helenistas e estavam em maior ou menor grau envolvidos
na vida puacuteblica de suas cidadesrdquo101
O Apocalipse fala da morte de Antipas (Apocalipse 213) que pode ter ocorrido em
funccedilatildeo de algum conflito com a sociedade O Apocalipse apresenta a expectativa que o
mesmo fenocircmeno que promoveu a morte deste membro do movimento de Jesus proveraacute
dentro em breve a prisatildeo e a ruiacutena de muitos outros (Apocalipse 210)102 Para Thompson
ldquoa descriccedilatildeo do visionaacuterio de guerra e conflito contem suficientes referecircncias e alusotildees a
Roma e ao culto imperial para concluir que o visionaacuterio esperava tribulaccedilatildeo e opressatildeo de
instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas na Aacutesiardquo103 Como Prigent enfatiza ldquoo autor de
100 FRANKFURTER David Jews or Not Reconstructing the ldquoOtherrdquo in Rev 29 and 39 Harvard
Theological Review Cambridge v 4 n 94 p 403-425 2001 Duff argumenta que o comentaacuterio negativo de
Joatildeo sobre as sinagogas foi feito para exacerbar a tensatildeo entre as igrejas e as sinagogas Ao promover inimizade
contra as sinagogas e medo de hostilidade de judeus locais Joatildeo desejava desencorajar aliados iacutentimos
(membros das igrejas de Esmirna e Filadeacutelfia) de apostastar para as sinagogas Cf DUFF Paul B ldquoThe
synagogue of Satanrdquo op cit p 148 101 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza Experiecircncia religiosa e criacutetica social no cristianismo primitivo Satildeo
Paulo Paulinas p 137 102 HOWARD-BROOK Wes GWYTHER Anthony Desmascarando o imperialismo interpretaccedilatildeo do
Apocalipse ontem e hoje Satildeo Paulo Paulus 2003 p 120-155 103 THOMPSON Leonard A Sociological Analysis of Tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 36 p 147-174 1986 p 148
41
Apocalipse afirma com grande energia que o Impeacuterio estaacute a serviccedilo de Satatilde comprovado
pela idolatria que embasa todo o sistemardquo104
Durante boa parte da histoacuteria da leitura do Apocalipse105 a descriccedilatildeo de mundo no
seu livro cheia de conflitos e violecircncia era tomada como equivalente da situaccedilatildeo concreta
de vida do autor e de suas comunidades O contexto histoacuterico era precisamente como
transparecia atraveacutes das imagens do livro106 Foi somente a partir de meados do seacuteculo XX
quando alguns estudiosos deixaram de assumir que o mundo do texto de Apocalipse
espelhava diretamente o contexto histoacuterico em torno do mesmo Neste caso eles se voltaram
para oferecer sugestotildees de como conciliar e relacionar a tensatildeo entre o mundo do Apocalipse
e o mundo concreto das comunidades de seguidores de Jesus no final do primeiro seacuteculo na
Aacutesia romana
Uma destas pesquisadoras Fiorenza sugeriu que as imagens que o livro constroacutei
foram produzidas como instrumentos retoacutericos de persuasatildeo Ela entende que o visionaacuterio
parece estar realmente convencido de que o Impeacuterio Romano eacute uma ameaccedila para seguidores
de Jesus e escreve para persuadir sua audiecircncia a aceitar sua leitura da realidade
empurrando-a para uma determinada posiccedilatildeo frente ao contexto social em que viviam107
Adela Collins por sua vez argumentou que Joatildeo escreveu em resposta ao conflito
entre a feacute em Jesus como Joatildeo a entendia e a situaccedilatildeo social como ele a percebia Para esta
autora o autor realiza seu propoacutesito por meio da construccedilatildeo de um universo simboacutelico com
valores terapecircuticos Diante do Apocalipse leitores e ouvintes alcanccedilariam uma catarse de
medo e ressentimento e uma internalizaccedilatildeo de demandas para sustentar-se agrave parte de uma
ordem social opositora por meio da praacutetica de abstinecircncia sexual pobreza e martiacuterio108
Outro pesquisador Steven Friesen definiu o Apocalipse de Joatildeo como uma obra
engajada na construccedilatildeo de um mundo simboacutelico com o objetivo de produzir resistecircncia
simboacutelica Enquanto a ideologia imperial construiacutea seus mitos e os disseminava para afirmar
104 PRIGENT P O Apocalipse In COTHENET E et al Os escritos de Satildeo Joatildeo e a Epiacutestola aos Hebreus
Satildeo Paulo Paulinas 1998 p 229-306 p 255 105 Para a histoacuteria da recepccedilatildeo do livro conferir WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse
Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 KOVACS Judith
ROWLAND Christopher C Revelation Oxford Blackwell Publishing 2004 KYRTATAS Dimitris The
Transformations of the Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text
The Writing of Ancient History London Duckworth 1986 p 144-162 106 Conferir neste sentido o comentaacuterio de Euseacutebio de Cesareacuteia ldquoDomiciano deu provas de uma grande
crueldade para com muitos [] e foi o segundo a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutesrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica
III VII 1) 107 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Apocalipsis Visioacuten de un mundo justo Estella Editorial Verbo Divino
1997 p 58 108 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsis op cit p 127-131
42
que o Imperador era o rei dos reis Joatildeo ressignifica estes mitos para afirmar que a autoridade
uacuteltima sobre o mundo proveacutem no fim de fora mesmo deste mundo109 Eacute um conflito de
mundos construiacutedos de siacutembolos de identidades de ideologias110
Em termos concretos entretanto Domiciano natildeo parece ter instigado uma
perseguiccedilatildeo oficial aos seguidores de Jesus Existe pouca evidecircncia de que ele tenha
perseguido diretamente as igrejas e como insistiu Thompson nenhuma evidecircncia de que ele
tenha banido Joatildeo para a Ilha de Patmos111
Isso natildeo significa que conflitos locais natildeo pudessem se manifestar dentro de cada
cidade da Aacutesia conflitos estes que poderiam ter ligaccedilatildeo com o relacionamento entre os
membros do movimento de Jesus e a instituiccedilatildeo do culto imperial112 Possivelmente ao falar
do culto agraves bestas Joatildeo entra em polecircmica com a praacutetica do culto ao Imperador no contexto
urbano da proviacutencia onde a primeira Besta (Apocalipse 131-10) representa o Impeacuterio
Romano ou o proacuteprio Imperador e a segunda Besta (Apocalipse 1311-18) eacute possivelmente
o sacerdote do culto imperial113 Acompanhar a posiccedilatildeo do Apocalipse neste sentido poderia
gerar suspeiccedilatildeo e hostilidade por parte da populaccedilatildeo local e causar as acusaccedilotildees subjacentes
aos processos descritos por Pliacutenio o Jovem ao Imperador Trajano pouco mais de uma deacutecada
depois de Joatildeo na proviacutencia de Bitiacutenia e Ponto vizinha das igrejas da Aacutesia (Epiacutestola
10965)
O culto imperial era uma expressatildeo de religiosidade individual e coletiva e uma
demonstraccedilatildeo de coesatildeo e ordem social e poliacutetica do Impeacuterio Para propoacutesitos imperiais o
culto ao Imperador servia como uma expressatildeo de lealdade e gratidatildeo por parte dos cidadatildeos
Pagels tenta resumir este processo Para ela anteriormente os membros do
movimento de Jesus se identificavam com os grupos judaicos ao serem expulsos desses
109 FRIESEN Steven J Myth and Symbolic Resistance in Revelation 13 Journal of Biblical Literature
Atlanta v 2 n 123 p 281-313 2004 p 281 e 311 110 FRIESEN Steven J Satanrsquos throne imperial cults and the social settings of Revelation Journal for the
Study of the New Testament Cambridge v 27 n 3 p 351-373 2005 p 352 111 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L Reading the
Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 34 DUFF Paul B ldquoThe
Synagogue of Satanrdquo op cit p 149 112 Para uma anaacutelise das distintas formas que o culto imperial poderia assumir nas diferentes regiotildees do Impeacuterio
cf SCHERRER Steven J Signs and Wonders in the Imperial Cult a New Look at a Roman Religious
Institution in the Light of Rev 1313-15 Journal of Biblical Literature Atlanta v 4 n 103 p 599-610 1984
SORDI Marta The Christians and the Roman Empire London and New York Routledge 1994 Sobre a
relaccedilatildeo das comunidades judaicas com o culto imperial conferir MCLAREN James S Jews and the Imperial
Cult from Augustus to Domitian Journal for the Study of the New Testament Cambridge n 27 p 257-278
2005 113 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p
34
43
grupos eles precisavam criar novas identidades em oposiccedilatildeo agravequeles que antes eram seus
irmatildeos Entretanto quando essas mesmas comunidades passam a ser formadas
predominantemente de natildeo-judeus agora eram excluiacutedos natildeo mais de ciacuterculos judaicos mas
dos ciacuterculos sociais que antes conviviam Era desses ciacuterculos que as ameaccedilas agora partiam
de ldquooficiais romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu lsquoateiacutesmorsquo que temiam que
pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteirasrdquo114
O cenaacuterio descrito por Pagels talvez se aplique agrave Bitiacutenia e Ponto dos tempos de Pliacutenio
mas ainda natildeo o eacute para o tempo do Apocalipse A ecircnfase na ruptura com a sociedade
encontrada no texto joanino indica que boa parte dos membros das igrejas da Aacutesia ainda
vivia suas vidas com seus vizinhos sem grandes conflitos Eacute Joatildeo que espera por tensatildeo e
crise Ele aguarda uma violenta perseguiccedilatildeo contra as comunidades para um futuro
proacuteximo115 Subjacentes aos roacutetulos da oposiccedilatildeo interna (os balamitas e nicolaiacutetas de
Peacutergamo Jezabel e seus seguidores em Tiatira e os falsos apoacutestolos de Eacutefeso) parecem estar
pessoas que ocupavam posiccedilatildeo de lideranccedila dentro das igrejas nas quais estavam inseridas
consideradas como adversaacuterias por Joatildeo O que estes liacutederes de diferentes igrejas teriam em
comum Aparentemente eles natildeo estavam de acordo quanto agrave forma de conduzir os fieacuteis
nas suas relaccedilotildees com o Impeacuterio116 Assim diante da diferenccedila de respostas existente entre
os proacuteprios liacutederes sobre a interaccedilatildeo com a sociedade Joatildeo reage com forccedila Para ele
qualquer acomodaccedilatildeo social eacute prostituiccedilatildeo e idolatria categorias religiosas retiradas da
antiga profecia judaica
Como sintetizou Norman Cohn ldquoo propoacutesito de Joatildeo era estimular os cristatildeos a se
verem em conflito com ciacuterculos mais amplos da sociedaderdquo117 Para tanto ele descreveu o
governo romano natildeo como reflexo de uma ordem divina mas do poder de Satatilde A alianccedila
com o Jesus Glorificado do Apocalipse inviabilizaria qualquer relacionamento com a
sociedade romana
Joatildeo por meio de sua obra demoniza praacuteticas de interaccedilatildeo social poliacutetica e religiosa
com o Impeacuterio118 Sua estrateacutegia eacute exacerbar a situaccedilatildeo para promover uma crise na sua
114 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na
sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996 p 134 115 SILVA David A de The Revelation to Johnhellip op cit 116 FRIESEN Steven J Satanrsquos Throne Imperial Cults and the Social Settings of Revelation op cit p 368 117 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 280 118 MESTERS Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das
comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n 69 p 72-82 2001 p 77
Conferir tambeacutem BIGUZZI Giancarlo Ephesus its Artemision its Temple to the Flavian Emperors and
idolatry in Revelation Novum Testamentum Leida v 3 n 40 p 276-290 1998
44
audiecircncia119 pelo menos nas igrejas nas quais tinha alguma influecircncia e invibializar os
relacionamentos significativos com pessoas de fora da comunidade Para isso ele provecirc
motivaccedilotildees tanto positivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos demais
grupos judaicos Em termos sinteacuteticos ele demoniza seus adversaacuterios estressa fortemente
as diferenccedilas de padrotildees e valores escala antagonismo e vaticina um tempo proacuteximo de
rejeiccedilatildeo muacutetua120
14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse
Aparentemente os antigos inteacuterpretes do Apocalipse o liam da mesma forma como
liam outros livros profeacuteticos da tradiccedilatildeo judaica Para eles Joatildeo era profeta e seu livro uma
profecia Foi somente no seacuteculo XIX que se levantou a sugestatildeo de que o Apocalipse de Joatildeo
deveria ser visto como um tipo distinto de literatura121 O argumento era de que o livro natildeo
era como as demais obras da tradiccedilatildeo profeacutetica judaica Aleacutem disso as evidecircncias indicavam
que existia um corpo de escritos parecidos com o Apocalipse formando uma corrente
literaacuteria na qual a obra de Joatildeo poderia ser inserida122 Esta corrente se estenderia para cerca
de trecircs seacuteculos antes do aparecimento do Apocalipse de Joatildeo com acentuada produccedilatildeo em
torno da Guerra dos Macabeus e avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70)123
A partir de entatildeo os estudiosos passaram a tentar definir o que seria o gecircnero
ldquoapocalipserdquo Estas tentativas de definiccedilatildeo consistiam de listas de caracteriacutesticas tiacutepicas
119 Segundo Paul Duff ldquopor causa da fragilidade da fonte do seu poder liacutederes carismaacuteticos atraveacutes da histoacuteria
tecircm usado uma variedade de estrateacutegias para combater as ameaccedilas agrave perda do controle Uma destas estrateacutegias
eacute o fomento das crises ou seja criar crises ou exacerbar uma situaccedilatildeo instaacutevel ao ponto que isso resulte numa
crise Esta taacutetica tem o potencial para acentuar a indispensabilidade do liacuteder inspiradordquo Cf DUFF Paul B
ldquoThe Synagogue of Satanrdquohellip op cit p 164-165 120 Idem p 164-165 121 BARR David L Beyond Genre In BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics
in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p 71-79 p 75 122 COLLINS Adela Yarbro The Early Christian Apocalypses Semeia Atlanta n 14 p 61-121 1979 p 70
Para ela o Apocalipse de Joatildeo poderia ser definido como um apocalipse histoacuterico sem a presenccedila de viagem
celestial Conferir tambeacutem KUumlMMEL op cit p 602 ldquoO material miacutetico os nuacutemeros secretos as visotildees e os
fenocircmenos do ceacuteu como meios a serviccedilo da revelaccedilatildeo de coisas do mundo do aleacutem a representaccedilatildeo das visotildees
atraveacutes de imagens fantaacutesticas e ricamente embelezadas bem como a frequumlente dependecircncia do Antigo
Testamento caracterizam o Apocalipse como uma obra pertencente ao mesmo gecircnero literaacuterio dos apocalipses
judaicosrdquo 123 LOHSE op cit p 240 Sotelo propocircs trecircs hipoacuteteses gerais sobre a origem deste gecircnero literaacuterio Uma delas
entende que ele surgiu de tradiccedilotildees persas sendo completamente estranho aos autores anteriores de Israel
outra argumenta que ele veio da tradiccedilatildeo sapiencial de Israel e uma terceira o liga ao profetismo claacutessico
israelita Cf SOTELO Daniel Origem da apocaliptica In MARASCHIN Jaci Correia (ed) Apocaliptica
Satildeo Bernardo do Campo Instituto Metodista de Ensino Superior 1983 p 17-21 p 17
45
Autores como D S Russell124 procuraram apontar poucos traccedilos distintivos para abraccedilar um
nuacutemero maior de obras Entretanto o resultado eacute que obras que se parecem muito pouco
passaram a ser vistas igualmente como apocalipses
Muitas outras listas surgiram Cada uma apresentava um traccedilo diferente que
considerava ser tiacutepico de um apocalipse Isso fazia com que um livro que um determinado
autor apontava como apocalipse fosse considerado por outro estudioso como de gecircnero
diferente
Um princiacutepio baacutesico subjacente agrave pesquisa do gecircnero destes textos eacute que um
apocalipse como outros tipos de literatura natildeo poderia ser considerado como obra literaacuteria
estanque pois estaria relacionado com outras obras e tradiccedilotildees atraveacutes de uma seacuterie de traccedilos
e conexotildees Por isso definir um apocalipse passou a ser uma questatildeo de precisar os limites
ou paracircmetros dentro dos quais as obras seriam recebidas por seus leitores
Essa definiccedilatildeo avanccedilou consideravelmente como resultado das pesquisas publicadas
no nuacutemero 14 da revista Semeia Ela continuou na tradiccedilatildeo de gerar listas de caracteriacutesticas
para tipificar um apocalipse mas deu um passo a mais por causa da precisatildeo com que estes
traccedilos foram postulados Os resultados foram resumidos por Collins
Apocalipse eacute um gecircnero de literatura de revelaccedilatildeo com uma estrutura
narrativa no qual uma revelaccedilatildeo eacute mediada por um ser sobrenatural para
um ser humano revelando uma realidade transcendente que eacute tanto
temporal enquanto considera salvaccedilatildeo escatoloacutegica quanto espacial
enquanto envolve outro mundo sobrenatural125
A lista de caracteriacutesticas de Collins apresenta um apocalipse do ponto de vista da
forma (literatura de revelaccedilatildeo de estrutura narrativa) e do conteuacutedo (mediaccedilatildeo sobrenatural
realidades transcendentes temporal e espacial) Ao aplicar esta lista de caracteriacutesticas ao
livro de Joatildeo Collins entende que a obra se enquadra com precisatildeo no interior da tradiccedilatildeo
literaacuteria que gerou os apocalipses
Escritores natildeo conseguem escrever sem ter em mente outros textos que eles leram
os quais se tornam modelos para serem imitados transformados ou contrapostos A inserccedilatildeo
de um texto num determinado veio tradicional ou literaacuterio assim tem funccedilatildeo natildeo somente
promotora de caracteriacutesticas (forma conteuacutedo e funccedilatildeo) mas tambeacutem hermenecircutica Afinal
124 RUSSELL D S Desvelamento divino uma introduccedilatildeo agrave apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo Paulus 1997 125 COLLINS John J Introduction Towards the Morphology of a Genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979
p 9
46
leitores natildeo conseguem ler e entender uma obra se eles natildeo estiverem habilitados para
relacionaacute-la com outras que eles tiveram a oportunidade de ler ou conhecer
O propoacutesito da identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo de uma obra eacute orientar e guiar a produccedilatildeo
ou a recepccedilatildeo da mesma Este processo eacute normalmente deliberado e consciente por parte
do autor do livro como um de seus recursos para guiar o seu leitor
A classificaccedilatildeo de textos consiste no levantamento de um conjunto de convenccedilotildees
impliacutecitas ou expliacutecitas O escritor conhece estas convenccedilotildees do contexto no qual e contra o
qual escreve No processo de produccedilatildeo de sua obra ele ajuda o leitor por meio de indicaccedilotildees
para-textuais como tiacutetulos subtiacutetulos prefaacutecios ou outros sinais menos oacutebvios Com isso se
forma um tipo de ldquocontratordquo que orienta antecipadamente a leitura e a apropriaccedilatildeo da obra
Afinal estas marcas estatildeo ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido
Paul Duff destaca que Joatildeo como todo escritor ou orador precisou antecipar a reaccedilatildeo
dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem126 As tais marcas
viabilizam as classificaccedilotildees ou categorizaccedilotildees e formam uma espeacutecie de guia de leitura que
pode ser aceito ou natildeo pelos leitores
Linton insiste que mesmo que uma obra natildeo tenha estes sinais claramente os leitores
tenderatildeo a construir seus proacuteprios guias de interpretaccedilatildeo normalmente comparando a obra
com outras similares de forma a construir um corpo de convenccedilotildees para guiar a leitura127
A praacutetica da leitura se torna entatildeo um contiacutenuo processo de comparaccedilatildeo com leituras
anteriores
Autores se valem de categorias Leitores se aproveitam delas Em ambas as situaccedilotildees
a construccedilatildeo do texto e a busca pelo seu sentido eacute uma atividade de comparaccedilatildeo na qual as
categorias se tornam ferramentas heuriacutesticas significativas Ao escrever sua obra Joatildeo
deliberadamente revestiu-a de marcas e traccedilos de obras que viriam posteriormente a ser
conhecidas como ldquoapocalipsesrdquo Ao assim fazer ele forneceu a forma como ele esperava
que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Aacutesia e com quais textos o Apocalipse deveria
ser comparado
126 DUFF Paul B Who rides the beast op cit p 72 127 LINTON Gregory L Reading the Apocalypse as Apocalypse In BARR David L (ed) The Reality of
Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p
9-41 p 15
47
15 Resumo
O Apocalipse foi escrito por um judeu de nome Joatildeo que migrou da Palestina apoacutes a
guerra judaico-romana (66-70) e desenvolvou uma atividade profeacutetica entre as comunidades
do movimento de Jesus na Aacutesia menor Perto do final do seacuteculo pouco antes do fim do
governo do Imperador Domiciano (96) ele se deslocou ou foi descolocado para a ilha de
Patmos onde escreveu um texto marcado por traccedilos da tradiccedilatildeo literaacuteria judaica denominada
pelos estudiosos como ldquoapocalipserdquo Com sua obra ele desejava convencer alguns membros
especialmente de sete igrejas da proviacutencia asiaacutetica a romperem relacionamentos
significativos com a sociedade romana
II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA
Como discutimos no capiacutetulo anterior o Apocalipse de Joatildeo foi escrito nos anos 90
do primeiro seacuteculo da Era Comum provavelmente nos uacuteltimos anos do principado do
imperador Domiciano (Titus Flavius Domitianus)128 A partir de uma referecircncia interna
(Apocalipse 19) eacute possiacutevel circunscrever seu local de origem como sendo a pequena ilha
do mar Egeu de nome Patmos e seu destino como um conjunto de comunidades do
movimento de Jesus localizadas na proviacutencia proconsular da Aacutesia (Apocalipse 111) Eacutefeso
Esmirna Peacutergamo Tiatira Sardes Filadeacutelfia e Laodiceacuteia
Este Joatildeo de Patmos estaacute longe de Roma capital do Impeacuterio Apesar dos atos e gestos
do Imperador poderem refletir diretamente na vida de Joatildeo e no puacuteblico de sua obra em
termos sociais poliacuteticos econocircmicos ou culturais o contexto especiacutefico do Apocalipse eacute
mesmo a Aacutesia romana Em funccedilatildeo disso neste capiacutetulo nos deteremos em analisar a situaccedilatildeo
desta proviacutencia focando em aspectos que poderiam iluminar de alguma forma o processo
histoacuterico de produccedilatildeo do Apocalipse
21 Patmos o ponto de partida
Segundo o Apocalipse seu autor Joatildeo recebeu a seacuterie de visotildees que deu origem agrave
obra enquanto estava na ilha de Patmos no mar Egeu ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro
na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por
causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo (Apocalipse 19)
Patmos eacute uma ilha pequena Em termos gerais satildeo treze quilocircmetros de extensatildeo por
oito de largura Poreacutem sua costa recortada reduz consideravelmente suas dimensotildees Sua
margem fica a 64 quilocircmetros da foz do rio Maeander o ponto mais proacuteximo da peniacutensula
da Aacutesia Menor129 Esta distacircncia relativa tambeacutem a separava de Mileto seu principal viacutenculo
128 Domiciano foi assassinado no dia 18 de setembro de 96 por uma conspiraccedilatildeo palaciana e substituido no
mesmo dia por um dos seus amici o senador M Cocceius Nerva Cf JONES Brian W The emperor Domitian
Londres Routledge 1992 p 93 129 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield
Academic Press Ltd 1986 p 27
49
social com o continente Das cidades mencionadas no Apocalipse entretanto a mais
proacutexima era Eacutefeso distante da ilha cerca de 100 quilocircmetros130
A associaccedilatildeo de Patmos com Mileto era formal fazendo parte do seu territoacuterio junto
com as ilhas de Lipsos e Leros Nas trecircs ilhas havia algum tipo de povoamento Em Patmos
especificamente seu povo era conhecido como frouroi e seus liacutederes frourarchoi atuando
como parte do governo de Mileto para a populaccedilatildeo local131
Eacute preciso insistir no fato de que Patmos natildeo era uma ilha deserta ou mesmo uma
colocircnia penal O professor David Aune argumenta neste sentido e aponta como evidecircncia
duas inscriccedilotildees encontradas na ilha Uma datada para o seacuteculo II aC faz referecircncia a uma
associaccedilatildeo local de atletas agrave presenccedila de um gymnasium e agrave figura de um gymnasiarcha
eleito sete vezes para a mesma funccedilatildeo Outra de duzentos anos depois jaacute na Era Comum
fala de uma hidrophore sacerdotisa de Artemis e a presenccedila de um templo local bem
estabelecido para esta deusa132
Joatildeo escreve de uma ilha pertencente agrave Mileto a polis mais proacutexima de onde ele ldquose
achavardquo133 Curiosamente entretanto ela estaacute ausente da lista de cidades mencionadas no
Apocalipse Talvez a resposta a esta questatildeo tenha relaccedilatildeo com a falta de uma comunidade
do movimento de Jesus em Mileto O livro Atos dos Apoacutestolos escrito de um lugar
indeterminado entre os anos 80 e 90134 conteacutem uma narrativa que parece indiciar a ausecircncia
de uma comunidade na cidade Nela (Atos 2017-38) Paulo se prepara para fazer uma
viagem a Roma Entre seus preparativos estaacute uma visita agrave igreja de Jerusaleacutem Durante sua
viagem ele se detem em Mileto para conversar natildeo com disciacutepulos da cidade mas com
liacutederes que vieram da igreja de Eacutefeso O autor anocircnimo explicita que ldquode Mileto mandou a
Eacutefeso chamar os presbiacuteteros da igrejardquo (Atos 2017) Natildeo haacute qualquer menccedilatildeo agrave presenccedila de
seguidores do movimento de Jesus pelo menos perto do ano 60 quando os eventos narrados
por Atos se deram135 Neste sentido a omissatildeo do Apocalipse pode indicar que as trecircs
deacutecadas que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de Joatildeo por ela natildeo foram
suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar
130 Conferir os mapas da Aacutesia romana nos anexos 1 e 2 131 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 p 76 132 Idem p 77 133 Ele usa o termo grego ldquoἐγενόμηνrdquo primeira pessoa do aoristo do indicativo meacutedio ldquoachei-merdquo 134 KUMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 238 135 GALBIATTI Enrico Rodolfo ALETTI Aldo Atlas histoacuterico da Biacuteblia e do Antigo Oriente Petroacutepolis
Vozes 1991 p 216
50
22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia
Para Ciacutecero (107-43 aC) a ldquoAacutesia eacute oacutetima e feacutertilrdquo (ldquoAsia vero tam optima est ac
fertilisrdquo) e acrescentou que ldquona riqueza de seus oacuteleos na variedade de seus produtos na
extensatildeo de seus pastos e no nuacutemero de suas exportaccedilotildees ela ultrapassa todas as outras
terrasrdquo (De Imperio cn Pompei ad qurites oratio 14) A Aacutesia Menor era uma das regiotildees
mais ricas do Impeacuterio e dentre as seis proviacutencias da peniacutensula a Aacutesia era a mais rica136
Formalmente ela era uma proviacutencia senatorial governada por um prococircnsul indicado pelo
senado romano137 Entretanto tanto o imperador quanto o senado poderiam promover
regulamentos que afetariam a proviacutencia Justamente por isso nela havia representantes
imperial e senatorial
Durante o governo da dinastia Flaacutevia a gestatildeo da Aacutesia foi marcada pela recuperaccedilatildeo
econocircmica138 A aclamaccedilatildeo de Vespasiano se deu em Alexandria no dia 1 de julho de 69
sendo prontamente reconhecido pelas proviacutencias orientais O novo imperador viajando de
navio parou em vaacuterias cidades da costa da Aacutesia onde oficiais locais fizeram os juramentos
habituais de fidelidade139
Apoacutes sua ascensatildeo ao poder Vespasiano encontrou o tesouro imperial falido pelas
guerras civis que se seguiram agrave morte de Nero Para restaurar as financcedilas puacuteblicas ele adotou
uma poliacutetica econocircmica que reduziu os gastos do governo e procurou aumentar as receitas
do estado reorganizando o recolhimento das taxas puacuteblicas ou criando novas como o fiscus
Alexandrinus e o fiscus Iudaicus Esta segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus para
substituir um imposto recolhido para subsidiar o Templo de Jerusaleacutem recentemente
destruiacutedo pelas legiotildees de Tito filho de Vespasiano140
Uma mudanccedila importante se deu na forma como tais taxas eram cobradas A
cobranccedila saiu das matildeos dos publicani para um agente do governo liderado por um
procurador em Roma e outro em cada proviacutencia Posteriormente Domiciano criou o oficio
136 MAGIE David Roman rule in Asia Minor to the end of third century after Christ Princenton Princenton
University Press 1950 p 34-52 Cf tambeacutem KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no
Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 89 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation
Apocalypse and Empire Oxford Oxford University Press 1990 p 146 137 MAGIE op cit p 569 138 Para uma anaacutelise da reorganizaccedilatildeo efetuada por Vespasiano na proviacutencia mantida e ampliada por Tito e
Domiciano cf LEVICK Barbara Greece and Asia Minor In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient
History Cambridge Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 604-634 p 604 139 MAGIE op cit p 566 140 GRIFFIN Miriam The Flavians In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient History Cambridge
Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 1-83 p 27
51
de curator civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus recursos
Este processo de centralizaccedilatildeo financeira diminuiu a autonomia da proviacutencia contudo
ajudou suas cidades
Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Aacutesia Menor pelo incremento na
construccedilatildeo e manutenccedilatildeo de estradas Estradas importantes foram construiacutedas apoacutes a
ascensatildeo dos Flaacutevios como duas estradas que saiam de Peacutergamo no ano 75 Uma descia na
direccedilatildeo de Esmirna e Eacutefeso margeando a costa Outra seguia pelo interior na direccedilatildeo de
Tiatira e Sardes Estas mesmas estradas foram restauradas por Domiciano Aleacutem das
vantagens para o comeacutercio e a comunicaccedilatildeo o foco nas estradas tinha tambeacutem como objetivo
facilitar o acesso para a regiatildeo oriental da Aacutesia Menor e para as fronteiras com o Impeacuterio
Persa no Eufrates Por elas deveriam circular as legiotildees romanas e o suprimento para as
tropas141 Mas natildeo havia uma legiatildeo especiacutefica estacionada em qualquer proviacutencia da Aacutesia
Menor A defesa da regiatildeo dependia inteiramente das legiotildees fixadas na Siacuteria
O governo de Tito deu sequecircncia agraves poliacuteticas de seu pai ateacute que em setembro de 81
apoacutes sua morte ele foi sucedido por Domiciano Haacute um juiacutezo tradicional negativo a respeito
deste uacuteltimo imperador da dinastia Flaacutevia como ilustrado pela opiniatildeo de Euseacutebio de
Cesareacuteia (263-339)
Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos
dando morte sem julgamento razoaacutevel a natildeo pequeno nuacutemero de
patriacutecios e de homens ilustres e castigando com desterro fora das
fronteiras e confisco de bens a outras inuacutemeras personalidades sem
causa alguma Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero
na animosidade e guerra contra Deus Efetivamente ele foi o segundo
a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutes apesar de que seu pai
Vespasiano nada de mal planejou contra noacutes (Histoacuteria Eclesiaacutestica
III XVII 1)
Este juiacutezo se reflete tambeacutem na historiografia David Magie descreve inicialmente o
governo de Domiciano como inescrupuloso e impiedoso142 mas pouco depois reconhece
que
nas proviacutencias existe pouca evidecircncia de crueldade por parte de
Domiciano ou mesmo de pretensotildees de grandeza exageradas No
oriente mesmo o tiacutetulo de ldquodeusrdquo que incomodava os ouvidos
romanos era tido como normal Ainda o tiacutetulo completo ldquoDeus
invisiacutevel fundador da cidaderdquo inscrito no peacute de uma estatua do
imperador em Priene natildeo era mais extravagante do que outros dados
141 MAGIE op cit p 571 142 Idem p 577
52
a muitos de seus antecessores e a outorga do epiacuteteto de ldquofundadorrdquo
parece indicar que ele realmente beneficiou a cidade143
A relaccedilatildeo de Domiciano com a Aacutesia assim natildeo foi diferente da forma como seu
irmatildeo Tito e seu pai Vespasiano trataram a proviacutencia A proviacutencia se beneficiou com a
gestatildeo dos Flaacutevios que terminou com a morte de Domiciano em setembro de 96 jaacute que o
imperador natildeo deixou herdeiro
Um testemunho da prosperidade do periacuteodo pode ser encontrado em um dos livros
dos Oraacuteculos Sibilinos surgido perto do ano 80 O oraacuteculo escrito na perspectiva do
Judaiacutesmo da diaacutespora na Aacutesia atacou o Impeacuterio Romano mas natildeo deixou de evidenciar a
riqueza da proviacutencia segundo seu autor espoliada em favor de Roma
Grande riqueza viraacute para Aacutesia riqueza que uma vez Roma tendo
tomado-a por rapina armazenou em uma casa de insuperaacuteveis
riquezas mas sem demora ela faz uma dupla restituiccedilatildeo para a Aacutesia
entatildeo haveraacute um excesso de conflitos (Oraacuteculo Sibilino IV I 42)144
Durante as deacutecadas da dinastia Flaacutevia a situaccedilatildeo econocircmica da Aacutesia se refletiu no
volume de novas construccedilotildees natildeo apenas por meio de recursos puacuteblicos mas tambeacutem atraveacutes
de subsiacutedios de pessoas ricas Estas liturgias incluiacuteam recursos para as edificaccedilotildees para o
reparo de construccedilotildees para a manutenccedilatildeo de centros sociais e para a realizaccedilatildeo de
festivais145
A cidade mais beneficiada no periacuteodo foi possivelmente a sede da proviacutencia Eacutefeso
Nela residia o proconsul da cidade O procurador ou vice-proconsul com alguma
probabilidade tambeacutem morava nela A partir da deacutecada de 90 mesmo sem uma precisatildeo
maior trecircs pessoas se sucederam no governo da Aacutesia ateacute a morte de Domiciano Sextus
Vettulenus Civica Cerialis C Minicius e L Junius Caesennius Paetus146
23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia
Os mais antigos membros das igrejas da Aacutesia eram oriundos de comunidades judaicas
da Aacutesia Menor Das centenas de cidades da proviacutencia asiaacutetica a presenccedila do movimento de
143 Idem p 577 144 Citado a partir de MAGIE op cit p 582 145 Idem p 583 146 Idem p 1582-1583
53
Jesus era atestada onde existia tambeacutem uma comunidade judaica147 Eacute plausiacutevel mesmo
tratar o movimento de Jesus na Aacutesia como parte do Judaiacutesmo da diaacutespora
Frequentadores de sinagogas ou de igrejas viviam na Aacutesia Menor no final do
primeiro seacuteculo e iniacutecio do segundo em grandes aacutereas urbanas e o que puder ser dito sobre
o primeiro grupo vale tambeacutem para o segundo O movimento de Jesus estaacute em processo de
ruptura e construccedilatildeo de identidade proacutepria todavia esse movimento ainda natildeo se completou
na regiatildeo como o proacuteprio Apocalipse pode evidenciar Apesar de membros da sociedade
romana especialmente seus magistrados jaacute perceberem alguma diferenccedila entre um e outro
na vida cotidiana eles permaneciam histoacuterica social e teologicamente envolvidos Esse
parece ser o motivo que levou Joatildeo de Patmos a se envolver em disputas com membros das
sinagogas locais (Apocalipse 29 39)148
A crise com as sinagogas de Esmirna (Apocalipse 29) e Filadeacutelfia (Apocalipse 39)
pode ter relaccedilatildeo com a forma como as comunidades judaicas se adaptaram ao contexto
urbano da proviacutencia Judeus habitavam a regiatildeo desde que Antioco III ordenou a realocaccedilatildeo
de duas mil famiacutelias judaicas da Babilocircnia para a Frigia como uma colocircnia militar a fim de
minimizar revoltas na regiatildeo149 Desde entatildeo judeus estavam amplamente presentes na parte
ocidental da Aacutesia Menor vivendo suas praacuteticas religiosas mas com relativa integraccedilatildeo na
vida ciacutevica das cidades150
Mesmo depois da guerra judaico-romana (66-70) os judeus da Aacutesia continuaram a
compartilhar da prosperidade da proviacutencia sem ameaccedila de puniccedilotildees por algum tipo de
conexatildeo com a guerra na Judeacuteia151 Com exceccedilatildeo do Fiscus Iudaicus nenhuma outra
consequecircncia poliacutetica ou social foi imposta aos judeus da diaacutespora pelo Impeacuterio Romano
apoacutes a guerra Segundo Josefo ldquoo mesmo soberano ordenou tambeacutem que os judeus em
qualquer lugar onde morassem deveriam pagar cada qual todos os anos duas dracmas ao
Capitoacutelio como antes pagavam ao templo de Jerusaleacutemrdquo (Guerra dos Judeus 27) A
identificaccedilatildeo dos judeus com a sociedade romana tambeacutem eacute testemunhada por este
sobrevivente da guerra Em Antiguidades Judaicas ele argumenta que judeus em Sardes
eram sardianos em Eacutefeso eram efeacutesios em Antioquia eram antioquenos (Antiguidades
Judaicas 239)
147 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 133 148 Idem p 145 149 TREBILCO Paul Jewish communities in Asia Minor Cambridge Cambridge Univesity Press 1991 p 5 150 Idem p 173 151 Idem p 32
54
Judeus eram membros ativos de associaccedilotildees comerciais e sindicatos Tambeacutem eram
agricultores vinhateiros marinheiros trabalhadores com metal e perfumaria Estavam
envolvidos ainda em manufaturas tecircxtil como tintureiros vendedores e fabricantes de
roupa152
Em cada uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse judeus viviam suas vidas
segundo as tradiccedilotildees judaicas poreacutem sem desprezar a participaccedilatildeo em atividades urbanas
locais Foi a partir destas comunidades judaicas engajadas na vida cotidiana do Impeacuterio que
o movimento de Jesus da Aacutesia formou suas igrejas
24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia
A proviacutencia da Aacutesia se situava na costa ocidental da peniacutensula da Aacutesia Menor O
autor do Apocalipse Joatildeo aponta a ilha de Patmos pertencente agrave cidade de Mileto como o
local de origem do livro Todas as cidades mencionadas explicitamente na obra satildeo cidades
de grande porte dentro da proviacutencia
As principais evidecircncias da presenccedila de cristatildeos nestas cidades vecircm de fontes do
proacuteprio movimento (cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos cartas de Pedro Apocalipse e
Inaacutecio de Antioquia) A mais antiga referecircncia a igrejas na regiatildeo vem de cartas que Paulo
de Tarso escreveu para comunidades de disciacutepulos de Corinto na deacutecada de 50 Ele estava
em Eacutefeso enquanto escrevia estas cartas (1Coriacutentios e 2Coriacutentios) O autor do livro Atos dos
Apoacutestolos tambeacutem falou do tempo em que Paulo ficou em Eacutefeso Segundo ele Paulo ficou
na cidade por trecircs anos (Atos 2031)
Tanto as cartas a Coriacutentios quanto Atos dos Apoacutestolos evidenciam que na capital da
proviacutencia existiam outros liacutederes do movimento Paulo natildeo era o uacutenico Outros como
Aacutequila Priscila e Apolo tambeacutem satildeo mencionados Estes liacutederes eram artesatildeos
independentes oriundos de comunidades judaicas da Aacutesia Menor Isso se nota por meio de
sua mobilidade sua ocupaccedilatildeo e a hospedagem de igrejas em suas casas Pessoas com a
mobilidade que eles possuiacuteam deveriam possuir recursos Para acomodar pessoas suas casas
tambeacutem deveriam ter razoaacutevel espaccedilo Natildeo eram pessoas de classes inferiores da sociedade
romana
152 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 144
55
Jaacute nos tempos de Paulo se manifestou a questatildeo da interaccedilatildeo das comunidades com
a vida urbana da cidade especialmente na questatildeo da alimentaccedilatildeo em atividades religiosas
ou ciacutevicas Em cidades gregas e romanas as pessoas tinham vaacuterias oportunidades para
participar de refeiccedilotildees cuacutelticas Isso poderia acontecer em ocasiotildees puacuteblicas (funerais
celebraccedilotildees festas ciacutevicas etc) ou privadas (clubes organizaccedilotildees comerciais refeiccedilotildees
privadas etc) Tanto em uma quanto em outra situaccedilatildeo as refeiccedilotildees expressavam conexatildeo
social em torno de causas comuns153
Fazer refeiccedilotildees puacuteblicas e comer carne oriunda de sacrifiacutecios religiosos satildeo
elementos diretamente ligados agrave questatildeo da participaccedilatildeo nas instituiccedilotildees sociais da cidade e
do Impeacuterio Este tipo de pressatildeo poderia ser diferente para status sociais distintos Segundo
Gerd Theissen cristatildeos ricos teriam mais oportunidades de se envolver em refeiccedilotildees cuacutelticas
de caraacuteter puacuteblico do que cristatildeos pobres154
Quando Paulo tratou deste assunto em 1Coriacutentios 8-10 ele relacionou a participaccedilatildeo
nas refeiccedilotildees com a situaccedilatildeo dos fracos e fortes dentro da comunidade Seu argumento
caminha na direccedilatildeo de que somente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto
os ldquofracosrdquo e os ldquofortesrdquo (ἀσθενεiς kai ἰσχυροί) participassem juntos como em festivais
puacuteblicos eacute que os disciacutepulos deveriam se abster (1Coriacutentios 87-13) Nas instacircncias privadas
poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela origem da comida
(1Corintios 1027) As igrejas da Aacutesia provavelmente nasceram a partir de mensagens e
perspectivas semelhantes agraves de Paulo de Tarso
O autor do Apocalipse quatro deacutecadas depois de missionaacuterios como Paulo Aacutequila
Priscila e Apolo terem fundado essas comunidades escreve uma obra na qual defende
posiccedilotildees divergentes Os adversaacuterios de Joatildeo descritos em sua obra como os nicolaiacutetas
baalamitas ou Jesabel satildeo atacados por promoveram algum tipo de interaccedilatildeo com a
sociedade interaccedilatildeo essa que parece ter relaccedilatildeo com a mesma questatildeo respondida por Paulo
na sua carta aos Coriacutentios a participaccedilatildeo em refeiccedilotildees ou atividades sociais que envolviam
a ingestatildeo de carne originada em sacrifiacutecio religioso Aqueles que Joatildeo enxerga como
adversaacuterios satildeo provavelmente membros do movimento de Jesus que possuem uma
perspectiva semelhante agrave que Paulo deu aos crentes de Corinto155 Thompson analisa a
153 Idem p 123 154 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva Satildeo Leopoldo Sinodal 1983 p 146 155 Assim resumiu Pagels ldquomuitas praacuteticas que Joatildeo atacava eram as mesmas que Paulo anteriormente
recomendavardquo Cf PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation
New York Penguin Books 2012 p 54
56
questatildeo e sugere que como as respostas que os adversaacuterios de Joatildeo datildeo satildeo semelhantes agrave
do antigo missionaacuterio de Tarso possivelmente eles possuiacuteam posiccedilotildees sociais semelhantes
ou seja estavam envolvidos em atividades comerciais possuiacuteam responsabilidades ciacutevicas
e pertenciam a um estrato mais rico da lideranccedila das igrejas da Aacutesia156 Este mesmo autor
defende que as igrejas da Aacutesia deveriam ter em linhas gerais uma mesma composiccedilatildeo
social Elas possuiacuteam em seus quadros pessoas livres e escravas homens e mulheres ricos
e pobres e deveriam se parecer com muitas associaccedilotildees religiosas ou sociais que existiam
na Aacutesia157 Estas associaccedilotildees synodos proliferavam consideravelmente desde a instauraccedilatildeo
do Impeacuterio e se manifestavam no Ocidente e no Oriente Segundo Meeks elas surgiam a
partir da decisatildeo de um grupo de doze a quarenta pessoas de se encontrarem em algum lugar
para reuniotildees158
Nestas reuniotildees era comum haver certa semelhanccedila de status social entre seus
membros Entretanto o proacuteprio fenocircmeno ldquostatusrdquo eacute complexo e possui vaacuterias dimensotildees
No status social de uma pessoa ou famiacutelia influiam elementos como poder prestiacutegio da
ocupaccedilatildeo renda ou riqueza educaccedilatildeo e cultura religiatildeo e pureza ritual famiacutelia ou grupo
eacutetnico status da comunidade local em que se estava envolvido Cada um destes elementos
poderia ser conjugado de forma diferente em uma dada circunstacircncia histoacuterica Na praacutetica
o status de um cidadatildeo romano era o resultado de como estas variaacuteveis eram consideradas
na sociedade local Mesmo que existisse certa perspectiva geral um sacerdote de Eacutefeso
poderia ter mais status do que um comerciante rico da cidade Em outra cidade o
conhecimento poderia ser mais importante do que a etnia em outra a pureza ritual poderia
valer mais do que a descendecircncia familiar A riqueza poderia dar mais status do que o
conhecimento mas em algumas circunstacircncias pertencer a uma famiacutelia nobre era mais
importante do que ter recursos financeiros159
Atentando para esses elementos o que as fontes geradas pelo movimento de Jesus
poderiam apontar sobre o status social dos seus membros O missionaacuterio Paulo de Tarso na
mesma carta que escreveu para a comunidade de Corinto informa que ldquonatildeo muitos da
comunidade eram saacutebios segundo o mundo nem poderosos nem de nobre nascimentordquo
(1Coriacutentios 126) Dizer que natildeo havia muitos significa afirmar que havia alguns Entre os
156 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 129 157 Idem p 127 158 MEEKS Wayne A Os primeiros cristatildeos urbanos o mundo social do Apoacutestolo Paulo Satildeo Paulo Paulinas
1992 p 54 159 Conferir esta discussatildeo em MEEKS op cit p 91
57
membros do movimento na cidade havia pessoas cultas (ldquordquo) ricas
(ldquordquo) ou bem-nascidas (ldquordquo) Pelo argumento de Paulo estes formavam uma
minoria dentro da comunidade apesar de se constituiacuterem numa minoria dominante160
Outro testemunho sobre as posiccedilotildees sociais dentro das comunidades da Aacutesia pode vir
de uma carta que Pliacutenio o Jovem escreveu em 112 enquanto atuava como governador da
proviacutencia da Bitiacutenia e Ponto tambeacutem na Aacutesia Menor O quadro descrito por Pliacutenio parece
ser bem parecido com a composiccedilatildeo da igreja de Eacutefeso ou das demais cidades mencionadas
no Apocalipse Pliacutenio resolveu tratar deste assunto com o Imperador Trajano porque
entendeu que a questatildeo era digna de consideraccedilatildeo imperial em funccedilatildeo do nuacutemero de pessoas
que se engajavam no movimento Estes ldquochristianirdquo eram de todas as idades (ldquoominis
aetatisrdquo) todas as ordens (ldquoomnis ordinisrdquo) tanto homem quanto mulher (ldquoutrisque sexusrdquo)
(Epiacutestolas 10968)
Uma carta que Paulo escreveu a Filemon jaacute na deacutecada de 60 no periacuteodo em que
esteve preso em Roma indica outro aspecto significativo da composiccedilatildeo destas
comunidades Filemon era proprietaacuterio de escravo Um deles Oneacutesimo fugiu encontrou-se
com Paulo em Roma converteu-se ao movimento e foi orientado a voltar para seu antigo
dominus este tambeacutem um convertido morador da Aacutesia Uma igreja se reunia na casa deste
senhor de escravos (Filemon 2) Natildeo eacute possiacutevel saber quantos escravos Filemon possuiacutea
mas ele recebe a orientaccedilatildeo de Paulo para que aceitasse seu antigo escravo de forma
amistosa natildeo mais como escravo (ldquow`j doulonrdquo) e sim como algueacutem mais do que escravo
(ldquou`per doulonrdquo) O escravo agora deveria ser tratado como irmatildeo (ldquow`j avdelfonrdquo) A taacutebua
domeacutestica registrada na carta aos Efeacutesios (Efeacutesios 65) documento deuteropaulino anocircnimo
escrito em algum momento entre os anos 80-100 possivelmente da Aacutesia161 especifica que
os escravos deveriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor (ldquometa fobou kai
tromourdquo)
Isso indica que as comunidades de Jesus tinham a presenccedila de pessoas livres e
escravas senhores e servos mas as orientaccedilotildees de seus liacutederes tendiam a tomar o lado dos
senhores em vez dos escravos
Outros elementos tambeacutem podem iluminar o quadro social destas comunidades da
Aacutesia162 Primeiramente o fato de alguns de seus membros escreverem livros e cartas para
160 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva op cit p 146-147 161 KUMMEL op cit p 480 162 Sobre estas sugestotildees cf THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 128-129
58
serem lidas no interior do movimento indica uma presenccedila significativa de pessoas que
sabiam escrever e ler numa sociedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas
mas parcamente encontradas Um segundo aspecto pode ser localizado naqueles que
hospedavam a comunidade em sua casa os quais deveriam ter certa ascendecircncia sobre os
membros do movimento Possivelmente eles agiam como ldquopatronosrdquo da igreja da mesma
forma como outros patronos da cidade suportavam clubes e associaccedilotildees comerciais Por fim
cristatildeos viajavam muito num periacuteodo em que viagens eram muito custosas Meeks sugeriu
a partir dos itineraacuterios apresentados nos Atos dos Apoacutestolos que o missionaacuterio Paulo de
Tarso pode ter viajado aproximadamente dezesseis mil quilocircmetros durante sua carreira
religiosa163 Estas viagens eram bancadas geralmente por atividades profissionais proacuteprias
mas em algumas circunstacircncias como no caso de Joatildeo de Patmos algum tipo de patrociacutenio
poderia ser buscado entre as comunidades visitadas
Com comunidades assim constituiacutedas de que maneira seus membros se
relacionavam com a sociedade Como jaacute indicamos no capiacutetulo anterior os membros do
movimento de Jesus da Aacutesia estavam inseridos na vida cotidiana da proviacutencia e natildeo
buscavam ruptura com seus vizinhos Apesar da dificuldade em se situar geograficamente a
origem ou o destino escrevendo em meados do segundo seacuteculo o autor da carta a Diogneto
resumiu
Os cristatildeos de fato natildeo se distinguem dos outros homens nem por sua
terra nem por liacutenguas ou costumes Com efeito natildeo moram em cidades
proacuteprias nem falam liacutengua estranha nem tecircm algum modo especial de
viver Sua doutrina natildeo foi inventada por eles graccedilas ao talento e
especulaccedilatildeo de homens curiosos nem professam como outros algum
ensinamento humano Pelo contraacuterio vivendo em cidades gregas e
baacuterbaras conforme a sorte de cada um e adaptando-se aos costumes do
lugar quanto agrave roupa ao alimento e ao resto testemunham um modo de
vida social admiraacutevel e sem duacutevida paradoxal Vivem na sua paacutetria mas
como forasteiros participam de tudo como cristatildeos e suportam tudo como
estrangeiros Toda paacutetria estrangeira eacute paacutetria deles e cada paacutetria eacute
estrangeira (Carta a Diogneto 51-5)
Tertuliano no final do segundo seacuteculo argumentou de modo semelhante para a
sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia Segundo ele os cristatildeos tinham a mesma
maneira de vida as mesmas roupas e os mesmos costumes eles frequentavam juntos o
mercado o accedilougue os banhos puacuteblicos as lojas as faacutebricas as tavernas as feiras e outros
163 MEEKS op cit p 32
59
negoacutecios Cristatildeos eram marinheiros soldados agricultores e se envolviam no comeacutercio
com natildeo cristatildeos Defendendo sua comunidade ele argumentou que eles proviam
habilidades e serviccedilos para o benefiacutecio de toda a sociedade romana (Apologia 42)
Tanto a Carta a Diogneto quanto Apologia natildeo dizem respeito especiacutefico agrave Aacutesia do
final do primeiro seacuteculo mas pelo menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a
interaccedilatildeo social no movimento de Jesus A perspectiva do missionaacuterio Paulo na deacutecada de
50 e 60 parece estar replicada em Diogneto e Apologia no segundo seacuteculo Isso significa
dizer que os seguidores de Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas
situaccedilotildees que os demais membros da sociedade romana Eles tinham contatos com pessoas
de outros viacutenculos religiosos na economia sociedade famiacutelia e poliacutetica Os seguidores de
Jesus tocavam suas vidas de forma paciacutefica com seus vizinhos tentando viver sem
distuacuterbios ou mesmo sem chamar muita atenccedilatildeo
25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo
No mesmo periacuteodo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse mas longe de Patmos cerca
de 1600 quilocircmetros um dos liacutederes da igreja de Roma o presbiacutetero Clemente escreveu
uma carta para a igreja de Corinto Clemente romano alcanccedilou grande prestiacutegio em vaacuterias
comunidades cristatildes posteriormente a ponto de sua carta aparecer em diversas listas
canocircnicas O que levou Clemente a se manifestar aparentemente foi algum tipo de tumulto
interno do movimento de Jesus em Corinto Alguns liacutederes da igreja teriam sido destituiacutedos
sem motivo aparente o que gerou o protesto de Clemente Ele escreveu ldquoCariacutessimos eacute
vergonhoso muito vergonhoso e indigno de conduta cristatilde ouvir dizer que a firme e antiga
Igreja de Corinto por causa de uma ou duas pessoas estaacute em revolta contra os seus
presbiacuteterosrdquo (1Clemente 476)
Na saudaccedilatildeo inicial ele descreve a igreja da capital como ldquoestrangeira em Romardquo A
expressatildeo poderia ser indiacutecio de algum tipo de desconforto da comunidade em relaccedilatildeo agrave
sociedade romana Outra passagem de sua carta talvez aponte para a mesma direccedilatildeo
ldquoIrmatildeos pelas desgraccedilas e adversidades imprevistas que nos aconteceram uma apoacutes outra
acreditamos ter demorado muito para dar atenccedilatildeo agraves coisas que entre voacutes se discutemrdquo
(1Clemente 11) O autor faz referecircncia a algum tipo de crise que impediu que ele se
60
manifestasse anteriormente sobre a situaccedilatildeo de Corinto mas ele evita descrever a natureza
desta crise em qualquer outro lugar da obra
Ao sugerir o fim para os conflitos internos da comunidade ele toma o exeacutercito
romano como exemplo de organizaccedilatildeo e ordem
Irmatildeos militemos com toda nossa prontidatildeo sob as ordens irrepreensiacuteveis
dele Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos
governantes com que disciplina docilidade e submissatildeo eles executam as
funccedilotildees que lhes satildeo designadas (1Clemente 371-2)
Ao demonstrar certa admiraccedilatildeo pela estrutura militar do Impeacuterio ou quando
denomina os oficiais romanos de ldquonossos governantesrdquo a carta de Clemente parece
evidenciar que os membros da comunidade de Jesus estabelecida na capital do Impeacuterio natildeo
possuem uma crise aberta com a sociedade Em funccedilatildeo de suas analogias o mesmo poderia
ser dito a respeito da igreja de Corinto Essa parece ser tambeacutem a postura que adotou o autor
anocircnimo de 1Pedro possivelmente entre os anos 90-95164 escrevendo talvez de Roma
ldquoSujeitai-vos a toda instituiccedilatildeo humana por causa do Senhor quer seja ao rei como
soberano quer agraves autoridades como enviadas por ele tanto para castigo dos malfeitores
como para louvor dos que praticam o bemrdquo (1Pedro 213-14)
Alguns argumentos de Clemente (1Clemente 552-3) indicam que a igreja jaacute passou
por dificuldades mas ele minimiza a crise inserindo-a numa exortaccedilatildeo em benefiacutecio do bem
comum O presbiacutetero Clemente natildeo atribui agrave sociedade romana a responsabilidade pelas
dificuldades que a comunidade enfrentou Isso sugere a existecircncia de uma comunidade
estabelecida na capital do Impeacuterio engajada em evitar problemas com a sociedade
experiecircncia essa que parecia estar replicada em comunidades da proviacutencia da Aacutesia
Mas se os membros do movimento de Jesus de uma forma geral tentavam manter
laccedilos regulares com a sociedade romana o inverso tambeacutem poderia ser afirmado Da parte
dos governantes geralmente havia certa toleracircncia para com costumes e mesmo divindades
locais desde que natildeo se opusessem aos interesses romanos Esta atitude de toleracircncia relativa
deve ter favorecido o desenvolvimento das igrejas Muitas comunidades existiram sem
serem notadas por quase um seacuteculo165 Accedilotildees oficiais da parte dos prococircnsules procuradores
ou outros magistrados locais como as noticiadas por Pliacutenio o Jovem ao imperador Trajano
no iniacutecio do segundo seacuteculo eram raras
164 KUumlMMEL op cit p 557-558 165 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 p 124
61
Tensotildees se manifestavam de forma intermitente como perseguiccedilotildees eventuais mas
normalmente natildeo eram oficiais Segundo Thompson para pessoas de fora da comunidade o
movimento de Jesus era uma religiatildeo suspeita por quatro motivos era nova estrangeira
secreta e exclusiva166 Provavelmente foi em consequecircncia de uma suspeiccedilatildeo desta natureza
que cristatildeos foram acusados diante do governador da Bitiacutenia algum tempo depois do
Apocalipse
As cartas de Pliacutenio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusaccedilotildees
predominantemente vagas Natildeo havia um crime especiacutefico para o processo contra os cristatildeos
O governador perguntou ldquoHaacute de punir-se o simples fato de algueacutem ser cristatildeo mesmo que
inocente de qualquer crime ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nomerdquo
(Epistola 10962) Ainda assim na duacutevida sobre o que fazer Pliacutenio inaugurou um teste
Os que negarem ser cristatildeos considerei-os merecedores de absolviccedilatildeo De
fato sob minha pressatildeo devotaram-se aos deuses e reverenciaram com
incenso e libaccedilotildees vossa imagem colocada para este propoacutesito ao lado das
estaacutetuas dos deuses e pormenor particular amaldiccediloaram a Cristo coisa
que um genuiacuteno cristatildeo jamais aceita fazer (Epiacutestola 10965)
A proviacutencia governada por Pliacutenio era vizinha da Aacutesia e fazia parte do complexo
cultural da mesma peniacutensula Ainda que o problema principal natildeo fosse o culto imperial o
gesto do governador colocou o movimento em colisatildeo com atividades religiosas locais As
epiacutestolas do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos entendiam ser crime
renegar ritos sagrados locais especialmente o culto imperial
26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo
Nos termos de Leonard Thompson ldquonas proviacutencias rituais imagens templos altares
associados com o culto imperial contribuiacuteam de forma importante para a compreensatildeo das
pessoas acerca da sua relaccedilatildeo com o imperadorrdquo167 Isso fazia da instituiccedilatildeo do culto imperial
uma importante representaccedilatildeo do imperador e do Impeacuterio na Aacutesia Havia entretanto
reciprocidade no seu estabelecimento Era uma honra para a cidade ter um templo ou altar
do culto imperial ao mesmo tempo que era importante para o imperador Impeacuterio e senado
aceitavam a existecircncia do culto imperial e promoviam seu estabelecimento e manutenccedilatildeo
166 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 132 167 Idem p 158
62
como igualmente o faziam as proviacutencias Isso significa que a rede de relaccedilotildees alimentadas
pelo culto imperial entre Roma e Aacutesia era uma rede de poder um instrumento poliacutetico de
vaacuterios niacuteveis168
Simon Price analisou a presenccedila do culto na Aacutesia insistindo na dificuldade de
circunscrever o papel do culto imperial apenas agraves esferas poliacuteticas Ele tinha igualmente um
papel religioso Segundo ele rituais de sacrifiacutecio e devoccedilatildeo puacuteblica ou privada eram
simultaneamente expressotildees religiosas e poliacuteticas169
O culto imperial natildeo foi criado pelo imperador do periacuteodo do Apocalipse Otaacutevio
Augusto recebeu honras das cidades da Aacutesia semelhantes agraves oferecidas aos deuses locais
Sacerdotes do primeiro imperador poderiam ser encontrados em mais de trinta cidades da
Aacutesia Menor e mais parentes seus receberam culto do que qualquer outro imperador depois
dele Durante o governo de Claacuteudio surgiram ao lado do sacerdote exclusivo para o
imperador vivo outros sacerdotes com a responsabilidade de promover culto tambeacutem para
os imperadores mortos Em funccedilatildeo da antiguidade da praacutetica e sua permanecircncia no decorrer
dos governos imperiais eacute possiacutevel afirmar que Domiciano alvo de uma forte criacutetica no
Apocalipse (Apocalipse 13) natildeo foi nem mais nem menos insistente com relaccedilatildeo agraves suas
prerrogativas divinas que qualquer imperador antes ou depois dele170
Todas as cidades do Apocalipse tinham manifestaccedilatildeo do culto imperial em algum
niacutevel cinco delas tinham altares imperiais (com exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia) seis
tinham templos imperiais (com exceccedilatildeo de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com
exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia)171
Aleacutem das praacuteticas e sacrifiacutecios religiosos nos templos e altares dedicados ao
Imperador sacerdotes imperiais promoviam festivais puacuteblicos que eram importantes
expressotildees religiosas e ciacutevicas na Aacutesia Estes festivais poderiam acontecer em diversas datas
mas estavam normalmente vinculados ao aniversaacuterio do Imperador Durante as celebraccedilotildees
os templos e santuaacuterios eram enfeitados e animais eram sacrificados em diversos altares
espalhados pela cidade Em cada local a participaccedilatildeo puacuteblica era aberta e esperada tendo
como cliacutemax uma refeiccedilatildeo ritual172
168 Idem p 159 169 PRICE Simon R F Rituals and Power The Roman imperial cult in Asia Minor Cambridge Cambridge
University Press 1984 p 235 170 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 159 171 PRICE op cit p 55-58 172 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation op cit p 163
63
Dentro dos templos imperiais como nos templos dedicados a outros cultos havia
estaacutetuas do imperador vivo e de outros imperadores alguma iconografia imperial e mesas
para os diversos sacrifiacutecios Estaacutetuas do imperador tambeacutem eram encontradas ao longo das
cidades ou em centros da vida puacuteblica urbana Nem todas as estaacutetuas do imperador
encontradas numa polis eram objeto de culto mas aquelas que estavam em um lugar sagrado
ou quando usadas em um tempo sagrado (um festival religioso por exemplo) tinham um
significado ritual Estas estaacutetuas e imagens tinham sentido religioso e poliacutetico e
funcionavam como um lembrete permanente uma representaccedilatildeo do poder do Imperador173
A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Aacutesia fez com que a
questatildeo do relacionamento com a sociedade se tornasse significativo para o movimento de
Jesus na proviacutencia Era difiacutecil se relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma
de suas celebraccedilotildees puacuteblicas Para alguns liacutederes das igrejas da regiatildeo natildeo havia problema
no envolvimento em atividades proacuteprias da cidade e em comer da comida oriunda dos
sacrifiacutecios religiosos Se participassem destas celebraccedilotildees diminuiriam a tensatildeo com a
sociedade e continuariam envolvidos nos diversos negoacutecios da vida urbana Alguns
entretanto como Joatildeo de Patmos possuiacuteam uma perspectiva distinta Possivelmente ele
representava uma minoria dentro das igrejas da Aacutesia que instava fortemente as comunidades
a exacerbar a tensatildeo com a sociedade e a se isolar das estruturas sociais da peniacutensula174
27 Resumo
A ilha de Patmos de onde partiu o Apocalipse e a proviacutencia romana da Aacutesia seu
destino partilhavam de uma mesma conjuntura social Era uma das regiotildees mais ricas do
Impeacuterio Romano com a presenccedila de comunidades judaicas espalhadas por vaacuterias de suas
cidades Membros destas comunidades que criam em Jesus como o Messias estavam na base
das mais antigas igrejas da regiatildeo Tanto as sinagogas quanto a maioria das igrejas
buscavam desenvolver seus ritos e crenccedilas sem conflito com a sociedade romana local
mesmo diante de tensotildees que poderiam se manifestar em relaccedilatildeo ao culto imperial Alguns
liacutederes buscavam manter orientaccedilotildees que poderiam proceder do apoacutestolo Paulo e assim
permitir a participaccedilatildeo dos membros em atividades ciacutevicas e religiosas locais Essas
173 Idem p 163 174 Idem p 167
64
comunidades natildeo desejavam que suas praacuteticas religiosas inviabilizassem seus
relacionamentos com a sociedade romana Joatildeo de Patmos entretanto manifesta em sua
obra uma postura oposta a liacutederes como seu contemporacircneo Clemente Romano Na
perspectiva do autor do Apocalipse para ser fiel ao seu fundador o movimento de Jesus
precisava rejeitar o Impeacuterio
III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE
JOAtildeO
Joatildeo de Patmos judeu emigrante da Palestina apoacutes a guerra contra os romanos por
meio de narrativas imagens e siacutembolos se apropriou de determinadas tradiccedilotildees religiosas
judaicas e construiu um apocalipse que pretendia explicar a conjuntura histoacuterica que o
movimento de Jesus experimentou e experimentava no interior da proviacutencia romana da Aacutesia
A obra culmina na descriccedilatildeo do juiacutezo final e da nova criaccedilatildeo divina Antes disso entretanto
o autor apresenta um periacuteodo de governo messiacircnico iminente terrenal intra-histoacuterico por
mil anos (Apocalipse 201-10) Apesar de curta a narrativa do milecircnio acabaraacute no centro dos
debates e das interpretaccedilotildees subsequentes do livro joanino175 Queremos neste capiacutetulo
analisar a produccedilatildeo desta periacutecope no contexto da obra joanina a partir de suas apropriaccedilotildees
tradicionais e literaacuterias na direccedilatildeo de novas representaccedilotildees individuais e coletivas
histoacutericas e milenaristas Procuramos refletir tambeacutem sobre a forma como estas
representaccedilotildees poderiam interferir no mundo social de Joatildeo e suas comunidades176
31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse
Adela Y Collins sugeriu que a obra joanina apesar de apresentar certos sinais que
indicariam uma estrutura clara (sete igrejas sete selos sete trombetas e sete taccedilas por
exemplo) natildeo eacute tatildeo transparente assim deixando a audiecircncia com certa expectativa
frustrada Isso poderia explicar os longos debates a respeito da estrutura da obra de Joatildeo177
Entre as alternativas David L Barr preferiu construir um esboccedilo do livro acompanhando o
desenvolvimento de suas narrativas Por isso ele dividiu o Apocalipse joanino em trecircs seccedilotildees
principais emolduradas por uma estrutura epistolar (os versiacuteculos 11-3 formariam o
prefaacutecio enquanto 226-21 a conclusatildeo) Ele as chamou de Seccedilatildeo das Cartas (14-322)
Seccedilatildeo do Culto Celestial (41-1118) e Seccedilatildeo da Guerra Escatoloacutegica (1119-225)178 Nossa
175 Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene
Wipf and Stock Publishers 2001 p 21-87 KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation
Oxford Blackwell Publishing 2004 p 200-219 176 Pensamos aqui nos papeacuteis sociais instituiccedilotildees sociais e relacionamentos sociais 177 Conferir uma histoacuteria da estruturaccedilatildeo do Apocalipse em COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in
the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 13-44 178 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa
Polebridge Press 1998
66
proposta de esboccedilo para o Apocalipse parte das sugestotildees de Barr em funccedilatildeo da forma como
ele compreendeu o desenvolvimento narrativo do livro joanino e o enquadramento
particular de cada episoacutedio literaacuterio no interior da obra como um todo Por meio deste esboccedilo
eacute possiacutevel entatildeo verificar o lugar do milecircnio dentro do Apocalipse Em termos literaacuterios ele
faz parte da narrativa da guerra escatoloacutegica ao descrever a vitoacuteria do Jesus exaltado sobre
Satanaacutes e as bestas num evento que termina com o juiacutezo final e a Nova Jerusaleacutem
- Introduccedilatildeo epistolar (11-3)
- Primeira seccedilatildeo ndash O Filho do Homem e as sete igrejas da Aacutesia (14-322)
Carta agrave Igreja em Eacutefeso (21-7)
Carta agrave Igreja em Esmirna (28-11)
Carta agrave Igreja em Peacutergamo (212-17)
Carta agrave Igreja em Tiatira (218-29)
Carta agrave Igreja em Sardes (31-6)
Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia (37-13)
Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia (314-22)
- Segunda seccedilatildeo ndash O rolo selado com sete selos (41-1119)
O culto ao Anciatildeo no trono (41-11)
O culto ao Cordeiro (51ndash14)
Selo 1 ndash Cavalo branco (61ndash2)
Selo 2 ndash Cavalo vermelho (63ndash4)
Selo 3 ndash Cavalo preto (65-6)
Selo 4 ndash Cavalo amarelo (67-8)
Selo 5 ndash Os maacutertires debaixo do altar (69-11)
Selo 6 ndash Juiacutezo escatoloacutegico (612-17)
Interluacutedio (71-17)
144000 selados (71-8)
Grande multidatildeo (79ndash17)
Selo 7 - Sete trombetas (81ndash1119)
O anjo das oraccedilotildees (81ndash6)
Trombeta 1 ndash Granito e fogo sobre a terra (88-7)
Trombeta 2 ndash Mar se torna em sangue (88-9)
Trombeta 3 ndash Estrelas tornam rios amargos (810-11)
Trombeta 4 ndash Sol lua e estrelas escurecem (812-13)
Trombeta 5 ndash Gafanhotos sobem do abismo (91-12)
Trombeta 6 ndash Quatro anjos e um exeacutercito matam pessoas (913-21)
Interluacutedio (101-1114)
Um livro para ser comido (101-11)
As duas testemunhas (111-14)
Trombeta 7 ndash A chegada do reino de Deus (1115ndash19)
- Terceira seccedilatildeo ndash A guerra escatoloacutegica (121-225)
A origem da guerra (121-18)
Os aliados do Dragatildeo (131-18)
A besta do mar (131-10)
A besta da terra (1311-18)
67
Os 144000 guerreiros do Cordeiro (141-5)
O anuacutencio dos trecircs anjos (146-12)
A bem-aventuranccedila dos mortos (1413)
O juiacutezo como uma ceifa (1414-20)
As sete taccedilas da ira (151-1621)
Os maacutertires diante de Deus (151-8)
Taccedila 1 Dores nos marcados pela besta (161-2)
Taccedila 2 O mar se torna em sangue (163)
Taccedila 3 Os rios se tornam em sangue (164-7)
Taccedila 4 O sol provoca feridas (168-9)
Taccedila 5 Trevas no trono da besta (1610-11)
Taccedila 6 A seca do Rio Eufrates e a coalizatildeo do Dragatildeo (1612-16)
Taccedila 7 Juiacutezo sobre Babilocircnia (1617-21)
A prostituta destruiacuteda (171-18)
Hino fuacutenebre pela queda da Babilocircnia (181-24)
Celebraccedilatildeo no ceacuteu pela queda da Babilocircnia (191-4)
O culto no ceacuteu anuncia as bodas do Cordeiro (195-10)
A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre as bestas (1911-21)
A prisatildeo do Dragatildeo (201-3)
O reino messiacircnico milenar (204-6)
A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre o Dragatildeo (207-10)
O juiacutezo final (2011-15)
A Nova Jerusaleacutem (211-225)
- Conclusatildeo epistolar (226-21)
32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo
Uma das caracteriacutesticas recorrentes nos apocalipses segundo John Collins eacute a
ldquorevelaccedilatildeordquo179 O proacuteprio termo ldquoapocalipserdquo () significa ldquorevelaccedilatildeordquo180 Seus
autores se propotildeem a revelar algo para sua audiecircncia Em linhas amplas estas revelaccedilotildees
poderiam ser divididas em dois eixos um vertical e outro horizontal
No eixo horizontal os autores queriam revelar o passado e o futuro O foco varia de
texto a texto com algumas obras com ecircnfase no passado ao descreverem os primoacuterdios da
histoacuteria da humanidade o iniacutecio da saga do povo de Deus ou mesmo uma descriccedilatildeo
cosmogocircnica sobre como as coisas vieram a ser o que satildeo no seu presente momento Quando
o foco estava no futuro os autores pretendiam descrever a intervenccedilatildeo final de Deus que
promoveria uma inversatildeo escatoloacutegica com todas as suas consequecircncias (cataclismos
coacutesmicos e juiacutezo sobre os inimigos de um lado nova criaccedilatildeo e recompensa para os membros
179 COLLINS John J Introduction towards the morphology of a genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979
p 9 180 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 66
68
do grupo do outro) Nesta perspectiva haacute a construccedilatildeo de um esquema teleoloacutegico da
histoacuteria no qual um fim glorioso resolveria a violecircncia e os traumas do passado e do presente
da comunidade destinataacuteria do apocalipse em questatildeo
No eixo vertical uma obra apocaliacuteptica se propotildee a revelar o que estaacute para aleacutem do
mundo humano o que estaacute acima e o que estaacute abaixo os ceacuteus e os submundos bem como
as coisas e seres que existem nestes espaccedilos Haacute aqui uma preocupaccedilatildeo em entender como
o universo funciona como o mundo sobrenatural interfere no mundo dos seres humanos e
na natureza e como controlar ou pelo menos ter acesso a essas realidades sobrenaturais
O Apocalipse de Joatildeo como outros apocalipses antes dele e depois dele tambeacutem
possui essas preocupaccedilotildees horizontais e verticais Como as revelaccedilotildees apocaliacutepticas satildeo
transmitidas no formato de narrativas o conteuacutedo do livro do profeta de Patmos estaacute
apresentado no interior de trecircs histoacuterias distintas mas inter-relacionadas181 A primeira
histoacuteria a ser narrada eacute a do aparecimento do Filho do Homem que promove o ditado de sete
cartas para um grupo de igrejas da Aacutesia romana Nestas cartas a figura celestial conhecida
das tradiccedilotildees de Daniel182 e 1Enoque183 faz ameaccedilas elogios e promessas e termina cada
carta com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores As mensagens
das cartas giram em torno de distuacuterbios entre os proacuteprios membros do movimento de Jesus
por causa das diferentes posturas de relacionamento com a sociedade romana em cada
contexto local184
Na segunda seccedilatildeo do livro o narrador das revelaccedilotildees eacute levado em espiacuterito (ldquoἐν
πνεύματιrdquo) por uma porta aberta no ceacuteu Neste lugar ele presencia uma sucessatildeo de atos
lituacutergicos e eacute apresentado aos principais personagens celestiais o Anciatildeo sobre o trono os
Quatro Viventes os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais e vaacuterios seres angelicais A figura
181 Interpretamos as narrativas do Apocalipse agrave luz do contexto em que ele foi composto Isso significa que as
analogias que constroacutei as imagens que utiliza os siacutembolos recorrentes na obra seratildeo compreendidos como
referecircncia a eventos histoacutericos do seu tempo ou como elementos escatoloacutegicos proacuteprios ao movimento de
Jesus no final do seacuteculo I especialmente no contexto da regiatildeo Aacutesia-Siacuteria-Palestina Cf COLLINS Adela
Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E J Brill 1996 p 198
Diversas outras formas de interpretar o mesmo conteuacutedo satildeo resumidas e analisadas em WAINWRIGHT op
cit 182 Daniel 7 narra a sucessatildeo de reinos e governos na forma de quatro animais mitoloacutegicos No interior desta
revisatildeo histoacuterica apocaliacuteptica o texto descreve a figura do Anciatildeo celestial e o Filho do Homem que o
representa Cf COLLINS John J Daniel with in introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William
B Eerdmans Publishing Company 1984 p 83 183 Em 1Enoque 7114-17 Enoque ascende aos ceacuteus onde encontra o proacuteprio Deus Ali o patriarca recebe a
informaccedilatildeo que ele eacute realmente o Filho do Homem figura que teria um papel significativo na salvaccedilatildeo
escatoloacutegica dos eleitos de Deus Cf OLSON Daniel C Enoch and the Son of Man in the Epilogue of the
Parables Journal for the Study of the Pseudepigrapha Thousand Oaks n 18 p 27-38 1998 184 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 p 58
69
fundamental entretanto eacute descrita como o Cordeiro (ἀρνίον) Eacute ele que recebe um rolo selado
com sete selos estrateacutegia simboacutelica para interpretar eventos e fenocircmenos histoacutericos A cada
selo corresponde uma revelaccedilatildeo ateacute o seacutetimo que por sua vez se desdobra em outro grupo
de sete elementos desta vez sete trombetas Como os selos cada trombeta estaacute relacionada
com um evento numa escala crescente de intensidade que culmina com a audiccedilatildeo de um
hino que comemora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuaacuterio celestial
A terceira parte do livro conta a histoacuteria de uma guerra que comeccedila quando uma
figura demoniacuteaca o Dragatildeo vermelho fracassa no seu propoacutesito de destruir uma crianccedila e
sua matildee sendo por isso expulso do ceacuteu para a terra Sua reaccedilatildeo eacute instaurar uma guerra contra
outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas Em contrapartida o
Cordeiro reuacutene seu exeacutercito convocando 144000 guerreiros dispostos a lutar ateacute a morte O
confronto resulta no nuacutemero determinado de maacutertires necessaacuterios para instaurar a
intervenccedilatildeo escatoloacutegica de Deus na forma de sete taccedilas de ira Apoacutes o derramamento das
taccedilas Jesus agora como um cavaleiro celestial desce do ceacuteu com uma hoste de anjos para
derrotar o Dragatildeo e seus aliados Num primeiro ato as bestas satildeo lanccediladas num lago de fogo
todo o exeacutercito adversaacuterio eacute morto e o Dragatildeo eacute aprisionado por mil anos O segundo ato
coloca fim agrave guerra quando o Dragatildeo eacute novamente solto somente para ser vencido e lanccedilado
no mesmo espaccedilo de juiacutezo onde jaacute estavam as duas bestas Entre os dois atos a narrativa
apresenta o reino messiacircnico com a participaccedilatildeo da figura exaltada de Jesus e os maacutertires
ressuscitados agora como reis e sacerdotes de Deus Com o fim do milecircnio e da guerra
escatoloacutegica o autor do Apocalipse descreve o fim da histoacuteria marcada pelo juiacutezo final e a
chegada da Nova Jerusaleacutem
33 O contexto narrativo do reino milenar
A sequecircncia narrativa e temporal da terceira seccedilatildeo (Apocalipse 121-225) natildeo eacute
linear Haacute muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como repeticcedilotildees ou incidentes
similares Existe um iacutentimo paralelo entre a sequecircncia das taccedilas (Apocalipse 161-21) e a
sequecircncia das trombetas (Apocalipse 88-1119) bem como vaacuterias cenas que parecem
interromper o fio narrativo Normalmente estas interrupccedilotildees funcionam para apresentar uma
interpretaccedilatildeo de algum aspecto da narrativa Mesmo assim ainda existe um sentido de
movimento para frente O primeiro episoacutedio apresenta o nascimento de uma crianccedila descrita
70
em termos messiacircnicos (Apocalipse 125) o que parece ser alusatildeo ao nascimento de Jesus
nove deacutecadas antes do Apocalipse surgir em Patmos e termina com o juiacutezo final e a
restauraccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo agora descrita como a Nova Jerusaleacutem A primeira cena estaacute
no passado da audiecircncia do Apocalipse e a uacuteltima estaacute no futuro Isso parece evidenciar o
desenvolvimento de uma narraccedilatildeo contiacutenua com princiacutepio meio e fim nos moldes dos
chamados apocalipses histoacutericos da tipologia de John Collins185
Em Apocalipse 121-18 Joatildeo narra uma guerra no ceacuteu e a expulsatildeo do Dragatildeo para
a terra Este tenta destruir a crianccedila messiacircnica mas falha no momento em que ela eacute
arrebatada para o ceacuteu Diante disto o Dragatildeo procura destruir a Mulher que eacute protegida no
deserto Depois de fracassar na perseguiccedilatildeo da Mulher o Dragatildeo parte para a perseguiccedilatildeo
dos outros filhos da Mulher (σπέρματος αὐτῆς) aqueles que ldquoguardam os mandamentos de
Deus e sustentam o testemunho de Jesusrdquo (ldquoτῶν τηρούντων τὰς ἐντολὰς τοῦ θεοῦ καὶ ἐχόντων
τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦrdquo) Tal descriccedilatildeo pretendia explicar para sua audiecircncia que uma iminente
perseguiccedilatildeo das igrejas teria como causa um conflito fora do mundo humano que envolveu
o fracasso de Satanaacutes em destruir Jesus e sua consequente expulsatildeo para a terra186
Um proacuteximo estaacutegio na narrativa apresenta os aliados do Dragatildeo duas bestas (qhria)
descritas em termos que apontavam para o Impeacuterio Romano e suas estruturas na proviacutencia
da Aacutesia como agentes demoniacuteacos187 Com esta estrateacutegia o profeta de Patmos queria indicar
que uma guerra coacutesmica jaacute comeccedilara e o conflito iria se acentuar enormemente mas em
breve Deus iria intervir nos acontecimentos por meio de Jesus Para o Apocalipse as igrejas
da Aacutesia e seus membros se encontravam no meio da luta depois do levantamento das bestas
mas antes que elas instaurassem a perseguiccedilatildeo generalizada
O estaacutegio seguinte da guerra pode ser denominado de ldquoresposta do Cordeirordquo Este
comeccedila sua reaccedilatildeo com a reuniatildeo de um exeacutercito de oposiccedilatildeo sobre o monte Siatildeo
(Apocalipse 141-5) provavelmente uma descriccedilatildeo dos seguidores de Jesus logo
martirizados Como resultado dessas mortes completa-se o nuacutemero dos maacutertires
185 Segundo Collins haacute tipos diferentes de apocalipses Uns como Daniel 7-12 4Esdras e 2Baruque focam
em descriccedilotildees histoacutericas e descrevem julgamentos coacutesmicos Outros como 2Enoque ou 3Baruque se
concentram em viagens celestiais e revelaccedilotildees sobre a realidade da alma apoacutes a morte O Apocalipse de Joatildeo
enfatiza o autor eacute um apocalipse de tipo misto que apesar de apresentar algum tipo de revelaccedilatildeo de mundo
sobrenatural se concentra na reflexatildeo histoacuterica Cf COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura
apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 4 COLLINS John J
Introductionhellip op cit p 13 186 HENTEN Jan Willem Dragon Myth and Imperial Ideology in Revelation 12-13 In BARR David L (ed)
The Reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical
Literature 2006 p 181-203 p 202 187 COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation op cit p 232
71
mencionados no quinto selo (Apocalipse 69-11) dando iniacutecio agraves sete pragas finais sobre a
terra na forma de sete taccedilas O cliacutemax das taccedilas de julgamento estaacute na descriccedilatildeo da queda da
Babilocircnia caracterizaccedilatildeo simboacutelica de Roma
Finalmente chega a fase final da guerra O cavaleiro celestial aparece do ceacuteu e
alcanccedila vitoacuteria sobre as bestas Um anjo desce do ceacuteu e prende o Dragatildeo Um periacuteodo
interino de paz por mil anos eacute estabelecido durante o qual os martirizados retornam agrave vida
como juiacutezes reis e sacerdotes de Cristo Apoacutes o milecircnio Satatilde eacute novamente libertado Ele
reuacutene um exeacutercito demoniacuteaco mas eacute derrotado definitivamente
34 O episoacutedio do reino milenar
Texto Grego188 Traduccedilatildeo proacutepria 1 Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ
οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ
ἅλυσιν μεγάλην ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ
1 E vi um anjo189 descendo do ceacuteu tendo a
chave do abismo190 e uma grande corrente
em suas matildeos 2 καὶ ἐκράτησεν τὸν δράκοντα ὁ ὄφις ὁ
ἀρχαῖος ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς
καὶ ἔδησεν αὐτὸν χίλια ἔτη191
2 E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente
que eacute o Diabo e Satanaacutes192 aprisionando-o
por mil anos 3 καὶ ἔβαλεν αὐτὸν εἰς τὴν ἄβυσσον καὶ
ἔκλεισεν καὶ ἐσφράγισεν ἐπάνω αὐτοῦ ἵνα
μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ
χίλια ἔτη μετὰ ταῦτα δεῖ λυθῆναι αὐτὸν
μικρὸν χρόνον
3 E lanccedilou-o para o abismo fechou e selou
o abismo para que natildeo engane mais as
naccedilotildees ateacute que se complete os mil anos
Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele
seja solto por pouco tempo 4 Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽
αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς καὶ τὰς
ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν
4 E vi tronos e sentaram neles e
[autoridade de] julgamento foi dada a
eles193 tambeacutem as almas dos
188 ALAND Kurt et all The Greek New Testament 4 ed rev London United Bible Society 2008 p 737-
738 O texto grego apresenta muitas dificuldades em funccedilatildeo de deficiecircncias e imprecisotildees sintaacuteticas Faltam
sujeitos haacute um acusativo solto um nominativo no lugar de um acusativo um pronome relativo que poderia
natildeo ter viacutenculos com seu antecedente mais oacutebvio A traduccedilatildeo proposta reflete uma tentativa de ordenaccedilatildeo Cf
MILLOS Samuel Peacuterez Apocalipsis comentario exegeacutetico al texto griego del Nuevo Testamento Barcelona
Editorial Clie 2010 p 1213 189 A expressatildeo aparece indefinida ldquoum anjordquo Natildeo haacute qualquer ecircnfase ou destaque no papel do anjo que prende
Satatilde Todo o destaque da narrativa vai para o Cristo que reina e os martirizados ressuscitados Cf POHL
Adolf Apocalipse de Joatildeo Curitiba Editora Evangeacutelica Esperanccedila 2001 2v V II p 221 190 O abismo natildeo eacute idecircntico ao lago de fogo e parece ser referecircncia agrave morada dos seres demoniacuteacos Cf
PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 363 191 A expressatildeo ldquoχίλια ἔτηrdquo soacute aparece no Novo Testamento nesta passagem do Apocalipse e em 2Pedro 38 192 Todos os tiacutetulos aqui mencionados apareceram antes nos episoacutedios do confronto entre o Dragatildeo e a Mulher
e o Dragatildeo e Miguel em Apocalipse 12 Laacute Satatilde foi lanccedilado para a terra Aqui ele eacute jogado no abismo Cf
FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991 p
107 193 Literalmente ldquoe julgamento foi dado a elesrdquo Pode significar que finalmente um julgamento terminou em
favor dos maacutertires ou como aqui optamos que o julgamento foi confiado a eles ou seja a autoridade para
exercer o juiacutezo Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 365
72
μαρτυρίαν Ἰησοῦ καὶ διὰ τὸν λόγον τοῦ
θεοῦ καὶ οἵτινες οὐ προσεκύνησαν τὸ
θηρίον οὐδὲ τὴν εἰκόνα αὐτοῦ καὶ οὐκ
ἔλαβον τὸ χάραγμα ἐπὶ τὸ μέτωπον καὶ ἐπὶ
τὴν χεῖρα αὐτῶν καὶ ἔζησαν καὶ
ἐβασίλευσαν μετὰ τοῦ Χριστοῦ χίλια ἔτη
decapitados194 por causa do testemunho de
Jesus e da palavra de Deus e todos195 que
natildeo adoraram a besta nem sua imagem e
natildeo receberam a marca dela na fronte e na
matildeo Viveram e reinaram com Cristo por
mil anos 5 οἱ λοιποὶ τῶν νεκρῶν οὐκ ἔζησαν ἄχρι
τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη αὕτη ἡ ἀνάστασις ἡ
πρώτη
5 Os demais mortos natildeo viveram ateacute que
terminasse os mil anos Esta eacute a primeira
ressurreiccedilatildeo196 6 μακάριος καὶ ἅγιος ὁ ἔχων μέρος ἐν τῇ
ἀναστάσει τῇ πρώτῃmiddot ἐπὶ τούτων ὁ
δεύτερος θάνατος οὐκ ἔχει ἐξουσίαν ἀλλ᾽
ἔσονται ἱερεῖς τοῦ θεοῦ καὶ τοῦ Χριστοῦ
καὶ βασιλεύσουσιν μετ᾽ αὐτοῦ [τὰ] χίλια
ἔτη
6 Bendito e santo o que tem parte na
primeira ressurreiccedilatildeo Sobre estes a
segunda morte197 natildeo tem poder poreacutem
seratildeo sacerdotes de Deus e de Cristo e
reinaratildeo com ele por mil anos
7 Καὶ ὅταν τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη λυθήσεται
ὁ Σατανᾶς ἐκ τῆς φυλακῆς αὐτοῦ
7 E quando concluir os mil anos seraacute solto
Satanaacutes da sua prisatildeo 8 καὶ ἐξελεύσεται πλανῆσαι τὰ ἔθνη τὰ ἐν
ταῖς τέσσαρσιν γωνίαις τῆς γῆς τὸν Γὼγ
καὶ Μαγώγ συναγαγεῖν αὐτοὺς εἰς τὸν
πόλεμον ὧν ὁ ἀριθμὸς αὐτῶν ὡς ἡ ἄμμος
τῆς θαλάσσης
8 E viraacute a enganar as naccedilotildees198 que estatildeo
nos quatro cantos da terra Gog e Magog199
e reuni-las para a guerra das quais o
nuacutemero eacute como a areia do mar
9 καὶ ἀνέβησαν ἐπὶ τὸ πλάτος τῆς γῆς καὶ
ἐκύκλευσαν τὴν παρεμβολὴν τῶν ἁγίων
9 E subiram200 entatildeo pela superfiacutecie da terra
e cercaram o acampamento dos santos e a
194 Literalmente ldquodegolados por um machadordquo Termo arcaizante jaacute que este tipo de supliacutecio usado na
Repuacuteblica Romana natildeo era comum nos tempos do Impeacuterio Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p
366 195 Alguns autores argumentam que o pronome relativo οἵτινες daria margem para dois grupos de exaltados (os
ressuscitados e os que natildeo adoraram a besta) Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 366-367
Acompanhamos entretanto o argumento de David Aune que entende a claacuteusula relativa como uma descriccedilatildeo
de um uacutenico grupo os martirizados A expressatildeo fornece as causas positivas para o martiacuterio (testemunho de
Jesus e da Palavra de Deus) e as negativas (natildeo adoraram a besta e natildeo receberam sua marca) Cf AUNE
David E Revelation 17-22 op cit p 1088-1089 196 Segundo este episoacutedio do Apocalipse apenas os maacutertires participam da primeira ressurreiccedilatildeo O livro de
Daniel localizou a ressurreiccedilatildeo dos mortos no iniacutecio do reino messiacircnico 4Esdras e 2Baruque a localizam no
final Aparentemente o Apocalipse harmonizou duas tradiccedilotildees diferentes afirmando duas ressurreiccedilotildees uma
no iniacutecio do reino milenar outra no final Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1090-1091 197 Segundo Aune a expressatildeo ldquosegunda morterdquo pode significar a exclusatildeo da ressurreiccedilatildeo do final dos tempos
ou a eterna danaccedilatildeo Ele sugere a segunda opccedilatildeo como mais plausiacutevel neste contexto da narrativa do
Apocalipse Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1093 198 As naccedilotildees aqui seduzidas oriundas dos quatro cantos da terra que precisam subir pela superfiacutecie para cercar
o acampamento dos santos parecem aludir a um exeacutercito de seres demoniacuteacos que estavam no submundo com
Satatilde Cf FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 106 POHL op cit p 236 199 Alusatildeo a Ezequiel 38-39 que vaticinou um ataque de naccedilotildees hostis aos habitantes da Palestina nos uacuteltimos
dias No Apocalipse entretanto Gog e Magog natildeo satildeo descriccedilotildees de povos ou naccedilotildees mas referecircncia
metafoacuterica ao exeacutercito demoniacuteaco de oposiccedilatildeo final Cf POHL op cit p 237 200 Haacute nos versiacuteculos 9 e 10 uma curiosa inconsistecircncia verbal Os verbos que descrevem a prisatildeo inicial de
Satatilde estatildeo no aoristo indicativo traduzidos normalmente pelo preteacuterito A partir do versiacuteculo 7 as claacuteusulas
temporais passam para o futuro (ldquoenganaraacute as naccedilotildeesrdquo ldquoreuniraacute para a guerrardquo) mas retornam para o aoristo
no relato do confronto final (ldquosubiram pela superfiacutecierdquo ldquocercaram o acampamentordquo ldquodesceu fogordquo etc)
Possivelmente isto tenha origem na jaacute mencionada desordenaccedilatildeo gramatical da passagem Cf MILLOS op
cit p 1213
73
καὶ τὴν πόλιν τὴν ἠγαπημένην καὶ κατέβη
πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e os
queimou 10 καὶ ὁ διάβολος ὁ πλανῶν αὐτοὺς ἐβλήθη
εἰς τὴν λίμνην τοῦ πυρὸς καὶ θείου ὅπου
καὶ τὸ θηρίον καὶ ὁ ψευδοπροφήτης καὶ
βασανισθήσονται ἡμέρας καὶ νυκτὸς εἰς
τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων
10 E o diabo o enganador deles foi jogado
para o lago201 de fogo e enxofre onde
tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta e
seratildeo atormentados dia e noite para todo o
sempre
O episoacutedio do milecircnio pode ser dividido em trecircs partes a prisatildeo do Dragatildeo
(versiacuteculos 1-3) os maacutertires ressuscitados (versiacuteculos 4-6) a condenaccedilatildeo do Dragatildeo
(versiacuteculos 7-10) Satildeo trecircs partes contudo apenas duas histoacuterias que se unem pela expressatildeo
temporal ldquomil anosrdquo (χίλια ἔτη) aqui narradas como parte da revelaccedilatildeo vertical ou seja
eventos que ocorreratildeo no futuro em relaccedilatildeo ao tempo da audiecircncia A narrativa do juiacutezo
sobre Satanaacutes segue do versiacuteculo 1 ao 3 e eacute retomada nos versiacuteculos 7-10 No meio dela estaacute
a narraccedilatildeo do reinado dos maacutertires202 Se narrada de forma linear sem a interrupccedilatildeo este
seria o episoacutedio da prisatildeo e destruiccedilatildeo do Dragatildeo
E vi um anjo descendo do ceacuteu tendo a chave do abismo e uma grande
corrente em suas matildeos E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente que eacute o
Diabo e Satanaacutes aprisionou-o por mil anos E lanccedilou-o para o abismo
fechou e selou o abismo para que natildeo enganasse mais as naccedilotildees ateacute que se
completasse os mil anos Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele seja
solto por pouco tempo E quando concluir os mil anos Satanaacutes seraacute solto
da sua prisatildeo E viraacute a enganar as naccedilotildees que estatildeo nos quatro cantos da
terra Gog e Magog e reuni-las para a guerra das quais o nuacutemero eacute como
a areia do mar E subiram entatildeo pela superfiacutecie da terra e cercaram o
acampamento dos santos e a cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e as
queimou E o diabo o enganador delas foi jogado para o lago de fogo e
enxofre onde tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta E seratildeo
atormentados dia e noite para todo o sempre
A prisatildeo e condenaccedilatildeo de Satanaacutes concluem a cena da vitoacuteria de Jesus sobre seus
adversaacuterios que aparece em Apocalipse 1911 como um cavaleiro montado sobre um cavalo
branco Aparentemente toda a seccedilatildeo posterior ao aparecimento do Jesus exaltado estaacute
estruturada segundo um esquema encontrado em Ezequiel203 Eacute possiacutevel relacionar por
201 O termo λίμνην pode significar lago tanque ou neste caso especiacutefico charco pacircntano ou lodaccedilal A
expressatildeo λίμνην τοῦ πυρὸς parece fazer referecircncia ao lugar conhecido como geena descrita em Mateus 522
como geenan tou puroj Era um vale que se estendia para fora da muralha sul de Jerusaleacutem conhecido tambeacutem
como Vale de Hinom local que servia nos tempos de Jesus como depoacutesito de lixo O portatildeo para o vale chegava
a ser chamado de Portatildeo do Esterco O lixo era constantemente incendiado fazendo do vale um espaccedilo de
fumaccedila e fedor Alguns judeus o tinham como o lugar mais asqueroso do mundo Daiacute a relaccedilatildeo com a descriccedilatildeo
do sofrimento escatoloacutegico ser feita com traccedilos do Vale de Hinom Cf POHL op cit p 219 202 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 107 203 ULFGARD Hakan Biblical and para-biblical origins of millennarianism Religiologiques Montreal n 20
p 25-49 1999 p 34
74
exemplo a ressurreiccedilatildeo dos maacutertires com o levantamento dos ossos secos de Ezequiel 37 o
confronto final de Satanaacutes com o ataque de Gog de Magog (Ezequiel 38)204 a nova
Jerusaleacutem de Apocalipse com o novo templo e a nova cidade de Ezequiel 40-48205
No interior desta longa cena de conquista dos adversaacuterios Satanaacutes eacute aprisionado
provisoriamente A noccedilatildeo de uma prisatildeo temporaacuteria para seres sobrenaturais natildeo era
desconhecida do Judaiacutesmo antigo O autor do Mito dos Vigilantes (1Enoque 1-36) em algum
momento do seacuteculo II antes da Era Comum apoacutes descrever a transgressatildeo dos vigilantes
celestiais narra o destino deles em duas versotildees Em 1Enoque 104-6
- Deus envia o anjo Rafael
- Azazel eacute amarrado por um anjo
- Azazel eacute lanccedilado na escuridatildeo e aprisionado para sempre
- o tempo do aprisionamento eacute descrito como o grande dia do julgamento
- Azazel eacute lanccedilado no fogo no grande dia do julgamento
Logo depois outra versatildeo do juiacutezo eacute narrada em 1Enoque 1011-13
- Deus envia o anjo Miguel
- o anjo amarra Semjaza e seus associados
- eles satildeo aprisionados sob a terra
- o periacuteodo de prisatildeo eacute limitado a 70 geraccedilotildees
- no dia do julgamento eles seratildeo lanccedilados no abismo de fogo
Esta narrativa dupla parece ser o resultado da fusatildeo de tradiccedilotildees que vinculavam a
presenccedila dos males no mundo a seres demoniacuteacos que receberam de Deus uma dupla
sentenccedila o aprisionamento em alguma regiatildeo do cosmos e a destruiccedilatildeo no final dos tempos
Nestas tradiccedilotildees judaicas os adversaacuterios sobrenaturais possuem nomes diferentes mas satildeo
condenados igualmente agrave prisatildeo enquanto aguardam a destruiccedilatildeo final (Jubileus 56 107-
11 2Enoque 72 2Apocalipse de Baruque 5613 Judas 6)
David Aune sugeriu que a base comum a essas tradiccedilotildees poderia ser uma releitura de
Isaias 2421-22 ldquoNaquele dia o Senhor castigaraacute no ceacuteu as hostes celestes e os reis da
terra na terra Seratildeo ajuntados como presos em masmorra e encerrados num caacutercere e
204 A passagem de Ezequiel 382 fala do rei Gog da terra de Magog Apocalipse entretanto nivelou as duas
expressotildees como se fossem dois reis ou dois povos Gog e Magog Esta apropriaccedilatildeo joanina do texto de
Ezequiel parece refletir a expectativa presente em alguns apocalipses antigos que o povo de Deus seria atacado
por um ajuntamento de forccedilas inimigas no final dos tempos Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p
371 205 Cf tambeacutem PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 350 POHL op cit p 235
75
castigados depois de muitos diasrdquo206 Na adaptaccedilatildeo joanina entretanto a histoacuteria do
aprisionamento dos seres demoniacuteacos aparece secionada em duas partes pois entre elas o
Apocalipse apresentou o reinado dos maacutertires exaltados (versiacuteculos 4-6)
Estes maacutertires aparecem em diversas passagens do Apocalipse Uma das mais
significativas eacute a cena do quinto selo (Apocalipse 69-11) Debaixo do altar estatildeo pessoas
que morreram por causa da palavra de Deus e do testemunho () Elas querem saber
quando eacute que o seu sangue seraacute vingado por Deus Como resposta ouvem uma espeacutecie de
enigma apocaliacuteptico ldquofoi-lhes dito que repousassem por mais um pouco de tempo ateacute que
se completasse o nuacutemero de seus companheiros e irmatildeos que iriam ser mortos como eles
foramrdquo (Apocalipse 611) O autor do Apocalipse argumenta que Deus vai trazer justiccedila
sobre todos os que mataram seus seguidores poreacutem antes eacute preciso que se complete uma
determinada cota de disciacutepulos que deveratildeo morrer O juiacutezo viraacute quando um nuacutemero
especiacutefico de pessoas tiver morrido da mesma forma como aqueles que jaacute estatildeo debaixo do
altar o foram
Joatildeo promete que estes maacutertires seratildeo recompensados por Deus mais do que os outros
disciacutepulos de Jesus Afinal somente eles ressuscitariam para reinar com Jesus na terra207
Esta expectativa jaacute aparecera bem no iniacutecio da segunda seccedilatildeo Quando o Cordeiro pegou o
livro selado os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais cantaram a canccedilatildeo ldquoDigno eacutes de tomar
o livro e de abrir-lhe os selos porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus
os que procedem de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e para o nosso Deus os constituiacuteste reino
e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo (Apocalipse 59-10) Na narrativa do Apocalipse o
milecircnio seria o cumprimento deste hino cantado no ceacuteu por figuras sobrenaturais
Segundo Aune a cena dos tronos em contexto escatoloacutegico eacute uma cena tiacutepica de
julgamento apesar de estar em estado fragmentaacuterio Afinal os maacutertires sentam em tronos
mas nenhum julgamento eacute descrito neste contexto Eles sentam para julgar todavia o
julgamento natildeo ocorre Tambeacutem natildeo haacute a identificaccedilatildeo de quem seraacute julgado Isso daacute agrave cena
o papel de exaltaccedilatildeo dos maacutertires em vez da descriccedilatildeo de algum ofiacutecio escatoloacutegico208
Neste mesmo sentido Fiorenza argumenta que Joatildeo descreve o reinado interino dos
maacutertires para garantir agrave sua audiecircncia que aqueles que morressem durante o confronto contra
as forccedilas romanas seriam exaltados no futuro como co-governantes com Cristo209 Ao indicar
206 AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1078 207 Idem p 1084 208 Idem p 1085 209 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 109
76
que os maacutertires receberatildeo um tipo de recompensa especial diferente de todos os outros a
cena dos maacutertires no trono desejava incentivar a participaccedilatildeo no martiacuterio
Para Joatildeo mais do que reis os maacutertires seriam juiacutezes e sacerdotes O episoacutedio do
milecircnio entretanto natildeo menciona a identidade de quem serviraacute aos reis de quem seraacute
julgado pelos juiacutezes ou de quem seraacute ministrado pelos sacerdotes Natildeo haacute ningueacutem para ser
condenado oprimido ou orientado porque segundo o profeta de Patmos todos os que
voltarem agrave vida no reino milenar seratildeo reis juiacutezes e sacerdotes
O milecircnio entatildeo como descrito pelo Apocalipse parece ser a junccedilatildeo de dois
episoacutedios nos quais a ecircnfase de um estaacute na destruiccedilatildeo dos inimigos de Deus e do outro na
exaltaccedilatildeo dos maacutertires
35 O reinado messiacircnico interino na terra
Aleacutem do Apocalipse duas outras obras judaicas igualmente produzidas no final do
seacuteculo I apresentam a expectativa de um reino messiacircnico provisoacuterio na terra 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque A primeira210 registrou
Pois eis que viraacute o tempo em que os sinais que tenho predito para vocecirc
aconteceratildeo a cidade que agora natildeo eacute vista apareceraacute e a terra que agora
estaacute escondida seraacute revelada E todo aquele que for libertado dos males que
eu anunciei veraacute as minhas maravilhas Porque meu filho o Messias seraacute
revelado junto com aqueles que estatildeo com ele e estes que permanecerem
regozijar-se-atildeo por quatrocentos anos E depois desses anos meu filho o
Messias morreraacute e todos os seres humanos E o mundo voltaraacute ao silecircncio
primordial por sete dias como foi nos primoacuterdios de modo que ningueacutem
seraacute deixado E depois de sete dias o mundo que ainda dormia seraacute
despertado e o que for corruptiacutevel pereceraacute (4Esdras 72631)211
Posteriormente a narrativa eacute complementada em 4Esdras 1232-34
[] este eacute o Messias que o Altiacutessimo guardou ateacute o fim dos dias que surgiraacute
da posteridade de Davi e viraacute e falaraacute para eles ele os denunciaraacute por seus
erros e por suas maldades e lanccedilaratildeo diante dele seus desprezos
Primeiramente ele os traraacute para julgamento diante de seu tribunal e
quando forem reprovados entatildeo ele os destruiraacute Mas ele livraraacute com
misericoacuterdia o remanescente do meu povo aqueles que estiverem salvos
210 4Esdras foi escrito em algum lugar da Palestina no periacuteodo posterior agrave guerra judaico-romana (66-70) Cf
COLLINS John J A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica uma introduccedilatildeo agrave literatura apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo
Paulus 2010 p 281 211 As citaccedilotildees de 4Esdras vem de METZGER B M The Fourth Book of Ezra In CHARLESWORTH
James H The Old Testament Pseudepigrapha New York Doubleday and Company Inc 1983 2v V 1 p
517-559
77
do meu lado ele os tornaraacute alegres ateacute o fim o dia do juiacutezo do qual falei
com vocecirc no iniacutecio
A outra obra 2Apocalipse de Baruque surgiu na mesma conjuntura posterior agrave
guerra na Judeacuteia possivelmente tambeacutem originada na Palestina Seu autor anocircnimo tratou
do futuro periacuteodo messiacircnico nos capiacutetulos 29-30 Segue o texto
Ele falou-me O que vai acontecer atingiraacute toda a terra dessa forma
experimentaacute-lo-atildeo todos os que estiverem em vida Mas naquele tempo eu
protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste paiacutes Uma
vez cumprido aquilo que deve acontecer nos periacuteodos do tempo o Messias
comeccedilaraacute a sua revelaccedilatildeo Tambeacutem Behemoth viraacute dos seus domiacutenios e
Leviatatilde se levantaraacute do mar os dois imensos monstros marinhos por mim
criados no quinto dia da Criaccedilatildeo e que reservo para aqueles dias eles
serviratildeo de alimento para todos os que sobreviverem Entatildeo a terra
produziraacute os seus frutos ao cecircntuplo numa cepa de videira haveraacute mil
ramos um ramo carregaraacute mil racimos e um racimo mil bagos e um bago
daraacute ateacute quarenta litros de vinho Os que sofreram fome comeratildeo
regiamente e a cada dia lhes estatildeo reservadas novas maravilhas Pois de
mim procederatildeo ventos que traratildeo todas as manhatildes o perfume de frutos
saborosos e faratildeo gotejar ao final do dia o orvalho salviacutefico Do alto cairaacute
de novo grande quantidade de manaacute dele comeratildeo eles naqueles anos por
haverem participado do final dos tempos Terminado o tempo vigente do
Messias ele voltaraacute de novo agrave gloacuteria do ceacuteu Entatildeo haveratildeo de ressuscitar
todos aqueles que outrora adormeceram na sua esperanccedila Naquele tempo
aconteceraacute que se abriratildeo as cacircmaras onde se demoram as almas dos
piedosos elas sairatildeo e todas essas numerosas almas como legiatildeo de um
soacute coraccedilatildeo apareceratildeo todas juntas abertamente As que foram as
primeiras alegrar-se-atildeo as que foram as uacuteltimas natildeo estaratildeo tristes Cada
uma delas sabe que foi chegado o tempo previsto como o fim de todos os
tempos As almas dos pecadores perder-se-atildeo em anguacutestia ao
presenciarem tudo isso Pois elas jaacute sabem que o tormento as atingiraacute e
que a hora da sua condenaccedilatildeo eacute chegada212
O autor anocircnimo retoma o assunto mais agrave frente ao descrever a prisatildeo e destruiccedilatildeo
dos adversaacuterios do Messias (2Apocalipse de Baruque 397-404) Apesar de algumas
diferenccedilas em ecircnfase Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e 2Apocalipse de Baruque descrevem o
aparecimento de uma figura messiacircnica no fim dos tempos para inaugurar um periacuteodo
interino de becircnccedilatildeo especial para o povo de Deus na terra antes do juiacutezo final Entretanto a
funccedilatildeo e o papel do messias variam entre os textos Segundo 4Esdras o messias avanccedilaraacute
sem armas contra seus inimigos e os venceraacute com um rio de fogo que sairaacute de sua boca
(4Esdras 135) Depois de quatrocentos anos de tranquilidade ele e todos os seus seguidores
morreratildeo durante uma semana de silecircncio primordial 2Apocalipse de Baruque por sua vez
212 As citaccedilotildees de 2Apocalipse de Baruque vecircm de TRICCA Maria Helena de Oliveira Apoacutecrifos os proscritos
da Biacuteblia Satildeo Paulo Mercuryo 1995 4v V III p 303-348
78
descreve o messias trazendo vinganccedila militar com um governo limitado no tempo Jaacute no
Apocalipse a figura messiacircnica surge sobre um cavalo branco derrota seus adversaacuterios e
reina com os maacutertires ressuscitados durante o periacuteodo milenar da prisatildeo de Satanaacutes
Apesar das divergecircncias nos detalhes as trecircs obras possuem a mesma perspectiva de
um interluacutedio de felicidade no interior da histoacuteria antes do final dos tempos Segundo
Kovacs e Rowland isto sugeriria que esta expectativa de dois estaacutegios escatoloacutegicos era
comum entre grupos judaicos da Palestina no periacuteodo entre as duas guerras judaicas contra
os romanos (66-136)213 Estes autores ainda argumentam que o surgimento do montanismo
na metade do segundo seacuteculo poderia ser indiacutecio de que a espera por um reino messiacircnico
terreno estava bem espalhada pela Aacutesia menor e natildeo somente pela proviacutencia da Aacutesia214
Teriacuteamos entatildeo um fenocircmeno difundido pelas regiotildees da Palestina Siacuteria e Aacutesia menor pelo
menos no periacuteodo em questatildeo resultado da fusatildeo de antigas noccedilotildees judaicas o messianismo
a reflexatildeo apocaliacuteptica sobre as etapas da histoacuteria o retorno ao paraiacuteso215 Estas noccedilotildees
surgiram em contextos histoacutericos e literaacuterios distintos mas foram reunidas para formar o
milenarismo como encontrado no Apocalipse de Joatildeo e parcialmente em 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque
A primeira noccedilatildeo a crenccedila numa figura messiacircnica que promoveria a restauraccedilatildeo do
povo de Deus tem relaccedilatildeo histoacuterica com as diversas aspiraccedilotildees judaicas de restauraccedilatildeo de
Israel posteriores ao domiacutenio helenista da Palestina (seacuteculo IV AEC)216 Alguns grupos
combinavam passagens das Escrituras judaicas para produzir a expectativa de uma
restauraccedilatildeo poliacutetica de Israel na terra sob a lideranccedila de uma figura ungida por Deus217
O segundo elemento a reflexatildeo sobre as etapas da histoacuteria reflete o interesse de
grupos apocaliacutepticos judaicos em compreender o desenvolvimento da histoacuteria O fenocircmeno
pode ser encontrado particularmente nas tradiccedilotildees de Enoque e de Daniel O texto chamado
213 KOVACS ROWLAND op cit p 210 Leva-se em conta que o Apocalipse surgido na proviacutencia da Aacutesia
teve um autor que emigrou da Palestina durante a guerra de 66-70 214 Idem p 211 215 A sugestatildeo da fusatildeo destas trecircs noccedilotildees vem de ULFGARD op cit p 25-49 216 Charlesworth prefere colocar como ponto de partida as guerras dos macabeus do seacuteculo II AEC Cf
CHARLESWORTH James H From messianology to christology problems and prospects In
CHARLESWORTH James H (ed) The Messiah developments in earliest Judaism and Christianity
Minneapolis Fortress Press 1987 p 3-35 p 3 217 Desroche define o messianismo em termos restritos como o conjunto de crenccedilas judaicas relacionadas com
um ungido de Deus proclamado no antigo Testamento Num sentido mais largo poreacutem designa ensinamentos
ou movimentos que prometem a chegada de um enviado divino para trazer ordem ao mundo com justiccedila e paz
edecircmicas Neste uacuteltimo sentido o fenocircmeno ultrapassa as tradiccedilotildees religiosas judaico-cristatildes Cf DESROCHE
Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo
Paulo 2000 p 22
79
Apocalipse das Semanas (1Enoque 931-10 9112-17) eacute um exemplo deste fenocircmeno
quando o passado e o futuro aparecem divididos em dez semanas O autor subjacente a este
antigo apocalipse escreve da perspectiva da seacutetima semana esperando a restauraccedilatildeo do povo
de Deus para a oitava semana
Altas expectativas escatoloacutegicas originadas de uma conjuntura de deterioraccedilatildeo de
condiccedilotildees poliacuteticas e sociais agraves vezes de perseguiccedilatildeo e sofrimento podem promover nesta
reflexatildeo sobre os periacuteodos da histoacuteria a ideia de que se vive perto do fim do mundo Eacute assim
que esta noccedilatildeo aparece nos apocalipses de Daniel 7-12 produzidos no contexto da Guerra
dos Macabeus (167-163 AEC) Daniel 9 por exemplo faz uma releitura de Jeremias
(Jeremias 2511 2910) acerca da desolaccedilatildeo de Jerusaleacutem por 70 anos Os setentas anos satildeo
interpretados como semanas de anos O apocalipse de Daniel garante que faltam poucas
destas semanas para o fim dos tempos
Estas antigas tradiccedilotildees judaicas representadas por 1Enoque e Daniel exemplificam o
interesse pela periodizaccedilatildeo da histoacuteria mundial e manifestam a convicccedilatildeo de seus autores
provavelmente compartilhada com a comunidade destinataacuteria do texto de que eles viviam a
uacuteltima e crucial fase da histoacuteria antes da intervenccedilatildeo final de Deus que traraacute a salvaccedilatildeo e o
julgamento218 A histoacuteria eacute imaginada linearmente como uma sucessatildeo de tempos
determinados de adversidades antes que venham dias de felicidade219
A terceira noccedilatildeo eacute o retorno agraves condiccedilotildees paradisiacuteacas quando o paraiacuteso dos tempos
primordiais (urzeit) seria restabelecido no fim dos tempos (endzeit) Os benefiacutecios esperados
seriam aqueles que o ser humano experimentara em suas origens220 Esta ideia foi
desenvolvida nos textos apocaliacutepticos por meio de vaticiacutenios acerca da restauraccedilatildeo da
prosperidade da criaccedilatildeo da fertilidade e da paz no mundo 1Enoque 10-11 por exemplo ao
falar da queda dos vigilantes combina estruturaccedilatildeo da histoacuteria com a expectativa de um
retorno agraves condiccedilotildees do paraiacuteso na era da salvaccedilatildeo Eacute possiacutevel notar que este texto tem
elementos que seratildeo apropriados de vaacuterias maneiras posteriormente como a fertilidade da
terra a destruiccedilatildeo das forccedilas demoniacuteacas e os justos ressuscitados Segue o texto
E a Raphael disse o Senhor Amarra Azazel de matildeos e peacutes e lanccedila-o nas
trevas Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo Deposita
218 ULFGARD op cit p 44 219 Frankfurt sugeriu que tal conceito de histoacuteria eacute dependente de tradiccedilotildees zoroastrianas que apresentavam a
histoacuteria dividida em periacuteodos alternados de domiacutenio entre as figuras divinas de Ahura Mazda e Angra Mainyu
que culminariam no fim na vitoacuteria do bem sobre o mal Cf FRANKFURTER David Early Christian
Apocalypticism literature and social world In COLLINS John J (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism
the origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity New York Continuum 1999 p 415-456 p 441 220 PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 353
80
pedras aacutesperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridatildeo Deixa-
o permanecer laacute para sempre e veda-lhe o rosto para que natildeo veja a luz
No dia do grande Juiacutezo ele deveraacute ser arremessado ao tremedal de fogo
Purifica a terra corrompida pelos Anjos e anuncia-lhe a Salvaccedilatildeo para
que terminem os seus sofrimentos e natildeo se percam todos os filhos dos
homens em virtude das coisas secretas que os Guardiotildees revelaram e
ensinaram aos seus filhos Toda a terra estaacute corrompida por causa das obras
transmitidas por Azazel A ele atribui todos os pecados E a Gabriel disse
o Senhor Levanta a guerra entre os bastardos os monstros os filhos das
prostituiacutedas e extirpa-os do meio dos homens juntamente com todos os
filhos dos Guardiotildees Instiga-os uns contra os outros para que na batalha
se eliminem mutuamente Natildeo se prolongue por mais tempo a sua vida
Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deveraacute ser atendido eles
esperam ter vida para sempre e que cada um viva quinhentos anos A
Michael disse o Senhor Vai e potildee a ferros Semjaza e os seus sequazes que
se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as
suas impurezas Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente
e quando os pais tiverem presenciado o extermiacutenio dos seus amados filhos
amarra-os por sele geraccedilotildees nos vales da terra ateacute o dia do seu julgamento
ateacute o dia do Juiacutezo Final Nesse dia eles seratildeo atirados ao abismo de fogo
na reclusatildeo e no tormento onde ficaratildeo encerrados para todo o sempre E
todo aquele que for sentenciado agrave condenaccedilatildeo eterna seja juntado a eles e
seja com eles mantido em correntes ateacute o fim de todas as geraccedilotildees
Extermina os espiacuteritos de todos os monstros juntamente com todos os
filhos dos Guardiotildees porque eles maltrataram os homens Purga a terra de
todo ato de violecircncia Toda obra maacute deve ser eliminada Que floresccedila a
aacutervore da Verdade e da Justiccedila O sinal da becircnccedilatildeo seraacute o seguinte as obras
da Verdade e da Justiccedila sempre seratildeo semeadas na alegria verdadeira
Entatildeo floresceratildeo os justos e haveratildeo de viver ateacute gerarem mil filhos e
completaratildeo em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice Entatildeo
toda a terra seraacute cultivada com a Justiccedila inteiramente plantada de aacutervores
e cheia de becircnccedilatildeo Toda espeacutecie de aacutervore boa seraacute plantada sobre ela
igualmente videiras e as videiras produziratildeo uvas em abundacircncia De
todas as sementes que forem semeadas uma medida produziraacute mil outras
e uma medida de olivas daraacute dez cubas de oacuteleo Purifica a terra de todo ato
de violecircncia de toda injusticcedila de todo pecado e impiedade elimina toda a
impudiciacutecia que sobre ela se pratica Todos os homens seratildeo justos todos
os povos me prestaratildeo honra e gloacuteria e todos me adoraratildeo A terra entatildeo
ficaraacute expurgada de toda maldade de todo pecado de toda praga de todo
tormento e nunca mais mandarei sobre ela um diluacutevio ao longo de todas
as geraccedilotildees por toda a eternidade Naqueles dias eu abrirei as cacircmaras dos
depoacutesitos da becircnccedilatildeo do ceacuteu e deixaacute-las-ei derramar-se sobre a terra sobre
as obras e os trabalhos dos filhos dos homens Entatildeo a Verdade e a Paz
juntar-se-atildeo por todos os dias da terra e por todas as geraccedilotildees dos homens
(1Enoque 1012-112)221
Assim a expectativa do reino messiacircnico interino na histoacuteria parece ser uma
combinaccedilatildeo de antigas noccedilotildees sobre o messias o retorno ao paraiacuteso e a periodizaccedilatildeo dos
221 A citaccedilatildeo de 1Enoque veio de TRICCA op cit p 117-202
81
tempos 4Esdras falou em quatrocentos anos de duraccedilatildeo o Apocalipse de Joatildeo registrou mil
anos
Ulfgard sugeriu que o caminho para compreender o tempo do reino messiacircnico na
terra estaria no uso tipoloacutegico do Salmo 9015 ldquoAlegra-nos pelos dias em que nos afligiste
e pelos anos em que vimos o malrdquo Esta era uma foacutermula usada por grupos judaicos para
calcular os dias do messias Deus iria recompensar o povo na terra pelo tempo em que ele
foi maltratado sobre ela Alguns propunham 40 anos para fazer frente ao tempo que o povo
passou no deserto antes de entrar em Canaatilde Outros sugeriam quatrocentos anos
correspondente ao periacuteodo de permanecircncia no Egito A sugestatildeo dos mil anos entretanto
poderia ter relaccedilatildeo com o versiacuteculo 4 deste mesmo Salmo 90 ldquoporque mil anos aos teus
olhos satildeo como o dia de ontem que passou e como uma vigiacutelia de noiterdquo222 De qualquer
forma tanto em 4Esdras quanto no Apocalipse de Joatildeo as expressotildees temporais natildeo satildeo o
elemento principal Afinal em ambas as obras o governo messiacircnico na terra tem um fim
A ecircnfase dos autores destes textos estaacute na expectativa de que a terra experimentaraacute ainda
dentro da histoacuteria um uacuteltimo periacuteodo de paz
Dentro do contexto narrativo maior que comeccedila em Apocalipse 1911 e conclui em
225 Joatildeo inseriu a expectativa do reino messiacircnico na terra quando o Jesus glorificado
retornaria para vencer seus inimigos ressuscitaria seus seguidores martirizados e viveria
com eles por um periacuteodo de mil anos Tomamos esta expectativa como a objetivaccedilatildeo de um
conjunto de representaccedilotildees natildeo apenas derivado de praacuteticas sociais mas tambeacutem promotor
de outras tantas Enquanto tal o milecircnio pode ser visto como uma arma nas lutas de
representaccedilotildees entre certas comunidades religiosas do final do primeiro seacuteculo a resposta
de um liacuteder religioso agraves praacuteticas plurais do movimento de Jesus diante das conjunturas
histoacutericas da proviacutencia romana da Aacutesia O que buscamos nos paraacutegrafos a seguir satildeo fatores
ou condiccedilotildees de emergecircncia para este determinado sistema de representaccedilotildees
222 ULFGARD op cit p 49 Prigent por sua vez sugere que o tempo messiacircnico poderia ser uma alusatildeo a
Jubileus 430 Aqui a morte de Adatildeo com 930 anos eacute entendida como consequecircncia dele natildeo ter alcanccedilado a
idade perfeita de 1000 anos Aleacutem do mais seria cumprimento da profecia de Genesis 217 que declarou que
no dia que ele comesse da arvore ele morreria Nestes termos Apocalipse 204-6 simbolizaria a restauraccedilatildeo da
vida humana ideal nos moldes do paraiacuteso na era messiacircnica No reino messiacircnico as consequecircncias do pecado
de Adatildeo satildeo canceladas Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 358
82
36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia
Jaacute tratamos no capiacutetulo anterior a respeito dos conflitos de lideranccedila do movimento
de Jesus no periacuteodo do Apocalipse numa fase de consolidaccedilatildeo das comunidades dentro da
sociedade romana e de construccedilatildeo de uma identidade separada do Judaiacutesmo Aparentemente
o tema da prisatildeo e destruiccedilatildeo de Satanaacutes223 no interior do complexo narrativo da destruiccedilatildeo
dos adversaacuterios do Jesus glorificado pode ter relaccedilatildeo justamente com essa conjuntura
conflitiva
David Frankfurt analisou vaacuterios apocalipses judaicos e cristatildeos no periacuteodo entre 200
anos antes e 200 depois da Era Comum tentando construir uma tipologia geograacutefica dos
textos apocaliacutepticos224 Segundo ele o milenarismo sectaacuterio eacute um traccedilo significativo do
apocalipsismo asiaacutetico em funccedilatildeo da atuaccedilatildeo privilegiada de figuras profeacuteticas com
performances orais itinerantes a necessidade de forte legitimaccedilatildeo carismaacutetica e o
envolvimento eventual em conflitos de lideranccedila Ele o denomina como ldquomilenarismo
sectaacuteriordquo porque o seu proponente se entende representar natildeo a totalidade da sociedade ou
mesmo do seu grupo social mas uma parcela dentro dele As demais pessoas e grupos satildeo
vistos como adversaacuterios e destinados agrave destruiccedilatildeo escatoloacutegica Este milenarismo eacute
geralmente centrado em figuras profeacuteticas e manifesta algum tipo de luta pela lideranccedila nas
comunidades quando liacutederes carismaacuteticos usam a estigmatizaccedilatildeo para deslegitimar os
adversaacuterios e afirmar a proacutepria autoridade225 Neste contexto de disputa como Elaine Pagels
tentou demonstrar a oposiccedilatildeo eacute frequentemente associada a seres demoniacuteacos e aos
monstros do caos226
O bispo Inaacutecio de Antioquia ao passar pela Aacutesia menor registrou em uma carta uma
justaposiccedilatildeo entre Cristianismo e Judaiacutesmo (Carta aos Magneacutesios X) Ele parece evidenciar
assim que pelo menos alguns seguidores de Jesus naquela regiatildeo e naquele periacuteodo tinham
a percepccedilatildeo de que faziam parte de um movimento independente e mesmo superior ao
Judaiacutesmo Esse debate sobre a identidade das comunidades poderia ser ampliado ainda pelas
distinccedilotildees jaacute feitas pelos magistrados romanos (como as cartas de Pliacutenio jaacute mencionadas) e
223 Como jaacute argumentamos o episoacutedio do milecircnio relata duas narrativas ligadas entre si pelo marco temporal
(mil anos) A narrativa da prisatildeo de Satanaacutes faz parte de uma cena maior que descreve a vitoacuteria do Jesus
glorificado sobre seus adversaacuterios A outra narrativa descreve a exaltaccedilatildeo dos maacutertires 224 FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit 225 Idem 435 226 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na
sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996
83
por pressotildees de sinagogas locais que natildeo queriam ser identificadas com as igrejas227
Possivelmente pouco mais de uma deacutecada antes de Inaacutecio quando as igrejas da Aacutesia jaacute
viviam um momento de instabilidade identitaacuteria os projetos distintos das lideranccedilas geraram
uma crise de legitimidade e a consequente percepccedilatildeo de que o mal poderia vir de dentro da
comunidade
A pequena obra canocircnica conhecida como 3Joatildeo entre os anos 90-110228 registra
um embate entre seu autor anocircnimo e um liacuteder adversaacuterio conhecido como Dioacutetrefes
ldquoEscrevi alguma coisa agrave igreja mas Dioacutetrefes que gosta de exercer a primazia entre eles
natildeo nos daacute acolhidardquo (3Joatildeo 19) Situaccedilotildees como essa geravam respostas diferentes para os
mesmos problemas entre os liacutederes das igrejas Natildeo bastava a um profeta dar a orientaccedilatildeo
para a comunidade jaacute que ele precisava tambeacutem atacar quem divergia de seu
posicionamento Este senso de mal interno foi trabalhado por Joatildeo de duas maneiras Ele
desejava purgar a comunidade de membros que dele divergiam vinculando-os a adversaacuterios
externos da comunidade (membros de sinagogas locais e magistrados romanos) Ao mesmo
tempo ele projeta o conflito para o mundo celestial indicando laccedilos entre seus desafetos e
figuras demoniacuteacas tradicionais como Satatilde229
Este parece ser o caso da polecircmica contra ldquoJezabelrdquo no Apocalipse (Apocalipse 218-
29) A mulher assim intitulada por Joatildeo era uma das liacutederes da comunidade de disciacutepulos de
Tiatira As acusaccedilotildees contra ela indicam que o cerne do conflito estava em aspectos sociais
ldquoJezabelrdquo defendia o engajamento com a sociedade maior e Joatildeo recomendava o
afastamento na direccedilatildeo de um gueto religioso Em termos religiosos eacute possiacutevel que Jezabel
possuiacutesse uma vantagem sobre o profeta de Patmos jaacute que ela tinha amparo no ensino que
o apoacutestolo Paulo deixara trinta anos antes para as igrejas da regiatildeo230 Como argumenta Duff
uma das estrateacutegias de Joatildeo neste confronto foi conectar sua rival com Babilocircnia e por
implicaccedilatildeo com Satatilde231 Em escala maior os membros do movimento de Jesus que Joatildeo
227 Uma evidecircncia neste sentido pode ser o uso do termo ldquominimrdquo para descrever os membros do movimento
de Jesus em maldiccedilotildees pronunciadas em sinagogas em periacuteodo tatildeo recuado quanto 80-85 Para que pudesse ser
disseminada por diversas comunidades judaicas uma maldiccedilatildeo foi inserida entre as 18 becircnccedilatildeos conhecidas
como ldquobirkat-hamminimrdquo que dizia ldquoQue os nosrim (nazarenos) e os minim (hereges) morram subitamente
e sejam excluiacutedos do livro da vida para que natildeo sejam ali recordados juntamente com os justos Bendito sejas
Tu oacute Senhor que abaixas os orgulhososrdquo Cf BAGATTI Bellarmino A igreja da circuncisatildeo histoacuteria e
arqueologia dos judeu-cristatildeos Petroacutepolis Vozes 1975 p 44 228 KUumlMMEL op cit p 593 229 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 230 Idem p 71 231 Idem p 72
84
considerava desviantes passaram a ser rotulados como chamou Pagels de ldquoagentes secretosrdquo
de forccedilas demoniacuteacas sobrenaturais232
Portanto Joatildeo natildeo demoniza apenas a sociedade romana em sua manifestaccedilatildeo
asiaacutetica ou o Impeacuterio na figura das bestas de Apocalipse 13 Ele tambeacutem entende que
mesmo dentro das igrejas existiam aliados de Satanaacutes os ldquoinimigos iacutentimosrdquo233 Este tipo de
perspectiva poderia explicar o grande espaccedilo dado agraves descriccedilotildees dos poderes demoniacuteacos no
Apocalipse bem como a necessidade de um milecircnio que tem como pano de fundo a
destruiccedilatildeo destas mesmas forccedilas de oposiccedilatildeo
Um reino milenar precedido pelo sangue dos adversaacuterios pode refletir entatildeo um
contexto social cheio de tensotildees dentro das proacuteprias igrejas (divergecircncias sobre a identidade
do movimento) entre as igrejas e grupos judaicos (hostilidade contra sinagogas locais) entre
as comunidades de Jesus e a sociedade romana (demandas por acomodaccedilatildeo cultural) e entre
os seguidores de Jesus e o Impeacuterio (interaccedilatildeo entre religiatildeo sociedade e poliacutetica)234
Nosso argumento eacute que a situaccedilatildeo das comunidades envolvidas em distuacuterbios
identitaacuterios com sinagogas locais e em conflitos de lideranccedila acabou se tornando um fator
plausiacutevel no surgimento do milecircnio do Apocalipse ao provocar a expectativa de um tempo
em que todos os inimigos internos e externos seriam destruiacutedos violentamente
Um segundo aspecto frequentemente sugerido pelos autores eacute a oposiccedilatildeo de Joatildeo a
Roma235 A forma como o Apocalipse ataca a sociedade romana o coloca ao lado de outros
grupos judaicos anti-romanos posteriores ao conflito que terminou com a destruiccedilatildeo do
templo e da cidade de Jerusaleacutem (66-70) como os zelotes da Palestina236 Nestes grupos e
movimentos manifestou-se a perspectiva criacutetica de que o Impeacuterio Romano era incompatiacutevel
com o reino de Deus frequentemente traduzida por uma forte rejeiccedilatildeo dos siacutembolos e
232 PAGELS Elaine H The Social History of Satan part three John of Patmos and Ignatius of Antiochi
Contrasting Visions of Gods People Harvard Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006
p 489 233 Idem p 494 234 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The
Westminster Press 1984 p 84-99 SILVA David A de The social setting of the Revelation to John conflicts
within fears without Westminster Theological Journal Philadelfia n 54 p 273-302 1992 p 287 235 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In
BARR David L The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society
of Biblical Literature 2006 p 243-269 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de
Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 MESTER Carlos e OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano
e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n
69 p 72-82 2001 PAGELS Elaine Revelationshellip op cit 236 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p
213
85
imagens do poder romano entre eles o culto imperial Outros fatores ainda poderiam ter
atuado para produzir esta oposiccedilatildeo como expectativas religiosas de um Israel independente
de poderes estrangeiros ou medidas financeiras dos procuradores romanos237
De qualquer forma Pagels historiadora da religiatildeo chamou o Apocalipse de
ldquoliteratura de guerrardquo238 porque Joatildeo teria saiacutedo da Judeacuteia sua terra natal logo apoacutes
testemunhar o iniacutecio do confronto de seus conterracircneos judeus contra as forccedilas romanas em
66 Mesmo ausente ele pode ter ouvido falar dos 60 mil soldados romanos que cercaram
Jerusaleacutem e destruiacuteram a cidade Quando finalmente o cerco terminou eles a invadiram e a
deixaram em ruiacutenas O templo judaico que terminara de ser reformado poucos anos antes
foi destruiacutedo junto com a cidade O responsaacutevel inicial pelo cerco o general Vespasiano
acabou como o Imperador de Roma No tempo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse era
seu filho Domiciano que dirigia o Impeacuterio O impacto da destruiccedilatildeo do Templo e de
Jerusaleacutem foi significativo para diversos setores do Judaismo mas teve um impulso
particular em Joatildeo e pode ser considerado mesmo como ponto de partida para sua oposiccedilatildeo
a Roma
Para o Apocalipse entatildeo o Impeacuterio era um peso opressor que deveria ser eliminado
antes que o mundo viesse a conhecer a justiccedila Seu milecircnio pode ser visto como a
manifestaccedilatildeo do desejo pelo fim da ldquoRoma eternardquo Por isso como em outros apocalipses
judaicos a histoacuteria no Apocalipse eacute uma sequecircncia de poderes Aquele era o tempo de Roma
mas ela iria passar para ser sucedida pelo reino milenar do Messias Este ldquooacutediordquo pela
sociedade do presente histoacuterico parece ser assim mais um fator na promoccedilatildeo da expectativa
milenarista de Joatildeo de que um novo reino se levantaria em breve para substituir o atual
O milecircnio de Joatildeo o futuro reino do Messias expressa a condenaccedilatildeo joanina da
presente ordem romana Nos termos de John Collins em nenhum outro lugar a queda dos
poderosos eacute imaginada com tal alegria como neste apocalipse cristatildeo onde um anjo de peacute
sobre o sol convida os paacutessaros a comer a carne dos reis dos capitatildees e dos poderosos
(Apocalipse 1918)rdquo239
237 Uma anaacutelise dos conflitos entre judeus e romanos no seacuteculo I pode ser encontrada em GOODMAN Martin
Rome and Jerusalem the clash of ancient civilizations London Pinguin Books 2007 Especificamente sobre
a guerra de 66-70 cf REICKE Bo Histoacuteria do tempo do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 1996 p 282-
294 238 PAGELS Elaine Revelations op cit p 7 239 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica op cit p 18
86
Outro fator de emergecircncia do milecircnio joanino pode ter relaccedilatildeo com a situaccedilatildeo
perigosa de vida dos membros da comunidade de Jesus240 com a jaacute mencionada memoacuteria de
mortes violentas de disciacutepulos na guerra judaico-romana e na crise nerodiana da deacutecada de
60 e com a crucificaccedilatildeo de Jesus Isso parece estar subjacente agrave representaccedilatildeo dos maacutertires
no episoacutedio do milecircnio Afinal mesmo que natildeo haja evidecircncias de uma perseguiccedilatildeo e morte
generalizada dos membros das igrejas no periacuteodo do Apocalipse e o livro faccedila referecircncia a
apenas uma morte (Apocalipse 213) o milecircnio gira em torno dos maacutertires
O contexto mais amplo do aparecimento dos apocalipses judaicos foi de rejeiccedilatildeo ao
domiacutenio pagatildeo241 A resistecircncia poderia vir em forma ativa como a revolta dos macabeus
ou em forma passiva como a elaborada nos apocalipses de Daniel 7-12 no qual se anseia
pela destruiccedilatildeo dos poderes estrangeiros por forccedilas sobrenaturais mas sem qualquer
participaccedilatildeo humana no confronto Um tipo de resistecircncia intermediaacuteria envolve a
expectativa de sinergismo entre forccedilas divinas e humanas na destruiccedilatildeo escatoloacutegica dos
adversaacuterios como aparece na frase de Assunccedilatildeo de Moiseacutes ldquonosso sangue seraacute vingado pelo
Senhorrdquo (97) Esperava-se que a morte voluntaacuteria do judeu piedoso provocaria a vinganccedila
de Deus242 Eacute neste sentido que o Apocalipse descreve um nuacutemero fixado de maacutertires que
devem encontrar a morte antes que chegue o fim
Joatildeo advoga uma ruptura das comunidades de Jesus com a sociedade romana o que
na sua oacutetica provocaria a perseguiccedilatildeo e morte dos membros das igrejas Contudo seria
justamente essa perseguiccedilatildeo que ao promover o martiacuterio dos disciacutepulos iria apressar a
chegada do reino messiacircnico de Jesus243 O milecircnio assim pode ser visto como uma
propaganda martiroloacutegica Afinal os maacutertires satildeo os mais abenccediloados seguidores de Jesus e
as consequecircncias de seus atos continuam mesmo apoacutes suas mortes Nos termos do
Apocalipse ldquoFelizes os mortos que desde agora morrem no Senhor Sim diz o Espiacuterito
para que descansem das suas fadigas pois as suas obras os acompanhamrdquo (Apocalipse
1413)
240 A correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano na proviacutencia vizinha alguns anos apoacutes o Apocalipse pode ser
evidecircncia de que as comunidades jaacute corriam risco no final do seacuteculo I 241 Esta anaacutelise da relaccedilatildeo entre Apocalipse e poliacutetica pode ser encontrada em COLLINS Adela Yarbro The
political perspective of the Revelation to John Journal of Biblical Literature Atlanta v 96 n 2 p 241-256
1977 242 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p
209 243 Frankfurt descreve o periacuteodo entre a produccedilatildeo do evangelho de Marcos e o Apocalipse de Joatildeo (70-100)
como um periacuteodo de ldquofasciacutenio com o martiacuterio e a necessidade de imaginar a perseguiccedilatildeordquo entre algumas igrejas
Cf FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit p 436
87
O tema da morte violenta domina muitas visotildees de Joatildeo De vaacuterias formas forccedilas
demoniacuteacas ameaccedilam o movimento de Jesus a besta que persegue as duas testemunhas
(Apocalipse 111-13) o Dragatildeo que persegue a Mulher e sua semente (Apocalipse 121-17)
as bestas do mar e da terra que perseguem os ldquosantosrdquo (Apocalipse 131-1412) a Babilocircnia
que persegue as testemunhas de Jesus (Apocalipse 171-195)244
Eacute neste contexto que se entende a memoacuteria da crucificaccedilatildeo de Jesus Joatildeo vecirc paralelos
entre a situaccedilatildeo dos fieacuteis e do fundador do movimento e com isso constroacutei uma narrativa
que idealiza a imitaccedilatildeo de Cristo atraveacutes do sofrimento e martiacuterio Um significativo texto
neste sentido eacute Apocalipse 1210-12 onde os santos imitam Cristo vencendo o Dragatildeo pelo
sangue do Cordeiro (ldquoτὸ αἷμα τοῦ ἀρνίουrdquo) e pela palavra do testemunho (ldquoδιὰ τὸν λόγον τῆς
μαρτυρίας αὐτῶνrdquo) porque natildeo amaram a proacutepria vida mesmo diante da morte (ldquoοὐκ ἠγάπησαν
τὴν ψυχὴν αὐτῶν ἄχρι θανάτουrdquo) Segundo essa formulaccedilatildeo joanina a vitoacuteria sobre os poderes
demoniacuteacos estaacute ligada diretamente agrave morte (de Jesus e dos disciacutepulos) Para Thompson esta
identificaccedilatildeo com ldquoo Cordeiro crucificadordquo (ldquoἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένονrdquo - Apocalipse
56) tinha como objetivo promover uma especiacutefica identidade no fiel e suportar
determinados comportamentos245
Este imaginaacuterio de tribulaccedilatildeo funciona independente das experiecircncias concretas de
perseguiccedilatildeo das comunidades de disciacutepulos jaacute que deriva da construccedilatildeo de viacutenculos com
traumas no passado do movimento (a morte de Jesus as perseguiccedilotildees de Nero em Roma as
guerras na Judeacuteia a morte de Antipas) Assim a memoacuteria de mortes passadas e a expectativa
de muitas outras pode ser considerado mais um fator para o surgimento do milecircnio sectaacuterio
de Joatildeo ao aguardar a participaccedilatildeo seletiva de um grupo especial de fieacuteis os martirizados
no reino do Jesus exaltado246
Assim diante de fatores como estes entatildeo apontados a resposta de Joatildeo veio na
forma de apropriaccedilatildeo de tradiccedilotildees apocaliacutepticas a respeito do messias da periodizaccedilatildeo da
histoacuteria e do retorno ao paraiacuteso e da construccedilatildeo de um conjunto de representaccedilotildees
milenaristas que convidava ao levantamento dos muros da comunidade a ruptura sectaacuteria
244 THOMPSON Leonard A sociological analysis of tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 36 p 147-174 1986 p 148 245 Idem p 170 246 Em Daniel 123 tambeacutem apenas um grupo especial de fieacuteis os saacutebios passaria pela ressurreiccedilatildeo Cf
COLLINS John J Danielhellip op cit p 103
88
com membros divergentes a espera ansiosa pelo martiacuterio e finalmente o governo vitorioso
dos maacutertires durante o milecircnio
Existiam outros liacutederes como a liacuteder estigmatizada Jezabel (Apocalipse 220) que
propunham praacuteticas diferentes por entenderem que o relacionamento com a sociedade era
necessaacuterio para a sobrevivecircncia da comunidade247 Para estes a sociedade romana era o
espaccedilo de sobrevivecircncia e natildeo do confronto Mesmo que as categorias propostas por Joatildeo
tenham sido eventualmente abraccediladas em subsequentes apropriaccedilotildees sectaacuterias do milecircnio248
isso natildeo promoveu necessariamente a ruptura com a sociedade249 Isso levou Thompson a
afirmar com certa ironia que a continuidade do movimento de Jesus foi viabilizada porque
seus membros natildeo conseguiram objetivar as representaccedilotildees do Apocalipse250
37 Resumo
Joatildeo encerra seu Apocalipse com a narrativa daquilo que ele entendia ser o fim do
mundo e da histoacuteria Antes disso entretanto ele descreve um periacuteodo de governo milenar
do Jesus Glorificado e seus maacutertires ressuscitados O milecircnio aparece no livro joanino como
o tempo do aprisionamento de Satanaacutes e do reinado messiacircnico interino na terra Estas
expectativas parecem ter origem em tradiccedilotildees literaacuterias judaicas que combinavam noccedilotildees
sobre um redentor ungido por Deus um retorno aos tempos paradisiacuteacos e periodizaccedilotildees da
histoacuteria Estas antigas noccedilotildees parecem ter se reunido de uma forma muito semelhante na
regiatildeo da Aacutesia-Siacuteria-Palestina no final do seacuteculo I nas obras Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque por causa entre outros fatores dos traumas da guerra judaico-
romana No caso especiacutefico da versatildeo joanina sua emergecircncia ainda pode ter relaccedilatildeo com
conflitos de lideranccedila das comunidades de Jesus em funccedilatildeo de respostas diferentes agrave questatildeo
do relacionamento com a sociedade romana
247 DUFF Paul B Who rides the Beast op cit p 77 248 Como os movimentos milenaristas analisados em COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas
revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 249 Como a apropriaccedilatildeo do milecircnio em Agostinho Cf KYRTATAS Dimitris The Transformations of the
Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text The Writing of Ancient
History London Duckworth 1986 p 144-162 250 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L (ed) Reading
the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 46
IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM
Neste capiacutetulo aplicaremos ao Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram
lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar
elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso
este seraacute o espaccedilo principal para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando
apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o
livro joanino
41 O autor do Expositio in Apocalypsim
A obra intitulada Expositio in Apocalypsim editada pela Junta de Veneza em 1527 e
reimpressa pela Editora Miverva em 1964 reuacutene de fato trecircs textos distintos todos
vinculados a uma mesma pessoa O primeiro no foacutelio 1r na parte superior eacute aberto nestes
termos Incipit epistola prologalis domini Abbatis Joachim florensis O segundo comeccedila
no foacutelio 1v com estas palavras Incipit prologus domini Joaquim Abbatis florensis in expone
libri Apocalipsis e termina no 16v Explicit liber primus dictus introductorius Somente
entatildeo comeccedila o terceiro texto neste mesmo foacutelio 16v (Incipit prima septem partius in
expositione Apocalipsis) que se estende longamente ateacute o final da obra veneziana no foacutelio
224r (Explicit admiranda Expositio venerabilis Abbatis Joachim in Librus Apocalipsis Beati
Joannis Apostoli et Evangeliste) Eacute apenas este uacuteltimo e longo texto que se trata do
Expositio in Apocalypsim identificado no explicit como de autoria de Joaquim de Fiore No
interior do Expositio natildeo haacute outras auto-identificaccedilotildees Mesmo assim estudiosos do assunto
satildeo unacircnimes em aceitar o texto como obra do abade de S Joatildeo de Fiore bem como as outras
duas que abrem a versatildeo veneziana seiscentista A primeira eacute intitulada Carta Testamentaacuteria
pela historiografia251 a segunda recebe o tiacutetulo de Liber Introductorius que funciona como
uma siacutentese do Expositio
Tomando como ponto de partida este viacutenculo aceitando-o como autecircntico o que eacute
possiacutevel dizer sobre este Venerabilis Abbatis Joachim Nos seacuteculos posteriores agrave sua morte
ele foi estigmatizado por exemplo por Tomaacutes de Aquino que tratou as obras de Joaquim
251 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 69
90
como conjecturas252 contudo louvado por Dante Aliguiere que no final do canto XII de sua
Divina Comeacutedia colocou na boca de Satildeo Boaventura ldquoSabe que ao meu lado brilha o
calabrecircs abade Giovachino que tem o dom de profetizarrdquo253 Ele apareceu em cataacutelogo de
santos e em lista de heresias254 mas nunca chegou a ser oficialmente declarado herege ou
santo255 No meio deste ambiacuteguo rastro muitas lendas se acumularam a respeito desta figura
do medievo italiano Por isso uma reconstruccedilatildeo biograacutefica de Joaquim precisa levar em
conta os seguintes elementos
- os poucos dados deixados por ele na sua Carta Testamentaacuteria por volta de 1200 jaacute
no final de sua vida endereccedilada a um abade de sua Ordem
- estes poucos dados da Carta Testamentaacuteria precisam ser comparados com duas
hagiografias sobre Joaquim de Fiore escritas por contemporacircneos seus uma produzida pelo
seu secretaacuterio Lucas de Consenza Virtutum Beati Joachimi synopsis e Vita beati Joachimi
abbatis escrita provavelmente pouco depois de sua morte obra de um monge anocircnimo que
trabalhou com Joaquim enquanto ele era abade de Corazzo acompanhou-o posteriormente
para Petralata e por fim para S Joatildeo em Fiore256
- narrativas de caraacuteter lendaacuterio sobre ele encontradas em outras fontes que precisam
ser avaliadas pelo caraacuteter de plausibilidade e podem ajudar a esclarecer aspectos obscuros
de sua biografia
Com estes elementos cotejados eacute que estudiosos de Joaquim reconstroem sua vida257
Seu nascimento se deu provavelmente em 1135 em Celico uma vila pequena agrave leste de
Consenza na Calaacutebria proviacutencia do Reino normando da Siciacutelia Seu pai era Mauro um
notaacuterio do Arcebispo Sancio de Consenza Sobre sua matildee soacute se conhece seu nome Gema
Ele era o sexto de oito filhos do casal e o mais velho a sobreviver258
Joaquim foi enviado ainda jovem para trabalhar tambeacutem em Consenza como oficial
da Chancelaria normanda da Calaacutebria Sua famiacutelia o treinava para ser um notaacuterio como seu
252 MC GINN Bernard The abbot and the doctors scholastic reactions to the radical eschatology of Joaquim
of Fiore Church History Cambridge v 40 n 1 p 30-47 1971 p 19 253 DANTE ALIGUIERE A divina comeacutedia Satildeo Paulo Nova Cultural 2002 p 338 254 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London
University of Notre Dame Press 1993 p 3 255 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 256 TRONCARELLI Fabio Gioacchino da Fiore la vita il pensiero le opere Roma Cittagrave Nuova Editrice
2002 p 15 257 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4 TRONCARELLI op cit p 15 DANIEL E Randolph Abbot
Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical
Society 1983 p xii REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 258 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii
91
pai259 Isso lhe forneceu preparo intelectual com o domiacutenio do grego liacutengua predominante
nos registros de governo da Calaacutebria e Siciacutelia bem como do Latim O aacuterabe era bem
conhecido nos espaccedilos da corte da Siciacutelia poreacutem natildeo haacute indiacutecios de que Joaquim dominava
este idioma apesar dos provaacuteveis contatos com ele durante o tempo em que esteve na corte
do reino em Palermo
Apoacutes um periacuteodo inicial em Consenza o ainda jovem Joaquim foi encaminhado para
a corte de William II na Siciacutelia onde trabalhou para o chanceler Estevatildeo de Perche Apoacutes
algum tempo na corte foi com o notaacuterio Santoro para Apuacutelia e Val di Crati onde foi
acometido de uma doenccedila Possivelmente para tratar da enfermidade ele retornou para a
corte em Palermo
Em meados de 1167 Joaquim decidiu fazer uma peregrinaccedilatildeo agrave Jerusaleacutem Eacute difiacutecil
saber as causas desta accedilatildeo de Joaquim apesar da probabilidade de sua doenccedila ter alguma
relaccedilatildeo com o evento tanto com o abandono da corte quanto com a viagem para a Terra
Santa260 Troncarelli argumenta que jaacute na base desta peregrinaccedilatildeo estava a decisatildeo juvenil
de Joaquim de abraccedilar o eremitismo e todo o desenvolvimento da sua viagem jaacute seria parte
deste propoacutesito de vida eremita261 Para Randolph Daniel entretanto a vocaccedilatildeo de Joaquim
se deu durante a peregrinaccedilatildeo quando ao passar por Tripoli na Siria ele teria enfrentado
outra enfermidade desta vez por causa de uma epidemia local Como sobreviveu a ela
tomou a decisatildeo de abraccedilar o monasticismo ainda que neste periacuteodo a opccedilatildeo tenha sido por
um tipo de monasticismo natildeo-cenobiacutetico em isolamento e ascetismo262 Independentemente
entretanto do momento especiacutefico em que se deu a vocaccedilatildeo religiosa de Joaquim ela deve
ter tido alguma relaccedilatildeo com sua peregrinaccedilatildeo ao oriente263
Joaquim concluiu a peregrinaccedilatildeo a Jerusaleacutem e voltou para Siciacutelia em 1171264 natildeo
para a corte mas como outros monges gregos da ilha para uma regiatildeo montanhosa e isolada
Ele escolheu a proximidade do Monte Etna perto de um antigo monasteacuterio oriental265
Alguns meses depois atravessou o estreito de Messina na direccedilatildeo da Calaacutebria sua terra natal
259 TRONCARELLI op cit p 16 260 Adeline Rucquoi analisa as motivaccedilotildees provaacuteveis de peregrinos na Idade Meacutedia e menciona a relaccedilatildeo entre
enfermidade e voto de peregrinaccedilatildeo como uma causa frequente Cf RUCQUOI Adeline Peregrinos
medievales Tiempo de historia Salamanca v VII n 75 p 82-99 1981 p 85 261 TRONCARELLI op cit p 18 262 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii 263 SANTI Francesco La Bibbia in Gioacchino da Fiore In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio
(ed) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 257-267 p 259 264 AFFLECK Toby Joachim of Fiore Access History Brisbane v 1 n 1 p 45-54 1997 p 45 265 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der
Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98
92
Buscou um abrigo ou mesmo uma caverna em Guarassanum perto de Consenza e da vila
onde nasceu Narrativas de caraacuteter lendaacuterio entatildeo narram um encontro entre Joaquim e
Mauro Eacute um topos recorrente na biografia de grandes figuras religiosas do periacuteodo quando
o pai tenta dissuadir o filho de sua missatildeo religiosa para retomar uma vida social em
ascensatildeo Randolph Daniel destaca entretanto que apesar da natureza artificial da narrativa
encontros como este poderiam ser frequumlentes quando filhos de famiacutelias bem situadas na
sociedade decidiam abandonar uma carreira de sucesso para abraccedilar uma vocaccedilatildeo religiosa
de pouco prestiacutegio como era a vida isolada de um eremita266 O proacuteprio Joaquim parece falar
de um conflito com sua famiacutelia no interior de sua Concordia com a mensagem de que havia
recusado a promoccedilatildeo social a escala de sucesso no interior do Reino da Siciacutelia para abraccedilar
a ascese267
Apoacutes um periacuteodo recluso em Guarassanum Joaquim aceitou a hospitalidade da
abadia cisterciense de Sambucina ainda perto de Consenza Mas natildeo ficou muito tempo ali
pois se deslocou para Rende cerca de 10 quilocircmetros a noroeste onde por um ano pregou
agraves pessoas da regiatildeo Receoso de estar cometendo algum ato de desobediecircncia por pregar
sem autorizaccedilatildeo procurou o bispo Roberto de Catanzaro de quem recebeu o ordenamento
sacerdotal e a referida autorizaccedilatildeo para pregar Foi neste periacuteodo que Joaquim conheceu o
monasteacuterio de S Maria de Corazzo jaacute que tanto para ir quanto para voltar de Catanzaro ele
precisou se hospedar ali
Ele retomou sua atividade em Rende como pregador itinerante mas natildeo demorou
muito para tomar a decisatildeo de abandonar o clero secular e ingressar no monasteacuterio de
Corazzo como noviccedilo268 Este monasteacuterio fora fundado em 1157 por Rogeacuterio de Martirano
O abade desde o tempo da fundaccedilatildeo era Columbano Em 1177 entretanto por algum
motivo natildeo explicitado apenas relatado como scandala os monges de Corazzo resolveram
afastaacute-lo e na sequecircncia elegeram Joaquim para substituiacute-lo o que indica o status de
lideranccedila que o ex-peregrino jaacute havia adquirido entre eles Os monges podem ter percebido
que a formaccedilatildeo cultural de Joaquim o havia capacitado para dirigir a casa funccedilatildeo essa que
266 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xiii 267 Idem p xx Troncarelli entende que esse conflito poderia ser ainda mais significativo em funccedilatildeo do fato de
Joaquim ter se afastado da chancelaria normanda durante um periacuteodo de desenvolvimento do Reino da Siciacutelia
ldquoperiacuteodo de prosperidade e paz sem igualrdquo Cf TRONCARELLI op cit p 19 268 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p iv
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envolvia certo grau de relacionamento com os poderes sociais circundantes na defesa da
propriedade e dos direitos do monasteacuterio269
Joaquim natildeo aceitou a eleiccedilatildeo rejeitou o cargo e saiu do mosteiro Foi inicialmente
para S Trindade em Acri monasteacuterio fundado em 1080 pelo conde Rogeacuterio I270 Insatisfeito
com o pouco isolamento do local deixou-o igualmente e procurou a abadia de Sambucina
na qual jaacute havia se hospedado Esta era a uacutenica casa da Ordem de Cister no Reino da Siciacutelia
ateacute o momento Joaquim tentou nela seu ingresso mas foi rejeitado por estar jaacute filiado a
Corazzo
Enquanto estava em Sambucina ele foi pressionado pelo abade da casa pelo
arcebispo Ruffus de Consenza e por Melis um juiz de Rende a retornar ao seu monasteacuterio
e aceitar o resultado da eleiccedilatildeo Diante dos apelos Joaquim assumiu a direccedilatildeo da abadia de
Corazzo ainda no ano de 1177271
Enquanto abade ele dedicou boa parte de suas energias na tentativa de filiar sua casa
agrave Ordem Cisterciense Uma carta do bispo Miguel de Martirano datada de 1177 faz menccedilatildeo
a um privileacutegio outorgado pelo papa Alexandre III (1159-1181) a Corazzo para que os
monges adotassem os costumes cistercienses Natildeo daacute para saber se a adoccedilatildeo destes costumes
eacute anterior ou posterior agrave eleiccedilatildeo de Joaquim De qualquer forma para conseguir ingressar
efetivamente na Ordem era preciso ser aceito como casa-filha de uma casa jaacute estabelecida
na Ordem de Cister272
A primeira tentativa de Joaquim foi Sambucina proacutexima de Corazzo igualmente na
Calaacutebria e com quem ele jaacute tinha tido contatos em mais de uma ocasiatildeo O pleito poreacutem
foi rejeitado aparentemente em funccedilatildeo de questotildees ligadas agrave propriedade do monasteacuterio de
Joaquim273 Com a rejeiccedilatildeo de Sambucina o abade calabrecircs se voltou para Casamari uma
casa cistersiense fora do Reino da Siciacutelia fundada em 1140 a leste de Roma274 Ali ele
chegou em 1183 e ficou por oito meses partindo somente no ano seguinte A resposta de
Casamari foi semelhante agrave de Sambucina mas durante este periacuteodo Joaquim encontrou a
269 Graham Loud analisou o processo de eleiccedilatildeo no interior das abadias da Itaacutelia meridional em LOUD
Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007 p 462-467 270 Idem p 86 271 DESROCHE Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade
Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 269 272 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xv 273 TRONCARELLI op cit p 21 274 DUBY Georges Atlas Histoacuterico Mundial Madrid Editorial Debate 1987 p 49
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hospitalidade do abade Geraldo (abade de 1183-1209) e dedicou a maior parte do tempo no
estudo do acervo da rica biblioteca do monasteacuterio275
No mecircs de maio de 1184 aproveitou a oportunidade para visitar o papa Luacutecio II
(papa de 1181-1185) que se encontrava em Veroli Segundo Marjorie Reeves esta visita ao
Papa era uma tentativa de Joaquim de legitimar a produccedilatildeo de suas obras o que naquele
momento era sua missatildeo de vida276 Diante do pontiacutefece ele teve a oportunidade de explicar
um manuscrito encontrado em Roma entre os documentos do falecido Cardeal Mathias de
Angers O texto tratava de profecias tradicionais sobre o final dos tempos cobrindo temas
como o Anticristo a grande tribulaccedilatildeo e o fim do mundo Diante de Luacutecio III Joaquim
aplicou no documento anocircnimo a mesma forma de exegese que ele jaacute aplicava nos textos
biacuteblicos buscando elementos do seu tempo que pudessem corresponder agraves profecias
narradas na obra277 Posteriormente ele transcreveu sua exposiccedilatildeo deste documento num
pequeno tratado intitulado Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno 1184278
onde trata da tribulaccedilatildeo futura da Igreja originada em forccedilas do Impeacuterio Germacircnico como
parte do processo divino de purificaccedilatildeo da Igreja279
Como resultado do encontro o papa Luacutecio aprovou o meacutetodo hermenecircutico de
Joaquim e exortou-o a concluir os escritos que desejava produzir280 Entendendo que o papa
havia dado a ele a licenccedila que ele queria o abade calabrecircs iniciou ainda em Casamari a
produccedilatildeo simultacircnea de vaacuterias obras Ele natildeo se contentava em comeccedilar e terminar cada
uma mas trabalhava nelas de forma concomitante auxiliado por dois escribas e um
secretaacuterio Lucas de Consenza que se tornou seu amigo a partir de entatildeo Ele ditava e
revisava o material que os seus ajudantes escreviam281
Joaquim retornou para Corazzo em 1184 Segundo West e Zimdars-Swartz ele
voltou com a clara perspectiva de que as questotildees administrativas vinculadas ao seu cargo o
atrapalhavam natildeo soacute a escrever suas ideias mas tambeacutem a divulgaacute-las para preparar a igreja
para os eventos iminentes que estavam por vir282
Em 1186 Joaquim foi a Verona para render homenagem ao novo pontiacutefice Urbano
III (papa de 1185-1187) onde o papa renovou a autorizaccedilatildeo dada anteriormente por Luacutecio
275 TRONCARELLI op cit p 21 276 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 6 277 SANTI op cit p 261-265 278 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 90 279 TRONCARELLI op cit p 23-24 280 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 7 281 TRONCARELLI op cit p 22 282 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4
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II e ainda ldquoincitou-o a continuar seus escritosrdquo283 Diante da autorizaccedilatildeo de dois papas para
que escrevesse ele procurou na primavera desde mesmo ano uma sela mais reservada num
local perto de Corazzo chamado Petralata sem rompimento formal ainda com o seu
monasteacuterio
Em 1188 Joaquim foi a Roma onde Clemente III (papa de 1187-1191) emitiu uma
carta na qual renovou as autorizaccedilotildees anteriores e solicitou que fossem levadas apoacutes
concluiacutedas para a avaliaccedilatildeo da cuacuteria romana O pontiacutefece ainda teria aprovado a resignaccedilatildeo
de Joaquim do cargo de abade de Corazzo no momento exato em que Corazzo finalmente
conseguiu ingresso na ordem Cisterciense como filha da abadia de Fossanova uma das
maiores casas da Ordem no territoacuterio papal fundada em 1135 ao sul de Roma284 O
abandono de Corazzo agora cisterciense rendeu a Joaquim o ressentimento dos seus
monges e do proacuteprio Capiacutetulo Geral da Ordem que passou a exigir sua volta Eles o
acusaram de transgredir o primeiro voto da profissatildeo monaacutestica beneditina que eacute a
estabilidade no monasteacuterio285
Em vez de retornar entretanto de posse da resignaccedilatildeo papal ele continuou por um
tempo em Petralata contando com a ajuda de Rainer um eremita da ilha de Ponza que se
juntou a ele No inverno de 1188 insatisfeitos com as interrupccedilotildees e visitas eles foram atraacutes
de um lugar mais isolado e o encontraram nas montanhas calabresas de Fiore para onde se
mudaram em maio de 1189 Naquele lugar agrave medida que disciacutepulos vinham se juntar a
Joaquim nasceu a necessidade de organizar um monasteacuterio O resultado foi a fundaccedilatildeo da
abadia de S Joatildeo de Fiore286
A fundaccedilatildeo da casa entretanto se deu no contexto adverso da transiccedilatildeo dinaacutestica
entre a morte de William II no final de 1189 o curto governo de Tancredo (entre 1190-1194)
e a coroaccedilatildeo de Henrique VI (final de 1194) Eacute um periacuteodo no qual apesar de ter renunciado
anteriormente agrave direccedilatildeo do monasteacuterio de Corazzo Joaquim estaacute nos termos de Troncarelli
ldquoapaixonadamenterdquo envolvido na fundaccedilatildeo de uma casa proacutepria287 Ele renunciara agrave
283 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xviii 284 DUBY op cit p 49 285 TRONCARELLI op cit p 24 Alguns autores sugerem entretanto que Joaquim deixou Corazzo por
entender que a Ordem de Cister jaacute natildeo era riacutegida o suficiente principalmente na questatildeo da disciplina
monaacutestica Ele desejava o cumprimento estrito da Ordem de S Bento o que para o abade significava o
abandono das questotildees temporais uma vida de simplicidade a pureza de coraccedilatildeo e a vida contemplativa Cf
DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997
p 41 286 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5 287 TRONCARELLI op cit p 27
96
lideranccedila de uma casa para ser liacuteder de outra Esta mudanccedila de perspectiva de Joaquim
poderia ter relaccedilatildeo com o papel que ele imaginou ter nos tempos que estariam por vir sobre
a Igreja Segundo este professor da Universitagrave della Tuscia ele entendeu que precisava do
apoio de uma nova casa monaacutestica na promoccedilatildeo de sua missatildeo de preparar as pessoas para
a intervenccedilatildeo iminente do Espiacuterito Santo288
Por isso se antes ele queria o isolamento agora ele precisa de apoio natildeo apenas dos
papas mas tambeacutem dos poderes poliacuteticos Entre 1190-1191 ele passou um periacuteodo em
Palermo enquanto solicitava ajuda de Tancredo para as obras de S Joatildeo de Fiore A resposta
do rei normando foi favoraacutevel a Joaquim por meio de uma ldquogenerosa doaccedilatildeordquo289
Enquanto esteve na Siciacutelia em negociaccedilatildeo com Tancredo a ilha se tornou ponto de
parada de uma cruzada a caminho de Jerusaleacutem Joaquim foi convocado para se encontrar
com Ricardo Coraccedilatildeo de Leatildeo da Inglaterra e um grupo de ingleses em Messina290 Ricardo
desejava de Joaquim algum tipo de vaticiacutenio a respeito da cruzada em Jerusaleacutem o que
demonstra que neste periacuteodo o calabrecircs havia alcanccedilado a reputaccedilatildeo de profeta entre alguns
de seus conterracircneos291 O abade usou a visatildeo de Apocalipse 179-10 que descreve uma
besta com sete cabeccedilas para interpretar a Cruzada A passagem apocaliacuteptica fala de sete reis
dos quais caiacuteram cinco um existe e outro ainda natildeo chegou Segundo o autor do Expositio
as cinco cabeccedilas que caiacuteram seriam Herodes Nero Constantino Maomeacute e Melsemuto A
sexta cabeccedila neste caso seria Saladino aquele ldquoum que existerdquo que seria destruiacutedo em
breve para que a seacutetima cabeccedila o que ldquoainda natildeo chegourdquo o derradeiro Anticristo se
manifestasse Este teria jaacute 15 anos e estaria pronto para assumir seu poder
O rei Ricardo perguntou a Joaquim onde o Anticristo teria nascido e onde iria reinar
Joaquim respondeu que ele nascera in urbe Romana e obteria a Seacute Apostoacutelica A visatildeo
aparentemente pouco ortodoxa de Joaquim sobre o Anticristo agradou o monarca inglecircs
adversaacuterio do papa Reeves argumenta entretanto que ao apontar Roma como o local de
nascimento do Anticristo Joaquim estava somente traduzindo a antiga expectativa em seus
proacuteprios termos Joaquim esperava um falso papa como uma de suas manifestaccedilotildees mas
288 Idem p 29 289 Idem p 28 290 Conferir a siacutentese e uma anaacutelise do encontro em REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later
Middle Ageshellip op cit p 7-9 291 Segundo Mc Ginn ldquoreis e rainhas papas e priacutencipes buscavam seus conselhosrdquo a ponto de se tornar uma
das figuras religiosas mais significativas do periacuteodo Cf MC GINN Bernard Apocalyptic Spiritualityhellip op
cit p 98
97
sem implicar neste caso que a Igreja romana deveria ser identificada com a Babilocircnia de
Apocalipse 17-19292
Apoacutes os eventos de Messina o fundador de Fiore voltou para Calaacutebria Mas em 1191
precisou descer novamente da regiatildeo montanhosa na direccedilatildeo de Naacutepoles para um encontro
com Henrique VI que em disputa pela coroa da Siciacutelia viera destituir Tancredo do trono O
abade exortou o monarca germacircnico a natildeo agir com violecircncia contra a coroa siciliana ou
seus aliados Ele usou uma passagem do Antigo Testamento Ezequiel 267 para criticar a
accedilatildeo de Henrique relacionando os eventos de Babilocircnia e Tiro com Henrique e a Siciacutelia293
Independentemente do peso que as palavras de Joaquim tiveram na decisatildeo de
Henrique o monarca realmente decidiu abandonar a regiatildeo e voltar para a Germacircnia Os
eventos posteriores viriam a mostrar um Henrique realmente disposto a ajudar a casa de
Fiore Apoacutes a morte de Tancredo a caminho para assumir o reino da Siciacutelia Henrique
encaminhou uma carta em que fazia uma doaccedilatildeo ao novo monasteacuterio Nela Joaquim eacute pela
primeira vez declarado abade de S Joatildeo em Fiore Em 6 de marccedilo de 1195 alguns meses
apoacutes a coroaccedilatildeo o monarca germacircnico escreveu uma segunda carta garantindo a S Joatildeo um
dote anual em moedas de ouro Bizantinas294
Agora com o apoio do Imperador Joaquim retornou ao papa Celestino III (1191-
1198) e pediu a ele sua aprovaccedilatildeo para S Joatildeo de Fiore Em Roma no dia 25 de agosto de
1196 Celestino emitiu uma bula na qual formalmente aprovou S Joatildeo e a Regra da nova
Ordem Florense295 Ainda nesta bula Joaquim aparece descrito como o abade de Fiore
indicando que pelo menos aos olhos do papa ele natildeo tinha mais conexotildees com Corazzo nem
com a Ordem Cisterciense A mesma aprovaccedilatildeo se deu em 1204 por Inocecircncio III e duas
vezes por Honoacuterio em 1216 e 1220 Mesmo assim desde 1192 Joaquim era considerado
fugitivus pelo Capiacutetulo Geral Cisterciense296
Em 1196 Joaquim retornou a Palermo na qualidade de confessor da rainha
Constacircncia que veio a confirmar todas as doaccedilotildees da coroa para Fiore apoacutes a morte de
Henrique VI em 1197
292 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 9 293 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 66 294 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 295 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n
1 p 217-240 2004 p 219 Esta Regra se perdeu apesar de estudiosos entenderem que ela deveria ser bem
proacutexima da Regra Cisterciense 296 TRONCARELLI op cit p 30
98
O abade Joaquim escreveu em marccedilo de 1200 um documento narrando as
autorizaccedilotildees que entendeu ter recebido do papado de Roma para escrever suas obras e o
compromisso assumido para enviaacute-las quando estivessem prontas (Expositio in
Apocalpysim 1r-v) Ele encaminhou suas trecircs principais obras (Expositio in Apocalypsim
Concordia Novi ac Veteris Testamenti e Psalterium decem Chordarum) para anaacutelise da
cuacuteria papal Mas natildeo teve tempo para receber de Roma a tal avaliaccedilatildeo pois no dia 30 de
marccedilo de 1202 na abadia de S Martino di Giove que havia sido dada para a Ordem de Fiore
em 1201 pelo Arcebispo Andreas de Cosenzza ele veio a falecer297 sendo transferido
posteriormente para S Joatildeo de Fiore
42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim
Um fenocircmeno significativo nas obras de Joaquim eacute a forma como ele reelabora e
repete os mesmos temas seguidamente num processo contiacutenuo e dinacircmico Torna-se
importante entatildeo apontar data e momento de produccedilatildeo natildeo apenas para o Expositio in
Apocalysim mas para as demais obras do abade relacionadas com o Apocalipse de Joatildeo que
sobreviveram e estatildeo disponiacuteveis para consulta Praephatio super Apocalypsim Enchiridio
super Apocalypsim e Liber Introductorius298 A produccedilatildeo do comentaacuterio maior (Expositio)
se deu por meio da produccedilatildeo de obras menores (em formato de sermatildeo e tratado) desde os
primeiros anos da deacutecada de 1180 ateacute os anos proacuteximos de sua morte299
A mais antiga destas obras entretanto o Praephatio super Apocalypsim eacute marcada
pela natureza compoacutesita Antes de ser um uacutenico texto eacute formado pela reuniatildeo de dois
pequenos sermotildees nos quais o abade faz uma apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o Apocalipse de
Joatildeo e a histoacuteria da Igreja300
O primeiro sermatildeo comeccedila com a expressatildeo ldquoO Livro do Apocalipse eacute o uacuteltimo de
todos os livros escritos com espiacuterito de profecia incluiacutedo no cataacutelogo das Sagradas
297 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 298 Haacute ainda um ldquoindependente e curto comentaacuterio do Apocalipserdquo ineacutedito e sem publicaccedilatildeo denominado pela
historiadora Marjorie Reeves como Apocalypsis Nova presente em dois manuscritos do seacuteculo XIII Cf
REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 513 299 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p
286 300 SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 Foi desta
ediccedilatildeo que partiu a traduccedilatildeo para o portuguecircs do professor Rossatto ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao
Apocalipse op cit Outra traduccedilatildeo em portuguecircs pode ser encontrada em BERNARDI Orlando Comentaacuterio
ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010
99
Escriturasrdquo301 O segundo inicia com a frase ldquoAntes de dizer qualquer coisa sobre o livro do
Apocalipse devemos considerar que este livro estaacute provido de um tiacutetulo de uma saudaccedilatildeo
de um prefaacuteciordquo302 Cada sermatildeo tem sua proacutepria unidade interna e foram reunidos em
circunstacircncias desconhecidas por causa de afinidades temaacuteticas Iremos distingui-los como
faz Potestagrave pelas primeiras palavras latinas de cada um303 O primeiro e mais antigo pode
ser denominado Apocalipsis liber ultimus O segundo Locuturi aliquid Ambos foram
escritos por Joaquim para servir de base para a pregaccedilatildeo em contexto lituacutergico num periacuteodo
anterior agrave sua passagem por Casamari (1183-1184)304 Estes tratados constituem uma
primeira aproximaccedilatildeo exegeacutetica de Joaquim ao Apocalipse de Joatildeo cujo puacuteblico alvo
imediato era formado pelos monges do monasteacuterio de Corazzo
A proacutexima obra de Joaquim a desenvolver uma leitura do Apocalipse eacute o Enchiridion
super Apocalypsim Ele foi escrito no periacuteodo em que o abade pousou em Casamari (1183-
1184)305 Nele Joaquim faz uma apresentaccedilatildeo ampla da obra de Joatildeo sem discutir frase a
frase como faraacute no Expositio mas jaacute expondo suas partes principais O termo ldquoEnchiridionrdquo
pode ser traduzido como ldquomanualrdquo e foi escrito segundo o abade para ldquoapresentar o
conteuacutedo de todo o livro do Apocalipserdquo (Enchiridion l 56-57)306 Eacute uma siacutentese portanto
do conteuacutedo que ele entendia estar presente no uacuteltimo livro da Biacuteblia cristatilde e poderia ser
utilizado como ldquotexto introdutoacuterio e explicativordquo307 do seu Expositio Isto daacute ao Enchiridion
tambeacutem um papel de esquema ou projeto do comentaacuterio ao Apocalipse que o abade
comeccedilaria a produzir em Casamari
O texto comeccedila com ldquoIncipit Enchiridion abbatis Joachim super Apocalypsimrdquo (l
1) seguido da primeira frase do texto ldquoComo catoacutelicos e ortodoxos lutamos (certatum) com
os mais fortes entusiasmos (studiis) para lanccedilar os fundamentos da Igreja (ecclesiae
fundamenta)rdquo (l 2-3)308 Este texto foi produzido por Joaquim para apresentar o Expositio e
lhe servir de resumo mas no momento em que o Expositio estava para ser concluiacutedo o
301 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse op cit p 453 302 Idem p 462 303 POTESTAgrave op cit p 290 e 294 304 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 75 Potestagrave entretanto sugere um periacuteodo
posterior agrave Casamari entre 1185-1186 para Apocalipsis liacuteber ultimus e uma data subsequente para Locuturi
aliquid Cf POTESTAgrave op cit p 290 e 294 305 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 92 Potestagrave entretanto prefere datar o Enchiridion
para uma data posterior a 1194 Cf POTESTAgrave op cit p 328 306 As citaccedilotildees do Enchridion seguem o texto criacutetico de BURGER Edward K Joachim of Fiore Enchiridion
super Apocalypsim Toronto Pontifical Institute of Mediaeval Studies 1986 307 POTESTAgrave op cit p 327 308 BURGER op cit p 9
100
Enchiridion sofreu uma revisatildeo tatildeo profunda com alteraccedilatildeo de aspectos significativos do
seu conteuacutedo que os estudiosos preferem mudar seu nome chamando-o entatildeo de Liber
introductorius309 Gian Luca Potestagrave estima que esta revisatildeo do Enchiridion pode ter ficado
pronta no uacuteltimo ano do pontificado do papa Celestino III (papa de 1191-1198) ainda com
a funccedilatildeo de ldquosimplificar e sintetizar os resultados da obra maiorrdquo310
Uma comparaccedilatildeo entre a primeira redaccedilatildeo (Enchiridion iniacutecio da deacutecada de 1180) e
essa segunda redaccedilatildeo (Liber introductorius 1198) revela mudanccedilas por exemplo na postura
quanto ao Impeacuterio Germacircnico que eacute tratado de forma criacutetica no Enchiridion mas de forma
branda no Liber introductorius Afinal a monarquia Hohenstaufen antes temida por
Joaquim havia se manifestado concretamente apoacutes 1191 na figura generosa de Henrique VI
e suas doaccedilotildees para a casa de S Joatildeo de Fiore311
Com relaccedilatildeo ao Expositio in Apocalypsim como jaacute argumentado anteriormente ele
eacute o resultado de mais de uma deacutecada de trabalho e elaboraccedilatildeo Joaquim o comeccedilou ainda em
Casamari (1183-1184) e soacute o concluiu no final do seacuteculo A informaccedilatildeo sobre a conclusatildeo eacute
dada pelo proacuteprio Joaquim na Carta Testamentaacuteria (Expositio in Apocalypsim 1r) Se a data
de 1198 para o Liber introductorius estiver correta as repetidas referecircncias a ele encontradas
no interior do Expositio indicam que Joaquim usou o periacuteodo entre 1198 e 1200 para fazer
uma revisatildeo completa de seu grande comentaacuterio do Apocalipse312
43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim
O Expositio in Apocalypsim eacute certamente a maior obra de Joaquim de Fiore Nas
ediccedilotildees seiscentistas de Veneza o Expositio tem 224 foacutelios contra 135 da Concordia O
abade denominou o Expositio na sua Carta Testamentaacuteria de ldquoexpositione Apocalipsisrdquo
(Expositio in Apocalypsim 1r) Mas o que consistiria em termos formais esta ldquoexposiccedilatildeo
do Apocalipserdquo Ela natildeo segue a forma literaacuteria da Concordia nem do Psalterium ou
mesmo do Enchiridion Eacute importante neste caso aplicar ao Expositio uma questatildeo que jaacute
aplicamos ao Apocalipse de Joatildeo justamente porque a definiccedilatildeo do gecircnero literaacuterio de uma
obra eacute parte da escolha do autor para definir a forma como ele desejaria que seu livro fosse
309 POTESTAgrave op cit p 327 310 Idem p 329 311 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 108 312 POTESTAgrave op cit p 287
101
lido313 A obra de Joatildeo eacute enquanto gecircnero literaacuterio um ldquoapocalipserdquo e se insere na longa
tradiccedilatildeo literaacuteria judaica apocaliacuteptica que retrocede ao seacuteculo II antes de Cristo O Expositio
entretanto natildeo eacute um apocalipse antes eacute um comentaacuterio biacuteblico do Apocalipse
Um comentaacuterio biacuteblico eacute formalmente uma explicaccedilatildeo sistemaacutetica abrangente e
sequencial de um determinado livro da Biacuteblia cujo propoacutesito eacute adaptar o material biacuteblico
para as circunstacircncias das novas audiecircncias314 A explicaccedilatildeo de apenas algumas porccedilotildees
capiacutetulos versiacuteculos ou periacutecopes natildeo poderia formalmente ser definida como um
comentaacuterio jaacute que ele precisava cobrir todo o livro biacuteblico Por sequencial entende-se o
acompanhamento da estrutura do texto biacuteblico que se estaacute comentando No caso do
Apocalipse o comentarista o seguia nos blocos ou periacutecopes natildeo necessariamente versiacuteculo
a versiacuteculo ou capiacutetulo por capiacutetulo jaacute que essa padronizaccedilatildeo soacute comeccedilaria a partir do seacuteculo
XIII315
O embate narrado por Euseacutebio de Cesareacuteia entre o bispo Neacutepos e Dioniacutesio serve para
ilustrar a forma como o Apocalipse era usado nos trecircs primeiros seacuteculos (Histoacuteria
Eclesiaacutestica VII XXIV 1-9) Neacutepos era um quiliasta316 cuja mensagem enfatizava a
realidade de um futuro governo terreno de Cristo na terra Para se contrapor a uma exegese
alegoacuterica do Apocalipse que tentava minimizar a realidade histoacuterica deste reinado
messiacircnico este bispo do Egito escreveu um livro intitulado Refutaccedilatildeo dos alegoristas
Contra Neacutepos e seu livro se levantou Dioniacutesio que escreveu Sobre as promessas tambeacutem
para discutir o Apocalipse de Joatildeo Euseacutebio ainda narrou que neste periacuteodo aconteceu um
longo debate acerca da forma como o livro de Joatildeo deveria ser interpretado
O bispo de Cesareacuteia fala de dois liacutederes cristatildeos que escreveram textos e recorrem
parcialmente ao Apocalipse para defender suas ideias Em linhas gerais a maioria das
pessoas que recorriam ao Apocalipse neste periacuteodo o usa em contexto de polecircmica
doutrinaacuteria ou apologeacutetica para responder a uma heresia dar suporte a uma determinada
posiccedilatildeo teoloacutegica encorajar cristatildeos perseguidos Papias Justino Martir Irineu Tertuliano
313 Conferir esta discussatildeo no primeiro capiacutetulo desta tese 314 MATTER E Ann The Apocalypse in Early Medieval Exegesis In EMMERSON Richard K MCGINN
Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 38-50 p 38-
39 315 SMALLEY Beryl The study of the Bible in the Middle Ages Oxford Basil Blackwell 1952 p 222-224 316 O quiliasmo eacute definido por Wainwright como ldquoa crenccedila de que Cristo retornaraacute para a terra e inauguraraacute
uma era de prosperidade de mil anos sobre o planetardquo Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious
Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 21
102
Hipolitus Vitorino Lactantius Metodius e Comodianus317 Destes com exceccedilatildeo de
Vitorino todos fizeram uso apenas de pequenas porccedilotildees do Apocalipse
Eacute de Vitorino em diante que surge a praacutetica de comentar o Apocalipse inteiro ldquocomo
resposta a problemas particulares da igreja de cada eacutepocardquo318 O bispo de Pettau na Panocircnia
Superior romana escreveu um comentaacuterio ao Apocalipse em grego cerca do ano 300 Sobre
ele opinou Jerocircnimo ao falar da praacutetica de explicar um livro biacuteblico inteiro ldquoentre os latinos
por outra parte haacute um grande silecircncio exceccedilatildeo feita do maacutertir Vitorino de santa memoacuteria
que podia dizer com o apoacutestolo que apesar de carecer de eloquumlecircncia natildeo carecia de
ciecircnciardquo319 No Oriente o primeiro comentaacuterio em grego surgiu apenas no sexto seacuteculo de
um autor anocircnimo conhecido apenas como Ecumecircnio320 sendo seguido de perto pelo
Comentaacuterio de Andreas de Cesareia na Capadoacutecia321
O original grego do Comentarius de Vitorino estaacute perdido mas seu texto eacute bem
conhecido por meio da recensatildeo feita por Jerocircnimo para o Latim O bispo de Pettau morreu
no tempo das perseguiccedilotildees de Diocleciano e isso aparece marcado em sua interpretaccedilatildeo do
Apocalipse322 Ele entendia que os eventos narrados no livro de Joatildeo eram iminentes pois
diziam respeito agraves tribulaccedilotildees das igrejas de sua eacutepoca Ele segue a estrutura do Apocalipse
procurando destacar e explicar as passagens do texto joanino que julgava serem mais
difiacuteceis Ao comentar Apocalipse 20 Vitorino expressou a expectativa quiliasta de um reino
milenar de Cristo na terra
Assim pois os que natildeo tomarem a dianteira ao ressuscitar na primeira
ressurreiccedilatildeo e reinar com Cristo sobre toda a terra (super ordem) e sobre
todas as gentes (super gentes universae) ressuscitaratildeo ao toque da
trombeta final depois de mil anos (Commentarius in Apocalypsim 167-
169 PLS)323
Esta expectativa entretanto tornou-se um problema para a Igreja posterior a
Constantino e ao Edito de Toleracircncia de 313 em funccedilatildeo das novas formas eclesiaacutesticas e o
desenvolvimento de redes de relacionamento com o poder temporal324 Por isso a recensatildeo
317 WAINWRIGHT op cit CONSTANTINOU Eugenia Scarvelis Andrew of Caesarea and the Apocalypse
in the Ancient Church of the East Quebec Universiteacute Laval 2008 p 126 318 MATTER op cit p 38 319 Citado a partir de TORROacute Joaquiacuten Pascual Introduccioacuten general In VICTORINO DE PETOVIO
Comentaacuterio al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 9-26 p 11 320 ECUMENIO Comentario sobre el apocalipsis Madrid Cidad Nueva 2008 321 CONSTANTINOU op cit p 134 322 TORROacute op cit p 9 323 VITORINO DE PETOVIO Comentario al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 208-
209 324 MATTER op cit p 39
103
de Jerocircnimo procurou moldar a obra de Vitorino expurgando as afirmaccedilotildees milenaristas
fazendo-a corresponder a uma eacutepoca em que a Igreja estava em paz com o Impeacuterio e com a
sociedade A leitura literal do milecircnio foi transformada em leitura alegoacuterica Segundo
Jerocircnimo na sua revisatildeo do comentaacuterio de Vitorino de Apocalipse 20 ldquoo nuacutemero denaacuterio
significa o decaacutelogo e o centenaacuterio eacute a coroa da virgindaderdquo o que indicaria que o texto
joanino queria ensinar que os cristatildeos virgens natildeo apenas do corpo mas tambeacutem da liacutengua
e do pensamento seratildeo exaltados pelo Cristo do fim dos tempos325
Quase um seacuteculo depois de Vitorino outro autor resolveu escrever uma exposiccedilatildeo
completa do Apocalipse Ele eacute conhecido como Ticocircnio (330-395) e era membro da igreja
donatista do norte da Aacutefrica326 Ele expocircs todo o livro do Apocalipse utilizando os princiacutepios
que havia formulado numa outra obra intitulada Liber regularum327 O comentaacuterio de
Ticocircnio se perdeu mas estudiosos tecircm acesso aos princiacutepios que ele usou para escrevecirc-lo
bem como a reconstruccedilotildees parciais do seu conteuacutedo a partir das citaccedilotildees que dele fizeram
entre outros Primasio Beda e Beato de Liebana
As regras do Liber regularum levaram Ticocircnio a fazer uma leitura do Apocalipse
com ecircnfase na encarnaccedilatildeo de Jesus (Regra 1) no relacionamento entre o Antigo e o Novo
Testamento (Regra III) no simbolismo dos nuacutemeros (Regra V) na recapitulaccedilatildeo (Regra VI)
e na espiritualizaccedilatildeo do milecircnio com uma forte rejeiccedilatildeo do quiliasmo328
O proacuteximo exegeta latino a compor um comentaacuterio ao Apocalipse foi Primasio329
Sua obra Commentarius in Apocalypsim faz uma siacutentese de Vitorino e Ticocircnio Primasio
foi bispo de Justiniapolis no norte da Aacutefrica proviacutencia da Numidia de 527-565 num periacuteodo
de colapso da accedilatildeo imperialista bizantina Apesar de envolvido num clima de instabilidade
social o interesse do bispo africano continuou na linha de Jerocircnimo e Agostinho ao fazer
uma exegese alegoacuterica do Apocalipse330 Como o Apocalipse ainda natildeo tinha marcas de
capiacutetulo e versiacuteculo as definiccedilotildees estruturais do seu comentaacuterio se tornaram importantes na
interpretaccedilatildeo do livro joanino Ele o dividiu em cinco partes 1) sete igrejas 2) sete selos 3)
sete trombetas e a mulher ensolarada 4) as bestas da terra e mar as sete pragas e as sete
325 O texto de Vitorino estaacute publicado em duas seccedilotildees A superior apresenta o texto do proacuteprio bispo de Pettau
traduzido para o Latim A inferior registra a anaacutelise feita por Jerocircnimo sobre a exegese de Vitorino A anaacutelise
de Jerocircnimo mencionada no corpo deste texto estaacute em VITORINO DE PETOVIO op cit p 211 326 CALVO Juan Joseacute Ayaacuten Introduccioacuten In TICONIO Livro de Las Reglas Madri Cidad Nueva 2009 p
11-78 p 14 327 Idem p 28 328 Idem p 39-44 329 MATTER op cit p 41 330 Idem p 42
104
taccedilas 5) o cordeiro sobre o trono o novo ceacuteu e a nova terra331 Matter avalia que todos os
comentaristas do Apocalipse no Ocidente posteriores a Primasio ateacute o seacuteculo XII foram
influenciados por este comentaacuterio332
Autor Data Lugar
Primasio 540 Numiacutedia
Cesaacuterio de Arles 540 Sul da Gaacutelia
Apringius 550 Ibeacuteria
Cassiodoro 575 Sul da Itaacutelia
Beda 730 Northumbria
Ambrosio Autpert 760 Benevento
Beato de Liebana 780 Ibeacuteria
Alcuino 800 Franccedila
Haimo 840 Franccedila
Anocircnimo Seacuteculo IX Franccedila
Glossa Ordinaria 1100 Regiatildeo de Leon
O Beato de Liebana aleacutem de depender de Primasio recorreu pesadamente a Vitorino
e Ticocircnio Em funccedilatildeo do seu papel dentro do cristianismo hispacircnico do seacuteculo VIII os temas
recorrentes no seu comentaacuterio eram a santidade da Igreja e a defesa da divindade de Cristo
contra a teologia adocionista dos seguidores do bispo Elipando de Toledo333
Haacute no Beato uma combinaccedilatildeo significativa de exegese eclesiologia e cristologia que
se tornou recorrente em ambientes monaacutesticos a partir do seacuteculo VIII A perspectiva era de
que o Apocalipse deveria ser interpretado tendo como referecircncia a histoacuteria da Igreja na terra
Beda e Ambrosio Autpert incorporaram as contribuiccedilotildees de Primasio e se tornaram
as grandes bases de interpretaccedilatildeo do Apocalipse no periacuteodo caroliacutengio334 Por meio da obra
Explanatio Apocalypsis Beda apresenta a histoacuteria da Igreja e ao mesmo tempo mantem um
olhar sobre a histoacuteria de toda a criaccedilatildeo Ele fez uso das sete regras de Ticocircnio para descrever
sete periacuteodos da histoacuteria do mundo no Apocalipse 1) as sete igrejas da Aacutesia que descrevem
na realidade as igrejas de Cristo 2) os quatro animais e a abertura dos sete selos revelam os
331 Idem p 43 332 Idem p 44 333 Idem p 46 334 Idem p 47
105
conflitos futuros e triunfos da Igreja 3) as sete trombetas descrevem futuros acontecimentos
da Igreja 4) a Mulher e o Dragatildeo revelam as obras e vitoacuterias da Igreja 5) as sete pragas que
infestaratildeo a terra 6) o castigo da prostituta ou cidade iacutempia 7) a Jerusaleacutem como noiva que
desce do ceacuteu335
O comentaacuterio de Ambrosio Autpert construiu uma leitura alegoacuterica detalhada do
Apocalipse Foi escrito entre 758-767 no ducado Lombardo de Benevento Ele absorveu os
comentaacuterios de Vitorino Ticocircnio Primasio aleacutem das anaacutelises de Agostinho e Gregoacuterio o
Grande Ele estava motivado a fazer uma siacutentese de suas fontes com ecircnfase no ldquocasamento
espiritualrdquo entre Cristo e a Igreja336
Os comentaristas posteriores ao periacuteodo caroliacutengio insistiam em ver no Apocalipse
uma alegoria da histoacuteria da Igreja e procuravam nos comentaacuterios anteriores elementos para
apoiar seus pressupostos exegeacuteticos Haacute pouco interesse na perspectiva da iminecircncia do fim
do mundo que aparecia nos leitores quiliastas dos seacuteculo II e III A insistecircncia dos
comentaristas posteriores a Ticocircnio de rejeitar o quiliasmo levou a uma interpretaccedilatildeo do
Apocalipse que o entende como um guia para a Igreja na terra esperar a uniatildeo com uma
Igreja que jaacute se encontra no ceacuteu337
Neste sentido quando surgem no seacuteculo XII a Glossa ordinaria e os comentaacuterios
de Ruperto de Deutz o conteuacutedo tratado por meio de um comentaacuterio ao Apocalipse era de
cunho mais eclesioloacutegico do que escatoloacutegico Eacute nesta grande tradiccedilatildeo entatildeo que retrocede
a Vitorino e Ticocircnio no Ocidente e Ecumecircnio e Andreas de Cesareia no Oriente que se
insere o Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore
Ao discutir o gecircnero literaacuterio ldquocomentaacuterio biacuteblicordquo entretanto natildeo queremos indicar
que o milenarismo soacute poderia nele se manifestar Nem mesmo afirmar algum tipo de
dependecircncia do Expositio em relaccedilatildeo a um comentaacuterio especiacutefico338 O objetivo eacute demonstrar
que desde Vitorino existiu a praacutetica de comentar de maneira sistemaacutetica e abrangente o
livro do Apocalipse de Joatildeo Um comentaacuterio biacuteblico era um tipo de texto voltado
principalmente para a lideranccedila das igrejas mas com potencial de alcance muito maior jaacute
que logo era transformado em base para os sermotildees dos cleacuterigos339
335 Idem 336 Idem p 48 337 Idem 338 Os autores West e Zindars-Swartz encontram indiacutecio no Expositio de recurso a pelo menos dois comentaacuterios
latinos do Apocalipse Haimo de Auxerre e Beda Cf WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 37 339 Comparar com a anaacutelise de Raquel Parmegiani em PARMEGIANI Raquel de Faacutetima Leituras Medievais
do Apocalipse Comentaacuterio ao Beato de Liebana Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernardo do Campo v 23 n 36
107-125 2009 p 122-124
106
44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse
No Liber introductorius Joaquim explicitou o que o teria levado a escrever o
Expositio
Aceitei expor o Apocalipse que o beato Joatildeo isolado na ilha de Patmos
narrou a partir da sequecircncia de eventos (ex cuius serie) como eu penso (ut
ego extimo) para demonstrar claramente o que eu havia previsto e se estas
coisas satildeo dignas de maior aprofundamento de modo que possam incitar
ao desprezo do mundo (possint ad conseptus seculi) a esposa e os filhos do
reino e endossar a palavra do Senhor que disse ldquoexultai e erguei a cabeccedila
porque a vossa salvaccedilatildeo estaacute proacuteximardquo (Lucas 2128) (Expositio in
Apocalypsim 2b)340
Por meio do seu comentaacuterio ao Apocalipse de Joatildeo o abade queria promover o seu
ideal de pureza para a Igreja latina bem como produzir na audiecircncia do seu Expositio
ldquodesprezo pelo mundordquo (conseptus seculi) O termo conseptus traduzido por
constrangimento desprezo aparece num dicionaacuterio como ldquocom cerca ao redor derdquo ldquocercado
por todos os ladosrdquo ldquofechado completamenterdquo341 Neste sentido tanto Joatildeo quanto Joaquim
parecem se valer de seus textos para incitar e promover ascetismo entre suas respectivas
audiecircncias
Joaquim usou o Expositio para apresentar uma ldquohistoacuteria teoloacutegica do
Cristianismordquo342 narrando o desenvolvimento da Igreja Para o abade desde os dias do seu
aparecimento a Igreja estava se desenvolvendo na direccedilatildeo da sua mais plena expressatildeo
quando deixaraacute de ser a instituiccedilatildeo de Pedro e se transformaraacute na instituiccedilatildeo de Joatildeo um tipo
de monasticismo contemplativo no periacuteodo do descanso sabaacutetico343
Uma das metas de Joaquim era encontrar sentido na histoacuteria humana e ele entendeu
que o Apocalipse poderia ser a fonte para isso344 Ao encaminhar o Expositio para a cuacuteria
papal o abade de Fiore desejava disseminar a ideia de que uma cristandade reformada e
purificada era o objetivo de um processo histoacuterico dinacircmico que tinha suas raiacutezes na
340 Traduzido a partir de TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 80 341 DICIONAacuteRIO LATIM PORTUGUEcircS Porto Editora Porto 2001 p 171 342 POTESTAgrave op cit p 297 343 LERNER Robert E The medieval return to the thousand-year Sabbath In EMMERSON Richard K
MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 51-
71 p 57 344 SMALLEY op cit p 289 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the
Apocalypse In EMMERSON Richard K MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages
London Cornell University Press 1992 p 72-88 p 87
107
antiguidade da histoacuteria de Israel345 A chave para enxergar esta histoacuteria estava no uacuteltimo livro
da Biacuteblia o Apocalipse de Joatildeo
45 Resumo
Joaquim foi um notaacuterio da Calaacutebria que abraccedilou a vocaccedilatildeo monaacutestica depois de uma
peregrinaccedilatildeo agrave Palestina Ingressou num monasteacuterio em Corazzo e se esforccedilou para
incorporaacute-lo a Ordem Cisterciense mas abandonou-o para fundar uma casa monaacutestica nas
montanhas calabresas de Fiore Desde seu retorno agrave Calaacutebria ele manifestou o interesse em
promover ideias a respeito de uma eminente e imimente intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina
Sua estrateacutegia para divulga-las envolveu a produccedilatildeo de vaacuterios livros entre eles o Expositio
in Apocalypsim uma apresentaccedilatildeo da histoacuteria da Igreja na forma de um comentaacuterio ao
Apocalipse de Joatildeo
345 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 87
V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA
SICIacuteLIA
Em 1191 Joaquim desceu do isolamento de Fiore na Calaacutebria e foi ao encontro de
Henrique VI Imperador Germacircnico perto dos muros de Naacutepoles346 William II rei da
Siciacutelia morrera sem deixar herdeiros e a coroa do Reino fora entregue com o apoio da cuacuteria
romana para o conde Tancredo sobrinho do falecido rei O imperador entretanto entendia
que a coroa da Siciacutelia lhe pertencia Por isso atravessou a Itaacutelia e iniciou uma ofensiva contra
os aliados de Tancredo Joaquim foi ateacute o imperador cujas tropas estavam sofrendo com
uma epidemia e declarou que o evento era consequecircncia do juiacutezo divino Citando a
passagem biacuteblica de Ezequiel 26 Joaquim comparou o sul da Itaacutelia com Tiro e Henrique
com o rei da Babilocircnia Se o monarca persistisse Deus o derrotaria mas se ele se retirasse
em poucos anos Deus daria a ele a vitoacuteria sem que precisasse lutar347
Eacute difiacutecil saber como as palavras de Joaquim influiacuteram nos eventos que se seguiram
Talvez por causa da forccedila de resistecircncia dos aliados de Tancredo ou porque a ajuda naval
que Henrique esperava atrasara ou porque surgira problemas na Germacircnia que precisavam
de sua atenccedilatildeo no final o Imperador e seus cavaleiros voltaram para o norte dos Alpes
Poucos anos depois em 1194 Tancredo morreu e deixou a coroa da Siciacutelia para seu
pequeno filho chamado entatildeo de William III Novamente Henrique reclamou o Reino para
si e sua esposa Constacircncia princesa normanda filha legiacutetima de Rogeacuterio II o fundador do
Reino da Siciacutelia Segundo o Tratado de Veneza de 1177 entre o Reino da Siciacutelia e o Impeacuterio
Germacircnico caso William II morresse sem filhos Constacircncia sua tia seria a herdeira da
Coroa348 Desta vez Henrique entrou na Itaacutelia meridional atravessou o canal de Messina na
direccedilatildeo da Siciacutelia retirou sem grandes dificuldades o filho de Tancredo do trono venceu
pequenos focos de resistecircncia em Palermo e nesta mesma cidade na catedral real foi
coroado rei no natal de 1194 Com isso ele repetiu o gesto que o fundador do Reino Rogeacuterio
II realizara no natal de 1130
346 TURLEY Thomas Joachim of Fiore In EMMERSON Richard K (org) Key figures in medieval Europe
an encyclopedia New York Routledge 2006 p 372-374 p 373 347 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti
Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xix REEVES Marjorie The influence of
Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993
p 11 348 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south In ABULAFIA David (org) Italy in the Central
Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 58-81 p 69
109
Independentemente do papel de Joaquim nos eventos de 1191 ele deve ter sido
significativo porque outro encontro entre o abade de Fiore e o imperador germacircnico se deu
em Palermo Joaquim compareceu agrave coroaccedilatildeo e foi recebido respeitosamente Em outubro
de 1194 pouco antes de receber a coroa da Siciacutelia Henrique VI escreveu uma carta na qual
descreveu Joaquim como ldquoabade de Fiorerdquo e falou claramente do monasteacuterio de Satildeo Joatildeo
em Fiore antes mesmo de uma autorizaccedilatildeo papal para a fundaccedilatildeo da ordem Florense o que
soacute ocorreu em 1196349 Em marccedilo de 1195 Henrique escreveu outra carta garantindo a Satildeo
Joatildeo um dote anual de cinquenta moedas de ouro Bizantinas350 No pouco tempo que
Henrique sobreviveu a estes eventos (ele morreu em 1197) Joaquim e seus monges se
tornaram protegidos do imperador germacircnico e rei da Siciacutelia A rainha Constacircncia fez do
abade seu confessor pessoal ateacute morrer em Palermo em novembro de 1198
Joaquim de Fiore viveu num momento significativo da Itaacutelia meridional entre o auge
e o fim da dinastia normanda no Reino da Siciacutelia periacuteodo descrito pelo historiador inglecircs
Graham Loud como eacutepoca de ouro para o sul da Peniacutensula quando comparada com os
distuacuterbios sociais anteriores agrave chegada dos normandos e a crise da transiccedilatildeo dinaacutestica
posterior agrave morte de William II351 Foi uma eacutepoca em que reis da dinastia Hauteville
conseguiram unificar sob um mesmo governo toda a regiatildeo inferior ao Patrimocircnio de Satildeo
Pedro do rio Garigliano ateacute a ilha da Siciacutelia territoacuterio marcado fortemente pela presenccedila
grega e muccedilulmana espaccedilo de sobrevivecircncias interaccedilotildees e trocas culturais entre grupos
eacutetnicos e religiotildees distintas Espaccedilo onde mesmo o Cristianismo era pluralizado nas formas
grega e latina Para compreender o papel social e religioso do monge calabrecircs eacute importante
atentar para as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia meridional normanda
bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio Hohenstaufen Estes
elementos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim e seus objetivos enquanto
ermitatildeo monge abade escritor e fundador da Ordem Florense
349 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx 350 Idem 351 LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007
p 524
110
51 A chegada dos normandos
Os primeiros normandos chegaram ao sul da Itaacutelia por volta do ano 1000 em
circunstacircncias natildeo tatildeo claras Jaacute eacute possiacutevel discernir a presenccedila deles na revolta de nobres da
Apuacutelia contra autoridades bizantinas em 1017 e 1018352 O quadro encontrado na regiatildeo
manifestava uma divisatildeo poliacutetica complexa com estruturas culturais pluralizadas sem um
poder central Sob este contexto cavaleiros normandos se colocaram como mercenaacuterios a
serviccedilo da populaccedilatildeo lombarda contra os bizantinos de um territoacuterio lombardo contra outro
de liacutederes bizantinos contra sarracenos e eventualmente ateacute mesmo a serviccedilo dos
muccedilulmanos da Siciacutelia contra outros poderes em conflito na ilha353 Inicialmente eles natildeo
passavam de algumas dezenas de cavaleiros que vendiam seus serviccedilos a poderes locais em
vez de se reunirem sob a lideranccedila de outro normando
Nos principados e ducados lombardos eles encontraram um tipo de aristocracia
sobre a qual foram constituiacutedos como condes Em Apuacutelia a estrutura social em funccedilatildeo dos
traccedilos da administraccedilatildeo bizantina era baseada nos encastelamentos um tipo de cidadela ou
vila fortificada e um significativo nuacutemero de pequenos proprietaacuterios Estas vilas fortificadas
(castella) ficavam em posiccedilotildees estrateacutegicas e serviam como centros administrativos da
aristocracia local Na Calaacutebria um terceiro tipo de domiacutenio se manifestou atraveacutes da
construccedilatildeo de castelos utilizados para controlar a regiatildeo circundante por meio de tratados
com as cidades juramento de fidelidade e implementaccedilatildeo de tributos Apoacutes a conquista os
castelos foram entregues a parentes e vassalos dos normandos
Os assentamentos e conquistas dos normandos natildeo tinham como base algum tipo de
acordo amplo para a conquista da Itaacutelia meridional Na busca pelo domiacutenio das regiotildees os
proacuteprios normandos se envolviam em conflitos No final do seacuteculo XI entretanto dois
liacutederes de uma mesma famiacutelia assumiram o poder sobre quase todo o sul da Itaacutelia Roberto
Guiscard com o domiacutenio dos territoacuterios abaixo do Patrimocircnio de Satildeo Pedro ateacute a Calaacutebria
e seu irmatildeo Rogeacuterio de Hauteville que dirigiu a conquista da ilha da Siciacutelia
Roberto Guiscard morreu em 1085 deixando o territoacuterio conquistado para seus
filhos Rogeacuterio de Hauteville entretanto posteriormente conhecido como Rogeacuterio I
sobreviveu ao seu irmatildeo mais de uma deacutecada promovendo um estaacutevel governo sobre a
Siciacutelia O conde Rogeacuterio I se casou trecircs vezes mas foi com sua terceira esposa Adelaide
352 Idem p 17 353 CHIBNALL Marjorie The Normans Oxford Blackwell Publishing 2006 p 76
111
filha do marquecircs Manfredo de Savona do norte da Itaacutelia que ele teve seus herdeiros Simatildeo
e Rogeacuterio posteriormente Rogeacuterio II Sua morte em 1101 legou o condado da Siciacutelia para
seus filhos ainda menores Simatildeo era o sucessor imediato mas faleceu logo deixando
Rogeacuterio como uacutenico herdeiro Adelaide de Savona no periacuteodo de menoridade governou o
ducado Uma de suas accedilotildees foi levar a corte para Palermo na Siciacutelia que fora a sede do
domiacutenio muccedilulmano Em 1112 finalmente Rogeacuterio II assumiu o poder e no ano seguinte
Adelaide deixou a Siciacutelia para se casar com o rei Balduiacuteno de Jerusaleacutem354
52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia
A partir de 1121 Rogeacuterio II avanccedilou sobre a Calaacutebria agrave custa de seu primo o duque
William de Apuacutelia No ano seguinte jaacute era senhor de todo o territoacuterio calabrecircs e a partir de
1129 o sul italiano estava unificado sob um uacutenico poder mais uma vez coisa que natildeo
acontecia desde o imperador Justiniano no seacuteculo VI355 A extensatildeo do seu domiacutenio pela
Sicilia Calaacutebria Apuacutelia e outros territoacuterios que se estendiam quase ateacute Roma356 poderiam
justificar um status real mas a transiccedilatildeo para a monarquia teve como ponto de partida um
conflito dentro da Igreja de Roma
Em fevereiro de 1130 apoacutes a morte do papa Honoacuterio II um coleacutegio de cardeais
dividido provocou um cisma papal Anacleto II foi eleito papa e permaneceu em Roma
Inocecircncio II recebeu o tiacutetulo e deixou a cidade em busca de apoio357 Anacleto II recorreu ao
conde Rogeacuterio II da Siciacutelia com a disposiccedilatildeo de coroaacute-lo como rei em troca de proteccedilatildeo e
suporte financeiro Apoacutes a efetivaccedilatildeo do acordo nasceu o Reino da Siciacutelia atraveacutes da bula
papal de setembro de 1130 A coroaccedilatildeo se deu no natal deste mesmo ano na catedral de
Palermo358
Anacleto II morreu em 1138 e Inocecircncio II voltou para Roma como uacutenico papa Ele
declarou nulas todas as accedilotildees de Anacleto e ainda promoveu uma cruzada contra Rogeacuterio
354 MAYER Hans Eberhard The Latin east 1098-1205 In LUSCOMBE David (org) The New Cambridge
Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v V 4 p
644-674 p 648 355 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century In LUSCOMBE David (org) The New
Cambridge Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v
V 4 p 442-474 p 447 356 Conferir um mapa do Reino Normando da Siciacutelia no anexo 3 357 CHIBNALL op cit p 86 358 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 448
112
Aleacutem da inimizade papal a alianccedila entre um papa cismaacutetico e Rogeacuterio havia colocado o
Reino da Siciacutelia em conflito com as forccedilas do Impeacuterio Germacircnico e do Impeacuterio Bizantino
ambos se declarando senhores legiacutetimos da Itaacutelia meridional e rejeitando a prerrogativa
normanda
Mesmo assim a liga construiacuteda por Inocecircncio II para enfrentar o Reino da Siciacutelia natildeo
conseguiu impedir a estabilizaccedilatildeo e o desenvolvimento das estruturas monaacuterquicas359
Finalmente em julho de 1139 o proacuteprio papa foi capturado pelas forccedilas de Rogeacuterio II
forccedilando o reconhecimento da monarquia Rogeacuterio foi aclamado como Rei da Sicilia duque
da Apuacutelia e Priacutencipe de Caacutepua (Rex Siciliae ducatus Apuliae et principatus Capuae) Apoacutes
o fim de uma deacutecada de conflitos o rei Rogeacuterio finalmente conseguiu derrotar as grandes
frentes de oposiccedilatildeo ao Reino
Rogeacuterio II se casou trecircs vezes Com a primeira esposa Elvira filha de Alfonso VI de
Castela teve quatro filhos Rogeacuterio Anfusus Tancredo e William Casou-se ainda com
Sibilia filha do duque Hugo da Burgundia na Franccedila e por fim com Beatriz filha do conde
Rethel igualmente francesa360 Com esta uacuteltima ele teve uma filha que nasceu pouco depois
de sua morte Constacircncia posteriormente desposada por Henrique VI da Germacircnia
Quando Rogeacuterio II morreu em 1154 o sucessor escolhido William posteriormente
conhecido como William I ainda era uma crianccedila O reino precisou ser governado por
Beatriz durante o tempo de menoridade do novo rei Um periacuteodo de instabilidade poliacutetica se
manifestou principalmente na parte continental do reino e se estendeu por todo o tempo de
governo (1154-1166)361
Siciacutelia continuava debaixo da hostilidade do Imperador Germacircnico e do Impeacuterio
Bizantino A cuacuteria papal ainda era hostil com o argumento de que o reino fora reconhecido
por Inocecircncio II apenas sob coaccedilatildeo A nobreza das proviacutencias fronteiriccedilas como o
principado de Caacutepua e as bordas de Abruzzi entraram em revolta As cidades de Apuacutelia
igualmente saiacuteram do controle real e reivindicaram autonomia Mas novamente os
adversaacuterios do reino natildeo se juntaram e perseguiram propoacutesitos distintos O imperador
Frederico Barbarroxa precisou rapidamente se concentrar na luta contra as comunas do norte
da Itaacutelia o que deixou o reino circunstancialmente fora de suas investidas O papa Adriano
IV finalmente fechou um acordo com o rei William I em Benevento em 1156 que
359 Idem 360 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily
Mediterranean Studies State College Pennsylvania v 12 p 1-15 2003 p 12 361 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 454
113
restaurou as boas relaccedilotildees entre o Reino da Siciacutelia e o papado A ameaccedila de Bizacircncio por
sua vez conseguiu ser parcialmente neutralizada com um tratado em 1158
Mas se as ameaccedilas internacionais foram minimizadas principalmente por meio de
acordos a situaccedilatildeo interna do Reino ainda era conflituosa As agitaccedilotildees internas
acompanharam William I praticamente ateacute o fim do seu governo Ele morreu em 1166
deixando o reino para o filho igualmente chamado William ainda menor O reino foi
governado pela matildee do jovem sucessor a rainha Margarete filha do rei Garcia de Navarra
na Espanha ateacute 1171 quando William II atingiu a maioridade
William II como o pai viveu a maior parte de sua vida em seu palaacutecio em Palermo
governando por meio do coleacutegio familiares362 Ele conseguiu pacificar internamente o reino
inclusive trazendo de volta opositores que tinham sido exilados no governo anterior
Externamente os antigos adversaacuterios foram pacificados por meio de tratados O rei renovou
o tratado com o papado e com o Impeacuterio Bizantino Soacute faltava mesmo vencer a resistecircncia
do Impeacuterio Germacircnico o que foi alcanccedilado com o Tratado de Veneza de 1177 que
assegurou a treacutegua em troca do casamento da tia de William II Constacircncia com Henrique
VI filho de Frederico Barbarroxa O casamento aconteceu em Milatildeo em janeiro de 1186
Com esse acordo o Impeacuterio Germacircnico finalmente reconheceu a legitimidade do Reino da
Siciacutelia O preccedilo a ser pago foi a designaccedilatildeo de Constacircncia como herdeira da coroa real caso
William morresse sem herdeiros Quando o acordo foi feito a idade do rei e da rainha Joana
filha do rei Henrique II da Inglaterra era um fator de confianccedila na descendecircncia real A
maior probabilidade era que o casal viesse a ter um herdeiro o que automaticamente
invalidaria o direito de Constacircncia363 Mas este acordo com a Germacircnia colocou um fim na
dinastia Hauteville na Itaacutelia meridional jaacute que William II morreu bruscamente no dia 11 de
novembro de 1189 sem deixar herdeiros
53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen
A morte de William II foi seguida por uma divisatildeo dentro do reino Um grupo de
oficiais proeminentes da corte liderados por um membro do coleacutegio familiares Mateus de
Salerno levantou um candidato proacuteprio o conde Trancredo de Lecce primo de William II
362 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p
10-11 363 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 472
114
rejeitando os direitos de Constacircncia e Henrique Tancredo foi coroado rei em 18 de janeiro
de 1190 com o apoio do papado que natildeo desejava a uniatildeo do Reino da Siciacutelia com o Impeacuterio
Germacircnico364
Henrique ateacute tentou destituir Tancredo mas acabou retornando para a Germacircnia apoacutes
o cerco a Naacutepolis jaacute mencionado na abertura deste capiacutetulo Com isso Tancredo conseguiu
governar o Reino da Siciacutelia com o apoio da Igreja de Roma ateacute morrer em fevereiro de
1194 O filho de Tancredo William III foi declarado rei mas era apenas uma crianccedila
Henrique VI novamente reivindicou o direito sobre a coroa da Siciacutelia Desta vez suas
investidas foram mais eficientes Palermo caiu em novembro de 1194 e Henrique foi
coroado rei da Siciacutelia no dia 25 de dezembro na catedral da cidade
Mesmo que Constacircncia fosse uma herdeira normanda legiacutetima filha do fundador do
Reino Rogeacuterio II o rei agora era um monarca estrangeiro de linhagem germacircnica Frederico
II filho de Constacircncia e Henrique apoacutes a morte dos pais e um longo periacuteodo de menoridade
sob a tutela do papa Inocecircncio III implementaraacute um novo governo forte e centralizado365
Todavia mesmo carregando o sangue Hauteville por parte da matildee tambeacutem era herdeiro dos
Hohenstaufen por parte do pai Ele precisou se dividir em ser rei na Itaacutelia e Imperador na
Germacircnia
54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada
Em 1140 o filho mais velho do rei Rogeacuterio II e Elvira de Castela o duque Rogeacuterio
de Apuacutelia foi ateacute a regiatildeo central da Siciacutelia Ele precisava averiguar o patrimocircnio da coroa
que estava em uso irregular de um monasteacuterio grego O monasteacuterio em questatildeo era Satildeo
Cosme de Gonato que tinha se apossado de terras de cultivo algumas vinhas e um moinho
real O duque Rogeacuterio durante a investigaccedilatildeo interrogou o abade local Metoacutedio que alegou
ter recebido o patrimocircnio em possessatildeo durante a gestatildeo do governador Caid Maimunes366
Apoacutes a investigaccedilatildeo o duque Rogeacuterio emitiu um documento para o monasteacuterio em
1142 que comeccedilava com as seguintes palavras
364 Idem 365 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south op cit p 70 366 Conferir a anaacutelise deste evento bem como uma reproduccedilatildeo do documento em grego e espanhol em
ANDREacuteS Gregoacuterio de Um diploma griego del Duque Normando Roger Priacutencipe de Sicilia (A 1142)
Erytheia Revista de estuacutedios bizantinos y neogriegos Madri v 1 n 6 p 61-68 1985
115
Diploma dado por mim Rogeacuterio ilustriacutessimo Duque e filho do piedoso e
grande rei dirigido a ti Metoacutedio abade do monasteacuterio de Satildeo Cosme
chamado o Gonato situado nos montes de Petraacutelia no mecircs de abril dia 6
quinta-feira Depois que entrei em completo domiacutenio e governo da regiatildeo
de Petraacutelia que o poderosiacutessimo rei e meu pai me entregou chegou a meus
ouvidos que muitas e diversas pessoas tecircm se apossado de campos
cultivados e vinhas de domiacutenio real como se fossem proacuteprios367
Rogeacuterio argumentou que as posses eram da coroa e natildeo do governador e neste caso
a doaccedilatildeo fora irregular No decorrer do diploma Rogeacuterio reinvindicou a propriedade real
sobre o moinho mas ciente de que o monasteacuterio precisava dele prometeu um dote de trigo
anual procedente de terras reais com a ldquocondiccedilatildeo de que se rogue pela salvaccedilatildeo espiritual
do pai Rogeacuterio II e a matildee Elvira pela sua proacutepria e pela paz do mundordquo368 Quanto agraves terras
e vinhas Rogeacuterio tanto declarou-as como propriedade da Coroa como devolveu-as como
dote real definitivo para o monasteacuterio ldquoenquanto o mundo natildeo acabarrdquo369
Este evento bem como o diploma do conde Rogeacuterio apresentam um elemento
significativo do Reino da Siciacutelia no periacuteodo dos Hauteville elemento que apesar de se
alterar com o passar do tempo esteve presente ateacute o fim do seacuteculo XII a diversidade cultural
e religiosa bem como as interaccedilotildees franqueadas entre estas diversas culturas Trecircs grupos
sociais aparecem no diploma O normando representado pelo duque Rogeacuterio filho do rei
Rogeacuterio II o grego representado pelo abade Metoacutedio e seu monasteacuterio o aacuterabe
representado pelo Caid Maimunes administrador da regiatildeo de Petraacutelia370 O termo caid
era um vocaacutebulo de dignidade entre os sarracenos mas foi usado frequentemente no Reino
da Siciacutelia para descrever um muccedilulmano que se convertia ao cristianismo e atuava em algum
espaccedilo do governo geralmente na administraccedilatildeo financeira como coletor de impostos ou
tesoureiro
O monasteacuterio grego de Satildeo Cosme de Gonato na Petraacutelia evidencia a presenccedila de
diversas casas gregas espalhadas pelo reino isentas da jurisdiccedilatildeo episcopal latina que
viviam um tipo de monasticismo oriental basiliano Vaacuterios deles podem ter se instalado na
Itaacutelia meridional durante a perseguiccedilatildeo dos imperadores iconoclastas e sobreviveram na
Siciacutelia mesmo durante o domiacutenio muccedilulmano371
367 Idem p 66 368 Idem p 67-68 369 Idem p 68 370 Idem p 63 371 BUONAIUTI Ernesto Storia del Cristianesimo II - Evo Medio Milano DallOglio 1960 p 365
116
Em termos literaacuterios o diploma do duque Rogeacuterio de Apuacutelia foi escrito em grego
tendo em vista que o abade e seus monges eram gregos Possivelmente o duque Rogeacuterio I
instaurador da dinastia Hauteville na Siciacutelia tinha dificuldades com a liacutengua grega ou aacuterabe
e precisou da ajuda de autoacutectones para se comunicar com a populaccedilatildeo dominada Mas seu
filho Rogeacuterio II criado na Calaacutebria primeira sede do ducado natildeo apresentava a mesma
dificuldade Ele conhecia as liacutenguas grega e aacuterabe e marcou a corte do Reino da Siciacutelia com
elementos dessas culturas Quase todas as suas assinaturas sobreviventes foram escritas em
grego Selos reais continham a seguinte legenda grega ldquoRogerioj Krataioj Eusebhj Rhxrdquo
(ldquoRogeacuterio forte e poderoso reirdquo) Posteriormente ele acrescentou uma inscriccedilatildeo latina
ldquoRogerius Dei Gracia Sicilie Calabrie Apulie Rexrdquo (ldquoRogeacuterio pela graccedila de Deus rei da
Siciacutelia Calabria e Apuliardquo)372 Segundo Takayama tanto Rogeacuterio II quanto seus
descendentes William I e William II tiveram interesse em aprender artes e reuniram saacutebios
astroacutelogos filoacutesofos e geoacutegrafos de origem grega e aacuterabe no palaacutecio real de Palermo373 Este
historiador japonecircs avalia que ldquoos reis normandos da Siciacutelia com o suporte destes burocratas
gregos e aacuterabes eram reis cristatildeos mergulhados ateacute os joelhos nas culturas islacircmica e
gregardquo374
Em termos administrativos a Calaacutebria antes bizantina manteve muito de sua
estrutura administrativa sob o domiacutenio Hauteville O mesmo se deu na Siciacutelia com os
elementos estruturais criados pelos muccedilulmanos Em ambas as regiotildees oficiais indiacutegenas
locais continuaram sendo aproveitados pelos reis normandos na administraccedilatildeo do reino375
Apoacutes a unificaccedilatildeo em 1130 como parte da organizaccedilatildeo da coroa novas leis foram
criadas No prefaacutecio das Leis de Ariano de 1140 por exemplo a questatildeo das interaccedilotildees
culturais chama a atenccedilatildeo ao assinalar que ldquodiferentes povos sob o governo poderiam
manter seus proacuteprios costumes e leis desde que natildeo se colocassem em direto confronto com
as novas leis do Reinordquo376 Especialmente durante o governo de Rogeacuterio II os muccedilulmanos
poderiam guardar a lei coracircnica entre eles e os gregos o direito justiniano377
372 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p
5 373 Idem p 6 374 Idem p 15 375 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 460 376 Idem p 461 cf tambeacutem DRELL Joanna H Cultural syncretism and ethnic identity The Norman
lsquoconquestrsquo of Southern Italy and Sicily Journal of Medieval History Amsterdam v 25 n 3 p 187-202 1999
p 201 377 SZAacuteSDI LEON-BORJA Istvaacuten CORREIA DE LACERDA Vitaline Alfonso Henriques y Roger II de
Sicilia dos vidas paralelas de condes a reyes Una clave para la comprensioacuten del nascimento del Reino de
Portugal Estudios de Historia de Espantildea Buenos Aires v 13 p 55-72 2011 p 64 Hubert Houben
117
Isso significava a autorizaccedilatildeo para que os nativos italianos ainda chamados de
lombardos bem como gregos e muccedilulmanos permanecessem sob o poder de costumes
proacuteprios administrados por seus juiacutezes especialmente nas cidades ou por aristocratas que
possuiacuteam autoridade judicial em suas proacuteprias terras A justiccedila real se encarregaria
particularmente da ordem puacuteblica e das disputas de propriedade funcionando mais como
uma corte de apelaccedilatildeo378 Aleacutem disso especialmente na ilha da Siciacutelia sede do governo as
leis e decretos reais eram publicados em grego latim e aacuterabe379
Mesmo com as mudanccedilas demograacuteficas provocadas pelas migraccedilotildees latinas
favorecidas com a presenccedila do domiacutenio normando o Reino da Siciacutelia chegou ao final do
seacuteculo XII como uma entidade unificada politicamente mas pluralizada etnicamente380
fenocircmeno que Marjorie Chibnall definiu como ldquomulti-culturalrdquo381
No caso dos gregos havia uma presenccedila substancial desta populaccedilatildeo na ilha da
Siciacutelia e na Calaacutebria principalmente na parte sul desta proviacutencia Eles se concentravam tanto
nas cidades quanto nos campos onde construiacuteam suas igrejas com ritos e liturgia orientais382
Com a chegada dos Hauteville natildeo havia mais qualquer impedimento para que essa
populaccedilatildeo buscasse fazer novos membros atraveacutes do proselitismo O mesmo natildeo poderia
mais se dar por parte dos muccedilulmanos Isso fazia com que conversotildees de muccedilulmanos para
o cristianismo grego se tornassem um fenocircmeno relativamente frequente Jaacute a conversatildeo
muccedilulmana para o cristianismo latino era mais rara383
Em relaccedilatildeo ao elemento muccedilulmano Rogeacuterio I jaacute havia prometido no momento da
conquista natildeo promover accedilotildees agressivas contra essa parte da populaccedilatildeo da Siciacutelia As
maiores mesquitas foram confiscadas mas os muccedilulmanos receberam a garantia de que
poderiam praticar sua religiatildeo em troca do pagamento de uma taxa a gesia384 Nesta fase
entretanto problematiza esta questatildeo argumentando que ldquoa liberdade religiosa eram somente garantida onde
a maioria dos habitantes era muccedilulmana como era o caso de Palermo onde havia a necessidade de contiacutenua
cooperaccedilatildeordquo Cf HOUBEN Hubert Religious toleration in the South Italian Peninsula during the Norman and
Staufen Periods In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002 p
319-339 p 322 378 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 461 379 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 64 380 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 471 381 CHIBNALL op cit p 88 382 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in
Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 22 383 ABULAFIA David The Italian other Greeks Muslims and Jews In ABULAFIA David (org) Italy in
the Central Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 215-236 p 220 384 Idem p 223
118
da conquista o objetivo de Rogeacuterio era pragmaacutetico Ele precisava da populaccedilatildeo muccedilulmana
para dar estabilidade agrave ilha
Com o passar do tempo entretanto a populaccedilatildeo muccedilulmana declinou
substancialmente ateacute que durante o governo de Frederico II (rei de 1198-1250) natildeo
restassem mais do que 40 mil muccedilulmanos que acabaram sendo deportados para o
continente formando uma colocircnia em Lucera A causa mais imediata desse decliacutenio foi o
fluxo migratoacuterio de cristatildeos latinos para a ilha principalmente oriundos do norte da Itaacutelia
Mas outros fatores podem ser mencionados como a saiacuteda de muccedilulmanos para outros
espaccedilos de domiacutenio muccedilulmano como o norte da Aacutefrica a conversatildeo de muccedilulmanos para
o cristianismo mesmo que sob a forma de pseudo-conversatildeo e a escravizaccedilatildeo Os poucos
muccedilulmanos que ainda sobreviveram na Siciacutelia no seacuteculo XIII em sua maioria eram
escravos ou comerciantes
55 A Igreja no Reino da Siciacutelia
Formalmente o reino da Siciacutelia era um feudo papal da mesma forma que o ducado
de Apuacutelia e o principado de Caacutepua tinham sido a partir de 1059 Em 1130 o tiacutetulo real foi
dado pelo papa Anacleto II durante o cisma em 1139 Rogeacuterio II fez homenagem ao papa
Inocecircncio II em 1156 William I repetiu o gesto do pai diante de Adriano IV Ambos os reis
concordaram em pagar um census anual ao papado como recompensa pelo feudo385 Essa
relaccedilatildeo feudal entretanto precisa ser problematizada Os Hauteville jaacute eram governantes
antes de receberem o reconhecimento papal O domiacutenio natildeo foi criado pela homenagem
papal Eacute neste sentido que se daacute a sugestatildeo de Istvaacuten Szaacuteszdi Leoacuten-Borja e Vitaline Correia
de Lacerda de que este relacionamento feudal era parte de uma estrateacutegia dos liacutederes
normandos para obter o reconhecimento da Cristandade quanto a seus domiacutenios386 No caso
da igreja de Roma poderia ser uma estrateacutegia para aumentar a autoridade papal dentro do
reino o que natildeo aconteceu necessariamente apoacutes a fundaccedilatildeo do Reino da Siciacutelia em funccedilatildeo
do cisma papal A relaccedilatildeo entre a coroa e o papado foi difiacutecil principalmente entre 1139 e
1156 A reorganizaccedilatildeo episcopal feita na Siciacutelia a pedido do papa cismaacutetico Anacleto II
entre 1130-1131 especialmente era inaceitaacutevel para a cuacuteria papal
385 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 465 386 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 55
119
Aleacutem disso a forma como o duque e posteriormente rei Rogeacuterio II exercia o
controle sobre a Igreja dentro do seu territoacuterio era considerado uma infraccedilatildeo agrave autonomia da
igreja387 Suas accedilotildees tinham como fundamento um antigo acordo realizado por Rogeacuterio I e
o papa Urbano II para a organizaccedilatildeo da Igreja da Siciacutelia Em um dos elementos do acordo
o papa se comprometia a natildeo eleger o legado papal para a ilha sem a aquiescecircncia de Rogeacuterio
e na ausecircncia do legado o proacuteprio conde exerceria este papel388 Rogeacuterio II entendeu que
este benefiacutecio pouco usual para um leigo era hereditaacuterio e passou a agir como legado papal
na Siciacutelia389
Finalmente o Tratado de Benevento em junho de 1156 entre o papa Adriano IV e
William I marcou o fim do periacuteodo de hostilidade Graham Loud destaca trecircs aspectos do
tratado como significativos para as relaccedilotildees entre a coroa e o papado Primeiramente
Adriano IV recebeu a homenagem do rei normando e investiu-o no seu reino Com isso a
natureza hereditaacuteria do tiacutetulo real estava confirmada Em segundo lugar as fronteiras ateacute
entatildeo em disputa foram confirmadas comeccedilando em Abruzzi no norte e terminando na
ilha da Siciacutelia Terceiro os direitos reais sobre a Igreja do reino foram definidos Bispos e
abadias faziam suas proacuteprias eleiccedilotildees devendo o rei apenas aceitar ou vetar a escolha O
privileacutegio ainda dado por Urbano II a Rogeacuterio I foi confirmado mas exclusivamente para a
ilha da Siciacutelia no sentido de que os legados papais precisariam ser confirmados pelo rei e
na ausecircncia deles o proacuteprio rei exerceria este papel390
Com a chegada dos normandos a relaccedilatildeo entre igreja latina e grega sofreu o impacto
das mudanccedilas poliacuteticas391 Em 1059 Roberto Guiscard estabeleceu com o Papa Nicolau II o
compromisso de transferir para a jurisdiccedilatildeo papal todas as igrejas de seus domiacutenios Ele fez
juramento similar diante do papa Gregoacuterio VII em 1080 Em outros instantes entretanto o
liacuteder normando poderia dar um arcebispado ou um monasteacuterio importante sob seu domiacutenio
para um cleacuterigo de sua terra natal da Normandia ou Franccedila Contudo natildeo havia por parte
dos governantes algum movimento expliacutecito de latinizaccedilatildeo das igrejas gregas392 Isso porque
387 Idem p 465 388 Idem p 61 389 SKINNER Patricia Roger I (1031-1101 r 1085-1101) In EMMERSON Richard K (org) Key figures
in medieval Europe an encyclopedia New York Routledge 2006 p 575-576 p 574 390 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 164-165 391 HERDE Peter The Papacy and the Greek Church in the Sourthern Italy between the eleventh and the
thirteenth century In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002
p 213-251 p 216 392 Para James Morton a hipoacutetese de uma poliacutetica expliacutecita de latinizaccedilatildeo por parte dos normandos ou do
papado eacute fruto de uma perspectiva ldquofrancocecircntricardquo da histoacuteria medieval Cf MORTON op cit p 8
120
uma igreja grega poderia sobreviver debaixo da jurisdiccedilatildeo de um bispo latino desde que se
fizesse juramento de fidelidade ao bispo de Roma393 Bispos e cleacuterigos gregos poderiam
manter seus ofiacutecios e seus ritos bastando declarar ou admitir a prerrogativa papal de
primazia e o direito de investidura dos papas sobres os bispos da Itaacutelia394
Divergecircncias menores entre as duas igrejas poderiam aparecer no campo da
linguagem do rito e dos costumes Enquanto na Igreja Latina a liacutengua lituacutergica era o latim
na Igreja Grega a liacutengua era o grego395 Os ritos poderiam variar principalmente a Eucaristia
por causa da divergecircncia sobre o patildeo apropriado para a celebraccedilatildeo ou a mistura de aacutegua no
vinho No campo dos costumes debates poderiam aparecer a respeito das vestimentas dos
cleacuterigos e ateacute mesmo sobre a presenccedila ou ausecircncia de barba nos sacerdotes
A divergecircncia significativa entretanto estava no espaccedilo do dogma com a questatildeo
da claacuteusula filioque Do periacuteodo caroliacutengio para frente a Igreja latina passou a professar que
o Espiacuterito procedia do Pai e do Filho uma alteraccedilatildeo do antigo credo que os gregos nunca
aceitaram396
A questatildeo do celibato dos cleacuterigos era outro significativo elemento de distinccedilatildeo entre
igreja grega e latina Enquanto a Igreja Latina proibia bispos e sacerdotes de se casarem na
Igreja Grega eles poderiam continuar casados397 Na Itaacutelia meridional onde cleacuterigos gregos
e latinos viviam lado a lado era difiacutecil impor a observacircncia do celibato sobre todos os latinos
No iniacutecio do seacuteculo XIII Inocecircncio III demandou que bispos gregos da Itaacutelia
meridional atuassem apenas onde a populaccedilatildeo fosse exclusivamente grega e desde que estes
bispos gregos se submetessem ao papado Em dioceses onde a populaccedilatildeo contivesse a
presenccedila de gregos e latinos o bispo deveria ser latino Com o pontificado deste papa natural
de Anagni os ritos gregos passaram a ser limitados398 O resultado foi o desaparecimento da
Igreja Grega na Itaacutelia meridional convertida em latina com algumas poucas exceccedilotildees como
o monasteacuterio de Theotokos de Patiron em Rossano que permaneceu grego quanto agrave
linguagem e rito ateacute meados do seacuteculo XIX399
393 HERDE op cit p 217 394 Idem p 222 395 Idem p 224 396 Idem p 234 397 Idem p 237 398 Idem p 243 399 MORTON op cit p 6
121
56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda
A Itaacutelia meridional nos seacuteculos XI e XII contava com a presenccedila tanto do
monasticismo ocidental quanto do oriental O oriental especificamente era encontrado sob
algumas formas baacutesicas koinobion comunidades monaacutesticas vivendo segundo uma regra
em comum normalmente uacutenica para aquele monasteacuterio a lavra uma comunidade de
monges que viviam perto uns dos outros e compartilhavam serviccedilos lituacutergicos a kella que
era uma rejeiccedilatildeo da comunidade usualmente natildeo tendo mais do que um monge e seus poucos
disciacutepulos vivendo em uma caverna ou casa desabitada400
Segundo Morton em periacuteodos de crise econocircmica e social predominava o tipo anti-
comunitaacuterio Em periacuteodos de estabilidade poliacutetica e social predominavam as comunidades
melhor organizadas do tipo cenoacutebio401 O periacuteodo anterior agrave chegada dos normandos na Itaacutelia
Meridional foi marcado por instabilidade consequentemente com predomiacutenio do
monasticismo anti-comunitaacuterio com foco em ascetas individuais e itinerantes Estas
fundaccedilotildees monaacutesticas eram efecircmeras e sumiam assim que o fundador morria Os disciacutepulos
se juntavam em torno de uma pessoa e natildeo em torno de uma instituiccedilatildeo As comunidades
poderiam ter alguma propriedade mas eram relativamente independentes
As comunidades sentiam o impacto das invasotildees no sul da Itaacutelia que se sucederam a
partir da chegada dos lombardos no seacuteculo VI Lombardos sarracenos e bizantinos
disputaram a regiatildeo durante os seacuteculos anteriores agrave chegada dos normandos promovendo
instabilidade para as casas monaacutesticas O monasteacuterio de Monte Cassino pode ser um
exemplo neste caso A casa foi fundada na primeira metade do seacuteculo VI mas abandonada
em 581 durante as invasotildees lombardas Em 718 foi novamente povoada ateacute que em 883 foi
capturada pelos sarracenos Seus monges fugiram para a Campanha e parecem ter retornado
apenas algumas deacutecadas depois O periacuteodo das invasotildees era marcado por saques e violecircncias
contras as casas estabelecidas Em funccedilatildeo disso predominava no Sul o monasticismo
itinerante em torno de ascetas carismaacuteticos Quando a situaccedilatildeo poliacutetica ganhava alguma
estabilidade os novos poderes lombardos ou bizantinos imprimiam nas casas o caraacuteter
descentralizado da regiatildeo Os priacutencipes ou duques patrocinavam a reconstruccedilatildeo das casas
monaacutesticas mas sem organizaccedilatildeo ou centralizaccedilatildeo eclesiaacutestica Segundo Loud tanto o
400 Idem p 39 401 Idem p 40
122
papado quanto Bizacircncio tentaram controlar as casas e as igrejas do Sul com a criaccedilatildeo de
novos arcebispados gregos e latinos mas o resultado foi muito pequeno402
A maioria das fundaccedilotildees deste periacuteodo seguiam na teoria a Regra de Satildeo Bento
apesar das praacuteticas e costumes variarem consideravelmente Especialmente na Calaacutebria
havia uma grande presenccedila do monasticismo grego tanto na sua versatildeo cenobiacutetica quanto
na eremita
Apoacutes a consolidaccedilatildeo da conquista normanda os novos condes e duques logo se
tornaram tambeacutem patronos dos monasteacuterios gregos e latinos403 Em linhas gerais eles se
envolviam mais no patrociacutenio de casas monaacutesticas jaacute presentes na regiatildeo do que fundando
casas rivais Mesmo assim numerosas casas foram criadas pelos novos governantes Dos
cerca de 20 monasteacuterios gregos surgidos durante o governo do conde Rogeacuterio I ele esteve
pessoalmente envolvido em 14 deles404
Ateacute cerca de 1150 os maiores monasteacuterios do sul da Itaacutelia eram todos de rito
beneditino Monte Cassino Cava Venosa Lipari e Catania405 Segundo Loud ldquoa conquista
normanda sem duacutevida beneficiou o monasticismo beneditinordquo406 que ganhou a proteccedilatildeo dos
novos governantes expandiu suas congregaccedilotildees adquiriu novas propriedades e aumentou a
aacuterea geograacutefica de seus domiacutenios Montecassino liderou o processo de crescimento Durante
o periacuteodo de 1058-1105 este monasteacuterio recebeu 134 igrejas tanto por dote quanto pela
compra de igrejas subordinadas407 A forte criacutetica contra a igreja privada apesar de natildeo ter
eliminado completamente o fenocircmeno incentivou muitas transferecircncias de igrejas das matildeos
de leigos para instituiccedilotildees monaacutesticas
A conquista normanda poderia ter aberto o monasticismo meridional italiano para
influecircncias externas mas isso se deu de forma muito lenta Somente uma casa cluniesense
foi fundada na ilha da Siciacutelia durante o seacuteculo XII talvez sob o iacutempeto de Elvira a esposa
de Rogeacuterio II cujo pai Alfonso VI de Castela era um patrono do movimento de Cluny408
Outros novos movimentos religiosos tambeacutem natildeo tiveram impacto significativo no sul da
Itaacutelia antes do final do seacuteculo XII O conde Rogeacuterio I fundou uma casa Agostiniana em
402 LOUD G The Latin Church in the Norman Italy op cit p 35 403 MORTON op cit p 45 404 Idem p 50 405 Idem p 56 406 LOUD Graham H The Latin Church in the Norman Italy op cit p 430 Este historiador acrescenta ldquoas
pequenas casas independentes tendiam a ser absorvidas pelas congregaccedilotildees das grandes casas beneditinas e
novas fundaccedilotildees observavam a Regra de Satildeo Benedito desde o seu iniacuteciordquo Idem p 470 407 Idem p 434 408 Idem p 484
123
Bagnara sul da Calaacutebria em 1085 Posteriormente em 1090 convidou Bruno de Cologne
fundador da ordem Cartusiana para fundar uma comunidade na mesma regiatildeo em 1090
Comparado com o norte da Europa entretanto o nuacutemero destas casas sob o domiacutenio
normando era muito pequeno
Neste mesmo sentido se deu a chegada dos Cistercienses O primeiro monasteacuterio da
Ordem de Cister na regiatildeo foi Santa Maria Sambucina perto de Cosenza Calabria terra
natal de Joaquim de Fiore pouco antes de 1145409 Outro monasteacuterio cisterciense foi
estabelecido na Siciacutelia em Prizzi em 1155 mas como seu fundador esteve envolvido na
morte do primeiro ministro Maio de Bari isto tirou a possibilidade de que esta casa tivesse
progresso dentro do reino A proacutexima casa cisterciense fundada foi Santa Maria de Ferraria
na diocese de Teano principado de Caacutepua em 1171 como um priorado de Fossanova e se
tornou abadia de fato em 1184 Em 1188 o arcebispo Walter de Palermo converteu um
monasteacuterio grego na Calaacutebria que estava com dificuldades para recrutar novos membros
em uma casa da Ordem Em 1191 uma abadia cisterciense foi fundada em Palermo pelo
arcebispo Mateus mas esta ficou em dificuldades apoacutes a consagraccedilatildeo de Henrique VI jaacute
que foi organizada por algueacutem contraacuterio agrave chegada dos Hohenstaufen Com isso o imperador
entregou a casa agrave ordem dos Cavaleiros Teutocircnicos em 1197
Assim ainda em 1200 natildeo havia mais do que 13 abadias da ordem cisterciense no
reino da Siciacutelia em grande parte inseridas no movimento Cisterciense na uacuteltima deacutecada A
maioria destas fundaccedilotildees se deram por conversatildeo de casas jaacute estabelecidas jaacute que para
fundar uma casa nova era preciso o envio pela casa-matildee de pelo menos doze monges410 A
dificuldade que Joaquim teve para inserir o monasteacuterio de Corazzo na Ordem Cisterciense
parece indicar a forma lenta como a ordem se desenvolvia na Itaacutelia meridional dentro do
seacuteculo XII O monasteacuterio do qual ele fora abade entre 1177 e 1186 possivelmente jaacute seguia
os costumes de Cister antes mesmo de Joaquim ingressar na casa Enquanto abade ele fez
vaacuterios esforccedilos para concluir o processo de filiaccedilatildeo Para tanto era necessaacuterio que fosse
recebido por uma abadia que lhe servisse como casa-matildee Joaquim tentou essa filiaccedilatildeo com
duas abadias cistercienses e natildeo obteve sucesso Sambucina e Casamari A filiaccedilatildeo soacute se
completou quando a abadia de Fossanova uma das principais casas cistercienses do territoacuterio
papal recebeu Corazzo como casa-filha em 1188411
409 Idem p 486 410 Idem p 489 411 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx
124
A Ordem de Joaquim a Florense nasceu sob a inspiraccedilatildeo de Cister aprovada pelo
papa Celestino III em 1196 A Regra da nova ordem possivelmente era uma adaptaccedilatildeo
daquela que o abade jaacute seguia em Corazzo412 A Ordem Florense comeccedilou a se expandir
rapidamente depois de 1195 pelo menos ateacute o seacuteculo seguinte quando veio a estagnar413
Ela chegou a ter 60 casas mas 300 anos depois em 1505 a maioria dos membros se uniu
aos Cistercienses enquanto outros se juntaram aos Cartusianos ou Dominicanos414 De
qualquer forma seraacute no interior do movimento franciscano que Joaquim encontraraacute seus
principais seguidores
Ateacute o fim do periacuteodo normando o Reino da Siciacutelia manifestou um monasticismo
predominantemente beneditino com grandes casas dominando a regiatildeo continental Elas jaacute
existiam antes da chegada dos normandos poreacutem foram grandemente beneficiadas por eles
Elas conviviam ao lado de outros tipos de inspiraccedilatildeo ou movimentos religiosos como os
monasteacuterios gregos e os movimentos eremitas com seu ascetismo e desejo de reclusatildeo
Estes uacuteltimos em especial eram de curta duraccedilatildeo e logo eram inseridos nas tradiccedilotildees
beneditinas ou basilianas Apenas no final do seacuteculo XII as novas ordens religiosas
especialmente os cistercienses conseguiram ter um papel predominante na sociedade iacutetalo-
meridional
57 Resumo
Este capiacutetulo demonstrou o caraacuteter culturalmente plural do Reino da Siciacutelia espaccedilo
de convivecircncias trocas relacionamentos e conflitos entre normandos latinos gregos e
muccedilulmanos Esta sociedade viabilizou a manifestaccedilatildeo de praacuteticas sociais e religiosas de
uma forma rica com a presenccedila de igrejas gregas e latinas e monasticismos beneditinos e
basilianos frequentemente lado a lado O seacuteculo XII foi tambeacutem o periacuteodo em que a cuacuteria
romana expandiu seu controle sobre as igrejas e comunidades da Itaacutelia meridional a partir
de acordos com governantes normandos No fim do seacuteculo entretanto o poder sairia das
matildeos normandas para cair sob o controle da dinastia germacircnica Hohenstaufen Essa
412 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n
1 p 217-240 2004 p 219 413 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der
Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98 414 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5
125
conjuntura de instabilidade social provocada pela transiccedilatildeo poliacutetica acabaraacute transparecendo
no Expositio in Apocalypsim
VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA
DE JOAQUIM
Enquanto consomem textos leitores criam sentidos inventam significados Mas a
forma muacuteltipla como Joaquim fez isso produziu na historiografia curiosas avaliaccedilotildees O
historiador italiano Ernesto Buonaiuti descreveu a metodologia do abade de ldquoorgia
simboacutelicardquo415 A pesquisadora inglesa Marjorie Reeves resumiu sua obra como resultado de
uma ldquoimaginaccedilatildeo caleidoscoacutepicardquo em funccedilatildeo do enlace iacutentimo entre texto e imagem416 O
cardeal francecircs Henri de Lubac historiador da exegese medieval definiu seu pensamento
como ldquodesorbitadordquo pois gerava sem cessar siacutembolos e tipos que se entrelaccedilavam
cruzavam e harmonizavam entre si417 Este capiacutetulo descreveraacute as tais formas de leitura de
Joaquim e sua metodologia hermenecircutica em confronto com a tradiccedilatildeo exegeacutetica e com
padrotildees de leitura encontrados especialmente no chamado novo monaquismo418
61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo
Jean Leclercq estudioso francecircs da cultura monaacutestica419 sintetizou os usos da Biacuteblia
nas diversas esferas sociais e religiosas ocidentais entre Gregoacuterio Magno e o seacuteculo XII
sugerindo que era ela utilizada para auto-instruccedilatildeo e para o ensino puacuteblico manual para
catequeze livro base da adoraccedilatildeo puacuteblica e privada (gerando tanto a liturgia da comunidade
quando a piedade individual) fonte de material para a pregaccedilatildeo a arte e a iconografia
415 Citado por DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling
Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 47 416 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976 p
8 417 DE LUBAC La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 47 418 O termo ldquonovo monaquismordquo eacute aqui usado para fazer um contraponto ao monaquismo do tipo beneditino
(Monges Negros) Cf VAUCHEZ Andreacute A espiritualidade na Idade Meacutedia ocidental (seacuteculos VIII a XIII)
Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 p 86 LOGAN F Donald A history of the Church in the Middle
Ages London Routledge 2002 p 136-145 LAWRENCE C H El monacato medieval formas de vida
religiosa en Europa occidental durante la Edad Media Madrid Editorial Gredos 1989 p 234-239 419 Sua obra mais significativa neste campo eacute LECLERCQ Jean The love of learning and the desire for God
A study of monastic culture New York Fordham University Press 1961
127
Segundo Leclercq apesar destes usos amplos os principais inteacuterpretes das Escrituras cristatildes
eram encontrados no monasticismo420
Eacute certo que as casas monaacutesticas poderiam receber monges natildeo-letrados mas a
vivecircncia no seu interior requeria certo envolvimento com a cultura escrita Afinal eles
precisavam ler ou cantar na liturgia421 Aleacutem destas praacuteticas outras se somariam como o
manuseio a preservaccedilatildeo e a ilustraccedilatildeo de manuscritos Isso fazia do monasteacuterio um lugar
privilegiado para o desenvolvimento da leitura e interpretaccedilatildeo da Biacuteblia
Ainda segundo o estudioso francecircs no interior dos muros monaacutesticos os monges
imprimiam na praacutetica da leitura biacuteblica um traccedilo muito proacuteprio da clausura Sem grandes
controveacutersias teoloacutegicas quando comparado com os tempos patriacutesticos e com a
efervescecircncia intelectual da escolaacutestica apenas comeccedilando a tendecircncia geral era usar a
leitura biacuteblica como ferramenta da vida contemplativa422 O professor Reventlow
acompanhou Leclercq neste sentido generalizando que o objetivo dos leitores da Biacuteblia
nestes espaccedilos ateacute o seacuteculo XI seria meditar sobre o texto promover a adoraccedilatildeo e fomentar
a contemplaccedilatildeo423
Natildeo muito diferente do francecircs Leclercq e do alematildeo Reventlow o historiador
italiano Ambrogio Piazzoni tambeacutem entende a exegese monaacutestica como um modo particular
de interpretar a Escritura na Idade Meacutedia O professor da Universitagrave degli Studi della Tuscia
entretanto argumenta em prol de uma inflexatildeo significativa dos estudos biacuteblicos no final do
seacuteculo XI e durante o seacuteculo XII caracterizada por uma nova sensibilidade na leitura e no
uso dos textos424 Perspectiva semelhante levou de Lubac a intitular este revigoramento
biacuteblico de ldquouma nova primavera da exegeserdquo425 muito em funccedilatildeo dos representantes do
420 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard In LAMPE G W H (ed) The Cambridge
History of the Bible The West from the Fathers to the Reformation Cambridge Cambridge University Press
1969 p 183-197 p 184 421 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in
Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 3
Sobre este tema conferir uma antiga exortaccedilatildeo a este respeito presente na regra de Ferreol (553-581) bispo de
Uzegrave na Gaacutelia em PARKES Malcom La alta Edad Media In CAVALLO Guglielmo CHARTIER Roger
(eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 153-178 p 157 ldquoaquele que
deseja se chamar monge natildeo pode se permitir ficar na ignoracircncia das letrasrdquo (ldquoOmnis qui nomem vult monachi
vidicare litteras ei ignorare non liceatrdquo) 422 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard op cit p 184 423 REVENTLOW Henning Graf History of Biblical Interpretation From Late Antiquity to the End of the
Middle Ages Atlanta Society of Biblical Literature 2009 3 v V 2 p 172 424 PIAZZONI Ambrogio M Lesegesi neomonastica In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio
(eds) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 217-237 p 218 425 DE LUBAC Henri Medieval exegesis the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans
Publishing Company 2000 2 v V II p 151
128
chamado neomonasticismo destacadamente os cistercienses mas sem esquecer tambeacutem
alguns expoentes do ldquovelho monaquismordquo426
A praacutetica da leitura biacuteblica era um dos pilares da vida do monge Para um religioso
a Biacuteblia era nos termos de Piazzoni o livro de ldquocada dia todo o dia e muitas vezes ao
diardquo427 Ele percorria suas paacuteginas escutava sua leitura lia-a sozinho cantava-a com seus
irmatildeos na liturgia
A lectio428 monaacutestica poderia ser ilustrada pelo testemunho do cartusiano Guigo II
abade entre 1174 e 1180 da casa-matildee da Ordem dos Cartuxos em Saint-Pierre-de-
Chartreuse na Franccedila Segundo este abade o desenvolvimento espiritual comeccedila com a
lectio passa pela meditatio conduz agrave oratio e conclui com a contemplatio Eacute uma escala
ascendente429 Neste mesmo sentido registrava ainda um opuacutesculo anocircnimo destinado aos
novos monges ldquoQuando ler procure o sabor e natildeo o saberrdquo (ldquoSi ad legendum accedat non
quaerat scientiam sed saporemrdquo) E acrescentava ldquono momento da leitura poderaacute
contemplar e orarrdquo (ldquoin ipsa lectione poterit contemplari et orarerdquo)430 Desta forma a lectio
entrava na vida do monge como uma forma de oraccedilatildeo ou culto
Esta exegese monaacutestica se fundava sobre as bases de um relacionamento contiacutenuo
com o texto sagrado de uma memoacuteria impregnada das Escrituras Como resumiu ainda
Piazzoni era uma memoacuteria visual de palavras escritas muscular de palavras pronunciadas e
auditiva de palavras escutadas431 O aspecto visual nascia tanto das leituras quanto das
representaccedilotildees da Biacuteblia em imagens espalhadas por quadros esculturas e iacutecones nas
paredes nas colunas e nos tetos das construccedilotildees O aspecto muscular se desenvolvia por
causa da leitura em voz alta ao articular-se as palavras lidas com a boca432 A leitura era
murmurada mesmo se feita sozinha o que gerou a expressatildeo ruminatio433 Como
426 PIAZZONI op cit p 218 427 Idem p 219 428 Leitura e explicaccedilatildeo das Escrituras Cf BLAISE Albert Lexicon Latinitatis Medii Aevi Turnholti
Typografhi Brepols 1975 p 528 429 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 221 430 Idem p 222 431 Idem 432 Ao menos para a alta Idade Meacutedia cf PARKES op cit p 160 Segundo Hamesse essa praacutetica de leitura
sofreu uma profunda transformaccedilatildeo no seacuteculo XII em funccedilatildeo de novos padrotildees exercitados nas escolas ou
universidades Cf HAMESSE Jacqueline El modelo escolastico de la lectura In CAVALLO Guglielmo
CHARTIER Roger (eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 179-210
p 207 Entretanto o argumento de Hamesse natildeo impede a perspectiva de que estas ldquonovidadesrdquo natildeo alteraram
a ruminatio entre os monges 433 O termo ldquoruminatiordquo vem do verbo ldquoruminarerdquo que expressa a ideia de ruminaccedilatildeo girar na mente accedilatildeo
cotidiana Cf LEWIS Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p
1604 Albert Blaise entatildeo preferiu traduzir como ldquocantar sozinhordquo Cf BLAISE op cit p 806
129
consequecircncia tambeacutem da memoacuteria muscular desenvolvia-se a memoacuteria auditiva enquanto
ouvia a proacutepria voz ou em funccedilatildeo de outros processos em que o monge escutava a leitura
Biacuteblica implementados na liturgia na pregaccedilatildeo ou durante as refeiccedilotildees
A praacutetica de ruminar a Biacuteblia de ldquomastigaacute-lardquo todo o dia e o dia todo criava o
fenocircmeno da reminiscecircncia Assim para explicar uma passagem da Biacuteblia o monge fazia
uso de outra passagem que em sua mente se associava remanejando suas frases e
construindo novos textos Neste sentido Piazzoni argumenta que certo desprendimento em
relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo eacute um significativo traccedilo da exegese monaacutestica e neomonaacutestica do seacuteculo
XII Guilherme (1085- 1148) abade de Sant-Thierry escreveu ldquoA escritura deve ser lida no
espiacuterito em que foi gerada Neste espiacuterito deve ser compreendidardquo434 Segundo ele o mesmo
Espiacuterito que inspirou os textos estaria com aqueles que entatildeo os interpretavam
Ruperto (1075-1130) abade na cidade germacircnica de Deutz representante do
monasticismo beneditino insistia que a interpretaccedilatildeo da Biacuteblia depende de uma
compreensatildeo especial que eacute dom do Espiacuterito Santo dom esse similar agravequele que ele deu aos
apoacutestolos para que pudessem compreender o Antigo Testamento Quem recebe tal dom de
interpretaccedilatildeo tem o dever de expor o que percebe na Biacuteblia Ele afirmou assim a existecircncia
de um ldquodom da exegeserdquo nos moldes dos antigos dons do apostolado e profecia435 o que
promovia a autonomia do inteacuterprete em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde
Neste sentido tambeacutem o cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153) que insistia
que tudo na Biacuteblia tinha um sentido para o leitor e nenhum detalhe dos textos biacuteblicos
poderia ser negligenciado Como os textos tinham vaacuterios sentidos Deus o mestre das
Escrituras ajudaria os leitores a compreender da mesma forma como ajudou os autores a
escrever O resultado desta leitura sagrada eacute entatildeo um cacircntico de amor (carmen spiritus) um
ato lituacutergico Cada leitor da Biacuteblia poderia ser inspirado quase como os proacuteprios autores
originais o que justificaria a diversidade de interpretaccedilatildeo dos textos sagrados436
A exegese praticada por representantes tanto do antigo monasticismo quanto das
novas casas monaacutesticas ocidentais no seacuteculo XII conhecia os sentidos tradicionais praticados
desde Oriacutegenes (185-254) histoacuterico alegoacuterico tropoloacutegico e anagoacutegico437 Este sistema de
alegorizaccedilatildeo foi desenvolvido de acordo com o qual quatro significados deveriam ser
434 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 223 435 Idem p 228 436 Idem p 229 437 Uma anaacutelise diacrocircnica dos quatro sentidos pode ser encontrada em DE LUBAC Henri Medieval exegesis
the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2000 2 v V I p 15-
267
130
procurados em cada texto biacuteblico O nuacutemero de sentidos variava entre os autores Alguns
trabalhavam com dois sentidos outros com ateacute sete Mas o nuacutemero mais frequentemente
usado era quatro438 Um pequeno diacutestico presente na obra Rotulus pugillaris do dominicano
Agostinho de Dacia em 1260 ilustra os quatro sentidos ldquoA letra nos mostra os eventos a
alegoria nos mostra a feacute o significado moral nos ensina a agir a anagogia nos indica para
onde vamosrdquo439
Os monges dos tempos reformistas em funccedilatildeo do anseio pela contemplaccedilatildeo tinham
o sentido tropoloacutegicomoral como alvo maior A letra deveria ser superada em prol de um
sentido mais elevado de compreensatildeo das Escrituras O resultado eacute uma leitura biacuteblica
interiorizante ldquoespiritualrdquo que prosperava dentro do monasteacuterio Do lado de fora dos seus
muros entretanto outro padratildeo de hermenecircutica comeccedilava a se fortalecer em que se
buscava natildeo mais a meditatio mas a disputatio Esta forma extra claustrum de interpretaccedilatildeo
biacuteblica feita por pessoas ldquoque por meios escolaacutesticos se enchem de conhecimentordquo (ldquoqui
scholastica inflantur scientiardquo)440 aborrecia alguns monges entre eles o autor do Expositio
in Apocalypsim
62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo
No iniacutecio do Expositio Joaquim resumiu sua maneira de relacionar Biacuteblia e histoacuteria
O primeiro dos trecircs status dos quais noacutes falamos era no tempo da Lei
quando o povo do Senhor serviu como uma crianccedila pequena por um tempo
debaixo dos elementos (rudimentos) do mundo Eles natildeo estavam
habilitados ainda a alcanccedilar a liberdade do Espiacuterito ateacute que venha de quem
se disse ldquoSe o Filho libertar vocecircs vocecircs verdadeiramente seratildeo livresrdquo
(Joatildeo 866) O segundo status estava sob o Evangelho e permaneceu ateacute o
presente com liberdade em comparaccedilatildeo com o passado mas natildeo com
liberdade em comparaccedilatildeo com o futuro Porque o Apoacutestolo disse ldquoAgora
noacutes conhecemos em parte e profetizamos em parte o que eacute perfeito tiver
vindo o que eacute em parte passaraacuterdquo (1Coriacutentios 1312) E em outro lugar
ldquoOnde o Espiacuterito do Senhor estaacute aqui haacute liberdaderdquo (2Coriacutentios 317) Por
conseguinte o terceiro status viraacute ao se aproximar o fim do mundo natildeo
distante sob o veacuteu da carta mas na plenitude do Espiacuterito quando apoacutes a
destruiccedilatildeo e cancelamento do falso evangelho do Filho da Perdiccedilatildeo e seus
profetas aqueles que ensinaratildeo a muitos sobre justiccedila seratildeo como o
438 TRACY Robert TRACY David A short history of the interpretation of the Bible Minneapolis Fortress
Press 1984 p 136-145 439 ldquoLittera gesta docet quid credas allegoria Moralis quid agas quo tendas anagogiardquo Citado a partir de
DE LUBAC Henri Medieval exegesishellip v I op cit 1 440 Expressatildeo de Joaquim de Fiore no Tractatus Super Quatuor Evangelia citado a partir de DE LUBAC La
posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 16
131
esplendor do firmamento e como as estrelas para sempre (Expositio in
Apocalypsim 5r-v)441
Nesta mesma passagem algumas linhas agrave frente o abade faz referecircncia a uma certa
forma de ler e interpretar a Biacuteblia ldquoA carta do Primeiro Testamento parece por certa
propriedade de semelhanccedila pertencer ao Pai A carta do Novo Testamento pertence ao Filho
Entatildeo a compreensatildeo espiritual que procede de ambos pertence ao Espiacuterito Santordquo Mas que
hermenecircutica ldquoespiritualrdquo eacute essa que Joaquim chamou de ldquonovo tipo de exposiccedilatildeordquo (ldquonovo
saltem generi exponendirdquo)442 Ela seria ldquonovardquo em que sentido
A insistecircncia do abade em chamar sua forma de exponere a Biacuteblia de ldquonovardquo indica
algum tipo de insatisfaccedilatildeo com as metodologias exegeacuteticas que ele encontrou nos espaccedilos
religiosos Isso pode ter relaccedilatildeo com sua ansiedade apocaliacuteptica Apoacutes uma peregrinaccedilatildeo agrave
Palestina ele possui a convicccedilatildeo de que a humanidade estaacute se aproximando de um estaacutegio
histoacuterico decisivo Ele deseja compreender estes sinais dos tempos e procura ler os textos
biacuteblicos agrave procura de uma explicaccedilatildeo religiosa Contudo as ferramentas exegeacuteticas
disponiacuteveis natildeo lhe satisfazem ou pelo menos lhe parecem ineficientes para interpretar os
textos sagrados e encontrar algum sentido para a conjuntura histoacuterica dos seus dias Seria
preciso entatildeo elaborar uma metodologia ldquonovardquo para interpretar a Biacuteblia e a histoacuteria443
Essa perspectiva de ldquonovidaderdquo em Joaquim tambeacutem teria relaccedilatildeo com sua
compreensatildeo da natureza da exegese Como Ruperto de Deutz jaacute anteriormente
mencionado o abade parece falar de um ldquodom da exegeserdquo uma capacitaccedilatildeo sobrenatural
necessaacuteria para apreender o que natildeo estaria disponiacutevel para a compreensatildeo de todos As
passagens da Biacuteblia natildeo conteriam apenas palavras e frases acessiacuteveis de imediato a qualquer
leitor mas igualmente misteacuterios (mysteria) e segredos (secreta) especialmente relacionados
com os propoacutesitos divinos quanto agrave histoacuteria humana
Para Joaquim o Apocalipse de Joatildeo narraria a histoacuteria de como Deus entregou um
livro para o Cordeiro fechado com sete selos (Apocalipse 51-14) Esta narrativa biacuteblica
indicaria que o sentido dos personagens e dos eventos da histoacuteria humana estatildeo encobertos
A revelaccedilatildeo se encontraria inteiramente nas matildeos do Cristo do Apocalipse Estava completa
441 Traduccedilatildeo a partir de MC GINN Bernard Visions of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages
New York Columbia University Press 1979 p 133-134 442 O verbo ldquoexponerordquo pode ser traduzido como ldquorevelaccedilatildeordquo ldquoexposiccedilatildeordquo ldquoproduccedilatildeordquo Cf BLAISE op cit
p 363 443 REVENTLOW op cit p 173 tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval a compreensatildeo
espiritual de Joaquim de Fiore Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 35 p 99-118 2012 p 101
132
mas escondida tornando-se disponiacutevel apenas com ajuda divina Sem este amparo os textos
biacuteblicos seriam hermeacuteticos pelo menos no que tange ao sentido ldquoespiritualrdquo jaacute que sentidos
inferiores ainda poderiam ser acessados pela razatildeo humana (como os escolaacutesticos ldquoinchados
de ciecircnciardquo que ele critica) Em outras palavras para o abade algumas coisas estatildeo
encobertas outras estatildeo escondidas algumas pessoas podem acessar as coisas encobertas
outras somente compreendem a superfiacutecie dos textos sagrados
Entre as coisas escondidas na Biacuteblia estatildeo os eventos e tribulaccedilotildees do final dos
tempos os falsos profetas os anticristos e a materializaccedilatildeo do reino divino na histoacuteria Deus
por meio de Cristo teria disponibilizado uma ldquocompreensatildeo espiritualrdquo a algumas pessoas
permitindo a elas adentrarem as profundezas das Escrituras e alcanccedilarem os segredos e
misteacuterios Joaquim faz assim uma distinccedilatildeo entre a capacidade de ler as Escrituras e a de
penetrar nos misteacuterios sagrados por meio de uma diferenciaccedilatildeo entre pessoas naturais (viri
animales) e pessoas espirituais (viri spirituales) Os misteacuterios da Escritura seriam
conhecidos apenas das pessoas espirituais jaacute que as naturais natildeo os podem perceber A
praacutetica da interpretaccedilatildeo biacuteblica ldquoespiritualrdquo consequentemente se daria pela obtenccedilatildeo da
ldquointeligecircnciardquo necessaacuteria por meio da iluminaccedilatildeo do Espirito Santo que permitiria aos assim
escolhidos (electi) duas coisas a capacidade de discernir a Biacuteblia e a habilidade de entender
o sentido da histoacuteria especialmente os ldquosinais dos temposrdquo444
Joaquim se apoiava em ideias paulinas como a oposiccedilatildeo entre compreensatildeo natural
e espiritual (1Coriacutentios 26-16) e a indicaccedilatildeo de uma forma infantil em oposiccedilatildeo agrave uma
forma adulta de entender as coisas de Deus (1Coriacutentios 139-12)445 Como consequecircncia ele
afirma pelo menos dois tipos de interpretaccedilatildeo uma que trabalha com a letra (secundum
litteram) e outra que se move para um niacutevel mais profundo (secundum spiritum)
A partir destes dois procedimentos baacutesicos (segundo a letra e segundo o espiacuterito) o
abade daacute mais um passo na estruturaccedilatildeo do seu meacutetodo relacionando a lectio com a Trinitas
Desta reflexatildeo trinitaacuteria surgiu o conjunto das ferramentas do seu sistema hermenecircutico
composto por trecircs partes a concordia equivalente agrave leitura segundo a letra e a alegoria e a
444 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 19 445 Esta segunda passagem de Paulo eacute uma das preferidas de Joaquim retornando constantemente em suas
explicaccedilotildees metodoloacutegicas ldquoPorque em parte conhecemos e em parte profetizamos Quando poreacutem vier o
que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino falava como menino sentia
como menino pensava como menino quando cheguei a ser homem desisti das coisas proacuteprias de menino
Porque agora vemos como em espelho obscuramente entatildeo veremos face a face Agora conheccedilo em parte
entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Coriacutentios 139-12)
133
tipologia como leituras espirituais446 Jaacute que a Trindade eacute formada por trecircs pessoas divinas
que atuam como se fossem uma soacute as ferramentas exegeacuteticas de Joaquim tambeacutem deveriam
operar como se fossem apenas uma Somadas elas resultam na denominada ldquonova forma de
exposiccedilatildeordquo
Mas seria realmente ldquonovardquo esta metodologia exegeacutetico-hermenecircutica A resposta
da historiografia eacute dupla neste caso A tendecircncia eacute afirmar algum tipo de viacutenculo tradicional
ao mesmo tempo em que se indica em que sentido seu caminho poderia ser novo como o
professor Rossatto ao considerar que Joaquim teria partido da tradiccedilatildeo por assumir e
revigorar antigos meacutetodos de interpretaccedilatildeo poreacutem simultaneamente proposto um modo
ineacutedito de compreensatildeo no caso a concordia447 Isso significa dizer que a primeira parte do
sistema eacute nova enquanto a segunda jaacute era longamente utilizada pelos inteacuterpretes da Biacuteblia
A historiadora italiana Tagliapietra explica esta relaccedilatildeo entre novidade e tradiccedilatildeo
com o recurso aos jaacute mencionados quatro sentidos da exegese medieval O sentido literal foi
transformado por Joaquim na sua concordia A alegoria foi multiplicada pelo abade em cinco
tipos diferentes (histoacuterica moral tropoloacutegica contemplativa e anagoacutegica) A estes o abade
acrescentou o antigo meacutetodo da tipologia subdivido em sete formas diferentes Como
resultado os sentidos tradicionais se transformaram nas matildeos do abade em doze
possibilidades de significaccedilatildeo448 Contudo ele natildeo os chama todos do mesmo jeito Apenas
trecircs satildeo denominados ldquosentidosrdquo a letra (concordia) a alegoria (allegoricus intellectus) e a
tipologia (intelligentia typica)449 As demais divisotildees satildeo chamadas de espeacutecies (species)
inteligecircncias espirituais (inteligentiae spirituales) ou interpretaccedilatildeo espiritual (mystica
interpretatio)
Assim em siacutentese o sistema hermenecircutico de Joaquim de Fiore se articula sobre trecircs
bases a exposiccedilatildeo dos diversos tipos de alegoria dos diversos tipos de tipologia e a
concordia que funciona como o elemento que coloca o sistema em movimento450
446 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 101 447 Idem p 100 448 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 26 449 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 44 450 SANTI op cit p 261
134
63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde
A noccedilatildeo fundamental do sistema exegeacutetico de Joaquim eacute chamada por ele de
concordia Blaise no seu Lexicon Latinitatis Medi Aevi traduz o substantivo feminino
concordia como entre outras acepccedilotildees ldquoato de organizarrdquo e o verbo concordiare como
ldquofazer acordordquo451 Outro uso muito comum aparece em Suetocircnio (69-141) historiador dos
doze ceacutesares que apresenta uma divindade chamada Concordia a quem os romanos
dedicavam cultos e festas apoacutes distuacuterbios beacutelicos especialmente no final de uma guerra civil
(De vita caesarum III 20)452 Como antocircnimo de discordia o termo era relativamente
frequente tanto na prosa quanto na poesia latina
Mas como as palavras natildeo satildeo estaacuteticas e podem variar de sentido com o tempo e a
situaccedilatildeo Tagliapietra analisou as ocorrecircncias de concordia em Joaquim de Fiore e reuniu
quatro possibilidades de significado harmonia semelhanccedila correlaccedilatildeo e compensaccedilatildeo A
ldquoharmoniardquo poderia lembrar ao leitor moderno o sentido de sinopse como exemplificado
pelo Diatessaron de Taciano (120-180) que resumiu quatro evangelhos de Jesus em uma
uacutenica narrativa Jaacute ldquosemelhanccedilardquo tem relaccedilatildeo com paralelismo e aparece no tiacutetulo da obra
mais conhecida de Joaquim (Liber de Concordia Novi ac Veteris Testamenti) que comeccedila
com a expressatildeo ldquoIncipit praephatio libri concordantiarumrdquo (1r) O terceiro significado
ldquocorrelaccedilatildeordquo tem ligaccedilatildeo com periodizaccedilatildeo da histoacuteria uma espeacutecie de lei estrutural do
curso do tempo ou uma filosofia da histoacuteria O quarto significado ldquocompensaccedilatildeordquo indica
que cada pessoa cada evento da histoacuteria reverbera no futuro segundo uma reserva de
sentido fazendo com que o estudo do passado se torne tambeacutem um exerciacutecio de vaticiacutenio453
O proacuteprio Joaquim deu a sua definiccedilatildeo do termo concordia ldquouma similaridade de
igual proporccedilatildeo entre o Novo e o Antigo Testamentos igual eu digo quanto ao nuacutemero natildeo
quanto a dignidaderdquo454 (Liber de Concordia 7rb) Ele a ilustrou com a imagem de uma
estrada contiacutenua que liga uma cidade a um deserto cujos viajantes passam por vales e
montanhas Nos vales eles podem admirar a paisagem Nas montanhas eles conseguem ver
451 BLAISE op cit p 222 452 Esta eacute a referecircncia especiacutefica ldquoDedicavit et Concordiae aedem item Pollucis et Castoris suo fratrisque
nomine de manubiisrdquo Uma traduccedilatildeo seria Tibeacuterio ldquodedicou um templo agrave deusa Concordia e outro a Castor e
Polux em seu nome e em nome de seu irmatildeordquo Conferir uma ediccedilatildeo biliacutengue em SUETONIUS Lives of the
Caesars Cambridge Harvard University Press 1979 2 v V 1 p 322 Outra traduccedilatildeo para o inglecircs pode ser
encontrada em SUETONIUS Lives of the Caesars Oxford Oxford University Press 2000 p 109 453 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 21-25 454 ldquoConcordiam proprie esse dicimus similitudinem eque proportionis novi ac veteris testamenti eque dico
quo ad numerum non quo ad dignitatemrdquo
135
o que veio antes e o que vem depois Ele costumava usar tambeacutem duas imagens biacuteblicas para
explicar sua ferramenta metodoloacutegica os dois querubins que estavam sobre a tampa da arca
(Ecircxodo 2520)455 e as duas rodas da visatildeo de Ezequiel (Ezequiel 116)456 No primeiro caso
duas figuras angelicais estatildeo voltadas uma para a outra em cima da arca da alianccedila No
segundo caso duas rodas giram uma dentro da outra embaixo do trono-carruagem de Javeacute
A primeira imagem reforccedila o senso de paralelismo entre os dois testamentos (concordia
duorum testamentorum) jaacute que um se volta para o outro No caso da segunda imagem ela
desenvolve o sentido de correlaccedilatildeo entre os trecircs status (concordia trium statuum) ao apontar
para eventos que se desenvolvem dinamicamente na histoacuteria
Tanto no caso dos dois testamentos quanto no dos trecircs estados o meacutetodo da
concordia consiste entatildeo em encontrar posiccedilotildees semelhantes de pessoas e eventos dentro
de tempos (tempora ou status) diferentes e apontar em que sentido eles satildeo similares (em
caracteriacutesticas ou atos)457 Um exemplo poderia ser dado pelo caso do patriarca Jacoacute que
ocupa a mesma posiccedilatildeo dentro do primeiro status que o homem Jesus ocupa no segundo
Ocupando posiccedilotildees semelhantes no interior de seus respectivos status eles manifestam atos
espirituais parecidos e exercem papeis religiosos paralelos Entretanto natildeo satildeo iguais em
dignidade Eacute isso que significa ser ldquosimilar quanto a nuacutemerordquo e natildeo quanto a ldquodignidaderdquo
As pessoas ocupam as mesmas posiccedilotildees em suas proacuteprias geraccedilotildees e tecircm papel semelhante
mas natildeo possuem o mesmo status espiritual O homem Jesus foi maior em dignidade que
Jacoacute o que significa dizer que ele possuiacutea uma compreensatildeo espiritual maior e realizou obras
maiores458
Joaquim comeccedila o exerciacutecio de sua concordia por meio da distinccedilatildeo entre histoacuteria
geral e histoacuteria especial Segundo o abade
Toda a floresta de histoacuterias que ofusca o Antigo Testamento eacute dividida em
cinco partes das quais uma eacute geral e quatro satildeo especiais Porque haacute uma
roda que tem quatro faces Existe uma histoacuteria geral agrave qual quatro histoacuterias
especiais satildeo unidas A histoacuteria geral eacute aquela que comeccedila no iniacutecio do
mundo e caminha direto ateacute o livro de Esdras [] Existem quatro histoacuterias
especiais pequenas das quais a primeira eacute Joacute a segunda eacute Tobias a
terceira eacute Judite e a quarta eacute Ester Aquela eacute a roda Estas satildeo as faces
(Enchridion super Apocalypsim 2r-3r)459
455 ldquoOs querubins estenderatildeo as asas por cima cobrindo com elas o propiciatoacuterio estaratildeo eles de faces voltadas
uma para a outra olhando para o propiciatoacuteriordquo (Ecircxodo 2520) 456 ldquoO aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o berilo tinham as quatro a mesma aparecircncia
cujo aspecto e estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outrardquo (Ezequiel 116) 457 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip p 79 458 Idem 459 Traduccedilatildeo a partir da versatildeo italiana GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Traduzione e cura di
Andrea Tagliapietra Milano Feltrinelli 2008 p 133
136
O que ele chama de ldquohistoacuteria geralrdquo eacute uma grande narrativa presente no Antigo
Testamento que parte do livro de Gecircnesis e se estende ateacute a obra de Esdras Usando a
imagem das duas rodas concecircntricas de Ezequiel o abade denomina esta ldquohistoacuteria geralrdquo de
ldquoroda exteriorrdquo agrave qual estatildeo vinculadas quatro pequenas histoacuterias (denominadas ldquohistoacuterias
especiais) presentes em obras menores Joacute Tobias Judite e Ester As histoacuterias especiais se
vinculam agrave roda exterior como as ldquoluzesrdquo nas rodas da visatildeo ezequieacutelica460
A operaccedilatildeo da concordia encontrou esta mesma estrutura no Novo Testamento
Tambeacutem nele haacute uma histoacuteria geral e quatro histoacuterias especiais Joaquim identificou a
histoacuteria geral com o Apocalipse de Joatildeo enquanto as quatro especiais correspondem aos
quatro evangelhos canocircnicos Mateus Marcos Lucas e Joatildeo E se o Antigo Testamento
forma a roda exterior o Apocalipse corresponde agrave roda interior da visatildeo do profeta do exiacutelio
babilocircnico Como satildeo duas rodas concecircntricas ambas giram de forma paralela de tal
maneira que uma pessoa dotada da ldquointeligecircncia espiritualrdquo poderia perceber os eventos que
se repetem Voltando a uma imagem anterior a concordia eacute a estrada que liga as duas rodas
permitindo aos viajantes visualizar por meio de suas montanhas o que jaacute aconteceu e o que
estaacute por acontecer461
Sendo assim como insistiu o professor Emmett Randolph Daniel o que acontece na
concordia natildeo pode ser confundido nem com alegoria nem com tipologia Seu trabalho
precede as outras duas atividades hermenecircuticas do abade462 Este sentido ldquosegundo a letrardquo
era a percepccedilatildeo de narrativas biacuteblicas como uma descriccedilatildeo natildeo apenas do que teria
acontecido mas tambeacutem do que ainda aconteceria Por meio destas narrativas seria possiacutevel
discernir o passado o presente e futuro463 Natildeo haacute na concordia uma relaccedilatildeo horizontal entre
anuacutencio e realizaccedilatildeo como na tipologia ou vertical entre letra e espiacuterito como na alegoria464
O que haacute eacute um paralelismo histoacuterico dinacircmico e progressivo
460 Na visatildeo de Ezequiel aparentemente haviam luzes que brilhavam tanto na roda exterior quanto na interior
enquanto o trono de Deus se movia (Ezequiel 11-25) 461 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 78 462 Idem p 79 tambeacutem MC GINN Bernard Visions of the Endhellip op cit p 126-141 WEST ZIMDARS-
SARTZ op cit p 42 463 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard
K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-
88 79 464 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 106 DE LUBAC Henri La posteridad
espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 44
137
64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas
Durante um dos mais antigos exerciacutecios exegeacuteticos conhecidos de Joaquim presente
no primeiro sermatildeo do Praephatio super Apocalypsim datado para o iniacutecio da deacutecada de
1180 no periacuteodo em que ainda era abade de Corazzo apoacutes usar a concordia para apontar
paralelos entre as doze tribos de Israel e a histoacuteria da igreja ele afirma ldquoMas deixemos estas
coisas no invoacutelucro externo da noz para mostrar agora algo de sua casca de maneira que
num terceiro momento possamos extrair um viscoso alimentordquo465
Mais agrave frente apoacutes algumas frases ele retoma a imagem da noz ldquoEis que jaacute eacute viziacutevel
o nuacutecleo que estava encoberto pela casca aparece a verdadeira vida que os panos envolviam
no sepulcrordquo466 Desta vez ele faz alusatildeo ao sepultamento de Jesus e aos panos que
envolviam seu corpo467
As imagens das camadas da noz e do corpo enrolado pelos panos refletem o convite
do abade para ir aleacutem da concordia dos textos biacuteblicos coisa que ele colocou em praacutetica em
suas vaacuterias obras de exposiccedilatildeo biacuteblica (entre elas o Expositio in Apocalypsim) movendo-se
de uma compreensatildeo segundo a letra para justificar uma compreensatildeo segundo o espiacuterito (da
concordia para os princiacutepios espirituais)468
Neste processo contiacutenuo de aprofundamento na direccedilatildeo do ldquoviscoso alimento da
nozrdquo ele toma a alegoria469 e a subdivide em cinco princiacutepios alegoacutericos Por que cinco A
Trindade tambeacutem usada para justificar as trecircs partes de sua metodologia (concordia
alegoria e tipologia) agora eacute usada como base para as cinco subdivisotildees alegoacutericas
465 O sermatildeo eacute o Apocalipsis liber ultimus citado a partir de ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao
Apocalipse op cit p 460 466 Idem p 461 467 ldquoTomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lenccediloacuteis com os aromas como eacute de uso entre os judeus
na preparaccedilatildeo para o sepulcrordquo (Joatildeo 1940) 468 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 46 Estes princiacutepios espirituais satildeo derivados da operaccedilatildeo
alegoacuterica e tipoloacutegica Uma descriccedilatildeo das duas tradiccedilotildees pode ser encontrada em YOUNG Frances
Alexandrian and Antiochene Exegesis In HAUSER Alan J WATSON Duane F (eds) A history of biblical
interpretation The Ancient Period Grande Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2003 2 v V
1 p 334-354 469 Segundo Stefaniw este tipo de interpretaccedilatildeo concebia o texto como um meio de revelaccedilatildeo de misteacuterios
escondidos ldquopor traacutes das letrasrdquo Cf STEFANIW Blossom Reading Revelation Allegorical Exegesis in Late
Antique Alexandria Revue de lrsquohistoire des religions Paris n 2 p 231-251 2007 p 231-232 Ulleacuten distingue
alegoria como gecircnero literaacuterio como utilizado por Dante na obra ldquoDivina Comeacutediardquo de alegoria como forma
de interpretaccedilatildeo Aparentemente o primeiro fenocircmeno nasceu em consequecircncia do segundo que por sua vez
eacute tatildeo antigo quanto as primeiras interpretaccedilotildees dos eacutepicos de Homero Sua definiccedilatildeo de alegoria como meacutetodo
hermenecircutico eacute ldquouma forma sistemaacutetica de compreender o texto que se baseia em uma norma
intersubjetivamente determinadardquo Cf ULLEacuteN Magnus Dante in Paradise The End of Allegorical
Interpretation New Literary History Baltimore v 32 n 1 p 177-199 2001 p 183
138
Sua confissatildeo trinitaacuteria foi resumida por West e Zimdars-Swartz como ldquoDeus eacute um
Deus sem confusatildeo de pessoas e trecircs pessoas sem divisatildeo de substacircnciardquo470 Ele faz uma
distinccedilatildeo das trecircs Pessoas divinas baseadas em sua origem O Pai natildeo eacute gerado (ingenitus)
o Filho eacute gerado pelo Pai (genitus) e o Espiacuterito Santo procede de ambos (ab utroque
procedens) Associado com a origem das Pessoas da Trindade estaacute tambeacutem o relacionamento
entre elas expresso na forma como satildeo nomeados O Pai eacute assim chamado porque tem um
Filho igualmente o Filho porque tem um Pai jaacute o Espiacuterito eacute assim nominado porque
procede de ambos O abade entatildeo enumera as cinco possiacuteveis relaccedilotildees entre as Pessoas
divinas ligando cada uma com um tipo diferente de alegoria
ndash alegoria histoacuterica a relaccedilatildeo do Pai com o Filho afinal ele eacute Pai de um Filho
ndash alegoria moral a relaccedilatildeo do Filho com o Pai afinal ele eacute Filho de um Pai
ndash alegoria tropoloacutegica a relaccedilatildeo entre o Pai e o Filho com o Espiacuterito afinal este vem
de ambos
ndash alegoria contemplativa a relaccedilatildeo do Filho e do Espiacuterito com o Pai afinal ambos
satildeo enviados pela primeira Pessoa divina
ndash alegoria anagoacutegica a relaccedilatildeo das trecircs Pessoas com cada criatura afinal as trecircs satildeo
Deus e Criador471
Como jaacute indicamos Joaquim soacute denominava de ldquosentidosrdquo a concordia a alegoria e
a tipologia As subdivisotildees (tanto da alegoria quanto da tipologia) por sua vez ele as
denomina species ou intelligentia Assim a primeira species de alegoria eacute a historica
intelligentia ou compreensatildeo histoacuterica Apesar do nome ela natildeo corresponde agrave letra do
texto mas indica o significado de um evento ou figura histoacuterica como exemplo de uma
condiccedilatildeo espiritual Joaquim ilustrou esta species com as duas esposas de Abraatildeo A alegoria
histoacuterica veria em Sara a representaccedilatildeo de uma mulher livre enquanto Hagar representaria
uma escrava Este sentido alegoacuterico teria um caraacuteter mais cognoscitivo apesar de
implicitamente convidar agrave associaccedilatildeo com a esposa livre em vez da escrava
A alegoria moral (moralis intelligentia) indica que haacute uma semelhanccedila entre coisas
visiacuteveis e coisas invisiacuteveis que se exprime na forma de uma qualidade eacutetica Sara neste niacutevel
representaria o prazer espiritual enquanto Hagar a escravidatildeo da carne Esta secunda
species alegoacuterica quer fornecer ensinamentos e demandas de ordem moral
470 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 53 Para uma anaacutelise da doutrina trinitaacuteria em Joaquim cf
ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 471 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 44 tambeacutem TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo
Gioachimita op cit p 27-28
139
A alegoria tropoloacutegica (tropologica intelligentia) tem relaccedilatildeo com doutrina Neste
niacutevel o inteacuterprete busca reforccedilos e componentes para a doutrina cristatilde Nele Hagar significa
a letra enquanto Sara significa a compreensatildeo espiritual da Palavra de Deus
A alegoria contemplativa (contemplativa intelligentia) centraliza-se na vida
contemplativa e nos dons do Espiacuterito Santo Por exemplo Hagar significa a vida ativa
enquanto Sara significa a vida contemplativa
A alegoria anagoacutegica (anagogica intelligentia) a quinta species convida para a
prospectiva escatoloacutegica tradicional com o olhar para o mundo transcendental para aleacutem da
histoacuteria e por meio da oposiccedilatildeo ceacuteu-terra Neste caso Hagar significa a vida presente
enquanto Sara indica a vida futura
Apesar de apresentar o meacutetodo472 nas suas maiores obras de exposiccedilatildeo biacuteblica
(Expositio in Apocalypsim Psalterium decem Chordarum e Tractatus super quatuor
Evangelion) o abade nem sempre faz uso dos cinco princiacutepios alegoacutericos ou mesmo indica
qual princiacutepio estaacute usando em cada caso Eacute comum que ele apenas indique que um
personagem ou evento ldquosignificardquo ou ldquodesignardquo outra coisa
65 Sensus typicus histoacuteria e profecia
Durante os trecircs meses passados em Corinto entre os anos 55 e 56 ao escrever sua
epiacutestola para os disciacutepulos de Roma o apoacutestolo Paulo tratou da relaccedilatildeo entre Adatildeo e Jesus
(Romanos 514) descrevendo o primeiro como uma ldquofigura do que haveria de virrdquo (ldquoτύπος
τοῦ μέλλοντοςrdquo) Os termos usados foram o substantivo ldquoτύποςrdquo e o verbo ldquomέλλwrdquo O
primeiro significa ldquosinal marca vestiacutegio imagem figura tipo modelo exemplordquo473 A
segunda palavra pode ser traduzida como ldquodever estar destinado ardquo que daacute origem agrave forma
adjetivada do verbo (ldquoo` mέλλwnrdquo) o melhor o aguardado o futuro474
Em termos semacircnticos um ldquotipordquo era a marca impressa de um golpe em entalhe ou
em relevo de tal forma que um aponta para a outro Mas o uso que Paulo fez do termo jaacute lhe
deu um sentido hermenecircutico Ele o usou para descrever uma releitura das Escrituras
judaicas agrave luz da sua feacute em Jesus como o Messias
472 Em especial na segunda parte do Liber de Concordia 473 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 464 474 Idem p 300
140
Posteriormente autores cristatildeos do seacuteculo II como Tertuliano de Cartago
latinizaram o termo (typos) mas tanto em autores gregos ou latinos (Melito de Sardes
Justino Irineu Clemente de Alexandria Oriacutegenes Cipriano de Cartago Tertuliano) a
praacutetica de Paulo continuou a ser exercida geralmente com o propoacutesito de encontrar nas
Escrituras judaicas as promessas que se cumpriram na vida de Jesus ou como uma estrateacutegia
para vincular estas mesmas Escrituras com o Novo Testamento cristatildeo em formaccedilatildeo475 A
tipologia se constituiu entatildeo como uma ferramenta usada pelos exegetas cristatildeos a partir do
segundo seacuteculo para ver unidade entre as Escrituras judaicas e cristatildes como uma linha
horizontal de continuidade e progresso histoacutericos que culmina em Jesus e no
Cristianismo476
Eacute entatildeo este antigo procedimento que Joaquim usaraacute na sua proacutexima fase exegeacutetica
As cinco espeacutecies de alegoria formam apenas um momento de sua interpretaccedilatildeo e
normalmente natildeo constituem o final do processo477 No manejo da tipologia natildeo se trata
mais de opor verticalmente letra e espiacuterito como na alegoria mas de relacionar uma letra
com outra letra um elemento com outro elemento segundo uma dinacircmica horizontal de
promessa e cumprimento478
De qualquer forma apesar da metodologia tipoloacutegica jaacute ser conhecida na tradiccedilatildeo
exegeacutetica cristatilde o uso que dela faz Joaquim tambeacutem natildeo deixa de ser singular A forma
como o abade relacionava histoacuteria e Escritura o levou a natildeo ver mais distinccedilotildees entre ambas
Assim enquanto a tipologia claacutessica interrompia o fluxo tipoloacutegico nos eventos do Novo
Testamento Joaquim ampliou o olhar do exegeta encontrando antiacutetipos em toda a histoacuteria
da Igreja479
475 Conferir esta anaacutelise em ETCHEVERRIacuteA Ramoacuten Trevijano La Biblia em el cristianismo antiguo
Prenicenos Gnoacutesticos Apoacutecrifos Estella Editorial Verbo Divino 2001 p 92-108 476 Natildeo se sustenta mais um reducionismo que vincula a tipologia a uma ldquotradiccedilatildeo antioquianardquo e a alegoria a
uma ldquotradiccedilatildeo alexandrinardquo Tanto tipologia quanto alegoria satildeo efetivamente ferramentas hermenecircuticas que
tecircm como meta ir aleacutem da ldquoletrardquo ou do sentido mais imediato das palavras Etcheverriacutea chega a classificar a
tipologia como um tipo de alegoria Ambas satildeo ldquoformas de representaccedilatildeordquo como tambeacutem a metaacutefora a
metoniacutemia e a sineacutedoque Cf ETCHEVERRIacuteA op cit p 85 Aleacutem do mais mesmo em um exegeta
ldquorepresentativordquo da denominada escola antioquiana como Teodoro de Mopsueacutestia (350-428) eacute possiacutevel
encontrar o uso tanto da alegoria quanto da tipologia Cf WILES M F Theodore of Mopsuestia as
representative of the antiochene school In ACKROYD P R EVANS G F (eds) The Cambridge history
of the Bible from the beginnings to Jerome Cambridge Cambridge University Press 1970 3 v V 1 p 489-
509 477 SANTI op cit p 263 478 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 28 479 A estrutura ldquotipordquo e ldquoantiacutetipordquo natildeo daacute conta da praacutetica joaquimita Tipo seria a promessa antiacutetipo o
cumprimento Em Joaquim o fenocircmeno poderia ser descrito como ldquotipo-tipo-antiacutetipordquo
141
A tipologia em Joaquim fornece significado a eventos e personagens histoacutericos no
formato de anuacutencio e realizaccedilatildeo mas hierarquiza-os no interior dos trecircs status do mundo
Adatildeo personagem do primeiro status corresponderia a Cristo um tipo mais elevado do
segundo Ambos convergem entretanto num antiacutetipo ainda mais superior que se
concretizaraacute num personagem futuro do terceiro status
O abade de Fiore denominou a tipologia de ldquosensus typicusrdquo ou inteligecircncia tiacutepica
e a subdividiu em sete species baseadas numa estrutura derivada igualmente de sua
especulaccedilatildeo trinitaacuteria correspondendo agraves sete possiacuteveis formas de uma pessoa professar a
Trindade 1) sob o sinal do Pai 2) sob o sinal do Filho 3) sob o sinal do Espiacuterito 4) sob o
signo do Pai e do Filho 5) sob o signo do Pai e do Espiacuterito 6) sob o signo do Filho e do
Espiacuterito 7) sob o signo da Trindade inteira480
Desta vez o abade natildeo diferencia cada tipo dando um nome ou mesmo definindo
mas apenas fornecendo um exemplo Segundo a primeira compreensatildeo tipoloacutegica que eacute
apropriada ao Pai Abraatildeo representa os sacerdotes dos judeus Hagar o povo israelita Sara
a Tribo de Levi que foi chamada para a obra de Deus No segundo tipo de tipologia que eacute
apropriada ao Filho Abraatildeo representa os bispos Hagar a igreja dos leigos Sara a igreja
dos cleacuterigos Segundo o terceiro tipo de tipologia que eacute apropriada ao Espiacuterito Abraatildeo
representa os sacerdotes que servem monasteacuterios Hagar representa a Igreja do povo leigo
que vive sob regras monaacutesticas (conversi) e Sara representa a igreja dos monges Segundo
a seacutetima compreensatildeo tipoloacutegica que pertence agraves trecircs pessoas da Trindade Hagar representa
as igrejas da primeira e segunda eacutepoca (status) que vive a vida ativa Sara representa a igreja
da contemplaccedilatildeo paz e descanso da seacutetima era (aetas) Estes foram os quatro usos
tipoloacutegicos mais usados por Joaquim481
A quarta quinta e sexta species de tipologia natildeo satildeo normalmente usadas Mesmo
assim ele faz uma breve apresentaccedilatildeo delas (Liber de Concordia 61v-73v) A quarta
tipologia pertence ao Pai e ao Filho Nela Abraatildeo significa os bispos dos judeus e gregos
Hagar a sinagoga Sara a igreja dos Gregos A quinta tipologia pertence ao Pai e ao Espiacuterito
e nela Abraatildeo significa os sacerdotes dos judeus e os bispos do povo latino Hagar a
sinagoga (como na tipologia anterior) e Sara a igreja do povo Latino A sexta compreensatildeo
tipoloacutegica pertence ao Filho e ao Espiacuterito Santo Nela Abraatildeo significa os sacerdotes da
480 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 29 481 Em termos gerais a primeira species tipoloacutegica trata da primeira eacutepoca a segunda da segunda eacutepoca a
terceira da terceira eacutepoca A seacutetima tenta englobar a histoacuteria como um todo
142
segunda e terceira eacutepoca Hagar a igreja dos trabalhadores (vida ativa) e Sara a igreja
espiritual da contemplaccedilatildeo482
66 O dom da exegese
O ex-eremita agora no interior de um cenoacutebio em Fiore parece ver no Novo
Testamento natildeo mais do que uma segunda letra em concordacircncia com a primeira Daiacute resulta
a conclusatildeo de que ldquonatildeo se pode considerar o segundo testamento como mais definitivo que
o primeirordquo483 Ele natildeo chega a abolir o Novo Testamento mas entende que ele seraacute
transformado por meio de uma nova interpretaccedilatildeo espiritual Entatildeo se abriratildeo as ldquoportasrdquo
dos dois Testamentos e pessoas que antes natildeo conseguiam ler mais do que a letra entatildeo
conseguiratildeo penetrar nos sentidos espirituais da Escritura
Apesar de ser o porta-voz desta ldquodescoberta espiritualrdquo Joaquim se recusou a assumir
o tiacutetulo de profeta que outros lhe atribuiacuteam Mas ele natildeo esconde que teve suas
ldquoiluminaccedilotildeesrdquo Ele parece falar de trecircs destas experiecircncias que quase o aproximam do termo
ldquovisionaacuteriordquo Em uma delas ele recebeu a concordia dos Testamentos em outra
compreendeu a relaccedilatildeo entre Trindade Escritura e histoacuteria por fim uma terceira abriu seus
olhos para o papel do Apocalipse na sua estrutura hermenecircutica484 Aleacutem destas experiecircncias
narradas em suas obras o abade estava persuadido de ter recebido um ldquoespiacuterito de
inteligecircnciardquo para interpretar as Escrituras485 a fim de alertar e despertar os ldquosonolentos
espiacuteritos de seu tempordquo a respeito dos ldquoextrema temporardquo486 Aos olhos de Joaquim sua
capacidade exegeacutetica era um dom de Deus Natildeo era apenas fruto de uma investigaccedilatildeo
humana Era como a estrela brilhante que guiou os magos ateacute Jesus
O abade via brilhar agrave sua frente um novo tempo (ldquoIta felices homines illius
statusrdquo)487 e o espera para breve Ele o descreve sem cessar em suas obras por meio das
482 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 45-46 483 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 46 484 Conferir uma descriccedilatildeo das trecircs visotildees em DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de
Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xiii-xviii 485 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London
University of Notre Dame Press 1993 p 16 486 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 48 487 Expressatildeo encontrada em Expositio in Apocalypsim 175v
143
duas combinaccedilotildees da concordia das cinco inteligecircncias espirituais (alegoria) e dos sete tipos
de inteligecircncia tiacutepica (tipologia)488
Considerado profeta chamado de visionaacuterio descrito como miacutestico Joaquim natildeo
queria ser como resumiu de Lubac outra coisa a natildeo ser um exegeta489
67 Resumo
Este capiacutetulo procurou apresentar as formas e procedimentos de leitura e
interpretaccedilatildeo de Joaquim de Fiore Comeccedilando pela concordia passando pela alegoria e
terminando na tipologia o abade estruturou um meacutetodo que foi aplicado por ele tanto em
textos biacuteblicos quanto em eventos e fenocircmenos histoacutericos Justamente essa relaccedilatildeo iacutentima
entre Biacuteblia e histoacuteria parece ser a raiz loacutegica do seu sistema milenarista490 A praacutetica
exegeacutetica do abade em vaacuterios momentos se constituiu num exerciacutecio de reflexatildeo sobre o
sentido da histoacuteria
488 O sistema metoloacutegico de trecircs partes formado pela concoacutercia e por doze sentidos ldquoespirituaisrdquo (cinco
alegoacutericos e sete tipoloacutegicos) eacute o mais recorrente nas exposiccedilotildees de Joaquim mas natildeo eacute o uacutenico Ele usa no
Psalterium um sistema compreendido por quinze sentidos baseado no nuacutemero total dos salmos Estes sistemas
indicam o esforccedilo do abade de Fiore para multiplicar e entrelaccedilar as imagens biacuteblicas Cf SANTI op cit p
264 O medievalista Falbel denomina o meacutetodo do abade de ldquoalegoacuterico-trinitaacuteriordquo Cf FALBEL Nachman
Satildeo Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202) Revista USP Satildeo Paulo n 30 p 273-276
1996 p 273 489 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 53 Talvez seja possiacutevel falar
numa exegese profeacutetica (projetada para o futuro) ou uma exegese visionaacuteria (materializada em imagens) ou
mesmo uma exegese miacutestica (com foco na contemplaccedilatildeo) 490 Idem p 43
VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN
APOCALYPSIM
Este capiacutetulo se deteraacute principalmente no Expositio in Apocalypsim a maior e mais
bem estruturada obra de Joaquim de Fiore491 Eacute um texto que acompanhou o abade por quase
vinte anos concluiacutedo apenas dois anos antes de sua morte Em um trabalho desta natureza
escrito ao sabor dos anos eacute possiacutevel encontrar alteraccedilatildeo nas proacuteprias pespectivas do abade492
De qualquer forma o trecho que nos interessa especialmente estaacute ao final na seacutetima parte
quando apoacutes deixar Corazzo e jaacute no isolamento das montanhas de Fiore Joaquim se deteacutem
a construir sua exegese de Apocalipse 201-10 a periacutecope joanina que descreveu o reino
milenarista dos martirizados com Cristo Para analisaacute-la entretanto precisamos antes situaacute-
la no interior do Expositio por meio de alguns apontamentos sobre a estrutura geral da obra
e de uma siacutentese de conteuacutedo
71 Estrutura literaacuteria do Expositio
O Expositio in Apocalypsim na sua versatildeo presente no incunaacutebalo veneziano eacute
precedido por trecircs documentos distintos O primeiro eacute a Carta Testamentaacuteria (1r) na qual o
abade calabrecircs relata suas motivaccedilotildees ao escrever suas grandes obras e manifesta o desejo
de apresentaacute-las agrave cuacuteria papal Em seguida haacute uma carta de Clemente III (papa de 1187-
1191) para Joaquim (1v) datada para o dia 8 de junho de 1188 solicitando que o abade
encaminhe suas obras para a Seacute romana493 Apoacutes as duas cartas comeccedila o Liber
Introductorius in Apocalypsim (1v-25v) um longo texto que teria a funccedilatildeo de apresentar o
Expositio suas partes baacutesicas uma siacutentese das principais ideias do abade especialmente os
trecircs status do mundo a concordia dos dois Testamentos e as sete fases (aetas) da histoacuteria
491 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 79 492 A visatildeo de Joaquim quanto ao Impeacuterio Germacircnico por exemplo variou de uma postura criacutetica no iniacutecio da
obra para uma postura neutra no final Cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di
Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p 325-327 493 Uma ediccedilatildeo latina da carta pode ser encontrada em ELLIOTT E B Horae Apocalypticae a commentary
on the Apocalypse critical and historical Londres Seeley 1862 4 v V 4 p 386
145
da Igreja Finalmente no foacutelio 26v tem iniacutecio o Expositio por meio da expressatildeo ldquoIncipit
prima septem partius in expositione Apocalipsisrdquo494
A forma como o comentaacuterio de Joaquim foi construiacutedo permite visualizar as
seguintes seccedilotildees495
26v Parte I Sete Igrejas
51v Eacutefeso
67r Esmirna
69r Peacutergamo
73v Tiatira
78r Sardes
82v Filadeacutelfia
92v Laodiceacuteia
99r Parte II Sete selos
113v Primeiro Selo
114r Segundo Selo
114v Terceiro Selo
115v Quarto Selo
116v Quinto Selo
117v Sexto Selo
123v Seacutetimo Selo
123v Parte III Sete Trombetas
127v Primeiro Anjo
128v Segundo Anjo
128v Terceiro Anjo
129v Quarto Anjo
130v Quinto Anjo
133v Sexto Anjo
152r Seacutetimo Anjo
153r Parte IV A Mulher vestida de Sol e o Dragatildeo
154r Primeira distinccedilatildeo
158r Segunda distinccedilatildeo
160v Terceira distinccedilatildeo
161v Quarta distinccedilatildeo
172v Quinta distinccedilatildeo
173r Sexta distinccedilatildeo
174v Seacutetima distinccedilatildeo
177r Parte V Sete Taccedilas
187r Primeira Taccedila
187r Segunda Taccedila
494 Por esta expressatildeo eacute possiacutevel perceber uma ambiguidade estrutural na obra Joaquim anunciou sete seccedilotildees
mas terminou a obra com oito 495 Adaptamos aqui a estrutura sugerida por WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of
Fiore a Study in Spiritual Perception and History Bloomington Indiana University Press 1983 p 74-75
146
188v Terceira Taccedila
189r Quarta Taccedila
189v Quinta Taccedila
190r Sexta Taccedila
191r Seacutetima Taccedila
191v Parte VI A queda da Babilocircnia e a derrota das bestas
191v Primeira distinccedilatildeo
202v Segunda distinccedilatildeo
206r Terceira distinccedilatildeo
209v Parte VII Descanso sabaacutetico
Pars prima
Pars secunda
Pars tertia
Pars quarta
215r Parte VIII Jerusaleacutem Celestial
72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim496
Joaquim se propotildee a escrever um comentaacuterio exegeacutetico do Apocalipse de Joatildeo tarefa
que o coloca na tradiccedilatildeo de outros exegetas medievais da obra joanina como Beda o
Veneraacutevel ou Beato de Lieacutebana497 Mas o resultado entretanto vai aleacutem de discussotildees
teoloacutegicas para se tornar o que Potestagrave chamou de ldquohistoacuteria teoloacutegica do Cristianismordquo498
Esta histoacuteria aparece no Expositio de duas formas linear e ciacuteclica Tanto na narrativa linear
quanto na ciacuteclica haacute uma preocupaccedilatildeo contiacutenua do abade em vincular cada texto do
Apocalipse a eventos histoacutericos da forma mais estreita possiacutevel499
A revelaccedilatildeo linear aparece quando o abade estrutura o uacuteltimo livro do Novo
Testamento em oito partes sendo que as sete primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da
histoacuteria da Igreja Das sete seis relatam algum tipo de confronto da Igreja As quatro
primeiras fases apresentam protagonistas diferentes (apoacutestolos maacutertires doutores monges
496 Para esta siacutentese cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297-325 ELLIOTT E
B Horae Apocalypticae op cit p 384-420 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit
p 79-84 497 Conferir a discussatildeo anterior sobre o gecircnero literaacuterio do Expositio na qual indicamos autores anteriores agrave
Joaquim que tambeacutem escreveram exposiccedilotildees exegeacuteticas do Apocalipse 498 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297 MCGinn acompanha Potestagrave nesta
avaliaccedilatildeo e toma Joaquim como criador da mais imponente teologia da histoacuteria desde De civitate Dei de
Agostinho Cf MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero
occidentale Gecircnova Casa Editrice Marietti 1990 p 172 499 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 298
147
e virgens) Na quinta e na sexta eacute a Igreja em geral que enfrenta a Babilocircnia e o Anticristo
A seacutetima seria de descanso na forma de um sabbatum500 especial Finalmente viria o oitavo
periacuteodo que seria a consumaccedilatildeo final da histoacuteria e a eternidade transcendental501 Esta seria
a relaccedilatildeo esquemaacutetica entre a histoacuteria da Igreja e as partes do Apocalipse
- Primeira parte (Apocalipse 19-322) os apoacutestolos lutam contra os judeus
- Segundo parte (Apocalipse 41-81) os maacutertires lutam contra a Roma pagatilde
- Terceira parte (Apocalipse 82-1119) os doutores da Igreja lutam contra Aacuterio e os
governantes arianos
- Quarta parte (Apocalipse 121-1420) os monges e as virgens lutam contra os
sarracenos
- Quinta parte (Apocalipse 151-1617) a Igreja em geral luta contra a Babilocircnia
- Sexta parte (Apocalipse 1618-1921) a Igreja em geral luta contra o Anticristo
- Seacutetima parte (Apocalipse 201-10) o descanso sabaacutetico
- Oitava parte (Apocalipse 2011-2221) a Nova Jerusaleacutem
A histoacuteria da igreja aparece de forma ciacuteclica (recapitulatio) nas cinco primeiras
seccedilotildees do Apocalipse justamente aquelas em que Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura
seacutetupla Em cada uma delas ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma
histoacuteria que comeccedilaria na encarnaccedilatildeo de Cristo502 Aparentemente todas terminam no
descanso sabaacutetico um tempo de felicidade na terra Isso indica que a seacuterie de recapitulaccedilotildees
pode ter se restringido apenas agraves cinco primeiras partes do Expositio em funccedilatildeo da
perspectiva do abade de estar vivendo no tempo da sexta seccedilatildeo quando os eventos lhe satildeo
contemporacircneos ou estatildeo para acontecer em breve503
A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentaacuterios de Joaquim sobre
Apocalipse 11-322 (a seccedilatildeo das sete cartas para sete igrejas) Eacute a mais longa seccedilatildeo do
comentaacuterio Na estrutura geral eacute o primeiro tempo da Igreja a luta dos apoacutestolos contra a
sinagoga dos judeus Na histoacuteria da salvaccedilatildeo ela corresponde a sete geraccedilotildees com cada
500 Termo de origem hebraica (בת aparece na Vulgata como sabbatum (substantivo neutro de segunda (ש
declinaccedilatildeo) Seu significado eacute o seacutetimo dia da semana no calendaacuterio judaico ou o dia de descanso Cf LEWIS
Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p 1609 Ele retornaraacute de
forma recorrente no Expositio para descrever um periacuteodo de ldquodescansordquo para a Igreja de suas tribulaccedilotildees 501 COURT John M Approaching the Apocalypse a short history of Christian millenarianism New York I
B Tauris 2008 p 73 502 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 162 503 O abade entende o proacuteprio tempo como a hora da abertura do sexto selo e o iniacutecio do terceiro status Cf
MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 167
148
igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos A igreja de Eacutefeso apresenta a
ordem dos apoacutestolos em luta contra os inimigos judaizantes a de Esmirna descreve a ordem
dos maacutertires no confronto contra inimigos pagatildeos a de Peacutergamo simboliza a ordem dos
doutores e seus adversaacuterios arianos e sabelianos a de Tiatira aponta para a ordem dos virgens
em confronto contra os falsos contemplativos a de Sardes indica a ordem dos monges
cenobiacuteticos cujos inimigos eram monges hipoacutecritas a de Filadeacutelfia revela a ordem dos
eremitas e contemplativos numa luta contra falsos cristatildeos e falsos profetas a de Laodiceacuteia
por fim representa a ordem dos monges do terceiro status
Na seccedilatildeo das cartas o abade ainda apresenta o relacionamento entre Pedro e Joatildeo
questatildeo que ele retoma repetidas vezes no Expositio O primeiro eacute typos504 de Cristo e
representa a Ordem Ativa enquanto o segundo eacute typos do Espiacuterito Santo e representa a
Ordem Contemplativa Ao passo que Pedro deixou Jerusaleacutem para fundar a sede apostoacutelica
em Roma Joatildeo saiu da Judeacuteia e foi para a Aacutesia escrever o Apocalipse para as sete igrejas
Pedro morreu primeiro Joatildeo sobreviveu-lhe cerca de trecircs deacutecadas Isso indicaria que a Igreja
Contemplativa (de Joatildeo) vai ultrapassar historicamente a Igreja Ativa (de Pedro)
Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a seccedilatildeo dos selos
(Apocalipse 41-81) Na estrutura geral eacute o segundo tempo da Igreja quando os principais
personagens satildeo os maacutertires em luta contra os pagatildeos em um tempo que vai ateacute o momento
de paz da Igreja no tempo de Constantino e Silvestre Corresponde tambeacutem a sete tribulaccedilotildees
paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos Desta forma o abade desenvolveu um sistema
de duplo septenaacuterio um trata de eventos da histoacuteria de Israel e o outro aponta para a histoacuteria
da Igreja Durante todo o seu comentaacuterio os meacutetodos hermenecircuticos do abade permitem que
ele encontre vaacuterios significados para os mesmos personagens e eventos do Apocalipse
O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi imaginado por
Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho enquanto eacute perseguida pelos judeus
No Antigo Testamento significa o nascimento de Israel por meio do cativeiro egiacutepcio
A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo vermelho cujo
cavaleiro carrega uma espada mortal O cavalo simboliza a Roma pagatilde com seus sacerdotes
e exeacutercitos Na histoacuteria da Igreja este selo inaugura a perseguiccedilatildeo dos fieacuteis sob o antigo
Impeacuterio Romano Corresponde na histoacuteria dos judeus agrave conquista de Canaatilde que vai do
tempo dos juiacutezes ateacute o governo de Davi
504 Conferir a discussatildeo sobre tipologia no capiacutetulo anterior
149
O terceiro selo que descreve um homem com um par de balanccedilas eacute a heresia de
Aacuterio cujo clero aparece representado no cavaleiro que traz terror e escuridatildeo para a feacute cristatilde
O ser angelical que anuncia este selo representa a ordem de doutores que proclamou a
verdade e enfrentou os arianos Na histoacuteria do Antigo Testamento corresponde ao periacuteodo
de enfrentamento dos siacuterios
Na abertura do quarto selo um cavalo paacutelido aparece trazendo pragas e eacute seguido
pelo Hades Este representa a ameaccedila sarracena cujo cavaleiro eacute Maomeacute que persegue os
cristatildeos Durante este periacuteodo os monges e virgens tentaram sobreviver e manter a feacute cristatilde
Corresponde ao tempo da tribulaccedilatildeo de Israel sob os assiacuterios
Ao abrir o quinto selo o Apocalipse descreve um grupo de almas debaixo do altar
Nos quatro primeiros selos cristatildeos foram perseguidos e mortos na Judeacuteia Roma Greacutecia e
Araacutebia Esta quinta perseguiccedilatildeo vem da Mauritacircnia e Espanha onde sarracenos mataram
muitos cristatildeos Tambeacutem significa o sofrimento da Igreja romana em luta contra os
imperadores germacircnicos As roupas brancas significam que os maacutertires passaram do luto
para a alegria A expressatildeo ldquoateacute que seus irmatildeos sejam mortosrdquo indica para Joaquim que
ainda resta um conflito final que promoveraacute o martiacuterio de muitos cristatildeos
O sexto selo descreve cataclismos coacutesmicos Ele representa o dia do julgamento da
Babilocircnia cujo significado eacute ldquoquem quer que ataque a Igreja de Pedro moral ou
fisicamenterdquo505 especialmente os falsos cristatildeos ou falsos membros da Igreja romana O
abade espera perseguiccedilotildees para os fieacuteis com papel significativo na histoacuteria jaacute que por meio
delas a Igreja seraacute purificada de sua corrupccedilatildeo
Na abertura do seacutetimo selo um silecircncio se manifesta no ceacuteu Para Joaquim ele
representa o sabbatum de descanso no qual um silecircncio contemplativo seraacute trazido agrave
realidade Em comparaccedilatildeo na correspondente era do Antigo Testamento depois de Esdras
e Malaquias cessou a produccedilatildeo de Escritura Entatildeo sob o seacutetimo selo natildeo seraacute mais preciso
a pregaccedilatildeo
A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas do Apocalipse
(Apocalipse 82-1118) Na estrutura geral eacute o tempo terceiro quando a ordem dos doutores
digladia contra os hereges em particular os arianos Mas tambeacutem corresponde a sete fases
A trombeta de nuacutemero um eacute a fase dos Apoacutestolos principalmente Paulo pregando contra o
Judaiacutesmo e o legalismo O granizo misturado com fogo e sangue significa o espiacuterito de
505 ldquoQuicumque Petri ecclesiam moribus viribusque impugnantrdquo (117v) As traduccedilotildees do Expositio neste
capiacutetulo satildeo proacuteprias a natildeo ser que haja indicaccedilotildees em contraacuterio
150
escuridatildeo dos coraccedilotildees dos judeus Como resultado um terccedilo dos judeus convertidos
apostatou de volta para o Judaiacutesmo
A segunda trombeta significa os Maacutertires da era poacutes-apostoacutelica pregando contra a
heresia dos nicolaiacutetas Nicolau eacute a montanha que caiu no ldquomar dos gentiosrdquo Por causa dele
um terccedilo dos pagatildeos convertidos abandonou a feacute A terceira trombeta simboliza os doutores
do tempo de Constantino O meteoro que cai eacute Aacuterio cujo erro desabou sobre bispos e
sacerdotes e contaminou a aacutegua pura das escrituras A quarta trombeta tipifica os monges e
as virgens que como luminares celestiais caminhando em contemplaccedilatildeo iluminam o
mundo Seratildeo em larga medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos A quinta
trombeta descreve gafanhotos-escorpiotildees que representam os pathareni506 As arvores que
os gafanhotos destroem indicam a Igreja catoacutelica A couraccedila dos escorpiotildees aponta para o
coraccedilatildeo duro dos perfecti entre os pathareni Neste ponto de seu comentaacuterio o abade fala de
um homem que escapou de uma prisatildeo em Alexandria no ano anterior (1195) Joaquim o
encontrou em Messina e ouviu dele notiacutecias de uma alianccedila entre sarracenos e pathareni A
esta alianccedila outras naccedilotildees hostis se juntaratildeo como os turcos do Oriente os mouros e os
berberes do sul
Entre a sexta e a seacutetima trombeta o Apocalipse descreveu trecircs cenas distintas a
convocaccedilatildeo para que se coma um livro a descriccedilatildeo da medida do templo e a atuaccedilatildeo das
duas testemunhas martirizadas pela besta Na cena em que o livro eacute comido o abade
descreveu a ordem monaacutestica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne)
A cidade santa que aparece na mediccedilatildeo do templo significa a Igreja romana A Igreja grega
por ter se afastado da seacute apostoacutelica eacute a parte externa do templo que seraacute dada aos gentios
Aos olhos de Joaquim isso jaacute aconteceu em grande medida mas os gregos podem esperar
por novas desolaccedilotildees A rejeiccedilatildeo ao filioque era para o abade a maior prova de apostasia da
Igreja grega507 Sobre as duas testemunhas Joaquim as entende como Moiseacutes e Elias ou
duas ordens espirituais que viratildeo no poder destes antigos personagens biacuteblicos para pregar
contra o Anticristo Segundo o abade ldquoMoiseacutes foi um Levita e pastor do povo de Israel
506 Joaquim usa o termo pathareni para se referir ao movimento dissidente conhecido como ldquocatarismordquo Cf
POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 308 Especificamente sobre esta dissidecircncia
medieval cf AGUSTIacute David Los caacutetaros el desafio de los humildes Madrid Siacutelex Ediciones 2006 507 WHALEN Brett Edward Dominion of God Christendom and Apocalypse in the Middle Ages Cambridge
Harvard University Press 2009 p 111 O filioque era uma foacutermula latina de descriccedilatildeo do relacionamento entre
as pessoas da Trindade Ela afirma a dupla origem do Espiacuterito procedendo simultaneamente do Pai e do Filho
Sobre a importacircncia do filioque para o pensamento de Joaquim cf DANIEL Randolph E The double
procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiores Understanding of History Speculum Chicago v 55 n 3
p 469-483 1980
151
Elias foi um homem solitaacuterio que natildeo teve esposa ou filhos Logo um representa a ordem
dos cleacuterigos o outro a ordem dos mongesrdquo508 Finalmente surge a seacutetima trombeta Eacute tempo
do julgamento da besta e do falso profeta O Anticristo e os seus seguidores seratildeo
exterminados Comeccedilaraacute entatildeo a fase final da histoacuteria da Igreja ldquoo terceiro status do mundo
que seraacute um tempo de descanso e contemplaccedilatildeo Nele apoacutes o fim das pessoas corruptas da
terra reinaraacute o povo santo do Altiacutessimordquo509 Esta seccedilatildeo termina com uma longa descriccedilatildeo da
conversatildeo final dos gregos e judeus agrave Igreja latina
A quarta parte do Expositio (153r-174v) natildeo apresenta uma estrutura clara no
Apocalipse (Apocalipse 1119-1420) mas mesmo assim o abade optou pela divisatildeo em sete
distinccedilotildees (distinctiones) A seccedilatildeo comeccedila na abertura do santuaacuterio celestial mas tem como
foco a histoacuteria do Dragatildeo510 Eacute o quarto tempo da histoacuteria da Igreja no qual a ordem dos
monges e das virgens luta contra Maomeacute a quarta cabeccedila do Dragatildeo Igualmente
corresponde a sete fases
A primeira distinccedilatildeo apresenta o conflito entre a mulher vestida de sol e o Dragatildeo
Nesta primeira batalha os protagonistas foram Pedro e seus sucessores O inimigo por sua
vez agiu atraveacutes de Herodes e Nero A segunda distinccedilatildeo apresenta a guerra entre Miguel e
o Dragatildeo (Apocalipse 127-12) como siacutembolo da perseguiccedilatildeo pagatilde aos cristatildeos ateacute o tempo
de Constantino A terceira distinccedilatildeo descreve a fuga da mulher para o deserto que representa
a perseguiccedilatildeo agrave igreja atraveacutes das monarquias arianas Ela fugiraacute para uma vida de retiro e
contemplaccedilatildeo durante 42 meses ou 1260 dias
A quarta distinccedilatildeo comeccedila em Apocalipse 1217 com o levantamento das duas
bestas e vai ateacute 145 (o ajuntamento das 144000 testemunhas do Cordeiro) A besta
representa a perseguiccedilatildeo sarracena aos eremitas e virgens mas tambeacutem indica por meio de
suas cabeccedilas uma seacuterie de adversaacuterios histoacutericos da igreja As quatro primeiras cabeccedilas
respectivamente eram os judeus pagatildeos romanos arianos e sarracenos Esta cabeccedila
sarracena parecia ter morrido em funccedilatildeo da tomada de Jerusaleacutem da conquista normanda
na Siciacutelia e da expulsatildeo dos mouros na Espanha Para Joaquim entretanto ela voltou a
viver tatildeo terriacutevel quanto antes e a tomada de Jerusaleacutem seria uma demonstraccedilatildeo disso Eacute a
508 ldquoMoses fuit Levita et pastor Populi Israel Helyas vir solitarius no habens filios aut uxorem Ille ergo
significat ordinem clericorum iste ordinem monachorumrdquo (148v) Muito se especularaacute posteriormente na
recepccedilatildeo do pensamento joaquimita sobre a relaccedilatildeo entre as duas testemunhas de Apocalipse e as ordens de
Francisco e Domingos Cf REEVES Marjorie The influence of prophecy in the Later Middle Ages a study
in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 72-73 509 ldquoEt ad tertium statum mundi qui erit in sabbatum et quietem in quo exterminatis prius corruptoribus
terrae regnaturus est populus sanetorum Altissimirdquo (152v) 510 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 314
152
cabeccedila que parecia ter morrido mas reviveu para impressionar o mundo todo Joaquim
interpretou a segunda besta de Apocalipse como um falso-profeta que se levantaraacute do meio
da igreja conhecendo e falando como um cristatildeo Este faraacute alianccedila com a ldquocabeccedila sarracenardquo
da primeira besta Satildeo os pathareni ldquoa escoacuteria dos heregesrdquo (haereticorum fex) Os 144000
que aparecem em Apocalipse 14 satildeo para o abade os monges e virgens da igreja que se
opotildee agravequeles que tecircm a marca da besta
A quinta distinccedilatildeo cobre apenas dois versiacuteculos do Apocalipse (Apocalipse 146-7)
Eacute o anuacutencio do Evangelho Eterno e do juiacutezo511 Tambeacutem eacute o tempo da desolaccedilatildeo da
Babilocircnia A sexta distinccedilatildeo (Apocalipse 148-12) descreve o anuacutencio dos dois uacuteltimos anjos
no ceacuteu Eacute o tempo do advento da Besta e do falso-profeta No momento de descrever a seacutetima
distinccedilatildeo (Apocalipse 1413-20) a cena do Filho do Homem e a ceifa Joaquim anuncia a
idade sabaacutetica final quando os fieacuteis viveratildeo na terra com aqueles que sobreviverem agrave queda
do Anticristo
Potestagrave alerta que o Expositio eacute um comentaacuterio biacuteblico e natildeo um tratado escolaacutestico
Aleacutem do mais ele foi escrito no transcurso de quase vinte anos de trabalho Isso faz com que
ele comporte algumas contradiccedilotildees ou oscilaccedilotildees Nesta seacutetima distinccedilatildeo por exemplo o
descanso sabaacutetico parece ter a presenccedila de Cristo na terra com os santos Nas outras
referecircncias ao mesmo periacuteodo Cristo natildeo exerce um papel pessoal na transiccedilatildeo para a era
do Espiacuterito512
A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seccedilatildeo das sete taccedilas do Apocalipse
(Apocalipse 151-1617) Eacute o quinto tempo da Igreja indicando o confronto da Igreja
romana simbolizada pelo trono de Deus contra Babilocircnia Cada taccedila representa tambeacutem
sete destinataacuterios da ira divina A primeira taccedila da ira foi despejada sobre os judaizantes que
adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica A segunda sobre a igreja infiel
antes de Constantino A terceira sobre os bispos arianos e seus ensinos depois de
Constantino A quarta sobre os hipoacutecritas das ordens contemplativas A quinta sobre os
falsos cleacuterigos e monges A sexta sobre os perversos do mundo A seacutetima taccedila sobre os
proacuteprios eleitos na forma de uma perseguiccedilatildeo purificadora
511 A expressatildeo ldquoEvangelho Eternordquo estaacute na origem da condenaccedilatildeo imposta a algumas ideias de Joaquim em
Anagni no ano de 1255 em funccedilatildeo da atividade do franciscano Geraldo de Borgo san Donnino Cf
ROSSATTO Noeli Dutra et all Evangelho eterno a hermenecircutica condenada Filosofia Unisinos Satildeo
Leopoldo v 11 n 3 p 298-339 2010 512 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 317
153
A sexta parte do Expositio (191v-209v) natildeo apresenta mais a divisatildeo septenaacuteria Esta
seccedilatildeo do Apocalipse descreve a queda da Babilocircnia e o juiacutezo sobre as bestas (Apocalipse
1618-1921) Eacute o sexto tempo da histoacuteria e trata da luta dos viri spirituales primeiramente
contra o Dragatildeo depois contra a besta que veio do mar e a besta que veio da terra O abade
viu nesta longa passagem biacuteblica trecircs distinccedilotildees A primeira (Apocalipse 1618-1824)
descreve a queda da Babilocircnia e da besta que a sustenta Potestagrave destaca que um aspecto
marcante desta distinccedilatildeo estaacute no fato de Joaquim ter retirado o Impeacuterio Germacircnico da seacuterie
de inimigos finais da igreja No seu sermatildeo de 1184 (Apocalipsis liber ultimus) o Impeacuterio
seria o adversaacuterio que iria purificar a Igreja dos seus pecados O mesmo aparece no texto
Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno (1184) Mas no momento em que o
abade escreve a sexta parte do Expositio o Impeacuterio natildeo representa mais um inimigo a ser
temido A cidade que cairaacute agora natildeo representa Roma ou o Impeacuterio Germacircnico mas
Constantinopla e o Impeacuterio Bizantino Babilocircnia se torna siacutembolo para qualquer oposiccedilatildeo agrave
Igreja de Roma513
A segunda distinccedilatildeo (Apocalipse 191-10) apresenta a exultaccedilatildeo dos fieacuteis diante da
ruiacutena da Babilocircnia A terceira distinccedilatildeo (Apocalipse 1911-21) apresenta a derrota da besta
e do falso-profeta Ambos representam inimigos da igreja desde o tempo dos apoacutestolos Nos
termos de Joaquim satildeo as ldquonaccedilotildees increacutedulas que uma vez estiveram sujeitas ao Impeacuterio
Romano e entatildeo perseguem a Cristo e sua Igrejardquo514 Suas sete cabeccedilas sucessivas satildeo a)
Herodes e seus judeus no reino da Judeacuteia b) os pagatildeos do Impeacuterio Romano ateacute o tempo de
Diocleciano c) reino grego ariano d) reino godo ariano e) reino vacircndalo ariano f) reino
lombardo ariano g) o impeacuterio de Maomeacute O tempo da seacutetima cabeccedila eacute o tempo da desolaccedilatildeo
da Babilocircnia Esta terceira distinccedilatildeo descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo branco
Segundo o abade esse cavaleiro pode indicar a manifestaccedilatildeo de Cristo para destruir a besta
atraveacutes de sua volta pessoal ou o poder de Cristo operado por meio de outras figuras
Inicialmente ele se inclina para uma vinda pessoal Depois entretanto admite que isso pode
ser explicado pela accedilatildeo invisiacutevel de Cristo em sua Igreja militante
Finalmente as duas proacuteximas seccedilotildees do Expositio fecham o livro A parte seacutetima
(209v-215r) discute o milecircnio (Apocalipse 201-10) e a oitava (215r-224r) a Jerusaleacutem
513 Idem p 319-320 514 ldquoUniversas gentes infideles quae aliquando subjectae fuerunt Romano imperio et persecutae sunt Christum
et ecclesiam ejusrdquo (196r)
154
Celestial (Apocalipse 2011-2221) Esta uacuteltima corresponde ao oitavo aetas natildeo mais
dentro da histoacuteria mas no seculum futurum posterior ao uacuteltimo tempo da humanidade
73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio
A seacutetima seccedilatildeo do Expositio eacute a menor do comentaacuterio de Joaquim o que natildeo significa
status diminuiacutedo O episoacutedio do milecircnio de Apocalipse 201-10 foi transformado em uma
espeacutecie de aacutepice antes do cliacutemax O fim do mundo com o juiacutezo final e a esfera porvir
continuam no horizonte (a seccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem) do abade mas este fim aguardado para
a ldquoeternidaderdquo recebeu uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica na histoacuteria Como argumentou Potestagrave a
estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade ldquoa descoberta que
a primeira parte de Apocalipse 20 trata daquele grande saacutebado futuro no final do mundo515
Curiosamente se Joaquim procura com sua metodologia hermenecircutica ldquoinventarrdquo
muacuteltiplos sentidos nas outras seccedilotildees do comentaacuterio nesta ele eacute econocircmico em detalhes sobre
as figuras e os eventos Em outros lugares do Expositio como na anaacutelise das duas
testemunhas do capiacutetulo 11 de Apocalipse ele multiplica os significados por meio da
alegoria tipologia e concordia516 Ao interpretar os dez versiacuteculos do reino messiacircnico de
Joatildeo (Apocalipse 201-10) entretanto ele se contenta em fornecer um agraves vezes dois
sentidos mas ainda vagos e imprecisos Diferente de Papias que chega a descrever o
tamanho das uvas do reino milenar517 o abade de Fiore no final de sua vida entende que
alguns poucos aspectos espirituais jaacute seriam suficientes para alimentar a expectativa da
Igreja
Joaquim dividiu esta seacutetima seccedilatildeo do Expositio em quatro partes precedidas de uma
introduccedilatildeo
- Introduccedilatildeo 209v-210v
- Pars prima 210v-212r (comentaacuterio de Apocalipse 201-3)
- Pars secunda 212r-214v (comentaacuterio de Apocalipse 204)
515 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 299 516 Extrateacutegias hermenecircuticas apresentadas no capiacutetulo anterior 517 Conferir a citaccedilatildeo em DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1997 p 23 ldquoViratildeo dias em que as vinhas cresceratildeo em que cada uma teraacute dez mil
vides e em cada vide dez mil ramos e em cada ramo dez mil bototildees e em cada botatildeo dez mil cachos e em
cada cacho dez mil uvas e cada uva prensada daraacute vinte e cinco medidas de vinho E quando um dos santos
colher um cacho o outro lhe diraacute sou melhor colha-me e abenccediloa o Senhor atraveacutes de mimrdquo
155
- Pars tertia 214v (comentaacuterio de Apocalipse 205-6)
- Pars quarta 214v-215r (comentaacuterio de Apocalipse 207-10)
A introduccedilatildeo eacute aberta logo com a frase ldquoestatildeo completadas seis partes do livro de
Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de trabalho Vem agora a seacutetima parte na
qual vemos aquele saacutebado futuro no fim do mundo que em outro lugar chamamos de terceiro
statusrdquo518 Fica clara assim a relaccedilatildeo construiacuteda por Joaquim entre o milecircnio de Apocalipse
20 e um periacuteodo de paz na terra durante o fim do terceiro status da histoacuteria da humanidade
Ele completa ainda que se trata do ldquotertium statum sive etiam septimam mundi statemrdquo (do
terceiro status ou da seacutetima idade do mundo) Corresponde tambeacutem agrave seacutetima aetas da Igreja
que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do seu Expositio
Apoacutes estas frases de definiccedilatildeo ou mesmo de contextualizaccedilatildeo o abade recorre a
Agostinho e uma figura que ele chama de St Remigius Do primeiro ele toma a ideia de que
a expressatildeo ldquodia finalrdquo nas Escrituras natildeo precisa ser entendida como significando o uacuteltimo
momento do mundo podendo antes ser uma uacuteltima fase ou entatildeo o tempo do fim Por isso
os autores biacuteblicos poderiam dizer haacute mais de mil anos que ldquojaacute era a uacuteltima horardquo No
segundo ele busca apoio para a afirmaccedilatildeo de que haveraacute um certo tempo de duraccedilatildeo
indeterminada posterior agrave derrota do Anticristo Esse parece ser o motivo dele ter buscado
nesta figura de identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua
interpretaccedilatildeo Segundo Potestagrave provavelmente este Remigius foi um exegeta do seacuteculo XII
cuja obra foi atribuiacuteda a um certo Aimone de Halberstadt519
A ideia de um periacuteodo sabaacutetico na terra representa descontinuidade com a tradiccedilatildeo
exegeacutetica de Agostinho520 Joaquim estaacute ciente disso e gasta algumas linhas do seu
comentaacuterio para explicar que a expectativa da vinda agrave terra de uma seacutetima aetas na qual a
Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e reinaria sem perturbaccedilatildeo na plena possessatildeo da
ldquointeligecircncia espiritualrdquo natildeo eacute um erro mas uma maior compreensatildeo Segundo o abade eacute
uma ldquoopiniatildeo racional natildeo contraacuteria agrave feacuterdquo521
518 ldquoPeractis sex partibus libri Apocalypsis in quibus notata sunt sex tempora laboriosa Veniendum est
quandoque ad septimam partem im qua agitur de magno illo sabbato in fine mundi futuro quod vocari placluit
tertium statumrdquo (209v) 519 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 323 520 Segundo MC Ginn ldquoem nenhuma outra parte do seu longo comentaacuterio Joaquim mostra a ruptura com
setecentos anos de tradiccedilatildeo exegeacutetica latina como na descriccedilatildeo do reino milenar de Cristo e dos santos na terra
de Apocalipse 20rdquo Cf MCGINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 521 ldquoTamen esse potest rationabilis opinio que non sit contra fidemrdquo (210v)
156
Apoacutes isso ele usa boa parte da introduccedilatildeo para retomar aspectos que precederiam o
periacuteodo sabaacutetico o diabo lanccedilaraacute os sarracenos contra o impeacuterio cristatildeo apoacutes a queda da
Babilocircnia haveraacute um pequeno periacuteodo de tranquilidade para a Igreja entatildeo a besta que
parecia morta se ergueraacute novamente para uma segunda batalha contra os exeacutercitos de fieacuteis
o resultado seraacute a derrota da besta e do falso profeta e finalmente se seguiraacute uma grande
paz o descanso sabaacutetico
A partir de entatildeo ele analisa os versiacuteculos de Apocalipse 201-10 por meio da
estrateacutegia que jaacute utilizou no restante do comentaacuterio haacute uma transcriccedilatildeo de uma pequena
porccedilatildeo do texto na sua versatildeo latina522 seguido de comentaacuterios exegeacuteticos filoloacutegicos e
histoacutericos
A primeira parte da seccedilatildeo corresponde a Apocalipse 201-3 (a prisatildeo de Satanaacutes) Eacute
possiacutevel notar uma pequena diferenccedila entre o texto latino usado por Joaquim e a Vulgata
Clementina No versiacuteculo trecircs a Clementina usou o termo consummentur (seja concluiacutedo)
enquanto Joaquim transcreveu compleant (seja completado) De qualquer forma satildeo termos
intercambiaacuteveis sem grandes implicaccedilotildees textuais para a periacutecope
O abade comeccedila com a discussatildeo do significado da expressatildeo ldquomil anosrdquo O nuacutemero
natildeo eacute literal jaacute que ele significa um nuacutemero perfeito523 Isso indicaria que a duraccedilatildeo da prisatildeo
de Satanaacutes seria durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo Mesmo assim o abade aplica ao tempo
milenar dois significados secundum parte et secundum plenitudinem O primeiro teve um
cumprimento inicial (incipient) no tempo da ressureiccedilatildeo de Cristo Neste sentido o milecircnio
se estenderia daquela eacutepoca ateacute o fim do mundo durante todo o tempo da histoacuteria da Igreja
(ldquoad totum tempus ecdesierdquo) Mas seu perfeito e completo cumprimento seraacute no tempo
sabaacutetico (ldquoad sabbatumrdquo) depois da destruiccedilatildeo da besta
Nos seus termos o milecircnio do Apocalipse teria um cumprimento duplo
ldquoparcialmente a partir daquele saacutebado em que o Senhor descansou no sepulcro plenamente
apoacutes a destruiccedilatildeo da Besta e do Falso-profetardquo524 Eacute uma forma curiosa de afirmar a posiccedilatildeo
de Agostinho (milecircnio como o tempo de existecircncia histoacuterica da Igreja) para logo em seguida
522 Natildeo haacute marcaccedilatildeo de capiacutetulos ou versiacuteculos na versatildeo latina usada por Joaquim Ela difere levemente da
Vulgata Clementina usada nesta tese COLUNGA Alberto TURRADO Laurentio Biblia Sacra iuxta
Vulgatam Clementinam Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1965 523 ldquoMillenarius numerus perfectissimus estrdquo (210v) 524 ldquoSecundum partem incipit ab illo sabbato quo requievit Dominus in sepulchro secundum plenitudinem sui
a ruina Bestiae et Pseudo-Profhetaerdquo (211r)
157
abandonaacute-la em prol da retomada da antiga posiccedilatildeo quiliasta (milecircnio como um periacuteodo
futuro intra-histoacuterico)525
Para Joaquim o autor de ldquoConfessionesrdquo estava correto apenas parcialmente Como
ele o abade insiste em afirmar que o milecircnio natildeo seraacute literal Pode ser longo ou curto mas
sua ldquoduraccedilatildeo seraacute segundo o arbiacutetrio de Deusrdquo526 Talvez seja mesmo curto mas o tempo
esclareceraacute isto
Sobre a atuaccedilatildeo do Espiacuterito o abade afirma que ele manteraacute a chave da prisatildeo de
Satanaacutes Neste periacuteodo a terceira pessoa da Trindade atuaraacute sobre toda a terra natildeo apenas
sobre os fieacuteis mas tambeacutem sobre os pagatildeos Por isso ldquohaveraacute uma grande paz como nunca
antes desde o princiacutepio dos seacuteculosrdquo527
Ele volta a mencionar Agostinho que afirmara inicialmente uma opiniatildeo sobre o
milecircnio e depois mudou de ideia528 Seu argumento eacute que o bispo de Hipona soacute deixou a
perspectiva de um milecircnio histoacuterico por causa das expressotildees exageradamente ldquocarnaisrdquo dos
defensores do quiliasmo daquela eacutepoca Mas o fato de crer na vinda sobre a terra de uma
seacutetima aetas muito melhor que as anteriores natildeo constitui um erro mas eacute sim uma
ldquocompreensatildeo tranquilardquo529
No foacutelio 211r o abade fala do ldquoreinar do Espiacuterito Santordquo (ldquoregnare Spiritus divinusrdquo)
no que se constitui uma significativa alternativa ao ldquoreino de Cristordquo de Apocalipse 201-10
Haacute ainda uma insistecircncia de Joaquim em caracterizar este periacuteodo como um tempo de paz
ldquoGenuiacutena paz fruiraacute para a Igreja de Cristordquo530
A segunda parte da seacutetima seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 204-5a531 e
ocupa apenas uma coluna do foacutelio 212r Joaquim comeccedila indicando a relaccedilatildeo do texto de
Joatildeo com ldquoo povo santo do altiacutessimordquo descrito por Daniel ldquocujo reino eacute eternordquo532 O abade
entende que os ldquomille annirdquo destes versiacuteculos devem ser paralelos agrave prisatildeo de Satanaacutes ldquoO
525 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 324 MC GINN Bernard LrsquoAbate
Calabrese op cit p 169 526 ldquoCujus terminus erit in arbitrio Deirdquo (210b) 527 ldquoErit magna pax qualis non fuit aprincipio seculirdquo (210v) 528 ldquoVera fuit illo opinio immo non jam opiniordquo (211r) A citaccedilatildeo veio de De Civitate Dei 2071 Versatildeo
consultada SANTO AGOSTINHO A cidade de Deus Petroacutepolis Vozes 2012 2 v V 1 p 514 529 ldquoSerenissimus intellectusrdquo (211r) 530 ldquoVera pace frui poterit ecclesia Christirdquo (211r) 531 No texto joanino o bloco comeccedila com a menccedilatildeo dos tronos passa pela descriccedilatildeo dos maacutertires que
reviveram e termina na explicaccedilatildeo de que os demais natildeo reviveram ateacute o fim dos mil anos 532 ldquoCuius regnum sempiternum estrdquo (212r)
158
tempo do reino dos Santos seraacute interligado com o tempo da prisatildeo do Dragatildeordquo533 Seraacute um
tempo breve de duraccedilatildeo incerta no qual a Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e alcaccedilaraacute a
plena possessatildeo da ldquointelligentia spiritualisrdquo
A ressurreiccedilatildeo mencionada por Joatildeo eacute tambeacutem entendida como a prevista em Daniel
12 Jaacute os mortos que natildeo reviveram ateacute o final do milecircnio segundo Joaquim seratildeo os fieacuteis
que ressuscitaratildeo e entraratildeo direto na Nova Jerusaleacutem sem passar pelo julgamento do ldquotrono
brancordquo descrito a partir de Apocalipse 2011 Mas ele admite dificuldades neste ponto e
entende que eacute preciso esperar por novos esclarecimentos espirituais
A terceira parte da seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 205b-6 que natildeo passa
de uma declaraccedilatildeo do estado daqueles que participam da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo Eacute um bloco
muito pequeno soacute ocupando 19 linhas de uma coluna do foacutelio 214v A versatildeo latina citada
pelo abade declara ldquobeatus et sanctus qui habet partem in resurrectione primardquo (Exp Ap
214v) Percebe-se que Joaquim natildeo tem muito para falar sobre estes versiacuteculos do
Apocalipse Ele se contenta em afirmar que aqueles que experimentarem a ldquoprimeira
ressurreiccedilatildeordquo seratildeo realmente felizes (felicius viro) pois natildeo estaratildeo mais ao alcance da
morte
A quarta e uacuteltima seccedilatildeo da seacutetima parte do Expositio corresponde a Apocalipse 207-
10 (a volta de Satanaacutes e o confronto contra Gog e Magog) Joaquim recorre agrave passagem
paulina de 1Tessalonicenses 413 para descrever duas ressurreiccedilotildees Segundo o abade
alguns ressuscitaratildeo logo outros depois Tambeacutem vincula o texto de Joatildeo com uma profecia
de Ezequiel 38 ao descrever um conflito no final dos tempos A paz do periacuteodo sabaacutetico
seraacute interrompida quando Satanaacutes for solto do abismo e instaurar a tribulaccedilatildeo de Gog e
Magog que significa uma uacuteltima ameaccedila para os cristatildeos vinda dos confins do Oriente
talvez de povos que no passado longiacutenquo foram aprisionados por Alexandre o Grande Este
exeacutercito se levantaraacute contra a ldquocidade amada no fim dos seacuteculosrdquo534 mas seraacute logo destruiacutedo
Assim a besta e o falso-profeta foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine
sexte etatis) e Satanaacutes o seraacute no fim da seacutetima (in fine septime)
Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto e fala em muacuteltiplas
ldquoopinionesrdquo Por fim conclui com outra alusatildeo a Daniel no sentido de que quando for vista
533 ldquoIdem tempu intelligatur incarcerationis draconis et regni Santorumrdquo (212r) 534 ldquoCivitatem dilectam in consumatione seculirdquo (214v)
159
a ldquoabominaccedilatildeo da desolaccedilatildeordquo (ldquoabominationem desolationisrdquo) eacute porque ldquoestas coisasrdquo estatildeo
para se cumprir535
74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito
Segundo Bernard MCGinn Joaquim era um ldquoum convicto utopista no sentido de
que ele sentia ardentemente a iminecircncia da condiccedilatildeo ideal de vida sobre a terrardquo536 Sua
descriccedilatildeo desta eacutepoca futura parece realmente estar marcada pela ansiedade Ele desejava
ver o que naquele momento apenas podia imaginar e esperava estar vivo quando tudo
acontecesse jaacute que aguardava a manifestaccedilatildeo deste periacuteodo histoacuterico para breve Mas que
tipo de vida o abade esperava Quais seriam as tais ldquocondiccedilotildees ideaisrdquo de existecircncia humana
sobre a terra
Acima de tudo seria o reino do Espiacuterito (regnus Spiriti Divini) O Espiacuterito eacute a mais
frequente referecircncia de Joaquim para este periacuteodo Ele eacute o ldquoanjordquo que amarraraacute Satanaacutes por
ldquomil anosrdquo ou seja durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo de tempo Talvez por uma geraccedilatildeo (30
anos)537 Assim o ministeacuterio de Cristo a segunda pessoa da Trindade e o ministeacuterio do
Espiacuterito Santo a terceira pessoa durariam igualmente 30 anos Seraacute um periacuteodo curto mas
necessaacuterio agrave luz da revelaccedilatildeo trinitaacuteria agrave humanidade jaacute que o Pai se manifestou no primeiro
status e o Filho no segundo O terceiro status pertence ao Espiacuterito
Durante este tempo o Espiacuterito atuaraacute sobre toda a terra enchendo-a de paz Essa seraacute
sua principal caracteriacutestica Finalmente teraacute acabado a longa seacuterie de conflitos e perseguiccedilotildees
que marcou os dois povos de Deus (Israel e Igreja) desde o iniacutecio da histoacuteria Neste periacuteodo
ambos estaratildeo unidos (judeus e gentios) debaixo da plena posse da ldquointeligecircncia espiritualrdquo
para conhecer os segredos das Escrituras Joaquim fala de uma ldquocidade amadardquo no final da
seacutetima seccedilatildeo do Expositio o que pode ser uma indicaccedilatildeo de que Joaquim esperava que
535 Em Daniel 927 registra-se que algueacutem viraacute sobre ldquoas asas da abominaccedilatildeordquo A mesma imagem eacute usada em
Daniel 1131 e 1211 mas a referecircncia primaacuteria em termos histoacutericos e literaacuterios eacute mesmo Daniel 9 quando
o autor apocaliacuteptico descreve a profanaccedilatildeo do templo por Antiacuteoco Epiacutefanes A funccedilatildeo principal desta narrativa
apocaliacuteptica era garantir que o tempo de anguacutestia dos leitores estava para chegar ao fim e por isso o relato
anuncia uma iminente ldquogrande abominaccedilatildeordquo (referecircncia agrave profanaccedilatildeo do templo de Jerusaleacutem) mas garante
que quando isso acontecer a libertaccedilatildeo divina viraacute em seguida Cf COLLINS John J Daniel with in
introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 1984 p 93 536 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 537 Joaquim usa o termo ldquogeraccedilatildeordquo para descrever periacuteodos histoacutericos Uma geraccedilatildeo teria a duraccedilatildeo de trinta
anos Do nascimento de Jesus ateacute o descanso sabaacutetico 1260 anos 42 geraccedilotildees passaram Cf WEST
ZIMDARS-SWARTZ op cit p 32-35
160
Jerusaleacutem fosse o lugar desta reuniatildeo universal dos ldquopovos do altiacutessimordquo no final dos
tempos538 Assim se a graccedila de Deus se moveu do Oriente para o Ocidente no periacuteodo
sabaacutetico ela voltaraacute do Ocidente para o Oriente
Joaquim denomina o periacuteodo de sabbatum e abre a seacutetima seccedilatildeo do Expositio falando
dos seis ldquotemposrdquo anteriores (tempore laboriosa) Se o ocasiatildeo anterior foi de trabalho este
uacuteltimo tempo da histoacuteria seraacute de descanso Por isso eacute um ldquosaacutebadordquo expressatildeo que faz alusatildeo
agrave semana primordial de criaccedilatildeo das Escrituras hebraicas cuja narrativa descreve a divindade
criando o mundo em seis dias No seacutetimo entretanto descansou ldquode toda a sua obra que
tinha feito E abenccediloou Deus o dia seacutetimo e o santificou porque nele descansou de toda a
obra que como Criador fizerardquo (Gecircnesis 22-3) Esse relato dos primoacuterdios retorna vaacuterias
vezes nas narrativas biacuteblicas Em uma delas surge no coacutedigo legal judaico conhecido como
ldquodez mandamentosrdquo ldquoem seis dias fez o Senhor os ceacuteus e a terra o mar e tudo o que neles
haacute e ao seacutetimo dia descansou por isso o Senhor abenccediloou o dia de saacutebado e o santificourdquo
(Ecircxodo 2011) O texto da Vulgata assim traduziu uma das expressotildees ldquobenedixit Dominus
diei sabbatirdquo Tomando esta semana da criaccedilatildeo como uma das estruturas da histoacuteria da
humanidade o abade vinculou os tempos anteriores de trabalho com os seis primeiros dias
aguardando com muita ansiedade o ldquoseptimum mundi statemrdquo o saacutebado de descanso
espiritual539
Na seacutetima parte do Expositio a descriccedilatildeo deste saacutebado final permanece vaga em
muitos aspectos Joaquim fala de caracteriacutesticas como pax e spiritualis intellectus A
primeira eacute uma inversatildeo dos sucessivos conflitos que caracterizaram a histoacuteria da
humanidade A segunda aponta para um aperfeiccediloamento da sabedoria dos homens e
mulheres do final da histoacuteria que excederaacute a sabedoria dos livros e tornaraacute desnecessaacuteria a
pregaccedilatildeo Mas se desejamos uma caracterizaccedilatildeo mais abrangente precisamos recorrer a
outra fonte do pensamento do abade de Fiore
Joaquim transformou algumas de suas ideias em imagens e esquemas o que faz com
que uma forma de aproximaccedilatildeo ao saacutebado do Espiacuterito esteja no documento conhecido como
Liber Figurarum540 Esta obra sobreviveu como uma coletacircnea de figuras do abade Algumas
538 WHALEN op cit p 123 539 Idem p 106 540 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 169 Para uma anaacutelise ampla do Liber Figurarum cf
REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiore Genuine and spurious collections Medieval and
Renaissance Studies Los Angeles v 3 p 170-199 1954 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo
Gioachimita op cit p 99-106 Usamos a ediccedilatildeo encontrada em GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio
del mistero Le tavole del Liber Figurarum di Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi
Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000
161
destas aparecem no contexto dos livros autecircnticos Outras exclusivamente no Liber No
total satildeo 26 figuras resultado da ediccedilatildeo dos disciacutepulos de Joaquim que natildeo apenas
organizaram suas principais imagens mas tambeacutem desenharam outras seguindo de perto
suas ideias541 Para a professora Reeves estas imagens ldquosatildeo exposiccedilotildees do seu sistema de
pensamento natildeo meramente ilustraccedilotildees para seus textos Satildeo projetos independentes que
incorporam as diversas estruturas do pensamento de Joaquim eventualmente de forma mais
adequada do que palavras poderiam fazerrdquo542
Uma das figuras que mais claramente tratou do periacuteodo sabaacutetico foi a Dispositio novi
ordinis pertinens ad tertium statum (Liber Figurarum Tav XII)543 Eacute um diagrama da
sociedade do final dos tempos Percebe-se que o abade apresenta essa nova sociedade com
elementos de descontinuidade e continuidade em relaccedilatildeo ao tempo anterior A Igreja por
exemplo seraacute transformada mas natildeo necessariamente descontinuada
A nova sociedade foi desenhada na forma de uma cruz grega com suas partes
transformadas em oratoacuterios o que define o centro desta nova realidade humana como uma
grande instituiccedilatildeo religiosa generalizada e universal A figura eacute formada por um oratoacuterio
central cercada por outros quatro oratoacuterios que correspondem a diversos tipos de vida
monaacutestica tendo na parte inferior da figura dois outros oratoacuterios maiores em circunferecircncia
mas distantes dos oratoacuterios centrais Ou seja satildeo cinco oratoacuterios dedicados a tipos distintos
de monges (ordo monachorum) um para os cleacuterigos (ordo clericorum) e outro para os leigos
(ordo coniugatorum)
A imagem foi baseada na passagem de 1Coriacutentios 1212 quando Paulo descreve o
corpo com muitas partes que formam um soacute organismo quando estatildeo todas juntas Joaquim
combinou esta imagem com a visatildeo dos ldquoseres viventesrdquo de Apocalipse 4 um leatildeo um boi
um homem e uma aacuteguia Em seguida ele aplicou a estes seres os ldquocarismasrdquo de Efeacutesios 4
apoacutestolos profetas evangelistas e pastores-mestres O resultado dessa amaacutelgama eacute uma
comunidade que daacute unidade e plenitude ao ldquopovo do altiacutessimordquo na terra
Nesta comunidade religiosa perfeita do fim do mundo numa posiccedilatildeo correspondente
ao ldquonarizrdquo da sociedade estaacute o pater spiritualis que guia pelo exemplo e dedicaccedilatildeo Este
541 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 13-125 p 100 MC GINN Bernard
Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der Joachim of Fiore the
Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 103 542 REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiorehellip op cit p 199 543 Conferir esta imagem no anexo 4 retirada de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op
cit p 13 Para a anaacutelise da Dispositio cf MCGINN Bernard Apocalyptic Spirituality op cit p 111-112
TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 103-104
162
oratoacuterio eacute dedicado agrave ldquoMaria e a Santa Jerusaleacutemrdquo Ele eacute simbolizado pela pomba e funciona
como um conselho para o restante da sociedade Joaquim o denomina tambeacutem de ldquotrono de
Deusrdquo como em Apocalipse 4 O ldquopai espiritualrdquo e os demais membros deste oratoacuterio
seguem a ldquoregrardquo na pureza da forma No interior do oratoacuterio aparece a descriccedilatildeo ldquoEste local
seraacute a matildee de todos os locais Seraacute o pai espiritual que presidiraacute todos os lugaresrdquo544
Agrave esquerda do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPedro e de Todos os Santos
Apoacutestolosrdquo Esta parte representa a matildeo Eacute simbolizada pelo Leatildeo e funciona como uma
casa para pessoas idosas e doentes se recuperarem por meio do ldquoespiacuterito de fortalezardquo
Apesar da fragilidade dos seus membros eles ainda seguem a regra religiosa
Neste oratoacuterio vatildeo viver estes irmatildeos delicados e velhos que por
fraqueza de estocircmago natildeo podem suportar a austeridade da regra e do
jejum mas ainda assim como podem se esforccedilam para proceder de
acordo com a pureza da regra Eles natildeo seratildeo obrigados a sair para os
campos para fazer trabalhos manuais mas vatildeo executar seus trabalhos
em casa debaixo de cuidados Natildeo seraacute permitida a entrada neste oratoacuterio
por vontade proacutepria ou escolha mas apenas aqueles a quem ordenou o
abade545
Agrave direita do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPaulo e de todos os Doutores da
Igrejardquo Esta casa representa a ldquoorelhardquo e eacute simbolizada por um ldquohomemrdquo Funciona como
um centro de aprendizagem onde pessoas iratildeo estudar com a ajuda do ldquoespiacuterito de
inteligecircnciardquo ldquoNeste oratoacuterio vivem homens eruditos entretanto com desejo de aprender as
coisas de Deus e que desejam dedicar-se mais do que os outros para ler e estudar a doutrina
espiritualrdquo546
Acima do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoJoatildeo evangelista e dos Santos Virgensrdquo
Esta parte representa os ldquoolhosrdquo Eacute simbolizada pela aacuteguia e seu papel eacute a contemplaccedilatildeo
debaixo da completa clausura O ldquoespiacuterito de sabedoriardquo estaacute sobre aqueles que estatildeo nesta
casa Eacute aqui que os ldquoviri spiritualesrdquo viveratildeo vidas perfeitas atraveacutes do louvor e da
contemplaccedilatildeo Segundo a descriccedilatildeo na imagem ldquoneste oratoacuterio viveratildeo homens perfeitos e
virtuosos que inflamados pelo desejo de vida espiritual querem levar uma vida
contemplativardquo547 Eles ldquojejuam o tempo todo exceto por motivo de doenccedila Natildeo bebem
544 GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 13-14 545 Idem 546 Idem 547 Idem
163
vinho e nem comem alimentos temperado com oacuteleo exceto nos domingos e nos principais
dias festivosrdquo548
Abaixo do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoEstevatildeo e de todos os Santos
Martirizadosrdquo Ele eacute simbolizado pelo ldquoboirdquo e representa a ldquobocardquo da comunidade Por meio
do ldquoespiacuterito de ciecircnciardquo estes membros seratildeo preparados e treinados em grande disciplina
espiritual Neste oratoacuterio ldquovivem os irmatildeos que tecircm forccedila para a atividade exterior e natildeo
podem progredir na disciplina espiritual como apropriadordquo Esta descriccedilatildeo jaacute indica um
decliacutenio de status em relaccedilatildeo aos membros dos oratoacuterios superiores e seus representantes de
alto ideal de vida religiosa
Na parte inferior da figura haacute ainda outros dois oratoacuterios que consomem um grande
espaccedilo da imagem Haacute um intervalo maior entre eles e a parte superior da Dispositio mas
ainda haacute uma ligaccedilatildeo como aparece no registro ldquoentre o mosteiro e a sede do clero deve
existir uma distacircncia de quase trecircs milhasrdquo Elemento semelhante seraacute repetido para o espaccedilo
que separa as duas casas de baixo
O oratoacuterio do clero eacute chamado de ldquoJoatildeo Batista e dos Profetasrdquo Eacute uma casa larga e
representa os ldquopeacutesrdquo da comunidade Eacute simbolizada por um ldquocachorrordquo Por meio do ldquoespiacuterito
de devoccedilatildeordquo sacerdotes e cleacuterigos vivem em continecircncia e comunidade sob a abstinecircncia
de alguns tipos de alimento e de roupa festiva
Entre o oratoacuterio do clero e o mais inferior que forma a base surge novamente a
menccedilatildeo do espaccedilo de separaccedilatildeo entre os edifiacutecios tema que aponta para um distanciamento
natildeo apenas espacial entre os personagens de cada um mas tambeacutem de poder funccedilatildeo e papel
ldquoentre estes dois oratoacuterios deve existir um espaccedilo de cerca de trecircs estaacutediosrdquo549
Na parte inferior da figura estaacute o oratoacuterio de ldquoAbraatildeo e dos Patriarcasrdquo representado
por uma ovelha cuja funccedilatildeo eacute servir de casa para pessoas casadas e seus filhos sob o ldquotemor
pela salvaccedilatildeordquo Estes viveratildeo em casas privadas mas suas vidas seguiratildeo as ordens do pater
spiritualis e seus supervisores Eles trabalharatildeo regularmente daratildeo o diacutezimo e viveratildeo uma
vida nivelada sem distinccedilatildeo de classes e com bens materiais em comum A imagem ainda
registra ldquoSob o nome deste oratoacuterio estaratildeo reunidos os cocircnjuges com seus filhos e filhas
em forma comunitaacuteria para ter relaccedilotildees com as esposas mais para produzir descendentes
do que para satisfazer os desejosrdquo550
548 Idem 549 Idem 550 Idem
164
Por meio da Dispositio surge a descriccedilatildeo de uma realidade social fortemente
estruturada com espaccedilos geograacuteficos marcados por status funccedilatildeo e dinacircmica religiosa e
social Joaquim recorreu ao texto de Efeacutesios 43 para falar da metaacutefora do corpo de Cristo
com oacutergatildeos diferentes Usou tambeacutem Joatildeo 142 para trazer a imagem das vaacuterias casas
divinas Por meio destas metaacuteforas ele compocircs a imagem de sete ldquocasas espirituaisrdquo nas
quais leigos diferentes niacuteveis de monges cleacuterigos e sacerdotes habitaratildeo551 Estas sete casas
satildeo ordenadas como se fossem a futura Jerusaleacutem transcendental de Apocalipse 22 Natildeo eacute
ainda aquela mas uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica de suas qualidades Esta comunidade
monaacutestica se manifestaraacute no periacuteodo sabaacutetico em ldquosemelhanccedila agrave Jerusaleacutem Celesterdquo552
A Dispositio conteacutem o plano de um monasteacuterio perfeito no qual a vida contemplativa
desempenha o papel central da existecircncia humana553 Apesar do predomiacutenio da ordo
monachorum haveraacute tambeacutem possivelmente sob os influxos da espiritualidade
cisterciense554 espaccedilo para trabalho e estudo Daiacute a existecircncia dos leigos para trabalhar dos
cleacuterigos para ministrar os sacramentos aos leigos e do ldquooratoacuterio do boirdquo formado por
monges que teratildeo contato com cleacuterigos
Mesmo se recusando a definir Joaquim como milenarista em funccedilatildeo de uma definiccedilatildeo
estreita do fenocircmeno555 o francecircs Jean Delumeau descreve longamente o sistema do calabrecircs
na segunda obra de sua trilogia dedicada ao estudo do paraiacuteso556 No momento de resumir a
natureza do repouso sabaacutetico o historiador francecircs recorreu a diversas expressotildees do abade
e forneceu esta siacutentese que dificilmente poderia deixar de ser definida como milenarista
Depois do tempo da ldquolei e da ldquograccedilardquo viraacute portanto o da ldquomaior graccedilardquo
durante o qual a natureza se transformaraacute e se embelezaraacute A liberdade
espiritual floresceraacute no mundo Entatildeo ldquonatildeo haveraacute mais sofrimentos e
gemidos Reinaratildeo ao contraacuterio o repouso a calma a abundacircncia da pazrdquo
Seremos voltados agrave contemplaccedilatildeo ao louvor ldquoDanccedilaremos de alegria ao
contemplar os admiraacuteveis desiacutegnios de Deusrdquo Natildeo haveraacute mais
necessidade de escrever livros para explicar as Escrituras A preacutedica se
deteraacute O tempo da letra teraacute terminado Os fieis contemplaratildeo os misteacuterios
551 Idem 552 Idem 553 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 25 554 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango v
1 p 217-240 2004 p 229 555 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias
Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria
mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 556 A trilogia de Delumeau eacute formada pelas seguintes obras DELUMEAU Jean Une histoire du paradis Le
Jardin des deacutelices Fayard Hachette Litteacuteratures 2002 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma
histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 DELUMEAU Jean O que sobrou do paraiacuteso
Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003
165
em plena luz O Evangelho segundo a letra seraacute substituiacutedo pelo
ldquoEvangelho eternordquo que procede do Evangelho de Cristo A verdade nos
seraacute dada em sua simplicidade557
O saacutebado do Espiacuterito descrito por Joaquim eacute sim um tipo de milenarismo uma
forma de utopia social558 que espera por um periacuteodo de felicidade para toda a humanidade
mesmo que afirme alguns benefiacutecios especiais para um grupo dentro dela Este periacuteodo seraacute
terreno e natildeo numa realidade transcendental eacute iminente pois a transformaccedilatildeo estaacute proacutexima
de comeccedilar seraacute miraculosa jaacute que as mudanccedilas aconteceratildeo por meio da atuaccedilatildeo
sobrenatural do Espiacuterito divino Tal felicidade seraacute total com a inversatildeo dos males da terra
mas natildeo com a destruiccedilatildeo de todas as instituiccedilotildees anteriores A Igreja sobreviveraacute
completamente transformada e sob a direccedilatildeo de um novo tipo de papado o ldquouniversalis
scilicet pontifex nove Ierusalemrdquo (certamente o pontiacutefice universal da nova Jerusaleacutem) ou
ldquopapa angelicusrdquo559
75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito560
O historiador inglecircs Norman Cohn no momento de apresentar Joaquim de Fiore
como o ldquoinventorrdquo do sistema profeacutetico ldquomais influente de todos os conhecidos na Europa
ateacute ao aparecimento do marxismordquo argumenta que a origem do seu sistema estaacute na
conjugaccedilatildeo de ldquoescatologias derivadas do Apocalipse e dos Oraacuteculos Sibilinosrdquo561 Ao
discutir o conceito de milenarismo na Idade Meacutedia o medievalista Robert Lerner argumenta
557 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 45 As aspas pertencem ao texto citado 558 Assim se expressou Cohn ldquoPor mais respeito que Joaquim tivesse agraves doutrinas exigecircncias e interesses da
Igreja o que ele propusera era na verdade um novo tipo de milenarismo ndash e aliaacutes um tipo que as geraccedilotildees
futuras haveriam de elaborar num sentido antieclesiaacutestico e depois num sentido abertamente secularrdquo Cf
COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia
Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 90 559 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard
K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-
88 p 85 560 Em alguns momentos a busca pelas fontes dos textos eacute uma tarefa ingloacuteria Os autores natildeo informam seus
pontos de partida e o maacuteximo que encontramos satildeo alusotildees mais ou menos transparentes Aleacutem dos topoi
disponiacuteveis para dada conjuntura histoacuterica o que sobra eacute um conjunto de hipoacuteteses com graus diferentes de
plausibilidade Conferir a argumentaccedilatildeo neste sentido em FLANAGAN Sabina Twelfth-Century apocalyptic
imaginations and the coming of the Antichrist The Journal of Religious History v 24 n 1 p 57-69 2000 p
59 561 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 89 O viacutenculo que Cohn fez entre Joaquim e Sibila natildeo
faz muito sentido As sibilas como a Tiburtina eram bem conhecidas no periacuteodo de Joaquim mas
manifestavam um tipo de milenarismo distinto Elas esperavam por um periacuteodo de paz na terra antes do
Anticristo normalmente dirigido por um imperador do final dos tempos ou por um papa poderoso
166
de forma parecida afastando ainda mais o abade do livro joanino e aproximando-o natildeo
necessariamente das Sibilas sugeridas por Cohn mas do poacutes-milenarismo da Glossa
Ordinaria562
Ambos sugerem por caminhos diferentes que o milenarismo de Joaquim de Fiore
natildeo depende inicialmente ou mesmo diretamente do milenarismo de Joatildeo de Patmos
Algumas evidecircncias poderiam reforccedilar as hipoacuteteses destes historiadores O sermatildeo
conhecido como Locuturi aliquid563 escrito por Joaquim em algum momento no iniacutecio da
deacutecada de 1180 em suas uacuteltimas linhas apoacutes descrever o que seria a sexta parte do
Apocalipse termina de forma lacocircnica ldquoEntatildeo viraacute o saacutebado apoacutes a ressurreiccedilatildeo pelo juiacutezo
e finalmente seraacute revelada a gloacuteria da cidade celestialrdquo564 No iniacutecio do sermatildeo ele jaacute
anunciara que o livro de Joatildeo ldquoestaacute dividido e limitado em sete partes e temposrdquo565 Este
texto tambeacutem indica que o abade jaacute tinha consolidada uma perspectiva sobre a estrutura das
seis primeiras partes do Apocalipse elemento que natildeo sofreria mudanccedila ateacute a conclusatildeo do
Expositio quase duas deacutecadas depois A sexta parte encerraria com a derrota da besta e o
falso profeta no final de Apocalipse 19 A seacutetima entatildeo iria de Apocalipse 20 ateacute o capiacutetulo
22 Como jaacute indicamos neste mesmo capiacutetulo Joaquim explicita nas partes iniciais do seu
grande comentaacuterio que ele planejava fazer uma obra de sete partes Se ele mudou para oito
em algum momento do processo foi justamente para dar destaque aos dez versiacuteculos do
texto milenar (a uacutenica mudanccedila significativa na estrutura) destaque que antes ele natildeo dava
A estrutura final do Expositio assim indica como o abade acentuou significativamente o
papel de Apocalipse 201-10 no conjunto da obra ao relacionaacute-lo com o terceiro status e a
seacutetima aetas do mundo
Tanto no Liber de Concordia quanto no Psalterium o abade jaacute apresentou o
desenvolvimento da histoacuteria humana na direccedilatildeo de um cliacutemax de beatitude Talvez uma das
passagens mais claras neste sentido esteja na Concordia
562 LERNER Robert E Millennialism In MC GINN Bernard (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism
Apocalypticism in Western History and Culture New York Continuum 1998 3v V 2 p 326-360 p 346
As Sibilas aludidas por Cohn como a Tiburtina e a Glossa Ordinaria manifestam tipos diferentes de
milenarismos O preacute-milenarismo da Tiburtina descreve um periacuteodo de felicidade na terra anterior ao advento
do Anticristo A Glossa Ordinaria apresenta um poacutes-milenarismo com o periacuteodo de felicidade para depois da
derrota do Anticristo Em ambos os fenocircmenos a parousia (segundo advento de Jesus) natildeo exerce papel na
instauraccedilatildeo da felicidade 563 Sobre este sermatildeo conferir o capiacutetulo IV supra 564 ldquoEt tunc erit sabbatum deinde resurectio ad iudicium et tunc revelabitur gloria civitates supernerdquo Texto
latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 p
130-131 565 ldquoSeptem partibus distinctus et temporibus terminaturrdquo Texto latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino
da Fiore op cit p 130-131
167
Os misteacuterios das divinas paacuteginas mostram-nos enfim os Trecircs Estados do
mundo O primeiro eacute aquele no qual estivemos sob a lei o segundo no qual
estamos sob a graccedila o terceiro que esperamos iminente sob uma graccedila
ampliada [] Por isso o primeiro Estado foi na ciecircncia o segundo na posse
da sabedoria o terceiro na plenitude do sentido O primeiro na servidatildeo
servil o segundo na servidatildeo filial o terceiro na liberdade O primeiro nos
flagelos o segundo na accedilatildeo o terceiro na contemplaccedilatildeo O primeiro no
temor o segundo na feacute o terceiro na caridade O primeiro eacute dos servos o
segundo eacute dos filhos o terceiro eacute dos amigos O primeiro eacute dos velhos o
segundo eacute dos jovens o terceiro das crianccedilas O primeiro na luz da estrela
o segundo na aurora o terceiro ao meio-dia O primeiro no inverno o
segundo na primavera o terceiro no veratildeo O primeiro produz urtigas o
segundo rosas o terceiro liacuterios O primeiro ervas o segundo espigas o
terceiro trigo O primeiro a aacutegua o segundo o vinho o terceiro o oacuteleo O
primeiro pertence agrave Setuageacutegima o segundo agrave Quaresma o terceiro agrave festa
pascal O primeiro Estado pertence ao Pai que eacute criador de todas as coisas
o segundo ao Filho que se dignou assumir nosso limite o terceiro ao
Espiacuterito Santo do qual diz o apoacutestolo Onde se achar o Espiacuterito do Senhor
aiacute estaacute a liberdade (Liber de Concordia 112r)566
O sistema acima apresentado relaciona cada status da histoacuteria da humanidade com
uma pessoa divina explicitando pelo acuacutemulo de imagens e analogias que o segundo
ultrapassou o primeiro e o terceiro ultrapassaraacute o segundo Para o abade a Era do Espiacuterito
seria muito melhor do que as duas anteriores o que significa que a humanidade poderia
esperar por um tempo de esplendor para o futuro sob a tutela do Espiacuterito divino
Sem chamar-se historiador o abade de Fiore se dedicava nos termos de Adeline
Rucquoi agrave ldquoanaacutelise da economia do tempordquo567 A forma como Joaquim entendia a histoacuteria
(preteritae rei) o levou a vaticinar o futuro em uma perspectiva de progresso e de evoluccedilatildeo
loacutegica Para o abade a histoacuteria era uma constante que se desdobrava de forma contiacutenua Se
ele compreende o passado ele pode prever o futuro Neste sentido eacute uacutetil ter uma perspectiva
de siacutentese dos sistemas histoacutericos do abade e verificar a forma como eles demandavam o
periacuteodo sabaacutetico
O editor do Liber de Concordie568 Randolph Daniel professor da Universidade de
Kentucky ao explicar a reflexatildeo histoacuterica de Joaquim o faz por meio daquilo que ele chamou
566 Esta longa citaccedilatildeo estaacute no Livro V capiacutetulo 84 ainda sem ediccedilatildeo criacutetica A traduccedilatildeo em questatildeo eacute de
BAUCHWITZ Oscar Federico A histoacuteria em Joaquim de Fiore Princiacutepios revista de filosofia Natal v 1
n 1 p 109-130 1994 p 110 567 A historiadora Adeline Rucquoi destaca que o seacuteculo XII foi um periacuteodo significativo para a reflexatildeo da
histoacuteria quando filoacutesofos e teoacutelogos se debruccedilaram a buscar uma ratio preterita rei ou o sentido do tempo
Aleacutem de Joaquim ela menciona Hugo de Satildeo Vitor Oton de Freising Anselmo de Havelberg e Petrus
Comestor Cf RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 223-224 568 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti
Philadelphia The American Philosophical Society 1983 O autor sintetiza os sistemas histoacutericos de Joaquim
168
de ldquoinflexotildees do pensamentordquo que aparecem nas poucas notas auto-biograacuteficas que o abade
deixou em suas obras569 A primeira se deu em algum momento durante a peregrinaccedilatildeo agrave
Palestina e deveria jaacute ser o conteuacutedo principal de suas pregaccedilotildees depois que ele retornou
para a Calaacutebria e atuava como pregador itinerante em Rende no iniacutecio da deacutecada de 1170
entremente o pontificado de Alexandre III (papa de 1159-1181)
Este sistema foi chamado por Joaquim de concordia duorum testamentorum ou os
paralelos entre as perseguiccedilotildees de Israel e as perseguiccedilotildees da Igreja Eacute uma maneira de
dividir a histoacuteria em duas grandes etapas Uma se chamava Antigo Testamento e se estendia
da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus A outra era o Novo Testamento e iria do nascimento
de Jesus ateacute o final dos tempos A histoacuteria da humanidade eacute o palco da atuaccedilatildeo de Deus para
salvar seus povos O primeiro era Israel O segundo a Igreja Neste esquema a histoacuteria
avanccedila por meio de tribulaccedilotildees e perseguiccedilotildees que se repetem paralelamente nos dois
testamentos e nos dois povos
As tensotildees poliacuteticas entre o papado e Impeacuterio Germacircnico estavam particularmente
altas depois de deacutecadas de conflito entre o papa Alexandre III (papa de 1159-1181) e o
Imperador Frederico I Barbarorroxa (1122-1190) Este ambiente parece estar traduzido no
alinhamento que Joaquim fez entre as ldquoperseguiccedilotildeesrdquo dos judeus na eacutepoca do Antigo
Testamento com as batalhas contra a Igreja no tempo do Novo Testamento
Joaquim aplicou esta estrutura de perseguiccedilotildees aos sete selos do Apocalipse e a
abordou repetidamente em vaacuterias de suas obras desde Genealogia570 ateacute De Septem
Sigillis571 embora os detalhes mudem de texto para texto Posteriormente este esquema de
dois tempos foi definido pelo abade de secunda diffinitio e o simbolizou pela letra grega
cursiva ocircmega572 Os Testamentos assim satildeo expressotildees tanto canocircnicas quanto histoacutericas
Se toda a histoacuteria de Israel da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus pode ser encontrada no
primeiro testamento Joaquim espera que a histoacuteria completa da Igreja desde sua origem ateacute
o final dos tempos esteja contida no segundo testamento especialmente no Apocalipse de
Joatildeo Mesmo neste esquema de dois tempos ainda haacute um momento sabaacutetico A seacuterie de sete
perseguiccedilotildees de Israel e da Igreja terminam ambas em um periacuteodo de descanso No caso de
em DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of
History Speculum Chicago v 55 n 3 p 469-483 1980 569 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xiii-xviii 570 Genealogia eacute provavelmente a obra mais antiga de Joaquim escrita segundo Potestagrave em 1176 Cf
POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 16 571 Possivelmente de 1198 Cf TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I Sigilli dellrsquoApocalisse In
GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 45 572 Conferir o esquema na posiccedilatildeo inferior esquerda do anexo 6
169
Israel o descanso veio apoacutes os conflitos com os gregos representados por Antiacuteoco Epiacutefanes
e se estendeu ateacute o nascimento de Jesus De maneira paralela apoacutes a seacutetima perseguiccedilatildeo pelo
Anticristo viraacute um descanso para a Igreja O princiacutepio fundamental eacute uma divisatildeo da histoacuteria
em duas partes cada uma delas marcada por perseguiccedilatildeo julgamento e batalha do povo de
Deus No futuro que Joaquim imaginava ser iminente a terceira pessoa da Trindade iria
libertar completamente os cristatildeos fieacuteis do sofrimento e das tribulaccedilotildees que caracterizaram
a histoacuteria desde os tempos de Israel ateacute os dias do abade Os conflitos entre os poderes
temporais e eclesiaacutesticos terminariam de vez jaacute que o periacuteodo sabaacutetico seria caracterizado
principalmente pela paz
A segunda inflexatildeo se deu no fim de 1183 ou iniacutecio de 1184 enquanto Joaquim
esteve em Casamari para tratar de aspectos burocraacuteticos para Corazzo Ali desenvolveu seu
mais conhecido sistema de tria statum em que a Trindade se relaciona com a histoacuteria
imprimindo nela a natureza das pessoas divinas Pai Filho e Espiacuterito573 Este uacuteltimo por sua
vez seria responsaacutevel por implantar uma era de perfeiccedilatildeo espiritual na terra Estes status
eram marcados ainda por initiatio frutificatio e consumatio Ou seja eles apresentavam
um iniacutecio um momento em que frutificam de maneira especial e uma fase de teacutermino No
caso da Era do Pai esta comeccedilou com Adatildeo frutificou em Abraatildeo e terminou em Cristo O
segundo status comeccedilou com Uzias frutificou em Zacarias (pai de Joatildeo Batista) e terminaria
algum tempo depois de Joaquim O terceiro status comeccedilou com Satildeo Bento de Nuacutersia
frutificaria na geraccedilatildeo de Joaquim e terminaria no fim da histoacuteria574 Joaquim aplicou este
esquema trinitaacuterio agrave progressatildeo da vida religiosa na histoacuteria No status do Pai predominavam
os casados no status do Filho predominavam os cleacuterigos no status do Espiacuterito
predominariam os monges Aplicou tambeacutem em trecircs povos a proteccedilatildeo de Deus deixou
Israel passou para os gregos e terminou nos latinos Esta divisatildeo em trecircs status foi definida
pelo abade como prima diffinitio representada simbolicamente pela letra grega uncial
Alfa575 Nesta estrutura a histoacuteria tem uma meta que soacute seraacute alcanccedilada no status do Espiacuterito
apoacutes o fim do segundo status quando se manifestar o descanso sabaacutetico A prima diffinitio
mais ateacute do que a secunda manifesta toda a ansiedade do abade pela perfeiccedilatildeo da vida
monaacutestica e talvez reflita a crise que acabaraacute levando-o a deixar Corazzo e fundar a Ordem
Florense
573 Conferir o diagrama dos Ciacuterculos Trinitaacuterios do anexo 6 574 WHALEN Brett Edward Dominion of God op cit 107 575 Conferir o esquema na posiccedilatildeo superior esquerda do anexo 6
170
O primeiro tempus coincide com o primeiro status O segundo tempus com o segundo
status ateacute a eacutepoca de Joaquim Apesar do saacutebado do segundo tempus natildeo ser tratado de forma
tatildeo proeminente quanto o saacutebado do terceiro status em ambas as diffinitiones a plena
realizaccedilatildeo estaacute no futuro Nas duas haacute uma evoluccedilatildeo de instituiccedilotildees e de qualidade de vida576
Finalmente apoacutes retornar para Corazzo cerca de um ano apoacutes a passagem por
Casamari Joaquim deu mais um passo na consolidaccedilatildeo dos seus sistemas histoacutericos Ele
finalmente conseguiu relacionar a concordia duorum testamentorum e a intervenccedilatildeo divina
por meio dos tria statum atraveacutes da estrutura geral do Apocalipse A obra de Joatildeo assim se
tornou aos olhos do abade a chave para a compreensatildeo inteira da histoacuteria da humanidade
Aleacutem dos sistemas histoacutericos do abade a historiografia tem sugerido outra base
significativa para o saacutebado do Espiacuterito desta vez por meio dos recursos exegeacuteticos do abade
Os leitores ocidentais do Apocalipse de Joatildeo desde as criacuteticas ao quiliasmo de Agostinho
de Hipona Jerocircnimo e Gregoacuterio Magno liam o Apocalipse de forma moralizante e
alegoacuterica sem viacutenculos expliacutecitos com a histoacuteria O milecircnio dos maacutertires de Apocalipse 20
era interpretado de forma a descrever o tempo da Igreja na terra577 Estes autores imaginavam
a histoacuteria caminhando na direccedilatildeo de vaacuterios desastres sendo o penuacuteltimo o advento do
Anticristo Ele instauraria uma grande perseguiccedilatildeo agrave Igreja depois do qual Cristo viria de
forma gloriosa para o uacuteltimo julgamento e a consumaccedilatildeo da histoacuteria do mundo578
Uma ideia surgiu entretanto entre os antigos comentaristas de Daniel Ao comentar
Daniel 1211-12 por volta do ano 400 Jerocircnimo argumentou que o tempo da tribulaccedilatildeo
(1290 dias) e do fim do mundo (1335 dias) tinha um prazo residual de 45 dias Este mecircs e
meio seria entatildeo o intervalo entre a derrota do Anticristo e o julgamento final da humanidade
Beda o Veneraacutevel no iniacutecio do seacuteculo VIII concordou com Jerocircnimo e acrescentou que
este intervalo tambeacutem poderia ser encontrado nos trinta minutos de silecircncio no ceacuteu apoacutes a
576 DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of
History op cit p 482 577 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 29-31 Segundo Desroche esta ldquoconcepccedilatildeo
alcanccedilou posiccedilatildeo hegemocircnica mas nunca deixou de ser sitiada por fileiras de dissidecircncias oriundas das trecircs
grandes confissotildees cristatildes (catolicismo protestantismo ortodoxia)rdquo Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de
messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 22
Por isso Umberto Eco fala de um ldquomillenarismus absconditusrdquo neste periacuteodo de hostilidade contra o quiliasmo
Cf ECO Umberto Wainting for the Millennium In LANDES Richard GOW Andrew VAN METER
David C (ed) The apocalyptic year 1000 religious expectation and social change ndash 950-1050 Oxford Oxford
University Press 2003 p 121-135 p 125 578 FLANAGAN op cit p 59 Flanagan acrescenta que o que variava bastante era a sequecircncia dos eventos
finais o tempo entre cada um deles bem como a perspectiva de iminecircncia
171
abertura do seacutetimo selo do Apocalipse O exegeta do seacuteculo IX Haimo de Auxerre
argumentou ainda que o periacuteodo em questatildeo natildeo precisava ser qualificado de forma precisa
jaacute que era apenas um prazo miacutenimo Estes autores natildeo estavam certos sobre os motivos para
este prazo579 ateacute que a Glossa Ordinaria no iniacutecio do seacuteculo XII em uma de suas notas
sugeriu que o tempo posterior ao advento do Anticristo e anterior agrave volta de Cristo
denominado entatildeo de refrigerium sactorum (descanso dos santos) seria uma fase de
felicidade prosperidade e paz na terra Alguns autores especialmente do mesmo periacuteodo
ampliaram ainda mais este novo conceito como Honorius Augustodunesis (1080-1156) que
argumentou que ele seria o tempo da conversatildeo de todos os pagatildeos ou Otto de Freising
(114-1158) que previu nele o ingresso dos judeus agrave Igreja Levando em conta esta corrente
exegeacutetica Robert Lerner levantou a hipoacutetese que o milenarismo do Espiacuterito de Joaquim
deveria ser entendido como uma expressatildeo exegeacutetica modificada da ldquotradiccedilatildeo do refrigeacuterio
dos santosrdquo580 Eacute possiacutevel concordar parcialmente com Lerner ao indicar uma fonte
plausiacutevel para a escatologia do abade mas natildeo de forma isolada Os sistemas histoacutericos dele
jaacute demandavam a expectativa de um futuro melhor
De qualquer forma o que se percebe eacute que o descanso sabaacutetico que Joaquim
descreveu na passagem de Apocalipse 201-10 teve pontos de partida bem mais amplos do
que o texto joanino O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim parece ser o resultado de sua reflexatildeo
histoacuterica e da tradiccedilatildeo exegeacutetica do refrigeacuterio dos santos Assim nos momentos finais do
Expositio ao fazer a exegese de Apocalipse 20 o abade aplica no milecircnio de Joatildeo as ideias
que jaacute trazia consolidadas que apoacutes a queda do Anticristo e antes da volta de Jesus haveria
na terra natildeo necessariamente um reinado dos maacutertires mas o descanso da Igreja e acima de
tudo o refrigeacuterio dos monges sob a direccedilatildeo final da terceira pessoa da Trindade
76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia
Segundo Sabina Flanagan explicaccedilotildees histoacutericas para as opccedilotildees dos autores podem
ter relaccedilatildeo entre outros fatores com crenccedilas e restriccedilotildees dogmaacuteticas religiosas com
engajamentos poliacuteticos e viacutenculos sociais ou com confrontos contra dissidecircncias581 Essa eacute
579 LERNER Robert E Millennialism op cit p 344 TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I
Sigilli dellrsquoApocalisse op cit p 34 580 LERNER Robert E Millennialism op cit p 347 581 FLANAGAN op cit p 64
172
uma forma de dizer que as representaccedilotildees que se materializaram nas praacuteticas e discursos de
Joaquim configuram respostas a conjunturas poliacuteticas sociais culturais e eclesiaacutesticas que
caracterizavam o Ocidente medieval582
Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai Mauro um notaacuterio a
serviccedilo da chancelaria normanda Inicialmente estes passos foram dados sem sobressaltos
comeccedilando na Calaacutebria e se deslocando em seguida para a corte do Reino da Siciacutelia em
Palermo Ele nasceu em 1135 um pouco depois da fundaccedilatildeo do Reino por Rogeacuterio II e
abandonou a carreira na corte em 1167 um ano depois da morte do rei William I Estas
primeiras deacutecadas de vida e o treinamento recebido para o trabalho na corte devem ter lhe
capacitado para o relacionamento com as diversas populaccedilotildees e etnias do reino Um notaacuterio
especialmente em Palermo deveria ter conhecimento do grego e do aacuterabe para promover
seus registros583 Estas qualidades possivelmente estiveram envolvidas em sua raacutepida
ascensatildeo no monasteacuterio de Corazzo e nas negociaccedilotildees com os poderes eclesiaacutesticos e
temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore
Essa proximidade com a cultura aacuterabe da Siciacutelia ou os contatos proacuteximos que ele
possa ter tido na corte de Palermo entretanto natildeo produziram nele uma perspectiva positiva
quanto ao Islatilde Mesmo que natildeo haja em suas obras nada parecido com as convocaccedilotildees de
Satildeo Bernardo para uma guerra santa584 os muccedilulmanos satildeo descritos recorrentemente pelo
calabrecircs como agentes do diabo para perseguir a Igreja
Ele ingressou numa comunidade religiosa no iniacutecio do governo de William II no
comeccedilo da deacutecada de 1170 Quando este rei morreu em 1189 Joaquim jaacute havia passado por
Casamari comeccedilado a produccedilatildeo de suas grandes obras e tinha jaacute uma definiccedilatildeo das duas
deffinitio que ele usava para refletir a histoacuteria Aqueles foram tempos de muita instabilidade
Depois de quatro governantes de origem normanda (Rogeacuterio I Rogeacuterio II William I e
William II) o reino finalmente passou para as matildeos dos Hohenstaufen apoacutes o governo de
transiccedilatildeo do conde Tancredo Os encontros do abade com o imperador Henrique ou com a
rainha Constacircncia resultaram natildeo apenas em benefiacutecios materiais para Joaquim e seus
irmatildeos de Fiore mas tambeacutem no fim do viacutenculo entre a Babilocircnia e os imperadores
germacircnicos que se manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrecircs Com isso
582 WHALEN op cit p 115 583 Para os aspectos culturais e sociais do Reino da Siciacutelia conferir o capiacutetulo V 584 Cf AacuteLVAREZ PALENZUELA Vicente Aacutengel El Cister y las Oacuterdenes Militares em el impulso hacia
Oriente Cuardernos de Historia Medieval Madrid v 1 p 3-19 1998 p 8
173
na parte final do Expositio o Impeacuterio deixou de ser o grande adversaacuterio da Igreja no final
dos tempos
Joaquim viveu num periacuteodo de mudanccedilas profundas na sociedade medieval585 O
Impeacuterio Bizantino perdera muito do seu poder por causa das derrotas contra os turcos
muccedilulmanos as Igrejas Latina e Grega estavam em processo de consolidar a separaccedilatildeo a
exuberante monarquia normanda instalada na Siciacutelia e no sul da Itaacutelia chegava ao fim o
poder islacircmico na Peniacutensula Ibeacuterica encolhia novas formas de espiritualidade surgiam
quando antigas enfraqueciam Tudo isso pode estar subjacente agrave sua ansiedade pela
transformaccedilatildeo da realidade por meio do descanso sabaacutetico do Espiacuterito Entretanto talvez o
fator mais preponderante esteja no ldquomovimento reformadorrdquo gerado no interior da Igreja
romana586
A perspectiva de que as coisas natildeo eram como deveriam ser de que a Igreja dos
proacuteprios tempos havia se afastado dos propoacutesitos pregados pelos primeiros apoacutestolos e pelo
proacuteprio fundador principalmente na questatildeo da simplicidade de vida acabou dando origem
a partir do seacuteculo XI a movimentos de reforma em diversos setores da sociedade Ocidental
e em diferentes espaccedilos eclesiaacutesticos Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do
clero entendido como corrompido e refletir sobre o papel da Igreja na sociedade em relaccedilatildeo
principalmente com as estruturas dos poderes temporais A professora Andreacuteia Frazatildeo ao
analisar os projetos subjacentes aos conciacutelios lateranenses listou algumas destas
perspectivas reformistas como as implementadas por poderes seculares (monarquias
caroliacutengias ou imperadores germacircnicos por exemplo) as promovidas por movimentos
monaacutesticos (Cluny Gorze Metz etc) as de iniciativa ldquopopularrdquo (como o movimento
patarino) e a fomentada pelos bispos de Roma eventualmente denominada de Reforma
Gregoriana Este uacuteltimo movimento partindo da Cuacuteria Papal procurou impor Roma ldquocomo
centro poliacutetico religioso e administrativo da Igreja ocidental [] e como o principal poder
de caraacuteter universal no Ocidente ao qual todos os demais deveriam se subordinar inclusive
o imperialrdquo 587
A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em funccedilatildeo do papa Gregoacuterio VII (papa
de 1073-1085) que em diversos momentos apelou para o senso de iminecircncia do advento do
585 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 221 586 WHALEN op cit p 102 587 SILVA Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da A luta entre o Regnum et Imperium e a Construccedilatildeo da Ecclesia
Universalis uma anaacutelise comparativa dos Conciacutelios Lateranenses (1123-1215) In SILVA Francisco Carlos
Teixeira CABRAL Ricardo Pereira MUNHOZ Sidnei J (coords) Impeacuterios na Histoacuteria Rio de Janeiro
Elsevier 2009 p 95-105 p 97-98
174
Anticristo para dar legitimidade aos seus apelos reformadores Em uma de suas cartas ele
explica a oposiccedilatildeo como sinal do fim do mundo ldquoE natildeo fiquem admirados Pois quanto mais
perto o dia do Anticristo se manifestar mais ele luta para esmagar a feacute cristatilderdquo588 Este papa
na linha agostiniana evitou fazer prediccedilotildees sobre o fim do mundo mas reiteradamente
manifestou a convicccedilatildeo de que ele deveria estar perto em funccedilatildeo da manifestaccedilatildeo das
heresias e da corrupccedilatildeo da Igreja Neste tipo de visatildeo de histoacuteria os eventos finais deveriam
validar os esforccedilos para buscar pureza moral e ordem correta na instituiccedilatildeo eclesiaacutestica
Mudanccedilas no cenaacuterio poliacutetico recebiam um lugar no cenaacuterio do fim do mundo conflitos de
muacuteltiplas naturezas eram legitimados pela perspectiva do juiacutezo final de forma que a maioria
das crenccedilas apocaliacutepticas medievais passaram a ser instrumentos de retoacuterica religiosa
poliacutetica e social agrave serviccedilo de papas cleacuterigos imperadores reis e seus apologistas
Eacute certo que o senso de fim de mundo ou as representaccedilotildees escatoloacutegicas natildeo
conseguem explicar totalmente as praacuteticas dos movimentos reformadores De qualquer
forma esta relaccedilatildeo entre reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore
conectada com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos monaacutesticos
tradicionais para toda a sociedade (christianitas)589 Mas o abade acabou ultrapassando o
modelo gregoriano e mesmo o imperial em funccedilatildeo de sua ecircnfase numa nova forma de
ecclesia totalmente monasticisada com o foco no futuro O arqueacutetipo deixou de ser a era
apostoacutelica (no passado) mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro)
Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este fenocircmeno de
ldquoapocalipcismo reformadorrdquo um tipo de perspectiva apocaliacuteptica medieval que tinha como
preocupaccedilatildeo primaacuteria a reforma clerical590 Estes autores criam em uma era porvir de
desenvolvimento espiritual na qual os cleacuterigos apoacutes serem ldquopurificadosrdquo pelas tribulaccedilotildees
do final dos tempos se recuperariam de uma forma nunca vista antes Alguns focavam na
reforma de tipo tradicional com sua ecircnfase no retorno ao modelo apostoacutelico de pureza e
simplicidade outros como Joaquim insistiam que a era porvir era o zecircnite da histoacuteria
resultado de um longo processo evolutivo
588 Citado por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform 1100-1500 In MC GINN Bernard
(ed) The Encyclopedia of Apocalypticism Apocalypticism in Western History and Culture New York
Continuum 1998 3v V 2 p 74-109 p 76 589 Este modelo gregoriano buscou expandir-se para a sociedade inteira por meio da divulgaccedilatildeo do ideal da
ldquoIgreja dos tempos apostoacutelicosrdquo Cf MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 78 590 KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge
University Press 1990 p 9 MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 74-109
175
Kathryn resumiu entatildeo as marcas do apocalipticismo reformador um desejo urgente
por reforma preocupaccedilatildeo acentuada com o futuro da Igreja tentativa de entender o presente
agrave luz de esquemas escatoloacutegicos tradicionais preocupaccedilatildeo com o papel de uma ordem
religiosa particular no drama do final dos tempos ou no futuro da igreja um senso de crise
de lideranccedila eclesiaacutestica e temporal uma ansiedade por levar o clero aos princiacutepios
disciplinares dos fundadores do monasticismo ou agrave igreja dos primoacuterdios com ecircnfase
especial na pobreza e na simplicidade de vida tendecircncia conservadora em termos religiosos
e sociais591
Estes reformadores estavam continuamente avaliando as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas de
seus dias e projetavam para ela um periacuteodo dourado de vitalidade espiritual Este tipo de
expectativa eventualmente demandava accedilatildeo e sugeria que indiviacuteduos e instituiccedilotildees poderiam
participar (apropinquare) na viabilizaccedilatildeo do futuro ou pelo menos na definiccedilatildeo de quais
pessoas poderiam participar deste futuro idealizado Eacute uma espeacutecie de descriccedilatildeo de um
futuro ldquodouradordquo para confrontar o presente ldquopoluiacutedordquo
Em termos concretos tanto os movimentos reformadores quanto os apocalipcismos
medievais tiveram seus proacuteprios fatores de surgimento mas alguns destes podem ter
promovido o encontro das duas expectativas Primeiramente o desenvolvimento dos
movimentos hereacuteticos com frequecircncia o resultado de programas reformistas frustrados com
constantes criacuteticas ao clero e a corrupccedilatildeo da Igreja A persistecircncia destes grupos poderia
produzir a sensaccedilatildeo de que as heresias eram consequecircncia do pecado da Igreja e que para
acabar com elas era preciso se purificar Produzia tambeacutem a retoacuterica apocaliacuteptica por parte
das autoridades que constantemente recorriam agraves figuras negativas do final do tempo para
vinculaacute-las com as heresias Um segundo fator poderia estar nas cruzadas que acentuaram a
sensaccedilatildeo de que o cristianismo estava sob constante ameaccedila de povos pagatildeos Finalmente e
talvez o mais significativo os efeitos da controveacutersia das investiduras e o conflito entre
Igreja e poder temporal A persistecircncia dos conflitos com os imperadores germacircnicos pode
ter promovido o surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada de
conflitos histoacutericos desde os seus primoacuterdios A Igreja passa a ser vista como uma
comunidade sagrada que sofre perseguiccedilatildeo intermitente592 O discurso apocaliacuteptico se tornou
uma tentativa de dar sentido aos constantes embates contra os poderes temporais Eacute neste
591 KERBY-FULTON op cit p 9 592 RIEDL Matthias Joachim of Fiore as political thinker In WANNENMACHER Julia Eva Joachim of
Fiore and the influence of inspiration essays in memory of Marjorie Reeves (1905-2003) London Routledge
2013 p 90-116 p 94
176
sentido que os imperadores frequentemente satildeo estigmatizados com retoacuterica apocaliacuteptica
dando ao papado por seu lado um papel acentuado no drama do final dos tempos593
Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de forma milenarista
McGinn cita como exemplo a perspectiva do franciscano Roger Bacon (1214-1294) que
acreditava numa reforma realizada por meio do surgimento de um papa angelicus e de um
imperador ungido que juntos purificariam a Igreja antes do surgimento do Anticristo594 Em
Joaquim entretanto o fenocircmeno foi conjugado com o milenarismo nos moldes do antigo
quiliasmo cristatildeo e manifestou as noccedilotildees de que uma unidade cristatilde idealizada seria
alcanccedilada atraveacutes da transformaccedilatildeo da ecclesia a graccedila de Deus deixou a Igreja grega e
transitou para a Igreja latina595 o Anticristo do final dos tempos iria se manifestar a qualquer
momento para perseguir a Igreja por meio dos sarracenos e dos hereges Quando isso
acontecesse ldquojudeus gregos pagatildeos e talvez mesmo os sarracenos seriam levados agrave
salvaccedilatildeo atraveacutes de homens espirituais da Igreja latina reunidos sob a direccedilatildeo de uma igreja
romana transformadardquo596
77 Resumo
Este capiacutetulo analisou a seacutetima seccedilatildeo do Expositio in Apocalypsim e relacionou-a
com as perspectivas milenaristas de Joaquim presentes em outros lugares de sua obra Nela
Joaquim rompe com a tradiccedilatildeo agostiniana que identificou o milecircnio joanino com a histoacuteria
da Igreja e propotildee em seu lugar um periacuteodo de felicidade na terra para toda a humanidade
sob a direccedilatildeo do Espiacuterito Santo O abade esperava algum tipo de continuidade entre o
presente e o futuro mas com a transformaccedilatildeo de suas instituiccedilotildees sociais especialmente da
Igreja Este periacuteodo de descanso e contemplaccedilatildeo natildeo teve como ponto de partida entretanto
diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim as as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a
tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que esperava uma fase histoacuterica de felicidade na terra
593 KERBY-FULTON op cit p 8 594 Citato por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 81 595 Haacute neste caso aquilo que Whalen chamou de ldquopropoacutesito geograacuteficordquo divino que levou a graccedila de Deus a se
mover do Oriente para o Ocidente e no saacutebado do Espiacuterito retornar para o Oriente Cf WHALEN op cit p
121 596 WHALEN op cit p 123 Joaquim abraccedila o ideal do ldquoservo sofredorrdquo de Isaiacuteas 53 e a espera de uma
grande conversatildeo dos povos no final dos tempos que demanda mais pregaccedilatildeo e menos conflito Nos seus
termos ldquopraedicando magis quam proeliandordquo (Expositio in Apocalypsim 164v) Cf TAGLIAPIETRA
Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 54
177
anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica deste tipo de milenarismo pode estar relacionada
com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica
CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO
DOS MONGES
A tiacutetulo de recapitulaccedilatildeo cabe reafirmar nossos principais argumentos apresentados
e sustentados no decorrer deste trabalho O Apocalipse foi produzido pelo profeta Joatildeo de
Patmos na forma de um instrumento retoacuterico de caraacuteter milenarista cuja funccedilatildeo atendia a
determinadas percepccedilotildees de crise social que seu autor manifestava e que entendendo-se
como convocado divinamente para atuar entre as igrejas da proviacutencia da Aacutesia desejava levaacute-
las ao rompimento sectaacuterio com a sociedade romana Joatildeo se recusava a viver ldquoneste mundordquo
e esperava pela inauguraccedilatildeo de um ldquooutro mundordquo no tempo do milecircnio A visatildeo de histoacuteria
que aparece subjacente agrave sua narrativa religiosa se constitui em uma criacutetica agraves representaccedilotildees
sociais romanas encontradas na proviacutencia asiaacutetica
O Apocalipse foi lido como texto sagrado por Joaquim de Fiore e como base para a
construccedilatildeo de sua filosofia da histoacuteria Por meio do seu comentaacuterio da obra joanina o abade
construiu a expectativa de superaccedilatildeo do tempo presente em uma eacutepoca de ouro dirigida pela
terceira pessoa da Trindade o Espiacuterito Santo As representaccedilotildees milenaristas do calabrecircs
entretanto natildeo partiram diretamente do milecircnio joanino jaacute que dependem mais da tradiccedilatildeo
do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo e de sua reflexatildeo histoacuterico-trinitaacuteria
Convergecircncias e divergecircncias
O Apocalipse foi produzido no final do seacuteculo I na Ilha de Patmos O Expositio por
sua vez surgiu nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XII na Itaacutelia597 O judeu Joatildeo rejeitava a
Peniacutensula Itaacutelica pois nela ficava a capital do Impeacuterio que destruiu sua estimada Jerusaleacutem
Em sua obra o profeta exilado se alonga na imaginaccedilatildeo de como Roma seria devorada pelo
fogo 1100 anos depois um italiano da Calaacutebria se ldquoencantardquo pelo texto de Joatildeo e resolve
gastar os uacuteltimos anos de sua vida para divulgaacute-lo Ao produzir seu escrito Joaquim
transcreveu integralmente o material joanino (na sua traduccedilatildeo latina) fazendo do Expositio
efetivamente uma coacutepia comentada do Apocalipse Haacute aqui um viacutenculo formal entre os dois
textos Mas isso natildeo esclarece totalmente os relacionamentos as recepccedilotildees as adaptaccedilotildees
597 Conferir esta relaccedilatildeo geograacutefica no anexo 4
179
as mutilaccedilotildees as invenccedilotildees os horizontes de leitura criados pela natureza diacrocircnica de tal
viacutenculo Por isso ainda eacute preciso promover anaacutelises comparativas que pressuponham os dois
objetos (apocalipse e comentaacuterio) como fenocircmenos distintos em funccedilatildeo de suas proacuteprias
conjunturas condiccedilotildees de emergecircncia e pontos de partida
Segundo Juumlrgen Kocka comparaccedilatildeo eacute a discussatildeo de ldquodois ou mais fenocircmenos
histoacutericos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenccedilas de modo a se
alcanccedilar determinados objetivos intelectuaisrdquo598 Eacute o que faremos nesta conclusatildeo com
ecircnfase nas diferenccedilas e especificidades599 para assim descrever explicar e interpretar
elementos especiacuteficos de cada um dos objetos de comparaccedilatildeo600 Tomando uma expressatildeo
irocircnica de Kocka e Haupt mesmo que natildeo pudeacutessemos comparar ldquomaccedilatildes e laranjasrdquo (como
um apocalipse e um comentaacuterio biacuteblico) ainda assim poderiacuteamos apontar as peculiaridades
de cada objeto e seus usos particulares601
Para efeitos de comparaccedilatildeo pressupomos as discussotildees dos capiacutetulos anteriores
quando analisamos separadamente os aspectos formais de Apocalipse 201-10 e seu
respectivo comentaacuterio exegeacutetico na seacutetima parte do Expositio contextualizamos cada
unidade de comparaccedilatildeo apontando suas respectivas condiccedilotildees de produccedilatildeo analisamos o
conteuacutedo recortado de cada texto explicitando as representaccedilotildees milenaristas os pontos de
partida e os fatores de emergecircncia No caso especiacutefico de Joaquim ainda discutimos suas
formas de leitura e posturas hermenecircuticas
O que comparamos Eacute o tipo de milenarismo que se objetiva em cada texto Para
tanto analisamos os pontos de contato as convergecircncias e divergecircncias e as compreensotildees
de tais aspectos agrave luz de seus respectivos contextos Usamos como fio norteador para a
anaacutelise comparativa a definiccedilatildeo de milenarismo anteriormente pressuposta e agora
desdobrada602
598 KOCKA Juumlrgen Comparison and beyond History and theory Middletown n 42 p 39-44 2003 p 39 599 Conferir uma siacutentese de modelos de observaccedilatildeo comparada em BARROS Joseacute DacuteAssunccedilatildeo Histoacuteria
comparada um novo modo de ver e fazer a histoacuteria Revista de Histoacuteria Comparada Rio de Janeiro v 1 n
1 p 1-30 2007 p 18-21 600 KOCKA Juumlrgen HAUPT Heinz-Gerhard Comparison and Beyond traditions scope and perspectives of
Comparative History In HAUPT Heins-Gerhard KOCKA Juumlrgen (orgs) Comparative and Transnational
History Central European approaches and new perspectives Oxford Berghahn Books 2009 p 1-30 p 2 601 HAUPT Heinz-Gerhard KOCKA Juumlrgen Comparative History Methods Aims Problems In COHEN
Deborah OrsquoCONNOR Maura Comparison and History Europe in cross-national perspective London
Routledge 2004 p 23-39 p 27 602 Para tanto contamos com as contribuiccedilotildees principalmente da socioacuteloga israelense Yonina Talmon e do
historiador americano Richard Landes Cf TALMON Yonina Millenarism In SILLS David L (ed)
International Encyclopedia of the Social Sciences London The Macmillan Company amp The Free Press 1968
19 v V X p 349-362 LANDES Richard A Millennialism in the Western World In LANDES Richard A
(ed) Encyclopedia of millennialism and millennial movements New York Routledge 2000 p 453-466
180
Por uma definiccedilatildeo de milenarismo
No iniacutecio desta tese anunciamos a definiccedilatildeo de milenarismo do historiador inglecircs
Norman Cohn que entendeu-o como um tipo particular de utopia salvacionista coletiva jaacute
que todos os fieacuteis experimentariam a felicidade terrena jaacute que essa felicidade seria
alcanccedilada na terra e natildeo em uma realidade transcendente total pois aguarda uma completa
inversatildeo dos males da terra iminente pois a transformaccedilatildeo completa estaria perto de
comeccedilar e miraculosa jaacute que a redenccedilatildeo contaria com a ajuda de poderes sobrenaturais603
Alguns autores entretanto como Jean Delumeau optam por uma noccedilatildeo reducionista
do fenocircmeno ldquono cristianismo deve-se chamar de milenarismo a crenccedila num reino terrestre
de Cristo e de seus eleitos ndash reino este que deve durar mil anos entendidos seja literalmente
seja simbolicamenterdquo604 A definiccedilatildeo de Delumeau parece entender por milenarismo apenas
os fenocircmenos que replicam o milecircnio de Apocalipse 20 Isso o leva agrave curiosa sugestatildeo de
que Joaquim de Fiore a quem ele dedicou quase cinquenta paacuteginas do seu livro sobre
ldquomilenarismordquo natildeo poderia ser chamado de milenarista605 Diante de tal posicionamento eacute
preciso lembrar do argumento de Paula Fredriksen ldquoa ideia de um periacuteodo de mil anos
implicada por este termo eacute menos essencial para o seu sentido que o seu foco sobre a terra
a histoacuteria humana como a uacuteltima arena da redenccedilatildeordquo606
No campo oposto ao de Delumeau Kathryn Kerby-Fulton opta por uma definiccedilatildeo
abrangente demais ldquoRefere-se agrave crenccedila num futuro de becircnccedilatildeos na terra antes do fim da
LANDES Richard A Heaven on Earth the varieties of the millennial experience Oxford Oxford Universit
Press 2011 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time In NEWPORT
Kenneth G C GRIBBEN Crawford (eds) Expecting the End millennialism in social and historical context
Waco Baylor University Press 2006 p 1-23 603 Cf COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade
Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 Pesquisadores deste tema continuam partindo das definiccedilotildees
de Cohn mesmo que sua obra sobre os milenaristas revolucionaacuterios da Idade Meacutedia jaacute tenha quase 50 anos
Por exemplo cf CLARKE Peter The origins scope and spread of the millenarian idea In LIEB Michael
MASON Emma Roberts Johathan (edss) The Oxford Handbook of the Reception History of the Bible
Oxford Oxford University Press 2011 p 235-242 604 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras
1997 p 17-18 Tambeacutem minimiza o milenarismo de Joaquim SARANYANA Josep Ignasi Sobre El
milenarismo de Joaquiacuten de Fiore Uma lectura retrospectiva Teologia y Vida Santiago v XLIV p 221-232
2003 605 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias
Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria
mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 606 FREDRIKSEN Paula Tyconius and Augustine on the Apocalypse In EMMERSON Richard K
MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 20-
37 p 20
181
histoacuteriardquo607 Ou entatildeo John Gager ldquoum movimento que espera uma nova ordem de realidade
em um futuro proacuteximordquo608 Diante de tal formulaccedilatildeo tanto o que espera a redenccedilatildeo de forma
iminente quanto aquele que a projetou para milhares de anos agrave frente satildeo tomados como
milenaristas Por isso o proacuteprio Gager refina sua definiccedilatildeo argumentando que a espera
indefinida pelo reino milenar natildeo seria propriamente milenarista Afinal os sacerdotes reais
persas que lanccedilaram o ldquotornar maravilhosordquo de Zaratrusta para sete mil anos agrave frente natildeo
poderiam ser chamados propriamente de milenaristas609 O caraacuteter iminente da crenccedila
milenarista manifesta uma rejeiccedilatildeo da presente ordem social Quando o fim da ordem
presente eacute lanccedilado para um futuro longiacutenquo e indeterminado o resultado eacute a legitimaccedilatildeo
do mundo cotidiano Nos termos de John Collins ldquojulgamento adiado providencia confianccedila
no presenterdquo610
Retomando a definiccedilatildeo de milenarismo o termo tem origem no vocaacutebulo latino
ldquomillerdquo usado para traduzir a palavra grega ldquordquo de Apocalipse 201-10 Ele ganhou um
sentido lato entretanto no campo dos estudos sociais passando a indicar uma determinada
expectativa de movimentos ou grupos611 Cohn como jaacute indicamos anteriormente descreveu
o fenocircmeno como uma ldquoutopiardquo Mas ele eacute propriamente uma reflexatildeo sobre o tempo uma
filosofia da histoacuteria um sistema de representaccedilotildees graacutevido de praacuteticas que se manifestam
em grupos comunidades cultos e movimentos Podemos falar destes entatildeo como cultos
seitas ou movimentos milenaristas Figura significativa entre estas representaccedilotildees e praacuteticas
eacute o profeta milenarista que se torna o seu vulgarizador apologeta e pregador Em algumas
circunstacircncias em torno dele surge um grupo Em outras como no caso de Joatildeo e Joaquim
haacute uma relaccedilatildeo diacrocircnica entre o fundador e os grupos que se dizem seus porta-vozes como
o movimento inspirado nas profecias joaninas de Montano Priscila e Maximila a partir da
deacutecada de 160 nas proviacutencias romanas da Aacutesia menor612 ou a inspiraccedilatildeo joaquimita do grupo
607 Cf KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge
University Press 1990 p 3 608 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 p 57 609 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no
Apocalipse Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 135 610 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do
Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 11 611 TALMON op cit p 349 Henri Desroche cunhou a expressatildeo ldquohomens da esperardquo para fazer referecircncia a
pessoas que aguardam algum tipo de mudanccedila histoacuterica a posteriori Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de
messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 16 612 PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation New York Penguin
Books 2012 p 103-107
182
em torno de Amaury de Begravene na Paris do iniacutecio do seacuteculo XIII condenado formalmente no
IV Conciacutelio de Latratildeo (1215)613
Segundo Norman Cohn um dos mais antigos destes profetas milenaristas surgiu no
Iratilde antigo e ficou conhecido como Zoroastro614 A partir do zoroastrismo em sua
manifestaccedilatildeo imperial persa o fenocircmeno teria transitado para o Judaiacutesmo quando
expressotildees de uma redenccedilatildeo futura deram origem a diversos movimentos ou seitas Uma
destas nascida das pregaccedilotildees do profeta Jesus de Nazareacute e subjacente ao Apocalipse tinha
como significativos traccedilos iniciais uma resiliente combinaccedilatildeo de milenarismo e
messianismo615
Cada profeta milenarista ou movimento milenarista tem particularidades uacutenicas
Mesmo assim eles apresentam alguns traccedilos em comum que eacute o que permite categorizaacute-
los em diferentes lugares e eacutepocas sob o mesmo termo616
Coletiva o povo feliz
A salvaccedilatildeo no milenarismo natildeo eacute de natureza individual mas expectativa de um
grupo ou para um grupo O milenarista natildeo deseja alcanccedilar a salvaccedilatildeo sozinho pois espera
compartilhaacute-la com uma comunidade de pessoas ldquoeleitasrdquo O fenocircmeno assim tem uma
orientaccedilatildeo coletiva O reino milenar do Apocalipse espera ser povoado por uma multidatildeo de
maacutertires ressuscitados O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim veraacute uma humanidade inteira em
paz e contemplaccedilatildeo quando um grande grupo de pessoas se converterem agrave feacute da Igreja latina
especialmente os judeus
Apesar dos leitores posteriores de Joatildeo terem ampliado o puacuteblico do milecircnio em
Apocalipse 20 ele eacute exclusivo daqueles que foram degolados pelas bestas do Dragatildeo o que
pode representar toda a crise do profeta com as mortes violentas ou as notiacutecias de mortes
violentas na guerra judaico-romana De fora ficam natildeo apenas os seus ldquoirmatildeosrdquo que natildeo
alcanccedilarem tal morte (participariam da ldquosegunda ressurreiccedilatildeordquo) mas tambeacutem todos aqueles
que natildeo compartilham de sua perspectiva de Jesus como o Messias de Deus Estes uacuteltimos
613 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 61 614 Para Cohn Zoroastro ldquoeacute o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo especiacutefico de profeta ndash os
chamados lsquomilenaristasrsquordquo Cf COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 133 615 TALMON op cit p 350 616 Como argumentou Paul Veyne os fenocircmenos histoacutericos natildeo se organizam atraveacutes de periacuteodos e de povos
mas atraveacutes de noccedilotildees Mais do que inseridos no seu tempo eles precisam ser postos sob um conceito Cf
VEYNE Paul O inventaacuterio das diferenccedilas Lisboa Gradiva 1989 p 33
183
por sinal entendidos por Joatildeo como seguidores das bestas e do Dragatildeo seriam destruiacutedos
na parousia Natildeo haacute sobreviventes para o reino dos maacutertires O milecircnio para o Apocalipse
soacute seraacute alcanccedilado pela porta do martiacuterio
Neste tipo de milenarismo algumas pessoas alcanccedilam a redenccedilatildeo outras satildeo
destruiacutedas no processo Haacute um dualismo baacutesico uma divisatildeo fundamental da humanidade
entre fieis e infieacuteis entre seguidores e natildeo-seguidores entre crentes e increacutedulos entre justos
e perversos A histoacuteria humana eacute vista como uma luta contiacutenua entre os filhos de Deus contra
os aliados de Satanaacutes De qualquer forma nem no Apocalipse ou no Expositio haacute criteacuterios
de raccedila grupo eacutetnico ou naccedilatildeo para compor a terra da felicidade Em ambos os casos a
participaccedilatildeo se daria em funccedilatildeo de opccedilotildees religiosas
Haacute uma forte ecircnfase na exclusatildeo em Joatildeo e um relativo inclusivismo em Joaquim
com sua expectativa de conversatildeo geral apoacutes o levantamento do Anticristo Apesar de sua
ecircnfase nos monges o descanso natildeo eacute soacute para eles A sociedade da Terceira Era natildeo seria
formada apenas por membros do corpo monaacutestico mas caberiam diversos outros grupos
sociais como a Dispositio o demonstra617 Em seus esquemas o abade fala de uma era de
casados outra de cleacuterigos outra de monges expressotildees que precisam ser entendidas na oacutetica
do protagonismo Na primeira Era o protagonismo foi dos casados na segunda dos cleacuterigos
na terceira dos monges A Dispositivo representaccedilatildeo da sociedade ideal de Joaquim
apresenta sete oratoacuterios cinco satildeo de monges um para o clero e um para os casados Ele vecirc
uma loacutegica de procedecircncia entre as ordens dos casados procedem os cleacuterigos dos cleacuterigos
os monges Mas um natildeo significa o fim do outro Neste tipo de perspectiva a Trindade se
revela na histoacuteria imprimindo nela as caracteriacutesticas peculiares de cada pessoa divina e um
caraacuteter dinacircmico e progressivo cuja meta eacute uma sociedade protagonizada por monges
contemplativos
Eacute possiacutevel fazer ainda uma reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo entre a comunidade futura ideal
e a comunidade real do presente do milenarista Apocalipse e Expositio satildeo produccedilotildees de
liacutederes carismaacuteticos Joatildeo era um profeta itinerante das igrejas da Aacutesia Joaquim era um
abade que conseguiu atrair um grupo de disciacutepulos para as montanhas de Fiore e a partir
deles fundou uma casa monaacutestica e uma ordem religiosa Neste sentido suas obras visavam
a uma comunidade seus textos buscavam operar no interior de um grupo Representaccedilotildees
617 Cf Anexo 5
184
individuais natildeo satildeo elementos estanques mas se relacionam com representaccedilotildees sociais618
Joatildeo e Joaquim representam determinados grupos Suas falas satildeo representativas de
expectativas mesmo que parcialmente compartilhadas entre profeta e comunidade No caso
de Joatildeo sua audiecircncia natildeo lhe eacute totalmente amistosa Ele enfrenta adversaacuterios no interior
das igrejas e deseja com seu Apocalipse simultaneamente convocar os aliados e atacar os
inimigos Joaquim tambeacutem tem alguns adversaacuterios mesmo que seja em escala diferente Ele
enfrenta resistecircncia da Ordem Cisterciense em funccedilatildeo de ter abandonado a abadia de
Corazzo Mas os grandes adversaacuterios de ambos os autores estatildeo ldquodo lado de forardquo de seus
ciacuterculos a sociedade romana para Joatildeo619 os muccedilulmanos para Joaquim Satildeo estes
adversaacuterios os grandes excluiacutedos do reino dos maacutertires ou do saacutebado do Espiacuterito
Terrena o lugar perfeito
Joatildeo de Patmos pode ter testemunhado a morte de muitos de seus irmatildeos e ouvido
falar do martiacuterio de vaacuterios outros Seu texto manifesta a expectativa de acentuada
perseguiccedilatildeo da sociedade romana para um futuro proacuteximo Estes aspectos parecem marcar
sua descriccedilatildeo do passado e do futuro das comunidades de Jesus Tal conjunto de
representaccedilotildees tem o potencial de produzir ruptura em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano e gerar
ansiedade pelo reino milenar Apesar de sua breve descriccedilatildeo no episoacutedio de Apocalipse 20
Joatildeo tambeacutem registrou a mesma expectativa no iniacutecio da segunda seccedilatildeo de sua obra
(Apocalipse 5) Nesta passagem o autor relatou o hino que ele teria ouvido da parte de Vinte
e quatro Presbiacuteteros Celestiais ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste
morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e
naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo
(Apocalipse 59-10) Este hino ao ldquoCordeirordquo eacute uma metaacutefora para descrever Jesus e sua
morte seis deacutecadas atraacutes Segundo Joatildeo a morte daquele que ele tem como Messias foi uma
estrateacutegia divina para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo
exclusivo fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus620 Mesmo que as formas verbais estejam no
618 OLIVEIRA Maacutercio de O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves
Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre v 13 n 22 p 67-94 2012 p 71 619 Eacute interessante destacar que a Palestina desde a deacutecada 60 antes da Era Comum era parte do Impeacuterio
Romano Os judeus eram formalmente membros deste Impeacuterio Isso natildeo foi o suficiente para que Joatildeo se
sentisse parte do ldquomundo romanordquo Pelo contraacuterio numa perspectiva sectaacuteria ele rejeita a sociedade que lhe
cerca 620 CHARLES J Daryl A Apocalyptic Tribute to the Lamb (Rev 51-14) Journal of the Evangelical
Theological Society Chicago v 24 n 4 p 461-473 1991 p 471
185
passado como se fossem eventos jaacute realizados por Jesus621 o final do hino manifesta a
mesma expectativa de Apocalipse 20 um reino sobre a terra622
Ao contraacuterio de Joatildeo entretanto a relaccedilatildeo de Joaquim com a sociedade circundante
eacute bem favoraacutevel Joaquim natildeo enfrentou perseguiccedilatildeo As ameaccedilas do Capiacutetulo Geral da
Ordem Cisterciense natildeo podem ser descritas como tal jaacute que o abade contava com o apoio
papal e dos poderes constituiacutedos no reino da Siciacutelia Mesmo assim como Joatildeo as
expectativas joaquitas natildeo satildeo para aleacutem Ele tem elementos concretos no interior de suas
descriccedilotildees do saacutebado do Espiacuterito Sua ecircnfase neste caso se desloca de uma ressurreiccedilatildeo de
maacutertires para o descanso contemplativo monaacutestico que ele aprendeu a admirar apoacutes o retorno
de sua peregrinaccedilatildeo agrave Palestina A situaccedilatildeo de instabilidade poliacutetica no reino normando e os
eventuais embates entre o Impeacuterio e a Igreja romana parecem ter sensibilizado o abade de
Fiore o suficiente para que ele esperasse a paz como a principal marca do tempo do Espiacuterito
Sem conflitos uma humanidade pacificada poderia gastar os dias do descanso sabaacutetico em
contemplaccedilatildeo e comunhatildeo com a divindade Apesar de transformadas pela atuaccedilatildeo
sobrenatural do Espiacuterito na sociedade dos sonhos de Joaquim ainda haveria liturgia trabalho
e estudo marcas da espiritualidade cisterciense no milenarismo do abade623
Joatildeo espera por um periacuteodo milenar em que maacutertires ressuscitados governam julgam
e cultuam e Joaquim ansiou por um descanso sabaacutetico em que viri spirituales cultuassem
trabalhassem e estudassem Com isso ambos manifestam a principal caracteriacutestica do
milenarismo que eacute sua orientaccedilatildeo terrena quando a noccedilatildeo de um tempo ideal (o tempo do
milecircnio) eacute acompanhada da noccedilatildeo de um espaccedilo ideal (a terra do milecircnio)624 Daiacute a ecircnfase
na terra ou em algum lugar especiacutefico da terra em detrimento de uma dimensatildeo
transcendental
Segundo Cohn especialmente entre as religiotildees zoroastrianas judaicas e cristatildes
surgiu a noccedilatildeo de que a histoacuteria caminha na direccedilatildeo de seu fim um eschaton o fim dos
tempos ou o fim do mundo625 No contexto cristatildeo este ldquofim do mundordquo envolveria um juiacutezo
621 PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 124 622 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991
p 62 623 O confronto de Joaquim com os cistercienses de Corazzo e com as autoridades da ordem parece derivado
de sua percepccedilatildeo de que eles estavam sendo infieacuteis ao ldquoespiacuteritordquo de Bernardo de Claraval que ele chamava de
ldquoveneraacutevel pai Bernardordquo Joaquim achava que os cistercienses natildeo deram continuidade agrave reforma que
Bernardo comeccedilou mas ainda assim eles eram uma etapa importante na histoacuteria que o monasticismo deveria
percorrer ateacute atingir sua perfeiccedilatildeo Cf DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De
Joaquiacuten a Schelling Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 21 624 TALMON op cit p 352 625 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 286-294
186
final quando a divindade julgaria as pessoas vivas e mortas o universo material seria
consumido por ldquofogo purificadorrdquo deixando para os fieacuteis uma eternidade celestial
(Apocalipse 21-22) Para o autor de 2Pedro por exemplo o eschaton eacute o fim da vida na terra
como ele e a humanidade conheciam ldquoOra os ceacuteus que agora existem e a terra pela mesma
palavra tecircm sido entesourados para fogo estando reservados para o dia do Juiacutezo e destruiccedilatildeo
dos homens iacutempiosrdquo (2Pedro 37) Em termos socioloacutegicos esta expressatildeo escatoloacutegica
poderia ser definida como teodiceia uma tentativa de encontrar sentido para o sofrimento o
mal e principalmente a morte626
Profetas milenaristas frequentemente se voltam para a questatildeo do sofrimento e suas
causas Mas as expectativas natildeo-histoacutericas transcendentais parecem natildeo os atender Eles
esperam por uma transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de existecircncia na terra e natildeo em um mundo
natildeo-material Por isso as crenccedilas milenaristas antecipam parte das expectativas posteriores
ao fim do mundo para dentro da histoacuteria quando os fieacuteis seriam recompensados em seus
corpos em suas realidades materiais dentro do saeculum627 A paz a justiccedila e as condiccedilotildees
de existecircncia esperadas para um mundo porvir satildeo antecipadas para a terra
Derivadas dessa ecircnfase terrena estatildeo algumas diferenciaccedilotildees futuras dos fieacuteis As
descriccedilotildees feitas por Joaquim da sociedade do Espiacuterito indicam alguma relaccedilatildeo entre espaccedilo
e status O status estaraacute ligado agrave posiccedilatildeo diante do centro da sociedade espiritual ocupada
pelo pater spiritualis Este tipo de diferenciaccedilatildeo foi feita apenas de forma relativa por Joatildeo
quando ele descreveu duas ressurreiccedilotildees a primeira para os martirizados e membros do reino
milenar a segunda para os demais fieacuteis No Apocalipse os maacutertires formam uma espeacutecie de
fiel ideal acentuando o valor religioso do martiacuterio
Curiosamente o ideal asceacutetico manifesta-se nas duas visotildees Joatildeo espera que os
144000 guerreiros escatoloacutegicos do Cordeiro sejam virgens e castos (Apocalipse 141-5) o
abade de Fiore lanccedilou aqueles que ainda continuaratildeo casados no Oratoacuterio mais baixo da
Dispositio separados dos demais por um grande espaccedilo Para os dois religiosos o sexo
oposto eacute perigoso e isso se reflete nas suas descriccedilotildees idealizadas do futuro
626 BERGER Peter L O dossel sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulus
1985 p 65 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 6 627 Landes toma esta expressatildeo de Agostinho para falar da passagem contiacutenua do tempo da mateacuteria e da
histoacuteria Cf LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 7
187
Total inversatildeo escatoloacutegica
O conceito milenarista de redenccedilatildeo eacute total no sentido de que a nova era natildeo traraacute
meramente uma melhora nas condiccedilotildees de vida mas um movimento na direccedilatildeo de condiccedilotildees
perfeitas de existecircncia dentro da histoacuteria As tais ldquocondiccedilotildees de perfeiccedilatildeordquo entretanto
variam em funccedilatildeo das conjunturas histoacutericas dos expoentes do milenarismo Antigas
expectativas judaicas esperavam por um tempo em que os instrumentos de guerra seriam
transformados em arados e foices para trabalhar o campo (Isaiacuteas 21-5) lobos e leotildees
andariam juntos com ovelhas e cabritos e crianccedilas brincariam com serpentes sem se
machucar (Isaiacuteas 61-9) Estas expectativas parecem fazer sentido em comunidades rurais
em crise com conjunturas de opressatildeo aristocraacutetica628 Jaacute os milenaristas de Tabor na
Boecircmia do seacuteculo XV esperavam um milecircnio literal de banquete perpeacutetuo com a supressatildeo
de toda autoridade quando as mulheres poderiam conceber seus filhos sem qualquer
participaccedilatildeo masculina e homens tambeacutem dariam agrave luz629
A inversatildeo escatoloacutegica idealizada por Joatildeo assim esperava o fim de todas as
guerras e violecircncias contra os seguidores de Jesus que viveriam na terra como reis juiacutezes e
sacerdotes expectativas que apontam para o desejo de empoderamento de pessoas agrave margem
do poder A descriccedilatildeo do milecircnio do Apocalipse pretende ser uma inversatildeo de soberanias
Os poderes do presente seriam destronados os sem poderes seriam entronizados e exaltados
Joaquim igualmente aguarda um periacuteodo de felicidade na terra mesmo que
pequeno em que os fieacuteis experimentaratildeo acima de tudo paz com o fim de todos os
conflitos No calabrecircs entretanto natildeo haacute espaccedilo para monarquias ou reis Mesmo que sua
hostilidade contra o Impeacuterio Germacircnico tenha desaparecido no final do Expositio em relaccedilatildeo
agraves suas primeiras exposiccedilotildees do Apocalipse630 ainda assim Joaquim possui a visatildeo de que
se a histoacuteria eclesiaacutestica fora marcada pelo conflito contra os poderes seculares estes
deveriam desaparecer na Terceira Era Somente a Igreja sobreviveria entatildeo transformada
em uma grande instituiccedilatildeo monacal
Gager argumenta que esta caracteriacutestica do milenarismo teria relaccedilatildeo com algum tipo
de privaccedilatildeo poliacutetica econocircmica social religiosa ou uma mistura de cada uma delas Os
milenaristas segundo este historiador aposentado da Princeton University ldquose sentem
628 LANDES Richard A Millennialism in the Western World op cit p 455 629 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 106 630 POTESTA Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p
318-319
188
desfavorecidos de alguma formardquo631 Ele estaacute ciente entretanto que existe muito mais gente
que sofre privaccedilatildeo do que membros de movimentos milenarista Por isso ele enfatiza que a
privaccedilatildeo natildeo precisa ser efetiva Ela pode ser relativa qual seja ldquouma relaccedilatildeo desigual entre
expectativa e os meios de satisfaccedilatildeordquo632 Eacute um tipo de condiccedilatildeo que surge quando novas
esperanccedilas se manifestam mas permanecem natildeo cumpridas
Esta sugestatildeo de Gager poderia ser usada para distinguir o milenarismo de Joatildeo e
Joaquim O profeta de Patmos era membro de um grupo marginal de uma das proviacutencias
orientais do Impeacuterio romano Vaacuterios de seus conterracircneos foram mortos em uma guerra
contra Roma em que causas poliacuteticas econocircmicas sociais e religiosas se encontravam
misturadas A proviacutencia da Aacutesia era uma das mais ricas do Impeacuterio mas figuras como Joatildeo
se sentiam isolados desta riqueza633
Do outro lado o calabrecircs era um abade bem situado e respeitado Norman Cohn
trabalhou em sua obra uma seacuterie de movimentos milenaristas medievais de tipo contestador
vinculados a grupos que viviam agrave margem quer da sociedade quer do poder634 Joaquim
natildeo era um milenarista deste tipo Ele natildeo estava na margem Ele estava perto do poder
Encontrou-se diversas vezes com papas monarcas rainhas e imperadores Era um dos mais
proeminentes abades do reino da Siciacutelia e talvez de toda a Itaacutelia635 Certamente entatildeo o
termo marginalizado natildeo poderia ser usado para descrever Joaquim de Fiore Ele natildeo se via
como marginalizado e natildeo era efetivamente um marginalizado636
A Era do Espiacuterito do abade natildeo parece ter relaccedilatildeo com algum tipo de privaccedilatildeo efetiva
No calabrecircs haacute mais propriamente a questatildeo das expectativas natildeo cumpridas Sua caminhada
religiosa parece evidenciar este aspecto Apoacutes o retorno da Palestina ele abraccedilou o
eremitismo depois procurou se envolver com um modelo monaacutestico cenobiacutetico em pelo
menos trecircs casas Sambucina Corazzo e S Trindade A forma como rejeitou inicialmente o
631 GAGER John G Kingdom and Community op cit p 25 632 Idem p 27 633 Conferir uma anaacutelise da criacutetica joanina agrave riqueza de Roma em KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio
imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 634 COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia
Lisboa Editorial Presenccedila 1970 635 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 636 Mc Ginn alerta que o perfil social da maioria daqueles que se valiam da retoacuterica apocaliacuteptica na Idade Meacutedia
natildeo era de um profeta isolado no alto de uma montanha mas pessoas bem-educadas cleacuterigos e liacutederes na
sociedade membros da corte e escribas Frequentemente ldquoeram poderosas figuras poliacuteticasrdquo Neste contexto
o milenarismo era uma tentativa de interpretar o seu proacuteprio tempo e assim dar suporte para patronos legitimar
a lideranccedila e perseguir determinados propoacutesitos poliacuteticos sociais e religiosos Cf MC GINN Bernard Visions
of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages New York Columbia University Press 1979 p 32
189
cargo de abade de Corazzo e deixou S Trindade indica uma ecircnfase religiosa no isolamento
e na contemplaccedilatildeo Apoacutes uma campanha para ingresso na Ordem Cisterciense abandonou
sua casa para fundar um monasteacuterio no isolamento de Fiore O ideal milenarista de Joaquim
parece revelar sua frustraccedilatildeo com a Igreja tanto latina quanto grega e com as formas de
monasticismo que ele tinha agrave disposiccedilatildeo Para o abade suas altas demandas religiosas natildeo
realizadas nas instituiccedilotildees que ele conhecia seriam atendidas finalmente quando o Espiacuterito
instaurasse a terceira Era da histoacuteria
De qualquer forma ambos os milenarismos refletem algum tipo de rejeiccedilatildeo da
presente ordem do mundo O milecircnio de Joatildeo reflete o conflito com a sociedade romana e
mesmo com outras comunidades de Jesus O de Joaquim com outras propostas de
espiritualidade cristatilde
Iminente bem perto de comeccedilar
Para Joatildeo o governo milenar de Cristo estava para acontecer a qualquer momento
Na sua perspectiva temporal as bestas estavam para iniciar o ataque final contra os fieacuteis
promovendo a morte de vaacuterios deles (Apocalipse 13) mas ao mesmo tempo viabilizando a
parousia de Jesus e a implementaccedilatildeo do milecircnio O autor do Expositio tambeacutem se entende
no limiar de uma nova era Por meio de caacutelculos complexos relacionados com sua
especulaccedilatildeo exegeacutetica o abade entendia que faltavam poucos anos para que os ldquosantosrdquo
experimentassem o refrigeacuterio tatildeo aguardado
Esta semelhante perspectiva quanto agrave urgecircncia dos tempos de Joatildeo e Joaquim
configura uma marca essencial do milenarismo um senso de premecircncia derivado da forma
como o fiel interpreta os eventos agrave sua volta Ele sente que a era salviacutefica estaacute proacutexima e
vive na expectativa de vecirc-la ou em preparaccedilatildeo para alcanccedilaacute-la O pressuposto para esta
confianccedila na proximidade da redenccedilatildeo tem relaccedilatildeo com a crenccedila na histoacuteria como um
processo preacute-determinado Neste sentido bastaria ter acesso a uma determinada chave de
leitura para que se pudesse prever cada uma de suas etapas Os profetas milenaristas
desejavam entender a histoacuteria sua unidade sua estrutura seu objetivo e seu fim637
Segundo Talmon haacute aqui uma combinaccedilatildeo entre consciecircncia histoacuterica de tempo e
consciecircncia miacutetica A perspectiva histoacuterica do tempo como uma sequecircncia de eventos um
637 Idem p 31
190
vir-a-ser de caraacuteter uacutenico e particular eacute combinada com uma consciecircncia de tempo ciacuteclico
infinito e repetitivo638 Afinal o milecircnio de Joatildeo eacute uma interrupccedilatildeo do vir-a-ser um
parecircntese na histoacuteria Natildeo eacute ainda o destino derradeiro dos maacutertires jaacute que apoacutes o juiacutezo final
o profeta descreve uma Nova Jerusaleacutem em termos meta-histoacutericos (Apocalipse 21-22) Na
perspectiva joanina o milecircnio eacute uma demanda da justiccedila divina pois os fieacuteis martirizados
precisavam reinar com seu Cristo na mesma terra que os martirizou
Em Joaquim a sociedade milenar eacute uma antecipaccedilatildeo da Jerusaleacutem celestial
igualmente revestida de historicidade e temporalidade Quando seu periacuteodo acabar chegou
o fim do mundo Joaquim natildeo reflete longamente sobre o que vem a seguir Isso faz com que
sua Nova Era tenha como alvo esta nova sociedade espiritual na terra e natildeo alguma outra
num formato transcendental Eacute uma sociedade ideal ainda com a presenccedila de estruturas
sociais (em torno dos sete oratoacuterios da Dispositio) e de papeacuteis sociais (os viri spirituales da
Dispositio ainda estudam cantam e trabalham)
Relacionado com a questatildeo da iminecircncia estaacute a seacuterie de desastres presente nos
vaticiacutenios milenaristas Para explicar tal caracteriacutestica o socioacutelogo francecircs Desroche
apontou um roteiro de trecircs tempos subjacentes aos milenarismos haacute um tempo de opressatildeo
que se agrava progressivamente ateacute atingir o auge da alienaccedilatildeo e injusticcedila haacute um tempo de
resistecircncia quando os fieacuteis satildeo separados marcados nas frontes por Deus testemunham
vestidos de saco resistem no deserto isolam-se na espera enfrentam o martiacuterio haacute um
tempo de libertaccedilatildeo quando o adversaacuterio eacute finalmente derrotado e os fieacuteis desfrutaratildeo da
paz divina639 Esta relaccedilatildeo entre opressatildeo e redenccedilatildeo gera no milenarista a sensaccedilatildeo de que
quanto pior ficar melhor eacute jaacute que as adversidades histoacutericas seriam sinais da iminecircncia da
intervenccedilatildeo divina640
Assim antes que os maacutertires ressuscitem o Apocalipse de Joatildeo descreve o funesto
convite para que abutres venham devorar as carnes mortas de reis comandantes e poderosos
ldquocarnes de cavalos e seus cavaleiros carnes de todos quer livres quer escravos tanto
pequenos como grandesrdquo (Apocalipse 1918) O refrigeacuterio dos santos de Joaquim por sua
vez soacute surgiria apoacutes a manifestaccedilatildeo do Anticristo e a morte de muitos fieacuteis Neste sentido a
638 TALMON op cit p 352 639 DESROCHE op cit p 50 640 Eacute um apelo nos termos de Desroche em desespero de causa ldquoum apelo em uacuteltima instacircncia uma vez que
as demais instacircncias desmoronaram E ateacute mesmo um apelo para que as demais instacircncias desmoronemrdquo Cf
DESROCHE op cit p 51
191
felicidade almejada natildeo chegaria antes de uma ldquoangustia temporumrdquo ou das duas
ldquotribulationesrdquo quando muitos fieis alcanccedilariam o martiacuterio641
Miraculosa a intervenccedilatildeo divina
Um movimento milenarista compartilha a crenccedila na transformaccedilatildeo do mundo
conjugando-a com um senso de mudanccedila iminente Neste contexto uma significativa
questatildeo guarda relaccedilatildeo com a agecircncia da transformaccedilatildeo ou seja quem traraacute o milecircnio e a
forma como ele viraacute Em sua definiccedilatildeo do fenocircmeno Norman Cohn chamou a atenccedilatildeo para
o aspecto miraculoso da expectativa milenarista no sentido de que uma transiccedilatildeo tatildeo
significativa da realidade precisa da intervenccedilatildeo de forccedilas sobre-humanas642
Eacute neste contexto que se insere o elemento messiacircnico quando a salvaccedilatildeo eacute esperada
sob a conduccedilatildeo de um redentor um mediador entre o ser humano e a divindade
Frequentemente milenarismo envolve messianismo apesar de que os dois fenocircmenos natildeo
necessariamente coincidem Eacute possiacutevel surgir a perspectiva messiacircnica sem a milenarista
Do outro lado nem sempre eacute preciso um messias para que haja a presenccedila do milenarismo
Milenarismo e messianismo satildeo fenocircmenos independentes que eventualmente se unem
mas o dicionaacuterio de Desroche estaacute cheio de casos de um sem o outro643
Especificamente o milenarismo de Joatildeo eacute do tipo messiacircnico jaacute que ele entende que
para que o milecircnio aconteccedila um enviado de Deus um messias o Jesus glorificado precisaria
atuar Para Joaquim entretanto este periacuteodo de paz seria alcanccedilado por meio da atuaccedilatildeo do
Espiacuterito Santo o promotor da felicidade terrena que o abade chamou de ldquodescanso sabaacuteticordquo
O saacutebado do Espiacuterito natildeo demanda a parousia para sua instauraccedilatildeo Tambeacutem natildeo haacute figuras
ungidas exercendo papeacuteis messiacircnicos nas representaccedilotildees joaquitas como um imperador
especial para trazer o ldquosaacutebadordquo ou um papa angelical para instauraacute-lo
O abade de Fiore natildeo esperava por um reino milenar de Jesus na terra Ele deslocou
o reino de Jesus para traz e o tornou um artiacutefice de um periacuteodo completo dentro da histoacuteria
(o segundo status) Com sua visatildeo de progresso contiacutenuo e natildeo de queda contiacutenua Joaquim
imaginou a humanidade se desenvolvendo por meio da atuaccedilatildeo do Pai na primeira Era
passando pela revelaccedilatildeo do Filho na segunda Era ateacute culminar na atuaccedilatildeo do Espiacuterito na
641 GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 75 642 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 11 643 DESROCHE op cit
192
terceira Era Seu milenarismo entatildeo natildeo espera por um Jesus exaltado na terra realizando
um governo com maacutertires ressuscitados Para o calabrecircs natildeo eacute o Filho a esperanccedila dos fieacuteis
e sim o Espiacuterito O tempo de um estava por terminar para que o outro pudesse comeccedilar
Joatildeo esperava um periacuteodo de paz para apoacutes o segundo advento de Jesus Sem Jesus
natildeo haveria felicidade na terra nem reinado dos martirizados nem inversatildeo escatoloacutegica
nem vitoacuteria sobre o Anticristo O milecircnio assim concebido era um parecircntese entre o
segundo advento de Jesus e o final da histoacuteria Um parecircntese que duraria mil anos
Para o abade poreacutem Jesus eacute o centro da histoacuteria mas natildeo o seu aacutepice O aacutepice estaacute
no final na etapa exclusiva do Espiacuterito e sem a demanda do segundo advento de Jesus
(parousia) Em vez de o Filho retornar para trazer a felicidade para a humanidade seu tempo
iria terminar e somente entatildeo debaixo exclusivamente do controle histoacuterico do Espiacuterito os
seres humanos experimentariam a paz Haacute um lugar para a parousia tambeacutem nas
expectativas de Joaquim mas para terminar a histoacuteria e natildeo para dentro dela Na sua visatildeo
quando o Filho retornar a histoacuteria termina o mundo acaba644 Neste sentido o milenarismo
de Joaquim natildeo eacute um milenarismo do Filho e sim do Espiacuterito
Outro aspecto ainda relacionado com a forma de instauraccedilatildeo do milecircnio se desdobra
no papel humano para seu estabelecimento Haacute alguns elementos nas representaccedilotildees
milenaristas que podem atuar para minimizar a atuaccedilatildeo do fiel como por exemplo a
perspectiva de uma redenccedilatildeo predeterminada e inevitaacutevel Neste caso o milenarista natildeo
precisa fazer a revoluccedilatildeo basta esperar pela sua manifestaccedilatildeo sobrenatural Entretanto em
algumas situaccedilotildees a certeza da operaccedilatildeo de acordo com o que estaacute determinado no plano
divino e a confianccedila na vitoacuteria final podem encorajar alguma atividade em vez de
passividade Este parece ser o caso do Apocalipse645 que atribuiu um papel significativo aos
ldquosantosrdquo na instauraccedilatildeo do reino messiacircnico (Apocalipse 69-11) Sem o martiacuterio natildeo haveria
o preenchimento da cota de mortos necessaacuteria para instaurar a parousia (Apocalipse 19) ou
para vencer o Dragatildeo (Apocalipse 12) O profeta de Patmos entende que eacute necessaacuterio algum
tipo de resistecircncia resistecircncia essa que provocaraacute o martiacuterio martiacuterio esse que provocaraacute a
parousia parousia essa que inauguraraacute o milecircnio Ele natildeo demandou uma reaccedilatildeo armada
dos seus seguidores mas esperava deles a rejeiccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo romana o culto
644 Apoacutes o terceiro ciacuterculo da Taacutevola XI do Liber Figurarum aparece a expressatildeo ldquofinis mundirdquo Cf Anexo 6 645 Adela Yarbro Collins definiu o modelo de resistecircncia presente no Apocalipse de Joatildeo como ldquopassivordquo
Mesmo assim ela admite algum tipo de sinergismo jaacute que a morte dos maacutertires aproxima o fiel do eschaton
Cf COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E
J Brill 1996 p 212
193
imperial Na perspectiva joanina quando os disciacutepulos se negassem a participar da adoraccedilatildeo
agraves ldquobestasrdquo eles seriam mortos evento que parece estar subjacente agrave descriccedilatildeo da morte das
Duas Testemunhas (Apocalipse 11) e dos 144000 Guerreiros do Cordeiro (Apocalipse
14)646
Assim no milenarismo do Apocalipse os fieacuteis participam na instauraccedilatildeo do reino
milenar por meio do derramamento do proacuteprio sangue Este tipo de milenarismo pode ser
descrito como revolucionaacuterio ao rejeitar a ordem presente e promover accedilotildees concretas dos
fieacuteis O martiacuterio eacute tomado como uma estrateacutegia de confronto contra a sociedade romana Em
sua descriccedilatildeo do milecircnio Joatildeo explicita que o fiel precisa viver de certo jeito e morrer de
certa forma para estar presente no reino milenar
Em Joaquim entretanto haacute uma reduccedilatildeo do papel humano na instauraccedilatildeo do
descanso do Espiacuterito relacionado justamente com a oacutetica do abade de que os eventos
escatoloacutegicos estatildeo jaacute definidos e determinados Compete aos saacutebios apenas entendecirc-los
anunciar sua chegada e preparar a humanidade para eles Esse caraacuteter de determinaccedilatildeo estaacute
presente no seu esquema da Concordia Natildeo se pode mudar a histoacuteria apenas se preparar
para ela O milenarismo joaquita entatildeo eacute do tipo passivo Natildeo eacute possiacutevel fazer algo para
apressar a chegada do refrigeacuterio dos monges Sua instauraccedilatildeo natildeo depende de pessoas mas
do tempo que precisa ser cumprido
A roda das apropriaccedilotildees
147 anos apoacutes a morte de Joaquim em 1349 o franciscano francecircs Jean de
Roquetaillade enquanto estava encarcerado numa prisatildeo em Avignon escreveu a obra Liber
secretorum eventuum647 Nela ele anuncia a chegada de uma grande tribulaccedilatildeo A Igreja
entatildeo liderada por um papa ldquoangeacutelicordquo saiacutedo dentre os frades menores seria ldquopurgadardquo de
seus erros A partir de entatildeo um grande tempo de paz e prosperidade invadiria o mundo
durante mil anos Roquetaillade como outros franciscanos desde Geraldo San Borgo era
um leitor de Joatildeo de Patmos e Joaquim de Fiore648 Estas apropriaccedilotildees entretanto
tencionavam o pensamento do abade de Fiore na direccedilatildeo de confrontos que natildeo estavam
646 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no
Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 169-175 647 Esta anaacutelise de Roquetaillade segue DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 55-57 648 Idem p 50-57 Conferir tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore e o franciscanismo medieval
Thaumazein Santa Maria v V n 11 p 119-139 2013
194
previstos pelo ldquopaciacuteficordquo calabrecircs649 No Liber secretorum eventuum seu autor natildeo se vale
do esquema das trecircs idades do mundo jaacute criticado pelo protocolo de Agnani durante o
processo contra Geraldo O milenarismo de Jean de Roquetaillade eacute como o de Joaquim
natildeo-messiacircnico mas retomou o quimeacuterico nuacutemero de Joatildeo mil anos Sem parousia como
Joaquim mas por mil anos como Joatildeo Apoacutes o fim deste longo periacuteodo de paz viria entatildeo
o fim do mundo O frade aprisionado tinha a convicccedilatildeo de que o milecircnio comeccedilaria em 1415
ou 1420
Roquetaillade eacute um exemplo dos diversos tensionamentos sofridos pelo pensamento
joaquita reacionaacuterios ou revolucionaacuterios religiosos ou seculares clericais ou leigos no que
se convencionou chamar de ldquojoaquimismordquo650 Quer no paraiacuteso de Dante651 ou nas cartas de
Colombo652 depois de posta em movimento a roda das apropriaccedilotildees653 joaquimitas natildeo
parou de girar para chegar ateacute nos termos de Delumeau agraves ldquoutopias ideoloacutegicas da eacutepoca
contemporacircneardquo654
De qualquer forma este foi apenas um dos veios pelos quais correu a leitura do
Apocalipse e o levou a influenciar direta ou indiretamente a arte a literatura e a cultura no
Ocidente655 O livro foi catalisador de uma seacuterie de movimentos no correr da histoacuteria como
o grupo camponecircs liderado por Thomas Muntzer no seacuteculo XVI656 e a desastrosa
comunidade de 75 pessoas em torno de David Koresh destruiacuteda por um incecircndio em 1993657
A cada nova geraccedilatildeo de leituras um conjunto de representaccedilotildees emerge com
desdobramentos em subsequentes praacuteticas sociais e religiosas Compete aos historiadores e
649 Delumeau assim descreveu Joaquim ldquoum profeta paciacutefico que semeia germes de violecircnciardquo Cf
DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 46 650 Conferir DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling Madrid
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do Apocalipse Cf PHELAN John Leddy The millennial kingdom of the Franciscans in the new world
Berkeley University of California Press 1970 p 17 653 Retomando Chartier apropriaccedilatildeo eacute o processo historicamente determinado de construccedilatildeo de sentido Cf
CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191
1991 p 179 654 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 57 655 Conferir uma descriccedilatildeo panoracircmica em KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford
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ANEXOS
210
Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1658
658 Mapa presente em DMITRIEV Sviatoslav City government in hellenistic and Roman Asia Minor Oxford
Oxford University Press 2005 p xiv
211
Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2659
659 Mapa presente em DMITRIEV op cit pxvi
212
Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia660
660 Mapa presente em LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge
University Press 2007 p xiii
213
Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185)661
661 Mapa presente em DITCHBURN David MACLEAN Simon MACKAY Angus (eds) Atlas de Europa
medieval Madrid Caacutetedra 2011 p 132
214
Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum662
662 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero Le tavole del Liber Figurarum di
Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000 p 13
215
Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios663
663 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 15
CIP ndash Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo
Miranda Valtair Afonso
M672h Histoacuteria e Milenarismo no Apocalipse de Joatildeo de Patmos e no
Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore um estudo
comparativo Valtair Afonso Miranda -- Rio de Janeiro 2017
215 f
Orientadora Andreia Cristiana Lopes Frazatildeo da Silva
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria
Comparada 2017
1 Apocalipse de Joatildeo 2 Joaquim de Fiore 3 Milenarismo
4 Expositio in Apocalypsim I Silva Andreia Cristina Lopes
Frazatildeo da Orient II Tiacutetulo
BANCA EXAMINADORA
Titulares
Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (orientadora)
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profa Dra Leila Rodrigues da Silva
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof Dr Paulo Duarte Silva
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof Dr Paulo Augusto de Souza Nogueira
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo
Universidade Metodista de Satildeo Paulo
Profa Dra Monica Selvatici
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social
Universidade Estadual de Londrina
Suplentes
Prof Dr Andreacute Chevitarese
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profa Dra Carolina Fortes
Instituto de Histoacuteria
Universidade Federal Fluminense
DEDICATOacuteRIA
Agrave Elizete Rafael e Caroline
pela parceria e pelo companheirismo durante a produccedilatildeo desta pequisa
Agrave Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva
pelas orientaccedilotildees pacientes e significativas para esta jornada acadecircmica
Ao Programa de Estudos Medievais e seus coordenadores
pelo ambiente saudaacutevel de trocas e partilhas
ldquoOs milenaristas tiveram razatildeo de natildeo
desviar seu olhar da cidade terrestre e de natildeo
ver nela apenas um lugar de expiaccedilatildeo do
pecado Queriam realizar na terra um
primeiro esboccedilo da cidade celeste fazer
surgir nela o maacuteximo de felicidade e de
fraternidaderdquo
Jean Delumeau
RESUMO
Esta pesquisa analisou de forma comparativa os elementos milenaristas presentes no
Apocalipse de Joatildeo e no Expositio in Apocalypsim O profeta Joatildeo produziu um texto que
propotildee um milenarismo revolucionaacuterio que rejeita a ordem social romana e convida sua
comunidade a abandonar as estruturas religiosas imperiais especialmente a instituiccedilatildeo do
culto imperial esperando que isso provoque o martiacuterio dos seus membros e instaure os
eventos que culminaratildeo no retorno do Jesus Glorificado agrave terra para derrotar todos os
inimigos dos fieis ressuscitar os martirizados e implementar um reino durante mil anos Este
ldquoreino dos maacutertiresrdquo com Cristo parece ser o resultado de tradiccedilotildees messiacircnicas e
apocaliacutepticas do Judaiacutesmo antigo materializado no final do seacuteculo I no Apocalipse em
funccedilatildeo de traumas da guerra judaico-romana (66-70) de conflitos entre igrejas e sinagogas
e das diferentes respostas de lideres carismaacuteticos agrave questatildeo do relacionamento com a
sociedade romana Joaquim por seu turno esperava que a Terceira Era da histoacuteria da
humanidade culminasse num descanso sabaacutetico sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Apesar
de ser um periacuteodo relativamente curto a Era do Espiacuterito iria trazer sobre a humanidade o fim
dos conflitos que caracterizavam a histoacuteria eclesiaacutestica sob a lideranccedila de um pai espiritual
que governaria a sociedade nos moldes de uma casa monaacutestica Este ldquodescanso dos mongesrdquo
natildeo teve como ponto de partida entretanto diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim
as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que aguardava uma
fase de felicidade na terra anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica do milenarismo
joaquita na parte final do seacuteculo XII pode estar relacionada com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos
como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica
Palavras-chave Milenarismo Apocalipse de Joatildeo Joaquim de Fiore Filosofia da Histoacuteria
ABSTRACT
This research has analyzed in a comparative way the millenarian elements wich are present
in the Revelation of John and in the Expositio in Apocalypsim The prophet John produced
a text that proposes a revolutionary millenarianism which rejects the Roman social order and
invites its community to abandon the imperial religious structures especially the institution
of the imperial cult hoping that this provokes the martyrdom of its members and establishes
the events that will culminate in the return of the Glorified Jesus to the earth to defeat all
enemies of the faithful and to resurrect the martyred and to implement a kingdom for a
thousand years This kingdom of martyrs with Christ seems to be the result of messianic
and apocalyptic traditions of ancient Judaism which were materialized at the end of the first
century in the Apocalypse as a result of traumas of the Jewish-Roman War (66-70) of
conflicts between churches and synagogues and the different responses of charismatic
leaders to the question of the relationship with Roman society Joachim for his part hoped
that the Third Age of human history would culminate in a Sabbath rest under the inspiration
of the Holy Spirit In spite of being a relatively short period the Age of the Spirit would
bring to humanity the end of the conflicts that characterized ecclesiastical history under the
leadership of a spiritual father who would govern society in the mold of a monastic house
This rest of the monks did not have as its starting point however directly the millennium
of the Revelation but rather the historical reflections of Joachim and the tradition of the
refreshing of the saints that awaited a phase of happiness in the land before parousia The
historical emergency of Joachite millenarism in the late 12th century may be related to the
combination of phenomena such as apocalypticism and monastic reform
Abstract Millenarianism Revelation of John Joachim of Fiore Philosophy of History
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA 11
I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO 27
11 O autor do Apocalipse 27
12 A data do Apocalipse 35
13 O propoacutesito do Apocalipse 38
14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse 44
15 Resumo 47
II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA 48
21 Patmos o ponto de partida 48
22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia 50
23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia 52
24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia 54
25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo 59
26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo 61
27 Resumo 63
III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO 65
31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse 65
32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo 67
33 O contexto narrativo do reino milenar 69
34 O episoacutedio do reino milenar 71
35 O reinado messiacircnico interino na terra 76
36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 82
37 Resumo 88
IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 89
41 O autor do Expositio in Apocalypsim 89
42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim 98
43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim 100
44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse 106
45 Resumo 107
V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA SICIacuteLIA 108
51 A chegada dos normandos 110
52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia 111
10
53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen 113
54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada 114
55 A Igreja no Reino da Siciacutelia 118
56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda 121
57 Resumo 124
VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA DE JOAQUIM 126
61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo 126
62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo 130
63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde 134
64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas 137
65 Sensus typicus histoacuteria e profecia 139
66 O dom da exegese 142
67 Resumo 143
VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 144
71 Estrutura literaacuteria do Expositio 144
72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim 146
73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio 154
74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito 159
75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito 165
76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 171
77 Resumo 176
CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO DOS MONGES 178
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 196
ANEXOS 209
Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1 210
Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2 211
Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia 212
Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185) 213
Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum 214
Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios 215
INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA
Possivelmente as igrejas espalhadas pela Aacutesia Menor no final do seacuteculo I se
originaram da atividade religiosa de Paulo de Tarso na regiatildeo a partir do ano 58 da Era
Comum Natildeo havia centralizaccedilatildeo religiosa e cada comunidade se organizava e sobrevivia
do seu proacuteprio jeito Em termos de lideranccedila estas comunidades levantavam seus quadros
internamente privilegiando formatos colegiados Mesmo assim uma antiga atividade
religiosa ainda se manifestava entre as igrejas a profecia Profetas itinerantes viajavam para
pregar suas mensagens em cada comunidade e se moviam em funccedilatildeo da ajuda que recebiam
destes grupos
Um destes profetas ainda dentro do primeiro seacuteculo mas vaacuterias deacutecadas apoacutes o iniacutecio
do movimento de Jesus ficou conhecido por causa de um livro em que registrou o que seriam
visotildees relacionadas com o final dos tempos conhecido como Apocalipse Nesta obra ele se
identificou simplesmente como Joatildeo e escreveu suas ldquorevelaccedilotildees divinamente recebidasrdquo a
respeito de fenocircmenos histoacutericos e realidades sobrenaturais durante uma permanecircncia ou
visita agrave Patmos uma pequena ilha do mar Egeu proacutexima de Mileto e Eacutefeso
O livro de Joatildeo escrito em grego comeccedila com a expressatildeo ldquorevelaccedilatildeo de Jesus
Cristordquo (ldquoApokaluyij vIhsou Cristourdquo) Tal ldquorevelaccedilatildeordquo pode ser dividida em linhas gerais
em trecircs partes cada uma apresentando um conjunto de pequenos episoacutedios interconectados1
Na primeira (Apocalipse 1-3) Joatildeo descreve o aparecimento do ldquoFilho do Homemrdquo que lhe
revela o conteuacutedo de sete cartas que deveriam ser encaminhadas para sete igrejas A segunda
seccedilatildeo da obra (Apocalipse 4-11) registra o que Joatildeo teria visto apoacutes uma viagem espiritual
ao ceacuteu O conteuacutedo desta segunda visatildeo eacute narrado por meio da abertura de um rolo selado
com sete selos Eacute uma histoacuteria modelada pelas tradiccedilotildees judaicas sobre o fim do mundo que
culmina na implantaccedilatildeo de um esperado reino messiacircnico A uacuteltima seccedilatildeo do livro eacute bem
maior (Apocalipse 12-22) consumindo a metade da obra Nela se desdobra a histoacuteria da
guerra entre uma figura demoniacuteaca o Dragatildeo Vermelho e o Cordeiro siacutembolo usado por
Joatildeo para fazer referecircncia a Jesus fundador do movimento morto em Jerusaleacutem no iniacutecio
do seacuteculo No Apocalipse entretanto Jesus estaacute vivo e aparece descrito em categorias
1 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa
Polebridge Press 1998 p 10-16 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro Representaccedilatildeo e
construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 32-38
12
exaltadas como um ser angelical ou mesmo divino Esta narrativa de guerra escatoloacutegica eacute
uma estrateacutegia do autor para descrever a histoacuteria na forma de conflitos violecircncia e morte
tanto dos seguidores de Jesus quanto dos seguidores do Dragatildeo num processo contiacutenuo que
terminaria na intervenccedilatildeo divina para a construccedilatildeo de uma realidade paradisiacuteaca
transcendental que Joatildeo chamou de Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 211-27) Esta realidade
para aleacutem da histoacuteria entretanto seria precedida pela realizaccedilatildeo histoacuterica de um reino na
terra durante um periacuteodo de mil anos (Apocalipse 201-10)
Haacute evidecircncias de leitura e uso religioso do Apocalipse durante os dois primeiros
seacuteculos por parte de diversos liacutederes de igrejas Estes primeiros leitores enfatizavam
especialmente a passagem do Apocalipse que fala do periacuteodo de mil anos de governo de
Jesus Cristo na terra ao lado dos seus seguidores Por causa desta ecircnfase no milecircnio estes
primeiros leitores foram chamados eventualmente de quiliastas (termo derivado da palavra
grega traduzida como ldquomilrdquo)2
Nem todas as igrejas entretanto deram o mesmo tratamento para o Apocalipse No
periacuteodo de Euseacutebio de Cesareia (265-339) algumas rechaccedilavam a obra joanina enquanto
outras o contavam entre ldquoos livros admitidosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XXV 1-4) De
qualquer forma a obra de Joatildeo de Patmos acabou se fixando no cacircnon do Novo Testamento
cristatildeo fenocircmeno que no Ocidente se deu mais cedo do que no Oriente Em 397 o Siacutenodo
de Cartago reconheceu-o como texto sagrado e na igreja grega no fim do seacuteculo quinto ele
jaacute tinha aceitaccedilatildeo geral3 A partir de entatildeo ele seraacute lido como obra sagrada pelas diversas
comunidades cristatildes tornando-se elemento significativo no fornecimento de imagens e
siacutembolos para composiccedilatildeo de diversas representaccedilotildees sociais antigas e medievais
Mais de mil anos depois de Joatildeo nasceu em Celico na Calaacutebria sul da Peniacutensula
Itaacutelica um homem chamado Joaquim Quando jovem foi educado para atuar como notaacuterio
a serviccedilo do Reino Normando da Siciacutelia mas acabou deixando a corte para abraccedilar a vocaccedilatildeo
monaacutestica Ele comeccedilou a vida religiosa como eremita mas depois ingressou em um
pequeno cenoacutebio em Corazzo na Calaacutebria terminando por fundar no final da vida uma
casa monaacutestica em Fiore a fim de receber os vaacuterios disciacutepulos que desejavam segui-lo Este
monge de meados do seacuteculo XII produziu uma longa reflexatildeo sobre a histoacuteria lastreada
sobre a exegese dos textos biacuteblicos sobre o dogma trinitaacuterio e principalmente sobre o livro
2 WAINWRIGHT Arthur W Mysterious Apocalypse interpreting the Book of Revelation Wipf and Stock
Publishers Eugene 2001 p 21 3 Idem p 33-34
13
do visionaacuterio de Patmos Segundo ele o curso inteiro da histoacuteria estaria ldquoescondidordquo no
Apocalipse embora suas reflexotildees sejam primariamente dirigidas para a histoacuteria da igreja
desde o nascimento de Jesus ateacute a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de felicidade na terra Joaquim
escreveu vaacuterias obras em que trabalhou este mesmo tema4
- Expositio de prophetia ignota Romae reperta Foi composta em 1184 apoacutes o
encontro entre Joaquim e o papa Luacutecio III e consiste na interpretaccedilatildeo de um texto encontrado
entre os documentos do falecido cardeal Matias de Angers relacionado com profecias cristatildes
tradicionais a respeito do fim dos tempos
- De septem sigillis Eacute um pequeno opuacutesculo composto por Joaquim para servir de
guia e resumo do seu esquema das perseguiccedilotildees paralelas do Antigo e Novo Testamentos
baseado nos sete selos do Apocalipse de Joatildeo
- Enchiridion super Apocalypsim Eacute um manual sobre o Apocalipse e deveria servir
de introduccedilatildeo agrave obra joanina Foi escrito durante o periacuteodo que Joaquim passou em
Casamari entre os anos 1183 e 1184
- Praephatio super Apocalypsim Eacute a reuniatildeo de dois pequenos sermotildees de Joaquim
sobre o Apocalipse de Joatildeo pregados possivelmente para os monges de Corazzo Foram
reunidos posteriormente e circularam como uma uacutenica obra por causa de afinidades
temaacuteticas Eacute a uacutenica obra de Joaquim traduzida para a liacutengua portuguesa5
- Adversus Iudaeos No formato de tratado este texto descreve uma expectativa de
conversatildeo geral dos judeus no final dos tempos
- De ultimis tribulationibus Pequeno texto em forma de oraccedilatildeo possivelmente
declamado durante um encontro lituacutergico no mosteiro de Fiore
- Expositio in Apocalypsim Joaquim o iniciou em 1183-1184 mas soacute foi concluiacutedo
entre 1198 e 1200 Eacute tambeacutem a maior obra de Joaquim escrita num latim denso e complexo
Eacute possiacutevel dizer entatildeo que o abade de Fiore desde que abraccedilou a vocaccedilatildeo
monaacutestica decidiu fazer o que Bernard McGinn chamou de ldquocomer o Apocalipserdquo ou digeri-
lo lentamente analogia ao texto do Apocalipse em que o visionaacuterio eacute convidado a comer um
4 Quanto agrave data das obras cf TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di
Gioacchino da Fiore In GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p
73-106 Para uma lista dos manuscritos joaquimitas cf REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the
Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 511-519 5 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse Veritas Porto Alegre v 47 n 3 p 453-471 2002
BERNARDI Orlando Comentaacuterio ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla
Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010
14
livro entregue por um anjo 6 Dentre seus vaacuterios textos evidentemente o destaque fica para
o Expositio jaacute que representa o trabalho final do abade sobre a obra joanina
A partir destes dois personagens o que fizemos nesta tese foi analisar de forma
comparativa o Apocalipse de Joatildeo e o Expositio de Joaquim Em funccedilatildeo mesmo da extensatildeo
das obras e das dificuldades provocadas pelas distacircncias geograacuteficas e temporais entre elas
focaremos na categoria descrita como ldquomilenarismordquo7 e os recortes textuais de Apocalipse
201-10 bem como sua apropriaccedilatildeo na seacutetima parte do Expositio in Apocalypsim (209v-
213r) Em termos especiacuteficos indagaremos sobre a forma como Joaquim interpretou o
milecircnio do Apocalipse e a concepccedilatildeo milenarista que aparece no final
Eacute preciso destacar que cada um de nossos objetos de pesquisa tem sua proacutepria
historiografia Sobre Joatildeo de Patmos e seu Apocalipse por exemplo eacute preciso mencionar
primeiramente o grande volume de obras que se propotildee a fazer uma interpretaccedilatildeo semi-
literal esperando que as visotildees de Joatildeo se convertam em cenas histoacutericas de futuro proacuteximo
tomando o livro joanino como um depoacutesito de profecias predominantemente de
cumprimento iminente Esta tradiccedilatildeo interpretativa nas suas principais configuraccedilotildees
contemporacircneas parecem retroceder a John Nelson Darby (1800-1882) e agraves notas da Biacuteblia
de Estudo Scofield cuja primeira ediccedilatildeo saiu em 19098 Nesta linha eacute possiacutevel mencionar
obras de enorme circularidade como The Late Great Planet Earth (1970) de Hal Lindsey
que vendeu mais de 20 milhotildees de exemplares na sua primeira deacutecada de publicaccedilatildeo9 ou a
seacuterie de dez novelas de Tim LaHaye e Jerry Jenkins intitulada Left Behind escritas de 1995
ateacute 2002 que ultrapassou a quantia de 63 milhotildees de coacutepias vendidas em 37 paiacuteses e 33
liacutenguas diferentes10 Esta tradiccedilatildeo pode ser caracterizada por algumas ecircnfases gerais como
a ideia de um arrebatamento secreto dos crentes fieacuteis a Jesus a conversatildeo final dos judeus
ao Cristianismo e um periacuteodo milenar de felicidade na terra O Apocalipse eacute tratado como
6 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale Gecircnova
Casa Editrice Marietti 1990 p 159 A passagem em questatildeo se encontra em Apocalipse 10 7 Adotamos aqui a concepccedilatildeo de ldquomilenarismordquo do historiador inglecircs Norman Cohn entendendo-a como um
tipo particular de utopia salvacionista que apresenta os seguintes traccedilos gerais coletiva jaacute que todos os fieacuteis
experimentariam a felicidade terrena em funccedilatildeo do fato de que essa felicidade seria alcanccedilada neste mundo e
natildeo numa realidade transcendente total pois aguarda uma completa inversatildeo de todos os males da terra
iminente jaacute que essa transformaccedilatildeo completa estaria perto de comeccedilar e miraculosa agrave luz da certeza de que
essa mudanccedila contaria com a ajuda de seres sobrenaturais Cf COHN Norman Na senda do milecircnio
milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 8 Sobre o papel significativo de John Nelson Darby e a Biacuteblia de Estudo Scofield na interpretaccedilatildeo
contemporacircnea do Apocalipse cf KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford
Blackwell Publishing 2004 p 24-25 WAINWRINGHT op cit p 82-83 9 WAINWRINGHT op cit p 84 10 MONAHAN Torin Marketing the beast Left Behind and the apocalypse industry Media Culture amp
Society Thousand Oaks n 30 p 813-830 2008 p 817
15
parte de um grande quebra-cabeccedila que revelaria por meio de coacutedigos e imagens eventos
dos dias contemporacircneos como o papel dos Estados Unidos no aparecimento do Anticristo
ou o surgimento de um liacuteder poliacutetico de origem socialista como o falso profeta de Apocalipse
13
Do outro lado normalmente vinculados a instituiccedilotildees universitaacuterias estatildeo
pesquisadores cujo foco reside em aspectos histoacutericos do Apocalipse Estudiosos desta linha
histoacuterica se preocupam com a relaccedilatildeo entre Joatildeo e o tempo de produccedilatildeo do Apocalipse
Sendo assim eles procuram perceber ateacute onde o autor na sua narrativa apocaliacuteptica reflete
os medos e esperanccedilas dos grupos que representa ou antagoniza Esses autores tendem a
procurar similaridades entre as visotildees de Joatildeo e eventos contemporacircneos do primeiro seacuteculo
Eles estudam as razotildees que teriam levado o autor ateacute a ilha de Patmos ateacute que ponto o
Impeacuterio Romano promoveu algum tipo de desconforto para as igrejas e as implicaccedilotildees do
governo de Domiciano sobre o movimento de Jesus no final do primeiro seacuteculo Essas
ecircnfases histoacutericas podem ser encontradas por exemplo em R H Charles11 G B Caird12
A Y Collins13 C Rowland14 Leonard Thompson15 C Bauckham16 E S Fiorenza17 e
David Aune18 Estudos como os de C J Hemer19 ainda podem ser uacuteteis para esclarecer
aspectos especiacuteficos das igrejas da Aacutesia menor
Uma significativa tendecircncia de pesquisa eacute a que busca trabalhar o livro de Joatildeo agrave luz
de questotildees como retoacuterica20 e gecircnero21 Esta linha transita do meacutetodo histoacuterico e literaacuterio
para um paradigma de interpretaccedilatildeo retoacuterica Dentro dessa tendecircncia estuda-se a obra de
11 CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New York Charles
Scribner amp Sons 1920 12 CAIRD G B A Commentary on the Revelation of St John the Divine New York Harper amp Row Publishers
1966 13 COLLINS Adela Yarbro The Apocalypse Wilmington Michael Grazier Inc 1982 14 ROWLAND Christopher The Open Heaven A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity
London SPCK 1982 15 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University
Press 1990 16 BAUCKHAM Richard The cliacutemax of Prophecy London T amp T Clark 1993 17 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation Vision of a Just World Minneapolis Augsburg Fortress 1991 18 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 AUNE David E Revelation
6-16 Nashville Thomas Nelson Publishers 1998 AUNE David E Revelation 17-22 Nashville Thomas
Nelson Publishers 1998 19 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield
Academic Press Ltd 1986 20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In
BARR David L (ed) The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta
Society of Biblical Literature 2006 p 243-269 21 PIPPIN Tina The heroine and the whore fantasy and the female in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 60 p 67-90 1992
16
Joatildeo em busca da funccedilatildeo almejada para cada seccedilatildeo ou narrativa do livro percebendo-as
como discursos que buscavam retoricamente convencer uma audiecircncia determinada acerca
das posturas idealizadas por Joatildeo vistas de uma maneira geral como asceacuteticas e sectaacuterias
O Apocalipse assim refletiria a tendecircncia de um profeta judeu que cria em Jesus como o
Messias e se percebia em crise com a sociedade22
A sociologia e a antropologia forneceram aos estudiosos importantes instrumentos
de anaacutelise que nas uacuteltimas deacutecadas comeccedilaram igualmente a resultar em influentes
publicaccedilotildees Festinger23 Norman Cohn24 e John Gager25 trabalharam o apocalipse
vinculando-o aos estudos de milenarismo e a movimentos religiosos sectaacuterios A obra de
Joatildeo poderia ser vista entatildeo como o resultado de uma comunidade oprimida em confronto
com uma dissonacircncia cognitiva difiacutecil de ser conciliada com a realidade O resultado eacute a
construccedilatildeo de um mundo simboacutelico alternativo e a projeccedilatildeo de temores e ressentimentos
para o futuro por meio das imagens apocaliacutepticas
No contexto latino-americano eacute possiacutevel apontar a contribuiccedilatildeo de autores que
aplicam ao Apocalipse uma hermenecircutica da libertaccedilatildeo O livro eacute utilizado para interpretar
realidades poliacuteticas e sociais de opressatildeo contra pobres e marginalizados Dentro desta
perspectiva a obra joanina deveria servir de instrumento para promoccedilatildeo de esperanccedila de
uma vida melhor bem como para estimular resistecircncia a situaccedilotildees de violecircncia e injusticcedila
Leituras deste tipo podem ser encontradas por exemplo em Mester e Orofino26 e Pablo
Richard27
Surgiu em Satildeo Paulo na virada do seacuteculo um grupo de estudiosos vinculados agrave
UMESP voltados para trabalhar o Apocalipse literaturas a ele relacionadas e o cristianismo
dos primoacuterdios por uma oacutetica multi-disciplinar onde os temas satildeo analisados com o apoio
de diversos olhares derivados das ciecircncias da religiatildeo Antropologia da religiatildeo sociologia
da religiatildeo fenomenologia da religiatildeo psicologia da religiatildeo histoacuteria das religiotildees religiotildees
22 Entre outros conferir SILVA David A de The Revelation to John a case study in apocalyptic propaganda
and the maintenance of sectarian identity Sociological Analysis Oxford v 53 n 4 p 375-395 1992 SILVA
David A de The social setting of the Revelation to John Conflicts within fears without Westminster
Theological Journal Philadelfia v 54 p 273-302 1992 23 FESTINGER Leon (ed) When prophecy fails a social and psychological study of a modern group that
predicted the destruction of the world London Pinter amp Martin Ltda 2008 24 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 25 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 26 MESTERS Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo A teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis
Vozes 2003 27 RICHARD Pablo Apocalipse reconstruccedilatildeo da esperanccedila Petroacutepolis Vozes 1996
17
comparadas e estudos literaacuterios Nesta linha trabalham autores como Paulo Nogueira28 e Joseacute
Adriano Filho29 entre outros
Jaacute a historiografia de Joaquim de Fiore parece ter sofrido um incremento a partir das
pesquisas de Herbert Grundmann no iniacutecio do seacuteculo XX30 Grundmann focava na produccedilatildeo
de uma biografia de Joaquim daiacute seu interesse nas hagiografias e narrativas antigas sobre o
abade Em 1960 ele editou duas destas antigas narrativas uma anocircnima e outra atribuiacuteda a
Rainers de Ponza que se tornaram entatildeo fontes fundamentais dos estudiosos
contemporacircneos sobre o abade de Fiore
No mesmo periacuteodo em que Grundmann pesquisava na Alemanha Ernesto Buonaiuti
especialmente a partir de 1930 trabalhava na Itaacutelia na ediccedilatildeo das obras de Joaquim de
pequeno porte O pesquisador italiano chegou a produzir uma anaacutelise abrangente do
pensamento joaquimita31 poreacutem concentrou-se em disponibilizar para os pesquisadores
ediccedilotildees criacuteticas das obras Ele tambeacutem traduziu algumas dessas obras para a liacutengua italiana
Outros estudiosos se envolveram no mesmo ofiacutecio de Buonaiuti fazendo com que as
seguintes obras jaacute apresentassem ediccedilotildees criacuteticas Tractatus super Quatuor Evangelia
(1930) De articulis fidei e Sermotildees (1936) Epistola universis Christi fidelibus e Epistola
domini Valdonensi (1937) Dialogi de prescientia Dei et predestinatione electorum (1938)
Enchiridion in Apocalypsim (1938) Hymnus de paacutetria coelesti (1899) Visio admiranda de
gloria paradisi (18991938) De vita sancti Benedicti et de officio divino secundum ejus
doctrinam (1951) Liber Figurarum (1953) Super flumina Babylonis (1953) De septem
sigillis (1954) Adversus Iudeos (1957) Carta Testamentaacuteria (1960)
Das grandes obras de Joaquim entretanto apenas uma recebeu ediccedilatildeo parcial E
Randolph Daniel editou Liber Condordiae Novi ac Veteris Testamenti32 As outras duas
Expositio in Apocalypsim e Psalterium decem chordarum somente estatildeo acessiacuteveis pelas
ediccedilotildees da Junta de Veneza (seacuteculo XVI) reimpressas em 19641965 pela Editora Minerva
de Frankfurt
28 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza (org) Religiatildeo de visionaacuterios apocaliacuteptica e misticismo no
cristianismo primitivo Satildeo Paulo Loyola 2005 29 ADRIANO FILHO Joseacute O Apocalipse de Joatildeo como relato de uma experiecircncia visionaacuteria Anotaccedilotildees em
torno da estrutura do livro Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana Satildeo Paulo n 34 p 7-29 1999 30 GRUNDMANN Herbert Studien uumlber Joachim von Floris GMBH Springer Fachmedien Wiesbaden
1927 Para a historiografia anterior a Grundmann cf LA PINA George Joachim of Flora a critical survey
Speculum Cambridge v 7 n 2 p 257-282 1932 31 BUONAIUTI Ernesto Gioacchino da Fiore I tempi La vita Il messaggio Roma Consenza 1931 32 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Noui ac Veteris Testamenti
Independence Square American Philosophical Society 1983
18
O trabalho editorial das obras de Joaquim tem sido pontual e esporaacutedico Ainda haacute
muito espaccedilo para reflexotildees nesta aacuterea mesmo do material jaacute editado no iniacutecio do seacuteculo
XX em funccedilatildeo do avanccedilo no trabalho de restauraccedilatildeo de manuscritos antigos Vaacuterias obras
de Joaquim ainda precisam ser traduzidas para liacutenguas modernas o que facilitaria a pesquisa
e a compreensatildeo de seus textos Neste sentido eacute uacutetil apontar o trabalho de um dos membros
do conselho editorial do Centro Internazionale di Studi Gioachamiti Gian Luca Potestagrave Este
conselho desde que foi formado em 199533 tem como propoacutesito reeditar as obras de
Joaquim do iniacutecio do seacuteculo e promover a ediccedilatildeo de obras ainda natildeo editadas Potestagrave precisa
ser mencionado por ser um dos principais bioacutegrafos atuais de Joaquim especialmente depois
de sua obra Il tempo dellacuteApocalisse34
O professor alematildeo Kurt-Victor Selge outro membro do conselho editorial acima
mencionado argumentou que pelo menos trecircs fatores atrasaram a produccedilatildeo de ediccedilotildees
criacuteticas de Joaquim Primeiramente faltou apoio de alguma instituiccedilatildeo religiosa como
aquele que o luteranismo alematildeo deu para as Ediccedilotildees de Weimar das obras de Lutero ou o
papado para a Editio Leonina de Tomaacutes de Aquino a Ordem Florense fundada pelo abade
que poderia ser este apoio se enfraqueceu apoacutes sua morte ateacute desaparecer no seacuteculo XVI
por fim Joaquim se converteu num marginalizado da histoacuteria do pensamento cristatildeo Mesmo
sendo saudado por revolucionaacuterios e iluministas tal aceitaccedilatildeo natildeo se traduziu na fundaccedilatildeo
de alguma instituiccedilatildeo Nesse sentido o renovado interesse em Joaquim a partir do iniacutecio do
seacuteculo XX poderia ser explicado pelo aparecimento de uma ala modernista dentro da Igreja
Catoacutelica que buscava uma figura que legitimasse seu interesse por uma igreja mais livre e
pela busca de historiadores e filoacutesofos que se perguntavam por formas adequadas de vida
comunitaacuteria que poderiam mitigar a crise que a sociedade europeia carregava desde o seacuteculo
XIX As ideias de Joaquim chamaram a atenccedilatildeo desses estudiosos em nuacutemero cada vez
maior especialmente na Itaacutelia e Alemanha e depois tambeacutem na Espanha Inglaterra e
Estados Unidos35
Um outro tipo de pesquisa se debate natildeo com o proacuteprio Joaquim mas com o
desdobrar do seu pensamento dando origem ao que se convencionou chamar de
joaquimismo Pesquisadores desta linha se concentram em encontrar a influecircncia de Joaquim
33 HONEacuteE Eugegravene Joachim of Fiore The development of his life and the genesis of his works and doctrines
About the merits of Gian Luca Potestagraveacutes new biography Church History and Religious Culture Leida v 87
n 1 p 47-74 2007 p 49 34 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 35 Conferir esta anaacutelise em SELGE Kurt-Victor La edicioacuten criacutetica de las Opera omnia de Joaquiacuten de Fiore
Anuario de Historia de la Iglesia Navarra n 11 p 89-94 2002
19
em pensadores e escritores posteriores Em especial alguns estatildeo envolvidos em demonstrar
quais ideias de Joaquim deram iacutempetos a outras figuras e movimentos importantes Neste
acircmbito se situam autores como Marjorie Reeves36 Bernard McGinn37 e Henri de Lubac38
Estes livros se tornaram ponto de partida recente para os estudos sobre a influecircncia de
Joaquim e o desenvolvimento do joaquimismo
Nesta tendecircncia ainda se situam estudos que procuram sua contribuiccedilatildeo para a
teologia e a filosofia da histoacuteria em especial No primeiro caso apontamos Juumlrgen
Moltmann e o seu livro The Trinity and the Kingdom (1981) No segundo indicamos
pesquisadores brasileiros como Vicente Dobroruka e a busca pela relaccedilatildeo de Joaquim com
o pensamento de Ephraim Lessing (1995)39 e Noeli Dutra Rossatto sobre a relaccedilatildeo entre
Trindade e histoacuteria (2004)40 Eacute do historiador brasileiro Dobroruka a avaliaccedilatildeo de que o
sistema profeacutetico de Joaquim eacute considerado um dos pilares da moderna reflexatildeo acerca do
sentido da histoacuteria41
A partir das pontes levantadas pela historiografia aproximamo-nos das questotildees por
meio de um conjunto de conceitos oriundos da abordagem da histoacuteria cultural especialmente
promovidos pelo historiador francecircs Roger Chartier praacutetica representaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo42
Uma de suas aacutereas de pesquisa busca compreender as formas como a produccedilatildeo e recepccedilatildeo
de objetos culturais atuam na configuraccedilatildeo do mundo social Essa abordagem se mostra
revelante para nossa pesquisa justamente por promover uma histoacuteria do livro da leitura ou
das interpretaccedilotildees sociais o que nos ajuda a entender a operaccedilatildeo realizada por Joaquim de
Fiore e Joatildeo de Patmos em seus respectivos contextos Ambos satildeo produtores e receptores
de textos e tradiccedilotildees e consequemente por meio de suas praacuteticas e apropriaccedilotildees atuaram
na construccedilatildeo de novas representaccedilotildees sociais
36 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976
REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit 37 MCGINN Bernard The calabrian abbot Joachim of Fiore in the history of Western Thought New York
Macmillan Pub Co 1985 38 De LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore Madri Ediciones Encuentro 2011 39 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore Revista
Muacuteltipla Brasiacutelia v 5 n 8 p 9-28 2000 Cf tambeacutem sua obra DOBRORUKA Vicente Histoacuteria e
milenarismo ensaios sobre tempo histoacuteria e o milecircnio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 40 ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 41 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore op cit p 9 42 A noccedilatildeo de ldquopraacuteticardquo eacute intercambiaacutevel com produccedilatildeo cultural ldquoapropriaccedilatildeordquo tem relaccedilatildeo com recepccedilatildeo
cultural ldquorepresentaccedilatildeordquo entretanto carrega certa ambiguidade Em alguns momentos Chartier a usa para
falar de estruturas em outro do conteuacutedo das estruturas Cf CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre
praacuteticas e representaccedilotildees Algeacutes Difusatildeo Editorial 2002 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo
Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191 1991
20
Eacute possiacutevel entender as representaccedilotildees como classificaccedilotildees divisotildees e delimitaccedilotildees
que organizam a apreensatildeo do mundo social Elas satildeo categorias intelectuais elementos
mentais estruturantes da realidade exterior subjetivaccedilotildees de realidades materiais
organizadas segundo determinados padrotildees O ser humano jaacute nasce mergulhado num mundo
construiacutedo Ele natildeo participou de sua construccedilatildeo mas em algum momento precisou introjetaacute-
lo e estruturaacute-lo subjetivamente para que ele se tornasse o seu proacuteprio mundo43 Estas
representaccedilotildees individuais ou coletivas geram praacuteticas culturais como a produccedilatildeo de um
livro a verbalizaccedilatildeo dos discursos a idealizaccedilatildeo de comportamentos e valores especiacuteficos
em detrimento da estigmatizaccedilatildeo de outros
A noccedilatildeo dupla de representaccedilotildees e praacuteticas se constitui como poacutelo de um processo
amplo jaacute que natildeo apenas as representaccedilotildees geram praacuteticas mas tambeacutem as praacuteticas geram
representaccedilotildees O tal mundo social como representaccedilatildeo eacute formado por um processo
contiacutenuo de moldes e formas manifestados em discursos que tanto o apreendem quanto o
estruturam44 Numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre as praacuteticas e representaccedilotildees Chartier aponta
a apropriaccedilatildeo entendida como o processo pelo qual um sentido eacute historicamente
produzido45 Apropriaccedilatildeo tem a ver com construccedilatildeo de sentido interpretaccedilatildeo categoria uacutetil
para problematizar a dinacircmica entre sujeito produtor de cultura e sujeito consumidor de
cultura Um livro como objeto da cultura eacute o resultado da produccedilatildeo de sentido de um autor
mas tambeacutem gerador de sentidos nas matildeos de um leitor que se apropria da obra e cria novos
significados Uma anaacutelise das apropriaccedilotildees teria relaccedilatildeo com as condiccedilotildees e os processos de
produccedilatildeo de sentido Cabe descobrir como isso se daacute e verificar as novas formas
constitutivas de mundo46 a partir da leitura ou audiccedilatildeo jaacute que textos podem ser lidos ou
ouvidos em espaccedilos privados ou puacuteblicos Segundo Chartier a apropriaccedilatildeo natildeo se daacute de
forma passiva jaacute que quem recebe um texto pode promover uma apropriaccedilatildeo seletiva ou
mesmo criativa transformando e ateacute negando o sentido do texto lido47 Joaquim por
exemplo construiu um comentaacuterio biacuteblico gecircnero literaacuterio voltado primariamente para
buscar e criar sentidos atraveacutes da apropriaccedilatildeo do texto do Apocalipse de Joatildeo
43 BERGER Peter LUCKMANN Thomas A construccedilatildeo social da realidade tratado de sociologia do
conhecimento Petroacutepolis Vozes 1973 p 87 44 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 23 45 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 179 46 Para os socioacutelogos Berger e Luckmann ldquomundordquo eacute aquilo que as pessoas reconhecem ou entendem existir
independente de sua vontade ou independente delas Cf BERGER Peter LUCKMANN Thomas op cit p
10 47 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 10
21
Daiacute a necessidade de buscar as praacuteticas que organizam os modos de relacionamento
com os textos diferenciadas histoacuterica e socialmente48 Cada comunidade grupo ou
sociedade tem sua proacutepria maneira de ler e interpretar Haacute processos historicamente
condicionados de padronizaccedilatildeo de escrita (gecircnero literaacuterio) da mesma forma como de
leitura que criam limites para o que eacute possiacutevel escrever mas tambeacutem para o que eacute possiacutevel
ver no que estaacute escrito Satildeo as determinaccedilotildees enquadramentos e condicionamentos que
viabilizam tanto a produccedilatildeo quando a apropriaccedilatildeo de uma obra
A apropriaccedilatildeo eacute para o historiador francecircs uma relaccedilatildeo sempre dinacircmica e
dependente de uma seacuterie de fatores Neste sentido as determinaccedilotildees podem se materializar
em situaccedilotildees como a forma em que o manuscrito foi acessado o tipo de material os
procedimentos de leitura a competecircncia dos inteacuterpretes os viacutenculos sociais dos leitores ou
o espaccedilo da audiccedilatildeo49 Os atos de ler e interpretar estatildeo situados no limite entre leitores
determinados por suas posiccedilotildees e textos cujos significados dependem da forma como se
apresentam os discursos e as maneiras como eles satildeo acessados
A leitura neste caso pode gerar tanto representaccedilotildees quanto praacuteticas que natildeo se
identificam completamente com as do texto lido ou com o que o autor tentou imprimir em
sua obra50 Leitores inventam nos textos algo diferente daquilo que seria alguma intenccedilatildeo
autoral A leitura fragmenta o texto junta partes distantes preenche brechas e cria sentidos
Essa dinacircmica entre autor e leitor viabiliza o que Chartier chama de histoacuteria social
das interpretaccedilotildees ou anaacutelise das determinaccedilotildees fundamentais (sociais institucionais
culturais) dos textos e das leituras51 Daacute origem tambeacutem a uma histoacuteria da exegese ou da
hermenecircutica dos textos
O relacionamento das praacuteticas representaccedilotildees e apropriaccedilotildees se articulam com o
mundo social principalmente por trecircs aspectos
- o mundo eacute construiacutedo de forma contraditoacuteria pelos diferentes grupos que compotildeem
uma sociedade a partir de classificaccedilotildees e recortes que produzem as representaccedilotildees
- as praacuteticas promovem uma determinada identidade social uma definida maneira de
ser no mundo a indicaccedilatildeo simboacutelica de uma posiccedilatildeo ou um estatuto
- a proacutepria existecircncia do grupo ou da comunidade eacute marcada e confirmada pelas
formas institucionalizadas e objetivadas que se derivam das praacuteticas Eacute neste sentido que
48 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 181 49 Idem 50 Idem p 59 51 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 26 e 131
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indiviacuteduos representam instituiccedilotildees e textos se tornam representativos de determinadas
posiccedilotildees sociais
Aqui Chartier alerta para um tipo de luta que natildeo eacute entre classes sociais mas entre
representaccedilotildees diferentes ou formas rivais defendidas por cada grupo para ordenar e
hierarquizar o mundo social52
Chartier nos ajudou a entender Joatildeo e Joaquim como mergulhados em diferentes lutas
de representaccedilotildees53 Nos seus textos eles manifestam conflitos sociais viacutenculos
institucionais e praacuteticas culturais Ambos em suas respectivas conjunturas histoacutericas satildeo
simultaneamente autor e leitor Eles se apropriam de fontes anteriores ou contemporacircneas
imprimindo nelas suas proacuteprias estrateacutegias de consumo de texto produzindo novos sentidos
que se materializaram em suas subsequumlentes obras Em vaacuterios momentos desta pesquisa nos
detemos em questotildees sobre as fontes que cada um leu como elas foram lidas e os sentidos
entatildeo construiacutedos Especialmente no caso do abade ele eacute um leitor expliacutecito do Apocalipse
de Joatildeo e seu comentaacuterio o resultado formal desta leitura
Nosso corpus documental assim leva em conta estes dois objetos de pesquisa com
histoacuterias textuais bem diferentes Enquanto o Apocalipse por fazer parte do cacircnon cristatildeo
tem o suporte das chamadas Sociedades Biacuteblicas54 o Expositio nem mesmo tem uma ediccedilatildeo
criacutetica
Em termos concretos existem cinco tipos de testemunhas55 do texto do Apocalipse
- seis papiros todos fragmentaacuterios
- onze manuscritos unciais trecircs deles com o texto completo
- 293 manuscritos minuacutesculos
- citaccedilotildees patriacutesticas
52 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 182 53 Em algum momento eacute possiacutevel que mesmo universos conflitantes sobrevivam simultaneamente Eacute o caso de
um grupo que constroacutei uma subsociedade dentro da sociedade maior formando uma espeacutecie de refuacutegio e base
para a manutenccedilatildeo do seu mundo dissidente Para isso ele precisa criar procedimentos para proteger a
existecircncia precaacuteria dessa subsociedade das ameaccedilas que vecircm de fora Um dos mais importantes procedimentos
seraacute a limitaccedilatildeo dos relacionamentos significativos para exclusiva ou predominantemente dentro do grupo
Os membros do grupo devem evitar se relacionar significativamente com pessoas de fora que possuem visotildees
divergentes de mundo surgindo entatildeo um comportamento sectaacuterio Cf NEWSOM Carol A The Self as
Symbolic Space Constructing Identity and Community at Qumran Atlanta Society of Biblical Literature
2007 p 12 54 Sobre a produccedilatildeo do texto criacutetico do Apocalipse cf DELOBEL J Le texte de lApocalypse Problegravemes de
meacutethode In Lambrecht (ed) LrsquoApocalypse Johannique et lrsquoApocalyptique dans le Nouveau Testament
Louvain University Press 1980 p 151-166 AUNE David E Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-clix 55 O termo ldquotestemunhardquo eacute usado em ediccedilotildees criacuteticas e obras de criacutetica textual do Novo Testamento para fazer
referecircncia a fontes que conteacutem de forma completa ou fragmentaacuteria o texto biacuteblico como por exemplo um
manuscrito uma traduccedilatildeo antiga uma citaccedilatildeo antiga ou uma transcriccedilatildeo em artefatos arqueoloacutegicos
23
- traduccedilotildees antigas
Estas testemunhas formam a base sobre a qual trabalham os estudiosos que preparam
ediccedilotildees criacuteticas do Apocalipse Dentre essas as trecircs primeiras (papiros unciais e
minuacutesculos) destacam-se na reconstruccedilatildeo do que teria sido o autoacutegrafo56 do Apocalipse pela
relaccedilatildeo direta com o grego idioma de origem da obra joanina
Os seis papiros (P18 P24 P43 P47 P85 e P98) contecircm apenas fragmentos de texto O
mais antigo destes o P98 datado para um periacuteodo tatildeo recuado quanto o seacuteculo II e
consequentemente a mais antiga testemunha textual do Apocalipse preserva apenas
Apocalipse 113-20 Os demais papiros foram produzidos entre os seacuteculos III e V57
Dentre os 11 manuscritos unciais relacionados com o Apocalipse (a A C P 046
051 052 0163 0169 0207 0229) apenas trecircs deles possuem o Apocalipse na sua forma
completa (a A e 046) Os demais preservaram apenas fragmentos como o MS 0169 que
conteacutem apenas Apocalipse 319-43Trecircs deles satildeo datados para o seacuteculo IV (a 0169 e 0207)
trecircs para o seacuteculo V (A C e 0163) um para os seacuteculos VII-VIII (0229) um para o seacuteculo IX
(P) e trecircs para o seacuteculo X (046 051 e 052) Isso significa que a coacutepia completa mais antiga
do texto grego do Apocalipse estaacute no MS a do seacuteculo IV localizado no London British
Museum58
293 manuscritos minuacutesculos satildeo conhecidos por conter pelo menos alguma parte do
Apocalipse Um eacute coacutepia do seacuteculo IX oito do seacuteculo X 35 do seacuteculo XI 30 do seacuteculo XII
58 do seacuteculo XIV 57 do seacuteculo XV 40 do seacuteculo XVI 13 do seacuteculo XVII cinco do seacuteculo
XVIII e dois do seacuteculo XIX Os outros 44 manuscritos minuacutesculos apresentam dificuldades
para a dataccedilatildeo com sugestotildees que variam do seacuteculo IX ateacute o XV59
O conjunto das jaacute mencionadas testemunhas textuais com a inclusatildeo das citaccedilotildees
patriacutesticas e as traduccedilotildees antigas pode ser estruturado em quatro tradiccedilotildees textuais
56 Termo utilizado para fazer referecircncia a um hipoteacutetico texto original Como os originais se perderam a funccedilatildeo
dos estudiosos eacute reconstruiacute-los por meio de comparaccedilatildeo e colagem de diversos tipos de testemunhas seguindo
criteacuterios como antiguidade estilo origem do manuscrito famiacutelia de manuscritos entre outros Conferir uma
descriccedilatildeo destes procedimentos em ALAND Kurt ALAND Barbara The text of the New Testament an
introduction to the critical editions and to the theory and practice of modern textual criticism Grand Rapids
William B Eerdmans Publishing Company 1989 p 280-316 ELLIOTT J K New Testament textual
criticism the application of thoroughgoing principles Leiden Brill 2010 p 13-52 VAGANAY Leon An
introduction to the New Testament textual criticism Cambridge Cambridge University Press 1982 p 52-88 57 AUNE David Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-cxxxviii 58 Idem p cxxxviii 59 Conferir a lista completa dos 293 manuscritos com dataccedilatildeo e descriccedilatildeo do conteuacutedo em AUNE David E
Revelation 1-5 op cit p cxxxix-cxlviii
24
- A primeira eacute denominada de ldquotexto neutrordquo por Aune que a considera a ldquoa melhor
testemunha do texto grego do Apocalipserdquo60 Ela consiste dos unciais A e C bem como do
minuacutesculo 2053
- A segunda consiste no P47 o mais antigo manuscrito do Apocalipse datado para o
segundo seacuteculo junto com o uncial a e as citaccedilotildees de Oriacutegenes
- A terceira parte do texto encontrado no comentaacuterio do Apocalipse de Andreas de
Cesareia na Capadoacutecia que escreveu entre 563-614 Tambeacutem se inscrevem nesta tradiccedilatildeo
textual as duas coacutepias da versatildeo geoacutergica do Apocalipse datadas para o seacuteculo X
- A quarta eacute a mais numerosa e recebe o tiacutetulo de ldquotexto bizantinordquo definida em linhas
gerais como de pouca confianccedila para a restauraccedilatildeo do autoacutegrafo61
A maioria dos manuscritos gregos do Apocalipse62 bem como as demais
testemunhas em linhas gerais guardam relaccedilatildeo predominantemente com o texto bizantino
Isso significa que os textos criacuteticos tendem a partir do texto neutro confrontando-o com a
segunda e terceira tradiccedilatildeo63 e em alguns poucos casos com o texto bizantino
A perspectiva desta histoacuteria textual do Apocalipse eacute uacutetil para o caso de confronto
entre as variantes textuais de alguma passagem especiacutefica do texto de Joatildeo mas o trabalho
eacute enormemente facilitado pelas ferramentas jaacute disponiacuteveis nas duas ediccedilotildees criacuteticas
publicadas
- ALAND Kurt (ed) The Greek New Testament Stuttgart Deutsche
Bibelgesellschaft 1994
- NESTLE Eberhard NESTLE Erwin ALAND Kurt (org) Novum Testamentum
Graece 27 ed Stuttgart Gesamtherstellung Biblia-Druck 1993
Ambas as ediccedilotildees utilizam o mesmo texto criacutetico mas variam na forma como
apresentam e organizam as variantes textuais Destacamos ainda que o papel da ediccedilatildeo
criacutetica do Apocalipse eacute de indicar o autoacutegrafo provaacutevel produzido por Joatildeo natildeo
necessariamente o texto lido por Joaquim nas bibliotecas monaacutesticas por onde passou
(Sambucina Corazzo Casamari e Fiore) Esta uacuteltima por sinal foi destruiacuteda num incecircndio
apoacutes a morte do seu fundador
60 Idem p clvi 61 Idem p clvii 62 Uma lista ampla destes manuscritos com anaacutelise individualizada pode ser encontrada em HOSKIER H
C Concerning the text of the Apocalypse London Bernard Quaritch Ltd 1929 2 v Outra anaacutelise estaacute
disponiacutevel em CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New
York Charles Scribner amp Sons 1920 2 v V 2 p 227-385 63 ELLIOTT op cit p 150
25
Natildeo se sabe quantas coacutepias dos manuscritos de Joaquim foram queimados neste
incecircndio De qualquer forma como jaacute argumentamos foram outros os motivos que
limitaram a difusatildeo dos manuscritos do abade Muito diferente do nuacutemero de testemunhas
de Apocalipse o Expositio in Apocalypsim sobreviveu em apenas seis manuscritos64
- MS 249 em Troyes na Biblioteca Municipal nos foacutelios 38-107 do seacuteculo XIII
- MS H 15 em Milatildeo na Biblioteca Ambrosiana nos foacutelios 65-160 do seacuteculo XIII
ou XIV
- MS Chig A VIII 231 em Roma na Biblioteca do Vaticano nos foacutelios 1-104 do
seacuteculo XIV
- MS 1411 em Roma na Biblioteca Casanatense foacutelios 1-91 do seacuteculo XIV
- MS Cent II 51 em Nuremberg na Stadtbibliothek nos foacutelios 127-373 do seacuteculo
XV
- MS Harley 3049 em Londres no Museu Britacircnico nos foacutelios 137-220 do seacuteculo
XV
- MS A 450 em Rouen na Biblioteca Municipal nos foacutelios 1-31 do seacuteculoXVI
No seacuteculo XVI entretanto a Junta de Veneza editou na forma de incunaacutebolo as trecircs
obras principais de Joaquim Concordia no ano 1519 Expositio e Psalterium em 1527 Estas
foram reimpressas no seacuteculo XX pela Editora Minerva Eacute esta ediccedilatildeo do Expositio in
Apocalypsim65 que usamos em nossa anaacutelise Ela estaacute composta por foacutelios escritos na frente
e no verso Apenas as partes frontais dos foacutelios satildeo numeradas de 1 a 224 Cada foacutelio ainda
tem duas colunas Sendo assim o Expositio eacute referenciado indicando-se o nuacutemero do foacutelio
e se eacute frente ou verso (ldquorrdquo quando for a parte frontal ldquovrdquo para o verso do foacutelio) Neste sentido
ele comeccedila em 26v ou seja no verso do foacutelio 26 e termina em 224r ou seja na parte frontal
do foacutelio 224
Nosso trabalho estaacute estruturado em sete capiacutetulos Usaremos o primeiro capiacutetulo para
analisar a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso implica discutir as condiccedilotildees
histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento de Jesus ateacute a ilha de Patmos
para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na proviacutencia da Aacutesia
Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destinataacuterios data e propoacutesito do Apocalipse bem
64 REEVES Marjorie The influence of prophecy in the later Midlle Ageshellip p 513 65 JOAQUIM VON FIORE Expositio in Apocalypsim Frankfurt Minerva 1964
26
como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com forma e conteuacutedo
definidos
No capiacutetulo segundo nos deteremos na anaacutelise da situaccedilatildeo das igrejas da proviacutencia
romana da Aacutesia em especial as disputas de poder os conflitos com as comunidades judaicas
e as tentativas de interaccedilatildeo com a sociedade romana O objetivo eacute definir as condiccedilotildees de
produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo
O terceiro capiacutetulo analisaraacute Apocalipse 201-10 tendo em vista sua relaccedilatildeo com a
obra como um todo por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos partindo da
traduccedilatildeo do texto grego para definir suas representaccedilotildees de histoacuteria e milenarismo bem
como seus pontos de partida e condiccedilotildees de emergecircncia
O quarto capiacutetulo aplicaraacute no Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram
lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar
elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso
este seraacute o espaccedilo privilegiado para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando
apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o
livro joanino
O quinto capiacutetulo analisa as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia
meridional normanda bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio
Hohenstaufen Estes aspectos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim seus
condicionados e viacutenculos poliacuteticos e religiosos
O sexto capiacutetulo problematizaraacute as estrateacutegias de leitura de Joaquim e sua
metodologia hermenecircutica para tanto analisando formas de apropriaccedilatildeo mediadas pela
diacronia O seacutetimo capiacutetulo partindo de uma siacutentese do texto latino trataraacute da seacutetima parte
do Expositio por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos Analisamos nele as
representaccedilotildees milenaristas e histoacutericas do abade e igualmente seus antecedentes e fatores
de emergecircncia Por fim na conclusatildeo nos perguntamos pelas convergecircncias e divergecircncias
entre Joatildeo e Joaquim profeta e monge Apocalipse e Expositio Patmos e Calaacutebria
I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO
Neste capiacutetulo analisaremos a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso
implica discutir as condiccedilotildees histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento66
de Jesus ateacute a ilha de Patmos para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na
proviacutencia da Aacutesia Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destino data e propoacutesito do
Apocalipse bem como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com
forma e conteuacutedo definidos
11 O autor do Apocalipse
A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta pelo menos dois
elementos principais Primeiramente busca-se em fontes antigas ou paralelas algo que
indique quem escreveu o texto Satildeo as chamadas evidecircncias externas Num segundo instante
observa-se a obra para verificar o que ela mesma consegue indiciar sobre seu autor no que
se pode denominar de evidecircncia interna No caso do Apocalipse tanto um quanto outro
levam em conta a aparente auto-identificaccedilatildeo do autor como ldquoJoatildeordquo (Ἰωάννhj)
- ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas
que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao
seu servo Joatildeordquo (Apocalipse 11)67
- ldquoJoatildeo agraves sete igrejas que se encontram na Aacutesia graccedila e paz a voacutes outros da parte
daquele que eacute que era e que haacute de vir da parte dos sete Espiacuteritos que se acham diante do seu
tronordquo (Apocalipse 14)
66 O termo ldquomovimentordquo eacute uacutetil para descrever a fase preacute-institucional do que viria a se tornar o Cristianismo
Quanto ao uso deste termo conferir o socioacutelogo THEISSEN Gerd Sociologia do Movimento de Jesus Satildeo
Leopoldo Sinodal 1997 p 11 tambeacutem STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria
social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo
Satildeo Leopoldo Sinodal 2004 p 218 Sobre a relaccedilatildeo entre essas comunidades e o restante do Judaiacutesmo Cf
FRIESEN Steve Sarcasm in Revelation 2-3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In
BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta
Society of Biblical Literature 2006 p 142 67 Usaremos para as citaccedilotildees biacuteblicas em portuguecircs a Versatildeo Revista e Atualizada de Almeida salvo quando
se tratar de traduccedilatildeo proacutepria como encontrada em BIacuteBLIA SAGRADA Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1980
28
- ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila
em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho
de Jesusrdquo (Apocalipse 19)
- ldquoEu Joatildeo sou quem ouviu e viu estas coisas E quando as ouvi e vi prostrei-me
ante os peacutes do anjo que me mostrou essas coisas para adoraacute-lordquo (Apocalipse 228)
Essas passagens do Apocalipse indicam que Joatildeo eacute o nome assumido pelo autor
autor este que se insere na obra na forma de um personagem enquanto descreve eventos e
experiecircncias religiosas Natildeo haacute qualquer outro nome vinculado a Joatildeo Identificaccedilotildees
romanas levavam em conta geralmente preacute-nome nome e poacutes-nome como o Imperador
Titus Flavius Domitianus Identificaccedilotildees judaicas seguiam nome e filiaccedilatildeo geralmente o
nome do pai (Isaque ben Abraatildeo) mas agraves vezes a identificaccedilatildeo da cidade (Jesus de Nazareacute)
O Joatildeo do Apocalipse entretanto parece ser suficientemente conhecido da sua audiecircncia
para que natildeo precise se apresentar com nada mais aleacutem do que um nome Kuumlmmel entende
em funccedilatildeo disso que ldquoo simples nome de Joatildeo indica uma personalidade comumente
conhecida e a maneira auto-evidente com que ele coloca seus apelos no sentido de ser
ouvido mostra dever tratar-se de um homem que goza de grande autoridaderdquo68
O autor do livro tambeacutem se apresenta como irmatildeo e companheiro (ldquoἀδελφς καὶ
συγκοινωνςrdquo) daqueles que iratildeo receber sua mensagem (Apocalipse 19) o que reforccedila a
sugestatildeo de que ele era bem conhecido de sua audiecircncia
O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse pelo que se conhece foi
Papias bispo de Hierapolis uma cidade proacutexima de Laodiceia uma das cidades que aparece
como destinataacuteria do livro (Apocalipse 314-22) Ele atuou como liacuteder eclesiaacutestico no inicio
do segundo seacuteculo e escreveu uma obra intitulada ldquoInterpretaccedilotildees de ditos do Senhorrdquo Esta
obra se perdeu mas foi citada por muitos autores antigos Andreas bispo de Cesareia na
Capadoacutecia escrevendo um comentaacuterio do Apocalipse no seacuteculo VI registrou que Papias
conheceu o Apocalipse considerava-o inspirado por Deus e comentou uma de suas
passagens (A interpretaccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo o Teoacutelogo 1011) Infelizmente natildeo haacute
nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menccedilatildeo clara sobre quem escreveu o
Apocalipse
Justino Maacutertir chegou a residir em Eacutefeso outra das cidades mencionadas diretamente
no Apocalipse (Apocalipse 21-7) por volta do ano 135 Ele escreveu no seu ldquoDialogo com
68 KUumlMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 618
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Trifordquo na seccedilatildeo em que defende o cumprimento literal de profecias judaicas que esperavam
um reinado literal do Messias na terra que um homem chamado Joatildeo um dos apoacutestolos de
Cristo ldquonuma revelaccedilatildeo que lhe foi feita profetizou que os que tiverem acreditado em nosso
Cristo passaratildeo mil anos em Jerusaleacutemrdquo (Diaacutelogo com Trifo 814) Nos seus termos ele fez
uma referecircncia ao mais tradicional ciacuterculo de disciacutepulos de Jesus descrito regularmente
como ldquoos doze apoacutestolosrdquo Os Evangelhos canocircnicos (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo)
descrevem Jesus durante sua atividade religiosa pela Palestina cercado de um grupo de
disciacutepulos que o acompanhava a todos os lugares O Evangelho de Marcos o mais antigo
dos quatro escrito no final da deacutecada de 60 do seacuteculo I69 relaciona os seguintes nomes neste
ciacuterculo de seguidores Simatildeo Pedro Tiago e Joatildeo filhos de Zebedeu Andreacute Filipe
Bartolomeu Mateus Tomeacute Tiago filho de Alfeu Tadeu Simatildeo o cananeu e Judas
Iscariotes (Marcos 316-19) Aparentemente entatildeo Justino entendeu que o ldquoJoatildeordquo
mencionado no iniacutecio do Apocalipse era o mesmo ldquoJoatildeordquo dos primoacuterdios do movimento de
Jesus um dos seus disciacutepulos originais
Irineu fez o mesmo que Justino em torno de 180 e natildeo soacute ligou o Apocalipse ao
filho de Zebedeu como tambeacutem ao quarto Evangelho canocircnico conhecido como Evangelho
de Joatildeo (Contra as Heresias V30) Apesar de bispo na cidade de Leon na Gaacutelia ele passou
parte da infacircncia em Esmirna na Aacutesia outra das sete cidades do Apocalipse (Apocalipse
28-11)
Autores antigos como Hipolito de Roma (170-236) Tertuliano de Cartago (160-220)
e Origenes de Alexandria (morreu em 254) seguiram Irineu na opiniatildeo de que o Apocalipse
e o Evangelho de Joatildeo foram escritos pela mesma pessoa um dos disciacutepulos diretos de Jesus
o filho de Zebedeu70
No seacuteculo III entretanto Gaio um presbiacutetero da igreja de Roma promoveu forte
criacutetica contra o Apocalipse Na base deste ataque estava uma oposiccedilatildeo ao movimento
montanista Como Montano e seus seguidores eram fervorosos leitores do Apocalipse Gaio
entendeu que o livro precisava ser totalmente rejeitado pelas igrejas Ele argumentou entatildeo
que a obra natildeo era nem do apoacutestolo Joatildeo nem do presbiacutetero Joatildeo mas de um homem
chamado Cerinto Sua criacutetica foi registrada por Euseacutebio
No entanto tambeacutem Cerinto por meio de revelaccedilotildees que diz serem escritas
por um grande apoacutestolo apresenta milagres com a mentira de que lhe
69 KUumlMMEL op cit p 117 70 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The Westminster
Press 1984 p 26
30
teriam sido mostradas por ministeacuterios dos anjos e diz que depois da
ressurreiccedilatildeo o reino de Cristo seraacute terrestre e que novamente a carne que
habitaraacute em Jerusaleacutem seraacute escrava de paixotildees e prazeres Como inimigo
das Escrituras de Deus e querendo fazer errar diz que haveraacute um nuacutemero
de mil anos de festa nupcial (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XVIII 2)
Entretanto tanto a sugestatildeo de Justino e Irineu quanto a de Gaio se mostram fraacutegeis
A relaccedilatildeo do Apocalipse com um disciacutepulo direto de Jesus natildeo encontra eco dentro do
proacuteprio livro O autor se autodenomina realmente Joatildeo mas natildeo declara viacutenculo algum com
Zebedeu com um apoacutestolo ou com qualquer outro disciacutepulo de Jesus dos tempos iniciais
Se as doze pedras mencionadas na descriccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 2119-21)
evocam realmente os doze apoacutestolos como Adela Collins argumenta71 isso indicaria que os
apoacutestolos no tempo do Apocalipse jaacute haviam alcanccedilado um alto e elevado status dentro das
comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da feacute e base para a existecircncia das
igrejas Mas nada sugere que o autor se veja entre estes Os indiacutecios indicam que os apoacutestolos
eram figuras do seu passado
Nesta mesma linha se os apoacutestolos eram figuras tatildeo importantes para as igrejas e o
livro fosse uma obra pseudocircnima escrita por uma figura histoacuterica de nome Cerinto mas
atribuiacuteda retroativamente ex eventu a um grande liacuteder do passado esperava-se que o
Apocalipse contivesse viacutenculos mais expliacutecitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de
Nazareacute Mas natildeo haacute qualquer elemento no livro que pudesse levar os primeiros leitores a
fazer essa identificaccedilatildeo a natildeo ser a curta auto-apresentaccedilatildeo do autor homocircnima de um dos
antigos disciacutepulos O proacuteprio Jesus que aparece no livro estaacute bem distante daquele que se
movimenta nos Evangelhos Eacute uma figura exaltada e glorificada descrita por meio de
categorias angelicais ou divinas (Apocalipse 113-18) A ausecircncia de traccedilos ou indiacutecios de
natureza biograacutefica inviabiliza a hipoacutetese do presbiacutetero Gaio de que a obra seja pseudocircnima
O vinculo do Apocalipse com o Evangelho de Joatildeo eacute igualmente fraacutegil Dionisio um
bispo de Alexandria na segunda metade do seacuteculo III apesar de natildeo simpatizar em linhas
gerais com o Apocalipse rejeitou o ataque que Gaio e outros fizeram agrave obra Ele argumentou
que Apocalipse e Evangelho satildeo obras muito diferentes para terem sido escritas pela mesma
pessoa Sua conclusatildeo registrada por Euseacutebio foi no sentido de que os textos satildeo de autoria
diferente
Portanto natildeo contradirei que ele se chamava Joatildeo e que este livro eacute de
Joatildeo Porque inclusive estou de acordo de que eacute obra de um homem santo
e inspirado por Deus Mas eu natildeo poderia concordar facilmente em que
71 Idem p 27
31
este fosse o apoacutestolo o filho de Zebedeu e irmatildeo de Tiago de quem eacute o
Evangelho intitulado de Joatildeo e a carta catoacutelica (Histoacuteria Eclesiaacutestica VII
XXV 7)
Em funccedilatildeo de um grande nuacutemero de pessoas possuir o mesmo nome teria sempre a
possibilidade de equiacutevocos de identificaccedilatildeo Alem disso havia a tendecircncia de associar livros
sagrados a grandes figuras do passado Este era um criteacuterio comum para que estas obras
fossem aceitas e usadas nas igrejas ao lado das Escrituras judaicas
Dionisio ainda argumentou que deveria haver outro liacuteder cristatildeo de nome Joatildeo na
Aacutesia Ele faz referencia neste sentido a dois tuacutemulos ainda encontrados nos seus dias na
cidade de Eacutefeso dedicados a liacutederes antigos que levavam este nome Euseacutebio resumiu esta
perspectiva
De forma que tambeacutem isto demonstra que eacute verdade a histoacuteria dos que
dizem que na Aacutesia houve dois com este mesmo nome e em Eacutefeso dois
sepulcros dos quais ainda hoje se afirma que satildeo um e outro de Joatildeo Eacute
necessaacuterio prestar atenccedilatildeo a estes fatos porque eacute provaacutevel que fosse o
segundo ndash se natildeo se prefere o primeiro ndash o que viu a Revelaccedilatildeo
(Apocalipse) que corre sob o nome de Joatildeo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III
XXXIX 6)
Eacute difiacutecil entretanto relacionar o Joatildeo do Apocalipse com qualquer tiacutetulo eclesiaacutestico
Ele natildeo usa epiacutetetos conhecidos do periacuteodo como apoacutestolo evangelista mestre bispo
presbiacutetero ou diaacutecono Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas e
possivelmente ele as conhecia ele se recusou a usaacute-las Essa recusa pode indicar que ele natildeo
se enxergava nesses tiacutetulos ou entatildeo que as comunidades que receberam o Apocalipse natildeo
o reconheciam nos mesmos
Desta forma ainda assumindo que o nome que aparece no iniacutecio do livro eacute uma
referecircncia autecircntica (natildeo-pseudocircnima) a seu autor e que ele se chamava realmente Joatildeo as
evidecircncias externas acumuladas sobre ele natildeo representam muito O Joatildeo do Apocalipse natildeo
parece ser entatildeo o filho de Zebedeu um dos disciacutepulos originais de Jesus ou o autor do
Evangelho de Joatildeo ou uma figura antiga das igrejas conhecida como Joatildeo o presbiacutetero
Possivelmente foi a tendecircncia das igrejas em identificar os autores das obras
sagradas como apoacutestolos de Jesus e o fato do livro identificar seu autor com um ldquoJoatildeordquo que
levou Justino Irineu e os outros antigos escritores cristatildeos a associaacute-lo com o filho de
Zebedeu ou com o autor do quarto Evangelho O que parece eacute que o livro foi escrito por um
homem chamado Joatildeo que se tornou significativo para a histoacuteria do cristianismo pela
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produccedilatildeo de apenas um livro livro esse que se constitui entatildeo na fonte mais expressiva
para indicar outros aspectos de sua identidade e seu lugar social
Aleacutem das observaccedilotildees anteriores de que Joatildeo era bem conhecido de sua audiecircncia
um segundo elemento interno a respeito de sua identidade social eacute a ligaccedilatildeo com uma
atividade conhecida como ldquoprofeciardquo Joatildeo natildeo se denomina explicitamente profeta mas o
faz implicitamente em vaacuterios lugares do Apocalipse Ele intitula sua mensagem de profecia
(Apocalipse 13 227 10 18) e narra uma experiecircncia de vocaccedilatildeo de forma muito
semelhante a profetas da tradiccedilatildeo judaica (Isaiacuteas 61-13 Jeremias 14-10 Ezequiel 28-333)
Por isso Lohse argumenta que Joatildeo foi um ldquoprofeta dos primoacuterdios do cristianismo que
atuou nas comunidades da Aacutesia com grande vigorrdquo72 Assim tambeacutem entende Bovon para
quem Joatildeo como profeta apresenta-se como um instrumento da revelaccedilatildeo divina e uma voz
do Cristo exaltado73
Estudiosos tendem a relacionar o fenocircmeno da profecia no movimento de Jesus ateacute
o inicio do segundo seacuteculo com a atividade de lideranccedila itinerante principalmente como
encontrada nas proviacutencias da Aacutesia Menor74 As comunidades locais eram dirigidas por
liacutederes assentados no meio delas que moravam nas cidades e dirigiam as congregaccedilotildees
Documentos do movimento de Jesus do iniacutecio do segundo seacuteculo denominavam estes liacutederes
de epiacutescopos presbiacuteteros e diaacuteconos (1Timoacuteteo 31-13 Tito 15-9) Do outro lado existiam
liacutederes itinerantes que viajavam de igreja em igreja de um lugar para outro normalmente
denominados de profetas apoacutestolos evangelistas ou mestres Estas distinccedilotildees natildeo eram tatildeo
riacutegidas jaacute que liacutederes locais poderiam viajar enquanto liacutederes itinerantes poderiam parar
durante certo tempo em uma igreja Um liacuteder local poderia ser itinerante num momento o
itinerante poderia eventualmente residir numa cidade Mesmo assim as definiccedilotildees
funcionais ou carismaacuteticas podem iluminar a atividade de Joatildeo como profeta na regiatildeo da
Aacutesia No Apocalipse ele faz referecircncia a sete igrejas em sete cidades (Apocalipse 111) o
que indica que ele transitava por elas O conteuacutedo das cartas do Apocalipse (Apocalipse 2-
3) sugere tambeacutem que as igrejas o conheciam o que aponta para uma atividade religiosa
mais ampla do que uma especiacutefica igreja local
Por ser profeta e profeta itinerante Joatildeo pode ter abraccedilado um estilo de vida asceacutetico
como o seu livro parece sugerir (Apocalipse 141-5) Este tipo de vida seria derivado do
72 LOHSE Eduard Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Leopoldo Sinodal 1985 p 249 73 BOVON Franccedilois Johnrsquos Self-presentation in Revelation 19-10 Catholic Biblical Quaterly Washington
n 62 p 693-700 2000 p 700 74 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 34
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formato da atividade religiosa que Jesus desenvolveu com os seus disciacutepulos Nos
Evangelhos eles satildeo vistos constantemente viajando de lugar para lugar sem casa fixa
Ditos dos Evangelhos (Marcos 820 Mateus 1023 entre outros) ainda reforccedilam essa postura
que foi chamada por Gerd Theissen de carismatismo itinerante com a expectativa de uma
vida sem paacutetria sem famiacutelia sem posses e sem proteccedilatildeo75
Viajar de lugar para lugar rompia com os laccedilos locais de estabilidade social Os
disciacutepulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida asceacutetica e mesmo apoacutes a morte do
fundador do movimento alguns continuaram na vida andarilha Talvez seja por isso que o
autor do Didaqueacute no iniacutecio do seacuteculo II chamou a itineracircncia de ldquomodo de vida do Senhorrdquo
(Didaqueacute 118) Aleacutem dos laccedilos sociais os andarilhos tambeacutem renunciavam agrave famiacutelia Um
logia de Jesus encontrado no Evangelho de Marcos aponta neste sentido
Tornou Jesus Em verdade vos digo que ningueacutem haacute que tenha deixado
casa ou irmatildeos ou irmatildes ou matildee ou pai ou filhos ou campos por amor
de mim e por amor do evangelho que natildeo receba jaacute no presente o cecircntuplo
de casas irmatildeos irmatildes matildees filhos e campos com perseguiccedilotildees e no
mundo por vir a vida eterna (Marcos 1029-30)
Poucos dos missinaacuterios destacados pelo autor dos Atos dos Apoacutestolos satildeo descritos
em atividade familiar Natildeo haacute qualquer referecircncia agrave famiacutelia de Paulo Estes itinerantes
renunciavam tambeacutem a propriedades ou recursos financeiros o que dava ao pregador
condiccedilotildees de fazer a criacutetica contra a riqueza Quem perambulava pela Palestina Siacuteria e Aacutesia
Menor em pobreza demonstrativa poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em
descreacutedito76 Por isso o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades de Jesus
localmente constituiacutedas para ter uma porccedilatildeo miacutenima para sobreviver Isso lhes parecia bem
como aos olhos das comunidades locais uma demonstraccedilatildeo da bondade divina que natildeo
deixava o itinerante carismaacutetico morrer de fome ou sede
De qualquer forma a praacutetica do carismatismo itinerante demandava abraccedilar um estilo
radical de vida religiosa com niacutetidas consequecircncias asceacuteticas e combinava amplamente com
uma perspectiva escatoloacutegica de fim iminente da histoacuteria como provavelmente pregada por
Jesus77
75 THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op cit p 18 76 Na anaacutelise da atividade carismaacutetica itinerante cf THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op
cit p 16-22 77 ALLISON Dale C Jesus of Nazareth Millenarian prophet Minneapolis Fortress Press 1998 p 60-61
34
Aleacutem do seu papel religioso como profeta autores sugerem que Joatildeo era judeu por
nascimento um nativo da Palestina onde passou um bom tempo de sua vida78 Haacute
possibilidade de ele ter residido na Judeacuteia ateacute a instauraccedilatildeo da guerra contra os romanos (66-
70) que terminou com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico79 Esse tipo de
identificaccedilatildeo ilumina a forma como Joatildeo compreendia a relaccedilatildeo entre Israel e Igreja Ele natildeo
entendia o movimento de Jesus e suas comunidades como uma religiatildeo nova e independente
do grande e plural fenocircmeno religioso que os estudiosos chamam de Judaiacutesmo80
Joatildeo reinvidica o uso do termo ldquojudeurdquo (Ἰουδαίος) para os seguidores de Jesus
(Apocalipse 29 39) e demonstra tensatildeo com sinagogas locais que poderia indiciar mais
uma crise interna do que um conflito entre religiotildees distintas Seu uso das Escrituras judaicas
o grego semitizante do Apocalipse81 o domiacutenio da tradiccedilatildeo religiosa do periacuteodo do Segundo
Templo como apocalipses e oraacuteculos indicam uma pessoa fortemente envolvida com as
tradiccedilotildees do antigo Israel Muitas de suas perspectivas sociais e poliacuteticas poderiam derivar
de determinadas tradiccedilotildees judaicas mais do que de correntes especiacuteficas do movimento de
Jesus
Mesmo assim um aspecto significativo da identidade social do autor do Apocalipse
tem relaccedilatildeo justamente com essa ldquoseita judaicardquo O Judaiacutesmo no periacuteodo que vai da ascenccedilatildeo
hasmoneana (167 aC) ateacute pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 dC) abarcava
diversos partidos e grupos religiosos82 Um destes grupos teve iniacutecio com a atuaccedilatildeo da pessoa
de Jesus de Nazareacute entre 27-30 inicialmente na Galileacuteia para terminar com sua morte em
Jerusaleacutem O autor do Apocalipse afirma ser seguidor de Jesus (Apocalipse 19) de quem
recebeu a sua revelaccedilatildeo
Apesar de choques eventuais entre os grupos eles se reconheciam mutuamente como
herdeiros das mesmas tradiccedilotildees religiosas antigas das alianccedilas dos patriarcas das Escrituras
judaicas e da Lei de Moiseacutes Provavelmente Joatildeo se via como um judeu e membro do
fenocircmeno religioso judaico83 O mesmo poderia ser afirmado a respeito das comunidades
78 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 p 276 79 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 47 80 Sobre a pluralidade de perspectivas no interior do Judaiacutesmo cf BAUMGARTEN Albert I Ancient Jewish
Sectarianism Judaism Genebra v 47 n 4 p 387-403 1998 81 Para uma discussatildeo da linguagem do Apocalipse sua sintaxe e seu vocabulaacuterio cf CALLAHAN Allen
Dwight The Language of Apocalypse Harvad Theological Review Cambridge v 88 n 4 p 453-470 1995 82 Para uma anaacutelise ampla sobre a questatildeo da identidade judaica na antiguidade cf GOODMAN Martin
Judaism in the Roman World collected essays Leiden Brill 2007 p 21-32 83 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 277
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que receberam o Apocalipse Elas faziam parte de um movimento que ainda se entende
judaico84 apesar da identificaccedilatildeo com um grupo especiacutefico dentro do Judaiacutesmo Eacute possiacutevel
denomina-los mesmo como judeus que reconhecem Jesus como o messias
Duas deacutecadas depois na mesma regiatildeo do Apocalipse entretanto Inaacutecio de
Antioquia falaria em suas cartas de ldquoCristianismordquo () e descreveraacute seus membros
como ldquocristatildeosrdquo () o que indica que o movimento naquele periacuteodo e na sua
expressatildeo asiaacutetica jaacute tem formulado uma identidade autocircnoma em relaccedilatildeo ao Judaismo Nos
termos de Inaacutecio ldquoeacute melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaiacutesmo
de incircuncisordquo (Carta aos Filipenses 61)85
12 A data do Apocalipse
O Apocalipse de Joatildeo eacute uma obra escrita no chamado grego koinecirc liacutengua comum
aos territoacuterios do antigo Impeacuterio de Alexandre o Grande A obra de grande porte para os
padrotildees do periacuteodo comeccedila desta forma ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para
mostrar aos servos dele as coisas que devem acontecer em breve e enviou-a sinalizando
atraveacutes do seu anjo para o seu servo Joatildeordquo86
Como boa parte das fontes antigas a obra natildeo tem tiacutetulo ou marca de identificaccedilatildeo
Mas durante seu uso logo passou a ser identificada por meio da sua primeira palavra
apocalipse transliteraccedilatildeo simples de ποκάλυψις O termo pode ser traduzido como
ldquorevelaccedilatildeordquo87
No momento de definir a data da obra o testemunho de Irineu eacute novamente invocado
pelos estudiosos Ele registrou que ldquoo Apocalipse foi visto natildeo haacute muito tempo em nossa
proacutepria geraccedilatildeo no fim do reinado de Domicianordquo (Contra as Heresias 5303) Grande parte
dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definiccedilatildeo entendendo que mesmo
que o testemunho de Irineu quanto ao nome do autor natildeo seja confiaacutevel a data ainda pode
84 Enquanto categoria religiosa e natildeo eacutetnica jaacute que natildeo era preciso ser etnicamente judeu para fazer parte do
Judaiacutesmo 85 Noutro lugar ldquoEacute preciso natildeo soacute levar o nome de cristatildeo mas ser de fatordquo (Carta aos Magneacutesios 4) A respeito
do cristianismo e judaiacutesmo em oposiccedilatildeo nas cartas de Inaacutecio cf COHEN Shaye J D Judaism without
Circumcision and ldquoJudaismrdquo without ldquoCircumcisionrdquo in Ignatius Harvard Theological Review Cambridge v
95 n 4 p 395-415 2002 86 ldquoἈποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ ἣν ἔδωκεν αὐτῷ ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐν τάχει καὶ
ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃrdquo (Apocalipse 11) 87 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 67
36
ser mantida para o fim do reinado de Domiciano em meados de 95-9688 Segundo Adela
Yarbro Colllins natildeo existe nenhuma boa razatildeo para duvidar da sugestatildeo de Irineu quanto agrave
eacutepoca do Apocalipse89 Ela pressupotildee neste caso que a obra na sua forma atual eacute o
resultado de um uacutenico autor O Apocalipse apresenta uso de fontes tradicionais ou literaacuterias
mas ainda possui uma unidade coerente subjacente a uma uacutenica autoria Nos termos de
Collins ldquoa unidade de estilo e a cuidadosa complexa e deliberada estrutura do livro como
um todo torna supeacuterflua a hipoacutetese da compilaccedilatildeo de extensas fontes escritas ou uma seacuterie
de ediccedilotildeesrdquo90
Vitorino de Pettau morto em 303 escreveu o mais antigo comentaacuterio completo do
Apocalipse a sobreviver Ao comentar a passagem do Apocalipse em que Joatildeo come um
livro (Apocalipse 103) ele escreveu
Joatildeo teve esta visatildeo quando estava na ilha de Patmos condenado agraves minas
por Cesar Domiciano Parece pois que Joatildeo escreveu dali o Apocalipse
quando jaacute era um anciatildeo Depois de seus sofrimentos quando foi
assassinado Domiciano e anulados todos os seus decretos foi Joatildeo
liberado das minas e transmitiu este mesmo Apocalipse que recebeu do
Senhor (Comentaacuterio ao Apocalipse 103)
Euseacutebio de Cesareacuteia faz comentaacuterio parecido com o de Vitorino ldquoEacute tradiccedilatildeo que
neste tempo o apoacutestolo e evangelista Joatildeo que ainda vivia foi condenado a habitar a ilha
de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deusrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III VIII 1)
Ainda ldquoFoi entatildeo que o apoacutestolo Joatildeo voltando de seu desterro na ilha retirou-se para viver
em Eacutefeso segundo relata a tradiccedilatildeo de nossos antigosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XX 9)
Esses dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante o reino de
Domiciano Ambos acrescentam que Joatildeo foi banido para Patmos pelo Imperador tendo
sido liberado apoacutes a morte do mesmo A tradiccedilatildeo neles preservada do desterro de Joatildeo ou
de Patmos como uma colocircnia penal entretanto natildeo eacute apoiada pela historiografia91 Mesmo
assim os testemunhos de Vitorino e de Euseacutebio satildeo importantes para definir a data do
Apocalipse mais ateacute do que para descrever a situaccedilatildeo em que isso se deu
Em termos de evidecircncia interna Adella Collins indicou alguns elementos que
reforccedilam a hipoacutetese da deacutecada de 90 Um primeiro pode ser encontrado no uso muito
especiacutefico que o Apocalipse faz do nome Babilocircnia (Apocalipse 148 1619 175 182
88 Entre outros KUumlMMEL op cit p 613-617 89 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57 90 Idem p 54 91 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University
Press 1990
37
10 21) Eacute muito difiacutecil que o autor da obra esteja fazendo referecircncia a antiga cidade da
Mesopotacircmia presente nas tradiccedilotildees literaacuterias judaicas por ter destruiacutedo o reino de Judaacute em
586 aC derrubado a capital Jerusaleacutem e o templo de Salomatildeo Em Apocalipse 17 Joatildeo
descreve Babilocircnia como uma mulher e pelo menos duas marcas na fala do anjo indicam
que a mulher representa a cidade de Roma O versiacuteculo nove descreve-a assentada sobre sete
montanhas ldquoAqui estaacute o sentido da sabedoria as sete cabeccedilas satildeo sete montanhas onde a
mulher estaacute assentada Tambeacutem satildeo sete reisrdquo (Apocalipse 179) O versiacuteculo 18 a apresenta
como uma cidade ldquoque tem poder sobre os reis da terrardquo Estas indicaccedilotildees para uma
audiecircncia da Aacutesia no final do primeiro seacuteculo indicariam que Babilocircnia era um siacutembolo para
a cidade de Roma A capital do Impeacuterio aparece frequentemente como a cidade das sete
montanhas (Capitoacutelio Quirinal Viminal Esquilino Ceacutelio Aventino e Palatino) e era a
cidade mais importante politicamente do Mediterracircneo
E o que essa associaccedilatildeo entre Babilocircnia e Roma poderia indicar em termos de dataccedilatildeo
para o Apocalipse A maioria das ocorrecircncias de Babilocircnia como nome simboacutelico para
Roma na literatura judaica estaacute em 4Esdras 2Apocalipse de Baruque e no quinto livro dos
Oraculos Sibilinos Nestas obras Roma eacute chamada de Babilocircnia porque ela como a antiga
cidade mesopotacircmica destruiu Jerusaleacutem e o Templo Ou seja o nome simboacutelico de Roma
Babilocircnia eacute forte indiacutecio de que o Apocalipse foi escrito apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e o
Templo no ano 7092
Aleacutem do uso simboacutelico do termo Babilocircnia para descrever Roma tiacutepico de obras
judaicas posteriores ao ano 70 Collins aponta outros elementos internos
- A lenda do retorno de Nero em Apocalipse 13 e 17 principalmente a referecircncia agraves
cabeccedilas da besta (Apocalipse 179-11) reforccedila a hipoacutetese de que o Apocalipse eacute posterior agrave
morte de Nero em 68 dC e ao aparecimento da tradiccedilatildeo de que ele retornaria para retomar
o poder93
- A concepccedilatildeo de Joatildeo de que a comunidade de Jesus eacute o novo templo de Deus bem
como a profecia de que na Nova Jerusaleacutem natildeo haveria mais templos indicariam que o
Apocalipse eacute posterior agrave destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem (70 dC)94
92 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57-58 PAGELS Elaine The Social History of
Satan Part Three John of Patmos and Ignatius of Antioch Contrasting Visions of ldquoGods Peoplerdquo Harvad
Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006 p 494 93 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 58-64 94 Idem p 64-69
38
Outros elementos como os indiacutecios de conflitos com sinagogas locais em Esmirna e
Filadeacutelfia as referecircncias a perseguiccedilotildees por parte do Impeacuterio Romano ou a crise com a
instituiccedilatildeo do Culto Imperial satildeo muito vagos para precisar melhor a data do Apocalipse
A partir dos dados internos muito provavelmente o livro eacute posterior ao ano 70 e agrave
destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico Se a hipoacutetese de que o autor saiu da Palestina
em funccedilatildeo do conflito for autecircntica era preciso algum tempo para que ele consolidasse uma
atuaccedilatildeo profeacutetica fora da sua terra na Aacutesia Menor e especificamente na proviacutencia
proconsular da Aacutesia Dado o conhecimento que Papias teve da obra seria preciso algum
tempo entre sua produccedilatildeo e circulaccedilatildeo entre as igrejas Isso nos leva a tomar o testemunho
de Irineu realmente como a hipoacutetese mais provaacutevel localizando o livro no fim do governo
do Imperador Titus Flavius Domitianus assassinado no dia 18 de setembro de 96 Segundo
o bispo de Leon (Contra as Heresias 5303) foi em algum momento anterior agrave morte do
Imperador que Joatildeo de Patmos escreveu o Apocalipse
13 O propoacutesito do Apocalipse
Se aceitarmos as indicaccedilotildees do Apocalipse ele foi escrito para ser encaminhado para
sete igrejas da proviacutencia proconsular da Aacutesia ldquoAchei-me em espiacuterito em o dia do Senhor e
ouvi atraacutes de mim uma voz grande como de trombeta dizendo O que vecircs escreve em livro
e envia para as sete igrejasrdquo (Apocalipse 110-11)
As cartas em questatildeo aparecem um pouco depois na estrutura da obra
- Apocalipse 21-7 Carta agrave Igreja em Eacutefeso
- Apocalipse 28-11 Carta agrave Igreja em Esmirna
- Apocalipse 212-17 Carta agrave Igreja em Peacutergamo
- Apocalipse 218-29 Carta agrave Igreja em Tiatira
- Apocalipse 31-6 Carta agrave Igreja em Sardes
- Apocalipse 37-13 Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia
- Apocalipse 314-22 Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia
As cartas escritas como oraacuteculos profeacuteticos apresentam terceirizados o remetente e
o destinataacuterio Concretamente eacute o profeta Joatildeo que escreve contudo retoricamente satildeo
palavras diretas do Cristo exaltado entre os candelabros (Apocalipse 113) Eacute uma mensagem
39
para os membros das igrejas mas dirigidas aos anjos que estariam ali presentes (Apocalipse
21 28 212 218 31 37 314) Joatildeo se coloca como o intermediaacuterio entre duas
personalidades celestiais Mesmo que algueacutem se recuse a ouvi-lo natildeo poderia deixar de
atender ao anjo da igreja principalmente porque a mensagem do anjo teria origem direta no
Jesus glorificado Neste sentido as cartas se tornam proclamaccedilotildees profeacuteticas do soberano
Cristo exaltado95
Esta estrateacutegia literaacuteria eacute um instrumento retoacuterico de legitimaccedilatildeo o que denuncia
algum tipo de conflito ou tensatildeo entre Joatildeo o autor e os membros das igrejas Ao usar este
esquema para atingir o seu puacuteblico o autor indica toda a dificuldade que enfrentava para se
fazer ouvir96 A agressividade do texto e as diversas ameaccedilas indicam ainda mais a forccedila
necessaacuteria para que as cartas e o livro como um todo pudessem ser recebidos Segundo
Friedrich
as sete proclamaccedilotildees satildeo semelhantes aos antigos editos reais e imperiais
na medida em que exibem normalmente e estruturalmente semelhantes
praescriptiones narrationes dispositiones e sanctiones Em termos de
conteuacutedo as narrationes e dispositiones exibem caracteriacutesticas da profecia
do cristianismo das origens influenciada pela profecia do Antigo
Testamento97
As cartas indicam dois tipos baacutesicos de tensatildeo Internamente haacute algum tipo de
conflito entre Joatildeo e a lideranccedila de algumas igrejas e algum tipo de crise com sinagogas
locais98 Externamente a sociedade urbana da aacutesia parece representar algum desconforto
especialmente em funccedilatildeo das demandas relacionadas com as interaccedilotildees sociais
Para as tensotildees internas entre os liacutederes das igrejas Paul Duff sugeriu a seguinte
tipologia99
95 Conferir neste sentido FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria
Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 96 RUIZ Jean-Pierre Hearing and seeing but not saying a rhetoric de authority in Revelation 104 and 2
Corinthians 124 In BARR David L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of
Revelation Atlanta Society of Biclical Literature 2006 p 91-111 p 93 97 FRIEDRICH Nestor Paulo O edito-profeacutetico para a Igreja em Tiatira (Apocalipse 218-29) uma anaacutelise
literaacuteria soacutecio-poliacutetica e teoloacutegica Tese (Doutor em Teologia) ndash Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia Escola
Superior de Teologia Satildeo Leopoldo 2000 p 60 98 DUFF Paul B ldquoThe synagogue of Satanrdquo Crisis mongering and the Apocalypse of John In BARR David
L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biclical
Literature 2006 p 164-165 p 148 99 DUFF Paul B Who Rides the Beast Prophetic Rivalry and the Rhetoric of Crisis in the Churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 p 25
40
- Igrejas divididas entre a lideranccedila de Joatildeo e alguma outra lideranccedila local Eacutefeso
Peacutergamo Tiatira Para estas igrejas Joatildeo fornece nas respectivas cartas uma elaboraccedilatildeo dos
problemas da comunidade Consistiriam no principal foco do Apocalipse
- Igrejas onde Joatildeo tem pouca ou mesmo nenhuma influecircncia Sardes e Laodiceacuteia Eacute
provaacutevel que ele tenha aliados em potencial nessas comunidades mas estatildeo em nuacutemero
muito pequeno Por isso o seu tom menos conciliador Para elas o autor natildeo fornece
nenhuma elaboraccedilatildeo de problemas e pouco se tiver algum encorajamento
- Igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo Esmirna e Filadeacutelfia Natildeo haacute chamada ao
arrependimento ou qualquer tipo de ameaccedila ao mesmo tempo em que recebem fortes
louvores Satildeo igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo e ao tipo de mensagem que ele defendia
Com relaccedilatildeo aos membros das sinagogas locais Joatildeo assim se expressou ldquose dizem
judeus mas natildeo o satildeordquo Para o autor do Apocalipse eles natildeo eram verdadeiros judeus mas
ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo (Apocalipse 29 39)100 O professor Nogueira argumenta que essa
crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga estar ldquoenvolvida em um processo
sincreacutetico de interaccedilatildeo com os gentios Eles falavam grego expressavam suas crenccedilas e
praacuteticas religiosas com categorias helenistas e estavam em maior ou menor grau envolvidos
na vida puacuteblica de suas cidadesrdquo101
O Apocalipse fala da morte de Antipas (Apocalipse 213) que pode ter ocorrido em
funccedilatildeo de algum conflito com a sociedade O Apocalipse apresenta a expectativa que o
mesmo fenocircmeno que promoveu a morte deste membro do movimento de Jesus proveraacute
dentro em breve a prisatildeo e a ruiacutena de muitos outros (Apocalipse 210)102 Para Thompson
ldquoa descriccedilatildeo do visionaacuterio de guerra e conflito contem suficientes referecircncias e alusotildees a
Roma e ao culto imperial para concluir que o visionaacuterio esperava tribulaccedilatildeo e opressatildeo de
instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas na Aacutesiardquo103 Como Prigent enfatiza ldquoo autor de
100 FRANKFURTER David Jews or Not Reconstructing the ldquoOtherrdquo in Rev 29 and 39 Harvard
Theological Review Cambridge v 4 n 94 p 403-425 2001 Duff argumenta que o comentaacuterio negativo de
Joatildeo sobre as sinagogas foi feito para exacerbar a tensatildeo entre as igrejas e as sinagogas Ao promover inimizade
contra as sinagogas e medo de hostilidade de judeus locais Joatildeo desejava desencorajar aliados iacutentimos
(membros das igrejas de Esmirna e Filadeacutelfia) de apostastar para as sinagogas Cf DUFF Paul B ldquoThe
synagogue of Satanrdquo op cit p 148 101 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza Experiecircncia religiosa e criacutetica social no cristianismo primitivo Satildeo
Paulo Paulinas p 137 102 HOWARD-BROOK Wes GWYTHER Anthony Desmascarando o imperialismo interpretaccedilatildeo do
Apocalipse ontem e hoje Satildeo Paulo Paulus 2003 p 120-155 103 THOMPSON Leonard A Sociological Analysis of Tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 36 p 147-174 1986 p 148
41
Apocalipse afirma com grande energia que o Impeacuterio estaacute a serviccedilo de Satatilde comprovado
pela idolatria que embasa todo o sistemardquo104
Durante boa parte da histoacuteria da leitura do Apocalipse105 a descriccedilatildeo de mundo no
seu livro cheia de conflitos e violecircncia era tomada como equivalente da situaccedilatildeo concreta
de vida do autor e de suas comunidades O contexto histoacuterico era precisamente como
transparecia atraveacutes das imagens do livro106 Foi somente a partir de meados do seacuteculo XX
quando alguns estudiosos deixaram de assumir que o mundo do texto de Apocalipse
espelhava diretamente o contexto histoacuterico em torno do mesmo Neste caso eles se voltaram
para oferecer sugestotildees de como conciliar e relacionar a tensatildeo entre o mundo do Apocalipse
e o mundo concreto das comunidades de seguidores de Jesus no final do primeiro seacuteculo na
Aacutesia romana
Uma destas pesquisadoras Fiorenza sugeriu que as imagens que o livro constroacutei
foram produzidas como instrumentos retoacutericos de persuasatildeo Ela entende que o visionaacuterio
parece estar realmente convencido de que o Impeacuterio Romano eacute uma ameaccedila para seguidores
de Jesus e escreve para persuadir sua audiecircncia a aceitar sua leitura da realidade
empurrando-a para uma determinada posiccedilatildeo frente ao contexto social em que viviam107
Adela Collins por sua vez argumentou que Joatildeo escreveu em resposta ao conflito
entre a feacute em Jesus como Joatildeo a entendia e a situaccedilatildeo social como ele a percebia Para esta
autora o autor realiza seu propoacutesito por meio da construccedilatildeo de um universo simboacutelico com
valores terapecircuticos Diante do Apocalipse leitores e ouvintes alcanccedilariam uma catarse de
medo e ressentimento e uma internalizaccedilatildeo de demandas para sustentar-se agrave parte de uma
ordem social opositora por meio da praacutetica de abstinecircncia sexual pobreza e martiacuterio108
Outro pesquisador Steven Friesen definiu o Apocalipse de Joatildeo como uma obra
engajada na construccedilatildeo de um mundo simboacutelico com o objetivo de produzir resistecircncia
simboacutelica Enquanto a ideologia imperial construiacutea seus mitos e os disseminava para afirmar
104 PRIGENT P O Apocalipse In COTHENET E et al Os escritos de Satildeo Joatildeo e a Epiacutestola aos Hebreus
Satildeo Paulo Paulinas 1998 p 229-306 p 255 105 Para a histoacuteria da recepccedilatildeo do livro conferir WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse
Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 KOVACS Judith
ROWLAND Christopher C Revelation Oxford Blackwell Publishing 2004 KYRTATAS Dimitris The
Transformations of the Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text
The Writing of Ancient History London Duckworth 1986 p 144-162 106 Conferir neste sentido o comentaacuterio de Euseacutebio de Cesareacuteia ldquoDomiciano deu provas de uma grande
crueldade para com muitos [] e foi o segundo a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutesrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica
III VII 1) 107 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Apocalipsis Visioacuten de un mundo justo Estella Editorial Verbo Divino
1997 p 58 108 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsis op cit p 127-131
42
que o Imperador era o rei dos reis Joatildeo ressignifica estes mitos para afirmar que a autoridade
uacuteltima sobre o mundo proveacutem no fim de fora mesmo deste mundo109 Eacute um conflito de
mundos construiacutedos de siacutembolos de identidades de ideologias110
Em termos concretos entretanto Domiciano natildeo parece ter instigado uma
perseguiccedilatildeo oficial aos seguidores de Jesus Existe pouca evidecircncia de que ele tenha
perseguido diretamente as igrejas e como insistiu Thompson nenhuma evidecircncia de que ele
tenha banido Joatildeo para a Ilha de Patmos111
Isso natildeo significa que conflitos locais natildeo pudessem se manifestar dentro de cada
cidade da Aacutesia conflitos estes que poderiam ter ligaccedilatildeo com o relacionamento entre os
membros do movimento de Jesus e a instituiccedilatildeo do culto imperial112 Possivelmente ao falar
do culto agraves bestas Joatildeo entra em polecircmica com a praacutetica do culto ao Imperador no contexto
urbano da proviacutencia onde a primeira Besta (Apocalipse 131-10) representa o Impeacuterio
Romano ou o proacuteprio Imperador e a segunda Besta (Apocalipse 1311-18) eacute possivelmente
o sacerdote do culto imperial113 Acompanhar a posiccedilatildeo do Apocalipse neste sentido poderia
gerar suspeiccedilatildeo e hostilidade por parte da populaccedilatildeo local e causar as acusaccedilotildees subjacentes
aos processos descritos por Pliacutenio o Jovem ao Imperador Trajano pouco mais de uma deacutecada
depois de Joatildeo na proviacutencia de Bitiacutenia e Ponto vizinha das igrejas da Aacutesia (Epiacutestola
10965)
O culto imperial era uma expressatildeo de religiosidade individual e coletiva e uma
demonstraccedilatildeo de coesatildeo e ordem social e poliacutetica do Impeacuterio Para propoacutesitos imperiais o
culto ao Imperador servia como uma expressatildeo de lealdade e gratidatildeo por parte dos cidadatildeos
Pagels tenta resumir este processo Para ela anteriormente os membros do
movimento de Jesus se identificavam com os grupos judaicos ao serem expulsos desses
109 FRIESEN Steven J Myth and Symbolic Resistance in Revelation 13 Journal of Biblical Literature
Atlanta v 2 n 123 p 281-313 2004 p 281 e 311 110 FRIESEN Steven J Satanrsquos throne imperial cults and the social settings of Revelation Journal for the
Study of the New Testament Cambridge v 27 n 3 p 351-373 2005 p 352 111 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L Reading the
Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 34 DUFF Paul B ldquoThe
Synagogue of Satanrdquo op cit p 149 112 Para uma anaacutelise das distintas formas que o culto imperial poderia assumir nas diferentes regiotildees do Impeacuterio
cf SCHERRER Steven J Signs and Wonders in the Imperial Cult a New Look at a Roman Religious
Institution in the Light of Rev 1313-15 Journal of Biblical Literature Atlanta v 4 n 103 p 599-610 1984
SORDI Marta The Christians and the Roman Empire London and New York Routledge 1994 Sobre a
relaccedilatildeo das comunidades judaicas com o culto imperial conferir MCLAREN James S Jews and the Imperial
Cult from Augustus to Domitian Journal for the Study of the New Testament Cambridge n 27 p 257-278
2005 113 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p
34
43
grupos eles precisavam criar novas identidades em oposiccedilatildeo agravequeles que antes eram seus
irmatildeos Entretanto quando essas mesmas comunidades passam a ser formadas
predominantemente de natildeo-judeus agora eram excluiacutedos natildeo mais de ciacuterculos judaicos mas
dos ciacuterculos sociais que antes conviviam Era desses ciacuterculos que as ameaccedilas agora partiam
de ldquooficiais romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu lsquoateiacutesmorsquo que temiam que
pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteirasrdquo114
O cenaacuterio descrito por Pagels talvez se aplique agrave Bitiacutenia e Ponto dos tempos de Pliacutenio
mas ainda natildeo o eacute para o tempo do Apocalipse A ecircnfase na ruptura com a sociedade
encontrada no texto joanino indica que boa parte dos membros das igrejas da Aacutesia ainda
vivia suas vidas com seus vizinhos sem grandes conflitos Eacute Joatildeo que espera por tensatildeo e
crise Ele aguarda uma violenta perseguiccedilatildeo contra as comunidades para um futuro
proacuteximo115 Subjacentes aos roacutetulos da oposiccedilatildeo interna (os balamitas e nicolaiacutetas de
Peacutergamo Jezabel e seus seguidores em Tiatira e os falsos apoacutestolos de Eacutefeso) parecem estar
pessoas que ocupavam posiccedilatildeo de lideranccedila dentro das igrejas nas quais estavam inseridas
consideradas como adversaacuterias por Joatildeo O que estes liacutederes de diferentes igrejas teriam em
comum Aparentemente eles natildeo estavam de acordo quanto agrave forma de conduzir os fieacuteis
nas suas relaccedilotildees com o Impeacuterio116 Assim diante da diferenccedila de respostas existente entre
os proacuteprios liacutederes sobre a interaccedilatildeo com a sociedade Joatildeo reage com forccedila Para ele
qualquer acomodaccedilatildeo social eacute prostituiccedilatildeo e idolatria categorias religiosas retiradas da
antiga profecia judaica
Como sintetizou Norman Cohn ldquoo propoacutesito de Joatildeo era estimular os cristatildeos a se
verem em conflito com ciacuterculos mais amplos da sociedaderdquo117 Para tanto ele descreveu o
governo romano natildeo como reflexo de uma ordem divina mas do poder de Satatilde A alianccedila
com o Jesus Glorificado do Apocalipse inviabilizaria qualquer relacionamento com a
sociedade romana
Joatildeo por meio de sua obra demoniza praacuteticas de interaccedilatildeo social poliacutetica e religiosa
com o Impeacuterio118 Sua estrateacutegia eacute exacerbar a situaccedilatildeo para promover uma crise na sua
114 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na
sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996 p 134 115 SILVA David A de The Revelation to Johnhellip op cit 116 FRIESEN Steven J Satanrsquos Throne Imperial Cults and the Social Settings of Revelation op cit p 368 117 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 280 118 MESTERS Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das
comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n 69 p 72-82 2001 p 77
Conferir tambeacutem BIGUZZI Giancarlo Ephesus its Artemision its Temple to the Flavian Emperors and
idolatry in Revelation Novum Testamentum Leida v 3 n 40 p 276-290 1998
44
audiecircncia119 pelo menos nas igrejas nas quais tinha alguma influecircncia e invibializar os
relacionamentos significativos com pessoas de fora da comunidade Para isso ele provecirc
motivaccedilotildees tanto positivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos demais
grupos judaicos Em termos sinteacuteticos ele demoniza seus adversaacuterios estressa fortemente
as diferenccedilas de padrotildees e valores escala antagonismo e vaticina um tempo proacuteximo de
rejeiccedilatildeo muacutetua120
14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse
Aparentemente os antigos inteacuterpretes do Apocalipse o liam da mesma forma como
liam outros livros profeacuteticos da tradiccedilatildeo judaica Para eles Joatildeo era profeta e seu livro uma
profecia Foi somente no seacuteculo XIX que se levantou a sugestatildeo de que o Apocalipse de Joatildeo
deveria ser visto como um tipo distinto de literatura121 O argumento era de que o livro natildeo
era como as demais obras da tradiccedilatildeo profeacutetica judaica Aleacutem disso as evidecircncias indicavam
que existia um corpo de escritos parecidos com o Apocalipse formando uma corrente
literaacuteria na qual a obra de Joatildeo poderia ser inserida122 Esta corrente se estenderia para cerca
de trecircs seacuteculos antes do aparecimento do Apocalipse de Joatildeo com acentuada produccedilatildeo em
torno da Guerra dos Macabeus e avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70)123
A partir de entatildeo os estudiosos passaram a tentar definir o que seria o gecircnero
ldquoapocalipserdquo Estas tentativas de definiccedilatildeo consistiam de listas de caracteriacutesticas tiacutepicas
119 Segundo Paul Duff ldquopor causa da fragilidade da fonte do seu poder liacutederes carismaacuteticos atraveacutes da histoacuteria
tecircm usado uma variedade de estrateacutegias para combater as ameaccedilas agrave perda do controle Uma destas estrateacutegias
eacute o fomento das crises ou seja criar crises ou exacerbar uma situaccedilatildeo instaacutevel ao ponto que isso resulte numa
crise Esta taacutetica tem o potencial para acentuar a indispensabilidade do liacuteder inspiradordquo Cf DUFF Paul B
ldquoThe Synagogue of Satanrdquohellip op cit p 164-165 120 Idem p 164-165 121 BARR David L Beyond Genre In BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics
in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p 71-79 p 75 122 COLLINS Adela Yarbro The Early Christian Apocalypses Semeia Atlanta n 14 p 61-121 1979 p 70
Para ela o Apocalipse de Joatildeo poderia ser definido como um apocalipse histoacuterico sem a presenccedila de viagem
celestial Conferir tambeacutem KUumlMMEL op cit p 602 ldquoO material miacutetico os nuacutemeros secretos as visotildees e os
fenocircmenos do ceacuteu como meios a serviccedilo da revelaccedilatildeo de coisas do mundo do aleacutem a representaccedilatildeo das visotildees
atraveacutes de imagens fantaacutesticas e ricamente embelezadas bem como a frequumlente dependecircncia do Antigo
Testamento caracterizam o Apocalipse como uma obra pertencente ao mesmo gecircnero literaacuterio dos apocalipses
judaicosrdquo 123 LOHSE op cit p 240 Sotelo propocircs trecircs hipoacuteteses gerais sobre a origem deste gecircnero literaacuterio Uma delas
entende que ele surgiu de tradiccedilotildees persas sendo completamente estranho aos autores anteriores de Israel
outra argumenta que ele veio da tradiccedilatildeo sapiencial de Israel e uma terceira o liga ao profetismo claacutessico
israelita Cf SOTELO Daniel Origem da apocaliptica In MARASCHIN Jaci Correia (ed) Apocaliptica
Satildeo Bernardo do Campo Instituto Metodista de Ensino Superior 1983 p 17-21 p 17
45
Autores como D S Russell124 procuraram apontar poucos traccedilos distintivos para abraccedilar um
nuacutemero maior de obras Entretanto o resultado eacute que obras que se parecem muito pouco
passaram a ser vistas igualmente como apocalipses
Muitas outras listas surgiram Cada uma apresentava um traccedilo diferente que
considerava ser tiacutepico de um apocalipse Isso fazia com que um livro que um determinado
autor apontava como apocalipse fosse considerado por outro estudioso como de gecircnero
diferente
Um princiacutepio baacutesico subjacente agrave pesquisa do gecircnero destes textos eacute que um
apocalipse como outros tipos de literatura natildeo poderia ser considerado como obra literaacuteria
estanque pois estaria relacionado com outras obras e tradiccedilotildees atraveacutes de uma seacuterie de traccedilos
e conexotildees Por isso definir um apocalipse passou a ser uma questatildeo de precisar os limites
ou paracircmetros dentro dos quais as obras seriam recebidas por seus leitores
Essa definiccedilatildeo avanccedilou consideravelmente como resultado das pesquisas publicadas
no nuacutemero 14 da revista Semeia Ela continuou na tradiccedilatildeo de gerar listas de caracteriacutesticas
para tipificar um apocalipse mas deu um passo a mais por causa da precisatildeo com que estes
traccedilos foram postulados Os resultados foram resumidos por Collins
Apocalipse eacute um gecircnero de literatura de revelaccedilatildeo com uma estrutura
narrativa no qual uma revelaccedilatildeo eacute mediada por um ser sobrenatural para
um ser humano revelando uma realidade transcendente que eacute tanto
temporal enquanto considera salvaccedilatildeo escatoloacutegica quanto espacial
enquanto envolve outro mundo sobrenatural125
A lista de caracteriacutesticas de Collins apresenta um apocalipse do ponto de vista da
forma (literatura de revelaccedilatildeo de estrutura narrativa) e do conteuacutedo (mediaccedilatildeo sobrenatural
realidades transcendentes temporal e espacial) Ao aplicar esta lista de caracteriacutesticas ao
livro de Joatildeo Collins entende que a obra se enquadra com precisatildeo no interior da tradiccedilatildeo
literaacuteria que gerou os apocalipses
Escritores natildeo conseguem escrever sem ter em mente outros textos que eles leram
os quais se tornam modelos para serem imitados transformados ou contrapostos A inserccedilatildeo
de um texto num determinado veio tradicional ou literaacuterio assim tem funccedilatildeo natildeo somente
promotora de caracteriacutesticas (forma conteuacutedo e funccedilatildeo) mas tambeacutem hermenecircutica Afinal
124 RUSSELL D S Desvelamento divino uma introduccedilatildeo agrave apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo Paulus 1997 125 COLLINS John J Introduction Towards the Morphology of a Genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979
p 9
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leitores natildeo conseguem ler e entender uma obra se eles natildeo estiverem habilitados para
relacionaacute-la com outras que eles tiveram a oportunidade de ler ou conhecer
O propoacutesito da identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo de uma obra eacute orientar e guiar a produccedilatildeo
ou a recepccedilatildeo da mesma Este processo eacute normalmente deliberado e consciente por parte
do autor do livro como um de seus recursos para guiar o seu leitor
A classificaccedilatildeo de textos consiste no levantamento de um conjunto de convenccedilotildees
impliacutecitas ou expliacutecitas O escritor conhece estas convenccedilotildees do contexto no qual e contra o
qual escreve No processo de produccedilatildeo de sua obra ele ajuda o leitor por meio de indicaccedilotildees
para-textuais como tiacutetulos subtiacutetulos prefaacutecios ou outros sinais menos oacutebvios Com isso se
forma um tipo de ldquocontratordquo que orienta antecipadamente a leitura e a apropriaccedilatildeo da obra
Afinal estas marcas estatildeo ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido
Paul Duff destaca que Joatildeo como todo escritor ou orador precisou antecipar a reaccedilatildeo
dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem126 As tais marcas
viabilizam as classificaccedilotildees ou categorizaccedilotildees e formam uma espeacutecie de guia de leitura que
pode ser aceito ou natildeo pelos leitores
Linton insiste que mesmo que uma obra natildeo tenha estes sinais claramente os leitores
tenderatildeo a construir seus proacuteprios guias de interpretaccedilatildeo normalmente comparando a obra
com outras similares de forma a construir um corpo de convenccedilotildees para guiar a leitura127
A praacutetica da leitura se torna entatildeo um contiacutenuo processo de comparaccedilatildeo com leituras
anteriores
Autores se valem de categorias Leitores se aproveitam delas Em ambas as situaccedilotildees
a construccedilatildeo do texto e a busca pelo seu sentido eacute uma atividade de comparaccedilatildeo na qual as
categorias se tornam ferramentas heuriacutesticas significativas Ao escrever sua obra Joatildeo
deliberadamente revestiu-a de marcas e traccedilos de obras que viriam posteriormente a ser
conhecidas como ldquoapocalipsesrdquo Ao assim fazer ele forneceu a forma como ele esperava
que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Aacutesia e com quais textos o Apocalipse deveria
ser comparado
126 DUFF Paul B Who rides the beast op cit p 72 127 LINTON Gregory L Reading the Apocalypse as Apocalypse In BARR David L (ed) The Reality of
Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p
9-41 p 15
47
15 Resumo
O Apocalipse foi escrito por um judeu de nome Joatildeo que migrou da Palestina apoacutes a
guerra judaico-romana (66-70) e desenvolvou uma atividade profeacutetica entre as comunidades
do movimento de Jesus na Aacutesia menor Perto do final do seacuteculo pouco antes do fim do
governo do Imperador Domiciano (96) ele se deslocou ou foi descolocado para a ilha de
Patmos onde escreveu um texto marcado por traccedilos da tradiccedilatildeo literaacuteria judaica denominada
pelos estudiosos como ldquoapocalipserdquo Com sua obra ele desejava convencer alguns membros
especialmente de sete igrejas da proviacutencia asiaacutetica a romperem relacionamentos
significativos com a sociedade romana
II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA
Como discutimos no capiacutetulo anterior o Apocalipse de Joatildeo foi escrito nos anos 90
do primeiro seacuteculo da Era Comum provavelmente nos uacuteltimos anos do principado do
imperador Domiciano (Titus Flavius Domitianus)128 A partir de uma referecircncia interna
(Apocalipse 19) eacute possiacutevel circunscrever seu local de origem como sendo a pequena ilha
do mar Egeu de nome Patmos e seu destino como um conjunto de comunidades do
movimento de Jesus localizadas na proviacutencia proconsular da Aacutesia (Apocalipse 111) Eacutefeso
Esmirna Peacutergamo Tiatira Sardes Filadeacutelfia e Laodiceacuteia
Este Joatildeo de Patmos estaacute longe de Roma capital do Impeacuterio Apesar dos atos e gestos
do Imperador poderem refletir diretamente na vida de Joatildeo e no puacuteblico de sua obra em
termos sociais poliacuteticos econocircmicos ou culturais o contexto especiacutefico do Apocalipse eacute
mesmo a Aacutesia romana Em funccedilatildeo disso neste capiacutetulo nos deteremos em analisar a situaccedilatildeo
desta proviacutencia focando em aspectos que poderiam iluminar de alguma forma o processo
histoacuterico de produccedilatildeo do Apocalipse
21 Patmos o ponto de partida
Segundo o Apocalipse seu autor Joatildeo recebeu a seacuterie de visotildees que deu origem agrave
obra enquanto estava na ilha de Patmos no mar Egeu ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro
na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por
causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo (Apocalipse 19)
Patmos eacute uma ilha pequena Em termos gerais satildeo treze quilocircmetros de extensatildeo por
oito de largura Poreacutem sua costa recortada reduz consideravelmente suas dimensotildees Sua
margem fica a 64 quilocircmetros da foz do rio Maeander o ponto mais proacuteximo da peniacutensula
da Aacutesia Menor129 Esta distacircncia relativa tambeacutem a separava de Mileto seu principal viacutenculo
128 Domiciano foi assassinado no dia 18 de setembro de 96 por uma conspiraccedilatildeo palaciana e substituido no
mesmo dia por um dos seus amici o senador M Cocceius Nerva Cf JONES Brian W The emperor Domitian
Londres Routledge 1992 p 93 129 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield
Academic Press Ltd 1986 p 27
49
social com o continente Das cidades mencionadas no Apocalipse entretanto a mais
proacutexima era Eacutefeso distante da ilha cerca de 100 quilocircmetros130
A associaccedilatildeo de Patmos com Mileto era formal fazendo parte do seu territoacuterio junto
com as ilhas de Lipsos e Leros Nas trecircs ilhas havia algum tipo de povoamento Em Patmos
especificamente seu povo era conhecido como frouroi e seus liacutederes frourarchoi atuando
como parte do governo de Mileto para a populaccedilatildeo local131
Eacute preciso insistir no fato de que Patmos natildeo era uma ilha deserta ou mesmo uma
colocircnia penal O professor David Aune argumenta neste sentido e aponta como evidecircncia
duas inscriccedilotildees encontradas na ilha Uma datada para o seacuteculo II aC faz referecircncia a uma
associaccedilatildeo local de atletas agrave presenccedila de um gymnasium e agrave figura de um gymnasiarcha
eleito sete vezes para a mesma funccedilatildeo Outra de duzentos anos depois jaacute na Era Comum
fala de uma hidrophore sacerdotisa de Artemis e a presenccedila de um templo local bem
estabelecido para esta deusa132
Joatildeo escreve de uma ilha pertencente agrave Mileto a polis mais proacutexima de onde ele ldquose
achavardquo133 Curiosamente entretanto ela estaacute ausente da lista de cidades mencionadas no
Apocalipse Talvez a resposta a esta questatildeo tenha relaccedilatildeo com a falta de uma comunidade
do movimento de Jesus em Mileto O livro Atos dos Apoacutestolos escrito de um lugar
indeterminado entre os anos 80 e 90134 conteacutem uma narrativa que parece indiciar a ausecircncia
de uma comunidade na cidade Nela (Atos 2017-38) Paulo se prepara para fazer uma
viagem a Roma Entre seus preparativos estaacute uma visita agrave igreja de Jerusaleacutem Durante sua
viagem ele se detem em Mileto para conversar natildeo com disciacutepulos da cidade mas com
liacutederes que vieram da igreja de Eacutefeso O autor anocircnimo explicita que ldquode Mileto mandou a
Eacutefeso chamar os presbiacuteteros da igrejardquo (Atos 2017) Natildeo haacute qualquer menccedilatildeo agrave presenccedila de
seguidores do movimento de Jesus pelo menos perto do ano 60 quando os eventos narrados
por Atos se deram135 Neste sentido a omissatildeo do Apocalipse pode indicar que as trecircs
deacutecadas que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de Joatildeo por ela natildeo foram
suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar
130 Conferir os mapas da Aacutesia romana nos anexos 1 e 2 131 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 p 76 132 Idem p 77 133 Ele usa o termo grego ldquoἐγενόμηνrdquo primeira pessoa do aoristo do indicativo meacutedio ldquoachei-merdquo 134 KUMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 238 135 GALBIATTI Enrico Rodolfo ALETTI Aldo Atlas histoacuterico da Biacuteblia e do Antigo Oriente Petroacutepolis
Vozes 1991 p 216
50
22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia
Para Ciacutecero (107-43 aC) a ldquoAacutesia eacute oacutetima e feacutertilrdquo (ldquoAsia vero tam optima est ac
fertilisrdquo) e acrescentou que ldquona riqueza de seus oacuteleos na variedade de seus produtos na
extensatildeo de seus pastos e no nuacutemero de suas exportaccedilotildees ela ultrapassa todas as outras
terrasrdquo (De Imperio cn Pompei ad qurites oratio 14) A Aacutesia Menor era uma das regiotildees
mais ricas do Impeacuterio e dentre as seis proviacutencias da peniacutensula a Aacutesia era a mais rica136
Formalmente ela era uma proviacutencia senatorial governada por um prococircnsul indicado pelo
senado romano137 Entretanto tanto o imperador quanto o senado poderiam promover
regulamentos que afetariam a proviacutencia Justamente por isso nela havia representantes
imperial e senatorial
Durante o governo da dinastia Flaacutevia a gestatildeo da Aacutesia foi marcada pela recuperaccedilatildeo
econocircmica138 A aclamaccedilatildeo de Vespasiano se deu em Alexandria no dia 1 de julho de 69
sendo prontamente reconhecido pelas proviacutencias orientais O novo imperador viajando de
navio parou em vaacuterias cidades da costa da Aacutesia onde oficiais locais fizeram os juramentos
habituais de fidelidade139
Apoacutes sua ascensatildeo ao poder Vespasiano encontrou o tesouro imperial falido pelas
guerras civis que se seguiram agrave morte de Nero Para restaurar as financcedilas puacuteblicas ele adotou
uma poliacutetica econocircmica que reduziu os gastos do governo e procurou aumentar as receitas
do estado reorganizando o recolhimento das taxas puacuteblicas ou criando novas como o fiscus
Alexandrinus e o fiscus Iudaicus Esta segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus para
substituir um imposto recolhido para subsidiar o Templo de Jerusaleacutem recentemente
destruiacutedo pelas legiotildees de Tito filho de Vespasiano140
Uma mudanccedila importante se deu na forma como tais taxas eram cobradas A
cobranccedila saiu das matildeos dos publicani para um agente do governo liderado por um
procurador em Roma e outro em cada proviacutencia Posteriormente Domiciano criou o oficio
136 MAGIE David Roman rule in Asia Minor to the end of third century after Christ Princenton Princenton
University Press 1950 p 34-52 Cf tambeacutem KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no
Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 89 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation
Apocalypse and Empire Oxford Oxford University Press 1990 p 146 137 MAGIE op cit p 569 138 Para uma anaacutelise da reorganizaccedilatildeo efetuada por Vespasiano na proviacutencia mantida e ampliada por Tito e
Domiciano cf LEVICK Barbara Greece and Asia Minor In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient
History Cambridge Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 604-634 p 604 139 MAGIE op cit p 566 140 GRIFFIN Miriam The Flavians In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient History Cambridge
Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 1-83 p 27
51
de curator civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus recursos
Este processo de centralizaccedilatildeo financeira diminuiu a autonomia da proviacutencia contudo
ajudou suas cidades
Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Aacutesia Menor pelo incremento na
construccedilatildeo e manutenccedilatildeo de estradas Estradas importantes foram construiacutedas apoacutes a
ascensatildeo dos Flaacutevios como duas estradas que saiam de Peacutergamo no ano 75 Uma descia na
direccedilatildeo de Esmirna e Eacutefeso margeando a costa Outra seguia pelo interior na direccedilatildeo de
Tiatira e Sardes Estas mesmas estradas foram restauradas por Domiciano Aleacutem das
vantagens para o comeacutercio e a comunicaccedilatildeo o foco nas estradas tinha tambeacutem como objetivo
facilitar o acesso para a regiatildeo oriental da Aacutesia Menor e para as fronteiras com o Impeacuterio
Persa no Eufrates Por elas deveriam circular as legiotildees romanas e o suprimento para as
tropas141 Mas natildeo havia uma legiatildeo especiacutefica estacionada em qualquer proviacutencia da Aacutesia
Menor A defesa da regiatildeo dependia inteiramente das legiotildees fixadas na Siacuteria
O governo de Tito deu sequecircncia agraves poliacuteticas de seu pai ateacute que em setembro de 81
apoacutes sua morte ele foi sucedido por Domiciano Haacute um juiacutezo tradicional negativo a respeito
deste uacuteltimo imperador da dinastia Flaacutevia como ilustrado pela opiniatildeo de Euseacutebio de
Cesareacuteia (263-339)
Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos
dando morte sem julgamento razoaacutevel a natildeo pequeno nuacutemero de
patriacutecios e de homens ilustres e castigando com desterro fora das
fronteiras e confisco de bens a outras inuacutemeras personalidades sem
causa alguma Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero
na animosidade e guerra contra Deus Efetivamente ele foi o segundo
a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutes apesar de que seu pai
Vespasiano nada de mal planejou contra noacutes (Histoacuteria Eclesiaacutestica
III XVII 1)
Este juiacutezo se reflete tambeacutem na historiografia David Magie descreve inicialmente o
governo de Domiciano como inescrupuloso e impiedoso142 mas pouco depois reconhece
que
nas proviacutencias existe pouca evidecircncia de crueldade por parte de
Domiciano ou mesmo de pretensotildees de grandeza exageradas No
oriente mesmo o tiacutetulo de ldquodeusrdquo que incomodava os ouvidos
romanos era tido como normal Ainda o tiacutetulo completo ldquoDeus
invisiacutevel fundador da cidaderdquo inscrito no peacute de uma estatua do
imperador em Priene natildeo era mais extravagante do que outros dados
141 MAGIE op cit p 571 142 Idem p 577
52
a muitos de seus antecessores e a outorga do epiacuteteto de ldquofundadorrdquo
parece indicar que ele realmente beneficiou a cidade143
A relaccedilatildeo de Domiciano com a Aacutesia assim natildeo foi diferente da forma como seu
irmatildeo Tito e seu pai Vespasiano trataram a proviacutencia A proviacutencia se beneficiou com a
gestatildeo dos Flaacutevios que terminou com a morte de Domiciano em setembro de 96 jaacute que o
imperador natildeo deixou herdeiro
Um testemunho da prosperidade do periacuteodo pode ser encontrado em um dos livros
dos Oraacuteculos Sibilinos surgido perto do ano 80 O oraacuteculo escrito na perspectiva do
Judaiacutesmo da diaacutespora na Aacutesia atacou o Impeacuterio Romano mas natildeo deixou de evidenciar a
riqueza da proviacutencia segundo seu autor espoliada em favor de Roma
Grande riqueza viraacute para Aacutesia riqueza que uma vez Roma tendo
tomado-a por rapina armazenou em uma casa de insuperaacuteveis
riquezas mas sem demora ela faz uma dupla restituiccedilatildeo para a Aacutesia
entatildeo haveraacute um excesso de conflitos (Oraacuteculo Sibilino IV I 42)144
Durante as deacutecadas da dinastia Flaacutevia a situaccedilatildeo econocircmica da Aacutesia se refletiu no
volume de novas construccedilotildees natildeo apenas por meio de recursos puacuteblicos mas tambeacutem atraveacutes
de subsiacutedios de pessoas ricas Estas liturgias incluiacuteam recursos para as edificaccedilotildees para o
reparo de construccedilotildees para a manutenccedilatildeo de centros sociais e para a realizaccedilatildeo de
festivais145
A cidade mais beneficiada no periacuteodo foi possivelmente a sede da proviacutencia Eacutefeso
Nela residia o proconsul da cidade O procurador ou vice-proconsul com alguma
probabilidade tambeacutem morava nela A partir da deacutecada de 90 mesmo sem uma precisatildeo
maior trecircs pessoas se sucederam no governo da Aacutesia ateacute a morte de Domiciano Sextus
Vettulenus Civica Cerialis C Minicius e L Junius Caesennius Paetus146
23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia
Os mais antigos membros das igrejas da Aacutesia eram oriundos de comunidades judaicas
da Aacutesia Menor Das centenas de cidades da proviacutencia asiaacutetica a presenccedila do movimento de
143 Idem p 577 144 Citado a partir de MAGIE op cit p 582 145 Idem p 583 146 Idem p 1582-1583
53
Jesus era atestada onde existia tambeacutem uma comunidade judaica147 Eacute plausiacutevel mesmo
tratar o movimento de Jesus na Aacutesia como parte do Judaiacutesmo da diaacutespora
Frequentadores de sinagogas ou de igrejas viviam na Aacutesia Menor no final do
primeiro seacuteculo e iniacutecio do segundo em grandes aacutereas urbanas e o que puder ser dito sobre
o primeiro grupo vale tambeacutem para o segundo O movimento de Jesus estaacute em processo de
ruptura e construccedilatildeo de identidade proacutepria todavia esse movimento ainda natildeo se completou
na regiatildeo como o proacuteprio Apocalipse pode evidenciar Apesar de membros da sociedade
romana especialmente seus magistrados jaacute perceberem alguma diferenccedila entre um e outro
na vida cotidiana eles permaneciam histoacuterica social e teologicamente envolvidos Esse
parece ser o motivo que levou Joatildeo de Patmos a se envolver em disputas com membros das
sinagogas locais (Apocalipse 29 39)148
A crise com as sinagogas de Esmirna (Apocalipse 29) e Filadeacutelfia (Apocalipse 39)
pode ter relaccedilatildeo com a forma como as comunidades judaicas se adaptaram ao contexto
urbano da proviacutencia Judeus habitavam a regiatildeo desde que Antioco III ordenou a realocaccedilatildeo
de duas mil famiacutelias judaicas da Babilocircnia para a Frigia como uma colocircnia militar a fim de
minimizar revoltas na regiatildeo149 Desde entatildeo judeus estavam amplamente presentes na parte
ocidental da Aacutesia Menor vivendo suas praacuteticas religiosas mas com relativa integraccedilatildeo na
vida ciacutevica das cidades150
Mesmo depois da guerra judaico-romana (66-70) os judeus da Aacutesia continuaram a
compartilhar da prosperidade da proviacutencia sem ameaccedila de puniccedilotildees por algum tipo de
conexatildeo com a guerra na Judeacuteia151 Com exceccedilatildeo do Fiscus Iudaicus nenhuma outra
consequecircncia poliacutetica ou social foi imposta aos judeus da diaacutespora pelo Impeacuterio Romano
apoacutes a guerra Segundo Josefo ldquoo mesmo soberano ordenou tambeacutem que os judeus em
qualquer lugar onde morassem deveriam pagar cada qual todos os anos duas dracmas ao
Capitoacutelio como antes pagavam ao templo de Jerusaleacutemrdquo (Guerra dos Judeus 27) A
identificaccedilatildeo dos judeus com a sociedade romana tambeacutem eacute testemunhada por este
sobrevivente da guerra Em Antiguidades Judaicas ele argumenta que judeus em Sardes
eram sardianos em Eacutefeso eram efeacutesios em Antioquia eram antioquenos (Antiguidades
Judaicas 239)
147 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 133 148 Idem p 145 149 TREBILCO Paul Jewish communities in Asia Minor Cambridge Cambridge Univesity Press 1991 p 5 150 Idem p 173 151 Idem p 32
54
Judeus eram membros ativos de associaccedilotildees comerciais e sindicatos Tambeacutem eram
agricultores vinhateiros marinheiros trabalhadores com metal e perfumaria Estavam
envolvidos ainda em manufaturas tecircxtil como tintureiros vendedores e fabricantes de
roupa152
Em cada uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse judeus viviam suas vidas
segundo as tradiccedilotildees judaicas poreacutem sem desprezar a participaccedilatildeo em atividades urbanas
locais Foi a partir destas comunidades judaicas engajadas na vida cotidiana do Impeacuterio que
o movimento de Jesus da Aacutesia formou suas igrejas
24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia
A proviacutencia da Aacutesia se situava na costa ocidental da peniacutensula da Aacutesia Menor O
autor do Apocalipse Joatildeo aponta a ilha de Patmos pertencente agrave cidade de Mileto como o
local de origem do livro Todas as cidades mencionadas explicitamente na obra satildeo cidades
de grande porte dentro da proviacutencia
As principais evidecircncias da presenccedila de cristatildeos nestas cidades vecircm de fontes do
proacuteprio movimento (cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos cartas de Pedro Apocalipse e
Inaacutecio de Antioquia) A mais antiga referecircncia a igrejas na regiatildeo vem de cartas que Paulo
de Tarso escreveu para comunidades de disciacutepulos de Corinto na deacutecada de 50 Ele estava
em Eacutefeso enquanto escrevia estas cartas (1Coriacutentios e 2Coriacutentios) O autor do livro Atos dos
Apoacutestolos tambeacutem falou do tempo em que Paulo ficou em Eacutefeso Segundo ele Paulo ficou
na cidade por trecircs anos (Atos 2031)
Tanto as cartas a Coriacutentios quanto Atos dos Apoacutestolos evidenciam que na capital da
proviacutencia existiam outros liacutederes do movimento Paulo natildeo era o uacutenico Outros como
Aacutequila Priscila e Apolo tambeacutem satildeo mencionados Estes liacutederes eram artesatildeos
independentes oriundos de comunidades judaicas da Aacutesia Menor Isso se nota por meio de
sua mobilidade sua ocupaccedilatildeo e a hospedagem de igrejas em suas casas Pessoas com a
mobilidade que eles possuiacuteam deveriam possuir recursos Para acomodar pessoas suas casas
tambeacutem deveriam ter razoaacutevel espaccedilo Natildeo eram pessoas de classes inferiores da sociedade
romana
152 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 144
55
Jaacute nos tempos de Paulo se manifestou a questatildeo da interaccedilatildeo das comunidades com
a vida urbana da cidade especialmente na questatildeo da alimentaccedilatildeo em atividades religiosas
ou ciacutevicas Em cidades gregas e romanas as pessoas tinham vaacuterias oportunidades para
participar de refeiccedilotildees cuacutelticas Isso poderia acontecer em ocasiotildees puacuteblicas (funerais
celebraccedilotildees festas ciacutevicas etc) ou privadas (clubes organizaccedilotildees comerciais refeiccedilotildees
privadas etc) Tanto em uma quanto em outra situaccedilatildeo as refeiccedilotildees expressavam conexatildeo
social em torno de causas comuns153
Fazer refeiccedilotildees puacuteblicas e comer carne oriunda de sacrifiacutecios religiosos satildeo
elementos diretamente ligados agrave questatildeo da participaccedilatildeo nas instituiccedilotildees sociais da cidade e
do Impeacuterio Este tipo de pressatildeo poderia ser diferente para status sociais distintos Segundo
Gerd Theissen cristatildeos ricos teriam mais oportunidades de se envolver em refeiccedilotildees cuacutelticas
de caraacuteter puacuteblico do que cristatildeos pobres154
Quando Paulo tratou deste assunto em 1Coriacutentios 8-10 ele relacionou a participaccedilatildeo
nas refeiccedilotildees com a situaccedilatildeo dos fracos e fortes dentro da comunidade Seu argumento
caminha na direccedilatildeo de que somente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto
os ldquofracosrdquo e os ldquofortesrdquo (ἀσθενεiς kai ἰσχυροί) participassem juntos como em festivais
puacuteblicos eacute que os disciacutepulos deveriam se abster (1Coriacutentios 87-13) Nas instacircncias privadas
poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela origem da comida
(1Corintios 1027) As igrejas da Aacutesia provavelmente nasceram a partir de mensagens e
perspectivas semelhantes agraves de Paulo de Tarso
O autor do Apocalipse quatro deacutecadas depois de missionaacuterios como Paulo Aacutequila
Priscila e Apolo terem fundado essas comunidades escreve uma obra na qual defende
posiccedilotildees divergentes Os adversaacuterios de Joatildeo descritos em sua obra como os nicolaiacutetas
baalamitas ou Jesabel satildeo atacados por promoveram algum tipo de interaccedilatildeo com a
sociedade interaccedilatildeo essa que parece ter relaccedilatildeo com a mesma questatildeo respondida por Paulo
na sua carta aos Coriacutentios a participaccedilatildeo em refeiccedilotildees ou atividades sociais que envolviam
a ingestatildeo de carne originada em sacrifiacutecio religioso Aqueles que Joatildeo enxerga como
adversaacuterios satildeo provavelmente membros do movimento de Jesus que possuem uma
perspectiva semelhante agrave que Paulo deu aos crentes de Corinto155 Thompson analisa a
153 Idem p 123 154 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva Satildeo Leopoldo Sinodal 1983 p 146 155 Assim resumiu Pagels ldquomuitas praacuteticas que Joatildeo atacava eram as mesmas que Paulo anteriormente
recomendavardquo Cf PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation
New York Penguin Books 2012 p 54
56
questatildeo e sugere que como as respostas que os adversaacuterios de Joatildeo datildeo satildeo semelhantes agrave
do antigo missionaacuterio de Tarso possivelmente eles possuiacuteam posiccedilotildees sociais semelhantes
ou seja estavam envolvidos em atividades comerciais possuiacuteam responsabilidades ciacutevicas
e pertenciam a um estrato mais rico da lideranccedila das igrejas da Aacutesia156 Este mesmo autor
defende que as igrejas da Aacutesia deveriam ter em linhas gerais uma mesma composiccedilatildeo
social Elas possuiacuteam em seus quadros pessoas livres e escravas homens e mulheres ricos
e pobres e deveriam se parecer com muitas associaccedilotildees religiosas ou sociais que existiam
na Aacutesia157 Estas associaccedilotildees synodos proliferavam consideravelmente desde a instauraccedilatildeo
do Impeacuterio e se manifestavam no Ocidente e no Oriente Segundo Meeks elas surgiam a
partir da decisatildeo de um grupo de doze a quarenta pessoas de se encontrarem em algum lugar
para reuniotildees158
Nestas reuniotildees era comum haver certa semelhanccedila de status social entre seus
membros Entretanto o proacuteprio fenocircmeno ldquostatusrdquo eacute complexo e possui vaacuterias dimensotildees
No status social de uma pessoa ou famiacutelia influiam elementos como poder prestiacutegio da
ocupaccedilatildeo renda ou riqueza educaccedilatildeo e cultura religiatildeo e pureza ritual famiacutelia ou grupo
eacutetnico status da comunidade local em que se estava envolvido Cada um destes elementos
poderia ser conjugado de forma diferente em uma dada circunstacircncia histoacuterica Na praacutetica
o status de um cidadatildeo romano era o resultado de como estas variaacuteveis eram consideradas
na sociedade local Mesmo que existisse certa perspectiva geral um sacerdote de Eacutefeso
poderia ter mais status do que um comerciante rico da cidade Em outra cidade o
conhecimento poderia ser mais importante do que a etnia em outra a pureza ritual poderia
valer mais do que a descendecircncia familiar A riqueza poderia dar mais status do que o
conhecimento mas em algumas circunstacircncias pertencer a uma famiacutelia nobre era mais
importante do que ter recursos financeiros159
Atentando para esses elementos o que as fontes geradas pelo movimento de Jesus
poderiam apontar sobre o status social dos seus membros O missionaacuterio Paulo de Tarso na
mesma carta que escreveu para a comunidade de Corinto informa que ldquonatildeo muitos da
comunidade eram saacutebios segundo o mundo nem poderosos nem de nobre nascimentordquo
(1Coriacutentios 126) Dizer que natildeo havia muitos significa afirmar que havia alguns Entre os
156 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 129 157 Idem p 127 158 MEEKS Wayne A Os primeiros cristatildeos urbanos o mundo social do Apoacutestolo Paulo Satildeo Paulo Paulinas
1992 p 54 159 Conferir esta discussatildeo em MEEKS op cit p 91
57
membros do movimento na cidade havia pessoas cultas (ldquordquo) ricas
(ldquordquo) ou bem-nascidas (ldquordquo) Pelo argumento de Paulo estes formavam uma
minoria dentro da comunidade apesar de se constituiacuterem numa minoria dominante160
Outro testemunho sobre as posiccedilotildees sociais dentro das comunidades da Aacutesia pode vir
de uma carta que Pliacutenio o Jovem escreveu em 112 enquanto atuava como governador da
proviacutencia da Bitiacutenia e Ponto tambeacutem na Aacutesia Menor O quadro descrito por Pliacutenio parece
ser bem parecido com a composiccedilatildeo da igreja de Eacutefeso ou das demais cidades mencionadas
no Apocalipse Pliacutenio resolveu tratar deste assunto com o Imperador Trajano porque
entendeu que a questatildeo era digna de consideraccedilatildeo imperial em funccedilatildeo do nuacutemero de pessoas
que se engajavam no movimento Estes ldquochristianirdquo eram de todas as idades (ldquoominis
aetatisrdquo) todas as ordens (ldquoomnis ordinisrdquo) tanto homem quanto mulher (ldquoutrisque sexusrdquo)
(Epiacutestolas 10968)
Uma carta que Paulo escreveu a Filemon jaacute na deacutecada de 60 no periacuteodo em que
esteve preso em Roma indica outro aspecto significativo da composiccedilatildeo destas
comunidades Filemon era proprietaacuterio de escravo Um deles Oneacutesimo fugiu encontrou-se
com Paulo em Roma converteu-se ao movimento e foi orientado a voltar para seu antigo
dominus este tambeacutem um convertido morador da Aacutesia Uma igreja se reunia na casa deste
senhor de escravos (Filemon 2) Natildeo eacute possiacutevel saber quantos escravos Filemon possuiacutea
mas ele recebe a orientaccedilatildeo de Paulo para que aceitasse seu antigo escravo de forma
amistosa natildeo mais como escravo (ldquow`j doulonrdquo) e sim como algueacutem mais do que escravo
(ldquou`per doulonrdquo) O escravo agora deveria ser tratado como irmatildeo (ldquow`j avdelfonrdquo) A taacutebua
domeacutestica registrada na carta aos Efeacutesios (Efeacutesios 65) documento deuteropaulino anocircnimo
escrito em algum momento entre os anos 80-100 possivelmente da Aacutesia161 especifica que
os escravos deveriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor (ldquometa fobou kai
tromourdquo)
Isso indica que as comunidades de Jesus tinham a presenccedila de pessoas livres e
escravas senhores e servos mas as orientaccedilotildees de seus liacutederes tendiam a tomar o lado dos
senhores em vez dos escravos
Outros elementos tambeacutem podem iluminar o quadro social destas comunidades da
Aacutesia162 Primeiramente o fato de alguns de seus membros escreverem livros e cartas para
160 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva op cit p 146-147 161 KUMMEL op cit p 480 162 Sobre estas sugestotildees cf THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 128-129
58
serem lidas no interior do movimento indica uma presenccedila significativa de pessoas que
sabiam escrever e ler numa sociedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas
mas parcamente encontradas Um segundo aspecto pode ser localizado naqueles que
hospedavam a comunidade em sua casa os quais deveriam ter certa ascendecircncia sobre os
membros do movimento Possivelmente eles agiam como ldquopatronosrdquo da igreja da mesma
forma como outros patronos da cidade suportavam clubes e associaccedilotildees comerciais Por fim
cristatildeos viajavam muito num periacuteodo em que viagens eram muito custosas Meeks sugeriu
a partir dos itineraacuterios apresentados nos Atos dos Apoacutestolos que o missionaacuterio Paulo de
Tarso pode ter viajado aproximadamente dezesseis mil quilocircmetros durante sua carreira
religiosa163 Estas viagens eram bancadas geralmente por atividades profissionais proacuteprias
mas em algumas circunstacircncias como no caso de Joatildeo de Patmos algum tipo de patrociacutenio
poderia ser buscado entre as comunidades visitadas
Com comunidades assim constituiacutedas de que maneira seus membros se
relacionavam com a sociedade Como jaacute indicamos no capiacutetulo anterior os membros do
movimento de Jesus da Aacutesia estavam inseridos na vida cotidiana da proviacutencia e natildeo
buscavam ruptura com seus vizinhos Apesar da dificuldade em se situar geograficamente a
origem ou o destino escrevendo em meados do segundo seacuteculo o autor da carta a Diogneto
resumiu
Os cristatildeos de fato natildeo se distinguem dos outros homens nem por sua
terra nem por liacutenguas ou costumes Com efeito natildeo moram em cidades
proacuteprias nem falam liacutengua estranha nem tecircm algum modo especial de
viver Sua doutrina natildeo foi inventada por eles graccedilas ao talento e
especulaccedilatildeo de homens curiosos nem professam como outros algum
ensinamento humano Pelo contraacuterio vivendo em cidades gregas e
baacuterbaras conforme a sorte de cada um e adaptando-se aos costumes do
lugar quanto agrave roupa ao alimento e ao resto testemunham um modo de
vida social admiraacutevel e sem duacutevida paradoxal Vivem na sua paacutetria mas
como forasteiros participam de tudo como cristatildeos e suportam tudo como
estrangeiros Toda paacutetria estrangeira eacute paacutetria deles e cada paacutetria eacute
estrangeira (Carta a Diogneto 51-5)
Tertuliano no final do segundo seacuteculo argumentou de modo semelhante para a
sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia Segundo ele os cristatildeos tinham a mesma
maneira de vida as mesmas roupas e os mesmos costumes eles frequentavam juntos o
mercado o accedilougue os banhos puacuteblicos as lojas as faacutebricas as tavernas as feiras e outros
163 MEEKS op cit p 32
59
negoacutecios Cristatildeos eram marinheiros soldados agricultores e se envolviam no comeacutercio
com natildeo cristatildeos Defendendo sua comunidade ele argumentou que eles proviam
habilidades e serviccedilos para o benefiacutecio de toda a sociedade romana (Apologia 42)
Tanto a Carta a Diogneto quanto Apologia natildeo dizem respeito especiacutefico agrave Aacutesia do
final do primeiro seacuteculo mas pelo menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a
interaccedilatildeo social no movimento de Jesus A perspectiva do missionaacuterio Paulo na deacutecada de
50 e 60 parece estar replicada em Diogneto e Apologia no segundo seacuteculo Isso significa
dizer que os seguidores de Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas
situaccedilotildees que os demais membros da sociedade romana Eles tinham contatos com pessoas
de outros viacutenculos religiosos na economia sociedade famiacutelia e poliacutetica Os seguidores de
Jesus tocavam suas vidas de forma paciacutefica com seus vizinhos tentando viver sem
distuacuterbios ou mesmo sem chamar muita atenccedilatildeo
25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo
No mesmo periacuteodo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse mas longe de Patmos cerca
de 1600 quilocircmetros um dos liacutederes da igreja de Roma o presbiacutetero Clemente escreveu
uma carta para a igreja de Corinto Clemente romano alcanccedilou grande prestiacutegio em vaacuterias
comunidades cristatildes posteriormente a ponto de sua carta aparecer em diversas listas
canocircnicas O que levou Clemente a se manifestar aparentemente foi algum tipo de tumulto
interno do movimento de Jesus em Corinto Alguns liacutederes da igreja teriam sido destituiacutedos
sem motivo aparente o que gerou o protesto de Clemente Ele escreveu ldquoCariacutessimos eacute
vergonhoso muito vergonhoso e indigno de conduta cristatilde ouvir dizer que a firme e antiga
Igreja de Corinto por causa de uma ou duas pessoas estaacute em revolta contra os seus
presbiacuteterosrdquo (1Clemente 476)
Na saudaccedilatildeo inicial ele descreve a igreja da capital como ldquoestrangeira em Romardquo A
expressatildeo poderia ser indiacutecio de algum tipo de desconforto da comunidade em relaccedilatildeo agrave
sociedade romana Outra passagem de sua carta talvez aponte para a mesma direccedilatildeo
ldquoIrmatildeos pelas desgraccedilas e adversidades imprevistas que nos aconteceram uma apoacutes outra
acreditamos ter demorado muito para dar atenccedilatildeo agraves coisas que entre voacutes se discutemrdquo
(1Clemente 11) O autor faz referecircncia a algum tipo de crise que impediu que ele se
60
manifestasse anteriormente sobre a situaccedilatildeo de Corinto mas ele evita descrever a natureza
desta crise em qualquer outro lugar da obra
Ao sugerir o fim para os conflitos internos da comunidade ele toma o exeacutercito
romano como exemplo de organizaccedilatildeo e ordem
Irmatildeos militemos com toda nossa prontidatildeo sob as ordens irrepreensiacuteveis
dele Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos
governantes com que disciplina docilidade e submissatildeo eles executam as
funccedilotildees que lhes satildeo designadas (1Clemente 371-2)
Ao demonstrar certa admiraccedilatildeo pela estrutura militar do Impeacuterio ou quando
denomina os oficiais romanos de ldquonossos governantesrdquo a carta de Clemente parece
evidenciar que os membros da comunidade de Jesus estabelecida na capital do Impeacuterio natildeo
possuem uma crise aberta com a sociedade Em funccedilatildeo de suas analogias o mesmo poderia
ser dito a respeito da igreja de Corinto Essa parece ser tambeacutem a postura que adotou o autor
anocircnimo de 1Pedro possivelmente entre os anos 90-95164 escrevendo talvez de Roma
ldquoSujeitai-vos a toda instituiccedilatildeo humana por causa do Senhor quer seja ao rei como
soberano quer agraves autoridades como enviadas por ele tanto para castigo dos malfeitores
como para louvor dos que praticam o bemrdquo (1Pedro 213-14)
Alguns argumentos de Clemente (1Clemente 552-3) indicam que a igreja jaacute passou
por dificuldades mas ele minimiza a crise inserindo-a numa exortaccedilatildeo em benefiacutecio do bem
comum O presbiacutetero Clemente natildeo atribui agrave sociedade romana a responsabilidade pelas
dificuldades que a comunidade enfrentou Isso sugere a existecircncia de uma comunidade
estabelecida na capital do Impeacuterio engajada em evitar problemas com a sociedade
experiecircncia essa que parecia estar replicada em comunidades da proviacutencia da Aacutesia
Mas se os membros do movimento de Jesus de uma forma geral tentavam manter
laccedilos regulares com a sociedade romana o inverso tambeacutem poderia ser afirmado Da parte
dos governantes geralmente havia certa toleracircncia para com costumes e mesmo divindades
locais desde que natildeo se opusessem aos interesses romanos Esta atitude de toleracircncia relativa
deve ter favorecido o desenvolvimento das igrejas Muitas comunidades existiram sem
serem notadas por quase um seacuteculo165 Accedilotildees oficiais da parte dos prococircnsules procuradores
ou outros magistrados locais como as noticiadas por Pliacutenio o Jovem ao imperador Trajano
no iniacutecio do segundo seacuteculo eram raras
164 KUumlMMEL op cit p 557-558 165 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 p 124
61
Tensotildees se manifestavam de forma intermitente como perseguiccedilotildees eventuais mas
normalmente natildeo eram oficiais Segundo Thompson para pessoas de fora da comunidade o
movimento de Jesus era uma religiatildeo suspeita por quatro motivos era nova estrangeira
secreta e exclusiva166 Provavelmente foi em consequecircncia de uma suspeiccedilatildeo desta natureza
que cristatildeos foram acusados diante do governador da Bitiacutenia algum tempo depois do
Apocalipse
As cartas de Pliacutenio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusaccedilotildees
predominantemente vagas Natildeo havia um crime especiacutefico para o processo contra os cristatildeos
O governador perguntou ldquoHaacute de punir-se o simples fato de algueacutem ser cristatildeo mesmo que
inocente de qualquer crime ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nomerdquo
(Epistola 10962) Ainda assim na duacutevida sobre o que fazer Pliacutenio inaugurou um teste
Os que negarem ser cristatildeos considerei-os merecedores de absolviccedilatildeo De
fato sob minha pressatildeo devotaram-se aos deuses e reverenciaram com
incenso e libaccedilotildees vossa imagem colocada para este propoacutesito ao lado das
estaacutetuas dos deuses e pormenor particular amaldiccediloaram a Cristo coisa
que um genuiacuteno cristatildeo jamais aceita fazer (Epiacutestola 10965)
A proviacutencia governada por Pliacutenio era vizinha da Aacutesia e fazia parte do complexo
cultural da mesma peniacutensula Ainda que o problema principal natildeo fosse o culto imperial o
gesto do governador colocou o movimento em colisatildeo com atividades religiosas locais As
epiacutestolas do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos entendiam ser crime
renegar ritos sagrados locais especialmente o culto imperial
26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo
Nos termos de Leonard Thompson ldquonas proviacutencias rituais imagens templos altares
associados com o culto imperial contribuiacuteam de forma importante para a compreensatildeo das
pessoas acerca da sua relaccedilatildeo com o imperadorrdquo167 Isso fazia da instituiccedilatildeo do culto imperial
uma importante representaccedilatildeo do imperador e do Impeacuterio na Aacutesia Havia entretanto
reciprocidade no seu estabelecimento Era uma honra para a cidade ter um templo ou altar
do culto imperial ao mesmo tempo que era importante para o imperador Impeacuterio e senado
aceitavam a existecircncia do culto imperial e promoviam seu estabelecimento e manutenccedilatildeo
166 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 132 167 Idem p 158
62
como igualmente o faziam as proviacutencias Isso significa que a rede de relaccedilotildees alimentadas
pelo culto imperial entre Roma e Aacutesia era uma rede de poder um instrumento poliacutetico de
vaacuterios niacuteveis168
Simon Price analisou a presenccedila do culto na Aacutesia insistindo na dificuldade de
circunscrever o papel do culto imperial apenas agraves esferas poliacuteticas Ele tinha igualmente um
papel religioso Segundo ele rituais de sacrifiacutecio e devoccedilatildeo puacuteblica ou privada eram
simultaneamente expressotildees religiosas e poliacuteticas169
O culto imperial natildeo foi criado pelo imperador do periacuteodo do Apocalipse Otaacutevio
Augusto recebeu honras das cidades da Aacutesia semelhantes agraves oferecidas aos deuses locais
Sacerdotes do primeiro imperador poderiam ser encontrados em mais de trinta cidades da
Aacutesia Menor e mais parentes seus receberam culto do que qualquer outro imperador depois
dele Durante o governo de Claacuteudio surgiram ao lado do sacerdote exclusivo para o
imperador vivo outros sacerdotes com a responsabilidade de promover culto tambeacutem para
os imperadores mortos Em funccedilatildeo da antiguidade da praacutetica e sua permanecircncia no decorrer
dos governos imperiais eacute possiacutevel afirmar que Domiciano alvo de uma forte criacutetica no
Apocalipse (Apocalipse 13) natildeo foi nem mais nem menos insistente com relaccedilatildeo agraves suas
prerrogativas divinas que qualquer imperador antes ou depois dele170
Todas as cidades do Apocalipse tinham manifestaccedilatildeo do culto imperial em algum
niacutevel cinco delas tinham altares imperiais (com exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia) seis
tinham templos imperiais (com exceccedilatildeo de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com
exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia)171
Aleacutem das praacuteticas e sacrifiacutecios religiosos nos templos e altares dedicados ao
Imperador sacerdotes imperiais promoviam festivais puacuteblicos que eram importantes
expressotildees religiosas e ciacutevicas na Aacutesia Estes festivais poderiam acontecer em diversas datas
mas estavam normalmente vinculados ao aniversaacuterio do Imperador Durante as celebraccedilotildees
os templos e santuaacuterios eram enfeitados e animais eram sacrificados em diversos altares
espalhados pela cidade Em cada local a participaccedilatildeo puacuteblica era aberta e esperada tendo
como cliacutemax uma refeiccedilatildeo ritual172
168 Idem p 159 169 PRICE Simon R F Rituals and Power The Roman imperial cult in Asia Minor Cambridge Cambridge
University Press 1984 p 235 170 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 159 171 PRICE op cit p 55-58 172 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation op cit p 163
63
Dentro dos templos imperiais como nos templos dedicados a outros cultos havia
estaacutetuas do imperador vivo e de outros imperadores alguma iconografia imperial e mesas
para os diversos sacrifiacutecios Estaacutetuas do imperador tambeacutem eram encontradas ao longo das
cidades ou em centros da vida puacuteblica urbana Nem todas as estaacutetuas do imperador
encontradas numa polis eram objeto de culto mas aquelas que estavam em um lugar sagrado
ou quando usadas em um tempo sagrado (um festival religioso por exemplo) tinham um
significado ritual Estas estaacutetuas e imagens tinham sentido religioso e poliacutetico e
funcionavam como um lembrete permanente uma representaccedilatildeo do poder do Imperador173
A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Aacutesia fez com que a
questatildeo do relacionamento com a sociedade se tornasse significativo para o movimento de
Jesus na proviacutencia Era difiacutecil se relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma
de suas celebraccedilotildees puacuteblicas Para alguns liacutederes das igrejas da regiatildeo natildeo havia problema
no envolvimento em atividades proacuteprias da cidade e em comer da comida oriunda dos
sacrifiacutecios religiosos Se participassem destas celebraccedilotildees diminuiriam a tensatildeo com a
sociedade e continuariam envolvidos nos diversos negoacutecios da vida urbana Alguns
entretanto como Joatildeo de Patmos possuiacuteam uma perspectiva distinta Possivelmente ele
representava uma minoria dentro das igrejas da Aacutesia que instava fortemente as comunidades
a exacerbar a tensatildeo com a sociedade e a se isolar das estruturas sociais da peniacutensula174
27 Resumo
A ilha de Patmos de onde partiu o Apocalipse e a proviacutencia romana da Aacutesia seu
destino partilhavam de uma mesma conjuntura social Era uma das regiotildees mais ricas do
Impeacuterio Romano com a presenccedila de comunidades judaicas espalhadas por vaacuterias de suas
cidades Membros destas comunidades que criam em Jesus como o Messias estavam na base
das mais antigas igrejas da regiatildeo Tanto as sinagogas quanto a maioria das igrejas
buscavam desenvolver seus ritos e crenccedilas sem conflito com a sociedade romana local
mesmo diante de tensotildees que poderiam se manifestar em relaccedilatildeo ao culto imperial Alguns
liacutederes buscavam manter orientaccedilotildees que poderiam proceder do apoacutestolo Paulo e assim
permitir a participaccedilatildeo dos membros em atividades ciacutevicas e religiosas locais Essas
173 Idem p 163 174 Idem p 167
64
comunidades natildeo desejavam que suas praacuteticas religiosas inviabilizassem seus
relacionamentos com a sociedade romana Joatildeo de Patmos entretanto manifesta em sua
obra uma postura oposta a liacutederes como seu contemporacircneo Clemente Romano Na
perspectiva do autor do Apocalipse para ser fiel ao seu fundador o movimento de Jesus
precisava rejeitar o Impeacuterio
III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE
JOAtildeO
Joatildeo de Patmos judeu emigrante da Palestina apoacutes a guerra contra os romanos por
meio de narrativas imagens e siacutembolos se apropriou de determinadas tradiccedilotildees religiosas
judaicas e construiu um apocalipse que pretendia explicar a conjuntura histoacuterica que o
movimento de Jesus experimentou e experimentava no interior da proviacutencia romana da Aacutesia
A obra culmina na descriccedilatildeo do juiacutezo final e da nova criaccedilatildeo divina Antes disso entretanto
o autor apresenta um periacuteodo de governo messiacircnico iminente terrenal intra-histoacuterico por
mil anos (Apocalipse 201-10) Apesar de curta a narrativa do milecircnio acabaraacute no centro dos
debates e das interpretaccedilotildees subsequentes do livro joanino175 Queremos neste capiacutetulo
analisar a produccedilatildeo desta periacutecope no contexto da obra joanina a partir de suas apropriaccedilotildees
tradicionais e literaacuterias na direccedilatildeo de novas representaccedilotildees individuais e coletivas
histoacutericas e milenaristas Procuramos refletir tambeacutem sobre a forma como estas
representaccedilotildees poderiam interferir no mundo social de Joatildeo e suas comunidades176
31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse
Adela Y Collins sugeriu que a obra joanina apesar de apresentar certos sinais que
indicariam uma estrutura clara (sete igrejas sete selos sete trombetas e sete taccedilas por
exemplo) natildeo eacute tatildeo transparente assim deixando a audiecircncia com certa expectativa
frustrada Isso poderia explicar os longos debates a respeito da estrutura da obra de Joatildeo177
Entre as alternativas David L Barr preferiu construir um esboccedilo do livro acompanhando o
desenvolvimento de suas narrativas Por isso ele dividiu o Apocalipse joanino em trecircs seccedilotildees
principais emolduradas por uma estrutura epistolar (os versiacuteculos 11-3 formariam o
prefaacutecio enquanto 226-21 a conclusatildeo) Ele as chamou de Seccedilatildeo das Cartas (14-322)
Seccedilatildeo do Culto Celestial (41-1118) e Seccedilatildeo da Guerra Escatoloacutegica (1119-225)178 Nossa
175 Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene
Wipf and Stock Publishers 2001 p 21-87 KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation
Oxford Blackwell Publishing 2004 p 200-219 176 Pensamos aqui nos papeacuteis sociais instituiccedilotildees sociais e relacionamentos sociais 177 Conferir uma histoacuteria da estruturaccedilatildeo do Apocalipse em COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in
the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 13-44 178 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa
Polebridge Press 1998
66
proposta de esboccedilo para o Apocalipse parte das sugestotildees de Barr em funccedilatildeo da forma como
ele compreendeu o desenvolvimento narrativo do livro joanino e o enquadramento
particular de cada episoacutedio literaacuterio no interior da obra como um todo Por meio deste esboccedilo
eacute possiacutevel entatildeo verificar o lugar do milecircnio dentro do Apocalipse Em termos literaacuterios ele
faz parte da narrativa da guerra escatoloacutegica ao descrever a vitoacuteria do Jesus exaltado sobre
Satanaacutes e as bestas num evento que termina com o juiacutezo final e a Nova Jerusaleacutem
- Introduccedilatildeo epistolar (11-3)
- Primeira seccedilatildeo ndash O Filho do Homem e as sete igrejas da Aacutesia (14-322)
Carta agrave Igreja em Eacutefeso (21-7)
Carta agrave Igreja em Esmirna (28-11)
Carta agrave Igreja em Peacutergamo (212-17)
Carta agrave Igreja em Tiatira (218-29)
Carta agrave Igreja em Sardes (31-6)
Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia (37-13)
Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia (314-22)
- Segunda seccedilatildeo ndash O rolo selado com sete selos (41-1119)
O culto ao Anciatildeo no trono (41-11)
O culto ao Cordeiro (51ndash14)
Selo 1 ndash Cavalo branco (61ndash2)
Selo 2 ndash Cavalo vermelho (63ndash4)
Selo 3 ndash Cavalo preto (65-6)
Selo 4 ndash Cavalo amarelo (67-8)
Selo 5 ndash Os maacutertires debaixo do altar (69-11)
Selo 6 ndash Juiacutezo escatoloacutegico (612-17)
Interluacutedio (71-17)
144000 selados (71-8)
Grande multidatildeo (79ndash17)
Selo 7 - Sete trombetas (81ndash1119)
O anjo das oraccedilotildees (81ndash6)
Trombeta 1 ndash Granito e fogo sobre a terra (88-7)
Trombeta 2 ndash Mar se torna em sangue (88-9)
Trombeta 3 ndash Estrelas tornam rios amargos (810-11)
Trombeta 4 ndash Sol lua e estrelas escurecem (812-13)
Trombeta 5 ndash Gafanhotos sobem do abismo (91-12)
Trombeta 6 ndash Quatro anjos e um exeacutercito matam pessoas (913-21)
Interluacutedio (101-1114)
Um livro para ser comido (101-11)
As duas testemunhas (111-14)
Trombeta 7 ndash A chegada do reino de Deus (1115ndash19)
- Terceira seccedilatildeo ndash A guerra escatoloacutegica (121-225)
A origem da guerra (121-18)
Os aliados do Dragatildeo (131-18)
A besta do mar (131-10)
A besta da terra (1311-18)
67
Os 144000 guerreiros do Cordeiro (141-5)
O anuacutencio dos trecircs anjos (146-12)
A bem-aventuranccedila dos mortos (1413)
O juiacutezo como uma ceifa (1414-20)
As sete taccedilas da ira (151-1621)
Os maacutertires diante de Deus (151-8)
Taccedila 1 Dores nos marcados pela besta (161-2)
Taccedila 2 O mar se torna em sangue (163)
Taccedila 3 Os rios se tornam em sangue (164-7)
Taccedila 4 O sol provoca feridas (168-9)
Taccedila 5 Trevas no trono da besta (1610-11)
Taccedila 6 A seca do Rio Eufrates e a coalizatildeo do Dragatildeo (1612-16)
Taccedila 7 Juiacutezo sobre Babilocircnia (1617-21)
A prostituta destruiacuteda (171-18)
Hino fuacutenebre pela queda da Babilocircnia (181-24)
Celebraccedilatildeo no ceacuteu pela queda da Babilocircnia (191-4)
O culto no ceacuteu anuncia as bodas do Cordeiro (195-10)
A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre as bestas (1911-21)
A prisatildeo do Dragatildeo (201-3)
O reino messiacircnico milenar (204-6)
A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre o Dragatildeo (207-10)
O juiacutezo final (2011-15)
A Nova Jerusaleacutem (211-225)
- Conclusatildeo epistolar (226-21)
32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo
Uma das caracteriacutesticas recorrentes nos apocalipses segundo John Collins eacute a
ldquorevelaccedilatildeordquo179 O proacuteprio termo ldquoapocalipserdquo () significa ldquorevelaccedilatildeordquo180 Seus
autores se propotildeem a revelar algo para sua audiecircncia Em linhas amplas estas revelaccedilotildees
poderiam ser divididas em dois eixos um vertical e outro horizontal
No eixo horizontal os autores queriam revelar o passado e o futuro O foco varia de
texto a texto com algumas obras com ecircnfase no passado ao descreverem os primoacuterdios da
histoacuteria da humanidade o iniacutecio da saga do povo de Deus ou mesmo uma descriccedilatildeo
cosmogocircnica sobre como as coisas vieram a ser o que satildeo no seu presente momento Quando
o foco estava no futuro os autores pretendiam descrever a intervenccedilatildeo final de Deus que
promoveria uma inversatildeo escatoloacutegica com todas as suas consequecircncias (cataclismos
coacutesmicos e juiacutezo sobre os inimigos de um lado nova criaccedilatildeo e recompensa para os membros
179 COLLINS John J Introduction towards the morphology of a genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979
p 9 180 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 66
68
do grupo do outro) Nesta perspectiva haacute a construccedilatildeo de um esquema teleoloacutegico da
histoacuteria no qual um fim glorioso resolveria a violecircncia e os traumas do passado e do presente
da comunidade destinataacuteria do apocalipse em questatildeo
No eixo vertical uma obra apocaliacuteptica se propotildee a revelar o que estaacute para aleacutem do
mundo humano o que estaacute acima e o que estaacute abaixo os ceacuteus e os submundos bem como
as coisas e seres que existem nestes espaccedilos Haacute aqui uma preocupaccedilatildeo em entender como
o universo funciona como o mundo sobrenatural interfere no mundo dos seres humanos e
na natureza e como controlar ou pelo menos ter acesso a essas realidades sobrenaturais
O Apocalipse de Joatildeo como outros apocalipses antes dele e depois dele tambeacutem
possui essas preocupaccedilotildees horizontais e verticais Como as revelaccedilotildees apocaliacutepticas satildeo
transmitidas no formato de narrativas o conteuacutedo do livro do profeta de Patmos estaacute
apresentado no interior de trecircs histoacuterias distintas mas inter-relacionadas181 A primeira
histoacuteria a ser narrada eacute a do aparecimento do Filho do Homem que promove o ditado de sete
cartas para um grupo de igrejas da Aacutesia romana Nestas cartas a figura celestial conhecida
das tradiccedilotildees de Daniel182 e 1Enoque183 faz ameaccedilas elogios e promessas e termina cada
carta com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores As mensagens
das cartas giram em torno de distuacuterbios entre os proacuteprios membros do movimento de Jesus
por causa das diferentes posturas de relacionamento com a sociedade romana em cada
contexto local184
Na segunda seccedilatildeo do livro o narrador das revelaccedilotildees eacute levado em espiacuterito (ldquoἐν
πνεύματιrdquo) por uma porta aberta no ceacuteu Neste lugar ele presencia uma sucessatildeo de atos
lituacutergicos e eacute apresentado aos principais personagens celestiais o Anciatildeo sobre o trono os
Quatro Viventes os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais e vaacuterios seres angelicais A figura
181 Interpretamos as narrativas do Apocalipse agrave luz do contexto em que ele foi composto Isso significa que as
analogias que constroacutei as imagens que utiliza os siacutembolos recorrentes na obra seratildeo compreendidos como
referecircncia a eventos histoacutericos do seu tempo ou como elementos escatoloacutegicos proacuteprios ao movimento de
Jesus no final do seacuteculo I especialmente no contexto da regiatildeo Aacutesia-Siacuteria-Palestina Cf COLLINS Adela
Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E J Brill 1996 p 198
Diversas outras formas de interpretar o mesmo conteuacutedo satildeo resumidas e analisadas em WAINWRIGHT op
cit 182 Daniel 7 narra a sucessatildeo de reinos e governos na forma de quatro animais mitoloacutegicos No interior desta
revisatildeo histoacuterica apocaliacuteptica o texto descreve a figura do Anciatildeo celestial e o Filho do Homem que o
representa Cf COLLINS John J Daniel with in introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William
B Eerdmans Publishing Company 1984 p 83 183 Em 1Enoque 7114-17 Enoque ascende aos ceacuteus onde encontra o proacuteprio Deus Ali o patriarca recebe a
informaccedilatildeo que ele eacute realmente o Filho do Homem figura que teria um papel significativo na salvaccedilatildeo
escatoloacutegica dos eleitos de Deus Cf OLSON Daniel C Enoch and the Son of Man in the Epilogue of the
Parables Journal for the Study of the Pseudepigrapha Thousand Oaks n 18 p 27-38 1998 184 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 p 58
69
fundamental entretanto eacute descrita como o Cordeiro (ἀρνίον) Eacute ele que recebe um rolo selado
com sete selos estrateacutegia simboacutelica para interpretar eventos e fenocircmenos histoacutericos A cada
selo corresponde uma revelaccedilatildeo ateacute o seacutetimo que por sua vez se desdobra em outro grupo
de sete elementos desta vez sete trombetas Como os selos cada trombeta estaacute relacionada
com um evento numa escala crescente de intensidade que culmina com a audiccedilatildeo de um
hino que comemora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuaacuterio celestial
A terceira parte do livro conta a histoacuteria de uma guerra que comeccedila quando uma
figura demoniacuteaca o Dragatildeo vermelho fracassa no seu propoacutesito de destruir uma crianccedila e
sua matildee sendo por isso expulso do ceacuteu para a terra Sua reaccedilatildeo eacute instaurar uma guerra contra
outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas Em contrapartida o
Cordeiro reuacutene seu exeacutercito convocando 144000 guerreiros dispostos a lutar ateacute a morte O
confronto resulta no nuacutemero determinado de maacutertires necessaacuterios para instaurar a
intervenccedilatildeo escatoloacutegica de Deus na forma de sete taccedilas de ira Apoacutes o derramamento das
taccedilas Jesus agora como um cavaleiro celestial desce do ceacuteu com uma hoste de anjos para
derrotar o Dragatildeo e seus aliados Num primeiro ato as bestas satildeo lanccediladas num lago de fogo
todo o exeacutercito adversaacuterio eacute morto e o Dragatildeo eacute aprisionado por mil anos O segundo ato
coloca fim agrave guerra quando o Dragatildeo eacute novamente solto somente para ser vencido e lanccedilado
no mesmo espaccedilo de juiacutezo onde jaacute estavam as duas bestas Entre os dois atos a narrativa
apresenta o reino messiacircnico com a participaccedilatildeo da figura exaltada de Jesus e os maacutertires
ressuscitados agora como reis e sacerdotes de Deus Com o fim do milecircnio e da guerra
escatoloacutegica o autor do Apocalipse descreve o fim da histoacuteria marcada pelo juiacutezo final e a
chegada da Nova Jerusaleacutem
33 O contexto narrativo do reino milenar
A sequecircncia narrativa e temporal da terceira seccedilatildeo (Apocalipse 121-225) natildeo eacute
linear Haacute muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como repeticcedilotildees ou incidentes
similares Existe um iacutentimo paralelo entre a sequecircncia das taccedilas (Apocalipse 161-21) e a
sequecircncia das trombetas (Apocalipse 88-1119) bem como vaacuterias cenas que parecem
interromper o fio narrativo Normalmente estas interrupccedilotildees funcionam para apresentar uma
interpretaccedilatildeo de algum aspecto da narrativa Mesmo assim ainda existe um sentido de
movimento para frente O primeiro episoacutedio apresenta o nascimento de uma crianccedila descrita
70
em termos messiacircnicos (Apocalipse 125) o que parece ser alusatildeo ao nascimento de Jesus
nove deacutecadas antes do Apocalipse surgir em Patmos e termina com o juiacutezo final e a
restauraccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo agora descrita como a Nova Jerusaleacutem A primeira cena estaacute
no passado da audiecircncia do Apocalipse e a uacuteltima estaacute no futuro Isso parece evidenciar o
desenvolvimento de uma narraccedilatildeo contiacutenua com princiacutepio meio e fim nos moldes dos
chamados apocalipses histoacutericos da tipologia de John Collins185
Em Apocalipse 121-18 Joatildeo narra uma guerra no ceacuteu e a expulsatildeo do Dragatildeo para
a terra Este tenta destruir a crianccedila messiacircnica mas falha no momento em que ela eacute
arrebatada para o ceacuteu Diante disto o Dragatildeo procura destruir a Mulher que eacute protegida no
deserto Depois de fracassar na perseguiccedilatildeo da Mulher o Dragatildeo parte para a perseguiccedilatildeo
dos outros filhos da Mulher (σπέρματος αὐτῆς) aqueles que ldquoguardam os mandamentos de
Deus e sustentam o testemunho de Jesusrdquo (ldquoτῶν τηρούντων τὰς ἐντολὰς τοῦ θεοῦ καὶ ἐχόντων
τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦrdquo) Tal descriccedilatildeo pretendia explicar para sua audiecircncia que uma iminente
perseguiccedilatildeo das igrejas teria como causa um conflito fora do mundo humano que envolveu
o fracasso de Satanaacutes em destruir Jesus e sua consequente expulsatildeo para a terra186
Um proacuteximo estaacutegio na narrativa apresenta os aliados do Dragatildeo duas bestas (qhria)
descritas em termos que apontavam para o Impeacuterio Romano e suas estruturas na proviacutencia
da Aacutesia como agentes demoniacuteacos187 Com esta estrateacutegia o profeta de Patmos queria indicar
que uma guerra coacutesmica jaacute comeccedilara e o conflito iria se acentuar enormemente mas em
breve Deus iria intervir nos acontecimentos por meio de Jesus Para o Apocalipse as igrejas
da Aacutesia e seus membros se encontravam no meio da luta depois do levantamento das bestas
mas antes que elas instaurassem a perseguiccedilatildeo generalizada
O estaacutegio seguinte da guerra pode ser denominado de ldquoresposta do Cordeirordquo Este
comeccedila sua reaccedilatildeo com a reuniatildeo de um exeacutercito de oposiccedilatildeo sobre o monte Siatildeo
(Apocalipse 141-5) provavelmente uma descriccedilatildeo dos seguidores de Jesus logo
martirizados Como resultado dessas mortes completa-se o nuacutemero dos maacutertires
185 Segundo Collins haacute tipos diferentes de apocalipses Uns como Daniel 7-12 4Esdras e 2Baruque focam
em descriccedilotildees histoacutericas e descrevem julgamentos coacutesmicos Outros como 2Enoque ou 3Baruque se
concentram em viagens celestiais e revelaccedilotildees sobre a realidade da alma apoacutes a morte O Apocalipse de Joatildeo
enfatiza o autor eacute um apocalipse de tipo misto que apesar de apresentar algum tipo de revelaccedilatildeo de mundo
sobrenatural se concentra na reflexatildeo histoacuterica Cf COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura
apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 4 COLLINS John J
Introductionhellip op cit p 13 186 HENTEN Jan Willem Dragon Myth and Imperial Ideology in Revelation 12-13 In BARR David L (ed)
The Reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical
Literature 2006 p 181-203 p 202 187 COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation op cit p 232
71
mencionados no quinto selo (Apocalipse 69-11) dando iniacutecio agraves sete pragas finais sobre a
terra na forma de sete taccedilas O cliacutemax das taccedilas de julgamento estaacute na descriccedilatildeo da queda da
Babilocircnia caracterizaccedilatildeo simboacutelica de Roma
Finalmente chega a fase final da guerra O cavaleiro celestial aparece do ceacuteu e
alcanccedila vitoacuteria sobre as bestas Um anjo desce do ceacuteu e prende o Dragatildeo Um periacuteodo
interino de paz por mil anos eacute estabelecido durante o qual os martirizados retornam agrave vida
como juiacutezes reis e sacerdotes de Cristo Apoacutes o milecircnio Satatilde eacute novamente libertado Ele
reuacutene um exeacutercito demoniacuteaco mas eacute derrotado definitivamente
34 O episoacutedio do reino milenar
Texto Grego188 Traduccedilatildeo proacutepria 1 Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ
οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ
ἅλυσιν μεγάλην ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ
1 E vi um anjo189 descendo do ceacuteu tendo a
chave do abismo190 e uma grande corrente
em suas matildeos 2 καὶ ἐκράτησεν τὸν δράκοντα ὁ ὄφις ὁ
ἀρχαῖος ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς
καὶ ἔδησεν αὐτὸν χίλια ἔτη191
2 E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente
que eacute o Diabo e Satanaacutes192 aprisionando-o
por mil anos 3 καὶ ἔβαλεν αὐτὸν εἰς τὴν ἄβυσσον καὶ
ἔκλεισεν καὶ ἐσφράγισεν ἐπάνω αὐτοῦ ἵνα
μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ
χίλια ἔτη μετὰ ταῦτα δεῖ λυθῆναι αὐτὸν
μικρὸν χρόνον
3 E lanccedilou-o para o abismo fechou e selou
o abismo para que natildeo engane mais as
naccedilotildees ateacute que se complete os mil anos
Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele
seja solto por pouco tempo 4 Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽
αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς καὶ τὰς
ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν
4 E vi tronos e sentaram neles e
[autoridade de] julgamento foi dada a
eles193 tambeacutem as almas dos
188 ALAND Kurt et all The Greek New Testament 4 ed rev London United Bible Society 2008 p 737-
738 O texto grego apresenta muitas dificuldades em funccedilatildeo de deficiecircncias e imprecisotildees sintaacuteticas Faltam
sujeitos haacute um acusativo solto um nominativo no lugar de um acusativo um pronome relativo que poderia
natildeo ter viacutenculos com seu antecedente mais oacutebvio A traduccedilatildeo proposta reflete uma tentativa de ordenaccedilatildeo Cf
MILLOS Samuel Peacuterez Apocalipsis comentario exegeacutetico al texto griego del Nuevo Testamento Barcelona
Editorial Clie 2010 p 1213 189 A expressatildeo aparece indefinida ldquoum anjordquo Natildeo haacute qualquer ecircnfase ou destaque no papel do anjo que prende
Satatilde Todo o destaque da narrativa vai para o Cristo que reina e os martirizados ressuscitados Cf POHL
Adolf Apocalipse de Joatildeo Curitiba Editora Evangeacutelica Esperanccedila 2001 2v V II p 221 190 O abismo natildeo eacute idecircntico ao lago de fogo e parece ser referecircncia agrave morada dos seres demoniacuteacos Cf
PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 363 191 A expressatildeo ldquoχίλια ἔτηrdquo soacute aparece no Novo Testamento nesta passagem do Apocalipse e em 2Pedro 38 192 Todos os tiacutetulos aqui mencionados apareceram antes nos episoacutedios do confronto entre o Dragatildeo e a Mulher
e o Dragatildeo e Miguel em Apocalipse 12 Laacute Satatilde foi lanccedilado para a terra Aqui ele eacute jogado no abismo Cf
FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991 p
107 193 Literalmente ldquoe julgamento foi dado a elesrdquo Pode significar que finalmente um julgamento terminou em
favor dos maacutertires ou como aqui optamos que o julgamento foi confiado a eles ou seja a autoridade para
exercer o juiacutezo Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 365
72
μαρτυρίαν Ἰησοῦ καὶ διὰ τὸν λόγον τοῦ
θεοῦ καὶ οἵτινες οὐ προσεκύνησαν τὸ
θηρίον οὐδὲ τὴν εἰκόνα αὐτοῦ καὶ οὐκ
ἔλαβον τὸ χάραγμα ἐπὶ τὸ μέτωπον καὶ ἐπὶ
τὴν χεῖρα αὐτῶν καὶ ἔζησαν καὶ
ἐβασίλευσαν μετὰ τοῦ Χριστοῦ χίλια ἔτη
decapitados194 por causa do testemunho de
Jesus e da palavra de Deus e todos195 que
natildeo adoraram a besta nem sua imagem e
natildeo receberam a marca dela na fronte e na
matildeo Viveram e reinaram com Cristo por
mil anos 5 οἱ λοιποὶ τῶν νεκρῶν οὐκ ἔζησαν ἄχρι
τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη αὕτη ἡ ἀνάστασις ἡ
πρώτη
5 Os demais mortos natildeo viveram ateacute que
terminasse os mil anos Esta eacute a primeira
ressurreiccedilatildeo196 6 μακάριος καὶ ἅγιος ὁ ἔχων μέρος ἐν τῇ
ἀναστάσει τῇ πρώτῃmiddot ἐπὶ τούτων ὁ
δεύτερος θάνατος οὐκ ἔχει ἐξουσίαν ἀλλ᾽
ἔσονται ἱερεῖς τοῦ θεοῦ καὶ τοῦ Χριστοῦ
καὶ βασιλεύσουσιν μετ᾽ αὐτοῦ [τὰ] χίλια
ἔτη
6 Bendito e santo o que tem parte na
primeira ressurreiccedilatildeo Sobre estes a
segunda morte197 natildeo tem poder poreacutem
seratildeo sacerdotes de Deus e de Cristo e
reinaratildeo com ele por mil anos
7 Καὶ ὅταν τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη λυθήσεται
ὁ Σατανᾶς ἐκ τῆς φυλακῆς αὐτοῦ
7 E quando concluir os mil anos seraacute solto
Satanaacutes da sua prisatildeo 8 καὶ ἐξελεύσεται πλανῆσαι τὰ ἔθνη τὰ ἐν
ταῖς τέσσαρσιν γωνίαις τῆς γῆς τὸν Γὼγ
καὶ Μαγώγ συναγαγεῖν αὐτοὺς εἰς τὸν
πόλεμον ὧν ὁ ἀριθμὸς αὐτῶν ὡς ἡ ἄμμος
τῆς θαλάσσης
8 E viraacute a enganar as naccedilotildees198 que estatildeo
nos quatro cantos da terra Gog e Magog199
e reuni-las para a guerra das quais o
nuacutemero eacute como a areia do mar
9 καὶ ἀνέβησαν ἐπὶ τὸ πλάτος τῆς γῆς καὶ
ἐκύκλευσαν τὴν παρεμβολὴν τῶν ἁγίων
9 E subiram200 entatildeo pela superfiacutecie da terra
e cercaram o acampamento dos santos e a
194 Literalmente ldquodegolados por um machadordquo Termo arcaizante jaacute que este tipo de supliacutecio usado na
Repuacuteblica Romana natildeo era comum nos tempos do Impeacuterio Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p
366 195 Alguns autores argumentam que o pronome relativo οἵτινες daria margem para dois grupos de exaltados (os
ressuscitados e os que natildeo adoraram a besta) Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 366-367
Acompanhamos entretanto o argumento de David Aune que entende a claacuteusula relativa como uma descriccedilatildeo
de um uacutenico grupo os martirizados A expressatildeo fornece as causas positivas para o martiacuterio (testemunho de
Jesus e da Palavra de Deus) e as negativas (natildeo adoraram a besta e natildeo receberam sua marca) Cf AUNE
David E Revelation 17-22 op cit p 1088-1089 196 Segundo este episoacutedio do Apocalipse apenas os maacutertires participam da primeira ressurreiccedilatildeo O livro de
Daniel localizou a ressurreiccedilatildeo dos mortos no iniacutecio do reino messiacircnico 4Esdras e 2Baruque a localizam no
final Aparentemente o Apocalipse harmonizou duas tradiccedilotildees diferentes afirmando duas ressurreiccedilotildees uma
no iniacutecio do reino milenar outra no final Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1090-1091 197 Segundo Aune a expressatildeo ldquosegunda morterdquo pode significar a exclusatildeo da ressurreiccedilatildeo do final dos tempos
ou a eterna danaccedilatildeo Ele sugere a segunda opccedilatildeo como mais plausiacutevel neste contexto da narrativa do
Apocalipse Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1093 198 As naccedilotildees aqui seduzidas oriundas dos quatro cantos da terra que precisam subir pela superfiacutecie para cercar
o acampamento dos santos parecem aludir a um exeacutercito de seres demoniacuteacos que estavam no submundo com
Satatilde Cf FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 106 POHL op cit p 236 199 Alusatildeo a Ezequiel 38-39 que vaticinou um ataque de naccedilotildees hostis aos habitantes da Palestina nos uacuteltimos
dias No Apocalipse entretanto Gog e Magog natildeo satildeo descriccedilotildees de povos ou naccedilotildees mas referecircncia
metafoacuterica ao exeacutercito demoniacuteaco de oposiccedilatildeo final Cf POHL op cit p 237 200 Haacute nos versiacuteculos 9 e 10 uma curiosa inconsistecircncia verbal Os verbos que descrevem a prisatildeo inicial de
Satatilde estatildeo no aoristo indicativo traduzidos normalmente pelo preteacuterito A partir do versiacuteculo 7 as claacuteusulas
temporais passam para o futuro (ldquoenganaraacute as naccedilotildeesrdquo ldquoreuniraacute para a guerrardquo) mas retornam para o aoristo
no relato do confronto final (ldquosubiram pela superfiacutecierdquo ldquocercaram o acampamentordquo ldquodesceu fogordquo etc)
Possivelmente isto tenha origem na jaacute mencionada desordenaccedilatildeo gramatical da passagem Cf MILLOS op
cit p 1213
73
καὶ τὴν πόλιν τὴν ἠγαπημένην καὶ κατέβη
πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e os
queimou 10 καὶ ὁ διάβολος ὁ πλανῶν αὐτοὺς ἐβλήθη
εἰς τὴν λίμνην τοῦ πυρὸς καὶ θείου ὅπου
καὶ τὸ θηρίον καὶ ὁ ψευδοπροφήτης καὶ
βασανισθήσονται ἡμέρας καὶ νυκτὸς εἰς
τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων
10 E o diabo o enganador deles foi jogado
para o lago201 de fogo e enxofre onde
tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta e
seratildeo atormentados dia e noite para todo o
sempre
O episoacutedio do milecircnio pode ser dividido em trecircs partes a prisatildeo do Dragatildeo
(versiacuteculos 1-3) os maacutertires ressuscitados (versiacuteculos 4-6) a condenaccedilatildeo do Dragatildeo
(versiacuteculos 7-10) Satildeo trecircs partes contudo apenas duas histoacuterias que se unem pela expressatildeo
temporal ldquomil anosrdquo (χίλια ἔτη) aqui narradas como parte da revelaccedilatildeo vertical ou seja
eventos que ocorreratildeo no futuro em relaccedilatildeo ao tempo da audiecircncia A narrativa do juiacutezo
sobre Satanaacutes segue do versiacuteculo 1 ao 3 e eacute retomada nos versiacuteculos 7-10 No meio dela estaacute
a narraccedilatildeo do reinado dos maacutertires202 Se narrada de forma linear sem a interrupccedilatildeo este
seria o episoacutedio da prisatildeo e destruiccedilatildeo do Dragatildeo
E vi um anjo descendo do ceacuteu tendo a chave do abismo e uma grande
corrente em suas matildeos E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente que eacute o
Diabo e Satanaacutes aprisionou-o por mil anos E lanccedilou-o para o abismo
fechou e selou o abismo para que natildeo enganasse mais as naccedilotildees ateacute que se
completasse os mil anos Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele seja
solto por pouco tempo E quando concluir os mil anos Satanaacutes seraacute solto
da sua prisatildeo E viraacute a enganar as naccedilotildees que estatildeo nos quatro cantos da
terra Gog e Magog e reuni-las para a guerra das quais o nuacutemero eacute como
a areia do mar E subiram entatildeo pela superfiacutecie da terra e cercaram o
acampamento dos santos e a cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e as
queimou E o diabo o enganador delas foi jogado para o lago de fogo e
enxofre onde tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta E seratildeo
atormentados dia e noite para todo o sempre
A prisatildeo e condenaccedilatildeo de Satanaacutes concluem a cena da vitoacuteria de Jesus sobre seus
adversaacuterios que aparece em Apocalipse 1911 como um cavaleiro montado sobre um cavalo
branco Aparentemente toda a seccedilatildeo posterior ao aparecimento do Jesus exaltado estaacute
estruturada segundo um esquema encontrado em Ezequiel203 Eacute possiacutevel relacionar por
201 O termo λίμνην pode significar lago tanque ou neste caso especiacutefico charco pacircntano ou lodaccedilal A
expressatildeo λίμνην τοῦ πυρὸς parece fazer referecircncia ao lugar conhecido como geena descrita em Mateus 522
como geenan tou puroj Era um vale que se estendia para fora da muralha sul de Jerusaleacutem conhecido tambeacutem
como Vale de Hinom local que servia nos tempos de Jesus como depoacutesito de lixo O portatildeo para o vale chegava
a ser chamado de Portatildeo do Esterco O lixo era constantemente incendiado fazendo do vale um espaccedilo de
fumaccedila e fedor Alguns judeus o tinham como o lugar mais asqueroso do mundo Daiacute a relaccedilatildeo com a descriccedilatildeo
do sofrimento escatoloacutegico ser feita com traccedilos do Vale de Hinom Cf POHL op cit p 219 202 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 107 203 ULFGARD Hakan Biblical and para-biblical origins of millennarianism Religiologiques Montreal n 20
p 25-49 1999 p 34
74
exemplo a ressurreiccedilatildeo dos maacutertires com o levantamento dos ossos secos de Ezequiel 37 o
confronto final de Satanaacutes com o ataque de Gog de Magog (Ezequiel 38)204 a nova
Jerusaleacutem de Apocalipse com o novo templo e a nova cidade de Ezequiel 40-48205
No interior desta longa cena de conquista dos adversaacuterios Satanaacutes eacute aprisionado
provisoriamente A noccedilatildeo de uma prisatildeo temporaacuteria para seres sobrenaturais natildeo era
desconhecida do Judaiacutesmo antigo O autor do Mito dos Vigilantes (1Enoque 1-36) em algum
momento do seacuteculo II antes da Era Comum apoacutes descrever a transgressatildeo dos vigilantes
celestiais narra o destino deles em duas versotildees Em 1Enoque 104-6
- Deus envia o anjo Rafael
- Azazel eacute amarrado por um anjo
- Azazel eacute lanccedilado na escuridatildeo e aprisionado para sempre
- o tempo do aprisionamento eacute descrito como o grande dia do julgamento
- Azazel eacute lanccedilado no fogo no grande dia do julgamento
Logo depois outra versatildeo do juiacutezo eacute narrada em 1Enoque 1011-13
- Deus envia o anjo Miguel
- o anjo amarra Semjaza e seus associados
- eles satildeo aprisionados sob a terra
- o periacuteodo de prisatildeo eacute limitado a 70 geraccedilotildees
- no dia do julgamento eles seratildeo lanccedilados no abismo de fogo
Esta narrativa dupla parece ser o resultado da fusatildeo de tradiccedilotildees que vinculavam a
presenccedila dos males no mundo a seres demoniacuteacos que receberam de Deus uma dupla
sentenccedila o aprisionamento em alguma regiatildeo do cosmos e a destruiccedilatildeo no final dos tempos
Nestas tradiccedilotildees judaicas os adversaacuterios sobrenaturais possuem nomes diferentes mas satildeo
condenados igualmente agrave prisatildeo enquanto aguardam a destruiccedilatildeo final (Jubileus 56 107-
11 2Enoque 72 2Apocalipse de Baruque 5613 Judas 6)
David Aune sugeriu que a base comum a essas tradiccedilotildees poderia ser uma releitura de
Isaias 2421-22 ldquoNaquele dia o Senhor castigaraacute no ceacuteu as hostes celestes e os reis da
terra na terra Seratildeo ajuntados como presos em masmorra e encerrados num caacutercere e
204 A passagem de Ezequiel 382 fala do rei Gog da terra de Magog Apocalipse entretanto nivelou as duas
expressotildees como se fossem dois reis ou dois povos Gog e Magog Esta apropriaccedilatildeo joanina do texto de
Ezequiel parece refletir a expectativa presente em alguns apocalipses antigos que o povo de Deus seria atacado
por um ajuntamento de forccedilas inimigas no final dos tempos Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p
371 205 Cf tambeacutem PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 350 POHL op cit p 235
75
castigados depois de muitos diasrdquo206 Na adaptaccedilatildeo joanina entretanto a histoacuteria do
aprisionamento dos seres demoniacuteacos aparece secionada em duas partes pois entre elas o
Apocalipse apresentou o reinado dos maacutertires exaltados (versiacuteculos 4-6)
Estes maacutertires aparecem em diversas passagens do Apocalipse Uma das mais
significativas eacute a cena do quinto selo (Apocalipse 69-11) Debaixo do altar estatildeo pessoas
que morreram por causa da palavra de Deus e do testemunho () Elas querem saber
quando eacute que o seu sangue seraacute vingado por Deus Como resposta ouvem uma espeacutecie de
enigma apocaliacuteptico ldquofoi-lhes dito que repousassem por mais um pouco de tempo ateacute que
se completasse o nuacutemero de seus companheiros e irmatildeos que iriam ser mortos como eles
foramrdquo (Apocalipse 611) O autor do Apocalipse argumenta que Deus vai trazer justiccedila
sobre todos os que mataram seus seguidores poreacutem antes eacute preciso que se complete uma
determinada cota de disciacutepulos que deveratildeo morrer O juiacutezo viraacute quando um nuacutemero
especiacutefico de pessoas tiver morrido da mesma forma como aqueles que jaacute estatildeo debaixo do
altar o foram
Joatildeo promete que estes maacutertires seratildeo recompensados por Deus mais do que os outros
disciacutepulos de Jesus Afinal somente eles ressuscitariam para reinar com Jesus na terra207
Esta expectativa jaacute aparecera bem no iniacutecio da segunda seccedilatildeo Quando o Cordeiro pegou o
livro selado os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais cantaram a canccedilatildeo ldquoDigno eacutes de tomar
o livro e de abrir-lhe os selos porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus
os que procedem de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e para o nosso Deus os constituiacuteste reino
e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo (Apocalipse 59-10) Na narrativa do Apocalipse o
milecircnio seria o cumprimento deste hino cantado no ceacuteu por figuras sobrenaturais
Segundo Aune a cena dos tronos em contexto escatoloacutegico eacute uma cena tiacutepica de
julgamento apesar de estar em estado fragmentaacuterio Afinal os maacutertires sentam em tronos
mas nenhum julgamento eacute descrito neste contexto Eles sentam para julgar todavia o
julgamento natildeo ocorre Tambeacutem natildeo haacute a identificaccedilatildeo de quem seraacute julgado Isso daacute agrave cena
o papel de exaltaccedilatildeo dos maacutertires em vez da descriccedilatildeo de algum ofiacutecio escatoloacutegico208
Neste mesmo sentido Fiorenza argumenta que Joatildeo descreve o reinado interino dos
maacutertires para garantir agrave sua audiecircncia que aqueles que morressem durante o confronto contra
as forccedilas romanas seriam exaltados no futuro como co-governantes com Cristo209 Ao indicar
206 AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1078 207 Idem p 1084 208 Idem p 1085 209 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 109
76
que os maacutertires receberatildeo um tipo de recompensa especial diferente de todos os outros a
cena dos maacutertires no trono desejava incentivar a participaccedilatildeo no martiacuterio
Para Joatildeo mais do que reis os maacutertires seriam juiacutezes e sacerdotes O episoacutedio do
milecircnio entretanto natildeo menciona a identidade de quem serviraacute aos reis de quem seraacute
julgado pelos juiacutezes ou de quem seraacute ministrado pelos sacerdotes Natildeo haacute ningueacutem para ser
condenado oprimido ou orientado porque segundo o profeta de Patmos todos os que
voltarem agrave vida no reino milenar seratildeo reis juiacutezes e sacerdotes
O milecircnio entatildeo como descrito pelo Apocalipse parece ser a junccedilatildeo de dois
episoacutedios nos quais a ecircnfase de um estaacute na destruiccedilatildeo dos inimigos de Deus e do outro na
exaltaccedilatildeo dos maacutertires
35 O reinado messiacircnico interino na terra
Aleacutem do Apocalipse duas outras obras judaicas igualmente produzidas no final do
seacuteculo I apresentam a expectativa de um reino messiacircnico provisoacuterio na terra 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque A primeira210 registrou
Pois eis que viraacute o tempo em que os sinais que tenho predito para vocecirc
aconteceratildeo a cidade que agora natildeo eacute vista apareceraacute e a terra que agora
estaacute escondida seraacute revelada E todo aquele que for libertado dos males que
eu anunciei veraacute as minhas maravilhas Porque meu filho o Messias seraacute
revelado junto com aqueles que estatildeo com ele e estes que permanecerem
regozijar-se-atildeo por quatrocentos anos E depois desses anos meu filho o
Messias morreraacute e todos os seres humanos E o mundo voltaraacute ao silecircncio
primordial por sete dias como foi nos primoacuterdios de modo que ningueacutem
seraacute deixado E depois de sete dias o mundo que ainda dormia seraacute
despertado e o que for corruptiacutevel pereceraacute (4Esdras 72631)211
Posteriormente a narrativa eacute complementada em 4Esdras 1232-34
[] este eacute o Messias que o Altiacutessimo guardou ateacute o fim dos dias que surgiraacute
da posteridade de Davi e viraacute e falaraacute para eles ele os denunciaraacute por seus
erros e por suas maldades e lanccedilaratildeo diante dele seus desprezos
Primeiramente ele os traraacute para julgamento diante de seu tribunal e
quando forem reprovados entatildeo ele os destruiraacute Mas ele livraraacute com
misericoacuterdia o remanescente do meu povo aqueles que estiverem salvos
210 4Esdras foi escrito em algum lugar da Palestina no periacuteodo posterior agrave guerra judaico-romana (66-70) Cf
COLLINS John J A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica uma introduccedilatildeo agrave literatura apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo
Paulus 2010 p 281 211 As citaccedilotildees de 4Esdras vem de METZGER B M The Fourth Book of Ezra In CHARLESWORTH
James H The Old Testament Pseudepigrapha New York Doubleday and Company Inc 1983 2v V 1 p
517-559
77
do meu lado ele os tornaraacute alegres ateacute o fim o dia do juiacutezo do qual falei
com vocecirc no iniacutecio
A outra obra 2Apocalipse de Baruque surgiu na mesma conjuntura posterior agrave
guerra na Judeacuteia possivelmente tambeacutem originada na Palestina Seu autor anocircnimo tratou
do futuro periacuteodo messiacircnico nos capiacutetulos 29-30 Segue o texto
Ele falou-me O que vai acontecer atingiraacute toda a terra dessa forma
experimentaacute-lo-atildeo todos os que estiverem em vida Mas naquele tempo eu
protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste paiacutes Uma
vez cumprido aquilo que deve acontecer nos periacuteodos do tempo o Messias
comeccedilaraacute a sua revelaccedilatildeo Tambeacutem Behemoth viraacute dos seus domiacutenios e
Leviatatilde se levantaraacute do mar os dois imensos monstros marinhos por mim
criados no quinto dia da Criaccedilatildeo e que reservo para aqueles dias eles
serviratildeo de alimento para todos os que sobreviverem Entatildeo a terra
produziraacute os seus frutos ao cecircntuplo numa cepa de videira haveraacute mil
ramos um ramo carregaraacute mil racimos e um racimo mil bagos e um bago
daraacute ateacute quarenta litros de vinho Os que sofreram fome comeratildeo
regiamente e a cada dia lhes estatildeo reservadas novas maravilhas Pois de
mim procederatildeo ventos que traratildeo todas as manhatildes o perfume de frutos
saborosos e faratildeo gotejar ao final do dia o orvalho salviacutefico Do alto cairaacute
de novo grande quantidade de manaacute dele comeratildeo eles naqueles anos por
haverem participado do final dos tempos Terminado o tempo vigente do
Messias ele voltaraacute de novo agrave gloacuteria do ceacuteu Entatildeo haveratildeo de ressuscitar
todos aqueles que outrora adormeceram na sua esperanccedila Naquele tempo
aconteceraacute que se abriratildeo as cacircmaras onde se demoram as almas dos
piedosos elas sairatildeo e todas essas numerosas almas como legiatildeo de um
soacute coraccedilatildeo apareceratildeo todas juntas abertamente As que foram as
primeiras alegrar-se-atildeo as que foram as uacuteltimas natildeo estaratildeo tristes Cada
uma delas sabe que foi chegado o tempo previsto como o fim de todos os
tempos As almas dos pecadores perder-se-atildeo em anguacutestia ao
presenciarem tudo isso Pois elas jaacute sabem que o tormento as atingiraacute e
que a hora da sua condenaccedilatildeo eacute chegada212
O autor anocircnimo retoma o assunto mais agrave frente ao descrever a prisatildeo e destruiccedilatildeo
dos adversaacuterios do Messias (2Apocalipse de Baruque 397-404) Apesar de algumas
diferenccedilas em ecircnfase Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e 2Apocalipse de Baruque descrevem o
aparecimento de uma figura messiacircnica no fim dos tempos para inaugurar um periacuteodo
interino de becircnccedilatildeo especial para o povo de Deus na terra antes do juiacutezo final Entretanto a
funccedilatildeo e o papel do messias variam entre os textos Segundo 4Esdras o messias avanccedilaraacute
sem armas contra seus inimigos e os venceraacute com um rio de fogo que sairaacute de sua boca
(4Esdras 135) Depois de quatrocentos anos de tranquilidade ele e todos os seus seguidores
morreratildeo durante uma semana de silecircncio primordial 2Apocalipse de Baruque por sua vez
212 As citaccedilotildees de 2Apocalipse de Baruque vecircm de TRICCA Maria Helena de Oliveira Apoacutecrifos os proscritos
da Biacuteblia Satildeo Paulo Mercuryo 1995 4v V III p 303-348
78
descreve o messias trazendo vinganccedila militar com um governo limitado no tempo Jaacute no
Apocalipse a figura messiacircnica surge sobre um cavalo branco derrota seus adversaacuterios e
reina com os maacutertires ressuscitados durante o periacuteodo milenar da prisatildeo de Satanaacutes
Apesar das divergecircncias nos detalhes as trecircs obras possuem a mesma perspectiva de
um interluacutedio de felicidade no interior da histoacuteria antes do final dos tempos Segundo
Kovacs e Rowland isto sugeriria que esta expectativa de dois estaacutegios escatoloacutegicos era
comum entre grupos judaicos da Palestina no periacuteodo entre as duas guerras judaicas contra
os romanos (66-136)213 Estes autores ainda argumentam que o surgimento do montanismo
na metade do segundo seacuteculo poderia ser indiacutecio de que a espera por um reino messiacircnico
terreno estava bem espalhada pela Aacutesia menor e natildeo somente pela proviacutencia da Aacutesia214
Teriacuteamos entatildeo um fenocircmeno difundido pelas regiotildees da Palestina Siacuteria e Aacutesia menor pelo
menos no periacuteodo em questatildeo resultado da fusatildeo de antigas noccedilotildees judaicas o messianismo
a reflexatildeo apocaliacuteptica sobre as etapas da histoacuteria o retorno ao paraiacuteso215 Estas noccedilotildees
surgiram em contextos histoacutericos e literaacuterios distintos mas foram reunidas para formar o
milenarismo como encontrado no Apocalipse de Joatildeo e parcialmente em 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque
A primeira noccedilatildeo a crenccedila numa figura messiacircnica que promoveria a restauraccedilatildeo do
povo de Deus tem relaccedilatildeo histoacuterica com as diversas aspiraccedilotildees judaicas de restauraccedilatildeo de
Israel posteriores ao domiacutenio helenista da Palestina (seacuteculo IV AEC)216 Alguns grupos
combinavam passagens das Escrituras judaicas para produzir a expectativa de uma
restauraccedilatildeo poliacutetica de Israel na terra sob a lideranccedila de uma figura ungida por Deus217
O segundo elemento a reflexatildeo sobre as etapas da histoacuteria reflete o interesse de
grupos apocaliacutepticos judaicos em compreender o desenvolvimento da histoacuteria O fenocircmeno
pode ser encontrado particularmente nas tradiccedilotildees de Enoque e de Daniel O texto chamado
213 KOVACS ROWLAND op cit p 210 Leva-se em conta que o Apocalipse surgido na proviacutencia da Aacutesia
teve um autor que emigrou da Palestina durante a guerra de 66-70 214 Idem p 211 215 A sugestatildeo da fusatildeo destas trecircs noccedilotildees vem de ULFGARD op cit p 25-49 216 Charlesworth prefere colocar como ponto de partida as guerras dos macabeus do seacuteculo II AEC Cf
CHARLESWORTH James H From messianology to christology problems and prospects In
CHARLESWORTH James H (ed) The Messiah developments in earliest Judaism and Christianity
Minneapolis Fortress Press 1987 p 3-35 p 3 217 Desroche define o messianismo em termos restritos como o conjunto de crenccedilas judaicas relacionadas com
um ungido de Deus proclamado no antigo Testamento Num sentido mais largo poreacutem designa ensinamentos
ou movimentos que prometem a chegada de um enviado divino para trazer ordem ao mundo com justiccedila e paz
edecircmicas Neste uacuteltimo sentido o fenocircmeno ultrapassa as tradiccedilotildees religiosas judaico-cristatildes Cf DESROCHE
Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo
Paulo 2000 p 22
79
Apocalipse das Semanas (1Enoque 931-10 9112-17) eacute um exemplo deste fenocircmeno
quando o passado e o futuro aparecem divididos em dez semanas O autor subjacente a este
antigo apocalipse escreve da perspectiva da seacutetima semana esperando a restauraccedilatildeo do povo
de Deus para a oitava semana
Altas expectativas escatoloacutegicas originadas de uma conjuntura de deterioraccedilatildeo de
condiccedilotildees poliacuteticas e sociais agraves vezes de perseguiccedilatildeo e sofrimento podem promover nesta
reflexatildeo sobre os periacuteodos da histoacuteria a ideia de que se vive perto do fim do mundo Eacute assim
que esta noccedilatildeo aparece nos apocalipses de Daniel 7-12 produzidos no contexto da Guerra
dos Macabeus (167-163 AEC) Daniel 9 por exemplo faz uma releitura de Jeremias
(Jeremias 2511 2910) acerca da desolaccedilatildeo de Jerusaleacutem por 70 anos Os setentas anos satildeo
interpretados como semanas de anos O apocalipse de Daniel garante que faltam poucas
destas semanas para o fim dos tempos
Estas antigas tradiccedilotildees judaicas representadas por 1Enoque e Daniel exemplificam o
interesse pela periodizaccedilatildeo da histoacuteria mundial e manifestam a convicccedilatildeo de seus autores
provavelmente compartilhada com a comunidade destinataacuteria do texto de que eles viviam a
uacuteltima e crucial fase da histoacuteria antes da intervenccedilatildeo final de Deus que traraacute a salvaccedilatildeo e o
julgamento218 A histoacuteria eacute imaginada linearmente como uma sucessatildeo de tempos
determinados de adversidades antes que venham dias de felicidade219
A terceira noccedilatildeo eacute o retorno agraves condiccedilotildees paradisiacuteacas quando o paraiacuteso dos tempos
primordiais (urzeit) seria restabelecido no fim dos tempos (endzeit) Os benefiacutecios esperados
seriam aqueles que o ser humano experimentara em suas origens220 Esta ideia foi
desenvolvida nos textos apocaliacutepticos por meio de vaticiacutenios acerca da restauraccedilatildeo da
prosperidade da criaccedilatildeo da fertilidade e da paz no mundo 1Enoque 10-11 por exemplo ao
falar da queda dos vigilantes combina estruturaccedilatildeo da histoacuteria com a expectativa de um
retorno agraves condiccedilotildees do paraiacuteso na era da salvaccedilatildeo Eacute possiacutevel notar que este texto tem
elementos que seratildeo apropriados de vaacuterias maneiras posteriormente como a fertilidade da
terra a destruiccedilatildeo das forccedilas demoniacuteacas e os justos ressuscitados Segue o texto
E a Raphael disse o Senhor Amarra Azazel de matildeos e peacutes e lanccedila-o nas
trevas Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo Deposita
218 ULFGARD op cit p 44 219 Frankfurt sugeriu que tal conceito de histoacuteria eacute dependente de tradiccedilotildees zoroastrianas que apresentavam a
histoacuteria dividida em periacuteodos alternados de domiacutenio entre as figuras divinas de Ahura Mazda e Angra Mainyu
que culminariam no fim na vitoacuteria do bem sobre o mal Cf FRANKFURTER David Early Christian
Apocalypticism literature and social world In COLLINS John J (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism
the origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity New York Continuum 1999 p 415-456 p 441 220 PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 353
80
pedras aacutesperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridatildeo Deixa-
o permanecer laacute para sempre e veda-lhe o rosto para que natildeo veja a luz
No dia do grande Juiacutezo ele deveraacute ser arremessado ao tremedal de fogo
Purifica a terra corrompida pelos Anjos e anuncia-lhe a Salvaccedilatildeo para
que terminem os seus sofrimentos e natildeo se percam todos os filhos dos
homens em virtude das coisas secretas que os Guardiotildees revelaram e
ensinaram aos seus filhos Toda a terra estaacute corrompida por causa das obras
transmitidas por Azazel A ele atribui todos os pecados E a Gabriel disse
o Senhor Levanta a guerra entre os bastardos os monstros os filhos das
prostituiacutedas e extirpa-os do meio dos homens juntamente com todos os
filhos dos Guardiotildees Instiga-os uns contra os outros para que na batalha
se eliminem mutuamente Natildeo se prolongue por mais tempo a sua vida
Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deveraacute ser atendido eles
esperam ter vida para sempre e que cada um viva quinhentos anos A
Michael disse o Senhor Vai e potildee a ferros Semjaza e os seus sequazes que
se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as
suas impurezas Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente
e quando os pais tiverem presenciado o extermiacutenio dos seus amados filhos
amarra-os por sele geraccedilotildees nos vales da terra ateacute o dia do seu julgamento
ateacute o dia do Juiacutezo Final Nesse dia eles seratildeo atirados ao abismo de fogo
na reclusatildeo e no tormento onde ficaratildeo encerrados para todo o sempre E
todo aquele que for sentenciado agrave condenaccedilatildeo eterna seja juntado a eles e
seja com eles mantido em correntes ateacute o fim de todas as geraccedilotildees
Extermina os espiacuteritos de todos os monstros juntamente com todos os
filhos dos Guardiotildees porque eles maltrataram os homens Purga a terra de
todo ato de violecircncia Toda obra maacute deve ser eliminada Que floresccedila a
aacutervore da Verdade e da Justiccedila O sinal da becircnccedilatildeo seraacute o seguinte as obras
da Verdade e da Justiccedila sempre seratildeo semeadas na alegria verdadeira
Entatildeo floresceratildeo os justos e haveratildeo de viver ateacute gerarem mil filhos e
completaratildeo em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice Entatildeo
toda a terra seraacute cultivada com a Justiccedila inteiramente plantada de aacutervores
e cheia de becircnccedilatildeo Toda espeacutecie de aacutervore boa seraacute plantada sobre ela
igualmente videiras e as videiras produziratildeo uvas em abundacircncia De
todas as sementes que forem semeadas uma medida produziraacute mil outras
e uma medida de olivas daraacute dez cubas de oacuteleo Purifica a terra de todo ato
de violecircncia de toda injusticcedila de todo pecado e impiedade elimina toda a
impudiciacutecia que sobre ela se pratica Todos os homens seratildeo justos todos
os povos me prestaratildeo honra e gloacuteria e todos me adoraratildeo A terra entatildeo
ficaraacute expurgada de toda maldade de todo pecado de toda praga de todo
tormento e nunca mais mandarei sobre ela um diluacutevio ao longo de todas
as geraccedilotildees por toda a eternidade Naqueles dias eu abrirei as cacircmaras dos
depoacutesitos da becircnccedilatildeo do ceacuteu e deixaacute-las-ei derramar-se sobre a terra sobre
as obras e os trabalhos dos filhos dos homens Entatildeo a Verdade e a Paz
juntar-se-atildeo por todos os dias da terra e por todas as geraccedilotildees dos homens
(1Enoque 1012-112)221
Assim a expectativa do reino messiacircnico interino na histoacuteria parece ser uma
combinaccedilatildeo de antigas noccedilotildees sobre o messias o retorno ao paraiacuteso e a periodizaccedilatildeo dos
221 A citaccedilatildeo de 1Enoque veio de TRICCA op cit p 117-202
81
tempos 4Esdras falou em quatrocentos anos de duraccedilatildeo o Apocalipse de Joatildeo registrou mil
anos
Ulfgard sugeriu que o caminho para compreender o tempo do reino messiacircnico na
terra estaria no uso tipoloacutegico do Salmo 9015 ldquoAlegra-nos pelos dias em que nos afligiste
e pelos anos em que vimos o malrdquo Esta era uma foacutermula usada por grupos judaicos para
calcular os dias do messias Deus iria recompensar o povo na terra pelo tempo em que ele
foi maltratado sobre ela Alguns propunham 40 anos para fazer frente ao tempo que o povo
passou no deserto antes de entrar em Canaatilde Outros sugeriam quatrocentos anos
correspondente ao periacuteodo de permanecircncia no Egito A sugestatildeo dos mil anos entretanto
poderia ter relaccedilatildeo com o versiacuteculo 4 deste mesmo Salmo 90 ldquoporque mil anos aos teus
olhos satildeo como o dia de ontem que passou e como uma vigiacutelia de noiterdquo222 De qualquer
forma tanto em 4Esdras quanto no Apocalipse de Joatildeo as expressotildees temporais natildeo satildeo o
elemento principal Afinal em ambas as obras o governo messiacircnico na terra tem um fim
A ecircnfase dos autores destes textos estaacute na expectativa de que a terra experimentaraacute ainda
dentro da histoacuteria um uacuteltimo periacuteodo de paz
Dentro do contexto narrativo maior que comeccedila em Apocalipse 1911 e conclui em
225 Joatildeo inseriu a expectativa do reino messiacircnico na terra quando o Jesus glorificado
retornaria para vencer seus inimigos ressuscitaria seus seguidores martirizados e viveria
com eles por um periacuteodo de mil anos Tomamos esta expectativa como a objetivaccedilatildeo de um
conjunto de representaccedilotildees natildeo apenas derivado de praacuteticas sociais mas tambeacutem promotor
de outras tantas Enquanto tal o milecircnio pode ser visto como uma arma nas lutas de
representaccedilotildees entre certas comunidades religiosas do final do primeiro seacuteculo a resposta
de um liacuteder religioso agraves praacuteticas plurais do movimento de Jesus diante das conjunturas
histoacutericas da proviacutencia romana da Aacutesia O que buscamos nos paraacutegrafos a seguir satildeo fatores
ou condiccedilotildees de emergecircncia para este determinado sistema de representaccedilotildees
222 ULFGARD op cit p 49 Prigent por sua vez sugere que o tempo messiacircnico poderia ser uma alusatildeo a
Jubileus 430 Aqui a morte de Adatildeo com 930 anos eacute entendida como consequecircncia dele natildeo ter alcanccedilado a
idade perfeita de 1000 anos Aleacutem do mais seria cumprimento da profecia de Genesis 217 que declarou que
no dia que ele comesse da arvore ele morreria Nestes termos Apocalipse 204-6 simbolizaria a restauraccedilatildeo da
vida humana ideal nos moldes do paraiacuteso na era messiacircnica No reino messiacircnico as consequecircncias do pecado
de Adatildeo satildeo canceladas Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 358
82
36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia
Jaacute tratamos no capiacutetulo anterior a respeito dos conflitos de lideranccedila do movimento
de Jesus no periacuteodo do Apocalipse numa fase de consolidaccedilatildeo das comunidades dentro da
sociedade romana e de construccedilatildeo de uma identidade separada do Judaiacutesmo Aparentemente
o tema da prisatildeo e destruiccedilatildeo de Satanaacutes223 no interior do complexo narrativo da destruiccedilatildeo
dos adversaacuterios do Jesus glorificado pode ter relaccedilatildeo justamente com essa conjuntura
conflitiva
David Frankfurt analisou vaacuterios apocalipses judaicos e cristatildeos no periacuteodo entre 200
anos antes e 200 depois da Era Comum tentando construir uma tipologia geograacutefica dos
textos apocaliacutepticos224 Segundo ele o milenarismo sectaacuterio eacute um traccedilo significativo do
apocalipsismo asiaacutetico em funccedilatildeo da atuaccedilatildeo privilegiada de figuras profeacuteticas com
performances orais itinerantes a necessidade de forte legitimaccedilatildeo carismaacutetica e o
envolvimento eventual em conflitos de lideranccedila Ele o denomina como ldquomilenarismo
sectaacuteriordquo porque o seu proponente se entende representar natildeo a totalidade da sociedade ou
mesmo do seu grupo social mas uma parcela dentro dele As demais pessoas e grupos satildeo
vistos como adversaacuterios e destinados agrave destruiccedilatildeo escatoloacutegica Este milenarismo eacute
geralmente centrado em figuras profeacuteticas e manifesta algum tipo de luta pela lideranccedila nas
comunidades quando liacutederes carismaacuteticos usam a estigmatizaccedilatildeo para deslegitimar os
adversaacuterios e afirmar a proacutepria autoridade225 Neste contexto de disputa como Elaine Pagels
tentou demonstrar a oposiccedilatildeo eacute frequentemente associada a seres demoniacuteacos e aos
monstros do caos226
O bispo Inaacutecio de Antioquia ao passar pela Aacutesia menor registrou em uma carta uma
justaposiccedilatildeo entre Cristianismo e Judaiacutesmo (Carta aos Magneacutesios X) Ele parece evidenciar
assim que pelo menos alguns seguidores de Jesus naquela regiatildeo e naquele periacuteodo tinham
a percepccedilatildeo de que faziam parte de um movimento independente e mesmo superior ao
Judaiacutesmo Esse debate sobre a identidade das comunidades poderia ser ampliado ainda pelas
distinccedilotildees jaacute feitas pelos magistrados romanos (como as cartas de Pliacutenio jaacute mencionadas) e
223 Como jaacute argumentamos o episoacutedio do milecircnio relata duas narrativas ligadas entre si pelo marco temporal
(mil anos) A narrativa da prisatildeo de Satanaacutes faz parte de uma cena maior que descreve a vitoacuteria do Jesus
glorificado sobre seus adversaacuterios A outra narrativa descreve a exaltaccedilatildeo dos maacutertires 224 FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit 225 Idem 435 226 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na
sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996
83
por pressotildees de sinagogas locais que natildeo queriam ser identificadas com as igrejas227
Possivelmente pouco mais de uma deacutecada antes de Inaacutecio quando as igrejas da Aacutesia jaacute
viviam um momento de instabilidade identitaacuteria os projetos distintos das lideranccedilas geraram
uma crise de legitimidade e a consequente percepccedilatildeo de que o mal poderia vir de dentro da
comunidade
A pequena obra canocircnica conhecida como 3Joatildeo entre os anos 90-110228 registra
um embate entre seu autor anocircnimo e um liacuteder adversaacuterio conhecido como Dioacutetrefes
ldquoEscrevi alguma coisa agrave igreja mas Dioacutetrefes que gosta de exercer a primazia entre eles
natildeo nos daacute acolhidardquo (3Joatildeo 19) Situaccedilotildees como essa geravam respostas diferentes para os
mesmos problemas entre os liacutederes das igrejas Natildeo bastava a um profeta dar a orientaccedilatildeo
para a comunidade jaacute que ele precisava tambeacutem atacar quem divergia de seu
posicionamento Este senso de mal interno foi trabalhado por Joatildeo de duas maneiras Ele
desejava purgar a comunidade de membros que dele divergiam vinculando-os a adversaacuterios
externos da comunidade (membros de sinagogas locais e magistrados romanos) Ao mesmo
tempo ele projeta o conflito para o mundo celestial indicando laccedilos entre seus desafetos e
figuras demoniacuteacas tradicionais como Satatilde229
Este parece ser o caso da polecircmica contra ldquoJezabelrdquo no Apocalipse (Apocalipse 218-
29) A mulher assim intitulada por Joatildeo era uma das liacutederes da comunidade de disciacutepulos de
Tiatira As acusaccedilotildees contra ela indicam que o cerne do conflito estava em aspectos sociais
ldquoJezabelrdquo defendia o engajamento com a sociedade maior e Joatildeo recomendava o
afastamento na direccedilatildeo de um gueto religioso Em termos religiosos eacute possiacutevel que Jezabel
possuiacutesse uma vantagem sobre o profeta de Patmos jaacute que ela tinha amparo no ensino que
o apoacutestolo Paulo deixara trinta anos antes para as igrejas da regiatildeo230 Como argumenta Duff
uma das estrateacutegias de Joatildeo neste confronto foi conectar sua rival com Babilocircnia e por
implicaccedilatildeo com Satatilde231 Em escala maior os membros do movimento de Jesus que Joatildeo
227 Uma evidecircncia neste sentido pode ser o uso do termo ldquominimrdquo para descrever os membros do movimento
de Jesus em maldiccedilotildees pronunciadas em sinagogas em periacuteodo tatildeo recuado quanto 80-85 Para que pudesse ser
disseminada por diversas comunidades judaicas uma maldiccedilatildeo foi inserida entre as 18 becircnccedilatildeos conhecidas
como ldquobirkat-hamminimrdquo que dizia ldquoQue os nosrim (nazarenos) e os minim (hereges) morram subitamente
e sejam excluiacutedos do livro da vida para que natildeo sejam ali recordados juntamente com os justos Bendito sejas
Tu oacute Senhor que abaixas os orgulhososrdquo Cf BAGATTI Bellarmino A igreja da circuncisatildeo histoacuteria e
arqueologia dos judeu-cristatildeos Petroacutepolis Vozes 1975 p 44 228 KUumlMMEL op cit p 593 229 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 230 Idem p 71 231 Idem p 72
84
considerava desviantes passaram a ser rotulados como chamou Pagels de ldquoagentes secretosrdquo
de forccedilas demoniacuteacas sobrenaturais232
Portanto Joatildeo natildeo demoniza apenas a sociedade romana em sua manifestaccedilatildeo
asiaacutetica ou o Impeacuterio na figura das bestas de Apocalipse 13 Ele tambeacutem entende que
mesmo dentro das igrejas existiam aliados de Satanaacutes os ldquoinimigos iacutentimosrdquo233 Este tipo de
perspectiva poderia explicar o grande espaccedilo dado agraves descriccedilotildees dos poderes demoniacuteacos no
Apocalipse bem como a necessidade de um milecircnio que tem como pano de fundo a
destruiccedilatildeo destas mesmas forccedilas de oposiccedilatildeo
Um reino milenar precedido pelo sangue dos adversaacuterios pode refletir entatildeo um
contexto social cheio de tensotildees dentro das proacuteprias igrejas (divergecircncias sobre a identidade
do movimento) entre as igrejas e grupos judaicos (hostilidade contra sinagogas locais) entre
as comunidades de Jesus e a sociedade romana (demandas por acomodaccedilatildeo cultural) e entre
os seguidores de Jesus e o Impeacuterio (interaccedilatildeo entre religiatildeo sociedade e poliacutetica)234
Nosso argumento eacute que a situaccedilatildeo das comunidades envolvidas em distuacuterbios
identitaacuterios com sinagogas locais e em conflitos de lideranccedila acabou se tornando um fator
plausiacutevel no surgimento do milecircnio do Apocalipse ao provocar a expectativa de um tempo
em que todos os inimigos internos e externos seriam destruiacutedos violentamente
Um segundo aspecto frequentemente sugerido pelos autores eacute a oposiccedilatildeo de Joatildeo a
Roma235 A forma como o Apocalipse ataca a sociedade romana o coloca ao lado de outros
grupos judaicos anti-romanos posteriores ao conflito que terminou com a destruiccedilatildeo do
templo e da cidade de Jerusaleacutem (66-70) como os zelotes da Palestina236 Nestes grupos e
movimentos manifestou-se a perspectiva criacutetica de que o Impeacuterio Romano era incompatiacutevel
com o reino de Deus frequentemente traduzida por uma forte rejeiccedilatildeo dos siacutembolos e
232 PAGELS Elaine H The Social History of Satan part three John of Patmos and Ignatius of Antiochi
Contrasting Visions of Gods People Harvard Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006
p 489 233 Idem p 494 234 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The
Westminster Press 1984 p 84-99 SILVA David A de The social setting of the Revelation to John conflicts
within fears without Westminster Theological Journal Philadelfia n 54 p 273-302 1992 p 287 235 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In
BARR David L The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society
of Biblical Literature 2006 p 243-269 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de
Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 MESTER Carlos e OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano
e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n
69 p 72-82 2001 PAGELS Elaine Revelationshellip op cit 236 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p
213
85
imagens do poder romano entre eles o culto imperial Outros fatores ainda poderiam ter
atuado para produzir esta oposiccedilatildeo como expectativas religiosas de um Israel independente
de poderes estrangeiros ou medidas financeiras dos procuradores romanos237
De qualquer forma Pagels historiadora da religiatildeo chamou o Apocalipse de
ldquoliteratura de guerrardquo238 porque Joatildeo teria saiacutedo da Judeacuteia sua terra natal logo apoacutes
testemunhar o iniacutecio do confronto de seus conterracircneos judeus contra as forccedilas romanas em
66 Mesmo ausente ele pode ter ouvido falar dos 60 mil soldados romanos que cercaram
Jerusaleacutem e destruiacuteram a cidade Quando finalmente o cerco terminou eles a invadiram e a
deixaram em ruiacutenas O templo judaico que terminara de ser reformado poucos anos antes
foi destruiacutedo junto com a cidade O responsaacutevel inicial pelo cerco o general Vespasiano
acabou como o Imperador de Roma No tempo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse era
seu filho Domiciano que dirigia o Impeacuterio O impacto da destruiccedilatildeo do Templo e de
Jerusaleacutem foi significativo para diversos setores do Judaismo mas teve um impulso
particular em Joatildeo e pode ser considerado mesmo como ponto de partida para sua oposiccedilatildeo
a Roma
Para o Apocalipse entatildeo o Impeacuterio era um peso opressor que deveria ser eliminado
antes que o mundo viesse a conhecer a justiccedila Seu milecircnio pode ser visto como a
manifestaccedilatildeo do desejo pelo fim da ldquoRoma eternardquo Por isso como em outros apocalipses
judaicos a histoacuteria no Apocalipse eacute uma sequecircncia de poderes Aquele era o tempo de Roma
mas ela iria passar para ser sucedida pelo reino milenar do Messias Este ldquooacutediordquo pela
sociedade do presente histoacuterico parece ser assim mais um fator na promoccedilatildeo da expectativa
milenarista de Joatildeo de que um novo reino se levantaria em breve para substituir o atual
O milecircnio de Joatildeo o futuro reino do Messias expressa a condenaccedilatildeo joanina da
presente ordem romana Nos termos de John Collins em nenhum outro lugar a queda dos
poderosos eacute imaginada com tal alegria como neste apocalipse cristatildeo onde um anjo de peacute
sobre o sol convida os paacutessaros a comer a carne dos reis dos capitatildees e dos poderosos
(Apocalipse 1918)rdquo239
237 Uma anaacutelise dos conflitos entre judeus e romanos no seacuteculo I pode ser encontrada em GOODMAN Martin
Rome and Jerusalem the clash of ancient civilizations London Pinguin Books 2007 Especificamente sobre
a guerra de 66-70 cf REICKE Bo Histoacuteria do tempo do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 1996 p 282-
294 238 PAGELS Elaine Revelations op cit p 7 239 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica op cit p 18
86
Outro fator de emergecircncia do milecircnio joanino pode ter relaccedilatildeo com a situaccedilatildeo
perigosa de vida dos membros da comunidade de Jesus240 com a jaacute mencionada memoacuteria de
mortes violentas de disciacutepulos na guerra judaico-romana e na crise nerodiana da deacutecada de
60 e com a crucificaccedilatildeo de Jesus Isso parece estar subjacente agrave representaccedilatildeo dos maacutertires
no episoacutedio do milecircnio Afinal mesmo que natildeo haja evidecircncias de uma perseguiccedilatildeo e morte
generalizada dos membros das igrejas no periacuteodo do Apocalipse e o livro faccedila referecircncia a
apenas uma morte (Apocalipse 213) o milecircnio gira em torno dos maacutertires
O contexto mais amplo do aparecimento dos apocalipses judaicos foi de rejeiccedilatildeo ao
domiacutenio pagatildeo241 A resistecircncia poderia vir em forma ativa como a revolta dos macabeus
ou em forma passiva como a elaborada nos apocalipses de Daniel 7-12 no qual se anseia
pela destruiccedilatildeo dos poderes estrangeiros por forccedilas sobrenaturais mas sem qualquer
participaccedilatildeo humana no confronto Um tipo de resistecircncia intermediaacuteria envolve a
expectativa de sinergismo entre forccedilas divinas e humanas na destruiccedilatildeo escatoloacutegica dos
adversaacuterios como aparece na frase de Assunccedilatildeo de Moiseacutes ldquonosso sangue seraacute vingado pelo
Senhorrdquo (97) Esperava-se que a morte voluntaacuteria do judeu piedoso provocaria a vinganccedila
de Deus242 Eacute neste sentido que o Apocalipse descreve um nuacutemero fixado de maacutertires que
devem encontrar a morte antes que chegue o fim
Joatildeo advoga uma ruptura das comunidades de Jesus com a sociedade romana o que
na sua oacutetica provocaria a perseguiccedilatildeo e morte dos membros das igrejas Contudo seria
justamente essa perseguiccedilatildeo que ao promover o martiacuterio dos disciacutepulos iria apressar a
chegada do reino messiacircnico de Jesus243 O milecircnio assim pode ser visto como uma
propaganda martiroloacutegica Afinal os maacutertires satildeo os mais abenccediloados seguidores de Jesus e
as consequecircncias de seus atos continuam mesmo apoacutes suas mortes Nos termos do
Apocalipse ldquoFelizes os mortos que desde agora morrem no Senhor Sim diz o Espiacuterito
para que descansem das suas fadigas pois as suas obras os acompanhamrdquo (Apocalipse
1413)
240 A correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano na proviacutencia vizinha alguns anos apoacutes o Apocalipse pode ser
evidecircncia de que as comunidades jaacute corriam risco no final do seacuteculo I 241 Esta anaacutelise da relaccedilatildeo entre Apocalipse e poliacutetica pode ser encontrada em COLLINS Adela Yarbro The
political perspective of the Revelation to John Journal of Biblical Literature Atlanta v 96 n 2 p 241-256
1977 242 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p
209 243 Frankfurt descreve o periacuteodo entre a produccedilatildeo do evangelho de Marcos e o Apocalipse de Joatildeo (70-100)
como um periacuteodo de ldquofasciacutenio com o martiacuterio e a necessidade de imaginar a perseguiccedilatildeordquo entre algumas igrejas
Cf FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit p 436
87
O tema da morte violenta domina muitas visotildees de Joatildeo De vaacuterias formas forccedilas
demoniacuteacas ameaccedilam o movimento de Jesus a besta que persegue as duas testemunhas
(Apocalipse 111-13) o Dragatildeo que persegue a Mulher e sua semente (Apocalipse 121-17)
as bestas do mar e da terra que perseguem os ldquosantosrdquo (Apocalipse 131-1412) a Babilocircnia
que persegue as testemunhas de Jesus (Apocalipse 171-195)244
Eacute neste contexto que se entende a memoacuteria da crucificaccedilatildeo de Jesus Joatildeo vecirc paralelos
entre a situaccedilatildeo dos fieacuteis e do fundador do movimento e com isso constroacutei uma narrativa
que idealiza a imitaccedilatildeo de Cristo atraveacutes do sofrimento e martiacuterio Um significativo texto
neste sentido eacute Apocalipse 1210-12 onde os santos imitam Cristo vencendo o Dragatildeo pelo
sangue do Cordeiro (ldquoτὸ αἷμα τοῦ ἀρνίουrdquo) e pela palavra do testemunho (ldquoδιὰ τὸν λόγον τῆς
μαρτυρίας αὐτῶνrdquo) porque natildeo amaram a proacutepria vida mesmo diante da morte (ldquoοὐκ ἠγάπησαν
τὴν ψυχὴν αὐτῶν ἄχρι θανάτουrdquo) Segundo essa formulaccedilatildeo joanina a vitoacuteria sobre os poderes
demoniacuteacos estaacute ligada diretamente agrave morte (de Jesus e dos disciacutepulos) Para Thompson esta
identificaccedilatildeo com ldquoo Cordeiro crucificadordquo (ldquoἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένονrdquo - Apocalipse
56) tinha como objetivo promover uma especiacutefica identidade no fiel e suportar
determinados comportamentos245
Este imaginaacuterio de tribulaccedilatildeo funciona independente das experiecircncias concretas de
perseguiccedilatildeo das comunidades de disciacutepulos jaacute que deriva da construccedilatildeo de viacutenculos com
traumas no passado do movimento (a morte de Jesus as perseguiccedilotildees de Nero em Roma as
guerras na Judeacuteia a morte de Antipas) Assim a memoacuteria de mortes passadas e a expectativa
de muitas outras pode ser considerado mais um fator para o surgimento do milecircnio sectaacuterio
de Joatildeo ao aguardar a participaccedilatildeo seletiva de um grupo especial de fieacuteis os martirizados
no reino do Jesus exaltado246
Assim diante de fatores como estes entatildeo apontados a resposta de Joatildeo veio na
forma de apropriaccedilatildeo de tradiccedilotildees apocaliacutepticas a respeito do messias da periodizaccedilatildeo da
histoacuteria e do retorno ao paraiacuteso e da construccedilatildeo de um conjunto de representaccedilotildees
milenaristas que convidava ao levantamento dos muros da comunidade a ruptura sectaacuteria
244 THOMPSON Leonard A sociological analysis of tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 36 p 147-174 1986 p 148 245 Idem p 170 246 Em Daniel 123 tambeacutem apenas um grupo especial de fieacuteis os saacutebios passaria pela ressurreiccedilatildeo Cf
COLLINS John J Danielhellip op cit p 103
88
com membros divergentes a espera ansiosa pelo martiacuterio e finalmente o governo vitorioso
dos maacutertires durante o milecircnio
Existiam outros liacutederes como a liacuteder estigmatizada Jezabel (Apocalipse 220) que
propunham praacuteticas diferentes por entenderem que o relacionamento com a sociedade era
necessaacuterio para a sobrevivecircncia da comunidade247 Para estes a sociedade romana era o
espaccedilo de sobrevivecircncia e natildeo do confronto Mesmo que as categorias propostas por Joatildeo
tenham sido eventualmente abraccediladas em subsequentes apropriaccedilotildees sectaacuterias do milecircnio248
isso natildeo promoveu necessariamente a ruptura com a sociedade249 Isso levou Thompson a
afirmar com certa ironia que a continuidade do movimento de Jesus foi viabilizada porque
seus membros natildeo conseguiram objetivar as representaccedilotildees do Apocalipse250
37 Resumo
Joatildeo encerra seu Apocalipse com a narrativa daquilo que ele entendia ser o fim do
mundo e da histoacuteria Antes disso entretanto ele descreve um periacuteodo de governo milenar
do Jesus Glorificado e seus maacutertires ressuscitados O milecircnio aparece no livro joanino como
o tempo do aprisionamento de Satanaacutes e do reinado messiacircnico interino na terra Estas
expectativas parecem ter origem em tradiccedilotildees literaacuterias judaicas que combinavam noccedilotildees
sobre um redentor ungido por Deus um retorno aos tempos paradisiacuteacos e periodizaccedilotildees da
histoacuteria Estas antigas noccedilotildees parecem ter se reunido de uma forma muito semelhante na
regiatildeo da Aacutesia-Siacuteria-Palestina no final do seacuteculo I nas obras Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque por causa entre outros fatores dos traumas da guerra judaico-
romana No caso especiacutefico da versatildeo joanina sua emergecircncia ainda pode ter relaccedilatildeo com
conflitos de lideranccedila das comunidades de Jesus em funccedilatildeo de respostas diferentes agrave questatildeo
do relacionamento com a sociedade romana
247 DUFF Paul B Who rides the Beast op cit p 77 248 Como os movimentos milenaristas analisados em COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas
revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 249 Como a apropriaccedilatildeo do milecircnio em Agostinho Cf KYRTATAS Dimitris The Transformations of the
Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text The Writing of Ancient
History London Duckworth 1986 p 144-162 250 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L (ed) Reading
the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 46
IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM
Neste capiacutetulo aplicaremos ao Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram
lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar
elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso
este seraacute o espaccedilo principal para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando
apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o
livro joanino
41 O autor do Expositio in Apocalypsim
A obra intitulada Expositio in Apocalypsim editada pela Junta de Veneza em 1527 e
reimpressa pela Editora Miverva em 1964 reuacutene de fato trecircs textos distintos todos
vinculados a uma mesma pessoa O primeiro no foacutelio 1r na parte superior eacute aberto nestes
termos Incipit epistola prologalis domini Abbatis Joachim florensis O segundo comeccedila
no foacutelio 1v com estas palavras Incipit prologus domini Joaquim Abbatis florensis in expone
libri Apocalipsis e termina no 16v Explicit liber primus dictus introductorius Somente
entatildeo comeccedila o terceiro texto neste mesmo foacutelio 16v (Incipit prima septem partius in
expositione Apocalipsis) que se estende longamente ateacute o final da obra veneziana no foacutelio
224r (Explicit admiranda Expositio venerabilis Abbatis Joachim in Librus Apocalipsis Beati
Joannis Apostoli et Evangeliste) Eacute apenas este uacuteltimo e longo texto que se trata do
Expositio in Apocalypsim identificado no explicit como de autoria de Joaquim de Fiore No
interior do Expositio natildeo haacute outras auto-identificaccedilotildees Mesmo assim estudiosos do assunto
satildeo unacircnimes em aceitar o texto como obra do abade de S Joatildeo de Fiore bem como as outras
duas que abrem a versatildeo veneziana seiscentista A primeira eacute intitulada Carta Testamentaacuteria
pela historiografia251 a segunda recebe o tiacutetulo de Liber Introductorius que funciona como
uma siacutentese do Expositio
Tomando como ponto de partida este viacutenculo aceitando-o como autecircntico o que eacute
possiacutevel dizer sobre este Venerabilis Abbatis Joachim Nos seacuteculos posteriores agrave sua morte
ele foi estigmatizado por exemplo por Tomaacutes de Aquino que tratou as obras de Joaquim
251 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 69
90
como conjecturas252 contudo louvado por Dante Aliguiere que no final do canto XII de sua
Divina Comeacutedia colocou na boca de Satildeo Boaventura ldquoSabe que ao meu lado brilha o
calabrecircs abade Giovachino que tem o dom de profetizarrdquo253 Ele apareceu em cataacutelogo de
santos e em lista de heresias254 mas nunca chegou a ser oficialmente declarado herege ou
santo255 No meio deste ambiacuteguo rastro muitas lendas se acumularam a respeito desta figura
do medievo italiano Por isso uma reconstruccedilatildeo biograacutefica de Joaquim precisa levar em
conta os seguintes elementos
- os poucos dados deixados por ele na sua Carta Testamentaacuteria por volta de 1200 jaacute
no final de sua vida endereccedilada a um abade de sua Ordem
- estes poucos dados da Carta Testamentaacuteria precisam ser comparados com duas
hagiografias sobre Joaquim de Fiore escritas por contemporacircneos seus uma produzida pelo
seu secretaacuterio Lucas de Consenza Virtutum Beati Joachimi synopsis e Vita beati Joachimi
abbatis escrita provavelmente pouco depois de sua morte obra de um monge anocircnimo que
trabalhou com Joaquim enquanto ele era abade de Corazzo acompanhou-o posteriormente
para Petralata e por fim para S Joatildeo em Fiore256
- narrativas de caraacuteter lendaacuterio sobre ele encontradas em outras fontes que precisam
ser avaliadas pelo caraacuteter de plausibilidade e podem ajudar a esclarecer aspectos obscuros
de sua biografia
Com estes elementos cotejados eacute que estudiosos de Joaquim reconstroem sua vida257
Seu nascimento se deu provavelmente em 1135 em Celico uma vila pequena agrave leste de
Consenza na Calaacutebria proviacutencia do Reino normando da Siciacutelia Seu pai era Mauro um
notaacuterio do Arcebispo Sancio de Consenza Sobre sua matildee soacute se conhece seu nome Gema
Ele era o sexto de oito filhos do casal e o mais velho a sobreviver258
Joaquim foi enviado ainda jovem para trabalhar tambeacutem em Consenza como oficial
da Chancelaria normanda da Calaacutebria Sua famiacutelia o treinava para ser um notaacuterio como seu
252 MC GINN Bernard The abbot and the doctors scholastic reactions to the radical eschatology of Joaquim
of Fiore Church History Cambridge v 40 n 1 p 30-47 1971 p 19 253 DANTE ALIGUIERE A divina comeacutedia Satildeo Paulo Nova Cultural 2002 p 338 254 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London
University of Notre Dame Press 1993 p 3 255 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 256 TRONCARELLI Fabio Gioacchino da Fiore la vita il pensiero le opere Roma Cittagrave Nuova Editrice
2002 p 15 257 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4 TRONCARELLI op cit p 15 DANIEL E Randolph Abbot
Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical
Society 1983 p xii REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 258 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii
91
pai259 Isso lhe forneceu preparo intelectual com o domiacutenio do grego liacutengua predominante
nos registros de governo da Calaacutebria e Siciacutelia bem como do Latim O aacuterabe era bem
conhecido nos espaccedilos da corte da Siciacutelia poreacutem natildeo haacute indiacutecios de que Joaquim dominava
este idioma apesar dos provaacuteveis contatos com ele durante o tempo em que esteve na corte
do reino em Palermo
Apoacutes um periacuteodo inicial em Consenza o ainda jovem Joaquim foi encaminhado para
a corte de William II na Siciacutelia onde trabalhou para o chanceler Estevatildeo de Perche Apoacutes
algum tempo na corte foi com o notaacuterio Santoro para Apuacutelia e Val di Crati onde foi
acometido de uma doenccedila Possivelmente para tratar da enfermidade ele retornou para a
corte em Palermo
Em meados de 1167 Joaquim decidiu fazer uma peregrinaccedilatildeo agrave Jerusaleacutem Eacute difiacutecil
saber as causas desta accedilatildeo de Joaquim apesar da probabilidade de sua doenccedila ter alguma
relaccedilatildeo com o evento tanto com o abandono da corte quanto com a viagem para a Terra
Santa260 Troncarelli argumenta que jaacute na base desta peregrinaccedilatildeo estava a decisatildeo juvenil
de Joaquim de abraccedilar o eremitismo e todo o desenvolvimento da sua viagem jaacute seria parte
deste propoacutesito de vida eremita261 Para Randolph Daniel entretanto a vocaccedilatildeo de Joaquim
se deu durante a peregrinaccedilatildeo quando ao passar por Tripoli na Siria ele teria enfrentado
outra enfermidade desta vez por causa de uma epidemia local Como sobreviveu a ela
tomou a decisatildeo de abraccedilar o monasticismo ainda que neste periacuteodo a opccedilatildeo tenha sido por
um tipo de monasticismo natildeo-cenobiacutetico em isolamento e ascetismo262 Independentemente
entretanto do momento especiacutefico em que se deu a vocaccedilatildeo religiosa de Joaquim ela deve
ter tido alguma relaccedilatildeo com sua peregrinaccedilatildeo ao oriente263
Joaquim concluiu a peregrinaccedilatildeo a Jerusaleacutem e voltou para Siciacutelia em 1171264 natildeo
para a corte mas como outros monges gregos da ilha para uma regiatildeo montanhosa e isolada
Ele escolheu a proximidade do Monte Etna perto de um antigo monasteacuterio oriental265
Alguns meses depois atravessou o estreito de Messina na direccedilatildeo da Calaacutebria sua terra natal
259 TRONCARELLI op cit p 16 260 Adeline Rucquoi analisa as motivaccedilotildees provaacuteveis de peregrinos na Idade Meacutedia e menciona a relaccedilatildeo entre
enfermidade e voto de peregrinaccedilatildeo como uma causa frequente Cf RUCQUOI Adeline Peregrinos
medievales Tiempo de historia Salamanca v VII n 75 p 82-99 1981 p 85 261 TRONCARELLI op cit p 18 262 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii 263 SANTI Francesco La Bibbia in Gioacchino da Fiore In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio
(ed) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 257-267 p 259 264 AFFLECK Toby Joachim of Fiore Access History Brisbane v 1 n 1 p 45-54 1997 p 45 265 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der
Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98
92
Buscou um abrigo ou mesmo uma caverna em Guarassanum perto de Consenza e da vila
onde nasceu Narrativas de caraacuteter lendaacuterio entatildeo narram um encontro entre Joaquim e
Mauro Eacute um topos recorrente na biografia de grandes figuras religiosas do periacuteodo quando
o pai tenta dissuadir o filho de sua missatildeo religiosa para retomar uma vida social em
ascensatildeo Randolph Daniel destaca entretanto que apesar da natureza artificial da narrativa
encontros como este poderiam ser frequumlentes quando filhos de famiacutelias bem situadas na
sociedade decidiam abandonar uma carreira de sucesso para abraccedilar uma vocaccedilatildeo religiosa
de pouco prestiacutegio como era a vida isolada de um eremita266 O proacuteprio Joaquim parece falar
de um conflito com sua famiacutelia no interior de sua Concordia com a mensagem de que havia
recusado a promoccedilatildeo social a escala de sucesso no interior do Reino da Siciacutelia para abraccedilar
a ascese267
Apoacutes um periacuteodo recluso em Guarassanum Joaquim aceitou a hospitalidade da
abadia cisterciense de Sambucina ainda perto de Consenza Mas natildeo ficou muito tempo ali
pois se deslocou para Rende cerca de 10 quilocircmetros a noroeste onde por um ano pregou
agraves pessoas da regiatildeo Receoso de estar cometendo algum ato de desobediecircncia por pregar
sem autorizaccedilatildeo procurou o bispo Roberto de Catanzaro de quem recebeu o ordenamento
sacerdotal e a referida autorizaccedilatildeo para pregar Foi neste periacuteodo que Joaquim conheceu o
monasteacuterio de S Maria de Corazzo jaacute que tanto para ir quanto para voltar de Catanzaro ele
precisou se hospedar ali
Ele retomou sua atividade em Rende como pregador itinerante mas natildeo demorou
muito para tomar a decisatildeo de abandonar o clero secular e ingressar no monasteacuterio de
Corazzo como noviccedilo268 Este monasteacuterio fora fundado em 1157 por Rogeacuterio de Martirano
O abade desde o tempo da fundaccedilatildeo era Columbano Em 1177 entretanto por algum
motivo natildeo explicitado apenas relatado como scandala os monges de Corazzo resolveram
afastaacute-lo e na sequecircncia elegeram Joaquim para substituiacute-lo o que indica o status de
lideranccedila que o ex-peregrino jaacute havia adquirido entre eles Os monges podem ter percebido
que a formaccedilatildeo cultural de Joaquim o havia capacitado para dirigir a casa funccedilatildeo essa que
266 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xiii 267 Idem p xx Troncarelli entende que esse conflito poderia ser ainda mais significativo em funccedilatildeo do fato de
Joaquim ter se afastado da chancelaria normanda durante um periacuteodo de desenvolvimento do Reino da Siciacutelia
ldquoperiacuteodo de prosperidade e paz sem igualrdquo Cf TRONCARELLI op cit p 19 268 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p iv
93
envolvia certo grau de relacionamento com os poderes sociais circundantes na defesa da
propriedade e dos direitos do monasteacuterio269
Joaquim natildeo aceitou a eleiccedilatildeo rejeitou o cargo e saiu do mosteiro Foi inicialmente
para S Trindade em Acri monasteacuterio fundado em 1080 pelo conde Rogeacuterio I270 Insatisfeito
com o pouco isolamento do local deixou-o igualmente e procurou a abadia de Sambucina
na qual jaacute havia se hospedado Esta era a uacutenica casa da Ordem de Cister no Reino da Siciacutelia
ateacute o momento Joaquim tentou nela seu ingresso mas foi rejeitado por estar jaacute filiado a
Corazzo
Enquanto estava em Sambucina ele foi pressionado pelo abade da casa pelo
arcebispo Ruffus de Consenza e por Melis um juiz de Rende a retornar ao seu monasteacuterio
e aceitar o resultado da eleiccedilatildeo Diante dos apelos Joaquim assumiu a direccedilatildeo da abadia de
Corazzo ainda no ano de 1177271
Enquanto abade ele dedicou boa parte de suas energias na tentativa de filiar sua casa
agrave Ordem Cisterciense Uma carta do bispo Miguel de Martirano datada de 1177 faz menccedilatildeo
a um privileacutegio outorgado pelo papa Alexandre III (1159-1181) a Corazzo para que os
monges adotassem os costumes cistercienses Natildeo daacute para saber se a adoccedilatildeo destes costumes
eacute anterior ou posterior agrave eleiccedilatildeo de Joaquim De qualquer forma para conseguir ingressar
efetivamente na Ordem era preciso ser aceito como casa-filha de uma casa jaacute estabelecida
na Ordem de Cister272
A primeira tentativa de Joaquim foi Sambucina proacutexima de Corazzo igualmente na
Calaacutebria e com quem ele jaacute tinha tido contatos em mais de uma ocasiatildeo O pleito poreacutem
foi rejeitado aparentemente em funccedilatildeo de questotildees ligadas agrave propriedade do monasteacuterio de
Joaquim273 Com a rejeiccedilatildeo de Sambucina o abade calabrecircs se voltou para Casamari uma
casa cistersiense fora do Reino da Siciacutelia fundada em 1140 a leste de Roma274 Ali ele
chegou em 1183 e ficou por oito meses partindo somente no ano seguinte A resposta de
Casamari foi semelhante agrave de Sambucina mas durante este periacuteodo Joaquim encontrou a
269 Graham Loud analisou o processo de eleiccedilatildeo no interior das abadias da Itaacutelia meridional em LOUD
Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007 p 462-467 270 Idem p 86 271 DESROCHE Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade
Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 269 272 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xv 273 TRONCARELLI op cit p 21 274 DUBY Georges Atlas Histoacuterico Mundial Madrid Editorial Debate 1987 p 49
94
hospitalidade do abade Geraldo (abade de 1183-1209) e dedicou a maior parte do tempo no
estudo do acervo da rica biblioteca do monasteacuterio275
No mecircs de maio de 1184 aproveitou a oportunidade para visitar o papa Luacutecio II
(papa de 1181-1185) que se encontrava em Veroli Segundo Marjorie Reeves esta visita ao
Papa era uma tentativa de Joaquim de legitimar a produccedilatildeo de suas obras o que naquele
momento era sua missatildeo de vida276 Diante do pontiacutefece ele teve a oportunidade de explicar
um manuscrito encontrado em Roma entre os documentos do falecido Cardeal Mathias de
Angers O texto tratava de profecias tradicionais sobre o final dos tempos cobrindo temas
como o Anticristo a grande tribulaccedilatildeo e o fim do mundo Diante de Luacutecio III Joaquim
aplicou no documento anocircnimo a mesma forma de exegese que ele jaacute aplicava nos textos
biacuteblicos buscando elementos do seu tempo que pudessem corresponder agraves profecias
narradas na obra277 Posteriormente ele transcreveu sua exposiccedilatildeo deste documento num
pequeno tratado intitulado Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno 1184278
onde trata da tribulaccedilatildeo futura da Igreja originada em forccedilas do Impeacuterio Germacircnico como
parte do processo divino de purificaccedilatildeo da Igreja279
Como resultado do encontro o papa Luacutecio aprovou o meacutetodo hermenecircutico de
Joaquim e exortou-o a concluir os escritos que desejava produzir280 Entendendo que o papa
havia dado a ele a licenccedila que ele queria o abade calabrecircs iniciou ainda em Casamari a
produccedilatildeo simultacircnea de vaacuterias obras Ele natildeo se contentava em comeccedilar e terminar cada
uma mas trabalhava nelas de forma concomitante auxiliado por dois escribas e um
secretaacuterio Lucas de Consenza que se tornou seu amigo a partir de entatildeo Ele ditava e
revisava o material que os seus ajudantes escreviam281
Joaquim retornou para Corazzo em 1184 Segundo West e Zimdars-Swartz ele
voltou com a clara perspectiva de que as questotildees administrativas vinculadas ao seu cargo o
atrapalhavam natildeo soacute a escrever suas ideias mas tambeacutem a divulgaacute-las para preparar a igreja
para os eventos iminentes que estavam por vir282
Em 1186 Joaquim foi a Verona para render homenagem ao novo pontiacutefice Urbano
III (papa de 1185-1187) onde o papa renovou a autorizaccedilatildeo dada anteriormente por Luacutecio
275 TRONCARELLI op cit p 21 276 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 6 277 SANTI op cit p 261-265 278 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 90 279 TRONCARELLI op cit p 23-24 280 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 7 281 TRONCARELLI op cit p 22 282 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4
95
II e ainda ldquoincitou-o a continuar seus escritosrdquo283 Diante da autorizaccedilatildeo de dois papas para
que escrevesse ele procurou na primavera desde mesmo ano uma sela mais reservada num
local perto de Corazzo chamado Petralata sem rompimento formal ainda com o seu
monasteacuterio
Em 1188 Joaquim foi a Roma onde Clemente III (papa de 1187-1191) emitiu uma
carta na qual renovou as autorizaccedilotildees anteriores e solicitou que fossem levadas apoacutes
concluiacutedas para a avaliaccedilatildeo da cuacuteria romana O pontiacutefece ainda teria aprovado a resignaccedilatildeo
de Joaquim do cargo de abade de Corazzo no momento exato em que Corazzo finalmente
conseguiu ingresso na ordem Cisterciense como filha da abadia de Fossanova uma das
maiores casas da Ordem no territoacuterio papal fundada em 1135 ao sul de Roma284 O
abandono de Corazzo agora cisterciense rendeu a Joaquim o ressentimento dos seus
monges e do proacuteprio Capiacutetulo Geral da Ordem que passou a exigir sua volta Eles o
acusaram de transgredir o primeiro voto da profissatildeo monaacutestica beneditina que eacute a
estabilidade no monasteacuterio285
Em vez de retornar entretanto de posse da resignaccedilatildeo papal ele continuou por um
tempo em Petralata contando com a ajuda de Rainer um eremita da ilha de Ponza que se
juntou a ele No inverno de 1188 insatisfeitos com as interrupccedilotildees e visitas eles foram atraacutes
de um lugar mais isolado e o encontraram nas montanhas calabresas de Fiore para onde se
mudaram em maio de 1189 Naquele lugar agrave medida que disciacutepulos vinham se juntar a
Joaquim nasceu a necessidade de organizar um monasteacuterio O resultado foi a fundaccedilatildeo da
abadia de S Joatildeo de Fiore286
A fundaccedilatildeo da casa entretanto se deu no contexto adverso da transiccedilatildeo dinaacutestica
entre a morte de William II no final de 1189 o curto governo de Tancredo (entre 1190-1194)
e a coroaccedilatildeo de Henrique VI (final de 1194) Eacute um periacuteodo no qual apesar de ter renunciado
anteriormente agrave direccedilatildeo do monasteacuterio de Corazzo Joaquim estaacute nos termos de Troncarelli
ldquoapaixonadamenterdquo envolvido na fundaccedilatildeo de uma casa proacutepria287 Ele renunciara agrave
283 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xviii 284 DUBY op cit p 49 285 TRONCARELLI op cit p 24 Alguns autores sugerem entretanto que Joaquim deixou Corazzo por
entender que a Ordem de Cister jaacute natildeo era riacutegida o suficiente principalmente na questatildeo da disciplina
monaacutestica Ele desejava o cumprimento estrito da Ordem de S Bento o que para o abade significava o
abandono das questotildees temporais uma vida de simplicidade a pureza de coraccedilatildeo e a vida contemplativa Cf
DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997
p 41 286 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5 287 TRONCARELLI op cit p 27
96
lideranccedila de uma casa para ser liacuteder de outra Esta mudanccedila de perspectiva de Joaquim
poderia ter relaccedilatildeo com o papel que ele imaginou ter nos tempos que estariam por vir sobre
a Igreja Segundo este professor da Universitagrave della Tuscia ele entendeu que precisava do
apoio de uma nova casa monaacutestica na promoccedilatildeo de sua missatildeo de preparar as pessoas para
a intervenccedilatildeo iminente do Espiacuterito Santo288
Por isso se antes ele queria o isolamento agora ele precisa de apoio natildeo apenas dos
papas mas tambeacutem dos poderes poliacuteticos Entre 1190-1191 ele passou um periacuteodo em
Palermo enquanto solicitava ajuda de Tancredo para as obras de S Joatildeo de Fiore A resposta
do rei normando foi favoraacutevel a Joaquim por meio de uma ldquogenerosa doaccedilatildeordquo289
Enquanto esteve na Siciacutelia em negociaccedilatildeo com Tancredo a ilha se tornou ponto de
parada de uma cruzada a caminho de Jerusaleacutem Joaquim foi convocado para se encontrar
com Ricardo Coraccedilatildeo de Leatildeo da Inglaterra e um grupo de ingleses em Messina290 Ricardo
desejava de Joaquim algum tipo de vaticiacutenio a respeito da cruzada em Jerusaleacutem o que
demonstra que neste periacuteodo o calabrecircs havia alcanccedilado a reputaccedilatildeo de profeta entre alguns
de seus conterracircneos291 O abade usou a visatildeo de Apocalipse 179-10 que descreve uma
besta com sete cabeccedilas para interpretar a Cruzada A passagem apocaliacuteptica fala de sete reis
dos quais caiacuteram cinco um existe e outro ainda natildeo chegou Segundo o autor do Expositio
as cinco cabeccedilas que caiacuteram seriam Herodes Nero Constantino Maomeacute e Melsemuto A
sexta cabeccedila neste caso seria Saladino aquele ldquoum que existerdquo que seria destruiacutedo em
breve para que a seacutetima cabeccedila o que ldquoainda natildeo chegourdquo o derradeiro Anticristo se
manifestasse Este teria jaacute 15 anos e estaria pronto para assumir seu poder
O rei Ricardo perguntou a Joaquim onde o Anticristo teria nascido e onde iria reinar
Joaquim respondeu que ele nascera in urbe Romana e obteria a Seacute Apostoacutelica A visatildeo
aparentemente pouco ortodoxa de Joaquim sobre o Anticristo agradou o monarca inglecircs
adversaacuterio do papa Reeves argumenta entretanto que ao apontar Roma como o local de
nascimento do Anticristo Joaquim estava somente traduzindo a antiga expectativa em seus
proacuteprios termos Joaquim esperava um falso papa como uma de suas manifestaccedilotildees mas
288 Idem p 29 289 Idem p 28 290 Conferir a siacutentese e uma anaacutelise do encontro em REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later
Middle Ageshellip op cit p 7-9 291 Segundo Mc Ginn ldquoreis e rainhas papas e priacutencipes buscavam seus conselhosrdquo a ponto de se tornar uma
das figuras religiosas mais significativas do periacuteodo Cf MC GINN Bernard Apocalyptic Spiritualityhellip op
cit p 98
97
sem implicar neste caso que a Igreja romana deveria ser identificada com a Babilocircnia de
Apocalipse 17-19292
Apoacutes os eventos de Messina o fundador de Fiore voltou para Calaacutebria Mas em 1191
precisou descer novamente da regiatildeo montanhosa na direccedilatildeo de Naacutepoles para um encontro
com Henrique VI que em disputa pela coroa da Siciacutelia viera destituir Tancredo do trono O
abade exortou o monarca germacircnico a natildeo agir com violecircncia contra a coroa siciliana ou
seus aliados Ele usou uma passagem do Antigo Testamento Ezequiel 267 para criticar a
accedilatildeo de Henrique relacionando os eventos de Babilocircnia e Tiro com Henrique e a Siciacutelia293
Independentemente do peso que as palavras de Joaquim tiveram na decisatildeo de
Henrique o monarca realmente decidiu abandonar a regiatildeo e voltar para a Germacircnia Os
eventos posteriores viriam a mostrar um Henrique realmente disposto a ajudar a casa de
Fiore Apoacutes a morte de Tancredo a caminho para assumir o reino da Siciacutelia Henrique
encaminhou uma carta em que fazia uma doaccedilatildeo ao novo monasteacuterio Nela Joaquim eacute pela
primeira vez declarado abade de S Joatildeo em Fiore Em 6 de marccedilo de 1195 alguns meses
apoacutes a coroaccedilatildeo o monarca germacircnico escreveu uma segunda carta garantindo a S Joatildeo um
dote anual em moedas de ouro Bizantinas294
Agora com o apoio do Imperador Joaquim retornou ao papa Celestino III (1191-
1198) e pediu a ele sua aprovaccedilatildeo para S Joatildeo de Fiore Em Roma no dia 25 de agosto de
1196 Celestino emitiu uma bula na qual formalmente aprovou S Joatildeo e a Regra da nova
Ordem Florense295 Ainda nesta bula Joaquim aparece descrito como o abade de Fiore
indicando que pelo menos aos olhos do papa ele natildeo tinha mais conexotildees com Corazzo nem
com a Ordem Cisterciense A mesma aprovaccedilatildeo se deu em 1204 por Inocecircncio III e duas
vezes por Honoacuterio em 1216 e 1220 Mesmo assim desde 1192 Joaquim era considerado
fugitivus pelo Capiacutetulo Geral Cisterciense296
Em 1196 Joaquim retornou a Palermo na qualidade de confessor da rainha
Constacircncia que veio a confirmar todas as doaccedilotildees da coroa para Fiore apoacutes a morte de
Henrique VI em 1197
292 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 9 293 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 66 294 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 295 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n
1 p 217-240 2004 p 219 Esta Regra se perdeu apesar de estudiosos entenderem que ela deveria ser bem
proacutexima da Regra Cisterciense 296 TRONCARELLI op cit p 30
98
O abade Joaquim escreveu em marccedilo de 1200 um documento narrando as
autorizaccedilotildees que entendeu ter recebido do papado de Roma para escrever suas obras e o
compromisso assumido para enviaacute-las quando estivessem prontas (Expositio in
Apocalpysim 1r-v) Ele encaminhou suas trecircs principais obras (Expositio in Apocalypsim
Concordia Novi ac Veteris Testamenti e Psalterium decem Chordarum) para anaacutelise da
cuacuteria papal Mas natildeo teve tempo para receber de Roma a tal avaliaccedilatildeo pois no dia 30 de
marccedilo de 1202 na abadia de S Martino di Giove que havia sido dada para a Ordem de Fiore
em 1201 pelo Arcebispo Andreas de Cosenzza ele veio a falecer297 sendo transferido
posteriormente para S Joatildeo de Fiore
42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim
Um fenocircmeno significativo nas obras de Joaquim eacute a forma como ele reelabora e
repete os mesmos temas seguidamente num processo contiacutenuo e dinacircmico Torna-se
importante entatildeo apontar data e momento de produccedilatildeo natildeo apenas para o Expositio in
Apocalysim mas para as demais obras do abade relacionadas com o Apocalipse de Joatildeo que
sobreviveram e estatildeo disponiacuteveis para consulta Praephatio super Apocalypsim Enchiridio
super Apocalypsim e Liber Introductorius298 A produccedilatildeo do comentaacuterio maior (Expositio)
se deu por meio da produccedilatildeo de obras menores (em formato de sermatildeo e tratado) desde os
primeiros anos da deacutecada de 1180 ateacute os anos proacuteximos de sua morte299
A mais antiga destas obras entretanto o Praephatio super Apocalypsim eacute marcada
pela natureza compoacutesita Antes de ser um uacutenico texto eacute formado pela reuniatildeo de dois
pequenos sermotildees nos quais o abade faz uma apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o Apocalipse de
Joatildeo e a histoacuteria da Igreja300
O primeiro sermatildeo comeccedila com a expressatildeo ldquoO Livro do Apocalipse eacute o uacuteltimo de
todos os livros escritos com espiacuterito de profecia incluiacutedo no cataacutelogo das Sagradas
297 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 298 Haacute ainda um ldquoindependente e curto comentaacuterio do Apocalipserdquo ineacutedito e sem publicaccedilatildeo denominado pela
historiadora Marjorie Reeves como Apocalypsis Nova presente em dois manuscritos do seacuteculo XIII Cf
REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 513 299 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p
286 300 SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 Foi desta
ediccedilatildeo que partiu a traduccedilatildeo para o portuguecircs do professor Rossatto ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao
Apocalipse op cit Outra traduccedilatildeo em portuguecircs pode ser encontrada em BERNARDI Orlando Comentaacuterio
ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010
99
Escriturasrdquo301 O segundo inicia com a frase ldquoAntes de dizer qualquer coisa sobre o livro do
Apocalipse devemos considerar que este livro estaacute provido de um tiacutetulo de uma saudaccedilatildeo
de um prefaacuteciordquo302 Cada sermatildeo tem sua proacutepria unidade interna e foram reunidos em
circunstacircncias desconhecidas por causa de afinidades temaacuteticas Iremos distingui-los como
faz Potestagrave pelas primeiras palavras latinas de cada um303 O primeiro e mais antigo pode
ser denominado Apocalipsis liber ultimus O segundo Locuturi aliquid Ambos foram
escritos por Joaquim para servir de base para a pregaccedilatildeo em contexto lituacutergico num periacuteodo
anterior agrave sua passagem por Casamari (1183-1184)304 Estes tratados constituem uma
primeira aproximaccedilatildeo exegeacutetica de Joaquim ao Apocalipse de Joatildeo cujo puacuteblico alvo
imediato era formado pelos monges do monasteacuterio de Corazzo
A proacutexima obra de Joaquim a desenvolver uma leitura do Apocalipse eacute o Enchiridion
super Apocalypsim Ele foi escrito no periacuteodo em que o abade pousou em Casamari (1183-
1184)305 Nele Joaquim faz uma apresentaccedilatildeo ampla da obra de Joatildeo sem discutir frase a
frase como faraacute no Expositio mas jaacute expondo suas partes principais O termo ldquoEnchiridionrdquo
pode ser traduzido como ldquomanualrdquo e foi escrito segundo o abade para ldquoapresentar o
conteuacutedo de todo o livro do Apocalipserdquo (Enchiridion l 56-57)306 Eacute uma siacutentese portanto
do conteuacutedo que ele entendia estar presente no uacuteltimo livro da Biacuteblia cristatilde e poderia ser
utilizado como ldquotexto introdutoacuterio e explicativordquo307 do seu Expositio Isto daacute ao Enchiridion
tambeacutem um papel de esquema ou projeto do comentaacuterio ao Apocalipse que o abade
comeccedilaria a produzir em Casamari
O texto comeccedila com ldquoIncipit Enchiridion abbatis Joachim super Apocalypsimrdquo (l
1) seguido da primeira frase do texto ldquoComo catoacutelicos e ortodoxos lutamos (certatum) com
os mais fortes entusiasmos (studiis) para lanccedilar os fundamentos da Igreja (ecclesiae
fundamenta)rdquo (l 2-3)308 Este texto foi produzido por Joaquim para apresentar o Expositio e
lhe servir de resumo mas no momento em que o Expositio estava para ser concluiacutedo o
301 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse op cit p 453 302 Idem p 462 303 POTESTAgrave op cit p 290 e 294 304 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 75 Potestagrave entretanto sugere um periacuteodo
posterior agrave Casamari entre 1185-1186 para Apocalipsis liacuteber ultimus e uma data subsequente para Locuturi
aliquid Cf POTESTAgrave op cit p 290 e 294 305 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 92 Potestagrave entretanto prefere datar o Enchiridion
para uma data posterior a 1194 Cf POTESTAgrave op cit p 328 306 As citaccedilotildees do Enchridion seguem o texto criacutetico de BURGER Edward K Joachim of Fiore Enchiridion
super Apocalypsim Toronto Pontifical Institute of Mediaeval Studies 1986 307 POTESTAgrave op cit p 327 308 BURGER op cit p 9
100
Enchiridion sofreu uma revisatildeo tatildeo profunda com alteraccedilatildeo de aspectos significativos do
seu conteuacutedo que os estudiosos preferem mudar seu nome chamando-o entatildeo de Liber
introductorius309 Gian Luca Potestagrave estima que esta revisatildeo do Enchiridion pode ter ficado
pronta no uacuteltimo ano do pontificado do papa Celestino III (papa de 1191-1198) ainda com
a funccedilatildeo de ldquosimplificar e sintetizar os resultados da obra maiorrdquo310
Uma comparaccedilatildeo entre a primeira redaccedilatildeo (Enchiridion iniacutecio da deacutecada de 1180) e
essa segunda redaccedilatildeo (Liber introductorius 1198) revela mudanccedilas por exemplo na postura
quanto ao Impeacuterio Germacircnico que eacute tratado de forma criacutetica no Enchiridion mas de forma
branda no Liber introductorius Afinal a monarquia Hohenstaufen antes temida por
Joaquim havia se manifestado concretamente apoacutes 1191 na figura generosa de Henrique VI
e suas doaccedilotildees para a casa de S Joatildeo de Fiore311
Com relaccedilatildeo ao Expositio in Apocalypsim como jaacute argumentado anteriormente ele
eacute o resultado de mais de uma deacutecada de trabalho e elaboraccedilatildeo Joaquim o comeccedilou ainda em
Casamari (1183-1184) e soacute o concluiu no final do seacuteculo A informaccedilatildeo sobre a conclusatildeo eacute
dada pelo proacuteprio Joaquim na Carta Testamentaacuteria (Expositio in Apocalypsim 1r) Se a data
de 1198 para o Liber introductorius estiver correta as repetidas referecircncias a ele encontradas
no interior do Expositio indicam que Joaquim usou o periacuteodo entre 1198 e 1200 para fazer
uma revisatildeo completa de seu grande comentaacuterio do Apocalipse312
43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim
O Expositio in Apocalypsim eacute certamente a maior obra de Joaquim de Fiore Nas
ediccedilotildees seiscentistas de Veneza o Expositio tem 224 foacutelios contra 135 da Concordia O
abade denominou o Expositio na sua Carta Testamentaacuteria de ldquoexpositione Apocalipsisrdquo
(Expositio in Apocalypsim 1r) Mas o que consistiria em termos formais esta ldquoexposiccedilatildeo
do Apocalipserdquo Ela natildeo segue a forma literaacuteria da Concordia nem do Psalterium ou
mesmo do Enchiridion Eacute importante neste caso aplicar ao Expositio uma questatildeo que jaacute
aplicamos ao Apocalipse de Joatildeo justamente porque a definiccedilatildeo do gecircnero literaacuterio de uma
obra eacute parte da escolha do autor para definir a forma como ele desejaria que seu livro fosse
309 POTESTAgrave op cit p 327 310 Idem p 329 311 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 108 312 POTESTAgrave op cit p 287
101
lido313 A obra de Joatildeo eacute enquanto gecircnero literaacuterio um ldquoapocalipserdquo e se insere na longa
tradiccedilatildeo literaacuteria judaica apocaliacuteptica que retrocede ao seacuteculo II antes de Cristo O Expositio
entretanto natildeo eacute um apocalipse antes eacute um comentaacuterio biacuteblico do Apocalipse
Um comentaacuterio biacuteblico eacute formalmente uma explicaccedilatildeo sistemaacutetica abrangente e
sequencial de um determinado livro da Biacuteblia cujo propoacutesito eacute adaptar o material biacuteblico
para as circunstacircncias das novas audiecircncias314 A explicaccedilatildeo de apenas algumas porccedilotildees
capiacutetulos versiacuteculos ou periacutecopes natildeo poderia formalmente ser definida como um
comentaacuterio jaacute que ele precisava cobrir todo o livro biacuteblico Por sequencial entende-se o
acompanhamento da estrutura do texto biacuteblico que se estaacute comentando No caso do
Apocalipse o comentarista o seguia nos blocos ou periacutecopes natildeo necessariamente versiacuteculo
a versiacuteculo ou capiacutetulo por capiacutetulo jaacute que essa padronizaccedilatildeo soacute comeccedilaria a partir do seacuteculo
XIII315
O embate narrado por Euseacutebio de Cesareacuteia entre o bispo Neacutepos e Dioniacutesio serve para
ilustrar a forma como o Apocalipse era usado nos trecircs primeiros seacuteculos (Histoacuteria
Eclesiaacutestica VII XXIV 1-9) Neacutepos era um quiliasta316 cuja mensagem enfatizava a
realidade de um futuro governo terreno de Cristo na terra Para se contrapor a uma exegese
alegoacuterica do Apocalipse que tentava minimizar a realidade histoacuterica deste reinado
messiacircnico este bispo do Egito escreveu um livro intitulado Refutaccedilatildeo dos alegoristas
Contra Neacutepos e seu livro se levantou Dioniacutesio que escreveu Sobre as promessas tambeacutem
para discutir o Apocalipse de Joatildeo Euseacutebio ainda narrou que neste periacuteodo aconteceu um
longo debate acerca da forma como o livro de Joatildeo deveria ser interpretado
O bispo de Cesareacuteia fala de dois liacutederes cristatildeos que escreveram textos e recorrem
parcialmente ao Apocalipse para defender suas ideias Em linhas gerais a maioria das
pessoas que recorriam ao Apocalipse neste periacuteodo o usa em contexto de polecircmica
doutrinaacuteria ou apologeacutetica para responder a uma heresia dar suporte a uma determinada
posiccedilatildeo teoloacutegica encorajar cristatildeos perseguidos Papias Justino Martir Irineu Tertuliano
313 Conferir esta discussatildeo no primeiro capiacutetulo desta tese 314 MATTER E Ann The Apocalypse in Early Medieval Exegesis In EMMERSON Richard K MCGINN
Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 38-50 p 38-
39 315 SMALLEY Beryl The study of the Bible in the Middle Ages Oxford Basil Blackwell 1952 p 222-224 316 O quiliasmo eacute definido por Wainwright como ldquoa crenccedila de que Cristo retornaraacute para a terra e inauguraraacute
uma era de prosperidade de mil anos sobre o planetardquo Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious
Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 21
102
Hipolitus Vitorino Lactantius Metodius e Comodianus317 Destes com exceccedilatildeo de
Vitorino todos fizeram uso apenas de pequenas porccedilotildees do Apocalipse
Eacute de Vitorino em diante que surge a praacutetica de comentar o Apocalipse inteiro ldquocomo
resposta a problemas particulares da igreja de cada eacutepocardquo318 O bispo de Pettau na Panocircnia
Superior romana escreveu um comentaacuterio ao Apocalipse em grego cerca do ano 300 Sobre
ele opinou Jerocircnimo ao falar da praacutetica de explicar um livro biacuteblico inteiro ldquoentre os latinos
por outra parte haacute um grande silecircncio exceccedilatildeo feita do maacutertir Vitorino de santa memoacuteria
que podia dizer com o apoacutestolo que apesar de carecer de eloquumlecircncia natildeo carecia de
ciecircnciardquo319 No Oriente o primeiro comentaacuterio em grego surgiu apenas no sexto seacuteculo de
um autor anocircnimo conhecido apenas como Ecumecircnio320 sendo seguido de perto pelo
Comentaacuterio de Andreas de Cesareia na Capadoacutecia321
O original grego do Comentarius de Vitorino estaacute perdido mas seu texto eacute bem
conhecido por meio da recensatildeo feita por Jerocircnimo para o Latim O bispo de Pettau morreu
no tempo das perseguiccedilotildees de Diocleciano e isso aparece marcado em sua interpretaccedilatildeo do
Apocalipse322 Ele entendia que os eventos narrados no livro de Joatildeo eram iminentes pois
diziam respeito agraves tribulaccedilotildees das igrejas de sua eacutepoca Ele segue a estrutura do Apocalipse
procurando destacar e explicar as passagens do texto joanino que julgava serem mais
difiacuteceis Ao comentar Apocalipse 20 Vitorino expressou a expectativa quiliasta de um reino
milenar de Cristo na terra
Assim pois os que natildeo tomarem a dianteira ao ressuscitar na primeira
ressurreiccedilatildeo e reinar com Cristo sobre toda a terra (super ordem) e sobre
todas as gentes (super gentes universae) ressuscitaratildeo ao toque da
trombeta final depois de mil anos (Commentarius in Apocalypsim 167-
169 PLS)323
Esta expectativa entretanto tornou-se um problema para a Igreja posterior a
Constantino e ao Edito de Toleracircncia de 313 em funccedilatildeo das novas formas eclesiaacutesticas e o
desenvolvimento de redes de relacionamento com o poder temporal324 Por isso a recensatildeo
317 WAINWRIGHT op cit CONSTANTINOU Eugenia Scarvelis Andrew of Caesarea and the Apocalypse
in the Ancient Church of the East Quebec Universiteacute Laval 2008 p 126 318 MATTER op cit p 38 319 Citado a partir de TORROacute Joaquiacuten Pascual Introduccioacuten general In VICTORINO DE PETOVIO
Comentaacuterio al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 9-26 p 11 320 ECUMENIO Comentario sobre el apocalipsis Madrid Cidad Nueva 2008 321 CONSTANTINOU op cit p 134 322 TORROacute op cit p 9 323 VITORINO DE PETOVIO Comentario al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 208-
209 324 MATTER op cit p 39
103
de Jerocircnimo procurou moldar a obra de Vitorino expurgando as afirmaccedilotildees milenaristas
fazendo-a corresponder a uma eacutepoca em que a Igreja estava em paz com o Impeacuterio e com a
sociedade A leitura literal do milecircnio foi transformada em leitura alegoacuterica Segundo
Jerocircnimo na sua revisatildeo do comentaacuterio de Vitorino de Apocalipse 20 ldquoo nuacutemero denaacuterio
significa o decaacutelogo e o centenaacuterio eacute a coroa da virgindaderdquo o que indicaria que o texto
joanino queria ensinar que os cristatildeos virgens natildeo apenas do corpo mas tambeacutem da liacutengua
e do pensamento seratildeo exaltados pelo Cristo do fim dos tempos325
Quase um seacuteculo depois de Vitorino outro autor resolveu escrever uma exposiccedilatildeo
completa do Apocalipse Ele eacute conhecido como Ticocircnio (330-395) e era membro da igreja
donatista do norte da Aacutefrica326 Ele expocircs todo o livro do Apocalipse utilizando os princiacutepios
que havia formulado numa outra obra intitulada Liber regularum327 O comentaacuterio de
Ticocircnio se perdeu mas estudiosos tecircm acesso aos princiacutepios que ele usou para escrevecirc-lo
bem como a reconstruccedilotildees parciais do seu conteuacutedo a partir das citaccedilotildees que dele fizeram
entre outros Primasio Beda e Beato de Liebana
As regras do Liber regularum levaram Ticocircnio a fazer uma leitura do Apocalipse
com ecircnfase na encarnaccedilatildeo de Jesus (Regra 1) no relacionamento entre o Antigo e o Novo
Testamento (Regra III) no simbolismo dos nuacutemeros (Regra V) na recapitulaccedilatildeo (Regra VI)
e na espiritualizaccedilatildeo do milecircnio com uma forte rejeiccedilatildeo do quiliasmo328
O proacuteximo exegeta latino a compor um comentaacuterio ao Apocalipse foi Primasio329
Sua obra Commentarius in Apocalypsim faz uma siacutentese de Vitorino e Ticocircnio Primasio
foi bispo de Justiniapolis no norte da Aacutefrica proviacutencia da Numidia de 527-565 num periacuteodo
de colapso da accedilatildeo imperialista bizantina Apesar de envolvido num clima de instabilidade
social o interesse do bispo africano continuou na linha de Jerocircnimo e Agostinho ao fazer
uma exegese alegoacuterica do Apocalipse330 Como o Apocalipse ainda natildeo tinha marcas de
capiacutetulo e versiacuteculo as definiccedilotildees estruturais do seu comentaacuterio se tornaram importantes na
interpretaccedilatildeo do livro joanino Ele o dividiu em cinco partes 1) sete igrejas 2) sete selos 3)
sete trombetas e a mulher ensolarada 4) as bestas da terra e mar as sete pragas e as sete
325 O texto de Vitorino estaacute publicado em duas seccedilotildees A superior apresenta o texto do proacuteprio bispo de Pettau
traduzido para o Latim A inferior registra a anaacutelise feita por Jerocircnimo sobre a exegese de Vitorino A anaacutelise
de Jerocircnimo mencionada no corpo deste texto estaacute em VITORINO DE PETOVIO op cit p 211 326 CALVO Juan Joseacute Ayaacuten Introduccioacuten In TICONIO Livro de Las Reglas Madri Cidad Nueva 2009 p
11-78 p 14 327 Idem p 28 328 Idem p 39-44 329 MATTER op cit p 41 330 Idem p 42
104
taccedilas 5) o cordeiro sobre o trono o novo ceacuteu e a nova terra331 Matter avalia que todos os
comentaristas do Apocalipse no Ocidente posteriores a Primasio ateacute o seacuteculo XII foram
influenciados por este comentaacuterio332
Autor Data Lugar
Primasio 540 Numiacutedia
Cesaacuterio de Arles 540 Sul da Gaacutelia
Apringius 550 Ibeacuteria
Cassiodoro 575 Sul da Itaacutelia
Beda 730 Northumbria
Ambrosio Autpert 760 Benevento
Beato de Liebana 780 Ibeacuteria
Alcuino 800 Franccedila
Haimo 840 Franccedila
Anocircnimo Seacuteculo IX Franccedila
Glossa Ordinaria 1100 Regiatildeo de Leon
O Beato de Liebana aleacutem de depender de Primasio recorreu pesadamente a Vitorino
e Ticocircnio Em funccedilatildeo do seu papel dentro do cristianismo hispacircnico do seacuteculo VIII os temas
recorrentes no seu comentaacuterio eram a santidade da Igreja e a defesa da divindade de Cristo
contra a teologia adocionista dos seguidores do bispo Elipando de Toledo333
Haacute no Beato uma combinaccedilatildeo significativa de exegese eclesiologia e cristologia que
se tornou recorrente em ambientes monaacutesticos a partir do seacuteculo VIII A perspectiva era de
que o Apocalipse deveria ser interpretado tendo como referecircncia a histoacuteria da Igreja na terra
Beda e Ambrosio Autpert incorporaram as contribuiccedilotildees de Primasio e se tornaram
as grandes bases de interpretaccedilatildeo do Apocalipse no periacuteodo caroliacutengio334 Por meio da obra
Explanatio Apocalypsis Beda apresenta a histoacuteria da Igreja e ao mesmo tempo mantem um
olhar sobre a histoacuteria de toda a criaccedilatildeo Ele fez uso das sete regras de Ticocircnio para descrever
sete periacuteodos da histoacuteria do mundo no Apocalipse 1) as sete igrejas da Aacutesia que descrevem
na realidade as igrejas de Cristo 2) os quatro animais e a abertura dos sete selos revelam os
331 Idem p 43 332 Idem p 44 333 Idem p 46 334 Idem p 47
105
conflitos futuros e triunfos da Igreja 3) as sete trombetas descrevem futuros acontecimentos
da Igreja 4) a Mulher e o Dragatildeo revelam as obras e vitoacuterias da Igreja 5) as sete pragas que
infestaratildeo a terra 6) o castigo da prostituta ou cidade iacutempia 7) a Jerusaleacutem como noiva que
desce do ceacuteu335
O comentaacuterio de Ambrosio Autpert construiu uma leitura alegoacuterica detalhada do
Apocalipse Foi escrito entre 758-767 no ducado Lombardo de Benevento Ele absorveu os
comentaacuterios de Vitorino Ticocircnio Primasio aleacutem das anaacutelises de Agostinho e Gregoacuterio o
Grande Ele estava motivado a fazer uma siacutentese de suas fontes com ecircnfase no ldquocasamento
espiritualrdquo entre Cristo e a Igreja336
Os comentaristas posteriores ao periacuteodo caroliacutengio insistiam em ver no Apocalipse
uma alegoria da histoacuteria da Igreja e procuravam nos comentaacuterios anteriores elementos para
apoiar seus pressupostos exegeacuteticos Haacute pouco interesse na perspectiva da iminecircncia do fim
do mundo que aparecia nos leitores quiliastas dos seacuteculo II e III A insistecircncia dos
comentaristas posteriores a Ticocircnio de rejeitar o quiliasmo levou a uma interpretaccedilatildeo do
Apocalipse que o entende como um guia para a Igreja na terra esperar a uniatildeo com uma
Igreja que jaacute se encontra no ceacuteu337
Neste sentido quando surgem no seacuteculo XII a Glossa ordinaria e os comentaacuterios
de Ruperto de Deutz o conteuacutedo tratado por meio de um comentaacuterio ao Apocalipse era de
cunho mais eclesioloacutegico do que escatoloacutegico Eacute nesta grande tradiccedilatildeo entatildeo que retrocede
a Vitorino e Ticocircnio no Ocidente e Ecumecircnio e Andreas de Cesareia no Oriente que se
insere o Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore
Ao discutir o gecircnero literaacuterio ldquocomentaacuterio biacuteblicordquo entretanto natildeo queremos indicar
que o milenarismo soacute poderia nele se manifestar Nem mesmo afirmar algum tipo de
dependecircncia do Expositio em relaccedilatildeo a um comentaacuterio especiacutefico338 O objetivo eacute demonstrar
que desde Vitorino existiu a praacutetica de comentar de maneira sistemaacutetica e abrangente o
livro do Apocalipse de Joatildeo Um comentaacuterio biacuteblico era um tipo de texto voltado
principalmente para a lideranccedila das igrejas mas com potencial de alcance muito maior jaacute
que logo era transformado em base para os sermotildees dos cleacuterigos339
335 Idem 336 Idem p 48 337 Idem 338 Os autores West e Zindars-Swartz encontram indiacutecio no Expositio de recurso a pelo menos dois comentaacuterios
latinos do Apocalipse Haimo de Auxerre e Beda Cf WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 37 339 Comparar com a anaacutelise de Raquel Parmegiani em PARMEGIANI Raquel de Faacutetima Leituras Medievais
do Apocalipse Comentaacuterio ao Beato de Liebana Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernardo do Campo v 23 n 36
107-125 2009 p 122-124
106
44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse
No Liber introductorius Joaquim explicitou o que o teria levado a escrever o
Expositio
Aceitei expor o Apocalipse que o beato Joatildeo isolado na ilha de Patmos
narrou a partir da sequecircncia de eventos (ex cuius serie) como eu penso (ut
ego extimo) para demonstrar claramente o que eu havia previsto e se estas
coisas satildeo dignas de maior aprofundamento de modo que possam incitar
ao desprezo do mundo (possint ad conseptus seculi) a esposa e os filhos do
reino e endossar a palavra do Senhor que disse ldquoexultai e erguei a cabeccedila
porque a vossa salvaccedilatildeo estaacute proacuteximardquo (Lucas 2128) (Expositio in
Apocalypsim 2b)340
Por meio do seu comentaacuterio ao Apocalipse de Joatildeo o abade queria promover o seu
ideal de pureza para a Igreja latina bem como produzir na audiecircncia do seu Expositio
ldquodesprezo pelo mundordquo (conseptus seculi) O termo conseptus traduzido por
constrangimento desprezo aparece num dicionaacuterio como ldquocom cerca ao redor derdquo ldquocercado
por todos os ladosrdquo ldquofechado completamenterdquo341 Neste sentido tanto Joatildeo quanto Joaquim
parecem se valer de seus textos para incitar e promover ascetismo entre suas respectivas
audiecircncias
Joaquim usou o Expositio para apresentar uma ldquohistoacuteria teoloacutegica do
Cristianismordquo342 narrando o desenvolvimento da Igreja Para o abade desde os dias do seu
aparecimento a Igreja estava se desenvolvendo na direccedilatildeo da sua mais plena expressatildeo
quando deixaraacute de ser a instituiccedilatildeo de Pedro e se transformaraacute na instituiccedilatildeo de Joatildeo um tipo
de monasticismo contemplativo no periacuteodo do descanso sabaacutetico343
Uma das metas de Joaquim era encontrar sentido na histoacuteria humana e ele entendeu
que o Apocalipse poderia ser a fonte para isso344 Ao encaminhar o Expositio para a cuacuteria
papal o abade de Fiore desejava disseminar a ideia de que uma cristandade reformada e
purificada era o objetivo de um processo histoacuterico dinacircmico que tinha suas raiacutezes na
340 Traduzido a partir de TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 80 341 DICIONAacuteRIO LATIM PORTUGUEcircS Porto Editora Porto 2001 p 171 342 POTESTAgrave op cit p 297 343 LERNER Robert E The medieval return to the thousand-year Sabbath In EMMERSON Richard K
MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 51-
71 p 57 344 SMALLEY op cit p 289 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the
Apocalypse In EMMERSON Richard K MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages
London Cornell University Press 1992 p 72-88 p 87
107
antiguidade da histoacuteria de Israel345 A chave para enxergar esta histoacuteria estava no uacuteltimo livro
da Biacuteblia o Apocalipse de Joatildeo
45 Resumo
Joaquim foi um notaacuterio da Calaacutebria que abraccedilou a vocaccedilatildeo monaacutestica depois de uma
peregrinaccedilatildeo agrave Palestina Ingressou num monasteacuterio em Corazzo e se esforccedilou para
incorporaacute-lo a Ordem Cisterciense mas abandonou-o para fundar uma casa monaacutestica nas
montanhas calabresas de Fiore Desde seu retorno agrave Calaacutebria ele manifestou o interesse em
promover ideias a respeito de uma eminente e imimente intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina
Sua estrateacutegia para divulga-las envolveu a produccedilatildeo de vaacuterios livros entre eles o Expositio
in Apocalypsim uma apresentaccedilatildeo da histoacuteria da Igreja na forma de um comentaacuterio ao
Apocalipse de Joatildeo
345 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 87
V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA
SICIacuteLIA
Em 1191 Joaquim desceu do isolamento de Fiore na Calaacutebria e foi ao encontro de
Henrique VI Imperador Germacircnico perto dos muros de Naacutepoles346 William II rei da
Siciacutelia morrera sem deixar herdeiros e a coroa do Reino fora entregue com o apoio da cuacuteria
romana para o conde Tancredo sobrinho do falecido rei O imperador entretanto entendia
que a coroa da Siciacutelia lhe pertencia Por isso atravessou a Itaacutelia e iniciou uma ofensiva contra
os aliados de Tancredo Joaquim foi ateacute o imperador cujas tropas estavam sofrendo com
uma epidemia e declarou que o evento era consequecircncia do juiacutezo divino Citando a
passagem biacuteblica de Ezequiel 26 Joaquim comparou o sul da Itaacutelia com Tiro e Henrique
com o rei da Babilocircnia Se o monarca persistisse Deus o derrotaria mas se ele se retirasse
em poucos anos Deus daria a ele a vitoacuteria sem que precisasse lutar347
Eacute difiacutecil saber como as palavras de Joaquim influiacuteram nos eventos que se seguiram
Talvez por causa da forccedila de resistecircncia dos aliados de Tancredo ou porque a ajuda naval
que Henrique esperava atrasara ou porque surgira problemas na Germacircnia que precisavam
de sua atenccedilatildeo no final o Imperador e seus cavaleiros voltaram para o norte dos Alpes
Poucos anos depois em 1194 Tancredo morreu e deixou a coroa da Siciacutelia para seu
pequeno filho chamado entatildeo de William III Novamente Henrique reclamou o Reino para
si e sua esposa Constacircncia princesa normanda filha legiacutetima de Rogeacuterio II o fundador do
Reino da Siciacutelia Segundo o Tratado de Veneza de 1177 entre o Reino da Siciacutelia e o Impeacuterio
Germacircnico caso William II morresse sem filhos Constacircncia sua tia seria a herdeira da
Coroa348 Desta vez Henrique entrou na Itaacutelia meridional atravessou o canal de Messina na
direccedilatildeo da Siciacutelia retirou sem grandes dificuldades o filho de Tancredo do trono venceu
pequenos focos de resistecircncia em Palermo e nesta mesma cidade na catedral real foi
coroado rei no natal de 1194 Com isso ele repetiu o gesto que o fundador do Reino Rogeacuterio
II realizara no natal de 1130
346 TURLEY Thomas Joachim of Fiore In EMMERSON Richard K (org) Key figures in medieval Europe
an encyclopedia New York Routledge 2006 p 372-374 p 373 347 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti
Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xix REEVES Marjorie The influence of
Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993
p 11 348 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south In ABULAFIA David (org) Italy in the Central
Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 58-81 p 69
109
Independentemente do papel de Joaquim nos eventos de 1191 ele deve ter sido
significativo porque outro encontro entre o abade de Fiore e o imperador germacircnico se deu
em Palermo Joaquim compareceu agrave coroaccedilatildeo e foi recebido respeitosamente Em outubro
de 1194 pouco antes de receber a coroa da Siciacutelia Henrique VI escreveu uma carta na qual
descreveu Joaquim como ldquoabade de Fiorerdquo e falou claramente do monasteacuterio de Satildeo Joatildeo
em Fiore antes mesmo de uma autorizaccedilatildeo papal para a fundaccedilatildeo da ordem Florense o que
soacute ocorreu em 1196349 Em marccedilo de 1195 Henrique escreveu outra carta garantindo a Satildeo
Joatildeo um dote anual de cinquenta moedas de ouro Bizantinas350 No pouco tempo que
Henrique sobreviveu a estes eventos (ele morreu em 1197) Joaquim e seus monges se
tornaram protegidos do imperador germacircnico e rei da Siciacutelia A rainha Constacircncia fez do
abade seu confessor pessoal ateacute morrer em Palermo em novembro de 1198
Joaquim de Fiore viveu num momento significativo da Itaacutelia meridional entre o auge
e o fim da dinastia normanda no Reino da Siciacutelia periacuteodo descrito pelo historiador inglecircs
Graham Loud como eacutepoca de ouro para o sul da Peniacutensula quando comparada com os
distuacuterbios sociais anteriores agrave chegada dos normandos e a crise da transiccedilatildeo dinaacutestica
posterior agrave morte de William II351 Foi uma eacutepoca em que reis da dinastia Hauteville
conseguiram unificar sob um mesmo governo toda a regiatildeo inferior ao Patrimocircnio de Satildeo
Pedro do rio Garigliano ateacute a ilha da Siciacutelia territoacuterio marcado fortemente pela presenccedila
grega e muccedilulmana espaccedilo de sobrevivecircncias interaccedilotildees e trocas culturais entre grupos
eacutetnicos e religiotildees distintas Espaccedilo onde mesmo o Cristianismo era pluralizado nas formas
grega e latina Para compreender o papel social e religioso do monge calabrecircs eacute importante
atentar para as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia meridional normanda
bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio Hohenstaufen Estes
elementos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim e seus objetivos enquanto
ermitatildeo monge abade escritor e fundador da Ordem Florense
349 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx 350 Idem 351 LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007
p 524
110
51 A chegada dos normandos
Os primeiros normandos chegaram ao sul da Itaacutelia por volta do ano 1000 em
circunstacircncias natildeo tatildeo claras Jaacute eacute possiacutevel discernir a presenccedila deles na revolta de nobres da
Apuacutelia contra autoridades bizantinas em 1017 e 1018352 O quadro encontrado na regiatildeo
manifestava uma divisatildeo poliacutetica complexa com estruturas culturais pluralizadas sem um
poder central Sob este contexto cavaleiros normandos se colocaram como mercenaacuterios a
serviccedilo da populaccedilatildeo lombarda contra os bizantinos de um territoacuterio lombardo contra outro
de liacutederes bizantinos contra sarracenos e eventualmente ateacute mesmo a serviccedilo dos
muccedilulmanos da Siciacutelia contra outros poderes em conflito na ilha353 Inicialmente eles natildeo
passavam de algumas dezenas de cavaleiros que vendiam seus serviccedilos a poderes locais em
vez de se reunirem sob a lideranccedila de outro normando
Nos principados e ducados lombardos eles encontraram um tipo de aristocracia
sobre a qual foram constituiacutedos como condes Em Apuacutelia a estrutura social em funccedilatildeo dos
traccedilos da administraccedilatildeo bizantina era baseada nos encastelamentos um tipo de cidadela ou
vila fortificada e um significativo nuacutemero de pequenos proprietaacuterios Estas vilas fortificadas
(castella) ficavam em posiccedilotildees estrateacutegicas e serviam como centros administrativos da
aristocracia local Na Calaacutebria um terceiro tipo de domiacutenio se manifestou atraveacutes da
construccedilatildeo de castelos utilizados para controlar a regiatildeo circundante por meio de tratados
com as cidades juramento de fidelidade e implementaccedilatildeo de tributos Apoacutes a conquista os
castelos foram entregues a parentes e vassalos dos normandos
Os assentamentos e conquistas dos normandos natildeo tinham como base algum tipo de
acordo amplo para a conquista da Itaacutelia meridional Na busca pelo domiacutenio das regiotildees os
proacuteprios normandos se envolviam em conflitos No final do seacuteculo XI entretanto dois
liacutederes de uma mesma famiacutelia assumiram o poder sobre quase todo o sul da Itaacutelia Roberto
Guiscard com o domiacutenio dos territoacuterios abaixo do Patrimocircnio de Satildeo Pedro ateacute a Calaacutebria
e seu irmatildeo Rogeacuterio de Hauteville que dirigiu a conquista da ilha da Siciacutelia
Roberto Guiscard morreu em 1085 deixando o territoacuterio conquistado para seus
filhos Rogeacuterio de Hauteville entretanto posteriormente conhecido como Rogeacuterio I
sobreviveu ao seu irmatildeo mais de uma deacutecada promovendo um estaacutevel governo sobre a
Siciacutelia O conde Rogeacuterio I se casou trecircs vezes mas foi com sua terceira esposa Adelaide
352 Idem p 17 353 CHIBNALL Marjorie The Normans Oxford Blackwell Publishing 2006 p 76
111
filha do marquecircs Manfredo de Savona do norte da Itaacutelia que ele teve seus herdeiros Simatildeo
e Rogeacuterio posteriormente Rogeacuterio II Sua morte em 1101 legou o condado da Siciacutelia para
seus filhos ainda menores Simatildeo era o sucessor imediato mas faleceu logo deixando
Rogeacuterio como uacutenico herdeiro Adelaide de Savona no periacuteodo de menoridade governou o
ducado Uma de suas accedilotildees foi levar a corte para Palermo na Siciacutelia que fora a sede do
domiacutenio muccedilulmano Em 1112 finalmente Rogeacuterio II assumiu o poder e no ano seguinte
Adelaide deixou a Siciacutelia para se casar com o rei Balduiacuteno de Jerusaleacutem354
52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia
A partir de 1121 Rogeacuterio II avanccedilou sobre a Calaacutebria agrave custa de seu primo o duque
William de Apuacutelia No ano seguinte jaacute era senhor de todo o territoacuterio calabrecircs e a partir de
1129 o sul italiano estava unificado sob um uacutenico poder mais uma vez coisa que natildeo
acontecia desde o imperador Justiniano no seacuteculo VI355 A extensatildeo do seu domiacutenio pela
Sicilia Calaacutebria Apuacutelia e outros territoacuterios que se estendiam quase ateacute Roma356 poderiam
justificar um status real mas a transiccedilatildeo para a monarquia teve como ponto de partida um
conflito dentro da Igreja de Roma
Em fevereiro de 1130 apoacutes a morte do papa Honoacuterio II um coleacutegio de cardeais
dividido provocou um cisma papal Anacleto II foi eleito papa e permaneceu em Roma
Inocecircncio II recebeu o tiacutetulo e deixou a cidade em busca de apoio357 Anacleto II recorreu ao
conde Rogeacuterio II da Siciacutelia com a disposiccedilatildeo de coroaacute-lo como rei em troca de proteccedilatildeo e
suporte financeiro Apoacutes a efetivaccedilatildeo do acordo nasceu o Reino da Siciacutelia atraveacutes da bula
papal de setembro de 1130 A coroaccedilatildeo se deu no natal deste mesmo ano na catedral de
Palermo358
Anacleto II morreu em 1138 e Inocecircncio II voltou para Roma como uacutenico papa Ele
declarou nulas todas as accedilotildees de Anacleto e ainda promoveu uma cruzada contra Rogeacuterio
354 MAYER Hans Eberhard The Latin east 1098-1205 In LUSCOMBE David (org) The New Cambridge
Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v V 4 p
644-674 p 648 355 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century In LUSCOMBE David (org) The New
Cambridge Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v
V 4 p 442-474 p 447 356 Conferir um mapa do Reino Normando da Siciacutelia no anexo 3 357 CHIBNALL op cit p 86 358 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 448
112
Aleacutem da inimizade papal a alianccedila entre um papa cismaacutetico e Rogeacuterio havia colocado o
Reino da Siciacutelia em conflito com as forccedilas do Impeacuterio Germacircnico e do Impeacuterio Bizantino
ambos se declarando senhores legiacutetimos da Itaacutelia meridional e rejeitando a prerrogativa
normanda
Mesmo assim a liga construiacuteda por Inocecircncio II para enfrentar o Reino da Siciacutelia natildeo
conseguiu impedir a estabilizaccedilatildeo e o desenvolvimento das estruturas monaacuterquicas359
Finalmente em julho de 1139 o proacuteprio papa foi capturado pelas forccedilas de Rogeacuterio II
forccedilando o reconhecimento da monarquia Rogeacuterio foi aclamado como Rei da Sicilia duque
da Apuacutelia e Priacutencipe de Caacutepua (Rex Siciliae ducatus Apuliae et principatus Capuae) Apoacutes
o fim de uma deacutecada de conflitos o rei Rogeacuterio finalmente conseguiu derrotar as grandes
frentes de oposiccedilatildeo ao Reino
Rogeacuterio II se casou trecircs vezes Com a primeira esposa Elvira filha de Alfonso VI de
Castela teve quatro filhos Rogeacuterio Anfusus Tancredo e William Casou-se ainda com
Sibilia filha do duque Hugo da Burgundia na Franccedila e por fim com Beatriz filha do conde
Rethel igualmente francesa360 Com esta uacuteltima ele teve uma filha que nasceu pouco depois
de sua morte Constacircncia posteriormente desposada por Henrique VI da Germacircnia
Quando Rogeacuterio II morreu em 1154 o sucessor escolhido William posteriormente
conhecido como William I ainda era uma crianccedila O reino precisou ser governado por
Beatriz durante o tempo de menoridade do novo rei Um periacuteodo de instabilidade poliacutetica se
manifestou principalmente na parte continental do reino e se estendeu por todo o tempo de
governo (1154-1166)361
Siciacutelia continuava debaixo da hostilidade do Imperador Germacircnico e do Impeacuterio
Bizantino A cuacuteria papal ainda era hostil com o argumento de que o reino fora reconhecido
por Inocecircncio II apenas sob coaccedilatildeo A nobreza das proviacutencias fronteiriccedilas como o
principado de Caacutepua e as bordas de Abruzzi entraram em revolta As cidades de Apuacutelia
igualmente saiacuteram do controle real e reivindicaram autonomia Mas novamente os
adversaacuterios do reino natildeo se juntaram e perseguiram propoacutesitos distintos O imperador
Frederico Barbarroxa precisou rapidamente se concentrar na luta contra as comunas do norte
da Itaacutelia o que deixou o reino circunstancialmente fora de suas investidas O papa Adriano
IV finalmente fechou um acordo com o rei William I em Benevento em 1156 que
359 Idem 360 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily
Mediterranean Studies State College Pennsylvania v 12 p 1-15 2003 p 12 361 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 454
113
restaurou as boas relaccedilotildees entre o Reino da Siciacutelia e o papado A ameaccedila de Bizacircncio por
sua vez conseguiu ser parcialmente neutralizada com um tratado em 1158
Mas se as ameaccedilas internacionais foram minimizadas principalmente por meio de
acordos a situaccedilatildeo interna do Reino ainda era conflituosa As agitaccedilotildees internas
acompanharam William I praticamente ateacute o fim do seu governo Ele morreu em 1166
deixando o reino para o filho igualmente chamado William ainda menor O reino foi
governado pela matildee do jovem sucessor a rainha Margarete filha do rei Garcia de Navarra
na Espanha ateacute 1171 quando William II atingiu a maioridade
William II como o pai viveu a maior parte de sua vida em seu palaacutecio em Palermo
governando por meio do coleacutegio familiares362 Ele conseguiu pacificar internamente o reino
inclusive trazendo de volta opositores que tinham sido exilados no governo anterior
Externamente os antigos adversaacuterios foram pacificados por meio de tratados O rei renovou
o tratado com o papado e com o Impeacuterio Bizantino Soacute faltava mesmo vencer a resistecircncia
do Impeacuterio Germacircnico o que foi alcanccedilado com o Tratado de Veneza de 1177 que
assegurou a treacutegua em troca do casamento da tia de William II Constacircncia com Henrique
VI filho de Frederico Barbarroxa O casamento aconteceu em Milatildeo em janeiro de 1186
Com esse acordo o Impeacuterio Germacircnico finalmente reconheceu a legitimidade do Reino da
Siciacutelia O preccedilo a ser pago foi a designaccedilatildeo de Constacircncia como herdeira da coroa real caso
William morresse sem herdeiros Quando o acordo foi feito a idade do rei e da rainha Joana
filha do rei Henrique II da Inglaterra era um fator de confianccedila na descendecircncia real A
maior probabilidade era que o casal viesse a ter um herdeiro o que automaticamente
invalidaria o direito de Constacircncia363 Mas este acordo com a Germacircnia colocou um fim na
dinastia Hauteville na Itaacutelia meridional jaacute que William II morreu bruscamente no dia 11 de
novembro de 1189 sem deixar herdeiros
53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen
A morte de William II foi seguida por uma divisatildeo dentro do reino Um grupo de
oficiais proeminentes da corte liderados por um membro do coleacutegio familiares Mateus de
Salerno levantou um candidato proacuteprio o conde Trancredo de Lecce primo de William II
362 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p
10-11 363 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 472
114
rejeitando os direitos de Constacircncia e Henrique Tancredo foi coroado rei em 18 de janeiro
de 1190 com o apoio do papado que natildeo desejava a uniatildeo do Reino da Siciacutelia com o Impeacuterio
Germacircnico364
Henrique ateacute tentou destituir Tancredo mas acabou retornando para a Germacircnia apoacutes
o cerco a Naacutepolis jaacute mencionado na abertura deste capiacutetulo Com isso Tancredo conseguiu
governar o Reino da Siciacutelia com o apoio da Igreja de Roma ateacute morrer em fevereiro de
1194 O filho de Tancredo William III foi declarado rei mas era apenas uma crianccedila
Henrique VI novamente reivindicou o direito sobre a coroa da Siciacutelia Desta vez suas
investidas foram mais eficientes Palermo caiu em novembro de 1194 e Henrique foi
coroado rei da Siciacutelia no dia 25 de dezembro na catedral da cidade
Mesmo que Constacircncia fosse uma herdeira normanda legiacutetima filha do fundador do
Reino Rogeacuterio II o rei agora era um monarca estrangeiro de linhagem germacircnica Frederico
II filho de Constacircncia e Henrique apoacutes a morte dos pais e um longo periacuteodo de menoridade
sob a tutela do papa Inocecircncio III implementaraacute um novo governo forte e centralizado365
Todavia mesmo carregando o sangue Hauteville por parte da matildee tambeacutem era herdeiro dos
Hohenstaufen por parte do pai Ele precisou se dividir em ser rei na Itaacutelia e Imperador na
Germacircnia
54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada
Em 1140 o filho mais velho do rei Rogeacuterio II e Elvira de Castela o duque Rogeacuterio
de Apuacutelia foi ateacute a regiatildeo central da Siciacutelia Ele precisava averiguar o patrimocircnio da coroa
que estava em uso irregular de um monasteacuterio grego O monasteacuterio em questatildeo era Satildeo
Cosme de Gonato que tinha se apossado de terras de cultivo algumas vinhas e um moinho
real O duque Rogeacuterio durante a investigaccedilatildeo interrogou o abade local Metoacutedio que alegou
ter recebido o patrimocircnio em possessatildeo durante a gestatildeo do governador Caid Maimunes366
Apoacutes a investigaccedilatildeo o duque Rogeacuterio emitiu um documento para o monasteacuterio em
1142 que comeccedilava com as seguintes palavras
364 Idem 365 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south op cit p 70 366 Conferir a anaacutelise deste evento bem como uma reproduccedilatildeo do documento em grego e espanhol em
ANDREacuteS Gregoacuterio de Um diploma griego del Duque Normando Roger Priacutencipe de Sicilia (A 1142)
Erytheia Revista de estuacutedios bizantinos y neogriegos Madri v 1 n 6 p 61-68 1985
115
Diploma dado por mim Rogeacuterio ilustriacutessimo Duque e filho do piedoso e
grande rei dirigido a ti Metoacutedio abade do monasteacuterio de Satildeo Cosme
chamado o Gonato situado nos montes de Petraacutelia no mecircs de abril dia 6
quinta-feira Depois que entrei em completo domiacutenio e governo da regiatildeo
de Petraacutelia que o poderosiacutessimo rei e meu pai me entregou chegou a meus
ouvidos que muitas e diversas pessoas tecircm se apossado de campos
cultivados e vinhas de domiacutenio real como se fossem proacuteprios367
Rogeacuterio argumentou que as posses eram da coroa e natildeo do governador e neste caso
a doaccedilatildeo fora irregular No decorrer do diploma Rogeacuterio reinvindicou a propriedade real
sobre o moinho mas ciente de que o monasteacuterio precisava dele prometeu um dote de trigo
anual procedente de terras reais com a ldquocondiccedilatildeo de que se rogue pela salvaccedilatildeo espiritual
do pai Rogeacuterio II e a matildee Elvira pela sua proacutepria e pela paz do mundordquo368 Quanto agraves terras
e vinhas Rogeacuterio tanto declarou-as como propriedade da Coroa como devolveu-as como
dote real definitivo para o monasteacuterio ldquoenquanto o mundo natildeo acabarrdquo369
Este evento bem como o diploma do conde Rogeacuterio apresentam um elemento
significativo do Reino da Siciacutelia no periacuteodo dos Hauteville elemento que apesar de se
alterar com o passar do tempo esteve presente ateacute o fim do seacuteculo XII a diversidade cultural
e religiosa bem como as interaccedilotildees franqueadas entre estas diversas culturas Trecircs grupos
sociais aparecem no diploma O normando representado pelo duque Rogeacuterio filho do rei
Rogeacuterio II o grego representado pelo abade Metoacutedio e seu monasteacuterio o aacuterabe
representado pelo Caid Maimunes administrador da regiatildeo de Petraacutelia370 O termo caid
era um vocaacutebulo de dignidade entre os sarracenos mas foi usado frequentemente no Reino
da Siciacutelia para descrever um muccedilulmano que se convertia ao cristianismo e atuava em algum
espaccedilo do governo geralmente na administraccedilatildeo financeira como coletor de impostos ou
tesoureiro
O monasteacuterio grego de Satildeo Cosme de Gonato na Petraacutelia evidencia a presenccedila de
diversas casas gregas espalhadas pelo reino isentas da jurisdiccedilatildeo episcopal latina que
viviam um tipo de monasticismo oriental basiliano Vaacuterios deles podem ter se instalado na
Itaacutelia meridional durante a perseguiccedilatildeo dos imperadores iconoclastas e sobreviveram na
Siciacutelia mesmo durante o domiacutenio muccedilulmano371
367 Idem p 66 368 Idem p 67-68 369 Idem p 68 370 Idem p 63 371 BUONAIUTI Ernesto Storia del Cristianesimo II - Evo Medio Milano DallOglio 1960 p 365
116
Em termos literaacuterios o diploma do duque Rogeacuterio de Apuacutelia foi escrito em grego
tendo em vista que o abade e seus monges eram gregos Possivelmente o duque Rogeacuterio I
instaurador da dinastia Hauteville na Siciacutelia tinha dificuldades com a liacutengua grega ou aacuterabe
e precisou da ajuda de autoacutectones para se comunicar com a populaccedilatildeo dominada Mas seu
filho Rogeacuterio II criado na Calaacutebria primeira sede do ducado natildeo apresentava a mesma
dificuldade Ele conhecia as liacutenguas grega e aacuterabe e marcou a corte do Reino da Siciacutelia com
elementos dessas culturas Quase todas as suas assinaturas sobreviventes foram escritas em
grego Selos reais continham a seguinte legenda grega ldquoRogerioj Krataioj Eusebhj Rhxrdquo
(ldquoRogeacuterio forte e poderoso reirdquo) Posteriormente ele acrescentou uma inscriccedilatildeo latina
ldquoRogerius Dei Gracia Sicilie Calabrie Apulie Rexrdquo (ldquoRogeacuterio pela graccedila de Deus rei da
Siciacutelia Calabria e Apuliardquo)372 Segundo Takayama tanto Rogeacuterio II quanto seus
descendentes William I e William II tiveram interesse em aprender artes e reuniram saacutebios
astroacutelogos filoacutesofos e geoacutegrafos de origem grega e aacuterabe no palaacutecio real de Palermo373 Este
historiador japonecircs avalia que ldquoos reis normandos da Siciacutelia com o suporte destes burocratas
gregos e aacuterabes eram reis cristatildeos mergulhados ateacute os joelhos nas culturas islacircmica e
gregardquo374
Em termos administrativos a Calaacutebria antes bizantina manteve muito de sua
estrutura administrativa sob o domiacutenio Hauteville O mesmo se deu na Siciacutelia com os
elementos estruturais criados pelos muccedilulmanos Em ambas as regiotildees oficiais indiacutegenas
locais continuaram sendo aproveitados pelos reis normandos na administraccedilatildeo do reino375
Apoacutes a unificaccedilatildeo em 1130 como parte da organizaccedilatildeo da coroa novas leis foram
criadas No prefaacutecio das Leis de Ariano de 1140 por exemplo a questatildeo das interaccedilotildees
culturais chama a atenccedilatildeo ao assinalar que ldquodiferentes povos sob o governo poderiam
manter seus proacuteprios costumes e leis desde que natildeo se colocassem em direto confronto com
as novas leis do Reinordquo376 Especialmente durante o governo de Rogeacuterio II os muccedilulmanos
poderiam guardar a lei coracircnica entre eles e os gregos o direito justiniano377
372 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p
5 373 Idem p 6 374 Idem p 15 375 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 460 376 Idem p 461 cf tambeacutem DRELL Joanna H Cultural syncretism and ethnic identity The Norman
lsquoconquestrsquo of Southern Italy and Sicily Journal of Medieval History Amsterdam v 25 n 3 p 187-202 1999
p 201 377 SZAacuteSDI LEON-BORJA Istvaacuten CORREIA DE LACERDA Vitaline Alfonso Henriques y Roger II de
Sicilia dos vidas paralelas de condes a reyes Una clave para la comprensioacuten del nascimento del Reino de
Portugal Estudios de Historia de Espantildea Buenos Aires v 13 p 55-72 2011 p 64 Hubert Houben
117
Isso significava a autorizaccedilatildeo para que os nativos italianos ainda chamados de
lombardos bem como gregos e muccedilulmanos permanecessem sob o poder de costumes
proacuteprios administrados por seus juiacutezes especialmente nas cidades ou por aristocratas que
possuiacuteam autoridade judicial em suas proacuteprias terras A justiccedila real se encarregaria
particularmente da ordem puacuteblica e das disputas de propriedade funcionando mais como
uma corte de apelaccedilatildeo378 Aleacutem disso especialmente na ilha da Siciacutelia sede do governo as
leis e decretos reais eram publicados em grego latim e aacuterabe379
Mesmo com as mudanccedilas demograacuteficas provocadas pelas migraccedilotildees latinas
favorecidas com a presenccedila do domiacutenio normando o Reino da Siciacutelia chegou ao final do
seacuteculo XII como uma entidade unificada politicamente mas pluralizada etnicamente380
fenocircmeno que Marjorie Chibnall definiu como ldquomulti-culturalrdquo381
No caso dos gregos havia uma presenccedila substancial desta populaccedilatildeo na ilha da
Siciacutelia e na Calaacutebria principalmente na parte sul desta proviacutencia Eles se concentravam tanto
nas cidades quanto nos campos onde construiacuteam suas igrejas com ritos e liturgia orientais382
Com a chegada dos Hauteville natildeo havia mais qualquer impedimento para que essa
populaccedilatildeo buscasse fazer novos membros atraveacutes do proselitismo O mesmo natildeo poderia
mais se dar por parte dos muccedilulmanos Isso fazia com que conversotildees de muccedilulmanos para
o cristianismo grego se tornassem um fenocircmeno relativamente frequente Jaacute a conversatildeo
muccedilulmana para o cristianismo latino era mais rara383
Em relaccedilatildeo ao elemento muccedilulmano Rogeacuterio I jaacute havia prometido no momento da
conquista natildeo promover accedilotildees agressivas contra essa parte da populaccedilatildeo da Siciacutelia As
maiores mesquitas foram confiscadas mas os muccedilulmanos receberam a garantia de que
poderiam praticar sua religiatildeo em troca do pagamento de uma taxa a gesia384 Nesta fase
entretanto problematiza esta questatildeo argumentando que ldquoa liberdade religiosa eram somente garantida onde
a maioria dos habitantes era muccedilulmana como era o caso de Palermo onde havia a necessidade de contiacutenua
cooperaccedilatildeordquo Cf HOUBEN Hubert Religious toleration in the South Italian Peninsula during the Norman and
Staufen Periods In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002 p
319-339 p 322 378 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 461 379 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 64 380 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 471 381 CHIBNALL op cit p 88 382 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in
Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 22 383 ABULAFIA David The Italian other Greeks Muslims and Jews In ABULAFIA David (org) Italy in
the Central Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 215-236 p 220 384 Idem p 223
118
da conquista o objetivo de Rogeacuterio era pragmaacutetico Ele precisava da populaccedilatildeo muccedilulmana
para dar estabilidade agrave ilha
Com o passar do tempo entretanto a populaccedilatildeo muccedilulmana declinou
substancialmente ateacute que durante o governo de Frederico II (rei de 1198-1250) natildeo
restassem mais do que 40 mil muccedilulmanos que acabaram sendo deportados para o
continente formando uma colocircnia em Lucera A causa mais imediata desse decliacutenio foi o
fluxo migratoacuterio de cristatildeos latinos para a ilha principalmente oriundos do norte da Itaacutelia
Mas outros fatores podem ser mencionados como a saiacuteda de muccedilulmanos para outros
espaccedilos de domiacutenio muccedilulmano como o norte da Aacutefrica a conversatildeo de muccedilulmanos para
o cristianismo mesmo que sob a forma de pseudo-conversatildeo e a escravizaccedilatildeo Os poucos
muccedilulmanos que ainda sobreviveram na Siciacutelia no seacuteculo XIII em sua maioria eram
escravos ou comerciantes
55 A Igreja no Reino da Siciacutelia
Formalmente o reino da Siciacutelia era um feudo papal da mesma forma que o ducado
de Apuacutelia e o principado de Caacutepua tinham sido a partir de 1059 Em 1130 o tiacutetulo real foi
dado pelo papa Anacleto II durante o cisma em 1139 Rogeacuterio II fez homenagem ao papa
Inocecircncio II em 1156 William I repetiu o gesto do pai diante de Adriano IV Ambos os reis
concordaram em pagar um census anual ao papado como recompensa pelo feudo385 Essa
relaccedilatildeo feudal entretanto precisa ser problematizada Os Hauteville jaacute eram governantes
antes de receberem o reconhecimento papal O domiacutenio natildeo foi criado pela homenagem
papal Eacute neste sentido que se daacute a sugestatildeo de Istvaacuten Szaacuteszdi Leoacuten-Borja e Vitaline Correia
de Lacerda de que este relacionamento feudal era parte de uma estrateacutegia dos liacutederes
normandos para obter o reconhecimento da Cristandade quanto a seus domiacutenios386 No caso
da igreja de Roma poderia ser uma estrateacutegia para aumentar a autoridade papal dentro do
reino o que natildeo aconteceu necessariamente apoacutes a fundaccedilatildeo do Reino da Siciacutelia em funccedilatildeo
do cisma papal A relaccedilatildeo entre a coroa e o papado foi difiacutecil principalmente entre 1139 e
1156 A reorganizaccedilatildeo episcopal feita na Siciacutelia a pedido do papa cismaacutetico Anacleto II
entre 1130-1131 especialmente era inaceitaacutevel para a cuacuteria papal
385 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 465 386 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 55
119
Aleacutem disso a forma como o duque e posteriormente rei Rogeacuterio II exercia o
controle sobre a Igreja dentro do seu territoacuterio era considerado uma infraccedilatildeo agrave autonomia da
igreja387 Suas accedilotildees tinham como fundamento um antigo acordo realizado por Rogeacuterio I e
o papa Urbano II para a organizaccedilatildeo da Igreja da Siciacutelia Em um dos elementos do acordo
o papa se comprometia a natildeo eleger o legado papal para a ilha sem a aquiescecircncia de Rogeacuterio
e na ausecircncia do legado o proacuteprio conde exerceria este papel388 Rogeacuterio II entendeu que
este benefiacutecio pouco usual para um leigo era hereditaacuterio e passou a agir como legado papal
na Siciacutelia389
Finalmente o Tratado de Benevento em junho de 1156 entre o papa Adriano IV e
William I marcou o fim do periacuteodo de hostilidade Graham Loud destaca trecircs aspectos do
tratado como significativos para as relaccedilotildees entre a coroa e o papado Primeiramente
Adriano IV recebeu a homenagem do rei normando e investiu-o no seu reino Com isso a
natureza hereditaacuteria do tiacutetulo real estava confirmada Em segundo lugar as fronteiras ateacute
entatildeo em disputa foram confirmadas comeccedilando em Abruzzi no norte e terminando na
ilha da Siciacutelia Terceiro os direitos reais sobre a Igreja do reino foram definidos Bispos e
abadias faziam suas proacuteprias eleiccedilotildees devendo o rei apenas aceitar ou vetar a escolha O
privileacutegio ainda dado por Urbano II a Rogeacuterio I foi confirmado mas exclusivamente para a
ilha da Siciacutelia no sentido de que os legados papais precisariam ser confirmados pelo rei e
na ausecircncia deles o proacuteprio rei exerceria este papel390
Com a chegada dos normandos a relaccedilatildeo entre igreja latina e grega sofreu o impacto
das mudanccedilas poliacuteticas391 Em 1059 Roberto Guiscard estabeleceu com o Papa Nicolau II o
compromisso de transferir para a jurisdiccedilatildeo papal todas as igrejas de seus domiacutenios Ele fez
juramento similar diante do papa Gregoacuterio VII em 1080 Em outros instantes entretanto o
liacuteder normando poderia dar um arcebispado ou um monasteacuterio importante sob seu domiacutenio
para um cleacuterigo de sua terra natal da Normandia ou Franccedila Contudo natildeo havia por parte
dos governantes algum movimento expliacutecito de latinizaccedilatildeo das igrejas gregas392 Isso porque
387 Idem p 465 388 Idem p 61 389 SKINNER Patricia Roger I (1031-1101 r 1085-1101) In EMMERSON Richard K (org) Key figures
in medieval Europe an encyclopedia New York Routledge 2006 p 575-576 p 574 390 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 164-165 391 HERDE Peter The Papacy and the Greek Church in the Sourthern Italy between the eleventh and the
thirteenth century In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002
p 213-251 p 216 392 Para James Morton a hipoacutetese de uma poliacutetica expliacutecita de latinizaccedilatildeo por parte dos normandos ou do
papado eacute fruto de uma perspectiva ldquofrancocecircntricardquo da histoacuteria medieval Cf MORTON op cit p 8
120
uma igreja grega poderia sobreviver debaixo da jurisdiccedilatildeo de um bispo latino desde que se
fizesse juramento de fidelidade ao bispo de Roma393 Bispos e cleacuterigos gregos poderiam
manter seus ofiacutecios e seus ritos bastando declarar ou admitir a prerrogativa papal de
primazia e o direito de investidura dos papas sobres os bispos da Itaacutelia394
Divergecircncias menores entre as duas igrejas poderiam aparecer no campo da
linguagem do rito e dos costumes Enquanto na Igreja Latina a liacutengua lituacutergica era o latim
na Igreja Grega a liacutengua era o grego395 Os ritos poderiam variar principalmente a Eucaristia
por causa da divergecircncia sobre o patildeo apropriado para a celebraccedilatildeo ou a mistura de aacutegua no
vinho No campo dos costumes debates poderiam aparecer a respeito das vestimentas dos
cleacuterigos e ateacute mesmo sobre a presenccedila ou ausecircncia de barba nos sacerdotes
A divergecircncia significativa entretanto estava no espaccedilo do dogma com a questatildeo
da claacuteusula filioque Do periacuteodo caroliacutengio para frente a Igreja latina passou a professar que
o Espiacuterito procedia do Pai e do Filho uma alteraccedilatildeo do antigo credo que os gregos nunca
aceitaram396
A questatildeo do celibato dos cleacuterigos era outro significativo elemento de distinccedilatildeo entre
igreja grega e latina Enquanto a Igreja Latina proibia bispos e sacerdotes de se casarem na
Igreja Grega eles poderiam continuar casados397 Na Itaacutelia meridional onde cleacuterigos gregos
e latinos viviam lado a lado era difiacutecil impor a observacircncia do celibato sobre todos os latinos
No iniacutecio do seacuteculo XIII Inocecircncio III demandou que bispos gregos da Itaacutelia
meridional atuassem apenas onde a populaccedilatildeo fosse exclusivamente grega e desde que estes
bispos gregos se submetessem ao papado Em dioceses onde a populaccedilatildeo contivesse a
presenccedila de gregos e latinos o bispo deveria ser latino Com o pontificado deste papa natural
de Anagni os ritos gregos passaram a ser limitados398 O resultado foi o desaparecimento da
Igreja Grega na Itaacutelia meridional convertida em latina com algumas poucas exceccedilotildees como
o monasteacuterio de Theotokos de Patiron em Rossano que permaneceu grego quanto agrave
linguagem e rito ateacute meados do seacuteculo XIX399
393 HERDE op cit p 217 394 Idem p 222 395 Idem p 224 396 Idem p 234 397 Idem p 237 398 Idem p 243 399 MORTON op cit p 6
121
56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda
A Itaacutelia meridional nos seacuteculos XI e XII contava com a presenccedila tanto do
monasticismo ocidental quanto do oriental O oriental especificamente era encontrado sob
algumas formas baacutesicas koinobion comunidades monaacutesticas vivendo segundo uma regra
em comum normalmente uacutenica para aquele monasteacuterio a lavra uma comunidade de
monges que viviam perto uns dos outros e compartilhavam serviccedilos lituacutergicos a kella que
era uma rejeiccedilatildeo da comunidade usualmente natildeo tendo mais do que um monge e seus poucos
disciacutepulos vivendo em uma caverna ou casa desabitada400
Segundo Morton em periacuteodos de crise econocircmica e social predominava o tipo anti-
comunitaacuterio Em periacuteodos de estabilidade poliacutetica e social predominavam as comunidades
melhor organizadas do tipo cenoacutebio401 O periacuteodo anterior agrave chegada dos normandos na Itaacutelia
Meridional foi marcado por instabilidade consequentemente com predomiacutenio do
monasticismo anti-comunitaacuterio com foco em ascetas individuais e itinerantes Estas
fundaccedilotildees monaacutesticas eram efecircmeras e sumiam assim que o fundador morria Os disciacutepulos
se juntavam em torno de uma pessoa e natildeo em torno de uma instituiccedilatildeo As comunidades
poderiam ter alguma propriedade mas eram relativamente independentes
As comunidades sentiam o impacto das invasotildees no sul da Itaacutelia que se sucederam a
partir da chegada dos lombardos no seacuteculo VI Lombardos sarracenos e bizantinos
disputaram a regiatildeo durante os seacuteculos anteriores agrave chegada dos normandos promovendo
instabilidade para as casas monaacutesticas O monasteacuterio de Monte Cassino pode ser um
exemplo neste caso A casa foi fundada na primeira metade do seacuteculo VI mas abandonada
em 581 durante as invasotildees lombardas Em 718 foi novamente povoada ateacute que em 883 foi
capturada pelos sarracenos Seus monges fugiram para a Campanha e parecem ter retornado
apenas algumas deacutecadas depois O periacuteodo das invasotildees era marcado por saques e violecircncias
contras as casas estabelecidas Em funccedilatildeo disso predominava no Sul o monasticismo
itinerante em torno de ascetas carismaacuteticos Quando a situaccedilatildeo poliacutetica ganhava alguma
estabilidade os novos poderes lombardos ou bizantinos imprimiam nas casas o caraacuteter
descentralizado da regiatildeo Os priacutencipes ou duques patrocinavam a reconstruccedilatildeo das casas
monaacutesticas mas sem organizaccedilatildeo ou centralizaccedilatildeo eclesiaacutestica Segundo Loud tanto o
400 Idem p 39 401 Idem p 40
122
papado quanto Bizacircncio tentaram controlar as casas e as igrejas do Sul com a criaccedilatildeo de
novos arcebispados gregos e latinos mas o resultado foi muito pequeno402
A maioria das fundaccedilotildees deste periacuteodo seguiam na teoria a Regra de Satildeo Bento
apesar das praacuteticas e costumes variarem consideravelmente Especialmente na Calaacutebria
havia uma grande presenccedila do monasticismo grego tanto na sua versatildeo cenobiacutetica quanto
na eremita
Apoacutes a consolidaccedilatildeo da conquista normanda os novos condes e duques logo se
tornaram tambeacutem patronos dos monasteacuterios gregos e latinos403 Em linhas gerais eles se
envolviam mais no patrociacutenio de casas monaacutesticas jaacute presentes na regiatildeo do que fundando
casas rivais Mesmo assim numerosas casas foram criadas pelos novos governantes Dos
cerca de 20 monasteacuterios gregos surgidos durante o governo do conde Rogeacuterio I ele esteve
pessoalmente envolvido em 14 deles404
Ateacute cerca de 1150 os maiores monasteacuterios do sul da Itaacutelia eram todos de rito
beneditino Monte Cassino Cava Venosa Lipari e Catania405 Segundo Loud ldquoa conquista
normanda sem duacutevida beneficiou o monasticismo beneditinordquo406 que ganhou a proteccedilatildeo dos
novos governantes expandiu suas congregaccedilotildees adquiriu novas propriedades e aumentou a
aacuterea geograacutefica de seus domiacutenios Montecassino liderou o processo de crescimento Durante
o periacuteodo de 1058-1105 este monasteacuterio recebeu 134 igrejas tanto por dote quanto pela
compra de igrejas subordinadas407 A forte criacutetica contra a igreja privada apesar de natildeo ter
eliminado completamente o fenocircmeno incentivou muitas transferecircncias de igrejas das matildeos
de leigos para instituiccedilotildees monaacutesticas
A conquista normanda poderia ter aberto o monasticismo meridional italiano para
influecircncias externas mas isso se deu de forma muito lenta Somente uma casa cluniesense
foi fundada na ilha da Siciacutelia durante o seacuteculo XII talvez sob o iacutempeto de Elvira a esposa
de Rogeacuterio II cujo pai Alfonso VI de Castela era um patrono do movimento de Cluny408
Outros novos movimentos religiosos tambeacutem natildeo tiveram impacto significativo no sul da
Itaacutelia antes do final do seacuteculo XII O conde Rogeacuterio I fundou uma casa Agostiniana em
402 LOUD G The Latin Church in the Norman Italy op cit p 35 403 MORTON op cit p 45 404 Idem p 50 405 Idem p 56 406 LOUD Graham H The Latin Church in the Norman Italy op cit p 430 Este historiador acrescenta ldquoas
pequenas casas independentes tendiam a ser absorvidas pelas congregaccedilotildees das grandes casas beneditinas e
novas fundaccedilotildees observavam a Regra de Satildeo Benedito desde o seu iniacuteciordquo Idem p 470 407 Idem p 434 408 Idem p 484
123
Bagnara sul da Calaacutebria em 1085 Posteriormente em 1090 convidou Bruno de Cologne
fundador da ordem Cartusiana para fundar uma comunidade na mesma regiatildeo em 1090
Comparado com o norte da Europa entretanto o nuacutemero destas casas sob o domiacutenio
normando era muito pequeno
Neste mesmo sentido se deu a chegada dos Cistercienses O primeiro monasteacuterio da
Ordem de Cister na regiatildeo foi Santa Maria Sambucina perto de Cosenza Calabria terra
natal de Joaquim de Fiore pouco antes de 1145409 Outro monasteacuterio cisterciense foi
estabelecido na Siciacutelia em Prizzi em 1155 mas como seu fundador esteve envolvido na
morte do primeiro ministro Maio de Bari isto tirou a possibilidade de que esta casa tivesse
progresso dentro do reino A proacutexima casa cisterciense fundada foi Santa Maria de Ferraria
na diocese de Teano principado de Caacutepua em 1171 como um priorado de Fossanova e se
tornou abadia de fato em 1184 Em 1188 o arcebispo Walter de Palermo converteu um
monasteacuterio grego na Calaacutebria que estava com dificuldades para recrutar novos membros
em uma casa da Ordem Em 1191 uma abadia cisterciense foi fundada em Palermo pelo
arcebispo Mateus mas esta ficou em dificuldades apoacutes a consagraccedilatildeo de Henrique VI jaacute
que foi organizada por algueacutem contraacuterio agrave chegada dos Hohenstaufen Com isso o imperador
entregou a casa agrave ordem dos Cavaleiros Teutocircnicos em 1197
Assim ainda em 1200 natildeo havia mais do que 13 abadias da ordem cisterciense no
reino da Siciacutelia em grande parte inseridas no movimento Cisterciense na uacuteltima deacutecada A
maioria destas fundaccedilotildees se deram por conversatildeo de casas jaacute estabelecidas jaacute que para
fundar uma casa nova era preciso o envio pela casa-matildee de pelo menos doze monges410 A
dificuldade que Joaquim teve para inserir o monasteacuterio de Corazzo na Ordem Cisterciense
parece indicar a forma lenta como a ordem se desenvolvia na Itaacutelia meridional dentro do
seacuteculo XII O monasteacuterio do qual ele fora abade entre 1177 e 1186 possivelmente jaacute seguia
os costumes de Cister antes mesmo de Joaquim ingressar na casa Enquanto abade ele fez
vaacuterios esforccedilos para concluir o processo de filiaccedilatildeo Para tanto era necessaacuterio que fosse
recebido por uma abadia que lhe servisse como casa-matildee Joaquim tentou essa filiaccedilatildeo com
duas abadias cistercienses e natildeo obteve sucesso Sambucina e Casamari A filiaccedilatildeo soacute se
completou quando a abadia de Fossanova uma das principais casas cistercienses do territoacuterio
papal recebeu Corazzo como casa-filha em 1188411
409 Idem p 486 410 Idem p 489 411 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx
124
A Ordem de Joaquim a Florense nasceu sob a inspiraccedilatildeo de Cister aprovada pelo
papa Celestino III em 1196 A Regra da nova ordem possivelmente era uma adaptaccedilatildeo
daquela que o abade jaacute seguia em Corazzo412 A Ordem Florense comeccedilou a se expandir
rapidamente depois de 1195 pelo menos ateacute o seacuteculo seguinte quando veio a estagnar413
Ela chegou a ter 60 casas mas 300 anos depois em 1505 a maioria dos membros se uniu
aos Cistercienses enquanto outros se juntaram aos Cartusianos ou Dominicanos414 De
qualquer forma seraacute no interior do movimento franciscano que Joaquim encontraraacute seus
principais seguidores
Ateacute o fim do periacuteodo normando o Reino da Siciacutelia manifestou um monasticismo
predominantemente beneditino com grandes casas dominando a regiatildeo continental Elas jaacute
existiam antes da chegada dos normandos poreacutem foram grandemente beneficiadas por eles
Elas conviviam ao lado de outros tipos de inspiraccedilatildeo ou movimentos religiosos como os
monasteacuterios gregos e os movimentos eremitas com seu ascetismo e desejo de reclusatildeo
Estes uacuteltimos em especial eram de curta duraccedilatildeo e logo eram inseridos nas tradiccedilotildees
beneditinas ou basilianas Apenas no final do seacuteculo XII as novas ordens religiosas
especialmente os cistercienses conseguiram ter um papel predominante na sociedade iacutetalo-
meridional
57 Resumo
Este capiacutetulo demonstrou o caraacuteter culturalmente plural do Reino da Siciacutelia espaccedilo
de convivecircncias trocas relacionamentos e conflitos entre normandos latinos gregos e
muccedilulmanos Esta sociedade viabilizou a manifestaccedilatildeo de praacuteticas sociais e religiosas de
uma forma rica com a presenccedila de igrejas gregas e latinas e monasticismos beneditinos e
basilianos frequentemente lado a lado O seacuteculo XII foi tambeacutem o periacuteodo em que a cuacuteria
romana expandiu seu controle sobre as igrejas e comunidades da Itaacutelia meridional a partir
de acordos com governantes normandos No fim do seacuteculo entretanto o poder sairia das
matildeos normandas para cair sob o controle da dinastia germacircnica Hohenstaufen Essa
412 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n
1 p 217-240 2004 p 219 413 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der
Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98 414 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5
125
conjuntura de instabilidade social provocada pela transiccedilatildeo poliacutetica acabaraacute transparecendo
no Expositio in Apocalypsim
VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA
DE JOAQUIM
Enquanto consomem textos leitores criam sentidos inventam significados Mas a
forma muacuteltipla como Joaquim fez isso produziu na historiografia curiosas avaliaccedilotildees O
historiador italiano Ernesto Buonaiuti descreveu a metodologia do abade de ldquoorgia
simboacutelicardquo415 A pesquisadora inglesa Marjorie Reeves resumiu sua obra como resultado de
uma ldquoimaginaccedilatildeo caleidoscoacutepicardquo em funccedilatildeo do enlace iacutentimo entre texto e imagem416 O
cardeal francecircs Henri de Lubac historiador da exegese medieval definiu seu pensamento
como ldquodesorbitadordquo pois gerava sem cessar siacutembolos e tipos que se entrelaccedilavam
cruzavam e harmonizavam entre si417 Este capiacutetulo descreveraacute as tais formas de leitura de
Joaquim e sua metodologia hermenecircutica em confronto com a tradiccedilatildeo exegeacutetica e com
padrotildees de leitura encontrados especialmente no chamado novo monaquismo418
61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo
Jean Leclercq estudioso francecircs da cultura monaacutestica419 sintetizou os usos da Biacuteblia
nas diversas esferas sociais e religiosas ocidentais entre Gregoacuterio Magno e o seacuteculo XII
sugerindo que era ela utilizada para auto-instruccedilatildeo e para o ensino puacuteblico manual para
catequeze livro base da adoraccedilatildeo puacuteblica e privada (gerando tanto a liturgia da comunidade
quando a piedade individual) fonte de material para a pregaccedilatildeo a arte e a iconografia
415 Citado por DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling
Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 47 416 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976 p
8 417 DE LUBAC La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 47 418 O termo ldquonovo monaquismordquo eacute aqui usado para fazer um contraponto ao monaquismo do tipo beneditino
(Monges Negros) Cf VAUCHEZ Andreacute A espiritualidade na Idade Meacutedia ocidental (seacuteculos VIII a XIII)
Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 p 86 LOGAN F Donald A history of the Church in the Middle
Ages London Routledge 2002 p 136-145 LAWRENCE C H El monacato medieval formas de vida
religiosa en Europa occidental durante la Edad Media Madrid Editorial Gredos 1989 p 234-239 419 Sua obra mais significativa neste campo eacute LECLERCQ Jean The love of learning and the desire for God
A study of monastic culture New York Fordham University Press 1961
127
Segundo Leclercq apesar destes usos amplos os principais inteacuterpretes das Escrituras cristatildes
eram encontrados no monasticismo420
Eacute certo que as casas monaacutesticas poderiam receber monges natildeo-letrados mas a
vivecircncia no seu interior requeria certo envolvimento com a cultura escrita Afinal eles
precisavam ler ou cantar na liturgia421 Aleacutem destas praacuteticas outras se somariam como o
manuseio a preservaccedilatildeo e a ilustraccedilatildeo de manuscritos Isso fazia do monasteacuterio um lugar
privilegiado para o desenvolvimento da leitura e interpretaccedilatildeo da Biacuteblia
Ainda segundo o estudioso francecircs no interior dos muros monaacutesticos os monges
imprimiam na praacutetica da leitura biacuteblica um traccedilo muito proacuteprio da clausura Sem grandes
controveacutersias teoloacutegicas quando comparado com os tempos patriacutesticos e com a
efervescecircncia intelectual da escolaacutestica apenas comeccedilando a tendecircncia geral era usar a
leitura biacuteblica como ferramenta da vida contemplativa422 O professor Reventlow
acompanhou Leclercq neste sentido generalizando que o objetivo dos leitores da Biacuteblia
nestes espaccedilos ateacute o seacuteculo XI seria meditar sobre o texto promover a adoraccedilatildeo e fomentar
a contemplaccedilatildeo423
Natildeo muito diferente do francecircs Leclercq e do alematildeo Reventlow o historiador
italiano Ambrogio Piazzoni tambeacutem entende a exegese monaacutestica como um modo particular
de interpretar a Escritura na Idade Meacutedia O professor da Universitagrave degli Studi della Tuscia
entretanto argumenta em prol de uma inflexatildeo significativa dos estudos biacuteblicos no final do
seacuteculo XI e durante o seacuteculo XII caracterizada por uma nova sensibilidade na leitura e no
uso dos textos424 Perspectiva semelhante levou de Lubac a intitular este revigoramento
biacuteblico de ldquouma nova primavera da exegeserdquo425 muito em funccedilatildeo dos representantes do
420 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard In LAMPE G W H (ed) The Cambridge
History of the Bible The West from the Fathers to the Reformation Cambridge Cambridge University Press
1969 p 183-197 p 184 421 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in
Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 3
Sobre este tema conferir uma antiga exortaccedilatildeo a este respeito presente na regra de Ferreol (553-581) bispo de
Uzegrave na Gaacutelia em PARKES Malcom La alta Edad Media In CAVALLO Guglielmo CHARTIER Roger
(eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 153-178 p 157 ldquoaquele que
deseja se chamar monge natildeo pode se permitir ficar na ignoracircncia das letrasrdquo (ldquoOmnis qui nomem vult monachi
vidicare litteras ei ignorare non liceatrdquo) 422 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard op cit p 184 423 REVENTLOW Henning Graf History of Biblical Interpretation From Late Antiquity to the End of the
Middle Ages Atlanta Society of Biblical Literature 2009 3 v V 2 p 172 424 PIAZZONI Ambrogio M Lesegesi neomonastica In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio
(eds) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 217-237 p 218 425 DE LUBAC Henri Medieval exegesis the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans
Publishing Company 2000 2 v V II p 151
128
chamado neomonasticismo destacadamente os cistercienses mas sem esquecer tambeacutem
alguns expoentes do ldquovelho monaquismordquo426
A praacutetica da leitura biacuteblica era um dos pilares da vida do monge Para um religioso
a Biacuteblia era nos termos de Piazzoni o livro de ldquocada dia todo o dia e muitas vezes ao
diardquo427 Ele percorria suas paacuteginas escutava sua leitura lia-a sozinho cantava-a com seus
irmatildeos na liturgia
A lectio428 monaacutestica poderia ser ilustrada pelo testemunho do cartusiano Guigo II
abade entre 1174 e 1180 da casa-matildee da Ordem dos Cartuxos em Saint-Pierre-de-
Chartreuse na Franccedila Segundo este abade o desenvolvimento espiritual comeccedila com a
lectio passa pela meditatio conduz agrave oratio e conclui com a contemplatio Eacute uma escala
ascendente429 Neste mesmo sentido registrava ainda um opuacutesculo anocircnimo destinado aos
novos monges ldquoQuando ler procure o sabor e natildeo o saberrdquo (ldquoSi ad legendum accedat non
quaerat scientiam sed saporemrdquo) E acrescentava ldquono momento da leitura poderaacute
contemplar e orarrdquo (ldquoin ipsa lectione poterit contemplari et orarerdquo)430 Desta forma a lectio
entrava na vida do monge como uma forma de oraccedilatildeo ou culto
Esta exegese monaacutestica se fundava sobre as bases de um relacionamento contiacutenuo
com o texto sagrado de uma memoacuteria impregnada das Escrituras Como resumiu ainda
Piazzoni era uma memoacuteria visual de palavras escritas muscular de palavras pronunciadas e
auditiva de palavras escutadas431 O aspecto visual nascia tanto das leituras quanto das
representaccedilotildees da Biacuteblia em imagens espalhadas por quadros esculturas e iacutecones nas
paredes nas colunas e nos tetos das construccedilotildees O aspecto muscular se desenvolvia por
causa da leitura em voz alta ao articular-se as palavras lidas com a boca432 A leitura era
murmurada mesmo se feita sozinha o que gerou a expressatildeo ruminatio433 Como
426 PIAZZONI op cit p 218 427 Idem p 219 428 Leitura e explicaccedilatildeo das Escrituras Cf BLAISE Albert Lexicon Latinitatis Medii Aevi Turnholti
Typografhi Brepols 1975 p 528 429 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 221 430 Idem p 222 431 Idem 432 Ao menos para a alta Idade Meacutedia cf PARKES op cit p 160 Segundo Hamesse essa praacutetica de leitura
sofreu uma profunda transformaccedilatildeo no seacuteculo XII em funccedilatildeo de novos padrotildees exercitados nas escolas ou
universidades Cf HAMESSE Jacqueline El modelo escolastico de la lectura In CAVALLO Guglielmo
CHARTIER Roger (eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 179-210
p 207 Entretanto o argumento de Hamesse natildeo impede a perspectiva de que estas ldquonovidadesrdquo natildeo alteraram
a ruminatio entre os monges 433 O termo ldquoruminatiordquo vem do verbo ldquoruminarerdquo que expressa a ideia de ruminaccedilatildeo girar na mente accedilatildeo
cotidiana Cf LEWIS Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p
1604 Albert Blaise entatildeo preferiu traduzir como ldquocantar sozinhordquo Cf BLAISE op cit p 806
129
consequecircncia tambeacutem da memoacuteria muscular desenvolvia-se a memoacuteria auditiva enquanto
ouvia a proacutepria voz ou em funccedilatildeo de outros processos em que o monge escutava a leitura
Biacuteblica implementados na liturgia na pregaccedilatildeo ou durante as refeiccedilotildees
A praacutetica de ruminar a Biacuteblia de ldquomastigaacute-lardquo todo o dia e o dia todo criava o
fenocircmeno da reminiscecircncia Assim para explicar uma passagem da Biacuteblia o monge fazia
uso de outra passagem que em sua mente se associava remanejando suas frases e
construindo novos textos Neste sentido Piazzoni argumenta que certo desprendimento em
relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo eacute um significativo traccedilo da exegese monaacutestica e neomonaacutestica do seacuteculo
XII Guilherme (1085- 1148) abade de Sant-Thierry escreveu ldquoA escritura deve ser lida no
espiacuterito em que foi gerada Neste espiacuterito deve ser compreendidardquo434 Segundo ele o mesmo
Espiacuterito que inspirou os textos estaria com aqueles que entatildeo os interpretavam
Ruperto (1075-1130) abade na cidade germacircnica de Deutz representante do
monasticismo beneditino insistia que a interpretaccedilatildeo da Biacuteblia depende de uma
compreensatildeo especial que eacute dom do Espiacuterito Santo dom esse similar agravequele que ele deu aos
apoacutestolos para que pudessem compreender o Antigo Testamento Quem recebe tal dom de
interpretaccedilatildeo tem o dever de expor o que percebe na Biacuteblia Ele afirmou assim a existecircncia
de um ldquodom da exegeserdquo nos moldes dos antigos dons do apostolado e profecia435 o que
promovia a autonomia do inteacuterprete em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde
Neste sentido tambeacutem o cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153) que insistia
que tudo na Biacuteblia tinha um sentido para o leitor e nenhum detalhe dos textos biacuteblicos
poderia ser negligenciado Como os textos tinham vaacuterios sentidos Deus o mestre das
Escrituras ajudaria os leitores a compreender da mesma forma como ajudou os autores a
escrever O resultado desta leitura sagrada eacute entatildeo um cacircntico de amor (carmen spiritus) um
ato lituacutergico Cada leitor da Biacuteblia poderia ser inspirado quase como os proacuteprios autores
originais o que justificaria a diversidade de interpretaccedilatildeo dos textos sagrados436
A exegese praticada por representantes tanto do antigo monasticismo quanto das
novas casas monaacutesticas ocidentais no seacuteculo XII conhecia os sentidos tradicionais praticados
desde Oriacutegenes (185-254) histoacuterico alegoacuterico tropoloacutegico e anagoacutegico437 Este sistema de
alegorizaccedilatildeo foi desenvolvido de acordo com o qual quatro significados deveriam ser
434 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 223 435 Idem p 228 436 Idem p 229 437 Uma anaacutelise diacrocircnica dos quatro sentidos pode ser encontrada em DE LUBAC Henri Medieval exegesis
the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2000 2 v V I p 15-
267
130
procurados em cada texto biacuteblico O nuacutemero de sentidos variava entre os autores Alguns
trabalhavam com dois sentidos outros com ateacute sete Mas o nuacutemero mais frequentemente
usado era quatro438 Um pequeno diacutestico presente na obra Rotulus pugillaris do dominicano
Agostinho de Dacia em 1260 ilustra os quatro sentidos ldquoA letra nos mostra os eventos a
alegoria nos mostra a feacute o significado moral nos ensina a agir a anagogia nos indica para
onde vamosrdquo439
Os monges dos tempos reformistas em funccedilatildeo do anseio pela contemplaccedilatildeo tinham
o sentido tropoloacutegicomoral como alvo maior A letra deveria ser superada em prol de um
sentido mais elevado de compreensatildeo das Escrituras O resultado eacute uma leitura biacuteblica
interiorizante ldquoespiritualrdquo que prosperava dentro do monasteacuterio Do lado de fora dos seus
muros entretanto outro padratildeo de hermenecircutica comeccedilava a se fortalecer em que se
buscava natildeo mais a meditatio mas a disputatio Esta forma extra claustrum de interpretaccedilatildeo
biacuteblica feita por pessoas ldquoque por meios escolaacutesticos se enchem de conhecimentordquo (ldquoqui
scholastica inflantur scientiardquo)440 aborrecia alguns monges entre eles o autor do Expositio
in Apocalypsim
62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo
No iniacutecio do Expositio Joaquim resumiu sua maneira de relacionar Biacuteblia e histoacuteria
O primeiro dos trecircs status dos quais noacutes falamos era no tempo da Lei
quando o povo do Senhor serviu como uma crianccedila pequena por um tempo
debaixo dos elementos (rudimentos) do mundo Eles natildeo estavam
habilitados ainda a alcanccedilar a liberdade do Espiacuterito ateacute que venha de quem
se disse ldquoSe o Filho libertar vocecircs vocecircs verdadeiramente seratildeo livresrdquo
(Joatildeo 866) O segundo status estava sob o Evangelho e permaneceu ateacute o
presente com liberdade em comparaccedilatildeo com o passado mas natildeo com
liberdade em comparaccedilatildeo com o futuro Porque o Apoacutestolo disse ldquoAgora
noacutes conhecemos em parte e profetizamos em parte o que eacute perfeito tiver
vindo o que eacute em parte passaraacuterdquo (1Coriacutentios 1312) E em outro lugar
ldquoOnde o Espiacuterito do Senhor estaacute aqui haacute liberdaderdquo (2Coriacutentios 317) Por
conseguinte o terceiro status viraacute ao se aproximar o fim do mundo natildeo
distante sob o veacuteu da carta mas na plenitude do Espiacuterito quando apoacutes a
destruiccedilatildeo e cancelamento do falso evangelho do Filho da Perdiccedilatildeo e seus
profetas aqueles que ensinaratildeo a muitos sobre justiccedila seratildeo como o
438 TRACY Robert TRACY David A short history of the interpretation of the Bible Minneapolis Fortress
Press 1984 p 136-145 439 ldquoLittera gesta docet quid credas allegoria Moralis quid agas quo tendas anagogiardquo Citado a partir de
DE LUBAC Henri Medieval exegesishellip v I op cit 1 440 Expressatildeo de Joaquim de Fiore no Tractatus Super Quatuor Evangelia citado a partir de DE LUBAC La
posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 16
131
esplendor do firmamento e como as estrelas para sempre (Expositio in
Apocalypsim 5r-v)441
Nesta mesma passagem algumas linhas agrave frente o abade faz referecircncia a uma certa
forma de ler e interpretar a Biacuteblia ldquoA carta do Primeiro Testamento parece por certa
propriedade de semelhanccedila pertencer ao Pai A carta do Novo Testamento pertence ao Filho
Entatildeo a compreensatildeo espiritual que procede de ambos pertence ao Espiacuterito Santordquo Mas que
hermenecircutica ldquoespiritualrdquo eacute essa que Joaquim chamou de ldquonovo tipo de exposiccedilatildeordquo (ldquonovo
saltem generi exponendirdquo)442 Ela seria ldquonovardquo em que sentido
A insistecircncia do abade em chamar sua forma de exponere a Biacuteblia de ldquonovardquo indica
algum tipo de insatisfaccedilatildeo com as metodologias exegeacuteticas que ele encontrou nos espaccedilos
religiosos Isso pode ter relaccedilatildeo com sua ansiedade apocaliacuteptica Apoacutes uma peregrinaccedilatildeo agrave
Palestina ele possui a convicccedilatildeo de que a humanidade estaacute se aproximando de um estaacutegio
histoacuterico decisivo Ele deseja compreender estes sinais dos tempos e procura ler os textos
biacuteblicos agrave procura de uma explicaccedilatildeo religiosa Contudo as ferramentas exegeacuteticas
disponiacuteveis natildeo lhe satisfazem ou pelo menos lhe parecem ineficientes para interpretar os
textos sagrados e encontrar algum sentido para a conjuntura histoacuterica dos seus dias Seria
preciso entatildeo elaborar uma metodologia ldquonovardquo para interpretar a Biacuteblia e a histoacuteria443
Essa perspectiva de ldquonovidaderdquo em Joaquim tambeacutem teria relaccedilatildeo com sua
compreensatildeo da natureza da exegese Como Ruperto de Deutz jaacute anteriormente
mencionado o abade parece falar de um ldquodom da exegeserdquo uma capacitaccedilatildeo sobrenatural
necessaacuteria para apreender o que natildeo estaria disponiacutevel para a compreensatildeo de todos As
passagens da Biacuteblia natildeo conteriam apenas palavras e frases acessiacuteveis de imediato a qualquer
leitor mas igualmente misteacuterios (mysteria) e segredos (secreta) especialmente relacionados
com os propoacutesitos divinos quanto agrave histoacuteria humana
Para Joaquim o Apocalipse de Joatildeo narraria a histoacuteria de como Deus entregou um
livro para o Cordeiro fechado com sete selos (Apocalipse 51-14) Esta narrativa biacuteblica
indicaria que o sentido dos personagens e dos eventos da histoacuteria humana estatildeo encobertos
A revelaccedilatildeo se encontraria inteiramente nas matildeos do Cristo do Apocalipse Estava completa
441 Traduccedilatildeo a partir de MC GINN Bernard Visions of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages
New York Columbia University Press 1979 p 133-134 442 O verbo ldquoexponerordquo pode ser traduzido como ldquorevelaccedilatildeordquo ldquoexposiccedilatildeordquo ldquoproduccedilatildeordquo Cf BLAISE op cit
p 363 443 REVENTLOW op cit p 173 tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval a compreensatildeo
espiritual de Joaquim de Fiore Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 35 p 99-118 2012 p 101
132
mas escondida tornando-se disponiacutevel apenas com ajuda divina Sem este amparo os textos
biacuteblicos seriam hermeacuteticos pelo menos no que tange ao sentido ldquoespiritualrdquo jaacute que sentidos
inferiores ainda poderiam ser acessados pela razatildeo humana (como os escolaacutesticos ldquoinchados
de ciecircnciardquo que ele critica) Em outras palavras para o abade algumas coisas estatildeo
encobertas outras estatildeo escondidas algumas pessoas podem acessar as coisas encobertas
outras somente compreendem a superfiacutecie dos textos sagrados
Entre as coisas escondidas na Biacuteblia estatildeo os eventos e tribulaccedilotildees do final dos
tempos os falsos profetas os anticristos e a materializaccedilatildeo do reino divino na histoacuteria Deus
por meio de Cristo teria disponibilizado uma ldquocompreensatildeo espiritualrdquo a algumas pessoas
permitindo a elas adentrarem as profundezas das Escrituras e alcanccedilarem os segredos e
misteacuterios Joaquim faz assim uma distinccedilatildeo entre a capacidade de ler as Escrituras e a de
penetrar nos misteacuterios sagrados por meio de uma diferenciaccedilatildeo entre pessoas naturais (viri
animales) e pessoas espirituais (viri spirituales) Os misteacuterios da Escritura seriam
conhecidos apenas das pessoas espirituais jaacute que as naturais natildeo os podem perceber A
praacutetica da interpretaccedilatildeo biacuteblica ldquoespiritualrdquo consequentemente se daria pela obtenccedilatildeo da
ldquointeligecircnciardquo necessaacuteria por meio da iluminaccedilatildeo do Espirito Santo que permitiria aos assim
escolhidos (electi) duas coisas a capacidade de discernir a Biacuteblia e a habilidade de entender
o sentido da histoacuteria especialmente os ldquosinais dos temposrdquo444
Joaquim se apoiava em ideias paulinas como a oposiccedilatildeo entre compreensatildeo natural
e espiritual (1Coriacutentios 26-16) e a indicaccedilatildeo de uma forma infantil em oposiccedilatildeo agrave uma
forma adulta de entender as coisas de Deus (1Coriacutentios 139-12)445 Como consequecircncia ele
afirma pelo menos dois tipos de interpretaccedilatildeo uma que trabalha com a letra (secundum
litteram) e outra que se move para um niacutevel mais profundo (secundum spiritum)
A partir destes dois procedimentos baacutesicos (segundo a letra e segundo o espiacuterito) o
abade daacute mais um passo na estruturaccedilatildeo do seu meacutetodo relacionando a lectio com a Trinitas
Desta reflexatildeo trinitaacuteria surgiu o conjunto das ferramentas do seu sistema hermenecircutico
composto por trecircs partes a concordia equivalente agrave leitura segundo a letra e a alegoria e a
444 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 19 445 Esta segunda passagem de Paulo eacute uma das preferidas de Joaquim retornando constantemente em suas
explicaccedilotildees metodoloacutegicas ldquoPorque em parte conhecemos e em parte profetizamos Quando poreacutem vier o
que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino falava como menino sentia
como menino pensava como menino quando cheguei a ser homem desisti das coisas proacuteprias de menino
Porque agora vemos como em espelho obscuramente entatildeo veremos face a face Agora conheccedilo em parte
entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Coriacutentios 139-12)
133
tipologia como leituras espirituais446 Jaacute que a Trindade eacute formada por trecircs pessoas divinas
que atuam como se fossem uma soacute as ferramentas exegeacuteticas de Joaquim tambeacutem deveriam
operar como se fossem apenas uma Somadas elas resultam na denominada ldquonova forma de
exposiccedilatildeordquo
Mas seria realmente ldquonovardquo esta metodologia exegeacutetico-hermenecircutica A resposta
da historiografia eacute dupla neste caso A tendecircncia eacute afirmar algum tipo de viacutenculo tradicional
ao mesmo tempo em que se indica em que sentido seu caminho poderia ser novo como o
professor Rossatto ao considerar que Joaquim teria partido da tradiccedilatildeo por assumir e
revigorar antigos meacutetodos de interpretaccedilatildeo poreacutem simultaneamente proposto um modo
ineacutedito de compreensatildeo no caso a concordia447 Isso significa dizer que a primeira parte do
sistema eacute nova enquanto a segunda jaacute era longamente utilizada pelos inteacuterpretes da Biacuteblia
A historiadora italiana Tagliapietra explica esta relaccedilatildeo entre novidade e tradiccedilatildeo
com o recurso aos jaacute mencionados quatro sentidos da exegese medieval O sentido literal foi
transformado por Joaquim na sua concordia A alegoria foi multiplicada pelo abade em cinco
tipos diferentes (histoacuterica moral tropoloacutegica contemplativa e anagoacutegica) A estes o abade
acrescentou o antigo meacutetodo da tipologia subdivido em sete formas diferentes Como
resultado os sentidos tradicionais se transformaram nas matildeos do abade em doze
possibilidades de significaccedilatildeo448 Contudo ele natildeo os chama todos do mesmo jeito Apenas
trecircs satildeo denominados ldquosentidosrdquo a letra (concordia) a alegoria (allegoricus intellectus) e a
tipologia (intelligentia typica)449 As demais divisotildees satildeo chamadas de espeacutecies (species)
inteligecircncias espirituais (inteligentiae spirituales) ou interpretaccedilatildeo espiritual (mystica
interpretatio)
Assim em siacutentese o sistema hermenecircutico de Joaquim de Fiore se articula sobre trecircs
bases a exposiccedilatildeo dos diversos tipos de alegoria dos diversos tipos de tipologia e a
concordia que funciona como o elemento que coloca o sistema em movimento450
446 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 101 447 Idem p 100 448 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 26 449 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 44 450 SANTI op cit p 261
134
63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde
A noccedilatildeo fundamental do sistema exegeacutetico de Joaquim eacute chamada por ele de
concordia Blaise no seu Lexicon Latinitatis Medi Aevi traduz o substantivo feminino
concordia como entre outras acepccedilotildees ldquoato de organizarrdquo e o verbo concordiare como
ldquofazer acordordquo451 Outro uso muito comum aparece em Suetocircnio (69-141) historiador dos
doze ceacutesares que apresenta uma divindade chamada Concordia a quem os romanos
dedicavam cultos e festas apoacutes distuacuterbios beacutelicos especialmente no final de uma guerra civil
(De vita caesarum III 20)452 Como antocircnimo de discordia o termo era relativamente
frequente tanto na prosa quanto na poesia latina
Mas como as palavras natildeo satildeo estaacuteticas e podem variar de sentido com o tempo e a
situaccedilatildeo Tagliapietra analisou as ocorrecircncias de concordia em Joaquim de Fiore e reuniu
quatro possibilidades de significado harmonia semelhanccedila correlaccedilatildeo e compensaccedilatildeo A
ldquoharmoniardquo poderia lembrar ao leitor moderno o sentido de sinopse como exemplificado
pelo Diatessaron de Taciano (120-180) que resumiu quatro evangelhos de Jesus em uma
uacutenica narrativa Jaacute ldquosemelhanccedilardquo tem relaccedilatildeo com paralelismo e aparece no tiacutetulo da obra
mais conhecida de Joaquim (Liber de Concordia Novi ac Veteris Testamenti) que comeccedila
com a expressatildeo ldquoIncipit praephatio libri concordantiarumrdquo (1r) O terceiro significado
ldquocorrelaccedilatildeordquo tem ligaccedilatildeo com periodizaccedilatildeo da histoacuteria uma espeacutecie de lei estrutural do
curso do tempo ou uma filosofia da histoacuteria O quarto significado ldquocompensaccedilatildeordquo indica
que cada pessoa cada evento da histoacuteria reverbera no futuro segundo uma reserva de
sentido fazendo com que o estudo do passado se torne tambeacutem um exerciacutecio de vaticiacutenio453
O proacuteprio Joaquim deu a sua definiccedilatildeo do termo concordia ldquouma similaridade de
igual proporccedilatildeo entre o Novo e o Antigo Testamentos igual eu digo quanto ao nuacutemero natildeo
quanto a dignidaderdquo454 (Liber de Concordia 7rb) Ele a ilustrou com a imagem de uma
estrada contiacutenua que liga uma cidade a um deserto cujos viajantes passam por vales e
montanhas Nos vales eles podem admirar a paisagem Nas montanhas eles conseguem ver
451 BLAISE op cit p 222 452 Esta eacute a referecircncia especiacutefica ldquoDedicavit et Concordiae aedem item Pollucis et Castoris suo fratrisque
nomine de manubiisrdquo Uma traduccedilatildeo seria Tibeacuterio ldquodedicou um templo agrave deusa Concordia e outro a Castor e
Polux em seu nome e em nome de seu irmatildeordquo Conferir uma ediccedilatildeo biliacutengue em SUETONIUS Lives of the
Caesars Cambridge Harvard University Press 1979 2 v V 1 p 322 Outra traduccedilatildeo para o inglecircs pode ser
encontrada em SUETONIUS Lives of the Caesars Oxford Oxford University Press 2000 p 109 453 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 21-25 454 ldquoConcordiam proprie esse dicimus similitudinem eque proportionis novi ac veteris testamenti eque dico
quo ad numerum non quo ad dignitatemrdquo
135
o que veio antes e o que vem depois Ele costumava usar tambeacutem duas imagens biacuteblicas para
explicar sua ferramenta metodoloacutegica os dois querubins que estavam sobre a tampa da arca
(Ecircxodo 2520)455 e as duas rodas da visatildeo de Ezequiel (Ezequiel 116)456 No primeiro caso
duas figuras angelicais estatildeo voltadas uma para a outra em cima da arca da alianccedila No
segundo caso duas rodas giram uma dentro da outra embaixo do trono-carruagem de Javeacute
A primeira imagem reforccedila o senso de paralelismo entre os dois testamentos (concordia
duorum testamentorum) jaacute que um se volta para o outro No caso da segunda imagem ela
desenvolve o sentido de correlaccedilatildeo entre os trecircs status (concordia trium statuum) ao apontar
para eventos que se desenvolvem dinamicamente na histoacuteria
Tanto no caso dos dois testamentos quanto no dos trecircs estados o meacutetodo da
concordia consiste entatildeo em encontrar posiccedilotildees semelhantes de pessoas e eventos dentro
de tempos (tempora ou status) diferentes e apontar em que sentido eles satildeo similares (em
caracteriacutesticas ou atos)457 Um exemplo poderia ser dado pelo caso do patriarca Jacoacute que
ocupa a mesma posiccedilatildeo dentro do primeiro status que o homem Jesus ocupa no segundo
Ocupando posiccedilotildees semelhantes no interior de seus respectivos status eles manifestam atos
espirituais parecidos e exercem papeis religiosos paralelos Entretanto natildeo satildeo iguais em
dignidade Eacute isso que significa ser ldquosimilar quanto a nuacutemerordquo e natildeo quanto a ldquodignidaderdquo
As pessoas ocupam as mesmas posiccedilotildees em suas proacuteprias geraccedilotildees e tecircm papel semelhante
mas natildeo possuem o mesmo status espiritual O homem Jesus foi maior em dignidade que
Jacoacute o que significa dizer que ele possuiacutea uma compreensatildeo espiritual maior e realizou obras
maiores458
Joaquim comeccedila o exerciacutecio de sua concordia por meio da distinccedilatildeo entre histoacuteria
geral e histoacuteria especial Segundo o abade
Toda a floresta de histoacuterias que ofusca o Antigo Testamento eacute dividida em
cinco partes das quais uma eacute geral e quatro satildeo especiais Porque haacute uma
roda que tem quatro faces Existe uma histoacuteria geral agrave qual quatro histoacuterias
especiais satildeo unidas A histoacuteria geral eacute aquela que comeccedila no iniacutecio do
mundo e caminha direto ateacute o livro de Esdras [] Existem quatro histoacuterias
especiais pequenas das quais a primeira eacute Joacute a segunda eacute Tobias a
terceira eacute Judite e a quarta eacute Ester Aquela eacute a roda Estas satildeo as faces
(Enchridion super Apocalypsim 2r-3r)459
455 ldquoOs querubins estenderatildeo as asas por cima cobrindo com elas o propiciatoacuterio estaratildeo eles de faces voltadas
uma para a outra olhando para o propiciatoacuteriordquo (Ecircxodo 2520) 456 ldquoO aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o berilo tinham as quatro a mesma aparecircncia
cujo aspecto e estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outrardquo (Ezequiel 116) 457 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip p 79 458 Idem 459 Traduccedilatildeo a partir da versatildeo italiana GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Traduzione e cura di
Andrea Tagliapietra Milano Feltrinelli 2008 p 133
136
O que ele chama de ldquohistoacuteria geralrdquo eacute uma grande narrativa presente no Antigo
Testamento que parte do livro de Gecircnesis e se estende ateacute a obra de Esdras Usando a
imagem das duas rodas concecircntricas de Ezequiel o abade denomina esta ldquohistoacuteria geralrdquo de
ldquoroda exteriorrdquo agrave qual estatildeo vinculadas quatro pequenas histoacuterias (denominadas ldquohistoacuterias
especiais) presentes em obras menores Joacute Tobias Judite e Ester As histoacuterias especiais se
vinculam agrave roda exterior como as ldquoluzesrdquo nas rodas da visatildeo ezequieacutelica460
A operaccedilatildeo da concordia encontrou esta mesma estrutura no Novo Testamento
Tambeacutem nele haacute uma histoacuteria geral e quatro histoacuterias especiais Joaquim identificou a
histoacuteria geral com o Apocalipse de Joatildeo enquanto as quatro especiais correspondem aos
quatro evangelhos canocircnicos Mateus Marcos Lucas e Joatildeo E se o Antigo Testamento
forma a roda exterior o Apocalipse corresponde agrave roda interior da visatildeo do profeta do exiacutelio
babilocircnico Como satildeo duas rodas concecircntricas ambas giram de forma paralela de tal
maneira que uma pessoa dotada da ldquointeligecircncia espiritualrdquo poderia perceber os eventos que
se repetem Voltando a uma imagem anterior a concordia eacute a estrada que liga as duas rodas
permitindo aos viajantes visualizar por meio de suas montanhas o que jaacute aconteceu e o que
estaacute por acontecer461
Sendo assim como insistiu o professor Emmett Randolph Daniel o que acontece na
concordia natildeo pode ser confundido nem com alegoria nem com tipologia Seu trabalho
precede as outras duas atividades hermenecircuticas do abade462 Este sentido ldquosegundo a letrardquo
era a percepccedilatildeo de narrativas biacuteblicas como uma descriccedilatildeo natildeo apenas do que teria
acontecido mas tambeacutem do que ainda aconteceria Por meio destas narrativas seria possiacutevel
discernir o passado o presente e futuro463 Natildeo haacute na concordia uma relaccedilatildeo horizontal entre
anuacutencio e realizaccedilatildeo como na tipologia ou vertical entre letra e espiacuterito como na alegoria464
O que haacute eacute um paralelismo histoacuterico dinacircmico e progressivo
460 Na visatildeo de Ezequiel aparentemente haviam luzes que brilhavam tanto na roda exterior quanto na interior
enquanto o trono de Deus se movia (Ezequiel 11-25) 461 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 78 462 Idem p 79 tambeacutem MC GINN Bernard Visions of the Endhellip op cit p 126-141 WEST ZIMDARS-
SARTZ op cit p 42 463 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard
K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-
88 79 464 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 106 DE LUBAC Henri La posteridad
espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 44
137
64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas
Durante um dos mais antigos exerciacutecios exegeacuteticos conhecidos de Joaquim presente
no primeiro sermatildeo do Praephatio super Apocalypsim datado para o iniacutecio da deacutecada de
1180 no periacuteodo em que ainda era abade de Corazzo apoacutes usar a concordia para apontar
paralelos entre as doze tribos de Israel e a histoacuteria da igreja ele afirma ldquoMas deixemos estas
coisas no invoacutelucro externo da noz para mostrar agora algo de sua casca de maneira que
num terceiro momento possamos extrair um viscoso alimentordquo465
Mais agrave frente apoacutes algumas frases ele retoma a imagem da noz ldquoEis que jaacute eacute viziacutevel
o nuacutecleo que estava encoberto pela casca aparece a verdadeira vida que os panos envolviam
no sepulcrordquo466 Desta vez ele faz alusatildeo ao sepultamento de Jesus e aos panos que
envolviam seu corpo467
As imagens das camadas da noz e do corpo enrolado pelos panos refletem o convite
do abade para ir aleacutem da concordia dos textos biacuteblicos coisa que ele colocou em praacutetica em
suas vaacuterias obras de exposiccedilatildeo biacuteblica (entre elas o Expositio in Apocalypsim) movendo-se
de uma compreensatildeo segundo a letra para justificar uma compreensatildeo segundo o espiacuterito (da
concordia para os princiacutepios espirituais)468
Neste processo contiacutenuo de aprofundamento na direccedilatildeo do ldquoviscoso alimento da
nozrdquo ele toma a alegoria469 e a subdivide em cinco princiacutepios alegoacutericos Por que cinco A
Trindade tambeacutem usada para justificar as trecircs partes de sua metodologia (concordia
alegoria e tipologia) agora eacute usada como base para as cinco subdivisotildees alegoacutericas
465 O sermatildeo eacute o Apocalipsis liber ultimus citado a partir de ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao
Apocalipse op cit p 460 466 Idem p 461 467 ldquoTomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lenccediloacuteis com os aromas como eacute de uso entre os judeus
na preparaccedilatildeo para o sepulcrordquo (Joatildeo 1940) 468 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 46 Estes princiacutepios espirituais satildeo derivados da operaccedilatildeo
alegoacuterica e tipoloacutegica Uma descriccedilatildeo das duas tradiccedilotildees pode ser encontrada em YOUNG Frances
Alexandrian and Antiochene Exegesis In HAUSER Alan J WATSON Duane F (eds) A history of biblical
interpretation The Ancient Period Grande Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2003 2 v V
1 p 334-354 469 Segundo Stefaniw este tipo de interpretaccedilatildeo concebia o texto como um meio de revelaccedilatildeo de misteacuterios
escondidos ldquopor traacutes das letrasrdquo Cf STEFANIW Blossom Reading Revelation Allegorical Exegesis in Late
Antique Alexandria Revue de lrsquohistoire des religions Paris n 2 p 231-251 2007 p 231-232 Ulleacuten distingue
alegoria como gecircnero literaacuterio como utilizado por Dante na obra ldquoDivina Comeacutediardquo de alegoria como forma
de interpretaccedilatildeo Aparentemente o primeiro fenocircmeno nasceu em consequecircncia do segundo que por sua vez
eacute tatildeo antigo quanto as primeiras interpretaccedilotildees dos eacutepicos de Homero Sua definiccedilatildeo de alegoria como meacutetodo
hermenecircutico eacute ldquouma forma sistemaacutetica de compreender o texto que se baseia em uma norma
intersubjetivamente determinadardquo Cf ULLEacuteN Magnus Dante in Paradise The End of Allegorical
Interpretation New Literary History Baltimore v 32 n 1 p 177-199 2001 p 183
138
Sua confissatildeo trinitaacuteria foi resumida por West e Zimdars-Swartz como ldquoDeus eacute um
Deus sem confusatildeo de pessoas e trecircs pessoas sem divisatildeo de substacircnciardquo470 Ele faz uma
distinccedilatildeo das trecircs Pessoas divinas baseadas em sua origem O Pai natildeo eacute gerado (ingenitus)
o Filho eacute gerado pelo Pai (genitus) e o Espiacuterito Santo procede de ambos (ab utroque
procedens) Associado com a origem das Pessoas da Trindade estaacute tambeacutem o relacionamento
entre elas expresso na forma como satildeo nomeados O Pai eacute assim chamado porque tem um
Filho igualmente o Filho porque tem um Pai jaacute o Espiacuterito eacute assim nominado porque
procede de ambos O abade entatildeo enumera as cinco possiacuteveis relaccedilotildees entre as Pessoas
divinas ligando cada uma com um tipo diferente de alegoria
ndash alegoria histoacuterica a relaccedilatildeo do Pai com o Filho afinal ele eacute Pai de um Filho
ndash alegoria moral a relaccedilatildeo do Filho com o Pai afinal ele eacute Filho de um Pai
ndash alegoria tropoloacutegica a relaccedilatildeo entre o Pai e o Filho com o Espiacuterito afinal este vem
de ambos
ndash alegoria contemplativa a relaccedilatildeo do Filho e do Espiacuterito com o Pai afinal ambos
satildeo enviados pela primeira Pessoa divina
ndash alegoria anagoacutegica a relaccedilatildeo das trecircs Pessoas com cada criatura afinal as trecircs satildeo
Deus e Criador471
Como jaacute indicamos Joaquim soacute denominava de ldquosentidosrdquo a concordia a alegoria e
a tipologia As subdivisotildees (tanto da alegoria quanto da tipologia) por sua vez ele as
denomina species ou intelligentia Assim a primeira species de alegoria eacute a historica
intelligentia ou compreensatildeo histoacuterica Apesar do nome ela natildeo corresponde agrave letra do
texto mas indica o significado de um evento ou figura histoacuterica como exemplo de uma
condiccedilatildeo espiritual Joaquim ilustrou esta species com as duas esposas de Abraatildeo A alegoria
histoacuterica veria em Sara a representaccedilatildeo de uma mulher livre enquanto Hagar representaria
uma escrava Este sentido alegoacuterico teria um caraacuteter mais cognoscitivo apesar de
implicitamente convidar agrave associaccedilatildeo com a esposa livre em vez da escrava
A alegoria moral (moralis intelligentia) indica que haacute uma semelhanccedila entre coisas
visiacuteveis e coisas invisiacuteveis que se exprime na forma de uma qualidade eacutetica Sara neste niacutevel
representaria o prazer espiritual enquanto Hagar a escravidatildeo da carne Esta secunda
species alegoacuterica quer fornecer ensinamentos e demandas de ordem moral
470 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 53 Para uma anaacutelise da doutrina trinitaacuteria em Joaquim cf
ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 471 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 44 tambeacutem TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo
Gioachimita op cit p 27-28
139
A alegoria tropoloacutegica (tropologica intelligentia) tem relaccedilatildeo com doutrina Neste
niacutevel o inteacuterprete busca reforccedilos e componentes para a doutrina cristatilde Nele Hagar significa
a letra enquanto Sara significa a compreensatildeo espiritual da Palavra de Deus
A alegoria contemplativa (contemplativa intelligentia) centraliza-se na vida
contemplativa e nos dons do Espiacuterito Santo Por exemplo Hagar significa a vida ativa
enquanto Sara significa a vida contemplativa
A alegoria anagoacutegica (anagogica intelligentia) a quinta species convida para a
prospectiva escatoloacutegica tradicional com o olhar para o mundo transcendental para aleacutem da
histoacuteria e por meio da oposiccedilatildeo ceacuteu-terra Neste caso Hagar significa a vida presente
enquanto Sara indica a vida futura
Apesar de apresentar o meacutetodo472 nas suas maiores obras de exposiccedilatildeo biacuteblica
(Expositio in Apocalypsim Psalterium decem Chordarum e Tractatus super quatuor
Evangelion) o abade nem sempre faz uso dos cinco princiacutepios alegoacutericos ou mesmo indica
qual princiacutepio estaacute usando em cada caso Eacute comum que ele apenas indique que um
personagem ou evento ldquosignificardquo ou ldquodesignardquo outra coisa
65 Sensus typicus histoacuteria e profecia
Durante os trecircs meses passados em Corinto entre os anos 55 e 56 ao escrever sua
epiacutestola para os disciacutepulos de Roma o apoacutestolo Paulo tratou da relaccedilatildeo entre Adatildeo e Jesus
(Romanos 514) descrevendo o primeiro como uma ldquofigura do que haveria de virrdquo (ldquoτύπος
τοῦ μέλλοντοςrdquo) Os termos usados foram o substantivo ldquoτύποςrdquo e o verbo ldquomέλλwrdquo O
primeiro significa ldquosinal marca vestiacutegio imagem figura tipo modelo exemplordquo473 A
segunda palavra pode ser traduzida como ldquodever estar destinado ardquo que daacute origem agrave forma
adjetivada do verbo (ldquoo` mέλλwnrdquo) o melhor o aguardado o futuro474
Em termos semacircnticos um ldquotipordquo era a marca impressa de um golpe em entalhe ou
em relevo de tal forma que um aponta para a outro Mas o uso que Paulo fez do termo jaacute lhe
deu um sentido hermenecircutico Ele o usou para descrever uma releitura das Escrituras
judaicas agrave luz da sua feacute em Jesus como o Messias
472 Em especial na segunda parte do Liber de Concordia 473 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 464 474 Idem p 300
140
Posteriormente autores cristatildeos do seacuteculo II como Tertuliano de Cartago
latinizaram o termo (typos) mas tanto em autores gregos ou latinos (Melito de Sardes
Justino Irineu Clemente de Alexandria Oriacutegenes Cipriano de Cartago Tertuliano) a
praacutetica de Paulo continuou a ser exercida geralmente com o propoacutesito de encontrar nas
Escrituras judaicas as promessas que se cumpriram na vida de Jesus ou como uma estrateacutegia
para vincular estas mesmas Escrituras com o Novo Testamento cristatildeo em formaccedilatildeo475 A
tipologia se constituiu entatildeo como uma ferramenta usada pelos exegetas cristatildeos a partir do
segundo seacuteculo para ver unidade entre as Escrituras judaicas e cristatildes como uma linha
horizontal de continuidade e progresso histoacutericos que culmina em Jesus e no
Cristianismo476
Eacute entatildeo este antigo procedimento que Joaquim usaraacute na sua proacutexima fase exegeacutetica
As cinco espeacutecies de alegoria formam apenas um momento de sua interpretaccedilatildeo e
normalmente natildeo constituem o final do processo477 No manejo da tipologia natildeo se trata
mais de opor verticalmente letra e espiacuterito como na alegoria mas de relacionar uma letra
com outra letra um elemento com outro elemento segundo uma dinacircmica horizontal de
promessa e cumprimento478
De qualquer forma apesar da metodologia tipoloacutegica jaacute ser conhecida na tradiccedilatildeo
exegeacutetica cristatilde o uso que dela faz Joaquim tambeacutem natildeo deixa de ser singular A forma
como o abade relacionava histoacuteria e Escritura o levou a natildeo ver mais distinccedilotildees entre ambas
Assim enquanto a tipologia claacutessica interrompia o fluxo tipoloacutegico nos eventos do Novo
Testamento Joaquim ampliou o olhar do exegeta encontrando antiacutetipos em toda a histoacuteria
da Igreja479
475 Conferir esta anaacutelise em ETCHEVERRIacuteA Ramoacuten Trevijano La Biblia em el cristianismo antiguo
Prenicenos Gnoacutesticos Apoacutecrifos Estella Editorial Verbo Divino 2001 p 92-108 476 Natildeo se sustenta mais um reducionismo que vincula a tipologia a uma ldquotradiccedilatildeo antioquianardquo e a alegoria a
uma ldquotradiccedilatildeo alexandrinardquo Tanto tipologia quanto alegoria satildeo efetivamente ferramentas hermenecircuticas que
tecircm como meta ir aleacutem da ldquoletrardquo ou do sentido mais imediato das palavras Etcheverriacutea chega a classificar a
tipologia como um tipo de alegoria Ambas satildeo ldquoformas de representaccedilatildeordquo como tambeacutem a metaacutefora a
metoniacutemia e a sineacutedoque Cf ETCHEVERRIacuteA op cit p 85 Aleacutem do mais mesmo em um exegeta
ldquorepresentativordquo da denominada escola antioquiana como Teodoro de Mopsueacutestia (350-428) eacute possiacutevel
encontrar o uso tanto da alegoria quanto da tipologia Cf WILES M F Theodore of Mopsuestia as
representative of the antiochene school In ACKROYD P R EVANS G F (eds) The Cambridge history
of the Bible from the beginnings to Jerome Cambridge Cambridge University Press 1970 3 v V 1 p 489-
509 477 SANTI op cit p 263 478 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 28 479 A estrutura ldquotipordquo e ldquoantiacutetipordquo natildeo daacute conta da praacutetica joaquimita Tipo seria a promessa antiacutetipo o
cumprimento Em Joaquim o fenocircmeno poderia ser descrito como ldquotipo-tipo-antiacutetipordquo
141
A tipologia em Joaquim fornece significado a eventos e personagens histoacutericos no
formato de anuacutencio e realizaccedilatildeo mas hierarquiza-os no interior dos trecircs status do mundo
Adatildeo personagem do primeiro status corresponderia a Cristo um tipo mais elevado do
segundo Ambos convergem entretanto num antiacutetipo ainda mais superior que se
concretizaraacute num personagem futuro do terceiro status
O abade de Fiore denominou a tipologia de ldquosensus typicusrdquo ou inteligecircncia tiacutepica
e a subdividiu em sete species baseadas numa estrutura derivada igualmente de sua
especulaccedilatildeo trinitaacuteria correspondendo agraves sete possiacuteveis formas de uma pessoa professar a
Trindade 1) sob o sinal do Pai 2) sob o sinal do Filho 3) sob o sinal do Espiacuterito 4) sob o
signo do Pai e do Filho 5) sob o signo do Pai e do Espiacuterito 6) sob o signo do Filho e do
Espiacuterito 7) sob o signo da Trindade inteira480
Desta vez o abade natildeo diferencia cada tipo dando um nome ou mesmo definindo
mas apenas fornecendo um exemplo Segundo a primeira compreensatildeo tipoloacutegica que eacute
apropriada ao Pai Abraatildeo representa os sacerdotes dos judeus Hagar o povo israelita Sara
a Tribo de Levi que foi chamada para a obra de Deus No segundo tipo de tipologia que eacute
apropriada ao Filho Abraatildeo representa os bispos Hagar a igreja dos leigos Sara a igreja
dos cleacuterigos Segundo o terceiro tipo de tipologia que eacute apropriada ao Espiacuterito Abraatildeo
representa os sacerdotes que servem monasteacuterios Hagar representa a Igreja do povo leigo
que vive sob regras monaacutesticas (conversi) e Sara representa a igreja dos monges Segundo
a seacutetima compreensatildeo tipoloacutegica que pertence agraves trecircs pessoas da Trindade Hagar representa
as igrejas da primeira e segunda eacutepoca (status) que vive a vida ativa Sara representa a igreja
da contemplaccedilatildeo paz e descanso da seacutetima era (aetas) Estes foram os quatro usos
tipoloacutegicos mais usados por Joaquim481
A quarta quinta e sexta species de tipologia natildeo satildeo normalmente usadas Mesmo
assim ele faz uma breve apresentaccedilatildeo delas (Liber de Concordia 61v-73v) A quarta
tipologia pertence ao Pai e ao Filho Nela Abraatildeo significa os bispos dos judeus e gregos
Hagar a sinagoga Sara a igreja dos Gregos A quinta tipologia pertence ao Pai e ao Espiacuterito
e nela Abraatildeo significa os sacerdotes dos judeus e os bispos do povo latino Hagar a
sinagoga (como na tipologia anterior) e Sara a igreja do povo Latino A sexta compreensatildeo
tipoloacutegica pertence ao Filho e ao Espiacuterito Santo Nela Abraatildeo significa os sacerdotes da
480 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 29 481 Em termos gerais a primeira species tipoloacutegica trata da primeira eacutepoca a segunda da segunda eacutepoca a
terceira da terceira eacutepoca A seacutetima tenta englobar a histoacuteria como um todo
142
segunda e terceira eacutepoca Hagar a igreja dos trabalhadores (vida ativa) e Sara a igreja
espiritual da contemplaccedilatildeo482
66 O dom da exegese
O ex-eremita agora no interior de um cenoacutebio em Fiore parece ver no Novo
Testamento natildeo mais do que uma segunda letra em concordacircncia com a primeira Daiacute resulta
a conclusatildeo de que ldquonatildeo se pode considerar o segundo testamento como mais definitivo que
o primeirordquo483 Ele natildeo chega a abolir o Novo Testamento mas entende que ele seraacute
transformado por meio de uma nova interpretaccedilatildeo espiritual Entatildeo se abriratildeo as ldquoportasrdquo
dos dois Testamentos e pessoas que antes natildeo conseguiam ler mais do que a letra entatildeo
conseguiratildeo penetrar nos sentidos espirituais da Escritura
Apesar de ser o porta-voz desta ldquodescoberta espiritualrdquo Joaquim se recusou a assumir
o tiacutetulo de profeta que outros lhe atribuiacuteam Mas ele natildeo esconde que teve suas
ldquoiluminaccedilotildeesrdquo Ele parece falar de trecircs destas experiecircncias que quase o aproximam do termo
ldquovisionaacuteriordquo Em uma delas ele recebeu a concordia dos Testamentos em outra
compreendeu a relaccedilatildeo entre Trindade Escritura e histoacuteria por fim uma terceira abriu seus
olhos para o papel do Apocalipse na sua estrutura hermenecircutica484 Aleacutem destas experiecircncias
narradas em suas obras o abade estava persuadido de ter recebido um ldquoespiacuterito de
inteligecircnciardquo para interpretar as Escrituras485 a fim de alertar e despertar os ldquosonolentos
espiacuteritos de seu tempordquo a respeito dos ldquoextrema temporardquo486 Aos olhos de Joaquim sua
capacidade exegeacutetica era um dom de Deus Natildeo era apenas fruto de uma investigaccedilatildeo
humana Era como a estrela brilhante que guiou os magos ateacute Jesus
O abade via brilhar agrave sua frente um novo tempo (ldquoIta felices homines illius
statusrdquo)487 e o espera para breve Ele o descreve sem cessar em suas obras por meio das
482 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 45-46 483 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 46 484 Conferir uma descriccedilatildeo das trecircs visotildees em DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de
Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xiii-xviii 485 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London
University of Notre Dame Press 1993 p 16 486 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 48 487 Expressatildeo encontrada em Expositio in Apocalypsim 175v
143
duas combinaccedilotildees da concordia das cinco inteligecircncias espirituais (alegoria) e dos sete tipos
de inteligecircncia tiacutepica (tipologia)488
Considerado profeta chamado de visionaacuterio descrito como miacutestico Joaquim natildeo
queria ser como resumiu de Lubac outra coisa a natildeo ser um exegeta489
67 Resumo
Este capiacutetulo procurou apresentar as formas e procedimentos de leitura e
interpretaccedilatildeo de Joaquim de Fiore Comeccedilando pela concordia passando pela alegoria e
terminando na tipologia o abade estruturou um meacutetodo que foi aplicado por ele tanto em
textos biacuteblicos quanto em eventos e fenocircmenos histoacutericos Justamente essa relaccedilatildeo iacutentima
entre Biacuteblia e histoacuteria parece ser a raiz loacutegica do seu sistema milenarista490 A praacutetica
exegeacutetica do abade em vaacuterios momentos se constituiu num exerciacutecio de reflexatildeo sobre o
sentido da histoacuteria
488 O sistema metoloacutegico de trecircs partes formado pela concoacutercia e por doze sentidos ldquoespirituaisrdquo (cinco
alegoacutericos e sete tipoloacutegicos) eacute o mais recorrente nas exposiccedilotildees de Joaquim mas natildeo eacute o uacutenico Ele usa no
Psalterium um sistema compreendido por quinze sentidos baseado no nuacutemero total dos salmos Estes sistemas
indicam o esforccedilo do abade de Fiore para multiplicar e entrelaccedilar as imagens biacuteblicas Cf SANTI op cit p
264 O medievalista Falbel denomina o meacutetodo do abade de ldquoalegoacuterico-trinitaacuteriordquo Cf FALBEL Nachman
Satildeo Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202) Revista USP Satildeo Paulo n 30 p 273-276
1996 p 273 489 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 53 Talvez seja possiacutevel falar
numa exegese profeacutetica (projetada para o futuro) ou uma exegese visionaacuteria (materializada em imagens) ou
mesmo uma exegese miacutestica (com foco na contemplaccedilatildeo) 490 Idem p 43
VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN
APOCALYPSIM
Este capiacutetulo se deteraacute principalmente no Expositio in Apocalypsim a maior e mais
bem estruturada obra de Joaquim de Fiore491 Eacute um texto que acompanhou o abade por quase
vinte anos concluiacutedo apenas dois anos antes de sua morte Em um trabalho desta natureza
escrito ao sabor dos anos eacute possiacutevel encontrar alteraccedilatildeo nas proacuteprias pespectivas do abade492
De qualquer forma o trecho que nos interessa especialmente estaacute ao final na seacutetima parte
quando apoacutes deixar Corazzo e jaacute no isolamento das montanhas de Fiore Joaquim se deteacutem
a construir sua exegese de Apocalipse 201-10 a periacutecope joanina que descreveu o reino
milenarista dos martirizados com Cristo Para analisaacute-la entretanto precisamos antes situaacute-
la no interior do Expositio por meio de alguns apontamentos sobre a estrutura geral da obra
e de uma siacutentese de conteuacutedo
71 Estrutura literaacuteria do Expositio
O Expositio in Apocalypsim na sua versatildeo presente no incunaacutebalo veneziano eacute
precedido por trecircs documentos distintos O primeiro eacute a Carta Testamentaacuteria (1r) na qual o
abade calabrecircs relata suas motivaccedilotildees ao escrever suas grandes obras e manifesta o desejo
de apresentaacute-las agrave cuacuteria papal Em seguida haacute uma carta de Clemente III (papa de 1187-
1191) para Joaquim (1v) datada para o dia 8 de junho de 1188 solicitando que o abade
encaminhe suas obras para a Seacute romana493 Apoacutes as duas cartas comeccedila o Liber
Introductorius in Apocalypsim (1v-25v) um longo texto que teria a funccedilatildeo de apresentar o
Expositio suas partes baacutesicas uma siacutentese das principais ideias do abade especialmente os
trecircs status do mundo a concordia dos dois Testamentos e as sete fases (aetas) da histoacuteria
491 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 79 492 A visatildeo de Joaquim quanto ao Impeacuterio Germacircnico por exemplo variou de uma postura criacutetica no iniacutecio da
obra para uma postura neutra no final Cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di
Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p 325-327 493 Uma ediccedilatildeo latina da carta pode ser encontrada em ELLIOTT E B Horae Apocalypticae a commentary
on the Apocalypse critical and historical Londres Seeley 1862 4 v V 4 p 386
145
da Igreja Finalmente no foacutelio 26v tem iniacutecio o Expositio por meio da expressatildeo ldquoIncipit
prima septem partius in expositione Apocalipsisrdquo494
A forma como o comentaacuterio de Joaquim foi construiacutedo permite visualizar as
seguintes seccedilotildees495
26v Parte I Sete Igrejas
51v Eacutefeso
67r Esmirna
69r Peacutergamo
73v Tiatira
78r Sardes
82v Filadeacutelfia
92v Laodiceacuteia
99r Parte II Sete selos
113v Primeiro Selo
114r Segundo Selo
114v Terceiro Selo
115v Quarto Selo
116v Quinto Selo
117v Sexto Selo
123v Seacutetimo Selo
123v Parte III Sete Trombetas
127v Primeiro Anjo
128v Segundo Anjo
128v Terceiro Anjo
129v Quarto Anjo
130v Quinto Anjo
133v Sexto Anjo
152r Seacutetimo Anjo
153r Parte IV A Mulher vestida de Sol e o Dragatildeo
154r Primeira distinccedilatildeo
158r Segunda distinccedilatildeo
160v Terceira distinccedilatildeo
161v Quarta distinccedilatildeo
172v Quinta distinccedilatildeo
173r Sexta distinccedilatildeo
174v Seacutetima distinccedilatildeo
177r Parte V Sete Taccedilas
187r Primeira Taccedila
187r Segunda Taccedila
494 Por esta expressatildeo eacute possiacutevel perceber uma ambiguidade estrutural na obra Joaquim anunciou sete seccedilotildees
mas terminou a obra com oito 495 Adaptamos aqui a estrutura sugerida por WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of
Fiore a Study in Spiritual Perception and History Bloomington Indiana University Press 1983 p 74-75
146
188v Terceira Taccedila
189r Quarta Taccedila
189v Quinta Taccedila
190r Sexta Taccedila
191r Seacutetima Taccedila
191v Parte VI A queda da Babilocircnia e a derrota das bestas
191v Primeira distinccedilatildeo
202v Segunda distinccedilatildeo
206r Terceira distinccedilatildeo
209v Parte VII Descanso sabaacutetico
Pars prima
Pars secunda
Pars tertia
Pars quarta
215r Parte VIII Jerusaleacutem Celestial
72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim496
Joaquim se propotildee a escrever um comentaacuterio exegeacutetico do Apocalipse de Joatildeo tarefa
que o coloca na tradiccedilatildeo de outros exegetas medievais da obra joanina como Beda o
Veneraacutevel ou Beato de Lieacutebana497 Mas o resultado entretanto vai aleacutem de discussotildees
teoloacutegicas para se tornar o que Potestagrave chamou de ldquohistoacuteria teoloacutegica do Cristianismordquo498
Esta histoacuteria aparece no Expositio de duas formas linear e ciacuteclica Tanto na narrativa linear
quanto na ciacuteclica haacute uma preocupaccedilatildeo contiacutenua do abade em vincular cada texto do
Apocalipse a eventos histoacutericos da forma mais estreita possiacutevel499
A revelaccedilatildeo linear aparece quando o abade estrutura o uacuteltimo livro do Novo
Testamento em oito partes sendo que as sete primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da
histoacuteria da Igreja Das sete seis relatam algum tipo de confronto da Igreja As quatro
primeiras fases apresentam protagonistas diferentes (apoacutestolos maacutertires doutores monges
496 Para esta siacutentese cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297-325 ELLIOTT E
B Horae Apocalypticae op cit p 384-420 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit
p 79-84 497 Conferir a discussatildeo anterior sobre o gecircnero literaacuterio do Expositio na qual indicamos autores anteriores agrave
Joaquim que tambeacutem escreveram exposiccedilotildees exegeacuteticas do Apocalipse 498 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297 MCGinn acompanha Potestagrave nesta
avaliaccedilatildeo e toma Joaquim como criador da mais imponente teologia da histoacuteria desde De civitate Dei de
Agostinho Cf MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero
occidentale Gecircnova Casa Editrice Marietti 1990 p 172 499 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 298
147
e virgens) Na quinta e na sexta eacute a Igreja em geral que enfrenta a Babilocircnia e o Anticristo
A seacutetima seria de descanso na forma de um sabbatum500 especial Finalmente viria o oitavo
periacuteodo que seria a consumaccedilatildeo final da histoacuteria e a eternidade transcendental501 Esta seria
a relaccedilatildeo esquemaacutetica entre a histoacuteria da Igreja e as partes do Apocalipse
- Primeira parte (Apocalipse 19-322) os apoacutestolos lutam contra os judeus
- Segundo parte (Apocalipse 41-81) os maacutertires lutam contra a Roma pagatilde
- Terceira parte (Apocalipse 82-1119) os doutores da Igreja lutam contra Aacuterio e os
governantes arianos
- Quarta parte (Apocalipse 121-1420) os monges e as virgens lutam contra os
sarracenos
- Quinta parte (Apocalipse 151-1617) a Igreja em geral luta contra a Babilocircnia
- Sexta parte (Apocalipse 1618-1921) a Igreja em geral luta contra o Anticristo
- Seacutetima parte (Apocalipse 201-10) o descanso sabaacutetico
- Oitava parte (Apocalipse 2011-2221) a Nova Jerusaleacutem
A histoacuteria da igreja aparece de forma ciacuteclica (recapitulatio) nas cinco primeiras
seccedilotildees do Apocalipse justamente aquelas em que Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura
seacutetupla Em cada uma delas ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma
histoacuteria que comeccedilaria na encarnaccedilatildeo de Cristo502 Aparentemente todas terminam no
descanso sabaacutetico um tempo de felicidade na terra Isso indica que a seacuterie de recapitulaccedilotildees
pode ter se restringido apenas agraves cinco primeiras partes do Expositio em funccedilatildeo da
perspectiva do abade de estar vivendo no tempo da sexta seccedilatildeo quando os eventos lhe satildeo
contemporacircneos ou estatildeo para acontecer em breve503
A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentaacuterios de Joaquim sobre
Apocalipse 11-322 (a seccedilatildeo das sete cartas para sete igrejas) Eacute a mais longa seccedilatildeo do
comentaacuterio Na estrutura geral eacute o primeiro tempo da Igreja a luta dos apoacutestolos contra a
sinagoga dos judeus Na histoacuteria da salvaccedilatildeo ela corresponde a sete geraccedilotildees com cada
500 Termo de origem hebraica (בת aparece na Vulgata como sabbatum (substantivo neutro de segunda (ש
declinaccedilatildeo) Seu significado eacute o seacutetimo dia da semana no calendaacuterio judaico ou o dia de descanso Cf LEWIS
Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p 1609 Ele retornaraacute de
forma recorrente no Expositio para descrever um periacuteodo de ldquodescansordquo para a Igreja de suas tribulaccedilotildees 501 COURT John M Approaching the Apocalypse a short history of Christian millenarianism New York I
B Tauris 2008 p 73 502 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 162 503 O abade entende o proacuteprio tempo como a hora da abertura do sexto selo e o iniacutecio do terceiro status Cf
MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 167
148
igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos A igreja de Eacutefeso apresenta a
ordem dos apoacutestolos em luta contra os inimigos judaizantes a de Esmirna descreve a ordem
dos maacutertires no confronto contra inimigos pagatildeos a de Peacutergamo simboliza a ordem dos
doutores e seus adversaacuterios arianos e sabelianos a de Tiatira aponta para a ordem dos virgens
em confronto contra os falsos contemplativos a de Sardes indica a ordem dos monges
cenobiacuteticos cujos inimigos eram monges hipoacutecritas a de Filadeacutelfia revela a ordem dos
eremitas e contemplativos numa luta contra falsos cristatildeos e falsos profetas a de Laodiceacuteia
por fim representa a ordem dos monges do terceiro status
Na seccedilatildeo das cartas o abade ainda apresenta o relacionamento entre Pedro e Joatildeo
questatildeo que ele retoma repetidas vezes no Expositio O primeiro eacute typos504 de Cristo e
representa a Ordem Ativa enquanto o segundo eacute typos do Espiacuterito Santo e representa a
Ordem Contemplativa Ao passo que Pedro deixou Jerusaleacutem para fundar a sede apostoacutelica
em Roma Joatildeo saiu da Judeacuteia e foi para a Aacutesia escrever o Apocalipse para as sete igrejas
Pedro morreu primeiro Joatildeo sobreviveu-lhe cerca de trecircs deacutecadas Isso indicaria que a Igreja
Contemplativa (de Joatildeo) vai ultrapassar historicamente a Igreja Ativa (de Pedro)
Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a seccedilatildeo dos selos
(Apocalipse 41-81) Na estrutura geral eacute o segundo tempo da Igreja quando os principais
personagens satildeo os maacutertires em luta contra os pagatildeos em um tempo que vai ateacute o momento
de paz da Igreja no tempo de Constantino e Silvestre Corresponde tambeacutem a sete tribulaccedilotildees
paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos Desta forma o abade desenvolveu um sistema
de duplo septenaacuterio um trata de eventos da histoacuteria de Israel e o outro aponta para a histoacuteria
da Igreja Durante todo o seu comentaacuterio os meacutetodos hermenecircuticos do abade permitem que
ele encontre vaacuterios significados para os mesmos personagens e eventos do Apocalipse
O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi imaginado por
Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho enquanto eacute perseguida pelos judeus
No Antigo Testamento significa o nascimento de Israel por meio do cativeiro egiacutepcio
A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo vermelho cujo
cavaleiro carrega uma espada mortal O cavalo simboliza a Roma pagatilde com seus sacerdotes
e exeacutercitos Na histoacuteria da Igreja este selo inaugura a perseguiccedilatildeo dos fieacuteis sob o antigo
Impeacuterio Romano Corresponde na histoacuteria dos judeus agrave conquista de Canaatilde que vai do
tempo dos juiacutezes ateacute o governo de Davi
504 Conferir a discussatildeo sobre tipologia no capiacutetulo anterior
149
O terceiro selo que descreve um homem com um par de balanccedilas eacute a heresia de
Aacuterio cujo clero aparece representado no cavaleiro que traz terror e escuridatildeo para a feacute cristatilde
O ser angelical que anuncia este selo representa a ordem de doutores que proclamou a
verdade e enfrentou os arianos Na histoacuteria do Antigo Testamento corresponde ao periacuteodo
de enfrentamento dos siacuterios
Na abertura do quarto selo um cavalo paacutelido aparece trazendo pragas e eacute seguido
pelo Hades Este representa a ameaccedila sarracena cujo cavaleiro eacute Maomeacute que persegue os
cristatildeos Durante este periacuteodo os monges e virgens tentaram sobreviver e manter a feacute cristatilde
Corresponde ao tempo da tribulaccedilatildeo de Israel sob os assiacuterios
Ao abrir o quinto selo o Apocalipse descreve um grupo de almas debaixo do altar
Nos quatro primeiros selos cristatildeos foram perseguidos e mortos na Judeacuteia Roma Greacutecia e
Araacutebia Esta quinta perseguiccedilatildeo vem da Mauritacircnia e Espanha onde sarracenos mataram
muitos cristatildeos Tambeacutem significa o sofrimento da Igreja romana em luta contra os
imperadores germacircnicos As roupas brancas significam que os maacutertires passaram do luto
para a alegria A expressatildeo ldquoateacute que seus irmatildeos sejam mortosrdquo indica para Joaquim que
ainda resta um conflito final que promoveraacute o martiacuterio de muitos cristatildeos
O sexto selo descreve cataclismos coacutesmicos Ele representa o dia do julgamento da
Babilocircnia cujo significado eacute ldquoquem quer que ataque a Igreja de Pedro moral ou
fisicamenterdquo505 especialmente os falsos cristatildeos ou falsos membros da Igreja romana O
abade espera perseguiccedilotildees para os fieacuteis com papel significativo na histoacuteria jaacute que por meio
delas a Igreja seraacute purificada de sua corrupccedilatildeo
Na abertura do seacutetimo selo um silecircncio se manifesta no ceacuteu Para Joaquim ele
representa o sabbatum de descanso no qual um silecircncio contemplativo seraacute trazido agrave
realidade Em comparaccedilatildeo na correspondente era do Antigo Testamento depois de Esdras
e Malaquias cessou a produccedilatildeo de Escritura Entatildeo sob o seacutetimo selo natildeo seraacute mais preciso
a pregaccedilatildeo
A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas do Apocalipse
(Apocalipse 82-1118) Na estrutura geral eacute o tempo terceiro quando a ordem dos doutores
digladia contra os hereges em particular os arianos Mas tambeacutem corresponde a sete fases
A trombeta de nuacutemero um eacute a fase dos Apoacutestolos principalmente Paulo pregando contra o
Judaiacutesmo e o legalismo O granizo misturado com fogo e sangue significa o espiacuterito de
505 ldquoQuicumque Petri ecclesiam moribus viribusque impugnantrdquo (117v) As traduccedilotildees do Expositio neste
capiacutetulo satildeo proacuteprias a natildeo ser que haja indicaccedilotildees em contraacuterio
150
escuridatildeo dos coraccedilotildees dos judeus Como resultado um terccedilo dos judeus convertidos
apostatou de volta para o Judaiacutesmo
A segunda trombeta significa os Maacutertires da era poacutes-apostoacutelica pregando contra a
heresia dos nicolaiacutetas Nicolau eacute a montanha que caiu no ldquomar dos gentiosrdquo Por causa dele
um terccedilo dos pagatildeos convertidos abandonou a feacute A terceira trombeta simboliza os doutores
do tempo de Constantino O meteoro que cai eacute Aacuterio cujo erro desabou sobre bispos e
sacerdotes e contaminou a aacutegua pura das escrituras A quarta trombeta tipifica os monges e
as virgens que como luminares celestiais caminhando em contemplaccedilatildeo iluminam o
mundo Seratildeo em larga medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos A quinta
trombeta descreve gafanhotos-escorpiotildees que representam os pathareni506 As arvores que
os gafanhotos destroem indicam a Igreja catoacutelica A couraccedila dos escorpiotildees aponta para o
coraccedilatildeo duro dos perfecti entre os pathareni Neste ponto de seu comentaacuterio o abade fala de
um homem que escapou de uma prisatildeo em Alexandria no ano anterior (1195) Joaquim o
encontrou em Messina e ouviu dele notiacutecias de uma alianccedila entre sarracenos e pathareni A
esta alianccedila outras naccedilotildees hostis se juntaratildeo como os turcos do Oriente os mouros e os
berberes do sul
Entre a sexta e a seacutetima trombeta o Apocalipse descreveu trecircs cenas distintas a
convocaccedilatildeo para que se coma um livro a descriccedilatildeo da medida do templo e a atuaccedilatildeo das
duas testemunhas martirizadas pela besta Na cena em que o livro eacute comido o abade
descreveu a ordem monaacutestica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne)
A cidade santa que aparece na mediccedilatildeo do templo significa a Igreja romana A Igreja grega
por ter se afastado da seacute apostoacutelica eacute a parte externa do templo que seraacute dada aos gentios
Aos olhos de Joaquim isso jaacute aconteceu em grande medida mas os gregos podem esperar
por novas desolaccedilotildees A rejeiccedilatildeo ao filioque era para o abade a maior prova de apostasia da
Igreja grega507 Sobre as duas testemunhas Joaquim as entende como Moiseacutes e Elias ou
duas ordens espirituais que viratildeo no poder destes antigos personagens biacuteblicos para pregar
contra o Anticristo Segundo o abade ldquoMoiseacutes foi um Levita e pastor do povo de Israel
506 Joaquim usa o termo pathareni para se referir ao movimento dissidente conhecido como ldquocatarismordquo Cf
POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 308 Especificamente sobre esta dissidecircncia
medieval cf AGUSTIacute David Los caacutetaros el desafio de los humildes Madrid Siacutelex Ediciones 2006 507 WHALEN Brett Edward Dominion of God Christendom and Apocalypse in the Middle Ages Cambridge
Harvard University Press 2009 p 111 O filioque era uma foacutermula latina de descriccedilatildeo do relacionamento entre
as pessoas da Trindade Ela afirma a dupla origem do Espiacuterito procedendo simultaneamente do Pai e do Filho
Sobre a importacircncia do filioque para o pensamento de Joaquim cf DANIEL Randolph E The double
procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiores Understanding of History Speculum Chicago v 55 n 3
p 469-483 1980
151
Elias foi um homem solitaacuterio que natildeo teve esposa ou filhos Logo um representa a ordem
dos cleacuterigos o outro a ordem dos mongesrdquo508 Finalmente surge a seacutetima trombeta Eacute tempo
do julgamento da besta e do falso profeta O Anticristo e os seus seguidores seratildeo
exterminados Comeccedilaraacute entatildeo a fase final da histoacuteria da Igreja ldquoo terceiro status do mundo
que seraacute um tempo de descanso e contemplaccedilatildeo Nele apoacutes o fim das pessoas corruptas da
terra reinaraacute o povo santo do Altiacutessimordquo509 Esta seccedilatildeo termina com uma longa descriccedilatildeo da
conversatildeo final dos gregos e judeus agrave Igreja latina
A quarta parte do Expositio (153r-174v) natildeo apresenta uma estrutura clara no
Apocalipse (Apocalipse 1119-1420) mas mesmo assim o abade optou pela divisatildeo em sete
distinccedilotildees (distinctiones) A seccedilatildeo comeccedila na abertura do santuaacuterio celestial mas tem como
foco a histoacuteria do Dragatildeo510 Eacute o quarto tempo da histoacuteria da Igreja no qual a ordem dos
monges e das virgens luta contra Maomeacute a quarta cabeccedila do Dragatildeo Igualmente
corresponde a sete fases
A primeira distinccedilatildeo apresenta o conflito entre a mulher vestida de sol e o Dragatildeo
Nesta primeira batalha os protagonistas foram Pedro e seus sucessores O inimigo por sua
vez agiu atraveacutes de Herodes e Nero A segunda distinccedilatildeo apresenta a guerra entre Miguel e
o Dragatildeo (Apocalipse 127-12) como siacutembolo da perseguiccedilatildeo pagatilde aos cristatildeos ateacute o tempo
de Constantino A terceira distinccedilatildeo descreve a fuga da mulher para o deserto que representa
a perseguiccedilatildeo agrave igreja atraveacutes das monarquias arianas Ela fugiraacute para uma vida de retiro e
contemplaccedilatildeo durante 42 meses ou 1260 dias
A quarta distinccedilatildeo comeccedila em Apocalipse 1217 com o levantamento das duas
bestas e vai ateacute 145 (o ajuntamento das 144000 testemunhas do Cordeiro) A besta
representa a perseguiccedilatildeo sarracena aos eremitas e virgens mas tambeacutem indica por meio de
suas cabeccedilas uma seacuterie de adversaacuterios histoacutericos da igreja As quatro primeiras cabeccedilas
respectivamente eram os judeus pagatildeos romanos arianos e sarracenos Esta cabeccedila
sarracena parecia ter morrido em funccedilatildeo da tomada de Jerusaleacutem da conquista normanda
na Siciacutelia e da expulsatildeo dos mouros na Espanha Para Joaquim entretanto ela voltou a
viver tatildeo terriacutevel quanto antes e a tomada de Jerusaleacutem seria uma demonstraccedilatildeo disso Eacute a
508 ldquoMoses fuit Levita et pastor Populi Israel Helyas vir solitarius no habens filios aut uxorem Ille ergo
significat ordinem clericorum iste ordinem monachorumrdquo (148v) Muito se especularaacute posteriormente na
recepccedilatildeo do pensamento joaquimita sobre a relaccedilatildeo entre as duas testemunhas de Apocalipse e as ordens de
Francisco e Domingos Cf REEVES Marjorie The influence of prophecy in the Later Middle Ages a study
in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 72-73 509 ldquoEt ad tertium statum mundi qui erit in sabbatum et quietem in quo exterminatis prius corruptoribus
terrae regnaturus est populus sanetorum Altissimirdquo (152v) 510 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 314
152
cabeccedila que parecia ter morrido mas reviveu para impressionar o mundo todo Joaquim
interpretou a segunda besta de Apocalipse como um falso-profeta que se levantaraacute do meio
da igreja conhecendo e falando como um cristatildeo Este faraacute alianccedila com a ldquocabeccedila sarracenardquo
da primeira besta Satildeo os pathareni ldquoa escoacuteria dos heregesrdquo (haereticorum fex) Os 144000
que aparecem em Apocalipse 14 satildeo para o abade os monges e virgens da igreja que se
opotildee agravequeles que tecircm a marca da besta
A quinta distinccedilatildeo cobre apenas dois versiacuteculos do Apocalipse (Apocalipse 146-7)
Eacute o anuacutencio do Evangelho Eterno e do juiacutezo511 Tambeacutem eacute o tempo da desolaccedilatildeo da
Babilocircnia A sexta distinccedilatildeo (Apocalipse 148-12) descreve o anuacutencio dos dois uacuteltimos anjos
no ceacuteu Eacute o tempo do advento da Besta e do falso-profeta No momento de descrever a seacutetima
distinccedilatildeo (Apocalipse 1413-20) a cena do Filho do Homem e a ceifa Joaquim anuncia a
idade sabaacutetica final quando os fieacuteis viveratildeo na terra com aqueles que sobreviverem agrave queda
do Anticristo
Potestagrave alerta que o Expositio eacute um comentaacuterio biacuteblico e natildeo um tratado escolaacutestico
Aleacutem do mais ele foi escrito no transcurso de quase vinte anos de trabalho Isso faz com que
ele comporte algumas contradiccedilotildees ou oscilaccedilotildees Nesta seacutetima distinccedilatildeo por exemplo o
descanso sabaacutetico parece ter a presenccedila de Cristo na terra com os santos Nas outras
referecircncias ao mesmo periacuteodo Cristo natildeo exerce um papel pessoal na transiccedilatildeo para a era
do Espiacuterito512
A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seccedilatildeo das sete taccedilas do Apocalipse
(Apocalipse 151-1617) Eacute o quinto tempo da Igreja indicando o confronto da Igreja
romana simbolizada pelo trono de Deus contra Babilocircnia Cada taccedila representa tambeacutem
sete destinataacuterios da ira divina A primeira taccedila da ira foi despejada sobre os judaizantes que
adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica A segunda sobre a igreja infiel
antes de Constantino A terceira sobre os bispos arianos e seus ensinos depois de
Constantino A quarta sobre os hipoacutecritas das ordens contemplativas A quinta sobre os
falsos cleacuterigos e monges A sexta sobre os perversos do mundo A seacutetima taccedila sobre os
proacuteprios eleitos na forma de uma perseguiccedilatildeo purificadora
511 A expressatildeo ldquoEvangelho Eternordquo estaacute na origem da condenaccedilatildeo imposta a algumas ideias de Joaquim em
Anagni no ano de 1255 em funccedilatildeo da atividade do franciscano Geraldo de Borgo san Donnino Cf
ROSSATTO Noeli Dutra et all Evangelho eterno a hermenecircutica condenada Filosofia Unisinos Satildeo
Leopoldo v 11 n 3 p 298-339 2010 512 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 317
153
A sexta parte do Expositio (191v-209v) natildeo apresenta mais a divisatildeo septenaacuteria Esta
seccedilatildeo do Apocalipse descreve a queda da Babilocircnia e o juiacutezo sobre as bestas (Apocalipse
1618-1921) Eacute o sexto tempo da histoacuteria e trata da luta dos viri spirituales primeiramente
contra o Dragatildeo depois contra a besta que veio do mar e a besta que veio da terra O abade
viu nesta longa passagem biacuteblica trecircs distinccedilotildees A primeira (Apocalipse 1618-1824)
descreve a queda da Babilocircnia e da besta que a sustenta Potestagrave destaca que um aspecto
marcante desta distinccedilatildeo estaacute no fato de Joaquim ter retirado o Impeacuterio Germacircnico da seacuterie
de inimigos finais da igreja No seu sermatildeo de 1184 (Apocalipsis liber ultimus) o Impeacuterio
seria o adversaacuterio que iria purificar a Igreja dos seus pecados O mesmo aparece no texto
Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno (1184) Mas no momento em que o
abade escreve a sexta parte do Expositio o Impeacuterio natildeo representa mais um inimigo a ser
temido A cidade que cairaacute agora natildeo representa Roma ou o Impeacuterio Germacircnico mas
Constantinopla e o Impeacuterio Bizantino Babilocircnia se torna siacutembolo para qualquer oposiccedilatildeo agrave
Igreja de Roma513
A segunda distinccedilatildeo (Apocalipse 191-10) apresenta a exultaccedilatildeo dos fieacuteis diante da
ruiacutena da Babilocircnia A terceira distinccedilatildeo (Apocalipse 1911-21) apresenta a derrota da besta
e do falso-profeta Ambos representam inimigos da igreja desde o tempo dos apoacutestolos Nos
termos de Joaquim satildeo as ldquonaccedilotildees increacutedulas que uma vez estiveram sujeitas ao Impeacuterio
Romano e entatildeo perseguem a Cristo e sua Igrejardquo514 Suas sete cabeccedilas sucessivas satildeo a)
Herodes e seus judeus no reino da Judeacuteia b) os pagatildeos do Impeacuterio Romano ateacute o tempo de
Diocleciano c) reino grego ariano d) reino godo ariano e) reino vacircndalo ariano f) reino
lombardo ariano g) o impeacuterio de Maomeacute O tempo da seacutetima cabeccedila eacute o tempo da desolaccedilatildeo
da Babilocircnia Esta terceira distinccedilatildeo descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo branco
Segundo o abade esse cavaleiro pode indicar a manifestaccedilatildeo de Cristo para destruir a besta
atraveacutes de sua volta pessoal ou o poder de Cristo operado por meio de outras figuras
Inicialmente ele se inclina para uma vinda pessoal Depois entretanto admite que isso pode
ser explicado pela accedilatildeo invisiacutevel de Cristo em sua Igreja militante
Finalmente as duas proacuteximas seccedilotildees do Expositio fecham o livro A parte seacutetima
(209v-215r) discute o milecircnio (Apocalipse 201-10) e a oitava (215r-224r) a Jerusaleacutem
513 Idem p 319-320 514 ldquoUniversas gentes infideles quae aliquando subjectae fuerunt Romano imperio et persecutae sunt Christum
et ecclesiam ejusrdquo (196r)
154
Celestial (Apocalipse 2011-2221) Esta uacuteltima corresponde ao oitavo aetas natildeo mais
dentro da histoacuteria mas no seculum futurum posterior ao uacuteltimo tempo da humanidade
73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio
A seacutetima seccedilatildeo do Expositio eacute a menor do comentaacuterio de Joaquim o que natildeo significa
status diminuiacutedo O episoacutedio do milecircnio de Apocalipse 201-10 foi transformado em uma
espeacutecie de aacutepice antes do cliacutemax O fim do mundo com o juiacutezo final e a esfera porvir
continuam no horizonte (a seccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem) do abade mas este fim aguardado para
a ldquoeternidaderdquo recebeu uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica na histoacuteria Como argumentou Potestagrave a
estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade ldquoa descoberta que
a primeira parte de Apocalipse 20 trata daquele grande saacutebado futuro no final do mundo515
Curiosamente se Joaquim procura com sua metodologia hermenecircutica ldquoinventarrdquo
muacuteltiplos sentidos nas outras seccedilotildees do comentaacuterio nesta ele eacute econocircmico em detalhes sobre
as figuras e os eventos Em outros lugares do Expositio como na anaacutelise das duas
testemunhas do capiacutetulo 11 de Apocalipse ele multiplica os significados por meio da
alegoria tipologia e concordia516 Ao interpretar os dez versiacuteculos do reino messiacircnico de
Joatildeo (Apocalipse 201-10) entretanto ele se contenta em fornecer um agraves vezes dois
sentidos mas ainda vagos e imprecisos Diferente de Papias que chega a descrever o
tamanho das uvas do reino milenar517 o abade de Fiore no final de sua vida entende que
alguns poucos aspectos espirituais jaacute seriam suficientes para alimentar a expectativa da
Igreja
Joaquim dividiu esta seacutetima seccedilatildeo do Expositio em quatro partes precedidas de uma
introduccedilatildeo
- Introduccedilatildeo 209v-210v
- Pars prima 210v-212r (comentaacuterio de Apocalipse 201-3)
- Pars secunda 212r-214v (comentaacuterio de Apocalipse 204)
515 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 299 516 Extrateacutegias hermenecircuticas apresentadas no capiacutetulo anterior 517 Conferir a citaccedilatildeo em DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1997 p 23 ldquoViratildeo dias em que as vinhas cresceratildeo em que cada uma teraacute dez mil
vides e em cada vide dez mil ramos e em cada ramo dez mil bototildees e em cada botatildeo dez mil cachos e em
cada cacho dez mil uvas e cada uva prensada daraacute vinte e cinco medidas de vinho E quando um dos santos
colher um cacho o outro lhe diraacute sou melhor colha-me e abenccediloa o Senhor atraveacutes de mimrdquo
155
- Pars tertia 214v (comentaacuterio de Apocalipse 205-6)
- Pars quarta 214v-215r (comentaacuterio de Apocalipse 207-10)
A introduccedilatildeo eacute aberta logo com a frase ldquoestatildeo completadas seis partes do livro de
Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de trabalho Vem agora a seacutetima parte na
qual vemos aquele saacutebado futuro no fim do mundo que em outro lugar chamamos de terceiro
statusrdquo518 Fica clara assim a relaccedilatildeo construiacuteda por Joaquim entre o milecircnio de Apocalipse
20 e um periacuteodo de paz na terra durante o fim do terceiro status da histoacuteria da humanidade
Ele completa ainda que se trata do ldquotertium statum sive etiam septimam mundi statemrdquo (do
terceiro status ou da seacutetima idade do mundo) Corresponde tambeacutem agrave seacutetima aetas da Igreja
que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do seu Expositio
Apoacutes estas frases de definiccedilatildeo ou mesmo de contextualizaccedilatildeo o abade recorre a
Agostinho e uma figura que ele chama de St Remigius Do primeiro ele toma a ideia de que
a expressatildeo ldquodia finalrdquo nas Escrituras natildeo precisa ser entendida como significando o uacuteltimo
momento do mundo podendo antes ser uma uacuteltima fase ou entatildeo o tempo do fim Por isso
os autores biacuteblicos poderiam dizer haacute mais de mil anos que ldquojaacute era a uacuteltima horardquo No
segundo ele busca apoio para a afirmaccedilatildeo de que haveraacute um certo tempo de duraccedilatildeo
indeterminada posterior agrave derrota do Anticristo Esse parece ser o motivo dele ter buscado
nesta figura de identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua
interpretaccedilatildeo Segundo Potestagrave provavelmente este Remigius foi um exegeta do seacuteculo XII
cuja obra foi atribuiacuteda a um certo Aimone de Halberstadt519
A ideia de um periacuteodo sabaacutetico na terra representa descontinuidade com a tradiccedilatildeo
exegeacutetica de Agostinho520 Joaquim estaacute ciente disso e gasta algumas linhas do seu
comentaacuterio para explicar que a expectativa da vinda agrave terra de uma seacutetima aetas na qual a
Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e reinaria sem perturbaccedilatildeo na plena possessatildeo da
ldquointeligecircncia espiritualrdquo natildeo eacute um erro mas uma maior compreensatildeo Segundo o abade eacute
uma ldquoopiniatildeo racional natildeo contraacuteria agrave feacuterdquo521
518 ldquoPeractis sex partibus libri Apocalypsis in quibus notata sunt sex tempora laboriosa Veniendum est
quandoque ad septimam partem im qua agitur de magno illo sabbato in fine mundi futuro quod vocari placluit
tertium statumrdquo (209v) 519 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 323 520 Segundo MC Ginn ldquoem nenhuma outra parte do seu longo comentaacuterio Joaquim mostra a ruptura com
setecentos anos de tradiccedilatildeo exegeacutetica latina como na descriccedilatildeo do reino milenar de Cristo e dos santos na terra
de Apocalipse 20rdquo Cf MCGINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 521 ldquoTamen esse potest rationabilis opinio que non sit contra fidemrdquo (210v)
156
Apoacutes isso ele usa boa parte da introduccedilatildeo para retomar aspectos que precederiam o
periacuteodo sabaacutetico o diabo lanccedilaraacute os sarracenos contra o impeacuterio cristatildeo apoacutes a queda da
Babilocircnia haveraacute um pequeno periacuteodo de tranquilidade para a Igreja entatildeo a besta que
parecia morta se ergueraacute novamente para uma segunda batalha contra os exeacutercitos de fieacuteis
o resultado seraacute a derrota da besta e do falso profeta e finalmente se seguiraacute uma grande
paz o descanso sabaacutetico
A partir de entatildeo ele analisa os versiacuteculos de Apocalipse 201-10 por meio da
estrateacutegia que jaacute utilizou no restante do comentaacuterio haacute uma transcriccedilatildeo de uma pequena
porccedilatildeo do texto na sua versatildeo latina522 seguido de comentaacuterios exegeacuteticos filoloacutegicos e
histoacutericos
A primeira parte da seccedilatildeo corresponde a Apocalipse 201-3 (a prisatildeo de Satanaacutes) Eacute
possiacutevel notar uma pequena diferenccedila entre o texto latino usado por Joaquim e a Vulgata
Clementina No versiacuteculo trecircs a Clementina usou o termo consummentur (seja concluiacutedo)
enquanto Joaquim transcreveu compleant (seja completado) De qualquer forma satildeo termos
intercambiaacuteveis sem grandes implicaccedilotildees textuais para a periacutecope
O abade comeccedila com a discussatildeo do significado da expressatildeo ldquomil anosrdquo O nuacutemero
natildeo eacute literal jaacute que ele significa um nuacutemero perfeito523 Isso indicaria que a duraccedilatildeo da prisatildeo
de Satanaacutes seria durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo Mesmo assim o abade aplica ao tempo
milenar dois significados secundum parte et secundum plenitudinem O primeiro teve um
cumprimento inicial (incipient) no tempo da ressureiccedilatildeo de Cristo Neste sentido o milecircnio
se estenderia daquela eacutepoca ateacute o fim do mundo durante todo o tempo da histoacuteria da Igreja
(ldquoad totum tempus ecdesierdquo) Mas seu perfeito e completo cumprimento seraacute no tempo
sabaacutetico (ldquoad sabbatumrdquo) depois da destruiccedilatildeo da besta
Nos seus termos o milecircnio do Apocalipse teria um cumprimento duplo
ldquoparcialmente a partir daquele saacutebado em que o Senhor descansou no sepulcro plenamente
apoacutes a destruiccedilatildeo da Besta e do Falso-profetardquo524 Eacute uma forma curiosa de afirmar a posiccedilatildeo
de Agostinho (milecircnio como o tempo de existecircncia histoacuterica da Igreja) para logo em seguida
522 Natildeo haacute marcaccedilatildeo de capiacutetulos ou versiacuteculos na versatildeo latina usada por Joaquim Ela difere levemente da
Vulgata Clementina usada nesta tese COLUNGA Alberto TURRADO Laurentio Biblia Sacra iuxta
Vulgatam Clementinam Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1965 523 ldquoMillenarius numerus perfectissimus estrdquo (210v) 524 ldquoSecundum partem incipit ab illo sabbato quo requievit Dominus in sepulchro secundum plenitudinem sui
a ruina Bestiae et Pseudo-Profhetaerdquo (211r)
157
abandonaacute-la em prol da retomada da antiga posiccedilatildeo quiliasta (milecircnio como um periacuteodo
futuro intra-histoacuterico)525
Para Joaquim o autor de ldquoConfessionesrdquo estava correto apenas parcialmente Como
ele o abade insiste em afirmar que o milecircnio natildeo seraacute literal Pode ser longo ou curto mas
sua ldquoduraccedilatildeo seraacute segundo o arbiacutetrio de Deusrdquo526 Talvez seja mesmo curto mas o tempo
esclareceraacute isto
Sobre a atuaccedilatildeo do Espiacuterito o abade afirma que ele manteraacute a chave da prisatildeo de
Satanaacutes Neste periacuteodo a terceira pessoa da Trindade atuaraacute sobre toda a terra natildeo apenas
sobre os fieacuteis mas tambeacutem sobre os pagatildeos Por isso ldquohaveraacute uma grande paz como nunca
antes desde o princiacutepio dos seacuteculosrdquo527
Ele volta a mencionar Agostinho que afirmara inicialmente uma opiniatildeo sobre o
milecircnio e depois mudou de ideia528 Seu argumento eacute que o bispo de Hipona soacute deixou a
perspectiva de um milecircnio histoacuterico por causa das expressotildees exageradamente ldquocarnaisrdquo dos
defensores do quiliasmo daquela eacutepoca Mas o fato de crer na vinda sobre a terra de uma
seacutetima aetas muito melhor que as anteriores natildeo constitui um erro mas eacute sim uma
ldquocompreensatildeo tranquilardquo529
No foacutelio 211r o abade fala do ldquoreinar do Espiacuterito Santordquo (ldquoregnare Spiritus divinusrdquo)
no que se constitui uma significativa alternativa ao ldquoreino de Cristordquo de Apocalipse 201-10
Haacute ainda uma insistecircncia de Joaquim em caracterizar este periacuteodo como um tempo de paz
ldquoGenuiacutena paz fruiraacute para a Igreja de Cristordquo530
A segunda parte da seacutetima seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 204-5a531 e
ocupa apenas uma coluna do foacutelio 212r Joaquim comeccedila indicando a relaccedilatildeo do texto de
Joatildeo com ldquoo povo santo do altiacutessimordquo descrito por Daniel ldquocujo reino eacute eternordquo532 O abade
entende que os ldquomille annirdquo destes versiacuteculos devem ser paralelos agrave prisatildeo de Satanaacutes ldquoO
525 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 324 MC GINN Bernard LrsquoAbate
Calabrese op cit p 169 526 ldquoCujus terminus erit in arbitrio Deirdquo (210b) 527 ldquoErit magna pax qualis non fuit aprincipio seculirdquo (210v) 528 ldquoVera fuit illo opinio immo non jam opiniordquo (211r) A citaccedilatildeo veio de De Civitate Dei 2071 Versatildeo
consultada SANTO AGOSTINHO A cidade de Deus Petroacutepolis Vozes 2012 2 v V 1 p 514 529 ldquoSerenissimus intellectusrdquo (211r) 530 ldquoVera pace frui poterit ecclesia Christirdquo (211r) 531 No texto joanino o bloco comeccedila com a menccedilatildeo dos tronos passa pela descriccedilatildeo dos maacutertires que
reviveram e termina na explicaccedilatildeo de que os demais natildeo reviveram ateacute o fim dos mil anos 532 ldquoCuius regnum sempiternum estrdquo (212r)
158
tempo do reino dos Santos seraacute interligado com o tempo da prisatildeo do Dragatildeordquo533 Seraacute um
tempo breve de duraccedilatildeo incerta no qual a Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e alcaccedilaraacute a
plena possessatildeo da ldquointelligentia spiritualisrdquo
A ressurreiccedilatildeo mencionada por Joatildeo eacute tambeacutem entendida como a prevista em Daniel
12 Jaacute os mortos que natildeo reviveram ateacute o final do milecircnio segundo Joaquim seratildeo os fieacuteis
que ressuscitaratildeo e entraratildeo direto na Nova Jerusaleacutem sem passar pelo julgamento do ldquotrono
brancordquo descrito a partir de Apocalipse 2011 Mas ele admite dificuldades neste ponto e
entende que eacute preciso esperar por novos esclarecimentos espirituais
A terceira parte da seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 205b-6 que natildeo passa
de uma declaraccedilatildeo do estado daqueles que participam da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo Eacute um bloco
muito pequeno soacute ocupando 19 linhas de uma coluna do foacutelio 214v A versatildeo latina citada
pelo abade declara ldquobeatus et sanctus qui habet partem in resurrectione primardquo (Exp Ap
214v) Percebe-se que Joaquim natildeo tem muito para falar sobre estes versiacuteculos do
Apocalipse Ele se contenta em afirmar que aqueles que experimentarem a ldquoprimeira
ressurreiccedilatildeordquo seratildeo realmente felizes (felicius viro) pois natildeo estaratildeo mais ao alcance da
morte
A quarta e uacuteltima seccedilatildeo da seacutetima parte do Expositio corresponde a Apocalipse 207-
10 (a volta de Satanaacutes e o confronto contra Gog e Magog) Joaquim recorre agrave passagem
paulina de 1Tessalonicenses 413 para descrever duas ressurreiccedilotildees Segundo o abade
alguns ressuscitaratildeo logo outros depois Tambeacutem vincula o texto de Joatildeo com uma profecia
de Ezequiel 38 ao descrever um conflito no final dos tempos A paz do periacuteodo sabaacutetico
seraacute interrompida quando Satanaacutes for solto do abismo e instaurar a tribulaccedilatildeo de Gog e
Magog que significa uma uacuteltima ameaccedila para os cristatildeos vinda dos confins do Oriente
talvez de povos que no passado longiacutenquo foram aprisionados por Alexandre o Grande Este
exeacutercito se levantaraacute contra a ldquocidade amada no fim dos seacuteculosrdquo534 mas seraacute logo destruiacutedo
Assim a besta e o falso-profeta foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine
sexte etatis) e Satanaacutes o seraacute no fim da seacutetima (in fine septime)
Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto e fala em muacuteltiplas
ldquoopinionesrdquo Por fim conclui com outra alusatildeo a Daniel no sentido de que quando for vista
533 ldquoIdem tempu intelligatur incarcerationis draconis et regni Santorumrdquo (212r) 534 ldquoCivitatem dilectam in consumatione seculirdquo (214v)
159
a ldquoabominaccedilatildeo da desolaccedilatildeordquo (ldquoabominationem desolationisrdquo) eacute porque ldquoestas coisasrdquo estatildeo
para se cumprir535
74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito
Segundo Bernard MCGinn Joaquim era um ldquoum convicto utopista no sentido de
que ele sentia ardentemente a iminecircncia da condiccedilatildeo ideal de vida sobre a terrardquo536 Sua
descriccedilatildeo desta eacutepoca futura parece realmente estar marcada pela ansiedade Ele desejava
ver o que naquele momento apenas podia imaginar e esperava estar vivo quando tudo
acontecesse jaacute que aguardava a manifestaccedilatildeo deste periacuteodo histoacuterico para breve Mas que
tipo de vida o abade esperava Quais seriam as tais ldquocondiccedilotildees ideaisrdquo de existecircncia humana
sobre a terra
Acima de tudo seria o reino do Espiacuterito (regnus Spiriti Divini) O Espiacuterito eacute a mais
frequente referecircncia de Joaquim para este periacuteodo Ele eacute o ldquoanjordquo que amarraraacute Satanaacutes por
ldquomil anosrdquo ou seja durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo de tempo Talvez por uma geraccedilatildeo (30
anos)537 Assim o ministeacuterio de Cristo a segunda pessoa da Trindade e o ministeacuterio do
Espiacuterito Santo a terceira pessoa durariam igualmente 30 anos Seraacute um periacuteodo curto mas
necessaacuterio agrave luz da revelaccedilatildeo trinitaacuteria agrave humanidade jaacute que o Pai se manifestou no primeiro
status e o Filho no segundo O terceiro status pertence ao Espiacuterito
Durante este tempo o Espiacuterito atuaraacute sobre toda a terra enchendo-a de paz Essa seraacute
sua principal caracteriacutestica Finalmente teraacute acabado a longa seacuterie de conflitos e perseguiccedilotildees
que marcou os dois povos de Deus (Israel e Igreja) desde o iniacutecio da histoacuteria Neste periacuteodo
ambos estaratildeo unidos (judeus e gentios) debaixo da plena posse da ldquointeligecircncia espiritualrdquo
para conhecer os segredos das Escrituras Joaquim fala de uma ldquocidade amadardquo no final da
seacutetima seccedilatildeo do Expositio o que pode ser uma indicaccedilatildeo de que Joaquim esperava que
535 Em Daniel 927 registra-se que algueacutem viraacute sobre ldquoas asas da abominaccedilatildeordquo A mesma imagem eacute usada em
Daniel 1131 e 1211 mas a referecircncia primaacuteria em termos histoacutericos e literaacuterios eacute mesmo Daniel 9 quando
o autor apocaliacuteptico descreve a profanaccedilatildeo do templo por Antiacuteoco Epiacutefanes A funccedilatildeo principal desta narrativa
apocaliacuteptica era garantir que o tempo de anguacutestia dos leitores estava para chegar ao fim e por isso o relato
anuncia uma iminente ldquogrande abominaccedilatildeordquo (referecircncia agrave profanaccedilatildeo do templo de Jerusaleacutem) mas garante
que quando isso acontecer a libertaccedilatildeo divina viraacute em seguida Cf COLLINS John J Daniel with in
introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 1984 p 93 536 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 537 Joaquim usa o termo ldquogeraccedilatildeordquo para descrever periacuteodos histoacutericos Uma geraccedilatildeo teria a duraccedilatildeo de trinta
anos Do nascimento de Jesus ateacute o descanso sabaacutetico 1260 anos 42 geraccedilotildees passaram Cf WEST
ZIMDARS-SWARTZ op cit p 32-35
160
Jerusaleacutem fosse o lugar desta reuniatildeo universal dos ldquopovos do altiacutessimordquo no final dos
tempos538 Assim se a graccedila de Deus se moveu do Oriente para o Ocidente no periacuteodo
sabaacutetico ela voltaraacute do Ocidente para o Oriente
Joaquim denomina o periacuteodo de sabbatum e abre a seacutetima seccedilatildeo do Expositio falando
dos seis ldquotemposrdquo anteriores (tempore laboriosa) Se o ocasiatildeo anterior foi de trabalho este
uacuteltimo tempo da histoacuteria seraacute de descanso Por isso eacute um ldquosaacutebadordquo expressatildeo que faz alusatildeo
agrave semana primordial de criaccedilatildeo das Escrituras hebraicas cuja narrativa descreve a divindade
criando o mundo em seis dias No seacutetimo entretanto descansou ldquode toda a sua obra que
tinha feito E abenccediloou Deus o dia seacutetimo e o santificou porque nele descansou de toda a
obra que como Criador fizerardquo (Gecircnesis 22-3) Esse relato dos primoacuterdios retorna vaacuterias
vezes nas narrativas biacuteblicas Em uma delas surge no coacutedigo legal judaico conhecido como
ldquodez mandamentosrdquo ldquoem seis dias fez o Senhor os ceacuteus e a terra o mar e tudo o que neles
haacute e ao seacutetimo dia descansou por isso o Senhor abenccediloou o dia de saacutebado e o santificourdquo
(Ecircxodo 2011) O texto da Vulgata assim traduziu uma das expressotildees ldquobenedixit Dominus
diei sabbatirdquo Tomando esta semana da criaccedilatildeo como uma das estruturas da histoacuteria da
humanidade o abade vinculou os tempos anteriores de trabalho com os seis primeiros dias
aguardando com muita ansiedade o ldquoseptimum mundi statemrdquo o saacutebado de descanso
espiritual539
Na seacutetima parte do Expositio a descriccedilatildeo deste saacutebado final permanece vaga em
muitos aspectos Joaquim fala de caracteriacutesticas como pax e spiritualis intellectus A
primeira eacute uma inversatildeo dos sucessivos conflitos que caracterizaram a histoacuteria da
humanidade A segunda aponta para um aperfeiccediloamento da sabedoria dos homens e
mulheres do final da histoacuteria que excederaacute a sabedoria dos livros e tornaraacute desnecessaacuteria a
pregaccedilatildeo Mas se desejamos uma caracterizaccedilatildeo mais abrangente precisamos recorrer a
outra fonte do pensamento do abade de Fiore
Joaquim transformou algumas de suas ideias em imagens e esquemas o que faz com
que uma forma de aproximaccedilatildeo ao saacutebado do Espiacuterito esteja no documento conhecido como
Liber Figurarum540 Esta obra sobreviveu como uma coletacircnea de figuras do abade Algumas
538 WHALEN op cit p 123 539 Idem p 106 540 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 169 Para uma anaacutelise ampla do Liber Figurarum cf
REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiore Genuine and spurious collections Medieval and
Renaissance Studies Los Angeles v 3 p 170-199 1954 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo
Gioachimita op cit p 99-106 Usamos a ediccedilatildeo encontrada em GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio
del mistero Le tavole del Liber Figurarum di Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi
Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000
161
destas aparecem no contexto dos livros autecircnticos Outras exclusivamente no Liber No
total satildeo 26 figuras resultado da ediccedilatildeo dos disciacutepulos de Joaquim que natildeo apenas
organizaram suas principais imagens mas tambeacutem desenharam outras seguindo de perto
suas ideias541 Para a professora Reeves estas imagens ldquosatildeo exposiccedilotildees do seu sistema de
pensamento natildeo meramente ilustraccedilotildees para seus textos Satildeo projetos independentes que
incorporam as diversas estruturas do pensamento de Joaquim eventualmente de forma mais
adequada do que palavras poderiam fazerrdquo542
Uma das figuras que mais claramente tratou do periacuteodo sabaacutetico foi a Dispositio novi
ordinis pertinens ad tertium statum (Liber Figurarum Tav XII)543 Eacute um diagrama da
sociedade do final dos tempos Percebe-se que o abade apresenta essa nova sociedade com
elementos de descontinuidade e continuidade em relaccedilatildeo ao tempo anterior A Igreja por
exemplo seraacute transformada mas natildeo necessariamente descontinuada
A nova sociedade foi desenhada na forma de uma cruz grega com suas partes
transformadas em oratoacuterios o que define o centro desta nova realidade humana como uma
grande instituiccedilatildeo religiosa generalizada e universal A figura eacute formada por um oratoacuterio
central cercada por outros quatro oratoacuterios que correspondem a diversos tipos de vida
monaacutestica tendo na parte inferior da figura dois outros oratoacuterios maiores em circunferecircncia
mas distantes dos oratoacuterios centrais Ou seja satildeo cinco oratoacuterios dedicados a tipos distintos
de monges (ordo monachorum) um para os cleacuterigos (ordo clericorum) e outro para os leigos
(ordo coniugatorum)
A imagem foi baseada na passagem de 1Coriacutentios 1212 quando Paulo descreve o
corpo com muitas partes que formam um soacute organismo quando estatildeo todas juntas Joaquim
combinou esta imagem com a visatildeo dos ldquoseres viventesrdquo de Apocalipse 4 um leatildeo um boi
um homem e uma aacuteguia Em seguida ele aplicou a estes seres os ldquocarismasrdquo de Efeacutesios 4
apoacutestolos profetas evangelistas e pastores-mestres O resultado dessa amaacutelgama eacute uma
comunidade que daacute unidade e plenitude ao ldquopovo do altiacutessimordquo na terra
Nesta comunidade religiosa perfeita do fim do mundo numa posiccedilatildeo correspondente
ao ldquonarizrdquo da sociedade estaacute o pater spiritualis que guia pelo exemplo e dedicaccedilatildeo Este
541 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 13-125 p 100 MC GINN Bernard
Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der Joachim of Fiore the
Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 103 542 REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiorehellip op cit p 199 543 Conferir esta imagem no anexo 4 retirada de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op
cit p 13 Para a anaacutelise da Dispositio cf MCGINN Bernard Apocalyptic Spirituality op cit p 111-112
TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 103-104
162
oratoacuterio eacute dedicado agrave ldquoMaria e a Santa Jerusaleacutemrdquo Ele eacute simbolizado pela pomba e funciona
como um conselho para o restante da sociedade Joaquim o denomina tambeacutem de ldquotrono de
Deusrdquo como em Apocalipse 4 O ldquopai espiritualrdquo e os demais membros deste oratoacuterio
seguem a ldquoregrardquo na pureza da forma No interior do oratoacuterio aparece a descriccedilatildeo ldquoEste local
seraacute a matildee de todos os locais Seraacute o pai espiritual que presidiraacute todos os lugaresrdquo544
Agrave esquerda do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPedro e de Todos os Santos
Apoacutestolosrdquo Esta parte representa a matildeo Eacute simbolizada pelo Leatildeo e funciona como uma
casa para pessoas idosas e doentes se recuperarem por meio do ldquoespiacuterito de fortalezardquo
Apesar da fragilidade dos seus membros eles ainda seguem a regra religiosa
Neste oratoacuterio vatildeo viver estes irmatildeos delicados e velhos que por
fraqueza de estocircmago natildeo podem suportar a austeridade da regra e do
jejum mas ainda assim como podem se esforccedilam para proceder de
acordo com a pureza da regra Eles natildeo seratildeo obrigados a sair para os
campos para fazer trabalhos manuais mas vatildeo executar seus trabalhos
em casa debaixo de cuidados Natildeo seraacute permitida a entrada neste oratoacuterio
por vontade proacutepria ou escolha mas apenas aqueles a quem ordenou o
abade545
Agrave direita do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPaulo e de todos os Doutores da
Igrejardquo Esta casa representa a ldquoorelhardquo e eacute simbolizada por um ldquohomemrdquo Funciona como
um centro de aprendizagem onde pessoas iratildeo estudar com a ajuda do ldquoespiacuterito de
inteligecircnciardquo ldquoNeste oratoacuterio vivem homens eruditos entretanto com desejo de aprender as
coisas de Deus e que desejam dedicar-se mais do que os outros para ler e estudar a doutrina
espiritualrdquo546
Acima do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoJoatildeo evangelista e dos Santos Virgensrdquo
Esta parte representa os ldquoolhosrdquo Eacute simbolizada pela aacuteguia e seu papel eacute a contemplaccedilatildeo
debaixo da completa clausura O ldquoespiacuterito de sabedoriardquo estaacute sobre aqueles que estatildeo nesta
casa Eacute aqui que os ldquoviri spiritualesrdquo viveratildeo vidas perfeitas atraveacutes do louvor e da
contemplaccedilatildeo Segundo a descriccedilatildeo na imagem ldquoneste oratoacuterio viveratildeo homens perfeitos e
virtuosos que inflamados pelo desejo de vida espiritual querem levar uma vida
contemplativardquo547 Eles ldquojejuam o tempo todo exceto por motivo de doenccedila Natildeo bebem
544 GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 13-14 545 Idem 546 Idem 547 Idem
163
vinho e nem comem alimentos temperado com oacuteleo exceto nos domingos e nos principais
dias festivosrdquo548
Abaixo do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoEstevatildeo e de todos os Santos
Martirizadosrdquo Ele eacute simbolizado pelo ldquoboirdquo e representa a ldquobocardquo da comunidade Por meio
do ldquoespiacuterito de ciecircnciardquo estes membros seratildeo preparados e treinados em grande disciplina
espiritual Neste oratoacuterio ldquovivem os irmatildeos que tecircm forccedila para a atividade exterior e natildeo
podem progredir na disciplina espiritual como apropriadordquo Esta descriccedilatildeo jaacute indica um
decliacutenio de status em relaccedilatildeo aos membros dos oratoacuterios superiores e seus representantes de
alto ideal de vida religiosa
Na parte inferior da figura haacute ainda outros dois oratoacuterios que consomem um grande
espaccedilo da imagem Haacute um intervalo maior entre eles e a parte superior da Dispositio mas
ainda haacute uma ligaccedilatildeo como aparece no registro ldquoentre o mosteiro e a sede do clero deve
existir uma distacircncia de quase trecircs milhasrdquo Elemento semelhante seraacute repetido para o espaccedilo
que separa as duas casas de baixo
O oratoacuterio do clero eacute chamado de ldquoJoatildeo Batista e dos Profetasrdquo Eacute uma casa larga e
representa os ldquopeacutesrdquo da comunidade Eacute simbolizada por um ldquocachorrordquo Por meio do ldquoespiacuterito
de devoccedilatildeordquo sacerdotes e cleacuterigos vivem em continecircncia e comunidade sob a abstinecircncia
de alguns tipos de alimento e de roupa festiva
Entre o oratoacuterio do clero e o mais inferior que forma a base surge novamente a
menccedilatildeo do espaccedilo de separaccedilatildeo entre os edifiacutecios tema que aponta para um distanciamento
natildeo apenas espacial entre os personagens de cada um mas tambeacutem de poder funccedilatildeo e papel
ldquoentre estes dois oratoacuterios deve existir um espaccedilo de cerca de trecircs estaacutediosrdquo549
Na parte inferior da figura estaacute o oratoacuterio de ldquoAbraatildeo e dos Patriarcasrdquo representado
por uma ovelha cuja funccedilatildeo eacute servir de casa para pessoas casadas e seus filhos sob o ldquotemor
pela salvaccedilatildeordquo Estes viveratildeo em casas privadas mas suas vidas seguiratildeo as ordens do pater
spiritualis e seus supervisores Eles trabalharatildeo regularmente daratildeo o diacutezimo e viveratildeo uma
vida nivelada sem distinccedilatildeo de classes e com bens materiais em comum A imagem ainda
registra ldquoSob o nome deste oratoacuterio estaratildeo reunidos os cocircnjuges com seus filhos e filhas
em forma comunitaacuteria para ter relaccedilotildees com as esposas mais para produzir descendentes
do que para satisfazer os desejosrdquo550
548 Idem 549 Idem 550 Idem
164
Por meio da Dispositio surge a descriccedilatildeo de uma realidade social fortemente
estruturada com espaccedilos geograacuteficos marcados por status funccedilatildeo e dinacircmica religiosa e
social Joaquim recorreu ao texto de Efeacutesios 43 para falar da metaacutefora do corpo de Cristo
com oacutergatildeos diferentes Usou tambeacutem Joatildeo 142 para trazer a imagem das vaacuterias casas
divinas Por meio destas metaacuteforas ele compocircs a imagem de sete ldquocasas espirituaisrdquo nas
quais leigos diferentes niacuteveis de monges cleacuterigos e sacerdotes habitaratildeo551 Estas sete casas
satildeo ordenadas como se fossem a futura Jerusaleacutem transcendental de Apocalipse 22 Natildeo eacute
ainda aquela mas uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica de suas qualidades Esta comunidade
monaacutestica se manifestaraacute no periacuteodo sabaacutetico em ldquosemelhanccedila agrave Jerusaleacutem Celesterdquo552
A Dispositio conteacutem o plano de um monasteacuterio perfeito no qual a vida contemplativa
desempenha o papel central da existecircncia humana553 Apesar do predomiacutenio da ordo
monachorum haveraacute tambeacutem possivelmente sob os influxos da espiritualidade
cisterciense554 espaccedilo para trabalho e estudo Daiacute a existecircncia dos leigos para trabalhar dos
cleacuterigos para ministrar os sacramentos aos leigos e do ldquooratoacuterio do boirdquo formado por
monges que teratildeo contato com cleacuterigos
Mesmo se recusando a definir Joaquim como milenarista em funccedilatildeo de uma definiccedilatildeo
estreita do fenocircmeno555 o francecircs Jean Delumeau descreve longamente o sistema do calabrecircs
na segunda obra de sua trilogia dedicada ao estudo do paraiacuteso556 No momento de resumir a
natureza do repouso sabaacutetico o historiador francecircs recorreu a diversas expressotildees do abade
e forneceu esta siacutentese que dificilmente poderia deixar de ser definida como milenarista
Depois do tempo da ldquolei e da ldquograccedilardquo viraacute portanto o da ldquomaior graccedilardquo
durante o qual a natureza se transformaraacute e se embelezaraacute A liberdade
espiritual floresceraacute no mundo Entatildeo ldquonatildeo haveraacute mais sofrimentos e
gemidos Reinaratildeo ao contraacuterio o repouso a calma a abundacircncia da pazrdquo
Seremos voltados agrave contemplaccedilatildeo ao louvor ldquoDanccedilaremos de alegria ao
contemplar os admiraacuteveis desiacutegnios de Deusrdquo Natildeo haveraacute mais
necessidade de escrever livros para explicar as Escrituras A preacutedica se
deteraacute O tempo da letra teraacute terminado Os fieis contemplaratildeo os misteacuterios
551 Idem 552 Idem 553 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 25 554 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango v
1 p 217-240 2004 p 229 555 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias
Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria
mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 556 A trilogia de Delumeau eacute formada pelas seguintes obras DELUMEAU Jean Une histoire du paradis Le
Jardin des deacutelices Fayard Hachette Litteacuteratures 2002 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma
histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 DELUMEAU Jean O que sobrou do paraiacuteso
Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003
165
em plena luz O Evangelho segundo a letra seraacute substituiacutedo pelo
ldquoEvangelho eternordquo que procede do Evangelho de Cristo A verdade nos
seraacute dada em sua simplicidade557
O saacutebado do Espiacuterito descrito por Joaquim eacute sim um tipo de milenarismo uma
forma de utopia social558 que espera por um periacuteodo de felicidade para toda a humanidade
mesmo que afirme alguns benefiacutecios especiais para um grupo dentro dela Este periacuteodo seraacute
terreno e natildeo numa realidade transcendental eacute iminente pois a transformaccedilatildeo estaacute proacutexima
de comeccedilar seraacute miraculosa jaacute que as mudanccedilas aconteceratildeo por meio da atuaccedilatildeo
sobrenatural do Espiacuterito divino Tal felicidade seraacute total com a inversatildeo dos males da terra
mas natildeo com a destruiccedilatildeo de todas as instituiccedilotildees anteriores A Igreja sobreviveraacute
completamente transformada e sob a direccedilatildeo de um novo tipo de papado o ldquouniversalis
scilicet pontifex nove Ierusalemrdquo (certamente o pontiacutefice universal da nova Jerusaleacutem) ou
ldquopapa angelicusrdquo559
75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito560
O historiador inglecircs Norman Cohn no momento de apresentar Joaquim de Fiore
como o ldquoinventorrdquo do sistema profeacutetico ldquomais influente de todos os conhecidos na Europa
ateacute ao aparecimento do marxismordquo argumenta que a origem do seu sistema estaacute na
conjugaccedilatildeo de ldquoescatologias derivadas do Apocalipse e dos Oraacuteculos Sibilinosrdquo561 Ao
discutir o conceito de milenarismo na Idade Meacutedia o medievalista Robert Lerner argumenta
557 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 45 As aspas pertencem ao texto citado 558 Assim se expressou Cohn ldquoPor mais respeito que Joaquim tivesse agraves doutrinas exigecircncias e interesses da
Igreja o que ele propusera era na verdade um novo tipo de milenarismo ndash e aliaacutes um tipo que as geraccedilotildees
futuras haveriam de elaborar num sentido antieclesiaacutestico e depois num sentido abertamente secularrdquo Cf
COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia
Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 90 559 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard
K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-
88 p 85 560 Em alguns momentos a busca pelas fontes dos textos eacute uma tarefa ingloacuteria Os autores natildeo informam seus
pontos de partida e o maacuteximo que encontramos satildeo alusotildees mais ou menos transparentes Aleacutem dos topoi
disponiacuteveis para dada conjuntura histoacuterica o que sobra eacute um conjunto de hipoacuteteses com graus diferentes de
plausibilidade Conferir a argumentaccedilatildeo neste sentido em FLANAGAN Sabina Twelfth-Century apocalyptic
imaginations and the coming of the Antichrist The Journal of Religious History v 24 n 1 p 57-69 2000 p
59 561 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 89 O viacutenculo que Cohn fez entre Joaquim e Sibila natildeo
faz muito sentido As sibilas como a Tiburtina eram bem conhecidas no periacuteodo de Joaquim mas
manifestavam um tipo de milenarismo distinto Elas esperavam por um periacuteodo de paz na terra antes do
Anticristo normalmente dirigido por um imperador do final dos tempos ou por um papa poderoso
166
de forma parecida afastando ainda mais o abade do livro joanino e aproximando-o natildeo
necessariamente das Sibilas sugeridas por Cohn mas do poacutes-milenarismo da Glossa
Ordinaria562
Ambos sugerem por caminhos diferentes que o milenarismo de Joaquim de Fiore
natildeo depende inicialmente ou mesmo diretamente do milenarismo de Joatildeo de Patmos
Algumas evidecircncias poderiam reforccedilar as hipoacuteteses destes historiadores O sermatildeo
conhecido como Locuturi aliquid563 escrito por Joaquim em algum momento no iniacutecio da
deacutecada de 1180 em suas uacuteltimas linhas apoacutes descrever o que seria a sexta parte do
Apocalipse termina de forma lacocircnica ldquoEntatildeo viraacute o saacutebado apoacutes a ressurreiccedilatildeo pelo juiacutezo
e finalmente seraacute revelada a gloacuteria da cidade celestialrdquo564 No iniacutecio do sermatildeo ele jaacute
anunciara que o livro de Joatildeo ldquoestaacute dividido e limitado em sete partes e temposrdquo565 Este
texto tambeacutem indica que o abade jaacute tinha consolidada uma perspectiva sobre a estrutura das
seis primeiras partes do Apocalipse elemento que natildeo sofreria mudanccedila ateacute a conclusatildeo do
Expositio quase duas deacutecadas depois A sexta parte encerraria com a derrota da besta e o
falso profeta no final de Apocalipse 19 A seacutetima entatildeo iria de Apocalipse 20 ateacute o capiacutetulo
22 Como jaacute indicamos neste mesmo capiacutetulo Joaquim explicita nas partes iniciais do seu
grande comentaacuterio que ele planejava fazer uma obra de sete partes Se ele mudou para oito
em algum momento do processo foi justamente para dar destaque aos dez versiacuteculos do
texto milenar (a uacutenica mudanccedila significativa na estrutura) destaque que antes ele natildeo dava
A estrutura final do Expositio assim indica como o abade acentuou significativamente o
papel de Apocalipse 201-10 no conjunto da obra ao relacionaacute-lo com o terceiro status e a
seacutetima aetas do mundo
Tanto no Liber de Concordia quanto no Psalterium o abade jaacute apresentou o
desenvolvimento da histoacuteria humana na direccedilatildeo de um cliacutemax de beatitude Talvez uma das
passagens mais claras neste sentido esteja na Concordia
562 LERNER Robert E Millennialism In MC GINN Bernard (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism
Apocalypticism in Western History and Culture New York Continuum 1998 3v V 2 p 326-360 p 346
As Sibilas aludidas por Cohn como a Tiburtina e a Glossa Ordinaria manifestam tipos diferentes de
milenarismos O preacute-milenarismo da Tiburtina descreve um periacuteodo de felicidade na terra anterior ao advento
do Anticristo A Glossa Ordinaria apresenta um poacutes-milenarismo com o periacuteodo de felicidade para depois da
derrota do Anticristo Em ambos os fenocircmenos a parousia (segundo advento de Jesus) natildeo exerce papel na
instauraccedilatildeo da felicidade 563 Sobre este sermatildeo conferir o capiacutetulo IV supra 564 ldquoEt tunc erit sabbatum deinde resurectio ad iudicium et tunc revelabitur gloria civitates supernerdquo Texto
latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 p
130-131 565 ldquoSeptem partibus distinctus et temporibus terminaturrdquo Texto latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino
da Fiore op cit p 130-131
167
Os misteacuterios das divinas paacuteginas mostram-nos enfim os Trecircs Estados do
mundo O primeiro eacute aquele no qual estivemos sob a lei o segundo no qual
estamos sob a graccedila o terceiro que esperamos iminente sob uma graccedila
ampliada [] Por isso o primeiro Estado foi na ciecircncia o segundo na posse
da sabedoria o terceiro na plenitude do sentido O primeiro na servidatildeo
servil o segundo na servidatildeo filial o terceiro na liberdade O primeiro nos
flagelos o segundo na accedilatildeo o terceiro na contemplaccedilatildeo O primeiro no
temor o segundo na feacute o terceiro na caridade O primeiro eacute dos servos o
segundo eacute dos filhos o terceiro eacute dos amigos O primeiro eacute dos velhos o
segundo eacute dos jovens o terceiro das crianccedilas O primeiro na luz da estrela
o segundo na aurora o terceiro ao meio-dia O primeiro no inverno o
segundo na primavera o terceiro no veratildeo O primeiro produz urtigas o
segundo rosas o terceiro liacuterios O primeiro ervas o segundo espigas o
terceiro trigo O primeiro a aacutegua o segundo o vinho o terceiro o oacuteleo O
primeiro pertence agrave Setuageacutegima o segundo agrave Quaresma o terceiro agrave festa
pascal O primeiro Estado pertence ao Pai que eacute criador de todas as coisas
o segundo ao Filho que se dignou assumir nosso limite o terceiro ao
Espiacuterito Santo do qual diz o apoacutestolo Onde se achar o Espiacuterito do Senhor
aiacute estaacute a liberdade (Liber de Concordia 112r)566
O sistema acima apresentado relaciona cada status da histoacuteria da humanidade com
uma pessoa divina explicitando pelo acuacutemulo de imagens e analogias que o segundo
ultrapassou o primeiro e o terceiro ultrapassaraacute o segundo Para o abade a Era do Espiacuterito
seria muito melhor do que as duas anteriores o que significa que a humanidade poderia
esperar por um tempo de esplendor para o futuro sob a tutela do Espiacuterito divino
Sem chamar-se historiador o abade de Fiore se dedicava nos termos de Adeline
Rucquoi agrave ldquoanaacutelise da economia do tempordquo567 A forma como Joaquim entendia a histoacuteria
(preteritae rei) o levou a vaticinar o futuro em uma perspectiva de progresso e de evoluccedilatildeo
loacutegica Para o abade a histoacuteria era uma constante que se desdobrava de forma contiacutenua Se
ele compreende o passado ele pode prever o futuro Neste sentido eacute uacutetil ter uma perspectiva
de siacutentese dos sistemas histoacutericos do abade e verificar a forma como eles demandavam o
periacuteodo sabaacutetico
O editor do Liber de Concordie568 Randolph Daniel professor da Universidade de
Kentucky ao explicar a reflexatildeo histoacuterica de Joaquim o faz por meio daquilo que ele chamou
566 Esta longa citaccedilatildeo estaacute no Livro V capiacutetulo 84 ainda sem ediccedilatildeo criacutetica A traduccedilatildeo em questatildeo eacute de
BAUCHWITZ Oscar Federico A histoacuteria em Joaquim de Fiore Princiacutepios revista de filosofia Natal v 1
n 1 p 109-130 1994 p 110 567 A historiadora Adeline Rucquoi destaca que o seacuteculo XII foi um periacuteodo significativo para a reflexatildeo da
histoacuteria quando filoacutesofos e teoacutelogos se debruccedilaram a buscar uma ratio preterita rei ou o sentido do tempo
Aleacutem de Joaquim ela menciona Hugo de Satildeo Vitor Oton de Freising Anselmo de Havelberg e Petrus
Comestor Cf RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 223-224 568 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti
Philadelphia The American Philosophical Society 1983 O autor sintetiza os sistemas histoacutericos de Joaquim
168
de ldquoinflexotildees do pensamentordquo que aparecem nas poucas notas auto-biograacuteficas que o abade
deixou em suas obras569 A primeira se deu em algum momento durante a peregrinaccedilatildeo agrave
Palestina e deveria jaacute ser o conteuacutedo principal de suas pregaccedilotildees depois que ele retornou
para a Calaacutebria e atuava como pregador itinerante em Rende no iniacutecio da deacutecada de 1170
entremente o pontificado de Alexandre III (papa de 1159-1181)
Este sistema foi chamado por Joaquim de concordia duorum testamentorum ou os
paralelos entre as perseguiccedilotildees de Israel e as perseguiccedilotildees da Igreja Eacute uma maneira de
dividir a histoacuteria em duas grandes etapas Uma se chamava Antigo Testamento e se estendia
da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus A outra era o Novo Testamento e iria do nascimento
de Jesus ateacute o final dos tempos A histoacuteria da humanidade eacute o palco da atuaccedilatildeo de Deus para
salvar seus povos O primeiro era Israel O segundo a Igreja Neste esquema a histoacuteria
avanccedila por meio de tribulaccedilotildees e perseguiccedilotildees que se repetem paralelamente nos dois
testamentos e nos dois povos
As tensotildees poliacuteticas entre o papado e Impeacuterio Germacircnico estavam particularmente
altas depois de deacutecadas de conflito entre o papa Alexandre III (papa de 1159-1181) e o
Imperador Frederico I Barbarorroxa (1122-1190) Este ambiente parece estar traduzido no
alinhamento que Joaquim fez entre as ldquoperseguiccedilotildeesrdquo dos judeus na eacutepoca do Antigo
Testamento com as batalhas contra a Igreja no tempo do Novo Testamento
Joaquim aplicou esta estrutura de perseguiccedilotildees aos sete selos do Apocalipse e a
abordou repetidamente em vaacuterias de suas obras desde Genealogia570 ateacute De Septem
Sigillis571 embora os detalhes mudem de texto para texto Posteriormente este esquema de
dois tempos foi definido pelo abade de secunda diffinitio e o simbolizou pela letra grega
cursiva ocircmega572 Os Testamentos assim satildeo expressotildees tanto canocircnicas quanto histoacutericas
Se toda a histoacuteria de Israel da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus pode ser encontrada no
primeiro testamento Joaquim espera que a histoacuteria completa da Igreja desde sua origem ateacute
o final dos tempos esteja contida no segundo testamento especialmente no Apocalipse de
Joatildeo Mesmo neste esquema de dois tempos ainda haacute um momento sabaacutetico A seacuterie de sete
perseguiccedilotildees de Israel e da Igreja terminam ambas em um periacuteodo de descanso No caso de
em DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of
History Speculum Chicago v 55 n 3 p 469-483 1980 569 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xiii-xviii 570 Genealogia eacute provavelmente a obra mais antiga de Joaquim escrita segundo Potestagrave em 1176 Cf
POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 16 571 Possivelmente de 1198 Cf TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I Sigilli dellrsquoApocalisse In
GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 45 572 Conferir o esquema na posiccedilatildeo inferior esquerda do anexo 6
169
Israel o descanso veio apoacutes os conflitos com os gregos representados por Antiacuteoco Epiacutefanes
e se estendeu ateacute o nascimento de Jesus De maneira paralela apoacutes a seacutetima perseguiccedilatildeo pelo
Anticristo viraacute um descanso para a Igreja O princiacutepio fundamental eacute uma divisatildeo da histoacuteria
em duas partes cada uma delas marcada por perseguiccedilatildeo julgamento e batalha do povo de
Deus No futuro que Joaquim imaginava ser iminente a terceira pessoa da Trindade iria
libertar completamente os cristatildeos fieacuteis do sofrimento e das tribulaccedilotildees que caracterizaram
a histoacuteria desde os tempos de Israel ateacute os dias do abade Os conflitos entre os poderes
temporais e eclesiaacutesticos terminariam de vez jaacute que o periacuteodo sabaacutetico seria caracterizado
principalmente pela paz
A segunda inflexatildeo se deu no fim de 1183 ou iniacutecio de 1184 enquanto Joaquim
esteve em Casamari para tratar de aspectos burocraacuteticos para Corazzo Ali desenvolveu seu
mais conhecido sistema de tria statum em que a Trindade se relaciona com a histoacuteria
imprimindo nela a natureza das pessoas divinas Pai Filho e Espiacuterito573 Este uacuteltimo por sua
vez seria responsaacutevel por implantar uma era de perfeiccedilatildeo espiritual na terra Estes status
eram marcados ainda por initiatio frutificatio e consumatio Ou seja eles apresentavam
um iniacutecio um momento em que frutificam de maneira especial e uma fase de teacutermino No
caso da Era do Pai esta comeccedilou com Adatildeo frutificou em Abraatildeo e terminou em Cristo O
segundo status comeccedilou com Uzias frutificou em Zacarias (pai de Joatildeo Batista) e terminaria
algum tempo depois de Joaquim O terceiro status comeccedilou com Satildeo Bento de Nuacutersia
frutificaria na geraccedilatildeo de Joaquim e terminaria no fim da histoacuteria574 Joaquim aplicou este
esquema trinitaacuterio agrave progressatildeo da vida religiosa na histoacuteria No status do Pai predominavam
os casados no status do Filho predominavam os cleacuterigos no status do Espiacuterito
predominariam os monges Aplicou tambeacutem em trecircs povos a proteccedilatildeo de Deus deixou
Israel passou para os gregos e terminou nos latinos Esta divisatildeo em trecircs status foi definida
pelo abade como prima diffinitio representada simbolicamente pela letra grega uncial
Alfa575 Nesta estrutura a histoacuteria tem uma meta que soacute seraacute alcanccedilada no status do Espiacuterito
apoacutes o fim do segundo status quando se manifestar o descanso sabaacutetico A prima diffinitio
mais ateacute do que a secunda manifesta toda a ansiedade do abade pela perfeiccedilatildeo da vida
monaacutestica e talvez reflita a crise que acabaraacute levando-o a deixar Corazzo e fundar a Ordem
Florense
573 Conferir o diagrama dos Ciacuterculos Trinitaacuterios do anexo 6 574 WHALEN Brett Edward Dominion of God op cit 107 575 Conferir o esquema na posiccedilatildeo superior esquerda do anexo 6
170
O primeiro tempus coincide com o primeiro status O segundo tempus com o segundo
status ateacute a eacutepoca de Joaquim Apesar do saacutebado do segundo tempus natildeo ser tratado de forma
tatildeo proeminente quanto o saacutebado do terceiro status em ambas as diffinitiones a plena
realizaccedilatildeo estaacute no futuro Nas duas haacute uma evoluccedilatildeo de instituiccedilotildees e de qualidade de vida576
Finalmente apoacutes retornar para Corazzo cerca de um ano apoacutes a passagem por
Casamari Joaquim deu mais um passo na consolidaccedilatildeo dos seus sistemas histoacutericos Ele
finalmente conseguiu relacionar a concordia duorum testamentorum e a intervenccedilatildeo divina
por meio dos tria statum atraveacutes da estrutura geral do Apocalipse A obra de Joatildeo assim se
tornou aos olhos do abade a chave para a compreensatildeo inteira da histoacuteria da humanidade
Aleacutem dos sistemas histoacutericos do abade a historiografia tem sugerido outra base
significativa para o saacutebado do Espiacuterito desta vez por meio dos recursos exegeacuteticos do abade
Os leitores ocidentais do Apocalipse de Joatildeo desde as criacuteticas ao quiliasmo de Agostinho
de Hipona Jerocircnimo e Gregoacuterio Magno liam o Apocalipse de forma moralizante e
alegoacuterica sem viacutenculos expliacutecitos com a histoacuteria O milecircnio dos maacutertires de Apocalipse 20
era interpretado de forma a descrever o tempo da Igreja na terra577 Estes autores imaginavam
a histoacuteria caminhando na direccedilatildeo de vaacuterios desastres sendo o penuacuteltimo o advento do
Anticristo Ele instauraria uma grande perseguiccedilatildeo agrave Igreja depois do qual Cristo viria de
forma gloriosa para o uacuteltimo julgamento e a consumaccedilatildeo da histoacuteria do mundo578
Uma ideia surgiu entretanto entre os antigos comentaristas de Daniel Ao comentar
Daniel 1211-12 por volta do ano 400 Jerocircnimo argumentou que o tempo da tribulaccedilatildeo
(1290 dias) e do fim do mundo (1335 dias) tinha um prazo residual de 45 dias Este mecircs e
meio seria entatildeo o intervalo entre a derrota do Anticristo e o julgamento final da humanidade
Beda o Veneraacutevel no iniacutecio do seacuteculo VIII concordou com Jerocircnimo e acrescentou que
este intervalo tambeacutem poderia ser encontrado nos trinta minutos de silecircncio no ceacuteu apoacutes a
576 DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of
History op cit p 482 577 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 29-31 Segundo Desroche esta ldquoconcepccedilatildeo
alcanccedilou posiccedilatildeo hegemocircnica mas nunca deixou de ser sitiada por fileiras de dissidecircncias oriundas das trecircs
grandes confissotildees cristatildes (catolicismo protestantismo ortodoxia)rdquo Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de
messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 22
Por isso Umberto Eco fala de um ldquomillenarismus absconditusrdquo neste periacuteodo de hostilidade contra o quiliasmo
Cf ECO Umberto Wainting for the Millennium In LANDES Richard GOW Andrew VAN METER
David C (ed) The apocalyptic year 1000 religious expectation and social change ndash 950-1050 Oxford Oxford
University Press 2003 p 121-135 p 125 578 FLANAGAN op cit p 59 Flanagan acrescenta que o que variava bastante era a sequecircncia dos eventos
finais o tempo entre cada um deles bem como a perspectiva de iminecircncia
171
abertura do seacutetimo selo do Apocalipse O exegeta do seacuteculo IX Haimo de Auxerre
argumentou ainda que o periacuteodo em questatildeo natildeo precisava ser qualificado de forma precisa
jaacute que era apenas um prazo miacutenimo Estes autores natildeo estavam certos sobre os motivos para
este prazo579 ateacute que a Glossa Ordinaria no iniacutecio do seacuteculo XII em uma de suas notas
sugeriu que o tempo posterior ao advento do Anticristo e anterior agrave volta de Cristo
denominado entatildeo de refrigerium sactorum (descanso dos santos) seria uma fase de
felicidade prosperidade e paz na terra Alguns autores especialmente do mesmo periacuteodo
ampliaram ainda mais este novo conceito como Honorius Augustodunesis (1080-1156) que
argumentou que ele seria o tempo da conversatildeo de todos os pagatildeos ou Otto de Freising
(114-1158) que previu nele o ingresso dos judeus agrave Igreja Levando em conta esta corrente
exegeacutetica Robert Lerner levantou a hipoacutetese que o milenarismo do Espiacuterito de Joaquim
deveria ser entendido como uma expressatildeo exegeacutetica modificada da ldquotradiccedilatildeo do refrigeacuterio
dos santosrdquo580 Eacute possiacutevel concordar parcialmente com Lerner ao indicar uma fonte
plausiacutevel para a escatologia do abade mas natildeo de forma isolada Os sistemas histoacutericos dele
jaacute demandavam a expectativa de um futuro melhor
De qualquer forma o que se percebe eacute que o descanso sabaacutetico que Joaquim
descreveu na passagem de Apocalipse 201-10 teve pontos de partida bem mais amplos do
que o texto joanino O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim parece ser o resultado de sua reflexatildeo
histoacuterica e da tradiccedilatildeo exegeacutetica do refrigeacuterio dos santos Assim nos momentos finais do
Expositio ao fazer a exegese de Apocalipse 20 o abade aplica no milecircnio de Joatildeo as ideias
que jaacute trazia consolidadas que apoacutes a queda do Anticristo e antes da volta de Jesus haveria
na terra natildeo necessariamente um reinado dos maacutertires mas o descanso da Igreja e acima de
tudo o refrigeacuterio dos monges sob a direccedilatildeo final da terceira pessoa da Trindade
76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia
Segundo Sabina Flanagan explicaccedilotildees histoacutericas para as opccedilotildees dos autores podem
ter relaccedilatildeo entre outros fatores com crenccedilas e restriccedilotildees dogmaacuteticas religiosas com
engajamentos poliacuteticos e viacutenculos sociais ou com confrontos contra dissidecircncias581 Essa eacute
579 LERNER Robert E Millennialism op cit p 344 TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I
Sigilli dellrsquoApocalisse op cit p 34 580 LERNER Robert E Millennialism op cit p 347 581 FLANAGAN op cit p 64
172
uma forma de dizer que as representaccedilotildees que se materializaram nas praacuteticas e discursos de
Joaquim configuram respostas a conjunturas poliacuteticas sociais culturais e eclesiaacutesticas que
caracterizavam o Ocidente medieval582
Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai Mauro um notaacuterio a
serviccedilo da chancelaria normanda Inicialmente estes passos foram dados sem sobressaltos
comeccedilando na Calaacutebria e se deslocando em seguida para a corte do Reino da Siciacutelia em
Palermo Ele nasceu em 1135 um pouco depois da fundaccedilatildeo do Reino por Rogeacuterio II e
abandonou a carreira na corte em 1167 um ano depois da morte do rei William I Estas
primeiras deacutecadas de vida e o treinamento recebido para o trabalho na corte devem ter lhe
capacitado para o relacionamento com as diversas populaccedilotildees e etnias do reino Um notaacuterio
especialmente em Palermo deveria ter conhecimento do grego e do aacuterabe para promover
seus registros583 Estas qualidades possivelmente estiveram envolvidas em sua raacutepida
ascensatildeo no monasteacuterio de Corazzo e nas negociaccedilotildees com os poderes eclesiaacutesticos e
temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore
Essa proximidade com a cultura aacuterabe da Siciacutelia ou os contatos proacuteximos que ele
possa ter tido na corte de Palermo entretanto natildeo produziram nele uma perspectiva positiva
quanto ao Islatilde Mesmo que natildeo haja em suas obras nada parecido com as convocaccedilotildees de
Satildeo Bernardo para uma guerra santa584 os muccedilulmanos satildeo descritos recorrentemente pelo
calabrecircs como agentes do diabo para perseguir a Igreja
Ele ingressou numa comunidade religiosa no iniacutecio do governo de William II no
comeccedilo da deacutecada de 1170 Quando este rei morreu em 1189 Joaquim jaacute havia passado por
Casamari comeccedilado a produccedilatildeo de suas grandes obras e tinha jaacute uma definiccedilatildeo das duas
deffinitio que ele usava para refletir a histoacuteria Aqueles foram tempos de muita instabilidade
Depois de quatro governantes de origem normanda (Rogeacuterio I Rogeacuterio II William I e
William II) o reino finalmente passou para as matildeos dos Hohenstaufen apoacutes o governo de
transiccedilatildeo do conde Tancredo Os encontros do abade com o imperador Henrique ou com a
rainha Constacircncia resultaram natildeo apenas em benefiacutecios materiais para Joaquim e seus
irmatildeos de Fiore mas tambeacutem no fim do viacutenculo entre a Babilocircnia e os imperadores
germacircnicos que se manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrecircs Com isso
582 WHALEN op cit p 115 583 Para os aspectos culturais e sociais do Reino da Siciacutelia conferir o capiacutetulo V 584 Cf AacuteLVAREZ PALENZUELA Vicente Aacutengel El Cister y las Oacuterdenes Militares em el impulso hacia
Oriente Cuardernos de Historia Medieval Madrid v 1 p 3-19 1998 p 8
173
na parte final do Expositio o Impeacuterio deixou de ser o grande adversaacuterio da Igreja no final
dos tempos
Joaquim viveu num periacuteodo de mudanccedilas profundas na sociedade medieval585 O
Impeacuterio Bizantino perdera muito do seu poder por causa das derrotas contra os turcos
muccedilulmanos as Igrejas Latina e Grega estavam em processo de consolidar a separaccedilatildeo a
exuberante monarquia normanda instalada na Siciacutelia e no sul da Itaacutelia chegava ao fim o
poder islacircmico na Peniacutensula Ibeacuterica encolhia novas formas de espiritualidade surgiam
quando antigas enfraqueciam Tudo isso pode estar subjacente agrave sua ansiedade pela
transformaccedilatildeo da realidade por meio do descanso sabaacutetico do Espiacuterito Entretanto talvez o
fator mais preponderante esteja no ldquomovimento reformadorrdquo gerado no interior da Igreja
romana586
A perspectiva de que as coisas natildeo eram como deveriam ser de que a Igreja dos
proacuteprios tempos havia se afastado dos propoacutesitos pregados pelos primeiros apoacutestolos e pelo
proacuteprio fundador principalmente na questatildeo da simplicidade de vida acabou dando origem
a partir do seacuteculo XI a movimentos de reforma em diversos setores da sociedade Ocidental
e em diferentes espaccedilos eclesiaacutesticos Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do
clero entendido como corrompido e refletir sobre o papel da Igreja na sociedade em relaccedilatildeo
principalmente com as estruturas dos poderes temporais A professora Andreacuteia Frazatildeo ao
analisar os projetos subjacentes aos conciacutelios lateranenses listou algumas destas
perspectivas reformistas como as implementadas por poderes seculares (monarquias
caroliacutengias ou imperadores germacircnicos por exemplo) as promovidas por movimentos
monaacutesticos (Cluny Gorze Metz etc) as de iniciativa ldquopopularrdquo (como o movimento
patarino) e a fomentada pelos bispos de Roma eventualmente denominada de Reforma
Gregoriana Este uacuteltimo movimento partindo da Cuacuteria Papal procurou impor Roma ldquocomo
centro poliacutetico religioso e administrativo da Igreja ocidental [] e como o principal poder
de caraacuteter universal no Ocidente ao qual todos os demais deveriam se subordinar inclusive
o imperialrdquo 587
A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em funccedilatildeo do papa Gregoacuterio VII (papa
de 1073-1085) que em diversos momentos apelou para o senso de iminecircncia do advento do
585 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 221 586 WHALEN op cit p 102 587 SILVA Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da A luta entre o Regnum et Imperium e a Construccedilatildeo da Ecclesia
Universalis uma anaacutelise comparativa dos Conciacutelios Lateranenses (1123-1215) In SILVA Francisco Carlos
Teixeira CABRAL Ricardo Pereira MUNHOZ Sidnei J (coords) Impeacuterios na Histoacuteria Rio de Janeiro
Elsevier 2009 p 95-105 p 97-98
174
Anticristo para dar legitimidade aos seus apelos reformadores Em uma de suas cartas ele
explica a oposiccedilatildeo como sinal do fim do mundo ldquoE natildeo fiquem admirados Pois quanto mais
perto o dia do Anticristo se manifestar mais ele luta para esmagar a feacute cristatilderdquo588 Este papa
na linha agostiniana evitou fazer prediccedilotildees sobre o fim do mundo mas reiteradamente
manifestou a convicccedilatildeo de que ele deveria estar perto em funccedilatildeo da manifestaccedilatildeo das
heresias e da corrupccedilatildeo da Igreja Neste tipo de visatildeo de histoacuteria os eventos finais deveriam
validar os esforccedilos para buscar pureza moral e ordem correta na instituiccedilatildeo eclesiaacutestica
Mudanccedilas no cenaacuterio poliacutetico recebiam um lugar no cenaacuterio do fim do mundo conflitos de
muacuteltiplas naturezas eram legitimados pela perspectiva do juiacutezo final de forma que a maioria
das crenccedilas apocaliacutepticas medievais passaram a ser instrumentos de retoacuterica religiosa
poliacutetica e social agrave serviccedilo de papas cleacuterigos imperadores reis e seus apologistas
Eacute certo que o senso de fim de mundo ou as representaccedilotildees escatoloacutegicas natildeo
conseguem explicar totalmente as praacuteticas dos movimentos reformadores De qualquer
forma esta relaccedilatildeo entre reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore
conectada com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos monaacutesticos
tradicionais para toda a sociedade (christianitas)589 Mas o abade acabou ultrapassando o
modelo gregoriano e mesmo o imperial em funccedilatildeo de sua ecircnfase numa nova forma de
ecclesia totalmente monasticisada com o foco no futuro O arqueacutetipo deixou de ser a era
apostoacutelica (no passado) mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro)
Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este fenocircmeno de
ldquoapocalipcismo reformadorrdquo um tipo de perspectiva apocaliacuteptica medieval que tinha como
preocupaccedilatildeo primaacuteria a reforma clerical590 Estes autores criam em uma era porvir de
desenvolvimento espiritual na qual os cleacuterigos apoacutes serem ldquopurificadosrdquo pelas tribulaccedilotildees
do final dos tempos se recuperariam de uma forma nunca vista antes Alguns focavam na
reforma de tipo tradicional com sua ecircnfase no retorno ao modelo apostoacutelico de pureza e
simplicidade outros como Joaquim insistiam que a era porvir era o zecircnite da histoacuteria
resultado de um longo processo evolutivo
588 Citado por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform 1100-1500 In MC GINN Bernard
(ed) The Encyclopedia of Apocalypticism Apocalypticism in Western History and Culture New York
Continuum 1998 3v V 2 p 74-109 p 76 589 Este modelo gregoriano buscou expandir-se para a sociedade inteira por meio da divulgaccedilatildeo do ideal da
ldquoIgreja dos tempos apostoacutelicosrdquo Cf MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 78 590 KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge
University Press 1990 p 9 MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 74-109
175
Kathryn resumiu entatildeo as marcas do apocalipticismo reformador um desejo urgente
por reforma preocupaccedilatildeo acentuada com o futuro da Igreja tentativa de entender o presente
agrave luz de esquemas escatoloacutegicos tradicionais preocupaccedilatildeo com o papel de uma ordem
religiosa particular no drama do final dos tempos ou no futuro da igreja um senso de crise
de lideranccedila eclesiaacutestica e temporal uma ansiedade por levar o clero aos princiacutepios
disciplinares dos fundadores do monasticismo ou agrave igreja dos primoacuterdios com ecircnfase
especial na pobreza e na simplicidade de vida tendecircncia conservadora em termos religiosos
e sociais591
Estes reformadores estavam continuamente avaliando as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas de
seus dias e projetavam para ela um periacuteodo dourado de vitalidade espiritual Este tipo de
expectativa eventualmente demandava accedilatildeo e sugeria que indiviacuteduos e instituiccedilotildees poderiam
participar (apropinquare) na viabilizaccedilatildeo do futuro ou pelo menos na definiccedilatildeo de quais
pessoas poderiam participar deste futuro idealizado Eacute uma espeacutecie de descriccedilatildeo de um
futuro ldquodouradordquo para confrontar o presente ldquopoluiacutedordquo
Em termos concretos tanto os movimentos reformadores quanto os apocalipcismos
medievais tiveram seus proacuteprios fatores de surgimento mas alguns destes podem ter
promovido o encontro das duas expectativas Primeiramente o desenvolvimento dos
movimentos hereacuteticos com frequecircncia o resultado de programas reformistas frustrados com
constantes criacuteticas ao clero e a corrupccedilatildeo da Igreja A persistecircncia destes grupos poderia
produzir a sensaccedilatildeo de que as heresias eram consequecircncia do pecado da Igreja e que para
acabar com elas era preciso se purificar Produzia tambeacutem a retoacuterica apocaliacuteptica por parte
das autoridades que constantemente recorriam agraves figuras negativas do final do tempo para
vinculaacute-las com as heresias Um segundo fator poderia estar nas cruzadas que acentuaram a
sensaccedilatildeo de que o cristianismo estava sob constante ameaccedila de povos pagatildeos Finalmente e
talvez o mais significativo os efeitos da controveacutersia das investiduras e o conflito entre
Igreja e poder temporal A persistecircncia dos conflitos com os imperadores germacircnicos pode
ter promovido o surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada de
conflitos histoacutericos desde os seus primoacuterdios A Igreja passa a ser vista como uma
comunidade sagrada que sofre perseguiccedilatildeo intermitente592 O discurso apocaliacuteptico se tornou
uma tentativa de dar sentido aos constantes embates contra os poderes temporais Eacute neste
591 KERBY-FULTON op cit p 9 592 RIEDL Matthias Joachim of Fiore as political thinker In WANNENMACHER Julia Eva Joachim of
Fiore and the influence of inspiration essays in memory of Marjorie Reeves (1905-2003) London Routledge
2013 p 90-116 p 94
176
sentido que os imperadores frequentemente satildeo estigmatizados com retoacuterica apocaliacuteptica
dando ao papado por seu lado um papel acentuado no drama do final dos tempos593
Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de forma milenarista
McGinn cita como exemplo a perspectiva do franciscano Roger Bacon (1214-1294) que
acreditava numa reforma realizada por meio do surgimento de um papa angelicus e de um
imperador ungido que juntos purificariam a Igreja antes do surgimento do Anticristo594 Em
Joaquim entretanto o fenocircmeno foi conjugado com o milenarismo nos moldes do antigo
quiliasmo cristatildeo e manifestou as noccedilotildees de que uma unidade cristatilde idealizada seria
alcanccedilada atraveacutes da transformaccedilatildeo da ecclesia a graccedila de Deus deixou a Igreja grega e
transitou para a Igreja latina595 o Anticristo do final dos tempos iria se manifestar a qualquer
momento para perseguir a Igreja por meio dos sarracenos e dos hereges Quando isso
acontecesse ldquojudeus gregos pagatildeos e talvez mesmo os sarracenos seriam levados agrave
salvaccedilatildeo atraveacutes de homens espirituais da Igreja latina reunidos sob a direccedilatildeo de uma igreja
romana transformadardquo596
77 Resumo
Este capiacutetulo analisou a seacutetima seccedilatildeo do Expositio in Apocalypsim e relacionou-a
com as perspectivas milenaristas de Joaquim presentes em outros lugares de sua obra Nela
Joaquim rompe com a tradiccedilatildeo agostiniana que identificou o milecircnio joanino com a histoacuteria
da Igreja e propotildee em seu lugar um periacuteodo de felicidade na terra para toda a humanidade
sob a direccedilatildeo do Espiacuterito Santo O abade esperava algum tipo de continuidade entre o
presente e o futuro mas com a transformaccedilatildeo de suas instituiccedilotildees sociais especialmente da
Igreja Este periacuteodo de descanso e contemplaccedilatildeo natildeo teve como ponto de partida entretanto
diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim as as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a
tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que esperava uma fase histoacuterica de felicidade na terra
593 KERBY-FULTON op cit p 8 594 Citato por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 81 595 Haacute neste caso aquilo que Whalen chamou de ldquopropoacutesito geograacuteficordquo divino que levou a graccedila de Deus a se
mover do Oriente para o Ocidente e no saacutebado do Espiacuterito retornar para o Oriente Cf WHALEN op cit p
121 596 WHALEN op cit p 123 Joaquim abraccedila o ideal do ldquoservo sofredorrdquo de Isaiacuteas 53 e a espera de uma
grande conversatildeo dos povos no final dos tempos que demanda mais pregaccedilatildeo e menos conflito Nos seus
termos ldquopraedicando magis quam proeliandordquo (Expositio in Apocalypsim 164v) Cf TAGLIAPIETRA
Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 54
177
anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica deste tipo de milenarismo pode estar relacionada
com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica
CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO
DOS MONGES
A tiacutetulo de recapitulaccedilatildeo cabe reafirmar nossos principais argumentos apresentados
e sustentados no decorrer deste trabalho O Apocalipse foi produzido pelo profeta Joatildeo de
Patmos na forma de um instrumento retoacuterico de caraacuteter milenarista cuja funccedilatildeo atendia a
determinadas percepccedilotildees de crise social que seu autor manifestava e que entendendo-se
como convocado divinamente para atuar entre as igrejas da proviacutencia da Aacutesia desejava levaacute-
las ao rompimento sectaacuterio com a sociedade romana Joatildeo se recusava a viver ldquoneste mundordquo
e esperava pela inauguraccedilatildeo de um ldquooutro mundordquo no tempo do milecircnio A visatildeo de histoacuteria
que aparece subjacente agrave sua narrativa religiosa se constitui em uma criacutetica agraves representaccedilotildees
sociais romanas encontradas na proviacutencia asiaacutetica
O Apocalipse foi lido como texto sagrado por Joaquim de Fiore e como base para a
construccedilatildeo de sua filosofia da histoacuteria Por meio do seu comentaacuterio da obra joanina o abade
construiu a expectativa de superaccedilatildeo do tempo presente em uma eacutepoca de ouro dirigida pela
terceira pessoa da Trindade o Espiacuterito Santo As representaccedilotildees milenaristas do calabrecircs
entretanto natildeo partiram diretamente do milecircnio joanino jaacute que dependem mais da tradiccedilatildeo
do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo e de sua reflexatildeo histoacuterico-trinitaacuteria
Convergecircncias e divergecircncias
O Apocalipse foi produzido no final do seacuteculo I na Ilha de Patmos O Expositio por
sua vez surgiu nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XII na Itaacutelia597 O judeu Joatildeo rejeitava a
Peniacutensula Itaacutelica pois nela ficava a capital do Impeacuterio que destruiu sua estimada Jerusaleacutem
Em sua obra o profeta exilado se alonga na imaginaccedilatildeo de como Roma seria devorada pelo
fogo 1100 anos depois um italiano da Calaacutebria se ldquoencantardquo pelo texto de Joatildeo e resolve
gastar os uacuteltimos anos de sua vida para divulgaacute-lo Ao produzir seu escrito Joaquim
transcreveu integralmente o material joanino (na sua traduccedilatildeo latina) fazendo do Expositio
efetivamente uma coacutepia comentada do Apocalipse Haacute aqui um viacutenculo formal entre os dois
textos Mas isso natildeo esclarece totalmente os relacionamentos as recepccedilotildees as adaptaccedilotildees
597 Conferir esta relaccedilatildeo geograacutefica no anexo 4
179
as mutilaccedilotildees as invenccedilotildees os horizontes de leitura criados pela natureza diacrocircnica de tal
viacutenculo Por isso ainda eacute preciso promover anaacutelises comparativas que pressuponham os dois
objetos (apocalipse e comentaacuterio) como fenocircmenos distintos em funccedilatildeo de suas proacuteprias
conjunturas condiccedilotildees de emergecircncia e pontos de partida
Segundo Juumlrgen Kocka comparaccedilatildeo eacute a discussatildeo de ldquodois ou mais fenocircmenos
histoacutericos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenccedilas de modo a se
alcanccedilar determinados objetivos intelectuaisrdquo598 Eacute o que faremos nesta conclusatildeo com
ecircnfase nas diferenccedilas e especificidades599 para assim descrever explicar e interpretar
elementos especiacuteficos de cada um dos objetos de comparaccedilatildeo600 Tomando uma expressatildeo
irocircnica de Kocka e Haupt mesmo que natildeo pudeacutessemos comparar ldquomaccedilatildes e laranjasrdquo (como
um apocalipse e um comentaacuterio biacuteblico) ainda assim poderiacuteamos apontar as peculiaridades
de cada objeto e seus usos particulares601
Para efeitos de comparaccedilatildeo pressupomos as discussotildees dos capiacutetulos anteriores
quando analisamos separadamente os aspectos formais de Apocalipse 201-10 e seu
respectivo comentaacuterio exegeacutetico na seacutetima parte do Expositio contextualizamos cada
unidade de comparaccedilatildeo apontando suas respectivas condiccedilotildees de produccedilatildeo analisamos o
conteuacutedo recortado de cada texto explicitando as representaccedilotildees milenaristas os pontos de
partida e os fatores de emergecircncia No caso especiacutefico de Joaquim ainda discutimos suas
formas de leitura e posturas hermenecircuticas
O que comparamos Eacute o tipo de milenarismo que se objetiva em cada texto Para
tanto analisamos os pontos de contato as convergecircncias e divergecircncias e as compreensotildees
de tais aspectos agrave luz de seus respectivos contextos Usamos como fio norteador para a
anaacutelise comparativa a definiccedilatildeo de milenarismo anteriormente pressuposta e agora
desdobrada602
598 KOCKA Juumlrgen Comparison and beyond History and theory Middletown n 42 p 39-44 2003 p 39 599 Conferir uma siacutentese de modelos de observaccedilatildeo comparada em BARROS Joseacute DacuteAssunccedilatildeo Histoacuteria
comparada um novo modo de ver e fazer a histoacuteria Revista de Histoacuteria Comparada Rio de Janeiro v 1 n
1 p 1-30 2007 p 18-21 600 KOCKA Juumlrgen HAUPT Heinz-Gerhard Comparison and Beyond traditions scope and perspectives of
Comparative History In HAUPT Heins-Gerhard KOCKA Juumlrgen (orgs) Comparative and Transnational
History Central European approaches and new perspectives Oxford Berghahn Books 2009 p 1-30 p 2 601 HAUPT Heinz-Gerhard KOCKA Juumlrgen Comparative History Methods Aims Problems In COHEN
Deborah OrsquoCONNOR Maura Comparison and History Europe in cross-national perspective London
Routledge 2004 p 23-39 p 27 602 Para tanto contamos com as contribuiccedilotildees principalmente da socioacuteloga israelense Yonina Talmon e do
historiador americano Richard Landes Cf TALMON Yonina Millenarism In SILLS David L (ed)
International Encyclopedia of the Social Sciences London The Macmillan Company amp The Free Press 1968
19 v V X p 349-362 LANDES Richard A Millennialism in the Western World In LANDES Richard A
(ed) Encyclopedia of millennialism and millennial movements New York Routledge 2000 p 453-466
180
Por uma definiccedilatildeo de milenarismo
No iniacutecio desta tese anunciamos a definiccedilatildeo de milenarismo do historiador inglecircs
Norman Cohn que entendeu-o como um tipo particular de utopia salvacionista coletiva jaacute
que todos os fieacuteis experimentariam a felicidade terrena jaacute que essa felicidade seria
alcanccedilada na terra e natildeo em uma realidade transcendente total pois aguarda uma completa
inversatildeo dos males da terra iminente pois a transformaccedilatildeo completa estaria perto de
comeccedilar e miraculosa jaacute que a redenccedilatildeo contaria com a ajuda de poderes sobrenaturais603
Alguns autores entretanto como Jean Delumeau optam por uma noccedilatildeo reducionista
do fenocircmeno ldquono cristianismo deve-se chamar de milenarismo a crenccedila num reino terrestre
de Cristo e de seus eleitos ndash reino este que deve durar mil anos entendidos seja literalmente
seja simbolicamenterdquo604 A definiccedilatildeo de Delumeau parece entender por milenarismo apenas
os fenocircmenos que replicam o milecircnio de Apocalipse 20 Isso o leva agrave curiosa sugestatildeo de
que Joaquim de Fiore a quem ele dedicou quase cinquenta paacuteginas do seu livro sobre
ldquomilenarismordquo natildeo poderia ser chamado de milenarista605 Diante de tal posicionamento eacute
preciso lembrar do argumento de Paula Fredriksen ldquoa ideia de um periacuteodo de mil anos
implicada por este termo eacute menos essencial para o seu sentido que o seu foco sobre a terra
a histoacuteria humana como a uacuteltima arena da redenccedilatildeordquo606
No campo oposto ao de Delumeau Kathryn Kerby-Fulton opta por uma definiccedilatildeo
abrangente demais ldquoRefere-se agrave crenccedila num futuro de becircnccedilatildeos na terra antes do fim da
LANDES Richard A Heaven on Earth the varieties of the millennial experience Oxford Oxford Universit
Press 2011 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time In NEWPORT
Kenneth G C GRIBBEN Crawford (eds) Expecting the End millennialism in social and historical context
Waco Baylor University Press 2006 p 1-23 603 Cf COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade
Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 Pesquisadores deste tema continuam partindo das definiccedilotildees
de Cohn mesmo que sua obra sobre os milenaristas revolucionaacuterios da Idade Meacutedia jaacute tenha quase 50 anos
Por exemplo cf CLARKE Peter The origins scope and spread of the millenarian idea In LIEB Michael
MASON Emma Roberts Johathan (edss) The Oxford Handbook of the Reception History of the Bible
Oxford Oxford University Press 2011 p 235-242 604 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras
1997 p 17-18 Tambeacutem minimiza o milenarismo de Joaquim SARANYANA Josep Ignasi Sobre El
milenarismo de Joaquiacuten de Fiore Uma lectura retrospectiva Teologia y Vida Santiago v XLIV p 221-232
2003 605 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias
Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria
mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 606 FREDRIKSEN Paula Tyconius and Augustine on the Apocalypse In EMMERSON Richard K
MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 20-
37 p 20
181
histoacuteriardquo607 Ou entatildeo John Gager ldquoum movimento que espera uma nova ordem de realidade
em um futuro proacuteximordquo608 Diante de tal formulaccedilatildeo tanto o que espera a redenccedilatildeo de forma
iminente quanto aquele que a projetou para milhares de anos agrave frente satildeo tomados como
milenaristas Por isso o proacuteprio Gager refina sua definiccedilatildeo argumentando que a espera
indefinida pelo reino milenar natildeo seria propriamente milenarista Afinal os sacerdotes reais
persas que lanccedilaram o ldquotornar maravilhosordquo de Zaratrusta para sete mil anos agrave frente natildeo
poderiam ser chamados propriamente de milenaristas609 O caraacuteter iminente da crenccedila
milenarista manifesta uma rejeiccedilatildeo da presente ordem social Quando o fim da ordem
presente eacute lanccedilado para um futuro longiacutenquo e indeterminado o resultado eacute a legitimaccedilatildeo
do mundo cotidiano Nos termos de John Collins ldquojulgamento adiado providencia confianccedila
no presenterdquo610
Retomando a definiccedilatildeo de milenarismo o termo tem origem no vocaacutebulo latino
ldquomillerdquo usado para traduzir a palavra grega ldquordquo de Apocalipse 201-10 Ele ganhou um
sentido lato entretanto no campo dos estudos sociais passando a indicar uma determinada
expectativa de movimentos ou grupos611 Cohn como jaacute indicamos anteriormente descreveu
o fenocircmeno como uma ldquoutopiardquo Mas ele eacute propriamente uma reflexatildeo sobre o tempo uma
filosofia da histoacuteria um sistema de representaccedilotildees graacutevido de praacuteticas que se manifestam
em grupos comunidades cultos e movimentos Podemos falar destes entatildeo como cultos
seitas ou movimentos milenaristas Figura significativa entre estas representaccedilotildees e praacuteticas
eacute o profeta milenarista que se torna o seu vulgarizador apologeta e pregador Em algumas
circunstacircncias em torno dele surge um grupo Em outras como no caso de Joatildeo e Joaquim
haacute uma relaccedilatildeo diacrocircnica entre o fundador e os grupos que se dizem seus porta-vozes como
o movimento inspirado nas profecias joaninas de Montano Priscila e Maximila a partir da
deacutecada de 160 nas proviacutencias romanas da Aacutesia menor612 ou a inspiraccedilatildeo joaquimita do grupo
607 Cf KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge
University Press 1990 p 3 608 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 p 57 609 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no
Apocalipse Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 135 610 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do
Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 11 611 TALMON op cit p 349 Henri Desroche cunhou a expressatildeo ldquohomens da esperardquo para fazer referecircncia a
pessoas que aguardam algum tipo de mudanccedila histoacuterica a posteriori Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de
messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 16 612 PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation New York Penguin
Books 2012 p 103-107
182
em torno de Amaury de Begravene na Paris do iniacutecio do seacuteculo XIII condenado formalmente no
IV Conciacutelio de Latratildeo (1215)613
Segundo Norman Cohn um dos mais antigos destes profetas milenaristas surgiu no
Iratilde antigo e ficou conhecido como Zoroastro614 A partir do zoroastrismo em sua
manifestaccedilatildeo imperial persa o fenocircmeno teria transitado para o Judaiacutesmo quando
expressotildees de uma redenccedilatildeo futura deram origem a diversos movimentos ou seitas Uma
destas nascida das pregaccedilotildees do profeta Jesus de Nazareacute e subjacente ao Apocalipse tinha
como significativos traccedilos iniciais uma resiliente combinaccedilatildeo de milenarismo e
messianismo615
Cada profeta milenarista ou movimento milenarista tem particularidades uacutenicas
Mesmo assim eles apresentam alguns traccedilos em comum que eacute o que permite categorizaacute-
los em diferentes lugares e eacutepocas sob o mesmo termo616
Coletiva o povo feliz
A salvaccedilatildeo no milenarismo natildeo eacute de natureza individual mas expectativa de um
grupo ou para um grupo O milenarista natildeo deseja alcanccedilar a salvaccedilatildeo sozinho pois espera
compartilhaacute-la com uma comunidade de pessoas ldquoeleitasrdquo O fenocircmeno assim tem uma
orientaccedilatildeo coletiva O reino milenar do Apocalipse espera ser povoado por uma multidatildeo de
maacutertires ressuscitados O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim veraacute uma humanidade inteira em
paz e contemplaccedilatildeo quando um grande grupo de pessoas se converterem agrave feacute da Igreja latina
especialmente os judeus
Apesar dos leitores posteriores de Joatildeo terem ampliado o puacuteblico do milecircnio em
Apocalipse 20 ele eacute exclusivo daqueles que foram degolados pelas bestas do Dragatildeo o que
pode representar toda a crise do profeta com as mortes violentas ou as notiacutecias de mortes
violentas na guerra judaico-romana De fora ficam natildeo apenas os seus ldquoirmatildeosrdquo que natildeo
alcanccedilarem tal morte (participariam da ldquosegunda ressurreiccedilatildeordquo) mas tambeacutem todos aqueles
que natildeo compartilham de sua perspectiva de Jesus como o Messias de Deus Estes uacuteltimos
613 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 61 614 Para Cohn Zoroastro ldquoeacute o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo especiacutefico de profeta ndash os
chamados lsquomilenaristasrsquordquo Cf COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 133 615 TALMON op cit p 350 616 Como argumentou Paul Veyne os fenocircmenos histoacutericos natildeo se organizam atraveacutes de periacuteodos e de povos
mas atraveacutes de noccedilotildees Mais do que inseridos no seu tempo eles precisam ser postos sob um conceito Cf
VEYNE Paul O inventaacuterio das diferenccedilas Lisboa Gradiva 1989 p 33
183
por sinal entendidos por Joatildeo como seguidores das bestas e do Dragatildeo seriam destruiacutedos
na parousia Natildeo haacute sobreviventes para o reino dos maacutertires O milecircnio para o Apocalipse
soacute seraacute alcanccedilado pela porta do martiacuterio
Neste tipo de milenarismo algumas pessoas alcanccedilam a redenccedilatildeo outras satildeo
destruiacutedas no processo Haacute um dualismo baacutesico uma divisatildeo fundamental da humanidade
entre fieis e infieacuteis entre seguidores e natildeo-seguidores entre crentes e increacutedulos entre justos
e perversos A histoacuteria humana eacute vista como uma luta contiacutenua entre os filhos de Deus contra
os aliados de Satanaacutes De qualquer forma nem no Apocalipse ou no Expositio haacute criteacuterios
de raccedila grupo eacutetnico ou naccedilatildeo para compor a terra da felicidade Em ambos os casos a
participaccedilatildeo se daria em funccedilatildeo de opccedilotildees religiosas
Haacute uma forte ecircnfase na exclusatildeo em Joatildeo e um relativo inclusivismo em Joaquim
com sua expectativa de conversatildeo geral apoacutes o levantamento do Anticristo Apesar de sua
ecircnfase nos monges o descanso natildeo eacute soacute para eles A sociedade da Terceira Era natildeo seria
formada apenas por membros do corpo monaacutestico mas caberiam diversos outros grupos
sociais como a Dispositio o demonstra617 Em seus esquemas o abade fala de uma era de
casados outra de cleacuterigos outra de monges expressotildees que precisam ser entendidas na oacutetica
do protagonismo Na primeira Era o protagonismo foi dos casados na segunda dos cleacuterigos
na terceira dos monges A Dispositivo representaccedilatildeo da sociedade ideal de Joaquim
apresenta sete oratoacuterios cinco satildeo de monges um para o clero e um para os casados Ele vecirc
uma loacutegica de procedecircncia entre as ordens dos casados procedem os cleacuterigos dos cleacuterigos
os monges Mas um natildeo significa o fim do outro Neste tipo de perspectiva a Trindade se
revela na histoacuteria imprimindo nela as caracteriacutesticas peculiares de cada pessoa divina e um
caraacuteter dinacircmico e progressivo cuja meta eacute uma sociedade protagonizada por monges
contemplativos
Eacute possiacutevel fazer ainda uma reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo entre a comunidade futura ideal
e a comunidade real do presente do milenarista Apocalipse e Expositio satildeo produccedilotildees de
liacutederes carismaacuteticos Joatildeo era um profeta itinerante das igrejas da Aacutesia Joaquim era um
abade que conseguiu atrair um grupo de disciacutepulos para as montanhas de Fiore e a partir
deles fundou uma casa monaacutestica e uma ordem religiosa Neste sentido suas obras visavam
a uma comunidade seus textos buscavam operar no interior de um grupo Representaccedilotildees
617 Cf Anexo 5
184
individuais natildeo satildeo elementos estanques mas se relacionam com representaccedilotildees sociais618
Joatildeo e Joaquim representam determinados grupos Suas falas satildeo representativas de
expectativas mesmo que parcialmente compartilhadas entre profeta e comunidade No caso
de Joatildeo sua audiecircncia natildeo lhe eacute totalmente amistosa Ele enfrenta adversaacuterios no interior
das igrejas e deseja com seu Apocalipse simultaneamente convocar os aliados e atacar os
inimigos Joaquim tambeacutem tem alguns adversaacuterios mesmo que seja em escala diferente Ele
enfrenta resistecircncia da Ordem Cisterciense em funccedilatildeo de ter abandonado a abadia de
Corazzo Mas os grandes adversaacuterios de ambos os autores estatildeo ldquodo lado de forardquo de seus
ciacuterculos a sociedade romana para Joatildeo619 os muccedilulmanos para Joaquim Satildeo estes
adversaacuterios os grandes excluiacutedos do reino dos maacutertires ou do saacutebado do Espiacuterito
Terrena o lugar perfeito
Joatildeo de Patmos pode ter testemunhado a morte de muitos de seus irmatildeos e ouvido
falar do martiacuterio de vaacuterios outros Seu texto manifesta a expectativa de acentuada
perseguiccedilatildeo da sociedade romana para um futuro proacuteximo Estes aspectos parecem marcar
sua descriccedilatildeo do passado e do futuro das comunidades de Jesus Tal conjunto de
representaccedilotildees tem o potencial de produzir ruptura em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano e gerar
ansiedade pelo reino milenar Apesar de sua breve descriccedilatildeo no episoacutedio de Apocalipse 20
Joatildeo tambeacutem registrou a mesma expectativa no iniacutecio da segunda seccedilatildeo de sua obra
(Apocalipse 5) Nesta passagem o autor relatou o hino que ele teria ouvido da parte de Vinte
e quatro Presbiacuteteros Celestiais ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste
morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e
naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo
(Apocalipse 59-10) Este hino ao ldquoCordeirordquo eacute uma metaacutefora para descrever Jesus e sua
morte seis deacutecadas atraacutes Segundo Joatildeo a morte daquele que ele tem como Messias foi uma
estrateacutegia divina para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo
exclusivo fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus620 Mesmo que as formas verbais estejam no
618 OLIVEIRA Maacutercio de O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves
Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre v 13 n 22 p 67-94 2012 p 71 619 Eacute interessante destacar que a Palestina desde a deacutecada 60 antes da Era Comum era parte do Impeacuterio
Romano Os judeus eram formalmente membros deste Impeacuterio Isso natildeo foi o suficiente para que Joatildeo se
sentisse parte do ldquomundo romanordquo Pelo contraacuterio numa perspectiva sectaacuteria ele rejeita a sociedade que lhe
cerca 620 CHARLES J Daryl A Apocalyptic Tribute to the Lamb (Rev 51-14) Journal of the Evangelical
Theological Society Chicago v 24 n 4 p 461-473 1991 p 471
185
passado como se fossem eventos jaacute realizados por Jesus621 o final do hino manifesta a
mesma expectativa de Apocalipse 20 um reino sobre a terra622
Ao contraacuterio de Joatildeo entretanto a relaccedilatildeo de Joaquim com a sociedade circundante
eacute bem favoraacutevel Joaquim natildeo enfrentou perseguiccedilatildeo As ameaccedilas do Capiacutetulo Geral da
Ordem Cisterciense natildeo podem ser descritas como tal jaacute que o abade contava com o apoio
papal e dos poderes constituiacutedos no reino da Siciacutelia Mesmo assim como Joatildeo as
expectativas joaquitas natildeo satildeo para aleacutem Ele tem elementos concretos no interior de suas
descriccedilotildees do saacutebado do Espiacuterito Sua ecircnfase neste caso se desloca de uma ressurreiccedilatildeo de
maacutertires para o descanso contemplativo monaacutestico que ele aprendeu a admirar apoacutes o retorno
de sua peregrinaccedilatildeo agrave Palestina A situaccedilatildeo de instabilidade poliacutetica no reino normando e os
eventuais embates entre o Impeacuterio e a Igreja romana parecem ter sensibilizado o abade de
Fiore o suficiente para que ele esperasse a paz como a principal marca do tempo do Espiacuterito
Sem conflitos uma humanidade pacificada poderia gastar os dias do descanso sabaacutetico em
contemplaccedilatildeo e comunhatildeo com a divindade Apesar de transformadas pela atuaccedilatildeo
sobrenatural do Espiacuterito na sociedade dos sonhos de Joaquim ainda haveria liturgia trabalho
e estudo marcas da espiritualidade cisterciense no milenarismo do abade623
Joatildeo espera por um periacuteodo milenar em que maacutertires ressuscitados governam julgam
e cultuam e Joaquim ansiou por um descanso sabaacutetico em que viri spirituales cultuassem
trabalhassem e estudassem Com isso ambos manifestam a principal caracteriacutestica do
milenarismo que eacute sua orientaccedilatildeo terrena quando a noccedilatildeo de um tempo ideal (o tempo do
milecircnio) eacute acompanhada da noccedilatildeo de um espaccedilo ideal (a terra do milecircnio)624 Daiacute a ecircnfase
na terra ou em algum lugar especiacutefico da terra em detrimento de uma dimensatildeo
transcendental
Segundo Cohn especialmente entre as religiotildees zoroastrianas judaicas e cristatildes
surgiu a noccedilatildeo de que a histoacuteria caminha na direccedilatildeo de seu fim um eschaton o fim dos
tempos ou o fim do mundo625 No contexto cristatildeo este ldquofim do mundordquo envolveria um juiacutezo
621 PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 124 622 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991
p 62 623 O confronto de Joaquim com os cistercienses de Corazzo e com as autoridades da ordem parece derivado
de sua percepccedilatildeo de que eles estavam sendo infieacuteis ao ldquoespiacuteritordquo de Bernardo de Claraval que ele chamava de
ldquoveneraacutevel pai Bernardordquo Joaquim achava que os cistercienses natildeo deram continuidade agrave reforma que
Bernardo comeccedilou mas ainda assim eles eram uma etapa importante na histoacuteria que o monasticismo deveria
percorrer ateacute atingir sua perfeiccedilatildeo Cf DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De
Joaquiacuten a Schelling Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 21 624 TALMON op cit p 352 625 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 286-294
186
final quando a divindade julgaria as pessoas vivas e mortas o universo material seria
consumido por ldquofogo purificadorrdquo deixando para os fieacuteis uma eternidade celestial
(Apocalipse 21-22) Para o autor de 2Pedro por exemplo o eschaton eacute o fim da vida na terra
como ele e a humanidade conheciam ldquoOra os ceacuteus que agora existem e a terra pela mesma
palavra tecircm sido entesourados para fogo estando reservados para o dia do Juiacutezo e destruiccedilatildeo
dos homens iacutempiosrdquo (2Pedro 37) Em termos socioloacutegicos esta expressatildeo escatoloacutegica
poderia ser definida como teodiceia uma tentativa de encontrar sentido para o sofrimento o
mal e principalmente a morte626
Profetas milenaristas frequentemente se voltam para a questatildeo do sofrimento e suas
causas Mas as expectativas natildeo-histoacutericas transcendentais parecem natildeo os atender Eles
esperam por uma transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de existecircncia na terra e natildeo em um mundo
natildeo-material Por isso as crenccedilas milenaristas antecipam parte das expectativas posteriores
ao fim do mundo para dentro da histoacuteria quando os fieacuteis seriam recompensados em seus
corpos em suas realidades materiais dentro do saeculum627 A paz a justiccedila e as condiccedilotildees
de existecircncia esperadas para um mundo porvir satildeo antecipadas para a terra
Derivadas dessa ecircnfase terrena estatildeo algumas diferenciaccedilotildees futuras dos fieacuteis As
descriccedilotildees feitas por Joaquim da sociedade do Espiacuterito indicam alguma relaccedilatildeo entre espaccedilo
e status O status estaraacute ligado agrave posiccedilatildeo diante do centro da sociedade espiritual ocupada
pelo pater spiritualis Este tipo de diferenciaccedilatildeo foi feita apenas de forma relativa por Joatildeo
quando ele descreveu duas ressurreiccedilotildees a primeira para os martirizados e membros do reino
milenar a segunda para os demais fieacuteis No Apocalipse os maacutertires formam uma espeacutecie de
fiel ideal acentuando o valor religioso do martiacuterio
Curiosamente o ideal asceacutetico manifesta-se nas duas visotildees Joatildeo espera que os
144000 guerreiros escatoloacutegicos do Cordeiro sejam virgens e castos (Apocalipse 141-5) o
abade de Fiore lanccedilou aqueles que ainda continuaratildeo casados no Oratoacuterio mais baixo da
Dispositio separados dos demais por um grande espaccedilo Para os dois religiosos o sexo
oposto eacute perigoso e isso se reflete nas suas descriccedilotildees idealizadas do futuro
626 BERGER Peter L O dossel sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulus
1985 p 65 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 6 627 Landes toma esta expressatildeo de Agostinho para falar da passagem contiacutenua do tempo da mateacuteria e da
histoacuteria Cf LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 7
187
Total inversatildeo escatoloacutegica
O conceito milenarista de redenccedilatildeo eacute total no sentido de que a nova era natildeo traraacute
meramente uma melhora nas condiccedilotildees de vida mas um movimento na direccedilatildeo de condiccedilotildees
perfeitas de existecircncia dentro da histoacuteria As tais ldquocondiccedilotildees de perfeiccedilatildeordquo entretanto
variam em funccedilatildeo das conjunturas histoacutericas dos expoentes do milenarismo Antigas
expectativas judaicas esperavam por um tempo em que os instrumentos de guerra seriam
transformados em arados e foices para trabalhar o campo (Isaiacuteas 21-5) lobos e leotildees
andariam juntos com ovelhas e cabritos e crianccedilas brincariam com serpentes sem se
machucar (Isaiacuteas 61-9) Estas expectativas parecem fazer sentido em comunidades rurais
em crise com conjunturas de opressatildeo aristocraacutetica628 Jaacute os milenaristas de Tabor na
Boecircmia do seacuteculo XV esperavam um milecircnio literal de banquete perpeacutetuo com a supressatildeo
de toda autoridade quando as mulheres poderiam conceber seus filhos sem qualquer
participaccedilatildeo masculina e homens tambeacutem dariam agrave luz629
A inversatildeo escatoloacutegica idealizada por Joatildeo assim esperava o fim de todas as
guerras e violecircncias contra os seguidores de Jesus que viveriam na terra como reis juiacutezes e
sacerdotes expectativas que apontam para o desejo de empoderamento de pessoas agrave margem
do poder A descriccedilatildeo do milecircnio do Apocalipse pretende ser uma inversatildeo de soberanias
Os poderes do presente seriam destronados os sem poderes seriam entronizados e exaltados
Joaquim igualmente aguarda um periacuteodo de felicidade na terra mesmo que
pequeno em que os fieacuteis experimentaratildeo acima de tudo paz com o fim de todos os
conflitos No calabrecircs entretanto natildeo haacute espaccedilo para monarquias ou reis Mesmo que sua
hostilidade contra o Impeacuterio Germacircnico tenha desaparecido no final do Expositio em relaccedilatildeo
agraves suas primeiras exposiccedilotildees do Apocalipse630 ainda assim Joaquim possui a visatildeo de que
se a histoacuteria eclesiaacutestica fora marcada pelo conflito contra os poderes seculares estes
deveriam desaparecer na Terceira Era Somente a Igreja sobreviveria entatildeo transformada
em uma grande instituiccedilatildeo monacal
Gager argumenta que esta caracteriacutestica do milenarismo teria relaccedilatildeo com algum tipo
de privaccedilatildeo poliacutetica econocircmica social religiosa ou uma mistura de cada uma delas Os
milenaristas segundo este historiador aposentado da Princeton University ldquose sentem
628 LANDES Richard A Millennialism in the Western World op cit p 455 629 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 106 630 POTESTA Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p
318-319
188
desfavorecidos de alguma formardquo631 Ele estaacute ciente entretanto que existe muito mais gente
que sofre privaccedilatildeo do que membros de movimentos milenarista Por isso ele enfatiza que a
privaccedilatildeo natildeo precisa ser efetiva Ela pode ser relativa qual seja ldquouma relaccedilatildeo desigual entre
expectativa e os meios de satisfaccedilatildeordquo632 Eacute um tipo de condiccedilatildeo que surge quando novas
esperanccedilas se manifestam mas permanecem natildeo cumpridas
Esta sugestatildeo de Gager poderia ser usada para distinguir o milenarismo de Joatildeo e
Joaquim O profeta de Patmos era membro de um grupo marginal de uma das proviacutencias
orientais do Impeacuterio romano Vaacuterios de seus conterracircneos foram mortos em uma guerra
contra Roma em que causas poliacuteticas econocircmicas sociais e religiosas se encontravam
misturadas A proviacutencia da Aacutesia era uma das mais ricas do Impeacuterio mas figuras como Joatildeo
se sentiam isolados desta riqueza633
Do outro lado o calabrecircs era um abade bem situado e respeitado Norman Cohn
trabalhou em sua obra uma seacuterie de movimentos milenaristas medievais de tipo contestador
vinculados a grupos que viviam agrave margem quer da sociedade quer do poder634 Joaquim
natildeo era um milenarista deste tipo Ele natildeo estava na margem Ele estava perto do poder
Encontrou-se diversas vezes com papas monarcas rainhas e imperadores Era um dos mais
proeminentes abades do reino da Siciacutelia e talvez de toda a Itaacutelia635 Certamente entatildeo o
termo marginalizado natildeo poderia ser usado para descrever Joaquim de Fiore Ele natildeo se via
como marginalizado e natildeo era efetivamente um marginalizado636
A Era do Espiacuterito do abade natildeo parece ter relaccedilatildeo com algum tipo de privaccedilatildeo efetiva
No calabrecircs haacute mais propriamente a questatildeo das expectativas natildeo cumpridas Sua caminhada
religiosa parece evidenciar este aspecto Apoacutes o retorno da Palestina ele abraccedilou o
eremitismo depois procurou se envolver com um modelo monaacutestico cenobiacutetico em pelo
menos trecircs casas Sambucina Corazzo e S Trindade A forma como rejeitou inicialmente o
631 GAGER John G Kingdom and Community op cit p 25 632 Idem p 27 633 Conferir uma anaacutelise da criacutetica joanina agrave riqueza de Roma em KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio
imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 634 COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia
Lisboa Editorial Presenccedila 1970 635 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 636 Mc Ginn alerta que o perfil social da maioria daqueles que se valiam da retoacuterica apocaliacuteptica na Idade Meacutedia
natildeo era de um profeta isolado no alto de uma montanha mas pessoas bem-educadas cleacuterigos e liacutederes na
sociedade membros da corte e escribas Frequentemente ldquoeram poderosas figuras poliacuteticasrdquo Neste contexto
o milenarismo era uma tentativa de interpretar o seu proacuteprio tempo e assim dar suporte para patronos legitimar
a lideranccedila e perseguir determinados propoacutesitos poliacuteticos sociais e religiosos Cf MC GINN Bernard Visions
of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages New York Columbia University Press 1979 p 32
189
cargo de abade de Corazzo e deixou S Trindade indica uma ecircnfase religiosa no isolamento
e na contemplaccedilatildeo Apoacutes uma campanha para ingresso na Ordem Cisterciense abandonou
sua casa para fundar um monasteacuterio no isolamento de Fiore O ideal milenarista de Joaquim
parece revelar sua frustraccedilatildeo com a Igreja tanto latina quanto grega e com as formas de
monasticismo que ele tinha agrave disposiccedilatildeo Para o abade suas altas demandas religiosas natildeo
realizadas nas instituiccedilotildees que ele conhecia seriam atendidas finalmente quando o Espiacuterito
instaurasse a terceira Era da histoacuteria
De qualquer forma ambos os milenarismos refletem algum tipo de rejeiccedilatildeo da
presente ordem do mundo O milecircnio de Joatildeo reflete o conflito com a sociedade romana e
mesmo com outras comunidades de Jesus O de Joaquim com outras propostas de
espiritualidade cristatilde
Iminente bem perto de comeccedilar
Para Joatildeo o governo milenar de Cristo estava para acontecer a qualquer momento
Na sua perspectiva temporal as bestas estavam para iniciar o ataque final contra os fieacuteis
promovendo a morte de vaacuterios deles (Apocalipse 13) mas ao mesmo tempo viabilizando a
parousia de Jesus e a implementaccedilatildeo do milecircnio O autor do Expositio tambeacutem se entende
no limiar de uma nova era Por meio de caacutelculos complexos relacionados com sua
especulaccedilatildeo exegeacutetica o abade entendia que faltavam poucos anos para que os ldquosantosrdquo
experimentassem o refrigeacuterio tatildeo aguardado
Esta semelhante perspectiva quanto agrave urgecircncia dos tempos de Joatildeo e Joaquim
configura uma marca essencial do milenarismo um senso de premecircncia derivado da forma
como o fiel interpreta os eventos agrave sua volta Ele sente que a era salviacutefica estaacute proacutexima e
vive na expectativa de vecirc-la ou em preparaccedilatildeo para alcanccedilaacute-la O pressuposto para esta
confianccedila na proximidade da redenccedilatildeo tem relaccedilatildeo com a crenccedila na histoacuteria como um
processo preacute-determinado Neste sentido bastaria ter acesso a uma determinada chave de
leitura para que se pudesse prever cada uma de suas etapas Os profetas milenaristas
desejavam entender a histoacuteria sua unidade sua estrutura seu objetivo e seu fim637
Segundo Talmon haacute aqui uma combinaccedilatildeo entre consciecircncia histoacuterica de tempo e
consciecircncia miacutetica A perspectiva histoacuterica do tempo como uma sequecircncia de eventos um
637 Idem p 31
190
vir-a-ser de caraacuteter uacutenico e particular eacute combinada com uma consciecircncia de tempo ciacuteclico
infinito e repetitivo638 Afinal o milecircnio de Joatildeo eacute uma interrupccedilatildeo do vir-a-ser um
parecircntese na histoacuteria Natildeo eacute ainda o destino derradeiro dos maacutertires jaacute que apoacutes o juiacutezo final
o profeta descreve uma Nova Jerusaleacutem em termos meta-histoacutericos (Apocalipse 21-22) Na
perspectiva joanina o milecircnio eacute uma demanda da justiccedila divina pois os fieacuteis martirizados
precisavam reinar com seu Cristo na mesma terra que os martirizou
Em Joaquim a sociedade milenar eacute uma antecipaccedilatildeo da Jerusaleacutem celestial
igualmente revestida de historicidade e temporalidade Quando seu periacuteodo acabar chegou
o fim do mundo Joaquim natildeo reflete longamente sobre o que vem a seguir Isso faz com que
sua Nova Era tenha como alvo esta nova sociedade espiritual na terra e natildeo alguma outra
num formato transcendental Eacute uma sociedade ideal ainda com a presenccedila de estruturas
sociais (em torno dos sete oratoacuterios da Dispositio) e de papeacuteis sociais (os viri spirituales da
Dispositio ainda estudam cantam e trabalham)
Relacionado com a questatildeo da iminecircncia estaacute a seacuterie de desastres presente nos
vaticiacutenios milenaristas Para explicar tal caracteriacutestica o socioacutelogo francecircs Desroche
apontou um roteiro de trecircs tempos subjacentes aos milenarismos haacute um tempo de opressatildeo
que se agrava progressivamente ateacute atingir o auge da alienaccedilatildeo e injusticcedila haacute um tempo de
resistecircncia quando os fieacuteis satildeo separados marcados nas frontes por Deus testemunham
vestidos de saco resistem no deserto isolam-se na espera enfrentam o martiacuterio haacute um
tempo de libertaccedilatildeo quando o adversaacuterio eacute finalmente derrotado e os fieacuteis desfrutaratildeo da
paz divina639 Esta relaccedilatildeo entre opressatildeo e redenccedilatildeo gera no milenarista a sensaccedilatildeo de que
quanto pior ficar melhor eacute jaacute que as adversidades histoacutericas seriam sinais da iminecircncia da
intervenccedilatildeo divina640
Assim antes que os maacutertires ressuscitem o Apocalipse de Joatildeo descreve o funesto
convite para que abutres venham devorar as carnes mortas de reis comandantes e poderosos
ldquocarnes de cavalos e seus cavaleiros carnes de todos quer livres quer escravos tanto
pequenos como grandesrdquo (Apocalipse 1918) O refrigeacuterio dos santos de Joaquim por sua
vez soacute surgiria apoacutes a manifestaccedilatildeo do Anticristo e a morte de muitos fieacuteis Neste sentido a
638 TALMON op cit p 352 639 DESROCHE op cit p 50 640 Eacute um apelo nos termos de Desroche em desespero de causa ldquoum apelo em uacuteltima instacircncia uma vez que
as demais instacircncias desmoronaram E ateacute mesmo um apelo para que as demais instacircncias desmoronemrdquo Cf
DESROCHE op cit p 51
191
felicidade almejada natildeo chegaria antes de uma ldquoangustia temporumrdquo ou das duas
ldquotribulationesrdquo quando muitos fieis alcanccedilariam o martiacuterio641
Miraculosa a intervenccedilatildeo divina
Um movimento milenarista compartilha a crenccedila na transformaccedilatildeo do mundo
conjugando-a com um senso de mudanccedila iminente Neste contexto uma significativa
questatildeo guarda relaccedilatildeo com a agecircncia da transformaccedilatildeo ou seja quem traraacute o milecircnio e a
forma como ele viraacute Em sua definiccedilatildeo do fenocircmeno Norman Cohn chamou a atenccedilatildeo para
o aspecto miraculoso da expectativa milenarista no sentido de que uma transiccedilatildeo tatildeo
significativa da realidade precisa da intervenccedilatildeo de forccedilas sobre-humanas642
Eacute neste contexto que se insere o elemento messiacircnico quando a salvaccedilatildeo eacute esperada
sob a conduccedilatildeo de um redentor um mediador entre o ser humano e a divindade
Frequentemente milenarismo envolve messianismo apesar de que os dois fenocircmenos natildeo
necessariamente coincidem Eacute possiacutevel surgir a perspectiva messiacircnica sem a milenarista
Do outro lado nem sempre eacute preciso um messias para que haja a presenccedila do milenarismo
Milenarismo e messianismo satildeo fenocircmenos independentes que eventualmente se unem
mas o dicionaacuterio de Desroche estaacute cheio de casos de um sem o outro643
Especificamente o milenarismo de Joatildeo eacute do tipo messiacircnico jaacute que ele entende que
para que o milecircnio aconteccedila um enviado de Deus um messias o Jesus glorificado precisaria
atuar Para Joaquim entretanto este periacuteodo de paz seria alcanccedilado por meio da atuaccedilatildeo do
Espiacuterito Santo o promotor da felicidade terrena que o abade chamou de ldquodescanso sabaacuteticordquo
O saacutebado do Espiacuterito natildeo demanda a parousia para sua instauraccedilatildeo Tambeacutem natildeo haacute figuras
ungidas exercendo papeacuteis messiacircnicos nas representaccedilotildees joaquitas como um imperador
especial para trazer o ldquosaacutebadordquo ou um papa angelical para instauraacute-lo
O abade de Fiore natildeo esperava por um reino milenar de Jesus na terra Ele deslocou
o reino de Jesus para traz e o tornou um artiacutefice de um periacuteodo completo dentro da histoacuteria
(o segundo status) Com sua visatildeo de progresso contiacutenuo e natildeo de queda contiacutenua Joaquim
imaginou a humanidade se desenvolvendo por meio da atuaccedilatildeo do Pai na primeira Era
passando pela revelaccedilatildeo do Filho na segunda Era ateacute culminar na atuaccedilatildeo do Espiacuterito na
641 GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 75 642 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 11 643 DESROCHE op cit
192
terceira Era Seu milenarismo entatildeo natildeo espera por um Jesus exaltado na terra realizando
um governo com maacutertires ressuscitados Para o calabrecircs natildeo eacute o Filho a esperanccedila dos fieacuteis
e sim o Espiacuterito O tempo de um estava por terminar para que o outro pudesse comeccedilar
Joatildeo esperava um periacuteodo de paz para apoacutes o segundo advento de Jesus Sem Jesus
natildeo haveria felicidade na terra nem reinado dos martirizados nem inversatildeo escatoloacutegica
nem vitoacuteria sobre o Anticristo O milecircnio assim concebido era um parecircntese entre o
segundo advento de Jesus e o final da histoacuteria Um parecircntese que duraria mil anos
Para o abade poreacutem Jesus eacute o centro da histoacuteria mas natildeo o seu aacutepice O aacutepice estaacute
no final na etapa exclusiva do Espiacuterito e sem a demanda do segundo advento de Jesus
(parousia) Em vez de o Filho retornar para trazer a felicidade para a humanidade seu tempo
iria terminar e somente entatildeo debaixo exclusivamente do controle histoacuterico do Espiacuterito os
seres humanos experimentariam a paz Haacute um lugar para a parousia tambeacutem nas
expectativas de Joaquim mas para terminar a histoacuteria e natildeo para dentro dela Na sua visatildeo
quando o Filho retornar a histoacuteria termina o mundo acaba644 Neste sentido o milenarismo
de Joaquim natildeo eacute um milenarismo do Filho e sim do Espiacuterito
Outro aspecto ainda relacionado com a forma de instauraccedilatildeo do milecircnio se desdobra
no papel humano para seu estabelecimento Haacute alguns elementos nas representaccedilotildees
milenaristas que podem atuar para minimizar a atuaccedilatildeo do fiel como por exemplo a
perspectiva de uma redenccedilatildeo predeterminada e inevitaacutevel Neste caso o milenarista natildeo
precisa fazer a revoluccedilatildeo basta esperar pela sua manifestaccedilatildeo sobrenatural Entretanto em
algumas situaccedilotildees a certeza da operaccedilatildeo de acordo com o que estaacute determinado no plano
divino e a confianccedila na vitoacuteria final podem encorajar alguma atividade em vez de
passividade Este parece ser o caso do Apocalipse645 que atribuiu um papel significativo aos
ldquosantosrdquo na instauraccedilatildeo do reino messiacircnico (Apocalipse 69-11) Sem o martiacuterio natildeo haveria
o preenchimento da cota de mortos necessaacuteria para instaurar a parousia (Apocalipse 19) ou
para vencer o Dragatildeo (Apocalipse 12) O profeta de Patmos entende que eacute necessaacuterio algum
tipo de resistecircncia resistecircncia essa que provocaraacute o martiacuterio martiacuterio esse que provocaraacute a
parousia parousia essa que inauguraraacute o milecircnio Ele natildeo demandou uma reaccedilatildeo armada
dos seus seguidores mas esperava deles a rejeiccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo romana o culto
644 Apoacutes o terceiro ciacuterculo da Taacutevola XI do Liber Figurarum aparece a expressatildeo ldquofinis mundirdquo Cf Anexo 6 645 Adela Yarbro Collins definiu o modelo de resistecircncia presente no Apocalipse de Joatildeo como ldquopassivordquo
Mesmo assim ela admite algum tipo de sinergismo jaacute que a morte dos maacutertires aproxima o fiel do eschaton
Cf COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E
J Brill 1996 p 212
193
imperial Na perspectiva joanina quando os disciacutepulos se negassem a participar da adoraccedilatildeo
agraves ldquobestasrdquo eles seriam mortos evento que parece estar subjacente agrave descriccedilatildeo da morte das
Duas Testemunhas (Apocalipse 11) e dos 144000 Guerreiros do Cordeiro (Apocalipse
14)646
Assim no milenarismo do Apocalipse os fieacuteis participam na instauraccedilatildeo do reino
milenar por meio do derramamento do proacuteprio sangue Este tipo de milenarismo pode ser
descrito como revolucionaacuterio ao rejeitar a ordem presente e promover accedilotildees concretas dos
fieacuteis O martiacuterio eacute tomado como uma estrateacutegia de confronto contra a sociedade romana Em
sua descriccedilatildeo do milecircnio Joatildeo explicita que o fiel precisa viver de certo jeito e morrer de
certa forma para estar presente no reino milenar
Em Joaquim entretanto haacute uma reduccedilatildeo do papel humano na instauraccedilatildeo do
descanso do Espiacuterito relacionado justamente com a oacutetica do abade de que os eventos
escatoloacutegicos estatildeo jaacute definidos e determinados Compete aos saacutebios apenas entendecirc-los
anunciar sua chegada e preparar a humanidade para eles Esse caraacuteter de determinaccedilatildeo estaacute
presente no seu esquema da Concordia Natildeo se pode mudar a histoacuteria apenas se preparar
para ela O milenarismo joaquita entatildeo eacute do tipo passivo Natildeo eacute possiacutevel fazer algo para
apressar a chegada do refrigeacuterio dos monges Sua instauraccedilatildeo natildeo depende de pessoas mas
do tempo que precisa ser cumprido
A roda das apropriaccedilotildees
147 anos apoacutes a morte de Joaquim em 1349 o franciscano francecircs Jean de
Roquetaillade enquanto estava encarcerado numa prisatildeo em Avignon escreveu a obra Liber
secretorum eventuum647 Nela ele anuncia a chegada de uma grande tribulaccedilatildeo A Igreja
entatildeo liderada por um papa ldquoangeacutelicordquo saiacutedo dentre os frades menores seria ldquopurgadardquo de
seus erros A partir de entatildeo um grande tempo de paz e prosperidade invadiria o mundo
durante mil anos Roquetaillade como outros franciscanos desde Geraldo San Borgo era
um leitor de Joatildeo de Patmos e Joaquim de Fiore648 Estas apropriaccedilotildees entretanto
tencionavam o pensamento do abade de Fiore na direccedilatildeo de confrontos que natildeo estavam
646 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no
Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 169-175 647 Esta anaacutelise de Roquetaillade segue DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 55-57 648 Idem p 50-57 Conferir tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore e o franciscanismo medieval
Thaumazein Santa Maria v V n 11 p 119-139 2013
194
previstos pelo ldquopaciacuteficordquo calabrecircs649 No Liber secretorum eventuum seu autor natildeo se vale
do esquema das trecircs idades do mundo jaacute criticado pelo protocolo de Agnani durante o
processo contra Geraldo O milenarismo de Jean de Roquetaillade eacute como o de Joaquim
natildeo-messiacircnico mas retomou o quimeacuterico nuacutemero de Joatildeo mil anos Sem parousia como
Joaquim mas por mil anos como Joatildeo Apoacutes o fim deste longo periacuteodo de paz viria entatildeo
o fim do mundo O frade aprisionado tinha a convicccedilatildeo de que o milecircnio comeccedilaria em 1415
ou 1420
Roquetaillade eacute um exemplo dos diversos tensionamentos sofridos pelo pensamento
joaquita reacionaacuterios ou revolucionaacuterios religiosos ou seculares clericais ou leigos no que
se convencionou chamar de ldquojoaquimismordquo650 Quer no paraiacuteso de Dante651 ou nas cartas de
Colombo652 depois de posta em movimento a roda das apropriaccedilotildees653 joaquimitas natildeo
parou de girar para chegar ateacute nos termos de Delumeau agraves ldquoutopias ideoloacutegicas da eacutepoca
contemporacircneardquo654
De qualquer forma este foi apenas um dos veios pelos quais correu a leitura do
Apocalipse e o levou a influenciar direta ou indiretamente a arte a literatura e a cultura no
Ocidente655 O livro foi catalisador de uma seacuterie de movimentos no correr da histoacuteria como
o grupo camponecircs liderado por Thomas Muntzer no seacuteculo XVI656 e a desastrosa
comunidade de 75 pessoas em torno de David Koresh destruiacuteda por um incecircndio em 1993657
A cada nova geraccedilatildeo de leituras um conjunto de representaccedilotildees emerge com
desdobramentos em subsequentes praacuteticas sociais e religiosas Compete aos historiadores e
649 Delumeau assim descreveu Joaquim ldquoum profeta paciacutefico que semeia germes de violecircnciardquo Cf
DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 46 650 Conferir DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling Madrid
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in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 651 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 652 Colombo parece ter visto as exploraccedilotildees mariacutetimas e as novas colonizaccedilotildees como cumprimento de profecias
do Apocalipse Cf PHELAN John Leddy The millennial kingdom of the Franciscans in the new world
Berkeley University of California Press 1970 p 17 653 Retomando Chartier apropriaccedilatildeo eacute o processo historicamente determinado de construccedilatildeo de sentido Cf
CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191
1991 p 179 654 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 57 655 Conferir uma descriccedilatildeo panoracircmica em KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford
Blackwell Publishing 2004 p 19-38 656 BLOCH Ernst Thomas Muumlnzer teoacutelogo de la revolucion Madrid Editorial Ciencia Nueva 1963 657 NEWPORT Kenneth G C The Branch Davidians of Waco the history and beliefs of an apocalyptic sect
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195
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WATSON Duane F (ed) A history of biblical interpretation The Ancient Period
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ANEXOS
210
Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1658
658 Mapa presente em DMITRIEV Sviatoslav City government in hellenistic and Roman Asia Minor Oxford
Oxford University Press 2005 p xiv
211
Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2659
659 Mapa presente em DMITRIEV op cit pxvi
212
Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia660
660 Mapa presente em LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge
University Press 2007 p xiii
213
Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185)661
661 Mapa presente em DITCHBURN David MACLEAN Simon MACKAY Angus (eds) Atlas de Europa
medieval Madrid Caacutetedra 2011 p 132
214
Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum662
662 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero Le tavole del Liber Figurarum di
Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000 p 13
215
Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios663
663 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 15
BANCA EXAMINADORA
Titulares
Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (orientadora)
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profa Dra Leila Rodrigues da Silva
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof Dr Paulo Duarte Silva
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof Dr Paulo Augusto de Souza Nogueira
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo
Universidade Metodista de Satildeo Paulo
Profa Dra Monica Selvatici
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social
Universidade Estadual de Londrina
Suplentes
Prof Dr Andreacute Chevitarese
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profa Dra Carolina Fortes
Instituto de Histoacuteria
Universidade Federal Fluminense
DEDICATOacuteRIA
Agrave Elizete Rafael e Caroline
pela parceria e pelo companheirismo durante a produccedilatildeo desta pequisa
Agrave Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva
pelas orientaccedilotildees pacientes e significativas para esta jornada acadecircmica
Ao Programa de Estudos Medievais e seus coordenadores
pelo ambiente saudaacutevel de trocas e partilhas
ldquoOs milenaristas tiveram razatildeo de natildeo
desviar seu olhar da cidade terrestre e de natildeo
ver nela apenas um lugar de expiaccedilatildeo do
pecado Queriam realizar na terra um
primeiro esboccedilo da cidade celeste fazer
surgir nela o maacuteximo de felicidade e de
fraternidaderdquo
Jean Delumeau
RESUMO
Esta pesquisa analisou de forma comparativa os elementos milenaristas presentes no
Apocalipse de Joatildeo e no Expositio in Apocalypsim O profeta Joatildeo produziu um texto que
propotildee um milenarismo revolucionaacuterio que rejeita a ordem social romana e convida sua
comunidade a abandonar as estruturas religiosas imperiais especialmente a instituiccedilatildeo do
culto imperial esperando que isso provoque o martiacuterio dos seus membros e instaure os
eventos que culminaratildeo no retorno do Jesus Glorificado agrave terra para derrotar todos os
inimigos dos fieis ressuscitar os martirizados e implementar um reino durante mil anos Este
ldquoreino dos maacutertiresrdquo com Cristo parece ser o resultado de tradiccedilotildees messiacircnicas e
apocaliacutepticas do Judaiacutesmo antigo materializado no final do seacuteculo I no Apocalipse em
funccedilatildeo de traumas da guerra judaico-romana (66-70) de conflitos entre igrejas e sinagogas
e das diferentes respostas de lideres carismaacuteticos agrave questatildeo do relacionamento com a
sociedade romana Joaquim por seu turno esperava que a Terceira Era da histoacuteria da
humanidade culminasse num descanso sabaacutetico sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Apesar
de ser um periacuteodo relativamente curto a Era do Espiacuterito iria trazer sobre a humanidade o fim
dos conflitos que caracterizavam a histoacuteria eclesiaacutestica sob a lideranccedila de um pai espiritual
que governaria a sociedade nos moldes de uma casa monaacutestica Este ldquodescanso dos mongesrdquo
natildeo teve como ponto de partida entretanto diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim
as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que aguardava uma
fase de felicidade na terra anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica do milenarismo
joaquita na parte final do seacuteculo XII pode estar relacionada com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos
como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica
Palavras-chave Milenarismo Apocalipse de Joatildeo Joaquim de Fiore Filosofia da Histoacuteria
ABSTRACT
This research has analyzed in a comparative way the millenarian elements wich are present
in the Revelation of John and in the Expositio in Apocalypsim The prophet John produced
a text that proposes a revolutionary millenarianism which rejects the Roman social order and
invites its community to abandon the imperial religious structures especially the institution
of the imperial cult hoping that this provokes the martyrdom of its members and establishes
the events that will culminate in the return of the Glorified Jesus to the earth to defeat all
enemies of the faithful and to resurrect the martyred and to implement a kingdom for a
thousand years This kingdom of martyrs with Christ seems to be the result of messianic
and apocalyptic traditions of ancient Judaism which were materialized at the end of the first
century in the Apocalypse as a result of traumas of the Jewish-Roman War (66-70) of
conflicts between churches and synagogues and the different responses of charismatic
leaders to the question of the relationship with Roman society Joachim for his part hoped
that the Third Age of human history would culminate in a Sabbath rest under the inspiration
of the Holy Spirit In spite of being a relatively short period the Age of the Spirit would
bring to humanity the end of the conflicts that characterized ecclesiastical history under the
leadership of a spiritual father who would govern society in the mold of a monastic house
This rest of the monks did not have as its starting point however directly the millennium
of the Revelation but rather the historical reflections of Joachim and the tradition of the
refreshing of the saints that awaited a phase of happiness in the land before parousia The
historical emergency of Joachite millenarism in the late 12th century may be related to the
combination of phenomena such as apocalypticism and monastic reform
Abstract Millenarianism Revelation of John Joachim of Fiore Philosophy of History
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA 11
I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO 27
11 O autor do Apocalipse 27
12 A data do Apocalipse 35
13 O propoacutesito do Apocalipse 38
14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse 44
15 Resumo 47
II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA 48
21 Patmos o ponto de partida 48
22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia 50
23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia 52
24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia 54
25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo 59
26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo 61
27 Resumo 63
III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO 65
31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse 65
32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo 67
33 O contexto narrativo do reino milenar 69
34 O episoacutedio do reino milenar 71
35 O reinado messiacircnico interino na terra 76
36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 82
37 Resumo 88
IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 89
41 O autor do Expositio in Apocalypsim 89
42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim 98
43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim 100
44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse 106
45 Resumo 107
V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA SICIacuteLIA 108
51 A chegada dos normandos 110
52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia 111
10
53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen 113
54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada 114
55 A Igreja no Reino da Siciacutelia 118
56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda 121
57 Resumo 124
VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA DE JOAQUIM 126
61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo 126
62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo 130
63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde 134
64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas 137
65 Sensus typicus histoacuteria e profecia 139
66 O dom da exegese 142
67 Resumo 143
VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 144
71 Estrutura literaacuteria do Expositio 144
72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim 146
73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio 154
74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito 159
75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito 165
76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 171
77 Resumo 176
CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO DOS MONGES 178
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 196
ANEXOS 209
Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1 210
Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2 211
Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia 212
Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185) 213
Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum 214
Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios 215
INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA
Possivelmente as igrejas espalhadas pela Aacutesia Menor no final do seacuteculo I se
originaram da atividade religiosa de Paulo de Tarso na regiatildeo a partir do ano 58 da Era
Comum Natildeo havia centralizaccedilatildeo religiosa e cada comunidade se organizava e sobrevivia
do seu proacuteprio jeito Em termos de lideranccedila estas comunidades levantavam seus quadros
internamente privilegiando formatos colegiados Mesmo assim uma antiga atividade
religiosa ainda se manifestava entre as igrejas a profecia Profetas itinerantes viajavam para
pregar suas mensagens em cada comunidade e se moviam em funccedilatildeo da ajuda que recebiam
destes grupos
Um destes profetas ainda dentro do primeiro seacuteculo mas vaacuterias deacutecadas apoacutes o iniacutecio
do movimento de Jesus ficou conhecido por causa de um livro em que registrou o que seriam
visotildees relacionadas com o final dos tempos conhecido como Apocalipse Nesta obra ele se
identificou simplesmente como Joatildeo e escreveu suas ldquorevelaccedilotildees divinamente recebidasrdquo a
respeito de fenocircmenos histoacutericos e realidades sobrenaturais durante uma permanecircncia ou
visita agrave Patmos uma pequena ilha do mar Egeu proacutexima de Mileto e Eacutefeso
O livro de Joatildeo escrito em grego comeccedila com a expressatildeo ldquorevelaccedilatildeo de Jesus
Cristordquo (ldquoApokaluyij vIhsou Cristourdquo) Tal ldquorevelaccedilatildeordquo pode ser dividida em linhas gerais
em trecircs partes cada uma apresentando um conjunto de pequenos episoacutedios interconectados1
Na primeira (Apocalipse 1-3) Joatildeo descreve o aparecimento do ldquoFilho do Homemrdquo que lhe
revela o conteuacutedo de sete cartas que deveriam ser encaminhadas para sete igrejas A segunda
seccedilatildeo da obra (Apocalipse 4-11) registra o que Joatildeo teria visto apoacutes uma viagem espiritual
ao ceacuteu O conteuacutedo desta segunda visatildeo eacute narrado por meio da abertura de um rolo selado
com sete selos Eacute uma histoacuteria modelada pelas tradiccedilotildees judaicas sobre o fim do mundo que
culmina na implantaccedilatildeo de um esperado reino messiacircnico A uacuteltima seccedilatildeo do livro eacute bem
maior (Apocalipse 12-22) consumindo a metade da obra Nela se desdobra a histoacuteria da
guerra entre uma figura demoniacuteaca o Dragatildeo Vermelho e o Cordeiro siacutembolo usado por
Joatildeo para fazer referecircncia a Jesus fundador do movimento morto em Jerusaleacutem no iniacutecio
do seacuteculo No Apocalipse entretanto Jesus estaacute vivo e aparece descrito em categorias
1 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa
Polebridge Press 1998 p 10-16 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro Representaccedilatildeo e
construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 32-38
12
exaltadas como um ser angelical ou mesmo divino Esta narrativa de guerra escatoloacutegica eacute
uma estrateacutegia do autor para descrever a histoacuteria na forma de conflitos violecircncia e morte
tanto dos seguidores de Jesus quanto dos seguidores do Dragatildeo num processo contiacutenuo que
terminaria na intervenccedilatildeo divina para a construccedilatildeo de uma realidade paradisiacuteaca
transcendental que Joatildeo chamou de Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 211-27) Esta realidade
para aleacutem da histoacuteria entretanto seria precedida pela realizaccedilatildeo histoacuterica de um reino na
terra durante um periacuteodo de mil anos (Apocalipse 201-10)
Haacute evidecircncias de leitura e uso religioso do Apocalipse durante os dois primeiros
seacuteculos por parte de diversos liacutederes de igrejas Estes primeiros leitores enfatizavam
especialmente a passagem do Apocalipse que fala do periacuteodo de mil anos de governo de
Jesus Cristo na terra ao lado dos seus seguidores Por causa desta ecircnfase no milecircnio estes
primeiros leitores foram chamados eventualmente de quiliastas (termo derivado da palavra
grega traduzida como ldquomilrdquo)2
Nem todas as igrejas entretanto deram o mesmo tratamento para o Apocalipse No
periacuteodo de Euseacutebio de Cesareia (265-339) algumas rechaccedilavam a obra joanina enquanto
outras o contavam entre ldquoos livros admitidosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XXV 1-4) De
qualquer forma a obra de Joatildeo de Patmos acabou se fixando no cacircnon do Novo Testamento
cristatildeo fenocircmeno que no Ocidente se deu mais cedo do que no Oriente Em 397 o Siacutenodo
de Cartago reconheceu-o como texto sagrado e na igreja grega no fim do seacuteculo quinto ele
jaacute tinha aceitaccedilatildeo geral3 A partir de entatildeo ele seraacute lido como obra sagrada pelas diversas
comunidades cristatildes tornando-se elemento significativo no fornecimento de imagens e
siacutembolos para composiccedilatildeo de diversas representaccedilotildees sociais antigas e medievais
Mais de mil anos depois de Joatildeo nasceu em Celico na Calaacutebria sul da Peniacutensula
Itaacutelica um homem chamado Joaquim Quando jovem foi educado para atuar como notaacuterio
a serviccedilo do Reino Normando da Siciacutelia mas acabou deixando a corte para abraccedilar a vocaccedilatildeo
monaacutestica Ele comeccedilou a vida religiosa como eremita mas depois ingressou em um
pequeno cenoacutebio em Corazzo na Calaacutebria terminando por fundar no final da vida uma
casa monaacutestica em Fiore a fim de receber os vaacuterios disciacutepulos que desejavam segui-lo Este
monge de meados do seacuteculo XII produziu uma longa reflexatildeo sobre a histoacuteria lastreada
sobre a exegese dos textos biacuteblicos sobre o dogma trinitaacuterio e principalmente sobre o livro
2 WAINWRIGHT Arthur W Mysterious Apocalypse interpreting the Book of Revelation Wipf and Stock
Publishers Eugene 2001 p 21 3 Idem p 33-34
13
do visionaacuterio de Patmos Segundo ele o curso inteiro da histoacuteria estaria ldquoescondidordquo no
Apocalipse embora suas reflexotildees sejam primariamente dirigidas para a histoacuteria da igreja
desde o nascimento de Jesus ateacute a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de felicidade na terra Joaquim
escreveu vaacuterias obras em que trabalhou este mesmo tema4
- Expositio de prophetia ignota Romae reperta Foi composta em 1184 apoacutes o
encontro entre Joaquim e o papa Luacutecio III e consiste na interpretaccedilatildeo de um texto encontrado
entre os documentos do falecido cardeal Matias de Angers relacionado com profecias cristatildes
tradicionais a respeito do fim dos tempos
- De septem sigillis Eacute um pequeno opuacutesculo composto por Joaquim para servir de
guia e resumo do seu esquema das perseguiccedilotildees paralelas do Antigo e Novo Testamentos
baseado nos sete selos do Apocalipse de Joatildeo
- Enchiridion super Apocalypsim Eacute um manual sobre o Apocalipse e deveria servir
de introduccedilatildeo agrave obra joanina Foi escrito durante o periacuteodo que Joaquim passou em
Casamari entre os anos 1183 e 1184
- Praephatio super Apocalypsim Eacute a reuniatildeo de dois pequenos sermotildees de Joaquim
sobre o Apocalipse de Joatildeo pregados possivelmente para os monges de Corazzo Foram
reunidos posteriormente e circularam como uma uacutenica obra por causa de afinidades
temaacuteticas Eacute a uacutenica obra de Joaquim traduzida para a liacutengua portuguesa5
- Adversus Iudaeos No formato de tratado este texto descreve uma expectativa de
conversatildeo geral dos judeus no final dos tempos
- De ultimis tribulationibus Pequeno texto em forma de oraccedilatildeo possivelmente
declamado durante um encontro lituacutergico no mosteiro de Fiore
- Expositio in Apocalypsim Joaquim o iniciou em 1183-1184 mas soacute foi concluiacutedo
entre 1198 e 1200 Eacute tambeacutem a maior obra de Joaquim escrita num latim denso e complexo
Eacute possiacutevel dizer entatildeo que o abade de Fiore desde que abraccedilou a vocaccedilatildeo
monaacutestica decidiu fazer o que Bernard McGinn chamou de ldquocomer o Apocalipserdquo ou digeri-
lo lentamente analogia ao texto do Apocalipse em que o visionaacuterio eacute convidado a comer um
4 Quanto agrave data das obras cf TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di
Gioacchino da Fiore In GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p
73-106 Para uma lista dos manuscritos joaquimitas cf REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the
Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 511-519 5 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse Veritas Porto Alegre v 47 n 3 p 453-471 2002
BERNARDI Orlando Comentaacuterio ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla
Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010
14
livro entregue por um anjo 6 Dentre seus vaacuterios textos evidentemente o destaque fica para
o Expositio jaacute que representa o trabalho final do abade sobre a obra joanina
A partir destes dois personagens o que fizemos nesta tese foi analisar de forma
comparativa o Apocalipse de Joatildeo e o Expositio de Joaquim Em funccedilatildeo mesmo da extensatildeo
das obras e das dificuldades provocadas pelas distacircncias geograacuteficas e temporais entre elas
focaremos na categoria descrita como ldquomilenarismordquo7 e os recortes textuais de Apocalipse
201-10 bem como sua apropriaccedilatildeo na seacutetima parte do Expositio in Apocalypsim (209v-
213r) Em termos especiacuteficos indagaremos sobre a forma como Joaquim interpretou o
milecircnio do Apocalipse e a concepccedilatildeo milenarista que aparece no final
Eacute preciso destacar que cada um de nossos objetos de pesquisa tem sua proacutepria
historiografia Sobre Joatildeo de Patmos e seu Apocalipse por exemplo eacute preciso mencionar
primeiramente o grande volume de obras que se propotildee a fazer uma interpretaccedilatildeo semi-
literal esperando que as visotildees de Joatildeo se convertam em cenas histoacutericas de futuro proacuteximo
tomando o livro joanino como um depoacutesito de profecias predominantemente de
cumprimento iminente Esta tradiccedilatildeo interpretativa nas suas principais configuraccedilotildees
contemporacircneas parecem retroceder a John Nelson Darby (1800-1882) e agraves notas da Biacuteblia
de Estudo Scofield cuja primeira ediccedilatildeo saiu em 19098 Nesta linha eacute possiacutevel mencionar
obras de enorme circularidade como The Late Great Planet Earth (1970) de Hal Lindsey
que vendeu mais de 20 milhotildees de exemplares na sua primeira deacutecada de publicaccedilatildeo9 ou a
seacuterie de dez novelas de Tim LaHaye e Jerry Jenkins intitulada Left Behind escritas de 1995
ateacute 2002 que ultrapassou a quantia de 63 milhotildees de coacutepias vendidas em 37 paiacuteses e 33
liacutenguas diferentes10 Esta tradiccedilatildeo pode ser caracterizada por algumas ecircnfases gerais como
a ideia de um arrebatamento secreto dos crentes fieacuteis a Jesus a conversatildeo final dos judeus
ao Cristianismo e um periacuteodo milenar de felicidade na terra O Apocalipse eacute tratado como
6 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale Gecircnova
Casa Editrice Marietti 1990 p 159 A passagem em questatildeo se encontra em Apocalipse 10 7 Adotamos aqui a concepccedilatildeo de ldquomilenarismordquo do historiador inglecircs Norman Cohn entendendo-a como um
tipo particular de utopia salvacionista que apresenta os seguintes traccedilos gerais coletiva jaacute que todos os fieacuteis
experimentariam a felicidade terrena em funccedilatildeo do fato de que essa felicidade seria alcanccedilada neste mundo e
natildeo numa realidade transcendente total pois aguarda uma completa inversatildeo de todos os males da terra
iminente jaacute que essa transformaccedilatildeo completa estaria perto de comeccedilar e miraculosa agrave luz da certeza de que
essa mudanccedila contaria com a ajuda de seres sobrenaturais Cf COHN Norman Na senda do milecircnio
milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 8 Sobre o papel significativo de John Nelson Darby e a Biacuteblia de Estudo Scofield na interpretaccedilatildeo
contemporacircnea do Apocalipse cf KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford
Blackwell Publishing 2004 p 24-25 WAINWRINGHT op cit p 82-83 9 WAINWRINGHT op cit p 84 10 MONAHAN Torin Marketing the beast Left Behind and the apocalypse industry Media Culture amp
Society Thousand Oaks n 30 p 813-830 2008 p 817
15
parte de um grande quebra-cabeccedila que revelaria por meio de coacutedigos e imagens eventos
dos dias contemporacircneos como o papel dos Estados Unidos no aparecimento do Anticristo
ou o surgimento de um liacuteder poliacutetico de origem socialista como o falso profeta de Apocalipse
13
Do outro lado normalmente vinculados a instituiccedilotildees universitaacuterias estatildeo
pesquisadores cujo foco reside em aspectos histoacutericos do Apocalipse Estudiosos desta linha
histoacuterica se preocupam com a relaccedilatildeo entre Joatildeo e o tempo de produccedilatildeo do Apocalipse
Sendo assim eles procuram perceber ateacute onde o autor na sua narrativa apocaliacuteptica reflete
os medos e esperanccedilas dos grupos que representa ou antagoniza Esses autores tendem a
procurar similaridades entre as visotildees de Joatildeo e eventos contemporacircneos do primeiro seacuteculo
Eles estudam as razotildees que teriam levado o autor ateacute a ilha de Patmos ateacute que ponto o
Impeacuterio Romano promoveu algum tipo de desconforto para as igrejas e as implicaccedilotildees do
governo de Domiciano sobre o movimento de Jesus no final do primeiro seacuteculo Essas
ecircnfases histoacutericas podem ser encontradas por exemplo em R H Charles11 G B Caird12
A Y Collins13 C Rowland14 Leonard Thompson15 C Bauckham16 E S Fiorenza17 e
David Aune18 Estudos como os de C J Hemer19 ainda podem ser uacuteteis para esclarecer
aspectos especiacuteficos das igrejas da Aacutesia menor
Uma significativa tendecircncia de pesquisa eacute a que busca trabalhar o livro de Joatildeo agrave luz
de questotildees como retoacuterica20 e gecircnero21 Esta linha transita do meacutetodo histoacuterico e literaacuterio
para um paradigma de interpretaccedilatildeo retoacuterica Dentro dessa tendecircncia estuda-se a obra de
11 CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New York Charles
Scribner amp Sons 1920 12 CAIRD G B A Commentary on the Revelation of St John the Divine New York Harper amp Row Publishers
1966 13 COLLINS Adela Yarbro The Apocalypse Wilmington Michael Grazier Inc 1982 14 ROWLAND Christopher The Open Heaven A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity
London SPCK 1982 15 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University
Press 1990 16 BAUCKHAM Richard The cliacutemax of Prophecy London T amp T Clark 1993 17 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation Vision of a Just World Minneapolis Augsburg Fortress 1991 18 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 AUNE David E Revelation
6-16 Nashville Thomas Nelson Publishers 1998 AUNE David E Revelation 17-22 Nashville Thomas
Nelson Publishers 1998 19 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield
Academic Press Ltd 1986 20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In
BARR David L (ed) The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta
Society of Biblical Literature 2006 p 243-269 21 PIPPIN Tina The heroine and the whore fantasy and the female in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 60 p 67-90 1992
16
Joatildeo em busca da funccedilatildeo almejada para cada seccedilatildeo ou narrativa do livro percebendo-as
como discursos que buscavam retoricamente convencer uma audiecircncia determinada acerca
das posturas idealizadas por Joatildeo vistas de uma maneira geral como asceacuteticas e sectaacuterias
O Apocalipse assim refletiria a tendecircncia de um profeta judeu que cria em Jesus como o
Messias e se percebia em crise com a sociedade22
A sociologia e a antropologia forneceram aos estudiosos importantes instrumentos
de anaacutelise que nas uacuteltimas deacutecadas comeccedilaram igualmente a resultar em influentes
publicaccedilotildees Festinger23 Norman Cohn24 e John Gager25 trabalharam o apocalipse
vinculando-o aos estudos de milenarismo e a movimentos religiosos sectaacuterios A obra de
Joatildeo poderia ser vista entatildeo como o resultado de uma comunidade oprimida em confronto
com uma dissonacircncia cognitiva difiacutecil de ser conciliada com a realidade O resultado eacute a
construccedilatildeo de um mundo simboacutelico alternativo e a projeccedilatildeo de temores e ressentimentos
para o futuro por meio das imagens apocaliacutepticas
No contexto latino-americano eacute possiacutevel apontar a contribuiccedilatildeo de autores que
aplicam ao Apocalipse uma hermenecircutica da libertaccedilatildeo O livro eacute utilizado para interpretar
realidades poliacuteticas e sociais de opressatildeo contra pobres e marginalizados Dentro desta
perspectiva a obra joanina deveria servir de instrumento para promoccedilatildeo de esperanccedila de
uma vida melhor bem como para estimular resistecircncia a situaccedilotildees de violecircncia e injusticcedila
Leituras deste tipo podem ser encontradas por exemplo em Mester e Orofino26 e Pablo
Richard27
Surgiu em Satildeo Paulo na virada do seacuteculo um grupo de estudiosos vinculados agrave
UMESP voltados para trabalhar o Apocalipse literaturas a ele relacionadas e o cristianismo
dos primoacuterdios por uma oacutetica multi-disciplinar onde os temas satildeo analisados com o apoio
de diversos olhares derivados das ciecircncias da religiatildeo Antropologia da religiatildeo sociologia
da religiatildeo fenomenologia da religiatildeo psicologia da religiatildeo histoacuteria das religiotildees religiotildees
22 Entre outros conferir SILVA David A de The Revelation to John a case study in apocalyptic propaganda
and the maintenance of sectarian identity Sociological Analysis Oxford v 53 n 4 p 375-395 1992 SILVA
David A de The social setting of the Revelation to John Conflicts within fears without Westminster
Theological Journal Philadelfia v 54 p 273-302 1992 23 FESTINGER Leon (ed) When prophecy fails a social and psychological study of a modern group that
predicted the destruction of the world London Pinter amp Martin Ltda 2008 24 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 25 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 26 MESTERS Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo A teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis
Vozes 2003 27 RICHARD Pablo Apocalipse reconstruccedilatildeo da esperanccedila Petroacutepolis Vozes 1996
17
comparadas e estudos literaacuterios Nesta linha trabalham autores como Paulo Nogueira28 e Joseacute
Adriano Filho29 entre outros
Jaacute a historiografia de Joaquim de Fiore parece ter sofrido um incremento a partir das
pesquisas de Herbert Grundmann no iniacutecio do seacuteculo XX30 Grundmann focava na produccedilatildeo
de uma biografia de Joaquim daiacute seu interesse nas hagiografias e narrativas antigas sobre o
abade Em 1960 ele editou duas destas antigas narrativas uma anocircnima e outra atribuiacuteda a
Rainers de Ponza que se tornaram entatildeo fontes fundamentais dos estudiosos
contemporacircneos sobre o abade de Fiore
No mesmo periacuteodo em que Grundmann pesquisava na Alemanha Ernesto Buonaiuti
especialmente a partir de 1930 trabalhava na Itaacutelia na ediccedilatildeo das obras de Joaquim de
pequeno porte O pesquisador italiano chegou a produzir uma anaacutelise abrangente do
pensamento joaquimita31 poreacutem concentrou-se em disponibilizar para os pesquisadores
ediccedilotildees criacuteticas das obras Ele tambeacutem traduziu algumas dessas obras para a liacutengua italiana
Outros estudiosos se envolveram no mesmo ofiacutecio de Buonaiuti fazendo com que as
seguintes obras jaacute apresentassem ediccedilotildees criacuteticas Tractatus super Quatuor Evangelia
(1930) De articulis fidei e Sermotildees (1936) Epistola universis Christi fidelibus e Epistola
domini Valdonensi (1937) Dialogi de prescientia Dei et predestinatione electorum (1938)
Enchiridion in Apocalypsim (1938) Hymnus de paacutetria coelesti (1899) Visio admiranda de
gloria paradisi (18991938) De vita sancti Benedicti et de officio divino secundum ejus
doctrinam (1951) Liber Figurarum (1953) Super flumina Babylonis (1953) De septem
sigillis (1954) Adversus Iudeos (1957) Carta Testamentaacuteria (1960)
Das grandes obras de Joaquim entretanto apenas uma recebeu ediccedilatildeo parcial E
Randolph Daniel editou Liber Condordiae Novi ac Veteris Testamenti32 As outras duas
Expositio in Apocalypsim e Psalterium decem chordarum somente estatildeo acessiacuteveis pelas
ediccedilotildees da Junta de Veneza (seacuteculo XVI) reimpressas em 19641965 pela Editora Minerva
de Frankfurt
28 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza (org) Religiatildeo de visionaacuterios apocaliacuteptica e misticismo no
cristianismo primitivo Satildeo Paulo Loyola 2005 29 ADRIANO FILHO Joseacute O Apocalipse de Joatildeo como relato de uma experiecircncia visionaacuteria Anotaccedilotildees em
torno da estrutura do livro Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana Satildeo Paulo n 34 p 7-29 1999 30 GRUNDMANN Herbert Studien uumlber Joachim von Floris GMBH Springer Fachmedien Wiesbaden
1927 Para a historiografia anterior a Grundmann cf LA PINA George Joachim of Flora a critical survey
Speculum Cambridge v 7 n 2 p 257-282 1932 31 BUONAIUTI Ernesto Gioacchino da Fiore I tempi La vita Il messaggio Roma Consenza 1931 32 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Noui ac Veteris Testamenti
Independence Square American Philosophical Society 1983
18
O trabalho editorial das obras de Joaquim tem sido pontual e esporaacutedico Ainda haacute
muito espaccedilo para reflexotildees nesta aacuterea mesmo do material jaacute editado no iniacutecio do seacuteculo
XX em funccedilatildeo do avanccedilo no trabalho de restauraccedilatildeo de manuscritos antigos Vaacuterias obras
de Joaquim ainda precisam ser traduzidas para liacutenguas modernas o que facilitaria a pesquisa
e a compreensatildeo de seus textos Neste sentido eacute uacutetil apontar o trabalho de um dos membros
do conselho editorial do Centro Internazionale di Studi Gioachamiti Gian Luca Potestagrave Este
conselho desde que foi formado em 199533 tem como propoacutesito reeditar as obras de
Joaquim do iniacutecio do seacuteculo e promover a ediccedilatildeo de obras ainda natildeo editadas Potestagrave precisa
ser mencionado por ser um dos principais bioacutegrafos atuais de Joaquim especialmente depois
de sua obra Il tempo dellacuteApocalisse34
O professor alematildeo Kurt-Victor Selge outro membro do conselho editorial acima
mencionado argumentou que pelo menos trecircs fatores atrasaram a produccedilatildeo de ediccedilotildees
criacuteticas de Joaquim Primeiramente faltou apoio de alguma instituiccedilatildeo religiosa como
aquele que o luteranismo alematildeo deu para as Ediccedilotildees de Weimar das obras de Lutero ou o
papado para a Editio Leonina de Tomaacutes de Aquino a Ordem Florense fundada pelo abade
que poderia ser este apoio se enfraqueceu apoacutes sua morte ateacute desaparecer no seacuteculo XVI
por fim Joaquim se converteu num marginalizado da histoacuteria do pensamento cristatildeo Mesmo
sendo saudado por revolucionaacuterios e iluministas tal aceitaccedilatildeo natildeo se traduziu na fundaccedilatildeo
de alguma instituiccedilatildeo Nesse sentido o renovado interesse em Joaquim a partir do iniacutecio do
seacuteculo XX poderia ser explicado pelo aparecimento de uma ala modernista dentro da Igreja
Catoacutelica que buscava uma figura que legitimasse seu interesse por uma igreja mais livre e
pela busca de historiadores e filoacutesofos que se perguntavam por formas adequadas de vida
comunitaacuteria que poderiam mitigar a crise que a sociedade europeia carregava desde o seacuteculo
XIX As ideias de Joaquim chamaram a atenccedilatildeo desses estudiosos em nuacutemero cada vez
maior especialmente na Itaacutelia e Alemanha e depois tambeacutem na Espanha Inglaterra e
Estados Unidos35
Um outro tipo de pesquisa se debate natildeo com o proacuteprio Joaquim mas com o
desdobrar do seu pensamento dando origem ao que se convencionou chamar de
joaquimismo Pesquisadores desta linha se concentram em encontrar a influecircncia de Joaquim
33 HONEacuteE Eugegravene Joachim of Fiore The development of his life and the genesis of his works and doctrines
About the merits of Gian Luca Potestagraveacutes new biography Church History and Religious Culture Leida v 87
n 1 p 47-74 2007 p 49 34 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 35 Conferir esta anaacutelise em SELGE Kurt-Victor La edicioacuten criacutetica de las Opera omnia de Joaquiacuten de Fiore
Anuario de Historia de la Iglesia Navarra n 11 p 89-94 2002
19
em pensadores e escritores posteriores Em especial alguns estatildeo envolvidos em demonstrar
quais ideias de Joaquim deram iacutempetos a outras figuras e movimentos importantes Neste
acircmbito se situam autores como Marjorie Reeves36 Bernard McGinn37 e Henri de Lubac38
Estes livros se tornaram ponto de partida recente para os estudos sobre a influecircncia de
Joaquim e o desenvolvimento do joaquimismo
Nesta tendecircncia ainda se situam estudos que procuram sua contribuiccedilatildeo para a
teologia e a filosofia da histoacuteria em especial No primeiro caso apontamos Juumlrgen
Moltmann e o seu livro The Trinity and the Kingdom (1981) No segundo indicamos
pesquisadores brasileiros como Vicente Dobroruka e a busca pela relaccedilatildeo de Joaquim com
o pensamento de Ephraim Lessing (1995)39 e Noeli Dutra Rossatto sobre a relaccedilatildeo entre
Trindade e histoacuteria (2004)40 Eacute do historiador brasileiro Dobroruka a avaliaccedilatildeo de que o
sistema profeacutetico de Joaquim eacute considerado um dos pilares da moderna reflexatildeo acerca do
sentido da histoacuteria41
A partir das pontes levantadas pela historiografia aproximamo-nos das questotildees por
meio de um conjunto de conceitos oriundos da abordagem da histoacuteria cultural especialmente
promovidos pelo historiador francecircs Roger Chartier praacutetica representaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo42
Uma de suas aacutereas de pesquisa busca compreender as formas como a produccedilatildeo e recepccedilatildeo
de objetos culturais atuam na configuraccedilatildeo do mundo social Essa abordagem se mostra
revelante para nossa pesquisa justamente por promover uma histoacuteria do livro da leitura ou
das interpretaccedilotildees sociais o que nos ajuda a entender a operaccedilatildeo realizada por Joaquim de
Fiore e Joatildeo de Patmos em seus respectivos contextos Ambos satildeo produtores e receptores
de textos e tradiccedilotildees e consequemente por meio de suas praacuteticas e apropriaccedilotildees atuaram
na construccedilatildeo de novas representaccedilotildees sociais
36 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976
REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit 37 MCGINN Bernard The calabrian abbot Joachim of Fiore in the history of Western Thought New York
Macmillan Pub Co 1985 38 De LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore Madri Ediciones Encuentro 2011 39 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore Revista
Muacuteltipla Brasiacutelia v 5 n 8 p 9-28 2000 Cf tambeacutem sua obra DOBRORUKA Vicente Histoacuteria e
milenarismo ensaios sobre tempo histoacuteria e o milecircnio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 40 ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 41 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore op cit p 9 42 A noccedilatildeo de ldquopraacuteticardquo eacute intercambiaacutevel com produccedilatildeo cultural ldquoapropriaccedilatildeordquo tem relaccedilatildeo com recepccedilatildeo
cultural ldquorepresentaccedilatildeordquo entretanto carrega certa ambiguidade Em alguns momentos Chartier a usa para
falar de estruturas em outro do conteuacutedo das estruturas Cf CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre
praacuteticas e representaccedilotildees Algeacutes Difusatildeo Editorial 2002 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo
Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191 1991
20
Eacute possiacutevel entender as representaccedilotildees como classificaccedilotildees divisotildees e delimitaccedilotildees
que organizam a apreensatildeo do mundo social Elas satildeo categorias intelectuais elementos
mentais estruturantes da realidade exterior subjetivaccedilotildees de realidades materiais
organizadas segundo determinados padrotildees O ser humano jaacute nasce mergulhado num mundo
construiacutedo Ele natildeo participou de sua construccedilatildeo mas em algum momento precisou introjetaacute-
lo e estruturaacute-lo subjetivamente para que ele se tornasse o seu proacuteprio mundo43 Estas
representaccedilotildees individuais ou coletivas geram praacuteticas culturais como a produccedilatildeo de um
livro a verbalizaccedilatildeo dos discursos a idealizaccedilatildeo de comportamentos e valores especiacuteficos
em detrimento da estigmatizaccedilatildeo de outros
A noccedilatildeo dupla de representaccedilotildees e praacuteticas se constitui como poacutelo de um processo
amplo jaacute que natildeo apenas as representaccedilotildees geram praacuteticas mas tambeacutem as praacuteticas geram
representaccedilotildees O tal mundo social como representaccedilatildeo eacute formado por um processo
contiacutenuo de moldes e formas manifestados em discursos que tanto o apreendem quanto o
estruturam44 Numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre as praacuteticas e representaccedilotildees Chartier aponta
a apropriaccedilatildeo entendida como o processo pelo qual um sentido eacute historicamente
produzido45 Apropriaccedilatildeo tem a ver com construccedilatildeo de sentido interpretaccedilatildeo categoria uacutetil
para problematizar a dinacircmica entre sujeito produtor de cultura e sujeito consumidor de
cultura Um livro como objeto da cultura eacute o resultado da produccedilatildeo de sentido de um autor
mas tambeacutem gerador de sentidos nas matildeos de um leitor que se apropria da obra e cria novos
significados Uma anaacutelise das apropriaccedilotildees teria relaccedilatildeo com as condiccedilotildees e os processos de
produccedilatildeo de sentido Cabe descobrir como isso se daacute e verificar as novas formas
constitutivas de mundo46 a partir da leitura ou audiccedilatildeo jaacute que textos podem ser lidos ou
ouvidos em espaccedilos privados ou puacuteblicos Segundo Chartier a apropriaccedilatildeo natildeo se daacute de
forma passiva jaacute que quem recebe um texto pode promover uma apropriaccedilatildeo seletiva ou
mesmo criativa transformando e ateacute negando o sentido do texto lido47 Joaquim por
exemplo construiu um comentaacuterio biacuteblico gecircnero literaacuterio voltado primariamente para
buscar e criar sentidos atraveacutes da apropriaccedilatildeo do texto do Apocalipse de Joatildeo
43 BERGER Peter LUCKMANN Thomas A construccedilatildeo social da realidade tratado de sociologia do
conhecimento Petroacutepolis Vozes 1973 p 87 44 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 23 45 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 179 46 Para os socioacutelogos Berger e Luckmann ldquomundordquo eacute aquilo que as pessoas reconhecem ou entendem existir
independente de sua vontade ou independente delas Cf BERGER Peter LUCKMANN Thomas op cit p
10 47 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 10
21
Daiacute a necessidade de buscar as praacuteticas que organizam os modos de relacionamento
com os textos diferenciadas histoacuterica e socialmente48 Cada comunidade grupo ou
sociedade tem sua proacutepria maneira de ler e interpretar Haacute processos historicamente
condicionados de padronizaccedilatildeo de escrita (gecircnero literaacuterio) da mesma forma como de
leitura que criam limites para o que eacute possiacutevel escrever mas tambeacutem para o que eacute possiacutevel
ver no que estaacute escrito Satildeo as determinaccedilotildees enquadramentos e condicionamentos que
viabilizam tanto a produccedilatildeo quando a apropriaccedilatildeo de uma obra
A apropriaccedilatildeo eacute para o historiador francecircs uma relaccedilatildeo sempre dinacircmica e
dependente de uma seacuterie de fatores Neste sentido as determinaccedilotildees podem se materializar
em situaccedilotildees como a forma em que o manuscrito foi acessado o tipo de material os
procedimentos de leitura a competecircncia dos inteacuterpretes os viacutenculos sociais dos leitores ou
o espaccedilo da audiccedilatildeo49 Os atos de ler e interpretar estatildeo situados no limite entre leitores
determinados por suas posiccedilotildees e textos cujos significados dependem da forma como se
apresentam os discursos e as maneiras como eles satildeo acessados
A leitura neste caso pode gerar tanto representaccedilotildees quanto praacuteticas que natildeo se
identificam completamente com as do texto lido ou com o que o autor tentou imprimir em
sua obra50 Leitores inventam nos textos algo diferente daquilo que seria alguma intenccedilatildeo
autoral A leitura fragmenta o texto junta partes distantes preenche brechas e cria sentidos
Essa dinacircmica entre autor e leitor viabiliza o que Chartier chama de histoacuteria social
das interpretaccedilotildees ou anaacutelise das determinaccedilotildees fundamentais (sociais institucionais
culturais) dos textos e das leituras51 Daacute origem tambeacutem a uma histoacuteria da exegese ou da
hermenecircutica dos textos
O relacionamento das praacuteticas representaccedilotildees e apropriaccedilotildees se articulam com o
mundo social principalmente por trecircs aspectos
- o mundo eacute construiacutedo de forma contraditoacuteria pelos diferentes grupos que compotildeem
uma sociedade a partir de classificaccedilotildees e recortes que produzem as representaccedilotildees
- as praacuteticas promovem uma determinada identidade social uma definida maneira de
ser no mundo a indicaccedilatildeo simboacutelica de uma posiccedilatildeo ou um estatuto
- a proacutepria existecircncia do grupo ou da comunidade eacute marcada e confirmada pelas
formas institucionalizadas e objetivadas que se derivam das praacuteticas Eacute neste sentido que
48 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 181 49 Idem 50 Idem p 59 51 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 26 e 131
22
indiviacuteduos representam instituiccedilotildees e textos se tornam representativos de determinadas
posiccedilotildees sociais
Aqui Chartier alerta para um tipo de luta que natildeo eacute entre classes sociais mas entre
representaccedilotildees diferentes ou formas rivais defendidas por cada grupo para ordenar e
hierarquizar o mundo social52
Chartier nos ajudou a entender Joatildeo e Joaquim como mergulhados em diferentes lutas
de representaccedilotildees53 Nos seus textos eles manifestam conflitos sociais viacutenculos
institucionais e praacuteticas culturais Ambos em suas respectivas conjunturas histoacutericas satildeo
simultaneamente autor e leitor Eles se apropriam de fontes anteriores ou contemporacircneas
imprimindo nelas suas proacuteprias estrateacutegias de consumo de texto produzindo novos sentidos
que se materializaram em suas subsequumlentes obras Em vaacuterios momentos desta pesquisa nos
detemos em questotildees sobre as fontes que cada um leu como elas foram lidas e os sentidos
entatildeo construiacutedos Especialmente no caso do abade ele eacute um leitor expliacutecito do Apocalipse
de Joatildeo e seu comentaacuterio o resultado formal desta leitura
Nosso corpus documental assim leva em conta estes dois objetos de pesquisa com
histoacuterias textuais bem diferentes Enquanto o Apocalipse por fazer parte do cacircnon cristatildeo
tem o suporte das chamadas Sociedades Biacuteblicas54 o Expositio nem mesmo tem uma ediccedilatildeo
criacutetica
Em termos concretos existem cinco tipos de testemunhas55 do texto do Apocalipse
- seis papiros todos fragmentaacuterios
- onze manuscritos unciais trecircs deles com o texto completo
- 293 manuscritos minuacutesculos
- citaccedilotildees patriacutesticas
52 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 182 53 Em algum momento eacute possiacutevel que mesmo universos conflitantes sobrevivam simultaneamente Eacute o caso de
um grupo que constroacutei uma subsociedade dentro da sociedade maior formando uma espeacutecie de refuacutegio e base
para a manutenccedilatildeo do seu mundo dissidente Para isso ele precisa criar procedimentos para proteger a
existecircncia precaacuteria dessa subsociedade das ameaccedilas que vecircm de fora Um dos mais importantes procedimentos
seraacute a limitaccedilatildeo dos relacionamentos significativos para exclusiva ou predominantemente dentro do grupo
Os membros do grupo devem evitar se relacionar significativamente com pessoas de fora que possuem visotildees
divergentes de mundo surgindo entatildeo um comportamento sectaacuterio Cf NEWSOM Carol A The Self as
Symbolic Space Constructing Identity and Community at Qumran Atlanta Society of Biblical Literature
2007 p 12 54 Sobre a produccedilatildeo do texto criacutetico do Apocalipse cf DELOBEL J Le texte de lApocalypse Problegravemes de
meacutethode In Lambrecht (ed) LrsquoApocalypse Johannique et lrsquoApocalyptique dans le Nouveau Testament
Louvain University Press 1980 p 151-166 AUNE David E Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-clix 55 O termo ldquotestemunhardquo eacute usado em ediccedilotildees criacuteticas e obras de criacutetica textual do Novo Testamento para fazer
referecircncia a fontes que conteacutem de forma completa ou fragmentaacuteria o texto biacuteblico como por exemplo um
manuscrito uma traduccedilatildeo antiga uma citaccedilatildeo antiga ou uma transcriccedilatildeo em artefatos arqueoloacutegicos
23
- traduccedilotildees antigas
Estas testemunhas formam a base sobre a qual trabalham os estudiosos que preparam
ediccedilotildees criacuteticas do Apocalipse Dentre essas as trecircs primeiras (papiros unciais e
minuacutesculos) destacam-se na reconstruccedilatildeo do que teria sido o autoacutegrafo56 do Apocalipse pela
relaccedilatildeo direta com o grego idioma de origem da obra joanina
Os seis papiros (P18 P24 P43 P47 P85 e P98) contecircm apenas fragmentos de texto O
mais antigo destes o P98 datado para um periacuteodo tatildeo recuado quanto o seacuteculo II e
consequentemente a mais antiga testemunha textual do Apocalipse preserva apenas
Apocalipse 113-20 Os demais papiros foram produzidos entre os seacuteculos III e V57
Dentre os 11 manuscritos unciais relacionados com o Apocalipse (a A C P 046
051 052 0163 0169 0207 0229) apenas trecircs deles possuem o Apocalipse na sua forma
completa (a A e 046) Os demais preservaram apenas fragmentos como o MS 0169 que
conteacutem apenas Apocalipse 319-43Trecircs deles satildeo datados para o seacuteculo IV (a 0169 e 0207)
trecircs para o seacuteculo V (A C e 0163) um para os seacuteculos VII-VIII (0229) um para o seacuteculo IX
(P) e trecircs para o seacuteculo X (046 051 e 052) Isso significa que a coacutepia completa mais antiga
do texto grego do Apocalipse estaacute no MS a do seacuteculo IV localizado no London British
Museum58
293 manuscritos minuacutesculos satildeo conhecidos por conter pelo menos alguma parte do
Apocalipse Um eacute coacutepia do seacuteculo IX oito do seacuteculo X 35 do seacuteculo XI 30 do seacuteculo XII
58 do seacuteculo XIV 57 do seacuteculo XV 40 do seacuteculo XVI 13 do seacuteculo XVII cinco do seacuteculo
XVIII e dois do seacuteculo XIX Os outros 44 manuscritos minuacutesculos apresentam dificuldades
para a dataccedilatildeo com sugestotildees que variam do seacuteculo IX ateacute o XV59
O conjunto das jaacute mencionadas testemunhas textuais com a inclusatildeo das citaccedilotildees
patriacutesticas e as traduccedilotildees antigas pode ser estruturado em quatro tradiccedilotildees textuais
56 Termo utilizado para fazer referecircncia a um hipoteacutetico texto original Como os originais se perderam a funccedilatildeo
dos estudiosos eacute reconstruiacute-los por meio de comparaccedilatildeo e colagem de diversos tipos de testemunhas seguindo
criteacuterios como antiguidade estilo origem do manuscrito famiacutelia de manuscritos entre outros Conferir uma
descriccedilatildeo destes procedimentos em ALAND Kurt ALAND Barbara The text of the New Testament an
introduction to the critical editions and to the theory and practice of modern textual criticism Grand Rapids
William B Eerdmans Publishing Company 1989 p 280-316 ELLIOTT J K New Testament textual
criticism the application of thoroughgoing principles Leiden Brill 2010 p 13-52 VAGANAY Leon An
introduction to the New Testament textual criticism Cambridge Cambridge University Press 1982 p 52-88 57 AUNE David Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-cxxxviii 58 Idem p cxxxviii 59 Conferir a lista completa dos 293 manuscritos com dataccedilatildeo e descriccedilatildeo do conteuacutedo em AUNE David E
Revelation 1-5 op cit p cxxxix-cxlviii
24
- A primeira eacute denominada de ldquotexto neutrordquo por Aune que a considera a ldquoa melhor
testemunha do texto grego do Apocalipserdquo60 Ela consiste dos unciais A e C bem como do
minuacutesculo 2053
- A segunda consiste no P47 o mais antigo manuscrito do Apocalipse datado para o
segundo seacuteculo junto com o uncial a e as citaccedilotildees de Oriacutegenes
- A terceira parte do texto encontrado no comentaacuterio do Apocalipse de Andreas de
Cesareia na Capadoacutecia que escreveu entre 563-614 Tambeacutem se inscrevem nesta tradiccedilatildeo
textual as duas coacutepias da versatildeo geoacutergica do Apocalipse datadas para o seacuteculo X
- A quarta eacute a mais numerosa e recebe o tiacutetulo de ldquotexto bizantinordquo definida em linhas
gerais como de pouca confianccedila para a restauraccedilatildeo do autoacutegrafo61
A maioria dos manuscritos gregos do Apocalipse62 bem como as demais
testemunhas em linhas gerais guardam relaccedilatildeo predominantemente com o texto bizantino
Isso significa que os textos criacuteticos tendem a partir do texto neutro confrontando-o com a
segunda e terceira tradiccedilatildeo63 e em alguns poucos casos com o texto bizantino
A perspectiva desta histoacuteria textual do Apocalipse eacute uacutetil para o caso de confronto
entre as variantes textuais de alguma passagem especiacutefica do texto de Joatildeo mas o trabalho
eacute enormemente facilitado pelas ferramentas jaacute disponiacuteveis nas duas ediccedilotildees criacuteticas
publicadas
- ALAND Kurt (ed) The Greek New Testament Stuttgart Deutsche
Bibelgesellschaft 1994
- NESTLE Eberhard NESTLE Erwin ALAND Kurt (org) Novum Testamentum
Graece 27 ed Stuttgart Gesamtherstellung Biblia-Druck 1993
Ambas as ediccedilotildees utilizam o mesmo texto criacutetico mas variam na forma como
apresentam e organizam as variantes textuais Destacamos ainda que o papel da ediccedilatildeo
criacutetica do Apocalipse eacute de indicar o autoacutegrafo provaacutevel produzido por Joatildeo natildeo
necessariamente o texto lido por Joaquim nas bibliotecas monaacutesticas por onde passou
(Sambucina Corazzo Casamari e Fiore) Esta uacuteltima por sinal foi destruiacuteda num incecircndio
apoacutes a morte do seu fundador
60 Idem p clvi 61 Idem p clvii 62 Uma lista ampla destes manuscritos com anaacutelise individualizada pode ser encontrada em HOSKIER H
C Concerning the text of the Apocalypse London Bernard Quaritch Ltd 1929 2 v Outra anaacutelise estaacute
disponiacutevel em CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New
York Charles Scribner amp Sons 1920 2 v V 2 p 227-385 63 ELLIOTT op cit p 150
25
Natildeo se sabe quantas coacutepias dos manuscritos de Joaquim foram queimados neste
incecircndio De qualquer forma como jaacute argumentamos foram outros os motivos que
limitaram a difusatildeo dos manuscritos do abade Muito diferente do nuacutemero de testemunhas
de Apocalipse o Expositio in Apocalypsim sobreviveu em apenas seis manuscritos64
- MS 249 em Troyes na Biblioteca Municipal nos foacutelios 38-107 do seacuteculo XIII
- MS H 15 em Milatildeo na Biblioteca Ambrosiana nos foacutelios 65-160 do seacuteculo XIII
ou XIV
- MS Chig A VIII 231 em Roma na Biblioteca do Vaticano nos foacutelios 1-104 do
seacuteculo XIV
- MS 1411 em Roma na Biblioteca Casanatense foacutelios 1-91 do seacuteculo XIV
- MS Cent II 51 em Nuremberg na Stadtbibliothek nos foacutelios 127-373 do seacuteculo
XV
- MS Harley 3049 em Londres no Museu Britacircnico nos foacutelios 137-220 do seacuteculo
XV
- MS A 450 em Rouen na Biblioteca Municipal nos foacutelios 1-31 do seacuteculoXVI
No seacuteculo XVI entretanto a Junta de Veneza editou na forma de incunaacutebolo as trecircs
obras principais de Joaquim Concordia no ano 1519 Expositio e Psalterium em 1527 Estas
foram reimpressas no seacuteculo XX pela Editora Minerva Eacute esta ediccedilatildeo do Expositio in
Apocalypsim65 que usamos em nossa anaacutelise Ela estaacute composta por foacutelios escritos na frente
e no verso Apenas as partes frontais dos foacutelios satildeo numeradas de 1 a 224 Cada foacutelio ainda
tem duas colunas Sendo assim o Expositio eacute referenciado indicando-se o nuacutemero do foacutelio
e se eacute frente ou verso (ldquorrdquo quando for a parte frontal ldquovrdquo para o verso do foacutelio) Neste sentido
ele comeccedila em 26v ou seja no verso do foacutelio 26 e termina em 224r ou seja na parte frontal
do foacutelio 224
Nosso trabalho estaacute estruturado em sete capiacutetulos Usaremos o primeiro capiacutetulo para
analisar a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso implica discutir as condiccedilotildees
histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento de Jesus ateacute a ilha de Patmos
para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na proviacutencia da Aacutesia
Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destinataacuterios data e propoacutesito do Apocalipse bem
64 REEVES Marjorie The influence of prophecy in the later Midlle Ageshellip p 513 65 JOAQUIM VON FIORE Expositio in Apocalypsim Frankfurt Minerva 1964
26
como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com forma e conteuacutedo
definidos
No capiacutetulo segundo nos deteremos na anaacutelise da situaccedilatildeo das igrejas da proviacutencia
romana da Aacutesia em especial as disputas de poder os conflitos com as comunidades judaicas
e as tentativas de interaccedilatildeo com a sociedade romana O objetivo eacute definir as condiccedilotildees de
produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo
O terceiro capiacutetulo analisaraacute Apocalipse 201-10 tendo em vista sua relaccedilatildeo com a
obra como um todo por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos partindo da
traduccedilatildeo do texto grego para definir suas representaccedilotildees de histoacuteria e milenarismo bem
como seus pontos de partida e condiccedilotildees de emergecircncia
O quarto capiacutetulo aplicaraacute no Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram
lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar
elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso
este seraacute o espaccedilo privilegiado para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando
apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o
livro joanino
O quinto capiacutetulo analisa as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia
meridional normanda bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio
Hohenstaufen Estes aspectos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim seus
condicionados e viacutenculos poliacuteticos e religiosos
O sexto capiacutetulo problematizaraacute as estrateacutegias de leitura de Joaquim e sua
metodologia hermenecircutica para tanto analisando formas de apropriaccedilatildeo mediadas pela
diacronia O seacutetimo capiacutetulo partindo de uma siacutentese do texto latino trataraacute da seacutetima parte
do Expositio por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos Analisamos nele as
representaccedilotildees milenaristas e histoacutericas do abade e igualmente seus antecedentes e fatores
de emergecircncia Por fim na conclusatildeo nos perguntamos pelas convergecircncias e divergecircncias
entre Joatildeo e Joaquim profeta e monge Apocalipse e Expositio Patmos e Calaacutebria
I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO
Neste capiacutetulo analisaremos a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso
implica discutir as condiccedilotildees histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento66
de Jesus ateacute a ilha de Patmos para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na
proviacutencia da Aacutesia Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destino data e propoacutesito do
Apocalipse bem como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com
forma e conteuacutedo definidos
11 O autor do Apocalipse
A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta pelo menos dois
elementos principais Primeiramente busca-se em fontes antigas ou paralelas algo que
indique quem escreveu o texto Satildeo as chamadas evidecircncias externas Num segundo instante
observa-se a obra para verificar o que ela mesma consegue indiciar sobre seu autor no que
se pode denominar de evidecircncia interna No caso do Apocalipse tanto um quanto outro
levam em conta a aparente auto-identificaccedilatildeo do autor como ldquoJoatildeordquo (Ἰωάννhj)
- ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas
que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao
seu servo Joatildeordquo (Apocalipse 11)67
- ldquoJoatildeo agraves sete igrejas que se encontram na Aacutesia graccedila e paz a voacutes outros da parte
daquele que eacute que era e que haacute de vir da parte dos sete Espiacuteritos que se acham diante do seu
tronordquo (Apocalipse 14)
66 O termo ldquomovimentordquo eacute uacutetil para descrever a fase preacute-institucional do que viria a se tornar o Cristianismo
Quanto ao uso deste termo conferir o socioacutelogo THEISSEN Gerd Sociologia do Movimento de Jesus Satildeo
Leopoldo Sinodal 1997 p 11 tambeacutem STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria
social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo
Satildeo Leopoldo Sinodal 2004 p 218 Sobre a relaccedilatildeo entre essas comunidades e o restante do Judaiacutesmo Cf
FRIESEN Steve Sarcasm in Revelation 2-3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In
BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta
Society of Biblical Literature 2006 p 142 67 Usaremos para as citaccedilotildees biacuteblicas em portuguecircs a Versatildeo Revista e Atualizada de Almeida salvo quando
se tratar de traduccedilatildeo proacutepria como encontrada em BIacuteBLIA SAGRADA Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1980
28
- ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila
em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho
de Jesusrdquo (Apocalipse 19)
- ldquoEu Joatildeo sou quem ouviu e viu estas coisas E quando as ouvi e vi prostrei-me
ante os peacutes do anjo que me mostrou essas coisas para adoraacute-lordquo (Apocalipse 228)
Essas passagens do Apocalipse indicam que Joatildeo eacute o nome assumido pelo autor
autor este que se insere na obra na forma de um personagem enquanto descreve eventos e
experiecircncias religiosas Natildeo haacute qualquer outro nome vinculado a Joatildeo Identificaccedilotildees
romanas levavam em conta geralmente preacute-nome nome e poacutes-nome como o Imperador
Titus Flavius Domitianus Identificaccedilotildees judaicas seguiam nome e filiaccedilatildeo geralmente o
nome do pai (Isaque ben Abraatildeo) mas agraves vezes a identificaccedilatildeo da cidade (Jesus de Nazareacute)
O Joatildeo do Apocalipse entretanto parece ser suficientemente conhecido da sua audiecircncia
para que natildeo precise se apresentar com nada mais aleacutem do que um nome Kuumlmmel entende
em funccedilatildeo disso que ldquoo simples nome de Joatildeo indica uma personalidade comumente
conhecida e a maneira auto-evidente com que ele coloca seus apelos no sentido de ser
ouvido mostra dever tratar-se de um homem que goza de grande autoridaderdquo68
O autor do livro tambeacutem se apresenta como irmatildeo e companheiro (ldquoἀδελφς καὶ
συγκοινωνςrdquo) daqueles que iratildeo receber sua mensagem (Apocalipse 19) o que reforccedila a
sugestatildeo de que ele era bem conhecido de sua audiecircncia
O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse pelo que se conhece foi
Papias bispo de Hierapolis uma cidade proacutexima de Laodiceia uma das cidades que aparece
como destinataacuteria do livro (Apocalipse 314-22) Ele atuou como liacuteder eclesiaacutestico no inicio
do segundo seacuteculo e escreveu uma obra intitulada ldquoInterpretaccedilotildees de ditos do Senhorrdquo Esta
obra se perdeu mas foi citada por muitos autores antigos Andreas bispo de Cesareia na
Capadoacutecia escrevendo um comentaacuterio do Apocalipse no seacuteculo VI registrou que Papias
conheceu o Apocalipse considerava-o inspirado por Deus e comentou uma de suas
passagens (A interpretaccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo o Teoacutelogo 1011) Infelizmente natildeo haacute
nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menccedilatildeo clara sobre quem escreveu o
Apocalipse
Justino Maacutertir chegou a residir em Eacutefeso outra das cidades mencionadas diretamente
no Apocalipse (Apocalipse 21-7) por volta do ano 135 Ele escreveu no seu ldquoDialogo com
68 KUumlMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 618
29
Trifordquo na seccedilatildeo em que defende o cumprimento literal de profecias judaicas que esperavam
um reinado literal do Messias na terra que um homem chamado Joatildeo um dos apoacutestolos de
Cristo ldquonuma revelaccedilatildeo que lhe foi feita profetizou que os que tiverem acreditado em nosso
Cristo passaratildeo mil anos em Jerusaleacutemrdquo (Diaacutelogo com Trifo 814) Nos seus termos ele fez
uma referecircncia ao mais tradicional ciacuterculo de disciacutepulos de Jesus descrito regularmente
como ldquoos doze apoacutestolosrdquo Os Evangelhos canocircnicos (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo)
descrevem Jesus durante sua atividade religiosa pela Palestina cercado de um grupo de
disciacutepulos que o acompanhava a todos os lugares O Evangelho de Marcos o mais antigo
dos quatro escrito no final da deacutecada de 60 do seacuteculo I69 relaciona os seguintes nomes neste
ciacuterculo de seguidores Simatildeo Pedro Tiago e Joatildeo filhos de Zebedeu Andreacute Filipe
Bartolomeu Mateus Tomeacute Tiago filho de Alfeu Tadeu Simatildeo o cananeu e Judas
Iscariotes (Marcos 316-19) Aparentemente entatildeo Justino entendeu que o ldquoJoatildeordquo
mencionado no iniacutecio do Apocalipse era o mesmo ldquoJoatildeordquo dos primoacuterdios do movimento de
Jesus um dos seus disciacutepulos originais
Irineu fez o mesmo que Justino em torno de 180 e natildeo soacute ligou o Apocalipse ao
filho de Zebedeu como tambeacutem ao quarto Evangelho canocircnico conhecido como Evangelho
de Joatildeo (Contra as Heresias V30) Apesar de bispo na cidade de Leon na Gaacutelia ele passou
parte da infacircncia em Esmirna na Aacutesia outra das sete cidades do Apocalipse (Apocalipse
28-11)
Autores antigos como Hipolito de Roma (170-236) Tertuliano de Cartago (160-220)
e Origenes de Alexandria (morreu em 254) seguiram Irineu na opiniatildeo de que o Apocalipse
e o Evangelho de Joatildeo foram escritos pela mesma pessoa um dos disciacutepulos diretos de Jesus
o filho de Zebedeu70
No seacuteculo III entretanto Gaio um presbiacutetero da igreja de Roma promoveu forte
criacutetica contra o Apocalipse Na base deste ataque estava uma oposiccedilatildeo ao movimento
montanista Como Montano e seus seguidores eram fervorosos leitores do Apocalipse Gaio
entendeu que o livro precisava ser totalmente rejeitado pelas igrejas Ele argumentou entatildeo
que a obra natildeo era nem do apoacutestolo Joatildeo nem do presbiacutetero Joatildeo mas de um homem
chamado Cerinto Sua criacutetica foi registrada por Euseacutebio
No entanto tambeacutem Cerinto por meio de revelaccedilotildees que diz serem escritas
por um grande apoacutestolo apresenta milagres com a mentira de que lhe
69 KUumlMMEL op cit p 117 70 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The Westminster
Press 1984 p 26
30
teriam sido mostradas por ministeacuterios dos anjos e diz que depois da
ressurreiccedilatildeo o reino de Cristo seraacute terrestre e que novamente a carne que
habitaraacute em Jerusaleacutem seraacute escrava de paixotildees e prazeres Como inimigo
das Escrituras de Deus e querendo fazer errar diz que haveraacute um nuacutemero
de mil anos de festa nupcial (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XVIII 2)
Entretanto tanto a sugestatildeo de Justino e Irineu quanto a de Gaio se mostram fraacutegeis
A relaccedilatildeo do Apocalipse com um disciacutepulo direto de Jesus natildeo encontra eco dentro do
proacuteprio livro O autor se autodenomina realmente Joatildeo mas natildeo declara viacutenculo algum com
Zebedeu com um apoacutestolo ou com qualquer outro disciacutepulo de Jesus dos tempos iniciais
Se as doze pedras mencionadas na descriccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 2119-21)
evocam realmente os doze apoacutestolos como Adela Collins argumenta71 isso indicaria que os
apoacutestolos no tempo do Apocalipse jaacute haviam alcanccedilado um alto e elevado status dentro das
comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da feacute e base para a existecircncia das
igrejas Mas nada sugere que o autor se veja entre estes Os indiacutecios indicam que os apoacutestolos
eram figuras do seu passado
Nesta mesma linha se os apoacutestolos eram figuras tatildeo importantes para as igrejas e o
livro fosse uma obra pseudocircnima escrita por uma figura histoacuterica de nome Cerinto mas
atribuiacuteda retroativamente ex eventu a um grande liacuteder do passado esperava-se que o
Apocalipse contivesse viacutenculos mais expliacutecitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de
Nazareacute Mas natildeo haacute qualquer elemento no livro que pudesse levar os primeiros leitores a
fazer essa identificaccedilatildeo a natildeo ser a curta auto-apresentaccedilatildeo do autor homocircnima de um dos
antigos disciacutepulos O proacuteprio Jesus que aparece no livro estaacute bem distante daquele que se
movimenta nos Evangelhos Eacute uma figura exaltada e glorificada descrita por meio de
categorias angelicais ou divinas (Apocalipse 113-18) A ausecircncia de traccedilos ou indiacutecios de
natureza biograacutefica inviabiliza a hipoacutetese do presbiacutetero Gaio de que a obra seja pseudocircnima
O vinculo do Apocalipse com o Evangelho de Joatildeo eacute igualmente fraacutegil Dionisio um
bispo de Alexandria na segunda metade do seacuteculo III apesar de natildeo simpatizar em linhas
gerais com o Apocalipse rejeitou o ataque que Gaio e outros fizeram agrave obra Ele argumentou
que Apocalipse e Evangelho satildeo obras muito diferentes para terem sido escritas pela mesma
pessoa Sua conclusatildeo registrada por Euseacutebio foi no sentido de que os textos satildeo de autoria
diferente
Portanto natildeo contradirei que ele se chamava Joatildeo e que este livro eacute de
Joatildeo Porque inclusive estou de acordo de que eacute obra de um homem santo
e inspirado por Deus Mas eu natildeo poderia concordar facilmente em que
71 Idem p 27
31
este fosse o apoacutestolo o filho de Zebedeu e irmatildeo de Tiago de quem eacute o
Evangelho intitulado de Joatildeo e a carta catoacutelica (Histoacuteria Eclesiaacutestica VII
XXV 7)
Em funccedilatildeo de um grande nuacutemero de pessoas possuir o mesmo nome teria sempre a
possibilidade de equiacutevocos de identificaccedilatildeo Alem disso havia a tendecircncia de associar livros
sagrados a grandes figuras do passado Este era um criteacuterio comum para que estas obras
fossem aceitas e usadas nas igrejas ao lado das Escrituras judaicas
Dionisio ainda argumentou que deveria haver outro liacuteder cristatildeo de nome Joatildeo na
Aacutesia Ele faz referencia neste sentido a dois tuacutemulos ainda encontrados nos seus dias na
cidade de Eacutefeso dedicados a liacutederes antigos que levavam este nome Euseacutebio resumiu esta
perspectiva
De forma que tambeacutem isto demonstra que eacute verdade a histoacuteria dos que
dizem que na Aacutesia houve dois com este mesmo nome e em Eacutefeso dois
sepulcros dos quais ainda hoje se afirma que satildeo um e outro de Joatildeo Eacute
necessaacuterio prestar atenccedilatildeo a estes fatos porque eacute provaacutevel que fosse o
segundo ndash se natildeo se prefere o primeiro ndash o que viu a Revelaccedilatildeo
(Apocalipse) que corre sob o nome de Joatildeo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III
XXXIX 6)
Eacute difiacutecil entretanto relacionar o Joatildeo do Apocalipse com qualquer tiacutetulo eclesiaacutestico
Ele natildeo usa epiacutetetos conhecidos do periacuteodo como apoacutestolo evangelista mestre bispo
presbiacutetero ou diaacutecono Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas e
possivelmente ele as conhecia ele se recusou a usaacute-las Essa recusa pode indicar que ele natildeo
se enxergava nesses tiacutetulos ou entatildeo que as comunidades que receberam o Apocalipse natildeo
o reconheciam nos mesmos
Desta forma ainda assumindo que o nome que aparece no iniacutecio do livro eacute uma
referecircncia autecircntica (natildeo-pseudocircnima) a seu autor e que ele se chamava realmente Joatildeo as
evidecircncias externas acumuladas sobre ele natildeo representam muito O Joatildeo do Apocalipse natildeo
parece ser entatildeo o filho de Zebedeu um dos disciacutepulos originais de Jesus ou o autor do
Evangelho de Joatildeo ou uma figura antiga das igrejas conhecida como Joatildeo o presbiacutetero
Possivelmente foi a tendecircncia das igrejas em identificar os autores das obras
sagradas como apoacutestolos de Jesus e o fato do livro identificar seu autor com um ldquoJoatildeordquo que
levou Justino Irineu e os outros antigos escritores cristatildeos a associaacute-lo com o filho de
Zebedeu ou com o autor do quarto Evangelho O que parece eacute que o livro foi escrito por um
homem chamado Joatildeo que se tornou significativo para a histoacuteria do cristianismo pela
32
produccedilatildeo de apenas um livro livro esse que se constitui entatildeo na fonte mais expressiva
para indicar outros aspectos de sua identidade e seu lugar social
Aleacutem das observaccedilotildees anteriores de que Joatildeo era bem conhecido de sua audiecircncia
um segundo elemento interno a respeito de sua identidade social eacute a ligaccedilatildeo com uma
atividade conhecida como ldquoprofeciardquo Joatildeo natildeo se denomina explicitamente profeta mas o
faz implicitamente em vaacuterios lugares do Apocalipse Ele intitula sua mensagem de profecia
(Apocalipse 13 227 10 18) e narra uma experiecircncia de vocaccedilatildeo de forma muito
semelhante a profetas da tradiccedilatildeo judaica (Isaiacuteas 61-13 Jeremias 14-10 Ezequiel 28-333)
Por isso Lohse argumenta que Joatildeo foi um ldquoprofeta dos primoacuterdios do cristianismo que
atuou nas comunidades da Aacutesia com grande vigorrdquo72 Assim tambeacutem entende Bovon para
quem Joatildeo como profeta apresenta-se como um instrumento da revelaccedilatildeo divina e uma voz
do Cristo exaltado73
Estudiosos tendem a relacionar o fenocircmeno da profecia no movimento de Jesus ateacute
o inicio do segundo seacuteculo com a atividade de lideranccedila itinerante principalmente como
encontrada nas proviacutencias da Aacutesia Menor74 As comunidades locais eram dirigidas por
liacutederes assentados no meio delas que moravam nas cidades e dirigiam as congregaccedilotildees
Documentos do movimento de Jesus do iniacutecio do segundo seacuteculo denominavam estes liacutederes
de epiacutescopos presbiacuteteros e diaacuteconos (1Timoacuteteo 31-13 Tito 15-9) Do outro lado existiam
liacutederes itinerantes que viajavam de igreja em igreja de um lugar para outro normalmente
denominados de profetas apoacutestolos evangelistas ou mestres Estas distinccedilotildees natildeo eram tatildeo
riacutegidas jaacute que liacutederes locais poderiam viajar enquanto liacutederes itinerantes poderiam parar
durante certo tempo em uma igreja Um liacuteder local poderia ser itinerante num momento o
itinerante poderia eventualmente residir numa cidade Mesmo assim as definiccedilotildees
funcionais ou carismaacuteticas podem iluminar a atividade de Joatildeo como profeta na regiatildeo da
Aacutesia No Apocalipse ele faz referecircncia a sete igrejas em sete cidades (Apocalipse 111) o
que indica que ele transitava por elas O conteuacutedo das cartas do Apocalipse (Apocalipse 2-
3) sugere tambeacutem que as igrejas o conheciam o que aponta para uma atividade religiosa
mais ampla do que uma especiacutefica igreja local
Por ser profeta e profeta itinerante Joatildeo pode ter abraccedilado um estilo de vida asceacutetico
como o seu livro parece sugerir (Apocalipse 141-5) Este tipo de vida seria derivado do
72 LOHSE Eduard Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Leopoldo Sinodal 1985 p 249 73 BOVON Franccedilois Johnrsquos Self-presentation in Revelation 19-10 Catholic Biblical Quaterly Washington
n 62 p 693-700 2000 p 700 74 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 34
33
formato da atividade religiosa que Jesus desenvolveu com os seus disciacutepulos Nos
Evangelhos eles satildeo vistos constantemente viajando de lugar para lugar sem casa fixa
Ditos dos Evangelhos (Marcos 820 Mateus 1023 entre outros) ainda reforccedilam essa postura
que foi chamada por Gerd Theissen de carismatismo itinerante com a expectativa de uma
vida sem paacutetria sem famiacutelia sem posses e sem proteccedilatildeo75
Viajar de lugar para lugar rompia com os laccedilos locais de estabilidade social Os
disciacutepulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida asceacutetica e mesmo apoacutes a morte do
fundador do movimento alguns continuaram na vida andarilha Talvez seja por isso que o
autor do Didaqueacute no iniacutecio do seacuteculo II chamou a itineracircncia de ldquomodo de vida do Senhorrdquo
(Didaqueacute 118) Aleacutem dos laccedilos sociais os andarilhos tambeacutem renunciavam agrave famiacutelia Um
logia de Jesus encontrado no Evangelho de Marcos aponta neste sentido
Tornou Jesus Em verdade vos digo que ningueacutem haacute que tenha deixado
casa ou irmatildeos ou irmatildes ou matildee ou pai ou filhos ou campos por amor
de mim e por amor do evangelho que natildeo receba jaacute no presente o cecircntuplo
de casas irmatildeos irmatildes matildees filhos e campos com perseguiccedilotildees e no
mundo por vir a vida eterna (Marcos 1029-30)
Poucos dos missinaacuterios destacados pelo autor dos Atos dos Apoacutestolos satildeo descritos
em atividade familiar Natildeo haacute qualquer referecircncia agrave famiacutelia de Paulo Estes itinerantes
renunciavam tambeacutem a propriedades ou recursos financeiros o que dava ao pregador
condiccedilotildees de fazer a criacutetica contra a riqueza Quem perambulava pela Palestina Siacuteria e Aacutesia
Menor em pobreza demonstrativa poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em
descreacutedito76 Por isso o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades de Jesus
localmente constituiacutedas para ter uma porccedilatildeo miacutenima para sobreviver Isso lhes parecia bem
como aos olhos das comunidades locais uma demonstraccedilatildeo da bondade divina que natildeo
deixava o itinerante carismaacutetico morrer de fome ou sede
De qualquer forma a praacutetica do carismatismo itinerante demandava abraccedilar um estilo
radical de vida religiosa com niacutetidas consequecircncias asceacuteticas e combinava amplamente com
uma perspectiva escatoloacutegica de fim iminente da histoacuteria como provavelmente pregada por
Jesus77
75 THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op cit p 18 76 Na anaacutelise da atividade carismaacutetica itinerante cf THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op
cit p 16-22 77 ALLISON Dale C Jesus of Nazareth Millenarian prophet Minneapolis Fortress Press 1998 p 60-61
34
Aleacutem do seu papel religioso como profeta autores sugerem que Joatildeo era judeu por
nascimento um nativo da Palestina onde passou um bom tempo de sua vida78 Haacute
possibilidade de ele ter residido na Judeacuteia ateacute a instauraccedilatildeo da guerra contra os romanos (66-
70) que terminou com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico79 Esse tipo de
identificaccedilatildeo ilumina a forma como Joatildeo compreendia a relaccedilatildeo entre Israel e Igreja Ele natildeo
entendia o movimento de Jesus e suas comunidades como uma religiatildeo nova e independente
do grande e plural fenocircmeno religioso que os estudiosos chamam de Judaiacutesmo80
Joatildeo reinvidica o uso do termo ldquojudeurdquo (Ἰουδαίος) para os seguidores de Jesus
(Apocalipse 29 39) e demonstra tensatildeo com sinagogas locais que poderia indiciar mais
uma crise interna do que um conflito entre religiotildees distintas Seu uso das Escrituras judaicas
o grego semitizante do Apocalipse81 o domiacutenio da tradiccedilatildeo religiosa do periacuteodo do Segundo
Templo como apocalipses e oraacuteculos indicam uma pessoa fortemente envolvida com as
tradiccedilotildees do antigo Israel Muitas de suas perspectivas sociais e poliacuteticas poderiam derivar
de determinadas tradiccedilotildees judaicas mais do que de correntes especiacuteficas do movimento de
Jesus
Mesmo assim um aspecto significativo da identidade social do autor do Apocalipse
tem relaccedilatildeo justamente com essa ldquoseita judaicardquo O Judaiacutesmo no periacuteodo que vai da ascenccedilatildeo
hasmoneana (167 aC) ateacute pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 dC) abarcava
diversos partidos e grupos religiosos82 Um destes grupos teve iniacutecio com a atuaccedilatildeo da pessoa
de Jesus de Nazareacute entre 27-30 inicialmente na Galileacuteia para terminar com sua morte em
Jerusaleacutem O autor do Apocalipse afirma ser seguidor de Jesus (Apocalipse 19) de quem
recebeu a sua revelaccedilatildeo
Apesar de choques eventuais entre os grupos eles se reconheciam mutuamente como
herdeiros das mesmas tradiccedilotildees religiosas antigas das alianccedilas dos patriarcas das Escrituras
judaicas e da Lei de Moiseacutes Provavelmente Joatildeo se via como um judeu e membro do
fenocircmeno religioso judaico83 O mesmo poderia ser afirmado a respeito das comunidades
78 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 p 276 79 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 47 80 Sobre a pluralidade de perspectivas no interior do Judaiacutesmo cf BAUMGARTEN Albert I Ancient Jewish
Sectarianism Judaism Genebra v 47 n 4 p 387-403 1998 81 Para uma discussatildeo da linguagem do Apocalipse sua sintaxe e seu vocabulaacuterio cf CALLAHAN Allen
Dwight The Language of Apocalypse Harvad Theological Review Cambridge v 88 n 4 p 453-470 1995 82 Para uma anaacutelise ampla sobre a questatildeo da identidade judaica na antiguidade cf GOODMAN Martin
Judaism in the Roman World collected essays Leiden Brill 2007 p 21-32 83 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 277
35
que receberam o Apocalipse Elas faziam parte de um movimento que ainda se entende
judaico84 apesar da identificaccedilatildeo com um grupo especiacutefico dentro do Judaiacutesmo Eacute possiacutevel
denomina-los mesmo como judeus que reconhecem Jesus como o messias
Duas deacutecadas depois na mesma regiatildeo do Apocalipse entretanto Inaacutecio de
Antioquia falaria em suas cartas de ldquoCristianismordquo () e descreveraacute seus membros
como ldquocristatildeosrdquo () o que indica que o movimento naquele periacuteodo e na sua
expressatildeo asiaacutetica jaacute tem formulado uma identidade autocircnoma em relaccedilatildeo ao Judaismo Nos
termos de Inaacutecio ldquoeacute melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaiacutesmo
de incircuncisordquo (Carta aos Filipenses 61)85
12 A data do Apocalipse
O Apocalipse de Joatildeo eacute uma obra escrita no chamado grego koinecirc liacutengua comum
aos territoacuterios do antigo Impeacuterio de Alexandre o Grande A obra de grande porte para os
padrotildees do periacuteodo comeccedila desta forma ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para
mostrar aos servos dele as coisas que devem acontecer em breve e enviou-a sinalizando
atraveacutes do seu anjo para o seu servo Joatildeordquo86
Como boa parte das fontes antigas a obra natildeo tem tiacutetulo ou marca de identificaccedilatildeo
Mas durante seu uso logo passou a ser identificada por meio da sua primeira palavra
apocalipse transliteraccedilatildeo simples de ποκάλυψις O termo pode ser traduzido como
ldquorevelaccedilatildeordquo87
No momento de definir a data da obra o testemunho de Irineu eacute novamente invocado
pelos estudiosos Ele registrou que ldquoo Apocalipse foi visto natildeo haacute muito tempo em nossa
proacutepria geraccedilatildeo no fim do reinado de Domicianordquo (Contra as Heresias 5303) Grande parte
dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definiccedilatildeo entendendo que mesmo
que o testemunho de Irineu quanto ao nome do autor natildeo seja confiaacutevel a data ainda pode
84 Enquanto categoria religiosa e natildeo eacutetnica jaacute que natildeo era preciso ser etnicamente judeu para fazer parte do
Judaiacutesmo 85 Noutro lugar ldquoEacute preciso natildeo soacute levar o nome de cristatildeo mas ser de fatordquo (Carta aos Magneacutesios 4) A respeito
do cristianismo e judaiacutesmo em oposiccedilatildeo nas cartas de Inaacutecio cf COHEN Shaye J D Judaism without
Circumcision and ldquoJudaismrdquo without ldquoCircumcisionrdquo in Ignatius Harvard Theological Review Cambridge v
95 n 4 p 395-415 2002 86 ldquoἈποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ ἣν ἔδωκεν αὐτῷ ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐν τάχει καὶ
ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃrdquo (Apocalipse 11) 87 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 67
36
ser mantida para o fim do reinado de Domiciano em meados de 95-9688 Segundo Adela
Yarbro Colllins natildeo existe nenhuma boa razatildeo para duvidar da sugestatildeo de Irineu quanto agrave
eacutepoca do Apocalipse89 Ela pressupotildee neste caso que a obra na sua forma atual eacute o
resultado de um uacutenico autor O Apocalipse apresenta uso de fontes tradicionais ou literaacuterias
mas ainda possui uma unidade coerente subjacente a uma uacutenica autoria Nos termos de
Collins ldquoa unidade de estilo e a cuidadosa complexa e deliberada estrutura do livro como
um todo torna supeacuterflua a hipoacutetese da compilaccedilatildeo de extensas fontes escritas ou uma seacuterie
de ediccedilotildeesrdquo90
Vitorino de Pettau morto em 303 escreveu o mais antigo comentaacuterio completo do
Apocalipse a sobreviver Ao comentar a passagem do Apocalipse em que Joatildeo come um
livro (Apocalipse 103) ele escreveu
Joatildeo teve esta visatildeo quando estava na ilha de Patmos condenado agraves minas
por Cesar Domiciano Parece pois que Joatildeo escreveu dali o Apocalipse
quando jaacute era um anciatildeo Depois de seus sofrimentos quando foi
assassinado Domiciano e anulados todos os seus decretos foi Joatildeo
liberado das minas e transmitiu este mesmo Apocalipse que recebeu do
Senhor (Comentaacuterio ao Apocalipse 103)
Euseacutebio de Cesareacuteia faz comentaacuterio parecido com o de Vitorino ldquoEacute tradiccedilatildeo que
neste tempo o apoacutestolo e evangelista Joatildeo que ainda vivia foi condenado a habitar a ilha
de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deusrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III VIII 1)
Ainda ldquoFoi entatildeo que o apoacutestolo Joatildeo voltando de seu desterro na ilha retirou-se para viver
em Eacutefeso segundo relata a tradiccedilatildeo de nossos antigosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XX 9)
Esses dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante o reino de
Domiciano Ambos acrescentam que Joatildeo foi banido para Patmos pelo Imperador tendo
sido liberado apoacutes a morte do mesmo A tradiccedilatildeo neles preservada do desterro de Joatildeo ou
de Patmos como uma colocircnia penal entretanto natildeo eacute apoiada pela historiografia91 Mesmo
assim os testemunhos de Vitorino e de Euseacutebio satildeo importantes para definir a data do
Apocalipse mais ateacute do que para descrever a situaccedilatildeo em que isso se deu
Em termos de evidecircncia interna Adella Collins indicou alguns elementos que
reforccedilam a hipoacutetese da deacutecada de 90 Um primeiro pode ser encontrado no uso muito
especiacutefico que o Apocalipse faz do nome Babilocircnia (Apocalipse 148 1619 175 182
88 Entre outros KUumlMMEL op cit p 613-617 89 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57 90 Idem p 54 91 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University
Press 1990
37
10 21) Eacute muito difiacutecil que o autor da obra esteja fazendo referecircncia a antiga cidade da
Mesopotacircmia presente nas tradiccedilotildees literaacuterias judaicas por ter destruiacutedo o reino de Judaacute em
586 aC derrubado a capital Jerusaleacutem e o templo de Salomatildeo Em Apocalipse 17 Joatildeo
descreve Babilocircnia como uma mulher e pelo menos duas marcas na fala do anjo indicam
que a mulher representa a cidade de Roma O versiacuteculo nove descreve-a assentada sobre sete
montanhas ldquoAqui estaacute o sentido da sabedoria as sete cabeccedilas satildeo sete montanhas onde a
mulher estaacute assentada Tambeacutem satildeo sete reisrdquo (Apocalipse 179) O versiacuteculo 18 a apresenta
como uma cidade ldquoque tem poder sobre os reis da terrardquo Estas indicaccedilotildees para uma
audiecircncia da Aacutesia no final do primeiro seacuteculo indicariam que Babilocircnia era um siacutembolo para
a cidade de Roma A capital do Impeacuterio aparece frequentemente como a cidade das sete
montanhas (Capitoacutelio Quirinal Viminal Esquilino Ceacutelio Aventino e Palatino) e era a
cidade mais importante politicamente do Mediterracircneo
E o que essa associaccedilatildeo entre Babilocircnia e Roma poderia indicar em termos de dataccedilatildeo
para o Apocalipse A maioria das ocorrecircncias de Babilocircnia como nome simboacutelico para
Roma na literatura judaica estaacute em 4Esdras 2Apocalipse de Baruque e no quinto livro dos
Oraculos Sibilinos Nestas obras Roma eacute chamada de Babilocircnia porque ela como a antiga
cidade mesopotacircmica destruiu Jerusaleacutem e o Templo Ou seja o nome simboacutelico de Roma
Babilocircnia eacute forte indiacutecio de que o Apocalipse foi escrito apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e o
Templo no ano 7092
Aleacutem do uso simboacutelico do termo Babilocircnia para descrever Roma tiacutepico de obras
judaicas posteriores ao ano 70 Collins aponta outros elementos internos
- A lenda do retorno de Nero em Apocalipse 13 e 17 principalmente a referecircncia agraves
cabeccedilas da besta (Apocalipse 179-11) reforccedila a hipoacutetese de que o Apocalipse eacute posterior agrave
morte de Nero em 68 dC e ao aparecimento da tradiccedilatildeo de que ele retornaria para retomar
o poder93
- A concepccedilatildeo de Joatildeo de que a comunidade de Jesus eacute o novo templo de Deus bem
como a profecia de que na Nova Jerusaleacutem natildeo haveria mais templos indicariam que o
Apocalipse eacute posterior agrave destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem (70 dC)94
92 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57-58 PAGELS Elaine The Social History of
Satan Part Three John of Patmos and Ignatius of Antioch Contrasting Visions of ldquoGods Peoplerdquo Harvad
Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006 p 494 93 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 58-64 94 Idem p 64-69
38
Outros elementos como os indiacutecios de conflitos com sinagogas locais em Esmirna e
Filadeacutelfia as referecircncias a perseguiccedilotildees por parte do Impeacuterio Romano ou a crise com a
instituiccedilatildeo do Culto Imperial satildeo muito vagos para precisar melhor a data do Apocalipse
A partir dos dados internos muito provavelmente o livro eacute posterior ao ano 70 e agrave
destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico Se a hipoacutetese de que o autor saiu da Palestina
em funccedilatildeo do conflito for autecircntica era preciso algum tempo para que ele consolidasse uma
atuaccedilatildeo profeacutetica fora da sua terra na Aacutesia Menor e especificamente na proviacutencia
proconsular da Aacutesia Dado o conhecimento que Papias teve da obra seria preciso algum
tempo entre sua produccedilatildeo e circulaccedilatildeo entre as igrejas Isso nos leva a tomar o testemunho
de Irineu realmente como a hipoacutetese mais provaacutevel localizando o livro no fim do governo
do Imperador Titus Flavius Domitianus assassinado no dia 18 de setembro de 96 Segundo
o bispo de Leon (Contra as Heresias 5303) foi em algum momento anterior agrave morte do
Imperador que Joatildeo de Patmos escreveu o Apocalipse
13 O propoacutesito do Apocalipse
Se aceitarmos as indicaccedilotildees do Apocalipse ele foi escrito para ser encaminhado para
sete igrejas da proviacutencia proconsular da Aacutesia ldquoAchei-me em espiacuterito em o dia do Senhor e
ouvi atraacutes de mim uma voz grande como de trombeta dizendo O que vecircs escreve em livro
e envia para as sete igrejasrdquo (Apocalipse 110-11)
As cartas em questatildeo aparecem um pouco depois na estrutura da obra
- Apocalipse 21-7 Carta agrave Igreja em Eacutefeso
- Apocalipse 28-11 Carta agrave Igreja em Esmirna
- Apocalipse 212-17 Carta agrave Igreja em Peacutergamo
- Apocalipse 218-29 Carta agrave Igreja em Tiatira
- Apocalipse 31-6 Carta agrave Igreja em Sardes
- Apocalipse 37-13 Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia
- Apocalipse 314-22 Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia
As cartas escritas como oraacuteculos profeacuteticos apresentam terceirizados o remetente e
o destinataacuterio Concretamente eacute o profeta Joatildeo que escreve contudo retoricamente satildeo
palavras diretas do Cristo exaltado entre os candelabros (Apocalipse 113) Eacute uma mensagem
39
para os membros das igrejas mas dirigidas aos anjos que estariam ali presentes (Apocalipse
21 28 212 218 31 37 314) Joatildeo se coloca como o intermediaacuterio entre duas
personalidades celestiais Mesmo que algueacutem se recuse a ouvi-lo natildeo poderia deixar de
atender ao anjo da igreja principalmente porque a mensagem do anjo teria origem direta no
Jesus glorificado Neste sentido as cartas se tornam proclamaccedilotildees profeacuteticas do soberano
Cristo exaltado95
Esta estrateacutegia literaacuteria eacute um instrumento retoacuterico de legitimaccedilatildeo o que denuncia
algum tipo de conflito ou tensatildeo entre Joatildeo o autor e os membros das igrejas Ao usar este
esquema para atingir o seu puacuteblico o autor indica toda a dificuldade que enfrentava para se
fazer ouvir96 A agressividade do texto e as diversas ameaccedilas indicam ainda mais a forccedila
necessaacuteria para que as cartas e o livro como um todo pudessem ser recebidos Segundo
Friedrich
as sete proclamaccedilotildees satildeo semelhantes aos antigos editos reais e imperiais
na medida em que exibem normalmente e estruturalmente semelhantes
praescriptiones narrationes dispositiones e sanctiones Em termos de
conteuacutedo as narrationes e dispositiones exibem caracteriacutesticas da profecia
do cristianismo das origens influenciada pela profecia do Antigo
Testamento97
As cartas indicam dois tipos baacutesicos de tensatildeo Internamente haacute algum tipo de
conflito entre Joatildeo e a lideranccedila de algumas igrejas e algum tipo de crise com sinagogas
locais98 Externamente a sociedade urbana da aacutesia parece representar algum desconforto
especialmente em funccedilatildeo das demandas relacionadas com as interaccedilotildees sociais
Para as tensotildees internas entre os liacutederes das igrejas Paul Duff sugeriu a seguinte
tipologia99
95 Conferir neste sentido FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria
Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 96 RUIZ Jean-Pierre Hearing and seeing but not saying a rhetoric de authority in Revelation 104 and 2
Corinthians 124 In BARR David L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of
Revelation Atlanta Society of Biclical Literature 2006 p 91-111 p 93 97 FRIEDRICH Nestor Paulo O edito-profeacutetico para a Igreja em Tiatira (Apocalipse 218-29) uma anaacutelise
literaacuteria soacutecio-poliacutetica e teoloacutegica Tese (Doutor em Teologia) ndash Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia Escola
Superior de Teologia Satildeo Leopoldo 2000 p 60 98 DUFF Paul B ldquoThe synagogue of Satanrdquo Crisis mongering and the Apocalypse of John In BARR David
L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biclical
Literature 2006 p 164-165 p 148 99 DUFF Paul B Who Rides the Beast Prophetic Rivalry and the Rhetoric of Crisis in the Churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 p 25
40
- Igrejas divididas entre a lideranccedila de Joatildeo e alguma outra lideranccedila local Eacutefeso
Peacutergamo Tiatira Para estas igrejas Joatildeo fornece nas respectivas cartas uma elaboraccedilatildeo dos
problemas da comunidade Consistiriam no principal foco do Apocalipse
- Igrejas onde Joatildeo tem pouca ou mesmo nenhuma influecircncia Sardes e Laodiceacuteia Eacute
provaacutevel que ele tenha aliados em potencial nessas comunidades mas estatildeo em nuacutemero
muito pequeno Por isso o seu tom menos conciliador Para elas o autor natildeo fornece
nenhuma elaboraccedilatildeo de problemas e pouco se tiver algum encorajamento
- Igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo Esmirna e Filadeacutelfia Natildeo haacute chamada ao
arrependimento ou qualquer tipo de ameaccedila ao mesmo tempo em que recebem fortes
louvores Satildeo igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo e ao tipo de mensagem que ele defendia
Com relaccedilatildeo aos membros das sinagogas locais Joatildeo assim se expressou ldquose dizem
judeus mas natildeo o satildeordquo Para o autor do Apocalipse eles natildeo eram verdadeiros judeus mas
ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo (Apocalipse 29 39)100 O professor Nogueira argumenta que essa
crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga estar ldquoenvolvida em um processo
sincreacutetico de interaccedilatildeo com os gentios Eles falavam grego expressavam suas crenccedilas e
praacuteticas religiosas com categorias helenistas e estavam em maior ou menor grau envolvidos
na vida puacuteblica de suas cidadesrdquo101
O Apocalipse fala da morte de Antipas (Apocalipse 213) que pode ter ocorrido em
funccedilatildeo de algum conflito com a sociedade O Apocalipse apresenta a expectativa que o
mesmo fenocircmeno que promoveu a morte deste membro do movimento de Jesus proveraacute
dentro em breve a prisatildeo e a ruiacutena de muitos outros (Apocalipse 210)102 Para Thompson
ldquoa descriccedilatildeo do visionaacuterio de guerra e conflito contem suficientes referecircncias e alusotildees a
Roma e ao culto imperial para concluir que o visionaacuterio esperava tribulaccedilatildeo e opressatildeo de
instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas na Aacutesiardquo103 Como Prigent enfatiza ldquoo autor de
100 FRANKFURTER David Jews or Not Reconstructing the ldquoOtherrdquo in Rev 29 and 39 Harvard
Theological Review Cambridge v 4 n 94 p 403-425 2001 Duff argumenta que o comentaacuterio negativo de
Joatildeo sobre as sinagogas foi feito para exacerbar a tensatildeo entre as igrejas e as sinagogas Ao promover inimizade
contra as sinagogas e medo de hostilidade de judeus locais Joatildeo desejava desencorajar aliados iacutentimos
(membros das igrejas de Esmirna e Filadeacutelfia) de apostastar para as sinagogas Cf DUFF Paul B ldquoThe
synagogue of Satanrdquo op cit p 148 101 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza Experiecircncia religiosa e criacutetica social no cristianismo primitivo Satildeo
Paulo Paulinas p 137 102 HOWARD-BROOK Wes GWYTHER Anthony Desmascarando o imperialismo interpretaccedilatildeo do
Apocalipse ontem e hoje Satildeo Paulo Paulus 2003 p 120-155 103 THOMPSON Leonard A Sociological Analysis of Tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 36 p 147-174 1986 p 148
41
Apocalipse afirma com grande energia que o Impeacuterio estaacute a serviccedilo de Satatilde comprovado
pela idolatria que embasa todo o sistemardquo104
Durante boa parte da histoacuteria da leitura do Apocalipse105 a descriccedilatildeo de mundo no
seu livro cheia de conflitos e violecircncia era tomada como equivalente da situaccedilatildeo concreta
de vida do autor e de suas comunidades O contexto histoacuterico era precisamente como
transparecia atraveacutes das imagens do livro106 Foi somente a partir de meados do seacuteculo XX
quando alguns estudiosos deixaram de assumir que o mundo do texto de Apocalipse
espelhava diretamente o contexto histoacuterico em torno do mesmo Neste caso eles se voltaram
para oferecer sugestotildees de como conciliar e relacionar a tensatildeo entre o mundo do Apocalipse
e o mundo concreto das comunidades de seguidores de Jesus no final do primeiro seacuteculo na
Aacutesia romana
Uma destas pesquisadoras Fiorenza sugeriu que as imagens que o livro constroacutei
foram produzidas como instrumentos retoacutericos de persuasatildeo Ela entende que o visionaacuterio
parece estar realmente convencido de que o Impeacuterio Romano eacute uma ameaccedila para seguidores
de Jesus e escreve para persuadir sua audiecircncia a aceitar sua leitura da realidade
empurrando-a para uma determinada posiccedilatildeo frente ao contexto social em que viviam107
Adela Collins por sua vez argumentou que Joatildeo escreveu em resposta ao conflito
entre a feacute em Jesus como Joatildeo a entendia e a situaccedilatildeo social como ele a percebia Para esta
autora o autor realiza seu propoacutesito por meio da construccedilatildeo de um universo simboacutelico com
valores terapecircuticos Diante do Apocalipse leitores e ouvintes alcanccedilariam uma catarse de
medo e ressentimento e uma internalizaccedilatildeo de demandas para sustentar-se agrave parte de uma
ordem social opositora por meio da praacutetica de abstinecircncia sexual pobreza e martiacuterio108
Outro pesquisador Steven Friesen definiu o Apocalipse de Joatildeo como uma obra
engajada na construccedilatildeo de um mundo simboacutelico com o objetivo de produzir resistecircncia
simboacutelica Enquanto a ideologia imperial construiacutea seus mitos e os disseminava para afirmar
104 PRIGENT P O Apocalipse In COTHENET E et al Os escritos de Satildeo Joatildeo e a Epiacutestola aos Hebreus
Satildeo Paulo Paulinas 1998 p 229-306 p 255 105 Para a histoacuteria da recepccedilatildeo do livro conferir WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse
Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 KOVACS Judith
ROWLAND Christopher C Revelation Oxford Blackwell Publishing 2004 KYRTATAS Dimitris The
Transformations of the Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text
The Writing of Ancient History London Duckworth 1986 p 144-162 106 Conferir neste sentido o comentaacuterio de Euseacutebio de Cesareacuteia ldquoDomiciano deu provas de uma grande
crueldade para com muitos [] e foi o segundo a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutesrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica
III VII 1) 107 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Apocalipsis Visioacuten de un mundo justo Estella Editorial Verbo Divino
1997 p 58 108 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsis op cit p 127-131
42
que o Imperador era o rei dos reis Joatildeo ressignifica estes mitos para afirmar que a autoridade
uacuteltima sobre o mundo proveacutem no fim de fora mesmo deste mundo109 Eacute um conflito de
mundos construiacutedos de siacutembolos de identidades de ideologias110
Em termos concretos entretanto Domiciano natildeo parece ter instigado uma
perseguiccedilatildeo oficial aos seguidores de Jesus Existe pouca evidecircncia de que ele tenha
perseguido diretamente as igrejas e como insistiu Thompson nenhuma evidecircncia de que ele
tenha banido Joatildeo para a Ilha de Patmos111
Isso natildeo significa que conflitos locais natildeo pudessem se manifestar dentro de cada
cidade da Aacutesia conflitos estes que poderiam ter ligaccedilatildeo com o relacionamento entre os
membros do movimento de Jesus e a instituiccedilatildeo do culto imperial112 Possivelmente ao falar
do culto agraves bestas Joatildeo entra em polecircmica com a praacutetica do culto ao Imperador no contexto
urbano da proviacutencia onde a primeira Besta (Apocalipse 131-10) representa o Impeacuterio
Romano ou o proacuteprio Imperador e a segunda Besta (Apocalipse 1311-18) eacute possivelmente
o sacerdote do culto imperial113 Acompanhar a posiccedilatildeo do Apocalipse neste sentido poderia
gerar suspeiccedilatildeo e hostilidade por parte da populaccedilatildeo local e causar as acusaccedilotildees subjacentes
aos processos descritos por Pliacutenio o Jovem ao Imperador Trajano pouco mais de uma deacutecada
depois de Joatildeo na proviacutencia de Bitiacutenia e Ponto vizinha das igrejas da Aacutesia (Epiacutestola
10965)
O culto imperial era uma expressatildeo de religiosidade individual e coletiva e uma
demonstraccedilatildeo de coesatildeo e ordem social e poliacutetica do Impeacuterio Para propoacutesitos imperiais o
culto ao Imperador servia como uma expressatildeo de lealdade e gratidatildeo por parte dos cidadatildeos
Pagels tenta resumir este processo Para ela anteriormente os membros do
movimento de Jesus se identificavam com os grupos judaicos ao serem expulsos desses
109 FRIESEN Steven J Myth and Symbolic Resistance in Revelation 13 Journal of Biblical Literature
Atlanta v 2 n 123 p 281-313 2004 p 281 e 311 110 FRIESEN Steven J Satanrsquos throne imperial cults and the social settings of Revelation Journal for the
Study of the New Testament Cambridge v 27 n 3 p 351-373 2005 p 352 111 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L Reading the
Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 34 DUFF Paul B ldquoThe
Synagogue of Satanrdquo op cit p 149 112 Para uma anaacutelise das distintas formas que o culto imperial poderia assumir nas diferentes regiotildees do Impeacuterio
cf SCHERRER Steven J Signs and Wonders in the Imperial Cult a New Look at a Roman Religious
Institution in the Light of Rev 1313-15 Journal of Biblical Literature Atlanta v 4 n 103 p 599-610 1984
SORDI Marta The Christians and the Roman Empire London and New York Routledge 1994 Sobre a
relaccedilatildeo das comunidades judaicas com o culto imperial conferir MCLAREN James S Jews and the Imperial
Cult from Augustus to Domitian Journal for the Study of the New Testament Cambridge n 27 p 257-278
2005 113 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p
34
43
grupos eles precisavam criar novas identidades em oposiccedilatildeo agravequeles que antes eram seus
irmatildeos Entretanto quando essas mesmas comunidades passam a ser formadas
predominantemente de natildeo-judeus agora eram excluiacutedos natildeo mais de ciacuterculos judaicos mas
dos ciacuterculos sociais que antes conviviam Era desses ciacuterculos que as ameaccedilas agora partiam
de ldquooficiais romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu lsquoateiacutesmorsquo que temiam que
pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteirasrdquo114
O cenaacuterio descrito por Pagels talvez se aplique agrave Bitiacutenia e Ponto dos tempos de Pliacutenio
mas ainda natildeo o eacute para o tempo do Apocalipse A ecircnfase na ruptura com a sociedade
encontrada no texto joanino indica que boa parte dos membros das igrejas da Aacutesia ainda
vivia suas vidas com seus vizinhos sem grandes conflitos Eacute Joatildeo que espera por tensatildeo e
crise Ele aguarda uma violenta perseguiccedilatildeo contra as comunidades para um futuro
proacuteximo115 Subjacentes aos roacutetulos da oposiccedilatildeo interna (os balamitas e nicolaiacutetas de
Peacutergamo Jezabel e seus seguidores em Tiatira e os falsos apoacutestolos de Eacutefeso) parecem estar
pessoas que ocupavam posiccedilatildeo de lideranccedila dentro das igrejas nas quais estavam inseridas
consideradas como adversaacuterias por Joatildeo O que estes liacutederes de diferentes igrejas teriam em
comum Aparentemente eles natildeo estavam de acordo quanto agrave forma de conduzir os fieacuteis
nas suas relaccedilotildees com o Impeacuterio116 Assim diante da diferenccedila de respostas existente entre
os proacuteprios liacutederes sobre a interaccedilatildeo com a sociedade Joatildeo reage com forccedila Para ele
qualquer acomodaccedilatildeo social eacute prostituiccedilatildeo e idolatria categorias religiosas retiradas da
antiga profecia judaica
Como sintetizou Norman Cohn ldquoo propoacutesito de Joatildeo era estimular os cristatildeos a se
verem em conflito com ciacuterculos mais amplos da sociedaderdquo117 Para tanto ele descreveu o
governo romano natildeo como reflexo de uma ordem divina mas do poder de Satatilde A alianccedila
com o Jesus Glorificado do Apocalipse inviabilizaria qualquer relacionamento com a
sociedade romana
Joatildeo por meio de sua obra demoniza praacuteticas de interaccedilatildeo social poliacutetica e religiosa
com o Impeacuterio118 Sua estrateacutegia eacute exacerbar a situaccedilatildeo para promover uma crise na sua
114 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na
sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996 p 134 115 SILVA David A de The Revelation to Johnhellip op cit 116 FRIESEN Steven J Satanrsquos Throne Imperial Cults and the Social Settings of Revelation op cit p 368 117 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 280 118 MESTERS Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das
comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n 69 p 72-82 2001 p 77
Conferir tambeacutem BIGUZZI Giancarlo Ephesus its Artemision its Temple to the Flavian Emperors and
idolatry in Revelation Novum Testamentum Leida v 3 n 40 p 276-290 1998
44
audiecircncia119 pelo menos nas igrejas nas quais tinha alguma influecircncia e invibializar os
relacionamentos significativos com pessoas de fora da comunidade Para isso ele provecirc
motivaccedilotildees tanto positivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos demais
grupos judaicos Em termos sinteacuteticos ele demoniza seus adversaacuterios estressa fortemente
as diferenccedilas de padrotildees e valores escala antagonismo e vaticina um tempo proacuteximo de
rejeiccedilatildeo muacutetua120
14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse
Aparentemente os antigos inteacuterpretes do Apocalipse o liam da mesma forma como
liam outros livros profeacuteticos da tradiccedilatildeo judaica Para eles Joatildeo era profeta e seu livro uma
profecia Foi somente no seacuteculo XIX que se levantou a sugestatildeo de que o Apocalipse de Joatildeo
deveria ser visto como um tipo distinto de literatura121 O argumento era de que o livro natildeo
era como as demais obras da tradiccedilatildeo profeacutetica judaica Aleacutem disso as evidecircncias indicavam
que existia um corpo de escritos parecidos com o Apocalipse formando uma corrente
literaacuteria na qual a obra de Joatildeo poderia ser inserida122 Esta corrente se estenderia para cerca
de trecircs seacuteculos antes do aparecimento do Apocalipse de Joatildeo com acentuada produccedilatildeo em
torno da Guerra dos Macabeus e avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70)123
A partir de entatildeo os estudiosos passaram a tentar definir o que seria o gecircnero
ldquoapocalipserdquo Estas tentativas de definiccedilatildeo consistiam de listas de caracteriacutesticas tiacutepicas
119 Segundo Paul Duff ldquopor causa da fragilidade da fonte do seu poder liacutederes carismaacuteticos atraveacutes da histoacuteria
tecircm usado uma variedade de estrateacutegias para combater as ameaccedilas agrave perda do controle Uma destas estrateacutegias
eacute o fomento das crises ou seja criar crises ou exacerbar uma situaccedilatildeo instaacutevel ao ponto que isso resulte numa
crise Esta taacutetica tem o potencial para acentuar a indispensabilidade do liacuteder inspiradordquo Cf DUFF Paul B
ldquoThe Synagogue of Satanrdquohellip op cit p 164-165 120 Idem p 164-165 121 BARR David L Beyond Genre In BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics
in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p 71-79 p 75 122 COLLINS Adela Yarbro The Early Christian Apocalypses Semeia Atlanta n 14 p 61-121 1979 p 70
Para ela o Apocalipse de Joatildeo poderia ser definido como um apocalipse histoacuterico sem a presenccedila de viagem
celestial Conferir tambeacutem KUumlMMEL op cit p 602 ldquoO material miacutetico os nuacutemeros secretos as visotildees e os
fenocircmenos do ceacuteu como meios a serviccedilo da revelaccedilatildeo de coisas do mundo do aleacutem a representaccedilatildeo das visotildees
atraveacutes de imagens fantaacutesticas e ricamente embelezadas bem como a frequumlente dependecircncia do Antigo
Testamento caracterizam o Apocalipse como uma obra pertencente ao mesmo gecircnero literaacuterio dos apocalipses
judaicosrdquo 123 LOHSE op cit p 240 Sotelo propocircs trecircs hipoacuteteses gerais sobre a origem deste gecircnero literaacuterio Uma delas
entende que ele surgiu de tradiccedilotildees persas sendo completamente estranho aos autores anteriores de Israel
outra argumenta que ele veio da tradiccedilatildeo sapiencial de Israel e uma terceira o liga ao profetismo claacutessico
israelita Cf SOTELO Daniel Origem da apocaliptica In MARASCHIN Jaci Correia (ed) Apocaliptica
Satildeo Bernardo do Campo Instituto Metodista de Ensino Superior 1983 p 17-21 p 17
45
Autores como D S Russell124 procuraram apontar poucos traccedilos distintivos para abraccedilar um
nuacutemero maior de obras Entretanto o resultado eacute que obras que se parecem muito pouco
passaram a ser vistas igualmente como apocalipses
Muitas outras listas surgiram Cada uma apresentava um traccedilo diferente que
considerava ser tiacutepico de um apocalipse Isso fazia com que um livro que um determinado
autor apontava como apocalipse fosse considerado por outro estudioso como de gecircnero
diferente
Um princiacutepio baacutesico subjacente agrave pesquisa do gecircnero destes textos eacute que um
apocalipse como outros tipos de literatura natildeo poderia ser considerado como obra literaacuteria
estanque pois estaria relacionado com outras obras e tradiccedilotildees atraveacutes de uma seacuterie de traccedilos
e conexotildees Por isso definir um apocalipse passou a ser uma questatildeo de precisar os limites
ou paracircmetros dentro dos quais as obras seriam recebidas por seus leitores
Essa definiccedilatildeo avanccedilou consideravelmente como resultado das pesquisas publicadas
no nuacutemero 14 da revista Semeia Ela continuou na tradiccedilatildeo de gerar listas de caracteriacutesticas
para tipificar um apocalipse mas deu um passo a mais por causa da precisatildeo com que estes
traccedilos foram postulados Os resultados foram resumidos por Collins
Apocalipse eacute um gecircnero de literatura de revelaccedilatildeo com uma estrutura
narrativa no qual uma revelaccedilatildeo eacute mediada por um ser sobrenatural para
um ser humano revelando uma realidade transcendente que eacute tanto
temporal enquanto considera salvaccedilatildeo escatoloacutegica quanto espacial
enquanto envolve outro mundo sobrenatural125
A lista de caracteriacutesticas de Collins apresenta um apocalipse do ponto de vista da
forma (literatura de revelaccedilatildeo de estrutura narrativa) e do conteuacutedo (mediaccedilatildeo sobrenatural
realidades transcendentes temporal e espacial) Ao aplicar esta lista de caracteriacutesticas ao
livro de Joatildeo Collins entende que a obra se enquadra com precisatildeo no interior da tradiccedilatildeo
literaacuteria que gerou os apocalipses
Escritores natildeo conseguem escrever sem ter em mente outros textos que eles leram
os quais se tornam modelos para serem imitados transformados ou contrapostos A inserccedilatildeo
de um texto num determinado veio tradicional ou literaacuterio assim tem funccedilatildeo natildeo somente
promotora de caracteriacutesticas (forma conteuacutedo e funccedilatildeo) mas tambeacutem hermenecircutica Afinal
124 RUSSELL D S Desvelamento divino uma introduccedilatildeo agrave apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo Paulus 1997 125 COLLINS John J Introduction Towards the Morphology of a Genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979
p 9
46
leitores natildeo conseguem ler e entender uma obra se eles natildeo estiverem habilitados para
relacionaacute-la com outras que eles tiveram a oportunidade de ler ou conhecer
O propoacutesito da identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo de uma obra eacute orientar e guiar a produccedilatildeo
ou a recepccedilatildeo da mesma Este processo eacute normalmente deliberado e consciente por parte
do autor do livro como um de seus recursos para guiar o seu leitor
A classificaccedilatildeo de textos consiste no levantamento de um conjunto de convenccedilotildees
impliacutecitas ou expliacutecitas O escritor conhece estas convenccedilotildees do contexto no qual e contra o
qual escreve No processo de produccedilatildeo de sua obra ele ajuda o leitor por meio de indicaccedilotildees
para-textuais como tiacutetulos subtiacutetulos prefaacutecios ou outros sinais menos oacutebvios Com isso se
forma um tipo de ldquocontratordquo que orienta antecipadamente a leitura e a apropriaccedilatildeo da obra
Afinal estas marcas estatildeo ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido
Paul Duff destaca que Joatildeo como todo escritor ou orador precisou antecipar a reaccedilatildeo
dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem126 As tais marcas
viabilizam as classificaccedilotildees ou categorizaccedilotildees e formam uma espeacutecie de guia de leitura que
pode ser aceito ou natildeo pelos leitores
Linton insiste que mesmo que uma obra natildeo tenha estes sinais claramente os leitores
tenderatildeo a construir seus proacuteprios guias de interpretaccedilatildeo normalmente comparando a obra
com outras similares de forma a construir um corpo de convenccedilotildees para guiar a leitura127
A praacutetica da leitura se torna entatildeo um contiacutenuo processo de comparaccedilatildeo com leituras
anteriores
Autores se valem de categorias Leitores se aproveitam delas Em ambas as situaccedilotildees
a construccedilatildeo do texto e a busca pelo seu sentido eacute uma atividade de comparaccedilatildeo na qual as
categorias se tornam ferramentas heuriacutesticas significativas Ao escrever sua obra Joatildeo
deliberadamente revestiu-a de marcas e traccedilos de obras que viriam posteriormente a ser
conhecidas como ldquoapocalipsesrdquo Ao assim fazer ele forneceu a forma como ele esperava
que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Aacutesia e com quais textos o Apocalipse deveria
ser comparado
126 DUFF Paul B Who rides the beast op cit p 72 127 LINTON Gregory L Reading the Apocalypse as Apocalypse In BARR David L (ed) The Reality of
Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p
9-41 p 15
47
15 Resumo
O Apocalipse foi escrito por um judeu de nome Joatildeo que migrou da Palestina apoacutes a
guerra judaico-romana (66-70) e desenvolvou uma atividade profeacutetica entre as comunidades
do movimento de Jesus na Aacutesia menor Perto do final do seacuteculo pouco antes do fim do
governo do Imperador Domiciano (96) ele se deslocou ou foi descolocado para a ilha de
Patmos onde escreveu um texto marcado por traccedilos da tradiccedilatildeo literaacuteria judaica denominada
pelos estudiosos como ldquoapocalipserdquo Com sua obra ele desejava convencer alguns membros
especialmente de sete igrejas da proviacutencia asiaacutetica a romperem relacionamentos
significativos com a sociedade romana
II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA
Como discutimos no capiacutetulo anterior o Apocalipse de Joatildeo foi escrito nos anos 90
do primeiro seacuteculo da Era Comum provavelmente nos uacuteltimos anos do principado do
imperador Domiciano (Titus Flavius Domitianus)128 A partir de uma referecircncia interna
(Apocalipse 19) eacute possiacutevel circunscrever seu local de origem como sendo a pequena ilha
do mar Egeu de nome Patmos e seu destino como um conjunto de comunidades do
movimento de Jesus localizadas na proviacutencia proconsular da Aacutesia (Apocalipse 111) Eacutefeso
Esmirna Peacutergamo Tiatira Sardes Filadeacutelfia e Laodiceacuteia
Este Joatildeo de Patmos estaacute longe de Roma capital do Impeacuterio Apesar dos atos e gestos
do Imperador poderem refletir diretamente na vida de Joatildeo e no puacuteblico de sua obra em
termos sociais poliacuteticos econocircmicos ou culturais o contexto especiacutefico do Apocalipse eacute
mesmo a Aacutesia romana Em funccedilatildeo disso neste capiacutetulo nos deteremos em analisar a situaccedilatildeo
desta proviacutencia focando em aspectos que poderiam iluminar de alguma forma o processo
histoacuterico de produccedilatildeo do Apocalipse
21 Patmos o ponto de partida
Segundo o Apocalipse seu autor Joatildeo recebeu a seacuterie de visotildees que deu origem agrave
obra enquanto estava na ilha de Patmos no mar Egeu ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro
na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por
causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo (Apocalipse 19)
Patmos eacute uma ilha pequena Em termos gerais satildeo treze quilocircmetros de extensatildeo por
oito de largura Poreacutem sua costa recortada reduz consideravelmente suas dimensotildees Sua
margem fica a 64 quilocircmetros da foz do rio Maeander o ponto mais proacuteximo da peniacutensula
da Aacutesia Menor129 Esta distacircncia relativa tambeacutem a separava de Mileto seu principal viacutenculo
128 Domiciano foi assassinado no dia 18 de setembro de 96 por uma conspiraccedilatildeo palaciana e substituido no
mesmo dia por um dos seus amici o senador M Cocceius Nerva Cf JONES Brian W The emperor Domitian
Londres Routledge 1992 p 93 129 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield
Academic Press Ltd 1986 p 27
49
social com o continente Das cidades mencionadas no Apocalipse entretanto a mais
proacutexima era Eacutefeso distante da ilha cerca de 100 quilocircmetros130
A associaccedilatildeo de Patmos com Mileto era formal fazendo parte do seu territoacuterio junto
com as ilhas de Lipsos e Leros Nas trecircs ilhas havia algum tipo de povoamento Em Patmos
especificamente seu povo era conhecido como frouroi e seus liacutederes frourarchoi atuando
como parte do governo de Mileto para a populaccedilatildeo local131
Eacute preciso insistir no fato de que Patmos natildeo era uma ilha deserta ou mesmo uma
colocircnia penal O professor David Aune argumenta neste sentido e aponta como evidecircncia
duas inscriccedilotildees encontradas na ilha Uma datada para o seacuteculo II aC faz referecircncia a uma
associaccedilatildeo local de atletas agrave presenccedila de um gymnasium e agrave figura de um gymnasiarcha
eleito sete vezes para a mesma funccedilatildeo Outra de duzentos anos depois jaacute na Era Comum
fala de uma hidrophore sacerdotisa de Artemis e a presenccedila de um templo local bem
estabelecido para esta deusa132
Joatildeo escreve de uma ilha pertencente agrave Mileto a polis mais proacutexima de onde ele ldquose
achavardquo133 Curiosamente entretanto ela estaacute ausente da lista de cidades mencionadas no
Apocalipse Talvez a resposta a esta questatildeo tenha relaccedilatildeo com a falta de uma comunidade
do movimento de Jesus em Mileto O livro Atos dos Apoacutestolos escrito de um lugar
indeterminado entre os anos 80 e 90134 conteacutem uma narrativa que parece indiciar a ausecircncia
de uma comunidade na cidade Nela (Atos 2017-38) Paulo se prepara para fazer uma
viagem a Roma Entre seus preparativos estaacute uma visita agrave igreja de Jerusaleacutem Durante sua
viagem ele se detem em Mileto para conversar natildeo com disciacutepulos da cidade mas com
liacutederes que vieram da igreja de Eacutefeso O autor anocircnimo explicita que ldquode Mileto mandou a
Eacutefeso chamar os presbiacuteteros da igrejardquo (Atos 2017) Natildeo haacute qualquer menccedilatildeo agrave presenccedila de
seguidores do movimento de Jesus pelo menos perto do ano 60 quando os eventos narrados
por Atos se deram135 Neste sentido a omissatildeo do Apocalipse pode indicar que as trecircs
deacutecadas que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de Joatildeo por ela natildeo foram
suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar
130 Conferir os mapas da Aacutesia romana nos anexos 1 e 2 131 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 p 76 132 Idem p 77 133 Ele usa o termo grego ldquoἐγενόμηνrdquo primeira pessoa do aoristo do indicativo meacutedio ldquoachei-merdquo 134 KUMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 238 135 GALBIATTI Enrico Rodolfo ALETTI Aldo Atlas histoacuterico da Biacuteblia e do Antigo Oriente Petroacutepolis
Vozes 1991 p 216
50
22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia
Para Ciacutecero (107-43 aC) a ldquoAacutesia eacute oacutetima e feacutertilrdquo (ldquoAsia vero tam optima est ac
fertilisrdquo) e acrescentou que ldquona riqueza de seus oacuteleos na variedade de seus produtos na
extensatildeo de seus pastos e no nuacutemero de suas exportaccedilotildees ela ultrapassa todas as outras
terrasrdquo (De Imperio cn Pompei ad qurites oratio 14) A Aacutesia Menor era uma das regiotildees
mais ricas do Impeacuterio e dentre as seis proviacutencias da peniacutensula a Aacutesia era a mais rica136
Formalmente ela era uma proviacutencia senatorial governada por um prococircnsul indicado pelo
senado romano137 Entretanto tanto o imperador quanto o senado poderiam promover
regulamentos que afetariam a proviacutencia Justamente por isso nela havia representantes
imperial e senatorial
Durante o governo da dinastia Flaacutevia a gestatildeo da Aacutesia foi marcada pela recuperaccedilatildeo
econocircmica138 A aclamaccedilatildeo de Vespasiano se deu em Alexandria no dia 1 de julho de 69
sendo prontamente reconhecido pelas proviacutencias orientais O novo imperador viajando de
navio parou em vaacuterias cidades da costa da Aacutesia onde oficiais locais fizeram os juramentos
habituais de fidelidade139
Apoacutes sua ascensatildeo ao poder Vespasiano encontrou o tesouro imperial falido pelas
guerras civis que se seguiram agrave morte de Nero Para restaurar as financcedilas puacuteblicas ele adotou
uma poliacutetica econocircmica que reduziu os gastos do governo e procurou aumentar as receitas
do estado reorganizando o recolhimento das taxas puacuteblicas ou criando novas como o fiscus
Alexandrinus e o fiscus Iudaicus Esta segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus para
substituir um imposto recolhido para subsidiar o Templo de Jerusaleacutem recentemente
destruiacutedo pelas legiotildees de Tito filho de Vespasiano140
Uma mudanccedila importante se deu na forma como tais taxas eram cobradas A
cobranccedila saiu das matildeos dos publicani para um agente do governo liderado por um
procurador em Roma e outro em cada proviacutencia Posteriormente Domiciano criou o oficio
136 MAGIE David Roman rule in Asia Minor to the end of third century after Christ Princenton Princenton
University Press 1950 p 34-52 Cf tambeacutem KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no
Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 89 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation
Apocalypse and Empire Oxford Oxford University Press 1990 p 146 137 MAGIE op cit p 569 138 Para uma anaacutelise da reorganizaccedilatildeo efetuada por Vespasiano na proviacutencia mantida e ampliada por Tito e
Domiciano cf LEVICK Barbara Greece and Asia Minor In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient
History Cambridge Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 604-634 p 604 139 MAGIE op cit p 566 140 GRIFFIN Miriam The Flavians In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient History Cambridge
Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 1-83 p 27
51
de curator civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus recursos
Este processo de centralizaccedilatildeo financeira diminuiu a autonomia da proviacutencia contudo
ajudou suas cidades
Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Aacutesia Menor pelo incremento na
construccedilatildeo e manutenccedilatildeo de estradas Estradas importantes foram construiacutedas apoacutes a
ascensatildeo dos Flaacutevios como duas estradas que saiam de Peacutergamo no ano 75 Uma descia na
direccedilatildeo de Esmirna e Eacutefeso margeando a costa Outra seguia pelo interior na direccedilatildeo de
Tiatira e Sardes Estas mesmas estradas foram restauradas por Domiciano Aleacutem das
vantagens para o comeacutercio e a comunicaccedilatildeo o foco nas estradas tinha tambeacutem como objetivo
facilitar o acesso para a regiatildeo oriental da Aacutesia Menor e para as fronteiras com o Impeacuterio
Persa no Eufrates Por elas deveriam circular as legiotildees romanas e o suprimento para as
tropas141 Mas natildeo havia uma legiatildeo especiacutefica estacionada em qualquer proviacutencia da Aacutesia
Menor A defesa da regiatildeo dependia inteiramente das legiotildees fixadas na Siacuteria
O governo de Tito deu sequecircncia agraves poliacuteticas de seu pai ateacute que em setembro de 81
apoacutes sua morte ele foi sucedido por Domiciano Haacute um juiacutezo tradicional negativo a respeito
deste uacuteltimo imperador da dinastia Flaacutevia como ilustrado pela opiniatildeo de Euseacutebio de
Cesareacuteia (263-339)
Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos
dando morte sem julgamento razoaacutevel a natildeo pequeno nuacutemero de
patriacutecios e de homens ilustres e castigando com desterro fora das
fronteiras e confisco de bens a outras inuacutemeras personalidades sem
causa alguma Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero
na animosidade e guerra contra Deus Efetivamente ele foi o segundo
a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutes apesar de que seu pai
Vespasiano nada de mal planejou contra noacutes (Histoacuteria Eclesiaacutestica
III XVII 1)
Este juiacutezo se reflete tambeacutem na historiografia David Magie descreve inicialmente o
governo de Domiciano como inescrupuloso e impiedoso142 mas pouco depois reconhece
que
nas proviacutencias existe pouca evidecircncia de crueldade por parte de
Domiciano ou mesmo de pretensotildees de grandeza exageradas No
oriente mesmo o tiacutetulo de ldquodeusrdquo que incomodava os ouvidos
romanos era tido como normal Ainda o tiacutetulo completo ldquoDeus
invisiacutevel fundador da cidaderdquo inscrito no peacute de uma estatua do
imperador em Priene natildeo era mais extravagante do que outros dados
141 MAGIE op cit p 571 142 Idem p 577
52
a muitos de seus antecessores e a outorga do epiacuteteto de ldquofundadorrdquo
parece indicar que ele realmente beneficiou a cidade143
A relaccedilatildeo de Domiciano com a Aacutesia assim natildeo foi diferente da forma como seu
irmatildeo Tito e seu pai Vespasiano trataram a proviacutencia A proviacutencia se beneficiou com a
gestatildeo dos Flaacutevios que terminou com a morte de Domiciano em setembro de 96 jaacute que o
imperador natildeo deixou herdeiro
Um testemunho da prosperidade do periacuteodo pode ser encontrado em um dos livros
dos Oraacuteculos Sibilinos surgido perto do ano 80 O oraacuteculo escrito na perspectiva do
Judaiacutesmo da diaacutespora na Aacutesia atacou o Impeacuterio Romano mas natildeo deixou de evidenciar a
riqueza da proviacutencia segundo seu autor espoliada em favor de Roma
Grande riqueza viraacute para Aacutesia riqueza que uma vez Roma tendo
tomado-a por rapina armazenou em uma casa de insuperaacuteveis
riquezas mas sem demora ela faz uma dupla restituiccedilatildeo para a Aacutesia
entatildeo haveraacute um excesso de conflitos (Oraacuteculo Sibilino IV I 42)144
Durante as deacutecadas da dinastia Flaacutevia a situaccedilatildeo econocircmica da Aacutesia se refletiu no
volume de novas construccedilotildees natildeo apenas por meio de recursos puacuteblicos mas tambeacutem atraveacutes
de subsiacutedios de pessoas ricas Estas liturgias incluiacuteam recursos para as edificaccedilotildees para o
reparo de construccedilotildees para a manutenccedilatildeo de centros sociais e para a realizaccedilatildeo de
festivais145
A cidade mais beneficiada no periacuteodo foi possivelmente a sede da proviacutencia Eacutefeso
Nela residia o proconsul da cidade O procurador ou vice-proconsul com alguma
probabilidade tambeacutem morava nela A partir da deacutecada de 90 mesmo sem uma precisatildeo
maior trecircs pessoas se sucederam no governo da Aacutesia ateacute a morte de Domiciano Sextus
Vettulenus Civica Cerialis C Minicius e L Junius Caesennius Paetus146
23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia
Os mais antigos membros das igrejas da Aacutesia eram oriundos de comunidades judaicas
da Aacutesia Menor Das centenas de cidades da proviacutencia asiaacutetica a presenccedila do movimento de
143 Idem p 577 144 Citado a partir de MAGIE op cit p 582 145 Idem p 583 146 Idem p 1582-1583
53
Jesus era atestada onde existia tambeacutem uma comunidade judaica147 Eacute plausiacutevel mesmo
tratar o movimento de Jesus na Aacutesia como parte do Judaiacutesmo da diaacutespora
Frequentadores de sinagogas ou de igrejas viviam na Aacutesia Menor no final do
primeiro seacuteculo e iniacutecio do segundo em grandes aacutereas urbanas e o que puder ser dito sobre
o primeiro grupo vale tambeacutem para o segundo O movimento de Jesus estaacute em processo de
ruptura e construccedilatildeo de identidade proacutepria todavia esse movimento ainda natildeo se completou
na regiatildeo como o proacuteprio Apocalipse pode evidenciar Apesar de membros da sociedade
romana especialmente seus magistrados jaacute perceberem alguma diferenccedila entre um e outro
na vida cotidiana eles permaneciam histoacuterica social e teologicamente envolvidos Esse
parece ser o motivo que levou Joatildeo de Patmos a se envolver em disputas com membros das
sinagogas locais (Apocalipse 29 39)148
A crise com as sinagogas de Esmirna (Apocalipse 29) e Filadeacutelfia (Apocalipse 39)
pode ter relaccedilatildeo com a forma como as comunidades judaicas se adaptaram ao contexto
urbano da proviacutencia Judeus habitavam a regiatildeo desde que Antioco III ordenou a realocaccedilatildeo
de duas mil famiacutelias judaicas da Babilocircnia para a Frigia como uma colocircnia militar a fim de
minimizar revoltas na regiatildeo149 Desde entatildeo judeus estavam amplamente presentes na parte
ocidental da Aacutesia Menor vivendo suas praacuteticas religiosas mas com relativa integraccedilatildeo na
vida ciacutevica das cidades150
Mesmo depois da guerra judaico-romana (66-70) os judeus da Aacutesia continuaram a
compartilhar da prosperidade da proviacutencia sem ameaccedila de puniccedilotildees por algum tipo de
conexatildeo com a guerra na Judeacuteia151 Com exceccedilatildeo do Fiscus Iudaicus nenhuma outra
consequecircncia poliacutetica ou social foi imposta aos judeus da diaacutespora pelo Impeacuterio Romano
apoacutes a guerra Segundo Josefo ldquoo mesmo soberano ordenou tambeacutem que os judeus em
qualquer lugar onde morassem deveriam pagar cada qual todos os anos duas dracmas ao
Capitoacutelio como antes pagavam ao templo de Jerusaleacutemrdquo (Guerra dos Judeus 27) A
identificaccedilatildeo dos judeus com a sociedade romana tambeacutem eacute testemunhada por este
sobrevivente da guerra Em Antiguidades Judaicas ele argumenta que judeus em Sardes
eram sardianos em Eacutefeso eram efeacutesios em Antioquia eram antioquenos (Antiguidades
Judaicas 239)
147 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 133 148 Idem p 145 149 TREBILCO Paul Jewish communities in Asia Minor Cambridge Cambridge Univesity Press 1991 p 5 150 Idem p 173 151 Idem p 32
54
Judeus eram membros ativos de associaccedilotildees comerciais e sindicatos Tambeacutem eram
agricultores vinhateiros marinheiros trabalhadores com metal e perfumaria Estavam
envolvidos ainda em manufaturas tecircxtil como tintureiros vendedores e fabricantes de
roupa152
Em cada uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse judeus viviam suas vidas
segundo as tradiccedilotildees judaicas poreacutem sem desprezar a participaccedilatildeo em atividades urbanas
locais Foi a partir destas comunidades judaicas engajadas na vida cotidiana do Impeacuterio que
o movimento de Jesus da Aacutesia formou suas igrejas
24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia
A proviacutencia da Aacutesia se situava na costa ocidental da peniacutensula da Aacutesia Menor O
autor do Apocalipse Joatildeo aponta a ilha de Patmos pertencente agrave cidade de Mileto como o
local de origem do livro Todas as cidades mencionadas explicitamente na obra satildeo cidades
de grande porte dentro da proviacutencia
As principais evidecircncias da presenccedila de cristatildeos nestas cidades vecircm de fontes do
proacuteprio movimento (cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos cartas de Pedro Apocalipse e
Inaacutecio de Antioquia) A mais antiga referecircncia a igrejas na regiatildeo vem de cartas que Paulo
de Tarso escreveu para comunidades de disciacutepulos de Corinto na deacutecada de 50 Ele estava
em Eacutefeso enquanto escrevia estas cartas (1Coriacutentios e 2Coriacutentios) O autor do livro Atos dos
Apoacutestolos tambeacutem falou do tempo em que Paulo ficou em Eacutefeso Segundo ele Paulo ficou
na cidade por trecircs anos (Atos 2031)
Tanto as cartas a Coriacutentios quanto Atos dos Apoacutestolos evidenciam que na capital da
proviacutencia existiam outros liacutederes do movimento Paulo natildeo era o uacutenico Outros como
Aacutequila Priscila e Apolo tambeacutem satildeo mencionados Estes liacutederes eram artesatildeos
independentes oriundos de comunidades judaicas da Aacutesia Menor Isso se nota por meio de
sua mobilidade sua ocupaccedilatildeo e a hospedagem de igrejas em suas casas Pessoas com a
mobilidade que eles possuiacuteam deveriam possuir recursos Para acomodar pessoas suas casas
tambeacutem deveriam ter razoaacutevel espaccedilo Natildeo eram pessoas de classes inferiores da sociedade
romana
152 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 144
55
Jaacute nos tempos de Paulo se manifestou a questatildeo da interaccedilatildeo das comunidades com
a vida urbana da cidade especialmente na questatildeo da alimentaccedilatildeo em atividades religiosas
ou ciacutevicas Em cidades gregas e romanas as pessoas tinham vaacuterias oportunidades para
participar de refeiccedilotildees cuacutelticas Isso poderia acontecer em ocasiotildees puacuteblicas (funerais
celebraccedilotildees festas ciacutevicas etc) ou privadas (clubes organizaccedilotildees comerciais refeiccedilotildees
privadas etc) Tanto em uma quanto em outra situaccedilatildeo as refeiccedilotildees expressavam conexatildeo
social em torno de causas comuns153
Fazer refeiccedilotildees puacuteblicas e comer carne oriunda de sacrifiacutecios religiosos satildeo
elementos diretamente ligados agrave questatildeo da participaccedilatildeo nas instituiccedilotildees sociais da cidade e
do Impeacuterio Este tipo de pressatildeo poderia ser diferente para status sociais distintos Segundo
Gerd Theissen cristatildeos ricos teriam mais oportunidades de se envolver em refeiccedilotildees cuacutelticas
de caraacuteter puacuteblico do que cristatildeos pobres154
Quando Paulo tratou deste assunto em 1Coriacutentios 8-10 ele relacionou a participaccedilatildeo
nas refeiccedilotildees com a situaccedilatildeo dos fracos e fortes dentro da comunidade Seu argumento
caminha na direccedilatildeo de que somente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto
os ldquofracosrdquo e os ldquofortesrdquo (ἀσθενεiς kai ἰσχυροί) participassem juntos como em festivais
puacuteblicos eacute que os disciacutepulos deveriam se abster (1Coriacutentios 87-13) Nas instacircncias privadas
poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela origem da comida
(1Corintios 1027) As igrejas da Aacutesia provavelmente nasceram a partir de mensagens e
perspectivas semelhantes agraves de Paulo de Tarso
O autor do Apocalipse quatro deacutecadas depois de missionaacuterios como Paulo Aacutequila
Priscila e Apolo terem fundado essas comunidades escreve uma obra na qual defende
posiccedilotildees divergentes Os adversaacuterios de Joatildeo descritos em sua obra como os nicolaiacutetas
baalamitas ou Jesabel satildeo atacados por promoveram algum tipo de interaccedilatildeo com a
sociedade interaccedilatildeo essa que parece ter relaccedilatildeo com a mesma questatildeo respondida por Paulo
na sua carta aos Coriacutentios a participaccedilatildeo em refeiccedilotildees ou atividades sociais que envolviam
a ingestatildeo de carne originada em sacrifiacutecio religioso Aqueles que Joatildeo enxerga como
adversaacuterios satildeo provavelmente membros do movimento de Jesus que possuem uma
perspectiva semelhante agrave que Paulo deu aos crentes de Corinto155 Thompson analisa a
153 Idem p 123 154 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva Satildeo Leopoldo Sinodal 1983 p 146 155 Assim resumiu Pagels ldquomuitas praacuteticas que Joatildeo atacava eram as mesmas que Paulo anteriormente
recomendavardquo Cf PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation
New York Penguin Books 2012 p 54
56
questatildeo e sugere que como as respostas que os adversaacuterios de Joatildeo datildeo satildeo semelhantes agrave
do antigo missionaacuterio de Tarso possivelmente eles possuiacuteam posiccedilotildees sociais semelhantes
ou seja estavam envolvidos em atividades comerciais possuiacuteam responsabilidades ciacutevicas
e pertenciam a um estrato mais rico da lideranccedila das igrejas da Aacutesia156 Este mesmo autor
defende que as igrejas da Aacutesia deveriam ter em linhas gerais uma mesma composiccedilatildeo
social Elas possuiacuteam em seus quadros pessoas livres e escravas homens e mulheres ricos
e pobres e deveriam se parecer com muitas associaccedilotildees religiosas ou sociais que existiam
na Aacutesia157 Estas associaccedilotildees synodos proliferavam consideravelmente desde a instauraccedilatildeo
do Impeacuterio e se manifestavam no Ocidente e no Oriente Segundo Meeks elas surgiam a
partir da decisatildeo de um grupo de doze a quarenta pessoas de se encontrarem em algum lugar
para reuniotildees158
Nestas reuniotildees era comum haver certa semelhanccedila de status social entre seus
membros Entretanto o proacuteprio fenocircmeno ldquostatusrdquo eacute complexo e possui vaacuterias dimensotildees
No status social de uma pessoa ou famiacutelia influiam elementos como poder prestiacutegio da
ocupaccedilatildeo renda ou riqueza educaccedilatildeo e cultura religiatildeo e pureza ritual famiacutelia ou grupo
eacutetnico status da comunidade local em que se estava envolvido Cada um destes elementos
poderia ser conjugado de forma diferente em uma dada circunstacircncia histoacuterica Na praacutetica
o status de um cidadatildeo romano era o resultado de como estas variaacuteveis eram consideradas
na sociedade local Mesmo que existisse certa perspectiva geral um sacerdote de Eacutefeso
poderia ter mais status do que um comerciante rico da cidade Em outra cidade o
conhecimento poderia ser mais importante do que a etnia em outra a pureza ritual poderia
valer mais do que a descendecircncia familiar A riqueza poderia dar mais status do que o
conhecimento mas em algumas circunstacircncias pertencer a uma famiacutelia nobre era mais
importante do que ter recursos financeiros159
Atentando para esses elementos o que as fontes geradas pelo movimento de Jesus
poderiam apontar sobre o status social dos seus membros O missionaacuterio Paulo de Tarso na
mesma carta que escreveu para a comunidade de Corinto informa que ldquonatildeo muitos da
comunidade eram saacutebios segundo o mundo nem poderosos nem de nobre nascimentordquo
(1Coriacutentios 126) Dizer que natildeo havia muitos significa afirmar que havia alguns Entre os
156 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 129 157 Idem p 127 158 MEEKS Wayne A Os primeiros cristatildeos urbanos o mundo social do Apoacutestolo Paulo Satildeo Paulo Paulinas
1992 p 54 159 Conferir esta discussatildeo em MEEKS op cit p 91
57
membros do movimento na cidade havia pessoas cultas (ldquordquo) ricas
(ldquordquo) ou bem-nascidas (ldquordquo) Pelo argumento de Paulo estes formavam uma
minoria dentro da comunidade apesar de se constituiacuterem numa minoria dominante160
Outro testemunho sobre as posiccedilotildees sociais dentro das comunidades da Aacutesia pode vir
de uma carta que Pliacutenio o Jovem escreveu em 112 enquanto atuava como governador da
proviacutencia da Bitiacutenia e Ponto tambeacutem na Aacutesia Menor O quadro descrito por Pliacutenio parece
ser bem parecido com a composiccedilatildeo da igreja de Eacutefeso ou das demais cidades mencionadas
no Apocalipse Pliacutenio resolveu tratar deste assunto com o Imperador Trajano porque
entendeu que a questatildeo era digna de consideraccedilatildeo imperial em funccedilatildeo do nuacutemero de pessoas
que se engajavam no movimento Estes ldquochristianirdquo eram de todas as idades (ldquoominis
aetatisrdquo) todas as ordens (ldquoomnis ordinisrdquo) tanto homem quanto mulher (ldquoutrisque sexusrdquo)
(Epiacutestolas 10968)
Uma carta que Paulo escreveu a Filemon jaacute na deacutecada de 60 no periacuteodo em que
esteve preso em Roma indica outro aspecto significativo da composiccedilatildeo destas
comunidades Filemon era proprietaacuterio de escravo Um deles Oneacutesimo fugiu encontrou-se
com Paulo em Roma converteu-se ao movimento e foi orientado a voltar para seu antigo
dominus este tambeacutem um convertido morador da Aacutesia Uma igreja se reunia na casa deste
senhor de escravos (Filemon 2) Natildeo eacute possiacutevel saber quantos escravos Filemon possuiacutea
mas ele recebe a orientaccedilatildeo de Paulo para que aceitasse seu antigo escravo de forma
amistosa natildeo mais como escravo (ldquow`j doulonrdquo) e sim como algueacutem mais do que escravo
(ldquou`per doulonrdquo) O escravo agora deveria ser tratado como irmatildeo (ldquow`j avdelfonrdquo) A taacutebua
domeacutestica registrada na carta aos Efeacutesios (Efeacutesios 65) documento deuteropaulino anocircnimo
escrito em algum momento entre os anos 80-100 possivelmente da Aacutesia161 especifica que
os escravos deveriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor (ldquometa fobou kai
tromourdquo)
Isso indica que as comunidades de Jesus tinham a presenccedila de pessoas livres e
escravas senhores e servos mas as orientaccedilotildees de seus liacutederes tendiam a tomar o lado dos
senhores em vez dos escravos
Outros elementos tambeacutem podem iluminar o quadro social destas comunidades da
Aacutesia162 Primeiramente o fato de alguns de seus membros escreverem livros e cartas para
160 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva op cit p 146-147 161 KUMMEL op cit p 480 162 Sobre estas sugestotildees cf THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 128-129
58
serem lidas no interior do movimento indica uma presenccedila significativa de pessoas que
sabiam escrever e ler numa sociedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas
mas parcamente encontradas Um segundo aspecto pode ser localizado naqueles que
hospedavam a comunidade em sua casa os quais deveriam ter certa ascendecircncia sobre os
membros do movimento Possivelmente eles agiam como ldquopatronosrdquo da igreja da mesma
forma como outros patronos da cidade suportavam clubes e associaccedilotildees comerciais Por fim
cristatildeos viajavam muito num periacuteodo em que viagens eram muito custosas Meeks sugeriu
a partir dos itineraacuterios apresentados nos Atos dos Apoacutestolos que o missionaacuterio Paulo de
Tarso pode ter viajado aproximadamente dezesseis mil quilocircmetros durante sua carreira
religiosa163 Estas viagens eram bancadas geralmente por atividades profissionais proacuteprias
mas em algumas circunstacircncias como no caso de Joatildeo de Patmos algum tipo de patrociacutenio
poderia ser buscado entre as comunidades visitadas
Com comunidades assim constituiacutedas de que maneira seus membros se
relacionavam com a sociedade Como jaacute indicamos no capiacutetulo anterior os membros do
movimento de Jesus da Aacutesia estavam inseridos na vida cotidiana da proviacutencia e natildeo
buscavam ruptura com seus vizinhos Apesar da dificuldade em se situar geograficamente a
origem ou o destino escrevendo em meados do segundo seacuteculo o autor da carta a Diogneto
resumiu
Os cristatildeos de fato natildeo se distinguem dos outros homens nem por sua
terra nem por liacutenguas ou costumes Com efeito natildeo moram em cidades
proacuteprias nem falam liacutengua estranha nem tecircm algum modo especial de
viver Sua doutrina natildeo foi inventada por eles graccedilas ao talento e
especulaccedilatildeo de homens curiosos nem professam como outros algum
ensinamento humano Pelo contraacuterio vivendo em cidades gregas e
baacuterbaras conforme a sorte de cada um e adaptando-se aos costumes do
lugar quanto agrave roupa ao alimento e ao resto testemunham um modo de
vida social admiraacutevel e sem duacutevida paradoxal Vivem na sua paacutetria mas
como forasteiros participam de tudo como cristatildeos e suportam tudo como
estrangeiros Toda paacutetria estrangeira eacute paacutetria deles e cada paacutetria eacute
estrangeira (Carta a Diogneto 51-5)
Tertuliano no final do segundo seacuteculo argumentou de modo semelhante para a
sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia Segundo ele os cristatildeos tinham a mesma
maneira de vida as mesmas roupas e os mesmos costumes eles frequentavam juntos o
mercado o accedilougue os banhos puacuteblicos as lojas as faacutebricas as tavernas as feiras e outros
163 MEEKS op cit p 32
59
negoacutecios Cristatildeos eram marinheiros soldados agricultores e se envolviam no comeacutercio
com natildeo cristatildeos Defendendo sua comunidade ele argumentou que eles proviam
habilidades e serviccedilos para o benefiacutecio de toda a sociedade romana (Apologia 42)
Tanto a Carta a Diogneto quanto Apologia natildeo dizem respeito especiacutefico agrave Aacutesia do
final do primeiro seacuteculo mas pelo menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a
interaccedilatildeo social no movimento de Jesus A perspectiva do missionaacuterio Paulo na deacutecada de
50 e 60 parece estar replicada em Diogneto e Apologia no segundo seacuteculo Isso significa
dizer que os seguidores de Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas
situaccedilotildees que os demais membros da sociedade romana Eles tinham contatos com pessoas
de outros viacutenculos religiosos na economia sociedade famiacutelia e poliacutetica Os seguidores de
Jesus tocavam suas vidas de forma paciacutefica com seus vizinhos tentando viver sem
distuacuterbios ou mesmo sem chamar muita atenccedilatildeo
25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo
No mesmo periacuteodo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse mas longe de Patmos cerca
de 1600 quilocircmetros um dos liacutederes da igreja de Roma o presbiacutetero Clemente escreveu
uma carta para a igreja de Corinto Clemente romano alcanccedilou grande prestiacutegio em vaacuterias
comunidades cristatildes posteriormente a ponto de sua carta aparecer em diversas listas
canocircnicas O que levou Clemente a se manifestar aparentemente foi algum tipo de tumulto
interno do movimento de Jesus em Corinto Alguns liacutederes da igreja teriam sido destituiacutedos
sem motivo aparente o que gerou o protesto de Clemente Ele escreveu ldquoCariacutessimos eacute
vergonhoso muito vergonhoso e indigno de conduta cristatilde ouvir dizer que a firme e antiga
Igreja de Corinto por causa de uma ou duas pessoas estaacute em revolta contra os seus
presbiacuteterosrdquo (1Clemente 476)
Na saudaccedilatildeo inicial ele descreve a igreja da capital como ldquoestrangeira em Romardquo A
expressatildeo poderia ser indiacutecio de algum tipo de desconforto da comunidade em relaccedilatildeo agrave
sociedade romana Outra passagem de sua carta talvez aponte para a mesma direccedilatildeo
ldquoIrmatildeos pelas desgraccedilas e adversidades imprevistas que nos aconteceram uma apoacutes outra
acreditamos ter demorado muito para dar atenccedilatildeo agraves coisas que entre voacutes se discutemrdquo
(1Clemente 11) O autor faz referecircncia a algum tipo de crise que impediu que ele se
60
manifestasse anteriormente sobre a situaccedilatildeo de Corinto mas ele evita descrever a natureza
desta crise em qualquer outro lugar da obra
Ao sugerir o fim para os conflitos internos da comunidade ele toma o exeacutercito
romano como exemplo de organizaccedilatildeo e ordem
Irmatildeos militemos com toda nossa prontidatildeo sob as ordens irrepreensiacuteveis
dele Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos
governantes com que disciplina docilidade e submissatildeo eles executam as
funccedilotildees que lhes satildeo designadas (1Clemente 371-2)
Ao demonstrar certa admiraccedilatildeo pela estrutura militar do Impeacuterio ou quando
denomina os oficiais romanos de ldquonossos governantesrdquo a carta de Clemente parece
evidenciar que os membros da comunidade de Jesus estabelecida na capital do Impeacuterio natildeo
possuem uma crise aberta com a sociedade Em funccedilatildeo de suas analogias o mesmo poderia
ser dito a respeito da igreja de Corinto Essa parece ser tambeacutem a postura que adotou o autor
anocircnimo de 1Pedro possivelmente entre os anos 90-95164 escrevendo talvez de Roma
ldquoSujeitai-vos a toda instituiccedilatildeo humana por causa do Senhor quer seja ao rei como
soberano quer agraves autoridades como enviadas por ele tanto para castigo dos malfeitores
como para louvor dos que praticam o bemrdquo (1Pedro 213-14)
Alguns argumentos de Clemente (1Clemente 552-3) indicam que a igreja jaacute passou
por dificuldades mas ele minimiza a crise inserindo-a numa exortaccedilatildeo em benefiacutecio do bem
comum O presbiacutetero Clemente natildeo atribui agrave sociedade romana a responsabilidade pelas
dificuldades que a comunidade enfrentou Isso sugere a existecircncia de uma comunidade
estabelecida na capital do Impeacuterio engajada em evitar problemas com a sociedade
experiecircncia essa que parecia estar replicada em comunidades da proviacutencia da Aacutesia
Mas se os membros do movimento de Jesus de uma forma geral tentavam manter
laccedilos regulares com a sociedade romana o inverso tambeacutem poderia ser afirmado Da parte
dos governantes geralmente havia certa toleracircncia para com costumes e mesmo divindades
locais desde que natildeo se opusessem aos interesses romanos Esta atitude de toleracircncia relativa
deve ter favorecido o desenvolvimento das igrejas Muitas comunidades existiram sem
serem notadas por quase um seacuteculo165 Accedilotildees oficiais da parte dos prococircnsules procuradores
ou outros magistrados locais como as noticiadas por Pliacutenio o Jovem ao imperador Trajano
no iniacutecio do segundo seacuteculo eram raras
164 KUumlMMEL op cit p 557-558 165 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 p 124
61
Tensotildees se manifestavam de forma intermitente como perseguiccedilotildees eventuais mas
normalmente natildeo eram oficiais Segundo Thompson para pessoas de fora da comunidade o
movimento de Jesus era uma religiatildeo suspeita por quatro motivos era nova estrangeira
secreta e exclusiva166 Provavelmente foi em consequecircncia de uma suspeiccedilatildeo desta natureza
que cristatildeos foram acusados diante do governador da Bitiacutenia algum tempo depois do
Apocalipse
As cartas de Pliacutenio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusaccedilotildees
predominantemente vagas Natildeo havia um crime especiacutefico para o processo contra os cristatildeos
O governador perguntou ldquoHaacute de punir-se o simples fato de algueacutem ser cristatildeo mesmo que
inocente de qualquer crime ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nomerdquo
(Epistola 10962) Ainda assim na duacutevida sobre o que fazer Pliacutenio inaugurou um teste
Os que negarem ser cristatildeos considerei-os merecedores de absolviccedilatildeo De
fato sob minha pressatildeo devotaram-se aos deuses e reverenciaram com
incenso e libaccedilotildees vossa imagem colocada para este propoacutesito ao lado das
estaacutetuas dos deuses e pormenor particular amaldiccediloaram a Cristo coisa
que um genuiacuteno cristatildeo jamais aceita fazer (Epiacutestola 10965)
A proviacutencia governada por Pliacutenio era vizinha da Aacutesia e fazia parte do complexo
cultural da mesma peniacutensula Ainda que o problema principal natildeo fosse o culto imperial o
gesto do governador colocou o movimento em colisatildeo com atividades religiosas locais As
epiacutestolas do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos entendiam ser crime
renegar ritos sagrados locais especialmente o culto imperial
26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo
Nos termos de Leonard Thompson ldquonas proviacutencias rituais imagens templos altares
associados com o culto imperial contribuiacuteam de forma importante para a compreensatildeo das
pessoas acerca da sua relaccedilatildeo com o imperadorrdquo167 Isso fazia da instituiccedilatildeo do culto imperial
uma importante representaccedilatildeo do imperador e do Impeacuterio na Aacutesia Havia entretanto
reciprocidade no seu estabelecimento Era uma honra para a cidade ter um templo ou altar
do culto imperial ao mesmo tempo que era importante para o imperador Impeacuterio e senado
aceitavam a existecircncia do culto imperial e promoviam seu estabelecimento e manutenccedilatildeo
166 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 132 167 Idem p 158
62
como igualmente o faziam as proviacutencias Isso significa que a rede de relaccedilotildees alimentadas
pelo culto imperial entre Roma e Aacutesia era uma rede de poder um instrumento poliacutetico de
vaacuterios niacuteveis168
Simon Price analisou a presenccedila do culto na Aacutesia insistindo na dificuldade de
circunscrever o papel do culto imperial apenas agraves esferas poliacuteticas Ele tinha igualmente um
papel religioso Segundo ele rituais de sacrifiacutecio e devoccedilatildeo puacuteblica ou privada eram
simultaneamente expressotildees religiosas e poliacuteticas169
O culto imperial natildeo foi criado pelo imperador do periacuteodo do Apocalipse Otaacutevio
Augusto recebeu honras das cidades da Aacutesia semelhantes agraves oferecidas aos deuses locais
Sacerdotes do primeiro imperador poderiam ser encontrados em mais de trinta cidades da
Aacutesia Menor e mais parentes seus receberam culto do que qualquer outro imperador depois
dele Durante o governo de Claacuteudio surgiram ao lado do sacerdote exclusivo para o
imperador vivo outros sacerdotes com a responsabilidade de promover culto tambeacutem para
os imperadores mortos Em funccedilatildeo da antiguidade da praacutetica e sua permanecircncia no decorrer
dos governos imperiais eacute possiacutevel afirmar que Domiciano alvo de uma forte criacutetica no
Apocalipse (Apocalipse 13) natildeo foi nem mais nem menos insistente com relaccedilatildeo agraves suas
prerrogativas divinas que qualquer imperador antes ou depois dele170
Todas as cidades do Apocalipse tinham manifestaccedilatildeo do culto imperial em algum
niacutevel cinco delas tinham altares imperiais (com exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia) seis
tinham templos imperiais (com exceccedilatildeo de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com
exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia)171
Aleacutem das praacuteticas e sacrifiacutecios religiosos nos templos e altares dedicados ao
Imperador sacerdotes imperiais promoviam festivais puacuteblicos que eram importantes
expressotildees religiosas e ciacutevicas na Aacutesia Estes festivais poderiam acontecer em diversas datas
mas estavam normalmente vinculados ao aniversaacuterio do Imperador Durante as celebraccedilotildees
os templos e santuaacuterios eram enfeitados e animais eram sacrificados em diversos altares
espalhados pela cidade Em cada local a participaccedilatildeo puacuteblica era aberta e esperada tendo
como cliacutemax uma refeiccedilatildeo ritual172
168 Idem p 159 169 PRICE Simon R F Rituals and Power The Roman imperial cult in Asia Minor Cambridge Cambridge
University Press 1984 p 235 170 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 159 171 PRICE op cit p 55-58 172 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation op cit p 163
63
Dentro dos templos imperiais como nos templos dedicados a outros cultos havia
estaacutetuas do imperador vivo e de outros imperadores alguma iconografia imperial e mesas
para os diversos sacrifiacutecios Estaacutetuas do imperador tambeacutem eram encontradas ao longo das
cidades ou em centros da vida puacuteblica urbana Nem todas as estaacutetuas do imperador
encontradas numa polis eram objeto de culto mas aquelas que estavam em um lugar sagrado
ou quando usadas em um tempo sagrado (um festival religioso por exemplo) tinham um
significado ritual Estas estaacutetuas e imagens tinham sentido religioso e poliacutetico e
funcionavam como um lembrete permanente uma representaccedilatildeo do poder do Imperador173
A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Aacutesia fez com que a
questatildeo do relacionamento com a sociedade se tornasse significativo para o movimento de
Jesus na proviacutencia Era difiacutecil se relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma
de suas celebraccedilotildees puacuteblicas Para alguns liacutederes das igrejas da regiatildeo natildeo havia problema
no envolvimento em atividades proacuteprias da cidade e em comer da comida oriunda dos
sacrifiacutecios religiosos Se participassem destas celebraccedilotildees diminuiriam a tensatildeo com a
sociedade e continuariam envolvidos nos diversos negoacutecios da vida urbana Alguns
entretanto como Joatildeo de Patmos possuiacuteam uma perspectiva distinta Possivelmente ele
representava uma minoria dentro das igrejas da Aacutesia que instava fortemente as comunidades
a exacerbar a tensatildeo com a sociedade e a se isolar das estruturas sociais da peniacutensula174
27 Resumo
A ilha de Patmos de onde partiu o Apocalipse e a proviacutencia romana da Aacutesia seu
destino partilhavam de uma mesma conjuntura social Era uma das regiotildees mais ricas do
Impeacuterio Romano com a presenccedila de comunidades judaicas espalhadas por vaacuterias de suas
cidades Membros destas comunidades que criam em Jesus como o Messias estavam na base
das mais antigas igrejas da regiatildeo Tanto as sinagogas quanto a maioria das igrejas
buscavam desenvolver seus ritos e crenccedilas sem conflito com a sociedade romana local
mesmo diante de tensotildees que poderiam se manifestar em relaccedilatildeo ao culto imperial Alguns
liacutederes buscavam manter orientaccedilotildees que poderiam proceder do apoacutestolo Paulo e assim
permitir a participaccedilatildeo dos membros em atividades ciacutevicas e religiosas locais Essas
173 Idem p 163 174 Idem p 167
64
comunidades natildeo desejavam que suas praacuteticas religiosas inviabilizassem seus
relacionamentos com a sociedade romana Joatildeo de Patmos entretanto manifesta em sua
obra uma postura oposta a liacutederes como seu contemporacircneo Clemente Romano Na
perspectiva do autor do Apocalipse para ser fiel ao seu fundador o movimento de Jesus
precisava rejeitar o Impeacuterio
III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE
JOAtildeO
Joatildeo de Patmos judeu emigrante da Palestina apoacutes a guerra contra os romanos por
meio de narrativas imagens e siacutembolos se apropriou de determinadas tradiccedilotildees religiosas
judaicas e construiu um apocalipse que pretendia explicar a conjuntura histoacuterica que o
movimento de Jesus experimentou e experimentava no interior da proviacutencia romana da Aacutesia
A obra culmina na descriccedilatildeo do juiacutezo final e da nova criaccedilatildeo divina Antes disso entretanto
o autor apresenta um periacuteodo de governo messiacircnico iminente terrenal intra-histoacuterico por
mil anos (Apocalipse 201-10) Apesar de curta a narrativa do milecircnio acabaraacute no centro dos
debates e das interpretaccedilotildees subsequentes do livro joanino175 Queremos neste capiacutetulo
analisar a produccedilatildeo desta periacutecope no contexto da obra joanina a partir de suas apropriaccedilotildees
tradicionais e literaacuterias na direccedilatildeo de novas representaccedilotildees individuais e coletivas
histoacutericas e milenaristas Procuramos refletir tambeacutem sobre a forma como estas
representaccedilotildees poderiam interferir no mundo social de Joatildeo e suas comunidades176
31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse
Adela Y Collins sugeriu que a obra joanina apesar de apresentar certos sinais que
indicariam uma estrutura clara (sete igrejas sete selos sete trombetas e sete taccedilas por
exemplo) natildeo eacute tatildeo transparente assim deixando a audiecircncia com certa expectativa
frustrada Isso poderia explicar os longos debates a respeito da estrutura da obra de Joatildeo177
Entre as alternativas David L Barr preferiu construir um esboccedilo do livro acompanhando o
desenvolvimento de suas narrativas Por isso ele dividiu o Apocalipse joanino em trecircs seccedilotildees
principais emolduradas por uma estrutura epistolar (os versiacuteculos 11-3 formariam o
prefaacutecio enquanto 226-21 a conclusatildeo) Ele as chamou de Seccedilatildeo das Cartas (14-322)
Seccedilatildeo do Culto Celestial (41-1118) e Seccedilatildeo da Guerra Escatoloacutegica (1119-225)178 Nossa
175 Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene
Wipf and Stock Publishers 2001 p 21-87 KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation
Oxford Blackwell Publishing 2004 p 200-219 176 Pensamos aqui nos papeacuteis sociais instituiccedilotildees sociais e relacionamentos sociais 177 Conferir uma histoacuteria da estruturaccedilatildeo do Apocalipse em COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in
the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 13-44 178 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa
Polebridge Press 1998
66
proposta de esboccedilo para o Apocalipse parte das sugestotildees de Barr em funccedilatildeo da forma como
ele compreendeu o desenvolvimento narrativo do livro joanino e o enquadramento
particular de cada episoacutedio literaacuterio no interior da obra como um todo Por meio deste esboccedilo
eacute possiacutevel entatildeo verificar o lugar do milecircnio dentro do Apocalipse Em termos literaacuterios ele
faz parte da narrativa da guerra escatoloacutegica ao descrever a vitoacuteria do Jesus exaltado sobre
Satanaacutes e as bestas num evento que termina com o juiacutezo final e a Nova Jerusaleacutem
- Introduccedilatildeo epistolar (11-3)
- Primeira seccedilatildeo ndash O Filho do Homem e as sete igrejas da Aacutesia (14-322)
Carta agrave Igreja em Eacutefeso (21-7)
Carta agrave Igreja em Esmirna (28-11)
Carta agrave Igreja em Peacutergamo (212-17)
Carta agrave Igreja em Tiatira (218-29)
Carta agrave Igreja em Sardes (31-6)
Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia (37-13)
Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia (314-22)
- Segunda seccedilatildeo ndash O rolo selado com sete selos (41-1119)
O culto ao Anciatildeo no trono (41-11)
O culto ao Cordeiro (51ndash14)
Selo 1 ndash Cavalo branco (61ndash2)
Selo 2 ndash Cavalo vermelho (63ndash4)
Selo 3 ndash Cavalo preto (65-6)
Selo 4 ndash Cavalo amarelo (67-8)
Selo 5 ndash Os maacutertires debaixo do altar (69-11)
Selo 6 ndash Juiacutezo escatoloacutegico (612-17)
Interluacutedio (71-17)
144000 selados (71-8)
Grande multidatildeo (79ndash17)
Selo 7 - Sete trombetas (81ndash1119)
O anjo das oraccedilotildees (81ndash6)
Trombeta 1 ndash Granito e fogo sobre a terra (88-7)
Trombeta 2 ndash Mar se torna em sangue (88-9)
Trombeta 3 ndash Estrelas tornam rios amargos (810-11)
Trombeta 4 ndash Sol lua e estrelas escurecem (812-13)
Trombeta 5 ndash Gafanhotos sobem do abismo (91-12)
Trombeta 6 ndash Quatro anjos e um exeacutercito matam pessoas (913-21)
Interluacutedio (101-1114)
Um livro para ser comido (101-11)
As duas testemunhas (111-14)
Trombeta 7 ndash A chegada do reino de Deus (1115ndash19)
- Terceira seccedilatildeo ndash A guerra escatoloacutegica (121-225)
A origem da guerra (121-18)
Os aliados do Dragatildeo (131-18)
A besta do mar (131-10)
A besta da terra (1311-18)
67
Os 144000 guerreiros do Cordeiro (141-5)
O anuacutencio dos trecircs anjos (146-12)
A bem-aventuranccedila dos mortos (1413)
O juiacutezo como uma ceifa (1414-20)
As sete taccedilas da ira (151-1621)
Os maacutertires diante de Deus (151-8)
Taccedila 1 Dores nos marcados pela besta (161-2)
Taccedila 2 O mar se torna em sangue (163)
Taccedila 3 Os rios se tornam em sangue (164-7)
Taccedila 4 O sol provoca feridas (168-9)
Taccedila 5 Trevas no trono da besta (1610-11)
Taccedila 6 A seca do Rio Eufrates e a coalizatildeo do Dragatildeo (1612-16)
Taccedila 7 Juiacutezo sobre Babilocircnia (1617-21)
A prostituta destruiacuteda (171-18)
Hino fuacutenebre pela queda da Babilocircnia (181-24)
Celebraccedilatildeo no ceacuteu pela queda da Babilocircnia (191-4)
O culto no ceacuteu anuncia as bodas do Cordeiro (195-10)
A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre as bestas (1911-21)
A prisatildeo do Dragatildeo (201-3)
O reino messiacircnico milenar (204-6)
A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre o Dragatildeo (207-10)
O juiacutezo final (2011-15)
A Nova Jerusaleacutem (211-225)
- Conclusatildeo epistolar (226-21)
32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo
Uma das caracteriacutesticas recorrentes nos apocalipses segundo John Collins eacute a
ldquorevelaccedilatildeordquo179 O proacuteprio termo ldquoapocalipserdquo () significa ldquorevelaccedilatildeordquo180 Seus
autores se propotildeem a revelar algo para sua audiecircncia Em linhas amplas estas revelaccedilotildees
poderiam ser divididas em dois eixos um vertical e outro horizontal
No eixo horizontal os autores queriam revelar o passado e o futuro O foco varia de
texto a texto com algumas obras com ecircnfase no passado ao descreverem os primoacuterdios da
histoacuteria da humanidade o iniacutecio da saga do povo de Deus ou mesmo uma descriccedilatildeo
cosmogocircnica sobre como as coisas vieram a ser o que satildeo no seu presente momento Quando
o foco estava no futuro os autores pretendiam descrever a intervenccedilatildeo final de Deus que
promoveria uma inversatildeo escatoloacutegica com todas as suas consequecircncias (cataclismos
coacutesmicos e juiacutezo sobre os inimigos de um lado nova criaccedilatildeo e recompensa para os membros
179 COLLINS John J Introduction towards the morphology of a genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979
p 9 180 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 66
68
do grupo do outro) Nesta perspectiva haacute a construccedilatildeo de um esquema teleoloacutegico da
histoacuteria no qual um fim glorioso resolveria a violecircncia e os traumas do passado e do presente
da comunidade destinataacuteria do apocalipse em questatildeo
No eixo vertical uma obra apocaliacuteptica se propotildee a revelar o que estaacute para aleacutem do
mundo humano o que estaacute acima e o que estaacute abaixo os ceacuteus e os submundos bem como
as coisas e seres que existem nestes espaccedilos Haacute aqui uma preocupaccedilatildeo em entender como
o universo funciona como o mundo sobrenatural interfere no mundo dos seres humanos e
na natureza e como controlar ou pelo menos ter acesso a essas realidades sobrenaturais
O Apocalipse de Joatildeo como outros apocalipses antes dele e depois dele tambeacutem
possui essas preocupaccedilotildees horizontais e verticais Como as revelaccedilotildees apocaliacutepticas satildeo
transmitidas no formato de narrativas o conteuacutedo do livro do profeta de Patmos estaacute
apresentado no interior de trecircs histoacuterias distintas mas inter-relacionadas181 A primeira
histoacuteria a ser narrada eacute a do aparecimento do Filho do Homem que promove o ditado de sete
cartas para um grupo de igrejas da Aacutesia romana Nestas cartas a figura celestial conhecida
das tradiccedilotildees de Daniel182 e 1Enoque183 faz ameaccedilas elogios e promessas e termina cada
carta com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores As mensagens
das cartas giram em torno de distuacuterbios entre os proacuteprios membros do movimento de Jesus
por causa das diferentes posturas de relacionamento com a sociedade romana em cada
contexto local184
Na segunda seccedilatildeo do livro o narrador das revelaccedilotildees eacute levado em espiacuterito (ldquoἐν
πνεύματιrdquo) por uma porta aberta no ceacuteu Neste lugar ele presencia uma sucessatildeo de atos
lituacutergicos e eacute apresentado aos principais personagens celestiais o Anciatildeo sobre o trono os
Quatro Viventes os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais e vaacuterios seres angelicais A figura
181 Interpretamos as narrativas do Apocalipse agrave luz do contexto em que ele foi composto Isso significa que as
analogias que constroacutei as imagens que utiliza os siacutembolos recorrentes na obra seratildeo compreendidos como
referecircncia a eventos histoacutericos do seu tempo ou como elementos escatoloacutegicos proacuteprios ao movimento de
Jesus no final do seacuteculo I especialmente no contexto da regiatildeo Aacutesia-Siacuteria-Palestina Cf COLLINS Adela
Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E J Brill 1996 p 198
Diversas outras formas de interpretar o mesmo conteuacutedo satildeo resumidas e analisadas em WAINWRIGHT op
cit 182 Daniel 7 narra a sucessatildeo de reinos e governos na forma de quatro animais mitoloacutegicos No interior desta
revisatildeo histoacuterica apocaliacuteptica o texto descreve a figura do Anciatildeo celestial e o Filho do Homem que o
representa Cf COLLINS John J Daniel with in introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William
B Eerdmans Publishing Company 1984 p 83 183 Em 1Enoque 7114-17 Enoque ascende aos ceacuteus onde encontra o proacuteprio Deus Ali o patriarca recebe a
informaccedilatildeo que ele eacute realmente o Filho do Homem figura que teria um papel significativo na salvaccedilatildeo
escatoloacutegica dos eleitos de Deus Cf OLSON Daniel C Enoch and the Son of Man in the Epilogue of the
Parables Journal for the Study of the Pseudepigrapha Thousand Oaks n 18 p 27-38 1998 184 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 p 58
69
fundamental entretanto eacute descrita como o Cordeiro (ἀρνίον) Eacute ele que recebe um rolo selado
com sete selos estrateacutegia simboacutelica para interpretar eventos e fenocircmenos histoacutericos A cada
selo corresponde uma revelaccedilatildeo ateacute o seacutetimo que por sua vez se desdobra em outro grupo
de sete elementos desta vez sete trombetas Como os selos cada trombeta estaacute relacionada
com um evento numa escala crescente de intensidade que culmina com a audiccedilatildeo de um
hino que comemora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuaacuterio celestial
A terceira parte do livro conta a histoacuteria de uma guerra que comeccedila quando uma
figura demoniacuteaca o Dragatildeo vermelho fracassa no seu propoacutesito de destruir uma crianccedila e
sua matildee sendo por isso expulso do ceacuteu para a terra Sua reaccedilatildeo eacute instaurar uma guerra contra
outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas Em contrapartida o
Cordeiro reuacutene seu exeacutercito convocando 144000 guerreiros dispostos a lutar ateacute a morte O
confronto resulta no nuacutemero determinado de maacutertires necessaacuterios para instaurar a
intervenccedilatildeo escatoloacutegica de Deus na forma de sete taccedilas de ira Apoacutes o derramamento das
taccedilas Jesus agora como um cavaleiro celestial desce do ceacuteu com uma hoste de anjos para
derrotar o Dragatildeo e seus aliados Num primeiro ato as bestas satildeo lanccediladas num lago de fogo
todo o exeacutercito adversaacuterio eacute morto e o Dragatildeo eacute aprisionado por mil anos O segundo ato
coloca fim agrave guerra quando o Dragatildeo eacute novamente solto somente para ser vencido e lanccedilado
no mesmo espaccedilo de juiacutezo onde jaacute estavam as duas bestas Entre os dois atos a narrativa
apresenta o reino messiacircnico com a participaccedilatildeo da figura exaltada de Jesus e os maacutertires
ressuscitados agora como reis e sacerdotes de Deus Com o fim do milecircnio e da guerra
escatoloacutegica o autor do Apocalipse descreve o fim da histoacuteria marcada pelo juiacutezo final e a
chegada da Nova Jerusaleacutem
33 O contexto narrativo do reino milenar
A sequecircncia narrativa e temporal da terceira seccedilatildeo (Apocalipse 121-225) natildeo eacute
linear Haacute muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como repeticcedilotildees ou incidentes
similares Existe um iacutentimo paralelo entre a sequecircncia das taccedilas (Apocalipse 161-21) e a
sequecircncia das trombetas (Apocalipse 88-1119) bem como vaacuterias cenas que parecem
interromper o fio narrativo Normalmente estas interrupccedilotildees funcionam para apresentar uma
interpretaccedilatildeo de algum aspecto da narrativa Mesmo assim ainda existe um sentido de
movimento para frente O primeiro episoacutedio apresenta o nascimento de uma crianccedila descrita
70
em termos messiacircnicos (Apocalipse 125) o que parece ser alusatildeo ao nascimento de Jesus
nove deacutecadas antes do Apocalipse surgir em Patmos e termina com o juiacutezo final e a
restauraccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo agora descrita como a Nova Jerusaleacutem A primeira cena estaacute
no passado da audiecircncia do Apocalipse e a uacuteltima estaacute no futuro Isso parece evidenciar o
desenvolvimento de uma narraccedilatildeo contiacutenua com princiacutepio meio e fim nos moldes dos
chamados apocalipses histoacutericos da tipologia de John Collins185
Em Apocalipse 121-18 Joatildeo narra uma guerra no ceacuteu e a expulsatildeo do Dragatildeo para
a terra Este tenta destruir a crianccedila messiacircnica mas falha no momento em que ela eacute
arrebatada para o ceacuteu Diante disto o Dragatildeo procura destruir a Mulher que eacute protegida no
deserto Depois de fracassar na perseguiccedilatildeo da Mulher o Dragatildeo parte para a perseguiccedilatildeo
dos outros filhos da Mulher (σπέρματος αὐτῆς) aqueles que ldquoguardam os mandamentos de
Deus e sustentam o testemunho de Jesusrdquo (ldquoτῶν τηρούντων τὰς ἐντολὰς τοῦ θεοῦ καὶ ἐχόντων
τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦrdquo) Tal descriccedilatildeo pretendia explicar para sua audiecircncia que uma iminente
perseguiccedilatildeo das igrejas teria como causa um conflito fora do mundo humano que envolveu
o fracasso de Satanaacutes em destruir Jesus e sua consequente expulsatildeo para a terra186
Um proacuteximo estaacutegio na narrativa apresenta os aliados do Dragatildeo duas bestas (qhria)
descritas em termos que apontavam para o Impeacuterio Romano e suas estruturas na proviacutencia
da Aacutesia como agentes demoniacuteacos187 Com esta estrateacutegia o profeta de Patmos queria indicar
que uma guerra coacutesmica jaacute comeccedilara e o conflito iria se acentuar enormemente mas em
breve Deus iria intervir nos acontecimentos por meio de Jesus Para o Apocalipse as igrejas
da Aacutesia e seus membros se encontravam no meio da luta depois do levantamento das bestas
mas antes que elas instaurassem a perseguiccedilatildeo generalizada
O estaacutegio seguinte da guerra pode ser denominado de ldquoresposta do Cordeirordquo Este
comeccedila sua reaccedilatildeo com a reuniatildeo de um exeacutercito de oposiccedilatildeo sobre o monte Siatildeo
(Apocalipse 141-5) provavelmente uma descriccedilatildeo dos seguidores de Jesus logo
martirizados Como resultado dessas mortes completa-se o nuacutemero dos maacutertires
185 Segundo Collins haacute tipos diferentes de apocalipses Uns como Daniel 7-12 4Esdras e 2Baruque focam
em descriccedilotildees histoacutericas e descrevem julgamentos coacutesmicos Outros como 2Enoque ou 3Baruque se
concentram em viagens celestiais e revelaccedilotildees sobre a realidade da alma apoacutes a morte O Apocalipse de Joatildeo
enfatiza o autor eacute um apocalipse de tipo misto que apesar de apresentar algum tipo de revelaccedilatildeo de mundo
sobrenatural se concentra na reflexatildeo histoacuterica Cf COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura
apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 4 COLLINS John J
Introductionhellip op cit p 13 186 HENTEN Jan Willem Dragon Myth and Imperial Ideology in Revelation 12-13 In BARR David L (ed)
The Reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical
Literature 2006 p 181-203 p 202 187 COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation op cit p 232
71
mencionados no quinto selo (Apocalipse 69-11) dando iniacutecio agraves sete pragas finais sobre a
terra na forma de sete taccedilas O cliacutemax das taccedilas de julgamento estaacute na descriccedilatildeo da queda da
Babilocircnia caracterizaccedilatildeo simboacutelica de Roma
Finalmente chega a fase final da guerra O cavaleiro celestial aparece do ceacuteu e
alcanccedila vitoacuteria sobre as bestas Um anjo desce do ceacuteu e prende o Dragatildeo Um periacuteodo
interino de paz por mil anos eacute estabelecido durante o qual os martirizados retornam agrave vida
como juiacutezes reis e sacerdotes de Cristo Apoacutes o milecircnio Satatilde eacute novamente libertado Ele
reuacutene um exeacutercito demoniacuteaco mas eacute derrotado definitivamente
34 O episoacutedio do reino milenar
Texto Grego188 Traduccedilatildeo proacutepria 1 Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ
οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ
ἅλυσιν μεγάλην ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ
1 E vi um anjo189 descendo do ceacuteu tendo a
chave do abismo190 e uma grande corrente
em suas matildeos 2 καὶ ἐκράτησεν τὸν δράκοντα ὁ ὄφις ὁ
ἀρχαῖος ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς
καὶ ἔδησεν αὐτὸν χίλια ἔτη191
2 E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente
que eacute o Diabo e Satanaacutes192 aprisionando-o
por mil anos 3 καὶ ἔβαλεν αὐτὸν εἰς τὴν ἄβυσσον καὶ
ἔκλεισεν καὶ ἐσφράγισεν ἐπάνω αὐτοῦ ἵνα
μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ
χίλια ἔτη μετὰ ταῦτα δεῖ λυθῆναι αὐτὸν
μικρὸν χρόνον
3 E lanccedilou-o para o abismo fechou e selou
o abismo para que natildeo engane mais as
naccedilotildees ateacute que se complete os mil anos
Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele
seja solto por pouco tempo 4 Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽
αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς καὶ τὰς
ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν
4 E vi tronos e sentaram neles e
[autoridade de] julgamento foi dada a
eles193 tambeacutem as almas dos
188 ALAND Kurt et all The Greek New Testament 4 ed rev London United Bible Society 2008 p 737-
738 O texto grego apresenta muitas dificuldades em funccedilatildeo de deficiecircncias e imprecisotildees sintaacuteticas Faltam
sujeitos haacute um acusativo solto um nominativo no lugar de um acusativo um pronome relativo que poderia
natildeo ter viacutenculos com seu antecedente mais oacutebvio A traduccedilatildeo proposta reflete uma tentativa de ordenaccedilatildeo Cf
MILLOS Samuel Peacuterez Apocalipsis comentario exegeacutetico al texto griego del Nuevo Testamento Barcelona
Editorial Clie 2010 p 1213 189 A expressatildeo aparece indefinida ldquoum anjordquo Natildeo haacute qualquer ecircnfase ou destaque no papel do anjo que prende
Satatilde Todo o destaque da narrativa vai para o Cristo que reina e os martirizados ressuscitados Cf POHL
Adolf Apocalipse de Joatildeo Curitiba Editora Evangeacutelica Esperanccedila 2001 2v V II p 221 190 O abismo natildeo eacute idecircntico ao lago de fogo e parece ser referecircncia agrave morada dos seres demoniacuteacos Cf
PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 363 191 A expressatildeo ldquoχίλια ἔτηrdquo soacute aparece no Novo Testamento nesta passagem do Apocalipse e em 2Pedro 38 192 Todos os tiacutetulos aqui mencionados apareceram antes nos episoacutedios do confronto entre o Dragatildeo e a Mulher
e o Dragatildeo e Miguel em Apocalipse 12 Laacute Satatilde foi lanccedilado para a terra Aqui ele eacute jogado no abismo Cf
FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991 p
107 193 Literalmente ldquoe julgamento foi dado a elesrdquo Pode significar que finalmente um julgamento terminou em
favor dos maacutertires ou como aqui optamos que o julgamento foi confiado a eles ou seja a autoridade para
exercer o juiacutezo Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 365
72
μαρτυρίαν Ἰησοῦ καὶ διὰ τὸν λόγον τοῦ
θεοῦ καὶ οἵτινες οὐ προσεκύνησαν τὸ
θηρίον οὐδὲ τὴν εἰκόνα αὐτοῦ καὶ οὐκ
ἔλαβον τὸ χάραγμα ἐπὶ τὸ μέτωπον καὶ ἐπὶ
τὴν χεῖρα αὐτῶν καὶ ἔζησαν καὶ
ἐβασίλευσαν μετὰ τοῦ Χριστοῦ χίλια ἔτη
decapitados194 por causa do testemunho de
Jesus e da palavra de Deus e todos195 que
natildeo adoraram a besta nem sua imagem e
natildeo receberam a marca dela na fronte e na
matildeo Viveram e reinaram com Cristo por
mil anos 5 οἱ λοιποὶ τῶν νεκρῶν οὐκ ἔζησαν ἄχρι
τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη αὕτη ἡ ἀνάστασις ἡ
πρώτη
5 Os demais mortos natildeo viveram ateacute que
terminasse os mil anos Esta eacute a primeira
ressurreiccedilatildeo196 6 μακάριος καὶ ἅγιος ὁ ἔχων μέρος ἐν τῇ
ἀναστάσει τῇ πρώτῃmiddot ἐπὶ τούτων ὁ
δεύτερος θάνατος οὐκ ἔχει ἐξουσίαν ἀλλ᾽
ἔσονται ἱερεῖς τοῦ θεοῦ καὶ τοῦ Χριστοῦ
καὶ βασιλεύσουσιν μετ᾽ αὐτοῦ [τὰ] χίλια
ἔτη
6 Bendito e santo o que tem parte na
primeira ressurreiccedilatildeo Sobre estes a
segunda morte197 natildeo tem poder poreacutem
seratildeo sacerdotes de Deus e de Cristo e
reinaratildeo com ele por mil anos
7 Καὶ ὅταν τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη λυθήσεται
ὁ Σατανᾶς ἐκ τῆς φυλακῆς αὐτοῦ
7 E quando concluir os mil anos seraacute solto
Satanaacutes da sua prisatildeo 8 καὶ ἐξελεύσεται πλανῆσαι τὰ ἔθνη τὰ ἐν
ταῖς τέσσαρσιν γωνίαις τῆς γῆς τὸν Γὼγ
καὶ Μαγώγ συναγαγεῖν αὐτοὺς εἰς τὸν
πόλεμον ὧν ὁ ἀριθμὸς αὐτῶν ὡς ἡ ἄμμος
τῆς θαλάσσης
8 E viraacute a enganar as naccedilotildees198 que estatildeo
nos quatro cantos da terra Gog e Magog199
e reuni-las para a guerra das quais o
nuacutemero eacute como a areia do mar
9 καὶ ἀνέβησαν ἐπὶ τὸ πλάτος τῆς γῆς καὶ
ἐκύκλευσαν τὴν παρεμβολὴν τῶν ἁγίων
9 E subiram200 entatildeo pela superfiacutecie da terra
e cercaram o acampamento dos santos e a
194 Literalmente ldquodegolados por um machadordquo Termo arcaizante jaacute que este tipo de supliacutecio usado na
Repuacuteblica Romana natildeo era comum nos tempos do Impeacuterio Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p
366 195 Alguns autores argumentam que o pronome relativo οἵτινες daria margem para dois grupos de exaltados (os
ressuscitados e os que natildeo adoraram a besta) Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 366-367
Acompanhamos entretanto o argumento de David Aune que entende a claacuteusula relativa como uma descriccedilatildeo
de um uacutenico grupo os martirizados A expressatildeo fornece as causas positivas para o martiacuterio (testemunho de
Jesus e da Palavra de Deus) e as negativas (natildeo adoraram a besta e natildeo receberam sua marca) Cf AUNE
David E Revelation 17-22 op cit p 1088-1089 196 Segundo este episoacutedio do Apocalipse apenas os maacutertires participam da primeira ressurreiccedilatildeo O livro de
Daniel localizou a ressurreiccedilatildeo dos mortos no iniacutecio do reino messiacircnico 4Esdras e 2Baruque a localizam no
final Aparentemente o Apocalipse harmonizou duas tradiccedilotildees diferentes afirmando duas ressurreiccedilotildees uma
no iniacutecio do reino milenar outra no final Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1090-1091 197 Segundo Aune a expressatildeo ldquosegunda morterdquo pode significar a exclusatildeo da ressurreiccedilatildeo do final dos tempos
ou a eterna danaccedilatildeo Ele sugere a segunda opccedilatildeo como mais plausiacutevel neste contexto da narrativa do
Apocalipse Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1093 198 As naccedilotildees aqui seduzidas oriundas dos quatro cantos da terra que precisam subir pela superfiacutecie para cercar
o acampamento dos santos parecem aludir a um exeacutercito de seres demoniacuteacos que estavam no submundo com
Satatilde Cf FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 106 POHL op cit p 236 199 Alusatildeo a Ezequiel 38-39 que vaticinou um ataque de naccedilotildees hostis aos habitantes da Palestina nos uacuteltimos
dias No Apocalipse entretanto Gog e Magog natildeo satildeo descriccedilotildees de povos ou naccedilotildees mas referecircncia
metafoacuterica ao exeacutercito demoniacuteaco de oposiccedilatildeo final Cf POHL op cit p 237 200 Haacute nos versiacuteculos 9 e 10 uma curiosa inconsistecircncia verbal Os verbos que descrevem a prisatildeo inicial de
Satatilde estatildeo no aoristo indicativo traduzidos normalmente pelo preteacuterito A partir do versiacuteculo 7 as claacuteusulas
temporais passam para o futuro (ldquoenganaraacute as naccedilotildeesrdquo ldquoreuniraacute para a guerrardquo) mas retornam para o aoristo
no relato do confronto final (ldquosubiram pela superfiacutecierdquo ldquocercaram o acampamentordquo ldquodesceu fogordquo etc)
Possivelmente isto tenha origem na jaacute mencionada desordenaccedilatildeo gramatical da passagem Cf MILLOS op
cit p 1213
73
καὶ τὴν πόλιν τὴν ἠγαπημένην καὶ κατέβη
πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e os
queimou 10 καὶ ὁ διάβολος ὁ πλανῶν αὐτοὺς ἐβλήθη
εἰς τὴν λίμνην τοῦ πυρὸς καὶ θείου ὅπου
καὶ τὸ θηρίον καὶ ὁ ψευδοπροφήτης καὶ
βασανισθήσονται ἡμέρας καὶ νυκτὸς εἰς
τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων
10 E o diabo o enganador deles foi jogado
para o lago201 de fogo e enxofre onde
tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta e
seratildeo atormentados dia e noite para todo o
sempre
O episoacutedio do milecircnio pode ser dividido em trecircs partes a prisatildeo do Dragatildeo
(versiacuteculos 1-3) os maacutertires ressuscitados (versiacuteculos 4-6) a condenaccedilatildeo do Dragatildeo
(versiacuteculos 7-10) Satildeo trecircs partes contudo apenas duas histoacuterias que se unem pela expressatildeo
temporal ldquomil anosrdquo (χίλια ἔτη) aqui narradas como parte da revelaccedilatildeo vertical ou seja
eventos que ocorreratildeo no futuro em relaccedilatildeo ao tempo da audiecircncia A narrativa do juiacutezo
sobre Satanaacutes segue do versiacuteculo 1 ao 3 e eacute retomada nos versiacuteculos 7-10 No meio dela estaacute
a narraccedilatildeo do reinado dos maacutertires202 Se narrada de forma linear sem a interrupccedilatildeo este
seria o episoacutedio da prisatildeo e destruiccedilatildeo do Dragatildeo
E vi um anjo descendo do ceacuteu tendo a chave do abismo e uma grande
corrente em suas matildeos E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente que eacute o
Diabo e Satanaacutes aprisionou-o por mil anos E lanccedilou-o para o abismo
fechou e selou o abismo para que natildeo enganasse mais as naccedilotildees ateacute que se
completasse os mil anos Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele seja
solto por pouco tempo E quando concluir os mil anos Satanaacutes seraacute solto
da sua prisatildeo E viraacute a enganar as naccedilotildees que estatildeo nos quatro cantos da
terra Gog e Magog e reuni-las para a guerra das quais o nuacutemero eacute como
a areia do mar E subiram entatildeo pela superfiacutecie da terra e cercaram o
acampamento dos santos e a cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e as
queimou E o diabo o enganador delas foi jogado para o lago de fogo e
enxofre onde tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta E seratildeo
atormentados dia e noite para todo o sempre
A prisatildeo e condenaccedilatildeo de Satanaacutes concluem a cena da vitoacuteria de Jesus sobre seus
adversaacuterios que aparece em Apocalipse 1911 como um cavaleiro montado sobre um cavalo
branco Aparentemente toda a seccedilatildeo posterior ao aparecimento do Jesus exaltado estaacute
estruturada segundo um esquema encontrado em Ezequiel203 Eacute possiacutevel relacionar por
201 O termo λίμνην pode significar lago tanque ou neste caso especiacutefico charco pacircntano ou lodaccedilal A
expressatildeo λίμνην τοῦ πυρὸς parece fazer referecircncia ao lugar conhecido como geena descrita em Mateus 522
como geenan tou puroj Era um vale que se estendia para fora da muralha sul de Jerusaleacutem conhecido tambeacutem
como Vale de Hinom local que servia nos tempos de Jesus como depoacutesito de lixo O portatildeo para o vale chegava
a ser chamado de Portatildeo do Esterco O lixo era constantemente incendiado fazendo do vale um espaccedilo de
fumaccedila e fedor Alguns judeus o tinham como o lugar mais asqueroso do mundo Daiacute a relaccedilatildeo com a descriccedilatildeo
do sofrimento escatoloacutegico ser feita com traccedilos do Vale de Hinom Cf POHL op cit p 219 202 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 107 203 ULFGARD Hakan Biblical and para-biblical origins of millennarianism Religiologiques Montreal n 20
p 25-49 1999 p 34
74
exemplo a ressurreiccedilatildeo dos maacutertires com o levantamento dos ossos secos de Ezequiel 37 o
confronto final de Satanaacutes com o ataque de Gog de Magog (Ezequiel 38)204 a nova
Jerusaleacutem de Apocalipse com o novo templo e a nova cidade de Ezequiel 40-48205
No interior desta longa cena de conquista dos adversaacuterios Satanaacutes eacute aprisionado
provisoriamente A noccedilatildeo de uma prisatildeo temporaacuteria para seres sobrenaturais natildeo era
desconhecida do Judaiacutesmo antigo O autor do Mito dos Vigilantes (1Enoque 1-36) em algum
momento do seacuteculo II antes da Era Comum apoacutes descrever a transgressatildeo dos vigilantes
celestiais narra o destino deles em duas versotildees Em 1Enoque 104-6
- Deus envia o anjo Rafael
- Azazel eacute amarrado por um anjo
- Azazel eacute lanccedilado na escuridatildeo e aprisionado para sempre
- o tempo do aprisionamento eacute descrito como o grande dia do julgamento
- Azazel eacute lanccedilado no fogo no grande dia do julgamento
Logo depois outra versatildeo do juiacutezo eacute narrada em 1Enoque 1011-13
- Deus envia o anjo Miguel
- o anjo amarra Semjaza e seus associados
- eles satildeo aprisionados sob a terra
- o periacuteodo de prisatildeo eacute limitado a 70 geraccedilotildees
- no dia do julgamento eles seratildeo lanccedilados no abismo de fogo
Esta narrativa dupla parece ser o resultado da fusatildeo de tradiccedilotildees que vinculavam a
presenccedila dos males no mundo a seres demoniacuteacos que receberam de Deus uma dupla
sentenccedila o aprisionamento em alguma regiatildeo do cosmos e a destruiccedilatildeo no final dos tempos
Nestas tradiccedilotildees judaicas os adversaacuterios sobrenaturais possuem nomes diferentes mas satildeo
condenados igualmente agrave prisatildeo enquanto aguardam a destruiccedilatildeo final (Jubileus 56 107-
11 2Enoque 72 2Apocalipse de Baruque 5613 Judas 6)
David Aune sugeriu que a base comum a essas tradiccedilotildees poderia ser uma releitura de
Isaias 2421-22 ldquoNaquele dia o Senhor castigaraacute no ceacuteu as hostes celestes e os reis da
terra na terra Seratildeo ajuntados como presos em masmorra e encerrados num caacutercere e
204 A passagem de Ezequiel 382 fala do rei Gog da terra de Magog Apocalipse entretanto nivelou as duas
expressotildees como se fossem dois reis ou dois povos Gog e Magog Esta apropriaccedilatildeo joanina do texto de
Ezequiel parece refletir a expectativa presente em alguns apocalipses antigos que o povo de Deus seria atacado
por um ajuntamento de forccedilas inimigas no final dos tempos Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p
371 205 Cf tambeacutem PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 350 POHL op cit p 235
75
castigados depois de muitos diasrdquo206 Na adaptaccedilatildeo joanina entretanto a histoacuteria do
aprisionamento dos seres demoniacuteacos aparece secionada em duas partes pois entre elas o
Apocalipse apresentou o reinado dos maacutertires exaltados (versiacuteculos 4-6)
Estes maacutertires aparecem em diversas passagens do Apocalipse Uma das mais
significativas eacute a cena do quinto selo (Apocalipse 69-11) Debaixo do altar estatildeo pessoas
que morreram por causa da palavra de Deus e do testemunho () Elas querem saber
quando eacute que o seu sangue seraacute vingado por Deus Como resposta ouvem uma espeacutecie de
enigma apocaliacuteptico ldquofoi-lhes dito que repousassem por mais um pouco de tempo ateacute que
se completasse o nuacutemero de seus companheiros e irmatildeos que iriam ser mortos como eles
foramrdquo (Apocalipse 611) O autor do Apocalipse argumenta que Deus vai trazer justiccedila
sobre todos os que mataram seus seguidores poreacutem antes eacute preciso que se complete uma
determinada cota de disciacutepulos que deveratildeo morrer O juiacutezo viraacute quando um nuacutemero
especiacutefico de pessoas tiver morrido da mesma forma como aqueles que jaacute estatildeo debaixo do
altar o foram
Joatildeo promete que estes maacutertires seratildeo recompensados por Deus mais do que os outros
disciacutepulos de Jesus Afinal somente eles ressuscitariam para reinar com Jesus na terra207
Esta expectativa jaacute aparecera bem no iniacutecio da segunda seccedilatildeo Quando o Cordeiro pegou o
livro selado os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais cantaram a canccedilatildeo ldquoDigno eacutes de tomar
o livro e de abrir-lhe os selos porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus
os que procedem de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e para o nosso Deus os constituiacuteste reino
e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo (Apocalipse 59-10) Na narrativa do Apocalipse o
milecircnio seria o cumprimento deste hino cantado no ceacuteu por figuras sobrenaturais
Segundo Aune a cena dos tronos em contexto escatoloacutegico eacute uma cena tiacutepica de
julgamento apesar de estar em estado fragmentaacuterio Afinal os maacutertires sentam em tronos
mas nenhum julgamento eacute descrito neste contexto Eles sentam para julgar todavia o
julgamento natildeo ocorre Tambeacutem natildeo haacute a identificaccedilatildeo de quem seraacute julgado Isso daacute agrave cena
o papel de exaltaccedilatildeo dos maacutertires em vez da descriccedilatildeo de algum ofiacutecio escatoloacutegico208
Neste mesmo sentido Fiorenza argumenta que Joatildeo descreve o reinado interino dos
maacutertires para garantir agrave sua audiecircncia que aqueles que morressem durante o confronto contra
as forccedilas romanas seriam exaltados no futuro como co-governantes com Cristo209 Ao indicar
206 AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1078 207 Idem p 1084 208 Idem p 1085 209 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 109
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que os maacutertires receberatildeo um tipo de recompensa especial diferente de todos os outros a
cena dos maacutertires no trono desejava incentivar a participaccedilatildeo no martiacuterio
Para Joatildeo mais do que reis os maacutertires seriam juiacutezes e sacerdotes O episoacutedio do
milecircnio entretanto natildeo menciona a identidade de quem serviraacute aos reis de quem seraacute
julgado pelos juiacutezes ou de quem seraacute ministrado pelos sacerdotes Natildeo haacute ningueacutem para ser
condenado oprimido ou orientado porque segundo o profeta de Patmos todos os que
voltarem agrave vida no reino milenar seratildeo reis juiacutezes e sacerdotes
O milecircnio entatildeo como descrito pelo Apocalipse parece ser a junccedilatildeo de dois
episoacutedios nos quais a ecircnfase de um estaacute na destruiccedilatildeo dos inimigos de Deus e do outro na
exaltaccedilatildeo dos maacutertires
35 O reinado messiacircnico interino na terra
Aleacutem do Apocalipse duas outras obras judaicas igualmente produzidas no final do
seacuteculo I apresentam a expectativa de um reino messiacircnico provisoacuterio na terra 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque A primeira210 registrou
Pois eis que viraacute o tempo em que os sinais que tenho predito para vocecirc
aconteceratildeo a cidade que agora natildeo eacute vista apareceraacute e a terra que agora
estaacute escondida seraacute revelada E todo aquele que for libertado dos males que
eu anunciei veraacute as minhas maravilhas Porque meu filho o Messias seraacute
revelado junto com aqueles que estatildeo com ele e estes que permanecerem
regozijar-se-atildeo por quatrocentos anos E depois desses anos meu filho o
Messias morreraacute e todos os seres humanos E o mundo voltaraacute ao silecircncio
primordial por sete dias como foi nos primoacuterdios de modo que ningueacutem
seraacute deixado E depois de sete dias o mundo que ainda dormia seraacute
despertado e o que for corruptiacutevel pereceraacute (4Esdras 72631)211
Posteriormente a narrativa eacute complementada em 4Esdras 1232-34
[] este eacute o Messias que o Altiacutessimo guardou ateacute o fim dos dias que surgiraacute
da posteridade de Davi e viraacute e falaraacute para eles ele os denunciaraacute por seus
erros e por suas maldades e lanccedilaratildeo diante dele seus desprezos
Primeiramente ele os traraacute para julgamento diante de seu tribunal e
quando forem reprovados entatildeo ele os destruiraacute Mas ele livraraacute com
misericoacuterdia o remanescente do meu povo aqueles que estiverem salvos
210 4Esdras foi escrito em algum lugar da Palestina no periacuteodo posterior agrave guerra judaico-romana (66-70) Cf
COLLINS John J A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica uma introduccedilatildeo agrave literatura apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo
Paulus 2010 p 281 211 As citaccedilotildees de 4Esdras vem de METZGER B M The Fourth Book of Ezra In CHARLESWORTH
James H The Old Testament Pseudepigrapha New York Doubleday and Company Inc 1983 2v V 1 p
517-559
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do meu lado ele os tornaraacute alegres ateacute o fim o dia do juiacutezo do qual falei
com vocecirc no iniacutecio
A outra obra 2Apocalipse de Baruque surgiu na mesma conjuntura posterior agrave
guerra na Judeacuteia possivelmente tambeacutem originada na Palestina Seu autor anocircnimo tratou
do futuro periacuteodo messiacircnico nos capiacutetulos 29-30 Segue o texto
Ele falou-me O que vai acontecer atingiraacute toda a terra dessa forma
experimentaacute-lo-atildeo todos os que estiverem em vida Mas naquele tempo eu
protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste paiacutes Uma
vez cumprido aquilo que deve acontecer nos periacuteodos do tempo o Messias
comeccedilaraacute a sua revelaccedilatildeo Tambeacutem Behemoth viraacute dos seus domiacutenios e
Leviatatilde se levantaraacute do mar os dois imensos monstros marinhos por mim
criados no quinto dia da Criaccedilatildeo e que reservo para aqueles dias eles
serviratildeo de alimento para todos os que sobreviverem Entatildeo a terra
produziraacute os seus frutos ao cecircntuplo numa cepa de videira haveraacute mil
ramos um ramo carregaraacute mil racimos e um racimo mil bagos e um bago
daraacute ateacute quarenta litros de vinho Os que sofreram fome comeratildeo
regiamente e a cada dia lhes estatildeo reservadas novas maravilhas Pois de
mim procederatildeo ventos que traratildeo todas as manhatildes o perfume de frutos
saborosos e faratildeo gotejar ao final do dia o orvalho salviacutefico Do alto cairaacute
de novo grande quantidade de manaacute dele comeratildeo eles naqueles anos por
haverem participado do final dos tempos Terminado o tempo vigente do
Messias ele voltaraacute de novo agrave gloacuteria do ceacuteu Entatildeo haveratildeo de ressuscitar
todos aqueles que outrora adormeceram na sua esperanccedila Naquele tempo
aconteceraacute que se abriratildeo as cacircmaras onde se demoram as almas dos
piedosos elas sairatildeo e todas essas numerosas almas como legiatildeo de um
soacute coraccedilatildeo apareceratildeo todas juntas abertamente As que foram as
primeiras alegrar-se-atildeo as que foram as uacuteltimas natildeo estaratildeo tristes Cada
uma delas sabe que foi chegado o tempo previsto como o fim de todos os
tempos As almas dos pecadores perder-se-atildeo em anguacutestia ao
presenciarem tudo isso Pois elas jaacute sabem que o tormento as atingiraacute e
que a hora da sua condenaccedilatildeo eacute chegada212
O autor anocircnimo retoma o assunto mais agrave frente ao descrever a prisatildeo e destruiccedilatildeo
dos adversaacuterios do Messias (2Apocalipse de Baruque 397-404) Apesar de algumas
diferenccedilas em ecircnfase Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e 2Apocalipse de Baruque descrevem o
aparecimento de uma figura messiacircnica no fim dos tempos para inaugurar um periacuteodo
interino de becircnccedilatildeo especial para o povo de Deus na terra antes do juiacutezo final Entretanto a
funccedilatildeo e o papel do messias variam entre os textos Segundo 4Esdras o messias avanccedilaraacute
sem armas contra seus inimigos e os venceraacute com um rio de fogo que sairaacute de sua boca
(4Esdras 135) Depois de quatrocentos anos de tranquilidade ele e todos os seus seguidores
morreratildeo durante uma semana de silecircncio primordial 2Apocalipse de Baruque por sua vez
212 As citaccedilotildees de 2Apocalipse de Baruque vecircm de TRICCA Maria Helena de Oliveira Apoacutecrifos os proscritos
da Biacuteblia Satildeo Paulo Mercuryo 1995 4v V III p 303-348
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descreve o messias trazendo vinganccedila militar com um governo limitado no tempo Jaacute no
Apocalipse a figura messiacircnica surge sobre um cavalo branco derrota seus adversaacuterios e
reina com os maacutertires ressuscitados durante o periacuteodo milenar da prisatildeo de Satanaacutes
Apesar das divergecircncias nos detalhes as trecircs obras possuem a mesma perspectiva de
um interluacutedio de felicidade no interior da histoacuteria antes do final dos tempos Segundo
Kovacs e Rowland isto sugeriria que esta expectativa de dois estaacutegios escatoloacutegicos era
comum entre grupos judaicos da Palestina no periacuteodo entre as duas guerras judaicas contra
os romanos (66-136)213 Estes autores ainda argumentam que o surgimento do montanismo
na metade do segundo seacuteculo poderia ser indiacutecio de que a espera por um reino messiacircnico
terreno estava bem espalhada pela Aacutesia menor e natildeo somente pela proviacutencia da Aacutesia214
Teriacuteamos entatildeo um fenocircmeno difundido pelas regiotildees da Palestina Siacuteria e Aacutesia menor pelo
menos no periacuteodo em questatildeo resultado da fusatildeo de antigas noccedilotildees judaicas o messianismo
a reflexatildeo apocaliacuteptica sobre as etapas da histoacuteria o retorno ao paraiacuteso215 Estas noccedilotildees
surgiram em contextos histoacutericos e literaacuterios distintos mas foram reunidas para formar o
milenarismo como encontrado no Apocalipse de Joatildeo e parcialmente em 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque
A primeira noccedilatildeo a crenccedila numa figura messiacircnica que promoveria a restauraccedilatildeo do
povo de Deus tem relaccedilatildeo histoacuterica com as diversas aspiraccedilotildees judaicas de restauraccedilatildeo de
Israel posteriores ao domiacutenio helenista da Palestina (seacuteculo IV AEC)216 Alguns grupos
combinavam passagens das Escrituras judaicas para produzir a expectativa de uma
restauraccedilatildeo poliacutetica de Israel na terra sob a lideranccedila de uma figura ungida por Deus217
O segundo elemento a reflexatildeo sobre as etapas da histoacuteria reflete o interesse de
grupos apocaliacutepticos judaicos em compreender o desenvolvimento da histoacuteria O fenocircmeno
pode ser encontrado particularmente nas tradiccedilotildees de Enoque e de Daniel O texto chamado
213 KOVACS ROWLAND op cit p 210 Leva-se em conta que o Apocalipse surgido na proviacutencia da Aacutesia
teve um autor que emigrou da Palestina durante a guerra de 66-70 214 Idem p 211 215 A sugestatildeo da fusatildeo destas trecircs noccedilotildees vem de ULFGARD op cit p 25-49 216 Charlesworth prefere colocar como ponto de partida as guerras dos macabeus do seacuteculo II AEC Cf
CHARLESWORTH James H From messianology to christology problems and prospects In
CHARLESWORTH James H (ed) The Messiah developments in earliest Judaism and Christianity
Minneapolis Fortress Press 1987 p 3-35 p 3 217 Desroche define o messianismo em termos restritos como o conjunto de crenccedilas judaicas relacionadas com
um ungido de Deus proclamado no antigo Testamento Num sentido mais largo poreacutem designa ensinamentos
ou movimentos que prometem a chegada de um enviado divino para trazer ordem ao mundo com justiccedila e paz
edecircmicas Neste uacuteltimo sentido o fenocircmeno ultrapassa as tradiccedilotildees religiosas judaico-cristatildes Cf DESROCHE
Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo
Paulo 2000 p 22
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Apocalipse das Semanas (1Enoque 931-10 9112-17) eacute um exemplo deste fenocircmeno
quando o passado e o futuro aparecem divididos em dez semanas O autor subjacente a este
antigo apocalipse escreve da perspectiva da seacutetima semana esperando a restauraccedilatildeo do povo
de Deus para a oitava semana
Altas expectativas escatoloacutegicas originadas de uma conjuntura de deterioraccedilatildeo de
condiccedilotildees poliacuteticas e sociais agraves vezes de perseguiccedilatildeo e sofrimento podem promover nesta
reflexatildeo sobre os periacuteodos da histoacuteria a ideia de que se vive perto do fim do mundo Eacute assim
que esta noccedilatildeo aparece nos apocalipses de Daniel 7-12 produzidos no contexto da Guerra
dos Macabeus (167-163 AEC) Daniel 9 por exemplo faz uma releitura de Jeremias
(Jeremias 2511 2910) acerca da desolaccedilatildeo de Jerusaleacutem por 70 anos Os setentas anos satildeo
interpretados como semanas de anos O apocalipse de Daniel garante que faltam poucas
destas semanas para o fim dos tempos
Estas antigas tradiccedilotildees judaicas representadas por 1Enoque e Daniel exemplificam o
interesse pela periodizaccedilatildeo da histoacuteria mundial e manifestam a convicccedilatildeo de seus autores
provavelmente compartilhada com a comunidade destinataacuteria do texto de que eles viviam a
uacuteltima e crucial fase da histoacuteria antes da intervenccedilatildeo final de Deus que traraacute a salvaccedilatildeo e o
julgamento218 A histoacuteria eacute imaginada linearmente como uma sucessatildeo de tempos
determinados de adversidades antes que venham dias de felicidade219
A terceira noccedilatildeo eacute o retorno agraves condiccedilotildees paradisiacuteacas quando o paraiacuteso dos tempos
primordiais (urzeit) seria restabelecido no fim dos tempos (endzeit) Os benefiacutecios esperados
seriam aqueles que o ser humano experimentara em suas origens220 Esta ideia foi
desenvolvida nos textos apocaliacutepticos por meio de vaticiacutenios acerca da restauraccedilatildeo da
prosperidade da criaccedilatildeo da fertilidade e da paz no mundo 1Enoque 10-11 por exemplo ao
falar da queda dos vigilantes combina estruturaccedilatildeo da histoacuteria com a expectativa de um
retorno agraves condiccedilotildees do paraiacuteso na era da salvaccedilatildeo Eacute possiacutevel notar que este texto tem
elementos que seratildeo apropriados de vaacuterias maneiras posteriormente como a fertilidade da
terra a destruiccedilatildeo das forccedilas demoniacuteacas e os justos ressuscitados Segue o texto
E a Raphael disse o Senhor Amarra Azazel de matildeos e peacutes e lanccedila-o nas
trevas Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo Deposita
218 ULFGARD op cit p 44 219 Frankfurt sugeriu que tal conceito de histoacuteria eacute dependente de tradiccedilotildees zoroastrianas que apresentavam a
histoacuteria dividida em periacuteodos alternados de domiacutenio entre as figuras divinas de Ahura Mazda e Angra Mainyu
que culminariam no fim na vitoacuteria do bem sobre o mal Cf FRANKFURTER David Early Christian
Apocalypticism literature and social world In COLLINS John J (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism
the origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity New York Continuum 1999 p 415-456 p 441 220 PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 353
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pedras aacutesperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridatildeo Deixa-
o permanecer laacute para sempre e veda-lhe o rosto para que natildeo veja a luz
No dia do grande Juiacutezo ele deveraacute ser arremessado ao tremedal de fogo
Purifica a terra corrompida pelos Anjos e anuncia-lhe a Salvaccedilatildeo para
que terminem os seus sofrimentos e natildeo se percam todos os filhos dos
homens em virtude das coisas secretas que os Guardiotildees revelaram e
ensinaram aos seus filhos Toda a terra estaacute corrompida por causa das obras
transmitidas por Azazel A ele atribui todos os pecados E a Gabriel disse
o Senhor Levanta a guerra entre os bastardos os monstros os filhos das
prostituiacutedas e extirpa-os do meio dos homens juntamente com todos os
filhos dos Guardiotildees Instiga-os uns contra os outros para que na batalha
se eliminem mutuamente Natildeo se prolongue por mais tempo a sua vida
Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deveraacute ser atendido eles
esperam ter vida para sempre e que cada um viva quinhentos anos A
Michael disse o Senhor Vai e potildee a ferros Semjaza e os seus sequazes que
se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as
suas impurezas Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente
e quando os pais tiverem presenciado o extermiacutenio dos seus amados filhos
amarra-os por sele geraccedilotildees nos vales da terra ateacute o dia do seu julgamento
ateacute o dia do Juiacutezo Final Nesse dia eles seratildeo atirados ao abismo de fogo
na reclusatildeo e no tormento onde ficaratildeo encerrados para todo o sempre E
todo aquele que for sentenciado agrave condenaccedilatildeo eterna seja juntado a eles e
seja com eles mantido em correntes ateacute o fim de todas as geraccedilotildees
Extermina os espiacuteritos de todos os monstros juntamente com todos os
filhos dos Guardiotildees porque eles maltrataram os homens Purga a terra de
todo ato de violecircncia Toda obra maacute deve ser eliminada Que floresccedila a
aacutervore da Verdade e da Justiccedila O sinal da becircnccedilatildeo seraacute o seguinte as obras
da Verdade e da Justiccedila sempre seratildeo semeadas na alegria verdadeira
Entatildeo floresceratildeo os justos e haveratildeo de viver ateacute gerarem mil filhos e
completaratildeo em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice Entatildeo
toda a terra seraacute cultivada com a Justiccedila inteiramente plantada de aacutervores
e cheia de becircnccedilatildeo Toda espeacutecie de aacutervore boa seraacute plantada sobre ela
igualmente videiras e as videiras produziratildeo uvas em abundacircncia De
todas as sementes que forem semeadas uma medida produziraacute mil outras
e uma medida de olivas daraacute dez cubas de oacuteleo Purifica a terra de todo ato
de violecircncia de toda injusticcedila de todo pecado e impiedade elimina toda a
impudiciacutecia que sobre ela se pratica Todos os homens seratildeo justos todos
os povos me prestaratildeo honra e gloacuteria e todos me adoraratildeo A terra entatildeo
ficaraacute expurgada de toda maldade de todo pecado de toda praga de todo
tormento e nunca mais mandarei sobre ela um diluacutevio ao longo de todas
as geraccedilotildees por toda a eternidade Naqueles dias eu abrirei as cacircmaras dos
depoacutesitos da becircnccedilatildeo do ceacuteu e deixaacute-las-ei derramar-se sobre a terra sobre
as obras e os trabalhos dos filhos dos homens Entatildeo a Verdade e a Paz
juntar-se-atildeo por todos os dias da terra e por todas as geraccedilotildees dos homens
(1Enoque 1012-112)221
Assim a expectativa do reino messiacircnico interino na histoacuteria parece ser uma
combinaccedilatildeo de antigas noccedilotildees sobre o messias o retorno ao paraiacuteso e a periodizaccedilatildeo dos
221 A citaccedilatildeo de 1Enoque veio de TRICCA op cit p 117-202
81
tempos 4Esdras falou em quatrocentos anos de duraccedilatildeo o Apocalipse de Joatildeo registrou mil
anos
Ulfgard sugeriu que o caminho para compreender o tempo do reino messiacircnico na
terra estaria no uso tipoloacutegico do Salmo 9015 ldquoAlegra-nos pelos dias em que nos afligiste
e pelos anos em que vimos o malrdquo Esta era uma foacutermula usada por grupos judaicos para
calcular os dias do messias Deus iria recompensar o povo na terra pelo tempo em que ele
foi maltratado sobre ela Alguns propunham 40 anos para fazer frente ao tempo que o povo
passou no deserto antes de entrar em Canaatilde Outros sugeriam quatrocentos anos
correspondente ao periacuteodo de permanecircncia no Egito A sugestatildeo dos mil anos entretanto
poderia ter relaccedilatildeo com o versiacuteculo 4 deste mesmo Salmo 90 ldquoporque mil anos aos teus
olhos satildeo como o dia de ontem que passou e como uma vigiacutelia de noiterdquo222 De qualquer
forma tanto em 4Esdras quanto no Apocalipse de Joatildeo as expressotildees temporais natildeo satildeo o
elemento principal Afinal em ambas as obras o governo messiacircnico na terra tem um fim
A ecircnfase dos autores destes textos estaacute na expectativa de que a terra experimentaraacute ainda
dentro da histoacuteria um uacuteltimo periacuteodo de paz
Dentro do contexto narrativo maior que comeccedila em Apocalipse 1911 e conclui em
225 Joatildeo inseriu a expectativa do reino messiacircnico na terra quando o Jesus glorificado
retornaria para vencer seus inimigos ressuscitaria seus seguidores martirizados e viveria
com eles por um periacuteodo de mil anos Tomamos esta expectativa como a objetivaccedilatildeo de um
conjunto de representaccedilotildees natildeo apenas derivado de praacuteticas sociais mas tambeacutem promotor
de outras tantas Enquanto tal o milecircnio pode ser visto como uma arma nas lutas de
representaccedilotildees entre certas comunidades religiosas do final do primeiro seacuteculo a resposta
de um liacuteder religioso agraves praacuteticas plurais do movimento de Jesus diante das conjunturas
histoacutericas da proviacutencia romana da Aacutesia O que buscamos nos paraacutegrafos a seguir satildeo fatores
ou condiccedilotildees de emergecircncia para este determinado sistema de representaccedilotildees
222 ULFGARD op cit p 49 Prigent por sua vez sugere que o tempo messiacircnico poderia ser uma alusatildeo a
Jubileus 430 Aqui a morte de Adatildeo com 930 anos eacute entendida como consequecircncia dele natildeo ter alcanccedilado a
idade perfeita de 1000 anos Aleacutem do mais seria cumprimento da profecia de Genesis 217 que declarou que
no dia que ele comesse da arvore ele morreria Nestes termos Apocalipse 204-6 simbolizaria a restauraccedilatildeo da
vida humana ideal nos moldes do paraiacuteso na era messiacircnica No reino messiacircnico as consequecircncias do pecado
de Adatildeo satildeo canceladas Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 358
82
36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia
Jaacute tratamos no capiacutetulo anterior a respeito dos conflitos de lideranccedila do movimento
de Jesus no periacuteodo do Apocalipse numa fase de consolidaccedilatildeo das comunidades dentro da
sociedade romana e de construccedilatildeo de uma identidade separada do Judaiacutesmo Aparentemente
o tema da prisatildeo e destruiccedilatildeo de Satanaacutes223 no interior do complexo narrativo da destruiccedilatildeo
dos adversaacuterios do Jesus glorificado pode ter relaccedilatildeo justamente com essa conjuntura
conflitiva
David Frankfurt analisou vaacuterios apocalipses judaicos e cristatildeos no periacuteodo entre 200
anos antes e 200 depois da Era Comum tentando construir uma tipologia geograacutefica dos
textos apocaliacutepticos224 Segundo ele o milenarismo sectaacuterio eacute um traccedilo significativo do
apocalipsismo asiaacutetico em funccedilatildeo da atuaccedilatildeo privilegiada de figuras profeacuteticas com
performances orais itinerantes a necessidade de forte legitimaccedilatildeo carismaacutetica e o
envolvimento eventual em conflitos de lideranccedila Ele o denomina como ldquomilenarismo
sectaacuteriordquo porque o seu proponente se entende representar natildeo a totalidade da sociedade ou
mesmo do seu grupo social mas uma parcela dentro dele As demais pessoas e grupos satildeo
vistos como adversaacuterios e destinados agrave destruiccedilatildeo escatoloacutegica Este milenarismo eacute
geralmente centrado em figuras profeacuteticas e manifesta algum tipo de luta pela lideranccedila nas
comunidades quando liacutederes carismaacuteticos usam a estigmatizaccedilatildeo para deslegitimar os
adversaacuterios e afirmar a proacutepria autoridade225 Neste contexto de disputa como Elaine Pagels
tentou demonstrar a oposiccedilatildeo eacute frequentemente associada a seres demoniacuteacos e aos
monstros do caos226
O bispo Inaacutecio de Antioquia ao passar pela Aacutesia menor registrou em uma carta uma
justaposiccedilatildeo entre Cristianismo e Judaiacutesmo (Carta aos Magneacutesios X) Ele parece evidenciar
assim que pelo menos alguns seguidores de Jesus naquela regiatildeo e naquele periacuteodo tinham
a percepccedilatildeo de que faziam parte de um movimento independente e mesmo superior ao
Judaiacutesmo Esse debate sobre a identidade das comunidades poderia ser ampliado ainda pelas
distinccedilotildees jaacute feitas pelos magistrados romanos (como as cartas de Pliacutenio jaacute mencionadas) e
223 Como jaacute argumentamos o episoacutedio do milecircnio relata duas narrativas ligadas entre si pelo marco temporal
(mil anos) A narrativa da prisatildeo de Satanaacutes faz parte de uma cena maior que descreve a vitoacuteria do Jesus
glorificado sobre seus adversaacuterios A outra narrativa descreve a exaltaccedilatildeo dos maacutertires 224 FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit 225 Idem 435 226 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na
sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996
83
por pressotildees de sinagogas locais que natildeo queriam ser identificadas com as igrejas227
Possivelmente pouco mais de uma deacutecada antes de Inaacutecio quando as igrejas da Aacutesia jaacute
viviam um momento de instabilidade identitaacuteria os projetos distintos das lideranccedilas geraram
uma crise de legitimidade e a consequente percepccedilatildeo de que o mal poderia vir de dentro da
comunidade
A pequena obra canocircnica conhecida como 3Joatildeo entre os anos 90-110228 registra
um embate entre seu autor anocircnimo e um liacuteder adversaacuterio conhecido como Dioacutetrefes
ldquoEscrevi alguma coisa agrave igreja mas Dioacutetrefes que gosta de exercer a primazia entre eles
natildeo nos daacute acolhidardquo (3Joatildeo 19) Situaccedilotildees como essa geravam respostas diferentes para os
mesmos problemas entre os liacutederes das igrejas Natildeo bastava a um profeta dar a orientaccedilatildeo
para a comunidade jaacute que ele precisava tambeacutem atacar quem divergia de seu
posicionamento Este senso de mal interno foi trabalhado por Joatildeo de duas maneiras Ele
desejava purgar a comunidade de membros que dele divergiam vinculando-os a adversaacuterios
externos da comunidade (membros de sinagogas locais e magistrados romanos) Ao mesmo
tempo ele projeta o conflito para o mundo celestial indicando laccedilos entre seus desafetos e
figuras demoniacuteacas tradicionais como Satatilde229
Este parece ser o caso da polecircmica contra ldquoJezabelrdquo no Apocalipse (Apocalipse 218-
29) A mulher assim intitulada por Joatildeo era uma das liacutederes da comunidade de disciacutepulos de
Tiatira As acusaccedilotildees contra ela indicam que o cerne do conflito estava em aspectos sociais
ldquoJezabelrdquo defendia o engajamento com a sociedade maior e Joatildeo recomendava o
afastamento na direccedilatildeo de um gueto religioso Em termos religiosos eacute possiacutevel que Jezabel
possuiacutesse uma vantagem sobre o profeta de Patmos jaacute que ela tinha amparo no ensino que
o apoacutestolo Paulo deixara trinta anos antes para as igrejas da regiatildeo230 Como argumenta Duff
uma das estrateacutegias de Joatildeo neste confronto foi conectar sua rival com Babilocircnia e por
implicaccedilatildeo com Satatilde231 Em escala maior os membros do movimento de Jesus que Joatildeo
227 Uma evidecircncia neste sentido pode ser o uso do termo ldquominimrdquo para descrever os membros do movimento
de Jesus em maldiccedilotildees pronunciadas em sinagogas em periacuteodo tatildeo recuado quanto 80-85 Para que pudesse ser
disseminada por diversas comunidades judaicas uma maldiccedilatildeo foi inserida entre as 18 becircnccedilatildeos conhecidas
como ldquobirkat-hamminimrdquo que dizia ldquoQue os nosrim (nazarenos) e os minim (hereges) morram subitamente
e sejam excluiacutedos do livro da vida para que natildeo sejam ali recordados juntamente com os justos Bendito sejas
Tu oacute Senhor que abaixas os orgulhososrdquo Cf BAGATTI Bellarmino A igreja da circuncisatildeo histoacuteria e
arqueologia dos judeu-cristatildeos Petroacutepolis Vozes 1975 p 44 228 KUumlMMEL op cit p 593 229 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the
Apocalypse Oxford University Press 2001 230 Idem p 71 231 Idem p 72
84
considerava desviantes passaram a ser rotulados como chamou Pagels de ldquoagentes secretosrdquo
de forccedilas demoniacuteacas sobrenaturais232
Portanto Joatildeo natildeo demoniza apenas a sociedade romana em sua manifestaccedilatildeo
asiaacutetica ou o Impeacuterio na figura das bestas de Apocalipse 13 Ele tambeacutem entende que
mesmo dentro das igrejas existiam aliados de Satanaacutes os ldquoinimigos iacutentimosrdquo233 Este tipo de
perspectiva poderia explicar o grande espaccedilo dado agraves descriccedilotildees dos poderes demoniacuteacos no
Apocalipse bem como a necessidade de um milecircnio que tem como pano de fundo a
destruiccedilatildeo destas mesmas forccedilas de oposiccedilatildeo
Um reino milenar precedido pelo sangue dos adversaacuterios pode refletir entatildeo um
contexto social cheio de tensotildees dentro das proacuteprias igrejas (divergecircncias sobre a identidade
do movimento) entre as igrejas e grupos judaicos (hostilidade contra sinagogas locais) entre
as comunidades de Jesus e a sociedade romana (demandas por acomodaccedilatildeo cultural) e entre
os seguidores de Jesus e o Impeacuterio (interaccedilatildeo entre religiatildeo sociedade e poliacutetica)234
Nosso argumento eacute que a situaccedilatildeo das comunidades envolvidas em distuacuterbios
identitaacuterios com sinagogas locais e em conflitos de lideranccedila acabou se tornando um fator
plausiacutevel no surgimento do milecircnio do Apocalipse ao provocar a expectativa de um tempo
em que todos os inimigos internos e externos seriam destruiacutedos violentamente
Um segundo aspecto frequentemente sugerido pelos autores eacute a oposiccedilatildeo de Joatildeo a
Roma235 A forma como o Apocalipse ataca a sociedade romana o coloca ao lado de outros
grupos judaicos anti-romanos posteriores ao conflito que terminou com a destruiccedilatildeo do
templo e da cidade de Jerusaleacutem (66-70) como os zelotes da Palestina236 Nestes grupos e
movimentos manifestou-se a perspectiva criacutetica de que o Impeacuterio Romano era incompatiacutevel
com o reino de Deus frequentemente traduzida por uma forte rejeiccedilatildeo dos siacutembolos e
232 PAGELS Elaine H The Social History of Satan part three John of Patmos and Ignatius of Antiochi
Contrasting Visions of Gods People Harvard Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006
p 489 233 Idem p 494 234 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The
Westminster Press 1984 p 84-99 SILVA David A de The social setting of the Revelation to John conflicts
within fears without Westminster Theological Journal Philadelfia n 54 p 273-302 1992 p 287 235 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In
BARR David L The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society
of Biblical Literature 2006 p 243-269 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de
Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 MESTER Carlos e OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano
e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n
69 p 72-82 2001 PAGELS Elaine Revelationshellip op cit 236 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p
213
85
imagens do poder romano entre eles o culto imperial Outros fatores ainda poderiam ter
atuado para produzir esta oposiccedilatildeo como expectativas religiosas de um Israel independente
de poderes estrangeiros ou medidas financeiras dos procuradores romanos237
De qualquer forma Pagels historiadora da religiatildeo chamou o Apocalipse de
ldquoliteratura de guerrardquo238 porque Joatildeo teria saiacutedo da Judeacuteia sua terra natal logo apoacutes
testemunhar o iniacutecio do confronto de seus conterracircneos judeus contra as forccedilas romanas em
66 Mesmo ausente ele pode ter ouvido falar dos 60 mil soldados romanos que cercaram
Jerusaleacutem e destruiacuteram a cidade Quando finalmente o cerco terminou eles a invadiram e a
deixaram em ruiacutenas O templo judaico que terminara de ser reformado poucos anos antes
foi destruiacutedo junto com a cidade O responsaacutevel inicial pelo cerco o general Vespasiano
acabou como o Imperador de Roma No tempo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse era
seu filho Domiciano que dirigia o Impeacuterio O impacto da destruiccedilatildeo do Templo e de
Jerusaleacutem foi significativo para diversos setores do Judaismo mas teve um impulso
particular em Joatildeo e pode ser considerado mesmo como ponto de partida para sua oposiccedilatildeo
a Roma
Para o Apocalipse entatildeo o Impeacuterio era um peso opressor que deveria ser eliminado
antes que o mundo viesse a conhecer a justiccedila Seu milecircnio pode ser visto como a
manifestaccedilatildeo do desejo pelo fim da ldquoRoma eternardquo Por isso como em outros apocalipses
judaicos a histoacuteria no Apocalipse eacute uma sequecircncia de poderes Aquele era o tempo de Roma
mas ela iria passar para ser sucedida pelo reino milenar do Messias Este ldquooacutediordquo pela
sociedade do presente histoacuterico parece ser assim mais um fator na promoccedilatildeo da expectativa
milenarista de Joatildeo de que um novo reino se levantaria em breve para substituir o atual
O milecircnio de Joatildeo o futuro reino do Messias expressa a condenaccedilatildeo joanina da
presente ordem romana Nos termos de John Collins em nenhum outro lugar a queda dos
poderosos eacute imaginada com tal alegria como neste apocalipse cristatildeo onde um anjo de peacute
sobre o sol convida os paacutessaros a comer a carne dos reis dos capitatildees e dos poderosos
(Apocalipse 1918)rdquo239
237 Uma anaacutelise dos conflitos entre judeus e romanos no seacuteculo I pode ser encontrada em GOODMAN Martin
Rome and Jerusalem the clash of ancient civilizations London Pinguin Books 2007 Especificamente sobre
a guerra de 66-70 cf REICKE Bo Histoacuteria do tempo do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 1996 p 282-
294 238 PAGELS Elaine Revelations op cit p 7 239 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica op cit p 18
86
Outro fator de emergecircncia do milecircnio joanino pode ter relaccedilatildeo com a situaccedilatildeo
perigosa de vida dos membros da comunidade de Jesus240 com a jaacute mencionada memoacuteria de
mortes violentas de disciacutepulos na guerra judaico-romana e na crise nerodiana da deacutecada de
60 e com a crucificaccedilatildeo de Jesus Isso parece estar subjacente agrave representaccedilatildeo dos maacutertires
no episoacutedio do milecircnio Afinal mesmo que natildeo haja evidecircncias de uma perseguiccedilatildeo e morte
generalizada dos membros das igrejas no periacuteodo do Apocalipse e o livro faccedila referecircncia a
apenas uma morte (Apocalipse 213) o milecircnio gira em torno dos maacutertires
O contexto mais amplo do aparecimento dos apocalipses judaicos foi de rejeiccedilatildeo ao
domiacutenio pagatildeo241 A resistecircncia poderia vir em forma ativa como a revolta dos macabeus
ou em forma passiva como a elaborada nos apocalipses de Daniel 7-12 no qual se anseia
pela destruiccedilatildeo dos poderes estrangeiros por forccedilas sobrenaturais mas sem qualquer
participaccedilatildeo humana no confronto Um tipo de resistecircncia intermediaacuteria envolve a
expectativa de sinergismo entre forccedilas divinas e humanas na destruiccedilatildeo escatoloacutegica dos
adversaacuterios como aparece na frase de Assunccedilatildeo de Moiseacutes ldquonosso sangue seraacute vingado pelo
Senhorrdquo (97) Esperava-se que a morte voluntaacuteria do judeu piedoso provocaria a vinganccedila
de Deus242 Eacute neste sentido que o Apocalipse descreve um nuacutemero fixado de maacutertires que
devem encontrar a morte antes que chegue o fim
Joatildeo advoga uma ruptura das comunidades de Jesus com a sociedade romana o que
na sua oacutetica provocaria a perseguiccedilatildeo e morte dos membros das igrejas Contudo seria
justamente essa perseguiccedilatildeo que ao promover o martiacuterio dos disciacutepulos iria apressar a
chegada do reino messiacircnico de Jesus243 O milecircnio assim pode ser visto como uma
propaganda martiroloacutegica Afinal os maacutertires satildeo os mais abenccediloados seguidores de Jesus e
as consequecircncias de seus atos continuam mesmo apoacutes suas mortes Nos termos do
Apocalipse ldquoFelizes os mortos que desde agora morrem no Senhor Sim diz o Espiacuterito
para que descansem das suas fadigas pois as suas obras os acompanhamrdquo (Apocalipse
1413)
240 A correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano na proviacutencia vizinha alguns anos apoacutes o Apocalipse pode ser
evidecircncia de que as comunidades jaacute corriam risco no final do seacuteculo I 241 Esta anaacutelise da relaccedilatildeo entre Apocalipse e poliacutetica pode ser encontrada em COLLINS Adela Yarbro The
political perspective of the Revelation to John Journal of Biblical Literature Atlanta v 96 n 2 p 241-256
1977 242 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p
209 243 Frankfurt descreve o periacuteodo entre a produccedilatildeo do evangelho de Marcos e o Apocalipse de Joatildeo (70-100)
como um periacuteodo de ldquofasciacutenio com o martiacuterio e a necessidade de imaginar a perseguiccedilatildeordquo entre algumas igrejas
Cf FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit p 436
87
O tema da morte violenta domina muitas visotildees de Joatildeo De vaacuterias formas forccedilas
demoniacuteacas ameaccedilam o movimento de Jesus a besta que persegue as duas testemunhas
(Apocalipse 111-13) o Dragatildeo que persegue a Mulher e sua semente (Apocalipse 121-17)
as bestas do mar e da terra que perseguem os ldquosantosrdquo (Apocalipse 131-1412) a Babilocircnia
que persegue as testemunhas de Jesus (Apocalipse 171-195)244
Eacute neste contexto que se entende a memoacuteria da crucificaccedilatildeo de Jesus Joatildeo vecirc paralelos
entre a situaccedilatildeo dos fieacuteis e do fundador do movimento e com isso constroacutei uma narrativa
que idealiza a imitaccedilatildeo de Cristo atraveacutes do sofrimento e martiacuterio Um significativo texto
neste sentido eacute Apocalipse 1210-12 onde os santos imitam Cristo vencendo o Dragatildeo pelo
sangue do Cordeiro (ldquoτὸ αἷμα τοῦ ἀρνίουrdquo) e pela palavra do testemunho (ldquoδιὰ τὸν λόγον τῆς
μαρτυρίας αὐτῶνrdquo) porque natildeo amaram a proacutepria vida mesmo diante da morte (ldquoοὐκ ἠγάπησαν
τὴν ψυχὴν αὐτῶν ἄχρι θανάτουrdquo) Segundo essa formulaccedilatildeo joanina a vitoacuteria sobre os poderes
demoniacuteacos estaacute ligada diretamente agrave morte (de Jesus e dos disciacutepulos) Para Thompson esta
identificaccedilatildeo com ldquoo Cordeiro crucificadordquo (ldquoἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένονrdquo - Apocalipse
56) tinha como objetivo promover uma especiacutefica identidade no fiel e suportar
determinados comportamentos245
Este imaginaacuterio de tribulaccedilatildeo funciona independente das experiecircncias concretas de
perseguiccedilatildeo das comunidades de disciacutepulos jaacute que deriva da construccedilatildeo de viacutenculos com
traumas no passado do movimento (a morte de Jesus as perseguiccedilotildees de Nero em Roma as
guerras na Judeacuteia a morte de Antipas) Assim a memoacuteria de mortes passadas e a expectativa
de muitas outras pode ser considerado mais um fator para o surgimento do milecircnio sectaacuterio
de Joatildeo ao aguardar a participaccedilatildeo seletiva de um grupo especial de fieacuteis os martirizados
no reino do Jesus exaltado246
Assim diante de fatores como estes entatildeo apontados a resposta de Joatildeo veio na
forma de apropriaccedilatildeo de tradiccedilotildees apocaliacutepticas a respeito do messias da periodizaccedilatildeo da
histoacuteria e do retorno ao paraiacuteso e da construccedilatildeo de um conjunto de representaccedilotildees
milenaristas que convidava ao levantamento dos muros da comunidade a ruptura sectaacuteria
244 THOMPSON Leonard A sociological analysis of tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta
n 36 p 147-174 1986 p 148 245 Idem p 170 246 Em Daniel 123 tambeacutem apenas um grupo especial de fieacuteis os saacutebios passaria pela ressurreiccedilatildeo Cf
COLLINS John J Danielhellip op cit p 103
88
com membros divergentes a espera ansiosa pelo martiacuterio e finalmente o governo vitorioso
dos maacutertires durante o milecircnio
Existiam outros liacutederes como a liacuteder estigmatizada Jezabel (Apocalipse 220) que
propunham praacuteticas diferentes por entenderem que o relacionamento com a sociedade era
necessaacuterio para a sobrevivecircncia da comunidade247 Para estes a sociedade romana era o
espaccedilo de sobrevivecircncia e natildeo do confronto Mesmo que as categorias propostas por Joatildeo
tenham sido eventualmente abraccediladas em subsequentes apropriaccedilotildees sectaacuterias do milecircnio248
isso natildeo promoveu necessariamente a ruptura com a sociedade249 Isso levou Thompson a
afirmar com certa ironia que a continuidade do movimento de Jesus foi viabilizada porque
seus membros natildeo conseguiram objetivar as representaccedilotildees do Apocalipse250
37 Resumo
Joatildeo encerra seu Apocalipse com a narrativa daquilo que ele entendia ser o fim do
mundo e da histoacuteria Antes disso entretanto ele descreve um periacuteodo de governo milenar
do Jesus Glorificado e seus maacutertires ressuscitados O milecircnio aparece no livro joanino como
o tempo do aprisionamento de Satanaacutes e do reinado messiacircnico interino na terra Estas
expectativas parecem ter origem em tradiccedilotildees literaacuterias judaicas que combinavam noccedilotildees
sobre um redentor ungido por Deus um retorno aos tempos paradisiacuteacos e periodizaccedilotildees da
histoacuteria Estas antigas noccedilotildees parecem ter se reunido de uma forma muito semelhante na
regiatildeo da Aacutesia-Siacuteria-Palestina no final do seacuteculo I nas obras Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e
2Apocalipse de Baruque por causa entre outros fatores dos traumas da guerra judaico-
romana No caso especiacutefico da versatildeo joanina sua emergecircncia ainda pode ter relaccedilatildeo com
conflitos de lideranccedila das comunidades de Jesus em funccedilatildeo de respostas diferentes agrave questatildeo
do relacionamento com a sociedade romana
247 DUFF Paul B Who rides the Beast op cit p 77 248 Como os movimentos milenaristas analisados em COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas
revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 249 Como a apropriaccedilatildeo do milecircnio em Agostinho Cf KYRTATAS Dimitris The Transformations of the
Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text The Writing of Ancient
History London Duckworth 1986 p 144-162 250 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L (ed) Reading
the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 46
IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM
Neste capiacutetulo aplicaremos ao Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram
lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar
elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso
este seraacute o espaccedilo principal para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando
apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o
livro joanino
41 O autor do Expositio in Apocalypsim
A obra intitulada Expositio in Apocalypsim editada pela Junta de Veneza em 1527 e
reimpressa pela Editora Miverva em 1964 reuacutene de fato trecircs textos distintos todos
vinculados a uma mesma pessoa O primeiro no foacutelio 1r na parte superior eacute aberto nestes
termos Incipit epistola prologalis domini Abbatis Joachim florensis O segundo comeccedila
no foacutelio 1v com estas palavras Incipit prologus domini Joaquim Abbatis florensis in expone
libri Apocalipsis e termina no 16v Explicit liber primus dictus introductorius Somente
entatildeo comeccedila o terceiro texto neste mesmo foacutelio 16v (Incipit prima septem partius in
expositione Apocalipsis) que se estende longamente ateacute o final da obra veneziana no foacutelio
224r (Explicit admiranda Expositio venerabilis Abbatis Joachim in Librus Apocalipsis Beati
Joannis Apostoli et Evangeliste) Eacute apenas este uacuteltimo e longo texto que se trata do
Expositio in Apocalypsim identificado no explicit como de autoria de Joaquim de Fiore No
interior do Expositio natildeo haacute outras auto-identificaccedilotildees Mesmo assim estudiosos do assunto
satildeo unacircnimes em aceitar o texto como obra do abade de S Joatildeo de Fiore bem como as outras
duas que abrem a versatildeo veneziana seiscentista A primeira eacute intitulada Carta Testamentaacuteria
pela historiografia251 a segunda recebe o tiacutetulo de Liber Introductorius que funciona como
uma siacutentese do Expositio
Tomando como ponto de partida este viacutenculo aceitando-o como autecircntico o que eacute
possiacutevel dizer sobre este Venerabilis Abbatis Joachim Nos seacuteculos posteriores agrave sua morte
ele foi estigmatizado por exemplo por Tomaacutes de Aquino que tratou as obras de Joaquim
251 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 69
90
como conjecturas252 contudo louvado por Dante Aliguiere que no final do canto XII de sua
Divina Comeacutedia colocou na boca de Satildeo Boaventura ldquoSabe que ao meu lado brilha o
calabrecircs abade Giovachino que tem o dom de profetizarrdquo253 Ele apareceu em cataacutelogo de
santos e em lista de heresias254 mas nunca chegou a ser oficialmente declarado herege ou
santo255 No meio deste ambiacuteguo rastro muitas lendas se acumularam a respeito desta figura
do medievo italiano Por isso uma reconstruccedilatildeo biograacutefica de Joaquim precisa levar em
conta os seguintes elementos
- os poucos dados deixados por ele na sua Carta Testamentaacuteria por volta de 1200 jaacute
no final de sua vida endereccedilada a um abade de sua Ordem
- estes poucos dados da Carta Testamentaacuteria precisam ser comparados com duas
hagiografias sobre Joaquim de Fiore escritas por contemporacircneos seus uma produzida pelo
seu secretaacuterio Lucas de Consenza Virtutum Beati Joachimi synopsis e Vita beati Joachimi
abbatis escrita provavelmente pouco depois de sua morte obra de um monge anocircnimo que
trabalhou com Joaquim enquanto ele era abade de Corazzo acompanhou-o posteriormente
para Petralata e por fim para S Joatildeo em Fiore256
- narrativas de caraacuteter lendaacuterio sobre ele encontradas em outras fontes que precisam
ser avaliadas pelo caraacuteter de plausibilidade e podem ajudar a esclarecer aspectos obscuros
de sua biografia
Com estes elementos cotejados eacute que estudiosos de Joaquim reconstroem sua vida257
Seu nascimento se deu provavelmente em 1135 em Celico uma vila pequena agrave leste de
Consenza na Calaacutebria proviacutencia do Reino normando da Siciacutelia Seu pai era Mauro um
notaacuterio do Arcebispo Sancio de Consenza Sobre sua matildee soacute se conhece seu nome Gema
Ele era o sexto de oito filhos do casal e o mais velho a sobreviver258
Joaquim foi enviado ainda jovem para trabalhar tambeacutem em Consenza como oficial
da Chancelaria normanda da Calaacutebria Sua famiacutelia o treinava para ser um notaacuterio como seu
252 MC GINN Bernard The abbot and the doctors scholastic reactions to the radical eschatology of Joaquim
of Fiore Church History Cambridge v 40 n 1 p 30-47 1971 p 19 253 DANTE ALIGUIERE A divina comeacutedia Satildeo Paulo Nova Cultural 2002 p 338 254 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London
University of Notre Dame Press 1993 p 3 255 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 256 TRONCARELLI Fabio Gioacchino da Fiore la vita il pensiero le opere Roma Cittagrave Nuova Editrice
2002 p 15 257 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4 TRONCARELLI op cit p 15 DANIEL E Randolph Abbot
Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical
Society 1983 p xii REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 258 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii
91
pai259 Isso lhe forneceu preparo intelectual com o domiacutenio do grego liacutengua predominante
nos registros de governo da Calaacutebria e Siciacutelia bem como do Latim O aacuterabe era bem
conhecido nos espaccedilos da corte da Siciacutelia poreacutem natildeo haacute indiacutecios de que Joaquim dominava
este idioma apesar dos provaacuteveis contatos com ele durante o tempo em que esteve na corte
do reino em Palermo
Apoacutes um periacuteodo inicial em Consenza o ainda jovem Joaquim foi encaminhado para
a corte de William II na Siciacutelia onde trabalhou para o chanceler Estevatildeo de Perche Apoacutes
algum tempo na corte foi com o notaacuterio Santoro para Apuacutelia e Val di Crati onde foi
acometido de uma doenccedila Possivelmente para tratar da enfermidade ele retornou para a
corte em Palermo
Em meados de 1167 Joaquim decidiu fazer uma peregrinaccedilatildeo agrave Jerusaleacutem Eacute difiacutecil
saber as causas desta accedilatildeo de Joaquim apesar da probabilidade de sua doenccedila ter alguma
relaccedilatildeo com o evento tanto com o abandono da corte quanto com a viagem para a Terra
Santa260 Troncarelli argumenta que jaacute na base desta peregrinaccedilatildeo estava a decisatildeo juvenil
de Joaquim de abraccedilar o eremitismo e todo o desenvolvimento da sua viagem jaacute seria parte
deste propoacutesito de vida eremita261 Para Randolph Daniel entretanto a vocaccedilatildeo de Joaquim
se deu durante a peregrinaccedilatildeo quando ao passar por Tripoli na Siria ele teria enfrentado
outra enfermidade desta vez por causa de uma epidemia local Como sobreviveu a ela
tomou a decisatildeo de abraccedilar o monasticismo ainda que neste periacuteodo a opccedilatildeo tenha sido por
um tipo de monasticismo natildeo-cenobiacutetico em isolamento e ascetismo262 Independentemente
entretanto do momento especiacutefico em que se deu a vocaccedilatildeo religiosa de Joaquim ela deve
ter tido alguma relaccedilatildeo com sua peregrinaccedilatildeo ao oriente263
Joaquim concluiu a peregrinaccedilatildeo a Jerusaleacutem e voltou para Siciacutelia em 1171264 natildeo
para a corte mas como outros monges gregos da ilha para uma regiatildeo montanhosa e isolada
Ele escolheu a proximidade do Monte Etna perto de um antigo monasteacuterio oriental265
Alguns meses depois atravessou o estreito de Messina na direccedilatildeo da Calaacutebria sua terra natal
259 TRONCARELLI op cit p 16 260 Adeline Rucquoi analisa as motivaccedilotildees provaacuteveis de peregrinos na Idade Meacutedia e menciona a relaccedilatildeo entre
enfermidade e voto de peregrinaccedilatildeo como uma causa frequente Cf RUCQUOI Adeline Peregrinos
medievales Tiempo de historia Salamanca v VII n 75 p 82-99 1981 p 85 261 TRONCARELLI op cit p 18 262 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii 263 SANTI Francesco La Bibbia in Gioacchino da Fiore In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio
(ed) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 257-267 p 259 264 AFFLECK Toby Joachim of Fiore Access History Brisbane v 1 n 1 p 45-54 1997 p 45 265 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der
Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98
92
Buscou um abrigo ou mesmo uma caverna em Guarassanum perto de Consenza e da vila
onde nasceu Narrativas de caraacuteter lendaacuterio entatildeo narram um encontro entre Joaquim e
Mauro Eacute um topos recorrente na biografia de grandes figuras religiosas do periacuteodo quando
o pai tenta dissuadir o filho de sua missatildeo religiosa para retomar uma vida social em
ascensatildeo Randolph Daniel destaca entretanto que apesar da natureza artificial da narrativa
encontros como este poderiam ser frequumlentes quando filhos de famiacutelias bem situadas na
sociedade decidiam abandonar uma carreira de sucesso para abraccedilar uma vocaccedilatildeo religiosa
de pouco prestiacutegio como era a vida isolada de um eremita266 O proacuteprio Joaquim parece falar
de um conflito com sua famiacutelia no interior de sua Concordia com a mensagem de que havia
recusado a promoccedilatildeo social a escala de sucesso no interior do Reino da Siciacutelia para abraccedilar
a ascese267
Apoacutes um periacuteodo recluso em Guarassanum Joaquim aceitou a hospitalidade da
abadia cisterciense de Sambucina ainda perto de Consenza Mas natildeo ficou muito tempo ali
pois se deslocou para Rende cerca de 10 quilocircmetros a noroeste onde por um ano pregou
agraves pessoas da regiatildeo Receoso de estar cometendo algum ato de desobediecircncia por pregar
sem autorizaccedilatildeo procurou o bispo Roberto de Catanzaro de quem recebeu o ordenamento
sacerdotal e a referida autorizaccedilatildeo para pregar Foi neste periacuteodo que Joaquim conheceu o
monasteacuterio de S Maria de Corazzo jaacute que tanto para ir quanto para voltar de Catanzaro ele
precisou se hospedar ali
Ele retomou sua atividade em Rende como pregador itinerante mas natildeo demorou
muito para tomar a decisatildeo de abandonar o clero secular e ingressar no monasteacuterio de
Corazzo como noviccedilo268 Este monasteacuterio fora fundado em 1157 por Rogeacuterio de Martirano
O abade desde o tempo da fundaccedilatildeo era Columbano Em 1177 entretanto por algum
motivo natildeo explicitado apenas relatado como scandala os monges de Corazzo resolveram
afastaacute-lo e na sequecircncia elegeram Joaquim para substituiacute-lo o que indica o status de
lideranccedila que o ex-peregrino jaacute havia adquirido entre eles Os monges podem ter percebido
que a formaccedilatildeo cultural de Joaquim o havia capacitado para dirigir a casa funccedilatildeo essa que
266 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xiii 267 Idem p xx Troncarelli entende que esse conflito poderia ser ainda mais significativo em funccedilatildeo do fato de
Joaquim ter se afastado da chancelaria normanda durante um periacuteodo de desenvolvimento do Reino da Siciacutelia
ldquoperiacuteodo de prosperidade e paz sem igualrdquo Cf TRONCARELLI op cit p 19 268 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p iv
93
envolvia certo grau de relacionamento com os poderes sociais circundantes na defesa da
propriedade e dos direitos do monasteacuterio269
Joaquim natildeo aceitou a eleiccedilatildeo rejeitou o cargo e saiu do mosteiro Foi inicialmente
para S Trindade em Acri monasteacuterio fundado em 1080 pelo conde Rogeacuterio I270 Insatisfeito
com o pouco isolamento do local deixou-o igualmente e procurou a abadia de Sambucina
na qual jaacute havia se hospedado Esta era a uacutenica casa da Ordem de Cister no Reino da Siciacutelia
ateacute o momento Joaquim tentou nela seu ingresso mas foi rejeitado por estar jaacute filiado a
Corazzo
Enquanto estava em Sambucina ele foi pressionado pelo abade da casa pelo
arcebispo Ruffus de Consenza e por Melis um juiz de Rende a retornar ao seu monasteacuterio
e aceitar o resultado da eleiccedilatildeo Diante dos apelos Joaquim assumiu a direccedilatildeo da abadia de
Corazzo ainda no ano de 1177271
Enquanto abade ele dedicou boa parte de suas energias na tentativa de filiar sua casa
agrave Ordem Cisterciense Uma carta do bispo Miguel de Martirano datada de 1177 faz menccedilatildeo
a um privileacutegio outorgado pelo papa Alexandre III (1159-1181) a Corazzo para que os
monges adotassem os costumes cistercienses Natildeo daacute para saber se a adoccedilatildeo destes costumes
eacute anterior ou posterior agrave eleiccedilatildeo de Joaquim De qualquer forma para conseguir ingressar
efetivamente na Ordem era preciso ser aceito como casa-filha de uma casa jaacute estabelecida
na Ordem de Cister272
A primeira tentativa de Joaquim foi Sambucina proacutexima de Corazzo igualmente na
Calaacutebria e com quem ele jaacute tinha tido contatos em mais de uma ocasiatildeo O pleito poreacutem
foi rejeitado aparentemente em funccedilatildeo de questotildees ligadas agrave propriedade do monasteacuterio de
Joaquim273 Com a rejeiccedilatildeo de Sambucina o abade calabrecircs se voltou para Casamari uma
casa cistersiense fora do Reino da Siciacutelia fundada em 1140 a leste de Roma274 Ali ele
chegou em 1183 e ficou por oito meses partindo somente no ano seguinte A resposta de
Casamari foi semelhante agrave de Sambucina mas durante este periacuteodo Joaquim encontrou a
269 Graham Loud analisou o processo de eleiccedilatildeo no interior das abadias da Itaacutelia meridional em LOUD
Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007 p 462-467 270 Idem p 86 271 DESROCHE Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade
Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 269 272 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xv 273 TRONCARELLI op cit p 21 274 DUBY Georges Atlas Histoacuterico Mundial Madrid Editorial Debate 1987 p 49
94
hospitalidade do abade Geraldo (abade de 1183-1209) e dedicou a maior parte do tempo no
estudo do acervo da rica biblioteca do monasteacuterio275
No mecircs de maio de 1184 aproveitou a oportunidade para visitar o papa Luacutecio II
(papa de 1181-1185) que se encontrava em Veroli Segundo Marjorie Reeves esta visita ao
Papa era uma tentativa de Joaquim de legitimar a produccedilatildeo de suas obras o que naquele
momento era sua missatildeo de vida276 Diante do pontiacutefece ele teve a oportunidade de explicar
um manuscrito encontrado em Roma entre os documentos do falecido Cardeal Mathias de
Angers O texto tratava de profecias tradicionais sobre o final dos tempos cobrindo temas
como o Anticristo a grande tribulaccedilatildeo e o fim do mundo Diante de Luacutecio III Joaquim
aplicou no documento anocircnimo a mesma forma de exegese que ele jaacute aplicava nos textos
biacuteblicos buscando elementos do seu tempo que pudessem corresponder agraves profecias
narradas na obra277 Posteriormente ele transcreveu sua exposiccedilatildeo deste documento num
pequeno tratado intitulado Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno 1184278
onde trata da tribulaccedilatildeo futura da Igreja originada em forccedilas do Impeacuterio Germacircnico como
parte do processo divino de purificaccedilatildeo da Igreja279
Como resultado do encontro o papa Luacutecio aprovou o meacutetodo hermenecircutico de
Joaquim e exortou-o a concluir os escritos que desejava produzir280 Entendendo que o papa
havia dado a ele a licenccedila que ele queria o abade calabrecircs iniciou ainda em Casamari a
produccedilatildeo simultacircnea de vaacuterias obras Ele natildeo se contentava em comeccedilar e terminar cada
uma mas trabalhava nelas de forma concomitante auxiliado por dois escribas e um
secretaacuterio Lucas de Consenza que se tornou seu amigo a partir de entatildeo Ele ditava e
revisava o material que os seus ajudantes escreviam281
Joaquim retornou para Corazzo em 1184 Segundo West e Zimdars-Swartz ele
voltou com a clara perspectiva de que as questotildees administrativas vinculadas ao seu cargo o
atrapalhavam natildeo soacute a escrever suas ideias mas tambeacutem a divulgaacute-las para preparar a igreja
para os eventos iminentes que estavam por vir282
Em 1186 Joaquim foi a Verona para render homenagem ao novo pontiacutefice Urbano
III (papa de 1185-1187) onde o papa renovou a autorizaccedilatildeo dada anteriormente por Luacutecio
275 TRONCARELLI op cit p 21 276 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 6 277 SANTI op cit p 261-265 278 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 90 279 TRONCARELLI op cit p 23-24 280 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 7 281 TRONCARELLI op cit p 22 282 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4
95
II e ainda ldquoincitou-o a continuar seus escritosrdquo283 Diante da autorizaccedilatildeo de dois papas para
que escrevesse ele procurou na primavera desde mesmo ano uma sela mais reservada num
local perto de Corazzo chamado Petralata sem rompimento formal ainda com o seu
monasteacuterio
Em 1188 Joaquim foi a Roma onde Clemente III (papa de 1187-1191) emitiu uma
carta na qual renovou as autorizaccedilotildees anteriores e solicitou que fossem levadas apoacutes
concluiacutedas para a avaliaccedilatildeo da cuacuteria romana O pontiacutefece ainda teria aprovado a resignaccedilatildeo
de Joaquim do cargo de abade de Corazzo no momento exato em que Corazzo finalmente
conseguiu ingresso na ordem Cisterciense como filha da abadia de Fossanova uma das
maiores casas da Ordem no territoacuterio papal fundada em 1135 ao sul de Roma284 O
abandono de Corazzo agora cisterciense rendeu a Joaquim o ressentimento dos seus
monges e do proacuteprio Capiacutetulo Geral da Ordem que passou a exigir sua volta Eles o
acusaram de transgredir o primeiro voto da profissatildeo monaacutestica beneditina que eacute a
estabilidade no monasteacuterio285
Em vez de retornar entretanto de posse da resignaccedilatildeo papal ele continuou por um
tempo em Petralata contando com a ajuda de Rainer um eremita da ilha de Ponza que se
juntou a ele No inverno de 1188 insatisfeitos com as interrupccedilotildees e visitas eles foram atraacutes
de um lugar mais isolado e o encontraram nas montanhas calabresas de Fiore para onde se
mudaram em maio de 1189 Naquele lugar agrave medida que disciacutepulos vinham se juntar a
Joaquim nasceu a necessidade de organizar um monasteacuterio O resultado foi a fundaccedilatildeo da
abadia de S Joatildeo de Fiore286
A fundaccedilatildeo da casa entretanto se deu no contexto adverso da transiccedilatildeo dinaacutestica
entre a morte de William II no final de 1189 o curto governo de Tancredo (entre 1190-1194)
e a coroaccedilatildeo de Henrique VI (final de 1194) Eacute um periacuteodo no qual apesar de ter renunciado
anteriormente agrave direccedilatildeo do monasteacuterio de Corazzo Joaquim estaacute nos termos de Troncarelli
ldquoapaixonadamenterdquo envolvido na fundaccedilatildeo de uma casa proacutepria287 Ele renunciara agrave
283 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xviii 284 DUBY op cit p 49 285 TRONCARELLI op cit p 24 Alguns autores sugerem entretanto que Joaquim deixou Corazzo por
entender que a Ordem de Cister jaacute natildeo era riacutegida o suficiente principalmente na questatildeo da disciplina
monaacutestica Ele desejava o cumprimento estrito da Ordem de S Bento o que para o abade significava o
abandono das questotildees temporais uma vida de simplicidade a pureza de coraccedilatildeo e a vida contemplativa Cf
DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997
p 41 286 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5 287 TRONCARELLI op cit p 27
96
lideranccedila de uma casa para ser liacuteder de outra Esta mudanccedila de perspectiva de Joaquim
poderia ter relaccedilatildeo com o papel que ele imaginou ter nos tempos que estariam por vir sobre
a Igreja Segundo este professor da Universitagrave della Tuscia ele entendeu que precisava do
apoio de uma nova casa monaacutestica na promoccedilatildeo de sua missatildeo de preparar as pessoas para
a intervenccedilatildeo iminente do Espiacuterito Santo288
Por isso se antes ele queria o isolamento agora ele precisa de apoio natildeo apenas dos
papas mas tambeacutem dos poderes poliacuteticos Entre 1190-1191 ele passou um periacuteodo em
Palermo enquanto solicitava ajuda de Tancredo para as obras de S Joatildeo de Fiore A resposta
do rei normando foi favoraacutevel a Joaquim por meio de uma ldquogenerosa doaccedilatildeordquo289
Enquanto esteve na Siciacutelia em negociaccedilatildeo com Tancredo a ilha se tornou ponto de
parada de uma cruzada a caminho de Jerusaleacutem Joaquim foi convocado para se encontrar
com Ricardo Coraccedilatildeo de Leatildeo da Inglaterra e um grupo de ingleses em Messina290 Ricardo
desejava de Joaquim algum tipo de vaticiacutenio a respeito da cruzada em Jerusaleacutem o que
demonstra que neste periacuteodo o calabrecircs havia alcanccedilado a reputaccedilatildeo de profeta entre alguns
de seus conterracircneos291 O abade usou a visatildeo de Apocalipse 179-10 que descreve uma
besta com sete cabeccedilas para interpretar a Cruzada A passagem apocaliacuteptica fala de sete reis
dos quais caiacuteram cinco um existe e outro ainda natildeo chegou Segundo o autor do Expositio
as cinco cabeccedilas que caiacuteram seriam Herodes Nero Constantino Maomeacute e Melsemuto A
sexta cabeccedila neste caso seria Saladino aquele ldquoum que existerdquo que seria destruiacutedo em
breve para que a seacutetima cabeccedila o que ldquoainda natildeo chegourdquo o derradeiro Anticristo se
manifestasse Este teria jaacute 15 anos e estaria pronto para assumir seu poder
O rei Ricardo perguntou a Joaquim onde o Anticristo teria nascido e onde iria reinar
Joaquim respondeu que ele nascera in urbe Romana e obteria a Seacute Apostoacutelica A visatildeo
aparentemente pouco ortodoxa de Joaquim sobre o Anticristo agradou o monarca inglecircs
adversaacuterio do papa Reeves argumenta entretanto que ao apontar Roma como o local de
nascimento do Anticristo Joaquim estava somente traduzindo a antiga expectativa em seus
proacuteprios termos Joaquim esperava um falso papa como uma de suas manifestaccedilotildees mas
288 Idem p 29 289 Idem p 28 290 Conferir a siacutentese e uma anaacutelise do encontro em REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later
Middle Ageshellip op cit p 7-9 291 Segundo Mc Ginn ldquoreis e rainhas papas e priacutencipes buscavam seus conselhosrdquo a ponto de se tornar uma
das figuras religiosas mais significativas do periacuteodo Cf MC GINN Bernard Apocalyptic Spiritualityhellip op
cit p 98
97
sem implicar neste caso que a Igreja romana deveria ser identificada com a Babilocircnia de
Apocalipse 17-19292
Apoacutes os eventos de Messina o fundador de Fiore voltou para Calaacutebria Mas em 1191
precisou descer novamente da regiatildeo montanhosa na direccedilatildeo de Naacutepoles para um encontro
com Henrique VI que em disputa pela coroa da Siciacutelia viera destituir Tancredo do trono O
abade exortou o monarca germacircnico a natildeo agir com violecircncia contra a coroa siciliana ou
seus aliados Ele usou uma passagem do Antigo Testamento Ezequiel 267 para criticar a
accedilatildeo de Henrique relacionando os eventos de Babilocircnia e Tiro com Henrique e a Siciacutelia293
Independentemente do peso que as palavras de Joaquim tiveram na decisatildeo de
Henrique o monarca realmente decidiu abandonar a regiatildeo e voltar para a Germacircnia Os
eventos posteriores viriam a mostrar um Henrique realmente disposto a ajudar a casa de
Fiore Apoacutes a morte de Tancredo a caminho para assumir o reino da Siciacutelia Henrique
encaminhou uma carta em que fazia uma doaccedilatildeo ao novo monasteacuterio Nela Joaquim eacute pela
primeira vez declarado abade de S Joatildeo em Fiore Em 6 de marccedilo de 1195 alguns meses
apoacutes a coroaccedilatildeo o monarca germacircnico escreveu uma segunda carta garantindo a S Joatildeo um
dote anual em moedas de ouro Bizantinas294
Agora com o apoio do Imperador Joaquim retornou ao papa Celestino III (1191-
1198) e pediu a ele sua aprovaccedilatildeo para S Joatildeo de Fiore Em Roma no dia 25 de agosto de
1196 Celestino emitiu uma bula na qual formalmente aprovou S Joatildeo e a Regra da nova
Ordem Florense295 Ainda nesta bula Joaquim aparece descrito como o abade de Fiore
indicando que pelo menos aos olhos do papa ele natildeo tinha mais conexotildees com Corazzo nem
com a Ordem Cisterciense A mesma aprovaccedilatildeo se deu em 1204 por Inocecircncio III e duas
vezes por Honoacuterio em 1216 e 1220 Mesmo assim desde 1192 Joaquim era considerado
fugitivus pelo Capiacutetulo Geral Cisterciense296
Em 1196 Joaquim retornou a Palermo na qualidade de confessor da rainha
Constacircncia que veio a confirmar todas as doaccedilotildees da coroa para Fiore apoacutes a morte de
Henrique VI em 1197
292 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 9 293 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 66 294 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 295 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n
1 p 217-240 2004 p 219 Esta Regra se perdeu apesar de estudiosos entenderem que ela deveria ser bem
proacutexima da Regra Cisterciense 296 TRONCARELLI op cit p 30
98
O abade Joaquim escreveu em marccedilo de 1200 um documento narrando as
autorizaccedilotildees que entendeu ter recebido do papado de Roma para escrever suas obras e o
compromisso assumido para enviaacute-las quando estivessem prontas (Expositio in
Apocalpysim 1r-v) Ele encaminhou suas trecircs principais obras (Expositio in Apocalypsim
Concordia Novi ac Veteris Testamenti e Psalterium decem Chordarum) para anaacutelise da
cuacuteria papal Mas natildeo teve tempo para receber de Roma a tal avaliaccedilatildeo pois no dia 30 de
marccedilo de 1202 na abadia de S Martino di Giove que havia sido dada para a Ordem de Fiore
em 1201 pelo Arcebispo Andreas de Cosenzza ele veio a falecer297 sendo transferido
posteriormente para S Joatildeo de Fiore
42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim
Um fenocircmeno significativo nas obras de Joaquim eacute a forma como ele reelabora e
repete os mesmos temas seguidamente num processo contiacutenuo e dinacircmico Torna-se
importante entatildeo apontar data e momento de produccedilatildeo natildeo apenas para o Expositio in
Apocalysim mas para as demais obras do abade relacionadas com o Apocalipse de Joatildeo que
sobreviveram e estatildeo disponiacuteveis para consulta Praephatio super Apocalypsim Enchiridio
super Apocalypsim e Liber Introductorius298 A produccedilatildeo do comentaacuterio maior (Expositio)
se deu por meio da produccedilatildeo de obras menores (em formato de sermatildeo e tratado) desde os
primeiros anos da deacutecada de 1180 ateacute os anos proacuteximos de sua morte299
A mais antiga destas obras entretanto o Praephatio super Apocalypsim eacute marcada
pela natureza compoacutesita Antes de ser um uacutenico texto eacute formado pela reuniatildeo de dois
pequenos sermotildees nos quais o abade faz uma apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o Apocalipse de
Joatildeo e a histoacuteria da Igreja300
O primeiro sermatildeo comeccedila com a expressatildeo ldquoO Livro do Apocalipse eacute o uacuteltimo de
todos os livros escritos com espiacuterito de profecia incluiacutedo no cataacutelogo das Sagradas
297 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 298 Haacute ainda um ldquoindependente e curto comentaacuterio do Apocalipserdquo ineacutedito e sem publicaccedilatildeo denominado pela
historiadora Marjorie Reeves como Apocalypsis Nova presente em dois manuscritos do seacuteculo XIII Cf
REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 513 299 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p
286 300 SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 Foi desta
ediccedilatildeo que partiu a traduccedilatildeo para o portuguecircs do professor Rossatto ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao
Apocalipse op cit Outra traduccedilatildeo em portuguecircs pode ser encontrada em BERNARDI Orlando Comentaacuterio
ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010
99
Escriturasrdquo301 O segundo inicia com a frase ldquoAntes de dizer qualquer coisa sobre o livro do
Apocalipse devemos considerar que este livro estaacute provido de um tiacutetulo de uma saudaccedilatildeo
de um prefaacuteciordquo302 Cada sermatildeo tem sua proacutepria unidade interna e foram reunidos em
circunstacircncias desconhecidas por causa de afinidades temaacuteticas Iremos distingui-los como
faz Potestagrave pelas primeiras palavras latinas de cada um303 O primeiro e mais antigo pode
ser denominado Apocalipsis liber ultimus O segundo Locuturi aliquid Ambos foram
escritos por Joaquim para servir de base para a pregaccedilatildeo em contexto lituacutergico num periacuteodo
anterior agrave sua passagem por Casamari (1183-1184)304 Estes tratados constituem uma
primeira aproximaccedilatildeo exegeacutetica de Joaquim ao Apocalipse de Joatildeo cujo puacuteblico alvo
imediato era formado pelos monges do monasteacuterio de Corazzo
A proacutexima obra de Joaquim a desenvolver uma leitura do Apocalipse eacute o Enchiridion
super Apocalypsim Ele foi escrito no periacuteodo em que o abade pousou em Casamari (1183-
1184)305 Nele Joaquim faz uma apresentaccedilatildeo ampla da obra de Joatildeo sem discutir frase a
frase como faraacute no Expositio mas jaacute expondo suas partes principais O termo ldquoEnchiridionrdquo
pode ser traduzido como ldquomanualrdquo e foi escrito segundo o abade para ldquoapresentar o
conteuacutedo de todo o livro do Apocalipserdquo (Enchiridion l 56-57)306 Eacute uma siacutentese portanto
do conteuacutedo que ele entendia estar presente no uacuteltimo livro da Biacuteblia cristatilde e poderia ser
utilizado como ldquotexto introdutoacuterio e explicativordquo307 do seu Expositio Isto daacute ao Enchiridion
tambeacutem um papel de esquema ou projeto do comentaacuterio ao Apocalipse que o abade
comeccedilaria a produzir em Casamari
O texto comeccedila com ldquoIncipit Enchiridion abbatis Joachim super Apocalypsimrdquo (l
1) seguido da primeira frase do texto ldquoComo catoacutelicos e ortodoxos lutamos (certatum) com
os mais fortes entusiasmos (studiis) para lanccedilar os fundamentos da Igreja (ecclesiae
fundamenta)rdquo (l 2-3)308 Este texto foi produzido por Joaquim para apresentar o Expositio e
lhe servir de resumo mas no momento em que o Expositio estava para ser concluiacutedo o
301 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse op cit p 453 302 Idem p 462 303 POTESTAgrave op cit p 290 e 294 304 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 75 Potestagrave entretanto sugere um periacuteodo
posterior agrave Casamari entre 1185-1186 para Apocalipsis liacuteber ultimus e uma data subsequente para Locuturi
aliquid Cf POTESTAgrave op cit p 290 e 294 305 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 92 Potestagrave entretanto prefere datar o Enchiridion
para uma data posterior a 1194 Cf POTESTAgrave op cit p 328 306 As citaccedilotildees do Enchridion seguem o texto criacutetico de BURGER Edward K Joachim of Fiore Enchiridion
super Apocalypsim Toronto Pontifical Institute of Mediaeval Studies 1986 307 POTESTAgrave op cit p 327 308 BURGER op cit p 9
100
Enchiridion sofreu uma revisatildeo tatildeo profunda com alteraccedilatildeo de aspectos significativos do
seu conteuacutedo que os estudiosos preferem mudar seu nome chamando-o entatildeo de Liber
introductorius309 Gian Luca Potestagrave estima que esta revisatildeo do Enchiridion pode ter ficado
pronta no uacuteltimo ano do pontificado do papa Celestino III (papa de 1191-1198) ainda com
a funccedilatildeo de ldquosimplificar e sintetizar os resultados da obra maiorrdquo310
Uma comparaccedilatildeo entre a primeira redaccedilatildeo (Enchiridion iniacutecio da deacutecada de 1180) e
essa segunda redaccedilatildeo (Liber introductorius 1198) revela mudanccedilas por exemplo na postura
quanto ao Impeacuterio Germacircnico que eacute tratado de forma criacutetica no Enchiridion mas de forma
branda no Liber introductorius Afinal a monarquia Hohenstaufen antes temida por
Joaquim havia se manifestado concretamente apoacutes 1191 na figura generosa de Henrique VI
e suas doaccedilotildees para a casa de S Joatildeo de Fiore311
Com relaccedilatildeo ao Expositio in Apocalypsim como jaacute argumentado anteriormente ele
eacute o resultado de mais de uma deacutecada de trabalho e elaboraccedilatildeo Joaquim o comeccedilou ainda em
Casamari (1183-1184) e soacute o concluiu no final do seacuteculo A informaccedilatildeo sobre a conclusatildeo eacute
dada pelo proacuteprio Joaquim na Carta Testamentaacuteria (Expositio in Apocalypsim 1r) Se a data
de 1198 para o Liber introductorius estiver correta as repetidas referecircncias a ele encontradas
no interior do Expositio indicam que Joaquim usou o periacuteodo entre 1198 e 1200 para fazer
uma revisatildeo completa de seu grande comentaacuterio do Apocalipse312
43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim
O Expositio in Apocalypsim eacute certamente a maior obra de Joaquim de Fiore Nas
ediccedilotildees seiscentistas de Veneza o Expositio tem 224 foacutelios contra 135 da Concordia O
abade denominou o Expositio na sua Carta Testamentaacuteria de ldquoexpositione Apocalipsisrdquo
(Expositio in Apocalypsim 1r) Mas o que consistiria em termos formais esta ldquoexposiccedilatildeo
do Apocalipserdquo Ela natildeo segue a forma literaacuteria da Concordia nem do Psalterium ou
mesmo do Enchiridion Eacute importante neste caso aplicar ao Expositio uma questatildeo que jaacute
aplicamos ao Apocalipse de Joatildeo justamente porque a definiccedilatildeo do gecircnero literaacuterio de uma
obra eacute parte da escolha do autor para definir a forma como ele desejaria que seu livro fosse
309 POTESTAgrave op cit p 327 310 Idem p 329 311 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 108 312 POTESTAgrave op cit p 287
101
lido313 A obra de Joatildeo eacute enquanto gecircnero literaacuterio um ldquoapocalipserdquo e se insere na longa
tradiccedilatildeo literaacuteria judaica apocaliacuteptica que retrocede ao seacuteculo II antes de Cristo O Expositio
entretanto natildeo eacute um apocalipse antes eacute um comentaacuterio biacuteblico do Apocalipse
Um comentaacuterio biacuteblico eacute formalmente uma explicaccedilatildeo sistemaacutetica abrangente e
sequencial de um determinado livro da Biacuteblia cujo propoacutesito eacute adaptar o material biacuteblico
para as circunstacircncias das novas audiecircncias314 A explicaccedilatildeo de apenas algumas porccedilotildees
capiacutetulos versiacuteculos ou periacutecopes natildeo poderia formalmente ser definida como um
comentaacuterio jaacute que ele precisava cobrir todo o livro biacuteblico Por sequencial entende-se o
acompanhamento da estrutura do texto biacuteblico que se estaacute comentando No caso do
Apocalipse o comentarista o seguia nos blocos ou periacutecopes natildeo necessariamente versiacuteculo
a versiacuteculo ou capiacutetulo por capiacutetulo jaacute que essa padronizaccedilatildeo soacute comeccedilaria a partir do seacuteculo
XIII315
O embate narrado por Euseacutebio de Cesareacuteia entre o bispo Neacutepos e Dioniacutesio serve para
ilustrar a forma como o Apocalipse era usado nos trecircs primeiros seacuteculos (Histoacuteria
Eclesiaacutestica VII XXIV 1-9) Neacutepos era um quiliasta316 cuja mensagem enfatizava a
realidade de um futuro governo terreno de Cristo na terra Para se contrapor a uma exegese
alegoacuterica do Apocalipse que tentava minimizar a realidade histoacuterica deste reinado
messiacircnico este bispo do Egito escreveu um livro intitulado Refutaccedilatildeo dos alegoristas
Contra Neacutepos e seu livro se levantou Dioniacutesio que escreveu Sobre as promessas tambeacutem
para discutir o Apocalipse de Joatildeo Euseacutebio ainda narrou que neste periacuteodo aconteceu um
longo debate acerca da forma como o livro de Joatildeo deveria ser interpretado
O bispo de Cesareacuteia fala de dois liacutederes cristatildeos que escreveram textos e recorrem
parcialmente ao Apocalipse para defender suas ideias Em linhas gerais a maioria das
pessoas que recorriam ao Apocalipse neste periacuteodo o usa em contexto de polecircmica
doutrinaacuteria ou apologeacutetica para responder a uma heresia dar suporte a uma determinada
posiccedilatildeo teoloacutegica encorajar cristatildeos perseguidos Papias Justino Martir Irineu Tertuliano
313 Conferir esta discussatildeo no primeiro capiacutetulo desta tese 314 MATTER E Ann The Apocalypse in Early Medieval Exegesis In EMMERSON Richard K MCGINN
Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 38-50 p 38-
39 315 SMALLEY Beryl The study of the Bible in the Middle Ages Oxford Basil Blackwell 1952 p 222-224 316 O quiliasmo eacute definido por Wainwright como ldquoa crenccedila de que Cristo retornaraacute para a terra e inauguraraacute
uma era de prosperidade de mil anos sobre o planetardquo Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious
Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 21
102
Hipolitus Vitorino Lactantius Metodius e Comodianus317 Destes com exceccedilatildeo de
Vitorino todos fizeram uso apenas de pequenas porccedilotildees do Apocalipse
Eacute de Vitorino em diante que surge a praacutetica de comentar o Apocalipse inteiro ldquocomo
resposta a problemas particulares da igreja de cada eacutepocardquo318 O bispo de Pettau na Panocircnia
Superior romana escreveu um comentaacuterio ao Apocalipse em grego cerca do ano 300 Sobre
ele opinou Jerocircnimo ao falar da praacutetica de explicar um livro biacuteblico inteiro ldquoentre os latinos
por outra parte haacute um grande silecircncio exceccedilatildeo feita do maacutertir Vitorino de santa memoacuteria
que podia dizer com o apoacutestolo que apesar de carecer de eloquumlecircncia natildeo carecia de
ciecircnciardquo319 No Oriente o primeiro comentaacuterio em grego surgiu apenas no sexto seacuteculo de
um autor anocircnimo conhecido apenas como Ecumecircnio320 sendo seguido de perto pelo
Comentaacuterio de Andreas de Cesareia na Capadoacutecia321
O original grego do Comentarius de Vitorino estaacute perdido mas seu texto eacute bem
conhecido por meio da recensatildeo feita por Jerocircnimo para o Latim O bispo de Pettau morreu
no tempo das perseguiccedilotildees de Diocleciano e isso aparece marcado em sua interpretaccedilatildeo do
Apocalipse322 Ele entendia que os eventos narrados no livro de Joatildeo eram iminentes pois
diziam respeito agraves tribulaccedilotildees das igrejas de sua eacutepoca Ele segue a estrutura do Apocalipse
procurando destacar e explicar as passagens do texto joanino que julgava serem mais
difiacuteceis Ao comentar Apocalipse 20 Vitorino expressou a expectativa quiliasta de um reino
milenar de Cristo na terra
Assim pois os que natildeo tomarem a dianteira ao ressuscitar na primeira
ressurreiccedilatildeo e reinar com Cristo sobre toda a terra (super ordem) e sobre
todas as gentes (super gentes universae) ressuscitaratildeo ao toque da
trombeta final depois de mil anos (Commentarius in Apocalypsim 167-
169 PLS)323
Esta expectativa entretanto tornou-se um problema para a Igreja posterior a
Constantino e ao Edito de Toleracircncia de 313 em funccedilatildeo das novas formas eclesiaacutesticas e o
desenvolvimento de redes de relacionamento com o poder temporal324 Por isso a recensatildeo
317 WAINWRIGHT op cit CONSTANTINOU Eugenia Scarvelis Andrew of Caesarea and the Apocalypse
in the Ancient Church of the East Quebec Universiteacute Laval 2008 p 126 318 MATTER op cit p 38 319 Citado a partir de TORROacute Joaquiacuten Pascual Introduccioacuten general In VICTORINO DE PETOVIO
Comentaacuterio al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 9-26 p 11 320 ECUMENIO Comentario sobre el apocalipsis Madrid Cidad Nueva 2008 321 CONSTANTINOU op cit p 134 322 TORROacute op cit p 9 323 VITORINO DE PETOVIO Comentario al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 208-
209 324 MATTER op cit p 39
103
de Jerocircnimo procurou moldar a obra de Vitorino expurgando as afirmaccedilotildees milenaristas
fazendo-a corresponder a uma eacutepoca em que a Igreja estava em paz com o Impeacuterio e com a
sociedade A leitura literal do milecircnio foi transformada em leitura alegoacuterica Segundo
Jerocircnimo na sua revisatildeo do comentaacuterio de Vitorino de Apocalipse 20 ldquoo nuacutemero denaacuterio
significa o decaacutelogo e o centenaacuterio eacute a coroa da virgindaderdquo o que indicaria que o texto
joanino queria ensinar que os cristatildeos virgens natildeo apenas do corpo mas tambeacutem da liacutengua
e do pensamento seratildeo exaltados pelo Cristo do fim dos tempos325
Quase um seacuteculo depois de Vitorino outro autor resolveu escrever uma exposiccedilatildeo
completa do Apocalipse Ele eacute conhecido como Ticocircnio (330-395) e era membro da igreja
donatista do norte da Aacutefrica326 Ele expocircs todo o livro do Apocalipse utilizando os princiacutepios
que havia formulado numa outra obra intitulada Liber regularum327 O comentaacuterio de
Ticocircnio se perdeu mas estudiosos tecircm acesso aos princiacutepios que ele usou para escrevecirc-lo
bem como a reconstruccedilotildees parciais do seu conteuacutedo a partir das citaccedilotildees que dele fizeram
entre outros Primasio Beda e Beato de Liebana
As regras do Liber regularum levaram Ticocircnio a fazer uma leitura do Apocalipse
com ecircnfase na encarnaccedilatildeo de Jesus (Regra 1) no relacionamento entre o Antigo e o Novo
Testamento (Regra III) no simbolismo dos nuacutemeros (Regra V) na recapitulaccedilatildeo (Regra VI)
e na espiritualizaccedilatildeo do milecircnio com uma forte rejeiccedilatildeo do quiliasmo328
O proacuteximo exegeta latino a compor um comentaacuterio ao Apocalipse foi Primasio329
Sua obra Commentarius in Apocalypsim faz uma siacutentese de Vitorino e Ticocircnio Primasio
foi bispo de Justiniapolis no norte da Aacutefrica proviacutencia da Numidia de 527-565 num periacuteodo
de colapso da accedilatildeo imperialista bizantina Apesar de envolvido num clima de instabilidade
social o interesse do bispo africano continuou na linha de Jerocircnimo e Agostinho ao fazer
uma exegese alegoacuterica do Apocalipse330 Como o Apocalipse ainda natildeo tinha marcas de
capiacutetulo e versiacuteculo as definiccedilotildees estruturais do seu comentaacuterio se tornaram importantes na
interpretaccedilatildeo do livro joanino Ele o dividiu em cinco partes 1) sete igrejas 2) sete selos 3)
sete trombetas e a mulher ensolarada 4) as bestas da terra e mar as sete pragas e as sete
325 O texto de Vitorino estaacute publicado em duas seccedilotildees A superior apresenta o texto do proacuteprio bispo de Pettau
traduzido para o Latim A inferior registra a anaacutelise feita por Jerocircnimo sobre a exegese de Vitorino A anaacutelise
de Jerocircnimo mencionada no corpo deste texto estaacute em VITORINO DE PETOVIO op cit p 211 326 CALVO Juan Joseacute Ayaacuten Introduccioacuten In TICONIO Livro de Las Reglas Madri Cidad Nueva 2009 p
11-78 p 14 327 Idem p 28 328 Idem p 39-44 329 MATTER op cit p 41 330 Idem p 42
104
taccedilas 5) o cordeiro sobre o trono o novo ceacuteu e a nova terra331 Matter avalia que todos os
comentaristas do Apocalipse no Ocidente posteriores a Primasio ateacute o seacuteculo XII foram
influenciados por este comentaacuterio332
Autor Data Lugar
Primasio 540 Numiacutedia
Cesaacuterio de Arles 540 Sul da Gaacutelia
Apringius 550 Ibeacuteria
Cassiodoro 575 Sul da Itaacutelia
Beda 730 Northumbria
Ambrosio Autpert 760 Benevento
Beato de Liebana 780 Ibeacuteria
Alcuino 800 Franccedila
Haimo 840 Franccedila
Anocircnimo Seacuteculo IX Franccedila
Glossa Ordinaria 1100 Regiatildeo de Leon
O Beato de Liebana aleacutem de depender de Primasio recorreu pesadamente a Vitorino
e Ticocircnio Em funccedilatildeo do seu papel dentro do cristianismo hispacircnico do seacuteculo VIII os temas
recorrentes no seu comentaacuterio eram a santidade da Igreja e a defesa da divindade de Cristo
contra a teologia adocionista dos seguidores do bispo Elipando de Toledo333
Haacute no Beato uma combinaccedilatildeo significativa de exegese eclesiologia e cristologia que
se tornou recorrente em ambientes monaacutesticos a partir do seacuteculo VIII A perspectiva era de
que o Apocalipse deveria ser interpretado tendo como referecircncia a histoacuteria da Igreja na terra
Beda e Ambrosio Autpert incorporaram as contribuiccedilotildees de Primasio e se tornaram
as grandes bases de interpretaccedilatildeo do Apocalipse no periacuteodo caroliacutengio334 Por meio da obra
Explanatio Apocalypsis Beda apresenta a histoacuteria da Igreja e ao mesmo tempo mantem um
olhar sobre a histoacuteria de toda a criaccedilatildeo Ele fez uso das sete regras de Ticocircnio para descrever
sete periacuteodos da histoacuteria do mundo no Apocalipse 1) as sete igrejas da Aacutesia que descrevem
na realidade as igrejas de Cristo 2) os quatro animais e a abertura dos sete selos revelam os
331 Idem p 43 332 Idem p 44 333 Idem p 46 334 Idem p 47
105
conflitos futuros e triunfos da Igreja 3) as sete trombetas descrevem futuros acontecimentos
da Igreja 4) a Mulher e o Dragatildeo revelam as obras e vitoacuterias da Igreja 5) as sete pragas que
infestaratildeo a terra 6) o castigo da prostituta ou cidade iacutempia 7) a Jerusaleacutem como noiva que
desce do ceacuteu335
O comentaacuterio de Ambrosio Autpert construiu uma leitura alegoacuterica detalhada do
Apocalipse Foi escrito entre 758-767 no ducado Lombardo de Benevento Ele absorveu os
comentaacuterios de Vitorino Ticocircnio Primasio aleacutem das anaacutelises de Agostinho e Gregoacuterio o
Grande Ele estava motivado a fazer uma siacutentese de suas fontes com ecircnfase no ldquocasamento
espiritualrdquo entre Cristo e a Igreja336
Os comentaristas posteriores ao periacuteodo caroliacutengio insistiam em ver no Apocalipse
uma alegoria da histoacuteria da Igreja e procuravam nos comentaacuterios anteriores elementos para
apoiar seus pressupostos exegeacuteticos Haacute pouco interesse na perspectiva da iminecircncia do fim
do mundo que aparecia nos leitores quiliastas dos seacuteculo II e III A insistecircncia dos
comentaristas posteriores a Ticocircnio de rejeitar o quiliasmo levou a uma interpretaccedilatildeo do
Apocalipse que o entende como um guia para a Igreja na terra esperar a uniatildeo com uma
Igreja que jaacute se encontra no ceacuteu337
Neste sentido quando surgem no seacuteculo XII a Glossa ordinaria e os comentaacuterios
de Ruperto de Deutz o conteuacutedo tratado por meio de um comentaacuterio ao Apocalipse era de
cunho mais eclesioloacutegico do que escatoloacutegico Eacute nesta grande tradiccedilatildeo entatildeo que retrocede
a Vitorino e Ticocircnio no Ocidente e Ecumecircnio e Andreas de Cesareia no Oriente que se
insere o Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore
Ao discutir o gecircnero literaacuterio ldquocomentaacuterio biacuteblicordquo entretanto natildeo queremos indicar
que o milenarismo soacute poderia nele se manifestar Nem mesmo afirmar algum tipo de
dependecircncia do Expositio em relaccedilatildeo a um comentaacuterio especiacutefico338 O objetivo eacute demonstrar
que desde Vitorino existiu a praacutetica de comentar de maneira sistemaacutetica e abrangente o
livro do Apocalipse de Joatildeo Um comentaacuterio biacuteblico era um tipo de texto voltado
principalmente para a lideranccedila das igrejas mas com potencial de alcance muito maior jaacute
que logo era transformado em base para os sermotildees dos cleacuterigos339
335 Idem 336 Idem p 48 337 Idem 338 Os autores West e Zindars-Swartz encontram indiacutecio no Expositio de recurso a pelo menos dois comentaacuterios
latinos do Apocalipse Haimo de Auxerre e Beda Cf WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 37 339 Comparar com a anaacutelise de Raquel Parmegiani em PARMEGIANI Raquel de Faacutetima Leituras Medievais
do Apocalipse Comentaacuterio ao Beato de Liebana Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernardo do Campo v 23 n 36
107-125 2009 p 122-124
106
44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse
No Liber introductorius Joaquim explicitou o que o teria levado a escrever o
Expositio
Aceitei expor o Apocalipse que o beato Joatildeo isolado na ilha de Patmos
narrou a partir da sequecircncia de eventos (ex cuius serie) como eu penso (ut
ego extimo) para demonstrar claramente o que eu havia previsto e se estas
coisas satildeo dignas de maior aprofundamento de modo que possam incitar
ao desprezo do mundo (possint ad conseptus seculi) a esposa e os filhos do
reino e endossar a palavra do Senhor que disse ldquoexultai e erguei a cabeccedila
porque a vossa salvaccedilatildeo estaacute proacuteximardquo (Lucas 2128) (Expositio in
Apocalypsim 2b)340
Por meio do seu comentaacuterio ao Apocalipse de Joatildeo o abade queria promover o seu
ideal de pureza para a Igreja latina bem como produzir na audiecircncia do seu Expositio
ldquodesprezo pelo mundordquo (conseptus seculi) O termo conseptus traduzido por
constrangimento desprezo aparece num dicionaacuterio como ldquocom cerca ao redor derdquo ldquocercado
por todos os ladosrdquo ldquofechado completamenterdquo341 Neste sentido tanto Joatildeo quanto Joaquim
parecem se valer de seus textos para incitar e promover ascetismo entre suas respectivas
audiecircncias
Joaquim usou o Expositio para apresentar uma ldquohistoacuteria teoloacutegica do
Cristianismordquo342 narrando o desenvolvimento da Igreja Para o abade desde os dias do seu
aparecimento a Igreja estava se desenvolvendo na direccedilatildeo da sua mais plena expressatildeo
quando deixaraacute de ser a instituiccedilatildeo de Pedro e se transformaraacute na instituiccedilatildeo de Joatildeo um tipo
de monasticismo contemplativo no periacuteodo do descanso sabaacutetico343
Uma das metas de Joaquim era encontrar sentido na histoacuteria humana e ele entendeu
que o Apocalipse poderia ser a fonte para isso344 Ao encaminhar o Expositio para a cuacuteria
papal o abade de Fiore desejava disseminar a ideia de que uma cristandade reformada e
purificada era o objetivo de um processo histoacuterico dinacircmico que tinha suas raiacutezes na
340 Traduzido a partir de TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 80 341 DICIONAacuteRIO LATIM PORTUGUEcircS Porto Editora Porto 2001 p 171 342 POTESTAgrave op cit p 297 343 LERNER Robert E The medieval return to the thousand-year Sabbath In EMMERSON Richard K
MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 51-
71 p 57 344 SMALLEY op cit p 289 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the
Apocalypse In EMMERSON Richard K MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages
London Cornell University Press 1992 p 72-88 p 87
107
antiguidade da histoacuteria de Israel345 A chave para enxergar esta histoacuteria estava no uacuteltimo livro
da Biacuteblia o Apocalipse de Joatildeo
45 Resumo
Joaquim foi um notaacuterio da Calaacutebria que abraccedilou a vocaccedilatildeo monaacutestica depois de uma
peregrinaccedilatildeo agrave Palestina Ingressou num monasteacuterio em Corazzo e se esforccedilou para
incorporaacute-lo a Ordem Cisterciense mas abandonou-o para fundar uma casa monaacutestica nas
montanhas calabresas de Fiore Desde seu retorno agrave Calaacutebria ele manifestou o interesse em
promover ideias a respeito de uma eminente e imimente intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina
Sua estrateacutegia para divulga-las envolveu a produccedilatildeo de vaacuterios livros entre eles o Expositio
in Apocalypsim uma apresentaccedilatildeo da histoacuteria da Igreja na forma de um comentaacuterio ao
Apocalipse de Joatildeo
345 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 87
V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA
SICIacuteLIA
Em 1191 Joaquim desceu do isolamento de Fiore na Calaacutebria e foi ao encontro de
Henrique VI Imperador Germacircnico perto dos muros de Naacutepoles346 William II rei da
Siciacutelia morrera sem deixar herdeiros e a coroa do Reino fora entregue com o apoio da cuacuteria
romana para o conde Tancredo sobrinho do falecido rei O imperador entretanto entendia
que a coroa da Siciacutelia lhe pertencia Por isso atravessou a Itaacutelia e iniciou uma ofensiva contra
os aliados de Tancredo Joaquim foi ateacute o imperador cujas tropas estavam sofrendo com
uma epidemia e declarou que o evento era consequecircncia do juiacutezo divino Citando a
passagem biacuteblica de Ezequiel 26 Joaquim comparou o sul da Itaacutelia com Tiro e Henrique
com o rei da Babilocircnia Se o monarca persistisse Deus o derrotaria mas se ele se retirasse
em poucos anos Deus daria a ele a vitoacuteria sem que precisasse lutar347
Eacute difiacutecil saber como as palavras de Joaquim influiacuteram nos eventos que se seguiram
Talvez por causa da forccedila de resistecircncia dos aliados de Tancredo ou porque a ajuda naval
que Henrique esperava atrasara ou porque surgira problemas na Germacircnia que precisavam
de sua atenccedilatildeo no final o Imperador e seus cavaleiros voltaram para o norte dos Alpes
Poucos anos depois em 1194 Tancredo morreu e deixou a coroa da Siciacutelia para seu
pequeno filho chamado entatildeo de William III Novamente Henrique reclamou o Reino para
si e sua esposa Constacircncia princesa normanda filha legiacutetima de Rogeacuterio II o fundador do
Reino da Siciacutelia Segundo o Tratado de Veneza de 1177 entre o Reino da Siciacutelia e o Impeacuterio
Germacircnico caso William II morresse sem filhos Constacircncia sua tia seria a herdeira da
Coroa348 Desta vez Henrique entrou na Itaacutelia meridional atravessou o canal de Messina na
direccedilatildeo da Siciacutelia retirou sem grandes dificuldades o filho de Tancredo do trono venceu
pequenos focos de resistecircncia em Palermo e nesta mesma cidade na catedral real foi
coroado rei no natal de 1194 Com isso ele repetiu o gesto que o fundador do Reino Rogeacuterio
II realizara no natal de 1130
346 TURLEY Thomas Joachim of Fiore In EMMERSON Richard K (org) Key figures in medieval Europe
an encyclopedia New York Routledge 2006 p 372-374 p 373 347 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti
Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xix REEVES Marjorie The influence of
Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993
p 11 348 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south In ABULAFIA David (org) Italy in the Central
Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 58-81 p 69
109
Independentemente do papel de Joaquim nos eventos de 1191 ele deve ter sido
significativo porque outro encontro entre o abade de Fiore e o imperador germacircnico se deu
em Palermo Joaquim compareceu agrave coroaccedilatildeo e foi recebido respeitosamente Em outubro
de 1194 pouco antes de receber a coroa da Siciacutelia Henrique VI escreveu uma carta na qual
descreveu Joaquim como ldquoabade de Fiorerdquo e falou claramente do monasteacuterio de Satildeo Joatildeo
em Fiore antes mesmo de uma autorizaccedilatildeo papal para a fundaccedilatildeo da ordem Florense o que
soacute ocorreu em 1196349 Em marccedilo de 1195 Henrique escreveu outra carta garantindo a Satildeo
Joatildeo um dote anual de cinquenta moedas de ouro Bizantinas350 No pouco tempo que
Henrique sobreviveu a estes eventos (ele morreu em 1197) Joaquim e seus monges se
tornaram protegidos do imperador germacircnico e rei da Siciacutelia A rainha Constacircncia fez do
abade seu confessor pessoal ateacute morrer em Palermo em novembro de 1198
Joaquim de Fiore viveu num momento significativo da Itaacutelia meridional entre o auge
e o fim da dinastia normanda no Reino da Siciacutelia periacuteodo descrito pelo historiador inglecircs
Graham Loud como eacutepoca de ouro para o sul da Peniacutensula quando comparada com os
distuacuterbios sociais anteriores agrave chegada dos normandos e a crise da transiccedilatildeo dinaacutestica
posterior agrave morte de William II351 Foi uma eacutepoca em que reis da dinastia Hauteville
conseguiram unificar sob um mesmo governo toda a regiatildeo inferior ao Patrimocircnio de Satildeo
Pedro do rio Garigliano ateacute a ilha da Siciacutelia territoacuterio marcado fortemente pela presenccedila
grega e muccedilulmana espaccedilo de sobrevivecircncias interaccedilotildees e trocas culturais entre grupos
eacutetnicos e religiotildees distintas Espaccedilo onde mesmo o Cristianismo era pluralizado nas formas
grega e latina Para compreender o papel social e religioso do monge calabrecircs eacute importante
atentar para as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia meridional normanda
bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio Hohenstaufen Estes
elementos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim e seus objetivos enquanto
ermitatildeo monge abade escritor e fundador da Ordem Florense
349 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx 350 Idem 351 LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007
p 524
110
51 A chegada dos normandos
Os primeiros normandos chegaram ao sul da Itaacutelia por volta do ano 1000 em
circunstacircncias natildeo tatildeo claras Jaacute eacute possiacutevel discernir a presenccedila deles na revolta de nobres da
Apuacutelia contra autoridades bizantinas em 1017 e 1018352 O quadro encontrado na regiatildeo
manifestava uma divisatildeo poliacutetica complexa com estruturas culturais pluralizadas sem um
poder central Sob este contexto cavaleiros normandos se colocaram como mercenaacuterios a
serviccedilo da populaccedilatildeo lombarda contra os bizantinos de um territoacuterio lombardo contra outro
de liacutederes bizantinos contra sarracenos e eventualmente ateacute mesmo a serviccedilo dos
muccedilulmanos da Siciacutelia contra outros poderes em conflito na ilha353 Inicialmente eles natildeo
passavam de algumas dezenas de cavaleiros que vendiam seus serviccedilos a poderes locais em
vez de se reunirem sob a lideranccedila de outro normando
Nos principados e ducados lombardos eles encontraram um tipo de aristocracia
sobre a qual foram constituiacutedos como condes Em Apuacutelia a estrutura social em funccedilatildeo dos
traccedilos da administraccedilatildeo bizantina era baseada nos encastelamentos um tipo de cidadela ou
vila fortificada e um significativo nuacutemero de pequenos proprietaacuterios Estas vilas fortificadas
(castella) ficavam em posiccedilotildees estrateacutegicas e serviam como centros administrativos da
aristocracia local Na Calaacutebria um terceiro tipo de domiacutenio se manifestou atraveacutes da
construccedilatildeo de castelos utilizados para controlar a regiatildeo circundante por meio de tratados
com as cidades juramento de fidelidade e implementaccedilatildeo de tributos Apoacutes a conquista os
castelos foram entregues a parentes e vassalos dos normandos
Os assentamentos e conquistas dos normandos natildeo tinham como base algum tipo de
acordo amplo para a conquista da Itaacutelia meridional Na busca pelo domiacutenio das regiotildees os
proacuteprios normandos se envolviam em conflitos No final do seacuteculo XI entretanto dois
liacutederes de uma mesma famiacutelia assumiram o poder sobre quase todo o sul da Itaacutelia Roberto
Guiscard com o domiacutenio dos territoacuterios abaixo do Patrimocircnio de Satildeo Pedro ateacute a Calaacutebria
e seu irmatildeo Rogeacuterio de Hauteville que dirigiu a conquista da ilha da Siciacutelia
Roberto Guiscard morreu em 1085 deixando o territoacuterio conquistado para seus
filhos Rogeacuterio de Hauteville entretanto posteriormente conhecido como Rogeacuterio I
sobreviveu ao seu irmatildeo mais de uma deacutecada promovendo um estaacutevel governo sobre a
Siciacutelia O conde Rogeacuterio I se casou trecircs vezes mas foi com sua terceira esposa Adelaide
352 Idem p 17 353 CHIBNALL Marjorie The Normans Oxford Blackwell Publishing 2006 p 76
111
filha do marquecircs Manfredo de Savona do norte da Itaacutelia que ele teve seus herdeiros Simatildeo
e Rogeacuterio posteriormente Rogeacuterio II Sua morte em 1101 legou o condado da Siciacutelia para
seus filhos ainda menores Simatildeo era o sucessor imediato mas faleceu logo deixando
Rogeacuterio como uacutenico herdeiro Adelaide de Savona no periacuteodo de menoridade governou o
ducado Uma de suas accedilotildees foi levar a corte para Palermo na Siciacutelia que fora a sede do
domiacutenio muccedilulmano Em 1112 finalmente Rogeacuterio II assumiu o poder e no ano seguinte
Adelaide deixou a Siciacutelia para se casar com o rei Balduiacuteno de Jerusaleacutem354
52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia
A partir de 1121 Rogeacuterio II avanccedilou sobre a Calaacutebria agrave custa de seu primo o duque
William de Apuacutelia No ano seguinte jaacute era senhor de todo o territoacuterio calabrecircs e a partir de
1129 o sul italiano estava unificado sob um uacutenico poder mais uma vez coisa que natildeo
acontecia desde o imperador Justiniano no seacuteculo VI355 A extensatildeo do seu domiacutenio pela
Sicilia Calaacutebria Apuacutelia e outros territoacuterios que se estendiam quase ateacute Roma356 poderiam
justificar um status real mas a transiccedilatildeo para a monarquia teve como ponto de partida um
conflito dentro da Igreja de Roma
Em fevereiro de 1130 apoacutes a morte do papa Honoacuterio II um coleacutegio de cardeais
dividido provocou um cisma papal Anacleto II foi eleito papa e permaneceu em Roma
Inocecircncio II recebeu o tiacutetulo e deixou a cidade em busca de apoio357 Anacleto II recorreu ao
conde Rogeacuterio II da Siciacutelia com a disposiccedilatildeo de coroaacute-lo como rei em troca de proteccedilatildeo e
suporte financeiro Apoacutes a efetivaccedilatildeo do acordo nasceu o Reino da Siciacutelia atraveacutes da bula
papal de setembro de 1130 A coroaccedilatildeo se deu no natal deste mesmo ano na catedral de
Palermo358
Anacleto II morreu em 1138 e Inocecircncio II voltou para Roma como uacutenico papa Ele
declarou nulas todas as accedilotildees de Anacleto e ainda promoveu uma cruzada contra Rogeacuterio
354 MAYER Hans Eberhard The Latin east 1098-1205 In LUSCOMBE David (org) The New Cambridge
Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v V 4 p
644-674 p 648 355 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century In LUSCOMBE David (org) The New
Cambridge Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v
V 4 p 442-474 p 447 356 Conferir um mapa do Reino Normando da Siciacutelia no anexo 3 357 CHIBNALL op cit p 86 358 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 448
112
Aleacutem da inimizade papal a alianccedila entre um papa cismaacutetico e Rogeacuterio havia colocado o
Reino da Siciacutelia em conflito com as forccedilas do Impeacuterio Germacircnico e do Impeacuterio Bizantino
ambos se declarando senhores legiacutetimos da Itaacutelia meridional e rejeitando a prerrogativa
normanda
Mesmo assim a liga construiacuteda por Inocecircncio II para enfrentar o Reino da Siciacutelia natildeo
conseguiu impedir a estabilizaccedilatildeo e o desenvolvimento das estruturas monaacuterquicas359
Finalmente em julho de 1139 o proacuteprio papa foi capturado pelas forccedilas de Rogeacuterio II
forccedilando o reconhecimento da monarquia Rogeacuterio foi aclamado como Rei da Sicilia duque
da Apuacutelia e Priacutencipe de Caacutepua (Rex Siciliae ducatus Apuliae et principatus Capuae) Apoacutes
o fim de uma deacutecada de conflitos o rei Rogeacuterio finalmente conseguiu derrotar as grandes
frentes de oposiccedilatildeo ao Reino
Rogeacuterio II se casou trecircs vezes Com a primeira esposa Elvira filha de Alfonso VI de
Castela teve quatro filhos Rogeacuterio Anfusus Tancredo e William Casou-se ainda com
Sibilia filha do duque Hugo da Burgundia na Franccedila e por fim com Beatriz filha do conde
Rethel igualmente francesa360 Com esta uacuteltima ele teve uma filha que nasceu pouco depois
de sua morte Constacircncia posteriormente desposada por Henrique VI da Germacircnia
Quando Rogeacuterio II morreu em 1154 o sucessor escolhido William posteriormente
conhecido como William I ainda era uma crianccedila O reino precisou ser governado por
Beatriz durante o tempo de menoridade do novo rei Um periacuteodo de instabilidade poliacutetica se
manifestou principalmente na parte continental do reino e se estendeu por todo o tempo de
governo (1154-1166)361
Siciacutelia continuava debaixo da hostilidade do Imperador Germacircnico e do Impeacuterio
Bizantino A cuacuteria papal ainda era hostil com o argumento de que o reino fora reconhecido
por Inocecircncio II apenas sob coaccedilatildeo A nobreza das proviacutencias fronteiriccedilas como o
principado de Caacutepua e as bordas de Abruzzi entraram em revolta As cidades de Apuacutelia
igualmente saiacuteram do controle real e reivindicaram autonomia Mas novamente os
adversaacuterios do reino natildeo se juntaram e perseguiram propoacutesitos distintos O imperador
Frederico Barbarroxa precisou rapidamente se concentrar na luta contra as comunas do norte
da Itaacutelia o que deixou o reino circunstancialmente fora de suas investidas O papa Adriano
IV finalmente fechou um acordo com o rei William I em Benevento em 1156 que
359 Idem 360 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily
Mediterranean Studies State College Pennsylvania v 12 p 1-15 2003 p 12 361 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 454
113
restaurou as boas relaccedilotildees entre o Reino da Siciacutelia e o papado A ameaccedila de Bizacircncio por
sua vez conseguiu ser parcialmente neutralizada com um tratado em 1158
Mas se as ameaccedilas internacionais foram minimizadas principalmente por meio de
acordos a situaccedilatildeo interna do Reino ainda era conflituosa As agitaccedilotildees internas
acompanharam William I praticamente ateacute o fim do seu governo Ele morreu em 1166
deixando o reino para o filho igualmente chamado William ainda menor O reino foi
governado pela matildee do jovem sucessor a rainha Margarete filha do rei Garcia de Navarra
na Espanha ateacute 1171 quando William II atingiu a maioridade
William II como o pai viveu a maior parte de sua vida em seu palaacutecio em Palermo
governando por meio do coleacutegio familiares362 Ele conseguiu pacificar internamente o reino
inclusive trazendo de volta opositores que tinham sido exilados no governo anterior
Externamente os antigos adversaacuterios foram pacificados por meio de tratados O rei renovou
o tratado com o papado e com o Impeacuterio Bizantino Soacute faltava mesmo vencer a resistecircncia
do Impeacuterio Germacircnico o que foi alcanccedilado com o Tratado de Veneza de 1177 que
assegurou a treacutegua em troca do casamento da tia de William II Constacircncia com Henrique
VI filho de Frederico Barbarroxa O casamento aconteceu em Milatildeo em janeiro de 1186
Com esse acordo o Impeacuterio Germacircnico finalmente reconheceu a legitimidade do Reino da
Siciacutelia O preccedilo a ser pago foi a designaccedilatildeo de Constacircncia como herdeira da coroa real caso
William morresse sem herdeiros Quando o acordo foi feito a idade do rei e da rainha Joana
filha do rei Henrique II da Inglaterra era um fator de confianccedila na descendecircncia real A
maior probabilidade era que o casal viesse a ter um herdeiro o que automaticamente
invalidaria o direito de Constacircncia363 Mas este acordo com a Germacircnia colocou um fim na
dinastia Hauteville na Itaacutelia meridional jaacute que William II morreu bruscamente no dia 11 de
novembro de 1189 sem deixar herdeiros
53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen
A morte de William II foi seguida por uma divisatildeo dentro do reino Um grupo de
oficiais proeminentes da corte liderados por um membro do coleacutegio familiares Mateus de
Salerno levantou um candidato proacuteprio o conde Trancredo de Lecce primo de William II
362 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p
10-11 363 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 472
114
rejeitando os direitos de Constacircncia e Henrique Tancredo foi coroado rei em 18 de janeiro
de 1190 com o apoio do papado que natildeo desejava a uniatildeo do Reino da Siciacutelia com o Impeacuterio
Germacircnico364
Henrique ateacute tentou destituir Tancredo mas acabou retornando para a Germacircnia apoacutes
o cerco a Naacutepolis jaacute mencionado na abertura deste capiacutetulo Com isso Tancredo conseguiu
governar o Reino da Siciacutelia com o apoio da Igreja de Roma ateacute morrer em fevereiro de
1194 O filho de Tancredo William III foi declarado rei mas era apenas uma crianccedila
Henrique VI novamente reivindicou o direito sobre a coroa da Siciacutelia Desta vez suas
investidas foram mais eficientes Palermo caiu em novembro de 1194 e Henrique foi
coroado rei da Siciacutelia no dia 25 de dezembro na catedral da cidade
Mesmo que Constacircncia fosse uma herdeira normanda legiacutetima filha do fundador do
Reino Rogeacuterio II o rei agora era um monarca estrangeiro de linhagem germacircnica Frederico
II filho de Constacircncia e Henrique apoacutes a morte dos pais e um longo periacuteodo de menoridade
sob a tutela do papa Inocecircncio III implementaraacute um novo governo forte e centralizado365
Todavia mesmo carregando o sangue Hauteville por parte da matildee tambeacutem era herdeiro dos
Hohenstaufen por parte do pai Ele precisou se dividir em ser rei na Itaacutelia e Imperador na
Germacircnia
54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada
Em 1140 o filho mais velho do rei Rogeacuterio II e Elvira de Castela o duque Rogeacuterio
de Apuacutelia foi ateacute a regiatildeo central da Siciacutelia Ele precisava averiguar o patrimocircnio da coroa
que estava em uso irregular de um monasteacuterio grego O monasteacuterio em questatildeo era Satildeo
Cosme de Gonato que tinha se apossado de terras de cultivo algumas vinhas e um moinho
real O duque Rogeacuterio durante a investigaccedilatildeo interrogou o abade local Metoacutedio que alegou
ter recebido o patrimocircnio em possessatildeo durante a gestatildeo do governador Caid Maimunes366
Apoacutes a investigaccedilatildeo o duque Rogeacuterio emitiu um documento para o monasteacuterio em
1142 que comeccedilava com as seguintes palavras
364 Idem 365 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south op cit p 70 366 Conferir a anaacutelise deste evento bem como uma reproduccedilatildeo do documento em grego e espanhol em
ANDREacuteS Gregoacuterio de Um diploma griego del Duque Normando Roger Priacutencipe de Sicilia (A 1142)
Erytheia Revista de estuacutedios bizantinos y neogriegos Madri v 1 n 6 p 61-68 1985
115
Diploma dado por mim Rogeacuterio ilustriacutessimo Duque e filho do piedoso e
grande rei dirigido a ti Metoacutedio abade do monasteacuterio de Satildeo Cosme
chamado o Gonato situado nos montes de Petraacutelia no mecircs de abril dia 6
quinta-feira Depois que entrei em completo domiacutenio e governo da regiatildeo
de Petraacutelia que o poderosiacutessimo rei e meu pai me entregou chegou a meus
ouvidos que muitas e diversas pessoas tecircm se apossado de campos
cultivados e vinhas de domiacutenio real como se fossem proacuteprios367
Rogeacuterio argumentou que as posses eram da coroa e natildeo do governador e neste caso
a doaccedilatildeo fora irregular No decorrer do diploma Rogeacuterio reinvindicou a propriedade real
sobre o moinho mas ciente de que o monasteacuterio precisava dele prometeu um dote de trigo
anual procedente de terras reais com a ldquocondiccedilatildeo de que se rogue pela salvaccedilatildeo espiritual
do pai Rogeacuterio II e a matildee Elvira pela sua proacutepria e pela paz do mundordquo368 Quanto agraves terras
e vinhas Rogeacuterio tanto declarou-as como propriedade da Coroa como devolveu-as como
dote real definitivo para o monasteacuterio ldquoenquanto o mundo natildeo acabarrdquo369
Este evento bem como o diploma do conde Rogeacuterio apresentam um elemento
significativo do Reino da Siciacutelia no periacuteodo dos Hauteville elemento que apesar de se
alterar com o passar do tempo esteve presente ateacute o fim do seacuteculo XII a diversidade cultural
e religiosa bem como as interaccedilotildees franqueadas entre estas diversas culturas Trecircs grupos
sociais aparecem no diploma O normando representado pelo duque Rogeacuterio filho do rei
Rogeacuterio II o grego representado pelo abade Metoacutedio e seu monasteacuterio o aacuterabe
representado pelo Caid Maimunes administrador da regiatildeo de Petraacutelia370 O termo caid
era um vocaacutebulo de dignidade entre os sarracenos mas foi usado frequentemente no Reino
da Siciacutelia para descrever um muccedilulmano que se convertia ao cristianismo e atuava em algum
espaccedilo do governo geralmente na administraccedilatildeo financeira como coletor de impostos ou
tesoureiro
O monasteacuterio grego de Satildeo Cosme de Gonato na Petraacutelia evidencia a presenccedila de
diversas casas gregas espalhadas pelo reino isentas da jurisdiccedilatildeo episcopal latina que
viviam um tipo de monasticismo oriental basiliano Vaacuterios deles podem ter se instalado na
Itaacutelia meridional durante a perseguiccedilatildeo dos imperadores iconoclastas e sobreviveram na
Siciacutelia mesmo durante o domiacutenio muccedilulmano371
367 Idem p 66 368 Idem p 67-68 369 Idem p 68 370 Idem p 63 371 BUONAIUTI Ernesto Storia del Cristianesimo II - Evo Medio Milano DallOglio 1960 p 365
116
Em termos literaacuterios o diploma do duque Rogeacuterio de Apuacutelia foi escrito em grego
tendo em vista que o abade e seus monges eram gregos Possivelmente o duque Rogeacuterio I
instaurador da dinastia Hauteville na Siciacutelia tinha dificuldades com a liacutengua grega ou aacuterabe
e precisou da ajuda de autoacutectones para se comunicar com a populaccedilatildeo dominada Mas seu
filho Rogeacuterio II criado na Calaacutebria primeira sede do ducado natildeo apresentava a mesma
dificuldade Ele conhecia as liacutenguas grega e aacuterabe e marcou a corte do Reino da Siciacutelia com
elementos dessas culturas Quase todas as suas assinaturas sobreviventes foram escritas em
grego Selos reais continham a seguinte legenda grega ldquoRogerioj Krataioj Eusebhj Rhxrdquo
(ldquoRogeacuterio forte e poderoso reirdquo) Posteriormente ele acrescentou uma inscriccedilatildeo latina
ldquoRogerius Dei Gracia Sicilie Calabrie Apulie Rexrdquo (ldquoRogeacuterio pela graccedila de Deus rei da
Siciacutelia Calabria e Apuliardquo)372 Segundo Takayama tanto Rogeacuterio II quanto seus
descendentes William I e William II tiveram interesse em aprender artes e reuniram saacutebios
astroacutelogos filoacutesofos e geoacutegrafos de origem grega e aacuterabe no palaacutecio real de Palermo373 Este
historiador japonecircs avalia que ldquoos reis normandos da Siciacutelia com o suporte destes burocratas
gregos e aacuterabes eram reis cristatildeos mergulhados ateacute os joelhos nas culturas islacircmica e
gregardquo374
Em termos administrativos a Calaacutebria antes bizantina manteve muito de sua
estrutura administrativa sob o domiacutenio Hauteville O mesmo se deu na Siciacutelia com os
elementos estruturais criados pelos muccedilulmanos Em ambas as regiotildees oficiais indiacutegenas
locais continuaram sendo aproveitados pelos reis normandos na administraccedilatildeo do reino375
Apoacutes a unificaccedilatildeo em 1130 como parte da organizaccedilatildeo da coroa novas leis foram
criadas No prefaacutecio das Leis de Ariano de 1140 por exemplo a questatildeo das interaccedilotildees
culturais chama a atenccedilatildeo ao assinalar que ldquodiferentes povos sob o governo poderiam
manter seus proacuteprios costumes e leis desde que natildeo se colocassem em direto confronto com
as novas leis do Reinordquo376 Especialmente durante o governo de Rogeacuterio II os muccedilulmanos
poderiam guardar a lei coracircnica entre eles e os gregos o direito justiniano377
372 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p
5 373 Idem p 6 374 Idem p 15 375 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 460 376 Idem p 461 cf tambeacutem DRELL Joanna H Cultural syncretism and ethnic identity The Norman
lsquoconquestrsquo of Southern Italy and Sicily Journal of Medieval History Amsterdam v 25 n 3 p 187-202 1999
p 201 377 SZAacuteSDI LEON-BORJA Istvaacuten CORREIA DE LACERDA Vitaline Alfonso Henriques y Roger II de
Sicilia dos vidas paralelas de condes a reyes Una clave para la comprensioacuten del nascimento del Reino de
Portugal Estudios de Historia de Espantildea Buenos Aires v 13 p 55-72 2011 p 64 Hubert Houben
117
Isso significava a autorizaccedilatildeo para que os nativos italianos ainda chamados de
lombardos bem como gregos e muccedilulmanos permanecessem sob o poder de costumes
proacuteprios administrados por seus juiacutezes especialmente nas cidades ou por aristocratas que
possuiacuteam autoridade judicial em suas proacuteprias terras A justiccedila real se encarregaria
particularmente da ordem puacuteblica e das disputas de propriedade funcionando mais como
uma corte de apelaccedilatildeo378 Aleacutem disso especialmente na ilha da Siciacutelia sede do governo as
leis e decretos reais eram publicados em grego latim e aacuterabe379
Mesmo com as mudanccedilas demograacuteficas provocadas pelas migraccedilotildees latinas
favorecidas com a presenccedila do domiacutenio normando o Reino da Siciacutelia chegou ao final do
seacuteculo XII como uma entidade unificada politicamente mas pluralizada etnicamente380
fenocircmeno que Marjorie Chibnall definiu como ldquomulti-culturalrdquo381
No caso dos gregos havia uma presenccedila substancial desta populaccedilatildeo na ilha da
Siciacutelia e na Calaacutebria principalmente na parte sul desta proviacutencia Eles se concentravam tanto
nas cidades quanto nos campos onde construiacuteam suas igrejas com ritos e liturgia orientais382
Com a chegada dos Hauteville natildeo havia mais qualquer impedimento para que essa
populaccedilatildeo buscasse fazer novos membros atraveacutes do proselitismo O mesmo natildeo poderia
mais se dar por parte dos muccedilulmanos Isso fazia com que conversotildees de muccedilulmanos para
o cristianismo grego se tornassem um fenocircmeno relativamente frequente Jaacute a conversatildeo
muccedilulmana para o cristianismo latino era mais rara383
Em relaccedilatildeo ao elemento muccedilulmano Rogeacuterio I jaacute havia prometido no momento da
conquista natildeo promover accedilotildees agressivas contra essa parte da populaccedilatildeo da Siciacutelia As
maiores mesquitas foram confiscadas mas os muccedilulmanos receberam a garantia de que
poderiam praticar sua religiatildeo em troca do pagamento de uma taxa a gesia384 Nesta fase
entretanto problematiza esta questatildeo argumentando que ldquoa liberdade religiosa eram somente garantida onde
a maioria dos habitantes era muccedilulmana como era o caso de Palermo onde havia a necessidade de contiacutenua
cooperaccedilatildeordquo Cf HOUBEN Hubert Religious toleration in the South Italian Peninsula during the Norman and
Staufen Periods In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002 p
319-339 p 322 378 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 461 379 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 64 380 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 471 381 CHIBNALL op cit p 88 382 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in
Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 22 383 ABULAFIA David The Italian other Greeks Muslims and Jews In ABULAFIA David (org) Italy in
the Central Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 215-236 p 220 384 Idem p 223
118
da conquista o objetivo de Rogeacuterio era pragmaacutetico Ele precisava da populaccedilatildeo muccedilulmana
para dar estabilidade agrave ilha
Com o passar do tempo entretanto a populaccedilatildeo muccedilulmana declinou
substancialmente ateacute que durante o governo de Frederico II (rei de 1198-1250) natildeo
restassem mais do que 40 mil muccedilulmanos que acabaram sendo deportados para o
continente formando uma colocircnia em Lucera A causa mais imediata desse decliacutenio foi o
fluxo migratoacuterio de cristatildeos latinos para a ilha principalmente oriundos do norte da Itaacutelia
Mas outros fatores podem ser mencionados como a saiacuteda de muccedilulmanos para outros
espaccedilos de domiacutenio muccedilulmano como o norte da Aacutefrica a conversatildeo de muccedilulmanos para
o cristianismo mesmo que sob a forma de pseudo-conversatildeo e a escravizaccedilatildeo Os poucos
muccedilulmanos que ainda sobreviveram na Siciacutelia no seacuteculo XIII em sua maioria eram
escravos ou comerciantes
55 A Igreja no Reino da Siciacutelia
Formalmente o reino da Siciacutelia era um feudo papal da mesma forma que o ducado
de Apuacutelia e o principado de Caacutepua tinham sido a partir de 1059 Em 1130 o tiacutetulo real foi
dado pelo papa Anacleto II durante o cisma em 1139 Rogeacuterio II fez homenagem ao papa
Inocecircncio II em 1156 William I repetiu o gesto do pai diante de Adriano IV Ambos os reis
concordaram em pagar um census anual ao papado como recompensa pelo feudo385 Essa
relaccedilatildeo feudal entretanto precisa ser problematizada Os Hauteville jaacute eram governantes
antes de receberem o reconhecimento papal O domiacutenio natildeo foi criado pela homenagem
papal Eacute neste sentido que se daacute a sugestatildeo de Istvaacuten Szaacuteszdi Leoacuten-Borja e Vitaline Correia
de Lacerda de que este relacionamento feudal era parte de uma estrateacutegia dos liacutederes
normandos para obter o reconhecimento da Cristandade quanto a seus domiacutenios386 No caso
da igreja de Roma poderia ser uma estrateacutegia para aumentar a autoridade papal dentro do
reino o que natildeo aconteceu necessariamente apoacutes a fundaccedilatildeo do Reino da Siciacutelia em funccedilatildeo
do cisma papal A relaccedilatildeo entre a coroa e o papado foi difiacutecil principalmente entre 1139 e
1156 A reorganizaccedilatildeo episcopal feita na Siciacutelia a pedido do papa cismaacutetico Anacleto II
entre 1130-1131 especialmente era inaceitaacutevel para a cuacuteria papal
385 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 465 386 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 55
119
Aleacutem disso a forma como o duque e posteriormente rei Rogeacuterio II exercia o
controle sobre a Igreja dentro do seu territoacuterio era considerado uma infraccedilatildeo agrave autonomia da
igreja387 Suas accedilotildees tinham como fundamento um antigo acordo realizado por Rogeacuterio I e
o papa Urbano II para a organizaccedilatildeo da Igreja da Siciacutelia Em um dos elementos do acordo
o papa se comprometia a natildeo eleger o legado papal para a ilha sem a aquiescecircncia de Rogeacuterio
e na ausecircncia do legado o proacuteprio conde exerceria este papel388 Rogeacuterio II entendeu que
este benefiacutecio pouco usual para um leigo era hereditaacuterio e passou a agir como legado papal
na Siciacutelia389
Finalmente o Tratado de Benevento em junho de 1156 entre o papa Adriano IV e
William I marcou o fim do periacuteodo de hostilidade Graham Loud destaca trecircs aspectos do
tratado como significativos para as relaccedilotildees entre a coroa e o papado Primeiramente
Adriano IV recebeu a homenagem do rei normando e investiu-o no seu reino Com isso a
natureza hereditaacuteria do tiacutetulo real estava confirmada Em segundo lugar as fronteiras ateacute
entatildeo em disputa foram confirmadas comeccedilando em Abruzzi no norte e terminando na
ilha da Siciacutelia Terceiro os direitos reais sobre a Igreja do reino foram definidos Bispos e
abadias faziam suas proacuteprias eleiccedilotildees devendo o rei apenas aceitar ou vetar a escolha O
privileacutegio ainda dado por Urbano II a Rogeacuterio I foi confirmado mas exclusivamente para a
ilha da Siciacutelia no sentido de que os legados papais precisariam ser confirmados pelo rei e
na ausecircncia deles o proacuteprio rei exerceria este papel390
Com a chegada dos normandos a relaccedilatildeo entre igreja latina e grega sofreu o impacto
das mudanccedilas poliacuteticas391 Em 1059 Roberto Guiscard estabeleceu com o Papa Nicolau II o
compromisso de transferir para a jurisdiccedilatildeo papal todas as igrejas de seus domiacutenios Ele fez
juramento similar diante do papa Gregoacuterio VII em 1080 Em outros instantes entretanto o
liacuteder normando poderia dar um arcebispado ou um monasteacuterio importante sob seu domiacutenio
para um cleacuterigo de sua terra natal da Normandia ou Franccedila Contudo natildeo havia por parte
dos governantes algum movimento expliacutecito de latinizaccedilatildeo das igrejas gregas392 Isso porque
387 Idem p 465 388 Idem p 61 389 SKINNER Patricia Roger I (1031-1101 r 1085-1101) In EMMERSON Richard K (org) Key figures
in medieval Europe an encyclopedia New York Routledge 2006 p 575-576 p 574 390 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 164-165 391 HERDE Peter The Papacy and the Greek Church in the Sourthern Italy between the eleventh and the
thirteenth century In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002
p 213-251 p 216 392 Para James Morton a hipoacutetese de uma poliacutetica expliacutecita de latinizaccedilatildeo por parte dos normandos ou do
papado eacute fruto de uma perspectiva ldquofrancocecircntricardquo da histoacuteria medieval Cf MORTON op cit p 8
120
uma igreja grega poderia sobreviver debaixo da jurisdiccedilatildeo de um bispo latino desde que se
fizesse juramento de fidelidade ao bispo de Roma393 Bispos e cleacuterigos gregos poderiam
manter seus ofiacutecios e seus ritos bastando declarar ou admitir a prerrogativa papal de
primazia e o direito de investidura dos papas sobres os bispos da Itaacutelia394
Divergecircncias menores entre as duas igrejas poderiam aparecer no campo da
linguagem do rito e dos costumes Enquanto na Igreja Latina a liacutengua lituacutergica era o latim
na Igreja Grega a liacutengua era o grego395 Os ritos poderiam variar principalmente a Eucaristia
por causa da divergecircncia sobre o patildeo apropriado para a celebraccedilatildeo ou a mistura de aacutegua no
vinho No campo dos costumes debates poderiam aparecer a respeito das vestimentas dos
cleacuterigos e ateacute mesmo sobre a presenccedila ou ausecircncia de barba nos sacerdotes
A divergecircncia significativa entretanto estava no espaccedilo do dogma com a questatildeo
da claacuteusula filioque Do periacuteodo caroliacutengio para frente a Igreja latina passou a professar que
o Espiacuterito procedia do Pai e do Filho uma alteraccedilatildeo do antigo credo que os gregos nunca
aceitaram396
A questatildeo do celibato dos cleacuterigos era outro significativo elemento de distinccedilatildeo entre
igreja grega e latina Enquanto a Igreja Latina proibia bispos e sacerdotes de se casarem na
Igreja Grega eles poderiam continuar casados397 Na Itaacutelia meridional onde cleacuterigos gregos
e latinos viviam lado a lado era difiacutecil impor a observacircncia do celibato sobre todos os latinos
No iniacutecio do seacuteculo XIII Inocecircncio III demandou que bispos gregos da Itaacutelia
meridional atuassem apenas onde a populaccedilatildeo fosse exclusivamente grega e desde que estes
bispos gregos se submetessem ao papado Em dioceses onde a populaccedilatildeo contivesse a
presenccedila de gregos e latinos o bispo deveria ser latino Com o pontificado deste papa natural
de Anagni os ritos gregos passaram a ser limitados398 O resultado foi o desaparecimento da
Igreja Grega na Itaacutelia meridional convertida em latina com algumas poucas exceccedilotildees como
o monasteacuterio de Theotokos de Patiron em Rossano que permaneceu grego quanto agrave
linguagem e rito ateacute meados do seacuteculo XIX399
393 HERDE op cit p 217 394 Idem p 222 395 Idem p 224 396 Idem p 234 397 Idem p 237 398 Idem p 243 399 MORTON op cit p 6
121
56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda
A Itaacutelia meridional nos seacuteculos XI e XII contava com a presenccedila tanto do
monasticismo ocidental quanto do oriental O oriental especificamente era encontrado sob
algumas formas baacutesicas koinobion comunidades monaacutesticas vivendo segundo uma regra
em comum normalmente uacutenica para aquele monasteacuterio a lavra uma comunidade de
monges que viviam perto uns dos outros e compartilhavam serviccedilos lituacutergicos a kella que
era uma rejeiccedilatildeo da comunidade usualmente natildeo tendo mais do que um monge e seus poucos
disciacutepulos vivendo em uma caverna ou casa desabitada400
Segundo Morton em periacuteodos de crise econocircmica e social predominava o tipo anti-
comunitaacuterio Em periacuteodos de estabilidade poliacutetica e social predominavam as comunidades
melhor organizadas do tipo cenoacutebio401 O periacuteodo anterior agrave chegada dos normandos na Itaacutelia
Meridional foi marcado por instabilidade consequentemente com predomiacutenio do
monasticismo anti-comunitaacuterio com foco em ascetas individuais e itinerantes Estas
fundaccedilotildees monaacutesticas eram efecircmeras e sumiam assim que o fundador morria Os disciacutepulos
se juntavam em torno de uma pessoa e natildeo em torno de uma instituiccedilatildeo As comunidades
poderiam ter alguma propriedade mas eram relativamente independentes
As comunidades sentiam o impacto das invasotildees no sul da Itaacutelia que se sucederam a
partir da chegada dos lombardos no seacuteculo VI Lombardos sarracenos e bizantinos
disputaram a regiatildeo durante os seacuteculos anteriores agrave chegada dos normandos promovendo
instabilidade para as casas monaacutesticas O monasteacuterio de Monte Cassino pode ser um
exemplo neste caso A casa foi fundada na primeira metade do seacuteculo VI mas abandonada
em 581 durante as invasotildees lombardas Em 718 foi novamente povoada ateacute que em 883 foi
capturada pelos sarracenos Seus monges fugiram para a Campanha e parecem ter retornado
apenas algumas deacutecadas depois O periacuteodo das invasotildees era marcado por saques e violecircncias
contras as casas estabelecidas Em funccedilatildeo disso predominava no Sul o monasticismo
itinerante em torno de ascetas carismaacuteticos Quando a situaccedilatildeo poliacutetica ganhava alguma
estabilidade os novos poderes lombardos ou bizantinos imprimiam nas casas o caraacuteter
descentralizado da regiatildeo Os priacutencipes ou duques patrocinavam a reconstruccedilatildeo das casas
monaacutesticas mas sem organizaccedilatildeo ou centralizaccedilatildeo eclesiaacutestica Segundo Loud tanto o
400 Idem p 39 401 Idem p 40
122
papado quanto Bizacircncio tentaram controlar as casas e as igrejas do Sul com a criaccedilatildeo de
novos arcebispados gregos e latinos mas o resultado foi muito pequeno402
A maioria das fundaccedilotildees deste periacuteodo seguiam na teoria a Regra de Satildeo Bento
apesar das praacuteticas e costumes variarem consideravelmente Especialmente na Calaacutebria
havia uma grande presenccedila do monasticismo grego tanto na sua versatildeo cenobiacutetica quanto
na eremita
Apoacutes a consolidaccedilatildeo da conquista normanda os novos condes e duques logo se
tornaram tambeacutem patronos dos monasteacuterios gregos e latinos403 Em linhas gerais eles se
envolviam mais no patrociacutenio de casas monaacutesticas jaacute presentes na regiatildeo do que fundando
casas rivais Mesmo assim numerosas casas foram criadas pelos novos governantes Dos
cerca de 20 monasteacuterios gregos surgidos durante o governo do conde Rogeacuterio I ele esteve
pessoalmente envolvido em 14 deles404
Ateacute cerca de 1150 os maiores monasteacuterios do sul da Itaacutelia eram todos de rito
beneditino Monte Cassino Cava Venosa Lipari e Catania405 Segundo Loud ldquoa conquista
normanda sem duacutevida beneficiou o monasticismo beneditinordquo406 que ganhou a proteccedilatildeo dos
novos governantes expandiu suas congregaccedilotildees adquiriu novas propriedades e aumentou a
aacuterea geograacutefica de seus domiacutenios Montecassino liderou o processo de crescimento Durante
o periacuteodo de 1058-1105 este monasteacuterio recebeu 134 igrejas tanto por dote quanto pela
compra de igrejas subordinadas407 A forte criacutetica contra a igreja privada apesar de natildeo ter
eliminado completamente o fenocircmeno incentivou muitas transferecircncias de igrejas das matildeos
de leigos para instituiccedilotildees monaacutesticas
A conquista normanda poderia ter aberto o monasticismo meridional italiano para
influecircncias externas mas isso se deu de forma muito lenta Somente uma casa cluniesense
foi fundada na ilha da Siciacutelia durante o seacuteculo XII talvez sob o iacutempeto de Elvira a esposa
de Rogeacuterio II cujo pai Alfonso VI de Castela era um patrono do movimento de Cluny408
Outros novos movimentos religiosos tambeacutem natildeo tiveram impacto significativo no sul da
Itaacutelia antes do final do seacuteculo XII O conde Rogeacuterio I fundou uma casa Agostiniana em
402 LOUD G The Latin Church in the Norman Italy op cit p 35 403 MORTON op cit p 45 404 Idem p 50 405 Idem p 56 406 LOUD Graham H The Latin Church in the Norman Italy op cit p 430 Este historiador acrescenta ldquoas
pequenas casas independentes tendiam a ser absorvidas pelas congregaccedilotildees das grandes casas beneditinas e
novas fundaccedilotildees observavam a Regra de Satildeo Benedito desde o seu iniacuteciordquo Idem p 470 407 Idem p 434 408 Idem p 484
123
Bagnara sul da Calaacutebria em 1085 Posteriormente em 1090 convidou Bruno de Cologne
fundador da ordem Cartusiana para fundar uma comunidade na mesma regiatildeo em 1090
Comparado com o norte da Europa entretanto o nuacutemero destas casas sob o domiacutenio
normando era muito pequeno
Neste mesmo sentido se deu a chegada dos Cistercienses O primeiro monasteacuterio da
Ordem de Cister na regiatildeo foi Santa Maria Sambucina perto de Cosenza Calabria terra
natal de Joaquim de Fiore pouco antes de 1145409 Outro monasteacuterio cisterciense foi
estabelecido na Siciacutelia em Prizzi em 1155 mas como seu fundador esteve envolvido na
morte do primeiro ministro Maio de Bari isto tirou a possibilidade de que esta casa tivesse
progresso dentro do reino A proacutexima casa cisterciense fundada foi Santa Maria de Ferraria
na diocese de Teano principado de Caacutepua em 1171 como um priorado de Fossanova e se
tornou abadia de fato em 1184 Em 1188 o arcebispo Walter de Palermo converteu um
monasteacuterio grego na Calaacutebria que estava com dificuldades para recrutar novos membros
em uma casa da Ordem Em 1191 uma abadia cisterciense foi fundada em Palermo pelo
arcebispo Mateus mas esta ficou em dificuldades apoacutes a consagraccedilatildeo de Henrique VI jaacute
que foi organizada por algueacutem contraacuterio agrave chegada dos Hohenstaufen Com isso o imperador
entregou a casa agrave ordem dos Cavaleiros Teutocircnicos em 1197
Assim ainda em 1200 natildeo havia mais do que 13 abadias da ordem cisterciense no
reino da Siciacutelia em grande parte inseridas no movimento Cisterciense na uacuteltima deacutecada A
maioria destas fundaccedilotildees se deram por conversatildeo de casas jaacute estabelecidas jaacute que para
fundar uma casa nova era preciso o envio pela casa-matildee de pelo menos doze monges410 A
dificuldade que Joaquim teve para inserir o monasteacuterio de Corazzo na Ordem Cisterciense
parece indicar a forma lenta como a ordem se desenvolvia na Itaacutelia meridional dentro do
seacuteculo XII O monasteacuterio do qual ele fora abade entre 1177 e 1186 possivelmente jaacute seguia
os costumes de Cister antes mesmo de Joaquim ingressar na casa Enquanto abade ele fez
vaacuterios esforccedilos para concluir o processo de filiaccedilatildeo Para tanto era necessaacuterio que fosse
recebido por uma abadia que lhe servisse como casa-matildee Joaquim tentou essa filiaccedilatildeo com
duas abadias cistercienses e natildeo obteve sucesso Sambucina e Casamari A filiaccedilatildeo soacute se
completou quando a abadia de Fossanova uma das principais casas cistercienses do territoacuterio
papal recebeu Corazzo como casa-filha em 1188411
409 Idem p 486 410 Idem p 489 411 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx
124
A Ordem de Joaquim a Florense nasceu sob a inspiraccedilatildeo de Cister aprovada pelo
papa Celestino III em 1196 A Regra da nova ordem possivelmente era uma adaptaccedilatildeo
daquela que o abade jaacute seguia em Corazzo412 A Ordem Florense comeccedilou a se expandir
rapidamente depois de 1195 pelo menos ateacute o seacuteculo seguinte quando veio a estagnar413
Ela chegou a ter 60 casas mas 300 anos depois em 1505 a maioria dos membros se uniu
aos Cistercienses enquanto outros se juntaram aos Cartusianos ou Dominicanos414 De
qualquer forma seraacute no interior do movimento franciscano que Joaquim encontraraacute seus
principais seguidores
Ateacute o fim do periacuteodo normando o Reino da Siciacutelia manifestou um monasticismo
predominantemente beneditino com grandes casas dominando a regiatildeo continental Elas jaacute
existiam antes da chegada dos normandos poreacutem foram grandemente beneficiadas por eles
Elas conviviam ao lado de outros tipos de inspiraccedilatildeo ou movimentos religiosos como os
monasteacuterios gregos e os movimentos eremitas com seu ascetismo e desejo de reclusatildeo
Estes uacuteltimos em especial eram de curta duraccedilatildeo e logo eram inseridos nas tradiccedilotildees
beneditinas ou basilianas Apenas no final do seacuteculo XII as novas ordens religiosas
especialmente os cistercienses conseguiram ter um papel predominante na sociedade iacutetalo-
meridional
57 Resumo
Este capiacutetulo demonstrou o caraacuteter culturalmente plural do Reino da Siciacutelia espaccedilo
de convivecircncias trocas relacionamentos e conflitos entre normandos latinos gregos e
muccedilulmanos Esta sociedade viabilizou a manifestaccedilatildeo de praacuteticas sociais e religiosas de
uma forma rica com a presenccedila de igrejas gregas e latinas e monasticismos beneditinos e
basilianos frequentemente lado a lado O seacuteculo XII foi tambeacutem o periacuteodo em que a cuacuteria
romana expandiu seu controle sobre as igrejas e comunidades da Itaacutelia meridional a partir
de acordos com governantes normandos No fim do seacuteculo entretanto o poder sairia das
matildeos normandas para cair sob o controle da dinastia germacircnica Hohenstaufen Essa
412 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n
1 p 217-240 2004 p 219 413 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der
Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98 414 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5
125
conjuntura de instabilidade social provocada pela transiccedilatildeo poliacutetica acabaraacute transparecendo
no Expositio in Apocalypsim
VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA
DE JOAQUIM
Enquanto consomem textos leitores criam sentidos inventam significados Mas a
forma muacuteltipla como Joaquim fez isso produziu na historiografia curiosas avaliaccedilotildees O
historiador italiano Ernesto Buonaiuti descreveu a metodologia do abade de ldquoorgia
simboacutelicardquo415 A pesquisadora inglesa Marjorie Reeves resumiu sua obra como resultado de
uma ldquoimaginaccedilatildeo caleidoscoacutepicardquo em funccedilatildeo do enlace iacutentimo entre texto e imagem416 O
cardeal francecircs Henri de Lubac historiador da exegese medieval definiu seu pensamento
como ldquodesorbitadordquo pois gerava sem cessar siacutembolos e tipos que se entrelaccedilavam
cruzavam e harmonizavam entre si417 Este capiacutetulo descreveraacute as tais formas de leitura de
Joaquim e sua metodologia hermenecircutica em confronto com a tradiccedilatildeo exegeacutetica e com
padrotildees de leitura encontrados especialmente no chamado novo monaquismo418
61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo
Jean Leclercq estudioso francecircs da cultura monaacutestica419 sintetizou os usos da Biacuteblia
nas diversas esferas sociais e religiosas ocidentais entre Gregoacuterio Magno e o seacuteculo XII
sugerindo que era ela utilizada para auto-instruccedilatildeo e para o ensino puacuteblico manual para
catequeze livro base da adoraccedilatildeo puacuteblica e privada (gerando tanto a liturgia da comunidade
quando a piedade individual) fonte de material para a pregaccedilatildeo a arte e a iconografia
415 Citado por DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling
Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 47 416 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976 p
8 417 DE LUBAC La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 47 418 O termo ldquonovo monaquismordquo eacute aqui usado para fazer um contraponto ao monaquismo do tipo beneditino
(Monges Negros) Cf VAUCHEZ Andreacute A espiritualidade na Idade Meacutedia ocidental (seacuteculos VIII a XIII)
Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 p 86 LOGAN F Donald A history of the Church in the Middle
Ages London Routledge 2002 p 136-145 LAWRENCE C H El monacato medieval formas de vida
religiosa en Europa occidental durante la Edad Media Madrid Editorial Gredos 1989 p 234-239 419 Sua obra mais significativa neste campo eacute LECLERCQ Jean The love of learning and the desire for God
A study of monastic culture New York Fordham University Press 1961
127
Segundo Leclercq apesar destes usos amplos os principais inteacuterpretes das Escrituras cristatildes
eram encontrados no monasticismo420
Eacute certo que as casas monaacutesticas poderiam receber monges natildeo-letrados mas a
vivecircncia no seu interior requeria certo envolvimento com a cultura escrita Afinal eles
precisavam ler ou cantar na liturgia421 Aleacutem destas praacuteticas outras se somariam como o
manuseio a preservaccedilatildeo e a ilustraccedilatildeo de manuscritos Isso fazia do monasteacuterio um lugar
privilegiado para o desenvolvimento da leitura e interpretaccedilatildeo da Biacuteblia
Ainda segundo o estudioso francecircs no interior dos muros monaacutesticos os monges
imprimiam na praacutetica da leitura biacuteblica um traccedilo muito proacuteprio da clausura Sem grandes
controveacutersias teoloacutegicas quando comparado com os tempos patriacutesticos e com a
efervescecircncia intelectual da escolaacutestica apenas comeccedilando a tendecircncia geral era usar a
leitura biacuteblica como ferramenta da vida contemplativa422 O professor Reventlow
acompanhou Leclercq neste sentido generalizando que o objetivo dos leitores da Biacuteblia
nestes espaccedilos ateacute o seacuteculo XI seria meditar sobre o texto promover a adoraccedilatildeo e fomentar
a contemplaccedilatildeo423
Natildeo muito diferente do francecircs Leclercq e do alematildeo Reventlow o historiador
italiano Ambrogio Piazzoni tambeacutem entende a exegese monaacutestica como um modo particular
de interpretar a Escritura na Idade Meacutedia O professor da Universitagrave degli Studi della Tuscia
entretanto argumenta em prol de uma inflexatildeo significativa dos estudos biacuteblicos no final do
seacuteculo XI e durante o seacuteculo XII caracterizada por uma nova sensibilidade na leitura e no
uso dos textos424 Perspectiva semelhante levou de Lubac a intitular este revigoramento
biacuteblico de ldquouma nova primavera da exegeserdquo425 muito em funccedilatildeo dos representantes do
420 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard In LAMPE G W H (ed) The Cambridge
History of the Bible The West from the Fathers to the Reformation Cambridge Cambridge University Press
1969 p 183-197 p 184 421 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in
Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 3
Sobre este tema conferir uma antiga exortaccedilatildeo a este respeito presente na regra de Ferreol (553-581) bispo de
Uzegrave na Gaacutelia em PARKES Malcom La alta Edad Media In CAVALLO Guglielmo CHARTIER Roger
(eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 153-178 p 157 ldquoaquele que
deseja se chamar monge natildeo pode se permitir ficar na ignoracircncia das letrasrdquo (ldquoOmnis qui nomem vult monachi
vidicare litteras ei ignorare non liceatrdquo) 422 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard op cit p 184 423 REVENTLOW Henning Graf History of Biblical Interpretation From Late Antiquity to the End of the
Middle Ages Atlanta Society of Biblical Literature 2009 3 v V 2 p 172 424 PIAZZONI Ambrogio M Lesegesi neomonastica In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio
(eds) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 217-237 p 218 425 DE LUBAC Henri Medieval exegesis the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans
Publishing Company 2000 2 v V II p 151
128
chamado neomonasticismo destacadamente os cistercienses mas sem esquecer tambeacutem
alguns expoentes do ldquovelho monaquismordquo426
A praacutetica da leitura biacuteblica era um dos pilares da vida do monge Para um religioso
a Biacuteblia era nos termos de Piazzoni o livro de ldquocada dia todo o dia e muitas vezes ao
diardquo427 Ele percorria suas paacuteginas escutava sua leitura lia-a sozinho cantava-a com seus
irmatildeos na liturgia
A lectio428 monaacutestica poderia ser ilustrada pelo testemunho do cartusiano Guigo II
abade entre 1174 e 1180 da casa-matildee da Ordem dos Cartuxos em Saint-Pierre-de-
Chartreuse na Franccedila Segundo este abade o desenvolvimento espiritual comeccedila com a
lectio passa pela meditatio conduz agrave oratio e conclui com a contemplatio Eacute uma escala
ascendente429 Neste mesmo sentido registrava ainda um opuacutesculo anocircnimo destinado aos
novos monges ldquoQuando ler procure o sabor e natildeo o saberrdquo (ldquoSi ad legendum accedat non
quaerat scientiam sed saporemrdquo) E acrescentava ldquono momento da leitura poderaacute
contemplar e orarrdquo (ldquoin ipsa lectione poterit contemplari et orarerdquo)430 Desta forma a lectio
entrava na vida do monge como uma forma de oraccedilatildeo ou culto
Esta exegese monaacutestica se fundava sobre as bases de um relacionamento contiacutenuo
com o texto sagrado de uma memoacuteria impregnada das Escrituras Como resumiu ainda
Piazzoni era uma memoacuteria visual de palavras escritas muscular de palavras pronunciadas e
auditiva de palavras escutadas431 O aspecto visual nascia tanto das leituras quanto das
representaccedilotildees da Biacuteblia em imagens espalhadas por quadros esculturas e iacutecones nas
paredes nas colunas e nos tetos das construccedilotildees O aspecto muscular se desenvolvia por
causa da leitura em voz alta ao articular-se as palavras lidas com a boca432 A leitura era
murmurada mesmo se feita sozinha o que gerou a expressatildeo ruminatio433 Como
426 PIAZZONI op cit p 218 427 Idem p 219 428 Leitura e explicaccedilatildeo das Escrituras Cf BLAISE Albert Lexicon Latinitatis Medii Aevi Turnholti
Typografhi Brepols 1975 p 528 429 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 221 430 Idem p 222 431 Idem 432 Ao menos para a alta Idade Meacutedia cf PARKES op cit p 160 Segundo Hamesse essa praacutetica de leitura
sofreu uma profunda transformaccedilatildeo no seacuteculo XII em funccedilatildeo de novos padrotildees exercitados nas escolas ou
universidades Cf HAMESSE Jacqueline El modelo escolastico de la lectura In CAVALLO Guglielmo
CHARTIER Roger (eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 179-210
p 207 Entretanto o argumento de Hamesse natildeo impede a perspectiva de que estas ldquonovidadesrdquo natildeo alteraram
a ruminatio entre os monges 433 O termo ldquoruminatiordquo vem do verbo ldquoruminarerdquo que expressa a ideia de ruminaccedilatildeo girar na mente accedilatildeo
cotidiana Cf LEWIS Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p
1604 Albert Blaise entatildeo preferiu traduzir como ldquocantar sozinhordquo Cf BLAISE op cit p 806
129
consequecircncia tambeacutem da memoacuteria muscular desenvolvia-se a memoacuteria auditiva enquanto
ouvia a proacutepria voz ou em funccedilatildeo de outros processos em que o monge escutava a leitura
Biacuteblica implementados na liturgia na pregaccedilatildeo ou durante as refeiccedilotildees
A praacutetica de ruminar a Biacuteblia de ldquomastigaacute-lardquo todo o dia e o dia todo criava o
fenocircmeno da reminiscecircncia Assim para explicar uma passagem da Biacuteblia o monge fazia
uso de outra passagem que em sua mente se associava remanejando suas frases e
construindo novos textos Neste sentido Piazzoni argumenta que certo desprendimento em
relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo eacute um significativo traccedilo da exegese monaacutestica e neomonaacutestica do seacuteculo
XII Guilherme (1085- 1148) abade de Sant-Thierry escreveu ldquoA escritura deve ser lida no
espiacuterito em que foi gerada Neste espiacuterito deve ser compreendidardquo434 Segundo ele o mesmo
Espiacuterito que inspirou os textos estaria com aqueles que entatildeo os interpretavam
Ruperto (1075-1130) abade na cidade germacircnica de Deutz representante do
monasticismo beneditino insistia que a interpretaccedilatildeo da Biacuteblia depende de uma
compreensatildeo especial que eacute dom do Espiacuterito Santo dom esse similar agravequele que ele deu aos
apoacutestolos para que pudessem compreender o Antigo Testamento Quem recebe tal dom de
interpretaccedilatildeo tem o dever de expor o que percebe na Biacuteblia Ele afirmou assim a existecircncia
de um ldquodom da exegeserdquo nos moldes dos antigos dons do apostolado e profecia435 o que
promovia a autonomia do inteacuterprete em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde
Neste sentido tambeacutem o cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153) que insistia
que tudo na Biacuteblia tinha um sentido para o leitor e nenhum detalhe dos textos biacuteblicos
poderia ser negligenciado Como os textos tinham vaacuterios sentidos Deus o mestre das
Escrituras ajudaria os leitores a compreender da mesma forma como ajudou os autores a
escrever O resultado desta leitura sagrada eacute entatildeo um cacircntico de amor (carmen spiritus) um
ato lituacutergico Cada leitor da Biacuteblia poderia ser inspirado quase como os proacuteprios autores
originais o que justificaria a diversidade de interpretaccedilatildeo dos textos sagrados436
A exegese praticada por representantes tanto do antigo monasticismo quanto das
novas casas monaacutesticas ocidentais no seacuteculo XII conhecia os sentidos tradicionais praticados
desde Oriacutegenes (185-254) histoacuterico alegoacuterico tropoloacutegico e anagoacutegico437 Este sistema de
alegorizaccedilatildeo foi desenvolvido de acordo com o qual quatro significados deveriam ser
434 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 223 435 Idem p 228 436 Idem p 229 437 Uma anaacutelise diacrocircnica dos quatro sentidos pode ser encontrada em DE LUBAC Henri Medieval exegesis
the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2000 2 v V I p 15-
267
130
procurados em cada texto biacuteblico O nuacutemero de sentidos variava entre os autores Alguns
trabalhavam com dois sentidos outros com ateacute sete Mas o nuacutemero mais frequentemente
usado era quatro438 Um pequeno diacutestico presente na obra Rotulus pugillaris do dominicano
Agostinho de Dacia em 1260 ilustra os quatro sentidos ldquoA letra nos mostra os eventos a
alegoria nos mostra a feacute o significado moral nos ensina a agir a anagogia nos indica para
onde vamosrdquo439
Os monges dos tempos reformistas em funccedilatildeo do anseio pela contemplaccedilatildeo tinham
o sentido tropoloacutegicomoral como alvo maior A letra deveria ser superada em prol de um
sentido mais elevado de compreensatildeo das Escrituras O resultado eacute uma leitura biacuteblica
interiorizante ldquoespiritualrdquo que prosperava dentro do monasteacuterio Do lado de fora dos seus
muros entretanto outro padratildeo de hermenecircutica comeccedilava a se fortalecer em que se
buscava natildeo mais a meditatio mas a disputatio Esta forma extra claustrum de interpretaccedilatildeo
biacuteblica feita por pessoas ldquoque por meios escolaacutesticos se enchem de conhecimentordquo (ldquoqui
scholastica inflantur scientiardquo)440 aborrecia alguns monges entre eles o autor do Expositio
in Apocalypsim
62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo
No iniacutecio do Expositio Joaquim resumiu sua maneira de relacionar Biacuteblia e histoacuteria
O primeiro dos trecircs status dos quais noacutes falamos era no tempo da Lei
quando o povo do Senhor serviu como uma crianccedila pequena por um tempo
debaixo dos elementos (rudimentos) do mundo Eles natildeo estavam
habilitados ainda a alcanccedilar a liberdade do Espiacuterito ateacute que venha de quem
se disse ldquoSe o Filho libertar vocecircs vocecircs verdadeiramente seratildeo livresrdquo
(Joatildeo 866) O segundo status estava sob o Evangelho e permaneceu ateacute o
presente com liberdade em comparaccedilatildeo com o passado mas natildeo com
liberdade em comparaccedilatildeo com o futuro Porque o Apoacutestolo disse ldquoAgora
noacutes conhecemos em parte e profetizamos em parte o que eacute perfeito tiver
vindo o que eacute em parte passaraacuterdquo (1Coriacutentios 1312) E em outro lugar
ldquoOnde o Espiacuterito do Senhor estaacute aqui haacute liberdaderdquo (2Coriacutentios 317) Por
conseguinte o terceiro status viraacute ao se aproximar o fim do mundo natildeo
distante sob o veacuteu da carta mas na plenitude do Espiacuterito quando apoacutes a
destruiccedilatildeo e cancelamento do falso evangelho do Filho da Perdiccedilatildeo e seus
profetas aqueles que ensinaratildeo a muitos sobre justiccedila seratildeo como o
438 TRACY Robert TRACY David A short history of the interpretation of the Bible Minneapolis Fortress
Press 1984 p 136-145 439 ldquoLittera gesta docet quid credas allegoria Moralis quid agas quo tendas anagogiardquo Citado a partir de
DE LUBAC Henri Medieval exegesishellip v I op cit 1 440 Expressatildeo de Joaquim de Fiore no Tractatus Super Quatuor Evangelia citado a partir de DE LUBAC La
posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 16
131
esplendor do firmamento e como as estrelas para sempre (Expositio in
Apocalypsim 5r-v)441
Nesta mesma passagem algumas linhas agrave frente o abade faz referecircncia a uma certa
forma de ler e interpretar a Biacuteblia ldquoA carta do Primeiro Testamento parece por certa
propriedade de semelhanccedila pertencer ao Pai A carta do Novo Testamento pertence ao Filho
Entatildeo a compreensatildeo espiritual que procede de ambos pertence ao Espiacuterito Santordquo Mas que
hermenecircutica ldquoespiritualrdquo eacute essa que Joaquim chamou de ldquonovo tipo de exposiccedilatildeordquo (ldquonovo
saltem generi exponendirdquo)442 Ela seria ldquonovardquo em que sentido
A insistecircncia do abade em chamar sua forma de exponere a Biacuteblia de ldquonovardquo indica
algum tipo de insatisfaccedilatildeo com as metodologias exegeacuteticas que ele encontrou nos espaccedilos
religiosos Isso pode ter relaccedilatildeo com sua ansiedade apocaliacuteptica Apoacutes uma peregrinaccedilatildeo agrave
Palestina ele possui a convicccedilatildeo de que a humanidade estaacute se aproximando de um estaacutegio
histoacuterico decisivo Ele deseja compreender estes sinais dos tempos e procura ler os textos
biacuteblicos agrave procura de uma explicaccedilatildeo religiosa Contudo as ferramentas exegeacuteticas
disponiacuteveis natildeo lhe satisfazem ou pelo menos lhe parecem ineficientes para interpretar os
textos sagrados e encontrar algum sentido para a conjuntura histoacuterica dos seus dias Seria
preciso entatildeo elaborar uma metodologia ldquonovardquo para interpretar a Biacuteblia e a histoacuteria443
Essa perspectiva de ldquonovidaderdquo em Joaquim tambeacutem teria relaccedilatildeo com sua
compreensatildeo da natureza da exegese Como Ruperto de Deutz jaacute anteriormente
mencionado o abade parece falar de um ldquodom da exegeserdquo uma capacitaccedilatildeo sobrenatural
necessaacuteria para apreender o que natildeo estaria disponiacutevel para a compreensatildeo de todos As
passagens da Biacuteblia natildeo conteriam apenas palavras e frases acessiacuteveis de imediato a qualquer
leitor mas igualmente misteacuterios (mysteria) e segredos (secreta) especialmente relacionados
com os propoacutesitos divinos quanto agrave histoacuteria humana
Para Joaquim o Apocalipse de Joatildeo narraria a histoacuteria de como Deus entregou um
livro para o Cordeiro fechado com sete selos (Apocalipse 51-14) Esta narrativa biacuteblica
indicaria que o sentido dos personagens e dos eventos da histoacuteria humana estatildeo encobertos
A revelaccedilatildeo se encontraria inteiramente nas matildeos do Cristo do Apocalipse Estava completa
441 Traduccedilatildeo a partir de MC GINN Bernard Visions of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages
New York Columbia University Press 1979 p 133-134 442 O verbo ldquoexponerordquo pode ser traduzido como ldquorevelaccedilatildeordquo ldquoexposiccedilatildeordquo ldquoproduccedilatildeordquo Cf BLAISE op cit
p 363 443 REVENTLOW op cit p 173 tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval a compreensatildeo
espiritual de Joaquim de Fiore Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 35 p 99-118 2012 p 101
132
mas escondida tornando-se disponiacutevel apenas com ajuda divina Sem este amparo os textos
biacuteblicos seriam hermeacuteticos pelo menos no que tange ao sentido ldquoespiritualrdquo jaacute que sentidos
inferiores ainda poderiam ser acessados pela razatildeo humana (como os escolaacutesticos ldquoinchados
de ciecircnciardquo que ele critica) Em outras palavras para o abade algumas coisas estatildeo
encobertas outras estatildeo escondidas algumas pessoas podem acessar as coisas encobertas
outras somente compreendem a superfiacutecie dos textos sagrados
Entre as coisas escondidas na Biacuteblia estatildeo os eventos e tribulaccedilotildees do final dos
tempos os falsos profetas os anticristos e a materializaccedilatildeo do reino divino na histoacuteria Deus
por meio de Cristo teria disponibilizado uma ldquocompreensatildeo espiritualrdquo a algumas pessoas
permitindo a elas adentrarem as profundezas das Escrituras e alcanccedilarem os segredos e
misteacuterios Joaquim faz assim uma distinccedilatildeo entre a capacidade de ler as Escrituras e a de
penetrar nos misteacuterios sagrados por meio de uma diferenciaccedilatildeo entre pessoas naturais (viri
animales) e pessoas espirituais (viri spirituales) Os misteacuterios da Escritura seriam
conhecidos apenas das pessoas espirituais jaacute que as naturais natildeo os podem perceber A
praacutetica da interpretaccedilatildeo biacuteblica ldquoespiritualrdquo consequentemente se daria pela obtenccedilatildeo da
ldquointeligecircnciardquo necessaacuteria por meio da iluminaccedilatildeo do Espirito Santo que permitiria aos assim
escolhidos (electi) duas coisas a capacidade de discernir a Biacuteblia e a habilidade de entender
o sentido da histoacuteria especialmente os ldquosinais dos temposrdquo444
Joaquim se apoiava em ideias paulinas como a oposiccedilatildeo entre compreensatildeo natural
e espiritual (1Coriacutentios 26-16) e a indicaccedilatildeo de uma forma infantil em oposiccedilatildeo agrave uma
forma adulta de entender as coisas de Deus (1Coriacutentios 139-12)445 Como consequecircncia ele
afirma pelo menos dois tipos de interpretaccedilatildeo uma que trabalha com a letra (secundum
litteram) e outra que se move para um niacutevel mais profundo (secundum spiritum)
A partir destes dois procedimentos baacutesicos (segundo a letra e segundo o espiacuterito) o
abade daacute mais um passo na estruturaccedilatildeo do seu meacutetodo relacionando a lectio com a Trinitas
Desta reflexatildeo trinitaacuteria surgiu o conjunto das ferramentas do seu sistema hermenecircutico
composto por trecircs partes a concordia equivalente agrave leitura segundo a letra e a alegoria e a
444 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 19 445 Esta segunda passagem de Paulo eacute uma das preferidas de Joaquim retornando constantemente em suas
explicaccedilotildees metodoloacutegicas ldquoPorque em parte conhecemos e em parte profetizamos Quando poreacutem vier o
que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino falava como menino sentia
como menino pensava como menino quando cheguei a ser homem desisti das coisas proacuteprias de menino
Porque agora vemos como em espelho obscuramente entatildeo veremos face a face Agora conheccedilo em parte
entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Coriacutentios 139-12)
133
tipologia como leituras espirituais446 Jaacute que a Trindade eacute formada por trecircs pessoas divinas
que atuam como se fossem uma soacute as ferramentas exegeacuteticas de Joaquim tambeacutem deveriam
operar como se fossem apenas uma Somadas elas resultam na denominada ldquonova forma de
exposiccedilatildeordquo
Mas seria realmente ldquonovardquo esta metodologia exegeacutetico-hermenecircutica A resposta
da historiografia eacute dupla neste caso A tendecircncia eacute afirmar algum tipo de viacutenculo tradicional
ao mesmo tempo em que se indica em que sentido seu caminho poderia ser novo como o
professor Rossatto ao considerar que Joaquim teria partido da tradiccedilatildeo por assumir e
revigorar antigos meacutetodos de interpretaccedilatildeo poreacutem simultaneamente proposto um modo
ineacutedito de compreensatildeo no caso a concordia447 Isso significa dizer que a primeira parte do
sistema eacute nova enquanto a segunda jaacute era longamente utilizada pelos inteacuterpretes da Biacuteblia
A historiadora italiana Tagliapietra explica esta relaccedilatildeo entre novidade e tradiccedilatildeo
com o recurso aos jaacute mencionados quatro sentidos da exegese medieval O sentido literal foi
transformado por Joaquim na sua concordia A alegoria foi multiplicada pelo abade em cinco
tipos diferentes (histoacuterica moral tropoloacutegica contemplativa e anagoacutegica) A estes o abade
acrescentou o antigo meacutetodo da tipologia subdivido em sete formas diferentes Como
resultado os sentidos tradicionais se transformaram nas matildeos do abade em doze
possibilidades de significaccedilatildeo448 Contudo ele natildeo os chama todos do mesmo jeito Apenas
trecircs satildeo denominados ldquosentidosrdquo a letra (concordia) a alegoria (allegoricus intellectus) e a
tipologia (intelligentia typica)449 As demais divisotildees satildeo chamadas de espeacutecies (species)
inteligecircncias espirituais (inteligentiae spirituales) ou interpretaccedilatildeo espiritual (mystica
interpretatio)
Assim em siacutentese o sistema hermenecircutico de Joaquim de Fiore se articula sobre trecircs
bases a exposiccedilatildeo dos diversos tipos de alegoria dos diversos tipos de tipologia e a
concordia que funciona como o elemento que coloca o sistema em movimento450
446 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 101 447 Idem p 100 448 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 26 449 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 44 450 SANTI op cit p 261
134
63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde
A noccedilatildeo fundamental do sistema exegeacutetico de Joaquim eacute chamada por ele de
concordia Blaise no seu Lexicon Latinitatis Medi Aevi traduz o substantivo feminino
concordia como entre outras acepccedilotildees ldquoato de organizarrdquo e o verbo concordiare como
ldquofazer acordordquo451 Outro uso muito comum aparece em Suetocircnio (69-141) historiador dos
doze ceacutesares que apresenta uma divindade chamada Concordia a quem os romanos
dedicavam cultos e festas apoacutes distuacuterbios beacutelicos especialmente no final de uma guerra civil
(De vita caesarum III 20)452 Como antocircnimo de discordia o termo era relativamente
frequente tanto na prosa quanto na poesia latina
Mas como as palavras natildeo satildeo estaacuteticas e podem variar de sentido com o tempo e a
situaccedilatildeo Tagliapietra analisou as ocorrecircncias de concordia em Joaquim de Fiore e reuniu
quatro possibilidades de significado harmonia semelhanccedila correlaccedilatildeo e compensaccedilatildeo A
ldquoharmoniardquo poderia lembrar ao leitor moderno o sentido de sinopse como exemplificado
pelo Diatessaron de Taciano (120-180) que resumiu quatro evangelhos de Jesus em uma
uacutenica narrativa Jaacute ldquosemelhanccedilardquo tem relaccedilatildeo com paralelismo e aparece no tiacutetulo da obra
mais conhecida de Joaquim (Liber de Concordia Novi ac Veteris Testamenti) que comeccedila
com a expressatildeo ldquoIncipit praephatio libri concordantiarumrdquo (1r) O terceiro significado
ldquocorrelaccedilatildeordquo tem ligaccedilatildeo com periodizaccedilatildeo da histoacuteria uma espeacutecie de lei estrutural do
curso do tempo ou uma filosofia da histoacuteria O quarto significado ldquocompensaccedilatildeordquo indica
que cada pessoa cada evento da histoacuteria reverbera no futuro segundo uma reserva de
sentido fazendo com que o estudo do passado se torne tambeacutem um exerciacutecio de vaticiacutenio453
O proacuteprio Joaquim deu a sua definiccedilatildeo do termo concordia ldquouma similaridade de
igual proporccedilatildeo entre o Novo e o Antigo Testamentos igual eu digo quanto ao nuacutemero natildeo
quanto a dignidaderdquo454 (Liber de Concordia 7rb) Ele a ilustrou com a imagem de uma
estrada contiacutenua que liga uma cidade a um deserto cujos viajantes passam por vales e
montanhas Nos vales eles podem admirar a paisagem Nas montanhas eles conseguem ver
451 BLAISE op cit p 222 452 Esta eacute a referecircncia especiacutefica ldquoDedicavit et Concordiae aedem item Pollucis et Castoris suo fratrisque
nomine de manubiisrdquo Uma traduccedilatildeo seria Tibeacuterio ldquodedicou um templo agrave deusa Concordia e outro a Castor e
Polux em seu nome e em nome de seu irmatildeordquo Conferir uma ediccedilatildeo biliacutengue em SUETONIUS Lives of the
Caesars Cambridge Harvard University Press 1979 2 v V 1 p 322 Outra traduccedilatildeo para o inglecircs pode ser
encontrada em SUETONIUS Lives of the Caesars Oxford Oxford University Press 2000 p 109 453 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 21-25 454 ldquoConcordiam proprie esse dicimus similitudinem eque proportionis novi ac veteris testamenti eque dico
quo ad numerum non quo ad dignitatemrdquo
135
o que veio antes e o que vem depois Ele costumava usar tambeacutem duas imagens biacuteblicas para
explicar sua ferramenta metodoloacutegica os dois querubins que estavam sobre a tampa da arca
(Ecircxodo 2520)455 e as duas rodas da visatildeo de Ezequiel (Ezequiel 116)456 No primeiro caso
duas figuras angelicais estatildeo voltadas uma para a outra em cima da arca da alianccedila No
segundo caso duas rodas giram uma dentro da outra embaixo do trono-carruagem de Javeacute
A primeira imagem reforccedila o senso de paralelismo entre os dois testamentos (concordia
duorum testamentorum) jaacute que um se volta para o outro No caso da segunda imagem ela
desenvolve o sentido de correlaccedilatildeo entre os trecircs status (concordia trium statuum) ao apontar
para eventos que se desenvolvem dinamicamente na histoacuteria
Tanto no caso dos dois testamentos quanto no dos trecircs estados o meacutetodo da
concordia consiste entatildeo em encontrar posiccedilotildees semelhantes de pessoas e eventos dentro
de tempos (tempora ou status) diferentes e apontar em que sentido eles satildeo similares (em
caracteriacutesticas ou atos)457 Um exemplo poderia ser dado pelo caso do patriarca Jacoacute que
ocupa a mesma posiccedilatildeo dentro do primeiro status que o homem Jesus ocupa no segundo
Ocupando posiccedilotildees semelhantes no interior de seus respectivos status eles manifestam atos
espirituais parecidos e exercem papeis religiosos paralelos Entretanto natildeo satildeo iguais em
dignidade Eacute isso que significa ser ldquosimilar quanto a nuacutemerordquo e natildeo quanto a ldquodignidaderdquo
As pessoas ocupam as mesmas posiccedilotildees em suas proacuteprias geraccedilotildees e tecircm papel semelhante
mas natildeo possuem o mesmo status espiritual O homem Jesus foi maior em dignidade que
Jacoacute o que significa dizer que ele possuiacutea uma compreensatildeo espiritual maior e realizou obras
maiores458
Joaquim comeccedila o exerciacutecio de sua concordia por meio da distinccedilatildeo entre histoacuteria
geral e histoacuteria especial Segundo o abade
Toda a floresta de histoacuterias que ofusca o Antigo Testamento eacute dividida em
cinco partes das quais uma eacute geral e quatro satildeo especiais Porque haacute uma
roda que tem quatro faces Existe uma histoacuteria geral agrave qual quatro histoacuterias
especiais satildeo unidas A histoacuteria geral eacute aquela que comeccedila no iniacutecio do
mundo e caminha direto ateacute o livro de Esdras [] Existem quatro histoacuterias
especiais pequenas das quais a primeira eacute Joacute a segunda eacute Tobias a
terceira eacute Judite e a quarta eacute Ester Aquela eacute a roda Estas satildeo as faces
(Enchridion super Apocalypsim 2r-3r)459
455 ldquoOs querubins estenderatildeo as asas por cima cobrindo com elas o propiciatoacuterio estaratildeo eles de faces voltadas
uma para a outra olhando para o propiciatoacuteriordquo (Ecircxodo 2520) 456 ldquoO aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o berilo tinham as quatro a mesma aparecircncia
cujo aspecto e estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outrardquo (Ezequiel 116) 457 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip p 79 458 Idem 459 Traduccedilatildeo a partir da versatildeo italiana GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Traduzione e cura di
Andrea Tagliapietra Milano Feltrinelli 2008 p 133
136
O que ele chama de ldquohistoacuteria geralrdquo eacute uma grande narrativa presente no Antigo
Testamento que parte do livro de Gecircnesis e se estende ateacute a obra de Esdras Usando a
imagem das duas rodas concecircntricas de Ezequiel o abade denomina esta ldquohistoacuteria geralrdquo de
ldquoroda exteriorrdquo agrave qual estatildeo vinculadas quatro pequenas histoacuterias (denominadas ldquohistoacuterias
especiais) presentes em obras menores Joacute Tobias Judite e Ester As histoacuterias especiais se
vinculam agrave roda exterior como as ldquoluzesrdquo nas rodas da visatildeo ezequieacutelica460
A operaccedilatildeo da concordia encontrou esta mesma estrutura no Novo Testamento
Tambeacutem nele haacute uma histoacuteria geral e quatro histoacuterias especiais Joaquim identificou a
histoacuteria geral com o Apocalipse de Joatildeo enquanto as quatro especiais correspondem aos
quatro evangelhos canocircnicos Mateus Marcos Lucas e Joatildeo E se o Antigo Testamento
forma a roda exterior o Apocalipse corresponde agrave roda interior da visatildeo do profeta do exiacutelio
babilocircnico Como satildeo duas rodas concecircntricas ambas giram de forma paralela de tal
maneira que uma pessoa dotada da ldquointeligecircncia espiritualrdquo poderia perceber os eventos que
se repetem Voltando a uma imagem anterior a concordia eacute a estrada que liga as duas rodas
permitindo aos viajantes visualizar por meio de suas montanhas o que jaacute aconteceu e o que
estaacute por acontecer461
Sendo assim como insistiu o professor Emmett Randolph Daniel o que acontece na
concordia natildeo pode ser confundido nem com alegoria nem com tipologia Seu trabalho
precede as outras duas atividades hermenecircuticas do abade462 Este sentido ldquosegundo a letrardquo
era a percepccedilatildeo de narrativas biacuteblicas como uma descriccedilatildeo natildeo apenas do que teria
acontecido mas tambeacutem do que ainda aconteceria Por meio destas narrativas seria possiacutevel
discernir o passado o presente e futuro463 Natildeo haacute na concordia uma relaccedilatildeo horizontal entre
anuacutencio e realizaccedilatildeo como na tipologia ou vertical entre letra e espiacuterito como na alegoria464
O que haacute eacute um paralelismo histoacuterico dinacircmico e progressivo
460 Na visatildeo de Ezequiel aparentemente haviam luzes que brilhavam tanto na roda exterior quanto na interior
enquanto o trono de Deus se movia (Ezequiel 11-25) 461 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 78 462 Idem p 79 tambeacutem MC GINN Bernard Visions of the Endhellip op cit p 126-141 WEST ZIMDARS-
SARTZ op cit p 42 463 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard
K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-
88 79 464 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 106 DE LUBAC Henri La posteridad
espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 44
137
64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas
Durante um dos mais antigos exerciacutecios exegeacuteticos conhecidos de Joaquim presente
no primeiro sermatildeo do Praephatio super Apocalypsim datado para o iniacutecio da deacutecada de
1180 no periacuteodo em que ainda era abade de Corazzo apoacutes usar a concordia para apontar
paralelos entre as doze tribos de Israel e a histoacuteria da igreja ele afirma ldquoMas deixemos estas
coisas no invoacutelucro externo da noz para mostrar agora algo de sua casca de maneira que
num terceiro momento possamos extrair um viscoso alimentordquo465
Mais agrave frente apoacutes algumas frases ele retoma a imagem da noz ldquoEis que jaacute eacute viziacutevel
o nuacutecleo que estava encoberto pela casca aparece a verdadeira vida que os panos envolviam
no sepulcrordquo466 Desta vez ele faz alusatildeo ao sepultamento de Jesus e aos panos que
envolviam seu corpo467
As imagens das camadas da noz e do corpo enrolado pelos panos refletem o convite
do abade para ir aleacutem da concordia dos textos biacuteblicos coisa que ele colocou em praacutetica em
suas vaacuterias obras de exposiccedilatildeo biacuteblica (entre elas o Expositio in Apocalypsim) movendo-se
de uma compreensatildeo segundo a letra para justificar uma compreensatildeo segundo o espiacuterito (da
concordia para os princiacutepios espirituais)468
Neste processo contiacutenuo de aprofundamento na direccedilatildeo do ldquoviscoso alimento da
nozrdquo ele toma a alegoria469 e a subdivide em cinco princiacutepios alegoacutericos Por que cinco A
Trindade tambeacutem usada para justificar as trecircs partes de sua metodologia (concordia
alegoria e tipologia) agora eacute usada como base para as cinco subdivisotildees alegoacutericas
465 O sermatildeo eacute o Apocalipsis liber ultimus citado a partir de ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao
Apocalipse op cit p 460 466 Idem p 461 467 ldquoTomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lenccediloacuteis com os aromas como eacute de uso entre os judeus
na preparaccedilatildeo para o sepulcrordquo (Joatildeo 1940) 468 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 46 Estes princiacutepios espirituais satildeo derivados da operaccedilatildeo
alegoacuterica e tipoloacutegica Uma descriccedilatildeo das duas tradiccedilotildees pode ser encontrada em YOUNG Frances
Alexandrian and Antiochene Exegesis In HAUSER Alan J WATSON Duane F (eds) A history of biblical
interpretation The Ancient Period Grande Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2003 2 v V
1 p 334-354 469 Segundo Stefaniw este tipo de interpretaccedilatildeo concebia o texto como um meio de revelaccedilatildeo de misteacuterios
escondidos ldquopor traacutes das letrasrdquo Cf STEFANIW Blossom Reading Revelation Allegorical Exegesis in Late
Antique Alexandria Revue de lrsquohistoire des religions Paris n 2 p 231-251 2007 p 231-232 Ulleacuten distingue
alegoria como gecircnero literaacuterio como utilizado por Dante na obra ldquoDivina Comeacutediardquo de alegoria como forma
de interpretaccedilatildeo Aparentemente o primeiro fenocircmeno nasceu em consequecircncia do segundo que por sua vez
eacute tatildeo antigo quanto as primeiras interpretaccedilotildees dos eacutepicos de Homero Sua definiccedilatildeo de alegoria como meacutetodo
hermenecircutico eacute ldquouma forma sistemaacutetica de compreender o texto que se baseia em uma norma
intersubjetivamente determinadardquo Cf ULLEacuteN Magnus Dante in Paradise The End of Allegorical
Interpretation New Literary History Baltimore v 32 n 1 p 177-199 2001 p 183
138
Sua confissatildeo trinitaacuteria foi resumida por West e Zimdars-Swartz como ldquoDeus eacute um
Deus sem confusatildeo de pessoas e trecircs pessoas sem divisatildeo de substacircnciardquo470 Ele faz uma
distinccedilatildeo das trecircs Pessoas divinas baseadas em sua origem O Pai natildeo eacute gerado (ingenitus)
o Filho eacute gerado pelo Pai (genitus) e o Espiacuterito Santo procede de ambos (ab utroque
procedens) Associado com a origem das Pessoas da Trindade estaacute tambeacutem o relacionamento
entre elas expresso na forma como satildeo nomeados O Pai eacute assim chamado porque tem um
Filho igualmente o Filho porque tem um Pai jaacute o Espiacuterito eacute assim nominado porque
procede de ambos O abade entatildeo enumera as cinco possiacuteveis relaccedilotildees entre as Pessoas
divinas ligando cada uma com um tipo diferente de alegoria
ndash alegoria histoacuterica a relaccedilatildeo do Pai com o Filho afinal ele eacute Pai de um Filho
ndash alegoria moral a relaccedilatildeo do Filho com o Pai afinal ele eacute Filho de um Pai
ndash alegoria tropoloacutegica a relaccedilatildeo entre o Pai e o Filho com o Espiacuterito afinal este vem
de ambos
ndash alegoria contemplativa a relaccedilatildeo do Filho e do Espiacuterito com o Pai afinal ambos
satildeo enviados pela primeira Pessoa divina
ndash alegoria anagoacutegica a relaccedilatildeo das trecircs Pessoas com cada criatura afinal as trecircs satildeo
Deus e Criador471
Como jaacute indicamos Joaquim soacute denominava de ldquosentidosrdquo a concordia a alegoria e
a tipologia As subdivisotildees (tanto da alegoria quanto da tipologia) por sua vez ele as
denomina species ou intelligentia Assim a primeira species de alegoria eacute a historica
intelligentia ou compreensatildeo histoacuterica Apesar do nome ela natildeo corresponde agrave letra do
texto mas indica o significado de um evento ou figura histoacuterica como exemplo de uma
condiccedilatildeo espiritual Joaquim ilustrou esta species com as duas esposas de Abraatildeo A alegoria
histoacuterica veria em Sara a representaccedilatildeo de uma mulher livre enquanto Hagar representaria
uma escrava Este sentido alegoacuterico teria um caraacuteter mais cognoscitivo apesar de
implicitamente convidar agrave associaccedilatildeo com a esposa livre em vez da escrava
A alegoria moral (moralis intelligentia) indica que haacute uma semelhanccedila entre coisas
visiacuteveis e coisas invisiacuteveis que se exprime na forma de uma qualidade eacutetica Sara neste niacutevel
representaria o prazer espiritual enquanto Hagar a escravidatildeo da carne Esta secunda
species alegoacuterica quer fornecer ensinamentos e demandas de ordem moral
470 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 53 Para uma anaacutelise da doutrina trinitaacuteria em Joaquim cf
ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 471 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 44 tambeacutem TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo
Gioachimita op cit p 27-28
139
A alegoria tropoloacutegica (tropologica intelligentia) tem relaccedilatildeo com doutrina Neste
niacutevel o inteacuterprete busca reforccedilos e componentes para a doutrina cristatilde Nele Hagar significa
a letra enquanto Sara significa a compreensatildeo espiritual da Palavra de Deus
A alegoria contemplativa (contemplativa intelligentia) centraliza-se na vida
contemplativa e nos dons do Espiacuterito Santo Por exemplo Hagar significa a vida ativa
enquanto Sara significa a vida contemplativa
A alegoria anagoacutegica (anagogica intelligentia) a quinta species convida para a
prospectiva escatoloacutegica tradicional com o olhar para o mundo transcendental para aleacutem da
histoacuteria e por meio da oposiccedilatildeo ceacuteu-terra Neste caso Hagar significa a vida presente
enquanto Sara indica a vida futura
Apesar de apresentar o meacutetodo472 nas suas maiores obras de exposiccedilatildeo biacuteblica
(Expositio in Apocalypsim Psalterium decem Chordarum e Tractatus super quatuor
Evangelion) o abade nem sempre faz uso dos cinco princiacutepios alegoacutericos ou mesmo indica
qual princiacutepio estaacute usando em cada caso Eacute comum que ele apenas indique que um
personagem ou evento ldquosignificardquo ou ldquodesignardquo outra coisa
65 Sensus typicus histoacuteria e profecia
Durante os trecircs meses passados em Corinto entre os anos 55 e 56 ao escrever sua
epiacutestola para os disciacutepulos de Roma o apoacutestolo Paulo tratou da relaccedilatildeo entre Adatildeo e Jesus
(Romanos 514) descrevendo o primeiro como uma ldquofigura do que haveria de virrdquo (ldquoτύπος
τοῦ μέλλοντοςrdquo) Os termos usados foram o substantivo ldquoτύποςrdquo e o verbo ldquomέλλwrdquo O
primeiro significa ldquosinal marca vestiacutegio imagem figura tipo modelo exemplordquo473 A
segunda palavra pode ser traduzida como ldquodever estar destinado ardquo que daacute origem agrave forma
adjetivada do verbo (ldquoo` mέλλwnrdquo) o melhor o aguardado o futuro474
Em termos semacircnticos um ldquotipordquo era a marca impressa de um golpe em entalhe ou
em relevo de tal forma que um aponta para a outro Mas o uso que Paulo fez do termo jaacute lhe
deu um sentido hermenecircutico Ele o usou para descrever uma releitura das Escrituras
judaicas agrave luz da sua feacute em Jesus como o Messias
472 Em especial na segunda parte do Liber de Concordia 473 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 464 474 Idem p 300
140
Posteriormente autores cristatildeos do seacuteculo II como Tertuliano de Cartago
latinizaram o termo (typos) mas tanto em autores gregos ou latinos (Melito de Sardes
Justino Irineu Clemente de Alexandria Oriacutegenes Cipriano de Cartago Tertuliano) a
praacutetica de Paulo continuou a ser exercida geralmente com o propoacutesito de encontrar nas
Escrituras judaicas as promessas que se cumpriram na vida de Jesus ou como uma estrateacutegia
para vincular estas mesmas Escrituras com o Novo Testamento cristatildeo em formaccedilatildeo475 A
tipologia se constituiu entatildeo como uma ferramenta usada pelos exegetas cristatildeos a partir do
segundo seacuteculo para ver unidade entre as Escrituras judaicas e cristatildes como uma linha
horizontal de continuidade e progresso histoacutericos que culmina em Jesus e no
Cristianismo476
Eacute entatildeo este antigo procedimento que Joaquim usaraacute na sua proacutexima fase exegeacutetica
As cinco espeacutecies de alegoria formam apenas um momento de sua interpretaccedilatildeo e
normalmente natildeo constituem o final do processo477 No manejo da tipologia natildeo se trata
mais de opor verticalmente letra e espiacuterito como na alegoria mas de relacionar uma letra
com outra letra um elemento com outro elemento segundo uma dinacircmica horizontal de
promessa e cumprimento478
De qualquer forma apesar da metodologia tipoloacutegica jaacute ser conhecida na tradiccedilatildeo
exegeacutetica cristatilde o uso que dela faz Joaquim tambeacutem natildeo deixa de ser singular A forma
como o abade relacionava histoacuteria e Escritura o levou a natildeo ver mais distinccedilotildees entre ambas
Assim enquanto a tipologia claacutessica interrompia o fluxo tipoloacutegico nos eventos do Novo
Testamento Joaquim ampliou o olhar do exegeta encontrando antiacutetipos em toda a histoacuteria
da Igreja479
475 Conferir esta anaacutelise em ETCHEVERRIacuteA Ramoacuten Trevijano La Biblia em el cristianismo antiguo
Prenicenos Gnoacutesticos Apoacutecrifos Estella Editorial Verbo Divino 2001 p 92-108 476 Natildeo se sustenta mais um reducionismo que vincula a tipologia a uma ldquotradiccedilatildeo antioquianardquo e a alegoria a
uma ldquotradiccedilatildeo alexandrinardquo Tanto tipologia quanto alegoria satildeo efetivamente ferramentas hermenecircuticas que
tecircm como meta ir aleacutem da ldquoletrardquo ou do sentido mais imediato das palavras Etcheverriacutea chega a classificar a
tipologia como um tipo de alegoria Ambas satildeo ldquoformas de representaccedilatildeordquo como tambeacutem a metaacutefora a
metoniacutemia e a sineacutedoque Cf ETCHEVERRIacuteA op cit p 85 Aleacutem do mais mesmo em um exegeta
ldquorepresentativordquo da denominada escola antioquiana como Teodoro de Mopsueacutestia (350-428) eacute possiacutevel
encontrar o uso tanto da alegoria quanto da tipologia Cf WILES M F Theodore of Mopsuestia as
representative of the antiochene school In ACKROYD P R EVANS G F (eds) The Cambridge history
of the Bible from the beginnings to Jerome Cambridge Cambridge University Press 1970 3 v V 1 p 489-
509 477 SANTI op cit p 263 478 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 28 479 A estrutura ldquotipordquo e ldquoantiacutetipordquo natildeo daacute conta da praacutetica joaquimita Tipo seria a promessa antiacutetipo o
cumprimento Em Joaquim o fenocircmeno poderia ser descrito como ldquotipo-tipo-antiacutetipordquo
141
A tipologia em Joaquim fornece significado a eventos e personagens histoacutericos no
formato de anuacutencio e realizaccedilatildeo mas hierarquiza-os no interior dos trecircs status do mundo
Adatildeo personagem do primeiro status corresponderia a Cristo um tipo mais elevado do
segundo Ambos convergem entretanto num antiacutetipo ainda mais superior que se
concretizaraacute num personagem futuro do terceiro status
O abade de Fiore denominou a tipologia de ldquosensus typicusrdquo ou inteligecircncia tiacutepica
e a subdividiu em sete species baseadas numa estrutura derivada igualmente de sua
especulaccedilatildeo trinitaacuteria correspondendo agraves sete possiacuteveis formas de uma pessoa professar a
Trindade 1) sob o sinal do Pai 2) sob o sinal do Filho 3) sob o sinal do Espiacuterito 4) sob o
signo do Pai e do Filho 5) sob o signo do Pai e do Espiacuterito 6) sob o signo do Filho e do
Espiacuterito 7) sob o signo da Trindade inteira480
Desta vez o abade natildeo diferencia cada tipo dando um nome ou mesmo definindo
mas apenas fornecendo um exemplo Segundo a primeira compreensatildeo tipoloacutegica que eacute
apropriada ao Pai Abraatildeo representa os sacerdotes dos judeus Hagar o povo israelita Sara
a Tribo de Levi que foi chamada para a obra de Deus No segundo tipo de tipologia que eacute
apropriada ao Filho Abraatildeo representa os bispos Hagar a igreja dos leigos Sara a igreja
dos cleacuterigos Segundo o terceiro tipo de tipologia que eacute apropriada ao Espiacuterito Abraatildeo
representa os sacerdotes que servem monasteacuterios Hagar representa a Igreja do povo leigo
que vive sob regras monaacutesticas (conversi) e Sara representa a igreja dos monges Segundo
a seacutetima compreensatildeo tipoloacutegica que pertence agraves trecircs pessoas da Trindade Hagar representa
as igrejas da primeira e segunda eacutepoca (status) que vive a vida ativa Sara representa a igreja
da contemplaccedilatildeo paz e descanso da seacutetima era (aetas) Estes foram os quatro usos
tipoloacutegicos mais usados por Joaquim481
A quarta quinta e sexta species de tipologia natildeo satildeo normalmente usadas Mesmo
assim ele faz uma breve apresentaccedilatildeo delas (Liber de Concordia 61v-73v) A quarta
tipologia pertence ao Pai e ao Filho Nela Abraatildeo significa os bispos dos judeus e gregos
Hagar a sinagoga Sara a igreja dos Gregos A quinta tipologia pertence ao Pai e ao Espiacuterito
e nela Abraatildeo significa os sacerdotes dos judeus e os bispos do povo latino Hagar a
sinagoga (como na tipologia anterior) e Sara a igreja do povo Latino A sexta compreensatildeo
tipoloacutegica pertence ao Filho e ao Espiacuterito Santo Nela Abraatildeo significa os sacerdotes da
480 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 29 481 Em termos gerais a primeira species tipoloacutegica trata da primeira eacutepoca a segunda da segunda eacutepoca a
terceira da terceira eacutepoca A seacutetima tenta englobar a histoacuteria como um todo
142
segunda e terceira eacutepoca Hagar a igreja dos trabalhadores (vida ativa) e Sara a igreja
espiritual da contemplaccedilatildeo482
66 O dom da exegese
O ex-eremita agora no interior de um cenoacutebio em Fiore parece ver no Novo
Testamento natildeo mais do que uma segunda letra em concordacircncia com a primeira Daiacute resulta
a conclusatildeo de que ldquonatildeo se pode considerar o segundo testamento como mais definitivo que
o primeirordquo483 Ele natildeo chega a abolir o Novo Testamento mas entende que ele seraacute
transformado por meio de uma nova interpretaccedilatildeo espiritual Entatildeo se abriratildeo as ldquoportasrdquo
dos dois Testamentos e pessoas que antes natildeo conseguiam ler mais do que a letra entatildeo
conseguiratildeo penetrar nos sentidos espirituais da Escritura
Apesar de ser o porta-voz desta ldquodescoberta espiritualrdquo Joaquim se recusou a assumir
o tiacutetulo de profeta que outros lhe atribuiacuteam Mas ele natildeo esconde que teve suas
ldquoiluminaccedilotildeesrdquo Ele parece falar de trecircs destas experiecircncias que quase o aproximam do termo
ldquovisionaacuteriordquo Em uma delas ele recebeu a concordia dos Testamentos em outra
compreendeu a relaccedilatildeo entre Trindade Escritura e histoacuteria por fim uma terceira abriu seus
olhos para o papel do Apocalipse na sua estrutura hermenecircutica484 Aleacutem destas experiecircncias
narradas em suas obras o abade estava persuadido de ter recebido um ldquoespiacuterito de
inteligecircnciardquo para interpretar as Escrituras485 a fim de alertar e despertar os ldquosonolentos
espiacuteritos de seu tempordquo a respeito dos ldquoextrema temporardquo486 Aos olhos de Joaquim sua
capacidade exegeacutetica era um dom de Deus Natildeo era apenas fruto de uma investigaccedilatildeo
humana Era como a estrela brilhante que guiou os magos ateacute Jesus
O abade via brilhar agrave sua frente um novo tempo (ldquoIta felices homines illius
statusrdquo)487 e o espera para breve Ele o descreve sem cessar em suas obras por meio das
482 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 45-46 483 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 46 484 Conferir uma descriccedilatildeo das trecircs visotildees em DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de
Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xiii-xviii 485 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London
University of Notre Dame Press 1993 p 16 486 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 48 487 Expressatildeo encontrada em Expositio in Apocalypsim 175v
143
duas combinaccedilotildees da concordia das cinco inteligecircncias espirituais (alegoria) e dos sete tipos
de inteligecircncia tiacutepica (tipologia)488
Considerado profeta chamado de visionaacuterio descrito como miacutestico Joaquim natildeo
queria ser como resumiu de Lubac outra coisa a natildeo ser um exegeta489
67 Resumo
Este capiacutetulo procurou apresentar as formas e procedimentos de leitura e
interpretaccedilatildeo de Joaquim de Fiore Comeccedilando pela concordia passando pela alegoria e
terminando na tipologia o abade estruturou um meacutetodo que foi aplicado por ele tanto em
textos biacuteblicos quanto em eventos e fenocircmenos histoacutericos Justamente essa relaccedilatildeo iacutentima
entre Biacuteblia e histoacuteria parece ser a raiz loacutegica do seu sistema milenarista490 A praacutetica
exegeacutetica do abade em vaacuterios momentos se constituiu num exerciacutecio de reflexatildeo sobre o
sentido da histoacuteria
488 O sistema metoloacutegico de trecircs partes formado pela concoacutercia e por doze sentidos ldquoespirituaisrdquo (cinco
alegoacutericos e sete tipoloacutegicos) eacute o mais recorrente nas exposiccedilotildees de Joaquim mas natildeo eacute o uacutenico Ele usa no
Psalterium um sistema compreendido por quinze sentidos baseado no nuacutemero total dos salmos Estes sistemas
indicam o esforccedilo do abade de Fiore para multiplicar e entrelaccedilar as imagens biacuteblicas Cf SANTI op cit p
264 O medievalista Falbel denomina o meacutetodo do abade de ldquoalegoacuterico-trinitaacuteriordquo Cf FALBEL Nachman
Satildeo Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202) Revista USP Satildeo Paulo n 30 p 273-276
1996 p 273 489 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 53 Talvez seja possiacutevel falar
numa exegese profeacutetica (projetada para o futuro) ou uma exegese visionaacuteria (materializada em imagens) ou
mesmo uma exegese miacutestica (com foco na contemplaccedilatildeo) 490 Idem p 43
VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN
APOCALYPSIM
Este capiacutetulo se deteraacute principalmente no Expositio in Apocalypsim a maior e mais
bem estruturada obra de Joaquim de Fiore491 Eacute um texto que acompanhou o abade por quase
vinte anos concluiacutedo apenas dois anos antes de sua morte Em um trabalho desta natureza
escrito ao sabor dos anos eacute possiacutevel encontrar alteraccedilatildeo nas proacuteprias pespectivas do abade492
De qualquer forma o trecho que nos interessa especialmente estaacute ao final na seacutetima parte
quando apoacutes deixar Corazzo e jaacute no isolamento das montanhas de Fiore Joaquim se deteacutem
a construir sua exegese de Apocalipse 201-10 a periacutecope joanina que descreveu o reino
milenarista dos martirizados com Cristo Para analisaacute-la entretanto precisamos antes situaacute-
la no interior do Expositio por meio de alguns apontamentos sobre a estrutura geral da obra
e de uma siacutentese de conteuacutedo
71 Estrutura literaacuteria do Expositio
O Expositio in Apocalypsim na sua versatildeo presente no incunaacutebalo veneziano eacute
precedido por trecircs documentos distintos O primeiro eacute a Carta Testamentaacuteria (1r) na qual o
abade calabrecircs relata suas motivaccedilotildees ao escrever suas grandes obras e manifesta o desejo
de apresentaacute-las agrave cuacuteria papal Em seguida haacute uma carta de Clemente III (papa de 1187-
1191) para Joaquim (1v) datada para o dia 8 de junho de 1188 solicitando que o abade
encaminhe suas obras para a Seacute romana493 Apoacutes as duas cartas comeccedila o Liber
Introductorius in Apocalypsim (1v-25v) um longo texto que teria a funccedilatildeo de apresentar o
Expositio suas partes baacutesicas uma siacutentese das principais ideias do abade especialmente os
trecircs status do mundo a concordia dos dois Testamentos e as sete fases (aetas) da histoacuteria
491 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In
GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 79 492 A visatildeo de Joaquim quanto ao Impeacuterio Germacircnico por exemplo variou de uma postura criacutetica no iniacutecio da
obra para uma postura neutra no final Cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di
Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p 325-327 493 Uma ediccedilatildeo latina da carta pode ser encontrada em ELLIOTT E B Horae Apocalypticae a commentary
on the Apocalypse critical and historical Londres Seeley 1862 4 v V 4 p 386
145
da Igreja Finalmente no foacutelio 26v tem iniacutecio o Expositio por meio da expressatildeo ldquoIncipit
prima septem partius in expositione Apocalipsisrdquo494
A forma como o comentaacuterio de Joaquim foi construiacutedo permite visualizar as
seguintes seccedilotildees495
26v Parte I Sete Igrejas
51v Eacutefeso
67r Esmirna
69r Peacutergamo
73v Tiatira
78r Sardes
82v Filadeacutelfia
92v Laodiceacuteia
99r Parte II Sete selos
113v Primeiro Selo
114r Segundo Selo
114v Terceiro Selo
115v Quarto Selo
116v Quinto Selo
117v Sexto Selo
123v Seacutetimo Selo
123v Parte III Sete Trombetas
127v Primeiro Anjo
128v Segundo Anjo
128v Terceiro Anjo
129v Quarto Anjo
130v Quinto Anjo
133v Sexto Anjo
152r Seacutetimo Anjo
153r Parte IV A Mulher vestida de Sol e o Dragatildeo
154r Primeira distinccedilatildeo
158r Segunda distinccedilatildeo
160v Terceira distinccedilatildeo
161v Quarta distinccedilatildeo
172v Quinta distinccedilatildeo
173r Sexta distinccedilatildeo
174v Seacutetima distinccedilatildeo
177r Parte V Sete Taccedilas
187r Primeira Taccedila
187r Segunda Taccedila
494 Por esta expressatildeo eacute possiacutevel perceber uma ambiguidade estrutural na obra Joaquim anunciou sete seccedilotildees
mas terminou a obra com oito 495 Adaptamos aqui a estrutura sugerida por WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of
Fiore a Study in Spiritual Perception and History Bloomington Indiana University Press 1983 p 74-75
146
188v Terceira Taccedila
189r Quarta Taccedila
189v Quinta Taccedila
190r Sexta Taccedila
191r Seacutetima Taccedila
191v Parte VI A queda da Babilocircnia e a derrota das bestas
191v Primeira distinccedilatildeo
202v Segunda distinccedilatildeo
206r Terceira distinccedilatildeo
209v Parte VII Descanso sabaacutetico
Pars prima
Pars secunda
Pars tertia
Pars quarta
215r Parte VIII Jerusaleacutem Celestial
72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim496
Joaquim se propotildee a escrever um comentaacuterio exegeacutetico do Apocalipse de Joatildeo tarefa
que o coloca na tradiccedilatildeo de outros exegetas medievais da obra joanina como Beda o
Veneraacutevel ou Beato de Lieacutebana497 Mas o resultado entretanto vai aleacutem de discussotildees
teoloacutegicas para se tornar o que Potestagrave chamou de ldquohistoacuteria teoloacutegica do Cristianismordquo498
Esta histoacuteria aparece no Expositio de duas formas linear e ciacuteclica Tanto na narrativa linear
quanto na ciacuteclica haacute uma preocupaccedilatildeo contiacutenua do abade em vincular cada texto do
Apocalipse a eventos histoacutericos da forma mais estreita possiacutevel499
A revelaccedilatildeo linear aparece quando o abade estrutura o uacuteltimo livro do Novo
Testamento em oito partes sendo que as sete primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da
histoacuteria da Igreja Das sete seis relatam algum tipo de confronto da Igreja As quatro
primeiras fases apresentam protagonistas diferentes (apoacutestolos maacutertires doutores monges
496 Para esta siacutentese cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297-325 ELLIOTT E
B Horae Apocalypticae op cit p 384-420 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit
p 79-84 497 Conferir a discussatildeo anterior sobre o gecircnero literaacuterio do Expositio na qual indicamos autores anteriores agrave
Joaquim que tambeacutem escreveram exposiccedilotildees exegeacuteticas do Apocalipse 498 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297 MCGinn acompanha Potestagrave nesta
avaliaccedilatildeo e toma Joaquim como criador da mais imponente teologia da histoacuteria desde De civitate Dei de
Agostinho Cf MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero
occidentale Gecircnova Casa Editrice Marietti 1990 p 172 499 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 298
147
e virgens) Na quinta e na sexta eacute a Igreja em geral que enfrenta a Babilocircnia e o Anticristo
A seacutetima seria de descanso na forma de um sabbatum500 especial Finalmente viria o oitavo
periacuteodo que seria a consumaccedilatildeo final da histoacuteria e a eternidade transcendental501 Esta seria
a relaccedilatildeo esquemaacutetica entre a histoacuteria da Igreja e as partes do Apocalipse
- Primeira parte (Apocalipse 19-322) os apoacutestolos lutam contra os judeus
- Segundo parte (Apocalipse 41-81) os maacutertires lutam contra a Roma pagatilde
- Terceira parte (Apocalipse 82-1119) os doutores da Igreja lutam contra Aacuterio e os
governantes arianos
- Quarta parte (Apocalipse 121-1420) os monges e as virgens lutam contra os
sarracenos
- Quinta parte (Apocalipse 151-1617) a Igreja em geral luta contra a Babilocircnia
- Sexta parte (Apocalipse 1618-1921) a Igreja em geral luta contra o Anticristo
- Seacutetima parte (Apocalipse 201-10) o descanso sabaacutetico
- Oitava parte (Apocalipse 2011-2221) a Nova Jerusaleacutem
A histoacuteria da igreja aparece de forma ciacuteclica (recapitulatio) nas cinco primeiras
seccedilotildees do Apocalipse justamente aquelas em que Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura
seacutetupla Em cada uma delas ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma
histoacuteria que comeccedilaria na encarnaccedilatildeo de Cristo502 Aparentemente todas terminam no
descanso sabaacutetico um tempo de felicidade na terra Isso indica que a seacuterie de recapitulaccedilotildees
pode ter se restringido apenas agraves cinco primeiras partes do Expositio em funccedilatildeo da
perspectiva do abade de estar vivendo no tempo da sexta seccedilatildeo quando os eventos lhe satildeo
contemporacircneos ou estatildeo para acontecer em breve503
A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentaacuterios de Joaquim sobre
Apocalipse 11-322 (a seccedilatildeo das sete cartas para sete igrejas) Eacute a mais longa seccedilatildeo do
comentaacuterio Na estrutura geral eacute o primeiro tempo da Igreja a luta dos apoacutestolos contra a
sinagoga dos judeus Na histoacuteria da salvaccedilatildeo ela corresponde a sete geraccedilotildees com cada
500 Termo de origem hebraica (בת aparece na Vulgata como sabbatum (substantivo neutro de segunda (ש
declinaccedilatildeo) Seu significado eacute o seacutetimo dia da semana no calendaacuterio judaico ou o dia de descanso Cf LEWIS
Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p 1609 Ele retornaraacute de
forma recorrente no Expositio para descrever um periacuteodo de ldquodescansordquo para a Igreja de suas tribulaccedilotildees 501 COURT John M Approaching the Apocalypse a short history of Christian millenarianism New York I
B Tauris 2008 p 73 502 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 162 503 O abade entende o proacuteprio tempo como a hora da abertura do sexto selo e o iniacutecio do terceiro status Cf
MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 167
148
igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos A igreja de Eacutefeso apresenta a
ordem dos apoacutestolos em luta contra os inimigos judaizantes a de Esmirna descreve a ordem
dos maacutertires no confronto contra inimigos pagatildeos a de Peacutergamo simboliza a ordem dos
doutores e seus adversaacuterios arianos e sabelianos a de Tiatira aponta para a ordem dos virgens
em confronto contra os falsos contemplativos a de Sardes indica a ordem dos monges
cenobiacuteticos cujos inimigos eram monges hipoacutecritas a de Filadeacutelfia revela a ordem dos
eremitas e contemplativos numa luta contra falsos cristatildeos e falsos profetas a de Laodiceacuteia
por fim representa a ordem dos monges do terceiro status
Na seccedilatildeo das cartas o abade ainda apresenta o relacionamento entre Pedro e Joatildeo
questatildeo que ele retoma repetidas vezes no Expositio O primeiro eacute typos504 de Cristo e
representa a Ordem Ativa enquanto o segundo eacute typos do Espiacuterito Santo e representa a
Ordem Contemplativa Ao passo que Pedro deixou Jerusaleacutem para fundar a sede apostoacutelica
em Roma Joatildeo saiu da Judeacuteia e foi para a Aacutesia escrever o Apocalipse para as sete igrejas
Pedro morreu primeiro Joatildeo sobreviveu-lhe cerca de trecircs deacutecadas Isso indicaria que a Igreja
Contemplativa (de Joatildeo) vai ultrapassar historicamente a Igreja Ativa (de Pedro)
Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a seccedilatildeo dos selos
(Apocalipse 41-81) Na estrutura geral eacute o segundo tempo da Igreja quando os principais
personagens satildeo os maacutertires em luta contra os pagatildeos em um tempo que vai ateacute o momento
de paz da Igreja no tempo de Constantino e Silvestre Corresponde tambeacutem a sete tribulaccedilotildees
paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos Desta forma o abade desenvolveu um sistema
de duplo septenaacuterio um trata de eventos da histoacuteria de Israel e o outro aponta para a histoacuteria
da Igreja Durante todo o seu comentaacuterio os meacutetodos hermenecircuticos do abade permitem que
ele encontre vaacuterios significados para os mesmos personagens e eventos do Apocalipse
O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi imaginado por
Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho enquanto eacute perseguida pelos judeus
No Antigo Testamento significa o nascimento de Israel por meio do cativeiro egiacutepcio
A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo vermelho cujo
cavaleiro carrega uma espada mortal O cavalo simboliza a Roma pagatilde com seus sacerdotes
e exeacutercitos Na histoacuteria da Igreja este selo inaugura a perseguiccedilatildeo dos fieacuteis sob o antigo
Impeacuterio Romano Corresponde na histoacuteria dos judeus agrave conquista de Canaatilde que vai do
tempo dos juiacutezes ateacute o governo de Davi
504 Conferir a discussatildeo sobre tipologia no capiacutetulo anterior
149
O terceiro selo que descreve um homem com um par de balanccedilas eacute a heresia de
Aacuterio cujo clero aparece representado no cavaleiro que traz terror e escuridatildeo para a feacute cristatilde
O ser angelical que anuncia este selo representa a ordem de doutores que proclamou a
verdade e enfrentou os arianos Na histoacuteria do Antigo Testamento corresponde ao periacuteodo
de enfrentamento dos siacuterios
Na abertura do quarto selo um cavalo paacutelido aparece trazendo pragas e eacute seguido
pelo Hades Este representa a ameaccedila sarracena cujo cavaleiro eacute Maomeacute que persegue os
cristatildeos Durante este periacuteodo os monges e virgens tentaram sobreviver e manter a feacute cristatilde
Corresponde ao tempo da tribulaccedilatildeo de Israel sob os assiacuterios
Ao abrir o quinto selo o Apocalipse descreve um grupo de almas debaixo do altar
Nos quatro primeiros selos cristatildeos foram perseguidos e mortos na Judeacuteia Roma Greacutecia e
Araacutebia Esta quinta perseguiccedilatildeo vem da Mauritacircnia e Espanha onde sarracenos mataram
muitos cristatildeos Tambeacutem significa o sofrimento da Igreja romana em luta contra os
imperadores germacircnicos As roupas brancas significam que os maacutertires passaram do luto
para a alegria A expressatildeo ldquoateacute que seus irmatildeos sejam mortosrdquo indica para Joaquim que
ainda resta um conflito final que promoveraacute o martiacuterio de muitos cristatildeos
O sexto selo descreve cataclismos coacutesmicos Ele representa o dia do julgamento da
Babilocircnia cujo significado eacute ldquoquem quer que ataque a Igreja de Pedro moral ou
fisicamenterdquo505 especialmente os falsos cristatildeos ou falsos membros da Igreja romana O
abade espera perseguiccedilotildees para os fieacuteis com papel significativo na histoacuteria jaacute que por meio
delas a Igreja seraacute purificada de sua corrupccedilatildeo
Na abertura do seacutetimo selo um silecircncio se manifesta no ceacuteu Para Joaquim ele
representa o sabbatum de descanso no qual um silecircncio contemplativo seraacute trazido agrave
realidade Em comparaccedilatildeo na correspondente era do Antigo Testamento depois de Esdras
e Malaquias cessou a produccedilatildeo de Escritura Entatildeo sob o seacutetimo selo natildeo seraacute mais preciso
a pregaccedilatildeo
A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas do Apocalipse
(Apocalipse 82-1118) Na estrutura geral eacute o tempo terceiro quando a ordem dos doutores
digladia contra os hereges em particular os arianos Mas tambeacutem corresponde a sete fases
A trombeta de nuacutemero um eacute a fase dos Apoacutestolos principalmente Paulo pregando contra o
Judaiacutesmo e o legalismo O granizo misturado com fogo e sangue significa o espiacuterito de
505 ldquoQuicumque Petri ecclesiam moribus viribusque impugnantrdquo (117v) As traduccedilotildees do Expositio neste
capiacutetulo satildeo proacuteprias a natildeo ser que haja indicaccedilotildees em contraacuterio
150
escuridatildeo dos coraccedilotildees dos judeus Como resultado um terccedilo dos judeus convertidos
apostatou de volta para o Judaiacutesmo
A segunda trombeta significa os Maacutertires da era poacutes-apostoacutelica pregando contra a
heresia dos nicolaiacutetas Nicolau eacute a montanha que caiu no ldquomar dos gentiosrdquo Por causa dele
um terccedilo dos pagatildeos convertidos abandonou a feacute A terceira trombeta simboliza os doutores
do tempo de Constantino O meteoro que cai eacute Aacuterio cujo erro desabou sobre bispos e
sacerdotes e contaminou a aacutegua pura das escrituras A quarta trombeta tipifica os monges e
as virgens que como luminares celestiais caminhando em contemplaccedilatildeo iluminam o
mundo Seratildeo em larga medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos A quinta
trombeta descreve gafanhotos-escorpiotildees que representam os pathareni506 As arvores que
os gafanhotos destroem indicam a Igreja catoacutelica A couraccedila dos escorpiotildees aponta para o
coraccedilatildeo duro dos perfecti entre os pathareni Neste ponto de seu comentaacuterio o abade fala de
um homem que escapou de uma prisatildeo em Alexandria no ano anterior (1195) Joaquim o
encontrou em Messina e ouviu dele notiacutecias de uma alianccedila entre sarracenos e pathareni A
esta alianccedila outras naccedilotildees hostis se juntaratildeo como os turcos do Oriente os mouros e os
berberes do sul
Entre a sexta e a seacutetima trombeta o Apocalipse descreveu trecircs cenas distintas a
convocaccedilatildeo para que se coma um livro a descriccedilatildeo da medida do templo e a atuaccedilatildeo das
duas testemunhas martirizadas pela besta Na cena em que o livro eacute comido o abade
descreveu a ordem monaacutestica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne)
A cidade santa que aparece na mediccedilatildeo do templo significa a Igreja romana A Igreja grega
por ter se afastado da seacute apostoacutelica eacute a parte externa do templo que seraacute dada aos gentios
Aos olhos de Joaquim isso jaacute aconteceu em grande medida mas os gregos podem esperar
por novas desolaccedilotildees A rejeiccedilatildeo ao filioque era para o abade a maior prova de apostasia da
Igreja grega507 Sobre as duas testemunhas Joaquim as entende como Moiseacutes e Elias ou
duas ordens espirituais que viratildeo no poder destes antigos personagens biacuteblicos para pregar
contra o Anticristo Segundo o abade ldquoMoiseacutes foi um Levita e pastor do povo de Israel
506 Joaquim usa o termo pathareni para se referir ao movimento dissidente conhecido como ldquocatarismordquo Cf
POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 308 Especificamente sobre esta dissidecircncia
medieval cf AGUSTIacute David Los caacutetaros el desafio de los humildes Madrid Siacutelex Ediciones 2006 507 WHALEN Brett Edward Dominion of God Christendom and Apocalypse in the Middle Ages Cambridge
Harvard University Press 2009 p 111 O filioque era uma foacutermula latina de descriccedilatildeo do relacionamento entre
as pessoas da Trindade Ela afirma a dupla origem do Espiacuterito procedendo simultaneamente do Pai e do Filho
Sobre a importacircncia do filioque para o pensamento de Joaquim cf DANIEL Randolph E The double
procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiores Understanding of History Speculum Chicago v 55 n 3
p 469-483 1980
151
Elias foi um homem solitaacuterio que natildeo teve esposa ou filhos Logo um representa a ordem
dos cleacuterigos o outro a ordem dos mongesrdquo508 Finalmente surge a seacutetima trombeta Eacute tempo
do julgamento da besta e do falso profeta O Anticristo e os seus seguidores seratildeo
exterminados Comeccedilaraacute entatildeo a fase final da histoacuteria da Igreja ldquoo terceiro status do mundo
que seraacute um tempo de descanso e contemplaccedilatildeo Nele apoacutes o fim das pessoas corruptas da
terra reinaraacute o povo santo do Altiacutessimordquo509 Esta seccedilatildeo termina com uma longa descriccedilatildeo da
conversatildeo final dos gregos e judeus agrave Igreja latina
A quarta parte do Expositio (153r-174v) natildeo apresenta uma estrutura clara no
Apocalipse (Apocalipse 1119-1420) mas mesmo assim o abade optou pela divisatildeo em sete
distinccedilotildees (distinctiones) A seccedilatildeo comeccedila na abertura do santuaacuterio celestial mas tem como
foco a histoacuteria do Dragatildeo510 Eacute o quarto tempo da histoacuteria da Igreja no qual a ordem dos
monges e das virgens luta contra Maomeacute a quarta cabeccedila do Dragatildeo Igualmente
corresponde a sete fases
A primeira distinccedilatildeo apresenta o conflito entre a mulher vestida de sol e o Dragatildeo
Nesta primeira batalha os protagonistas foram Pedro e seus sucessores O inimigo por sua
vez agiu atraveacutes de Herodes e Nero A segunda distinccedilatildeo apresenta a guerra entre Miguel e
o Dragatildeo (Apocalipse 127-12) como siacutembolo da perseguiccedilatildeo pagatilde aos cristatildeos ateacute o tempo
de Constantino A terceira distinccedilatildeo descreve a fuga da mulher para o deserto que representa
a perseguiccedilatildeo agrave igreja atraveacutes das monarquias arianas Ela fugiraacute para uma vida de retiro e
contemplaccedilatildeo durante 42 meses ou 1260 dias
A quarta distinccedilatildeo comeccedila em Apocalipse 1217 com o levantamento das duas
bestas e vai ateacute 145 (o ajuntamento das 144000 testemunhas do Cordeiro) A besta
representa a perseguiccedilatildeo sarracena aos eremitas e virgens mas tambeacutem indica por meio de
suas cabeccedilas uma seacuterie de adversaacuterios histoacutericos da igreja As quatro primeiras cabeccedilas
respectivamente eram os judeus pagatildeos romanos arianos e sarracenos Esta cabeccedila
sarracena parecia ter morrido em funccedilatildeo da tomada de Jerusaleacutem da conquista normanda
na Siciacutelia e da expulsatildeo dos mouros na Espanha Para Joaquim entretanto ela voltou a
viver tatildeo terriacutevel quanto antes e a tomada de Jerusaleacutem seria uma demonstraccedilatildeo disso Eacute a
508 ldquoMoses fuit Levita et pastor Populi Israel Helyas vir solitarius no habens filios aut uxorem Ille ergo
significat ordinem clericorum iste ordinem monachorumrdquo (148v) Muito se especularaacute posteriormente na
recepccedilatildeo do pensamento joaquimita sobre a relaccedilatildeo entre as duas testemunhas de Apocalipse e as ordens de
Francisco e Domingos Cf REEVES Marjorie The influence of prophecy in the Later Middle Ages a study
in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 72-73 509 ldquoEt ad tertium statum mundi qui erit in sabbatum et quietem in quo exterminatis prius corruptoribus
terrae regnaturus est populus sanetorum Altissimirdquo (152v) 510 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 314
152
cabeccedila que parecia ter morrido mas reviveu para impressionar o mundo todo Joaquim
interpretou a segunda besta de Apocalipse como um falso-profeta que se levantaraacute do meio
da igreja conhecendo e falando como um cristatildeo Este faraacute alianccedila com a ldquocabeccedila sarracenardquo
da primeira besta Satildeo os pathareni ldquoa escoacuteria dos heregesrdquo (haereticorum fex) Os 144000
que aparecem em Apocalipse 14 satildeo para o abade os monges e virgens da igreja que se
opotildee agravequeles que tecircm a marca da besta
A quinta distinccedilatildeo cobre apenas dois versiacuteculos do Apocalipse (Apocalipse 146-7)
Eacute o anuacutencio do Evangelho Eterno e do juiacutezo511 Tambeacutem eacute o tempo da desolaccedilatildeo da
Babilocircnia A sexta distinccedilatildeo (Apocalipse 148-12) descreve o anuacutencio dos dois uacuteltimos anjos
no ceacuteu Eacute o tempo do advento da Besta e do falso-profeta No momento de descrever a seacutetima
distinccedilatildeo (Apocalipse 1413-20) a cena do Filho do Homem e a ceifa Joaquim anuncia a
idade sabaacutetica final quando os fieacuteis viveratildeo na terra com aqueles que sobreviverem agrave queda
do Anticristo
Potestagrave alerta que o Expositio eacute um comentaacuterio biacuteblico e natildeo um tratado escolaacutestico
Aleacutem do mais ele foi escrito no transcurso de quase vinte anos de trabalho Isso faz com que
ele comporte algumas contradiccedilotildees ou oscilaccedilotildees Nesta seacutetima distinccedilatildeo por exemplo o
descanso sabaacutetico parece ter a presenccedila de Cristo na terra com os santos Nas outras
referecircncias ao mesmo periacuteodo Cristo natildeo exerce um papel pessoal na transiccedilatildeo para a era
do Espiacuterito512
A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seccedilatildeo das sete taccedilas do Apocalipse
(Apocalipse 151-1617) Eacute o quinto tempo da Igreja indicando o confronto da Igreja
romana simbolizada pelo trono de Deus contra Babilocircnia Cada taccedila representa tambeacutem
sete destinataacuterios da ira divina A primeira taccedila da ira foi despejada sobre os judaizantes que
adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica A segunda sobre a igreja infiel
antes de Constantino A terceira sobre os bispos arianos e seus ensinos depois de
Constantino A quarta sobre os hipoacutecritas das ordens contemplativas A quinta sobre os
falsos cleacuterigos e monges A sexta sobre os perversos do mundo A seacutetima taccedila sobre os
proacuteprios eleitos na forma de uma perseguiccedilatildeo purificadora
511 A expressatildeo ldquoEvangelho Eternordquo estaacute na origem da condenaccedilatildeo imposta a algumas ideias de Joaquim em
Anagni no ano de 1255 em funccedilatildeo da atividade do franciscano Geraldo de Borgo san Donnino Cf
ROSSATTO Noeli Dutra et all Evangelho eterno a hermenecircutica condenada Filosofia Unisinos Satildeo
Leopoldo v 11 n 3 p 298-339 2010 512 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 317
153
A sexta parte do Expositio (191v-209v) natildeo apresenta mais a divisatildeo septenaacuteria Esta
seccedilatildeo do Apocalipse descreve a queda da Babilocircnia e o juiacutezo sobre as bestas (Apocalipse
1618-1921) Eacute o sexto tempo da histoacuteria e trata da luta dos viri spirituales primeiramente
contra o Dragatildeo depois contra a besta que veio do mar e a besta que veio da terra O abade
viu nesta longa passagem biacuteblica trecircs distinccedilotildees A primeira (Apocalipse 1618-1824)
descreve a queda da Babilocircnia e da besta que a sustenta Potestagrave destaca que um aspecto
marcante desta distinccedilatildeo estaacute no fato de Joaquim ter retirado o Impeacuterio Germacircnico da seacuterie
de inimigos finais da igreja No seu sermatildeo de 1184 (Apocalipsis liber ultimus) o Impeacuterio
seria o adversaacuterio que iria purificar a Igreja dos seus pecados O mesmo aparece no texto
Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno (1184) Mas no momento em que o
abade escreve a sexta parte do Expositio o Impeacuterio natildeo representa mais um inimigo a ser
temido A cidade que cairaacute agora natildeo representa Roma ou o Impeacuterio Germacircnico mas
Constantinopla e o Impeacuterio Bizantino Babilocircnia se torna siacutembolo para qualquer oposiccedilatildeo agrave
Igreja de Roma513
A segunda distinccedilatildeo (Apocalipse 191-10) apresenta a exultaccedilatildeo dos fieacuteis diante da
ruiacutena da Babilocircnia A terceira distinccedilatildeo (Apocalipse 1911-21) apresenta a derrota da besta
e do falso-profeta Ambos representam inimigos da igreja desde o tempo dos apoacutestolos Nos
termos de Joaquim satildeo as ldquonaccedilotildees increacutedulas que uma vez estiveram sujeitas ao Impeacuterio
Romano e entatildeo perseguem a Cristo e sua Igrejardquo514 Suas sete cabeccedilas sucessivas satildeo a)
Herodes e seus judeus no reino da Judeacuteia b) os pagatildeos do Impeacuterio Romano ateacute o tempo de
Diocleciano c) reino grego ariano d) reino godo ariano e) reino vacircndalo ariano f) reino
lombardo ariano g) o impeacuterio de Maomeacute O tempo da seacutetima cabeccedila eacute o tempo da desolaccedilatildeo
da Babilocircnia Esta terceira distinccedilatildeo descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo branco
Segundo o abade esse cavaleiro pode indicar a manifestaccedilatildeo de Cristo para destruir a besta
atraveacutes de sua volta pessoal ou o poder de Cristo operado por meio de outras figuras
Inicialmente ele se inclina para uma vinda pessoal Depois entretanto admite que isso pode
ser explicado pela accedilatildeo invisiacutevel de Cristo em sua Igreja militante
Finalmente as duas proacuteximas seccedilotildees do Expositio fecham o livro A parte seacutetima
(209v-215r) discute o milecircnio (Apocalipse 201-10) e a oitava (215r-224r) a Jerusaleacutem
513 Idem p 319-320 514 ldquoUniversas gentes infideles quae aliquando subjectae fuerunt Romano imperio et persecutae sunt Christum
et ecclesiam ejusrdquo (196r)
154
Celestial (Apocalipse 2011-2221) Esta uacuteltima corresponde ao oitavo aetas natildeo mais
dentro da histoacuteria mas no seculum futurum posterior ao uacuteltimo tempo da humanidade
73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio
A seacutetima seccedilatildeo do Expositio eacute a menor do comentaacuterio de Joaquim o que natildeo significa
status diminuiacutedo O episoacutedio do milecircnio de Apocalipse 201-10 foi transformado em uma
espeacutecie de aacutepice antes do cliacutemax O fim do mundo com o juiacutezo final e a esfera porvir
continuam no horizonte (a seccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem) do abade mas este fim aguardado para
a ldquoeternidaderdquo recebeu uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica na histoacuteria Como argumentou Potestagrave a
estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade ldquoa descoberta que
a primeira parte de Apocalipse 20 trata daquele grande saacutebado futuro no final do mundo515
Curiosamente se Joaquim procura com sua metodologia hermenecircutica ldquoinventarrdquo
muacuteltiplos sentidos nas outras seccedilotildees do comentaacuterio nesta ele eacute econocircmico em detalhes sobre
as figuras e os eventos Em outros lugares do Expositio como na anaacutelise das duas
testemunhas do capiacutetulo 11 de Apocalipse ele multiplica os significados por meio da
alegoria tipologia e concordia516 Ao interpretar os dez versiacuteculos do reino messiacircnico de
Joatildeo (Apocalipse 201-10) entretanto ele se contenta em fornecer um agraves vezes dois
sentidos mas ainda vagos e imprecisos Diferente de Papias que chega a descrever o
tamanho das uvas do reino milenar517 o abade de Fiore no final de sua vida entende que
alguns poucos aspectos espirituais jaacute seriam suficientes para alimentar a expectativa da
Igreja
Joaquim dividiu esta seacutetima seccedilatildeo do Expositio em quatro partes precedidas de uma
introduccedilatildeo
- Introduccedilatildeo 209v-210v
- Pars prima 210v-212r (comentaacuterio de Apocalipse 201-3)
- Pars secunda 212r-214v (comentaacuterio de Apocalipse 204)
515 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 299 516 Extrateacutegias hermenecircuticas apresentadas no capiacutetulo anterior 517 Conferir a citaccedilatildeo em DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1997 p 23 ldquoViratildeo dias em que as vinhas cresceratildeo em que cada uma teraacute dez mil
vides e em cada vide dez mil ramos e em cada ramo dez mil bototildees e em cada botatildeo dez mil cachos e em
cada cacho dez mil uvas e cada uva prensada daraacute vinte e cinco medidas de vinho E quando um dos santos
colher um cacho o outro lhe diraacute sou melhor colha-me e abenccediloa o Senhor atraveacutes de mimrdquo
155
- Pars tertia 214v (comentaacuterio de Apocalipse 205-6)
- Pars quarta 214v-215r (comentaacuterio de Apocalipse 207-10)
A introduccedilatildeo eacute aberta logo com a frase ldquoestatildeo completadas seis partes do livro de
Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de trabalho Vem agora a seacutetima parte na
qual vemos aquele saacutebado futuro no fim do mundo que em outro lugar chamamos de terceiro
statusrdquo518 Fica clara assim a relaccedilatildeo construiacuteda por Joaquim entre o milecircnio de Apocalipse
20 e um periacuteodo de paz na terra durante o fim do terceiro status da histoacuteria da humanidade
Ele completa ainda que se trata do ldquotertium statum sive etiam septimam mundi statemrdquo (do
terceiro status ou da seacutetima idade do mundo) Corresponde tambeacutem agrave seacutetima aetas da Igreja
que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do seu Expositio
Apoacutes estas frases de definiccedilatildeo ou mesmo de contextualizaccedilatildeo o abade recorre a
Agostinho e uma figura que ele chama de St Remigius Do primeiro ele toma a ideia de que
a expressatildeo ldquodia finalrdquo nas Escrituras natildeo precisa ser entendida como significando o uacuteltimo
momento do mundo podendo antes ser uma uacuteltima fase ou entatildeo o tempo do fim Por isso
os autores biacuteblicos poderiam dizer haacute mais de mil anos que ldquojaacute era a uacuteltima horardquo No
segundo ele busca apoio para a afirmaccedilatildeo de que haveraacute um certo tempo de duraccedilatildeo
indeterminada posterior agrave derrota do Anticristo Esse parece ser o motivo dele ter buscado
nesta figura de identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua
interpretaccedilatildeo Segundo Potestagrave provavelmente este Remigius foi um exegeta do seacuteculo XII
cuja obra foi atribuiacuteda a um certo Aimone de Halberstadt519
A ideia de um periacuteodo sabaacutetico na terra representa descontinuidade com a tradiccedilatildeo
exegeacutetica de Agostinho520 Joaquim estaacute ciente disso e gasta algumas linhas do seu
comentaacuterio para explicar que a expectativa da vinda agrave terra de uma seacutetima aetas na qual a
Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e reinaria sem perturbaccedilatildeo na plena possessatildeo da
ldquointeligecircncia espiritualrdquo natildeo eacute um erro mas uma maior compreensatildeo Segundo o abade eacute
uma ldquoopiniatildeo racional natildeo contraacuteria agrave feacuterdquo521
518 ldquoPeractis sex partibus libri Apocalypsis in quibus notata sunt sex tempora laboriosa Veniendum est
quandoque ad septimam partem im qua agitur de magno illo sabbato in fine mundi futuro quod vocari placluit
tertium statumrdquo (209v) 519 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 323 520 Segundo MC Ginn ldquoem nenhuma outra parte do seu longo comentaacuterio Joaquim mostra a ruptura com
setecentos anos de tradiccedilatildeo exegeacutetica latina como na descriccedilatildeo do reino milenar de Cristo e dos santos na terra
de Apocalipse 20rdquo Cf MCGINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 521 ldquoTamen esse potest rationabilis opinio que non sit contra fidemrdquo (210v)
156
Apoacutes isso ele usa boa parte da introduccedilatildeo para retomar aspectos que precederiam o
periacuteodo sabaacutetico o diabo lanccedilaraacute os sarracenos contra o impeacuterio cristatildeo apoacutes a queda da
Babilocircnia haveraacute um pequeno periacuteodo de tranquilidade para a Igreja entatildeo a besta que
parecia morta se ergueraacute novamente para uma segunda batalha contra os exeacutercitos de fieacuteis
o resultado seraacute a derrota da besta e do falso profeta e finalmente se seguiraacute uma grande
paz o descanso sabaacutetico
A partir de entatildeo ele analisa os versiacuteculos de Apocalipse 201-10 por meio da
estrateacutegia que jaacute utilizou no restante do comentaacuterio haacute uma transcriccedilatildeo de uma pequena
porccedilatildeo do texto na sua versatildeo latina522 seguido de comentaacuterios exegeacuteticos filoloacutegicos e
histoacutericos
A primeira parte da seccedilatildeo corresponde a Apocalipse 201-3 (a prisatildeo de Satanaacutes) Eacute
possiacutevel notar uma pequena diferenccedila entre o texto latino usado por Joaquim e a Vulgata
Clementina No versiacuteculo trecircs a Clementina usou o termo consummentur (seja concluiacutedo)
enquanto Joaquim transcreveu compleant (seja completado) De qualquer forma satildeo termos
intercambiaacuteveis sem grandes implicaccedilotildees textuais para a periacutecope
O abade comeccedila com a discussatildeo do significado da expressatildeo ldquomil anosrdquo O nuacutemero
natildeo eacute literal jaacute que ele significa um nuacutemero perfeito523 Isso indicaria que a duraccedilatildeo da prisatildeo
de Satanaacutes seria durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo Mesmo assim o abade aplica ao tempo
milenar dois significados secundum parte et secundum plenitudinem O primeiro teve um
cumprimento inicial (incipient) no tempo da ressureiccedilatildeo de Cristo Neste sentido o milecircnio
se estenderia daquela eacutepoca ateacute o fim do mundo durante todo o tempo da histoacuteria da Igreja
(ldquoad totum tempus ecdesierdquo) Mas seu perfeito e completo cumprimento seraacute no tempo
sabaacutetico (ldquoad sabbatumrdquo) depois da destruiccedilatildeo da besta
Nos seus termos o milecircnio do Apocalipse teria um cumprimento duplo
ldquoparcialmente a partir daquele saacutebado em que o Senhor descansou no sepulcro plenamente
apoacutes a destruiccedilatildeo da Besta e do Falso-profetardquo524 Eacute uma forma curiosa de afirmar a posiccedilatildeo
de Agostinho (milecircnio como o tempo de existecircncia histoacuterica da Igreja) para logo em seguida
522 Natildeo haacute marcaccedilatildeo de capiacutetulos ou versiacuteculos na versatildeo latina usada por Joaquim Ela difere levemente da
Vulgata Clementina usada nesta tese COLUNGA Alberto TURRADO Laurentio Biblia Sacra iuxta
Vulgatam Clementinam Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1965 523 ldquoMillenarius numerus perfectissimus estrdquo (210v) 524 ldquoSecundum partem incipit ab illo sabbato quo requievit Dominus in sepulchro secundum plenitudinem sui
a ruina Bestiae et Pseudo-Profhetaerdquo (211r)
157
abandonaacute-la em prol da retomada da antiga posiccedilatildeo quiliasta (milecircnio como um periacuteodo
futuro intra-histoacuterico)525
Para Joaquim o autor de ldquoConfessionesrdquo estava correto apenas parcialmente Como
ele o abade insiste em afirmar que o milecircnio natildeo seraacute literal Pode ser longo ou curto mas
sua ldquoduraccedilatildeo seraacute segundo o arbiacutetrio de Deusrdquo526 Talvez seja mesmo curto mas o tempo
esclareceraacute isto
Sobre a atuaccedilatildeo do Espiacuterito o abade afirma que ele manteraacute a chave da prisatildeo de
Satanaacutes Neste periacuteodo a terceira pessoa da Trindade atuaraacute sobre toda a terra natildeo apenas
sobre os fieacuteis mas tambeacutem sobre os pagatildeos Por isso ldquohaveraacute uma grande paz como nunca
antes desde o princiacutepio dos seacuteculosrdquo527
Ele volta a mencionar Agostinho que afirmara inicialmente uma opiniatildeo sobre o
milecircnio e depois mudou de ideia528 Seu argumento eacute que o bispo de Hipona soacute deixou a
perspectiva de um milecircnio histoacuterico por causa das expressotildees exageradamente ldquocarnaisrdquo dos
defensores do quiliasmo daquela eacutepoca Mas o fato de crer na vinda sobre a terra de uma
seacutetima aetas muito melhor que as anteriores natildeo constitui um erro mas eacute sim uma
ldquocompreensatildeo tranquilardquo529
No foacutelio 211r o abade fala do ldquoreinar do Espiacuterito Santordquo (ldquoregnare Spiritus divinusrdquo)
no que se constitui uma significativa alternativa ao ldquoreino de Cristordquo de Apocalipse 201-10
Haacute ainda uma insistecircncia de Joaquim em caracterizar este periacuteodo como um tempo de paz
ldquoGenuiacutena paz fruiraacute para a Igreja de Cristordquo530
A segunda parte da seacutetima seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 204-5a531 e
ocupa apenas uma coluna do foacutelio 212r Joaquim comeccedila indicando a relaccedilatildeo do texto de
Joatildeo com ldquoo povo santo do altiacutessimordquo descrito por Daniel ldquocujo reino eacute eternordquo532 O abade
entende que os ldquomille annirdquo destes versiacuteculos devem ser paralelos agrave prisatildeo de Satanaacutes ldquoO
525 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 324 MC GINN Bernard LrsquoAbate
Calabrese op cit p 169 526 ldquoCujus terminus erit in arbitrio Deirdquo (210b) 527 ldquoErit magna pax qualis non fuit aprincipio seculirdquo (210v) 528 ldquoVera fuit illo opinio immo non jam opiniordquo (211r) A citaccedilatildeo veio de De Civitate Dei 2071 Versatildeo
consultada SANTO AGOSTINHO A cidade de Deus Petroacutepolis Vozes 2012 2 v V 1 p 514 529 ldquoSerenissimus intellectusrdquo (211r) 530 ldquoVera pace frui poterit ecclesia Christirdquo (211r) 531 No texto joanino o bloco comeccedila com a menccedilatildeo dos tronos passa pela descriccedilatildeo dos maacutertires que
reviveram e termina na explicaccedilatildeo de que os demais natildeo reviveram ateacute o fim dos mil anos 532 ldquoCuius regnum sempiternum estrdquo (212r)
158
tempo do reino dos Santos seraacute interligado com o tempo da prisatildeo do Dragatildeordquo533 Seraacute um
tempo breve de duraccedilatildeo incerta no qual a Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e alcaccedilaraacute a
plena possessatildeo da ldquointelligentia spiritualisrdquo
A ressurreiccedilatildeo mencionada por Joatildeo eacute tambeacutem entendida como a prevista em Daniel
12 Jaacute os mortos que natildeo reviveram ateacute o final do milecircnio segundo Joaquim seratildeo os fieacuteis
que ressuscitaratildeo e entraratildeo direto na Nova Jerusaleacutem sem passar pelo julgamento do ldquotrono
brancordquo descrito a partir de Apocalipse 2011 Mas ele admite dificuldades neste ponto e
entende que eacute preciso esperar por novos esclarecimentos espirituais
A terceira parte da seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 205b-6 que natildeo passa
de uma declaraccedilatildeo do estado daqueles que participam da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo Eacute um bloco
muito pequeno soacute ocupando 19 linhas de uma coluna do foacutelio 214v A versatildeo latina citada
pelo abade declara ldquobeatus et sanctus qui habet partem in resurrectione primardquo (Exp Ap
214v) Percebe-se que Joaquim natildeo tem muito para falar sobre estes versiacuteculos do
Apocalipse Ele se contenta em afirmar que aqueles que experimentarem a ldquoprimeira
ressurreiccedilatildeordquo seratildeo realmente felizes (felicius viro) pois natildeo estaratildeo mais ao alcance da
morte
A quarta e uacuteltima seccedilatildeo da seacutetima parte do Expositio corresponde a Apocalipse 207-
10 (a volta de Satanaacutes e o confronto contra Gog e Magog) Joaquim recorre agrave passagem
paulina de 1Tessalonicenses 413 para descrever duas ressurreiccedilotildees Segundo o abade
alguns ressuscitaratildeo logo outros depois Tambeacutem vincula o texto de Joatildeo com uma profecia
de Ezequiel 38 ao descrever um conflito no final dos tempos A paz do periacuteodo sabaacutetico
seraacute interrompida quando Satanaacutes for solto do abismo e instaurar a tribulaccedilatildeo de Gog e
Magog que significa uma uacuteltima ameaccedila para os cristatildeos vinda dos confins do Oriente
talvez de povos que no passado longiacutenquo foram aprisionados por Alexandre o Grande Este
exeacutercito se levantaraacute contra a ldquocidade amada no fim dos seacuteculosrdquo534 mas seraacute logo destruiacutedo
Assim a besta e o falso-profeta foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine
sexte etatis) e Satanaacutes o seraacute no fim da seacutetima (in fine septime)
Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto e fala em muacuteltiplas
ldquoopinionesrdquo Por fim conclui com outra alusatildeo a Daniel no sentido de que quando for vista
533 ldquoIdem tempu intelligatur incarcerationis draconis et regni Santorumrdquo (212r) 534 ldquoCivitatem dilectam in consumatione seculirdquo (214v)
159
a ldquoabominaccedilatildeo da desolaccedilatildeordquo (ldquoabominationem desolationisrdquo) eacute porque ldquoestas coisasrdquo estatildeo
para se cumprir535
74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito
Segundo Bernard MCGinn Joaquim era um ldquoum convicto utopista no sentido de
que ele sentia ardentemente a iminecircncia da condiccedilatildeo ideal de vida sobre a terrardquo536 Sua
descriccedilatildeo desta eacutepoca futura parece realmente estar marcada pela ansiedade Ele desejava
ver o que naquele momento apenas podia imaginar e esperava estar vivo quando tudo
acontecesse jaacute que aguardava a manifestaccedilatildeo deste periacuteodo histoacuterico para breve Mas que
tipo de vida o abade esperava Quais seriam as tais ldquocondiccedilotildees ideaisrdquo de existecircncia humana
sobre a terra
Acima de tudo seria o reino do Espiacuterito (regnus Spiriti Divini) O Espiacuterito eacute a mais
frequente referecircncia de Joaquim para este periacuteodo Ele eacute o ldquoanjordquo que amarraraacute Satanaacutes por
ldquomil anosrdquo ou seja durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo de tempo Talvez por uma geraccedilatildeo (30
anos)537 Assim o ministeacuterio de Cristo a segunda pessoa da Trindade e o ministeacuterio do
Espiacuterito Santo a terceira pessoa durariam igualmente 30 anos Seraacute um periacuteodo curto mas
necessaacuterio agrave luz da revelaccedilatildeo trinitaacuteria agrave humanidade jaacute que o Pai se manifestou no primeiro
status e o Filho no segundo O terceiro status pertence ao Espiacuterito
Durante este tempo o Espiacuterito atuaraacute sobre toda a terra enchendo-a de paz Essa seraacute
sua principal caracteriacutestica Finalmente teraacute acabado a longa seacuterie de conflitos e perseguiccedilotildees
que marcou os dois povos de Deus (Israel e Igreja) desde o iniacutecio da histoacuteria Neste periacuteodo
ambos estaratildeo unidos (judeus e gentios) debaixo da plena posse da ldquointeligecircncia espiritualrdquo
para conhecer os segredos das Escrituras Joaquim fala de uma ldquocidade amadardquo no final da
seacutetima seccedilatildeo do Expositio o que pode ser uma indicaccedilatildeo de que Joaquim esperava que
535 Em Daniel 927 registra-se que algueacutem viraacute sobre ldquoas asas da abominaccedilatildeordquo A mesma imagem eacute usada em
Daniel 1131 e 1211 mas a referecircncia primaacuteria em termos histoacutericos e literaacuterios eacute mesmo Daniel 9 quando
o autor apocaliacuteptico descreve a profanaccedilatildeo do templo por Antiacuteoco Epiacutefanes A funccedilatildeo principal desta narrativa
apocaliacuteptica era garantir que o tempo de anguacutestia dos leitores estava para chegar ao fim e por isso o relato
anuncia uma iminente ldquogrande abominaccedilatildeordquo (referecircncia agrave profanaccedilatildeo do templo de Jerusaleacutem) mas garante
que quando isso acontecer a libertaccedilatildeo divina viraacute em seguida Cf COLLINS John J Daniel with in
introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 1984 p 93 536 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 537 Joaquim usa o termo ldquogeraccedilatildeordquo para descrever periacuteodos histoacutericos Uma geraccedilatildeo teria a duraccedilatildeo de trinta
anos Do nascimento de Jesus ateacute o descanso sabaacutetico 1260 anos 42 geraccedilotildees passaram Cf WEST
ZIMDARS-SWARTZ op cit p 32-35
160
Jerusaleacutem fosse o lugar desta reuniatildeo universal dos ldquopovos do altiacutessimordquo no final dos
tempos538 Assim se a graccedila de Deus se moveu do Oriente para o Ocidente no periacuteodo
sabaacutetico ela voltaraacute do Ocidente para o Oriente
Joaquim denomina o periacuteodo de sabbatum e abre a seacutetima seccedilatildeo do Expositio falando
dos seis ldquotemposrdquo anteriores (tempore laboriosa) Se o ocasiatildeo anterior foi de trabalho este
uacuteltimo tempo da histoacuteria seraacute de descanso Por isso eacute um ldquosaacutebadordquo expressatildeo que faz alusatildeo
agrave semana primordial de criaccedilatildeo das Escrituras hebraicas cuja narrativa descreve a divindade
criando o mundo em seis dias No seacutetimo entretanto descansou ldquode toda a sua obra que
tinha feito E abenccediloou Deus o dia seacutetimo e o santificou porque nele descansou de toda a
obra que como Criador fizerardquo (Gecircnesis 22-3) Esse relato dos primoacuterdios retorna vaacuterias
vezes nas narrativas biacuteblicas Em uma delas surge no coacutedigo legal judaico conhecido como
ldquodez mandamentosrdquo ldquoem seis dias fez o Senhor os ceacuteus e a terra o mar e tudo o que neles
haacute e ao seacutetimo dia descansou por isso o Senhor abenccediloou o dia de saacutebado e o santificourdquo
(Ecircxodo 2011) O texto da Vulgata assim traduziu uma das expressotildees ldquobenedixit Dominus
diei sabbatirdquo Tomando esta semana da criaccedilatildeo como uma das estruturas da histoacuteria da
humanidade o abade vinculou os tempos anteriores de trabalho com os seis primeiros dias
aguardando com muita ansiedade o ldquoseptimum mundi statemrdquo o saacutebado de descanso
espiritual539
Na seacutetima parte do Expositio a descriccedilatildeo deste saacutebado final permanece vaga em
muitos aspectos Joaquim fala de caracteriacutesticas como pax e spiritualis intellectus A
primeira eacute uma inversatildeo dos sucessivos conflitos que caracterizaram a histoacuteria da
humanidade A segunda aponta para um aperfeiccediloamento da sabedoria dos homens e
mulheres do final da histoacuteria que excederaacute a sabedoria dos livros e tornaraacute desnecessaacuteria a
pregaccedilatildeo Mas se desejamos uma caracterizaccedilatildeo mais abrangente precisamos recorrer a
outra fonte do pensamento do abade de Fiore
Joaquim transformou algumas de suas ideias em imagens e esquemas o que faz com
que uma forma de aproximaccedilatildeo ao saacutebado do Espiacuterito esteja no documento conhecido como
Liber Figurarum540 Esta obra sobreviveu como uma coletacircnea de figuras do abade Algumas
538 WHALEN op cit p 123 539 Idem p 106 540 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 169 Para uma anaacutelise ampla do Liber Figurarum cf
REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiore Genuine and spurious collections Medieval and
Renaissance Studies Los Angeles v 3 p 170-199 1954 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo
Gioachimita op cit p 99-106 Usamos a ediccedilatildeo encontrada em GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio
del mistero Le tavole del Liber Figurarum di Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi
Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000
161
destas aparecem no contexto dos livros autecircnticos Outras exclusivamente no Liber No
total satildeo 26 figuras resultado da ediccedilatildeo dos disciacutepulos de Joaquim que natildeo apenas
organizaram suas principais imagens mas tambeacutem desenharam outras seguindo de perto
suas ideias541 Para a professora Reeves estas imagens ldquosatildeo exposiccedilotildees do seu sistema de
pensamento natildeo meramente ilustraccedilotildees para seus textos Satildeo projetos independentes que
incorporam as diversas estruturas do pensamento de Joaquim eventualmente de forma mais
adequada do que palavras poderiam fazerrdquo542
Uma das figuras que mais claramente tratou do periacuteodo sabaacutetico foi a Dispositio novi
ordinis pertinens ad tertium statum (Liber Figurarum Tav XII)543 Eacute um diagrama da
sociedade do final dos tempos Percebe-se que o abade apresenta essa nova sociedade com
elementos de descontinuidade e continuidade em relaccedilatildeo ao tempo anterior A Igreja por
exemplo seraacute transformada mas natildeo necessariamente descontinuada
A nova sociedade foi desenhada na forma de uma cruz grega com suas partes
transformadas em oratoacuterios o que define o centro desta nova realidade humana como uma
grande instituiccedilatildeo religiosa generalizada e universal A figura eacute formada por um oratoacuterio
central cercada por outros quatro oratoacuterios que correspondem a diversos tipos de vida
monaacutestica tendo na parte inferior da figura dois outros oratoacuterios maiores em circunferecircncia
mas distantes dos oratoacuterios centrais Ou seja satildeo cinco oratoacuterios dedicados a tipos distintos
de monges (ordo monachorum) um para os cleacuterigos (ordo clericorum) e outro para os leigos
(ordo coniugatorum)
A imagem foi baseada na passagem de 1Coriacutentios 1212 quando Paulo descreve o
corpo com muitas partes que formam um soacute organismo quando estatildeo todas juntas Joaquim
combinou esta imagem com a visatildeo dos ldquoseres viventesrdquo de Apocalipse 4 um leatildeo um boi
um homem e uma aacuteguia Em seguida ele aplicou a estes seres os ldquocarismasrdquo de Efeacutesios 4
apoacutestolos profetas evangelistas e pastores-mestres O resultado dessa amaacutelgama eacute uma
comunidade que daacute unidade e plenitude ao ldquopovo do altiacutessimordquo na terra
Nesta comunidade religiosa perfeita do fim do mundo numa posiccedilatildeo correspondente
ao ldquonarizrdquo da sociedade estaacute o pater spiritualis que guia pelo exemplo e dedicaccedilatildeo Este
541 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 13-125 p 100 MC GINN Bernard
Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der Joachim of Fiore the
Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 103 542 REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiorehellip op cit p 199 543 Conferir esta imagem no anexo 4 retirada de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op
cit p 13 Para a anaacutelise da Dispositio cf MCGINN Bernard Apocalyptic Spirituality op cit p 111-112
TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 103-104
162
oratoacuterio eacute dedicado agrave ldquoMaria e a Santa Jerusaleacutemrdquo Ele eacute simbolizado pela pomba e funciona
como um conselho para o restante da sociedade Joaquim o denomina tambeacutem de ldquotrono de
Deusrdquo como em Apocalipse 4 O ldquopai espiritualrdquo e os demais membros deste oratoacuterio
seguem a ldquoregrardquo na pureza da forma No interior do oratoacuterio aparece a descriccedilatildeo ldquoEste local
seraacute a matildee de todos os locais Seraacute o pai espiritual que presidiraacute todos os lugaresrdquo544
Agrave esquerda do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPedro e de Todos os Santos
Apoacutestolosrdquo Esta parte representa a matildeo Eacute simbolizada pelo Leatildeo e funciona como uma
casa para pessoas idosas e doentes se recuperarem por meio do ldquoespiacuterito de fortalezardquo
Apesar da fragilidade dos seus membros eles ainda seguem a regra religiosa
Neste oratoacuterio vatildeo viver estes irmatildeos delicados e velhos que por
fraqueza de estocircmago natildeo podem suportar a austeridade da regra e do
jejum mas ainda assim como podem se esforccedilam para proceder de
acordo com a pureza da regra Eles natildeo seratildeo obrigados a sair para os
campos para fazer trabalhos manuais mas vatildeo executar seus trabalhos
em casa debaixo de cuidados Natildeo seraacute permitida a entrada neste oratoacuterio
por vontade proacutepria ou escolha mas apenas aqueles a quem ordenou o
abade545
Agrave direita do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPaulo e de todos os Doutores da
Igrejardquo Esta casa representa a ldquoorelhardquo e eacute simbolizada por um ldquohomemrdquo Funciona como
um centro de aprendizagem onde pessoas iratildeo estudar com a ajuda do ldquoespiacuterito de
inteligecircnciardquo ldquoNeste oratoacuterio vivem homens eruditos entretanto com desejo de aprender as
coisas de Deus e que desejam dedicar-se mais do que os outros para ler e estudar a doutrina
espiritualrdquo546
Acima do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoJoatildeo evangelista e dos Santos Virgensrdquo
Esta parte representa os ldquoolhosrdquo Eacute simbolizada pela aacuteguia e seu papel eacute a contemplaccedilatildeo
debaixo da completa clausura O ldquoespiacuterito de sabedoriardquo estaacute sobre aqueles que estatildeo nesta
casa Eacute aqui que os ldquoviri spiritualesrdquo viveratildeo vidas perfeitas atraveacutes do louvor e da
contemplaccedilatildeo Segundo a descriccedilatildeo na imagem ldquoneste oratoacuterio viveratildeo homens perfeitos e
virtuosos que inflamados pelo desejo de vida espiritual querem levar uma vida
contemplativardquo547 Eles ldquojejuam o tempo todo exceto por motivo de doenccedila Natildeo bebem
544 GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 13-14 545 Idem 546 Idem 547 Idem
163
vinho e nem comem alimentos temperado com oacuteleo exceto nos domingos e nos principais
dias festivosrdquo548
Abaixo do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoEstevatildeo e de todos os Santos
Martirizadosrdquo Ele eacute simbolizado pelo ldquoboirdquo e representa a ldquobocardquo da comunidade Por meio
do ldquoespiacuterito de ciecircnciardquo estes membros seratildeo preparados e treinados em grande disciplina
espiritual Neste oratoacuterio ldquovivem os irmatildeos que tecircm forccedila para a atividade exterior e natildeo
podem progredir na disciplina espiritual como apropriadordquo Esta descriccedilatildeo jaacute indica um
decliacutenio de status em relaccedilatildeo aos membros dos oratoacuterios superiores e seus representantes de
alto ideal de vida religiosa
Na parte inferior da figura haacute ainda outros dois oratoacuterios que consomem um grande
espaccedilo da imagem Haacute um intervalo maior entre eles e a parte superior da Dispositio mas
ainda haacute uma ligaccedilatildeo como aparece no registro ldquoentre o mosteiro e a sede do clero deve
existir uma distacircncia de quase trecircs milhasrdquo Elemento semelhante seraacute repetido para o espaccedilo
que separa as duas casas de baixo
O oratoacuterio do clero eacute chamado de ldquoJoatildeo Batista e dos Profetasrdquo Eacute uma casa larga e
representa os ldquopeacutesrdquo da comunidade Eacute simbolizada por um ldquocachorrordquo Por meio do ldquoespiacuterito
de devoccedilatildeordquo sacerdotes e cleacuterigos vivem em continecircncia e comunidade sob a abstinecircncia
de alguns tipos de alimento e de roupa festiva
Entre o oratoacuterio do clero e o mais inferior que forma a base surge novamente a
menccedilatildeo do espaccedilo de separaccedilatildeo entre os edifiacutecios tema que aponta para um distanciamento
natildeo apenas espacial entre os personagens de cada um mas tambeacutem de poder funccedilatildeo e papel
ldquoentre estes dois oratoacuterios deve existir um espaccedilo de cerca de trecircs estaacutediosrdquo549
Na parte inferior da figura estaacute o oratoacuterio de ldquoAbraatildeo e dos Patriarcasrdquo representado
por uma ovelha cuja funccedilatildeo eacute servir de casa para pessoas casadas e seus filhos sob o ldquotemor
pela salvaccedilatildeordquo Estes viveratildeo em casas privadas mas suas vidas seguiratildeo as ordens do pater
spiritualis e seus supervisores Eles trabalharatildeo regularmente daratildeo o diacutezimo e viveratildeo uma
vida nivelada sem distinccedilatildeo de classes e com bens materiais em comum A imagem ainda
registra ldquoSob o nome deste oratoacuterio estaratildeo reunidos os cocircnjuges com seus filhos e filhas
em forma comunitaacuteria para ter relaccedilotildees com as esposas mais para produzir descendentes
do que para satisfazer os desejosrdquo550
548 Idem 549 Idem 550 Idem
164
Por meio da Dispositio surge a descriccedilatildeo de uma realidade social fortemente
estruturada com espaccedilos geograacuteficos marcados por status funccedilatildeo e dinacircmica religiosa e
social Joaquim recorreu ao texto de Efeacutesios 43 para falar da metaacutefora do corpo de Cristo
com oacutergatildeos diferentes Usou tambeacutem Joatildeo 142 para trazer a imagem das vaacuterias casas
divinas Por meio destas metaacuteforas ele compocircs a imagem de sete ldquocasas espirituaisrdquo nas
quais leigos diferentes niacuteveis de monges cleacuterigos e sacerdotes habitaratildeo551 Estas sete casas
satildeo ordenadas como se fossem a futura Jerusaleacutem transcendental de Apocalipse 22 Natildeo eacute
ainda aquela mas uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica de suas qualidades Esta comunidade
monaacutestica se manifestaraacute no periacuteodo sabaacutetico em ldquosemelhanccedila agrave Jerusaleacutem Celesterdquo552
A Dispositio conteacutem o plano de um monasteacuterio perfeito no qual a vida contemplativa
desempenha o papel central da existecircncia humana553 Apesar do predomiacutenio da ordo
monachorum haveraacute tambeacutem possivelmente sob os influxos da espiritualidade
cisterciense554 espaccedilo para trabalho e estudo Daiacute a existecircncia dos leigos para trabalhar dos
cleacuterigos para ministrar os sacramentos aos leigos e do ldquooratoacuterio do boirdquo formado por
monges que teratildeo contato com cleacuterigos
Mesmo se recusando a definir Joaquim como milenarista em funccedilatildeo de uma definiccedilatildeo
estreita do fenocircmeno555 o francecircs Jean Delumeau descreve longamente o sistema do calabrecircs
na segunda obra de sua trilogia dedicada ao estudo do paraiacuteso556 No momento de resumir a
natureza do repouso sabaacutetico o historiador francecircs recorreu a diversas expressotildees do abade
e forneceu esta siacutentese que dificilmente poderia deixar de ser definida como milenarista
Depois do tempo da ldquolei e da ldquograccedilardquo viraacute portanto o da ldquomaior graccedilardquo
durante o qual a natureza se transformaraacute e se embelezaraacute A liberdade
espiritual floresceraacute no mundo Entatildeo ldquonatildeo haveraacute mais sofrimentos e
gemidos Reinaratildeo ao contraacuterio o repouso a calma a abundacircncia da pazrdquo
Seremos voltados agrave contemplaccedilatildeo ao louvor ldquoDanccedilaremos de alegria ao
contemplar os admiraacuteveis desiacutegnios de Deusrdquo Natildeo haveraacute mais
necessidade de escrever livros para explicar as Escrituras A preacutedica se
deteraacute O tempo da letra teraacute terminado Os fieis contemplaratildeo os misteacuterios
551 Idem 552 Idem 553 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 25 554 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas
a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango v
1 p 217-240 2004 p 229 555 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias
Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria
mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 556 A trilogia de Delumeau eacute formada pelas seguintes obras DELUMEAU Jean Une histoire du paradis Le
Jardin des deacutelices Fayard Hachette Litteacuteratures 2002 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma
histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 DELUMEAU Jean O que sobrou do paraiacuteso
Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003
165
em plena luz O Evangelho segundo a letra seraacute substituiacutedo pelo
ldquoEvangelho eternordquo que procede do Evangelho de Cristo A verdade nos
seraacute dada em sua simplicidade557
O saacutebado do Espiacuterito descrito por Joaquim eacute sim um tipo de milenarismo uma
forma de utopia social558 que espera por um periacuteodo de felicidade para toda a humanidade
mesmo que afirme alguns benefiacutecios especiais para um grupo dentro dela Este periacuteodo seraacute
terreno e natildeo numa realidade transcendental eacute iminente pois a transformaccedilatildeo estaacute proacutexima
de comeccedilar seraacute miraculosa jaacute que as mudanccedilas aconteceratildeo por meio da atuaccedilatildeo
sobrenatural do Espiacuterito divino Tal felicidade seraacute total com a inversatildeo dos males da terra
mas natildeo com a destruiccedilatildeo de todas as instituiccedilotildees anteriores A Igreja sobreviveraacute
completamente transformada e sob a direccedilatildeo de um novo tipo de papado o ldquouniversalis
scilicet pontifex nove Ierusalemrdquo (certamente o pontiacutefice universal da nova Jerusaleacutem) ou
ldquopapa angelicusrdquo559
75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito560
O historiador inglecircs Norman Cohn no momento de apresentar Joaquim de Fiore
como o ldquoinventorrdquo do sistema profeacutetico ldquomais influente de todos os conhecidos na Europa
ateacute ao aparecimento do marxismordquo argumenta que a origem do seu sistema estaacute na
conjugaccedilatildeo de ldquoescatologias derivadas do Apocalipse e dos Oraacuteculos Sibilinosrdquo561 Ao
discutir o conceito de milenarismo na Idade Meacutedia o medievalista Robert Lerner argumenta
557 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 45 As aspas pertencem ao texto citado 558 Assim se expressou Cohn ldquoPor mais respeito que Joaquim tivesse agraves doutrinas exigecircncias e interesses da
Igreja o que ele propusera era na verdade um novo tipo de milenarismo ndash e aliaacutes um tipo que as geraccedilotildees
futuras haveriam de elaborar num sentido antieclesiaacutestico e depois num sentido abertamente secularrdquo Cf
COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia
Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 90 559 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard
K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-
88 p 85 560 Em alguns momentos a busca pelas fontes dos textos eacute uma tarefa ingloacuteria Os autores natildeo informam seus
pontos de partida e o maacuteximo que encontramos satildeo alusotildees mais ou menos transparentes Aleacutem dos topoi
disponiacuteveis para dada conjuntura histoacuterica o que sobra eacute um conjunto de hipoacuteteses com graus diferentes de
plausibilidade Conferir a argumentaccedilatildeo neste sentido em FLANAGAN Sabina Twelfth-Century apocalyptic
imaginations and the coming of the Antichrist The Journal of Religious History v 24 n 1 p 57-69 2000 p
59 561 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 89 O viacutenculo que Cohn fez entre Joaquim e Sibila natildeo
faz muito sentido As sibilas como a Tiburtina eram bem conhecidas no periacuteodo de Joaquim mas
manifestavam um tipo de milenarismo distinto Elas esperavam por um periacuteodo de paz na terra antes do
Anticristo normalmente dirigido por um imperador do final dos tempos ou por um papa poderoso
166
de forma parecida afastando ainda mais o abade do livro joanino e aproximando-o natildeo
necessariamente das Sibilas sugeridas por Cohn mas do poacutes-milenarismo da Glossa
Ordinaria562
Ambos sugerem por caminhos diferentes que o milenarismo de Joaquim de Fiore
natildeo depende inicialmente ou mesmo diretamente do milenarismo de Joatildeo de Patmos
Algumas evidecircncias poderiam reforccedilar as hipoacuteteses destes historiadores O sermatildeo
conhecido como Locuturi aliquid563 escrito por Joaquim em algum momento no iniacutecio da
deacutecada de 1180 em suas uacuteltimas linhas apoacutes descrever o que seria a sexta parte do
Apocalipse termina de forma lacocircnica ldquoEntatildeo viraacute o saacutebado apoacutes a ressurreiccedilatildeo pelo juiacutezo
e finalmente seraacute revelada a gloacuteria da cidade celestialrdquo564 No iniacutecio do sermatildeo ele jaacute
anunciara que o livro de Joatildeo ldquoestaacute dividido e limitado em sete partes e temposrdquo565 Este
texto tambeacutem indica que o abade jaacute tinha consolidada uma perspectiva sobre a estrutura das
seis primeiras partes do Apocalipse elemento que natildeo sofreria mudanccedila ateacute a conclusatildeo do
Expositio quase duas deacutecadas depois A sexta parte encerraria com a derrota da besta e o
falso profeta no final de Apocalipse 19 A seacutetima entatildeo iria de Apocalipse 20 ateacute o capiacutetulo
22 Como jaacute indicamos neste mesmo capiacutetulo Joaquim explicita nas partes iniciais do seu
grande comentaacuterio que ele planejava fazer uma obra de sete partes Se ele mudou para oito
em algum momento do processo foi justamente para dar destaque aos dez versiacuteculos do
texto milenar (a uacutenica mudanccedila significativa na estrutura) destaque que antes ele natildeo dava
A estrutura final do Expositio assim indica como o abade acentuou significativamente o
papel de Apocalipse 201-10 no conjunto da obra ao relacionaacute-lo com o terceiro status e a
seacutetima aetas do mundo
Tanto no Liber de Concordia quanto no Psalterium o abade jaacute apresentou o
desenvolvimento da histoacuteria humana na direccedilatildeo de um cliacutemax de beatitude Talvez uma das
passagens mais claras neste sentido esteja na Concordia
562 LERNER Robert E Millennialism In MC GINN Bernard (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism
Apocalypticism in Western History and Culture New York Continuum 1998 3v V 2 p 326-360 p 346
As Sibilas aludidas por Cohn como a Tiburtina e a Glossa Ordinaria manifestam tipos diferentes de
milenarismos O preacute-milenarismo da Tiburtina descreve um periacuteodo de felicidade na terra anterior ao advento
do Anticristo A Glossa Ordinaria apresenta um poacutes-milenarismo com o periacuteodo de felicidade para depois da
derrota do Anticristo Em ambos os fenocircmenos a parousia (segundo advento de Jesus) natildeo exerce papel na
instauraccedilatildeo da felicidade 563 Sobre este sermatildeo conferir o capiacutetulo IV supra 564 ldquoEt tunc erit sabbatum deinde resurectio ad iudicium et tunc revelabitur gloria civitates supernerdquo Texto
latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 p
130-131 565 ldquoSeptem partibus distinctus et temporibus terminaturrdquo Texto latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino
da Fiore op cit p 130-131
167
Os misteacuterios das divinas paacuteginas mostram-nos enfim os Trecircs Estados do
mundo O primeiro eacute aquele no qual estivemos sob a lei o segundo no qual
estamos sob a graccedila o terceiro que esperamos iminente sob uma graccedila
ampliada [] Por isso o primeiro Estado foi na ciecircncia o segundo na posse
da sabedoria o terceiro na plenitude do sentido O primeiro na servidatildeo
servil o segundo na servidatildeo filial o terceiro na liberdade O primeiro nos
flagelos o segundo na accedilatildeo o terceiro na contemplaccedilatildeo O primeiro no
temor o segundo na feacute o terceiro na caridade O primeiro eacute dos servos o
segundo eacute dos filhos o terceiro eacute dos amigos O primeiro eacute dos velhos o
segundo eacute dos jovens o terceiro das crianccedilas O primeiro na luz da estrela
o segundo na aurora o terceiro ao meio-dia O primeiro no inverno o
segundo na primavera o terceiro no veratildeo O primeiro produz urtigas o
segundo rosas o terceiro liacuterios O primeiro ervas o segundo espigas o
terceiro trigo O primeiro a aacutegua o segundo o vinho o terceiro o oacuteleo O
primeiro pertence agrave Setuageacutegima o segundo agrave Quaresma o terceiro agrave festa
pascal O primeiro Estado pertence ao Pai que eacute criador de todas as coisas
o segundo ao Filho que se dignou assumir nosso limite o terceiro ao
Espiacuterito Santo do qual diz o apoacutestolo Onde se achar o Espiacuterito do Senhor
aiacute estaacute a liberdade (Liber de Concordia 112r)566
O sistema acima apresentado relaciona cada status da histoacuteria da humanidade com
uma pessoa divina explicitando pelo acuacutemulo de imagens e analogias que o segundo
ultrapassou o primeiro e o terceiro ultrapassaraacute o segundo Para o abade a Era do Espiacuterito
seria muito melhor do que as duas anteriores o que significa que a humanidade poderia
esperar por um tempo de esplendor para o futuro sob a tutela do Espiacuterito divino
Sem chamar-se historiador o abade de Fiore se dedicava nos termos de Adeline
Rucquoi agrave ldquoanaacutelise da economia do tempordquo567 A forma como Joaquim entendia a histoacuteria
(preteritae rei) o levou a vaticinar o futuro em uma perspectiva de progresso e de evoluccedilatildeo
loacutegica Para o abade a histoacuteria era uma constante que se desdobrava de forma contiacutenua Se
ele compreende o passado ele pode prever o futuro Neste sentido eacute uacutetil ter uma perspectiva
de siacutentese dos sistemas histoacutericos do abade e verificar a forma como eles demandavam o
periacuteodo sabaacutetico
O editor do Liber de Concordie568 Randolph Daniel professor da Universidade de
Kentucky ao explicar a reflexatildeo histoacuterica de Joaquim o faz por meio daquilo que ele chamou
566 Esta longa citaccedilatildeo estaacute no Livro V capiacutetulo 84 ainda sem ediccedilatildeo criacutetica A traduccedilatildeo em questatildeo eacute de
BAUCHWITZ Oscar Federico A histoacuteria em Joaquim de Fiore Princiacutepios revista de filosofia Natal v 1
n 1 p 109-130 1994 p 110 567 A historiadora Adeline Rucquoi destaca que o seacuteculo XII foi um periacuteodo significativo para a reflexatildeo da
histoacuteria quando filoacutesofos e teoacutelogos se debruccedilaram a buscar uma ratio preterita rei ou o sentido do tempo
Aleacutem de Joaquim ela menciona Hugo de Satildeo Vitor Oton de Freising Anselmo de Havelberg e Petrus
Comestor Cf RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 223-224 568 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti
Philadelphia The American Philosophical Society 1983 O autor sintetiza os sistemas histoacutericos de Joaquim
168
de ldquoinflexotildees do pensamentordquo que aparecem nas poucas notas auto-biograacuteficas que o abade
deixou em suas obras569 A primeira se deu em algum momento durante a peregrinaccedilatildeo agrave
Palestina e deveria jaacute ser o conteuacutedo principal de suas pregaccedilotildees depois que ele retornou
para a Calaacutebria e atuava como pregador itinerante em Rende no iniacutecio da deacutecada de 1170
entremente o pontificado de Alexandre III (papa de 1159-1181)
Este sistema foi chamado por Joaquim de concordia duorum testamentorum ou os
paralelos entre as perseguiccedilotildees de Israel e as perseguiccedilotildees da Igreja Eacute uma maneira de
dividir a histoacuteria em duas grandes etapas Uma se chamava Antigo Testamento e se estendia
da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus A outra era o Novo Testamento e iria do nascimento
de Jesus ateacute o final dos tempos A histoacuteria da humanidade eacute o palco da atuaccedilatildeo de Deus para
salvar seus povos O primeiro era Israel O segundo a Igreja Neste esquema a histoacuteria
avanccedila por meio de tribulaccedilotildees e perseguiccedilotildees que se repetem paralelamente nos dois
testamentos e nos dois povos
As tensotildees poliacuteticas entre o papado e Impeacuterio Germacircnico estavam particularmente
altas depois de deacutecadas de conflito entre o papa Alexandre III (papa de 1159-1181) e o
Imperador Frederico I Barbarorroxa (1122-1190) Este ambiente parece estar traduzido no
alinhamento que Joaquim fez entre as ldquoperseguiccedilotildeesrdquo dos judeus na eacutepoca do Antigo
Testamento com as batalhas contra a Igreja no tempo do Novo Testamento
Joaquim aplicou esta estrutura de perseguiccedilotildees aos sete selos do Apocalipse e a
abordou repetidamente em vaacuterias de suas obras desde Genealogia570 ateacute De Septem
Sigillis571 embora os detalhes mudem de texto para texto Posteriormente este esquema de
dois tempos foi definido pelo abade de secunda diffinitio e o simbolizou pela letra grega
cursiva ocircmega572 Os Testamentos assim satildeo expressotildees tanto canocircnicas quanto histoacutericas
Se toda a histoacuteria de Israel da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus pode ser encontrada no
primeiro testamento Joaquim espera que a histoacuteria completa da Igreja desde sua origem ateacute
o final dos tempos esteja contida no segundo testamento especialmente no Apocalipse de
Joatildeo Mesmo neste esquema de dois tempos ainda haacute um momento sabaacutetico A seacuterie de sete
perseguiccedilotildees de Israel e da Igreja terminam ambas em um periacuteodo de descanso No caso de
em DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of
History Speculum Chicago v 55 n 3 p 469-483 1980 569 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xiii-xviii 570 Genealogia eacute provavelmente a obra mais antiga de Joaquim escrita segundo Potestagrave em 1176 Cf
POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 16 571 Possivelmente de 1198 Cf TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I Sigilli dellrsquoApocalisse In
GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 45 572 Conferir o esquema na posiccedilatildeo inferior esquerda do anexo 6
169
Israel o descanso veio apoacutes os conflitos com os gregos representados por Antiacuteoco Epiacutefanes
e se estendeu ateacute o nascimento de Jesus De maneira paralela apoacutes a seacutetima perseguiccedilatildeo pelo
Anticristo viraacute um descanso para a Igreja O princiacutepio fundamental eacute uma divisatildeo da histoacuteria
em duas partes cada uma delas marcada por perseguiccedilatildeo julgamento e batalha do povo de
Deus No futuro que Joaquim imaginava ser iminente a terceira pessoa da Trindade iria
libertar completamente os cristatildeos fieacuteis do sofrimento e das tribulaccedilotildees que caracterizaram
a histoacuteria desde os tempos de Israel ateacute os dias do abade Os conflitos entre os poderes
temporais e eclesiaacutesticos terminariam de vez jaacute que o periacuteodo sabaacutetico seria caracterizado
principalmente pela paz
A segunda inflexatildeo se deu no fim de 1183 ou iniacutecio de 1184 enquanto Joaquim
esteve em Casamari para tratar de aspectos burocraacuteticos para Corazzo Ali desenvolveu seu
mais conhecido sistema de tria statum em que a Trindade se relaciona com a histoacuteria
imprimindo nela a natureza das pessoas divinas Pai Filho e Espiacuterito573 Este uacuteltimo por sua
vez seria responsaacutevel por implantar uma era de perfeiccedilatildeo espiritual na terra Estes status
eram marcados ainda por initiatio frutificatio e consumatio Ou seja eles apresentavam
um iniacutecio um momento em que frutificam de maneira especial e uma fase de teacutermino No
caso da Era do Pai esta comeccedilou com Adatildeo frutificou em Abraatildeo e terminou em Cristo O
segundo status comeccedilou com Uzias frutificou em Zacarias (pai de Joatildeo Batista) e terminaria
algum tempo depois de Joaquim O terceiro status comeccedilou com Satildeo Bento de Nuacutersia
frutificaria na geraccedilatildeo de Joaquim e terminaria no fim da histoacuteria574 Joaquim aplicou este
esquema trinitaacuterio agrave progressatildeo da vida religiosa na histoacuteria No status do Pai predominavam
os casados no status do Filho predominavam os cleacuterigos no status do Espiacuterito
predominariam os monges Aplicou tambeacutem em trecircs povos a proteccedilatildeo de Deus deixou
Israel passou para os gregos e terminou nos latinos Esta divisatildeo em trecircs status foi definida
pelo abade como prima diffinitio representada simbolicamente pela letra grega uncial
Alfa575 Nesta estrutura a histoacuteria tem uma meta que soacute seraacute alcanccedilada no status do Espiacuterito
apoacutes o fim do segundo status quando se manifestar o descanso sabaacutetico A prima diffinitio
mais ateacute do que a secunda manifesta toda a ansiedade do abade pela perfeiccedilatildeo da vida
monaacutestica e talvez reflita a crise que acabaraacute levando-o a deixar Corazzo e fundar a Ordem
Florense
573 Conferir o diagrama dos Ciacuterculos Trinitaacuterios do anexo 6 574 WHALEN Brett Edward Dominion of God op cit 107 575 Conferir o esquema na posiccedilatildeo superior esquerda do anexo 6
170
O primeiro tempus coincide com o primeiro status O segundo tempus com o segundo
status ateacute a eacutepoca de Joaquim Apesar do saacutebado do segundo tempus natildeo ser tratado de forma
tatildeo proeminente quanto o saacutebado do terceiro status em ambas as diffinitiones a plena
realizaccedilatildeo estaacute no futuro Nas duas haacute uma evoluccedilatildeo de instituiccedilotildees e de qualidade de vida576
Finalmente apoacutes retornar para Corazzo cerca de um ano apoacutes a passagem por
Casamari Joaquim deu mais um passo na consolidaccedilatildeo dos seus sistemas histoacutericos Ele
finalmente conseguiu relacionar a concordia duorum testamentorum e a intervenccedilatildeo divina
por meio dos tria statum atraveacutes da estrutura geral do Apocalipse A obra de Joatildeo assim se
tornou aos olhos do abade a chave para a compreensatildeo inteira da histoacuteria da humanidade
Aleacutem dos sistemas histoacutericos do abade a historiografia tem sugerido outra base
significativa para o saacutebado do Espiacuterito desta vez por meio dos recursos exegeacuteticos do abade
Os leitores ocidentais do Apocalipse de Joatildeo desde as criacuteticas ao quiliasmo de Agostinho
de Hipona Jerocircnimo e Gregoacuterio Magno liam o Apocalipse de forma moralizante e
alegoacuterica sem viacutenculos expliacutecitos com a histoacuteria O milecircnio dos maacutertires de Apocalipse 20
era interpretado de forma a descrever o tempo da Igreja na terra577 Estes autores imaginavam
a histoacuteria caminhando na direccedilatildeo de vaacuterios desastres sendo o penuacuteltimo o advento do
Anticristo Ele instauraria uma grande perseguiccedilatildeo agrave Igreja depois do qual Cristo viria de
forma gloriosa para o uacuteltimo julgamento e a consumaccedilatildeo da histoacuteria do mundo578
Uma ideia surgiu entretanto entre os antigos comentaristas de Daniel Ao comentar
Daniel 1211-12 por volta do ano 400 Jerocircnimo argumentou que o tempo da tribulaccedilatildeo
(1290 dias) e do fim do mundo (1335 dias) tinha um prazo residual de 45 dias Este mecircs e
meio seria entatildeo o intervalo entre a derrota do Anticristo e o julgamento final da humanidade
Beda o Veneraacutevel no iniacutecio do seacuteculo VIII concordou com Jerocircnimo e acrescentou que
este intervalo tambeacutem poderia ser encontrado nos trinta minutos de silecircncio no ceacuteu apoacutes a
576 DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of
History op cit p 482 577 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 29-31 Segundo Desroche esta ldquoconcepccedilatildeo
alcanccedilou posiccedilatildeo hegemocircnica mas nunca deixou de ser sitiada por fileiras de dissidecircncias oriundas das trecircs
grandes confissotildees cristatildes (catolicismo protestantismo ortodoxia)rdquo Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de
messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 22
Por isso Umberto Eco fala de um ldquomillenarismus absconditusrdquo neste periacuteodo de hostilidade contra o quiliasmo
Cf ECO Umberto Wainting for the Millennium In LANDES Richard GOW Andrew VAN METER
David C (ed) The apocalyptic year 1000 religious expectation and social change ndash 950-1050 Oxford Oxford
University Press 2003 p 121-135 p 125 578 FLANAGAN op cit p 59 Flanagan acrescenta que o que variava bastante era a sequecircncia dos eventos
finais o tempo entre cada um deles bem como a perspectiva de iminecircncia
171
abertura do seacutetimo selo do Apocalipse O exegeta do seacuteculo IX Haimo de Auxerre
argumentou ainda que o periacuteodo em questatildeo natildeo precisava ser qualificado de forma precisa
jaacute que era apenas um prazo miacutenimo Estes autores natildeo estavam certos sobre os motivos para
este prazo579 ateacute que a Glossa Ordinaria no iniacutecio do seacuteculo XII em uma de suas notas
sugeriu que o tempo posterior ao advento do Anticristo e anterior agrave volta de Cristo
denominado entatildeo de refrigerium sactorum (descanso dos santos) seria uma fase de
felicidade prosperidade e paz na terra Alguns autores especialmente do mesmo periacuteodo
ampliaram ainda mais este novo conceito como Honorius Augustodunesis (1080-1156) que
argumentou que ele seria o tempo da conversatildeo de todos os pagatildeos ou Otto de Freising
(114-1158) que previu nele o ingresso dos judeus agrave Igreja Levando em conta esta corrente
exegeacutetica Robert Lerner levantou a hipoacutetese que o milenarismo do Espiacuterito de Joaquim
deveria ser entendido como uma expressatildeo exegeacutetica modificada da ldquotradiccedilatildeo do refrigeacuterio
dos santosrdquo580 Eacute possiacutevel concordar parcialmente com Lerner ao indicar uma fonte
plausiacutevel para a escatologia do abade mas natildeo de forma isolada Os sistemas histoacutericos dele
jaacute demandavam a expectativa de um futuro melhor
De qualquer forma o que se percebe eacute que o descanso sabaacutetico que Joaquim
descreveu na passagem de Apocalipse 201-10 teve pontos de partida bem mais amplos do
que o texto joanino O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim parece ser o resultado de sua reflexatildeo
histoacuterica e da tradiccedilatildeo exegeacutetica do refrigeacuterio dos santos Assim nos momentos finais do
Expositio ao fazer a exegese de Apocalipse 20 o abade aplica no milecircnio de Joatildeo as ideias
que jaacute trazia consolidadas que apoacutes a queda do Anticristo e antes da volta de Jesus haveria
na terra natildeo necessariamente um reinado dos maacutertires mas o descanso da Igreja e acima de
tudo o refrigeacuterio dos monges sob a direccedilatildeo final da terceira pessoa da Trindade
76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia
Segundo Sabina Flanagan explicaccedilotildees histoacutericas para as opccedilotildees dos autores podem
ter relaccedilatildeo entre outros fatores com crenccedilas e restriccedilotildees dogmaacuteticas religiosas com
engajamentos poliacuteticos e viacutenculos sociais ou com confrontos contra dissidecircncias581 Essa eacute
579 LERNER Robert E Millennialism op cit p 344 TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I
Sigilli dellrsquoApocalisse op cit p 34 580 LERNER Robert E Millennialism op cit p 347 581 FLANAGAN op cit p 64
172
uma forma de dizer que as representaccedilotildees que se materializaram nas praacuteticas e discursos de
Joaquim configuram respostas a conjunturas poliacuteticas sociais culturais e eclesiaacutesticas que
caracterizavam o Ocidente medieval582
Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai Mauro um notaacuterio a
serviccedilo da chancelaria normanda Inicialmente estes passos foram dados sem sobressaltos
comeccedilando na Calaacutebria e se deslocando em seguida para a corte do Reino da Siciacutelia em
Palermo Ele nasceu em 1135 um pouco depois da fundaccedilatildeo do Reino por Rogeacuterio II e
abandonou a carreira na corte em 1167 um ano depois da morte do rei William I Estas
primeiras deacutecadas de vida e o treinamento recebido para o trabalho na corte devem ter lhe
capacitado para o relacionamento com as diversas populaccedilotildees e etnias do reino Um notaacuterio
especialmente em Palermo deveria ter conhecimento do grego e do aacuterabe para promover
seus registros583 Estas qualidades possivelmente estiveram envolvidas em sua raacutepida
ascensatildeo no monasteacuterio de Corazzo e nas negociaccedilotildees com os poderes eclesiaacutesticos e
temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore
Essa proximidade com a cultura aacuterabe da Siciacutelia ou os contatos proacuteximos que ele
possa ter tido na corte de Palermo entretanto natildeo produziram nele uma perspectiva positiva
quanto ao Islatilde Mesmo que natildeo haja em suas obras nada parecido com as convocaccedilotildees de
Satildeo Bernardo para uma guerra santa584 os muccedilulmanos satildeo descritos recorrentemente pelo
calabrecircs como agentes do diabo para perseguir a Igreja
Ele ingressou numa comunidade religiosa no iniacutecio do governo de William II no
comeccedilo da deacutecada de 1170 Quando este rei morreu em 1189 Joaquim jaacute havia passado por
Casamari comeccedilado a produccedilatildeo de suas grandes obras e tinha jaacute uma definiccedilatildeo das duas
deffinitio que ele usava para refletir a histoacuteria Aqueles foram tempos de muita instabilidade
Depois de quatro governantes de origem normanda (Rogeacuterio I Rogeacuterio II William I e
William II) o reino finalmente passou para as matildeos dos Hohenstaufen apoacutes o governo de
transiccedilatildeo do conde Tancredo Os encontros do abade com o imperador Henrique ou com a
rainha Constacircncia resultaram natildeo apenas em benefiacutecios materiais para Joaquim e seus
irmatildeos de Fiore mas tambeacutem no fim do viacutenculo entre a Babilocircnia e os imperadores
germacircnicos que se manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrecircs Com isso
582 WHALEN op cit p 115 583 Para os aspectos culturais e sociais do Reino da Siciacutelia conferir o capiacutetulo V 584 Cf AacuteLVAREZ PALENZUELA Vicente Aacutengel El Cister y las Oacuterdenes Militares em el impulso hacia
Oriente Cuardernos de Historia Medieval Madrid v 1 p 3-19 1998 p 8
173
na parte final do Expositio o Impeacuterio deixou de ser o grande adversaacuterio da Igreja no final
dos tempos
Joaquim viveu num periacuteodo de mudanccedilas profundas na sociedade medieval585 O
Impeacuterio Bizantino perdera muito do seu poder por causa das derrotas contra os turcos
muccedilulmanos as Igrejas Latina e Grega estavam em processo de consolidar a separaccedilatildeo a
exuberante monarquia normanda instalada na Siciacutelia e no sul da Itaacutelia chegava ao fim o
poder islacircmico na Peniacutensula Ibeacuterica encolhia novas formas de espiritualidade surgiam
quando antigas enfraqueciam Tudo isso pode estar subjacente agrave sua ansiedade pela
transformaccedilatildeo da realidade por meio do descanso sabaacutetico do Espiacuterito Entretanto talvez o
fator mais preponderante esteja no ldquomovimento reformadorrdquo gerado no interior da Igreja
romana586
A perspectiva de que as coisas natildeo eram como deveriam ser de que a Igreja dos
proacuteprios tempos havia se afastado dos propoacutesitos pregados pelos primeiros apoacutestolos e pelo
proacuteprio fundador principalmente na questatildeo da simplicidade de vida acabou dando origem
a partir do seacuteculo XI a movimentos de reforma em diversos setores da sociedade Ocidental
e em diferentes espaccedilos eclesiaacutesticos Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do
clero entendido como corrompido e refletir sobre o papel da Igreja na sociedade em relaccedilatildeo
principalmente com as estruturas dos poderes temporais A professora Andreacuteia Frazatildeo ao
analisar os projetos subjacentes aos conciacutelios lateranenses listou algumas destas
perspectivas reformistas como as implementadas por poderes seculares (monarquias
caroliacutengias ou imperadores germacircnicos por exemplo) as promovidas por movimentos
monaacutesticos (Cluny Gorze Metz etc) as de iniciativa ldquopopularrdquo (como o movimento
patarino) e a fomentada pelos bispos de Roma eventualmente denominada de Reforma
Gregoriana Este uacuteltimo movimento partindo da Cuacuteria Papal procurou impor Roma ldquocomo
centro poliacutetico religioso e administrativo da Igreja ocidental [] e como o principal poder
de caraacuteter universal no Ocidente ao qual todos os demais deveriam se subordinar inclusive
o imperialrdquo 587
A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em funccedilatildeo do papa Gregoacuterio VII (papa
de 1073-1085) que em diversos momentos apelou para o senso de iminecircncia do advento do
585 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 221 586 WHALEN op cit p 102 587 SILVA Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da A luta entre o Regnum et Imperium e a Construccedilatildeo da Ecclesia
Universalis uma anaacutelise comparativa dos Conciacutelios Lateranenses (1123-1215) In SILVA Francisco Carlos
Teixeira CABRAL Ricardo Pereira MUNHOZ Sidnei J (coords) Impeacuterios na Histoacuteria Rio de Janeiro
Elsevier 2009 p 95-105 p 97-98
174
Anticristo para dar legitimidade aos seus apelos reformadores Em uma de suas cartas ele
explica a oposiccedilatildeo como sinal do fim do mundo ldquoE natildeo fiquem admirados Pois quanto mais
perto o dia do Anticristo se manifestar mais ele luta para esmagar a feacute cristatilderdquo588 Este papa
na linha agostiniana evitou fazer prediccedilotildees sobre o fim do mundo mas reiteradamente
manifestou a convicccedilatildeo de que ele deveria estar perto em funccedilatildeo da manifestaccedilatildeo das
heresias e da corrupccedilatildeo da Igreja Neste tipo de visatildeo de histoacuteria os eventos finais deveriam
validar os esforccedilos para buscar pureza moral e ordem correta na instituiccedilatildeo eclesiaacutestica
Mudanccedilas no cenaacuterio poliacutetico recebiam um lugar no cenaacuterio do fim do mundo conflitos de
muacuteltiplas naturezas eram legitimados pela perspectiva do juiacutezo final de forma que a maioria
das crenccedilas apocaliacutepticas medievais passaram a ser instrumentos de retoacuterica religiosa
poliacutetica e social agrave serviccedilo de papas cleacuterigos imperadores reis e seus apologistas
Eacute certo que o senso de fim de mundo ou as representaccedilotildees escatoloacutegicas natildeo
conseguem explicar totalmente as praacuteticas dos movimentos reformadores De qualquer
forma esta relaccedilatildeo entre reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore
conectada com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos monaacutesticos
tradicionais para toda a sociedade (christianitas)589 Mas o abade acabou ultrapassando o
modelo gregoriano e mesmo o imperial em funccedilatildeo de sua ecircnfase numa nova forma de
ecclesia totalmente monasticisada com o foco no futuro O arqueacutetipo deixou de ser a era
apostoacutelica (no passado) mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro)
Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este fenocircmeno de
ldquoapocalipcismo reformadorrdquo um tipo de perspectiva apocaliacuteptica medieval que tinha como
preocupaccedilatildeo primaacuteria a reforma clerical590 Estes autores criam em uma era porvir de
desenvolvimento espiritual na qual os cleacuterigos apoacutes serem ldquopurificadosrdquo pelas tribulaccedilotildees
do final dos tempos se recuperariam de uma forma nunca vista antes Alguns focavam na
reforma de tipo tradicional com sua ecircnfase no retorno ao modelo apostoacutelico de pureza e
simplicidade outros como Joaquim insistiam que a era porvir era o zecircnite da histoacuteria
resultado de um longo processo evolutivo
588 Citado por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform 1100-1500 In MC GINN Bernard
(ed) The Encyclopedia of Apocalypticism Apocalypticism in Western History and Culture New York
Continuum 1998 3v V 2 p 74-109 p 76 589 Este modelo gregoriano buscou expandir-se para a sociedade inteira por meio da divulgaccedilatildeo do ideal da
ldquoIgreja dos tempos apostoacutelicosrdquo Cf MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 78 590 KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge
University Press 1990 p 9 MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 74-109
175
Kathryn resumiu entatildeo as marcas do apocalipticismo reformador um desejo urgente
por reforma preocupaccedilatildeo acentuada com o futuro da Igreja tentativa de entender o presente
agrave luz de esquemas escatoloacutegicos tradicionais preocupaccedilatildeo com o papel de uma ordem
religiosa particular no drama do final dos tempos ou no futuro da igreja um senso de crise
de lideranccedila eclesiaacutestica e temporal uma ansiedade por levar o clero aos princiacutepios
disciplinares dos fundadores do monasticismo ou agrave igreja dos primoacuterdios com ecircnfase
especial na pobreza e na simplicidade de vida tendecircncia conservadora em termos religiosos
e sociais591
Estes reformadores estavam continuamente avaliando as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas de
seus dias e projetavam para ela um periacuteodo dourado de vitalidade espiritual Este tipo de
expectativa eventualmente demandava accedilatildeo e sugeria que indiviacuteduos e instituiccedilotildees poderiam
participar (apropinquare) na viabilizaccedilatildeo do futuro ou pelo menos na definiccedilatildeo de quais
pessoas poderiam participar deste futuro idealizado Eacute uma espeacutecie de descriccedilatildeo de um
futuro ldquodouradordquo para confrontar o presente ldquopoluiacutedordquo
Em termos concretos tanto os movimentos reformadores quanto os apocalipcismos
medievais tiveram seus proacuteprios fatores de surgimento mas alguns destes podem ter
promovido o encontro das duas expectativas Primeiramente o desenvolvimento dos
movimentos hereacuteticos com frequecircncia o resultado de programas reformistas frustrados com
constantes criacuteticas ao clero e a corrupccedilatildeo da Igreja A persistecircncia destes grupos poderia
produzir a sensaccedilatildeo de que as heresias eram consequecircncia do pecado da Igreja e que para
acabar com elas era preciso se purificar Produzia tambeacutem a retoacuterica apocaliacuteptica por parte
das autoridades que constantemente recorriam agraves figuras negativas do final do tempo para
vinculaacute-las com as heresias Um segundo fator poderia estar nas cruzadas que acentuaram a
sensaccedilatildeo de que o cristianismo estava sob constante ameaccedila de povos pagatildeos Finalmente e
talvez o mais significativo os efeitos da controveacutersia das investiduras e o conflito entre
Igreja e poder temporal A persistecircncia dos conflitos com os imperadores germacircnicos pode
ter promovido o surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada de
conflitos histoacutericos desde os seus primoacuterdios A Igreja passa a ser vista como uma
comunidade sagrada que sofre perseguiccedilatildeo intermitente592 O discurso apocaliacuteptico se tornou
uma tentativa de dar sentido aos constantes embates contra os poderes temporais Eacute neste
591 KERBY-FULTON op cit p 9 592 RIEDL Matthias Joachim of Fiore as political thinker In WANNENMACHER Julia Eva Joachim of
Fiore and the influence of inspiration essays in memory of Marjorie Reeves (1905-2003) London Routledge
2013 p 90-116 p 94
176
sentido que os imperadores frequentemente satildeo estigmatizados com retoacuterica apocaliacuteptica
dando ao papado por seu lado um papel acentuado no drama do final dos tempos593
Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de forma milenarista
McGinn cita como exemplo a perspectiva do franciscano Roger Bacon (1214-1294) que
acreditava numa reforma realizada por meio do surgimento de um papa angelicus e de um
imperador ungido que juntos purificariam a Igreja antes do surgimento do Anticristo594 Em
Joaquim entretanto o fenocircmeno foi conjugado com o milenarismo nos moldes do antigo
quiliasmo cristatildeo e manifestou as noccedilotildees de que uma unidade cristatilde idealizada seria
alcanccedilada atraveacutes da transformaccedilatildeo da ecclesia a graccedila de Deus deixou a Igreja grega e
transitou para a Igreja latina595 o Anticristo do final dos tempos iria se manifestar a qualquer
momento para perseguir a Igreja por meio dos sarracenos e dos hereges Quando isso
acontecesse ldquojudeus gregos pagatildeos e talvez mesmo os sarracenos seriam levados agrave
salvaccedilatildeo atraveacutes de homens espirituais da Igreja latina reunidos sob a direccedilatildeo de uma igreja
romana transformadardquo596
77 Resumo
Este capiacutetulo analisou a seacutetima seccedilatildeo do Expositio in Apocalypsim e relacionou-a
com as perspectivas milenaristas de Joaquim presentes em outros lugares de sua obra Nela
Joaquim rompe com a tradiccedilatildeo agostiniana que identificou o milecircnio joanino com a histoacuteria
da Igreja e propotildee em seu lugar um periacuteodo de felicidade na terra para toda a humanidade
sob a direccedilatildeo do Espiacuterito Santo O abade esperava algum tipo de continuidade entre o
presente e o futuro mas com a transformaccedilatildeo de suas instituiccedilotildees sociais especialmente da
Igreja Este periacuteodo de descanso e contemplaccedilatildeo natildeo teve como ponto de partida entretanto
diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim as as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a
tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que esperava uma fase histoacuterica de felicidade na terra
593 KERBY-FULTON op cit p 8 594 Citato por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 81 595 Haacute neste caso aquilo que Whalen chamou de ldquopropoacutesito geograacuteficordquo divino que levou a graccedila de Deus a se
mover do Oriente para o Ocidente e no saacutebado do Espiacuterito retornar para o Oriente Cf WHALEN op cit p
121 596 WHALEN op cit p 123 Joaquim abraccedila o ideal do ldquoservo sofredorrdquo de Isaiacuteas 53 e a espera de uma
grande conversatildeo dos povos no final dos tempos que demanda mais pregaccedilatildeo e menos conflito Nos seus
termos ldquopraedicando magis quam proeliandordquo (Expositio in Apocalypsim 164v) Cf TAGLIAPIETRA
Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 54
177
anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica deste tipo de milenarismo pode estar relacionada
com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica
CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO
DOS MONGES
A tiacutetulo de recapitulaccedilatildeo cabe reafirmar nossos principais argumentos apresentados
e sustentados no decorrer deste trabalho O Apocalipse foi produzido pelo profeta Joatildeo de
Patmos na forma de um instrumento retoacuterico de caraacuteter milenarista cuja funccedilatildeo atendia a
determinadas percepccedilotildees de crise social que seu autor manifestava e que entendendo-se
como convocado divinamente para atuar entre as igrejas da proviacutencia da Aacutesia desejava levaacute-
las ao rompimento sectaacuterio com a sociedade romana Joatildeo se recusava a viver ldquoneste mundordquo
e esperava pela inauguraccedilatildeo de um ldquooutro mundordquo no tempo do milecircnio A visatildeo de histoacuteria
que aparece subjacente agrave sua narrativa religiosa se constitui em uma criacutetica agraves representaccedilotildees
sociais romanas encontradas na proviacutencia asiaacutetica
O Apocalipse foi lido como texto sagrado por Joaquim de Fiore e como base para a
construccedilatildeo de sua filosofia da histoacuteria Por meio do seu comentaacuterio da obra joanina o abade
construiu a expectativa de superaccedilatildeo do tempo presente em uma eacutepoca de ouro dirigida pela
terceira pessoa da Trindade o Espiacuterito Santo As representaccedilotildees milenaristas do calabrecircs
entretanto natildeo partiram diretamente do milecircnio joanino jaacute que dependem mais da tradiccedilatildeo
do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo e de sua reflexatildeo histoacuterico-trinitaacuteria
Convergecircncias e divergecircncias
O Apocalipse foi produzido no final do seacuteculo I na Ilha de Patmos O Expositio por
sua vez surgiu nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XII na Itaacutelia597 O judeu Joatildeo rejeitava a
Peniacutensula Itaacutelica pois nela ficava a capital do Impeacuterio que destruiu sua estimada Jerusaleacutem
Em sua obra o profeta exilado se alonga na imaginaccedilatildeo de como Roma seria devorada pelo
fogo 1100 anos depois um italiano da Calaacutebria se ldquoencantardquo pelo texto de Joatildeo e resolve
gastar os uacuteltimos anos de sua vida para divulgaacute-lo Ao produzir seu escrito Joaquim
transcreveu integralmente o material joanino (na sua traduccedilatildeo latina) fazendo do Expositio
efetivamente uma coacutepia comentada do Apocalipse Haacute aqui um viacutenculo formal entre os dois
textos Mas isso natildeo esclarece totalmente os relacionamentos as recepccedilotildees as adaptaccedilotildees
597 Conferir esta relaccedilatildeo geograacutefica no anexo 4
179
as mutilaccedilotildees as invenccedilotildees os horizontes de leitura criados pela natureza diacrocircnica de tal
viacutenculo Por isso ainda eacute preciso promover anaacutelises comparativas que pressuponham os dois
objetos (apocalipse e comentaacuterio) como fenocircmenos distintos em funccedilatildeo de suas proacuteprias
conjunturas condiccedilotildees de emergecircncia e pontos de partida
Segundo Juumlrgen Kocka comparaccedilatildeo eacute a discussatildeo de ldquodois ou mais fenocircmenos
histoacutericos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenccedilas de modo a se
alcanccedilar determinados objetivos intelectuaisrdquo598 Eacute o que faremos nesta conclusatildeo com
ecircnfase nas diferenccedilas e especificidades599 para assim descrever explicar e interpretar
elementos especiacuteficos de cada um dos objetos de comparaccedilatildeo600 Tomando uma expressatildeo
irocircnica de Kocka e Haupt mesmo que natildeo pudeacutessemos comparar ldquomaccedilatildes e laranjasrdquo (como
um apocalipse e um comentaacuterio biacuteblico) ainda assim poderiacuteamos apontar as peculiaridades
de cada objeto e seus usos particulares601
Para efeitos de comparaccedilatildeo pressupomos as discussotildees dos capiacutetulos anteriores
quando analisamos separadamente os aspectos formais de Apocalipse 201-10 e seu
respectivo comentaacuterio exegeacutetico na seacutetima parte do Expositio contextualizamos cada
unidade de comparaccedilatildeo apontando suas respectivas condiccedilotildees de produccedilatildeo analisamos o
conteuacutedo recortado de cada texto explicitando as representaccedilotildees milenaristas os pontos de
partida e os fatores de emergecircncia No caso especiacutefico de Joaquim ainda discutimos suas
formas de leitura e posturas hermenecircuticas
O que comparamos Eacute o tipo de milenarismo que se objetiva em cada texto Para
tanto analisamos os pontos de contato as convergecircncias e divergecircncias e as compreensotildees
de tais aspectos agrave luz de seus respectivos contextos Usamos como fio norteador para a
anaacutelise comparativa a definiccedilatildeo de milenarismo anteriormente pressuposta e agora
desdobrada602
598 KOCKA Juumlrgen Comparison and beyond History and theory Middletown n 42 p 39-44 2003 p 39 599 Conferir uma siacutentese de modelos de observaccedilatildeo comparada em BARROS Joseacute DacuteAssunccedilatildeo Histoacuteria
comparada um novo modo de ver e fazer a histoacuteria Revista de Histoacuteria Comparada Rio de Janeiro v 1 n
1 p 1-30 2007 p 18-21 600 KOCKA Juumlrgen HAUPT Heinz-Gerhard Comparison and Beyond traditions scope and perspectives of
Comparative History In HAUPT Heins-Gerhard KOCKA Juumlrgen (orgs) Comparative and Transnational
History Central European approaches and new perspectives Oxford Berghahn Books 2009 p 1-30 p 2 601 HAUPT Heinz-Gerhard KOCKA Juumlrgen Comparative History Methods Aims Problems In COHEN
Deborah OrsquoCONNOR Maura Comparison and History Europe in cross-national perspective London
Routledge 2004 p 23-39 p 27 602 Para tanto contamos com as contribuiccedilotildees principalmente da socioacuteloga israelense Yonina Talmon e do
historiador americano Richard Landes Cf TALMON Yonina Millenarism In SILLS David L (ed)
International Encyclopedia of the Social Sciences London The Macmillan Company amp The Free Press 1968
19 v V X p 349-362 LANDES Richard A Millennialism in the Western World In LANDES Richard A
(ed) Encyclopedia of millennialism and millennial movements New York Routledge 2000 p 453-466
180
Por uma definiccedilatildeo de milenarismo
No iniacutecio desta tese anunciamos a definiccedilatildeo de milenarismo do historiador inglecircs
Norman Cohn que entendeu-o como um tipo particular de utopia salvacionista coletiva jaacute
que todos os fieacuteis experimentariam a felicidade terrena jaacute que essa felicidade seria
alcanccedilada na terra e natildeo em uma realidade transcendente total pois aguarda uma completa
inversatildeo dos males da terra iminente pois a transformaccedilatildeo completa estaria perto de
comeccedilar e miraculosa jaacute que a redenccedilatildeo contaria com a ajuda de poderes sobrenaturais603
Alguns autores entretanto como Jean Delumeau optam por uma noccedilatildeo reducionista
do fenocircmeno ldquono cristianismo deve-se chamar de milenarismo a crenccedila num reino terrestre
de Cristo e de seus eleitos ndash reino este que deve durar mil anos entendidos seja literalmente
seja simbolicamenterdquo604 A definiccedilatildeo de Delumeau parece entender por milenarismo apenas
os fenocircmenos que replicam o milecircnio de Apocalipse 20 Isso o leva agrave curiosa sugestatildeo de
que Joaquim de Fiore a quem ele dedicou quase cinquenta paacuteginas do seu livro sobre
ldquomilenarismordquo natildeo poderia ser chamado de milenarista605 Diante de tal posicionamento eacute
preciso lembrar do argumento de Paula Fredriksen ldquoa ideia de um periacuteodo de mil anos
implicada por este termo eacute menos essencial para o seu sentido que o seu foco sobre a terra
a histoacuteria humana como a uacuteltima arena da redenccedilatildeordquo606
No campo oposto ao de Delumeau Kathryn Kerby-Fulton opta por uma definiccedilatildeo
abrangente demais ldquoRefere-se agrave crenccedila num futuro de becircnccedilatildeos na terra antes do fim da
LANDES Richard A Heaven on Earth the varieties of the millennial experience Oxford Oxford Universit
Press 2011 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time In NEWPORT
Kenneth G C GRIBBEN Crawford (eds) Expecting the End millennialism in social and historical context
Waco Baylor University Press 2006 p 1-23 603 Cf COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade
Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 Pesquisadores deste tema continuam partindo das definiccedilotildees
de Cohn mesmo que sua obra sobre os milenaristas revolucionaacuterios da Idade Meacutedia jaacute tenha quase 50 anos
Por exemplo cf CLARKE Peter The origins scope and spread of the millenarian idea In LIEB Michael
MASON Emma Roberts Johathan (edss) The Oxford Handbook of the Reception History of the Bible
Oxford Oxford University Press 2011 p 235-242 604 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras
1997 p 17-18 Tambeacutem minimiza o milenarismo de Joaquim SARANYANA Josep Ignasi Sobre El
milenarismo de Joaquiacuten de Fiore Uma lectura retrospectiva Teologia y Vida Santiago v XLIV p 221-232
2003 605 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias
Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria
mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 606 FREDRIKSEN Paula Tyconius and Augustine on the Apocalypse In EMMERSON Richard K
MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 20-
37 p 20
181
histoacuteriardquo607 Ou entatildeo John Gager ldquoum movimento que espera uma nova ordem de realidade
em um futuro proacuteximordquo608 Diante de tal formulaccedilatildeo tanto o que espera a redenccedilatildeo de forma
iminente quanto aquele que a projetou para milhares de anos agrave frente satildeo tomados como
milenaristas Por isso o proacuteprio Gager refina sua definiccedilatildeo argumentando que a espera
indefinida pelo reino milenar natildeo seria propriamente milenarista Afinal os sacerdotes reais
persas que lanccedilaram o ldquotornar maravilhosordquo de Zaratrusta para sete mil anos agrave frente natildeo
poderiam ser chamados propriamente de milenaristas609 O caraacuteter iminente da crenccedila
milenarista manifesta uma rejeiccedilatildeo da presente ordem social Quando o fim da ordem
presente eacute lanccedilado para um futuro longiacutenquo e indeterminado o resultado eacute a legitimaccedilatildeo
do mundo cotidiano Nos termos de John Collins ldquojulgamento adiado providencia confianccedila
no presenterdquo610
Retomando a definiccedilatildeo de milenarismo o termo tem origem no vocaacutebulo latino
ldquomillerdquo usado para traduzir a palavra grega ldquordquo de Apocalipse 201-10 Ele ganhou um
sentido lato entretanto no campo dos estudos sociais passando a indicar uma determinada
expectativa de movimentos ou grupos611 Cohn como jaacute indicamos anteriormente descreveu
o fenocircmeno como uma ldquoutopiardquo Mas ele eacute propriamente uma reflexatildeo sobre o tempo uma
filosofia da histoacuteria um sistema de representaccedilotildees graacutevido de praacuteticas que se manifestam
em grupos comunidades cultos e movimentos Podemos falar destes entatildeo como cultos
seitas ou movimentos milenaristas Figura significativa entre estas representaccedilotildees e praacuteticas
eacute o profeta milenarista que se torna o seu vulgarizador apologeta e pregador Em algumas
circunstacircncias em torno dele surge um grupo Em outras como no caso de Joatildeo e Joaquim
haacute uma relaccedilatildeo diacrocircnica entre o fundador e os grupos que se dizem seus porta-vozes como
o movimento inspirado nas profecias joaninas de Montano Priscila e Maximila a partir da
deacutecada de 160 nas proviacutencias romanas da Aacutesia menor612 ou a inspiraccedilatildeo joaquimita do grupo
607 Cf KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge
University Press 1990 p 3 608 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-
Hall 1975 p 57 609 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no
Apocalipse Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 135 610 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do
Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 11 611 TALMON op cit p 349 Henri Desroche cunhou a expressatildeo ldquohomens da esperardquo para fazer referecircncia a
pessoas que aguardam algum tipo de mudanccedila histoacuterica a posteriori Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de
messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 16 612 PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation New York Penguin
Books 2012 p 103-107
182
em torno de Amaury de Begravene na Paris do iniacutecio do seacuteculo XIII condenado formalmente no
IV Conciacutelio de Latratildeo (1215)613
Segundo Norman Cohn um dos mais antigos destes profetas milenaristas surgiu no
Iratilde antigo e ficou conhecido como Zoroastro614 A partir do zoroastrismo em sua
manifestaccedilatildeo imperial persa o fenocircmeno teria transitado para o Judaiacutesmo quando
expressotildees de uma redenccedilatildeo futura deram origem a diversos movimentos ou seitas Uma
destas nascida das pregaccedilotildees do profeta Jesus de Nazareacute e subjacente ao Apocalipse tinha
como significativos traccedilos iniciais uma resiliente combinaccedilatildeo de milenarismo e
messianismo615
Cada profeta milenarista ou movimento milenarista tem particularidades uacutenicas
Mesmo assim eles apresentam alguns traccedilos em comum que eacute o que permite categorizaacute-
los em diferentes lugares e eacutepocas sob o mesmo termo616
Coletiva o povo feliz
A salvaccedilatildeo no milenarismo natildeo eacute de natureza individual mas expectativa de um
grupo ou para um grupo O milenarista natildeo deseja alcanccedilar a salvaccedilatildeo sozinho pois espera
compartilhaacute-la com uma comunidade de pessoas ldquoeleitasrdquo O fenocircmeno assim tem uma
orientaccedilatildeo coletiva O reino milenar do Apocalipse espera ser povoado por uma multidatildeo de
maacutertires ressuscitados O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim veraacute uma humanidade inteira em
paz e contemplaccedilatildeo quando um grande grupo de pessoas se converterem agrave feacute da Igreja latina
especialmente os judeus
Apesar dos leitores posteriores de Joatildeo terem ampliado o puacuteblico do milecircnio em
Apocalipse 20 ele eacute exclusivo daqueles que foram degolados pelas bestas do Dragatildeo o que
pode representar toda a crise do profeta com as mortes violentas ou as notiacutecias de mortes
violentas na guerra judaico-romana De fora ficam natildeo apenas os seus ldquoirmatildeosrdquo que natildeo
alcanccedilarem tal morte (participariam da ldquosegunda ressurreiccedilatildeordquo) mas tambeacutem todos aqueles
que natildeo compartilham de sua perspectiva de Jesus como o Messias de Deus Estes uacuteltimos
613 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 61 614 Para Cohn Zoroastro ldquoeacute o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo especiacutefico de profeta ndash os
chamados lsquomilenaristasrsquordquo Cf COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 133 615 TALMON op cit p 350 616 Como argumentou Paul Veyne os fenocircmenos histoacutericos natildeo se organizam atraveacutes de periacuteodos e de povos
mas atraveacutes de noccedilotildees Mais do que inseridos no seu tempo eles precisam ser postos sob um conceito Cf
VEYNE Paul O inventaacuterio das diferenccedilas Lisboa Gradiva 1989 p 33
183
por sinal entendidos por Joatildeo como seguidores das bestas e do Dragatildeo seriam destruiacutedos
na parousia Natildeo haacute sobreviventes para o reino dos maacutertires O milecircnio para o Apocalipse
soacute seraacute alcanccedilado pela porta do martiacuterio
Neste tipo de milenarismo algumas pessoas alcanccedilam a redenccedilatildeo outras satildeo
destruiacutedas no processo Haacute um dualismo baacutesico uma divisatildeo fundamental da humanidade
entre fieis e infieacuteis entre seguidores e natildeo-seguidores entre crentes e increacutedulos entre justos
e perversos A histoacuteria humana eacute vista como uma luta contiacutenua entre os filhos de Deus contra
os aliados de Satanaacutes De qualquer forma nem no Apocalipse ou no Expositio haacute criteacuterios
de raccedila grupo eacutetnico ou naccedilatildeo para compor a terra da felicidade Em ambos os casos a
participaccedilatildeo se daria em funccedilatildeo de opccedilotildees religiosas
Haacute uma forte ecircnfase na exclusatildeo em Joatildeo e um relativo inclusivismo em Joaquim
com sua expectativa de conversatildeo geral apoacutes o levantamento do Anticristo Apesar de sua
ecircnfase nos monges o descanso natildeo eacute soacute para eles A sociedade da Terceira Era natildeo seria
formada apenas por membros do corpo monaacutestico mas caberiam diversos outros grupos
sociais como a Dispositio o demonstra617 Em seus esquemas o abade fala de uma era de
casados outra de cleacuterigos outra de monges expressotildees que precisam ser entendidas na oacutetica
do protagonismo Na primeira Era o protagonismo foi dos casados na segunda dos cleacuterigos
na terceira dos monges A Dispositivo representaccedilatildeo da sociedade ideal de Joaquim
apresenta sete oratoacuterios cinco satildeo de monges um para o clero e um para os casados Ele vecirc
uma loacutegica de procedecircncia entre as ordens dos casados procedem os cleacuterigos dos cleacuterigos
os monges Mas um natildeo significa o fim do outro Neste tipo de perspectiva a Trindade se
revela na histoacuteria imprimindo nela as caracteriacutesticas peculiares de cada pessoa divina e um
caraacuteter dinacircmico e progressivo cuja meta eacute uma sociedade protagonizada por monges
contemplativos
Eacute possiacutevel fazer ainda uma reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo entre a comunidade futura ideal
e a comunidade real do presente do milenarista Apocalipse e Expositio satildeo produccedilotildees de
liacutederes carismaacuteticos Joatildeo era um profeta itinerante das igrejas da Aacutesia Joaquim era um
abade que conseguiu atrair um grupo de disciacutepulos para as montanhas de Fiore e a partir
deles fundou uma casa monaacutestica e uma ordem religiosa Neste sentido suas obras visavam
a uma comunidade seus textos buscavam operar no interior de um grupo Representaccedilotildees
617 Cf Anexo 5
184
individuais natildeo satildeo elementos estanques mas se relacionam com representaccedilotildees sociais618
Joatildeo e Joaquim representam determinados grupos Suas falas satildeo representativas de
expectativas mesmo que parcialmente compartilhadas entre profeta e comunidade No caso
de Joatildeo sua audiecircncia natildeo lhe eacute totalmente amistosa Ele enfrenta adversaacuterios no interior
das igrejas e deseja com seu Apocalipse simultaneamente convocar os aliados e atacar os
inimigos Joaquim tambeacutem tem alguns adversaacuterios mesmo que seja em escala diferente Ele
enfrenta resistecircncia da Ordem Cisterciense em funccedilatildeo de ter abandonado a abadia de
Corazzo Mas os grandes adversaacuterios de ambos os autores estatildeo ldquodo lado de forardquo de seus
ciacuterculos a sociedade romana para Joatildeo619 os muccedilulmanos para Joaquim Satildeo estes
adversaacuterios os grandes excluiacutedos do reino dos maacutertires ou do saacutebado do Espiacuterito
Terrena o lugar perfeito
Joatildeo de Patmos pode ter testemunhado a morte de muitos de seus irmatildeos e ouvido
falar do martiacuterio de vaacuterios outros Seu texto manifesta a expectativa de acentuada
perseguiccedilatildeo da sociedade romana para um futuro proacuteximo Estes aspectos parecem marcar
sua descriccedilatildeo do passado e do futuro das comunidades de Jesus Tal conjunto de
representaccedilotildees tem o potencial de produzir ruptura em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano e gerar
ansiedade pelo reino milenar Apesar de sua breve descriccedilatildeo no episoacutedio de Apocalipse 20
Joatildeo tambeacutem registrou a mesma expectativa no iniacutecio da segunda seccedilatildeo de sua obra
(Apocalipse 5) Nesta passagem o autor relatou o hino que ele teria ouvido da parte de Vinte
e quatro Presbiacuteteros Celestiais ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste
morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e
naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo
(Apocalipse 59-10) Este hino ao ldquoCordeirordquo eacute uma metaacutefora para descrever Jesus e sua
morte seis deacutecadas atraacutes Segundo Joatildeo a morte daquele que ele tem como Messias foi uma
estrateacutegia divina para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo
exclusivo fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus620 Mesmo que as formas verbais estejam no
618 OLIVEIRA Maacutercio de O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves
Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre v 13 n 22 p 67-94 2012 p 71 619 Eacute interessante destacar que a Palestina desde a deacutecada 60 antes da Era Comum era parte do Impeacuterio
Romano Os judeus eram formalmente membros deste Impeacuterio Isso natildeo foi o suficiente para que Joatildeo se
sentisse parte do ldquomundo romanordquo Pelo contraacuterio numa perspectiva sectaacuteria ele rejeita a sociedade que lhe
cerca 620 CHARLES J Daryl A Apocalyptic Tribute to the Lamb (Rev 51-14) Journal of the Evangelical
Theological Society Chicago v 24 n 4 p 461-473 1991 p 471
185
passado como se fossem eventos jaacute realizados por Jesus621 o final do hino manifesta a
mesma expectativa de Apocalipse 20 um reino sobre a terra622
Ao contraacuterio de Joatildeo entretanto a relaccedilatildeo de Joaquim com a sociedade circundante
eacute bem favoraacutevel Joaquim natildeo enfrentou perseguiccedilatildeo As ameaccedilas do Capiacutetulo Geral da
Ordem Cisterciense natildeo podem ser descritas como tal jaacute que o abade contava com o apoio
papal e dos poderes constituiacutedos no reino da Siciacutelia Mesmo assim como Joatildeo as
expectativas joaquitas natildeo satildeo para aleacutem Ele tem elementos concretos no interior de suas
descriccedilotildees do saacutebado do Espiacuterito Sua ecircnfase neste caso se desloca de uma ressurreiccedilatildeo de
maacutertires para o descanso contemplativo monaacutestico que ele aprendeu a admirar apoacutes o retorno
de sua peregrinaccedilatildeo agrave Palestina A situaccedilatildeo de instabilidade poliacutetica no reino normando e os
eventuais embates entre o Impeacuterio e a Igreja romana parecem ter sensibilizado o abade de
Fiore o suficiente para que ele esperasse a paz como a principal marca do tempo do Espiacuterito
Sem conflitos uma humanidade pacificada poderia gastar os dias do descanso sabaacutetico em
contemplaccedilatildeo e comunhatildeo com a divindade Apesar de transformadas pela atuaccedilatildeo
sobrenatural do Espiacuterito na sociedade dos sonhos de Joaquim ainda haveria liturgia trabalho
e estudo marcas da espiritualidade cisterciense no milenarismo do abade623
Joatildeo espera por um periacuteodo milenar em que maacutertires ressuscitados governam julgam
e cultuam e Joaquim ansiou por um descanso sabaacutetico em que viri spirituales cultuassem
trabalhassem e estudassem Com isso ambos manifestam a principal caracteriacutestica do
milenarismo que eacute sua orientaccedilatildeo terrena quando a noccedilatildeo de um tempo ideal (o tempo do
milecircnio) eacute acompanhada da noccedilatildeo de um espaccedilo ideal (a terra do milecircnio)624 Daiacute a ecircnfase
na terra ou em algum lugar especiacutefico da terra em detrimento de uma dimensatildeo
transcendental
Segundo Cohn especialmente entre as religiotildees zoroastrianas judaicas e cristatildes
surgiu a noccedilatildeo de que a histoacuteria caminha na direccedilatildeo de seu fim um eschaton o fim dos
tempos ou o fim do mundo625 No contexto cristatildeo este ldquofim do mundordquo envolveria um juiacutezo
621 PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 124 622 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991
p 62 623 O confronto de Joaquim com os cistercienses de Corazzo e com as autoridades da ordem parece derivado
de sua percepccedilatildeo de que eles estavam sendo infieacuteis ao ldquoespiacuteritordquo de Bernardo de Claraval que ele chamava de
ldquoveneraacutevel pai Bernardordquo Joaquim achava que os cistercienses natildeo deram continuidade agrave reforma que
Bernardo comeccedilou mas ainda assim eles eram uma etapa importante na histoacuteria que o monasticismo deveria
percorrer ateacute atingir sua perfeiccedilatildeo Cf DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De
Joaquiacuten a Schelling Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 21 624 TALMON op cit p 352 625 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 286-294
186
final quando a divindade julgaria as pessoas vivas e mortas o universo material seria
consumido por ldquofogo purificadorrdquo deixando para os fieacuteis uma eternidade celestial
(Apocalipse 21-22) Para o autor de 2Pedro por exemplo o eschaton eacute o fim da vida na terra
como ele e a humanidade conheciam ldquoOra os ceacuteus que agora existem e a terra pela mesma
palavra tecircm sido entesourados para fogo estando reservados para o dia do Juiacutezo e destruiccedilatildeo
dos homens iacutempiosrdquo (2Pedro 37) Em termos socioloacutegicos esta expressatildeo escatoloacutegica
poderia ser definida como teodiceia uma tentativa de encontrar sentido para o sofrimento o
mal e principalmente a morte626
Profetas milenaristas frequentemente se voltam para a questatildeo do sofrimento e suas
causas Mas as expectativas natildeo-histoacutericas transcendentais parecem natildeo os atender Eles
esperam por uma transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de existecircncia na terra e natildeo em um mundo
natildeo-material Por isso as crenccedilas milenaristas antecipam parte das expectativas posteriores
ao fim do mundo para dentro da histoacuteria quando os fieacuteis seriam recompensados em seus
corpos em suas realidades materiais dentro do saeculum627 A paz a justiccedila e as condiccedilotildees
de existecircncia esperadas para um mundo porvir satildeo antecipadas para a terra
Derivadas dessa ecircnfase terrena estatildeo algumas diferenciaccedilotildees futuras dos fieacuteis As
descriccedilotildees feitas por Joaquim da sociedade do Espiacuterito indicam alguma relaccedilatildeo entre espaccedilo
e status O status estaraacute ligado agrave posiccedilatildeo diante do centro da sociedade espiritual ocupada
pelo pater spiritualis Este tipo de diferenciaccedilatildeo foi feita apenas de forma relativa por Joatildeo
quando ele descreveu duas ressurreiccedilotildees a primeira para os martirizados e membros do reino
milenar a segunda para os demais fieacuteis No Apocalipse os maacutertires formam uma espeacutecie de
fiel ideal acentuando o valor religioso do martiacuterio
Curiosamente o ideal asceacutetico manifesta-se nas duas visotildees Joatildeo espera que os
144000 guerreiros escatoloacutegicos do Cordeiro sejam virgens e castos (Apocalipse 141-5) o
abade de Fiore lanccedilou aqueles que ainda continuaratildeo casados no Oratoacuterio mais baixo da
Dispositio separados dos demais por um grande espaccedilo Para os dois religiosos o sexo
oposto eacute perigoso e isso se reflete nas suas descriccedilotildees idealizadas do futuro
626 BERGER Peter L O dossel sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulus
1985 p 65 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 6 627 Landes toma esta expressatildeo de Agostinho para falar da passagem contiacutenua do tempo da mateacuteria e da
histoacuteria Cf LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 7
187
Total inversatildeo escatoloacutegica
O conceito milenarista de redenccedilatildeo eacute total no sentido de que a nova era natildeo traraacute
meramente uma melhora nas condiccedilotildees de vida mas um movimento na direccedilatildeo de condiccedilotildees
perfeitas de existecircncia dentro da histoacuteria As tais ldquocondiccedilotildees de perfeiccedilatildeordquo entretanto
variam em funccedilatildeo das conjunturas histoacutericas dos expoentes do milenarismo Antigas
expectativas judaicas esperavam por um tempo em que os instrumentos de guerra seriam
transformados em arados e foices para trabalhar o campo (Isaiacuteas 21-5) lobos e leotildees
andariam juntos com ovelhas e cabritos e crianccedilas brincariam com serpentes sem se
machucar (Isaiacuteas 61-9) Estas expectativas parecem fazer sentido em comunidades rurais
em crise com conjunturas de opressatildeo aristocraacutetica628 Jaacute os milenaristas de Tabor na
Boecircmia do seacuteculo XV esperavam um milecircnio literal de banquete perpeacutetuo com a supressatildeo
de toda autoridade quando as mulheres poderiam conceber seus filhos sem qualquer
participaccedilatildeo masculina e homens tambeacutem dariam agrave luz629
A inversatildeo escatoloacutegica idealizada por Joatildeo assim esperava o fim de todas as
guerras e violecircncias contra os seguidores de Jesus que viveriam na terra como reis juiacutezes e
sacerdotes expectativas que apontam para o desejo de empoderamento de pessoas agrave margem
do poder A descriccedilatildeo do milecircnio do Apocalipse pretende ser uma inversatildeo de soberanias
Os poderes do presente seriam destronados os sem poderes seriam entronizados e exaltados
Joaquim igualmente aguarda um periacuteodo de felicidade na terra mesmo que
pequeno em que os fieacuteis experimentaratildeo acima de tudo paz com o fim de todos os
conflitos No calabrecircs entretanto natildeo haacute espaccedilo para monarquias ou reis Mesmo que sua
hostilidade contra o Impeacuterio Germacircnico tenha desaparecido no final do Expositio em relaccedilatildeo
agraves suas primeiras exposiccedilotildees do Apocalipse630 ainda assim Joaquim possui a visatildeo de que
se a histoacuteria eclesiaacutestica fora marcada pelo conflito contra os poderes seculares estes
deveriam desaparecer na Terceira Era Somente a Igreja sobreviveria entatildeo transformada
em uma grande instituiccedilatildeo monacal
Gager argumenta que esta caracteriacutestica do milenarismo teria relaccedilatildeo com algum tipo
de privaccedilatildeo poliacutetica econocircmica social religiosa ou uma mistura de cada uma delas Os
milenaristas segundo este historiador aposentado da Princeton University ldquose sentem
628 LANDES Richard A Millennialism in the Western World op cit p 455 629 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 106 630 POTESTA Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p
318-319
188
desfavorecidos de alguma formardquo631 Ele estaacute ciente entretanto que existe muito mais gente
que sofre privaccedilatildeo do que membros de movimentos milenarista Por isso ele enfatiza que a
privaccedilatildeo natildeo precisa ser efetiva Ela pode ser relativa qual seja ldquouma relaccedilatildeo desigual entre
expectativa e os meios de satisfaccedilatildeordquo632 Eacute um tipo de condiccedilatildeo que surge quando novas
esperanccedilas se manifestam mas permanecem natildeo cumpridas
Esta sugestatildeo de Gager poderia ser usada para distinguir o milenarismo de Joatildeo e
Joaquim O profeta de Patmos era membro de um grupo marginal de uma das proviacutencias
orientais do Impeacuterio romano Vaacuterios de seus conterracircneos foram mortos em uma guerra
contra Roma em que causas poliacuteticas econocircmicas sociais e religiosas se encontravam
misturadas A proviacutencia da Aacutesia era uma das mais ricas do Impeacuterio mas figuras como Joatildeo
se sentiam isolados desta riqueza633
Do outro lado o calabrecircs era um abade bem situado e respeitado Norman Cohn
trabalhou em sua obra uma seacuterie de movimentos milenaristas medievais de tipo contestador
vinculados a grupos que viviam agrave margem quer da sociedade quer do poder634 Joaquim
natildeo era um milenarista deste tipo Ele natildeo estava na margem Ele estava perto do poder
Encontrou-se diversas vezes com papas monarcas rainhas e imperadores Era um dos mais
proeminentes abades do reino da Siciacutelia e talvez de toda a Itaacutelia635 Certamente entatildeo o
termo marginalizado natildeo poderia ser usado para descrever Joaquim de Fiore Ele natildeo se via
como marginalizado e natildeo era efetivamente um marginalizado636
A Era do Espiacuterito do abade natildeo parece ter relaccedilatildeo com algum tipo de privaccedilatildeo efetiva
No calabrecircs haacute mais propriamente a questatildeo das expectativas natildeo cumpridas Sua caminhada
religiosa parece evidenciar este aspecto Apoacutes o retorno da Palestina ele abraccedilou o
eremitismo depois procurou se envolver com um modelo monaacutestico cenobiacutetico em pelo
menos trecircs casas Sambucina Corazzo e S Trindade A forma como rejeitou inicialmente o
631 GAGER John G Kingdom and Community op cit p 25 632 Idem p 27 633 Conferir uma anaacutelise da criacutetica joanina agrave riqueza de Roma em KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio
imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 634 COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia
Lisboa Editorial Presenccedila 1970 635 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and
History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 636 Mc Ginn alerta que o perfil social da maioria daqueles que se valiam da retoacuterica apocaliacuteptica na Idade Meacutedia
natildeo era de um profeta isolado no alto de uma montanha mas pessoas bem-educadas cleacuterigos e liacutederes na
sociedade membros da corte e escribas Frequentemente ldquoeram poderosas figuras poliacuteticasrdquo Neste contexto
o milenarismo era uma tentativa de interpretar o seu proacuteprio tempo e assim dar suporte para patronos legitimar
a lideranccedila e perseguir determinados propoacutesitos poliacuteticos sociais e religiosos Cf MC GINN Bernard Visions
of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages New York Columbia University Press 1979 p 32
189
cargo de abade de Corazzo e deixou S Trindade indica uma ecircnfase religiosa no isolamento
e na contemplaccedilatildeo Apoacutes uma campanha para ingresso na Ordem Cisterciense abandonou
sua casa para fundar um monasteacuterio no isolamento de Fiore O ideal milenarista de Joaquim
parece revelar sua frustraccedilatildeo com a Igreja tanto latina quanto grega e com as formas de
monasticismo que ele tinha agrave disposiccedilatildeo Para o abade suas altas demandas religiosas natildeo
realizadas nas instituiccedilotildees que ele conhecia seriam atendidas finalmente quando o Espiacuterito
instaurasse a terceira Era da histoacuteria
De qualquer forma ambos os milenarismos refletem algum tipo de rejeiccedilatildeo da
presente ordem do mundo O milecircnio de Joatildeo reflete o conflito com a sociedade romana e
mesmo com outras comunidades de Jesus O de Joaquim com outras propostas de
espiritualidade cristatilde
Iminente bem perto de comeccedilar
Para Joatildeo o governo milenar de Cristo estava para acontecer a qualquer momento
Na sua perspectiva temporal as bestas estavam para iniciar o ataque final contra os fieacuteis
promovendo a morte de vaacuterios deles (Apocalipse 13) mas ao mesmo tempo viabilizando a
parousia de Jesus e a implementaccedilatildeo do milecircnio O autor do Expositio tambeacutem se entende
no limiar de uma nova era Por meio de caacutelculos complexos relacionados com sua
especulaccedilatildeo exegeacutetica o abade entendia que faltavam poucos anos para que os ldquosantosrdquo
experimentassem o refrigeacuterio tatildeo aguardado
Esta semelhante perspectiva quanto agrave urgecircncia dos tempos de Joatildeo e Joaquim
configura uma marca essencial do milenarismo um senso de premecircncia derivado da forma
como o fiel interpreta os eventos agrave sua volta Ele sente que a era salviacutefica estaacute proacutexima e
vive na expectativa de vecirc-la ou em preparaccedilatildeo para alcanccedilaacute-la O pressuposto para esta
confianccedila na proximidade da redenccedilatildeo tem relaccedilatildeo com a crenccedila na histoacuteria como um
processo preacute-determinado Neste sentido bastaria ter acesso a uma determinada chave de
leitura para que se pudesse prever cada uma de suas etapas Os profetas milenaristas
desejavam entender a histoacuteria sua unidade sua estrutura seu objetivo e seu fim637
Segundo Talmon haacute aqui uma combinaccedilatildeo entre consciecircncia histoacuterica de tempo e
consciecircncia miacutetica A perspectiva histoacuterica do tempo como uma sequecircncia de eventos um
637 Idem p 31
190
vir-a-ser de caraacuteter uacutenico e particular eacute combinada com uma consciecircncia de tempo ciacuteclico
infinito e repetitivo638 Afinal o milecircnio de Joatildeo eacute uma interrupccedilatildeo do vir-a-ser um
parecircntese na histoacuteria Natildeo eacute ainda o destino derradeiro dos maacutertires jaacute que apoacutes o juiacutezo final
o profeta descreve uma Nova Jerusaleacutem em termos meta-histoacutericos (Apocalipse 21-22) Na
perspectiva joanina o milecircnio eacute uma demanda da justiccedila divina pois os fieacuteis martirizados
precisavam reinar com seu Cristo na mesma terra que os martirizou
Em Joaquim a sociedade milenar eacute uma antecipaccedilatildeo da Jerusaleacutem celestial
igualmente revestida de historicidade e temporalidade Quando seu periacuteodo acabar chegou
o fim do mundo Joaquim natildeo reflete longamente sobre o que vem a seguir Isso faz com que
sua Nova Era tenha como alvo esta nova sociedade espiritual na terra e natildeo alguma outra
num formato transcendental Eacute uma sociedade ideal ainda com a presenccedila de estruturas
sociais (em torno dos sete oratoacuterios da Dispositio) e de papeacuteis sociais (os viri spirituales da
Dispositio ainda estudam cantam e trabalham)
Relacionado com a questatildeo da iminecircncia estaacute a seacuterie de desastres presente nos
vaticiacutenios milenaristas Para explicar tal caracteriacutestica o socioacutelogo francecircs Desroche
apontou um roteiro de trecircs tempos subjacentes aos milenarismos haacute um tempo de opressatildeo
que se agrava progressivamente ateacute atingir o auge da alienaccedilatildeo e injusticcedila haacute um tempo de
resistecircncia quando os fieacuteis satildeo separados marcados nas frontes por Deus testemunham
vestidos de saco resistem no deserto isolam-se na espera enfrentam o martiacuterio haacute um
tempo de libertaccedilatildeo quando o adversaacuterio eacute finalmente derrotado e os fieacuteis desfrutaratildeo da
paz divina639 Esta relaccedilatildeo entre opressatildeo e redenccedilatildeo gera no milenarista a sensaccedilatildeo de que
quanto pior ficar melhor eacute jaacute que as adversidades histoacutericas seriam sinais da iminecircncia da
intervenccedilatildeo divina640
Assim antes que os maacutertires ressuscitem o Apocalipse de Joatildeo descreve o funesto
convite para que abutres venham devorar as carnes mortas de reis comandantes e poderosos
ldquocarnes de cavalos e seus cavaleiros carnes de todos quer livres quer escravos tanto
pequenos como grandesrdquo (Apocalipse 1918) O refrigeacuterio dos santos de Joaquim por sua
vez soacute surgiria apoacutes a manifestaccedilatildeo do Anticristo e a morte de muitos fieacuteis Neste sentido a
638 TALMON op cit p 352 639 DESROCHE op cit p 50 640 Eacute um apelo nos termos de Desroche em desespero de causa ldquoum apelo em uacuteltima instacircncia uma vez que
as demais instacircncias desmoronaram E ateacute mesmo um apelo para que as demais instacircncias desmoronemrdquo Cf
DESROCHE op cit p 51
191
felicidade almejada natildeo chegaria antes de uma ldquoangustia temporumrdquo ou das duas
ldquotribulationesrdquo quando muitos fieis alcanccedilariam o martiacuterio641
Miraculosa a intervenccedilatildeo divina
Um movimento milenarista compartilha a crenccedila na transformaccedilatildeo do mundo
conjugando-a com um senso de mudanccedila iminente Neste contexto uma significativa
questatildeo guarda relaccedilatildeo com a agecircncia da transformaccedilatildeo ou seja quem traraacute o milecircnio e a
forma como ele viraacute Em sua definiccedilatildeo do fenocircmeno Norman Cohn chamou a atenccedilatildeo para
o aspecto miraculoso da expectativa milenarista no sentido de que uma transiccedilatildeo tatildeo
significativa da realidade precisa da intervenccedilatildeo de forccedilas sobre-humanas642
Eacute neste contexto que se insere o elemento messiacircnico quando a salvaccedilatildeo eacute esperada
sob a conduccedilatildeo de um redentor um mediador entre o ser humano e a divindade
Frequentemente milenarismo envolve messianismo apesar de que os dois fenocircmenos natildeo
necessariamente coincidem Eacute possiacutevel surgir a perspectiva messiacircnica sem a milenarista
Do outro lado nem sempre eacute preciso um messias para que haja a presenccedila do milenarismo
Milenarismo e messianismo satildeo fenocircmenos independentes que eventualmente se unem
mas o dicionaacuterio de Desroche estaacute cheio de casos de um sem o outro643
Especificamente o milenarismo de Joatildeo eacute do tipo messiacircnico jaacute que ele entende que
para que o milecircnio aconteccedila um enviado de Deus um messias o Jesus glorificado precisaria
atuar Para Joaquim entretanto este periacuteodo de paz seria alcanccedilado por meio da atuaccedilatildeo do
Espiacuterito Santo o promotor da felicidade terrena que o abade chamou de ldquodescanso sabaacuteticordquo
O saacutebado do Espiacuterito natildeo demanda a parousia para sua instauraccedilatildeo Tambeacutem natildeo haacute figuras
ungidas exercendo papeacuteis messiacircnicos nas representaccedilotildees joaquitas como um imperador
especial para trazer o ldquosaacutebadordquo ou um papa angelical para instauraacute-lo
O abade de Fiore natildeo esperava por um reino milenar de Jesus na terra Ele deslocou
o reino de Jesus para traz e o tornou um artiacutefice de um periacuteodo completo dentro da histoacuteria
(o segundo status) Com sua visatildeo de progresso contiacutenuo e natildeo de queda contiacutenua Joaquim
imaginou a humanidade se desenvolvendo por meio da atuaccedilatildeo do Pai na primeira Era
passando pela revelaccedilatildeo do Filho na segunda Era ateacute culminar na atuaccedilatildeo do Espiacuterito na
641 GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 75 642 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 11 643 DESROCHE op cit
192
terceira Era Seu milenarismo entatildeo natildeo espera por um Jesus exaltado na terra realizando
um governo com maacutertires ressuscitados Para o calabrecircs natildeo eacute o Filho a esperanccedila dos fieacuteis
e sim o Espiacuterito O tempo de um estava por terminar para que o outro pudesse comeccedilar
Joatildeo esperava um periacuteodo de paz para apoacutes o segundo advento de Jesus Sem Jesus
natildeo haveria felicidade na terra nem reinado dos martirizados nem inversatildeo escatoloacutegica
nem vitoacuteria sobre o Anticristo O milecircnio assim concebido era um parecircntese entre o
segundo advento de Jesus e o final da histoacuteria Um parecircntese que duraria mil anos
Para o abade poreacutem Jesus eacute o centro da histoacuteria mas natildeo o seu aacutepice O aacutepice estaacute
no final na etapa exclusiva do Espiacuterito e sem a demanda do segundo advento de Jesus
(parousia) Em vez de o Filho retornar para trazer a felicidade para a humanidade seu tempo
iria terminar e somente entatildeo debaixo exclusivamente do controle histoacuterico do Espiacuterito os
seres humanos experimentariam a paz Haacute um lugar para a parousia tambeacutem nas
expectativas de Joaquim mas para terminar a histoacuteria e natildeo para dentro dela Na sua visatildeo
quando o Filho retornar a histoacuteria termina o mundo acaba644 Neste sentido o milenarismo
de Joaquim natildeo eacute um milenarismo do Filho e sim do Espiacuterito
Outro aspecto ainda relacionado com a forma de instauraccedilatildeo do milecircnio se desdobra
no papel humano para seu estabelecimento Haacute alguns elementos nas representaccedilotildees
milenaristas que podem atuar para minimizar a atuaccedilatildeo do fiel como por exemplo a
perspectiva de uma redenccedilatildeo predeterminada e inevitaacutevel Neste caso o milenarista natildeo
precisa fazer a revoluccedilatildeo basta esperar pela sua manifestaccedilatildeo sobrenatural Entretanto em
algumas situaccedilotildees a certeza da operaccedilatildeo de acordo com o que estaacute determinado no plano
divino e a confianccedila na vitoacuteria final podem encorajar alguma atividade em vez de
passividade Este parece ser o caso do Apocalipse645 que atribuiu um papel significativo aos
ldquosantosrdquo na instauraccedilatildeo do reino messiacircnico (Apocalipse 69-11) Sem o martiacuterio natildeo haveria
o preenchimento da cota de mortos necessaacuteria para instaurar a parousia (Apocalipse 19) ou
para vencer o Dragatildeo (Apocalipse 12) O profeta de Patmos entende que eacute necessaacuterio algum
tipo de resistecircncia resistecircncia essa que provocaraacute o martiacuterio martiacuterio esse que provocaraacute a
parousia parousia essa que inauguraraacute o milecircnio Ele natildeo demandou uma reaccedilatildeo armada
dos seus seguidores mas esperava deles a rejeiccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo romana o culto
644 Apoacutes o terceiro ciacuterculo da Taacutevola XI do Liber Figurarum aparece a expressatildeo ldquofinis mundirdquo Cf Anexo 6 645 Adela Yarbro Collins definiu o modelo de resistecircncia presente no Apocalipse de Joatildeo como ldquopassivordquo
Mesmo assim ela admite algum tipo de sinergismo jaacute que a morte dos maacutertires aproxima o fiel do eschaton
Cf COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E
J Brill 1996 p 212
193
imperial Na perspectiva joanina quando os disciacutepulos se negassem a participar da adoraccedilatildeo
agraves ldquobestasrdquo eles seriam mortos evento que parece estar subjacente agrave descriccedilatildeo da morte das
Duas Testemunhas (Apocalipse 11) e dos 144000 Guerreiros do Cordeiro (Apocalipse
14)646
Assim no milenarismo do Apocalipse os fieacuteis participam na instauraccedilatildeo do reino
milenar por meio do derramamento do proacuteprio sangue Este tipo de milenarismo pode ser
descrito como revolucionaacuterio ao rejeitar a ordem presente e promover accedilotildees concretas dos
fieacuteis O martiacuterio eacute tomado como uma estrateacutegia de confronto contra a sociedade romana Em
sua descriccedilatildeo do milecircnio Joatildeo explicita que o fiel precisa viver de certo jeito e morrer de
certa forma para estar presente no reino milenar
Em Joaquim entretanto haacute uma reduccedilatildeo do papel humano na instauraccedilatildeo do
descanso do Espiacuterito relacionado justamente com a oacutetica do abade de que os eventos
escatoloacutegicos estatildeo jaacute definidos e determinados Compete aos saacutebios apenas entendecirc-los
anunciar sua chegada e preparar a humanidade para eles Esse caraacuteter de determinaccedilatildeo estaacute
presente no seu esquema da Concordia Natildeo se pode mudar a histoacuteria apenas se preparar
para ela O milenarismo joaquita entatildeo eacute do tipo passivo Natildeo eacute possiacutevel fazer algo para
apressar a chegada do refrigeacuterio dos monges Sua instauraccedilatildeo natildeo depende de pessoas mas
do tempo que precisa ser cumprido
A roda das apropriaccedilotildees
147 anos apoacutes a morte de Joaquim em 1349 o franciscano francecircs Jean de
Roquetaillade enquanto estava encarcerado numa prisatildeo em Avignon escreveu a obra Liber
secretorum eventuum647 Nela ele anuncia a chegada de uma grande tribulaccedilatildeo A Igreja
entatildeo liderada por um papa ldquoangeacutelicordquo saiacutedo dentre os frades menores seria ldquopurgadardquo de
seus erros A partir de entatildeo um grande tempo de paz e prosperidade invadiria o mundo
durante mil anos Roquetaillade como outros franciscanos desde Geraldo San Borgo era
um leitor de Joatildeo de Patmos e Joaquim de Fiore648 Estas apropriaccedilotildees entretanto
tencionavam o pensamento do abade de Fiore na direccedilatildeo de confrontos que natildeo estavam
646 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no
Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 169-175 647 Esta anaacutelise de Roquetaillade segue DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 55-57 648 Idem p 50-57 Conferir tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore e o franciscanismo medieval
Thaumazein Santa Maria v V n 11 p 119-139 2013
194
previstos pelo ldquopaciacuteficordquo calabrecircs649 No Liber secretorum eventuum seu autor natildeo se vale
do esquema das trecircs idades do mundo jaacute criticado pelo protocolo de Agnani durante o
processo contra Geraldo O milenarismo de Jean de Roquetaillade eacute como o de Joaquim
natildeo-messiacircnico mas retomou o quimeacuterico nuacutemero de Joatildeo mil anos Sem parousia como
Joaquim mas por mil anos como Joatildeo Apoacutes o fim deste longo periacuteodo de paz viria entatildeo
o fim do mundo O frade aprisionado tinha a convicccedilatildeo de que o milecircnio comeccedilaria em 1415
ou 1420
Roquetaillade eacute um exemplo dos diversos tensionamentos sofridos pelo pensamento
joaquita reacionaacuterios ou revolucionaacuterios religiosos ou seculares clericais ou leigos no que
se convencionou chamar de ldquojoaquimismordquo650 Quer no paraiacuteso de Dante651 ou nas cartas de
Colombo652 depois de posta em movimento a roda das apropriaccedilotildees653 joaquimitas natildeo
parou de girar para chegar ateacute nos termos de Delumeau agraves ldquoutopias ideoloacutegicas da eacutepoca
contemporacircneardquo654
De qualquer forma este foi apenas um dos veios pelos quais correu a leitura do
Apocalipse e o levou a influenciar direta ou indiretamente a arte a literatura e a cultura no
Ocidente655 O livro foi catalisador de uma seacuterie de movimentos no correr da histoacuteria como
o grupo camponecircs liderado por Thomas Muntzer no seacuteculo XVI656 e a desastrosa
comunidade de 75 pessoas em torno de David Koresh destruiacuteda por um incecircndio em 1993657
A cada nova geraccedilatildeo de leituras um conjunto de representaccedilotildees emerge com
desdobramentos em subsequentes praacuteticas sociais e religiosas Compete aos historiadores e
649 Delumeau assim descreveu Joaquim ldquoum profeta paciacutefico que semeia germes de violecircnciardquo Cf
DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 46 650 Conferir DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling Madrid
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do Apocalipse Cf PHELAN John Leddy The millennial kingdom of the Franciscans in the new world
Berkeley University of California Press 1970 p 17 653 Retomando Chartier apropriaccedilatildeo eacute o processo historicamente determinado de construccedilatildeo de sentido Cf
CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191
1991 p 179 654 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 57 655 Conferir uma descriccedilatildeo panoracircmica em KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford
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ANEXOS
210
Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1658
658 Mapa presente em DMITRIEV Sviatoslav City government in hellenistic and Roman Asia Minor Oxford
Oxford University Press 2005 p xiv
211
Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2659
659 Mapa presente em DMITRIEV op cit pxvi
212
Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia660
660 Mapa presente em LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge
University Press 2007 p xiii
213
Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185)661
661 Mapa presente em DITCHBURN David MACLEAN Simon MACKAY Angus (eds) Atlas de Europa
medieval Madrid Caacutetedra 2011 p 132
214
Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum662
662 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero Le tavole del Liber Figurarum di
Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000 p 13
215
Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios663
663 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 15