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VALTAIR AFONSO MIRANDA HISTÓRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOÃO DE PATMOS E NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE: um estudo comparativo Rio de Janeiro 2017

VALTAIR AFONSO MIRANDA HISTÓRIA E MILENARISMO NO

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Page 1: VALTAIR AFONSO MIRANDA HISTÓRIA E MILENARISMO NO

VALTAIR AFONSO MIRANDA

HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO DE PATMOS E NO

EXPOSITIO IN APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE

um estudo comparativo

Rio de Janeiro

2017

Valtair Afonso Miranda

HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO DE PATMOS E NO

EXPOSITIO IN APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE

um estudo comparativo

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Instituto de Histoacuteria Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Histoacuteria

Orientadora

Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva

Rio de Janeiro

2017

CIP ndash Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Miranda Valtair Afonso

M672h Histoacuteria e Milenarismo no Apocalipse de Joatildeo de Patmos e no

Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore um estudo

comparativo Valtair Afonso Miranda -- Rio de Janeiro 2017

215 f

Orientadora Andreia Cristiana Lopes Frazatildeo da Silva

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria

Comparada 2017

1 Apocalipse de Joatildeo 2 Joaquim de Fiore 3 Milenarismo

4 Expositio in Apocalypsim I Silva Andreia Cristina Lopes

Frazatildeo da Orient II Tiacutetulo

BANCA EXAMINADORA

Titulares

Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (orientadora)

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profa Dra Leila Rodrigues da Silva

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof Dr Paulo Duarte Silva

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof Dr Paulo Augusto de Souza Nogueira

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo

Universidade Metodista de Satildeo Paulo

Profa Dra Monica Selvatici

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social

Universidade Estadual de Londrina

Suplentes

Prof Dr Andreacute Chevitarese

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profa Dra Carolina Fortes

Instituto de Histoacuteria

Universidade Federal Fluminense

DEDICATOacuteRIA

Agrave Elizete Rafael e Caroline

pela parceria e pelo companheirismo durante a produccedilatildeo desta pequisa

Agrave Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva

pelas orientaccedilotildees pacientes e significativas para esta jornada acadecircmica

Ao Programa de Estudos Medievais e seus coordenadores

pelo ambiente saudaacutevel de trocas e partilhas

ldquoOs milenaristas tiveram razatildeo de natildeo

desviar seu olhar da cidade terrestre e de natildeo

ver nela apenas um lugar de expiaccedilatildeo do

pecado Queriam realizar na terra um

primeiro esboccedilo da cidade celeste fazer

surgir nela o maacuteximo de felicidade e de

fraternidaderdquo

Jean Delumeau

RESUMO

Esta pesquisa analisou de forma comparativa os elementos milenaristas presentes no

Apocalipse de Joatildeo e no Expositio in Apocalypsim O profeta Joatildeo produziu um texto que

propotildee um milenarismo revolucionaacuterio que rejeita a ordem social romana e convida sua

comunidade a abandonar as estruturas religiosas imperiais especialmente a instituiccedilatildeo do

culto imperial esperando que isso provoque o martiacuterio dos seus membros e instaure os

eventos que culminaratildeo no retorno do Jesus Glorificado agrave terra para derrotar todos os

inimigos dos fieis ressuscitar os martirizados e implementar um reino durante mil anos Este

ldquoreino dos maacutertiresrdquo com Cristo parece ser o resultado de tradiccedilotildees messiacircnicas e

apocaliacutepticas do Judaiacutesmo antigo materializado no final do seacuteculo I no Apocalipse em

funccedilatildeo de traumas da guerra judaico-romana (66-70) de conflitos entre igrejas e sinagogas

e das diferentes respostas de lideres carismaacuteticos agrave questatildeo do relacionamento com a

sociedade romana Joaquim por seu turno esperava que a Terceira Era da histoacuteria da

humanidade culminasse num descanso sabaacutetico sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Apesar

de ser um periacuteodo relativamente curto a Era do Espiacuterito iria trazer sobre a humanidade o fim

dos conflitos que caracterizavam a histoacuteria eclesiaacutestica sob a lideranccedila de um pai espiritual

que governaria a sociedade nos moldes de uma casa monaacutestica Este ldquodescanso dos mongesrdquo

natildeo teve como ponto de partida entretanto diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim

as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que aguardava uma

fase de felicidade na terra anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica do milenarismo

joaquita na parte final do seacuteculo XII pode estar relacionada com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos

como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica

Palavras-chave Milenarismo Apocalipse de Joatildeo Joaquim de Fiore Filosofia da Histoacuteria

ABSTRACT

This research has analyzed in a comparative way the millenarian elements wich are present

in the Revelation of John and in the Expositio in Apocalypsim The prophet John produced

a text that proposes a revolutionary millenarianism which rejects the Roman social order and

invites its community to abandon the imperial religious structures especially the institution

of the imperial cult hoping that this provokes the martyrdom of its members and establishes

the events that will culminate in the return of the Glorified Jesus to the earth to defeat all

enemies of the faithful and to resurrect the martyred and to implement a kingdom for a

thousand years This kingdom of martyrs with Christ seems to be the result of messianic

and apocalyptic traditions of ancient Judaism which were materialized at the end of the first

century in the Apocalypse as a result of traumas of the Jewish-Roman War (66-70) of

conflicts between churches and synagogues and the different responses of charismatic

leaders to the question of the relationship with Roman society Joachim for his part hoped

that the Third Age of human history would culminate in a Sabbath rest under the inspiration

of the Holy Spirit In spite of being a relatively short period the Age of the Spirit would

bring to humanity the end of the conflicts that characterized ecclesiastical history under the

leadership of a spiritual father who would govern society in the mold of a monastic house

This rest of the monks did not have as its starting point however directly the millennium

of the Revelation but rather the historical reflections of Joachim and the tradition of the

refreshing of the saints that awaited a phase of happiness in the land before parousia The

historical emergency of Joachite millenarism in the late 12th century may be related to the

combination of phenomena such as apocalypticism and monastic reform

Abstract Millenarianism Revelation of John Joachim of Fiore Philosophy of History

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA 11

I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO 27

11 O autor do Apocalipse 27

12 A data do Apocalipse 35

13 O propoacutesito do Apocalipse 38

14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse 44

15 Resumo 47

II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA 48

21 Patmos o ponto de partida 48

22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia 50

23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia 52

24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia 54

25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo 59

26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo 61

27 Resumo 63

III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO 65

31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse 65

32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo 67

33 O contexto narrativo do reino milenar 69

34 O episoacutedio do reino milenar 71

35 O reinado messiacircnico interino na terra 76

36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 82

37 Resumo 88

IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 89

41 O autor do Expositio in Apocalypsim 89

42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim 98

43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim 100

44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse 106

45 Resumo 107

V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA SICIacuteLIA 108

51 A chegada dos normandos 110

52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia 111

10

53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen 113

54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada 114

55 A Igreja no Reino da Siciacutelia 118

56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda 121

57 Resumo 124

VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA DE JOAQUIM 126

61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo 126

62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo 130

63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde 134

64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas 137

65 Sensus typicus histoacuteria e profecia 139

66 O dom da exegese 142

67 Resumo 143

VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 144

71 Estrutura literaacuteria do Expositio 144

72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim 146

73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio 154

74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito 159

75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito 165

76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 171

77 Resumo 176

CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO DOS MONGES 178

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 196

ANEXOS 209

Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1 210

Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2 211

Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia 212

Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185) 213

Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum 214

Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios 215

INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA

Possivelmente as igrejas espalhadas pela Aacutesia Menor no final do seacuteculo I se

originaram da atividade religiosa de Paulo de Tarso na regiatildeo a partir do ano 58 da Era

Comum Natildeo havia centralizaccedilatildeo religiosa e cada comunidade se organizava e sobrevivia

do seu proacuteprio jeito Em termos de lideranccedila estas comunidades levantavam seus quadros

internamente privilegiando formatos colegiados Mesmo assim uma antiga atividade

religiosa ainda se manifestava entre as igrejas a profecia Profetas itinerantes viajavam para

pregar suas mensagens em cada comunidade e se moviam em funccedilatildeo da ajuda que recebiam

destes grupos

Um destes profetas ainda dentro do primeiro seacuteculo mas vaacuterias deacutecadas apoacutes o iniacutecio

do movimento de Jesus ficou conhecido por causa de um livro em que registrou o que seriam

visotildees relacionadas com o final dos tempos conhecido como Apocalipse Nesta obra ele se

identificou simplesmente como Joatildeo e escreveu suas ldquorevelaccedilotildees divinamente recebidasrdquo a

respeito de fenocircmenos histoacutericos e realidades sobrenaturais durante uma permanecircncia ou

visita agrave Patmos uma pequena ilha do mar Egeu proacutexima de Mileto e Eacutefeso

O livro de Joatildeo escrito em grego comeccedila com a expressatildeo ldquorevelaccedilatildeo de Jesus

Cristordquo (ldquoApokaluyij vIhsou Cristourdquo) Tal ldquorevelaccedilatildeordquo pode ser dividida em linhas gerais

em trecircs partes cada uma apresentando um conjunto de pequenos episoacutedios interconectados1

Na primeira (Apocalipse 1-3) Joatildeo descreve o aparecimento do ldquoFilho do Homemrdquo que lhe

revela o conteuacutedo de sete cartas que deveriam ser encaminhadas para sete igrejas A segunda

seccedilatildeo da obra (Apocalipse 4-11) registra o que Joatildeo teria visto apoacutes uma viagem espiritual

ao ceacuteu O conteuacutedo desta segunda visatildeo eacute narrado por meio da abertura de um rolo selado

com sete selos Eacute uma histoacuteria modelada pelas tradiccedilotildees judaicas sobre o fim do mundo que

culmina na implantaccedilatildeo de um esperado reino messiacircnico A uacuteltima seccedilatildeo do livro eacute bem

maior (Apocalipse 12-22) consumindo a metade da obra Nela se desdobra a histoacuteria da

guerra entre uma figura demoniacuteaca o Dragatildeo Vermelho e o Cordeiro siacutembolo usado por

Joatildeo para fazer referecircncia a Jesus fundador do movimento morto em Jerusaleacutem no iniacutecio

do seacuteculo No Apocalipse entretanto Jesus estaacute vivo e aparece descrito em categorias

1 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa

Polebridge Press 1998 p 10-16 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro Representaccedilatildeo e

construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 32-38

12

exaltadas como um ser angelical ou mesmo divino Esta narrativa de guerra escatoloacutegica eacute

uma estrateacutegia do autor para descrever a histoacuteria na forma de conflitos violecircncia e morte

tanto dos seguidores de Jesus quanto dos seguidores do Dragatildeo num processo contiacutenuo que

terminaria na intervenccedilatildeo divina para a construccedilatildeo de uma realidade paradisiacuteaca

transcendental que Joatildeo chamou de Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 211-27) Esta realidade

para aleacutem da histoacuteria entretanto seria precedida pela realizaccedilatildeo histoacuterica de um reino na

terra durante um periacuteodo de mil anos (Apocalipse 201-10)

Haacute evidecircncias de leitura e uso religioso do Apocalipse durante os dois primeiros

seacuteculos por parte de diversos liacutederes de igrejas Estes primeiros leitores enfatizavam

especialmente a passagem do Apocalipse que fala do periacuteodo de mil anos de governo de

Jesus Cristo na terra ao lado dos seus seguidores Por causa desta ecircnfase no milecircnio estes

primeiros leitores foram chamados eventualmente de quiliastas (termo derivado da palavra

grega traduzida como ldquomilrdquo)2

Nem todas as igrejas entretanto deram o mesmo tratamento para o Apocalipse No

periacuteodo de Euseacutebio de Cesareia (265-339) algumas rechaccedilavam a obra joanina enquanto

outras o contavam entre ldquoos livros admitidosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XXV 1-4) De

qualquer forma a obra de Joatildeo de Patmos acabou se fixando no cacircnon do Novo Testamento

cristatildeo fenocircmeno que no Ocidente se deu mais cedo do que no Oriente Em 397 o Siacutenodo

de Cartago reconheceu-o como texto sagrado e na igreja grega no fim do seacuteculo quinto ele

jaacute tinha aceitaccedilatildeo geral3 A partir de entatildeo ele seraacute lido como obra sagrada pelas diversas

comunidades cristatildes tornando-se elemento significativo no fornecimento de imagens e

siacutembolos para composiccedilatildeo de diversas representaccedilotildees sociais antigas e medievais

Mais de mil anos depois de Joatildeo nasceu em Celico na Calaacutebria sul da Peniacutensula

Itaacutelica um homem chamado Joaquim Quando jovem foi educado para atuar como notaacuterio

a serviccedilo do Reino Normando da Siciacutelia mas acabou deixando a corte para abraccedilar a vocaccedilatildeo

monaacutestica Ele comeccedilou a vida religiosa como eremita mas depois ingressou em um

pequeno cenoacutebio em Corazzo na Calaacutebria terminando por fundar no final da vida uma

casa monaacutestica em Fiore a fim de receber os vaacuterios disciacutepulos que desejavam segui-lo Este

monge de meados do seacuteculo XII produziu uma longa reflexatildeo sobre a histoacuteria lastreada

sobre a exegese dos textos biacuteblicos sobre o dogma trinitaacuterio e principalmente sobre o livro

2 WAINWRIGHT Arthur W Mysterious Apocalypse interpreting the Book of Revelation Wipf and Stock

Publishers Eugene 2001 p 21 3 Idem p 33-34

13

do visionaacuterio de Patmos Segundo ele o curso inteiro da histoacuteria estaria ldquoescondidordquo no

Apocalipse embora suas reflexotildees sejam primariamente dirigidas para a histoacuteria da igreja

desde o nascimento de Jesus ateacute a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de felicidade na terra Joaquim

escreveu vaacuterias obras em que trabalhou este mesmo tema4

- Expositio de prophetia ignota Romae reperta Foi composta em 1184 apoacutes o

encontro entre Joaquim e o papa Luacutecio III e consiste na interpretaccedilatildeo de um texto encontrado

entre os documentos do falecido cardeal Matias de Angers relacionado com profecias cristatildes

tradicionais a respeito do fim dos tempos

- De septem sigillis Eacute um pequeno opuacutesculo composto por Joaquim para servir de

guia e resumo do seu esquema das perseguiccedilotildees paralelas do Antigo e Novo Testamentos

baseado nos sete selos do Apocalipse de Joatildeo

- Enchiridion super Apocalypsim Eacute um manual sobre o Apocalipse e deveria servir

de introduccedilatildeo agrave obra joanina Foi escrito durante o periacuteodo que Joaquim passou em

Casamari entre os anos 1183 e 1184

- Praephatio super Apocalypsim Eacute a reuniatildeo de dois pequenos sermotildees de Joaquim

sobre o Apocalipse de Joatildeo pregados possivelmente para os monges de Corazzo Foram

reunidos posteriormente e circularam como uma uacutenica obra por causa de afinidades

temaacuteticas Eacute a uacutenica obra de Joaquim traduzida para a liacutengua portuguesa5

- Adversus Iudaeos No formato de tratado este texto descreve uma expectativa de

conversatildeo geral dos judeus no final dos tempos

- De ultimis tribulationibus Pequeno texto em forma de oraccedilatildeo possivelmente

declamado durante um encontro lituacutergico no mosteiro de Fiore

- Expositio in Apocalypsim Joaquim o iniciou em 1183-1184 mas soacute foi concluiacutedo

entre 1198 e 1200 Eacute tambeacutem a maior obra de Joaquim escrita num latim denso e complexo

Eacute possiacutevel dizer entatildeo que o abade de Fiore desde que abraccedilou a vocaccedilatildeo

monaacutestica decidiu fazer o que Bernard McGinn chamou de ldquocomer o Apocalipserdquo ou digeri-

lo lentamente analogia ao texto do Apocalipse em que o visionaacuterio eacute convidado a comer um

4 Quanto agrave data das obras cf TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di

Gioacchino da Fiore In GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p

73-106 Para uma lista dos manuscritos joaquimitas cf REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the

Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 511-519 5 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse Veritas Porto Alegre v 47 n 3 p 453-471 2002

BERNARDI Orlando Comentaacuterio ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla

Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010

14

livro entregue por um anjo 6 Dentre seus vaacuterios textos evidentemente o destaque fica para

o Expositio jaacute que representa o trabalho final do abade sobre a obra joanina

A partir destes dois personagens o que fizemos nesta tese foi analisar de forma

comparativa o Apocalipse de Joatildeo e o Expositio de Joaquim Em funccedilatildeo mesmo da extensatildeo

das obras e das dificuldades provocadas pelas distacircncias geograacuteficas e temporais entre elas

focaremos na categoria descrita como ldquomilenarismordquo7 e os recortes textuais de Apocalipse

201-10 bem como sua apropriaccedilatildeo na seacutetima parte do Expositio in Apocalypsim (209v-

213r) Em termos especiacuteficos indagaremos sobre a forma como Joaquim interpretou o

milecircnio do Apocalipse e a concepccedilatildeo milenarista que aparece no final

Eacute preciso destacar que cada um de nossos objetos de pesquisa tem sua proacutepria

historiografia Sobre Joatildeo de Patmos e seu Apocalipse por exemplo eacute preciso mencionar

primeiramente o grande volume de obras que se propotildee a fazer uma interpretaccedilatildeo semi-

literal esperando que as visotildees de Joatildeo se convertam em cenas histoacutericas de futuro proacuteximo

tomando o livro joanino como um depoacutesito de profecias predominantemente de

cumprimento iminente Esta tradiccedilatildeo interpretativa nas suas principais configuraccedilotildees

contemporacircneas parecem retroceder a John Nelson Darby (1800-1882) e agraves notas da Biacuteblia

de Estudo Scofield cuja primeira ediccedilatildeo saiu em 19098 Nesta linha eacute possiacutevel mencionar

obras de enorme circularidade como The Late Great Planet Earth (1970) de Hal Lindsey

que vendeu mais de 20 milhotildees de exemplares na sua primeira deacutecada de publicaccedilatildeo9 ou a

seacuterie de dez novelas de Tim LaHaye e Jerry Jenkins intitulada Left Behind escritas de 1995

ateacute 2002 que ultrapassou a quantia de 63 milhotildees de coacutepias vendidas em 37 paiacuteses e 33

liacutenguas diferentes10 Esta tradiccedilatildeo pode ser caracterizada por algumas ecircnfases gerais como

a ideia de um arrebatamento secreto dos crentes fieacuteis a Jesus a conversatildeo final dos judeus

ao Cristianismo e um periacuteodo milenar de felicidade na terra O Apocalipse eacute tratado como

6 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale Gecircnova

Casa Editrice Marietti 1990 p 159 A passagem em questatildeo se encontra em Apocalipse 10 7 Adotamos aqui a concepccedilatildeo de ldquomilenarismordquo do historiador inglecircs Norman Cohn entendendo-a como um

tipo particular de utopia salvacionista que apresenta os seguintes traccedilos gerais coletiva jaacute que todos os fieacuteis

experimentariam a felicidade terrena em funccedilatildeo do fato de que essa felicidade seria alcanccedilada neste mundo e

natildeo numa realidade transcendente total pois aguarda uma completa inversatildeo de todos os males da terra

iminente jaacute que essa transformaccedilatildeo completa estaria perto de comeccedilar e miraculosa agrave luz da certeza de que

essa mudanccedila contaria com a ajuda de seres sobrenaturais Cf COHN Norman Na senda do milecircnio

milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 8 Sobre o papel significativo de John Nelson Darby e a Biacuteblia de Estudo Scofield na interpretaccedilatildeo

contemporacircnea do Apocalipse cf KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford

Blackwell Publishing 2004 p 24-25 WAINWRINGHT op cit p 82-83 9 WAINWRINGHT op cit p 84 10 MONAHAN Torin Marketing the beast Left Behind and the apocalypse industry Media Culture amp

Society Thousand Oaks n 30 p 813-830 2008 p 817

15

parte de um grande quebra-cabeccedila que revelaria por meio de coacutedigos e imagens eventos

dos dias contemporacircneos como o papel dos Estados Unidos no aparecimento do Anticristo

ou o surgimento de um liacuteder poliacutetico de origem socialista como o falso profeta de Apocalipse

13

Do outro lado normalmente vinculados a instituiccedilotildees universitaacuterias estatildeo

pesquisadores cujo foco reside em aspectos histoacutericos do Apocalipse Estudiosos desta linha

histoacuterica se preocupam com a relaccedilatildeo entre Joatildeo e o tempo de produccedilatildeo do Apocalipse

Sendo assim eles procuram perceber ateacute onde o autor na sua narrativa apocaliacuteptica reflete

os medos e esperanccedilas dos grupos que representa ou antagoniza Esses autores tendem a

procurar similaridades entre as visotildees de Joatildeo e eventos contemporacircneos do primeiro seacuteculo

Eles estudam as razotildees que teriam levado o autor ateacute a ilha de Patmos ateacute que ponto o

Impeacuterio Romano promoveu algum tipo de desconforto para as igrejas e as implicaccedilotildees do

governo de Domiciano sobre o movimento de Jesus no final do primeiro seacuteculo Essas

ecircnfases histoacutericas podem ser encontradas por exemplo em R H Charles11 G B Caird12

A Y Collins13 C Rowland14 Leonard Thompson15 C Bauckham16 E S Fiorenza17 e

David Aune18 Estudos como os de C J Hemer19 ainda podem ser uacuteteis para esclarecer

aspectos especiacuteficos das igrejas da Aacutesia menor

Uma significativa tendecircncia de pesquisa eacute a que busca trabalhar o livro de Joatildeo agrave luz

de questotildees como retoacuterica20 e gecircnero21 Esta linha transita do meacutetodo histoacuterico e literaacuterio

para um paradigma de interpretaccedilatildeo retoacuterica Dentro dessa tendecircncia estuda-se a obra de

11 CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New York Charles

Scribner amp Sons 1920 12 CAIRD G B A Commentary on the Revelation of St John the Divine New York Harper amp Row Publishers

1966 13 COLLINS Adela Yarbro The Apocalypse Wilmington Michael Grazier Inc 1982 14 ROWLAND Christopher The Open Heaven A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity

London SPCK 1982 15 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University

Press 1990 16 BAUCKHAM Richard The cliacutemax of Prophecy London T amp T Clark 1993 17 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation Vision of a Just World Minneapolis Augsburg Fortress 1991 18 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 AUNE David E Revelation

6-16 Nashville Thomas Nelson Publishers 1998 AUNE David E Revelation 17-22 Nashville Thomas

Nelson Publishers 1998 19 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield

Academic Press Ltd 1986 20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In

BARR David L (ed) The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta

Society of Biblical Literature 2006 p 243-269 21 PIPPIN Tina The heroine and the whore fantasy and the female in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 60 p 67-90 1992

16

Joatildeo em busca da funccedilatildeo almejada para cada seccedilatildeo ou narrativa do livro percebendo-as

como discursos que buscavam retoricamente convencer uma audiecircncia determinada acerca

das posturas idealizadas por Joatildeo vistas de uma maneira geral como asceacuteticas e sectaacuterias

O Apocalipse assim refletiria a tendecircncia de um profeta judeu que cria em Jesus como o

Messias e se percebia em crise com a sociedade22

A sociologia e a antropologia forneceram aos estudiosos importantes instrumentos

de anaacutelise que nas uacuteltimas deacutecadas comeccedilaram igualmente a resultar em influentes

publicaccedilotildees Festinger23 Norman Cohn24 e John Gager25 trabalharam o apocalipse

vinculando-o aos estudos de milenarismo e a movimentos religiosos sectaacuterios A obra de

Joatildeo poderia ser vista entatildeo como o resultado de uma comunidade oprimida em confronto

com uma dissonacircncia cognitiva difiacutecil de ser conciliada com a realidade O resultado eacute a

construccedilatildeo de um mundo simboacutelico alternativo e a projeccedilatildeo de temores e ressentimentos

para o futuro por meio das imagens apocaliacutepticas

No contexto latino-americano eacute possiacutevel apontar a contribuiccedilatildeo de autores que

aplicam ao Apocalipse uma hermenecircutica da libertaccedilatildeo O livro eacute utilizado para interpretar

realidades poliacuteticas e sociais de opressatildeo contra pobres e marginalizados Dentro desta

perspectiva a obra joanina deveria servir de instrumento para promoccedilatildeo de esperanccedila de

uma vida melhor bem como para estimular resistecircncia a situaccedilotildees de violecircncia e injusticcedila

Leituras deste tipo podem ser encontradas por exemplo em Mester e Orofino26 e Pablo

Richard27

Surgiu em Satildeo Paulo na virada do seacuteculo um grupo de estudiosos vinculados agrave

UMESP voltados para trabalhar o Apocalipse literaturas a ele relacionadas e o cristianismo

dos primoacuterdios por uma oacutetica multi-disciplinar onde os temas satildeo analisados com o apoio

de diversos olhares derivados das ciecircncias da religiatildeo Antropologia da religiatildeo sociologia

da religiatildeo fenomenologia da religiatildeo psicologia da religiatildeo histoacuteria das religiotildees religiotildees

22 Entre outros conferir SILVA David A de The Revelation to John a case study in apocalyptic propaganda

and the maintenance of sectarian identity Sociological Analysis Oxford v 53 n 4 p 375-395 1992 SILVA

David A de The social setting of the Revelation to John Conflicts within fears without Westminster

Theological Journal Philadelfia v 54 p 273-302 1992 23 FESTINGER Leon (ed) When prophecy fails a social and psychological study of a modern group that

predicted the destruction of the world London Pinter amp Martin Ltda 2008 24 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 25 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 26 MESTERS Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo A teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis

Vozes 2003 27 RICHARD Pablo Apocalipse reconstruccedilatildeo da esperanccedila Petroacutepolis Vozes 1996

17

comparadas e estudos literaacuterios Nesta linha trabalham autores como Paulo Nogueira28 e Joseacute

Adriano Filho29 entre outros

Jaacute a historiografia de Joaquim de Fiore parece ter sofrido um incremento a partir das

pesquisas de Herbert Grundmann no iniacutecio do seacuteculo XX30 Grundmann focava na produccedilatildeo

de uma biografia de Joaquim daiacute seu interesse nas hagiografias e narrativas antigas sobre o

abade Em 1960 ele editou duas destas antigas narrativas uma anocircnima e outra atribuiacuteda a

Rainers de Ponza que se tornaram entatildeo fontes fundamentais dos estudiosos

contemporacircneos sobre o abade de Fiore

No mesmo periacuteodo em que Grundmann pesquisava na Alemanha Ernesto Buonaiuti

especialmente a partir de 1930 trabalhava na Itaacutelia na ediccedilatildeo das obras de Joaquim de

pequeno porte O pesquisador italiano chegou a produzir uma anaacutelise abrangente do

pensamento joaquimita31 poreacutem concentrou-se em disponibilizar para os pesquisadores

ediccedilotildees criacuteticas das obras Ele tambeacutem traduziu algumas dessas obras para a liacutengua italiana

Outros estudiosos se envolveram no mesmo ofiacutecio de Buonaiuti fazendo com que as

seguintes obras jaacute apresentassem ediccedilotildees criacuteticas Tractatus super Quatuor Evangelia

(1930) De articulis fidei e Sermotildees (1936) Epistola universis Christi fidelibus e Epistola

domini Valdonensi (1937) Dialogi de prescientia Dei et predestinatione electorum (1938)

Enchiridion in Apocalypsim (1938) Hymnus de paacutetria coelesti (1899) Visio admiranda de

gloria paradisi (18991938) De vita sancti Benedicti et de officio divino secundum ejus

doctrinam (1951) Liber Figurarum (1953) Super flumina Babylonis (1953) De septem

sigillis (1954) Adversus Iudeos (1957) Carta Testamentaacuteria (1960)

Das grandes obras de Joaquim entretanto apenas uma recebeu ediccedilatildeo parcial E

Randolph Daniel editou Liber Condordiae Novi ac Veteris Testamenti32 As outras duas

Expositio in Apocalypsim e Psalterium decem chordarum somente estatildeo acessiacuteveis pelas

ediccedilotildees da Junta de Veneza (seacuteculo XVI) reimpressas em 19641965 pela Editora Minerva

de Frankfurt

28 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza (org) Religiatildeo de visionaacuterios apocaliacuteptica e misticismo no

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Loyola 2005 29 ADRIANO FILHO Joseacute O Apocalipse de Joatildeo como relato de uma experiecircncia visionaacuteria Anotaccedilotildees em

torno da estrutura do livro Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana Satildeo Paulo n 34 p 7-29 1999 30 GRUNDMANN Herbert Studien uumlber Joachim von Floris GMBH Springer Fachmedien Wiesbaden

1927 Para a historiografia anterior a Grundmann cf LA PINA George Joachim of Flora a critical survey

Speculum Cambridge v 7 n 2 p 257-282 1932 31 BUONAIUTI Ernesto Gioacchino da Fiore I tempi La vita Il messaggio Roma Consenza 1931 32 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Noui ac Veteris Testamenti

Independence Square American Philosophical Society 1983

18

O trabalho editorial das obras de Joaquim tem sido pontual e esporaacutedico Ainda haacute

muito espaccedilo para reflexotildees nesta aacuterea mesmo do material jaacute editado no iniacutecio do seacuteculo

XX em funccedilatildeo do avanccedilo no trabalho de restauraccedilatildeo de manuscritos antigos Vaacuterias obras

de Joaquim ainda precisam ser traduzidas para liacutenguas modernas o que facilitaria a pesquisa

e a compreensatildeo de seus textos Neste sentido eacute uacutetil apontar o trabalho de um dos membros

do conselho editorial do Centro Internazionale di Studi Gioachamiti Gian Luca Potestagrave Este

conselho desde que foi formado em 199533 tem como propoacutesito reeditar as obras de

Joaquim do iniacutecio do seacuteculo e promover a ediccedilatildeo de obras ainda natildeo editadas Potestagrave precisa

ser mencionado por ser um dos principais bioacutegrafos atuais de Joaquim especialmente depois

de sua obra Il tempo dellacuteApocalisse34

O professor alematildeo Kurt-Victor Selge outro membro do conselho editorial acima

mencionado argumentou que pelo menos trecircs fatores atrasaram a produccedilatildeo de ediccedilotildees

criacuteticas de Joaquim Primeiramente faltou apoio de alguma instituiccedilatildeo religiosa como

aquele que o luteranismo alematildeo deu para as Ediccedilotildees de Weimar das obras de Lutero ou o

papado para a Editio Leonina de Tomaacutes de Aquino a Ordem Florense fundada pelo abade

que poderia ser este apoio se enfraqueceu apoacutes sua morte ateacute desaparecer no seacuteculo XVI

por fim Joaquim se converteu num marginalizado da histoacuteria do pensamento cristatildeo Mesmo

sendo saudado por revolucionaacuterios e iluministas tal aceitaccedilatildeo natildeo se traduziu na fundaccedilatildeo

de alguma instituiccedilatildeo Nesse sentido o renovado interesse em Joaquim a partir do iniacutecio do

seacuteculo XX poderia ser explicado pelo aparecimento de uma ala modernista dentro da Igreja

Catoacutelica que buscava uma figura que legitimasse seu interesse por uma igreja mais livre e

pela busca de historiadores e filoacutesofos que se perguntavam por formas adequadas de vida

comunitaacuteria que poderiam mitigar a crise que a sociedade europeia carregava desde o seacuteculo

XIX As ideias de Joaquim chamaram a atenccedilatildeo desses estudiosos em nuacutemero cada vez

maior especialmente na Itaacutelia e Alemanha e depois tambeacutem na Espanha Inglaterra e

Estados Unidos35

Um outro tipo de pesquisa se debate natildeo com o proacuteprio Joaquim mas com o

desdobrar do seu pensamento dando origem ao que se convencionou chamar de

joaquimismo Pesquisadores desta linha se concentram em encontrar a influecircncia de Joaquim

33 HONEacuteE Eugegravene Joachim of Fiore The development of his life and the genesis of his works and doctrines

About the merits of Gian Luca Potestagraveacutes new biography Church History and Religious Culture Leida v 87

n 1 p 47-74 2007 p 49 34 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 35 Conferir esta anaacutelise em SELGE Kurt-Victor La edicioacuten criacutetica de las Opera omnia de Joaquiacuten de Fiore

Anuario de Historia de la Iglesia Navarra n 11 p 89-94 2002

19

em pensadores e escritores posteriores Em especial alguns estatildeo envolvidos em demonstrar

quais ideias de Joaquim deram iacutempetos a outras figuras e movimentos importantes Neste

acircmbito se situam autores como Marjorie Reeves36 Bernard McGinn37 e Henri de Lubac38

Estes livros se tornaram ponto de partida recente para os estudos sobre a influecircncia de

Joaquim e o desenvolvimento do joaquimismo

Nesta tendecircncia ainda se situam estudos que procuram sua contribuiccedilatildeo para a

teologia e a filosofia da histoacuteria em especial No primeiro caso apontamos Juumlrgen

Moltmann e o seu livro The Trinity and the Kingdom (1981) No segundo indicamos

pesquisadores brasileiros como Vicente Dobroruka e a busca pela relaccedilatildeo de Joaquim com

o pensamento de Ephraim Lessing (1995)39 e Noeli Dutra Rossatto sobre a relaccedilatildeo entre

Trindade e histoacuteria (2004)40 Eacute do historiador brasileiro Dobroruka a avaliaccedilatildeo de que o

sistema profeacutetico de Joaquim eacute considerado um dos pilares da moderna reflexatildeo acerca do

sentido da histoacuteria41

A partir das pontes levantadas pela historiografia aproximamo-nos das questotildees por

meio de um conjunto de conceitos oriundos da abordagem da histoacuteria cultural especialmente

promovidos pelo historiador francecircs Roger Chartier praacutetica representaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo42

Uma de suas aacutereas de pesquisa busca compreender as formas como a produccedilatildeo e recepccedilatildeo

de objetos culturais atuam na configuraccedilatildeo do mundo social Essa abordagem se mostra

revelante para nossa pesquisa justamente por promover uma histoacuteria do livro da leitura ou

das interpretaccedilotildees sociais o que nos ajuda a entender a operaccedilatildeo realizada por Joaquim de

Fiore e Joatildeo de Patmos em seus respectivos contextos Ambos satildeo produtores e receptores

de textos e tradiccedilotildees e consequemente por meio de suas praacuteticas e apropriaccedilotildees atuaram

na construccedilatildeo de novas representaccedilotildees sociais

36 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976

REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit 37 MCGINN Bernard The calabrian abbot Joachim of Fiore in the history of Western Thought New York

Macmillan Pub Co 1985 38 De LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore Madri Ediciones Encuentro 2011 39 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore Revista

Muacuteltipla Brasiacutelia v 5 n 8 p 9-28 2000 Cf tambeacutem sua obra DOBRORUKA Vicente Histoacuteria e

milenarismo ensaios sobre tempo histoacuteria e o milecircnio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 40 ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 41 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore op cit p 9 42 A noccedilatildeo de ldquopraacuteticardquo eacute intercambiaacutevel com produccedilatildeo cultural ldquoapropriaccedilatildeordquo tem relaccedilatildeo com recepccedilatildeo

cultural ldquorepresentaccedilatildeordquo entretanto carrega certa ambiguidade Em alguns momentos Chartier a usa para

falar de estruturas em outro do conteuacutedo das estruturas Cf CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre

praacuteticas e representaccedilotildees Algeacutes Difusatildeo Editorial 2002 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo

Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191 1991

20

Eacute possiacutevel entender as representaccedilotildees como classificaccedilotildees divisotildees e delimitaccedilotildees

que organizam a apreensatildeo do mundo social Elas satildeo categorias intelectuais elementos

mentais estruturantes da realidade exterior subjetivaccedilotildees de realidades materiais

organizadas segundo determinados padrotildees O ser humano jaacute nasce mergulhado num mundo

construiacutedo Ele natildeo participou de sua construccedilatildeo mas em algum momento precisou introjetaacute-

lo e estruturaacute-lo subjetivamente para que ele se tornasse o seu proacuteprio mundo43 Estas

representaccedilotildees individuais ou coletivas geram praacuteticas culturais como a produccedilatildeo de um

livro a verbalizaccedilatildeo dos discursos a idealizaccedilatildeo de comportamentos e valores especiacuteficos

em detrimento da estigmatizaccedilatildeo de outros

A noccedilatildeo dupla de representaccedilotildees e praacuteticas se constitui como poacutelo de um processo

amplo jaacute que natildeo apenas as representaccedilotildees geram praacuteticas mas tambeacutem as praacuteticas geram

representaccedilotildees O tal mundo social como representaccedilatildeo eacute formado por um processo

contiacutenuo de moldes e formas manifestados em discursos que tanto o apreendem quanto o

estruturam44 Numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre as praacuteticas e representaccedilotildees Chartier aponta

a apropriaccedilatildeo entendida como o processo pelo qual um sentido eacute historicamente

produzido45 Apropriaccedilatildeo tem a ver com construccedilatildeo de sentido interpretaccedilatildeo categoria uacutetil

para problematizar a dinacircmica entre sujeito produtor de cultura e sujeito consumidor de

cultura Um livro como objeto da cultura eacute o resultado da produccedilatildeo de sentido de um autor

mas tambeacutem gerador de sentidos nas matildeos de um leitor que se apropria da obra e cria novos

significados Uma anaacutelise das apropriaccedilotildees teria relaccedilatildeo com as condiccedilotildees e os processos de

produccedilatildeo de sentido Cabe descobrir como isso se daacute e verificar as novas formas

constitutivas de mundo46 a partir da leitura ou audiccedilatildeo jaacute que textos podem ser lidos ou

ouvidos em espaccedilos privados ou puacuteblicos Segundo Chartier a apropriaccedilatildeo natildeo se daacute de

forma passiva jaacute que quem recebe um texto pode promover uma apropriaccedilatildeo seletiva ou

mesmo criativa transformando e ateacute negando o sentido do texto lido47 Joaquim por

exemplo construiu um comentaacuterio biacuteblico gecircnero literaacuterio voltado primariamente para

buscar e criar sentidos atraveacutes da apropriaccedilatildeo do texto do Apocalipse de Joatildeo

43 BERGER Peter LUCKMANN Thomas A construccedilatildeo social da realidade tratado de sociologia do

conhecimento Petroacutepolis Vozes 1973 p 87 44 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 23 45 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 179 46 Para os socioacutelogos Berger e Luckmann ldquomundordquo eacute aquilo que as pessoas reconhecem ou entendem existir

independente de sua vontade ou independente delas Cf BERGER Peter LUCKMANN Thomas op cit p

10 47 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 10

21

Daiacute a necessidade de buscar as praacuteticas que organizam os modos de relacionamento

com os textos diferenciadas histoacuterica e socialmente48 Cada comunidade grupo ou

sociedade tem sua proacutepria maneira de ler e interpretar Haacute processos historicamente

condicionados de padronizaccedilatildeo de escrita (gecircnero literaacuterio) da mesma forma como de

leitura que criam limites para o que eacute possiacutevel escrever mas tambeacutem para o que eacute possiacutevel

ver no que estaacute escrito Satildeo as determinaccedilotildees enquadramentos e condicionamentos que

viabilizam tanto a produccedilatildeo quando a apropriaccedilatildeo de uma obra

A apropriaccedilatildeo eacute para o historiador francecircs uma relaccedilatildeo sempre dinacircmica e

dependente de uma seacuterie de fatores Neste sentido as determinaccedilotildees podem se materializar

em situaccedilotildees como a forma em que o manuscrito foi acessado o tipo de material os

procedimentos de leitura a competecircncia dos inteacuterpretes os viacutenculos sociais dos leitores ou

o espaccedilo da audiccedilatildeo49 Os atos de ler e interpretar estatildeo situados no limite entre leitores

determinados por suas posiccedilotildees e textos cujos significados dependem da forma como se

apresentam os discursos e as maneiras como eles satildeo acessados

A leitura neste caso pode gerar tanto representaccedilotildees quanto praacuteticas que natildeo se

identificam completamente com as do texto lido ou com o que o autor tentou imprimir em

sua obra50 Leitores inventam nos textos algo diferente daquilo que seria alguma intenccedilatildeo

autoral A leitura fragmenta o texto junta partes distantes preenche brechas e cria sentidos

Essa dinacircmica entre autor e leitor viabiliza o que Chartier chama de histoacuteria social

das interpretaccedilotildees ou anaacutelise das determinaccedilotildees fundamentais (sociais institucionais

culturais) dos textos e das leituras51 Daacute origem tambeacutem a uma histoacuteria da exegese ou da

hermenecircutica dos textos

O relacionamento das praacuteticas representaccedilotildees e apropriaccedilotildees se articulam com o

mundo social principalmente por trecircs aspectos

- o mundo eacute construiacutedo de forma contraditoacuteria pelos diferentes grupos que compotildeem

uma sociedade a partir de classificaccedilotildees e recortes que produzem as representaccedilotildees

- as praacuteticas promovem uma determinada identidade social uma definida maneira de

ser no mundo a indicaccedilatildeo simboacutelica de uma posiccedilatildeo ou um estatuto

- a proacutepria existecircncia do grupo ou da comunidade eacute marcada e confirmada pelas

formas institucionalizadas e objetivadas que se derivam das praacuteticas Eacute neste sentido que

48 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 181 49 Idem 50 Idem p 59 51 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 26 e 131

22

indiviacuteduos representam instituiccedilotildees e textos se tornam representativos de determinadas

posiccedilotildees sociais

Aqui Chartier alerta para um tipo de luta que natildeo eacute entre classes sociais mas entre

representaccedilotildees diferentes ou formas rivais defendidas por cada grupo para ordenar e

hierarquizar o mundo social52

Chartier nos ajudou a entender Joatildeo e Joaquim como mergulhados em diferentes lutas

de representaccedilotildees53 Nos seus textos eles manifestam conflitos sociais viacutenculos

institucionais e praacuteticas culturais Ambos em suas respectivas conjunturas histoacutericas satildeo

simultaneamente autor e leitor Eles se apropriam de fontes anteriores ou contemporacircneas

imprimindo nelas suas proacuteprias estrateacutegias de consumo de texto produzindo novos sentidos

que se materializaram em suas subsequumlentes obras Em vaacuterios momentos desta pesquisa nos

detemos em questotildees sobre as fontes que cada um leu como elas foram lidas e os sentidos

entatildeo construiacutedos Especialmente no caso do abade ele eacute um leitor expliacutecito do Apocalipse

de Joatildeo e seu comentaacuterio o resultado formal desta leitura

Nosso corpus documental assim leva em conta estes dois objetos de pesquisa com

histoacuterias textuais bem diferentes Enquanto o Apocalipse por fazer parte do cacircnon cristatildeo

tem o suporte das chamadas Sociedades Biacuteblicas54 o Expositio nem mesmo tem uma ediccedilatildeo

criacutetica

Em termos concretos existem cinco tipos de testemunhas55 do texto do Apocalipse

- seis papiros todos fragmentaacuterios

- onze manuscritos unciais trecircs deles com o texto completo

- 293 manuscritos minuacutesculos

- citaccedilotildees patriacutesticas

52 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 182 53 Em algum momento eacute possiacutevel que mesmo universos conflitantes sobrevivam simultaneamente Eacute o caso de

um grupo que constroacutei uma subsociedade dentro da sociedade maior formando uma espeacutecie de refuacutegio e base

para a manutenccedilatildeo do seu mundo dissidente Para isso ele precisa criar procedimentos para proteger a

existecircncia precaacuteria dessa subsociedade das ameaccedilas que vecircm de fora Um dos mais importantes procedimentos

seraacute a limitaccedilatildeo dos relacionamentos significativos para exclusiva ou predominantemente dentro do grupo

Os membros do grupo devem evitar se relacionar significativamente com pessoas de fora que possuem visotildees

divergentes de mundo surgindo entatildeo um comportamento sectaacuterio Cf NEWSOM Carol A The Self as

Symbolic Space Constructing Identity and Community at Qumran Atlanta Society of Biblical Literature

2007 p 12 54 Sobre a produccedilatildeo do texto criacutetico do Apocalipse cf DELOBEL J Le texte de lApocalypse Problegravemes de

meacutethode In Lambrecht (ed) LrsquoApocalypse Johannique et lrsquoApocalyptique dans le Nouveau Testament

Louvain University Press 1980 p 151-166 AUNE David E Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-clix 55 O termo ldquotestemunhardquo eacute usado em ediccedilotildees criacuteticas e obras de criacutetica textual do Novo Testamento para fazer

referecircncia a fontes que conteacutem de forma completa ou fragmentaacuteria o texto biacuteblico como por exemplo um

manuscrito uma traduccedilatildeo antiga uma citaccedilatildeo antiga ou uma transcriccedilatildeo em artefatos arqueoloacutegicos

23

- traduccedilotildees antigas

Estas testemunhas formam a base sobre a qual trabalham os estudiosos que preparam

ediccedilotildees criacuteticas do Apocalipse Dentre essas as trecircs primeiras (papiros unciais e

minuacutesculos) destacam-se na reconstruccedilatildeo do que teria sido o autoacutegrafo56 do Apocalipse pela

relaccedilatildeo direta com o grego idioma de origem da obra joanina

Os seis papiros (P18 P24 P43 P47 P85 e P98) contecircm apenas fragmentos de texto O

mais antigo destes o P98 datado para um periacuteodo tatildeo recuado quanto o seacuteculo II e

consequentemente a mais antiga testemunha textual do Apocalipse preserva apenas

Apocalipse 113-20 Os demais papiros foram produzidos entre os seacuteculos III e V57

Dentre os 11 manuscritos unciais relacionados com o Apocalipse (a A C P 046

051 052 0163 0169 0207 0229) apenas trecircs deles possuem o Apocalipse na sua forma

completa (a A e 046) Os demais preservaram apenas fragmentos como o MS 0169 que

conteacutem apenas Apocalipse 319-43Trecircs deles satildeo datados para o seacuteculo IV (a 0169 e 0207)

trecircs para o seacuteculo V (A C e 0163) um para os seacuteculos VII-VIII (0229) um para o seacuteculo IX

(P) e trecircs para o seacuteculo X (046 051 e 052) Isso significa que a coacutepia completa mais antiga

do texto grego do Apocalipse estaacute no MS a do seacuteculo IV localizado no London British

Museum58

293 manuscritos minuacutesculos satildeo conhecidos por conter pelo menos alguma parte do

Apocalipse Um eacute coacutepia do seacuteculo IX oito do seacuteculo X 35 do seacuteculo XI 30 do seacuteculo XII

58 do seacuteculo XIV 57 do seacuteculo XV 40 do seacuteculo XVI 13 do seacuteculo XVII cinco do seacuteculo

XVIII e dois do seacuteculo XIX Os outros 44 manuscritos minuacutesculos apresentam dificuldades

para a dataccedilatildeo com sugestotildees que variam do seacuteculo IX ateacute o XV59

O conjunto das jaacute mencionadas testemunhas textuais com a inclusatildeo das citaccedilotildees

patriacutesticas e as traduccedilotildees antigas pode ser estruturado em quatro tradiccedilotildees textuais

56 Termo utilizado para fazer referecircncia a um hipoteacutetico texto original Como os originais se perderam a funccedilatildeo

dos estudiosos eacute reconstruiacute-los por meio de comparaccedilatildeo e colagem de diversos tipos de testemunhas seguindo

criteacuterios como antiguidade estilo origem do manuscrito famiacutelia de manuscritos entre outros Conferir uma

descriccedilatildeo destes procedimentos em ALAND Kurt ALAND Barbara The text of the New Testament an

introduction to the critical editions and to the theory and practice of modern textual criticism Grand Rapids

William B Eerdmans Publishing Company 1989 p 280-316 ELLIOTT J K New Testament textual

criticism the application of thoroughgoing principles Leiden Brill 2010 p 13-52 VAGANAY Leon An

introduction to the New Testament textual criticism Cambridge Cambridge University Press 1982 p 52-88 57 AUNE David Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-cxxxviii 58 Idem p cxxxviii 59 Conferir a lista completa dos 293 manuscritos com dataccedilatildeo e descriccedilatildeo do conteuacutedo em AUNE David E

Revelation 1-5 op cit p cxxxix-cxlviii

24

- A primeira eacute denominada de ldquotexto neutrordquo por Aune que a considera a ldquoa melhor

testemunha do texto grego do Apocalipserdquo60 Ela consiste dos unciais A e C bem como do

minuacutesculo 2053

- A segunda consiste no P47 o mais antigo manuscrito do Apocalipse datado para o

segundo seacuteculo junto com o uncial a e as citaccedilotildees de Oriacutegenes

- A terceira parte do texto encontrado no comentaacuterio do Apocalipse de Andreas de

Cesareia na Capadoacutecia que escreveu entre 563-614 Tambeacutem se inscrevem nesta tradiccedilatildeo

textual as duas coacutepias da versatildeo geoacutergica do Apocalipse datadas para o seacuteculo X

- A quarta eacute a mais numerosa e recebe o tiacutetulo de ldquotexto bizantinordquo definida em linhas

gerais como de pouca confianccedila para a restauraccedilatildeo do autoacutegrafo61

A maioria dos manuscritos gregos do Apocalipse62 bem como as demais

testemunhas em linhas gerais guardam relaccedilatildeo predominantemente com o texto bizantino

Isso significa que os textos criacuteticos tendem a partir do texto neutro confrontando-o com a

segunda e terceira tradiccedilatildeo63 e em alguns poucos casos com o texto bizantino

A perspectiva desta histoacuteria textual do Apocalipse eacute uacutetil para o caso de confronto

entre as variantes textuais de alguma passagem especiacutefica do texto de Joatildeo mas o trabalho

eacute enormemente facilitado pelas ferramentas jaacute disponiacuteveis nas duas ediccedilotildees criacuteticas

publicadas

- ALAND Kurt (ed) The Greek New Testament Stuttgart Deutsche

Bibelgesellschaft 1994

- NESTLE Eberhard NESTLE Erwin ALAND Kurt (org) Novum Testamentum

Graece 27 ed Stuttgart Gesamtherstellung Biblia-Druck 1993

Ambas as ediccedilotildees utilizam o mesmo texto criacutetico mas variam na forma como

apresentam e organizam as variantes textuais Destacamos ainda que o papel da ediccedilatildeo

criacutetica do Apocalipse eacute de indicar o autoacutegrafo provaacutevel produzido por Joatildeo natildeo

necessariamente o texto lido por Joaquim nas bibliotecas monaacutesticas por onde passou

(Sambucina Corazzo Casamari e Fiore) Esta uacuteltima por sinal foi destruiacuteda num incecircndio

apoacutes a morte do seu fundador

60 Idem p clvi 61 Idem p clvii 62 Uma lista ampla destes manuscritos com anaacutelise individualizada pode ser encontrada em HOSKIER H

C Concerning the text of the Apocalypse London Bernard Quaritch Ltd 1929 2 v Outra anaacutelise estaacute

disponiacutevel em CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New

York Charles Scribner amp Sons 1920 2 v V 2 p 227-385 63 ELLIOTT op cit p 150

25

Natildeo se sabe quantas coacutepias dos manuscritos de Joaquim foram queimados neste

incecircndio De qualquer forma como jaacute argumentamos foram outros os motivos que

limitaram a difusatildeo dos manuscritos do abade Muito diferente do nuacutemero de testemunhas

de Apocalipse o Expositio in Apocalypsim sobreviveu em apenas seis manuscritos64

- MS 249 em Troyes na Biblioteca Municipal nos foacutelios 38-107 do seacuteculo XIII

- MS H 15 em Milatildeo na Biblioteca Ambrosiana nos foacutelios 65-160 do seacuteculo XIII

ou XIV

- MS Chig A VIII 231 em Roma na Biblioteca do Vaticano nos foacutelios 1-104 do

seacuteculo XIV

- MS 1411 em Roma na Biblioteca Casanatense foacutelios 1-91 do seacuteculo XIV

- MS Cent II 51 em Nuremberg na Stadtbibliothek nos foacutelios 127-373 do seacuteculo

XV

- MS Harley 3049 em Londres no Museu Britacircnico nos foacutelios 137-220 do seacuteculo

XV

- MS A 450 em Rouen na Biblioteca Municipal nos foacutelios 1-31 do seacuteculoXVI

No seacuteculo XVI entretanto a Junta de Veneza editou na forma de incunaacutebolo as trecircs

obras principais de Joaquim Concordia no ano 1519 Expositio e Psalterium em 1527 Estas

foram reimpressas no seacuteculo XX pela Editora Minerva Eacute esta ediccedilatildeo do Expositio in

Apocalypsim65 que usamos em nossa anaacutelise Ela estaacute composta por foacutelios escritos na frente

e no verso Apenas as partes frontais dos foacutelios satildeo numeradas de 1 a 224 Cada foacutelio ainda

tem duas colunas Sendo assim o Expositio eacute referenciado indicando-se o nuacutemero do foacutelio

e se eacute frente ou verso (ldquorrdquo quando for a parte frontal ldquovrdquo para o verso do foacutelio) Neste sentido

ele comeccedila em 26v ou seja no verso do foacutelio 26 e termina em 224r ou seja na parte frontal

do foacutelio 224

Nosso trabalho estaacute estruturado em sete capiacutetulos Usaremos o primeiro capiacutetulo para

analisar a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso implica discutir as condiccedilotildees

histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento de Jesus ateacute a ilha de Patmos

para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na proviacutencia da Aacutesia

Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destinataacuterios data e propoacutesito do Apocalipse bem

64 REEVES Marjorie The influence of prophecy in the later Midlle Ageshellip p 513 65 JOAQUIM VON FIORE Expositio in Apocalypsim Frankfurt Minerva 1964

26

como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com forma e conteuacutedo

definidos

No capiacutetulo segundo nos deteremos na anaacutelise da situaccedilatildeo das igrejas da proviacutencia

romana da Aacutesia em especial as disputas de poder os conflitos com as comunidades judaicas

e as tentativas de interaccedilatildeo com a sociedade romana O objetivo eacute definir as condiccedilotildees de

produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo

O terceiro capiacutetulo analisaraacute Apocalipse 201-10 tendo em vista sua relaccedilatildeo com a

obra como um todo por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos partindo da

traduccedilatildeo do texto grego para definir suas representaccedilotildees de histoacuteria e milenarismo bem

como seus pontos de partida e condiccedilotildees de emergecircncia

O quarto capiacutetulo aplicaraacute no Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram

lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar

elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso

este seraacute o espaccedilo privilegiado para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando

apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o

livro joanino

O quinto capiacutetulo analisa as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia

meridional normanda bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio

Hohenstaufen Estes aspectos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim seus

condicionados e viacutenculos poliacuteticos e religiosos

O sexto capiacutetulo problematizaraacute as estrateacutegias de leitura de Joaquim e sua

metodologia hermenecircutica para tanto analisando formas de apropriaccedilatildeo mediadas pela

diacronia O seacutetimo capiacutetulo partindo de uma siacutentese do texto latino trataraacute da seacutetima parte

do Expositio por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos Analisamos nele as

representaccedilotildees milenaristas e histoacutericas do abade e igualmente seus antecedentes e fatores

de emergecircncia Por fim na conclusatildeo nos perguntamos pelas convergecircncias e divergecircncias

entre Joatildeo e Joaquim profeta e monge Apocalipse e Expositio Patmos e Calaacutebria

I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Neste capiacutetulo analisaremos a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso

implica discutir as condiccedilotildees histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento66

de Jesus ateacute a ilha de Patmos para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na

proviacutencia da Aacutesia Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destino data e propoacutesito do

Apocalipse bem como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com

forma e conteuacutedo definidos

11 O autor do Apocalipse

A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta pelo menos dois

elementos principais Primeiramente busca-se em fontes antigas ou paralelas algo que

indique quem escreveu o texto Satildeo as chamadas evidecircncias externas Num segundo instante

observa-se a obra para verificar o que ela mesma consegue indiciar sobre seu autor no que

se pode denominar de evidecircncia interna No caso do Apocalipse tanto um quanto outro

levam em conta a aparente auto-identificaccedilatildeo do autor como ldquoJoatildeordquo (Ἰωάννhj)

- ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas

que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao

seu servo Joatildeordquo (Apocalipse 11)67

- ldquoJoatildeo agraves sete igrejas que se encontram na Aacutesia graccedila e paz a voacutes outros da parte

daquele que eacute que era e que haacute de vir da parte dos sete Espiacuteritos que se acham diante do seu

tronordquo (Apocalipse 14)

66 O termo ldquomovimentordquo eacute uacutetil para descrever a fase preacute-institucional do que viria a se tornar o Cristianismo

Quanto ao uso deste termo conferir o socioacutelogo THEISSEN Gerd Sociologia do Movimento de Jesus Satildeo

Leopoldo Sinodal 1997 p 11 tambeacutem STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria

social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo

Satildeo Leopoldo Sinodal 2004 p 218 Sobre a relaccedilatildeo entre essas comunidades e o restante do Judaiacutesmo Cf

FRIESEN Steve Sarcasm in Revelation 2-3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In

BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta

Society of Biblical Literature 2006 p 142 67 Usaremos para as citaccedilotildees biacuteblicas em portuguecircs a Versatildeo Revista e Atualizada de Almeida salvo quando

se tratar de traduccedilatildeo proacutepria como encontrada em BIacuteBLIA SAGRADA Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1980

28

- ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila

em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho

de Jesusrdquo (Apocalipse 19)

- ldquoEu Joatildeo sou quem ouviu e viu estas coisas E quando as ouvi e vi prostrei-me

ante os peacutes do anjo que me mostrou essas coisas para adoraacute-lordquo (Apocalipse 228)

Essas passagens do Apocalipse indicam que Joatildeo eacute o nome assumido pelo autor

autor este que se insere na obra na forma de um personagem enquanto descreve eventos e

experiecircncias religiosas Natildeo haacute qualquer outro nome vinculado a Joatildeo Identificaccedilotildees

romanas levavam em conta geralmente preacute-nome nome e poacutes-nome como o Imperador

Titus Flavius Domitianus Identificaccedilotildees judaicas seguiam nome e filiaccedilatildeo geralmente o

nome do pai (Isaque ben Abraatildeo) mas agraves vezes a identificaccedilatildeo da cidade (Jesus de Nazareacute)

O Joatildeo do Apocalipse entretanto parece ser suficientemente conhecido da sua audiecircncia

para que natildeo precise se apresentar com nada mais aleacutem do que um nome Kuumlmmel entende

em funccedilatildeo disso que ldquoo simples nome de Joatildeo indica uma personalidade comumente

conhecida e a maneira auto-evidente com que ele coloca seus apelos no sentido de ser

ouvido mostra dever tratar-se de um homem que goza de grande autoridaderdquo68

O autor do livro tambeacutem se apresenta como irmatildeo e companheiro (ldquoἀδελφς καὶ

συγκοινωνςrdquo) daqueles que iratildeo receber sua mensagem (Apocalipse 19) o que reforccedila a

sugestatildeo de que ele era bem conhecido de sua audiecircncia

O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse pelo que se conhece foi

Papias bispo de Hierapolis uma cidade proacutexima de Laodiceia uma das cidades que aparece

como destinataacuteria do livro (Apocalipse 314-22) Ele atuou como liacuteder eclesiaacutestico no inicio

do segundo seacuteculo e escreveu uma obra intitulada ldquoInterpretaccedilotildees de ditos do Senhorrdquo Esta

obra se perdeu mas foi citada por muitos autores antigos Andreas bispo de Cesareia na

Capadoacutecia escrevendo um comentaacuterio do Apocalipse no seacuteculo VI registrou que Papias

conheceu o Apocalipse considerava-o inspirado por Deus e comentou uma de suas

passagens (A interpretaccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo o Teoacutelogo 1011) Infelizmente natildeo haacute

nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menccedilatildeo clara sobre quem escreveu o

Apocalipse

Justino Maacutertir chegou a residir em Eacutefeso outra das cidades mencionadas diretamente

no Apocalipse (Apocalipse 21-7) por volta do ano 135 Ele escreveu no seu ldquoDialogo com

68 KUumlMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 618

29

Trifordquo na seccedilatildeo em que defende o cumprimento literal de profecias judaicas que esperavam

um reinado literal do Messias na terra que um homem chamado Joatildeo um dos apoacutestolos de

Cristo ldquonuma revelaccedilatildeo que lhe foi feita profetizou que os que tiverem acreditado em nosso

Cristo passaratildeo mil anos em Jerusaleacutemrdquo (Diaacutelogo com Trifo 814) Nos seus termos ele fez

uma referecircncia ao mais tradicional ciacuterculo de disciacutepulos de Jesus descrito regularmente

como ldquoos doze apoacutestolosrdquo Os Evangelhos canocircnicos (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo)

descrevem Jesus durante sua atividade religiosa pela Palestina cercado de um grupo de

disciacutepulos que o acompanhava a todos os lugares O Evangelho de Marcos o mais antigo

dos quatro escrito no final da deacutecada de 60 do seacuteculo I69 relaciona os seguintes nomes neste

ciacuterculo de seguidores Simatildeo Pedro Tiago e Joatildeo filhos de Zebedeu Andreacute Filipe

Bartolomeu Mateus Tomeacute Tiago filho de Alfeu Tadeu Simatildeo o cananeu e Judas

Iscariotes (Marcos 316-19) Aparentemente entatildeo Justino entendeu que o ldquoJoatildeordquo

mencionado no iniacutecio do Apocalipse era o mesmo ldquoJoatildeordquo dos primoacuterdios do movimento de

Jesus um dos seus disciacutepulos originais

Irineu fez o mesmo que Justino em torno de 180 e natildeo soacute ligou o Apocalipse ao

filho de Zebedeu como tambeacutem ao quarto Evangelho canocircnico conhecido como Evangelho

de Joatildeo (Contra as Heresias V30) Apesar de bispo na cidade de Leon na Gaacutelia ele passou

parte da infacircncia em Esmirna na Aacutesia outra das sete cidades do Apocalipse (Apocalipse

28-11)

Autores antigos como Hipolito de Roma (170-236) Tertuliano de Cartago (160-220)

e Origenes de Alexandria (morreu em 254) seguiram Irineu na opiniatildeo de que o Apocalipse

e o Evangelho de Joatildeo foram escritos pela mesma pessoa um dos disciacutepulos diretos de Jesus

o filho de Zebedeu70

No seacuteculo III entretanto Gaio um presbiacutetero da igreja de Roma promoveu forte

criacutetica contra o Apocalipse Na base deste ataque estava uma oposiccedilatildeo ao movimento

montanista Como Montano e seus seguidores eram fervorosos leitores do Apocalipse Gaio

entendeu que o livro precisava ser totalmente rejeitado pelas igrejas Ele argumentou entatildeo

que a obra natildeo era nem do apoacutestolo Joatildeo nem do presbiacutetero Joatildeo mas de um homem

chamado Cerinto Sua criacutetica foi registrada por Euseacutebio

No entanto tambeacutem Cerinto por meio de revelaccedilotildees que diz serem escritas

por um grande apoacutestolo apresenta milagres com a mentira de que lhe

69 KUumlMMEL op cit p 117 70 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The Westminster

Press 1984 p 26

30

teriam sido mostradas por ministeacuterios dos anjos e diz que depois da

ressurreiccedilatildeo o reino de Cristo seraacute terrestre e que novamente a carne que

habitaraacute em Jerusaleacutem seraacute escrava de paixotildees e prazeres Como inimigo

das Escrituras de Deus e querendo fazer errar diz que haveraacute um nuacutemero

de mil anos de festa nupcial (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XVIII 2)

Entretanto tanto a sugestatildeo de Justino e Irineu quanto a de Gaio se mostram fraacutegeis

A relaccedilatildeo do Apocalipse com um disciacutepulo direto de Jesus natildeo encontra eco dentro do

proacuteprio livro O autor se autodenomina realmente Joatildeo mas natildeo declara viacutenculo algum com

Zebedeu com um apoacutestolo ou com qualquer outro disciacutepulo de Jesus dos tempos iniciais

Se as doze pedras mencionadas na descriccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 2119-21)

evocam realmente os doze apoacutestolos como Adela Collins argumenta71 isso indicaria que os

apoacutestolos no tempo do Apocalipse jaacute haviam alcanccedilado um alto e elevado status dentro das

comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da feacute e base para a existecircncia das

igrejas Mas nada sugere que o autor se veja entre estes Os indiacutecios indicam que os apoacutestolos

eram figuras do seu passado

Nesta mesma linha se os apoacutestolos eram figuras tatildeo importantes para as igrejas e o

livro fosse uma obra pseudocircnima escrita por uma figura histoacuterica de nome Cerinto mas

atribuiacuteda retroativamente ex eventu a um grande liacuteder do passado esperava-se que o

Apocalipse contivesse viacutenculos mais expliacutecitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de

Nazareacute Mas natildeo haacute qualquer elemento no livro que pudesse levar os primeiros leitores a

fazer essa identificaccedilatildeo a natildeo ser a curta auto-apresentaccedilatildeo do autor homocircnima de um dos

antigos disciacutepulos O proacuteprio Jesus que aparece no livro estaacute bem distante daquele que se

movimenta nos Evangelhos Eacute uma figura exaltada e glorificada descrita por meio de

categorias angelicais ou divinas (Apocalipse 113-18) A ausecircncia de traccedilos ou indiacutecios de

natureza biograacutefica inviabiliza a hipoacutetese do presbiacutetero Gaio de que a obra seja pseudocircnima

O vinculo do Apocalipse com o Evangelho de Joatildeo eacute igualmente fraacutegil Dionisio um

bispo de Alexandria na segunda metade do seacuteculo III apesar de natildeo simpatizar em linhas

gerais com o Apocalipse rejeitou o ataque que Gaio e outros fizeram agrave obra Ele argumentou

que Apocalipse e Evangelho satildeo obras muito diferentes para terem sido escritas pela mesma

pessoa Sua conclusatildeo registrada por Euseacutebio foi no sentido de que os textos satildeo de autoria

diferente

Portanto natildeo contradirei que ele se chamava Joatildeo e que este livro eacute de

Joatildeo Porque inclusive estou de acordo de que eacute obra de um homem santo

e inspirado por Deus Mas eu natildeo poderia concordar facilmente em que

71 Idem p 27

31

este fosse o apoacutestolo o filho de Zebedeu e irmatildeo de Tiago de quem eacute o

Evangelho intitulado de Joatildeo e a carta catoacutelica (Histoacuteria Eclesiaacutestica VII

XXV 7)

Em funccedilatildeo de um grande nuacutemero de pessoas possuir o mesmo nome teria sempre a

possibilidade de equiacutevocos de identificaccedilatildeo Alem disso havia a tendecircncia de associar livros

sagrados a grandes figuras do passado Este era um criteacuterio comum para que estas obras

fossem aceitas e usadas nas igrejas ao lado das Escrituras judaicas

Dionisio ainda argumentou que deveria haver outro liacuteder cristatildeo de nome Joatildeo na

Aacutesia Ele faz referencia neste sentido a dois tuacutemulos ainda encontrados nos seus dias na

cidade de Eacutefeso dedicados a liacutederes antigos que levavam este nome Euseacutebio resumiu esta

perspectiva

De forma que tambeacutem isto demonstra que eacute verdade a histoacuteria dos que

dizem que na Aacutesia houve dois com este mesmo nome e em Eacutefeso dois

sepulcros dos quais ainda hoje se afirma que satildeo um e outro de Joatildeo Eacute

necessaacuterio prestar atenccedilatildeo a estes fatos porque eacute provaacutevel que fosse o

segundo ndash se natildeo se prefere o primeiro ndash o que viu a Revelaccedilatildeo

(Apocalipse) que corre sob o nome de Joatildeo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III

XXXIX 6)

Eacute difiacutecil entretanto relacionar o Joatildeo do Apocalipse com qualquer tiacutetulo eclesiaacutestico

Ele natildeo usa epiacutetetos conhecidos do periacuteodo como apoacutestolo evangelista mestre bispo

presbiacutetero ou diaacutecono Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas e

possivelmente ele as conhecia ele se recusou a usaacute-las Essa recusa pode indicar que ele natildeo

se enxergava nesses tiacutetulos ou entatildeo que as comunidades que receberam o Apocalipse natildeo

o reconheciam nos mesmos

Desta forma ainda assumindo que o nome que aparece no iniacutecio do livro eacute uma

referecircncia autecircntica (natildeo-pseudocircnima) a seu autor e que ele se chamava realmente Joatildeo as

evidecircncias externas acumuladas sobre ele natildeo representam muito O Joatildeo do Apocalipse natildeo

parece ser entatildeo o filho de Zebedeu um dos disciacutepulos originais de Jesus ou o autor do

Evangelho de Joatildeo ou uma figura antiga das igrejas conhecida como Joatildeo o presbiacutetero

Possivelmente foi a tendecircncia das igrejas em identificar os autores das obras

sagradas como apoacutestolos de Jesus e o fato do livro identificar seu autor com um ldquoJoatildeordquo que

levou Justino Irineu e os outros antigos escritores cristatildeos a associaacute-lo com o filho de

Zebedeu ou com o autor do quarto Evangelho O que parece eacute que o livro foi escrito por um

homem chamado Joatildeo que se tornou significativo para a histoacuteria do cristianismo pela

32

produccedilatildeo de apenas um livro livro esse que se constitui entatildeo na fonte mais expressiva

para indicar outros aspectos de sua identidade e seu lugar social

Aleacutem das observaccedilotildees anteriores de que Joatildeo era bem conhecido de sua audiecircncia

um segundo elemento interno a respeito de sua identidade social eacute a ligaccedilatildeo com uma

atividade conhecida como ldquoprofeciardquo Joatildeo natildeo se denomina explicitamente profeta mas o

faz implicitamente em vaacuterios lugares do Apocalipse Ele intitula sua mensagem de profecia

(Apocalipse 13 227 10 18) e narra uma experiecircncia de vocaccedilatildeo de forma muito

semelhante a profetas da tradiccedilatildeo judaica (Isaiacuteas 61-13 Jeremias 14-10 Ezequiel 28-333)

Por isso Lohse argumenta que Joatildeo foi um ldquoprofeta dos primoacuterdios do cristianismo que

atuou nas comunidades da Aacutesia com grande vigorrdquo72 Assim tambeacutem entende Bovon para

quem Joatildeo como profeta apresenta-se como um instrumento da revelaccedilatildeo divina e uma voz

do Cristo exaltado73

Estudiosos tendem a relacionar o fenocircmeno da profecia no movimento de Jesus ateacute

o inicio do segundo seacuteculo com a atividade de lideranccedila itinerante principalmente como

encontrada nas proviacutencias da Aacutesia Menor74 As comunidades locais eram dirigidas por

liacutederes assentados no meio delas que moravam nas cidades e dirigiam as congregaccedilotildees

Documentos do movimento de Jesus do iniacutecio do segundo seacuteculo denominavam estes liacutederes

de epiacutescopos presbiacuteteros e diaacuteconos (1Timoacuteteo 31-13 Tito 15-9) Do outro lado existiam

liacutederes itinerantes que viajavam de igreja em igreja de um lugar para outro normalmente

denominados de profetas apoacutestolos evangelistas ou mestres Estas distinccedilotildees natildeo eram tatildeo

riacutegidas jaacute que liacutederes locais poderiam viajar enquanto liacutederes itinerantes poderiam parar

durante certo tempo em uma igreja Um liacuteder local poderia ser itinerante num momento o

itinerante poderia eventualmente residir numa cidade Mesmo assim as definiccedilotildees

funcionais ou carismaacuteticas podem iluminar a atividade de Joatildeo como profeta na regiatildeo da

Aacutesia No Apocalipse ele faz referecircncia a sete igrejas em sete cidades (Apocalipse 111) o

que indica que ele transitava por elas O conteuacutedo das cartas do Apocalipse (Apocalipse 2-

3) sugere tambeacutem que as igrejas o conheciam o que aponta para uma atividade religiosa

mais ampla do que uma especiacutefica igreja local

Por ser profeta e profeta itinerante Joatildeo pode ter abraccedilado um estilo de vida asceacutetico

como o seu livro parece sugerir (Apocalipse 141-5) Este tipo de vida seria derivado do

72 LOHSE Eduard Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Leopoldo Sinodal 1985 p 249 73 BOVON Franccedilois Johnrsquos Self-presentation in Revelation 19-10 Catholic Biblical Quaterly Washington

n 62 p 693-700 2000 p 700 74 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 34

33

formato da atividade religiosa que Jesus desenvolveu com os seus disciacutepulos Nos

Evangelhos eles satildeo vistos constantemente viajando de lugar para lugar sem casa fixa

Ditos dos Evangelhos (Marcos 820 Mateus 1023 entre outros) ainda reforccedilam essa postura

que foi chamada por Gerd Theissen de carismatismo itinerante com a expectativa de uma

vida sem paacutetria sem famiacutelia sem posses e sem proteccedilatildeo75

Viajar de lugar para lugar rompia com os laccedilos locais de estabilidade social Os

disciacutepulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida asceacutetica e mesmo apoacutes a morte do

fundador do movimento alguns continuaram na vida andarilha Talvez seja por isso que o

autor do Didaqueacute no iniacutecio do seacuteculo II chamou a itineracircncia de ldquomodo de vida do Senhorrdquo

(Didaqueacute 118) Aleacutem dos laccedilos sociais os andarilhos tambeacutem renunciavam agrave famiacutelia Um

logia de Jesus encontrado no Evangelho de Marcos aponta neste sentido

Tornou Jesus Em verdade vos digo que ningueacutem haacute que tenha deixado

casa ou irmatildeos ou irmatildes ou matildee ou pai ou filhos ou campos por amor

de mim e por amor do evangelho que natildeo receba jaacute no presente o cecircntuplo

de casas irmatildeos irmatildes matildees filhos e campos com perseguiccedilotildees e no

mundo por vir a vida eterna (Marcos 1029-30)

Poucos dos missinaacuterios destacados pelo autor dos Atos dos Apoacutestolos satildeo descritos

em atividade familiar Natildeo haacute qualquer referecircncia agrave famiacutelia de Paulo Estes itinerantes

renunciavam tambeacutem a propriedades ou recursos financeiros o que dava ao pregador

condiccedilotildees de fazer a criacutetica contra a riqueza Quem perambulava pela Palestina Siacuteria e Aacutesia

Menor em pobreza demonstrativa poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em

descreacutedito76 Por isso o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades de Jesus

localmente constituiacutedas para ter uma porccedilatildeo miacutenima para sobreviver Isso lhes parecia bem

como aos olhos das comunidades locais uma demonstraccedilatildeo da bondade divina que natildeo

deixava o itinerante carismaacutetico morrer de fome ou sede

De qualquer forma a praacutetica do carismatismo itinerante demandava abraccedilar um estilo

radical de vida religiosa com niacutetidas consequecircncias asceacuteticas e combinava amplamente com

uma perspectiva escatoloacutegica de fim iminente da histoacuteria como provavelmente pregada por

Jesus77

75 THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op cit p 18 76 Na anaacutelise da atividade carismaacutetica itinerante cf THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op

cit p 16-22 77 ALLISON Dale C Jesus of Nazareth Millenarian prophet Minneapolis Fortress Press 1998 p 60-61

34

Aleacutem do seu papel religioso como profeta autores sugerem que Joatildeo era judeu por

nascimento um nativo da Palestina onde passou um bom tempo de sua vida78 Haacute

possibilidade de ele ter residido na Judeacuteia ateacute a instauraccedilatildeo da guerra contra os romanos (66-

70) que terminou com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico79 Esse tipo de

identificaccedilatildeo ilumina a forma como Joatildeo compreendia a relaccedilatildeo entre Israel e Igreja Ele natildeo

entendia o movimento de Jesus e suas comunidades como uma religiatildeo nova e independente

do grande e plural fenocircmeno religioso que os estudiosos chamam de Judaiacutesmo80

Joatildeo reinvidica o uso do termo ldquojudeurdquo (Ἰουδαίος) para os seguidores de Jesus

(Apocalipse 29 39) e demonstra tensatildeo com sinagogas locais que poderia indiciar mais

uma crise interna do que um conflito entre religiotildees distintas Seu uso das Escrituras judaicas

o grego semitizante do Apocalipse81 o domiacutenio da tradiccedilatildeo religiosa do periacuteodo do Segundo

Templo como apocalipses e oraacuteculos indicam uma pessoa fortemente envolvida com as

tradiccedilotildees do antigo Israel Muitas de suas perspectivas sociais e poliacuteticas poderiam derivar

de determinadas tradiccedilotildees judaicas mais do que de correntes especiacuteficas do movimento de

Jesus

Mesmo assim um aspecto significativo da identidade social do autor do Apocalipse

tem relaccedilatildeo justamente com essa ldquoseita judaicardquo O Judaiacutesmo no periacuteodo que vai da ascenccedilatildeo

hasmoneana (167 aC) ateacute pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 dC) abarcava

diversos partidos e grupos religiosos82 Um destes grupos teve iniacutecio com a atuaccedilatildeo da pessoa

de Jesus de Nazareacute entre 27-30 inicialmente na Galileacuteia para terminar com sua morte em

Jerusaleacutem O autor do Apocalipse afirma ser seguidor de Jesus (Apocalipse 19) de quem

recebeu a sua revelaccedilatildeo

Apesar de choques eventuais entre os grupos eles se reconheciam mutuamente como

herdeiros das mesmas tradiccedilotildees religiosas antigas das alianccedilas dos patriarcas das Escrituras

judaicas e da Lei de Moiseacutes Provavelmente Joatildeo se via como um judeu e membro do

fenocircmeno religioso judaico83 O mesmo poderia ser afirmado a respeito das comunidades

78 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 p 276 79 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 47 80 Sobre a pluralidade de perspectivas no interior do Judaiacutesmo cf BAUMGARTEN Albert I Ancient Jewish

Sectarianism Judaism Genebra v 47 n 4 p 387-403 1998 81 Para uma discussatildeo da linguagem do Apocalipse sua sintaxe e seu vocabulaacuterio cf CALLAHAN Allen

Dwight The Language of Apocalypse Harvad Theological Review Cambridge v 88 n 4 p 453-470 1995 82 Para uma anaacutelise ampla sobre a questatildeo da identidade judaica na antiguidade cf GOODMAN Martin

Judaism in the Roman World collected essays Leiden Brill 2007 p 21-32 83 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 277

35

que receberam o Apocalipse Elas faziam parte de um movimento que ainda se entende

judaico84 apesar da identificaccedilatildeo com um grupo especiacutefico dentro do Judaiacutesmo Eacute possiacutevel

denomina-los mesmo como judeus que reconhecem Jesus como o messias

Duas deacutecadas depois na mesma regiatildeo do Apocalipse entretanto Inaacutecio de

Antioquia falaria em suas cartas de ldquoCristianismordquo () e descreveraacute seus membros

como ldquocristatildeosrdquo () o que indica que o movimento naquele periacuteodo e na sua

expressatildeo asiaacutetica jaacute tem formulado uma identidade autocircnoma em relaccedilatildeo ao Judaismo Nos

termos de Inaacutecio ldquoeacute melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaiacutesmo

de incircuncisordquo (Carta aos Filipenses 61)85

12 A data do Apocalipse

O Apocalipse de Joatildeo eacute uma obra escrita no chamado grego koinecirc liacutengua comum

aos territoacuterios do antigo Impeacuterio de Alexandre o Grande A obra de grande porte para os

padrotildees do periacuteodo comeccedila desta forma ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para

mostrar aos servos dele as coisas que devem acontecer em breve e enviou-a sinalizando

atraveacutes do seu anjo para o seu servo Joatildeordquo86

Como boa parte das fontes antigas a obra natildeo tem tiacutetulo ou marca de identificaccedilatildeo

Mas durante seu uso logo passou a ser identificada por meio da sua primeira palavra

apocalipse transliteraccedilatildeo simples de ποκάλυψις O termo pode ser traduzido como

ldquorevelaccedilatildeordquo87

No momento de definir a data da obra o testemunho de Irineu eacute novamente invocado

pelos estudiosos Ele registrou que ldquoo Apocalipse foi visto natildeo haacute muito tempo em nossa

proacutepria geraccedilatildeo no fim do reinado de Domicianordquo (Contra as Heresias 5303) Grande parte

dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definiccedilatildeo entendendo que mesmo

que o testemunho de Irineu quanto ao nome do autor natildeo seja confiaacutevel a data ainda pode

84 Enquanto categoria religiosa e natildeo eacutetnica jaacute que natildeo era preciso ser etnicamente judeu para fazer parte do

Judaiacutesmo 85 Noutro lugar ldquoEacute preciso natildeo soacute levar o nome de cristatildeo mas ser de fatordquo (Carta aos Magneacutesios 4) A respeito

do cristianismo e judaiacutesmo em oposiccedilatildeo nas cartas de Inaacutecio cf COHEN Shaye J D Judaism without

Circumcision and ldquoJudaismrdquo without ldquoCircumcisionrdquo in Ignatius Harvard Theological Review Cambridge v

95 n 4 p 395-415 2002 86 ldquoἈποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ ἣν ἔδωκεν αὐτῷ ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐν τάχει καὶ

ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃrdquo (Apocalipse 11) 87 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 67

36

ser mantida para o fim do reinado de Domiciano em meados de 95-9688 Segundo Adela

Yarbro Colllins natildeo existe nenhuma boa razatildeo para duvidar da sugestatildeo de Irineu quanto agrave

eacutepoca do Apocalipse89 Ela pressupotildee neste caso que a obra na sua forma atual eacute o

resultado de um uacutenico autor O Apocalipse apresenta uso de fontes tradicionais ou literaacuterias

mas ainda possui uma unidade coerente subjacente a uma uacutenica autoria Nos termos de

Collins ldquoa unidade de estilo e a cuidadosa complexa e deliberada estrutura do livro como

um todo torna supeacuterflua a hipoacutetese da compilaccedilatildeo de extensas fontes escritas ou uma seacuterie

de ediccedilotildeesrdquo90

Vitorino de Pettau morto em 303 escreveu o mais antigo comentaacuterio completo do

Apocalipse a sobreviver Ao comentar a passagem do Apocalipse em que Joatildeo come um

livro (Apocalipse 103) ele escreveu

Joatildeo teve esta visatildeo quando estava na ilha de Patmos condenado agraves minas

por Cesar Domiciano Parece pois que Joatildeo escreveu dali o Apocalipse

quando jaacute era um anciatildeo Depois de seus sofrimentos quando foi

assassinado Domiciano e anulados todos os seus decretos foi Joatildeo

liberado das minas e transmitiu este mesmo Apocalipse que recebeu do

Senhor (Comentaacuterio ao Apocalipse 103)

Euseacutebio de Cesareacuteia faz comentaacuterio parecido com o de Vitorino ldquoEacute tradiccedilatildeo que

neste tempo o apoacutestolo e evangelista Joatildeo que ainda vivia foi condenado a habitar a ilha

de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deusrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III VIII 1)

Ainda ldquoFoi entatildeo que o apoacutestolo Joatildeo voltando de seu desterro na ilha retirou-se para viver

em Eacutefeso segundo relata a tradiccedilatildeo de nossos antigosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XX 9)

Esses dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante o reino de

Domiciano Ambos acrescentam que Joatildeo foi banido para Patmos pelo Imperador tendo

sido liberado apoacutes a morte do mesmo A tradiccedilatildeo neles preservada do desterro de Joatildeo ou

de Patmos como uma colocircnia penal entretanto natildeo eacute apoiada pela historiografia91 Mesmo

assim os testemunhos de Vitorino e de Euseacutebio satildeo importantes para definir a data do

Apocalipse mais ateacute do que para descrever a situaccedilatildeo em que isso se deu

Em termos de evidecircncia interna Adella Collins indicou alguns elementos que

reforccedilam a hipoacutetese da deacutecada de 90 Um primeiro pode ser encontrado no uso muito

especiacutefico que o Apocalipse faz do nome Babilocircnia (Apocalipse 148 1619 175 182

88 Entre outros KUumlMMEL op cit p 613-617 89 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57 90 Idem p 54 91 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University

Press 1990

37

10 21) Eacute muito difiacutecil que o autor da obra esteja fazendo referecircncia a antiga cidade da

Mesopotacircmia presente nas tradiccedilotildees literaacuterias judaicas por ter destruiacutedo o reino de Judaacute em

586 aC derrubado a capital Jerusaleacutem e o templo de Salomatildeo Em Apocalipse 17 Joatildeo

descreve Babilocircnia como uma mulher e pelo menos duas marcas na fala do anjo indicam

que a mulher representa a cidade de Roma O versiacuteculo nove descreve-a assentada sobre sete

montanhas ldquoAqui estaacute o sentido da sabedoria as sete cabeccedilas satildeo sete montanhas onde a

mulher estaacute assentada Tambeacutem satildeo sete reisrdquo (Apocalipse 179) O versiacuteculo 18 a apresenta

como uma cidade ldquoque tem poder sobre os reis da terrardquo Estas indicaccedilotildees para uma

audiecircncia da Aacutesia no final do primeiro seacuteculo indicariam que Babilocircnia era um siacutembolo para

a cidade de Roma A capital do Impeacuterio aparece frequentemente como a cidade das sete

montanhas (Capitoacutelio Quirinal Viminal Esquilino Ceacutelio Aventino e Palatino) e era a

cidade mais importante politicamente do Mediterracircneo

E o que essa associaccedilatildeo entre Babilocircnia e Roma poderia indicar em termos de dataccedilatildeo

para o Apocalipse A maioria das ocorrecircncias de Babilocircnia como nome simboacutelico para

Roma na literatura judaica estaacute em 4Esdras 2Apocalipse de Baruque e no quinto livro dos

Oraculos Sibilinos Nestas obras Roma eacute chamada de Babilocircnia porque ela como a antiga

cidade mesopotacircmica destruiu Jerusaleacutem e o Templo Ou seja o nome simboacutelico de Roma

Babilocircnia eacute forte indiacutecio de que o Apocalipse foi escrito apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e o

Templo no ano 7092

Aleacutem do uso simboacutelico do termo Babilocircnia para descrever Roma tiacutepico de obras

judaicas posteriores ao ano 70 Collins aponta outros elementos internos

- A lenda do retorno de Nero em Apocalipse 13 e 17 principalmente a referecircncia agraves

cabeccedilas da besta (Apocalipse 179-11) reforccedila a hipoacutetese de que o Apocalipse eacute posterior agrave

morte de Nero em 68 dC e ao aparecimento da tradiccedilatildeo de que ele retornaria para retomar

o poder93

- A concepccedilatildeo de Joatildeo de que a comunidade de Jesus eacute o novo templo de Deus bem

como a profecia de que na Nova Jerusaleacutem natildeo haveria mais templos indicariam que o

Apocalipse eacute posterior agrave destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem (70 dC)94

92 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57-58 PAGELS Elaine The Social History of

Satan Part Three John of Patmos and Ignatius of Antioch Contrasting Visions of ldquoGods Peoplerdquo Harvad

Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006 p 494 93 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 58-64 94 Idem p 64-69

38

Outros elementos como os indiacutecios de conflitos com sinagogas locais em Esmirna e

Filadeacutelfia as referecircncias a perseguiccedilotildees por parte do Impeacuterio Romano ou a crise com a

instituiccedilatildeo do Culto Imperial satildeo muito vagos para precisar melhor a data do Apocalipse

A partir dos dados internos muito provavelmente o livro eacute posterior ao ano 70 e agrave

destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico Se a hipoacutetese de que o autor saiu da Palestina

em funccedilatildeo do conflito for autecircntica era preciso algum tempo para que ele consolidasse uma

atuaccedilatildeo profeacutetica fora da sua terra na Aacutesia Menor e especificamente na proviacutencia

proconsular da Aacutesia Dado o conhecimento que Papias teve da obra seria preciso algum

tempo entre sua produccedilatildeo e circulaccedilatildeo entre as igrejas Isso nos leva a tomar o testemunho

de Irineu realmente como a hipoacutetese mais provaacutevel localizando o livro no fim do governo

do Imperador Titus Flavius Domitianus assassinado no dia 18 de setembro de 96 Segundo

o bispo de Leon (Contra as Heresias 5303) foi em algum momento anterior agrave morte do

Imperador que Joatildeo de Patmos escreveu o Apocalipse

13 O propoacutesito do Apocalipse

Se aceitarmos as indicaccedilotildees do Apocalipse ele foi escrito para ser encaminhado para

sete igrejas da proviacutencia proconsular da Aacutesia ldquoAchei-me em espiacuterito em o dia do Senhor e

ouvi atraacutes de mim uma voz grande como de trombeta dizendo O que vecircs escreve em livro

e envia para as sete igrejasrdquo (Apocalipse 110-11)

As cartas em questatildeo aparecem um pouco depois na estrutura da obra

- Apocalipse 21-7 Carta agrave Igreja em Eacutefeso

- Apocalipse 28-11 Carta agrave Igreja em Esmirna

- Apocalipse 212-17 Carta agrave Igreja em Peacutergamo

- Apocalipse 218-29 Carta agrave Igreja em Tiatira

- Apocalipse 31-6 Carta agrave Igreja em Sardes

- Apocalipse 37-13 Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia

- Apocalipse 314-22 Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia

As cartas escritas como oraacuteculos profeacuteticos apresentam terceirizados o remetente e

o destinataacuterio Concretamente eacute o profeta Joatildeo que escreve contudo retoricamente satildeo

palavras diretas do Cristo exaltado entre os candelabros (Apocalipse 113) Eacute uma mensagem

39

para os membros das igrejas mas dirigidas aos anjos que estariam ali presentes (Apocalipse

21 28 212 218 31 37 314) Joatildeo se coloca como o intermediaacuterio entre duas

personalidades celestiais Mesmo que algueacutem se recuse a ouvi-lo natildeo poderia deixar de

atender ao anjo da igreja principalmente porque a mensagem do anjo teria origem direta no

Jesus glorificado Neste sentido as cartas se tornam proclamaccedilotildees profeacuteticas do soberano

Cristo exaltado95

Esta estrateacutegia literaacuteria eacute um instrumento retoacuterico de legitimaccedilatildeo o que denuncia

algum tipo de conflito ou tensatildeo entre Joatildeo o autor e os membros das igrejas Ao usar este

esquema para atingir o seu puacuteblico o autor indica toda a dificuldade que enfrentava para se

fazer ouvir96 A agressividade do texto e as diversas ameaccedilas indicam ainda mais a forccedila

necessaacuteria para que as cartas e o livro como um todo pudessem ser recebidos Segundo

Friedrich

as sete proclamaccedilotildees satildeo semelhantes aos antigos editos reais e imperiais

na medida em que exibem normalmente e estruturalmente semelhantes

praescriptiones narrationes dispositiones e sanctiones Em termos de

conteuacutedo as narrationes e dispositiones exibem caracteriacutesticas da profecia

do cristianismo das origens influenciada pela profecia do Antigo

Testamento97

As cartas indicam dois tipos baacutesicos de tensatildeo Internamente haacute algum tipo de

conflito entre Joatildeo e a lideranccedila de algumas igrejas e algum tipo de crise com sinagogas

locais98 Externamente a sociedade urbana da aacutesia parece representar algum desconforto

especialmente em funccedilatildeo das demandas relacionadas com as interaccedilotildees sociais

Para as tensotildees internas entre os liacutederes das igrejas Paul Duff sugeriu a seguinte

tipologia99

95 Conferir neste sentido FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria

Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 96 RUIZ Jean-Pierre Hearing and seeing but not saying a rhetoric de authority in Revelation 104 and 2

Corinthians 124 In BARR David L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of

Revelation Atlanta Society of Biclical Literature 2006 p 91-111 p 93 97 FRIEDRICH Nestor Paulo O edito-profeacutetico para a Igreja em Tiatira (Apocalipse 218-29) uma anaacutelise

literaacuteria soacutecio-poliacutetica e teoloacutegica Tese (Doutor em Teologia) ndash Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia Escola

Superior de Teologia Satildeo Leopoldo 2000 p 60 98 DUFF Paul B ldquoThe synagogue of Satanrdquo Crisis mongering and the Apocalypse of John In BARR David

L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biclical

Literature 2006 p 164-165 p 148 99 DUFF Paul B Who Rides the Beast Prophetic Rivalry and the Rhetoric of Crisis in the Churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 p 25

40

- Igrejas divididas entre a lideranccedila de Joatildeo e alguma outra lideranccedila local Eacutefeso

Peacutergamo Tiatira Para estas igrejas Joatildeo fornece nas respectivas cartas uma elaboraccedilatildeo dos

problemas da comunidade Consistiriam no principal foco do Apocalipse

- Igrejas onde Joatildeo tem pouca ou mesmo nenhuma influecircncia Sardes e Laodiceacuteia Eacute

provaacutevel que ele tenha aliados em potencial nessas comunidades mas estatildeo em nuacutemero

muito pequeno Por isso o seu tom menos conciliador Para elas o autor natildeo fornece

nenhuma elaboraccedilatildeo de problemas e pouco se tiver algum encorajamento

- Igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo Esmirna e Filadeacutelfia Natildeo haacute chamada ao

arrependimento ou qualquer tipo de ameaccedila ao mesmo tempo em que recebem fortes

louvores Satildeo igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo e ao tipo de mensagem que ele defendia

Com relaccedilatildeo aos membros das sinagogas locais Joatildeo assim se expressou ldquose dizem

judeus mas natildeo o satildeordquo Para o autor do Apocalipse eles natildeo eram verdadeiros judeus mas

ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo (Apocalipse 29 39)100 O professor Nogueira argumenta que essa

crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga estar ldquoenvolvida em um processo

sincreacutetico de interaccedilatildeo com os gentios Eles falavam grego expressavam suas crenccedilas e

praacuteticas religiosas com categorias helenistas e estavam em maior ou menor grau envolvidos

na vida puacuteblica de suas cidadesrdquo101

O Apocalipse fala da morte de Antipas (Apocalipse 213) que pode ter ocorrido em

funccedilatildeo de algum conflito com a sociedade O Apocalipse apresenta a expectativa que o

mesmo fenocircmeno que promoveu a morte deste membro do movimento de Jesus proveraacute

dentro em breve a prisatildeo e a ruiacutena de muitos outros (Apocalipse 210)102 Para Thompson

ldquoa descriccedilatildeo do visionaacuterio de guerra e conflito contem suficientes referecircncias e alusotildees a

Roma e ao culto imperial para concluir que o visionaacuterio esperava tribulaccedilatildeo e opressatildeo de

instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas na Aacutesiardquo103 Como Prigent enfatiza ldquoo autor de

100 FRANKFURTER David Jews or Not Reconstructing the ldquoOtherrdquo in Rev 29 and 39 Harvard

Theological Review Cambridge v 4 n 94 p 403-425 2001 Duff argumenta que o comentaacuterio negativo de

Joatildeo sobre as sinagogas foi feito para exacerbar a tensatildeo entre as igrejas e as sinagogas Ao promover inimizade

contra as sinagogas e medo de hostilidade de judeus locais Joatildeo desejava desencorajar aliados iacutentimos

(membros das igrejas de Esmirna e Filadeacutelfia) de apostastar para as sinagogas Cf DUFF Paul B ldquoThe

synagogue of Satanrdquo op cit p 148 101 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza Experiecircncia religiosa e criacutetica social no cristianismo primitivo Satildeo

Paulo Paulinas p 137 102 HOWARD-BROOK Wes GWYTHER Anthony Desmascarando o imperialismo interpretaccedilatildeo do

Apocalipse ontem e hoje Satildeo Paulo Paulus 2003 p 120-155 103 THOMPSON Leonard A Sociological Analysis of Tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 36 p 147-174 1986 p 148

41

Apocalipse afirma com grande energia que o Impeacuterio estaacute a serviccedilo de Satatilde comprovado

pela idolatria que embasa todo o sistemardquo104

Durante boa parte da histoacuteria da leitura do Apocalipse105 a descriccedilatildeo de mundo no

seu livro cheia de conflitos e violecircncia era tomada como equivalente da situaccedilatildeo concreta

de vida do autor e de suas comunidades O contexto histoacuterico era precisamente como

transparecia atraveacutes das imagens do livro106 Foi somente a partir de meados do seacuteculo XX

quando alguns estudiosos deixaram de assumir que o mundo do texto de Apocalipse

espelhava diretamente o contexto histoacuterico em torno do mesmo Neste caso eles se voltaram

para oferecer sugestotildees de como conciliar e relacionar a tensatildeo entre o mundo do Apocalipse

e o mundo concreto das comunidades de seguidores de Jesus no final do primeiro seacuteculo na

Aacutesia romana

Uma destas pesquisadoras Fiorenza sugeriu que as imagens que o livro constroacutei

foram produzidas como instrumentos retoacutericos de persuasatildeo Ela entende que o visionaacuterio

parece estar realmente convencido de que o Impeacuterio Romano eacute uma ameaccedila para seguidores

de Jesus e escreve para persuadir sua audiecircncia a aceitar sua leitura da realidade

empurrando-a para uma determinada posiccedilatildeo frente ao contexto social em que viviam107

Adela Collins por sua vez argumentou que Joatildeo escreveu em resposta ao conflito

entre a feacute em Jesus como Joatildeo a entendia e a situaccedilatildeo social como ele a percebia Para esta

autora o autor realiza seu propoacutesito por meio da construccedilatildeo de um universo simboacutelico com

valores terapecircuticos Diante do Apocalipse leitores e ouvintes alcanccedilariam uma catarse de

medo e ressentimento e uma internalizaccedilatildeo de demandas para sustentar-se agrave parte de uma

ordem social opositora por meio da praacutetica de abstinecircncia sexual pobreza e martiacuterio108

Outro pesquisador Steven Friesen definiu o Apocalipse de Joatildeo como uma obra

engajada na construccedilatildeo de um mundo simboacutelico com o objetivo de produzir resistecircncia

simboacutelica Enquanto a ideologia imperial construiacutea seus mitos e os disseminava para afirmar

104 PRIGENT P O Apocalipse In COTHENET E et al Os escritos de Satildeo Joatildeo e a Epiacutestola aos Hebreus

Satildeo Paulo Paulinas 1998 p 229-306 p 255 105 Para a histoacuteria da recepccedilatildeo do livro conferir WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse

Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 KOVACS Judith

ROWLAND Christopher C Revelation Oxford Blackwell Publishing 2004 KYRTATAS Dimitris The

Transformations of the Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text

The Writing of Ancient History London Duckworth 1986 p 144-162 106 Conferir neste sentido o comentaacuterio de Euseacutebio de Cesareacuteia ldquoDomiciano deu provas de uma grande

crueldade para com muitos [] e foi o segundo a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutesrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica

III VII 1) 107 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Apocalipsis Visioacuten de un mundo justo Estella Editorial Verbo Divino

1997 p 58 108 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsis op cit p 127-131

42

que o Imperador era o rei dos reis Joatildeo ressignifica estes mitos para afirmar que a autoridade

uacuteltima sobre o mundo proveacutem no fim de fora mesmo deste mundo109 Eacute um conflito de

mundos construiacutedos de siacutembolos de identidades de ideologias110

Em termos concretos entretanto Domiciano natildeo parece ter instigado uma

perseguiccedilatildeo oficial aos seguidores de Jesus Existe pouca evidecircncia de que ele tenha

perseguido diretamente as igrejas e como insistiu Thompson nenhuma evidecircncia de que ele

tenha banido Joatildeo para a Ilha de Patmos111

Isso natildeo significa que conflitos locais natildeo pudessem se manifestar dentro de cada

cidade da Aacutesia conflitos estes que poderiam ter ligaccedilatildeo com o relacionamento entre os

membros do movimento de Jesus e a instituiccedilatildeo do culto imperial112 Possivelmente ao falar

do culto agraves bestas Joatildeo entra em polecircmica com a praacutetica do culto ao Imperador no contexto

urbano da proviacutencia onde a primeira Besta (Apocalipse 131-10) representa o Impeacuterio

Romano ou o proacuteprio Imperador e a segunda Besta (Apocalipse 1311-18) eacute possivelmente

o sacerdote do culto imperial113 Acompanhar a posiccedilatildeo do Apocalipse neste sentido poderia

gerar suspeiccedilatildeo e hostilidade por parte da populaccedilatildeo local e causar as acusaccedilotildees subjacentes

aos processos descritos por Pliacutenio o Jovem ao Imperador Trajano pouco mais de uma deacutecada

depois de Joatildeo na proviacutencia de Bitiacutenia e Ponto vizinha das igrejas da Aacutesia (Epiacutestola

10965)

O culto imperial era uma expressatildeo de religiosidade individual e coletiva e uma

demonstraccedilatildeo de coesatildeo e ordem social e poliacutetica do Impeacuterio Para propoacutesitos imperiais o

culto ao Imperador servia como uma expressatildeo de lealdade e gratidatildeo por parte dos cidadatildeos

Pagels tenta resumir este processo Para ela anteriormente os membros do

movimento de Jesus se identificavam com os grupos judaicos ao serem expulsos desses

109 FRIESEN Steven J Myth and Symbolic Resistance in Revelation 13 Journal of Biblical Literature

Atlanta v 2 n 123 p 281-313 2004 p 281 e 311 110 FRIESEN Steven J Satanrsquos throne imperial cults and the social settings of Revelation Journal for the

Study of the New Testament Cambridge v 27 n 3 p 351-373 2005 p 352 111 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L Reading the

Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 34 DUFF Paul B ldquoThe

Synagogue of Satanrdquo op cit p 149 112 Para uma anaacutelise das distintas formas que o culto imperial poderia assumir nas diferentes regiotildees do Impeacuterio

cf SCHERRER Steven J Signs and Wonders in the Imperial Cult a New Look at a Roman Religious

Institution in the Light of Rev 1313-15 Journal of Biblical Literature Atlanta v 4 n 103 p 599-610 1984

SORDI Marta The Christians and the Roman Empire London and New York Routledge 1994 Sobre a

relaccedilatildeo das comunidades judaicas com o culto imperial conferir MCLAREN James S Jews and the Imperial

Cult from Augustus to Domitian Journal for the Study of the New Testament Cambridge n 27 p 257-278

2005 113 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p

34

43

grupos eles precisavam criar novas identidades em oposiccedilatildeo agravequeles que antes eram seus

irmatildeos Entretanto quando essas mesmas comunidades passam a ser formadas

predominantemente de natildeo-judeus agora eram excluiacutedos natildeo mais de ciacuterculos judaicos mas

dos ciacuterculos sociais que antes conviviam Era desses ciacuterculos que as ameaccedilas agora partiam

de ldquooficiais romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu lsquoateiacutesmorsquo que temiam que

pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteirasrdquo114

O cenaacuterio descrito por Pagels talvez se aplique agrave Bitiacutenia e Ponto dos tempos de Pliacutenio

mas ainda natildeo o eacute para o tempo do Apocalipse A ecircnfase na ruptura com a sociedade

encontrada no texto joanino indica que boa parte dos membros das igrejas da Aacutesia ainda

vivia suas vidas com seus vizinhos sem grandes conflitos Eacute Joatildeo que espera por tensatildeo e

crise Ele aguarda uma violenta perseguiccedilatildeo contra as comunidades para um futuro

proacuteximo115 Subjacentes aos roacutetulos da oposiccedilatildeo interna (os balamitas e nicolaiacutetas de

Peacutergamo Jezabel e seus seguidores em Tiatira e os falsos apoacutestolos de Eacutefeso) parecem estar

pessoas que ocupavam posiccedilatildeo de lideranccedila dentro das igrejas nas quais estavam inseridas

consideradas como adversaacuterias por Joatildeo O que estes liacutederes de diferentes igrejas teriam em

comum Aparentemente eles natildeo estavam de acordo quanto agrave forma de conduzir os fieacuteis

nas suas relaccedilotildees com o Impeacuterio116 Assim diante da diferenccedila de respostas existente entre

os proacuteprios liacutederes sobre a interaccedilatildeo com a sociedade Joatildeo reage com forccedila Para ele

qualquer acomodaccedilatildeo social eacute prostituiccedilatildeo e idolatria categorias religiosas retiradas da

antiga profecia judaica

Como sintetizou Norman Cohn ldquoo propoacutesito de Joatildeo era estimular os cristatildeos a se

verem em conflito com ciacuterculos mais amplos da sociedaderdquo117 Para tanto ele descreveu o

governo romano natildeo como reflexo de uma ordem divina mas do poder de Satatilde A alianccedila

com o Jesus Glorificado do Apocalipse inviabilizaria qualquer relacionamento com a

sociedade romana

Joatildeo por meio de sua obra demoniza praacuteticas de interaccedilatildeo social poliacutetica e religiosa

com o Impeacuterio118 Sua estrateacutegia eacute exacerbar a situaccedilatildeo para promover uma crise na sua

114 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na

sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996 p 134 115 SILVA David A de The Revelation to Johnhellip op cit 116 FRIESEN Steven J Satanrsquos Throne Imperial Cults and the Social Settings of Revelation op cit p 368 117 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 280 118 MESTERS Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das

comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n 69 p 72-82 2001 p 77

Conferir tambeacutem BIGUZZI Giancarlo Ephesus its Artemision its Temple to the Flavian Emperors and

idolatry in Revelation Novum Testamentum Leida v 3 n 40 p 276-290 1998

44

audiecircncia119 pelo menos nas igrejas nas quais tinha alguma influecircncia e invibializar os

relacionamentos significativos com pessoas de fora da comunidade Para isso ele provecirc

motivaccedilotildees tanto positivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos demais

grupos judaicos Em termos sinteacuteticos ele demoniza seus adversaacuterios estressa fortemente

as diferenccedilas de padrotildees e valores escala antagonismo e vaticina um tempo proacuteximo de

rejeiccedilatildeo muacutetua120

14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse

Aparentemente os antigos inteacuterpretes do Apocalipse o liam da mesma forma como

liam outros livros profeacuteticos da tradiccedilatildeo judaica Para eles Joatildeo era profeta e seu livro uma

profecia Foi somente no seacuteculo XIX que se levantou a sugestatildeo de que o Apocalipse de Joatildeo

deveria ser visto como um tipo distinto de literatura121 O argumento era de que o livro natildeo

era como as demais obras da tradiccedilatildeo profeacutetica judaica Aleacutem disso as evidecircncias indicavam

que existia um corpo de escritos parecidos com o Apocalipse formando uma corrente

literaacuteria na qual a obra de Joatildeo poderia ser inserida122 Esta corrente se estenderia para cerca

de trecircs seacuteculos antes do aparecimento do Apocalipse de Joatildeo com acentuada produccedilatildeo em

torno da Guerra dos Macabeus e avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70)123

A partir de entatildeo os estudiosos passaram a tentar definir o que seria o gecircnero

ldquoapocalipserdquo Estas tentativas de definiccedilatildeo consistiam de listas de caracteriacutesticas tiacutepicas

119 Segundo Paul Duff ldquopor causa da fragilidade da fonte do seu poder liacutederes carismaacuteticos atraveacutes da histoacuteria

tecircm usado uma variedade de estrateacutegias para combater as ameaccedilas agrave perda do controle Uma destas estrateacutegias

eacute o fomento das crises ou seja criar crises ou exacerbar uma situaccedilatildeo instaacutevel ao ponto que isso resulte numa

crise Esta taacutetica tem o potencial para acentuar a indispensabilidade do liacuteder inspiradordquo Cf DUFF Paul B

ldquoThe Synagogue of Satanrdquohellip op cit p 164-165 120 Idem p 164-165 121 BARR David L Beyond Genre In BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics

in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p 71-79 p 75 122 COLLINS Adela Yarbro The Early Christian Apocalypses Semeia Atlanta n 14 p 61-121 1979 p 70

Para ela o Apocalipse de Joatildeo poderia ser definido como um apocalipse histoacuterico sem a presenccedila de viagem

celestial Conferir tambeacutem KUumlMMEL op cit p 602 ldquoO material miacutetico os nuacutemeros secretos as visotildees e os

fenocircmenos do ceacuteu como meios a serviccedilo da revelaccedilatildeo de coisas do mundo do aleacutem a representaccedilatildeo das visotildees

atraveacutes de imagens fantaacutesticas e ricamente embelezadas bem como a frequumlente dependecircncia do Antigo

Testamento caracterizam o Apocalipse como uma obra pertencente ao mesmo gecircnero literaacuterio dos apocalipses

judaicosrdquo 123 LOHSE op cit p 240 Sotelo propocircs trecircs hipoacuteteses gerais sobre a origem deste gecircnero literaacuterio Uma delas

entende que ele surgiu de tradiccedilotildees persas sendo completamente estranho aos autores anteriores de Israel

outra argumenta que ele veio da tradiccedilatildeo sapiencial de Israel e uma terceira o liga ao profetismo claacutessico

israelita Cf SOTELO Daniel Origem da apocaliptica In MARASCHIN Jaci Correia (ed) Apocaliptica

Satildeo Bernardo do Campo Instituto Metodista de Ensino Superior 1983 p 17-21 p 17

45

Autores como D S Russell124 procuraram apontar poucos traccedilos distintivos para abraccedilar um

nuacutemero maior de obras Entretanto o resultado eacute que obras que se parecem muito pouco

passaram a ser vistas igualmente como apocalipses

Muitas outras listas surgiram Cada uma apresentava um traccedilo diferente que

considerava ser tiacutepico de um apocalipse Isso fazia com que um livro que um determinado

autor apontava como apocalipse fosse considerado por outro estudioso como de gecircnero

diferente

Um princiacutepio baacutesico subjacente agrave pesquisa do gecircnero destes textos eacute que um

apocalipse como outros tipos de literatura natildeo poderia ser considerado como obra literaacuteria

estanque pois estaria relacionado com outras obras e tradiccedilotildees atraveacutes de uma seacuterie de traccedilos

e conexotildees Por isso definir um apocalipse passou a ser uma questatildeo de precisar os limites

ou paracircmetros dentro dos quais as obras seriam recebidas por seus leitores

Essa definiccedilatildeo avanccedilou consideravelmente como resultado das pesquisas publicadas

no nuacutemero 14 da revista Semeia Ela continuou na tradiccedilatildeo de gerar listas de caracteriacutesticas

para tipificar um apocalipse mas deu um passo a mais por causa da precisatildeo com que estes

traccedilos foram postulados Os resultados foram resumidos por Collins

Apocalipse eacute um gecircnero de literatura de revelaccedilatildeo com uma estrutura

narrativa no qual uma revelaccedilatildeo eacute mediada por um ser sobrenatural para

um ser humano revelando uma realidade transcendente que eacute tanto

temporal enquanto considera salvaccedilatildeo escatoloacutegica quanto espacial

enquanto envolve outro mundo sobrenatural125

A lista de caracteriacutesticas de Collins apresenta um apocalipse do ponto de vista da

forma (literatura de revelaccedilatildeo de estrutura narrativa) e do conteuacutedo (mediaccedilatildeo sobrenatural

realidades transcendentes temporal e espacial) Ao aplicar esta lista de caracteriacutesticas ao

livro de Joatildeo Collins entende que a obra se enquadra com precisatildeo no interior da tradiccedilatildeo

literaacuteria que gerou os apocalipses

Escritores natildeo conseguem escrever sem ter em mente outros textos que eles leram

os quais se tornam modelos para serem imitados transformados ou contrapostos A inserccedilatildeo

de um texto num determinado veio tradicional ou literaacuterio assim tem funccedilatildeo natildeo somente

promotora de caracteriacutesticas (forma conteuacutedo e funccedilatildeo) mas tambeacutem hermenecircutica Afinal

124 RUSSELL D S Desvelamento divino uma introduccedilatildeo agrave apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo Paulus 1997 125 COLLINS John J Introduction Towards the Morphology of a Genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979

p 9

46

leitores natildeo conseguem ler e entender uma obra se eles natildeo estiverem habilitados para

relacionaacute-la com outras que eles tiveram a oportunidade de ler ou conhecer

O propoacutesito da identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo de uma obra eacute orientar e guiar a produccedilatildeo

ou a recepccedilatildeo da mesma Este processo eacute normalmente deliberado e consciente por parte

do autor do livro como um de seus recursos para guiar o seu leitor

A classificaccedilatildeo de textos consiste no levantamento de um conjunto de convenccedilotildees

impliacutecitas ou expliacutecitas O escritor conhece estas convenccedilotildees do contexto no qual e contra o

qual escreve No processo de produccedilatildeo de sua obra ele ajuda o leitor por meio de indicaccedilotildees

para-textuais como tiacutetulos subtiacutetulos prefaacutecios ou outros sinais menos oacutebvios Com isso se

forma um tipo de ldquocontratordquo que orienta antecipadamente a leitura e a apropriaccedilatildeo da obra

Afinal estas marcas estatildeo ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido

Paul Duff destaca que Joatildeo como todo escritor ou orador precisou antecipar a reaccedilatildeo

dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem126 As tais marcas

viabilizam as classificaccedilotildees ou categorizaccedilotildees e formam uma espeacutecie de guia de leitura que

pode ser aceito ou natildeo pelos leitores

Linton insiste que mesmo que uma obra natildeo tenha estes sinais claramente os leitores

tenderatildeo a construir seus proacuteprios guias de interpretaccedilatildeo normalmente comparando a obra

com outras similares de forma a construir um corpo de convenccedilotildees para guiar a leitura127

A praacutetica da leitura se torna entatildeo um contiacutenuo processo de comparaccedilatildeo com leituras

anteriores

Autores se valem de categorias Leitores se aproveitam delas Em ambas as situaccedilotildees

a construccedilatildeo do texto e a busca pelo seu sentido eacute uma atividade de comparaccedilatildeo na qual as

categorias se tornam ferramentas heuriacutesticas significativas Ao escrever sua obra Joatildeo

deliberadamente revestiu-a de marcas e traccedilos de obras que viriam posteriormente a ser

conhecidas como ldquoapocalipsesrdquo Ao assim fazer ele forneceu a forma como ele esperava

que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Aacutesia e com quais textos o Apocalipse deveria

ser comparado

126 DUFF Paul B Who rides the beast op cit p 72 127 LINTON Gregory L Reading the Apocalypse as Apocalypse In BARR David L (ed) The Reality of

Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p

9-41 p 15

47

15 Resumo

O Apocalipse foi escrito por um judeu de nome Joatildeo que migrou da Palestina apoacutes a

guerra judaico-romana (66-70) e desenvolvou uma atividade profeacutetica entre as comunidades

do movimento de Jesus na Aacutesia menor Perto do final do seacuteculo pouco antes do fim do

governo do Imperador Domiciano (96) ele se deslocou ou foi descolocado para a ilha de

Patmos onde escreveu um texto marcado por traccedilos da tradiccedilatildeo literaacuteria judaica denominada

pelos estudiosos como ldquoapocalipserdquo Com sua obra ele desejava convencer alguns membros

especialmente de sete igrejas da proviacutencia asiaacutetica a romperem relacionamentos

significativos com a sociedade romana

II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA

Como discutimos no capiacutetulo anterior o Apocalipse de Joatildeo foi escrito nos anos 90

do primeiro seacuteculo da Era Comum provavelmente nos uacuteltimos anos do principado do

imperador Domiciano (Titus Flavius Domitianus)128 A partir de uma referecircncia interna

(Apocalipse 19) eacute possiacutevel circunscrever seu local de origem como sendo a pequena ilha

do mar Egeu de nome Patmos e seu destino como um conjunto de comunidades do

movimento de Jesus localizadas na proviacutencia proconsular da Aacutesia (Apocalipse 111) Eacutefeso

Esmirna Peacutergamo Tiatira Sardes Filadeacutelfia e Laodiceacuteia

Este Joatildeo de Patmos estaacute longe de Roma capital do Impeacuterio Apesar dos atos e gestos

do Imperador poderem refletir diretamente na vida de Joatildeo e no puacuteblico de sua obra em

termos sociais poliacuteticos econocircmicos ou culturais o contexto especiacutefico do Apocalipse eacute

mesmo a Aacutesia romana Em funccedilatildeo disso neste capiacutetulo nos deteremos em analisar a situaccedilatildeo

desta proviacutencia focando em aspectos que poderiam iluminar de alguma forma o processo

histoacuterico de produccedilatildeo do Apocalipse

21 Patmos o ponto de partida

Segundo o Apocalipse seu autor Joatildeo recebeu a seacuterie de visotildees que deu origem agrave

obra enquanto estava na ilha de Patmos no mar Egeu ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro

na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por

causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo (Apocalipse 19)

Patmos eacute uma ilha pequena Em termos gerais satildeo treze quilocircmetros de extensatildeo por

oito de largura Poreacutem sua costa recortada reduz consideravelmente suas dimensotildees Sua

margem fica a 64 quilocircmetros da foz do rio Maeander o ponto mais proacuteximo da peniacutensula

da Aacutesia Menor129 Esta distacircncia relativa tambeacutem a separava de Mileto seu principal viacutenculo

128 Domiciano foi assassinado no dia 18 de setembro de 96 por uma conspiraccedilatildeo palaciana e substituido no

mesmo dia por um dos seus amici o senador M Cocceius Nerva Cf JONES Brian W The emperor Domitian

Londres Routledge 1992 p 93 129 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield

Academic Press Ltd 1986 p 27

49

social com o continente Das cidades mencionadas no Apocalipse entretanto a mais

proacutexima era Eacutefeso distante da ilha cerca de 100 quilocircmetros130

A associaccedilatildeo de Patmos com Mileto era formal fazendo parte do seu territoacuterio junto

com as ilhas de Lipsos e Leros Nas trecircs ilhas havia algum tipo de povoamento Em Patmos

especificamente seu povo era conhecido como frouroi e seus liacutederes frourarchoi atuando

como parte do governo de Mileto para a populaccedilatildeo local131

Eacute preciso insistir no fato de que Patmos natildeo era uma ilha deserta ou mesmo uma

colocircnia penal O professor David Aune argumenta neste sentido e aponta como evidecircncia

duas inscriccedilotildees encontradas na ilha Uma datada para o seacuteculo II aC faz referecircncia a uma

associaccedilatildeo local de atletas agrave presenccedila de um gymnasium e agrave figura de um gymnasiarcha

eleito sete vezes para a mesma funccedilatildeo Outra de duzentos anos depois jaacute na Era Comum

fala de uma hidrophore sacerdotisa de Artemis e a presenccedila de um templo local bem

estabelecido para esta deusa132

Joatildeo escreve de uma ilha pertencente agrave Mileto a polis mais proacutexima de onde ele ldquose

achavardquo133 Curiosamente entretanto ela estaacute ausente da lista de cidades mencionadas no

Apocalipse Talvez a resposta a esta questatildeo tenha relaccedilatildeo com a falta de uma comunidade

do movimento de Jesus em Mileto O livro Atos dos Apoacutestolos escrito de um lugar

indeterminado entre os anos 80 e 90134 conteacutem uma narrativa que parece indiciar a ausecircncia

de uma comunidade na cidade Nela (Atos 2017-38) Paulo se prepara para fazer uma

viagem a Roma Entre seus preparativos estaacute uma visita agrave igreja de Jerusaleacutem Durante sua

viagem ele se detem em Mileto para conversar natildeo com disciacutepulos da cidade mas com

liacutederes que vieram da igreja de Eacutefeso O autor anocircnimo explicita que ldquode Mileto mandou a

Eacutefeso chamar os presbiacuteteros da igrejardquo (Atos 2017) Natildeo haacute qualquer menccedilatildeo agrave presenccedila de

seguidores do movimento de Jesus pelo menos perto do ano 60 quando os eventos narrados

por Atos se deram135 Neste sentido a omissatildeo do Apocalipse pode indicar que as trecircs

deacutecadas que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de Joatildeo por ela natildeo foram

suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar

130 Conferir os mapas da Aacutesia romana nos anexos 1 e 2 131 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 p 76 132 Idem p 77 133 Ele usa o termo grego ldquoἐγενόμηνrdquo primeira pessoa do aoristo do indicativo meacutedio ldquoachei-merdquo 134 KUMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 238 135 GALBIATTI Enrico Rodolfo ALETTI Aldo Atlas histoacuterico da Biacuteblia e do Antigo Oriente Petroacutepolis

Vozes 1991 p 216

50

22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia

Para Ciacutecero (107-43 aC) a ldquoAacutesia eacute oacutetima e feacutertilrdquo (ldquoAsia vero tam optima est ac

fertilisrdquo) e acrescentou que ldquona riqueza de seus oacuteleos na variedade de seus produtos na

extensatildeo de seus pastos e no nuacutemero de suas exportaccedilotildees ela ultrapassa todas as outras

terrasrdquo (De Imperio cn Pompei ad qurites oratio 14) A Aacutesia Menor era uma das regiotildees

mais ricas do Impeacuterio e dentre as seis proviacutencias da peniacutensula a Aacutesia era a mais rica136

Formalmente ela era uma proviacutencia senatorial governada por um prococircnsul indicado pelo

senado romano137 Entretanto tanto o imperador quanto o senado poderiam promover

regulamentos que afetariam a proviacutencia Justamente por isso nela havia representantes

imperial e senatorial

Durante o governo da dinastia Flaacutevia a gestatildeo da Aacutesia foi marcada pela recuperaccedilatildeo

econocircmica138 A aclamaccedilatildeo de Vespasiano se deu em Alexandria no dia 1 de julho de 69

sendo prontamente reconhecido pelas proviacutencias orientais O novo imperador viajando de

navio parou em vaacuterias cidades da costa da Aacutesia onde oficiais locais fizeram os juramentos

habituais de fidelidade139

Apoacutes sua ascensatildeo ao poder Vespasiano encontrou o tesouro imperial falido pelas

guerras civis que se seguiram agrave morte de Nero Para restaurar as financcedilas puacuteblicas ele adotou

uma poliacutetica econocircmica que reduziu os gastos do governo e procurou aumentar as receitas

do estado reorganizando o recolhimento das taxas puacuteblicas ou criando novas como o fiscus

Alexandrinus e o fiscus Iudaicus Esta segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus para

substituir um imposto recolhido para subsidiar o Templo de Jerusaleacutem recentemente

destruiacutedo pelas legiotildees de Tito filho de Vespasiano140

Uma mudanccedila importante se deu na forma como tais taxas eram cobradas A

cobranccedila saiu das matildeos dos publicani para um agente do governo liderado por um

procurador em Roma e outro em cada proviacutencia Posteriormente Domiciano criou o oficio

136 MAGIE David Roman rule in Asia Minor to the end of third century after Christ Princenton Princenton

University Press 1950 p 34-52 Cf tambeacutem KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no

Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 89 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation

Apocalypse and Empire Oxford Oxford University Press 1990 p 146 137 MAGIE op cit p 569 138 Para uma anaacutelise da reorganizaccedilatildeo efetuada por Vespasiano na proviacutencia mantida e ampliada por Tito e

Domiciano cf LEVICK Barbara Greece and Asia Minor In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient

History Cambridge Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 604-634 p 604 139 MAGIE op cit p 566 140 GRIFFIN Miriam The Flavians In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient History Cambridge

Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 1-83 p 27

51

de curator civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus recursos

Este processo de centralizaccedilatildeo financeira diminuiu a autonomia da proviacutencia contudo

ajudou suas cidades

Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Aacutesia Menor pelo incremento na

construccedilatildeo e manutenccedilatildeo de estradas Estradas importantes foram construiacutedas apoacutes a

ascensatildeo dos Flaacutevios como duas estradas que saiam de Peacutergamo no ano 75 Uma descia na

direccedilatildeo de Esmirna e Eacutefeso margeando a costa Outra seguia pelo interior na direccedilatildeo de

Tiatira e Sardes Estas mesmas estradas foram restauradas por Domiciano Aleacutem das

vantagens para o comeacutercio e a comunicaccedilatildeo o foco nas estradas tinha tambeacutem como objetivo

facilitar o acesso para a regiatildeo oriental da Aacutesia Menor e para as fronteiras com o Impeacuterio

Persa no Eufrates Por elas deveriam circular as legiotildees romanas e o suprimento para as

tropas141 Mas natildeo havia uma legiatildeo especiacutefica estacionada em qualquer proviacutencia da Aacutesia

Menor A defesa da regiatildeo dependia inteiramente das legiotildees fixadas na Siacuteria

O governo de Tito deu sequecircncia agraves poliacuteticas de seu pai ateacute que em setembro de 81

apoacutes sua morte ele foi sucedido por Domiciano Haacute um juiacutezo tradicional negativo a respeito

deste uacuteltimo imperador da dinastia Flaacutevia como ilustrado pela opiniatildeo de Euseacutebio de

Cesareacuteia (263-339)

Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos

dando morte sem julgamento razoaacutevel a natildeo pequeno nuacutemero de

patriacutecios e de homens ilustres e castigando com desterro fora das

fronteiras e confisco de bens a outras inuacutemeras personalidades sem

causa alguma Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero

na animosidade e guerra contra Deus Efetivamente ele foi o segundo

a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutes apesar de que seu pai

Vespasiano nada de mal planejou contra noacutes (Histoacuteria Eclesiaacutestica

III XVII 1)

Este juiacutezo se reflete tambeacutem na historiografia David Magie descreve inicialmente o

governo de Domiciano como inescrupuloso e impiedoso142 mas pouco depois reconhece

que

nas proviacutencias existe pouca evidecircncia de crueldade por parte de

Domiciano ou mesmo de pretensotildees de grandeza exageradas No

oriente mesmo o tiacutetulo de ldquodeusrdquo que incomodava os ouvidos

romanos era tido como normal Ainda o tiacutetulo completo ldquoDeus

invisiacutevel fundador da cidaderdquo inscrito no peacute de uma estatua do

imperador em Priene natildeo era mais extravagante do que outros dados

141 MAGIE op cit p 571 142 Idem p 577

52

a muitos de seus antecessores e a outorga do epiacuteteto de ldquofundadorrdquo

parece indicar que ele realmente beneficiou a cidade143

A relaccedilatildeo de Domiciano com a Aacutesia assim natildeo foi diferente da forma como seu

irmatildeo Tito e seu pai Vespasiano trataram a proviacutencia A proviacutencia se beneficiou com a

gestatildeo dos Flaacutevios que terminou com a morte de Domiciano em setembro de 96 jaacute que o

imperador natildeo deixou herdeiro

Um testemunho da prosperidade do periacuteodo pode ser encontrado em um dos livros

dos Oraacuteculos Sibilinos surgido perto do ano 80 O oraacuteculo escrito na perspectiva do

Judaiacutesmo da diaacutespora na Aacutesia atacou o Impeacuterio Romano mas natildeo deixou de evidenciar a

riqueza da proviacutencia segundo seu autor espoliada em favor de Roma

Grande riqueza viraacute para Aacutesia riqueza que uma vez Roma tendo

tomado-a por rapina armazenou em uma casa de insuperaacuteveis

riquezas mas sem demora ela faz uma dupla restituiccedilatildeo para a Aacutesia

entatildeo haveraacute um excesso de conflitos (Oraacuteculo Sibilino IV I 42)144

Durante as deacutecadas da dinastia Flaacutevia a situaccedilatildeo econocircmica da Aacutesia se refletiu no

volume de novas construccedilotildees natildeo apenas por meio de recursos puacuteblicos mas tambeacutem atraveacutes

de subsiacutedios de pessoas ricas Estas liturgias incluiacuteam recursos para as edificaccedilotildees para o

reparo de construccedilotildees para a manutenccedilatildeo de centros sociais e para a realizaccedilatildeo de

festivais145

A cidade mais beneficiada no periacuteodo foi possivelmente a sede da proviacutencia Eacutefeso

Nela residia o proconsul da cidade O procurador ou vice-proconsul com alguma

probabilidade tambeacutem morava nela A partir da deacutecada de 90 mesmo sem uma precisatildeo

maior trecircs pessoas se sucederam no governo da Aacutesia ateacute a morte de Domiciano Sextus

Vettulenus Civica Cerialis C Minicius e L Junius Caesennius Paetus146

23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia

Os mais antigos membros das igrejas da Aacutesia eram oriundos de comunidades judaicas

da Aacutesia Menor Das centenas de cidades da proviacutencia asiaacutetica a presenccedila do movimento de

143 Idem p 577 144 Citado a partir de MAGIE op cit p 582 145 Idem p 583 146 Idem p 1582-1583

53

Jesus era atestada onde existia tambeacutem uma comunidade judaica147 Eacute plausiacutevel mesmo

tratar o movimento de Jesus na Aacutesia como parte do Judaiacutesmo da diaacutespora

Frequentadores de sinagogas ou de igrejas viviam na Aacutesia Menor no final do

primeiro seacuteculo e iniacutecio do segundo em grandes aacutereas urbanas e o que puder ser dito sobre

o primeiro grupo vale tambeacutem para o segundo O movimento de Jesus estaacute em processo de

ruptura e construccedilatildeo de identidade proacutepria todavia esse movimento ainda natildeo se completou

na regiatildeo como o proacuteprio Apocalipse pode evidenciar Apesar de membros da sociedade

romana especialmente seus magistrados jaacute perceberem alguma diferenccedila entre um e outro

na vida cotidiana eles permaneciam histoacuterica social e teologicamente envolvidos Esse

parece ser o motivo que levou Joatildeo de Patmos a se envolver em disputas com membros das

sinagogas locais (Apocalipse 29 39)148

A crise com as sinagogas de Esmirna (Apocalipse 29) e Filadeacutelfia (Apocalipse 39)

pode ter relaccedilatildeo com a forma como as comunidades judaicas se adaptaram ao contexto

urbano da proviacutencia Judeus habitavam a regiatildeo desde que Antioco III ordenou a realocaccedilatildeo

de duas mil famiacutelias judaicas da Babilocircnia para a Frigia como uma colocircnia militar a fim de

minimizar revoltas na regiatildeo149 Desde entatildeo judeus estavam amplamente presentes na parte

ocidental da Aacutesia Menor vivendo suas praacuteticas religiosas mas com relativa integraccedilatildeo na

vida ciacutevica das cidades150

Mesmo depois da guerra judaico-romana (66-70) os judeus da Aacutesia continuaram a

compartilhar da prosperidade da proviacutencia sem ameaccedila de puniccedilotildees por algum tipo de

conexatildeo com a guerra na Judeacuteia151 Com exceccedilatildeo do Fiscus Iudaicus nenhuma outra

consequecircncia poliacutetica ou social foi imposta aos judeus da diaacutespora pelo Impeacuterio Romano

apoacutes a guerra Segundo Josefo ldquoo mesmo soberano ordenou tambeacutem que os judeus em

qualquer lugar onde morassem deveriam pagar cada qual todos os anos duas dracmas ao

Capitoacutelio como antes pagavam ao templo de Jerusaleacutemrdquo (Guerra dos Judeus 27) A

identificaccedilatildeo dos judeus com a sociedade romana tambeacutem eacute testemunhada por este

sobrevivente da guerra Em Antiguidades Judaicas ele argumenta que judeus em Sardes

eram sardianos em Eacutefeso eram efeacutesios em Antioquia eram antioquenos (Antiguidades

Judaicas 239)

147 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 133 148 Idem p 145 149 TREBILCO Paul Jewish communities in Asia Minor Cambridge Cambridge Univesity Press 1991 p 5 150 Idem p 173 151 Idem p 32

54

Judeus eram membros ativos de associaccedilotildees comerciais e sindicatos Tambeacutem eram

agricultores vinhateiros marinheiros trabalhadores com metal e perfumaria Estavam

envolvidos ainda em manufaturas tecircxtil como tintureiros vendedores e fabricantes de

roupa152

Em cada uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse judeus viviam suas vidas

segundo as tradiccedilotildees judaicas poreacutem sem desprezar a participaccedilatildeo em atividades urbanas

locais Foi a partir destas comunidades judaicas engajadas na vida cotidiana do Impeacuterio que

o movimento de Jesus da Aacutesia formou suas igrejas

24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia

A proviacutencia da Aacutesia se situava na costa ocidental da peniacutensula da Aacutesia Menor O

autor do Apocalipse Joatildeo aponta a ilha de Patmos pertencente agrave cidade de Mileto como o

local de origem do livro Todas as cidades mencionadas explicitamente na obra satildeo cidades

de grande porte dentro da proviacutencia

As principais evidecircncias da presenccedila de cristatildeos nestas cidades vecircm de fontes do

proacuteprio movimento (cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos cartas de Pedro Apocalipse e

Inaacutecio de Antioquia) A mais antiga referecircncia a igrejas na regiatildeo vem de cartas que Paulo

de Tarso escreveu para comunidades de disciacutepulos de Corinto na deacutecada de 50 Ele estava

em Eacutefeso enquanto escrevia estas cartas (1Coriacutentios e 2Coriacutentios) O autor do livro Atos dos

Apoacutestolos tambeacutem falou do tempo em que Paulo ficou em Eacutefeso Segundo ele Paulo ficou

na cidade por trecircs anos (Atos 2031)

Tanto as cartas a Coriacutentios quanto Atos dos Apoacutestolos evidenciam que na capital da

proviacutencia existiam outros liacutederes do movimento Paulo natildeo era o uacutenico Outros como

Aacutequila Priscila e Apolo tambeacutem satildeo mencionados Estes liacutederes eram artesatildeos

independentes oriundos de comunidades judaicas da Aacutesia Menor Isso se nota por meio de

sua mobilidade sua ocupaccedilatildeo e a hospedagem de igrejas em suas casas Pessoas com a

mobilidade que eles possuiacuteam deveriam possuir recursos Para acomodar pessoas suas casas

tambeacutem deveriam ter razoaacutevel espaccedilo Natildeo eram pessoas de classes inferiores da sociedade

romana

152 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 144

55

Jaacute nos tempos de Paulo se manifestou a questatildeo da interaccedilatildeo das comunidades com

a vida urbana da cidade especialmente na questatildeo da alimentaccedilatildeo em atividades religiosas

ou ciacutevicas Em cidades gregas e romanas as pessoas tinham vaacuterias oportunidades para

participar de refeiccedilotildees cuacutelticas Isso poderia acontecer em ocasiotildees puacuteblicas (funerais

celebraccedilotildees festas ciacutevicas etc) ou privadas (clubes organizaccedilotildees comerciais refeiccedilotildees

privadas etc) Tanto em uma quanto em outra situaccedilatildeo as refeiccedilotildees expressavam conexatildeo

social em torno de causas comuns153

Fazer refeiccedilotildees puacuteblicas e comer carne oriunda de sacrifiacutecios religiosos satildeo

elementos diretamente ligados agrave questatildeo da participaccedilatildeo nas instituiccedilotildees sociais da cidade e

do Impeacuterio Este tipo de pressatildeo poderia ser diferente para status sociais distintos Segundo

Gerd Theissen cristatildeos ricos teriam mais oportunidades de se envolver em refeiccedilotildees cuacutelticas

de caraacuteter puacuteblico do que cristatildeos pobres154

Quando Paulo tratou deste assunto em 1Coriacutentios 8-10 ele relacionou a participaccedilatildeo

nas refeiccedilotildees com a situaccedilatildeo dos fracos e fortes dentro da comunidade Seu argumento

caminha na direccedilatildeo de que somente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto

os ldquofracosrdquo e os ldquofortesrdquo (ἀσθενεiς kai ἰσχυροί) participassem juntos como em festivais

puacuteblicos eacute que os disciacutepulos deveriam se abster (1Coriacutentios 87-13) Nas instacircncias privadas

poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela origem da comida

(1Corintios 1027) As igrejas da Aacutesia provavelmente nasceram a partir de mensagens e

perspectivas semelhantes agraves de Paulo de Tarso

O autor do Apocalipse quatro deacutecadas depois de missionaacuterios como Paulo Aacutequila

Priscila e Apolo terem fundado essas comunidades escreve uma obra na qual defende

posiccedilotildees divergentes Os adversaacuterios de Joatildeo descritos em sua obra como os nicolaiacutetas

baalamitas ou Jesabel satildeo atacados por promoveram algum tipo de interaccedilatildeo com a

sociedade interaccedilatildeo essa que parece ter relaccedilatildeo com a mesma questatildeo respondida por Paulo

na sua carta aos Coriacutentios a participaccedilatildeo em refeiccedilotildees ou atividades sociais que envolviam

a ingestatildeo de carne originada em sacrifiacutecio religioso Aqueles que Joatildeo enxerga como

adversaacuterios satildeo provavelmente membros do movimento de Jesus que possuem uma

perspectiva semelhante agrave que Paulo deu aos crentes de Corinto155 Thompson analisa a

153 Idem p 123 154 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva Satildeo Leopoldo Sinodal 1983 p 146 155 Assim resumiu Pagels ldquomuitas praacuteticas que Joatildeo atacava eram as mesmas que Paulo anteriormente

recomendavardquo Cf PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation

New York Penguin Books 2012 p 54

56

questatildeo e sugere que como as respostas que os adversaacuterios de Joatildeo datildeo satildeo semelhantes agrave

do antigo missionaacuterio de Tarso possivelmente eles possuiacuteam posiccedilotildees sociais semelhantes

ou seja estavam envolvidos em atividades comerciais possuiacuteam responsabilidades ciacutevicas

e pertenciam a um estrato mais rico da lideranccedila das igrejas da Aacutesia156 Este mesmo autor

defende que as igrejas da Aacutesia deveriam ter em linhas gerais uma mesma composiccedilatildeo

social Elas possuiacuteam em seus quadros pessoas livres e escravas homens e mulheres ricos

e pobres e deveriam se parecer com muitas associaccedilotildees religiosas ou sociais que existiam

na Aacutesia157 Estas associaccedilotildees synodos proliferavam consideravelmente desde a instauraccedilatildeo

do Impeacuterio e se manifestavam no Ocidente e no Oriente Segundo Meeks elas surgiam a

partir da decisatildeo de um grupo de doze a quarenta pessoas de se encontrarem em algum lugar

para reuniotildees158

Nestas reuniotildees era comum haver certa semelhanccedila de status social entre seus

membros Entretanto o proacuteprio fenocircmeno ldquostatusrdquo eacute complexo e possui vaacuterias dimensotildees

No status social de uma pessoa ou famiacutelia influiam elementos como poder prestiacutegio da

ocupaccedilatildeo renda ou riqueza educaccedilatildeo e cultura religiatildeo e pureza ritual famiacutelia ou grupo

eacutetnico status da comunidade local em que se estava envolvido Cada um destes elementos

poderia ser conjugado de forma diferente em uma dada circunstacircncia histoacuterica Na praacutetica

o status de um cidadatildeo romano era o resultado de como estas variaacuteveis eram consideradas

na sociedade local Mesmo que existisse certa perspectiva geral um sacerdote de Eacutefeso

poderia ter mais status do que um comerciante rico da cidade Em outra cidade o

conhecimento poderia ser mais importante do que a etnia em outra a pureza ritual poderia

valer mais do que a descendecircncia familiar A riqueza poderia dar mais status do que o

conhecimento mas em algumas circunstacircncias pertencer a uma famiacutelia nobre era mais

importante do que ter recursos financeiros159

Atentando para esses elementos o que as fontes geradas pelo movimento de Jesus

poderiam apontar sobre o status social dos seus membros O missionaacuterio Paulo de Tarso na

mesma carta que escreveu para a comunidade de Corinto informa que ldquonatildeo muitos da

comunidade eram saacutebios segundo o mundo nem poderosos nem de nobre nascimentordquo

(1Coriacutentios 126) Dizer que natildeo havia muitos significa afirmar que havia alguns Entre os

156 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 129 157 Idem p 127 158 MEEKS Wayne A Os primeiros cristatildeos urbanos o mundo social do Apoacutestolo Paulo Satildeo Paulo Paulinas

1992 p 54 159 Conferir esta discussatildeo em MEEKS op cit p 91

57

membros do movimento na cidade havia pessoas cultas (ldquordquo) ricas

(ldquordquo) ou bem-nascidas (ldquordquo) Pelo argumento de Paulo estes formavam uma

minoria dentro da comunidade apesar de se constituiacuterem numa minoria dominante160

Outro testemunho sobre as posiccedilotildees sociais dentro das comunidades da Aacutesia pode vir

de uma carta que Pliacutenio o Jovem escreveu em 112 enquanto atuava como governador da

proviacutencia da Bitiacutenia e Ponto tambeacutem na Aacutesia Menor O quadro descrito por Pliacutenio parece

ser bem parecido com a composiccedilatildeo da igreja de Eacutefeso ou das demais cidades mencionadas

no Apocalipse Pliacutenio resolveu tratar deste assunto com o Imperador Trajano porque

entendeu que a questatildeo era digna de consideraccedilatildeo imperial em funccedilatildeo do nuacutemero de pessoas

que se engajavam no movimento Estes ldquochristianirdquo eram de todas as idades (ldquoominis

aetatisrdquo) todas as ordens (ldquoomnis ordinisrdquo) tanto homem quanto mulher (ldquoutrisque sexusrdquo)

(Epiacutestolas 10968)

Uma carta que Paulo escreveu a Filemon jaacute na deacutecada de 60 no periacuteodo em que

esteve preso em Roma indica outro aspecto significativo da composiccedilatildeo destas

comunidades Filemon era proprietaacuterio de escravo Um deles Oneacutesimo fugiu encontrou-se

com Paulo em Roma converteu-se ao movimento e foi orientado a voltar para seu antigo

dominus este tambeacutem um convertido morador da Aacutesia Uma igreja se reunia na casa deste

senhor de escravos (Filemon 2) Natildeo eacute possiacutevel saber quantos escravos Filemon possuiacutea

mas ele recebe a orientaccedilatildeo de Paulo para que aceitasse seu antigo escravo de forma

amistosa natildeo mais como escravo (ldquow`j doulonrdquo) e sim como algueacutem mais do que escravo

(ldquou`per doulonrdquo) O escravo agora deveria ser tratado como irmatildeo (ldquow`j avdelfonrdquo) A taacutebua

domeacutestica registrada na carta aos Efeacutesios (Efeacutesios 65) documento deuteropaulino anocircnimo

escrito em algum momento entre os anos 80-100 possivelmente da Aacutesia161 especifica que

os escravos deveriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor (ldquometa fobou kai

tromourdquo)

Isso indica que as comunidades de Jesus tinham a presenccedila de pessoas livres e

escravas senhores e servos mas as orientaccedilotildees de seus liacutederes tendiam a tomar o lado dos

senhores em vez dos escravos

Outros elementos tambeacutem podem iluminar o quadro social destas comunidades da

Aacutesia162 Primeiramente o fato de alguns de seus membros escreverem livros e cartas para

160 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva op cit p 146-147 161 KUMMEL op cit p 480 162 Sobre estas sugestotildees cf THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 128-129

58

serem lidas no interior do movimento indica uma presenccedila significativa de pessoas que

sabiam escrever e ler numa sociedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas

mas parcamente encontradas Um segundo aspecto pode ser localizado naqueles que

hospedavam a comunidade em sua casa os quais deveriam ter certa ascendecircncia sobre os

membros do movimento Possivelmente eles agiam como ldquopatronosrdquo da igreja da mesma

forma como outros patronos da cidade suportavam clubes e associaccedilotildees comerciais Por fim

cristatildeos viajavam muito num periacuteodo em que viagens eram muito custosas Meeks sugeriu

a partir dos itineraacuterios apresentados nos Atos dos Apoacutestolos que o missionaacuterio Paulo de

Tarso pode ter viajado aproximadamente dezesseis mil quilocircmetros durante sua carreira

religiosa163 Estas viagens eram bancadas geralmente por atividades profissionais proacuteprias

mas em algumas circunstacircncias como no caso de Joatildeo de Patmos algum tipo de patrociacutenio

poderia ser buscado entre as comunidades visitadas

Com comunidades assim constituiacutedas de que maneira seus membros se

relacionavam com a sociedade Como jaacute indicamos no capiacutetulo anterior os membros do

movimento de Jesus da Aacutesia estavam inseridos na vida cotidiana da proviacutencia e natildeo

buscavam ruptura com seus vizinhos Apesar da dificuldade em se situar geograficamente a

origem ou o destino escrevendo em meados do segundo seacuteculo o autor da carta a Diogneto

resumiu

Os cristatildeos de fato natildeo se distinguem dos outros homens nem por sua

terra nem por liacutenguas ou costumes Com efeito natildeo moram em cidades

proacuteprias nem falam liacutengua estranha nem tecircm algum modo especial de

viver Sua doutrina natildeo foi inventada por eles graccedilas ao talento e

especulaccedilatildeo de homens curiosos nem professam como outros algum

ensinamento humano Pelo contraacuterio vivendo em cidades gregas e

baacuterbaras conforme a sorte de cada um e adaptando-se aos costumes do

lugar quanto agrave roupa ao alimento e ao resto testemunham um modo de

vida social admiraacutevel e sem duacutevida paradoxal Vivem na sua paacutetria mas

como forasteiros participam de tudo como cristatildeos e suportam tudo como

estrangeiros Toda paacutetria estrangeira eacute paacutetria deles e cada paacutetria eacute

estrangeira (Carta a Diogneto 51-5)

Tertuliano no final do segundo seacuteculo argumentou de modo semelhante para a

sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia Segundo ele os cristatildeos tinham a mesma

maneira de vida as mesmas roupas e os mesmos costumes eles frequentavam juntos o

mercado o accedilougue os banhos puacuteblicos as lojas as faacutebricas as tavernas as feiras e outros

163 MEEKS op cit p 32

59

negoacutecios Cristatildeos eram marinheiros soldados agricultores e se envolviam no comeacutercio

com natildeo cristatildeos Defendendo sua comunidade ele argumentou que eles proviam

habilidades e serviccedilos para o benefiacutecio de toda a sociedade romana (Apologia 42)

Tanto a Carta a Diogneto quanto Apologia natildeo dizem respeito especiacutefico agrave Aacutesia do

final do primeiro seacuteculo mas pelo menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a

interaccedilatildeo social no movimento de Jesus A perspectiva do missionaacuterio Paulo na deacutecada de

50 e 60 parece estar replicada em Diogneto e Apologia no segundo seacuteculo Isso significa

dizer que os seguidores de Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas

situaccedilotildees que os demais membros da sociedade romana Eles tinham contatos com pessoas

de outros viacutenculos religiosos na economia sociedade famiacutelia e poliacutetica Os seguidores de

Jesus tocavam suas vidas de forma paciacutefica com seus vizinhos tentando viver sem

distuacuterbios ou mesmo sem chamar muita atenccedilatildeo

25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo

No mesmo periacuteodo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse mas longe de Patmos cerca

de 1600 quilocircmetros um dos liacutederes da igreja de Roma o presbiacutetero Clemente escreveu

uma carta para a igreja de Corinto Clemente romano alcanccedilou grande prestiacutegio em vaacuterias

comunidades cristatildes posteriormente a ponto de sua carta aparecer em diversas listas

canocircnicas O que levou Clemente a se manifestar aparentemente foi algum tipo de tumulto

interno do movimento de Jesus em Corinto Alguns liacutederes da igreja teriam sido destituiacutedos

sem motivo aparente o que gerou o protesto de Clemente Ele escreveu ldquoCariacutessimos eacute

vergonhoso muito vergonhoso e indigno de conduta cristatilde ouvir dizer que a firme e antiga

Igreja de Corinto por causa de uma ou duas pessoas estaacute em revolta contra os seus

presbiacuteterosrdquo (1Clemente 476)

Na saudaccedilatildeo inicial ele descreve a igreja da capital como ldquoestrangeira em Romardquo A

expressatildeo poderia ser indiacutecio de algum tipo de desconforto da comunidade em relaccedilatildeo agrave

sociedade romana Outra passagem de sua carta talvez aponte para a mesma direccedilatildeo

ldquoIrmatildeos pelas desgraccedilas e adversidades imprevistas que nos aconteceram uma apoacutes outra

acreditamos ter demorado muito para dar atenccedilatildeo agraves coisas que entre voacutes se discutemrdquo

(1Clemente 11) O autor faz referecircncia a algum tipo de crise que impediu que ele se

60

manifestasse anteriormente sobre a situaccedilatildeo de Corinto mas ele evita descrever a natureza

desta crise em qualquer outro lugar da obra

Ao sugerir o fim para os conflitos internos da comunidade ele toma o exeacutercito

romano como exemplo de organizaccedilatildeo e ordem

Irmatildeos militemos com toda nossa prontidatildeo sob as ordens irrepreensiacuteveis

dele Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos

governantes com que disciplina docilidade e submissatildeo eles executam as

funccedilotildees que lhes satildeo designadas (1Clemente 371-2)

Ao demonstrar certa admiraccedilatildeo pela estrutura militar do Impeacuterio ou quando

denomina os oficiais romanos de ldquonossos governantesrdquo a carta de Clemente parece

evidenciar que os membros da comunidade de Jesus estabelecida na capital do Impeacuterio natildeo

possuem uma crise aberta com a sociedade Em funccedilatildeo de suas analogias o mesmo poderia

ser dito a respeito da igreja de Corinto Essa parece ser tambeacutem a postura que adotou o autor

anocircnimo de 1Pedro possivelmente entre os anos 90-95164 escrevendo talvez de Roma

ldquoSujeitai-vos a toda instituiccedilatildeo humana por causa do Senhor quer seja ao rei como

soberano quer agraves autoridades como enviadas por ele tanto para castigo dos malfeitores

como para louvor dos que praticam o bemrdquo (1Pedro 213-14)

Alguns argumentos de Clemente (1Clemente 552-3) indicam que a igreja jaacute passou

por dificuldades mas ele minimiza a crise inserindo-a numa exortaccedilatildeo em benefiacutecio do bem

comum O presbiacutetero Clemente natildeo atribui agrave sociedade romana a responsabilidade pelas

dificuldades que a comunidade enfrentou Isso sugere a existecircncia de uma comunidade

estabelecida na capital do Impeacuterio engajada em evitar problemas com a sociedade

experiecircncia essa que parecia estar replicada em comunidades da proviacutencia da Aacutesia

Mas se os membros do movimento de Jesus de uma forma geral tentavam manter

laccedilos regulares com a sociedade romana o inverso tambeacutem poderia ser afirmado Da parte

dos governantes geralmente havia certa toleracircncia para com costumes e mesmo divindades

locais desde que natildeo se opusessem aos interesses romanos Esta atitude de toleracircncia relativa

deve ter favorecido o desenvolvimento das igrejas Muitas comunidades existiram sem

serem notadas por quase um seacuteculo165 Accedilotildees oficiais da parte dos prococircnsules procuradores

ou outros magistrados locais como as noticiadas por Pliacutenio o Jovem ao imperador Trajano

no iniacutecio do segundo seacuteculo eram raras

164 KUumlMMEL op cit p 557-558 165 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 p 124

61

Tensotildees se manifestavam de forma intermitente como perseguiccedilotildees eventuais mas

normalmente natildeo eram oficiais Segundo Thompson para pessoas de fora da comunidade o

movimento de Jesus era uma religiatildeo suspeita por quatro motivos era nova estrangeira

secreta e exclusiva166 Provavelmente foi em consequecircncia de uma suspeiccedilatildeo desta natureza

que cristatildeos foram acusados diante do governador da Bitiacutenia algum tempo depois do

Apocalipse

As cartas de Pliacutenio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusaccedilotildees

predominantemente vagas Natildeo havia um crime especiacutefico para o processo contra os cristatildeos

O governador perguntou ldquoHaacute de punir-se o simples fato de algueacutem ser cristatildeo mesmo que

inocente de qualquer crime ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nomerdquo

(Epistola 10962) Ainda assim na duacutevida sobre o que fazer Pliacutenio inaugurou um teste

Os que negarem ser cristatildeos considerei-os merecedores de absolviccedilatildeo De

fato sob minha pressatildeo devotaram-se aos deuses e reverenciaram com

incenso e libaccedilotildees vossa imagem colocada para este propoacutesito ao lado das

estaacutetuas dos deuses e pormenor particular amaldiccediloaram a Cristo coisa

que um genuiacuteno cristatildeo jamais aceita fazer (Epiacutestola 10965)

A proviacutencia governada por Pliacutenio era vizinha da Aacutesia e fazia parte do complexo

cultural da mesma peniacutensula Ainda que o problema principal natildeo fosse o culto imperial o

gesto do governador colocou o movimento em colisatildeo com atividades religiosas locais As

epiacutestolas do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos entendiam ser crime

renegar ritos sagrados locais especialmente o culto imperial

26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo

Nos termos de Leonard Thompson ldquonas proviacutencias rituais imagens templos altares

associados com o culto imperial contribuiacuteam de forma importante para a compreensatildeo das

pessoas acerca da sua relaccedilatildeo com o imperadorrdquo167 Isso fazia da instituiccedilatildeo do culto imperial

uma importante representaccedilatildeo do imperador e do Impeacuterio na Aacutesia Havia entretanto

reciprocidade no seu estabelecimento Era uma honra para a cidade ter um templo ou altar

do culto imperial ao mesmo tempo que era importante para o imperador Impeacuterio e senado

aceitavam a existecircncia do culto imperial e promoviam seu estabelecimento e manutenccedilatildeo

166 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 132 167 Idem p 158

62

como igualmente o faziam as proviacutencias Isso significa que a rede de relaccedilotildees alimentadas

pelo culto imperial entre Roma e Aacutesia era uma rede de poder um instrumento poliacutetico de

vaacuterios niacuteveis168

Simon Price analisou a presenccedila do culto na Aacutesia insistindo na dificuldade de

circunscrever o papel do culto imperial apenas agraves esferas poliacuteticas Ele tinha igualmente um

papel religioso Segundo ele rituais de sacrifiacutecio e devoccedilatildeo puacuteblica ou privada eram

simultaneamente expressotildees religiosas e poliacuteticas169

O culto imperial natildeo foi criado pelo imperador do periacuteodo do Apocalipse Otaacutevio

Augusto recebeu honras das cidades da Aacutesia semelhantes agraves oferecidas aos deuses locais

Sacerdotes do primeiro imperador poderiam ser encontrados em mais de trinta cidades da

Aacutesia Menor e mais parentes seus receberam culto do que qualquer outro imperador depois

dele Durante o governo de Claacuteudio surgiram ao lado do sacerdote exclusivo para o

imperador vivo outros sacerdotes com a responsabilidade de promover culto tambeacutem para

os imperadores mortos Em funccedilatildeo da antiguidade da praacutetica e sua permanecircncia no decorrer

dos governos imperiais eacute possiacutevel afirmar que Domiciano alvo de uma forte criacutetica no

Apocalipse (Apocalipse 13) natildeo foi nem mais nem menos insistente com relaccedilatildeo agraves suas

prerrogativas divinas que qualquer imperador antes ou depois dele170

Todas as cidades do Apocalipse tinham manifestaccedilatildeo do culto imperial em algum

niacutevel cinco delas tinham altares imperiais (com exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia) seis

tinham templos imperiais (com exceccedilatildeo de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com

exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia)171

Aleacutem das praacuteticas e sacrifiacutecios religiosos nos templos e altares dedicados ao

Imperador sacerdotes imperiais promoviam festivais puacuteblicos que eram importantes

expressotildees religiosas e ciacutevicas na Aacutesia Estes festivais poderiam acontecer em diversas datas

mas estavam normalmente vinculados ao aniversaacuterio do Imperador Durante as celebraccedilotildees

os templos e santuaacuterios eram enfeitados e animais eram sacrificados em diversos altares

espalhados pela cidade Em cada local a participaccedilatildeo puacuteblica era aberta e esperada tendo

como cliacutemax uma refeiccedilatildeo ritual172

168 Idem p 159 169 PRICE Simon R F Rituals and Power The Roman imperial cult in Asia Minor Cambridge Cambridge

University Press 1984 p 235 170 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 159 171 PRICE op cit p 55-58 172 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation op cit p 163

63

Dentro dos templos imperiais como nos templos dedicados a outros cultos havia

estaacutetuas do imperador vivo e de outros imperadores alguma iconografia imperial e mesas

para os diversos sacrifiacutecios Estaacutetuas do imperador tambeacutem eram encontradas ao longo das

cidades ou em centros da vida puacuteblica urbana Nem todas as estaacutetuas do imperador

encontradas numa polis eram objeto de culto mas aquelas que estavam em um lugar sagrado

ou quando usadas em um tempo sagrado (um festival religioso por exemplo) tinham um

significado ritual Estas estaacutetuas e imagens tinham sentido religioso e poliacutetico e

funcionavam como um lembrete permanente uma representaccedilatildeo do poder do Imperador173

A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Aacutesia fez com que a

questatildeo do relacionamento com a sociedade se tornasse significativo para o movimento de

Jesus na proviacutencia Era difiacutecil se relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma

de suas celebraccedilotildees puacuteblicas Para alguns liacutederes das igrejas da regiatildeo natildeo havia problema

no envolvimento em atividades proacuteprias da cidade e em comer da comida oriunda dos

sacrifiacutecios religiosos Se participassem destas celebraccedilotildees diminuiriam a tensatildeo com a

sociedade e continuariam envolvidos nos diversos negoacutecios da vida urbana Alguns

entretanto como Joatildeo de Patmos possuiacuteam uma perspectiva distinta Possivelmente ele

representava uma minoria dentro das igrejas da Aacutesia que instava fortemente as comunidades

a exacerbar a tensatildeo com a sociedade e a se isolar das estruturas sociais da peniacutensula174

27 Resumo

A ilha de Patmos de onde partiu o Apocalipse e a proviacutencia romana da Aacutesia seu

destino partilhavam de uma mesma conjuntura social Era uma das regiotildees mais ricas do

Impeacuterio Romano com a presenccedila de comunidades judaicas espalhadas por vaacuterias de suas

cidades Membros destas comunidades que criam em Jesus como o Messias estavam na base

das mais antigas igrejas da regiatildeo Tanto as sinagogas quanto a maioria das igrejas

buscavam desenvolver seus ritos e crenccedilas sem conflito com a sociedade romana local

mesmo diante de tensotildees que poderiam se manifestar em relaccedilatildeo ao culto imperial Alguns

liacutederes buscavam manter orientaccedilotildees que poderiam proceder do apoacutestolo Paulo e assim

permitir a participaccedilatildeo dos membros em atividades ciacutevicas e religiosas locais Essas

173 Idem p 163 174 Idem p 167

64

comunidades natildeo desejavam que suas praacuteticas religiosas inviabilizassem seus

relacionamentos com a sociedade romana Joatildeo de Patmos entretanto manifesta em sua

obra uma postura oposta a liacutederes como seu contemporacircneo Clemente Romano Na

perspectiva do autor do Apocalipse para ser fiel ao seu fundador o movimento de Jesus

precisava rejeitar o Impeacuterio

III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE

JOAtildeO

Joatildeo de Patmos judeu emigrante da Palestina apoacutes a guerra contra os romanos por

meio de narrativas imagens e siacutembolos se apropriou de determinadas tradiccedilotildees religiosas

judaicas e construiu um apocalipse que pretendia explicar a conjuntura histoacuterica que o

movimento de Jesus experimentou e experimentava no interior da proviacutencia romana da Aacutesia

A obra culmina na descriccedilatildeo do juiacutezo final e da nova criaccedilatildeo divina Antes disso entretanto

o autor apresenta um periacuteodo de governo messiacircnico iminente terrenal intra-histoacuterico por

mil anos (Apocalipse 201-10) Apesar de curta a narrativa do milecircnio acabaraacute no centro dos

debates e das interpretaccedilotildees subsequentes do livro joanino175 Queremos neste capiacutetulo

analisar a produccedilatildeo desta periacutecope no contexto da obra joanina a partir de suas apropriaccedilotildees

tradicionais e literaacuterias na direccedilatildeo de novas representaccedilotildees individuais e coletivas

histoacutericas e milenaristas Procuramos refletir tambeacutem sobre a forma como estas

representaccedilotildees poderiam interferir no mundo social de Joatildeo e suas comunidades176

31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse

Adela Y Collins sugeriu que a obra joanina apesar de apresentar certos sinais que

indicariam uma estrutura clara (sete igrejas sete selos sete trombetas e sete taccedilas por

exemplo) natildeo eacute tatildeo transparente assim deixando a audiecircncia com certa expectativa

frustrada Isso poderia explicar os longos debates a respeito da estrutura da obra de Joatildeo177

Entre as alternativas David L Barr preferiu construir um esboccedilo do livro acompanhando o

desenvolvimento de suas narrativas Por isso ele dividiu o Apocalipse joanino em trecircs seccedilotildees

principais emolduradas por uma estrutura epistolar (os versiacuteculos 11-3 formariam o

prefaacutecio enquanto 226-21 a conclusatildeo) Ele as chamou de Seccedilatildeo das Cartas (14-322)

Seccedilatildeo do Culto Celestial (41-1118) e Seccedilatildeo da Guerra Escatoloacutegica (1119-225)178 Nossa

175 Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene

Wipf and Stock Publishers 2001 p 21-87 KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation

Oxford Blackwell Publishing 2004 p 200-219 176 Pensamos aqui nos papeacuteis sociais instituiccedilotildees sociais e relacionamentos sociais 177 Conferir uma histoacuteria da estruturaccedilatildeo do Apocalipse em COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in

the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 13-44 178 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa

Polebridge Press 1998

66

proposta de esboccedilo para o Apocalipse parte das sugestotildees de Barr em funccedilatildeo da forma como

ele compreendeu o desenvolvimento narrativo do livro joanino e o enquadramento

particular de cada episoacutedio literaacuterio no interior da obra como um todo Por meio deste esboccedilo

eacute possiacutevel entatildeo verificar o lugar do milecircnio dentro do Apocalipse Em termos literaacuterios ele

faz parte da narrativa da guerra escatoloacutegica ao descrever a vitoacuteria do Jesus exaltado sobre

Satanaacutes e as bestas num evento que termina com o juiacutezo final e a Nova Jerusaleacutem

- Introduccedilatildeo epistolar (11-3)

- Primeira seccedilatildeo ndash O Filho do Homem e as sete igrejas da Aacutesia (14-322)

Carta agrave Igreja em Eacutefeso (21-7)

Carta agrave Igreja em Esmirna (28-11)

Carta agrave Igreja em Peacutergamo (212-17)

Carta agrave Igreja em Tiatira (218-29)

Carta agrave Igreja em Sardes (31-6)

Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia (37-13)

Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia (314-22)

- Segunda seccedilatildeo ndash O rolo selado com sete selos (41-1119)

O culto ao Anciatildeo no trono (41-11)

O culto ao Cordeiro (51ndash14)

Selo 1 ndash Cavalo branco (61ndash2)

Selo 2 ndash Cavalo vermelho (63ndash4)

Selo 3 ndash Cavalo preto (65-6)

Selo 4 ndash Cavalo amarelo (67-8)

Selo 5 ndash Os maacutertires debaixo do altar (69-11)

Selo 6 ndash Juiacutezo escatoloacutegico (612-17)

Interluacutedio (71-17)

144000 selados (71-8)

Grande multidatildeo (79ndash17)

Selo 7 - Sete trombetas (81ndash1119)

O anjo das oraccedilotildees (81ndash6)

Trombeta 1 ndash Granito e fogo sobre a terra (88-7)

Trombeta 2 ndash Mar se torna em sangue (88-9)

Trombeta 3 ndash Estrelas tornam rios amargos (810-11)

Trombeta 4 ndash Sol lua e estrelas escurecem (812-13)

Trombeta 5 ndash Gafanhotos sobem do abismo (91-12)

Trombeta 6 ndash Quatro anjos e um exeacutercito matam pessoas (913-21)

Interluacutedio (101-1114)

Um livro para ser comido (101-11)

As duas testemunhas (111-14)

Trombeta 7 ndash A chegada do reino de Deus (1115ndash19)

- Terceira seccedilatildeo ndash A guerra escatoloacutegica (121-225)

A origem da guerra (121-18)

Os aliados do Dragatildeo (131-18)

A besta do mar (131-10)

A besta da terra (1311-18)

67

Os 144000 guerreiros do Cordeiro (141-5)

O anuacutencio dos trecircs anjos (146-12)

A bem-aventuranccedila dos mortos (1413)

O juiacutezo como uma ceifa (1414-20)

As sete taccedilas da ira (151-1621)

Os maacutertires diante de Deus (151-8)

Taccedila 1 Dores nos marcados pela besta (161-2)

Taccedila 2 O mar se torna em sangue (163)

Taccedila 3 Os rios se tornam em sangue (164-7)

Taccedila 4 O sol provoca feridas (168-9)

Taccedila 5 Trevas no trono da besta (1610-11)

Taccedila 6 A seca do Rio Eufrates e a coalizatildeo do Dragatildeo (1612-16)

Taccedila 7 Juiacutezo sobre Babilocircnia (1617-21)

A prostituta destruiacuteda (171-18)

Hino fuacutenebre pela queda da Babilocircnia (181-24)

Celebraccedilatildeo no ceacuteu pela queda da Babilocircnia (191-4)

O culto no ceacuteu anuncia as bodas do Cordeiro (195-10)

A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre as bestas (1911-21)

A prisatildeo do Dragatildeo (201-3)

O reino messiacircnico milenar (204-6)

A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre o Dragatildeo (207-10)

O juiacutezo final (2011-15)

A Nova Jerusaleacutem (211-225)

- Conclusatildeo epistolar (226-21)

32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo

Uma das caracteriacutesticas recorrentes nos apocalipses segundo John Collins eacute a

ldquorevelaccedilatildeordquo179 O proacuteprio termo ldquoapocalipserdquo () significa ldquorevelaccedilatildeordquo180 Seus

autores se propotildeem a revelar algo para sua audiecircncia Em linhas amplas estas revelaccedilotildees

poderiam ser divididas em dois eixos um vertical e outro horizontal

No eixo horizontal os autores queriam revelar o passado e o futuro O foco varia de

texto a texto com algumas obras com ecircnfase no passado ao descreverem os primoacuterdios da

histoacuteria da humanidade o iniacutecio da saga do povo de Deus ou mesmo uma descriccedilatildeo

cosmogocircnica sobre como as coisas vieram a ser o que satildeo no seu presente momento Quando

o foco estava no futuro os autores pretendiam descrever a intervenccedilatildeo final de Deus que

promoveria uma inversatildeo escatoloacutegica com todas as suas consequecircncias (cataclismos

coacutesmicos e juiacutezo sobre os inimigos de um lado nova criaccedilatildeo e recompensa para os membros

179 COLLINS John J Introduction towards the morphology of a genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979

p 9 180 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 66

68

do grupo do outro) Nesta perspectiva haacute a construccedilatildeo de um esquema teleoloacutegico da

histoacuteria no qual um fim glorioso resolveria a violecircncia e os traumas do passado e do presente

da comunidade destinataacuteria do apocalipse em questatildeo

No eixo vertical uma obra apocaliacuteptica se propotildee a revelar o que estaacute para aleacutem do

mundo humano o que estaacute acima e o que estaacute abaixo os ceacuteus e os submundos bem como

as coisas e seres que existem nestes espaccedilos Haacute aqui uma preocupaccedilatildeo em entender como

o universo funciona como o mundo sobrenatural interfere no mundo dos seres humanos e

na natureza e como controlar ou pelo menos ter acesso a essas realidades sobrenaturais

O Apocalipse de Joatildeo como outros apocalipses antes dele e depois dele tambeacutem

possui essas preocupaccedilotildees horizontais e verticais Como as revelaccedilotildees apocaliacutepticas satildeo

transmitidas no formato de narrativas o conteuacutedo do livro do profeta de Patmos estaacute

apresentado no interior de trecircs histoacuterias distintas mas inter-relacionadas181 A primeira

histoacuteria a ser narrada eacute a do aparecimento do Filho do Homem que promove o ditado de sete

cartas para um grupo de igrejas da Aacutesia romana Nestas cartas a figura celestial conhecida

das tradiccedilotildees de Daniel182 e 1Enoque183 faz ameaccedilas elogios e promessas e termina cada

carta com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores As mensagens

das cartas giram em torno de distuacuterbios entre os proacuteprios membros do movimento de Jesus

por causa das diferentes posturas de relacionamento com a sociedade romana em cada

contexto local184

Na segunda seccedilatildeo do livro o narrador das revelaccedilotildees eacute levado em espiacuterito (ldquoἐν

πνεύματιrdquo) por uma porta aberta no ceacuteu Neste lugar ele presencia uma sucessatildeo de atos

lituacutergicos e eacute apresentado aos principais personagens celestiais o Anciatildeo sobre o trono os

Quatro Viventes os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais e vaacuterios seres angelicais A figura

181 Interpretamos as narrativas do Apocalipse agrave luz do contexto em que ele foi composto Isso significa que as

analogias que constroacutei as imagens que utiliza os siacutembolos recorrentes na obra seratildeo compreendidos como

referecircncia a eventos histoacutericos do seu tempo ou como elementos escatoloacutegicos proacuteprios ao movimento de

Jesus no final do seacuteculo I especialmente no contexto da regiatildeo Aacutesia-Siacuteria-Palestina Cf COLLINS Adela

Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E J Brill 1996 p 198

Diversas outras formas de interpretar o mesmo conteuacutedo satildeo resumidas e analisadas em WAINWRIGHT op

cit 182 Daniel 7 narra a sucessatildeo de reinos e governos na forma de quatro animais mitoloacutegicos No interior desta

revisatildeo histoacuterica apocaliacuteptica o texto descreve a figura do Anciatildeo celestial e o Filho do Homem que o

representa Cf COLLINS John J Daniel with in introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William

B Eerdmans Publishing Company 1984 p 83 183 Em 1Enoque 7114-17 Enoque ascende aos ceacuteus onde encontra o proacuteprio Deus Ali o patriarca recebe a

informaccedilatildeo que ele eacute realmente o Filho do Homem figura que teria um papel significativo na salvaccedilatildeo

escatoloacutegica dos eleitos de Deus Cf OLSON Daniel C Enoch and the Son of Man in the Epilogue of the

Parables Journal for the Study of the Pseudepigrapha Thousand Oaks n 18 p 27-38 1998 184 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 p 58

69

fundamental entretanto eacute descrita como o Cordeiro (ἀρνίον) Eacute ele que recebe um rolo selado

com sete selos estrateacutegia simboacutelica para interpretar eventos e fenocircmenos histoacutericos A cada

selo corresponde uma revelaccedilatildeo ateacute o seacutetimo que por sua vez se desdobra em outro grupo

de sete elementos desta vez sete trombetas Como os selos cada trombeta estaacute relacionada

com um evento numa escala crescente de intensidade que culmina com a audiccedilatildeo de um

hino que comemora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuaacuterio celestial

A terceira parte do livro conta a histoacuteria de uma guerra que comeccedila quando uma

figura demoniacuteaca o Dragatildeo vermelho fracassa no seu propoacutesito de destruir uma crianccedila e

sua matildee sendo por isso expulso do ceacuteu para a terra Sua reaccedilatildeo eacute instaurar uma guerra contra

outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas Em contrapartida o

Cordeiro reuacutene seu exeacutercito convocando 144000 guerreiros dispostos a lutar ateacute a morte O

confronto resulta no nuacutemero determinado de maacutertires necessaacuterios para instaurar a

intervenccedilatildeo escatoloacutegica de Deus na forma de sete taccedilas de ira Apoacutes o derramamento das

taccedilas Jesus agora como um cavaleiro celestial desce do ceacuteu com uma hoste de anjos para

derrotar o Dragatildeo e seus aliados Num primeiro ato as bestas satildeo lanccediladas num lago de fogo

todo o exeacutercito adversaacuterio eacute morto e o Dragatildeo eacute aprisionado por mil anos O segundo ato

coloca fim agrave guerra quando o Dragatildeo eacute novamente solto somente para ser vencido e lanccedilado

no mesmo espaccedilo de juiacutezo onde jaacute estavam as duas bestas Entre os dois atos a narrativa

apresenta o reino messiacircnico com a participaccedilatildeo da figura exaltada de Jesus e os maacutertires

ressuscitados agora como reis e sacerdotes de Deus Com o fim do milecircnio e da guerra

escatoloacutegica o autor do Apocalipse descreve o fim da histoacuteria marcada pelo juiacutezo final e a

chegada da Nova Jerusaleacutem

33 O contexto narrativo do reino milenar

A sequecircncia narrativa e temporal da terceira seccedilatildeo (Apocalipse 121-225) natildeo eacute

linear Haacute muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como repeticcedilotildees ou incidentes

similares Existe um iacutentimo paralelo entre a sequecircncia das taccedilas (Apocalipse 161-21) e a

sequecircncia das trombetas (Apocalipse 88-1119) bem como vaacuterias cenas que parecem

interromper o fio narrativo Normalmente estas interrupccedilotildees funcionam para apresentar uma

interpretaccedilatildeo de algum aspecto da narrativa Mesmo assim ainda existe um sentido de

movimento para frente O primeiro episoacutedio apresenta o nascimento de uma crianccedila descrita

70

em termos messiacircnicos (Apocalipse 125) o que parece ser alusatildeo ao nascimento de Jesus

nove deacutecadas antes do Apocalipse surgir em Patmos e termina com o juiacutezo final e a

restauraccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo agora descrita como a Nova Jerusaleacutem A primeira cena estaacute

no passado da audiecircncia do Apocalipse e a uacuteltima estaacute no futuro Isso parece evidenciar o

desenvolvimento de uma narraccedilatildeo contiacutenua com princiacutepio meio e fim nos moldes dos

chamados apocalipses histoacutericos da tipologia de John Collins185

Em Apocalipse 121-18 Joatildeo narra uma guerra no ceacuteu e a expulsatildeo do Dragatildeo para

a terra Este tenta destruir a crianccedila messiacircnica mas falha no momento em que ela eacute

arrebatada para o ceacuteu Diante disto o Dragatildeo procura destruir a Mulher que eacute protegida no

deserto Depois de fracassar na perseguiccedilatildeo da Mulher o Dragatildeo parte para a perseguiccedilatildeo

dos outros filhos da Mulher (σπέρματος αὐτῆς) aqueles que ldquoguardam os mandamentos de

Deus e sustentam o testemunho de Jesusrdquo (ldquoτῶν τηρούντων τὰς ἐντολὰς τοῦ θεοῦ καὶ ἐχόντων

τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦrdquo) Tal descriccedilatildeo pretendia explicar para sua audiecircncia que uma iminente

perseguiccedilatildeo das igrejas teria como causa um conflito fora do mundo humano que envolveu

o fracasso de Satanaacutes em destruir Jesus e sua consequente expulsatildeo para a terra186

Um proacuteximo estaacutegio na narrativa apresenta os aliados do Dragatildeo duas bestas (qhria)

descritas em termos que apontavam para o Impeacuterio Romano e suas estruturas na proviacutencia

da Aacutesia como agentes demoniacuteacos187 Com esta estrateacutegia o profeta de Patmos queria indicar

que uma guerra coacutesmica jaacute comeccedilara e o conflito iria se acentuar enormemente mas em

breve Deus iria intervir nos acontecimentos por meio de Jesus Para o Apocalipse as igrejas

da Aacutesia e seus membros se encontravam no meio da luta depois do levantamento das bestas

mas antes que elas instaurassem a perseguiccedilatildeo generalizada

O estaacutegio seguinte da guerra pode ser denominado de ldquoresposta do Cordeirordquo Este

comeccedila sua reaccedilatildeo com a reuniatildeo de um exeacutercito de oposiccedilatildeo sobre o monte Siatildeo

(Apocalipse 141-5) provavelmente uma descriccedilatildeo dos seguidores de Jesus logo

martirizados Como resultado dessas mortes completa-se o nuacutemero dos maacutertires

185 Segundo Collins haacute tipos diferentes de apocalipses Uns como Daniel 7-12 4Esdras e 2Baruque focam

em descriccedilotildees histoacutericas e descrevem julgamentos coacutesmicos Outros como 2Enoque ou 3Baruque se

concentram em viagens celestiais e revelaccedilotildees sobre a realidade da alma apoacutes a morte O Apocalipse de Joatildeo

enfatiza o autor eacute um apocalipse de tipo misto que apesar de apresentar algum tipo de revelaccedilatildeo de mundo

sobrenatural se concentra na reflexatildeo histoacuterica Cf COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura

apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 4 COLLINS John J

Introductionhellip op cit p 13 186 HENTEN Jan Willem Dragon Myth and Imperial Ideology in Revelation 12-13 In BARR David L (ed)

The Reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical

Literature 2006 p 181-203 p 202 187 COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation op cit p 232

71

mencionados no quinto selo (Apocalipse 69-11) dando iniacutecio agraves sete pragas finais sobre a

terra na forma de sete taccedilas O cliacutemax das taccedilas de julgamento estaacute na descriccedilatildeo da queda da

Babilocircnia caracterizaccedilatildeo simboacutelica de Roma

Finalmente chega a fase final da guerra O cavaleiro celestial aparece do ceacuteu e

alcanccedila vitoacuteria sobre as bestas Um anjo desce do ceacuteu e prende o Dragatildeo Um periacuteodo

interino de paz por mil anos eacute estabelecido durante o qual os martirizados retornam agrave vida

como juiacutezes reis e sacerdotes de Cristo Apoacutes o milecircnio Satatilde eacute novamente libertado Ele

reuacutene um exeacutercito demoniacuteaco mas eacute derrotado definitivamente

34 O episoacutedio do reino milenar

Texto Grego188 Traduccedilatildeo proacutepria 1 Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ

οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ

ἅλυσιν μεγάλην ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ

1 E vi um anjo189 descendo do ceacuteu tendo a

chave do abismo190 e uma grande corrente

em suas matildeos 2 καὶ ἐκράτησεν τὸν δράκοντα ὁ ὄφις ὁ

ἀρχαῖος ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς

καὶ ἔδησεν αὐτὸν χίλια ἔτη191

2 E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente

que eacute o Diabo e Satanaacutes192 aprisionando-o

por mil anos 3 καὶ ἔβαλεν αὐτὸν εἰς τὴν ἄβυσσον καὶ

ἔκλεισεν καὶ ἐσφράγισεν ἐπάνω αὐτοῦ ἵνα

μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ

χίλια ἔτη μετὰ ταῦτα δεῖ λυθῆναι αὐτὸν

μικρὸν χρόνον

3 E lanccedilou-o para o abismo fechou e selou

o abismo para que natildeo engane mais as

naccedilotildees ateacute que se complete os mil anos

Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele

seja solto por pouco tempo 4 Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽

αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς καὶ τὰς

ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν

4 E vi tronos e sentaram neles e

[autoridade de] julgamento foi dada a

eles193 tambeacutem as almas dos

188 ALAND Kurt et all The Greek New Testament 4 ed rev London United Bible Society 2008 p 737-

738 O texto grego apresenta muitas dificuldades em funccedilatildeo de deficiecircncias e imprecisotildees sintaacuteticas Faltam

sujeitos haacute um acusativo solto um nominativo no lugar de um acusativo um pronome relativo que poderia

natildeo ter viacutenculos com seu antecedente mais oacutebvio A traduccedilatildeo proposta reflete uma tentativa de ordenaccedilatildeo Cf

MILLOS Samuel Peacuterez Apocalipsis comentario exegeacutetico al texto griego del Nuevo Testamento Barcelona

Editorial Clie 2010 p 1213 189 A expressatildeo aparece indefinida ldquoum anjordquo Natildeo haacute qualquer ecircnfase ou destaque no papel do anjo que prende

Satatilde Todo o destaque da narrativa vai para o Cristo que reina e os martirizados ressuscitados Cf POHL

Adolf Apocalipse de Joatildeo Curitiba Editora Evangeacutelica Esperanccedila 2001 2v V II p 221 190 O abismo natildeo eacute idecircntico ao lago de fogo e parece ser referecircncia agrave morada dos seres demoniacuteacos Cf

PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 363 191 A expressatildeo ldquoχίλια ἔτηrdquo soacute aparece no Novo Testamento nesta passagem do Apocalipse e em 2Pedro 38 192 Todos os tiacutetulos aqui mencionados apareceram antes nos episoacutedios do confronto entre o Dragatildeo e a Mulher

e o Dragatildeo e Miguel em Apocalipse 12 Laacute Satatilde foi lanccedilado para a terra Aqui ele eacute jogado no abismo Cf

FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991 p

107 193 Literalmente ldquoe julgamento foi dado a elesrdquo Pode significar que finalmente um julgamento terminou em

favor dos maacutertires ou como aqui optamos que o julgamento foi confiado a eles ou seja a autoridade para

exercer o juiacutezo Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 365

72

μαρτυρίαν Ἰησοῦ καὶ διὰ τὸν λόγον τοῦ

θεοῦ καὶ οἵτινες οὐ προσεκύνησαν τὸ

θηρίον οὐδὲ τὴν εἰκόνα αὐτοῦ καὶ οὐκ

ἔλαβον τὸ χάραγμα ἐπὶ τὸ μέτωπον καὶ ἐπὶ

τὴν χεῖρα αὐτῶν καὶ ἔζησαν καὶ

ἐβασίλευσαν μετὰ τοῦ Χριστοῦ χίλια ἔτη

decapitados194 por causa do testemunho de

Jesus e da palavra de Deus e todos195 que

natildeo adoraram a besta nem sua imagem e

natildeo receberam a marca dela na fronte e na

matildeo Viveram e reinaram com Cristo por

mil anos 5 οἱ λοιποὶ τῶν νεκρῶν οὐκ ἔζησαν ἄχρι

τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη αὕτη ἡ ἀνάστασις ἡ

πρώτη

5 Os demais mortos natildeo viveram ateacute que

terminasse os mil anos Esta eacute a primeira

ressurreiccedilatildeo196 6 μακάριος καὶ ἅγιος ὁ ἔχων μέρος ἐν τῇ

ἀναστάσει τῇ πρώτῃmiddot ἐπὶ τούτων ὁ

δεύτερος θάνατος οὐκ ἔχει ἐξουσίαν ἀλλ᾽

ἔσονται ἱερεῖς τοῦ θεοῦ καὶ τοῦ Χριστοῦ

καὶ βασιλεύσουσιν μετ᾽ αὐτοῦ [τὰ] χίλια

ἔτη

6 Bendito e santo o que tem parte na

primeira ressurreiccedilatildeo Sobre estes a

segunda morte197 natildeo tem poder poreacutem

seratildeo sacerdotes de Deus e de Cristo e

reinaratildeo com ele por mil anos

7 Καὶ ὅταν τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη λυθήσεται

ὁ Σατανᾶς ἐκ τῆς φυλακῆς αὐτοῦ

7 E quando concluir os mil anos seraacute solto

Satanaacutes da sua prisatildeo 8 καὶ ἐξελεύσεται πλανῆσαι τὰ ἔθνη τὰ ἐν

ταῖς τέσσαρσιν γωνίαις τῆς γῆς τὸν Γὼγ

καὶ Μαγώγ συναγαγεῖν αὐτοὺς εἰς τὸν

πόλεμον ὧν ὁ ἀριθμὸς αὐτῶν ὡς ἡ ἄμμος

τῆς θαλάσσης

8 E viraacute a enganar as naccedilotildees198 que estatildeo

nos quatro cantos da terra Gog e Magog199

e reuni-las para a guerra das quais o

nuacutemero eacute como a areia do mar

9 καὶ ἀνέβησαν ἐπὶ τὸ πλάτος τῆς γῆς καὶ

ἐκύκλευσαν τὴν παρεμβολὴν τῶν ἁγίων

9 E subiram200 entatildeo pela superfiacutecie da terra

e cercaram o acampamento dos santos e a

194 Literalmente ldquodegolados por um machadordquo Termo arcaizante jaacute que este tipo de supliacutecio usado na

Repuacuteblica Romana natildeo era comum nos tempos do Impeacuterio Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p

366 195 Alguns autores argumentam que o pronome relativo οἵτινες daria margem para dois grupos de exaltados (os

ressuscitados e os que natildeo adoraram a besta) Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 366-367

Acompanhamos entretanto o argumento de David Aune que entende a claacuteusula relativa como uma descriccedilatildeo

de um uacutenico grupo os martirizados A expressatildeo fornece as causas positivas para o martiacuterio (testemunho de

Jesus e da Palavra de Deus) e as negativas (natildeo adoraram a besta e natildeo receberam sua marca) Cf AUNE

David E Revelation 17-22 op cit p 1088-1089 196 Segundo este episoacutedio do Apocalipse apenas os maacutertires participam da primeira ressurreiccedilatildeo O livro de

Daniel localizou a ressurreiccedilatildeo dos mortos no iniacutecio do reino messiacircnico 4Esdras e 2Baruque a localizam no

final Aparentemente o Apocalipse harmonizou duas tradiccedilotildees diferentes afirmando duas ressurreiccedilotildees uma

no iniacutecio do reino milenar outra no final Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1090-1091 197 Segundo Aune a expressatildeo ldquosegunda morterdquo pode significar a exclusatildeo da ressurreiccedilatildeo do final dos tempos

ou a eterna danaccedilatildeo Ele sugere a segunda opccedilatildeo como mais plausiacutevel neste contexto da narrativa do

Apocalipse Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1093 198 As naccedilotildees aqui seduzidas oriundas dos quatro cantos da terra que precisam subir pela superfiacutecie para cercar

o acampamento dos santos parecem aludir a um exeacutercito de seres demoniacuteacos que estavam no submundo com

Satatilde Cf FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 106 POHL op cit p 236 199 Alusatildeo a Ezequiel 38-39 que vaticinou um ataque de naccedilotildees hostis aos habitantes da Palestina nos uacuteltimos

dias No Apocalipse entretanto Gog e Magog natildeo satildeo descriccedilotildees de povos ou naccedilotildees mas referecircncia

metafoacuterica ao exeacutercito demoniacuteaco de oposiccedilatildeo final Cf POHL op cit p 237 200 Haacute nos versiacuteculos 9 e 10 uma curiosa inconsistecircncia verbal Os verbos que descrevem a prisatildeo inicial de

Satatilde estatildeo no aoristo indicativo traduzidos normalmente pelo preteacuterito A partir do versiacuteculo 7 as claacuteusulas

temporais passam para o futuro (ldquoenganaraacute as naccedilotildeesrdquo ldquoreuniraacute para a guerrardquo) mas retornam para o aoristo

no relato do confronto final (ldquosubiram pela superfiacutecierdquo ldquocercaram o acampamentordquo ldquodesceu fogordquo etc)

Possivelmente isto tenha origem na jaacute mencionada desordenaccedilatildeo gramatical da passagem Cf MILLOS op

cit p 1213

73

καὶ τὴν πόλιν τὴν ἠγαπημένην καὶ κατέβη

πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e os

queimou 10 καὶ ὁ διάβολος ὁ πλανῶν αὐτοὺς ἐβλήθη

εἰς τὴν λίμνην τοῦ πυρὸς καὶ θείου ὅπου

καὶ τὸ θηρίον καὶ ὁ ψευδοπροφήτης καὶ

βασανισθήσονται ἡμέρας καὶ νυκτὸς εἰς

τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων

10 E o diabo o enganador deles foi jogado

para o lago201 de fogo e enxofre onde

tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta e

seratildeo atormentados dia e noite para todo o

sempre

O episoacutedio do milecircnio pode ser dividido em trecircs partes a prisatildeo do Dragatildeo

(versiacuteculos 1-3) os maacutertires ressuscitados (versiacuteculos 4-6) a condenaccedilatildeo do Dragatildeo

(versiacuteculos 7-10) Satildeo trecircs partes contudo apenas duas histoacuterias que se unem pela expressatildeo

temporal ldquomil anosrdquo (χίλια ἔτη) aqui narradas como parte da revelaccedilatildeo vertical ou seja

eventos que ocorreratildeo no futuro em relaccedilatildeo ao tempo da audiecircncia A narrativa do juiacutezo

sobre Satanaacutes segue do versiacuteculo 1 ao 3 e eacute retomada nos versiacuteculos 7-10 No meio dela estaacute

a narraccedilatildeo do reinado dos maacutertires202 Se narrada de forma linear sem a interrupccedilatildeo este

seria o episoacutedio da prisatildeo e destruiccedilatildeo do Dragatildeo

E vi um anjo descendo do ceacuteu tendo a chave do abismo e uma grande

corrente em suas matildeos E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente que eacute o

Diabo e Satanaacutes aprisionou-o por mil anos E lanccedilou-o para o abismo

fechou e selou o abismo para que natildeo enganasse mais as naccedilotildees ateacute que se

completasse os mil anos Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele seja

solto por pouco tempo E quando concluir os mil anos Satanaacutes seraacute solto

da sua prisatildeo E viraacute a enganar as naccedilotildees que estatildeo nos quatro cantos da

terra Gog e Magog e reuni-las para a guerra das quais o nuacutemero eacute como

a areia do mar E subiram entatildeo pela superfiacutecie da terra e cercaram o

acampamento dos santos e a cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e as

queimou E o diabo o enganador delas foi jogado para o lago de fogo e

enxofre onde tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta E seratildeo

atormentados dia e noite para todo o sempre

A prisatildeo e condenaccedilatildeo de Satanaacutes concluem a cena da vitoacuteria de Jesus sobre seus

adversaacuterios que aparece em Apocalipse 1911 como um cavaleiro montado sobre um cavalo

branco Aparentemente toda a seccedilatildeo posterior ao aparecimento do Jesus exaltado estaacute

estruturada segundo um esquema encontrado em Ezequiel203 Eacute possiacutevel relacionar por

201 O termo λίμνην pode significar lago tanque ou neste caso especiacutefico charco pacircntano ou lodaccedilal A

expressatildeo λίμνην τοῦ πυρὸς parece fazer referecircncia ao lugar conhecido como geena descrita em Mateus 522

como geenan tou puroj Era um vale que se estendia para fora da muralha sul de Jerusaleacutem conhecido tambeacutem

como Vale de Hinom local que servia nos tempos de Jesus como depoacutesito de lixo O portatildeo para o vale chegava

a ser chamado de Portatildeo do Esterco O lixo era constantemente incendiado fazendo do vale um espaccedilo de

fumaccedila e fedor Alguns judeus o tinham como o lugar mais asqueroso do mundo Daiacute a relaccedilatildeo com a descriccedilatildeo

do sofrimento escatoloacutegico ser feita com traccedilos do Vale de Hinom Cf POHL op cit p 219 202 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 107 203 ULFGARD Hakan Biblical and para-biblical origins of millennarianism Religiologiques Montreal n 20

p 25-49 1999 p 34

74

exemplo a ressurreiccedilatildeo dos maacutertires com o levantamento dos ossos secos de Ezequiel 37 o

confronto final de Satanaacutes com o ataque de Gog de Magog (Ezequiel 38)204 a nova

Jerusaleacutem de Apocalipse com o novo templo e a nova cidade de Ezequiel 40-48205

No interior desta longa cena de conquista dos adversaacuterios Satanaacutes eacute aprisionado

provisoriamente A noccedilatildeo de uma prisatildeo temporaacuteria para seres sobrenaturais natildeo era

desconhecida do Judaiacutesmo antigo O autor do Mito dos Vigilantes (1Enoque 1-36) em algum

momento do seacuteculo II antes da Era Comum apoacutes descrever a transgressatildeo dos vigilantes

celestiais narra o destino deles em duas versotildees Em 1Enoque 104-6

- Deus envia o anjo Rafael

- Azazel eacute amarrado por um anjo

- Azazel eacute lanccedilado na escuridatildeo e aprisionado para sempre

- o tempo do aprisionamento eacute descrito como o grande dia do julgamento

- Azazel eacute lanccedilado no fogo no grande dia do julgamento

Logo depois outra versatildeo do juiacutezo eacute narrada em 1Enoque 1011-13

- Deus envia o anjo Miguel

- o anjo amarra Semjaza e seus associados

- eles satildeo aprisionados sob a terra

- o periacuteodo de prisatildeo eacute limitado a 70 geraccedilotildees

- no dia do julgamento eles seratildeo lanccedilados no abismo de fogo

Esta narrativa dupla parece ser o resultado da fusatildeo de tradiccedilotildees que vinculavam a

presenccedila dos males no mundo a seres demoniacuteacos que receberam de Deus uma dupla

sentenccedila o aprisionamento em alguma regiatildeo do cosmos e a destruiccedilatildeo no final dos tempos

Nestas tradiccedilotildees judaicas os adversaacuterios sobrenaturais possuem nomes diferentes mas satildeo

condenados igualmente agrave prisatildeo enquanto aguardam a destruiccedilatildeo final (Jubileus 56 107-

11 2Enoque 72 2Apocalipse de Baruque 5613 Judas 6)

David Aune sugeriu que a base comum a essas tradiccedilotildees poderia ser uma releitura de

Isaias 2421-22 ldquoNaquele dia o Senhor castigaraacute no ceacuteu as hostes celestes e os reis da

terra na terra Seratildeo ajuntados como presos em masmorra e encerrados num caacutercere e

204 A passagem de Ezequiel 382 fala do rei Gog da terra de Magog Apocalipse entretanto nivelou as duas

expressotildees como se fossem dois reis ou dois povos Gog e Magog Esta apropriaccedilatildeo joanina do texto de

Ezequiel parece refletir a expectativa presente em alguns apocalipses antigos que o povo de Deus seria atacado

por um ajuntamento de forccedilas inimigas no final dos tempos Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p

371 205 Cf tambeacutem PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 350 POHL op cit p 235

75

castigados depois de muitos diasrdquo206 Na adaptaccedilatildeo joanina entretanto a histoacuteria do

aprisionamento dos seres demoniacuteacos aparece secionada em duas partes pois entre elas o

Apocalipse apresentou o reinado dos maacutertires exaltados (versiacuteculos 4-6)

Estes maacutertires aparecem em diversas passagens do Apocalipse Uma das mais

significativas eacute a cena do quinto selo (Apocalipse 69-11) Debaixo do altar estatildeo pessoas

que morreram por causa da palavra de Deus e do testemunho () Elas querem saber

quando eacute que o seu sangue seraacute vingado por Deus Como resposta ouvem uma espeacutecie de

enigma apocaliacuteptico ldquofoi-lhes dito que repousassem por mais um pouco de tempo ateacute que

se completasse o nuacutemero de seus companheiros e irmatildeos que iriam ser mortos como eles

foramrdquo (Apocalipse 611) O autor do Apocalipse argumenta que Deus vai trazer justiccedila

sobre todos os que mataram seus seguidores poreacutem antes eacute preciso que se complete uma

determinada cota de disciacutepulos que deveratildeo morrer O juiacutezo viraacute quando um nuacutemero

especiacutefico de pessoas tiver morrido da mesma forma como aqueles que jaacute estatildeo debaixo do

altar o foram

Joatildeo promete que estes maacutertires seratildeo recompensados por Deus mais do que os outros

disciacutepulos de Jesus Afinal somente eles ressuscitariam para reinar com Jesus na terra207

Esta expectativa jaacute aparecera bem no iniacutecio da segunda seccedilatildeo Quando o Cordeiro pegou o

livro selado os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais cantaram a canccedilatildeo ldquoDigno eacutes de tomar

o livro e de abrir-lhe os selos porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus

os que procedem de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e para o nosso Deus os constituiacuteste reino

e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo (Apocalipse 59-10) Na narrativa do Apocalipse o

milecircnio seria o cumprimento deste hino cantado no ceacuteu por figuras sobrenaturais

Segundo Aune a cena dos tronos em contexto escatoloacutegico eacute uma cena tiacutepica de

julgamento apesar de estar em estado fragmentaacuterio Afinal os maacutertires sentam em tronos

mas nenhum julgamento eacute descrito neste contexto Eles sentam para julgar todavia o

julgamento natildeo ocorre Tambeacutem natildeo haacute a identificaccedilatildeo de quem seraacute julgado Isso daacute agrave cena

o papel de exaltaccedilatildeo dos maacutertires em vez da descriccedilatildeo de algum ofiacutecio escatoloacutegico208

Neste mesmo sentido Fiorenza argumenta que Joatildeo descreve o reinado interino dos

maacutertires para garantir agrave sua audiecircncia que aqueles que morressem durante o confronto contra

as forccedilas romanas seriam exaltados no futuro como co-governantes com Cristo209 Ao indicar

206 AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1078 207 Idem p 1084 208 Idem p 1085 209 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 109

76

que os maacutertires receberatildeo um tipo de recompensa especial diferente de todos os outros a

cena dos maacutertires no trono desejava incentivar a participaccedilatildeo no martiacuterio

Para Joatildeo mais do que reis os maacutertires seriam juiacutezes e sacerdotes O episoacutedio do

milecircnio entretanto natildeo menciona a identidade de quem serviraacute aos reis de quem seraacute

julgado pelos juiacutezes ou de quem seraacute ministrado pelos sacerdotes Natildeo haacute ningueacutem para ser

condenado oprimido ou orientado porque segundo o profeta de Patmos todos os que

voltarem agrave vida no reino milenar seratildeo reis juiacutezes e sacerdotes

O milecircnio entatildeo como descrito pelo Apocalipse parece ser a junccedilatildeo de dois

episoacutedios nos quais a ecircnfase de um estaacute na destruiccedilatildeo dos inimigos de Deus e do outro na

exaltaccedilatildeo dos maacutertires

35 O reinado messiacircnico interino na terra

Aleacutem do Apocalipse duas outras obras judaicas igualmente produzidas no final do

seacuteculo I apresentam a expectativa de um reino messiacircnico provisoacuterio na terra 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque A primeira210 registrou

Pois eis que viraacute o tempo em que os sinais que tenho predito para vocecirc

aconteceratildeo a cidade que agora natildeo eacute vista apareceraacute e a terra que agora

estaacute escondida seraacute revelada E todo aquele que for libertado dos males que

eu anunciei veraacute as minhas maravilhas Porque meu filho o Messias seraacute

revelado junto com aqueles que estatildeo com ele e estes que permanecerem

regozijar-se-atildeo por quatrocentos anos E depois desses anos meu filho o

Messias morreraacute e todos os seres humanos E o mundo voltaraacute ao silecircncio

primordial por sete dias como foi nos primoacuterdios de modo que ningueacutem

seraacute deixado E depois de sete dias o mundo que ainda dormia seraacute

despertado e o que for corruptiacutevel pereceraacute (4Esdras 72631)211

Posteriormente a narrativa eacute complementada em 4Esdras 1232-34

[] este eacute o Messias que o Altiacutessimo guardou ateacute o fim dos dias que surgiraacute

da posteridade de Davi e viraacute e falaraacute para eles ele os denunciaraacute por seus

erros e por suas maldades e lanccedilaratildeo diante dele seus desprezos

Primeiramente ele os traraacute para julgamento diante de seu tribunal e

quando forem reprovados entatildeo ele os destruiraacute Mas ele livraraacute com

misericoacuterdia o remanescente do meu povo aqueles que estiverem salvos

210 4Esdras foi escrito em algum lugar da Palestina no periacuteodo posterior agrave guerra judaico-romana (66-70) Cf

COLLINS John J A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica uma introduccedilatildeo agrave literatura apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo

Paulus 2010 p 281 211 As citaccedilotildees de 4Esdras vem de METZGER B M The Fourth Book of Ezra In CHARLESWORTH

James H The Old Testament Pseudepigrapha New York Doubleday and Company Inc 1983 2v V 1 p

517-559

77

do meu lado ele os tornaraacute alegres ateacute o fim o dia do juiacutezo do qual falei

com vocecirc no iniacutecio

A outra obra 2Apocalipse de Baruque surgiu na mesma conjuntura posterior agrave

guerra na Judeacuteia possivelmente tambeacutem originada na Palestina Seu autor anocircnimo tratou

do futuro periacuteodo messiacircnico nos capiacutetulos 29-30 Segue o texto

Ele falou-me O que vai acontecer atingiraacute toda a terra dessa forma

experimentaacute-lo-atildeo todos os que estiverem em vida Mas naquele tempo eu

protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste paiacutes Uma

vez cumprido aquilo que deve acontecer nos periacuteodos do tempo o Messias

comeccedilaraacute a sua revelaccedilatildeo Tambeacutem Behemoth viraacute dos seus domiacutenios e

Leviatatilde se levantaraacute do mar os dois imensos monstros marinhos por mim

criados no quinto dia da Criaccedilatildeo e que reservo para aqueles dias eles

serviratildeo de alimento para todos os que sobreviverem Entatildeo a terra

produziraacute os seus frutos ao cecircntuplo numa cepa de videira haveraacute mil

ramos um ramo carregaraacute mil racimos e um racimo mil bagos e um bago

daraacute ateacute quarenta litros de vinho Os que sofreram fome comeratildeo

regiamente e a cada dia lhes estatildeo reservadas novas maravilhas Pois de

mim procederatildeo ventos que traratildeo todas as manhatildes o perfume de frutos

saborosos e faratildeo gotejar ao final do dia o orvalho salviacutefico Do alto cairaacute

de novo grande quantidade de manaacute dele comeratildeo eles naqueles anos por

haverem participado do final dos tempos Terminado o tempo vigente do

Messias ele voltaraacute de novo agrave gloacuteria do ceacuteu Entatildeo haveratildeo de ressuscitar

todos aqueles que outrora adormeceram na sua esperanccedila Naquele tempo

aconteceraacute que se abriratildeo as cacircmaras onde se demoram as almas dos

piedosos elas sairatildeo e todas essas numerosas almas como legiatildeo de um

soacute coraccedilatildeo apareceratildeo todas juntas abertamente As que foram as

primeiras alegrar-se-atildeo as que foram as uacuteltimas natildeo estaratildeo tristes Cada

uma delas sabe que foi chegado o tempo previsto como o fim de todos os

tempos As almas dos pecadores perder-se-atildeo em anguacutestia ao

presenciarem tudo isso Pois elas jaacute sabem que o tormento as atingiraacute e

que a hora da sua condenaccedilatildeo eacute chegada212

O autor anocircnimo retoma o assunto mais agrave frente ao descrever a prisatildeo e destruiccedilatildeo

dos adversaacuterios do Messias (2Apocalipse de Baruque 397-404) Apesar de algumas

diferenccedilas em ecircnfase Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e 2Apocalipse de Baruque descrevem o

aparecimento de uma figura messiacircnica no fim dos tempos para inaugurar um periacuteodo

interino de becircnccedilatildeo especial para o povo de Deus na terra antes do juiacutezo final Entretanto a

funccedilatildeo e o papel do messias variam entre os textos Segundo 4Esdras o messias avanccedilaraacute

sem armas contra seus inimigos e os venceraacute com um rio de fogo que sairaacute de sua boca

(4Esdras 135) Depois de quatrocentos anos de tranquilidade ele e todos os seus seguidores

morreratildeo durante uma semana de silecircncio primordial 2Apocalipse de Baruque por sua vez

212 As citaccedilotildees de 2Apocalipse de Baruque vecircm de TRICCA Maria Helena de Oliveira Apoacutecrifos os proscritos

da Biacuteblia Satildeo Paulo Mercuryo 1995 4v V III p 303-348

78

descreve o messias trazendo vinganccedila militar com um governo limitado no tempo Jaacute no

Apocalipse a figura messiacircnica surge sobre um cavalo branco derrota seus adversaacuterios e

reina com os maacutertires ressuscitados durante o periacuteodo milenar da prisatildeo de Satanaacutes

Apesar das divergecircncias nos detalhes as trecircs obras possuem a mesma perspectiva de

um interluacutedio de felicidade no interior da histoacuteria antes do final dos tempos Segundo

Kovacs e Rowland isto sugeriria que esta expectativa de dois estaacutegios escatoloacutegicos era

comum entre grupos judaicos da Palestina no periacuteodo entre as duas guerras judaicas contra

os romanos (66-136)213 Estes autores ainda argumentam que o surgimento do montanismo

na metade do segundo seacuteculo poderia ser indiacutecio de que a espera por um reino messiacircnico

terreno estava bem espalhada pela Aacutesia menor e natildeo somente pela proviacutencia da Aacutesia214

Teriacuteamos entatildeo um fenocircmeno difundido pelas regiotildees da Palestina Siacuteria e Aacutesia menor pelo

menos no periacuteodo em questatildeo resultado da fusatildeo de antigas noccedilotildees judaicas o messianismo

a reflexatildeo apocaliacuteptica sobre as etapas da histoacuteria o retorno ao paraiacuteso215 Estas noccedilotildees

surgiram em contextos histoacutericos e literaacuterios distintos mas foram reunidas para formar o

milenarismo como encontrado no Apocalipse de Joatildeo e parcialmente em 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque

A primeira noccedilatildeo a crenccedila numa figura messiacircnica que promoveria a restauraccedilatildeo do

povo de Deus tem relaccedilatildeo histoacuterica com as diversas aspiraccedilotildees judaicas de restauraccedilatildeo de

Israel posteriores ao domiacutenio helenista da Palestina (seacuteculo IV AEC)216 Alguns grupos

combinavam passagens das Escrituras judaicas para produzir a expectativa de uma

restauraccedilatildeo poliacutetica de Israel na terra sob a lideranccedila de uma figura ungida por Deus217

O segundo elemento a reflexatildeo sobre as etapas da histoacuteria reflete o interesse de

grupos apocaliacutepticos judaicos em compreender o desenvolvimento da histoacuteria O fenocircmeno

pode ser encontrado particularmente nas tradiccedilotildees de Enoque e de Daniel O texto chamado

213 KOVACS ROWLAND op cit p 210 Leva-se em conta que o Apocalipse surgido na proviacutencia da Aacutesia

teve um autor que emigrou da Palestina durante a guerra de 66-70 214 Idem p 211 215 A sugestatildeo da fusatildeo destas trecircs noccedilotildees vem de ULFGARD op cit p 25-49 216 Charlesworth prefere colocar como ponto de partida as guerras dos macabeus do seacuteculo II AEC Cf

CHARLESWORTH James H From messianology to christology problems and prospects In

CHARLESWORTH James H (ed) The Messiah developments in earliest Judaism and Christianity

Minneapolis Fortress Press 1987 p 3-35 p 3 217 Desroche define o messianismo em termos restritos como o conjunto de crenccedilas judaicas relacionadas com

um ungido de Deus proclamado no antigo Testamento Num sentido mais largo poreacutem designa ensinamentos

ou movimentos que prometem a chegada de um enviado divino para trazer ordem ao mundo com justiccedila e paz

edecircmicas Neste uacuteltimo sentido o fenocircmeno ultrapassa as tradiccedilotildees religiosas judaico-cristatildes Cf DESROCHE

Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo

Paulo 2000 p 22

79

Apocalipse das Semanas (1Enoque 931-10 9112-17) eacute um exemplo deste fenocircmeno

quando o passado e o futuro aparecem divididos em dez semanas O autor subjacente a este

antigo apocalipse escreve da perspectiva da seacutetima semana esperando a restauraccedilatildeo do povo

de Deus para a oitava semana

Altas expectativas escatoloacutegicas originadas de uma conjuntura de deterioraccedilatildeo de

condiccedilotildees poliacuteticas e sociais agraves vezes de perseguiccedilatildeo e sofrimento podem promover nesta

reflexatildeo sobre os periacuteodos da histoacuteria a ideia de que se vive perto do fim do mundo Eacute assim

que esta noccedilatildeo aparece nos apocalipses de Daniel 7-12 produzidos no contexto da Guerra

dos Macabeus (167-163 AEC) Daniel 9 por exemplo faz uma releitura de Jeremias

(Jeremias 2511 2910) acerca da desolaccedilatildeo de Jerusaleacutem por 70 anos Os setentas anos satildeo

interpretados como semanas de anos O apocalipse de Daniel garante que faltam poucas

destas semanas para o fim dos tempos

Estas antigas tradiccedilotildees judaicas representadas por 1Enoque e Daniel exemplificam o

interesse pela periodizaccedilatildeo da histoacuteria mundial e manifestam a convicccedilatildeo de seus autores

provavelmente compartilhada com a comunidade destinataacuteria do texto de que eles viviam a

uacuteltima e crucial fase da histoacuteria antes da intervenccedilatildeo final de Deus que traraacute a salvaccedilatildeo e o

julgamento218 A histoacuteria eacute imaginada linearmente como uma sucessatildeo de tempos

determinados de adversidades antes que venham dias de felicidade219

A terceira noccedilatildeo eacute o retorno agraves condiccedilotildees paradisiacuteacas quando o paraiacuteso dos tempos

primordiais (urzeit) seria restabelecido no fim dos tempos (endzeit) Os benefiacutecios esperados

seriam aqueles que o ser humano experimentara em suas origens220 Esta ideia foi

desenvolvida nos textos apocaliacutepticos por meio de vaticiacutenios acerca da restauraccedilatildeo da

prosperidade da criaccedilatildeo da fertilidade e da paz no mundo 1Enoque 10-11 por exemplo ao

falar da queda dos vigilantes combina estruturaccedilatildeo da histoacuteria com a expectativa de um

retorno agraves condiccedilotildees do paraiacuteso na era da salvaccedilatildeo Eacute possiacutevel notar que este texto tem

elementos que seratildeo apropriados de vaacuterias maneiras posteriormente como a fertilidade da

terra a destruiccedilatildeo das forccedilas demoniacuteacas e os justos ressuscitados Segue o texto

E a Raphael disse o Senhor Amarra Azazel de matildeos e peacutes e lanccedila-o nas

trevas Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo Deposita

218 ULFGARD op cit p 44 219 Frankfurt sugeriu que tal conceito de histoacuteria eacute dependente de tradiccedilotildees zoroastrianas que apresentavam a

histoacuteria dividida em periacuteodos alternados de domiacutenio entre as figuras divinas de Ahura Mazda e Angra Mainyu

que culminariam no fim na vitoacuteria do bem sobre o mal Cf FRANKFURTER David Early Christian

Apocalypticism literature and social world In COLLINS John J (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism

the origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity New York Continuum 1999 p 415-456 p 441 220 PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 353

80

pedras aacutesperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridatildeo Deixa-

o permanecer laacute para sempre e veda-lhe o rosto para que natildeo veja a luz

No dia do grande Juiacutezo ele deveraacute ser arremessado ao tremedal de fogo

Purifica a terra corrompida pelos Anjos e anuncia-lhe a Salvaccedilatildeo para

que terminem os seus sofrimentos e natildeo se percam todos os filhos dos

homens em virtude das coisas secretas que os Guardiotildees revelaram e

ensinaram aos seus filhos Toda a terra estaacute corrompida por causa das obras

transmitidas por Azazel A ele atribui todos os pecados E a Gabriel disse

o Senhor Levanta a guerra entre os bastardos os monstros os filhos das

prostituiacutedas e extirpa-os do meio dos homens juntamente com todos os

filhos dos Guardiotildees Instiga-os uns contra os outros para que na batalha

se eliminem mutuamente Natildeo se prolongue por mais tempo a sua vida

Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deveraacute ser atendido eles

esperam ter vida para sempre e que cada um viva quinhentos anos A

Michael disse o Senhor Vai e potildee a ferros Semjaza e os seus sequazes que

se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as

suas impurezas Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente

e quando os pais tiverem presenciado o extermiacutenio dos seus amados filhos

amarra-os por sele geraccedilotildees nos vales da terra ateacute o dia do seu julgamento

ateacute o dia do Juiacutezo Final Nesse dia eles seratildeo atirados ao abismo de fogo

na reclusatildeo e no tormento onde ficaratildeo encerrados para todo o sempre E

todo aquele que for sentenciado agrave condenaccedilatildeo eterna seja juntado a eles e

seja com eles mantido em correntes ateacute o fim de todas as geraccedilotildees

Extermina os espiacuteritos de todos os monstros juntamente com todos os

filhos dos Guardiotildees porque eles maltrataram os homens Purga a terra de

todo ato de violecircncia Toda obra maacute deve ser eliminada Que floresccedila a

aacutervore da Verdade e da Justiccedila O sinal da becircnccedilatildeo seraacute o seguinte as obras

da Verdade e da Justiccedila sempre seratildeo semeadas na alegria verdadeira

Entatildeo floresceratildeo os justos e haveratildeo de viver ateacute gerarem mil filhos e

completaratildeo em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice Entatildeo

toda a terra seraacute cultivada com a Justiccedila inteiramente plantada de aacutervores

e cheia de becircnccedilatildeo Toda espeacutecie de aacutervore boa seraacute plantada sobre ela

igualmente videiras e as videiras produziratildeo uvas em abundacircncia De

todas as sementes que forem semeadas uma medida produziraacute mil outras

e uma medida de olivas daraacute dez cubas de oacuteleo Purifica a terra de todo ato

de violecircncia de toda injusticcedila de todo pecado e impiedade elimina toda a

impudiciacutecia que sobre ela se pratica Todos os homens seratildeo justos todos

os povos me prestaratildeo honra e gloacuteria e todos me adoraratildeo A terra entatildeo

ficaraacute expurgada de toda maldade de todo pecado de toda praga de todo

tormento e nunca mais mandarei sobre ela um diluacutevio ao longo de todas

as geraccedilotildees por toda a eternidade Naqueles dias eu abrirei as cacircmaras dos

depoacutesitos da becircnccedilatildeo do ceacuteu e deixaacute-las-ei derramar-se sobre a terra sobre

as obras e os trabalhos dos filhos dos homens Entatildeo a Verdade e a Paz

juntar-se-atildeo por todos os dias da terra e por todas as geraccedilotildees dos homens

(1Enoque 1012-112)221

Assim a expectativa do reino messiacircnico interino na histoacuteria parece ser uma

combinaccedilatildeo de antigas noccedilotildees sobre o messias o retorno ao paraiacuteso e a periodizaccedilatildeo dos

221 A citaccedilatildeo de 1Enoque veio de TRICCA op cit p 117-202

81

tempos 4Esdras falou em quatrocentos anos de duraccedilatildeo o Apocalipse de Joatildeo registrou mil

anos

Ulfgard sugeriu que o caminho para compreender o tempo do reino messiacircnico na

terra estaria no uso tipoloacutegico do Salmo 9015 ldquoAlegra-nos pelos dias em que nos afligiste

e pelos anos em que vimos o malrdquo Esta era uma foacutermula usada por grupos judaicos para

calcular os dias do messias Deus iria recompensar o povo na terra pelo tempo em que ele

foi maltratado sobre ela Alguns propunham 40 anos para fazer frente ao tempo que o povo

passou no deserto antes de entrar em Canaatilde Outros sugeriam quatrocentos anos

correspondente ao periacuteodo de permanecircncia no Egito A sugestatildeo dos mil anos entretanto

poderia ter relaccedilatildeo com o versiacuteculo 4 deste mesmo Salmo 90 ldquoporque mil anos aos teus

olhos satildeo como o dia de ontem que passou e como uma vigiacutelia de noiterdquo222 De qualquer

forma tanto em 4Esdras quanto no Apocalipse de Joatildeo as expressotildees temporais natildeo satildeo o

elemento principal Afinal em ambas as obras o governo messiacircnico na terra tem um fim

A ecircnfase dos autores destes textos estaacute na expectativa de que a terra experimentaraacute ainda

dentro da histoacuteria um uacuteltimo periacuteodo de paz

Dentro do contexto narrativo maior que comeccedila em Apocalipse 1911 e conclui em

225 Joatildeo inseriu a expectativa do reino messiacircnico na terra quando o Jesus glorificado

retornaria para vencer seus inimigos ressuscitaria seus seguidores martirizados e viveria

com eles por um periacuteodo de mil anos Tomamos esta expectativa como a objetivaccedilatildeo de um

conjunto de representaccedilotildees natildeo apenas derivado de praacuteticas sociais mas tambeacutem promotor

de outras tantas Enquanto tal o milecircnio pode ser visto como uma arma nas lutas de

representaccedilotildees entre certas comunidades religiosas do final do primeiro seacuteculo a resposta

de um liacuteder religioso agraves praacuteticas plurais do movimento de Jesus diante das conjunturas

histoacutericas da proviacutencia romana da Aacutesia O que buscamos nos paraacutegrafos a seguir satildeo fatores

ou condiccedilotildees de emergecircncia para este determinado sistema de representaccedilotildees

222 ULFGARD op cit p 49 Prigent por sua vez sugere que o tempo messiacircnico poderia ser uma alusatildeo a

Jubileus 430 Aqui a morte de Adatildeo com 930 anos eacute entendida como consequecircncia dele natildeo ter alcanccedilado a

idade perfeita de 1000 anos Aleacutem do mais seria cumprimento da profecia de Genesis 217 que declarou que

no dia que ele comesse da arvore ele morreria Nestes termos Apocalipse 204-6 simbolizaria a restauraccedilatildeo da

vida humana ideal nos moldes do paraiacuteso na era messiacircnica No reino messiacircnico as consequecircncias do pecado

de Adatildeo satildeo canceladas Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 358

82

36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia

Jaacute tratamos no capiacutetulo anterior a respeito dos conflitos de lideranccedila do movimento

de Jesus no periacuteodo do Apocalipse numa fase de consolidaccedilatildeo das comunidades dentro da

sociedade romana e de construccedilatildeo de uma identidade separada do Judaiacutesmo Aparentemente

o tema da prisatildeo e destruiccedilatildeo de Satanaacutes223 no interior do complexo narrativo da destruiccedilatildeo

dos adversaacuterios do Jesus glorificado pode ter relaccedilatildeo justamente com essa conjuntura

conflitiva

David Frankfurt analisou vaacuterios apocalipses judaicos e cristatildeos no periacuteodo entre 200

anos antes e 200 depois da Era Comum tentando construir uma tipologia geograacutefica dos

textos apocaliacutepticos224 Segundo ele o milenarismo sectaacuterio eacute um traccedilo significativo do

apocalipsismo asiaacutetico em funccedilatildeo da atuaccedilatildeo privilegiada de figuras profeacuteticas com

performances orais itinerantes a necessidade de forte legitimaccedilatildeo carismaacutetica e o

envolvimento eventual em conflitos de lideranccedila Ele o denomina como ldquomilenarismo

sectaacuteriordquo porque o seu proponente se entende representar natildeo a totalidade da sociedade ou

mesmo do seu grupo social mas uma parcela dentro dele As demais pessoas e grupos satildeo

vistos como adversaacuterios e destinados agrave destruiccedilatildeo escatoloacutegica Este milenarismo eacute

geralmente centrado em figuras profeacuteticas e manifesta algum tipo de luta pela lideranccedila nas

comunidades quando liacutederes carismaacuteticos usam a estigmatizaccedilatildeo para deslegitimar os

adversaacuterios e afirmar a proacutepria autoridade225 Neste contexto de disputa como Elaine Pagels

tentou demonstrar a oposiccedilatildeo eacute frequentemente associada a seres demoniacuteacos e aos

monstros do caos226

O bispo Inaacutecio de Antioquia ao passar pela Aacutesia menor registrou em uma carta uma

justaposiccedilatildeo entre Cristianismo e Judaiacutesmo (Carta aos Magneacutesios X) Ele parece evidenciar

assim que pelo menos alguns seguidores de Jesus naquela regiatildeo e naquele periacuteodo tinham

a percepccedilatildeo de que faziam parte de um movimento independente e mesmo superior ao

Judaiacutesmo Esse debate sobre a identidade das comunidades poderia ser ampliado ainda pelas

distinccedilotildees jaacute feitas pelos magistrados romanos (como as cartas de Pliacutenio jaacute mencionadas) e

223 Como jaacute argumentamos o episoacutedio do milecircnio relata duas narrativas ligadas entre si pelo marco temporal

(mil anos) A narrativa da prisatildeo de Satanaacutes faz parte de uma cena maior que descreve a vitoacuteria do Jesus

glorificado sobre seus adversaacuterios A outra narrativa descreve a exaltaccedilatildeo dos maacutertires 224 FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit 225 Idem 435 226 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na

sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996

83

por pressotildees de sinagogas locais que natildeo queriam ser identificadas com as igrejas227

Possivelmente pouco mais de uma deacutecada antes de Inaacutecio quando as igrejas da Aacutesia jaacute

viviam um momento de instabilidade identitaacuteria os projetos distintos das lideranccedilas geraram

uma crise de legitimidade e a consequente percepccedilatildeo de que o mal poderia vir de dentro da

comunidade

A pequena obra canocircnica conhecida como 3Joatildeo entre os anos 90-110228 registra

um embate entre seu autor anocircnimo e um liacuteder adversaacuterio conhecido como Dioacutetrefes

ldquoEscrevi alguma coisa agrave igreja mas Dioacutetrefes que gosta de exercer a primazia entre eles

natildeo nos daacute acolhidardquo (3Joatildeo 19) Situaccedilotildees como essa geravam respostas diferentes para os

mesmos problemas entre os liacutederes das igrejas Natildeo bastava a um profeta dar a orientaccedilatildeo

para a comunidade jaacute que ele precisava tambeacutem atacar quem divergia de seu

posicionamento Este senso de mal interno foi trabalhado por Joatildeo de duas maneiras Ele

desejava purgar a comunidade de membros que dele divergiam vinculando-os a adversaacuterios

externos da comunidade (membros de sinagogas locais e magistrados romanos) Ao mesmo

tempo ele projeta o conflito para o mundo celestial indicando laccedilos entre seus desafetos e

figuras demoniacuteacas tradicionais como Satatilde229

Este parece ser o caso da polecircmica contra ldquoJezabelrdquo no Apocalipse (Apocalipse 218-

29) A mulher assim intitulada por Joatildeo era uma das liacutederes da comunidade de disciacutepulos de

Tiatira As acusaccedilotildees contra ela indicam que o cerne do conflito estava em aspectos sociais

ldquoJezabelrdquo defendia o engajamento com a sociedade maior e Joatildeo recomendava o

afastamento na direccedilatildeo de um gueto religioso Em termos religiosos eacute possiacutevel que Jezabel

possuiacutesse uma vantagem sobre o profeta de Patmos jaacute que ela tinha amparo no ensino que

o apoacutestolo Paulo deixara trinta anos antes para as igrejas da regiatildeo230 Como argumenta Duff

uma das estrateacutegias de Joatildeo neste confronto foi conectar sua rival com Babilocircnia e por

implicaccedilatildeo com Satatilde231 Em escala maior os membros do movimento de Jesus que Joatildeo

227 Uma evidecircncia neste sentido pode ser o uso do termo ldquominimrdquo para descrever os membros do movimento

de Jesus em maldiccedilotildees pronunciadas em sinagogas em periacuteodo tatildeo recuado quanto 80-85 Para que pudesse ser

disseminada por diversas comunidades judaicas uma maldiccedilatildeo foi inserida entre as 18 becircnccedilatildeos conhecidas

como ldquobirkat-hamminimrdquo que dizia ldquoQue os nosrim (nazarenos) e os minim (hereges) morram subitamente

e sejam excluiacutedos do livro da vida para que natildeo sejam ali recordados juntamente com os justos Bendito sejas

Tu oacute Senhor que abaixas os orgulhososrdquo Cf BAGATTI Bellarmino A igreja da circuncisatildeo histoacuteria e

arqueologia dos judeu-cristatildeos Petroacutepolis Vozes 1975 p 44 228 KUumlMMEL op cit p 593 229 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 230 Idem p 71 231 Idem p 72

84

considerava desviantes passaram a ser rotulados como chamou Pagels de ldquoagentes secretosrdquo

de forccedilas demoniacuteacas sobrenaturais232

Portanto Joatildeo natildeo demoniza apenas a sociedade romana em sua manifestaccedilatildeo

asiaacutetica ou o Impeacuterio na figura das bestas de Apocalipse 13 Ele tambeacutem entende que

mesmo dentro das igrejas existiam aliados de Satanaacutes os ldquoinimigos iacutentimosrdquo233 Este tipo de

perspectiva poderia explicar o grande espaccedilo dado agraves descriccedilotildees dos poderes demoniacuteacos no

Apocalipse bem como a necessidade de um milecircnio que tem como pano de fundo a

destruiccedilatildeo destas mesmas forccedilas de oposiccedilatildeo

Um reino milenar precedido pelo sangue dos adversaacuterios pode refletir entatildeo um

contexto social cheio de tensotildees dentro das proacuteprias igrejas (divergecircncias sobre a identidade

do movimento) entre as igrejas e grupos judaicos (hostilidade contra sinagogas locais) entre

as comunidades de Jesus e a sociedade romana (demandas por acomodaccedilatildeo cultural) e entre

os seguidores de Jesus e o Impeacuterio (interaccedilatildeo entre religiatildeo sociedade e poliacutetica)234

Nosso argumento eacute que a situaccedilatildeo das comunidades envolvidas em distuacuterbios

identitaacuterios com sinagogas locais e em conflitos de lideranccedila acabou se tornando um fator

plausiacutevel no surgimento do milecircnio do Apocalipse ao provocar a expectativa de um tempo

em que todos os inimigos internos e externos seriam destruiacutedos violentamente

Um segundo aspecto frequentemente sugerido pelos autores eacute a oposiccedilatildeo de Joatildeo a

Roma235 A forma como o Apocalipse ataca a sociedade romana o coloca ao lado de outros

grupos judaicos anti-romanos posteriores ao conflito que terminou com a destruiccedilatildeo do

templo e da cidade de Jerusaleacutem (66-70) como os zelotes da Palestina236 Nestes grupos e

movimentos manifestou-se a perspectiva criacutetica de que o Impeacuterio Romano era incompatiacutevel

com o reino de Deus frequentemente traduzida por uma forte rejeiccedilatildeo dos siacutembolos e

232 PAGELS Elaine H The Social History of Satan part three John of Patmos and Ignatius of Antiochi

Contrasting Visions of Gods People Harvard Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006

p 489 233 Idem p 494 234 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The

Westminster Press 1984 p 84-99 SILVA David A de The social setting of the Revelation to John conflicts

within fears without Westminster Theological Journal Philadelfia n 54 p 273-302 1992 p 287 235 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In

BARR David L The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society

of Biblical Literature 2006 p 243-269 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de

Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 MESTER Carlos e OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano

e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n

69 p 72-82 2001 PAGELS Elaine Revelationshellip op cit 236 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p

213

85

imagens do poder romano entre eles o culto imperial Outros fatores ainda poderiam ter

atuado para produzir esta oposiccedilatildeo como expectativas religiosas de um Israel independente

de poderes estrangeiros ou medidas financeiras dos procuradores romanos237

De qualquer forma Pagels historiadora da religiatildeo chamou o Apocalipse de

ldquoliteratura de guerrardquo238 porque Joatildeo teria saiacutedo da Judeacuteia sua terra natal logo apoacutes

testemunhar o iniacutecio do confronto de seus conterracircneos judeus contra as forccedilas romanas em

66 Mesmo ausente ele pode ter ouvido falar dos 60 mil soldados romanos que cercaram

Jerusaleacutem e destruiacuteram a cidade Quando finalmente o cerco terminou eles a invadiram e a

deixaram em ruiacutenas O templo judaico que terminara de ser reformado poucos anos antes

foi destruiacutedo junto com a cidade O responsaacutevel inicial pelo cerco o general Vespasiano

acabou como o Imperador de Roma No tempo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse era

seu filho Domiciano que dirigia o Impeacuterio O impacto da destruiccedilatildeo do Templo e de

Jerusaleacutem foi significativo para diversos setores do Judaismo mas teve um impulso

particular em Joatildeo e pode ser considerado mesmo como ponto de partida para sua oposiccedilatildeo

a Roma

Para o Apocalipse entatildeo o Impeacuterio era um peso opressor que deveria ser eliminado

antes que o mundo viesse a conhecer a justiccedila Seu milecircnio pode ser visto como a

manifestaccedilatildeo do desejo pelo fim da ldquoRoma eternardquo Por isso como em outros apocalipses

judaicos a histoacuteria no Apocalipse eacute uma sequecircncia de poderes Aquele era o tempo de Roma

mas ela iria passar para ser sucedida pelo reino milenar do Messias Este ldquooacutediordquo pela

sociedade do presente histoacuterico parece ser assim mais um fator na promoccedilatildeo da expectativa

milenarista de Joatildeo de que um novo reino se levantaria em breve para substituir o atual

O milecircnio de Joatildeo o futuro reino do Messias expressa a condenaccedilatildeo joanina da

presente ordem romana Nos termos de John Collins em nenhum outro lugar a queda dos

poderosos eacute imaginada com tal alegria como neste apocalipse cristatildeo onde um anjo de peacute

sobre o sol convida os paacutessaros a comer a carne dos reis dos capitatildees e dos poderosos

(Apocalipse 1918)rdquo239

237 Uma anaacutelise dos conflitos entre judeus e romanos no seacuteculo I pode ser encontrada em GOODMAN Martin

Rome and Jerusalem the clash of ancient civilizations London Pinguin Books 2007 Especificamente sobre

a guerra de 66-70 cf REICKE Bo Histoacuteria do tempo do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 1996 p 282-

294 238 PAGELS Elaine Revelations op cit p 7 239 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica op cit p 18

86

Outro fator de emergecircncia do milecircnio joanino pode ter relaccedilatildeo com a situaccedilatildeo

perigosa de vida dos membros da comunidade de Jesus240 com a jaacute mencionada memoacuteria de

mortes violentas de disciacutepulos na guerra judaico-romana e na crise nerodiana da deacutecada de

60 e com a crucificaccedilatildeo de Jesus Isso parece estar subjacente agrave representaccedilatildeo dos maacutertires

no episoacutedio do milecircnio Afinal mesmo que natildeo haja evidecircncias de uma perseguiccedilatildeo e morte

generalizada dos membros das igrejas no periacuteodo do Apocalipse e o livro faccedila referecircncia a

apenas uma morte (Apocalipse 213) o milecircnio gira em torno dos maacutertires

O contexto mais amplo do aparecimento dos apocalipses judaicos foi de rejeiccedilatildeo ao

domiacutenio pagatildeo241 A resistecircncia poderia vir em forma ativa como a revolta dos macabeus

ou em forma passiva como a elaborada nos apocalipses de Daniel 7-12 no qual se anseia

pela destruiccedilatildeo dos poderes estrangeiros por forccedilas sobrenaturais mas sem qualquer

participaccedilatildeo humana no confronto Um tipo de resistecircncia intermediaacuteria envolve a

expectativa de sinergismo entre forccedilas divinas e humanas na destruiccedilatildeo escatoloacutegica dos

adversaacuterios como aparece na frase de Assunccedilatildeo de Moiseacutes ldquonosso sangue seraacute vingado pelo

Senhorrdquo (97) Esperava-se que a morte voluntaacuteria do judeu piedoso provocaria a vinganccedila

de Deus242 Eacute neste sentido que o Apocalipse descreve um nuacutemero fixado de maacutertires que

devem encontrar a morte antes que chegue o fim

Joatildeo advoga uma ruptura das comunidades de Jesus com a sociedade romana o que

na sua oacutetica provocaria a perseguiccedilatildeo e morte dos membros das igrejas Contudo seria

justamente essa perseguiccedilatildeo que ao promover o martiacuterio dos disciacutepulos iria apressar a

chegada do reino messiacircnico de Jesus243 O milecircnio assim pode ser visto como uma

propaganda martiroloacutegica Afinal os maacutertires satildeo os mais abenccediloados seguidores de Jesus e

as consequecircncias de seus atos continuam mesmo apoacutes suas mortes Nos termos do

Apocalipse ldquoFelizes os mortos que desde agora morrem no Senhor Sim diz o Espiacuterito

para que descansem das suas fadigas pois as suas obras os acompanhamrdquo (Apocalipse

1413)

240 A correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano na proviacutencia vizinha alguns anos apoacutes o Apocalipse pode ser

evidecircncia de que as comunidades jaacute corriam risco no final do seacuteculo I 241 Esta anaacutelise da relaccedilatildeo entre Apocalipse e poliacutetica pode ser encontrada em COLLINS Adela Yarbro The

political perspective of the Revelation to John Journal of Biblical Literature Atlanta v 96 n 2 p 241-256

1977 242 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p

209 243 Frankfurt descreve o periacuteodo entre a produccedilatildeo do evangelho de Marcos e o Apocalipse de Joatildeo (70-100)

como um periacuteodo de ldquofasciacutenio com o martiacuterio e a necessidade de imaginar a perseguiccedilatildeordquo entre algumas igrejas

Cf FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit p 436

87

O tema da morte violenta domina muitas visotildees de Joatildeo De vaacuterias formas forccedilas

demoniacuteacas ameaccedilam o movimento de Jesus a besta que persegue as duas testemunhas

(Apocalipse 111-13) o Dragatildeo que persegue a Mulher e sua semente (Apocalipse 121-17)

as bestas do mar e da terra que perseguem os ldquosantosrdquo (Apocalipse 131-1412) a Babilocircnia

que persegue as testemunhas de Jesus (Apocalipse 171-195)244

Eacute neste contexto que se entende a memoacuteria da crucificaccedilatildeo de Jesus Joatildeo vecirc paralelos

entre a situaccedilatildeo dos fieacuteis e do fundador do movimento e com isso constroacutei uma narrativa

que idealiza a imitaccedilatildeo de Cristo atraveacutes do sofrimento e martiacuterio Um significativo texto

neste sentido eacute Apocalipse 1210-12 onde os santos imitam Cristo vencendo o Dragatildeo pelo

sangue do Cordeiro (ldquoτὸ αἷμα τοῦ ἀρνίουrdquo) e pela palavra do testemunho (ldquoδιὰ τὸν λόγον τῆς

μαρτυρίας αὐτῶνrdquo) porque natildeo amaram a proacutepria vida mesmo diante da morte (ldquoοὐκ ἠγάπησαν

τὴν ψυχὴν αὐτῶν ἄχρι θανάτουrdquo) Segundo essa formulaccedilatildeo joanina a vitoacuteria sobre os poderes

demoniacuteacos estaacute ligada diretamente agrave morte (de Jesus e dos disciacutepulos) Para Thompson esta

identificaccedilatildeo com ldquoo Cordeiro crucificadordquo (ldquoἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένονrdquo - Apocalipse

56) tinha como objetivo promover uma especiacutefica identidade no fiel e suportar

determinados comportamentos245

Este imaginaacuterio de tribulaccedilatildeo funciona independente das experiecircncias concretas de

perseguiccedilatildeo das comunidades de disciacutepulos jaacute que deriva da construccedilatildeo de viacutenculos com

traumas no passado do movimento (a morte de Jesus as perseguiccedilotildees de Nero em Roma as

guerras na Judeacuteia a morte de Antipas) Assim a memoacuteria de mortes passadas e a expectativa

de muitas outras pode ser considerado mais um fator para o surgimento do milecircnio sectaacuterio

de Joatildeo ao aguardar a participaccedilatildeo seletiva de um grupo especial de fieacuteis os martirizados

no reino do Jesus exaltado246

Assim diante de fatores como estes entatildeo apontados a resposta de Joatildeo veio na

forma de apropriaccedilatildeo de tradiccedilotildees apocaliacutepticas a respeito do messias da periodizaccedilatildeo da

histoacuteria e do retorno ao paraiacuteso e da construccedilatildeo de um conjunto de representaccedilotildees

milenaristas que convidava ao levantamento dos muros da comunidade a ruptura sectaacuteria

244 THOMPSON Leonard A sociological analysis of tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 36 p 147-174 1986 p 148 245 Idem p 170 246 Em Daniel 123 tambeacutem apenas um grupo especial de fieacuteis os saacutebios passaria pela ressurreiccedilatildeo Cf

COLLINS John J Danielhellip op cit p 103

88

com membros divergentes a espera ansiosa pelo martiacuterio e finalmente o governo vitorioso

dos maacutertires durante o milecircnio

Existiam outros liacutederes como a liacuteder estigmatizada Jezabel (Apocalipse 220) que

propunham praacuteticas diferentes por entenderem que o relacionamento com a sociedade era

necessaacuterio para a sobrevivecircncia da comunidade247 Para estes a sociedade romana era o

espaccedilo de sobrevivecircncia e natildeo do confronto Mesmo que as categorias propostas por Joatildeo

tenham sido eventualmente abraccediladas em subsequentes apropriaccedilotildees sectaacuterias do milecircnio248

isso natildeo promoveu necessariamente a ruptura com a sociedade249 Isso levou Thompson a

afirmar com certa ironia que a continuidade do movimento de Jesus foi viabilizada porque

seus membros natildeo conseguiram objetivar as representaccedilotildees do Apocalipse250

37 Resumo

Joatildeo encerra seu Apocalipse com a narrativa daquilo que ele entendia ser o fim do

mundo e da histoacuteria Antes disso entretanto ele descreve um periacuteodo de governo milenar

do Jesus Glorificado e seus maacutertires ressuscitados O milecircnio aparece no livro joanino como

o tempo do aprisionamento de Satanaacutes e do reinado messiacircnico interino na terra Estas

expectativas parecem ter origem em tradiccedilotildees literaacuterias judaicas que combinavam noccedilotildees

sobre um redentor ungido por Deus um retorno aos tempos paradisiacuteacos e periodizaccedilotildees da

histoacuteria Estas antigas noccedilotildees parecem ter se reunido de uma forma muito semelhante na

regiatildeo da Aacutesia-Siacuteria-Palestina no final do seacuteculo I nas obras Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque por causa entre outros fatores dos traumas da guerra judaico-

romana No caso especiacutefico da versatildeo joanina sua emergecircncia ainda pode ter relaccedilatildeo com

conflitos de lideranccedila das comunidades de Jesus em funccedilatildeo de respostas diferentes agrave questatildeo

do relacionamento com a sociedade romana

247 DUFF Paul B Who rides the Beast op cit p 77 248 Como os movimentos milenaristas analisados em COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas

revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 249 Como a apropriaccedilatildeo do milecircnio em Agostinho Cf KYRTATAS Dimitris The Transformations of the

Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text The Writing of Ancient

History London Duckworth 1986 p 144-162 250 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L (ed) Reading

the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 46

IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM

Neste capiacutetulo aplicaremos ao Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram

lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar

elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso

este seraacute o espaccedilo principal para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando

apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o

livro joanino

41 O autor do Expositio in Apocalypsim

A obra intitulada Expositio in Apocalypsim editada pela Junta de Veneza em 1527 e

reimpressa pela Editora Miverva em 1964 reuacutene de fato trecircs textos distintos todos

vinculados a uma mesma pessoa O primeiro no foacutelio 1r na parte superior eacute aberto nestes

termos Incipit epistola prologalis domini Abbatis Joachim florensis O segundo comeccedila

no foacutelio 1v com estas palavras Incipit prologus domini Joaquim Abbatis florensis in expone

libri Apocalipsis e termina no 16v Explicit liber primus dictus introductorius Somente

entatildeo comeccedila o terceiro texto neste mesmo foacutelio 16v (Incipit prima septem partius in

expositione Apocalipsis) que se estende longamente ateacute o final da obra veneziana no foacutelio

224r (Explicit admiranda Expositio venerabilis Abbatis Joachim in Librus Apocalipsis Beati

Joannis Apostoli et Evangeliste) Eacute apenas este uacuteltimo e longo texto que se trata do

Expositio in Apocalypsim identificado no explicit como de autoria de Joaquim de Fiore No

interior do Expositio natildeo haacute outras auto-identificaccedilotildees Mesmo assim estudiosos do assunto

satildeo unacircnimes em aceitar o texto como obra do abade de S Joatildeo de Fiore bem como as outras

duas que abrem a versatildeo veneziana seiscentista A primeira eacute intitulada Carta Testamentaacuteria

pela historiografia251 a segunda recebe o tiacutetulo de Liber Introductorius que funciona como

uma siacutentese do Expositio

Tomando como ponto de partida este viacutenculo aceitando-o como autecircntico o que eacute

possiacutevel dizer sobre este Venerabilis Abbatis Joachim Nos seacuteculos posteriores agrave sua morte

ele foi estigmatizado por exemplo por Tomaacutes de Aquino que tratou as obras de Joaquim

251 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 69

90

como conjecturas252 contudo louvado por Dante Aliguiere que no final do canto XII de sua

Divina Comeacutedia colocou na boca de Satildeo Boaventura ldquoSabe que ao meu lado brilha o

calabrecircs abade Giovachino que tem o dom de profetizarrdquo253 Ele apareceu em cataacutelogo de

santos e em lista de heresias254 mas nunca chegou a ser oficialmente declarado herege ou

santo255 No meio deste ambiacuteguo rastro muitas lendas se acumularam a respeito desta figura

do medievo italiano Por isso uma reconstruccedilatildeo biograacutefica de Joaquim precisa levar em

conta os seguintes elementos

- os poucos dados deixados por ele na sua Carta Testamentaacuteria por volta de 1200 jaacute

no final de sua vida endereccedilada a um abade de sua Ordem

- estes poucos dados da Carta Testamentaacuteria precisam ser comparados com duas

hagiografias sobre Joaquim de Fiore escritas por contemporacircneos seus uma produzida pelo

seu secretaacuterio Lucas de Consenza Virtutum Beati Joachimi synopsis e Vita beati Joachimi

abbatis escrita provavelmente pouco depois de sua morte obra de um monge anocircnimo que

trabalhou com Joaquim enquanto ele era abade de Corazzo acompanhou-o posteriormente

para Petralata e por fim para S Joatildeo em Fiore256

- narrativas de caraacuteter lendaacuterio sobre ele encontradas em outras fontes que precisam

ser avaliadas pelo caraacuteter de plausibilidade e podem ajudar a esclarecer aspectos obscuros

de sua biografia

Com estes elementos cotejados eacute que estudiosos de Joaquim reconstroem sua vida257

Seu nascimento se deu provavelmente em 1135 em Celico uma vila pequena agrave leste de

Consenza na Calaacutebria proviacutencia do Reino normando da Siciacutelia Seu pai era Mauro um

notaacuterio do Arcebispo Sancio de Consenza Sobre sua matildee soacute se conhece seu nome Gema

Ele era o sexto de oito filhos do casal e o mais velho a sobreviver258

Joaquim foi enviado ainda jovem para trabalhar tambeacutem em Consenza como oficial

da Chancelaria normanda da Calaacutebria Sua famiacutelia o treinava para ser um notaacuterio como seu

252 MC GINN Bernard The abbot and the doctors scholastic reactions to the radical eschatology of Joaquim

of Fiore Church History Cambridge v 40 n 1 p 30-47 1971 p 19 253 DANTE ALIGUIERE A divina comeacutedia Satildeo Paulo Nova Cultural 2002 p 338 254 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London

University of Notre Dame Press 1993 p 3 255 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 256 TRONCARELLI Fabio Gioacchino da Fiore la vita il pensiero le opere Roma Cittagrave Nuova Editrice

2002 p 15 257 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4 TRONCARELLI op cit p 15 DANIEL E Randolph Abbot

Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical

Society 1983 p xii REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 258 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii

91

pai259 Isso lhe forneceu preparo intelectual com o domiacutenio do grego liacutengua predominante

nos registros de governo da Calaacutebria e Siciacutelia bem como do Latim O aacuterabe era bem

conhecido nos espaccedilos da corte da Siciacutelia poreacutem natildeo haacute indiacutecios de que Joaquim dominava

este idioma apesar dos provaacuteveis contatos com ele durante o tempo em que esteve na corte

do reino em Palermo

Apoacutes um periacuteodo inicial em Consenza o ainda jovem Joaquim foi encaminhado para

a corte de William II na Siciacutelia onde trabalhou para o chanceler Estevatildeo de Perche Apoacutes

algum tempo na corte foi com o notaacuterio Santoro para Apuacutelia e Val di Crati onde foi

acometido de uma doenccedila Possivelmente para tratar da enfermidade ele retornou para a

corte em Palermo

Em meados de 1167 Joaquim decidiu fazer uma peregrinaccedilatildeo agrave Jerusaleacutem Eacute difiacutecil

saber as causas desta accedilatildeo de Joaquim apesar da probabilidade de sua doenccedila ter alguma

relaccedilatildeo com o evento tanto com o abandono da corte quanto com a viagem para a Terra

Santa260 Troncarelli argumenta que jaacute na base desta peregrinaccedilatildeo estava a decisatildeo juvenil

de Joaquim de abraccedilar o eremitismo e todo o desenvolvimento da sua viagem jaacute seria parte

deste propoacutesito de vida eremita261 Para Randolph Daniel entretanto a vocaccedilatildeo de Joaquim

se deu durante a peregrinaccedilatildeo quando ao passar por Tripoli na Siria ele teria enfrentado

outra enfermidade desta vez por causa de uma epidemia local Como sobreviveu a ela

tomou a decisatildeo de abraccedilar o monasticismo ainda que neste periacuteodo a opccedilatildeo tenha sido por

um tipo de monasticismo natildeo-cenobiacutetico em isolamento e ascetismo262 Independentemente

entretanto do momento especiacutefico em que se deu a vocaccedilatildeo religiosa de Joaquim ela deve

ter tido alguma relaccedilatildeo com sua peregrinaccedilatildeo ao oriente263

Joaquim concluiu a peregrinaccedilatildeo a Jerusaleacutem e voltou para Siciacutelia em 1171264 natildeo

para a corte mas como outros monges gregos da ilha para uma regiatildeo montanhosa e isolada

Ele escolheu a proximidade do Monte Etna perto de um antigo monasteacuterio oriental265

Alguns meses depois atravessou o estreito de Messina na direccedilatildeo da Calaacutebria sua terra natal

259 TRONCARELLI op cit p 16 260 Adeline Rucquoi analisa as motivaccedilotildees provaacuteveis de peregrinos na Idade Meacutedia e menciona a relaccedilatildeo entre

enfermidade e voto de peregrinaccedilatildeo como uma causa frequente Cf RUCQUOI Adeline Peregrinos

medievales Tiempo de historia Salamanca v VII n 75 p 82-99 1981 p 85 261 TRONCARELLI op cit p 18 262 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii 263 SANTI Francesco La Bibbia in Gioacchino da Fiore In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio

(ed) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 257-267 p 259 264 AFFLECK Toby Joachim of Fiore Access History Brisbane v 1 n 1 p 45-54 1997 p 45 265 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der

Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98

92

Buscou um abrigo ou mesmo uma caverna em Guarassanum perto de Consenza e da vila

onde nasceu Narrativas de caraacuteter lendaacuterio entatildeo narram um encontro entre Joaquim e

Mauro Eacute um topos recorrente na biografia de grandes figuras religiosas do periacuteodo quando

o pai tenta dissuadir o filho de sua missatildeo religiosa para retomar uma vida social em

ascensatildeo Randolph Daniel destaca entretanto que apesar da natureza artificial da narrativa

encontros como este poderiam ser frequumlentes quando filhos de famiacutelias bem situadas na

sociedade decidiam abandonar uma carreira de sucesso para abraccedilar uma vocaccedilatildeo religiosa

de pouco prestiacutegio como era a vida isolada de um eremita266 O proacuteprio Joaquim parece falar

de um conflito com sua famiacutelia no interior de sua Concordia com a mensagem de que havia

recusado a promoccedilatildeo social a escala de sucesso no interior do Reino da Siciacutelia para abraccedilar

a ascese267

Apoacutes um periacuteodo recluso em Guarassanum Joaquim aceitou a hospitalidade da

abadia cisterciense de Sambucina ainda perto de Consenza Mas natildeo ficou muito tempo ali

pois se deslocou para Rende cerca de 10 quilocircmetros a noroeste onde por um ano pregou

agraves pessoas da regiatildeo Receoso de estar cometendo algum ato de desobediecircncia por pregar

sem autorizaccedilatildeo procurou o bispo Roberto de Catanzaro de quem recebeu o ordenamento

sacerdotal e a referida autorizaccedilatildeo para pregar Foi neste periacuteodo que Joaquim conheceu o

monasteacuterio de S Maria de Corazzo jaacute que tanto para ir quanto para voltar de Catanzaro ele

precisou se hospedar ali

Ele retomou sua atividade em Rende como pregador itinerante mas natildeo demorou

muito para tomar a decisatildeo de abandonar o clero secular e ingressar no monasteacuterio de

Corazzo como noviccedilo268 Este monasteacuterio fora fundado em 1157 por Rogeacuterio de Martirano

O abade desde o tempo da fundaccedilatildeo era Columbano Em 1177 entretanto por algum

motivo natildeo explicitado apenas relatado como scandala os monges de Corazzo resolveram

afastaacute-lo e na sequecircncia elegeram Joaquim para substituiacute-lo o que indica o status de

lideranccedila que o ex-peregrino jaacute havia adquirido entre eles Os monges podem ter percebido

que a formaccedilatildeo cultural de Joaquim o havia capacitado para dirigir a casa funccedilatildeo essa que

266 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xiii 267 Idem p xx Troncarelli entende que esse conflito poderia ser ainda mais significativo em funccedilatildeo do fato de

Joaquim ter se afastado da chancelaria normanda durante um periacuteodo de desenvolvimento do Reino da Siciacutelia

ldquoperiacuteodo de prosperidade e paz sem igualrdquo Cf TRONCARELLI op cit p 19 268 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p iv

93

envolvia certo grau de relacionamento com os poderes sociais circundantes na defesa da

propriedade e dos direitos do monasteacuterio269

Joaquim natildeo aceitou a eleiccedilatildeo rejeitou o cargo e saiu do mosteiro Foi inicialmente

para S Trindade em Acri monasteacuterio fundado em 1080 pelo conde Rogeacuterio I270 Insatisfeito

com o pouco isolamento do local deixou-o igualmente e procurou a abadia de Sambucina

na qual jaacute havia se hospedado Esta era a uacutenica casa da Ordem de Cister no Reino da Siciacutelia

ateacute o momento Joaquim tentou nela seu ingresso mas foi rejeitado por estar jaacute filiado a

Corazzo

Enquanto estava em Sambucina ele foi pressionado pelo abade da casa pelo

arcebispo Ruffus de Consenza e por Melis um juiz de Rende a retornar ao seu monasteacuterio

e aceitar o resultado da eleiccedilatildeo Diante dos apelos Joaquim assumiu a direccedilatildeo da abadia de

Corazzo ainda no ano de 1177271

Enquanto abade ele dedicou boa parte de suas energias na tentativa de filiar sua casa

agrave Ordem Cisterciense Uma carta do bispo Miguel de Martirano datada de 1177 faz menccedilatildeo

a um privileacutegio outorgado pelo papa Alexandre III (1159-1181) a Corazzo para que os

monges adotassem os costumes cistercienses Natildeo daacute para saber se a adoccedilatildeo destes costumes

eacute anterior ou posterior agrave eleiccedilatildeo de Joaquim De qualquer forma para conseguir ingressar

efetivamente na Ordem era preciso ser aceito como casa-filha de uma casa jaacute estabelecida

na Ordem de Cister272

A primeira tentativa de Joaquim foi Sambucina proacutexima de Corazzo igualmente na

Calaacutebria e com quem ele jaacute tinha tido contatos em mais de uma ocasiatildeo O pleito poreacutem

foi rejeitado aparentemente em funccedilatildeo de questotildees ligadas agrave propriedade do monasteacuterio de

Joaquim273 Com a rejeiccedilatildeo de Sambucina o abade calabrecircs se voltou para Casamari uma

casa cistersiense fora do Reino da Siciacutelia fundada em 1140 a leste de Roma274 Ali ele

chegou em 1183 e ficou por oito meses partindo somente no ano seguinte A resposta de

Casamari foi semelhante agrave de Sambucina mas durante este periacuteodo Joaquim encontrou a

269 Graham Loud analisou o processo de eleiccedilatildeo no interior das abadias da Itaacutelia meridional em LOUD

Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007 p 462-467 270 Idem p 86 271 DESROCHE Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade

Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 269 272 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xv 273 TRONCARELLI op cit p 21 274 DUBY Georges Atlas Histoacuterico Mundial Madrid Editorial Debate 1987 p 49

94

hospitalidade do abade Geraldo (abade de 1183-1209) e dedicou a maior parte do tempo no

estudo do acervo da rica biblioteca do monasteacuterio275

No mecircs de maio de 1184 aproveitou a oportunidade para visitar o papa Luacutecio II

(papa de 1181-1185) que se encontrava em Veroli Segundo Marjorie Reeves esta visita ao

Papa era uma tentativa de Joaquim de legitimar a produccedilatildeo de suas obras o que naquele

momento era sua missatildeo de vida276 Diante do pontiacutefece ele teve a oportunidade de explicar

um manuscrito encontrado em Roma entre os documentos do falecido Cardeal Mathias de

Angers O texto tratava de profecias tradicionais sobre o final dos tempos cobrindo temas

como o Anticristo a grande tribulaccedilatildeo e o fim do mundo Diante de Luacutecio III Joaquim

aplicou no documento anocircnimo a mesma forma de exegese que ele jaacute aplicava nos textos

biacuteblicos buscando elementos do seu tempo que pudessem corresponder agraves profecias

narradas na obra277 Posteriormente ele transcreveu sua exposiccedilatildeo deste documento num

pequeno tratado intitulado Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno 1184278

onde trata da tribulaccedilatildeo futura da Igreja originada em forccedilas do Impeacuterio Germacircnico como

parte do processo divino de purificaccedilatildeo da Igreja279

Como resultado do encontro o papa Luacutecio aprovou o meacutetodo hermenecircutico de

Joaquim e exortou-o a concluir os escritos que desejava produzir280 Entendendo que o papa

havia dado a ele a licenccedila que ele queria o abade calabrecircs iniciou ainda em Casamari a

produccedilatildeo simultacircnea de vaacuterias obras Ele natildeo se contentava em comeccedilar e terminar cada

uma mas trabalhava nelas de forma concomitante auxiliado por dois escribas e um

secretaacuterio Lucas de Consenza que se tornou seu amigo a partir de entatildeo Ele ditava e

revisava o material que os seus ajudantes escreviam281

Joaquim retornou para Corazzo em 1184 Segundo West e Zimdars-Swartz ele

voltou com a clara perspectiva de que as questotildees administrativas vinculadas ao seu cargo o

atrapalhavam natildeo soacute a escrever suas ideias mas tambeacutem a divulgaacute-las para preparar a igreja

para os eventos iminentes que estavam por vir282

Em 1186 Joaquim foi a Verona para render homenagem ao novo pontiacutefice Urbano

III (papa de 1185-1187) onde o papa renovou a autorizaccedilatildeo dada anteriormente por Luacutecio

275 TRONCARELLI op cit p 21 276 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 6 277 SANTI op cit p 261-265 278 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 90 279 TRONCARELLI op cit p 23-24 280 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 7 281 TRONCARELLI op cit p 22 282 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4

95

II e ainda ldquoincitou-o a continuar seus escritosrdquo283 Diante da autorizaccedilatildeo de dois papas para

que escrevesse ele procurou na primavera desde mesmo ano uma sela mais reservada num

local perto de Corazzo chamado Petralata sem rompimento formal ainda com o seu

monasteacuterio

Em 1188 Joaquim foi a Roma onde Clemente III (papa de 1187-1191) emitiu uma

carta na qual renovou as autorizaccedilotildees anteriores e solicitou que fossem levadas apoacutes

concluiacutedas para a avaliaccedilatildeo da cuacuteria romana O pontiacutefece ainda teria aprovado a resignaccedilatildeo

de Joaquim do cargo de abade de Corazzo no momento exato em que Corazzo finalmente

conseguiu ingresso na ordem Cisterciense como filha da abadia de Fossanova uma das

maiores casas da Ordem no territoacuterio papal fundada em 1135 ao sul de Roma284 O

abandono de Corazzo agora cisterciense rendeu a Joaquim o ressentimento dos seus

monges e do proacuteprio Capiacutetulo Geral da Ordem que passou a exigir sua volta Eles o

acusaram de transgredir o primeiro voto da profissatildeo monaacutestica beneditina que eacute a

estabilidade no monasteacuterio285

Em vez de retornar entretanto de posse da resignaccedilatildeo papal ele continuou por um

tempo em Petralata contando com a ajuda de Rainer um eremita da ilha de Ponza que se

juntou a ele No inverno de 1188 insatisfeitos com as interrupccedilotildees e visitas eles foram atraacutes

de um lugar mais isolado e o encontraram nas montanhas calabresas de Fiore para onde se

mudaram em maio de 1189 Naquele lugar agrave medida que disciacutepulos vinham se juntar a

Joaquim nasceu a necessidade de organizar um monasteacuterio O resultado foi a fundaccedilatildeo da

abadia de S Joatildeo de Fiore286

A fundaccedilatildeo da casa entretanto se deu no contexto adverso da transiccedilatildeo dinaacutestica

entre a morte de William II no final de 1189 o curto governo de Tancredo (entre 1190-1194)

e a coroaccedilatildeo de Henrique VI (final de 1194) Eacute um periacuteodo no qual apesar de ter renunciado

anteriormente agrave direccedilatildeo do monasteacuterio de Corazzo Joaquim estaacute nos termos de Troncarelli

ldquoapaixonadamenterdquo envolvido na fundaccedilatildeo de uma casa proacutepria287 Ele renunciara agrave

283 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xviii 284 DUBY op cit p 49 285 TRONCARELLI op cit p 24 Alguns autores sugerem entretanto que Joaquim deixou Corazzo por

entender que a Ordem de Cister jaacute natildeo era riacutegida o suficiente principalmente na questatildeo da disciplina

monaacutestica Ele desejava o cumprimento estrito da Ordem de S Bento o que para o abade significava o

abandono das questotildees temporais uma vida de simplicidade a pureza de coraccedilatildeo e a vida contemplativa Cf

DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

p 41 286 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5 287 TRONCARELLI op cit p 27

96

lideranccedila de uma casa para ser liacuteder de outra Esta mudanccedila de perspectiva de Joaquim

poderia ter relaccedilatildeo com o papel que ele imaginou ter nos tempos que estariam por vir sobre

a Igreja Segundo este professor da Universitagrave della Tuscia ele entendeu que precisava do

apoio de uma nova casa monaacutestica na promoccedilatildeo de sua missatildeo de preparar as pessoas para

a intervenccedilatildeo iminente do Espiacuterito Santo288

Por isso se antes ele queria o isolamento agora ele precisa de apoio natildeo apenas dos

papas mas tambeacutem dos poderes poliacuteticos Entre 1190-1191 ele passou um periacuteodo em

Palermo enquanto solicitava ajuda de Tancredo para as obras de S Joatildeo de Fiore A resposta

do rei normando foi favoraacutevel a Joaquim por meio de uma ldquogenerosa doaccedilatildeordquo289

Enquanto esteve na Siciacutelia em negociaccedilatildeo com Tancredo a ilha se tornou ponto de

parada de uma cruzada a caminho de Jerusaleacutem Joaquim foi convocado para se encontrar

com Ricardo Coraccedilatildeo de Leatildeo da Inglaterra e um grupo de ingleses em Messina290 Ricardo

desejava de Joaquim algum tipo de vaticiacutenio a respeito da cruzada em Jerusaleacutem o que

demonstra que neste periacuteodo o calabrecircs havia alcanccedilado a reputaccedilatildeo de profeta entre alguns

de seus conterracircneos291 O abade usou a visatildeo de Apocalipse 179-10 que descreve uma

besta com sete cabeccedilas para interpretar a Cruzada A passagem apocaliacuteptica fala de sete reis

dos quais caiacuteram cinco um existe e outro ainda natildeo chegou Segundo o autor do Expositio

as cinco cabeccedilas que caiacuteram seriam Herodes Nero Constantino Maomeacute e Melsemuto A

sexta cabeccedila neste caso seria Saladino aquele ldquoum que existerdquo que seria destruiacutedo em

breve para que a seacutetima cabeccedila o que ldquoainda natildeo chegourdquo o derradeiro Anticristo se

manifestasse Este teria jaacute 15 anos e estaria pronto para assumir seu poder

O rei Ricardo perguntou a Joaquim onde o Anticristo teria nascido e onde iria reinar

Joaquim respondeu que ele nascera in urbe Romana e obteria a Seacute Apostoacutelica A visatildeo

aparentemente pouco ortodoxa de Joaquim sobre o Anticristo agradou o monarca inglecircs

adversaacuterio do papa Reeves argumenta entretanto que ao apontar Roma como o local de

nascimento do Anticristo Joaquim estava somente traduzindo a antiga expectativa em seus

proacuteprios termos Joaquim esperava um falso papa como uma de suas manifestaccedilotildees mas

288 Idem p 29 289 Idem p 28 290 Conferir a siacutentese e uma anaacutelise do encontro em REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later

Middle Ageshellip op cit p 7-9 291 Segundo Mc Ginn ldquoreis e rainhas papas e priacutencipes buscavam seus conselhosrdquo a ponto de se tornar uma

das figuras religiosas mais significativas do periacuteodo Cf MC GINN Bernard Apocalyptic Spiritualityhellip op

cit p 98

97

sem implicar neste caso que a Igreja romana deveria ser identificada com a Babilocircnia de

Apocalipse 17-19292

Apoacutes os eventos de Messina o fundador de Fiore voltou para Calaacutebria Mas em 1191

precisou descer novamente da regiatildeo montanhosa na direccedilatildeo de Naacutepoles para um encontro

com Henrique VI que em disputa pela coroa da Siciacutelia viera destituir Tancredo do trono O

abade exortou o monarca germacircnico a natildeo agir com violecircncia contra a coroa siciliana ou

seus aliados Ele usou uma passagem do Antigo Testamento Ezequiel 267 para criticar a

accedilatildeo de Henrique relacionando os eventos de Babilocircnia e Tiro com Henrique e a Siciacutelia293

Independentemente do peso que as palavras de Joaquim tiveram na decisatildeo de

Henrique o monarca realmente decidiu abandonar a regiatildeo e voltar para a Germacircnia Os

eventos posteriores viriam a mostrar um Henrique realmente disposto a ajudar a casa de

Fiore Apoacutes a morte de Tancredo a caminho para assumir o reino da Siciacutelia Henrique

encaminhou uma carta em que fazia uma doaccedilatildeo ao novo monasteacuterio Nela Joaquim eacute pela

primeira vez declarado abade de S Joatildeo em Fiore Em 6 de marccedilo de 1195 alguns meses

apoacutes a coroaccedilatildeo o monarca germacircnico escreveu uma segunda carta garantindo a S Joatildeo um

dote anual em moedas de ouro Bizantinas294

Agora com o apoio do Imperador Joaquim retornou ao papa Celestino III (1191-

1198) e pediu a ele sua aprovaccedilatildeo para S Joatildeo de Fiore Em Roma no dia 25 de agosto de

1196 Celestino emitiu uma bula na qual formalmente aprovou S Joatildeo e a Regra da nova

Ordem Florense295 Ainda nesta bula Joaquim aparece descrito como o abade de Fiore

indicando que pelo menos aos olhos do papa ele natildeo tinha mais conexotildees com Corazzo nem

com a Ordem Cisterciense A mesma aprovaccedilatildeo se deu em 1204 por Inocecircncio III e duas

vezes por Honoacuterio em 1216 e 1220 Mesmo assim desde 1192 Joaquim era considerado

fugitivus pelo Capiacutetulo Geral Cisterciense296

Em 1196 Joaquim retornou a Palermo na qualidade de confessor da rainha

Constacircncia que veio a confirmar todas as doaccedilotildees da coroa para Fiore apoacutes a morte de

Henrique VI em 1197

292 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 9 293 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 66 294 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 295 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n

1 p 217-240 2004 p 219 Esta Regra se perdeu apesar de estudiosos entenderem que ela deveria ser bem

proacutexima da Regra Cisterciense 296 TRONCARELLI op cit p 30

98

O abade Joaquim escreveu em marccedilo de 1200 um documento narrando as

autorizaccedilotildees que entendeu ter recebido do papado de Roma para escrever suas obras e o

compromisso assumido para enviaacute-las quando estivessem prontas (Expositio in

Apocalpysim 1r-v) Ele encaminhou suas trecircs principais obras (Expositio in Apocalypsim

Concordia Novi ac Veteris Testamenti e Psalterium decem Chordarum) para anaacutelise da

cuacuteria papal Mas natildeo teve tempo para receber de Roma a tal avaliaccedilatildeo pois no dia 30 de

marccedilo de 1202 na abadia de S Martino di Giove que havia sido dada para a Ordem de Fiore

em 1201 pelo Arcebispo Andreas de Cosenzza ele veio a falecer297 sendo transferido

posteriormente para S Joatildeo de Fiore

42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim

Um fenocircmeno significativo nas obras de Joaquim eacute a forma como ele reelabora e

repete os mesmos temas seguidamente num processo contiacutenuo e dinacircmico Torna-se

importante entatildeo apontar data e momento de produccedilatildeo natildeo apenas para o Expositio in

Apocalysim mas para as demais obras do abade relacionadas com o Apocalipse de Joatildeo que

sobreviveram e estatildeo disponiacuteveis para consulta Praephatio super Apocalypsim Enchiridio

super Apocalypsim e Liber Introductorius298 A produccedilatildeo do comentaacuterio maior (Expositio)

se deu por meio da produccedilatildeo de obras menores (em formato de sermatildeo e tratado) desde os

primeiros anos da deacutecada de 1180 ateacute os anos proacuteximos de sua morte299

A mais antiga destas obras entretanto o Praephatio super Apocalypsim eacute marcada

pela natureza compoacutesita Antes de ser um uacutenico texto eacute formado pela reuniatildeo de dois

pequenos sermotildees nos quais o abade faz uma apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o Apocalipse de

Joatildeo e a histoacuteria da Igreja300

O primeiro sermatildeo comeccedila com a expressatildeo ldquoO Livro do Apocalipse eacute o uacuteltimo de

todos os livros escritos com espiacuterito de profecia incluiacutedo no cataacutelogo das Sagradas

297 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 298 Haacute ainda um ldquoindependente e curto comentaacuterio do Apocalipserdquo ineacutedito e sem publicaccedilatildeo denominado pela

historiadora Marjorie Reeves como Apocalypsis Nova presente em dois manuscritos do seacuteculo XIII Cf

REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 513 299 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p

286 300 SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 Foi desta

ediccedilatildeo que partiu a traduccedilatildeo para o portuguecircs do professor Rossatto ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao

Apocalipse op cit Outra traduccedilatildeo em portuguecircs pode ser encontrada em BERNARDI Orlando Comentaacuterio

ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010

99

Escriturasrdquo301 O segundo inicia com a frase ldquoAntes de dizer qualquer coisa sobre o livro do

Apocalipse devemos considerar que este livro estaacute provido de um tiacutetulo de uma saudaccedilatildeo

de um prefaacuteciordquo302 Cada sermatildeo tem sua proacutepria unidade interna e foram reunidos em

circunstacircncias desconhecidas por causa de afinidades temaacuteticas Iremos distingui-los como

faz Potestagrave pelas primeiras palavras latinas de cada um303 O primeiro e mais antigo pode

ser denominado Apocalipsis liber ultimus O segundo Locuturi aliquid Ambos foram

escritos por Joaquim para servir de base para a pregaccedilatildeo em contexto lituacutergico num periacuteodo

anterior agrave sua passagem por Casamari (1183-1184)304 Estes tratados constituem uma

primeira aproximaccedilatildeo exegeacutetica de Joaquim ao Apocalipse de Joatildeo cujo puacuteblico alvo

imediato era formado pelos monges do monasteacuterio de Corazzo

A proacutexima obra de Joaquim a desenvolver uma leitura do Apocalipse eacute o Enchiridion

super Apocalypsim Ele foi escrito no periacuteodo em que o abade pousou em Casamari (1183-

1184)305 Nele Joaquim faz uma apresentaccedilatildeo ampla da obra de Joatildeo sem discutir frase a

frase como faraacute no Expositio mas jaacute expondo suas partes principais O termo ldquoEnchiridionrdquo

pode ser traduzido como ldquomanualrdquo e foi escrito segundo o abade para ldquoapresentar o

conteuacutedo de todo o livro do Apocalipserdquo (Enchiridion l 56-57)306 Eacute uma siacutentese portanto

do conteuacutedo que ele entendia estar presente no uacuteltimo livro da Biacuteblia cristatilde e poderia ser

utilizado como ldquotexto introdutoacuterio e explicativordquo307 do seu Expositio Isto daacute ao Enchiridion

tambeacutem um papel de esquema ou projeto do comentaacuterio ao Apocalipse que o abade

comeccedilaria a produzir em Casamari

O texto comeccedila com ldquoIncipit Enchiridion abbatis Joachim super Apocalypsimrdquo (l

1) seguido da primeira frase do texto ldquoComo catoacutelicos e ortodoxos lutamos (certatum) com

os mais fortes entusiasmos (studiis) para lanccedilar os fundamentos da Igreja (ecclesiae

fundamenta)rdquo (l 2-3)308 Este texto foi produzido por Joaquim para apresentar o Expositio e

lhe servir de resumo mas no momento em que o Expositio estava para ser concluiacutedo o

301 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse op cit p 453 302 Idem p 462 303 POTESTAgrave op cit p 290 e 294 304 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 75 Potestagrave entretanto sugere um periacuteodo

posterior agrave Casamari entre 1185-1186 para Apocalipsis liacuteber ultimus e uma data subsequente para Locuturi

aliquid Cf POTESTAgrave op cit p 290 e 294 305 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 92 Potestagrave entretanto prefere datar o Enchiridion

para uma data posterior a 1194 Cf POTESTAgrave op cit p 328 306 As citaccedilotildees do Enchridion seguem o texto criacutetico de BURGER Edward K Joachim of Fiore Enchiridion

super Apocalypsim Toronto Pontifical Institute of Mediaeval Studies 1986 307 POTESTAgrave op cit p 327 308 BURGER op cit p 9

100

Enchiridion sofreu uma revisatildeo tatildeo profunda com alteraccedilatildeo de aspectos significativos do

seu conteuacutedo que os estudiosos preferem mudar seu nome chamando-o entatildeo de Liber

introductorius309 Gian Luca Potestagrave estima que esta revisatildeo do Enchiridion pode ter ficado

pronta no uacuteltimo ano do pontificado do papa Celestino III (papa de 1191-1198) ainda com

a funccedilatildeo de ldquosimplificar e sintetizar os resultados da obra maiorrdquo310

Uma comparaccedilatildeo entre a primeira redaccedilatildeo (Enchiridion iniacutecio da deacutecada de 1180) e

essa segunda redaccedilatildeo (Liber introductorius 1198) revela mudanccedilas por exemplo na postura

quanto ao Impeacuterio Germacircnico que eacute tratado de forma criacutetica no Enchiridion mas de forma

branda no Liber introductorius Afinal a monarquia Hohenstaufen antes temida por

Joaquim havia se manifestado concretamente apoacutes 1191 na figura generosa de Henrique VI

e suas doaccedilotildees para a casa de S Joatildeo de Fiore311

Com relaccedilatildeo ao Expositio in Apocalypsim como jaacute argumentado anteriormente ele

eacute o resultado de mais de uma deacutecada de trabalho e elaboraccedilatildeo Joaquim o comeccedilou ainda em

Casamari (1183-1184) e soacute o concluiu no final do seacuteculo A informaccedilatildeo sobre a conclusatildeo eacute

dada pelo proacuteprio Joaquim na Carta Testamentaacuteria (Expositio in Apocalypsim 1r) Se a data

de 1198 para o Liber introductorius estiver correta as repetidas referecircncias a ele encontradas

no interior do Expositio indicam que Joaquim usou o periacuteodo entre 1198 e 1200 para fazer

uma revisatildeo completa de seu grande comentaacuterio do Apocalipse312

43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim

O Expositio in Apocalypsim eacute certamente a maior obra de Joaquim de Fiore Nas

ediccedilotildees seiscentistas de Veneza o Expositio tem 224 foacutelios contra 135 da Concordia O

abade denominou o Expositio na sua Carta Testamentaacuteria de ldquoexpositione Apocalipsisrdquo

(Expositio in Apocalypsim 1r) Mas o que consistiria em termos formais esta ldquoexposiccedilatildeo

do Apocalipserdquo Ela natildeo segue a forma literaacuteria da Concordia nem do Psalterium ou

mesmo do Enchiridion Eacute importante neste caso aplicar ao Expositio uma questatildeo que jaacute

aplicamos ao Apocalipse de Joatildeo justamente porque a definiccedilatildeo do gecircnero literaacuterio de uma

obra eacute parte da escolha do autor para definir a forma como ele desejaria que seu livro fosse

309 POTESTAgrave op cit p 327 310 Idem p 329 311 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 108 312 POTESTAgrave op cit p 287

101

lido313 A obra de Joatildeo eacute enquanto gecircnero literaacuterio um ldquoapocalipserdquo e se insere na longa

tradiccedilatildeo literaacuteria judaica apocaliacuteptica que retrocede ao seacuteculo II antes de Cristo O Expositio

entretanto natildeo eacute um apocalipse antes eacute um comentaacuterio biacuteblico do Apocalipse

Um comentaacuterio biacuteblico eacute formalmente uma explicaccedilatildeo sistemaacutetica abrangente e

sequencial de um determinado livro da Biacuteblia cujo propoacutesito eacute adaptar o material biacuteblico

para as circunstacircncias das novas audiecircncias314 A explicaccedilatildeo de apenas algumas porccedilotildees

capiacutetulos versiacuteculos ou periacutecopes natildeo poderia formalmente ser definida como um

comentaacuterio jaacute que ele precisava cobrir todo o livro biacuteblico Por sequencial entende-se o

acompanhamento da estrutura do texto biacuteblico que se estaacute comentando No caso do

Apocalipse o comentarista o seguia nos blocos ou periacutecopes natildeo necessariamente versiacuteculo

a versiacuteculo ou capiacutetulo por capiacutetulo jaacute que essa padronizaccedilatildeo soacute comeccedilaria a partir do seacuteculo

XIII315

O embate narrado por Euseacutebio de Cesareacuteia entre o bispo Neacutepos e Dioniacutesio serve para

ilustrar a forma como o Apocalipse era usado nos trecircs primeiros seacuteculos (Histoacuteria

Eclesiaacutestica VII XXIV 1-9) Neacutepos era um quiliasta316 cuja mensagem enfatizava a

realidade de um futuro governo terreno de Cristo na terra Para se contrapor a uma exegese

alegoacuterica do Apocalipse que tentava minimizar a realidade histoacuterica deste reinado

messiacircnico este bispo do Egito escreveu um livro intitulado Refutaccedilatildeo dos alegoristas

Contra Neacutepos e seu livro se levantou Dioniacutesio que escreveu Sobre as promessas tambeacutem

para discutir o Apocalipse de Joatildeo Euseacutebio ainda narrou que neste periacuteodo aconteceu um

longo debate acerca da forma como o livro de Joatildeo deveria ser interpretado

O bispo de Cesareacuteia fala de dois liacutederes cristatildeos que escreveram textos e recorrem

parcialmente ao Apocalipse para defender suas ideias Em linhas gerais a maioria das

pessoas que recorriam ao Apocalipse neste periacuteodo o usa em contexto de polecircmica

doutrinaacuteria ou apologeacutetica para responder a uma heresia dar suporte a uma determinada

posiccedilatildeo teoloacutegica encorajar cristatildeos perseguidos Papias Justino Martir Irineu Tertuliano

313 Conferir esta discussatildeo no primeiro capiacutetulo desta tese 314 MATTER E Ann The Apocalypse in Early Medieval Exegesis In EMMERSON Richard K MCGINN

Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 38-50 p 38-

39 315 SMALLEY Beryl The study of the Bible in the Middle Ages Oxford Basil Blackwell 1952 p 222-224 316 O quiliasmo eacute definido por Wainwright como ldquoa crenccedila de que Cristo retornaraacute para a terra e inauguraraacute

uma era de prosperidade de mil anos sobre o planetardquo Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious

Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 21

102

Hipolitus Vitorino Lactantius Metodius e Comodianus317 Destes com exceccedilatildeo de

Vitorino todos fizeram uso apenas de pequenas porccedilotildees do Apocalipse

Eacute de Vitorino em diante que surge a praacutetica de comentar o Apocalipse inteiro ldquocomo

resposta a problemas particulares da igreja de cada eacutepocardquo318 O bispo de Pettau na Panocircnia

Superior romana escreveu um comentaacuterio ao Apocalipse em grego cerca do ano 300 Sobre

ele opinou Jerocircnimo ao falar da praacutetica de explicar um livro biacuteblico inteiro ldquoentre os latinos

por outra parte haacute um grande silecircncio exceccedilatildeo feita do maacutertir Vitorino de santa memoacuteria

que podia dizer com o apoacutestolo que apesar de carecer de eloquumlecircncia natildeo carecia de

ciecircnciardquo319 No Oriente o primeiro comentaacuterio em grego surgiu apenas no sexto seacuteculo de

um autor anocircnimo conhecido apenas como Ecumecircnio320 sendo seguido de perto pelo

Comentaacuterio de Andreas de Cesareia na Capadoacutecia321

O original grego do Comentarius de Vitorino estaacute perdido mas seu texto eacute bem

conhecido por meio da recensatildeo feita por Jerocircnimo para o Latim O bispo de Pettau morreu

no tempo das perseguiccedilotildees de Diocleciano e isso aparece marcado em sua interpretaccedilatildeo do

Apocalipse322 Ele entendia que os eventos narrados no livro de Joatildeo eram iminentes pois

diziam respeito agraves tribulaccedilotildees das igrejas de sua eacutepoca Ele segue a estrutura do Apocalipse

procurando destacar e explicar as passagens do texto joanino que julgava serem mais

difiacuteceis Ao comentar Apocalipse 20 Vitorino expressou a expectativa quiliasta de um reino

milenar de Cristo na terra

Assim pois os que natildeo tomarem a dianteira ao ressuscitar na primeira

ressurreiccedilatildeo e reinar com Cristo sobre toda a terra (super ordem) e sobre

todas as gentes (super gentes universae) ressuscitaratildeo ao toque da

trombeta final depois de mil anos (Commentarius in Apocalypsim 167-

169 PLS)323

Esta expectativa entretanto tornou-se um problema para a Igreja posterior a

Constantino e ao Edito de Toleracircncia de 313 em funccedilatildeo das novas formas eclesiaacutesticas e o

desenvolvimento de redes de relacionamento com o poder temporal324 Por isso a recensatildeo

317 WAINWRIGHT op cit CONSTANTINOU Eugenia Scarvelis Andrew of Caesarea and the Apocalypse

in the Ancient Church of the East Quebec Universiteacute Laval 2008 p 126 318 MATTER op cit p 38 319 Citado a partir de TORROacute Joaquiacuten Pascual Introduccioacuten general In VICTORINO DE PETOVIO

Comentaacuterio al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 9-26 p 11 320 ECUMENIO Comentario sobre el apocalipsis Madrid Cidad Nueva 2008 321 CONSTANTINOU op cit p 134 322 TORROacute op cit p 9 323 VITORINO DE PETOVIO Comentario al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 208-

209 324 MATTER op cit p 39

103

de Jerocircnimo procurou moldar a obra de Vitorino expurgando as afirmaccedilotildees milenaristas

fazendo-a corresponder a uma eacutepoca em que a Igreja estava em paz com o Impeacuterio e com a

sociedade A leitura literal do milecircnio foi transformada em leitura alegoacuterica Segundo

Jerocircnimo na sua revisatildeo do comentaacuterio de Vitorino de Apocalipse 20 ldquoo nuacutemero denaacuterio

significa o decaacutelogo e o centenaacuterio eacute a coroa da virgindaderdquo o que indicaria que o texto

joanino queria ensinar que os cristatildeos virgens natildeo apenas do corpo mas tambeacutem da liacutengua

e do pensamento seratildeo exaltados pelo Cristo do fim dos tempos325

Quase um seacuteculo depois de Vitorino outro autor resolveu escrever uma exposiccedilatildeo

completa do Apocalipse Ele eacute conhecido como Ticocircnio (330-395) e era membro da igreja

donatista do norte da Aacutefrica326 Ele expocircs todo o livro do Apocalipse utilizando os princiacutepios

que havia formulado numa outra obra intitulada Liber regularum327 O comentaacuterio de

Ticocircnio se perdeu mas estudiosos tecircm acesso aos princiacutepios que ele usou para escrevecirc-lo

bem como a reconstruccedilotildees parciais do seu conteuacutedo a partir das citaccedilotildees que dele fizeram

entre outros Primasio Beda e Beato de Liebana

As regras do Liber regularum levaram Ticocircnio a fazer uma leitura do Apocalipse

com ecircnfase na encarnaccedilatildeo de Jesus (Regra 1) no relacionamento entre o Antigo e o Novo

Testamento (Regra III) no simbolismo dos nuacutemeros (Regra V) na recapitulaccedilatildeo (Regra VI)

e na espiritualizaccedilatildeo do milecircnio com uma forte rejeiccedilatildeo do quiliasmo328

O proacuteximo exegeta latino a compor um comentaacuterio ao Apocalipse foi Primasio329

Sua obra Commentarius in Apocalypsim faz uma siacutentese de Vitorino e Ticocircnio Primasio

foi bispo de Justiniapolis no norte da Aacutefrica proviacutencia da Numidia de 527-565 num periacuteodo

de colapso da accedilatildeo imperialista bizantina Apesar de envolvido num clima de instabilidade

social o interesse do bispo africano continuou na linha de Jerocircnimo e Agostinho ao fazer

uma exegese alegoacuterica do Apocalipse330 Como o Apocalipse ainda natildeo tinha marcas de

capiacutetulo e versiacuteculo as definiccedilotildees estruturais do seu comentaacuterio se tornaram importantes na

interpretaccedilatildeo do livro joanino Ele o dividiu em cinco partes 1) sete igrejas 2) sete selos 3)

sete trombetas e a mulher ensolarada 4) as bestas da terra e mar as sete pragas e as sete

325 O texto de Vitorino estaacute publicado em duas seccedilotildees A superior apresenta o texto do proacuteprio bispo de Pettau

traduzido para o Latim A inferior registra a anaacutelise feita por Jerocircnimo sobre a exegese de Vitorino A anaacutelise

de Jerocircnimo mencionada no corpo deste texto estaacute em VITORINO DE PETOVIO op cit p 211 326 CALVO Juan Joseacute Ayaacuten Introduccioacuten In TICONIO Livro de Las Reglas Madri Cidad Nueva 2009 p

11-78 p 14 327 Idem p 28 328 Idem p 39-44 329 MATTER op cit p 41 330 Idem p 42

104

taccedilas 5) o cordeiro sobre o trono o novo ceacuteu e a nova terra331 Matter avalia que todos os

comentaristas do Apocalipse no Ocidente posteriores a Primasio ateacute o seacuteculo XII foram

influenciados por este comentaacuterio332

Autor Data Lugar

Primasio 540 Numiacutedia

Cesaacuterio de Arles 540 Sul da Gaacutelia

Apringius 550 Ibeacuteria

Cassiodoro 575 Sul da Itaacutelia

Beda 730 Northumbria

Ambrosio Autpert 760 Benevento

Beato de Liebana 780 Ibeacuteria

Alcuino 800 Franccedila

Haimo 840 Franccedila

Anocircnimo Seacuteculo IX Franccedila

Glossa Ordinaria 1100 Regiatildeo de Leon

O Beato de Liebana aleacutem de depender de Primasio recorreu pesadamente a Vitorino

e Ticocircnio Em funccedilatildeo do seu papel dentro do cristianismo hispacircnico do seacuteculo VIII os temas

recorrentes no seu comentaacuterio eram a santidade da Igreja e a defesa da divindade de Cristo

contra a teologia adocionista dos seguidores do bispo Elipando de Toledo333

Haacute no Beato uma combinaccedilatildeo significativa de exegese eclesiologia e cristologia que

se tornou recorrente em ambientes monaacutesticos a partir do seacuteculo VIII A perspectiva era de

que o Apocalipse deveria ser interpretado tendo como referecircncia a histoacuteria da Igreja na terra

Beda e Ambrosio Autpert incorporaram as contribuiccedilotildees de Primasio e se tornaram

as grandes bases de interpretaccedilatildeo do Apocalipse no periacuteodo caroliacutengio334 Por meio da obra

Explanatio Apocalypsis Beda apresenta a histoacuteria da Igreja e ao mesmo tempo mantem um

olhar sobre a histoacuteria de toda a criaccedilatildeo Ele fez uso das sete regras de Ticocircnio para descrever

sete periacuteodos da histoacuteria do mundo no Apocalipse 1) as sete igrejas da Aacutesia que descrevem

na realidade as igrejas de Cristo 2) os quatro animais e a abertura dos sete selos revelam os

331 Idem p 43 332 Idem p 44 333 Idem p 46 334 Idem p 47

105

conflitos futuros e triunfos da Igreja 3) as sete trombetas descrevem futuros acontecimentos

da Igreja 4) a Mulher e o Dragatildeo revelam as obras e vitoacuterias da Igreja 5) as sete pragas que

infestaratildeo a terra 6) o castigo da prostituta ou cidade iacutempia 7) a Jerusaleacutem como noiva que

desce do ceacuteu335

O comentaacuterio de Ambrosio Autpert construiu uma leitura alegoacuterica detalhada do

Apocalipse Foi escrito entre 758-767 no ducado Lombardo de Benevento Ele absorveu os

comentaacuterios de Vitorino Ticocircnio Primasio aleacutem das anaacutelises de Agostinho e Gregoacuterio o

Grande Ele estava motivado a fazer uma siacutentese de suas fontes com ecircnfase no ldquocasamento

espiritualrdquo entre Cristo e a Igreja336

Os comentaristas posteriores ao periacuteodo caroliacutengio insistiam em ver no Apocalipse

uma alegoria da histoacuteria da Igreja e procuravam nos comentaacuterios anteriores elementos para

apoiar seus pressupostos exegeacuteticos Haacute pouco interesse na perspectiva da iminecircncia do fim

do mundo que aparecia nos leitores quiliastas dos seacuteculo II e III A insistecircncia dos

comentaristas posteriores a Ticocircnio de rejeitar o quiliasmo levou a uma interpretaccedilatildeo do

Apocalipse que o entende como um guia para a Igreja na terra esperar a uniatildeo com uma

Igreja que jaacute se encontra no ceacuteu337

Neste sentido quando surgem no seacuteculo XII a Glossa ordinaria e os comentaacuterios

de Ruperto de Deutz o conteuacutedo tratado por meio de um comentaacuterio ao Apocalipse era de

cunho mais eclesioloacutegico do que escatoloacutegico Eacute nesta grande tradiccedilatildeo entatildeo que retrocede

a Vitorino e Ticocircnio no Ocidente e Ecumecircnio e Andreas de Cesareia no Oriente que se

insere o Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore

Ao discutir o gecircnero literaacuterio ldquocomentaacuterio biacuteblicordquo entretanto natildeo queremos indicar

que o milenarismo soacute poderia nele se manifestar Nem mesmo afirmar algum tipo de

dependecircncia do Expositio em relaccedilatildeo a um comentaacuterio especiacutefico338 O objetivo eacute demonstrar

que desde Vitorino existiu a praacutetica de comentar de maneira sistemaacutetica e abrangente o

livro do Apocalipse de Joatildeo Um comentaacuterio biacuteblico era um tipo de texto voltado

principalmente para a lideranccedila das igrejas mas com potencial de alcance muito maior jaacute

que logo era transformado em base para os sermotildees dos cleacuterigos339

335 Idem 336 Idem p 48 337 Idem 338 Os autores West e Zindars-Swartz encontram indiacutecio no Expositio de recurso a pelo menos dois comentaacuterios

latinos do Apocalipse Haimo de Auxerre e Beda Cf WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 37 339 Comparar com a anaacutelise de Raquel Parmegiani em PARMEGIANI Raquel de Faacutetima Leituras Medievais

do Apocalipse Comentaacuterio ao Beato de Liebana Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernardo do Campo v 23 n 36

107-125 2009 p 122-124

106

44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse

No Liber introductorius Joaquim explicitou o que o teria levado a escrever o

Expositio

Aceitei expor o Apocalipse que o beato Joatildeo isolado na ilha de Patmos

narrou a partir da sequecircncia de eventos (ex cuius serie) como eu penso (ut

ego extimo) para demonstrar claramente o que eu havia previsto e se estas

coisas satildeo dignas de maior aprofundamento de modo que possam incitar

ao desprezo do mundo (possint ad conseptus seculi) a esposa e os filhos do

reino e endossar a palavra do Senhor que disse ldquoexultai e erguei a cabeccedila

porque a vossa salvaccedilatildeo estaacute proacuteximardquo (Lucas 2128) (Expositio in

Apocalypsim 2b)340

Por meio do seu comentaacuterio ao Apocalipse de Joatildeo o abade queria promover o seu

ideal de pureza para a Igreja latina bem como produzir na audiecircncia do seu Expositio

ldquodesprezo pelo mundordquo (conseptus seculi) O termo conseptus traduzido por

constrangimento desprezo aparece num dicionaacuterio como ldquocom cerca ao redor derdquo ldquocercado

por todos os ladosrdquo ldquofechado completamenterdquo341 Neste sentido tanto Joatildeo quanto Joaquim

parecem se valer de seus textos para incitar e promover ascetismo entre suas respectivas

audiecircncias

Joaquim usou o Expositio para apresentar uma ldquohistoacuteria teoloacutegica do

Cristianismordquo342 narrando o desenvolvimento da Igreja Para o abade desde os dias do seu

aparecimento a Igreja estava se desenvolvendo na direccedilatildeo da sua mais plena expressatildeo

quando deixaraacute de ser a instituiccedilatildeo de Pedro e se transformaraacute na instituiccedilatildeo de Joatildeo um tipo

de monasticismo contemplativo no periacuteodo do descanso sabaacutetico343

Uma das metas de Joaquim era encontrar sentido na histoacuteria humana e ele entendeu

que o Apocalipse poderia ser a fonte para isso344 Ao encaminhar o Expositio para a cuacuteria

papal o abade de Fiore desejava disseminar a ideia de que uma cristandade reformada e

purificada era o objetivo de um processo histoacuterico dinacircmico que tinha suas raiacutezes na

340 Traduzido a partir de TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 80 341 DICIONAacuteRIO LATIM PORTUGUEcircS Porto Editora Porto 2001 p 171 342 POTESTAgrave op cit p 297 343 LERNER Robert E The medieval return to the thousand-year Sabbath In EMMERSON Richard K

MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 51-

71 p 57 344 SMALLEY op cit p 289 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the

Apocalypse In EMMERSON Richard K MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages

London Cornell University Press 1992 p 72-88 p 87

107

antiguidade da histoacuteria de Israel345 A chave para enxergar esta histoacuteria estava no uacuteltimo livro

da Biacuteblia o Apocalipse de Joatildeo

45 Resumo

Joaquim foi um notaacuterio da Calaacutebria que abraccedilou a vocaccedilatildeo monaacutestica depois de uma

peregrinaccedilatildeo agrave Palestina Ingressou num monasteacuterio em Corazzo e se esforccedilou para

incorporaacute-lo a Ordem Cisterciense mas abandonou-o para fundar uma casa monaacutestica nas

montanhas calabresas de Fiore Desde seu retorno agrave Calaacutebria ele manifestou o interesse em

promover ideias a respeito de uma eminente e imimente intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Sua estrateacutegia para divulga-las envolveu a produccedilatildeo de vaacuterios livros entre eles o Expositio

in Apocalypsim uma apresentaccedilatildeo da histoacuteria da Igreja na forma de um comentaacuterio ao

Apocalipse de Joatildeo

345 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 87

V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA

SICIacuteLIA

Em 1191 Joaquim desceu do isolamento de Fiore na Calaacutebria e foi ao encontro de

Henrique VI Imperador Germacircnico perto dos muros de Naacutepoles346 William II rei da

Siciacutelia morrera sem deixar herdeiros e a coroa do Reino fora entregue com o apoio da cuacuteria

romana para o conde Tancredo sobrinho do falecido rei O imperador entretanto entendia

que a coroa da Siciacutelia lhe pertencia Por isso atravessou a Itaacutelia e iniciou uma ofensiva contra

os aliados de Tancredo Joaquim foi ateacute o imperador cujas tropas estavam sofrendo com

uma epidemia e declarou que o evento era consequecircncia do juiacutezo divino Citando a

passagem biacuteblica de Ezequiel 26 Joaquim comparou o sul da Itaacutelia com Tiro e Henrique

com o rei da Babilocircnia Se o monarca persistisse Deus o derrotaria mas se ele se retirasse

em poucos anos Deus daria a ele a vitoacuteria sem que precisasse lutar347

Eacute difiacutecil saber como as palavras de Joaquim influiacuteram nos eventos que se seguiram

Talvez por causa da forccedila de resistecircncia dos aliados de Tancredo ou porque a ajuda naval

que Henrique esperava atrasara ou porque surgira problemas na Germacircnia que precisavam

de sua atenccedilatildeo no final o Imperador e seus cavaleiros voltaram para o norte dos Alpes

Poucos anos depois em 1194 Tancredo morreu e deixou a coroa da Siciacutelia para seu

pequeno filho chamado entatildeo de William III Novamente Henrique reclamou o Reino para

si e sua esposa Constacircncia princesa normanda filha legiacutetima de Rogeacuterio II o fundador do

Reino da Siciacutelia Segundo o Tratado de Veneza de 1177 entre o Reino da Siciacutelia e o Impeacuterio

Germacircnico caso William II morresse sem filhos Constacircncia sua tia seria a herdeira da

Coroa348 Desta vez Henrique entrou na Itaacutelia meridional atravessou o canal de Messina na

direccedilatildeo da Siciacutelia retirou sem grandes dificuldades o filho de Tancredo do trono venceu

pequenos focos de resistecircncia em Palermo e nesta mesma cidade na catedral real foi

coroado rei no natal de 1194 Com isso ele repetiu o gesto que o fundador do Reino Rogeacuterio

II realizara no natal de 1130

346 TURLEY Thomas Joachim of Fiore In EMMERSON Richard K (org) Key figures in medieval Europe

an encyclopedia New York Routledge 2006 p 372-374 p 373 347 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti

Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xix REEVES Marjorie The influence of

Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993

p 11 348 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south In ABULAFIA David (org) Italy in the Central

Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 58-81 p 69

109

Independentemente do papel de Joaquim nos eventos de 1191 ele deve ter sido

significativo porque outro encontro entre o abade de Fiore e o imperador germacircnico se deu

em Palermo Joaquim compareceu agrave coroaccedilatildeo e foi recebido respeitosamente Em outubro

de 1194 pouco antes de receber a coroa da Siciacutelia Henrique VI escreveu uma carta na qual

descreveu Joaquim como ldquoabade de Fiorerdquo e falou claramente do monasteacuterio de Satildeo Joatildeo

em Fiore antes mesmo de uma autorizaccedilatildeo papal para a fundaccedilatildeo da ordem Florense o que

soacute ocorreu em 1196349 Em marccedilo de 1195 Henrique escreveu outra carta garantindo a Satildeo

Joatildeo um dote anual de cinquenta moedas de ouro Bizantinas350 No pouco tempo que

Henrique sobreviveu a estes eventos (ele morreu em 1197) Joaquim e seus monges se

tornaram protegidos do imperador germacircnico e rei da Siciacutelia A rainha Constacircncia fez do

abade seu confessor pessoal ateacute morrer em Palermo em novembro de 1198

Joaquim de Fiore viveu num momento significativo da Itaacutelia meridional entre o auge

e o fim da dinastia normanda no Reino da Siciacutelia periacuteodo descrito pelo historiador inglecircs

Graham Loud como eacutepoca de ouro para o sul da Peniacutensula quando comparada com os

distuacuterbios sociais anteriores agrave chegada dos normandos e a crise da transiccedilatildeo dinaacutestica

posterior agrave morte de William II351 Foi uma eacutepoca em que reis da dinastia Hauteville

conseguiram unificar sob um mesmo governo toda a regiatildeo inferior ao Patrimocircnio de Satildeo

Pedro do rio Garigliano ateacute a ilha da Siciacutelia territoacuterio marcado fortemente pela presenccedila

grega e muccedilulmana espaccedilo de sobrevivecircncias interaccedilotildees e trocas culturais entre grupos

eacutetnicos e religiotildees distintas Espaccedilo onde mesmo o Cristianismo era pluralizado nas formas

grega e latina Para compreender o papel social e religioso do monge calabrecircs eacute importante

atentar para as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia meridional normanda

bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio Hohenstaufen Estes

elementos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim e seus objetivos enquanto

ermitatildeo monge abade escritor e fundador da Ordem Florense

349 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx 350 Idem 351 LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007

p 524

110

51 A chegada dos normandos

Os primeiros normandos chegaram ao sul da Itaacutelia por volta do ano 1000 em

circunstacircncias natildeo tatildeo claras Jaacute eacute possiacutevel discernir a presenccedila deles na revolta de nobres da

Apuacutelia contra autoridades bizantinas em 1017 e 1018352 O quadro encontrado na regiatildeo

manifestava uma divisatildeo poliacutetica complexa com estruturas culturais pluralizadas sem um

poder central Sob este contexto cavaleiros normandos se colocaram como mercenaacuterios a

serviccedilo da populaccedilatildeo lombarda contra os bizantinos de um territoacuterio lombardo contra outro

de liacutederes bizantinos contra sarracenos e eventualmente ateacute mesmo a serviccedilo dos

muccedilulmanos da Siciacutelia contra outros poderes em conflito na ilha353 Inicialmente eles natildeo

passavam de algumas dezenas de cavaleiros que vendiam seus serviccedilos a poderes locais em

vez de se reunirem sob a lideranccedila de outro normando

Nos principados e ducados lombardos eles encontraram um tipo de aristocracia

sobre a qual foram constituiacutedos como condes Em Apuacutelia a estrutura social em funccedilatildeo dos

traccedilos da administraccedilatildeo bizantina era baseada nos encastelamentos um tipo de cidadela ou

vila fortificada e um significativo nuacutemero de pequenos proprietaacuterios Estas vilas fortificadas

(castella) ficavam em posiccedilotildees estrateacutegicas e serviam como centros administrativos da

aristocracia local Na Calaacutebria um terceiro tipo de domiacutenio se manifestou atraveacutes da

construccedilatildeo de castelos utilizados para controlar a regiatildeo circundante por meio de tratados

com as cidades juramento de fidelidade e implementaccedilatildeo de tributos Apoacutes a conquista os

castelos foram entregues a parentes e vassalos dos normandos

Os assentamentos e conquistas dos normandos natildeo tinham como base algum tipo de

acordo amplo para a conquista da Itaacutelia meridional Na busca pelo domiacutenio das regiotildees os

proacuteprios normandos se envolviam em conflitos No final do seacuteculo XI entretanto dois

liacutederes de uma mesma famiacutelia assumiram o poder sobre quase todo o sul da Itaacutelia Roberto

Guiscard com o domiacutenio dos territoacuterios abaixo do Patrimocircnio de Satildeo Pedro ateacute a Calaacutebria

e seu irmatildeo Rogeacuterio de Hauteville que dirigiu a conquista da ilha da Siciacutelia

Roberto Guiscard morreu em 1085 deixando o territoacuterio conquistado para seus

filhos Rogeacuterio de Hauteville entretanto posteriormente conhecido como Rogeacuterio I

sobreviveu ao seu irmatildeo mais de uma deacutecada promovendo um estaacutevel governo sobre a

Siciacutelia O conde Rogeacuterio I se casou trecircs vezes mas foi com sua terceira esposa Adelaide

352 Idem p 17 353 CHIBNALL Marjorie The Normans Oxford Blackwell Publishing 2006 p 76

111

filha do marquecircs Manfredo de Savona do norte da Itaacutelia que ele teve seus herdeiros Simatildeo

e Rogeacuterio posteriormente Rogeacuterio II Sua morte em 1101 legou o condado da Siciacutelia para

seus filhos ainda menores Simatildeo era o sucessor imediato mas faleceu logo deixando

Rogeacuterio como uacutenico herdeiro Adelaide de Savona no periacuteodo de menoridade governou o

ducado Uma de suas accedilotildees foi levar a corte para Palermo na Siciacutelia que fora a sede do

domiacutenio muccedilulmano Em 1112 finalmente Rogeacuterio II assumiu o poder e no ano seguinte

Adelaide deixou a Siciacutelia para se casar com o rei Balduiacuteno de Jerusaleacutem354

52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia

A partir de 1121 Rogeacuterio II avanccedilou sobre a Calaacutebria agrave custa de seu primo o duque

William de Apuacutelia No ano seguinte jaacute era senhor de todo o territoacuterio calabrecircs e a partir de

1129 o sul italiano estava unificado sob um uacutenico poder mais uma vez coisa que natildeo

acontecia desde o imperador Justiniano no seacuteculo VI355 A extensatildeo do seu domiacutenio pela

Sicilia Calaacutebria Apuacutelia e outros territoacuterios que se estendiam quase ateacute Roma356 poderiam

justificar um status real mas a transiccedilatildeo para a monarquia teve como ponto de partida um

conflito dentro da Igreja de Roma

Em fevereiro de 1130 apoacutes a morte do papa Honoacuterio II um coleacutegio de cardeais

dividido provocou um cisma papal Anacleto II foi eleito papa e permaneceu em Roma

Inocecircncio II recebeu o tiacutetulo e deixou a cidade em busca de apoio357 Anacleto II recorreu ao

conde Rogeacuterio II da Siciacutelia com a disposiccedilatildeo de coroaacute-lo como rei em troca de proteccedilatildeo e

suporte financeiro Apoacutes a efetivaccedilatildeo do acordo nasceu o Reino da Siciacutelia atraveacutes da bula

papal de setembro de 1130 A coroaccedilatildeo se deu no natal deste mesmo ano na catedral de

Palermo358

Anacleto II morreu em 1138 e Inocecircncio II voltou para Roma como uacutenico papa Ele

declarou nulas todas as accedilotildees de Anacleto e ainda promoveu uma cruzada contra Rogeacuterio

354 MAYER Hans Eberhard The Latin east 1098-1205 In LUSCOMBE David (org) The New Cambridge

Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v V 4 p

644-674 p 648 355 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century In LUSCOMBE David (org) The New

Cambridge Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v

V 4 p 442-474 p 447 356 Conferir um mapa do Reino Normando da Siciacutelia no anexo 3 357 CHIBNALL op cit p 86 358 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 448

112

Aleacutem da inimizade papal a alianccedila entre um papa cismaacutetico e Rogeacuterio havia colocado o

Reino da Siciacutelia em conflito com as forccedilas do Impeacuterio Germacircnico e do Impeacuterio Bizantino

ambos se declarando senhores legiacutetimos da Itaacutelia meridional e rejeitando a prerrogativa

normanda

Mesmo assim a liga construiacuteda por Inocecircncio II para enfrentar o Reino da Siciacutelia natildeo

conseguiu impedir a estabilizaccedilatildeo e o desenvolvimento das estruturas monaacuterquicas359

Finalmente em julho de 1139 o proacuteprio papa foi capturado pelas forccedilas de Rogeacuterio II

forccedilando o reconhecimento da monarquia Rogeacuterio foi aclamado como Rei da Sicilia duque

da Apuacutelia e Priacutencipe de Caacutepua (Rex Siciliae ducatus Apuliae et principatus Capuae) Apoacutes

o fim de uma deacutecada de conflitos o rei Rogeacuterio finalmente conseguiu derrotar as grandes

frentes de oposiccedilatildeo ao Reino

Rogeacuterio II se casou trecircs vezes Com a primeira esposa Elvira filha de Alfonso VI de

Castela teve quatro filhos Rogeacuterio Anfusus Tancredo e William Casou-se ainda com

Sibilia filha do duque Hugo da Burgundia na Franccedila e por fim com Beatriz filha do conde

Rethel igualmente francesa360 Com esta uacuteltima ele teve uma filha que nasceu pouco depois

de sua morte Constacircncia posteriormente desposada por Henrique VI da Germacircnia

Quando Rogeacuterio II morreu em 1154 o sucessor escolhido William posteriormente

conhecido como William I ainda era uma crianccedila O reino precisou ser governado por

Beatriz durante o tempo de menoridade do novo rei Um periacuteodo de instabilidade poliacutetica se

manifestou principalmente na parte continental do reino e se estendeu por todo o tempo de

governo (1154-1166)361

Siciacutelia continuava debaixo da hostilidade do Imperador Germacircnico e do Impeacuterio

Bizantino A cuacuteria papal ainda era hostil com o argumento de que o reino fora reconhecido

por Inocecircncio II apenas sob coaccedilatildeo A nobreza das proviacutencias fronteiriccedilas como o

principado de Caacutepua e as bordas de Abruzzi entraram em revolta As cidades de Apuacutelia

igualmente saiacuteram do controle real e reivindicaram autonomia Mas novamente os

adversaacuterios do reino natildeo se juntaram e perseguiram propoacutesitos distintos O imperador

Frederico Barbarroxa precisou rapidamente se concentrar na luta contra as comunas do norte

da Itaacutelia o que deixou o reino circunstancialmente fora de suas investidas O papa Adriano

IV finalmente fechou um acordo com o rei William I em Benevento em 1156 que

359 Idem 360 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily

Mediterranean Studies State College Pennsylvania v 12 p 1-15 2003 p 12 361 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 454

113

restaurou as boas relaccedilotildees entre o Reino da Siciacutelia e o papado A ameaccedila de Bizacircncio por

sua vez conseguiu ser parcialmente neutralizada com um tratado em 1158

Mas se as ameaccedilas internacionais foram minimizadas principalmente por meio de

acordos a situaccedilatildeo interna do Reino ainda era conflituosa As agitaccedilotildees internas

acompanharam William I praticamente ateacute o fim do seu governo Ele morreu em 1166

deixando o reino para o filho igualmente chamado William ainda menor O reino foi

governado pela matildee do jovem sucessor a rainha Margarete filha do rei Garcia de Navarra

na Espanha ateacute 1171 quando William II atingiu a maioridade

William II como o pai viveu a maior parte de sua vida em seu palaacutecio em Palermo

governando por meio do coleacutegio familiares362 Ele conseguiu pacificar internamente o reino

inclusive trazendo de volta opositores que tinham sido exilados no governo anterior

Externamente os antigos adversaacuterios foram pacificados por meio de tratados O rei renovou

o tratado com o papado e com o Impeacuterio Bizantino Soacute faltava mesmo vencer a resistecircncia

do Impeacuterio Germacircnico o que foi alcanccedilado com o Tratado de Veneza de 1177 que

assegurou a treacutegua em troca do casamento da tia de William II Constacircncia com Henrique

VI filho de Frederico Barbarroxa O casamento aconteceu em Milatildeo em janeiro de 1186

Com esse acordo o Impeacuterio Germacircnico finalmente reconheceu a legitimidade do Reino da

Siciacutelia O preccedilo a ser pago foi a designaccedilatildeo de Constacircncia como herdeira da coroa real caso

William morresse sem herdeiros Quando o acordo foi feito a idade do rei e da rainha Joana

filha do rei Henrique II da Inglaterra era um fator de confianccedila na descendecircncia real A

maior probabilidade era que o casal viesse a ter um herdeiro o que automaticamente

invalidaria o direito de Constacircncia363 Mas este acordo com a Germacircnia colocou um fim na

dinastia Hauteville na Itaacutelia meridional jaacute que William II morreu bruscamente no dia 11 de

novembro de 1189 sem deixar herdeiros

53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen

A morte de William II foi seguida por uma divisatildeo dentro do reino Um grupo de

oficiais proeminentes da corte liderados por um membro do coleacutegio familiares Mateus de

Salerno levantou um candidato proacuteprio o conde Trancredo de Lecce primo de William II

362 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p

10-11 363 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 472

114

rejeitando os direitos de Constacircncia e Henrique Tancredo foi coroado rei em 18 de janeiro

de 1190 com o apoio do papado que natildeo desejava a uniatildeo do Reino da Siciacutelia com o Impeacuterio

Germacircnico364

Henrique ateacute tentou destituir Tancredo mas acabou retornando para a Germacircnia apoacutes

o cerco a Naacutepolis jaacute mencionado na abertura deste capiacutetulo Com isso Tancredo conseguiu

governar o Reino da Siciacutelia com o apoio da Igreja de Roma ateacute morrer em fevereiro de

1194 O filho de Tancredo William III foi declarado rei mas era apenas uma crianccedila

Henrique VI novamente reivindicou o direito sobre a coroa da Siciacutelia Desta vez suas

investidas foram mais eficientes Palermo caiu em novembro de 1194 e Henrique foi

coroado rei da Siciacutelia no dia 25 de dezembro na catedral da cidade

Mesmo que Constacircncia fosse uma herdeira normanda legiacutetima filha do fundador do

Reino Rogeacuterio II o rei agora era um monarca estrangeiro de linhagem germacircnica Frederico

II filho de Constacircncia e Henrique apoacutes a morte dos pais e um longo periacuteodo de menoridade

sob a tutela do papa Inocecircncio III implementaraacute um novo governo forte e centralizado365

Todavia mesmo carregando o sangue Hauteville por parte da matildee tambeacutem era herdeiro dos

Hohenstaufen por parte do pai Ele precisou se dividir em ser rei na Itaacutelia e Imperador na

Germacircnia

54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada

Em 1140 o filho mais velho do rei Rogeacuterio II e Elvira de Castela o duque Rogeacuterio

de Apuacutelia foi ateacute a regiatildeo central da Siciacutelia Ele precisava averiguar o patrimocircnio da coroa

que estava em uso irregular de um monasteacuterio grego O monasteacuterio em questatildeo era Satildeo

Cosme de Gonato que tinha se apossado de terras de cultivo algumas vinhas e um moinho

real O duque Rogeacuterio durante a investigaccedilatildeo interrogou o abade local Metoacutedio que alegou

ter recebido o patrimocircnio em possessatildeo durante a gestatildeo do governador Caid Maimunes366

Apoacutes a investigaccedilatildeo o duque Rogeacuterio emitiu um documento para o monasteacuterio em

1142 que comeccedilava com as seguintes palavras

364 Idem 365 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south op cit p 70 366 Conferir a anaacutelise deste evento bem como uma reproduccedilatildeo do documento em grego e espanhol em

ANDREacuteS Gregoacuterio de Um diploma griego del Duque Normando Roger Priacutencipe de Sicilia (A 1142)

Erytheia Revista de estuacutedios bizantinos y neogriegos Madri v 1 n 6 p 61-68 1985

115

Diploma dado por mim Rogeacuterio ilustriacutessimo Duque e filho do piedoso e

grande rei dirigido a ti Metoacutedio abade do monasteacuterio de Satildeo Cosme

chamado o Gonato situado nos montes de Petraacutelia no mecircs de abril dia 6

quinta-feira Depois que entrei em completo domiacutenio e governo da regiatildeo

de Petraacutelia que o poderosiacutessimo rei e meu pai me entregou chegou a meus

ouvidos que muitas e diversas pessoas tecircm se apossado de campos

cultivados e vinhas de domiacutenio real como se fossem proacuteprios367

Rogeacuterio argumentou que as posses eram da coroa e natildeo do governador e neste caso

a doaccedilatildeo fora irregular No decorrer do diploma Rogeacuterio reinvindicou a propriedade real

sobre o moinho mas ciente de que o monasteacuterio precisava dele prometeu um dote de trigo

anual procedente de terras reais com a ldquocondiccedilatildeo de que se rogue pela salvaccedilatildeo espiritual

do pai Rogeacuterio II e a matildee Elvira pela sua proacutepria e pela paz do mundordquo368 Quanto agraves terras

e vinhas Rogeacuterio tanto declarou-as como propriedade da Coroa como devolveu-as como

dote real definitivo para o monasteacuterio ldquoenquanto o mundo natildeo acabarrdquo369

Este evento bem como o diploma do conde Rogeacuterio apresentam um elemento

significativo do Reino da Siciacutelia no periacuteodo dos Hauteville elemento que apesar de se

alterar com o passar do tempo esteve presente ateacute o fim do seacuteculo XII a diversidade cultural

e religiosa bem como as interaccedilotildees franqueadas entre estas diversas culturas Trecircs grupos

sociais aparecem no diploma O normando representado pelo duque Rogeacuterio filho do rei

Rogeacuterio II o grego representado pelo abade Metoacutedio e seu monasteacuterio o aacuterabe

representado pelo Caid Maimunes administrador da regiatildeo de Petraacutelia370 O termo caid

era um vocaacutebulo de dignidade entre os sarracenos mas foi usado frequentemente no Reino

da Siciacutelia para descrever um muccedilulmano que se convertia ao cristianismo e atuava em algum

espaccedilo do governo geralmente na administraccedilatildeo financeira como coletor de impostos ou

tesoureiro

O monasteacuterio grego de Satildeo Cosme de Gonato na Petraacutelia evidencia a presenccedila de

diversas casas gregas espalhadas pelo reino isentas da jurisdiccedilatildeo episcopal latina que

viviam um tipo de monasticismo oriental basiliano Vaacuterios deles podem ter se instalado na

Itaacutelia meridional durante a perseguiccedilatildeo dos imperadores iconoclastas e sobreviveram na

Siciacutelia mesmo durante o domiacutenio muccedilulmano371

367 Idem p 66 368 Idem p 67-68 369 Idem p 68 370 Idem p 63 371 BUONAIUTI Ernesto Storia del Cristianesimo II - Evo Medio Milano DallOglio 1960 p 365

116

Em termos literaacuterios o diploma do duque Rogeacuterio de Apuacutelia foi escrito em grego

tendo em vista que o abade e seus monges eram gregos Possivelmente o duque Rogeacuterio I

instaurador da dinastia Hauteville na Siciacutelia tinha dificuldades com a liacutengua grega ou aacuterabe

e precisou da ajuda de autoacutectones para se comunicar com a populaccedilatildeo dominada Mas seu

filho Rogeacuterio II criado na Calaacutebria primeira sede do ducado natildeo apresentava a mesma

dificuldade Ele conhecia as liacutenguas grega e aacuterabe e marcou a corte do Reino da Siciacutelia com

elementos dessas culturas Quase todas as suas assinaturas sobreviventes foram escritas em

grego Selos reais continham a seguinte legenda grega ldquoRogerioj Krataioj Eusebhj Rhxrdquo

(ldquoRogeacuterio forte e poderoso reirdquo) Posteriormente ele acrescentou uma inscriccedilatildeo latina

ldquoRogerius Dei Gracia Sicilie Calabrie Apulie Rexrdquo (ldquoRogeacuterio pela graccedila de Deus rei da

Siciacutelia Calabria e Apuliardquo)372 Segundo Takayama tanto Rogeacuterio II quanto seus

descendentes William I e William II tiveram interesse em aprender artes e reuniram saacutebios

astroacutelogos filoacutesofos e geoacutegrafos de origem grega e aacuterabe no palaacutecio real de Palermo373 Este

historiador japonecircs avalia que ldquoos reis normandos da Siciacutelia com o suporte destes burocratas

gregos e aacuterabes eram reis cristatildeos mergulhados ateacute os joelhos nas culturas islacircmica e

gregardquo374

Em termos administrativos a Calaacutebria antes bizantina manteve muito de sua

estrutura administrativa sob o domiacutenio Hauteville O mesmo se deu na Siciacutelia com os

elementos estruturais criados pelos muccedilulmanos Em ambas as regiotildees oficiais indiacutegenas

locais continuaram sendo aproveitados pelos reis normandos na administraccedilatildeo do reino375

Apoacutes a unificaccedilatildeo em 1130 como parte da organizaccedilatildeo da coroa novas leis foram

criadas No prefaacutecio das Leis de Ariano de 1140 por exemplo a questatildeo das interaccedilotildees

culturais chama a atenccedilatildeo ao assinalar que ldquodiferentes povos sob o governo poderiam

manter seus proacuteprios costumes e leis desde que natildeo se colocassem em direto confronto com

as novas leis do Reinordquo376 Especialmente durante o governo de Rogeacuterio II os muccedilulmanos

poderiam guardar a lei coracircnica entre eles e os gregos o direito justiniano377

372 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p

5 373 Idem p 6 374 Idem p 15 375 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 460 376 Idem p 461 cf tambeacutem DRELL Joanna H Cultural syncretism and ethnic identity The Norman

lsquoconquestrsquo of Southern Italy and Sicily Journal of Medieval History Amsterdam v 25 n 3 p 187-202 1999

p 201 377 SZAacuteSDI LEON-BORJA Istvaacuten CORREIA DE LACERDA Vitaline Alfonso Henriques y Roger II de

Sicilia dos vidas paralelas de condes a reyes Una clave para la comprensioacuten del nascimento del Reino de

Portugal Estudios de Historia de Espantildea Buenos Aires v 13 p 55-72 2011 p 64 Hubert Houben

117

Isso significava a autorizaccedilatildeo para que os nativos italianos ainda chamados de

lombardos bem como gregos e muccedilulmanos permanecessem sob o poder de costumes

proacuteprios administrados por seus juiacutezes especialmente nas cidades ou por aristocratas que

possuiacuteam autoridade judicial em suas proacuteprias terras A justiccedila real se encarregaria

particularmente da ordem puacuteblica e das disputas de propriedade funcionando mais como

uma corte de apelaccedilatildeo378 Aleacutem disso especialmente na ilha da Siciacutelia sede do governo as

leis e decretos reais eram publicados em grego latim e aacuterabe379

Mesmo com as mudanccedilas demograacuteficas provocadas pelas migraccedilotildees latinas

favorecidas com a presenccedila do domiacutenio normando o Reino da Siciacutelia chegou ao final do

seacuteculo XII como uma entidade unificada politicamente mas pluralizada etnicamente380

fenocircmeno que Marjorie Chibnall definiu como ldquomulti-culturalrdquo381

No caso dos gregos havia uma presenccedila substancial desta populaccedilatildeo na ilha da

Siciacutelia e na Calaacutebria principalmente na parte sul desta proviacutencia Eles se concentravam tanto

nas cidades quanto nos campos onde construiacuteam suas igrejas com ritos e liturgia orientais382

Com a chegada dos Hauteville natildeo havia mais qualquer impedimento para que essa

populaccedilatildeo buscasse fazer novos membros atraveacutes do proselitismo O mesmo natildeo poderia

mais se dar por parte dos muccedilulmanos Isso fazia com que conversotildees de muccedilulmanos para

o cristianismo grego se tornassem um fenocircmeno relativamente frequente Jaacute a conversatildeo

muccedilulmana para o cristianismo latino era mais rara383

Em relaccedilatildeo ao elemento muccedilulmano Rogeacuterio I jaacute havia prometido no momento da

conquista natildeo promover accedilotildees agressivas contra essa parte da populaccedilatildeo da Siciacutelia As

maiores mesquitas foram confiscadas mas os muccedilulmanos receberam a garantia de que

poderiam praticar sua religiatildeo em troca do pagamento de uma taxa a gesia384 Nesta fase

entretanto problematiza esta questatildeo argumentando que ldquoa liberdade religiosa eram somente garantida onde

a maioria dos habitantes era muccedilulmana como era o caso de Palermo onde havia a necessidade de contiacutenua

cooperaccedilatildeordquo Cf HOUBEN Hubert Religious toleration in the South Italian Peninsula during the Norman and

Staufen Periods In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002 p

319-339 p 322 378 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 461 379 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 64 380 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 471 381 CHIBNALL op cit p 88 382 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in

Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 22 383 ABULAFIA David The Italian other Greeks Muslims and Jews In ABULAFIA David (org) Italy in

the Central Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 215-236 p 220 384 Idem p 223

118

da conquista o objetivo de Rogeacuterio era pragmaacutetico Ele precisava da populaccedilatildeo muccedilulmana

para dar estabilidade agrave ilha

Com o passar do tempo entretanto a populaccedilatildeo muccedilulmana declinou

substancialmente ateacute que durante o governo de Frederico II (rei de 1198-1250) natildeo

restassem mais do que 40 mil muccedilulmanos que acabaram sendo deportados para o

continente formando uma colocircnia em Lucera A causa mais imediata desse decliacutenio foi o

fluxo migratoacuterio de cristatildeos latinos para a ilha principalmente oriundos do norte da Itaacutelia

Mas outros fatores podem ser mencionados como a saiacuteda de muccedilulmanos para outros

espaccedilos de domiacutenio muccedilulmano como o norte da Aacutefrica a conversatildeo de muccedilulmanos para

o cristianismo mesmo que sob a forma de pseudo-conversatildeo e a escravizaccedilatildeo Os poucos

muccedilulmanos que ainda sobreviveram na Siciacutelia no seacuteculo XIII em sua maioria eram

escravos ou comerciantes

55 A Igreja no Reino da Siciacutelia

Formalmente o reino da Siciacutelia era um feudo papal da mesma forma que o ducado

de Apuacutelia e o principado de Caacutepua tinham sido a partir de 1059 Em 1130 o tiacutetulo real foi

dado pelo papa Anacleto II durante o cisma em 1139 Rogeacuterio II fez homenagem ao papa

Inocecircncio II em 1156 William I repetiu o gesto do pai diante de Adriano IV Ambos os reis

concordaram em pagar um census anual ao papado como recompensa pelo feudo385 Essa

relaccedilatildeo feudal entretanto precisa ser problematizada Os Hauteville jaacute eram governantes

antes de receberem o reconhecimento papal O domiacutenio natildeo foi criado pela homenagem

papal Eacute neste sentido que se daacute a sugestatildeo de Istvaacuten Szaacuteszdi Leoacuten-Borja e Vitaline Correia

de Lacerda de que este relacionamento feudal era parte de uma estrateacutegia dos liacutederes

normandos para obter o reconhecimento da Cristandade quanto a seus domiacutenios386 No caso

da igreja de Roma poderia ser uma estrateacutegia para aumentar a autoridade papal dentro do

reino o que natildeo aconteceu necessariamente apoacutes a fundaccedilatildeo do Reino da Siciacutelia em funccedilatildeo

do cisma papal A relaccedilatildeo entre a coroa e o papado foi difiacutecil principalmente entre 1139 e

1156 A reorganizaccedilatildeo episcopal feita na Siciacutelia a pedido do papa cismaacutetico Anacleto II

entre 1130-1131 especialmente era inaceitaacutevel para a cuacuteria papal

385 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 465 386 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 55

119

Aleacutem disso a forma como o duque e posteriormente rei Rogeacuterio II exercia o

controle sobre a Igreja dentro do seu territoacuterio era considerado uma infraccedilatildeo agrave autonomia da

igreja387 Suas accedilotildees tinham como fundamento um antigo acordo realizado por Rogeacuterio I e

o papa Urbano II para a organizaccedilatildeo da Igreja da Siciacutelia Em um dos elementos do acordo

o papa se comprometia a natildeo eleger o legado papal para a ilha sem a aquiescecircncia de Rogeacuterio

e na ausecircncia do legado o proacuteprio conde exerceria este papel388 Rogeacuterio II entendeu que

este benefiacutecio pouco usual para um leigo era hereditaacuterio e passou a agir como legado papal

na Siciacutelia389

Finalmente o Tratado de Benevento em junho de 1156 entre o papa Adriano IV e

William I marcou o fim do periacuteodo de hostilidade Graham Loud destaca trecircs aspectos do

tratado como significativos para as relaccedilotildees entre a coroa e o papado Primeiramente

Adriano IV recebeu a homenagem do rei normando e investiu-o no seu reino Com isso a

natureza hereditaacuteria do tiacutetulo real estava confirmada Em segundo lugar as fronteiras ateacute

entatildeo em disputa foram confirmadas comeccedilando em Abruzzi no norte e terminando na

ilha da Siciacutelia Terceiro os direitos reais sobre a Igreja do reino foram definidos Bispos e

abadias faziam suas proacuteprias eleiccedilotildees devendo o rei apenas aceitar ou vetar a escolha O

privileacutegio ainda dado por Urbano II a Rogeacuterio I foi confirmado mas exclusivamente para a

ilha da Siciacutelia no sentido de que os legados papais precisariam ser confirmados pelo rei e

na ausecircncia deles o proacuteprio rei exerceria este papel390

Com a chegada dos normandos a relaccedilatildeo entre igreja latina e grega sofreu o impacto

das mudanccedilas poliacuteticas391 Em 1059 Roberto Guiscard estabeleceu com o Papa Nicolau II o

compromisso de transferir para a jurisdiccedilatildeo papal todas as igrejas de seus domiacutenios Ele fez

juramento similar diante do papa Gregoacuterio VII em 1080 Em outros instantes entretanto o

liacuteder normando poderia dar um arcebispado ou um monasteacuterio importante sob seu domiacutenio

para um cleacuterigo de sua terra natal da Normandia ou Franccedila Contudo natildeo havia por parte

dos governantes algum movimento expliacutecito de latinizaccedilatildeo das igrejas gregas392 Isso porque

387 Idem p 465 388 Idem p 61 389 SKINNER Patricia Roger I (1031-1101 r 1085-1101) In EMMERSON Richard K (org) Key figures

in medieval Europe an encyclopedia New York Routledge 2006 p 575-576 p 574 390 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 164-165 391 HERDE Peter The Papacy and the Greek Church in the Sourthern Italy between the eleventh and the

thirteenth century In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002

p 213-251 p 216 392 Para James Morton a hipoacutetese de uma poliacutetica expliacutecita de latinizaccedilatildeo por parte dos normandos ou do

papado eacute fruto de uma perspectiva ldquofrancocecircntricardquo da histoacuteria medieval Cf MORTON op cit p 8

120

uma igreja grega poderia sobreviver debaixo da jurisdiccedilatildeo de um bispo latino desde que se

fizesse juramento de fidelidade ao bispo de Roma393 Bispos e cleacuterigos gregos poderiam

manter seus ofiacutecios e seus ritos bastando declarar ou admitir a prerrogativa papal de

primazia e o direito de investidura dos papas sobres os bispos da Itaacutelia394

Divergecircncias menores entre as duas igrejas poderiam aparecer no campo da

linguagem do rito e dos costumes Enquanto na Igreja Latina a liacutengua lituacutergica era o latim

na Igreja Grega a liacutengua era o grego395 Os ritos poderiam variar principalmente a Eucaristia

por causa da divergecircncia sobre o patildeo apropriado para a celebraccedilatildeo ou a mistura de aacutegua no

vinho No campo dos costumes debates poderiam aparecer a respeito das vestimentas dos

cleacuterigos e ateacute mesmo sobre a presenccedila ou ausecircncia de barba nos sacerdotes

A divergecircncia significativa entretanto estava no espaccedilo do dogma com a questatildeo

da claacuteusula filioque Do periacuteodo caroliacutengio para frente a Igreja latina passou a professar que

o Espiacuterito procedia do Pai e do Filho uma alteraccedilatildeo do antigo credo que os gregos nunca

aceitaram396

A questatildeo do celibato dos cleacuterigos era outro significativo elemento de distinccedilatildeo entre

igreja grega e latina Enquanto a Igreja Latina proibia bispos e sacerdotes de se casarem na

Igreja Grega eles poderiam continuar casados397 Na Itaacutelia meridional onde cleacuterigos gregos

e latinos viviam lado a lado era difiacutecil impor a observacircncia do celibato sobre todos os latinos

No iniacutecio do seacuteculo XIII Inocecircncio III demandou que bispos gregos da Itaacutelia

meridional atuassem apenas onde a populaccedilatildeo fosse exclusivamente grega e desde que estes

bispos gregos se submetessem ao papado Em dioceses onde a populaccedilatildeo contivesse a

presenccedila de gregos e latinos o bispo deveria ser latino Com o pontificado deste papa natural

de Anagni os ritos gregos passaram a ser limitados398 O resultado foi o desaparecimento da

Igreja Grega na Itaacutelia meridional convertida em latina com algumas poucas exceccedilotildees como

o monasteacuterio de Theotokos de Patiron em Rossano que permaneceu grego quanto agrave

linguagem e rito ateacute meados do seacuteculo XIX399

393 HERDE op cit p 217 394 Idem p 222 395 Idem p 224 396 Idem p 234 397 Idem p 237 398 Idem p 243 399 MORTON op cit p 6

121

56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda

A Itaacutelia meridional nos seacuteculos XI e XII contava com a presenccedila tanto do

monasticismo ocidental quanto do oriental O oriental especificamente era encontrado sob

algumas formas baacutesicas koinobion comunidades monaacutesticas vivendo segundo uma regra

em comum normalmente uacutenica para aquele monasteacuterio a lavra uma comunidade de

monges que viviam perto uns dos outros e compartilhavam serviccedilos lituacutergicos a kella que

era uma rejeiccedilatildeo da comunidade usualmente natildeo tendo mais do que um monge e seus poucos

disciacutepulos vivendo em uma caverna ou casa desabitada400

Segundo Morton em periacuteodos de crise econocircmica e social predominava o tipo anti-

comunitaacuterio Em periacuteodos de estabilidade poliacutetica e social predominavam as comunidades

melhor organizadas do tipo cenoacutebio401 O periacuteodo anterior agrave chegada dos normandos na Itaacutelia

Meridional foi marcado por instabilidade consequentemente com predomiacutenio do

monasticismo anti-comunitaacuterio com foco em ascetas individuais e itinerantes Estas

fundaccedilotildees monaacutesticas eram efecircmeras e sumiam assim que o fundador morria Os disciacutepulos

se juntavam em torno de uma pessoa e natildeo em torno de uma instituiccedilatildeo As comunidades

poderiam ter alguma propriedade mas eram relativamente independentes

As comunidades sentiam o impacto das invasotildees no sul da Itaacutelia que se sucederam a

partir da chegada dos lombardos no seacuteculo VI Lombardos sarracenos e bizantinos

disputaram a regiatildeo durante os seacuteculos anteriores agrave chegada dos normandos promovendo

instabilidade para as casas monaacutesticas O monasteacuterio de Monte Cassino pode ser um

exemplo neste caso A casa foi fundada na primeira metade do seacuteculo VI mas abandonada

em 581 durante as invasotildees lombardas Em 718 foi novamente povoada ateacute que em 883 foi

capturada pelos sarracenos Seus monges fugiram para a Campanha e parecem ter retornado

apenas algumas deacutecadas depois O periacuteodo das invasotildees era marcado por saques e violecircncias

contras as casas estabelecidas Em funccedilatildeo disso predominava no Sul o monasticismo

itinerante em torno de ascetas carismaacuteticos Quando a situaccedilatildeo poliacutetica ganhava alguma

estabilidade os novos poderes lombardos ou bizantinos imprimiam nas casas o caraacuteter

descentralizado da regiatildeo Os priacutencipes ou duques patrocinavam a reconstruccedilatildeo das casas

monaacutesticas mas sem organizaccedilatildeo ou centralizaccedilatildeo eclesiaacutestica Segundo Loud tanto o

400 Idem p 39 401 Idem p 40

122

papado quanto Bizacircncio tentaram controlar as casas e as igrejas do Sul com a criaccedilatildeo de

novos arcebispados gregos e latinos mas o resultado foi muito pequeno402

A maioria das fundaccedilotildees deste periacuteodo seguiam na teoria a Regra de Satildeo Bento

apesar das praacuteticas e costumes variarem consideravelmente Especialmente na Calaacutebria

havia uma grande presenccedila do monasticismo grego tanto na sua versatildeo cenobiacutetica quanto

na eremita

Apoacutes a consolidaccedilatildeo da conquista normanda os novos condes e duques logo se

tornaram tambeacutem patronos dos monasteacuterios gregos e latinos403 Em linhas gerais eles se

envolviam mais no patrociacutenio de casas monaacutesticas jaacute presentes na regiatildeo do que fundando

casas rivais Mesmo assim numerosas casas foram criadas pelos novos governantes Dos

cerca de 20 monasteacuterios gregos surgidos durante o governo do conde Rogeacuterio I ele esteve

pessoalmente envolvido em 14 deles404

Ateacute cerca de 1150 os maiores monasteacuterios do sul da Itaacutelia eram todos de rito

beneditino Monte Cassino Cava Venosa Lipari e Catania405 Segundo Loud ldquoa conquista

normanda sem duacutevida beneficiou o monasticismo beneditinordquo406 que ganhou a proteccedilatildeo dos

novos governantes expandiu suas congregaccedilotildees adquiriu novas propriedades e aumentou a

aacuterea geograacutefica de seus domiacutenios Montecassino liderou o processo de crescimento Durante

o periacuteodo de 1058-1105 este monasteacuterio recebeu 134 igrejas tanto por dote quanto pela

compra de igrejas subordinadas407 A forte criacutetica contra a igreja privada apesar de natildeo ter

eliminado completamente o fenocircmeno incentivou muitas transferecircncias de igrejas das matildeos

de leigos para instituiccedilotildees monaacutesticas

A conquista normanda poderia ter aberto o monasticismo meridional italiano para

influecircncias externas mas isso se deu de forma muito lenta Somente uma casa cluniesense

foi fundada na ilha da Siciacutelia durante o seacuteculo XII talvez sob o iacutempeto de Elvira a esposa

de Rogeacuterio II cujo pai Alfonso VI de Castela era um patrono do movimento de Cluny408

Outros novos movimentos religiosos tambeacutem natildeo tiveram impacto significativo no sul da

Itaacutelia antes do final do seacuteculo XII O conde Rogeacuterio I fundou uma casa Agostiniana em

402 LOUD G The Latin Church in the Norman Italy op cit p 35 403 MORTON op cit p 45 404 Idem p 50 405 Idem p 56 406 LOUD Graham H The Latin Church in the Norman Italy op cit p 430 Este historiador acrescenta ldquoas

pequenas casas independentes tendiam a ser absorvidas pelas congregaccedilotildees das grandes casas beneditinas e

novas fundaccedilotildees observavam a Regra de Satildeo Benedito desde o seu iniacuteciordquo Idem p 470 407 Idem p 434 408 Idem p 484

123

Bagnara sul da Calaacutebria em 1085 Posteriormente em 1090 convidou Bruno de Cologne

fundador da ordem Cartusiana para fundar uma comunidade na mesma regiatildeo em 1090

Comparado com o norte da Europa entretanto o nuacutemero destas casas sob o domiacutenio

normando era muito pequeno

Neste mesmo sentido se deu a chegada dos Cistercienses O primeiro monasteacuterio da

Ordem de Cister na regiatildeo foi Santa Maria Sambucina perto de Cosenza Calabria terra

natal de Joaquim de Fiore pouco antes de 1145409 Outro monasteacuterio cisterciense foi

estabelecido na Siciacutelia em Prizzi em 1155 mas como seu fundador esteve envolvido na

morte do primeiro ministro Maio de Bari isto tirou a possibilidade de que esta casa tivesse

progresso dentro do reino A proacutexima casa cisterciense fundada foi Santa Maria de Ferraria

na diocese de Teano principado de Caacutepua em 1171 como um priorado de Fossanova e se

tornou abadia de fato em 1184 Em 1188 o arcebispo Walter de Palermo converteu um

monasteacuterio grego na Calaacutebria que estava com dificuldades para recrutar novos membros

em uma casa da Ordem Em 1191 uma abadia cisterciense foi fundada em Palermo pelo

arcebispo Mateus mas esta ficou em dificuldades apoacutes a consagraccedilatildeo de Henrique VI jaacute

que foi organizada por algueacutem contraacuterio agrave chegada dos Hohenstaufen Com isso o imperador

entregou a casa agrave ordem dos Cavaleiros Teutocircnicos em 1197

Assim ainda em 1200 natildeo havia mais do que 13 abadias da ordem cisterciense no

reino da Siciacutelia em grande parte inseridas no movimento Cisterciense na uacuteltima deacutecada A

maioria destas fundaccedilotildees se deram por conversatildeo de casas jaacute estabelecidas jaacute que para

fundar uma casa nova era preciso o envio pela casa-matildee de pelo menos doze monges410 A

dificuldade que Joaquim teve para inserir o monasteacuterio de Corazzo na Ordem Cisterciense

parece indicar a forma lenta como a ordem se desenvolvia na Itaacutelia meridional dentro do

seacuteculo XII O monasteacuterio do qual ele fora abade entre 1177 e 1186 possivelmente jaacute seguia

os costumes de Cister antes mesmo de Joaquim ingressar na casa Enquanto abade ele fez

vaacuterios esforccedilos para concluir o processo de filiaccedilatildeo Para tanto era necessaacuterio que fosse

recebido por uma abadia que lhe servisse como casa-matildee Joaquim tentou essa filiaccedilatildeo com

duas abadias cistercienses e natildeo obteve sucesso Sambucina e Casamari A filiaccedilatildeo soacute se

completou quando a abadia de Fossanova uma das principais casas cistercienses do territoacuterio

papal recebeu Corazzo como casa-filha em 1188411

409 Idem p 486 410 Idem p 489 411 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx

124

A Ordem de Joaquim a Florense nasceu sob a inspiraccedilatildeo de Cister aprovada pelo

papa Celestino III em 1196 A Regra da nova ordem possivelmente era uma adaptaccedilatildeo

daquela que o abade jaacute seguia em Corazzo412 A Ordem Florense comeccedilou a se expandir

rapidamente depois de 1195 pelo menos ateacute o seacuteculo seguinte quando veio a estagnar413

Ela chegou a ter 60 casas mas 300 anos depois em 1505 a maioria dos membros se uniu

aos Cistercienses enquanto outros se juntaram aos Cartusianos ou Dominicanos414 De

qualquer forma seraacute no interior do movimento franciscano que Joaquim encontraraacute seus

principais seguidores

Ateacute o fim do periacuteodo normando o Reino da Siciacutelia manifestou um monasticismo

predominantemente beneditino com grandes casas dominando a regiatildeo continental Elas jaacute

existiam antes da chegada dos normandos poreacutem foram grandemente beneficiadas por eles

Elas conviviam ao lado de outros tipos de inspiraccedilatildeo ou movimentos religiosos como os

monasteacuterios gregos e os movimentos eremitas com seu ascetismo e desejo de reclusatildeo

Estes uacuteltimos em especial eram de curta duraccedilatildeo e logo eram inseridos nas tradiccedilotildees

beneditinas ou basilianas Apenas no final do seacuteculo XII as novas ordens religiosas

especialmente os cistercienses conseguiram ter um papel predominante na sociedade iacutetalo-

meridional

57 Resumo

Este capiacutetulo demonstrou o caraacuteter culturalmente plural do Reino da Siciacutelia espaccedilo

de convivecircncias trocas relacionamentos e conflitos entre normandos latinos gregos e

muccedilulmanos Esta sociedade viabilizou a manifestaccedilatildeo de praacuteticas sociais e religiosas de

uma forma rica com a presenccedila de igrejas gregas e latinas e monasticismos beneditinos e

basilianos frequentemente lado a lado O seacuteculo XII foi tambeacutem o periacuteodo em que a cuacuteria

romana expandiu seu controle sobre as igrejas e comunidades da Itaacutelia meridional a partir

de acordos com governantes normandos No fim do seacuteculo entretanto o poder sairia das

matildeos normandas para cair sob o controle da dinastia germacircnica Hohenstaufen Essa

412 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n

1 p 217-240 2004 p 219 413 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der

Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98 414 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5

125

conjuntura de instabilidade social provocada pela transiccedilatildeo poliacutetica acabaraacute transparecendo

no Expositio in Apocalypsim

VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA

DE JOAQUIM

Enquanto consomem textos leitores criam sentidos inventam significados Mas a

forma muacuteltipla como Joaquim fez isso produziu na historiografia curiosas avaliaccedilotildees O

historiador italiano Ernesto Buonaiuti descreveu a metodologia do abade de ldquoorgia

simboacutelicardquo415 A pesquisadora inglesa Marjorie Reeves resumiu sua obra como resultado de

uma ldquoimaginaccedilatildeo caleidoscoacutepicardquo em funccedilatildeo do enlace iacutentimo entre texto e imagem416 O

cardeal francecircs Henri de Lubac historiador da exegese medieval definiu seu pensamento

como ldquodesorbitadordquo pois gerava sem cessar siacutembolos e tipos que se entrelaccedilavam

cruzavam e harmonizavam entre si417 Este capiacutetulo descreveraacute as tais formas de leitura de

Joaquim e sua metodologia hermenecircutica em confronto com a tradiccedilatildeo exegeacutetica e com

padrotildees de leitura encontrados especialmente no chamado novo monaquismo418

61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo

Jean Leclercq estudioso francecircs da cultura monaacutestica419 sintetizou os usos da Biacuteblia

nas diversas esferas sociais e religiosas ocidentais entre Gregoacuterio Magno e o seacuteculo XII

sugerindo que era ela utilizada para auto-instruccedilatildeo e para o ensino puacuteblico manual para

catequeze livro base da adoraccedilatildeo puacuteblica e privada (gerando tanto a liturgia da comunidade

quando a piedade individual) fonte de material para a pregaccedilatildeo a arte e a iconografia

415 Citado por DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling

Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 47 416 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976 p

8 417 DE LUBAC La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 47 418 O termo ldquonovo monaquismordquo eacute aqui usado para fazer um contraponto ao monaquismo do tipo beneditino

(Monges Negros) Cf VAUCHEZ Andreacute A espiritualidade na Idade Meacutedia ocidental (seacuteculos VIII a XIII)

Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 p 86 LOGAN F Donald A history of the Church in the Middle

Ages London Routledge 2002 p 136-145 LAWRENCE C H El monacato medieval formas de vida

religiosa en Europa occidental durante la Edad Media Madrid Editorial Gredos 1989 p 234-239 419 Sua obra mais significativa neste campo eacute LECLERCQ Jean The love of learning and the desire for God

A study of monastic culture New York Fordham University Press 1961

127

Segundo Leclercq apesar destes usos amplos os principais inteacuterpretes das Escrituras cristatildes

eram encontrados no monasticismo420

Eacute certo que as casas monaacutesticas poderiam receber monges natildeo-letrados mas a

vivecircncia no seu interior requeria certo envolvimento com a cultura escrita Afinal eles

precisavam ler ou cantar na liturgia421 Aleacutem destas praacuteticas outras se somariam como o

manuseio a preservaccedilatildeo e a ilustraccedilatildeo de manuscritos Isso fazia do monasteacuterio um lugar

privilegiado para o desenvolvimento da leitura e interpretaccedilatildeo da Biacuteblia

Ainda segundo o estudioso francecircs no interior dos muros monaacutesticos os monges

imprimiam na praacutetica da leitura biacuteblica um traccedilo muito proacuteprio da clausura Sem grandes

controveacutersias teoloacutegicas quando comparado com os tempos patriacutesticos e com a

efervescecircncia intelectual da escolaacutestica apenas comeccedilando a tendecircncia geral era usar a

leitura biacuteblica como ferramenta da vida contemplativa422 O professor Reventlow

acompanhou Leclercq neste sentido generalizando que o objetivo dos leitores da Biacuteblia

nestes espaccedilos ateacute o seacuteculo XI seria meditar sobre o texto promover a adoraccedilatildeo e fomentar

a contemplaccedilatildeo423

Natildeo muito diferente do francecircs Leclercq e do alematildeo Reventlow o historiador

italiano Ambrogio Piazzoni tambeacutem entende a exegese monaacutestica como um modo particular

de interpretar a Escritura na Idade Meacutedia O professor da Universitagrave degli Studi della Tuscia

entretanto argumenta em prol de uma inflexatildeo significativa dos estudos biacuteblicos no final do

seacuteculo XI e durante o seacuteculo XII caracterizada por uma nova sensibilidade na leitura e no

uso dos textos424 Perspectiva semelhante levou de Lubac a intitular este revigoramento

biacuteblico de ldquouma nova primavera da exegeserdquo425 muito em funccedilatildeo dos representantes do

420 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard In LAMPE G W H (ed) The Cambridge

History of the Bible The West from the Fathers to the Reformation Cambridge Cambridge University Press

1969 p 183-197 p 184 421 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in

Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 3

Sobre este tema conferir uma antiga exortaccedilatildeo a este respeito presente na regra de Ferreol (553-581) bispo de

Uzegrave na Gaacutelia em PARKES Malcom La alta Edad Media In CAVALLO Guglielmo CHARTIER Roger

(eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 153-178 p 157 ldquoaquele que

deseja se chamar monge natildeo pode se permitir ficar na ignoracircncia das letrasrdquo (ldquoOmnis qui nomem vult monachi

vidicare litteras ei ignorare non liceatrdquo) 422 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard op cit p 184 423 REVENTLOW Henning Graf History of Biblical Interpretation From Late Antiquity to the End of the

Middle Ages Atlanta Society of Biblical Literature 2009 3 v V 2 p 172 424 PIAZZONI Ambrogio M Lesegesi neomonastica In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio

(eds) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 217-237 p 218 425 DE LUBAC Henri Medieval exegesis the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans

Publishing Company 2000 2 v V II p 151

128

chamado neomonasticismo destacadamente os cistercienses mas sem esquecer tambeacutem

alguns expoentes do ldquovelho monaquismordquo426

A praacutetica da leitura biacuteblica era um dos pilares da vida do monge Para um religioso

a Biacuteblia era nos termos de Piazzoni o livro de ldquocada dia todo o dia e muitas vezes ao

diardquo427 Ele percorria suas paacuteginas escutava sua leitura lia-a sozinho cantava-a com seus

irmatildeos na liturgia

A lectio428 monaacutestica poderia ser ilustrada pelo testemunho do cartusiano Guigo II

abade entre 1174 e 1180 da casa-matildee da Ordem dos Cartuxos em Saint-Pierre-de-

Chartreuse na Franccedila Segundo este abade o desenvolvimento espiritual comeccedila com a

lectio passa pela meditatio conduz agrave oratio e conclui com a contemplatio Eacute uma escala

ascendente429 Neste mesmo sentido registrava ainda um opuacutesculo anocircnimo destinado aos

novos monges ldquoQuando ler procure o sabor e natildeo o saberrdquo (ldquoSi ad legendum accedat non

quaerat scientiam sed saporemrdquo) E acrescentava ldquono momento da leitura poderaacute

contemplar e orarrdquo (ldquoin ipsa lectione poterit contemplari et orarerdquo)430 Desta forma a lectio

entrava na vida do monge como uma forma de oraccedilatildeo ou culto

Esta exegese monaacutestica se fundava sobre as bases de um relacionamento contiacutenuo

com o texto sagrado de uma memoacuteria impregnada das Escrituras Como resumiu ainda

Piazzoni era uma memoacuteria visual de palavras escritas muscular de palavras pronunciadas e

auditiva de palavras escutadas431 O aspecto visual nascia tanto das leituras quanto das

representaccedilotildees da Biacuteblia em imagens espalhadas por quadros esculturas e iacutecones nas

paredes nas colunas e nos tetos das construccedilotildees O aspecto muscular se desenvolvia por

causa da leitura em voz alta ao articular-se as palavras lidas com a boca432 A leitura era

murmurada mesmo se feita sozinha o que gerou a expressatildeo ruminatio433 Como

426 PIAZZONI op cit p 218 427 Idem p 219 428 Leitura e explicaccedilatildeo das Escrituras Cf BLAISE Albert Lexicon Latinitatis Medii Aevi Turnholti

Typografhi Brepols 1975 p 528 429 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 221 430 Idem p 222 431 Idem 432 Ao menos para a alta Idade Meacutedia cf PARKES op cit p 160 Segundo Hamesse essa praacutetica de leitura

sofreu uma profunda transformaccedilatildeo no seacuteculo XII em funccedilatildeo de novos padrotildees exercitados nas escolas ou

universidades Cf HAMESSE Jacqueline El modelo escolastico de la lectura In CAVALLO Guglielmo

CHARTIER Roger (eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 179-210

p 207 Entretanto o argumento de Hamesse natildeo impede a perspectiva de que estas ldquonovidadesrdquo natildeo alteraram

a ruminatio entre os monges 433 O termo ldquoruminatiordquo vem do verbo ldquoruminarerdquo que expressa a ideia de ruminaccedilatildeo girar na mente accedilatildeo

cotidiana Cf LEWIS Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p

1604 Albert Blaise entatildeo preferiu traduzir como ldquocantar sozinhordquo Cf BLAISE op cit p 806

129

consequecircncia tambeacutem da memoacuteria muscular desenvolvia-se a memoacuteria auditiva enquanto

ouvia a proacutepria voz ou em funccedilatildeo de outros processos em que o monge escutava a leitura

Biacuteblica implementados na liturgia na pregaccedilatildeo ou durante as refeiccedilotildees

A praacutetica de ruminar a Biacuteblia de ldquomastigaacute-lardquo todo o dia e o dia todo criava o

fenocircmeno da reminiscecircncia Assim para explicar uma passagem da Biacuteblia o monge fazia

uso de outra passagem que em sua mente se associava remanejando suas frases e

construindo novos textos Neste sentido Piazzoni argumenta que certo desprendimento em

relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo eacute um significativo traccedilo da exegese monaacutestica e neomonaacutestica do seacuteculo

XII Guilherme (1085- 1148) abade de Sant-Thierry escreveu ldquoA escritura deve ser lida no

espiacuterito em que foi gerada Neste espiacuterito deve ser compreendidardquo434 Segundo ele o mesmo

Espiacuterito que inspirou os textos estaria com aqueles que entatildeo os interpretavam

Ruperto (1075-1130) abade na cidade germacircnica de Deutz representante do

monasticismo beneditino insistia que a interpretaccedilatildeo da Biacuteblia depende de uma

compreensatildeo especial que eacute dom do Espiacuterito Santo dom esse similar agravequele que ele deu aos

apoacutestolos para que pudessem compreender o Antigo Testamento Quem recebe tal dom de

interpretaccedilatildeo tem o dever de expor o que percebe na Biacuteblia Ele afirmou assim a existecircncia

de um ldquodom da exegeserdquo nos moldes dos antigos dons do apostolado e profecia435 o que

promovia a autonomia do inteacuterprete em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde

Neste sentido tambeacutem o cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153) que insistia

que tudo na Biacuteblia tinha um sentido para o leitor e nenhum detalhe dos textos biacuteblicos

poderia ser negligenciado Como os textos tinham vaacuterios sentidos Deus o mestre das

Escrituras ajudaria os leitores a compreender da mesma forma como ajudou os autores a

escrever O resultado desta leitura sagrada eacute entatildeo um cacircntico de amor (carmen spiritus) um

ato lituacutergico Cada leitor da Biacuteblia poderia ser inspirado quase como os proacuteprios autores

originais o que justificaria a diversidade de interpretaccedilatildeo dos textos sagrados436

A exegese praticada por representantes tanto do antigo monasticismo quanto das

novas casas monaacutesticas ocidentais no seacuteculo XII conhecia os sentidos tradicionais praticados

desde Oriacutegenes (185-254) histoacuterico alegoacuterico tropoloacutegico e anagoacutegico437 Este sistema de

alegorizaccedilatildeo foi desenvolvido de acordo com o qual quatro significados deveriam ser

434 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 223 435 Idem p 228 436 Idem p 229 437 Uma anaacutelise diacrocircnica dos quatro sentidos pode ser encontrada em DE LUBAC Henri Medieval exegesis

the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2000 2 v V I p 15-

267

130

procurados em cada texto biacuteblico O nuacutemero de sentidos variava entre os autores Alguns

trabalhavam com dois sentidos outros com ateacute sete Mas o nuacutemero mais frequentemente

usado era quatro438 Um pequeno diacutestico presente na obra Rotulus pugillaris do dominicano

Agostinho de Dacia em 1260 ilustra os quatro sentidos ldquoA letra nos mostra os eventos a

alegoria nos mostra a feacute o significado moral nos ensina a agir a anagogia nos indica para

onde vamosrdquo439

Os monges dos tempos reformistas em funccedilatildeo do anseio pela contemplaccedilatildeo tinham

o sentido tropoloacutegicomoral como alvo maior A letra deveria ser superada em prol de um

sentido mais elevado de compreensatildeo das Escrituras O resultado eacute uma leitura biacuteblica

interiorizante ldquoespiritualrdquo que prosperava dentro do monasteacuterio Do lado de fora dos seus

muros entretanto outro padratildeo de hermenecircutica comeccedilava a se fortalecer em que se

buscava natildeo mais a meditatio mas a disputatio Esta forma extra claustrum de interpretaccedilatildeo

biacuteblica feita por pessoas ldquoque por meios escolaacutesticos se enchem de conhecimentordquo (ldquoqui

scholastica inflantur scientiardquo)440 aborrecia alguns monges entre eles o autor do Expositio

in Apocalypsim

62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo

No iniacutecio do Expositio Joaquim resumiu sua maneira de relacionar Biacuteblia e histoacuteria

O primeiro dos trecircs status dos quais noacutes falamos era no tempo da Lei

quando o povo do Senhor serviu como uma crianccedila pequena por um tempo

debaixo dos elementos (rudimentos) do mundo Eles natildeo estavam

habilitados ainda a alcanccedilar a liberdade do Espiacuterito ateacute que venha de quem

se disse ldquoSe o Filho libertar vocecircs vocecircs verdadeiramente seratildeo livresrdquo

(Joatildeo 866) O segundo status estava sob o Evangelho e permaneceu ateacute o

presente com liberdade em comparaccedilatildeo com o passado mas natildeo com

liberdade em comparaccedilatildeo com o futuro Porque o Apoacutestolo disse ldquoAgora

noacutes conhecemos em parte e profetizamos em parte o que eacute perfeito tiver

vindo o que eacute em parte passaraacuterdquo (1Coriacutentios 1312) E em outro lugar

ldquoOnde o Espiacuterito do Senhor estaacute aqui haacute liberdaderdquo (2Coriacutentios 317) Por

conseguinte o terceiro status viraacute ao se aproximar o fim do mundo natildeo

distante sob o veacuteu da carta mas na plenitude do Espiacuterito quando apoacutes a

destruiccedilatildeo e cancelamento do falso evangelho do Filho da Perdiccedilatildeo e seus

profetas aqueles que ensinaratildeo a muitos sobre justiccedila seratildeo como o

438 TRACY Robert TRACY David A short history of the interpretation of the Bible Minneapolis Fortress

Press 1984 p 136-145 439 ldquoLittera gesta docet quid credas allegoria Moralis quid agas quo tendas anagogiardquo Citado a partir de

DE LUBAC Henri Medieval exegesishellip v I op cit 1 440 Expressatildeo de Joaquim de Fiore no Tractatus Super Quatuor Evangelia citado a partir de DE LUBAC La

posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 16

131

esplendor do firmamento e como as estrelas para sempre (Expositio in

Apocalypsim 5r-v)441

Nesta mesma passagem algumas linhas agrave frente o abade faz referecircncia a uma certa

forma de ler e interpretar a Biacuteblia ldquoA carta do Primeiro Testamento parece por certa

propriedade de semelhanccedila pertencer ao Pai A carta do Novo Testamento pertence ao Filho

Entatildeo a compreensatildeo espiritual que procede de ambos pertence ao Espiacuterito Santordquo Mas que

hermenecircutica ldquoespiritualrdquo eacute essa que Joaquim chamou de ldquonovo tipo de exposiccedilatildeordquo (ldquonovo

saltem generi exponendirdquo)442 Ela seria ldquonovardquo em que sentido

A insistecircncia do abade em chamar sua forma de exponere a Biacuteblia de ldquonovardquo indica

algum tipo de insatisfaccedilatildeo com as metodologias exegeacuteticas que ele encontrou nos espaccedilos

religiosos Isso pode ter relaccedilatildeo com sua ansiedade apocaliacuteptica Apoacutes uma peregrinaccedilatildeo agrave

Palestina ele possui a convicccedilatildeo de que a humanidade estaacute se aproximando de um estaacutegio

histoacuterico decisivo Ele deseja compreender estes sinais dos tempos e procura ler os textos

biacuteblicos agrave procura de uma explicaccedilatildeo religiosa Contudo as ferramentas exegeacuteticas

disponiacuteveis natildeo lhe satisfazem ou pelo menos lhe parecem ineficientes para interpretar os

textos sagrados e encontrar algum sentido para a conjuntura histoacuterica dos seus dias Seria

preciso entatildeo elaborar uma metodologia ldquonovardquo para interpretar a Biacuteblia e a histoacuteria443

Essa perspectiva de ldquonovidaderdquo em Joaquim tambeacutem teria relaccedilatildeo com sua

compreensatildeo da natureza da exegese Como Ruperto de Deutz jaacute anteriormente

mencionado o abade parece falar de um ldquodom da exegeserdquo uma capacitaccedilatildeo sobrenatural

necessaacuteria para apreender o que natildeo estaria disponiacutevel para a compreensatildeo de todos As

passagens da Biacuteblia natildeo conteriam apenas palavras e frases acessiacuteveis de imediato a qualquer

leitor mas igualmente misteacuterios (mysteria) e segredos (secreta) especialmente relacionados

com os propoacutesitos divinos quanto agrave histoacuteria humana

Para Joaquim o Apocalipse de Joatildeo narraria a histoacuteria de como Deus entregou um

livro para o Cordeiro fechado com sete selos (Apocalipse 51-14) Esta narrativa biacuteblica

indicaria que o sentido dos personagens e dos eventos da histoacuteria humana estatildeo encobertos

A revelaccedilatildeo se encontraria inteiramente nas matildeos do Cristo do Apocalipse Estava completa

441 Traduccedilatildeo a partir de MC GINN Bernard Visions of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages

New York Columbia University Press 1979 p 133-134 442 O verbo ldquoexponerordquo pode ser traduzido como ldquorevelaccedilatildeordquo ldquoexposiccedilatildeordquo ldquoproduccedilatildeordquo Cf BLAISE op cit

p 363 443 REVENTLOW op cit p 173 tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval a compreensatildeo

espiritual de Joaquim de Fiore Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 35 p 99-118 2012 p 101

132

mas escondida tornando-se disponiacutevel apenas com ajuda divina Sem este amparo os textos

biacuteblicos seriam hermeacuteticos pelo menos no que tange ao sentido ldquoespiritualrdquo jaacute que sentidos

inferiores ainda poderiam ser acessados pela razatildeo humana (como os escolaacutesticos ldquoinchados

de ciecircnciardquo que ele critica) Em outras palavras para o abade algumas coisas estatildeo

encobertas outras estatildeo escondidas algumas pessoas podem acessar as coisas encobertas

outras somente compreendem a superfiacutecie dos textos sagrados

Entre as coisas escondidas na Biacuteblia estatildeo os eventos e tribulaccedilotildees do final dos

tempos os falsos profetas os anticristos e a materializaccedilatildeo do reino divino na histoacuteria Deus

por meio de Cristo teria disponibilizado uma ldquocompreensatildeo espiritualrdquo a algumas pessoas

permitindo a elas adentrarem as profundezas das Escrituras e alcanccedilarem os segredos e

misteacuterios Joaquim faz assim uma distinccedilatildeo entre a capacidade de ler as Escrituras e a de

penetrar nos misteacuterios sagrados por meio de uma diferenciaccedilatildeo entre pessoas naturais (viri

animales) e pessoas espirituais (viri spirituales) Os misteacuterios da Escritura seriam

conhecidos apenas das pessoas espirituais jaacute que as naturais natildeo os podem perceber A

praacutetica da interpretaccedilatildeo biacuteblica ldquoespiritualrdquo consequentemente se daria pela obtenccedilatildeo da

ldquointeligecircnciardquo necessaacuteria por meio da iluminaccedilatildeo do Espirito Santo que permitiria aos assim

escolhidos (electi) duas coisas a capacidade de discernir a Biacuteblia e a habilidade de entender

o sentido da histoacuteria especialmente os ldquosinais dos temposrdquo444

Joaquim se apoiava em ideias paulinas como a oposiccedilatildeo entre compreensatildeo natural

e espiritual (1Coriacutentios 26-16) e a indicaccedilatildeo de uma forma infantil em oposiccedilatildeo agrave uma

forma adulta de entender as coisas de Deus (1Coriacutentios 139-12)445 Como consequecircncia ele

afirma pelo menos dois tipos de interpretaccedilatildeo uma que trabalha com a letra (secundum

litteram) e outra que se move para um niacutevel mais profundo (secundum spiritum)

A partir destes dois procedimentos baacutesicos (segundo a letra e segundo o espiacuterito) o

abade daacute mais um passo na estruturaccedilatildeo do seu meacutetodo relacionando a lectio com a Trinitas

Desta reflexatildeo trinitaacuteria surgiu o conjunto das ferramentas do seu sistema hermenecircutico

composto por trecircs partes a concordia equivalente agrave leitura segundo a letra e a alegoria e a

444 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 19 445 Esta segunda passagem de Paulo eacute uma das preferidas de Joaquim retornando constantemente em suas

explicaccedilotildees metodoloacutegicas ldquoPorque em parte conhecemos e em parte profetizamos Quando poreacutem vier o

que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino falava como menino sentia

como menino pensava como menino quando cheguei a ser homem desisti das coisas proacuteprias de menino

Porque agora vemos como em espelho obscuramente entatildeo veremos face a face Agora conheccedilo em parte

entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Coriacutentios 139-12)

133

tipologia como leituras espirituais446 Jaacute que a Trindade eacute formada por trecircs pessoas divinas

que atuam como se fossem uma soacute as ferramentas exegeacuteticas de Joaquim tambeacutem deveriam

operar como se fossem apenas uma Somadas elas resultam na denominada ldquonova forma de

exposiccedilatildeordquo

Mas seria realmente ldquonovardquo esta metodologia exegeacutetico-hermenecircutica A resposta

da historiografia eacute dupla neste caso A tendecircncia eacute afirmar algum tipo de viacutenculo tradicional

ao mesmo tempo em que se indica em que sentido seu caminho poderia ser novo como o

professor Rossatto ao considerar que Joaquim teria partido da tradiccedilatildeo por assumir e

revigorar antigos meacutetodos de interpretaccedilatildeo poreacutem simultaneamente proposto um modo

ineacutedito de compreensatildeo no caso a concordia447 Isso significa dizer que a primeira parte do

sistema eacute nova enquanto a segunda jaacute era longamente utilizada pelos inteacuterpretes da Biacuteblia

A historiadora italiana Tagliapietra explica esta relaccedilatildeo entre novidade e tradiccedilatildeo

com o recurso aos jaacute mencionados quatro sentidos da exegese medieval O sentido literal foi

transformado por Joaquim na sua concordia A alegoria foi multiplicada pelo abade em cinco

tipos diferentes (histoacuterica moral tropoloacutegica contemplativa e anagoacutegica) A estes o abade

acrescentou o antigo meacutetodo da tipologia subdivido em sete formas diferentes Como

resultado os sentidos tradicionais se transformaram nas matildeos do abade em doze

possibilidades de significaccedilatildeo448 Contudo ele natildeo os chama todos do mesmo jeito Apenas

trecircs satildeo denominados ldquosentidosrdquo a letra (concordia) a alegoria (allegoricus intellectus) e a

tipologia (intelligentia typica)449 As demais divisotildees satildeo chamadas de espeacutecies (species)

inteligecircncias espirituais (inteligentiae spirituales) ou interpretaccedilatildeo espiritual (mystica

interpretatio)

Assim em siacutentese o sistema hermenecircutico de Joaquim de Fiore se articula sobre trecircs

bases a exposiccedilatildeo dos diversos tipos de alegoria dos diversos tipos de tipologia e a

concordia que funciona como o elemento que coloca o sistema em movimento450

446 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 101 447 Idem p 100 448 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 26 449 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 44 450 SANTI op cit p 261

134

63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde

A noccedilatildeo fundamental do sistema exegeacutetico de Joaquim eacute chamada por ele de

concordia Blaise no seu Lexicon Latinitatis Medi Aevi traduz o substantivo feminino

concordia como entre outras acepccedilotildees ldquoato de organizarrdquo e o verbo concordiare como

ldquofazer acordordquo451 Outro uso muito comum aparece em Suetocircnio (69-141) historiador dos

doze ceacutesares que apresenta uma divindade chamada Concordia a quem os romanos

dedicavam cultos e festas apoacutes distuacuterbios beacutelicos especialmente no final de uma guerra civil

(De vita caesarum III 20)452 Como antocircnimo de discordia o termo era relativamente

frequente tanto na prosa quanto na poesia latina

Mas como as palavras natildeo satildeo estaacuteticas e podem variar de sentido com o tempo e a

situaccedilatildeo Tagliapietra analisou as ocorrecircncias de concordia em Joaquim de Fiore e reuniu

quatro possibilidades de significado harmonia semelhanccedila correlaccedilatildeo e compensaccedilatildeo A

ldquoharmoniardquo poderia lembrar ao leitor moderno o sentido de sinopse como exemplificado

pelo Diatessaron de Taciano (120-180) que resumiu quatro evangelhos de Jesus em uma

uacutenica narrativa Jaacute ldquosemelhanccedilardquo tem relaccedilatildeo com paralelismo e aparece no tiacutetulo da obra

mais conhecida de Joaquim (Liber de Concordia Novi ac Veteris Testamenti) que comeccedila

com a expressatildeo ldquoIncipit praephatio libri concordantiarumrdquo (1r) O terceiro significado

ldquocorrelaccedilatildeordquo tem ligaccedilatildeo com periodizaccedilatildeo da histoacuteria uma espeacutecie de lei estrutural do

curso do tempo ou uma filosofia da histoacuteria O quarto significado ldquocompensaccedilatildeordquo indica

que cada pessoa cada evento da histoacuteria reverbera no futuro segundo uma reserva de

sentido fazendo com que o estudo do passado se torne tambeacutem um exerciacutecio de vaticiacutenio453

O proacuteprio Joaquim deu a sua definiccedilatildeo do termo concordia ldquouma similaridade de

igual proporccedilatildeo entre o Novo e o Antigo Testamentos igual eu digo quanto ao nuacutemero natildeo

quanto a dignidaderdquo454 (Liber de Concordia 7rb) Ele a ilustrou com a imagem de uma

estrada contiacutenua que liga uma cidade a um deserto cujos viajantes passam por vales e

montanhas Nos vales eles podem admirar a paisagem Nas montanhas eles conseguem ver

451 BLAISE op cit p 222 452 Esta eacute a referecircncia especiacutefica ldquoDedicavit et Concordiae aedem item Pollucis et Castoris suo fratrisque

nomine de manubiisrdquo Uma traduccedilatildeo seria Tibeacuterio ldquodedicou um templo agrave deusa Concordia e outro a Castor e

Polux em seu nome e em nome de seu irmatildeordquo Conferir uma ediccedilatildeo biliacutengue em SUETONIUS Lives of the

Caesars Cambridge Harvard University Press 1979 2 v V 1 p 322 Outra traduccedilatildeo para o inglecircs pode ser

encontrada em SUETONIUS Lives of the Caesars Oxford Oxford University Press 2000 p 109 453 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 21-25 454 ldquoConcordiam proprie esse dicimus similitudinem eque proportionis novi ac veteris testamenti eque dico

quo ad numerum non quo ad dignitatemrdquo

135

o que veio antes e o que vem depois Ele costumava usar tambeacutem duas imagens biacuteblicas para

explicar sua ferramenta metodoloacutegica os dois querubins que estavam sobre a tampa da arca

(Ecircxodo 2520)455 e as duas rodas da visatildeo de Ezequiel (Ezequiel 116)456 No primeiro caso

duas figuras angelicais estatildeo voltadas uma para a outra em cima da arca da alianccedila No

segundo caso duas rodas giram uma dentro da outra embaixo do trono-carruagem de Javeacute

A primeira imagem reforccedila o senso de paralelismo entre os dois testamentos (concordia

duorum testamentorum) jaacute que um se volta para o outro No caso da segunda imagem ela

desenvolve o sentido de correlaccedilatildeo entre os trecircs status (concordia trium statuum) ao apontar

para eventos que se desenvolvem dinamicamente na histoacuteria

Tanto no caso dos dois testamentos quanto no dos trecircs estados o meacutetodo da

concordia consiste entatildeo em encontrar posiccedilotildees semelhantes de pessoas e eventos dentro

de tempos (tempora ou status) diferentes e apontar em que sentido eles satildeo similares (em

caracteriacutesticas ou atos)457 Um exemplo poderia ser dado pelo caso do patriarca Jacoacute que

ocupa a mesma posiccedilatildeo dentro do primeiro status que o homem Jesus ocupa no segundo

Ocupando posiccedilotildees semelhantes no interior de seus respectivos status eles manifestam atos

espirituais parecidos e exercem papeis religiosos paralelos Entretanto natildeo satildeo iguais em

dignidade Eacute isso que significa ser ldquosimilar quanto a nuacutemerordquo e natildeo quanto a ldquodignidaderdquo

As pessoas ocupam as mesmas posiccedilotildees em suas proacuteprias geraccedilotildees e tecircm papel semelhante

mas natildeo possuem o mesmo status espiritual O homem Jesus foi maior em dignidade que

Jacoacute o que significa dizer que ele possuiacutea uma compreensatildeo espiritual maior e realizou obras

maiores458

Joaquim comeccedila o exerciacutecio de sua concordia por meio da distinccedilatildeo entre histoacuteria

geral e histoacuteria especial Segundo o abade

Toda a floresta de histoacuterias que ofusca o Antigo Testamento eacute dividida em

cinco partes das quais uma eacute geral e quatro satildeo especiais Porque haacute uma

roda que tem quatro faces Existe uma histoacuteria geral agrave qual quatro histoacuterias

especiais satildeo unidas A histoacuteria geral eacute aquela que comeccedila no iniacutecio do

mundo e caminha direto ateacute o livro de Esdras [] Existem quatro histoacuterias

especiais pequenas das quais a primeira eacute Joacute a segunda eacute Tobias a

terceira eacute Judite e a quarta eacute Ester Aquela eacute a roda Estas satildeo as faces

(Enchridion super Apocalypsim 2r-3r)459

455 ldquoOs querubins estenderatildeo as asas por cima cobrindo com elas o propiciatoacuterio estaratildeo eles de faces voltadas

uma para a outra olhando para o propiciatoacuteriordquo (Ecircxodo 2520) 456 ldquoO aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o berilo tinham as quatro a mesma aparecircncia

cujo aspecto e estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outrardquo (Ezequiel 116) 457 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip p 79 458 Idem 459 Traduccedilatildeo a partir da versatildeo italiana GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Traduzione e cura di

Andrea Tagliapietra Milano Feltrinelli 2008 p 133

136

O que ele chama de ldquohistoacuteria geralrdquo eacute uma grande narrativa presente no Antigo

Testamento que parte do livro de Gecircnesis e se estende ateacute a obra de Esdras Usando a

imagem das duas rodas concecircntricas de Ezequiel o abade denomina esta ldquohistoacuteria geralrdquo de

ldquoroda exteriorrdquo agrave qual estatildeo vinculadas quatro pequenas histoacuterias (denominadas ldquohistoacuterias

especiais) presentes em obras menores Joacute Tobias Judite e Ester As histoacuterias especiais se

vinculam agrave roda exterior como as ldquoluzesrdquo nas rodas da visatildeo ezequieacutelica460

A operaccedilatildeo da concordia encontrou esta mesma estrutura no Novo Testamento

Tambeacutem nele haacute uma histoacuteria geral e quatro histoacuterias especiais Joaquim identificou a

histoacuteria geral com o Apocalipse de Joatildeo enquanto as quatro especiais correspondem aos

quatro evangelhos canocircnicos Mateus Marcos Lucas e Joatildeo E se o Antigo Testamento

forma a roda exterior o Apocalipse corresponde agrave roda interior da visatildeo do profeta do exiacutelio

babilocircnico Como satildeo duas rodas concecircntricas ambas giram de forma paralela de tal

maneira que uma pessoa dotada da ldquointeligecircncia espiritualrdquo poderia perceber os eventos que

se repetem Voltando a uma imagem anterior a concordia eacute a estrada que liga as duas rodas

permitindo aos viajantes visualizar por meio de suas montanhas o que jaacute aconteceu e o que

estaacute por acontecer461

Sendo assim como insistiu o professor Emmett Randolph Daniel o que acontece na

concordia natildeo pode ser confundido nem com alegoria nem com tipologia Seu trabalho

precede as outras duas atividades hermenecircuticas do abade462 Este sentido ldquosegundo a letrardquo

era a percepccedilatildeo de narrativas biacuteblicas como uma descriccedilatildeo natildeo apenas do que teria

acontecido mas tambeacutem do que ainda aconteceria Por meio destas narrativas seria possiacutevel

discernir o passado o presente e futuro463 Natildeo haacute na concordia uma relaccedilatildeo horizontal entre

anuacutencio e realizaccedilatildeo como na tipologia ou vertical entre letra e espiacuterito como na alegoria464

O que haacute eacute um paralelismo histoacuterico dinacircmico e progressivo

460 Na visatildeo de Ezequiel aparentemente haviam luzes que brilhavam tanto na roda exterior quanto na interior

enquanto o trono de Deus se movia (Ezequiel 11-25) 461 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 78 462 Idem p 79 tambeacutem MC GINN Bernard Visions of the Endhellip op cit p 126-141 WEST ZIMDARS-

SARTZ op cit p 42 463 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard

K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-

88 79 464 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 106 DE LUBAC Henri La posteridad

espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 44

137

64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas

Durante um dos mais antigos exerciacutecios exegeacuteticos conhecidos de Joaquim presente

no primeiro sermatildeo do Praephatio super Apocalypsim datado para o iniacutecio da deacutecada de

1180 no periacuteodo em que ainda era abade de Corazzo apoacutes usar a concordia para apontar

paralelos entre as doze tribos de Israel e a histoacuteria da igreja ele afirma ldquoMas deixemos estas

coisas no invoacutelucro externo da noz para mostrar agora algo de sua casca de maneira que

num terceiro momento possamos extrair um viscoso alimentordquo465

Mais agrave frente apoacutes algumas frases ele retoma a imagem da noz ldquoEis que jaacute eacute viziacutevel

o nuacutecleo que estava encoberto pela casca aparece a verdadeira vida que os panos envolviam

no sepulcrordquo466 Desta vez ele faz alusatildeo ao sepultamento de Jesus e aos panos que

envolviam seu corpo467

As imagens das camadas da noz e do corpo enrolado pelos panos refletem o convite

do abade para ir aleacutem da concordia dos textos biacuteblicos coisa que ele colocou em praacutetica em

suas vaacuterias obras de exposiccedilatildeo biacuteblica (entre elas o Expositio in Apocalypsim) movendo-se

de uma compreensatildeo segundo a letra para justificar uma compreensatildeo segundo o espiacuterito (da

concordia para os princiacutepios espirituais)468

Neste processo contiacutenuo de aprofundamento na direccedilatildeo do ldquoviscoso alimento da

nozrdquo ele toma a alegoria469 e a subdivide em cinco princiacutepios alegoacutericos Por que cinco A

Trindade tambeacutem usada para justificar as trecircs partes de sua metodologia (concordia

alegoria e tipologia) agora eacute usada como base para as cinco subdivisotildees alegoacutericas

465 O sermatildeo eacute o Apocalipsis liber ultimus citado a partir de ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao

Apocalipse op cit p 460 466 Idem p 461 467 ldquoTomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lenccediloacuteis com os aromas como eacute de uso entre os judeus

na preparaccedilatildeo para o sepulcrordquo (Joatildeo 1940) 468 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 46 Estes princiacutepios espirituais satildeo derivados da operaccedilatildeo

alegoacuterica e tipoloacutegica Uma descriccedilatildeo das duas tradiccedilotildees pode ser encontrada em YOUNG Frances

Alexandrian and Antiochene Exegesis In HAUSER Alan J WATSON Duane F (eds) A history of biblical

interpretation The Ancient Period Grande Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2003 2 v V

1 p 334-354 469 Segundo Stefaniw este tipo de interpretaccedilatildeo concebia o texto como um meio de revelaccedilatildeo de misteacuterios

escondidos ldquopor traacutes das letrasrdquo Cf STEFANIW Blossom Reading Revelation Allegorical Exegesis in Late

Antique Alexandria Revue de lrsquohistoire des religions Paris n 2 p 231-251 2007 p 231-232 Ulleacuten distingue

alegoria como gecircnero literaacuterio como utilizado por Dante na obra ldquoDivina Comeacutediardquo de alegoria como forma

de interpretaccedilatildeo Aparentemente o primeiro fenocircmeno nasceu em consequecircncia do segundo que por sua vez

eacute tatildeo antigo quanto as primeiras interpretaccedilotildees dos eacutepicos de Homero Sua definiccedilatildeo de alegoria como meacutetodo

hermenecircutico eacute ldquouma forma sistemaacutetica de compreender o texto que se baseia em uma norma

intersubjetivamente determinadardquo Cf ULLEacuteN Magnus Dante in Paradise The End of Allegorical

Interpretation New Literary History Baltimore v 32 n 1 p 177-199 2001 p 183

138

Sua confissatildeo trinitaacuteria foi resumida por West e Zimdars-Swartz como ldquoDeus eacute um

Deus sem confusatildeo de pessoas e trecircs pessoas sem divisatildeo de substacircnciardquo470 Ele faz uma

distinccedilatildeo das trecircs Pessoas divinas baseadas em sua origem O Pai natildeo eacute gerado (ingenitus)

o Filho eacute gerado pelo Pai (genitus) e o Espiacuterito Santo procede de ambos (ab utroque

procedens) Associado com a origem das Pessoas da Trindade estaacute tambeacutem o relacionamento

entre elas expresso na forma como satildeo nomeados O Pai eacute assim chamado porque tem um

Filho igualmente o Filho porque tem um Pai jaacute o Espiacuterito eacute assim nominado porque

procede de ambos O abade entatildeo enumera as cinco possiacuteveis relaccedilotildees entre as Pessoas

divinas ligando cada uma com um tipo diferente de alegoria

ndash alegoria histoacuterica a relaccedilatildeo do Pai com o Filho afinal ele eacute Pai de um Filho

ndash alegoria moral a relaccedilatildeo do Filho com o Pai afinal ele eacute Filho de um Pai

ndash alegoria tropoloacutegica a relaccedilatildeo entre o Pai e o Filho com o Espiacuterito afinal este vem

de ambos

ndash alegoria contemplativa a relaccedilatildeo do Filho e do Espiacuterito com o Pai afinal ambos

satildeo enviados pela primeira Pessoa divina

ndash alegoria anagoacutegica a relaccedilatildeo das trecircs Pessoas com cada criatura afinal as trecircs satildeo

Deus e Criador471

Como jaacute indicamos Joaquim soacute denominava de ldquosentidosrdquo a concordia a alegoria e

a tipologia As subdivisotildees (tanto da alegoria quanto da tipologia) por sua vez ele as

denomina species ou intelligentia Assim a primeira species de alegoria eacute a historica

intelligentia ou compreensatildeo histoacuterica Apesar do nome ela natildeo corresponde agrave letra do

texto mas indica o significado de um evento ou figura histoacuterica como exemplo de uma

condiccedilatildeo espiritual Joaquim ilustrou esta species com as duas esposas de Abraatildeo A alegoria

histoacuterica veria em Sara a representaccedilatildeo de uma mulher livre enquanto Hagar representaria

uma escrava Este sentido alegoacuterico teria um caraacuteter mais cognoscitivo apesar de

implicitamente convidar agrave associaccedilatildeo com a esposa livre em vez da escrava

A alegoria moral (moralis intelligentia) indica que haacute uma semelhanccedila entre coisas

visiacuteveis e coisas invisiacuteveis que se exprime na forma de uma qualidade eacutetica Sara neste niacutevel

representaria o prazer espiritual enquanto Hagar a escravidatildeo da carne Esta secunda

species alegoacuterica quer fornecer ensinamentos e demandas de ordem moral

470 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 53 Para uma anaacutelise da doutrina trinitaacuteria em Joaquim cf

ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 471 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 44 tambeacutem TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo

Gioachimita op cit p 27-28

139

A alegoria tropoloacutegica (tropologica intelligentia) tem relaccedilatildeo com doutrina Neste

niacutevel o inteacuterprete busca reforccedilos e componentes para a doutrina cristatilde Nele Hagar significa

a letra enquanto Sara significa a compreensatildeo espiritual da Palavra de Deus

A alegoria contemplativa (contemplativa intelligentia) centraliza-se na vida

contemplativa e nos dons do Espiacuterito Santo Por exemplo Hagar significa a vida ativa

enquanto Sara significa a vida contemplativa

A alegoria anagoacutegica (anagogica intelligentia) a quinta species convida para a

prospectiva escatoloacutegica tradicional com o olhar para o mundo transcendental para aleacutem da

histoacuteria e por meio da oposiccedilatildeo ceacuteu-terra Neste caso Hagar significa a vida presente

enquanto Sara indica a vida futura

Apesar de apresentar o meacutetodo472 nas suas maiores obras de exposiccedilatildeo biacuteblica

(Expositio in Apocalypsim Psalterium decem Chordarum e Tractatus super quatuor

Evangelion) o abade nem sempre faz uso dos cinco princiacutepios alegoacutericos ou mesmo indica

qual princiacutepio estaacute usando em cada caso Eacute comum que ele apenas indique que um

personagem ou evento ldquosignificardquo ou ldquodesignardquo outra coisa

65 Sensus typicus histoacuteria e profecia

Durante os trecircs meses passados em Corinto entre os anos 55 e 56 ao escrever sua

epiacutestola para os disciacutepulos de Roma o apoacutestolo Paulo tratou da relaccedilatildeo entre Adatildeo e Jesus

(Romanos 514) descrevendo o primeiro como uma ldquofigura do que haveria de virrdquo (ldquoτύπος

τοῦ μέλλοντοςrdquo) Os termos usados foram o substantivo ldquoτύποςrdquo e o verbo ldquomέλλwrdquo O

primeiro significa ldquosinal marca vestiacutegio imagem figura tipo modelo exemplordquo473 A

segunda palavra pode ser traduzida como ldquodever estar destinado ardquo que daacute origem agrave forma

adjetivada do verbo (ldquoo` mέλλwnrdquo) o melhor o aguardado o futuro474

Em termos semacircnticos um ldquotipordquo era a marca impressa de um golpe em entalhe ou

em relevo de tal forma que um aponta para a outro Mas o uso que Paulo fez do termo jaacute lhe

deu um sentido hermenecircutico Ele o usou para descrever uma releitura das Escrituras

judaicas agrave luz da sua feacute em Jesus como o Messias

472 Em especial na segunda parte do Liber de Concordia 473 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 464 474 Idem p 300

140

Posteriormente autores cristatildeos do seacuteculo II como Tertuliano de Cartago

latinizaram o termo (typos) mas tanto em autores gregos ou latinos (Melito de Sardes

Justino Irineu Clemente de Alexandria Oriacutegenes Cipriano de Cartago Tertuliano) a

praacutetica de Paulo continuou a ser exercida geralmente com o propoacutesito de encontrar nas

Escrituras judaicas as promessas que se cumpriram na vida de Jesus ou como uma estrateacutegia

para vincular estas mesmas Escrituras com o Novo Testamento cristatildeo em formaccedilatildeo475 A

tipologia se constituiu entatildeo como uma ferramenta usada pelos exegetas cristatildeos a partir do

segundo seacuteculo para ver unidade entre as Escrituras judaicas e cristatildes como uma linha

horizontal de continuidade e progresso histoacutericos que culmina em Jesus e no

Cristianismo476

Eacute entatildeo este antigo procedimento que Joaquim usaraacute na sua proacutexima fase exegeacutetica

As cinco espeacutecies de alegoria formam apenas um momento de sua interpretaccedilatildeo e

normalmente natildeo constituem o final do processo477 No manejo da tipologia natildeo se trata

mais de opor verticalmente letra e espiacuterito como na alegoria mas de relacionar uma letra

com outra letra um elemento com outro elemento segundo uma dinacircmica horizontal de

promessa e cumprimento478

De qualquer forma apesar da metodologia tipoloacutegica jaacute ser conhecida na tradiccedilatildeo

exegeacutetica cristatilde o uso que dela faz Joaquim tambeacutem natildeo deixa de ser singular A forma

como o abade relacionava histoacuteria e Escritura o levou a natildeo ver mais distinccedilotildees entre ambas

Assim enquanto a tipologia claacutessica interrompia o fluxo tipoloacutegico nos eventos do Novo

Testamento Joaquim ampliou o olhar do exegeta encontrando antiacutetipos em toda a histoacuteria

da Igreja479

475 Conferir esta anaacutelise em ETCHEVERRIacuteA Ramoacuten Trevijano La Biblia em el cristianismo antiguo

Prenicenos Gnoacutesticos Apoacutecrifos Estella Editorial Verbo Divino 2001 p 92-108 476 Natildeo se sustenta mais um reducionismo que vincula a tipologia a uma ldquotradiccedilatildeo antioquianardquo e a alegoria a

uma ldquotradiccedilatildeo alexandrinardquo Tanto tipologia quanto alegoria satildeo efetivamente ferramentas hermenecircuticas que

tecircm como meta ir aleacutem da ldquoletrardquo ou do sentido mais imediato das palavras Etcheverriacutea chega a classificar a

tipologia como um tipo de alegoria Ambas satildeo ldquoformas de representaccedilatildeordquo como tambeacutem a metaacutefora a

metoniacutemia e a sineacutedoque Cf ETCHEVERRIacuteA op cit p 85 Aleacutem do mais mesmo em um exegeta

ldquorepresentativordquo da denominada escola antioquiana como Teodoro de Mopsueacutestia (350-428) eacute possiacutevel

encontrar o uso tanto da alegoria quanto da tipologia Cf WILES M F Theodore of Mopsuestia as

representative of the antiochene school In ACKROYD P R EVANS G F (eds) The Cambridge history

of the Bible from the beginnings to Jerome Cambridge Cambridge University Press 1970 3 v V 1 p 489-

509 477 SANTI op cit p 263 478 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 28 479 A estrutura ldquotipordquo e ldquoantiacutetipordquo natildeo daacute conta da praacutetica joaquimita Tipo seria a promessa antiacutetipo o

cumprimento Em Joaquim o fenocircmeno poderia ser descrito como ldquotipo-tipo-antiacutetipordquo

141

A tipologia em Joaquim fornece significado a eventos e personagens histoacutericos no

formato de anuacutencio e realizaccedilatildeo mas hierarquiza-os no interior dos trecircs status do mundo

Adatildeo personagem do primeiro status corresponderia a Cristo um tipo mais elevado do

segundo Ambos convergem entretanto num antiacutetipo ainda mais superior que se

concretizaraacute num personagem futuro do terceiro status

O abade de Fiore denominou a tipologia de ldquosensus typicusrdquo ou inteligecircncia tiacutepica

e a subdividiu em sete species baseadas numa estrutura derivada igualmente de sua

especulaccedilatildeo trinitaacuteria correspondendo agraves sete possiacuteveis formas de uma pessoa professar a

Trindade 1) sob o sinal do Pai 2) sob o sinal do Filho 3) sob o sinal do Espiacuterito 4) sob o

signo do Pai e do Filho 5) sob o signo do Pai e do Espiacuterito 6) sob o signo do Filho e do

Espiacuterito 7) sob o signo da Trindade inteira480

Desta vez o abade natildeo diferencia cada tipo dando um nome ou mesmo definindo

mas apenas fornecendo um exemplo Segundo a primeira compreensatildeo tipoloacutegica que eacute

apropriada ao Pai Abraatildeo representa os sacerdotes dos judeus Hagar o povo israelita Sara

a Tribo de Levi que foi chamada para a obra de Deus No segundo tipo de tipologia que eacute

apropriada ao Filho Abraatildeo representa os bispos Hagar a igreja dos leigos Sara a igreja

dos cleacuterigos Segundo o terceiro tipo de tipologia que eacute apropriada ao Espiacuterito Abraatildeo

representa os sacerdotes que servem monasteacuterios Hagar representa a Igreja do povo leigo

que vive sob regras monaacutesticas (conversi) e Sara representa a igreja dos monges Segundo

a seacutetima compreensatildeo tipoloacutegica que pertence agraves trecircs pessoas da Trindade Hagar representa

as igrejas da primeira e segunda eacutepoca (status) que vive a vida ativa Sara representa a igreja

da contemplaccedilatildeo paz e descanso da seacutetima era (aetas) Estes foram os quatro usos

tipoloacutegicos mais usados por Joaquim481

A quarta quinta e sexta species de tipologia natildeo satildeo normalmente usadas Mesmo

assim ele faz uma breve apresentaccedilatildeo delas (Liber de Concordia 61v-73v) A quarta

tipologia pertence ao Pai e ao Filho Nela Abraatildeo significa os bispos dos judeus e gregos

Hagar a sinagoga Sara a igreja dos Gregos A quinta tipologia pertence ao Pai e ao Espiacuterito

e nela Abraatildeo significa os sacerdotes dos judeus e os bispos do povo latino Hagar a

sinagoga (como na tipologia anterior) e Sara a igreja do povo Latino A sexta compreensatildeo

tipoloacutegica pertence ao Filho e ao Espiacuterito Santo Nela Abraatildeo significa os sacerdotes da

480 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 29 481 Em termos gerais a primeira species tipoloacutegica trata da primeira eacutepoca a segunda da segunda eacutepoca a

terceira da terceira eacutepoca A seacutetima tenta englobar a histoacuteria como um todo

142

segunda e terceira eacutepoca Hagar a igreja dos trabalhadores (vida ativa) e Sara a igreja

espiritual da contemplaccedilatildeo482

66 O dom da exegese

O ex-eremita agora no interior de um cenoacutebio em Fiore parece ver no Novo

Testamento natildeo mais do que uma segunda letra em concordacircncia com a primeira Daiacute resulta

a conclusatildeo de que ldquonatildeo se pode considerar o segundo testamento como mais definitivo que

o primeirordquo483 Ele natildeo chega a abolir o Novo Testamento mas entende que ele seraacute

transformado por meio de uma nova interpretaccedilatildeo espiritual Entatildeo se abriratildeo as ldquoportasrdquo

dos dois Testamentos e pessoas que antes natildeo conseguiam ler mais do que a letra entatildeo

conseguiratildeo penetrar nos sentidos espirituais da Escritura

Apesar de ser o porta-voz desta ldquodescoberta espiritualrdquo Joaquim se recusou a assumir

o tiacutetulo de profeta que outros lhe atribuiacuteam Mas ele natildeo esconde que teve suas

ldquoiluminaccedilotildeesrdquo Ele parece falar de trecircs destas experiecircncias que quase o aproximam do termo

ldquovisionaacuteriordquo Em uma delas ele recebeu a concordia dos Testamentos em outra

compreendeu a relaccedilatildeo entre Trindade Escritura e histoacuteria por fim uma terceira abriu seus

olhos para o papel do Apocalipse na sua estrutura hermenecircutica484 Aleacutem destas experiecircncias

narradas em suas obras o abade estava persuadido de ter recebido um ldquoespiacuterito de

inteligecircnciardquo para interpretar as Escrituras485 a fim de alertar e despertar os ldquosonolentos

espiacuteritos de seu tempordquo a respeito dos ldquoextrema temporardquo486 Aos olhos de Joaquim sua

capacidade exegeacutetica era um dom de Deus Natildeo era apenas fruto de uma investigaccedilatildeo

humana Era como a estrela brilhante que guiou os magos ateacute Jesus

O abade via brilhar agrave sua frente um novo tempo (ldquoIta felices homines illius

statusrdquo)487 e o espera para breve Ele o descreve sem cessar em suas obras por meio das

482 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 45-46 483 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 46 484 Conferir uma descriccedilatildeo das trecircs visotildees em DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de

Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xiii-xviii 485 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London

University of Notre Dame Press 1993 p 16 486 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 48 487 Expressatildeo encontrada em Expositio in Apocalypsim 175v

143

duas combinaccedilotildees da concordia das cinco inteligecircncias espirituais (alegoria) e dos sete tipos

de inteligecircncia tiacutepica (tipologia)488

Considerado profeta chamado de visionaacuterio descrito como miacutestico Joaquim natildeo

queria ser como resumiu de Lubac outra coisa a natildeo ser um exegeta489

67 Resumo

Este capiacutetulo procurou apresentar as formas e procedimentos de leitura e

interpretaccedilatildeo de Joaquim de Fiore Comeccedilando pela concordia passando pela alegoria e

terminando na tipologia o abade estruturou um meacutetodo que foi aplicado por ele tanto em

textos biacuteblicos quanto em eventos e fenocircmenos histoacutericos Justamente essa relaccedilatildeo iacutentima

entre Biacuteblia e histoacuteria parece ser a raiz loacutegica do seu sistema milenarista490 A praacutetica

exegeacutetica do abade em vaacuterios momentos se constituiu num exerciacutecio de reflexatildeo sobre o

sentido da histoacuteria

488 O sistema metoloacutegico de trecircs partes formado pela concoacutercia e por doze sentidos ldquoespirituaisrdquo (cinco

alegoacutericos e sete tipoloacutegicos) eacute o mais recorrente nas exposiccedilotildees de Joaquim mas natildeo eacute o uacutenico Ele usa no

Psalterium um sistema compreendido por quinze sentidos baseado no nuacutemero total dos salmos Estes sistemas

indicam o esforccedilo do abade de Fiore para multiplicar e entrelaccedilar as imagens biacuteblicas Cf SANTI op cit p

264 O medievalista Falbel denomina o meacutetodo do abade de ldquoalegoacuterico-trinitaacuteriordquo Cf FALBEL Nachman

Satildeo Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202) Revista USP Satildeo Paulo n 30 p 273-276

1996 p 273 489 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 53 Talvez seja possiacutevel falar

numa exegese profeacutetica (projetada para o futuro) ou uma exegese visionaacuteria (materializada em imagens) ou

mesmo uma exegese miacutestica (com foco na contemplaccedilatildeo) 490 Idem p 43

VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN

APOCALYPSIM

Este capiacutetulo se deteraacute principalmente no Expositio in Apocalypsim a maior e mais

bem estruturada obra de Joaquim de Fiore491 Eacute um texto que acompanhou o abade por quase

vinte anos concluiacutedo apenas dois anos antes de sua morte Em um trabalho desta natureza

escrito ao sabor dos anos eacute possiacutevel encontrar alteraccedilatildeo nas proacuteprias pespectivas do abade492

De qualquer forma o trecho que nos interessa especialmente estaacute ao final na seacutetima parte

quando apoacutes deixar Corazzo e jaacute no isolamento das montanhas de Fiore Joaquim se deteacutem

a construir sua exegese de Apocalipse 201-10 a periacutecope joanina que descreveu o reino

milenarista dos martirizados com Cristo Para analisaacute-la entretanto precisamos antes situaacute-

la no interior do Expositio por meio de alguns apontamentos sobre a estrutura geral da obra

e de uma siacutentese de conteuacutedo

71 Estrutura literaacuteria do Expositio

O Expositio in Apocalypsim na sua versatildeo presente no incunaacutebalo veneziano eacute

precedido por trecircs documentos distintos O primeiro eacute a Carta Testamentaacuteria (1r) na qual o

abade calabrecircs relata suas motivaccedilotildees ao escrever suas grandes obras e manifesta o desejo

de apresentaacute-las agrave cuacuteria papal Em seguida haacute uma carta de Clemente III (papa de 1187-

1191) para Joaquim (1v) datada para o dia 8 de junho de 1188 solicitando que o abade

encaminhe suas obras para a Seacute romana493 Apoacutes as duas cartas comeccedila o Liber

Introductorius in Apocalypsim (1v-25v) um longo texto que teria a funccedilatildeo de apresentar o

Expositio suas partes baacutesicas uma siacutentese das principais ideias do abade especialmente os

trecircs status do mundo a concordia dos dois Testamentos e as sete fases (aetas) da histoacuteria

491 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 79 492 A visatildeo de Joaquim quanto ao Impeacuterio Germacircnico por exemplo variou de uma postura criacutetica no iniacutecio da

obra para uma postura neutra no final Cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di

Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p 325-327 493 Uma ediccedilatildeo latina da carta pode ser encontrada em ELLIOTT E B Horae Apocalypticae a commentary

on the Apocalypse critical and historical Londres Seeley 1862 4 v V 4 p 386

145

da Igreja Finalmente no foacutelio 26v tem iniacutecio o Expositio por meio da expressatildeo ldquoIncipit

prima septem partius in expositione Apocalipsisrdquo494

A forma como o comentaacuterio de Joaquim foi construiacutedo permite visualizar as

seguintes seccedilotildees495

26v Parte I Sete Igrejas

51v Eacutefeso

67r Esmirna

69r Peacutergamo

73v Tiatira

78r Sardes

82v Filadeacutelfia

92v Laodiceacuteia

99r Parte II Sete selos

113v Primeiro Selo

114r Segundo Selo

114v Terceiro Selo

115v Quarto Selo

116v Quinto Selo

117v Sexto Selo

123v Seacutetimo Selo

123v Parte III Sete Trombetas

127v Primeiro Anjo

128v Segundo Anjo

128v Terceiro Anjo

129v Quarto Anjo

130v Quinto Anjo

133v Sexto Anjo

152r Seacutetimo Anjo

153r Parte IV A Mulher vestida de Sol e o Dragatildeo

154r Primeira distinccedilatildeo

158r Segunda distinccedilatildeo

160v Terceira distinccedilatildeo

161v Quarta distinccedilatildeo

172v Quinta distinccedilatildeo

173r Sexta distinccedilatildeo

174v Seacutetima distinccedilatildeo

177r Parte V Sete Taccedilas

187r Primeira Taccedila

187r Segunda Taccedila

494 Por esta expressatildeo eacute possiacutevel perceber uma ambiguidade estrutural na obra Joaquim anunciou sete seccedilotildees

mas terminou a obra com oito 495 Adaptamos aqui a estrutura sugerida por WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of

Fiore a Study in Spiritual Perception and History Bloomington Indiana University Press 1983 p 74-75

146

188v Terceira Taccedila

189r Quarta Taccedila

189v Quinta Taccedila

190r Sexta Taccedila

191r Seacutetima Taccedila

191v Parte VI A queda da Babilocircnia e a derrota das bestas

191v Primeira distinccedilatildeo

202v Segunda distinccedilatildeo

206r Terceira distinccedilatildeo

209v Parte VII Descanso sabaacutetico

Pars prima

Pars secunda

Pars tertia

Pars quarta

215r Parte VIII Jerusaleacutem Celestial

72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim496

Joaquim se propotildee a escrever um comentaacuterio exegeacutetico do Apocalipse de Joatildeo tarefa

que o coloca na tradiccedilatildeo de outros exegetas medievais da obra joanina como Beda o

Veneraacutevel ou Beato de Lieacutebana497 Mas o resultado entretanto vai aleacutem de discussotildees

teoloacutegicas para se tornar o que Potestagrave chamou de ldquohistoacuteria teoloacutegica do Cristianismordquo498

Esta histoacuteria aparece no Expositio de duas formas linear e ciacuteclica Tanto na narrativa linear

quanto na ciacuteclica haacute uma preocupaccedilatildeo contiacutenua do abade em vincular cada texto do

Apocalipse a eventos histoacutericos da forma mais estreita possiacutevel499

A revelaccedilatildeo linear aparece quando o abade estrutura o uacuteltimo livro do Novo

Testamento em oito partes sendo que as sete primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da

histoacuteria da Igreja Das sete seis relatam algum tipo de confronto da Igreja As quatro

primeiras fases apresentam protagonistas diferentes (apoacutestolos maacutertires doutores monges

496 Para esta siacutentese cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297-325 ELLIOTT E

B Horae Apocalypticae op cit p 384-420 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit

p 79-84 497 Conferir a discussatildeo anterior sobre o gecircnero literaacuterio do Expositio na qual indicamos autores anteriores agrave

Joaquim que tambeacutem escreveram exposiccedilotildees exegeacuteticas do Apocalipse 498 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297 MCGinn acompanha Potestagrave nesta

avaliaccedilatildeo e toma Joaquim como criador da mais imponente teologia da histoacuteria desde De civitate Dei de

Agostinho Cf MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero

occidentale Gecircnova Casa Editrice Marietti 1990 p 172 499 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 298

147

e virgens) Na quinta e na sexta eacute a Igreja em geral que enfrenta a Babilocircnia e o Anticristo

A seacutetima seria de descanso na forma de um sabbatum500 especial Finalmente viria o oitavo

periacuteodo que seria a consumaccedilatildeo final da histoacuteria e a eternidade transcendental501 Esta seria

a relaccedilatildeo esquemaacutetica entre a histoacuteria da Igreja e as partes do Apocalipse

- Primeira parte (Apocalipse 19-322) os apoacutestolos lutam contra os judeus

- Segundo parte (Apocalipse 41-81) os maacutertires lutam contra a Roma pagatilde

- Terceira parte (Apocalipse 82-1119) os doutores da Igreja lutam contra Aacuterio e os

governantes arianos

- Quarta parte (Apocalipse 121-1420) os monges e as virgens lutam contra os

sarracenos

- Quinta parte (Apocalipse 151-1617) a Igreja em geral luta contra a Babilocircnia

- Sexta parte (Apocalipse 1618-1921) a Igreja em geral luta contra o Anticristo

- Seacutetima parte (Apocalipse 201-10) o descanso sabaacutetico

- Oitava parte (Apocalipse 2011-2221) a Nova Jerusaleacutem

A histoacuteria da igreja aparece de forma ciacuteclica (recapitulatio) nas cinco primeiras

seccedilotildees do Apocalipse justamente aquelas em que Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura

seacutetupla Em cada uma delas ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma

histoacuteria que comeccedilaria na encarnaccedilatildeo de Cristo502 Aparentemente todas terminam no

descanso sabaacutetico um tempo de felicidade na terra Isso indica que a seacuterie de recapitulaccedilotildees

pode ter se restringido apenas agraves cinco primeiras partes do Expositio em funccedilatildeo da

perspectiva do abade de estar vivendo no tempo da sexta seccedilatildeo quando os eventos lhe satildeo

contemporacircneos ou estatildeo para acontecer em breve503

A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentaacuterios de Joaquim sobre

Apocalipse 11-322 (a seccedilatildeo das sete cartas para sete igrejas) Eacute a mais longa seccedilatildeo do

comentaacuterio Na estrutura geral eacute o primeiro tempo da Igreja a luta dos apoacutestolos contra a

sinagoga dos judeus Na histoacuteria da salvaccedilatildeo ela corresponde a sete geraccedilotildees com cada

500 Termo de origem hebraica (בת aparece na Vulgata como sabbatum (substantivo neutro de segunda (ש

declinaccedilatildeo) Seu significado eacute o seacutetimo dia da semana no calendaacuterio judaico ou o dia de descanso Cf LEWIS

Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p 1609 Ele retornaraacute de

forma recorrente no Expositio para descrever um periacuteodo de ldquodescansordquo para a Igreja de suas tribulaccedilotildees 501 COURT John M Approaching the Apocalypse a short history of Christian millenarianism New York I

B Tauris 2008 p 73 502 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 162 503 O abade entende o proacuteprio tempo como a hora da abertura do sexto selo e o iniacutecio do terceiro status Cf

MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 167

148

igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos A igreja de Eacutefeso apresenta a

ordem dos apoacutestolos em luta contra os inimigos judaizantes a de Esmirna descreve a ordem

dos maacutertires no confronto contra inimigos pagatildeos a de Peacutergamo simboliza a ordem dos

doutores e seus adversaacuterios arianos e sabelianos a de Tiatira aponta para a ordem dos virgens

em confronto contra os falsos contemplativos a de Sardes indica a ordem dos monges

cenobiacuteticos cujos inimigos eram monges hipoacutecritas a de Filadeacutelfia revela a ordem dos

eremitas e contemplativos numa luta contra falsos cristatildeos e falsos profetas a de Laodiceacuteia

por fim representa a ordem dos monges do terceiro status

Na seccedilatildeo das cartas o abade ainda apresenta o relacionamento entre Pedro e Joatildeo

questatildeo que ele retoma repetidas vezes no Expositio O primeiro eacute typos504 de Cristo e

representa a Ordem Ativa enquanto o segundo eacute typos do Espiacuterito Santo e representa a

Ordem Contemplativa Ao passo que Pedro deixou Jerusaleacutem para fundar a sede apostoacutelica

em Roma Joatildeo saiu da Judeacuteia e foi para a Aacutesia escrever o Apocalipse para as sete igrejas

Pedro morreu primeiro Joatildeo sobreviveu-lhe cerca de trecircs deacutecadas Isso indicaria que a Igreja

Contemplativa (de Joatildeo) vai ultrapassar historicamente a Igreja Ativa (de Pedro)

Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a seccedilatildeo dos selos

(Apocalipse 41-81) Na estrutura geral eacute o segundo tempo da Igreja quando os principais

personagens satildeo os maacutertires em luta contra os pagatildeos em um tempo que vai ateacute o momento

de paz da Igreja no tempo de Constantino e Silvestre Corresponde tambeacutem a sete tribulaccedilotildees

paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos Desta forma o abade desenvolveu um sistema

de duplo septenaacuterio um trata de eventos da histoacuteria de Israel e o outro aponta para a histoacuteria

da Igreja Durante todo o seu comentaacuterio os meacutetodos hermenecircuticos do abade permitem que

ele encontre vaacuterios significados para os mesmos personagens e eventos do Apocalipse

O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi imaginado por

Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho enquanto eacute perseguida pelos judeus

No Antigo Testamento significa o nascimento de Israel por meio do cativeiro egiacutepcio

A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo vermelho cujo

cavaleiro carrega uma espada mortal O cavalo simboliza a Roma pagatilde com seus sacerdotes

e exeacutercitos Na histoacuteria da Igreja este selo inaugura a perseguiccedilatildeo dos fieacuteis sob o antigo

Impeacuterio Romano Corresponde na histoacuteria dos judeus agrave conquista de Canaatilde que vai do

tempo dos juiacutezes ateacute o governo de Davi

504 Conferir a discussatildeo sobre tipologia no capiacutetulo anterior

149

O terceiro selo que descreve um homem com um par de balanccedilas eacute a heresia de

Aacuterio cujo clero aparece representado no cavaleiro que traz terror e escuridatildeo para a feacute cristatilde

O ser angelical que anuncia este selo representa a ordem de doutores que proclamou a

verdade e enfrentou os arianos Na histoacuteria do Antigo Testamento corresponde ao periacuteodo

de enfrentamento dos siacuterios

Na abertura do quarto selo um cavalo paacutelido aparece trazendo pragas e eacute seguido

pelo Hades Este representa a ameaccedila sarracena cujo cavaleiro eacute Maomeacute que persegue os

cristatildeos Durante este periacuteodo os monges e virgens tentaram sobreviver e manter a feacute cristatilde

Corresponde ao tempo da tribulaccedilatildeo de Israel sob os assiacuterios

Ao abrir o quinto selo o Apocalipse descreve um grupo de almas debaixo do altar

Nos quatro primeiros selos cristatildeos foram perseguidos e mortos na Judeacuteia Roma Greacutecia e

Araacutebia Esta quinta perseguiccedilatildeo vem da Mauritacircnia e Espanha onde sarracenos mataram

muitos cristatildeos Tambeacutem significa o sofrimento da Igreja romana em luta contra os

imperadores germacircnicos As roupas brancas significam que os maacutertires passaram do luto

para a alegria A expressatildeo ldquoateacute que seus irmatildeos sejam mortosrdquo indica para Joaquim que

ainda resta um conflito final que promoveraacute o martiacuterio de muitos cristatildeos

O sexto selo descreve cataclismos coacutesmicos Ele representa o dia do julgamento da

Babilocircnia cujo significado eacute ldquoquem quer que ataque a Igreja de Pedro moral ou

fisicamenterdquo505 especialmente os falsos cristatildeos ou falsos membros da Igreja romana O

abade espera perseguiccedilotildees para os fieacuteis com papel significativo na histoacuteria jaacute que por meio

delas a Igreja seraacute purificada de sua corrupccedilatildeo

Na abertura do seacutetimo selo um silecircncio se manifesta no ceacuteu Para Joaquim ele

representa o sabbatum de descanso no qual um silecircncio contemplativo seraacute trazido agrave

realidade Em comparaccedilatildeo na correspondente era do Antigo Testamento depois de Esdras

e Malaquias cessou a produccedilatildeo de Escritura Entatildeo sob o seacutetimo selo natildeo seraacute mais preciso

a pregaccedilatildeo

A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas do Apocalipse

(Apocalipse 82-1118) Na estrutura geral eacute o tempo terceiro quando a ordem dos doutores

digladia contra os hereges em particular os arianos Mas tambeacutem corresponde a sete fases

A trombeta de nuacutemero um eacute a fase dos Apoacutestolos principalmente Paulo pregando contra o

Judaiacutesmo e o legalismo O granizo misturado com fogo e sangue significa o espiacuterito de

505 ldquoQuicumque Petri ecclesiam moribus viribusque impugnantrdquo (117v) As traduccedilotildees do Expositio neste

capiacutetulo satildeo proacuteprias a natildeo ser que haja indicaccedilotildees em contraacuterio

150

escuridatildeo dos coraccedilotildees dos judeus Como resultado um terccedilo dos judeus convertidos

apostatou de volta para o Judaiacutesmo

A segunda trombeta significa os Maacutertires da era poacutes-apostoacutelica pregando contra a

heresia dos nicolaiacutetas Nicolau eacute a montanha que caiu no ldquomar dos gentiosrdquo Por causa dele

um terccedilo dos pagatildeos convertidos abandonou a feacute A terceira trombeta simboliza os doutores

do tempo de Constantino O meteoro que cai eacute Aacuterio cujo erro desabou sobre bispos e

sacerdotes e contaminou a aacutegua pura das escrituras A quarta trombeta tipifica os monges e

as virgens que como luminares celestiais caminhando em contemplaccedilatildeo iluminam o

mundo Seratildeo em larga medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos A quinta

trombeta descreve gafanhotos-escorpiotildees que representam os pathareni506 As arvores que

os gafanhotos destroem indicam a Igreja catoacutelica A couraccedila dos escorpiotildees aponta para o

coraccedilatildeo duro dos perfecti entre os pathareni Neste ponto de seu comentaacuterio o abade fala de

um homem que escapou de uma prisatildeo em Alexandria no ano anterior (1195) Joaquim o

encontrou em Messina e ouviu dele notiacutecias de uma alianccedila entre sarracenos e pathareni A

esta alianccedila outras naccedilotildees hostis se juntaratildeo como os turcos do Oriente os mouros e os

berberes do sul

Entre a sexta e a seacutetima trombeta o Apocalipse descreveu trecircs cenas distintas a

convocaccedilatildeo para que se coma um livro a descriccedilatildeo da medida do templo e a atuaccedilatildeo das

duas testemunhas martirizadas pela besta Na cena em que o livro eacute comido o abade

descreveu a ordem monaacutestica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne)

A cidade santa que aparece na mediccedilatildeo do templo significa a Igreja romana A Igreja grega

por ter se afastado da seacute apostoacutelica eacute a parte externa do templo que seraacute dada aos gentios

Aos olhos de Joaquim isso jaacute aconteceu em grande medida mas os gregos podem esperar

por novas desolaccedilotildees A rejeiccedilatildeo ao filioque era para o abade a maior prova de apostasia da

Igreja grega507 Sobre as duas testemunhas Joaquim as entende como Moiseacutes e Elias ou

duas ordens espirituais que viratildeo no poder destes antigos personagens biacuteblicos para pregar

contra o Anticristo Segundo o abade ldquoMoiseacutes foi um Levita e pastor do povo de Israel

506 Joaquim usa o termo pathareni para se referir ao movimento dissidente conhecido como ldquocatarismordquo Cf

POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 308 Especificamente sobre esta dissidecircncia

medieval cf AGUSTIacute David Los caacutetaros el desafio de los humildes Madrid Siacutelex Ediciones 2006 507 WHALEN Brett Edward Dominion of God Christendom and Apocalypse in the Middle Ages Cambridge

Harvard University Press 2009 p 111 O filioque era uma foacutermula latina de descriccedilatildeo do relacionamento entre

as pessoas da Trindade Ela afirma a dupla origem do Espiacuterito procedendo simultaneamente do Pai e do Filho

Sobre a importacircncia do filioque para o pensamento de Joaquim cf DANIEL Randolph E The double

procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiores Understanding of History Speculum Chicago v 55 n 3

p 469-483 1980

151

Elias foi um homem solitaacuterio que natildeo teve esposa ou filhos Logo um representa a ordem

dos cleacuterigos o outro a ordem dos mongesrdquo508 Finalmente surge a seacutetima trombeta Eacute tempo

do julgamento da besta e do falso profeta O Anticristo e os seus seguidores seratildeo

exterminados Comeccedilaraacute entatildeo a fase final da histoacuteria da Igreja ldquoo terceiro status do mundo

que seraacute um tempo de descanso e contemplaccedilatildeo Nele apoacutes o fim das pessoas corruptas da

terra reinaraacute o povo santo do Altiacutessimordquo509 Esta seccedilatildeo termina com uma longa descriccedilatildeo da

conversatildeo final dos gregos e judeus agrave Igreja latina

A quarta parte do Expositio (153r-174v) natildeo apresenta uma estrutura clara no

Apocalipse (Apocalipse 1119-1420) mas mesmo assim o abade optou pela divisatildeo em sete

distinccedilotildees (distinctiones) A seccedilatildeo comeccedila na abertura do santuaacuterio celestial mas tem como

foco a histoacuteria do Dragatildeo510 Eacute o quarto tempo da histoacuteria da Igreja no qual a ordem dos

monges e das virgens luta contra Maomeacute a quarta cabeccedila do Dragatildeo Igualmente

corresponde a sete fases

A primeira distinccedilatildeo apresenta o conflito entre a mulher vestida de sol e o Dragatildeo

Nesta primeira batalha os protagonistas foram Pedro e seus sucessores O inimigo por sua

vez agiu atraveacutes de Herodes e Nero A segunda distinccedilatildeo apresenta a guerra entre Miguel e

o Dragatildeo (Apocalipse 127-12) como siacutembolo da perseguiccedilatildeo pagatilde aos cristatildeos ateacute o tempo

de Constantino A terceira distinccedilatildeo descreve a fuga da mulher para o deserto que representa

a perseguiccedilatildeo agrave igreja atraveacutes das monarquias arianas Ela fugiraacute para uma vida de retiro e

contemplaccedilatildeo durante 42 meses ou 1260 dias

A quarta distinccedilatildeo comeccedila em Apocalipse 1217 com o levantamento das duas

bestas e vai ateacute 145 (o ajuntamento das 144000 testemunhas do Cordeiro) A besta

representa a perseguiccedilatildeo sarracena aos eremitas e virgens mas tambeacutem indica por meio de

suas cabeccedilas uma seacuterie de adversaacuterios histoacutericos da igreja As quatro primeiras cabeccedilas

respectivamente eram os judeus pagatildeos romanos arianos e sarracenos Esta cabeccedila

sarracena parecia ter morrido em funccedilatildeo da tomada de Jerusaleacutem da conquista normanda

na Siciacutelia e da expulsatildeo dos mouros na Espanha Para Joaquim entretanto ela voltou a

viver tatildeo terriacutevel quanto antes e a tomada de Jerusaleacutem seria uma demonstraccedilatildeo disso Eacute a

508 ldquoMoses fuit Levita et pastor Populi Israel Helyas vir solitarius no habens filios aut uxorem Ille ergo

significat ordinem clericorum iste ordinem monachorumrdquo (148v) Muito se especularaacute posteriormente na

recepccedilatildeo do pensamento joaquimita sobre a relaccedilatildeo entre as duas testemunhas de Apocalipse e as ordens de

Francisco e Domingos Cf REEVES Marjorie The influence of prophecy in the Later Middle Ages a study

in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 72-73 509 ldquoEt ad tertium statum mundi qui erit in sabbatum et quietem in quo exterminatis prius corruptoribus

terrae regnaturus est populus sanetorum Altissimirdquo (152v) 510 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 314

152

cabeccedila que parecia ter morrido mas reviveu para impressionar o mundo todo Joaquim

interpretou a segunda besta de Apocalipse como um falso-profeta que se levantaraacute do meio

da igreja conhecendo e falando como um cristatildeo Este faraacute alianccedila com a ldquocabeccedila sarracenardquo

da primeira besta Satildeo os pathareni ldquoa escoacuteria dos heregesrdquo (haereticorum fex) Os 144000

que aparecem em Apocalipse 14 satildeo para o abade os monges e virgens da igreja que se

opotildee agravequeles que tecircm a marca da besta

A quinta distinccedilatildeo cobre apenas dois versiacuteculos do Apocalipse (Apocalipse 146-7)

Eacute o anuacutencio do Evangelho Eterno e do juiacutezo511 Tambeacutem eacute o tempo da desolaccedilatildeo da

Babilocircnia A sexta distinccedilatildeo (Apocalipse 148-12) descreve o anuacutencio dos dois uacuteltimos anjos

no ceacuteu Eacute o tempo do advento da Besta e do falso-profeta No momento de descrever a seacutetima

distinccedilatildeo (Apocalipse 1413-20) a cena do Filho do Homem e a ceifa Joaquim anuncia a

idade sabaacutetica final quando os fieacuteis viveratildeo na terra com aqueles que sobreviverem agrave queda

do Anticristo

Potestagrave alerta que o Expositio eacute um comentaacuterio biacuteblico e natildeo um tratado escolaacutestico

Aleacutem do mais ele foi escrito no transcurso de quase vinte anos de trabalho Isso faz com que

ele comporte algumas contradiccedilotildees ou oscilaccedilotildees Nesta seacutetima distinccedilatildeo por exemplo o

descanso sabaacutetico parece ter a presenccedila de Cristo na terra com os santos Nas outras

referecircncias ao mesmo periacuteodo Cristo natildeo exerce um papel pessoal na transiccedilatildeo para a era

do Espiacuterito512

A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seccedilatildeo das sete taccedilas do Apocalipse

(Apocalipse 151-1617) Eacute o quinto tempo da Igreja indicando o confronto da Igreja

romana simbolizada pelo trono de Deus contra Babilocircnia Cada taccedila representa tambeacutem

sete destinataacuterios da ira divina A primeira taccedila da ira foi despejada sobre os judaizantes que

adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica A segunda sobre a igreja infiel

antes de Constantino A terceira sobre os bispos arianos e seus ensinos depois de

Constantino A quarta sobre os hipoacutecritas das ordens contemplativas A quinta sobre os

falsos cleacuterigos e monges A sexta sobre os perversos do mundo A seacutetima taccedila sobre os

proacuteprios eleitos na forma de uma perseguiccedilatildeo purificadora

511 A expressatildeo ldquoEvangelho Eternordquo estaacute na origem da condenaccedilatildeo imposta a algumas ideias de Joaquim em

Anagni no ano de 1255 em funccedilatildeo da atividade do franciscano Geraldo de Borgo san Donnino Cf

ROSSATTO Noeli Dutra et all Evangelho eterno a hermenecircutica condenada Filosofia Unisinos Satildeo

Leopoldo v 11 n 3 p 298-339 2010 512 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 317

153

A sexta parte do Expositio (191v-209v) natildeo apresenta mais a divisatildeo septenaacuteria Esta

seccedilatildeo do Apocalipse descreve a queda da Babilocircnia e o juiacutezo sobre as bestas (Apocalipse

1618-1921) Eacute o sexto tempo da histoacuteria e trata da luta dos viri spirituales primeiramente

contra o Dragatildeo depois contra a besta que veio do mar e a besta que veio da terra O abade

viu nesta longa passagem biacuteblica trecircs distinccedilotildees A primeira (Apocalipse 1618-1824)

descreve a queda da Babilocircnia e da besta que a sustenta Potestagrave destaca que um aspecto

marcante desta distinccedilatildeo estaacute no fato de Joaquim ter retirado o Impeacuterio Germacircnico da seacuterie

de inimigos finais da igreja No seu sermatildeo de 1184 (Apocalipsis liber ultimus) o Impeacuterio

seria o adversaacuterio que iria purificar a Igreja dos seus pecados O mesmo aparece no texto

Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno (1184) Mas no momento em que o

abade escreve a sexta parte do Expositio o Impeacuterio natildeo representa mais um inimigo a ser

temido A cidade que cairaacute agora natildeo representa Roma ou o Impeacuterio Germacircnico mas

Constantinopla e o Impeacuterio Bizantino Babilocircnia se torna siacutembolo para qualquer oposiccedilatildeo agrave

Igreja de Roma513

A segunda distinccedilatildeo (Apocalipse 191-10) apresenta a exultaccedilatildeo dos fieacuteis diante da

ruiacutena da Babilocircnia A terceira distinccedilatildeo (Apocalipse 1911-21) apresenta a derrota da besta

e do falso-profeta Ambos representam inimigos da igreja desde o tempo dos apoacutestolos Nos

termos de Joaquim satildeo as ldquonaccedilotildees increacutedulas que uma vez estiveram sujeitas ao Impeacuterio

Romano e entatildeo perseguem a Cristo e sua Igrejardquo514 Suas sete cabeccedilas sucessivas satildeo a)

Herodes e seus judeus no reino da Judeacuteia b) os pagatildeos do Impeacuterio Romano ateacute o tempo de

Diocleciano c) reino grego ariano d) reino godo ariano e) reino vacircndalo ariano f) reino

lombardo ariano g) o impeacuterio de Maomeacute O tempo da seacutetima cabeccedila eacute o tempo da desolaccedilatildeo

da Babilocircnia Esta terceira distinccedilatildeo descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo branco

Segundo o abade esse cavaleiro pode indicar a manifestaccedilatildeo de Cristo para destruir a besta

atraveacutes de sua volta pessoal ou o poder de Cristo operado por meio de outras figuras

Inicialmente ele se inclina para uma vinda pessoal Depois entretanto admite que isso pode

ser explicado pela accedilatildeo invisiacutevel de Cristo em sua Igreja militante

Finalmente as duas proacuteximas seccedilotildees do Expositio fecham o livro A parte seacutetima

(209v-215r) discute o milecircnio (Apocalipse 201-10) e a oitava (215r-224r) a Jerusaleacutem

513 Idem p 319-320 514 ldquoUniversas gentes infideles quae aliquando subjectae fuerunt Romano imperio et persecutae sunt Christum

et ecclesiam ejusrdquo (196r)

154

Celestial (Apocalipse 2011-2221) Esta uacuteltima corresponde ao oitavo aetas natildeo mais

dentro da histoacuteria mas no seculum futurum posterior ao uacuteltimo tempo da humanidade

73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio

A seacutetima seccedilatildeo do Expositio eacute a menor do comentaacuterio de Joaquim o que natildeo significa

status diminuiacutedo O episoacutedio do milecircnio de Apocalipse 201-10 foi transformado em uma

espeacutecie de aacutepice antes do cliacutemax O fim do mundo com o juiacutezo final e a esfera porvir

continuam no horizonte (a seccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem) do abade mas este fim aguardado para

a ldquoeternidaderdquo recebeu uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica na histoacuteria Como argumentou Potestagrave a

estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade ldquoa descoberta que

a primeira parte de Apocalipse 20 trata daquele grande saacutebado futuro no final do mundo515

Curiosamente se Joaquim procura com sua metodologia hermenecircutica ldquoinventarrdquo

muacuteltiplos sentidos nas outras seccedilotildees do comentaacuterio nesta ele eacute econocircmico em detalhes sobre

as figuras e os eventos Em outros lugares do Expositio como na anaacutelise das duas

testemunhas do capiacutetulo 11 de Apocalipse ele multiplica os significados por meio da

alegoria tipologia e concordia516 Ao interpretar os dez versiacuteculos do reino messiacircnico de

Joatildeo (Apocalipse 201-10) entretanto ele se contenta em fornecer um agraves vezes dois

sentidos mas ainda vagos e imprecisos Diferente de Papias que chega a descrever o

tamanho das uvas do reino milenar517 o abade de Fiore no final de sua vida entende que

alguns poucos aspectos espirituais jaacute seriam suficientes para alimentar a expectativa da

Igreja

Joaquim dividiu esta seacutetima seccedilatildeo do Expositio em quatro partes precedidas de uma

introduccedilatildeo

- Introduccedilatildeo 209v-210v

- Pars prima 210v-212r (comentaacuterio de Apocalipse 201-3)

- Pars secunda 212r-214v (comentaacuterio de Apocalipse 204)

515 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 299 516 Extrateacutegias hermenecircuticas apresentadas no capiacutetulo anterior 517 Conferir a citaccedilatildeo em DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1997 p 23 ldquoViratildeo dias em que as vinhas cresceratildeo em que cada uma teraacute dez mil

vides e em cada vide dez mil ramos e em cada ramo dez mil bototildees e em cada botatildeo dez mil cachos e em

cada cacho dez mil uvas e cada uva prensada daraacute vinte e cinco medidas de vinho E quando um dos santos

colher um cacho o outro lhe diraacute sou melhor colha-me e abenccediloa o Senhor atraveacutes de mimrdquo

155

- Pars tertia 214v (comentaacuterio de Apocalipse 205-6)

- Pars quarta 214v-215r (comentaacuterio de Apocalipse 207-10)

A introduccedilatildeo eacute aberta logo com a frase ldquoestatildeo completadas seis partes do livro de

Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de trabalho Vem agora a seacutetima parte na

qual vemos aquele saacutebado futuro no fim do mundo que em outro lugar chamamos de terceiro

statusrdquo518 Fica clara assim a relaccedilatildeo construiacuteda por Joaquim entre o milecircnio de Apocalipse

20 e um periacuteodo de paz na terra durante o fim do terceiro status da histoacuteria da humanidade

Ele completa ainda que se trata do ldquotertium statum sive etiam septimam mundi statemrdquo (do

terceiro status ou da seacutetima idade do mundo) Corresponde tambeacutem agrave seacutetima aetas da Igreja

que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do seu Expositio

Apoacutes estas frases de definiccedilatildeo ou mesmo de contextualizaccedilatildeo o abade recorre a

Agostinho e uma figura que ele chama de St Remigius Do primeiro ele toma a ideia de que

a expressatildeo ldquodia finalrdquo nas Escrituras natildeo precisa ser entendida como significando o uacuteltimo

momento do mundo podendo antes ser uma uacuteltima fase ou entatildeo o tempo do fim Por isso

os autores biacuteblicos poderiam dizer haacute mais de mil anos que ldquojaacute era a uacuteltima horardquo No

segundo ele busca apoio para a afirmaccedilatildeo de que haveraacute um certo tempo de duraccedilatildeo

indeterminada posterior agrave derrota do Anticristo Esse parece ser o motivo dele ter buscado

nesta figura de identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua

interpretaccedilatildeo Segundo Potestagrave provavelmente este Remigius foi um exegeta do seacuteculo XII

cuja obra foi atribuiacuteda a um certo Aimone de Halberstadt519

A ideia de um periacuteodo sabaacutetico na terra representa descontinuidade com a tradiccedilatildeo

exegeacutetica de Agostinho520 Joaquim estaacute ciente disso e gasta algumas linhas do seu

comentaacuterio para explicar que a expectativa da vinda agrave terra de uma seacutetima aetas na qual a

Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e reinaria sem perturbaccedilatildeo na plena possessatildeo da

ldquointeligecircncia espiritualrdquo natildeo eacute um erro mas uma maior compreensatildeo Segundo o abade eacute

uma ldquoopiniatildeo racional natildeo contraacuteria agrave feacuterdquo521

518 ldquoPeractis sex partibus libri Apocalypsis in quibus notata sunt sex tempora laboriosa Veniendum est

quandoque ad septimam partem im qua agitur de magno illo sabbato in fine mundi futuro quod vocari placluit

tertium statumrdquo (209v) 519 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 323 520 Segundo MC Ginn ldquoem nenhuma outra parte do seu longo comentaacuterio Joaquim mostra a ruptura com

setecentos anos de tradiccedilatildeo exegeacutetica latina como na descriccedilatildeo do reino milenar de Cristo e dos santos na terra

de Apocalipse 20rdquo Cf MCGINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 521 ldquoTamen esse potest rationabilis opinio que non sit contra fidemrdquo (210v)

156

Apoacutes isso ele usa boa parte da introduccedilatildeo para retomar aspectos que precederiam o

periacuteodo sabaacutetico o diabo lanccedilaraacute os sarracenos contra o impeacuterio cristatildeo apoacutes a queda da

Babilocircnia haveraacute um pequeno periacuteodo de tranquilidade para a Igreja entatildeo a besta que

parecia morta se ergueraacute novamente para uma segunda batalha contra os exeacutercitos de fieacuteis

o resultado seraacute a derrota da besta e do falso profeta e finalmente se seguiraacute uma grande

paz o descanso sabaacutetico

A partir de entatildeo ele analisa os versiacuteculos de Apocalipse 201-10 por meio da

estrateacutegia que jaacute utilizou no restante do comentaacuterio haacute uma transcriccedilatildeo de uma pequena

porccedilatildeo do texto na sua versatildeo latina522 seguido de comentaacuterios exegeacuteticos filoloacutegicos e

histoacutericos

A primeira parte da seccedilatildeo corresponde a Apocalipse 201-3 (a prisatildeo de Satanaacutes) Eacute

possiacutevel notar uma pequena diferenccedila entre o texto latino usado por Joaquim e a Vulgata

Clementina No versiacuteculo trecircs a Clementina usou o termo consummentur (seja concluiacutedo)

enquanto Joaquim transcreveu compleant (seja completado) De qualquer forma satildeo termos

intercambiaacuteveis sem grandes implicaccedilotildees textuais para a periacutecope

O abade comeccedila com a discussatildeo do significado da expressatildeo ldquomil anosrdquo O nuacutemero

natildeo eacute literal jaacute que ele significa um nuacutemero perfeito523 Isso indicaria que a duraccedilatildeo da prisatildeo

de Satanaacutes seria durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo Mesmo assim o abade aplica ao tempo

milenar dois significados secundum parte et secundum plenitudinem O primeiro teve um

cumprimento inicial (incipient) no tempo da ressureiccedilatildeo de Cristo Neste sentido o milecircnio

se estenderia daquela eacutepoca ateacute o fim do mundo durante todo o tempo da histoacuteria da Igreja

(ldquoad totum tempus ecdesierdquo) Mas seu perfeito e completo cumprimento seraacute no tempo

sabaacutetico (ldquoad sabbatumrdquo) depois da destruiccedilatildeo da besta

Nos seus termos o milecircnio do Apocalipse teria um cumprimento duplo

ldquoparcialmente a partir daquele saacutebado em que o Senhor descansou no sepulcro plenamente

apoacutes a destruiccedilatildeo da Besta e do Falso-profetardquo524 Eacute uma forma curiosa de afirmar a posiccedilatildeo

de Agostinho (milecircnio como o tempo de existecircncia histoacuterica da Igreja) para logo em seguida

522 Natildeo haacute marcaccedilatildeo de capiacutetulos ou versiacuteculos na versatildeo latina usada por Joaquim Ela difere levemente da

Vulgata Clementina usada nesta tese COLUNGA Alberto TURRADO Laurentio Biblia Sacra iuxta

Vulgatam Clementinam Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1965 523 ldquoMillenarius numerus perfectissimus estrdquo (210v) 524 ldquoSecundum partem incipit ab illo sabbato quo requievit Dominus in sepulchro secundum plenitudinem sui

a ruina Bestiae et Pseudo-Profhetaerdquo (211r)

157

abandonaacute-la em prol da retomada da antiga posiccedilatildeo quiliasta (milecircnio como um periacuteodo

futuro intra-histoacuterico)525

Para Joaquim o autor de ldquoConfessionesrdquo estava correto apenas parcialmente Como

ele o abade insiste em afirmar que o milecircnio natildeo seraacute literal Pode ser longo ou curto mas

sua ldquoduraccedilatildeo seraacute segundo o arbiacutetrio de Deusrdquo526 Talvez seja mesmo curto mas o tempo

esclareceraacute isto

Sobre a atuaccedilatildeo do Espiacuterito o abade afirma que ele manteraacute a chave da prisatildeo de

Satanaacutes Neste periacuteodo a terceira pessoa da Trindade atuaraacute sobre toda a terra natildeo apenas

sobre os fieacuteis mas tambeacutem sobre os pagatildeos Por isso ldquohaveraacute uma grande paz como nunca

antes desde o princiacutepio dos seacuteculosrdquo527

Ele volta a mencionar Agostinho que afirmara inicialmente uma opiniatildeo sobre o

milecircnio e depois mudou de ideia528 Seu argumento eacute que o bispo de Hipona soacute deixou a

perspectiva de um milecircnio histoacuterico por causa das expressotildees exageradamente ldquocarnaisrdquo dos

defensores do quiliasmo daquela eacutepoca Mas o fato de crer na vinda sobre a terra de uma

seacutetima aetas muito melhor que as anteriores natildeo constitui um erro mas eacute sim uma

ldquocompreensatildeo tranquilardquo529

No foacutelio 211r o abade fala do ldquoreinar do Espiacuterito Santordquo (ldquoregnare Spiritus divinusrdquo)

no que se constitui uma significativa alternativa ao ldquoreino de Cristordquo de Apocalipse 201-10

Haacute ainda uma insistecircncia de Joaquim em caracterizar este periacuteodo como um tempo de paz

ldquoGenuiacutena paz fruiraacute para a Igreja de Cristordquo530

A segunda parte da seacutetima seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 204-5a531 e

ocupa apenas uma coluna do foacutelio 212r Joaquim comeccedila indicando a relaccedilatildeo do texto de

Joatildeo com ldquoo povo santo do altiacutessimordquo descrito por Daniel ldquocujo reino eacute eternordquo532 O abade

entende que os ldquomille annirdquo destes versiacuteculos devem ser paralelos agrave prisatildeo de Satanaacutes ldquoO

525 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 324 MC GINN Bernard LrsquoAbate

Calabrese op cit p 169 526 ldquoCujus terminus erit in arbitrio Deirdquo (210b) 527 ldquoErit magna pax qualis non fuit aprincipio seculirdquo (210v) 528 ldquoVera fuit illo opinio immo non jam opiniordquo (211r) A citaccedilatildeo veio de De Civitate Dei 2071 Versatildeo

consultada SANTO AGOSTINHO A cidade de Deus Petroacutepolis Vozes 2012 2 v V 1 p 514 529 ldquoSerenissimus intellectusrdquo (211r) 530 ldquoVera pace frui poterit ecclesia Christirdquo (211r) 531 No texto joanino o bloco comeccedila com a menccedilatildeo dos tronos passa pela descriccedilatildeo dos maacutertires que

reviveram e termina na explicaccedilatildeo de que os demais natildeo reviveram ateacute o fim dos mil anos 532 ldquoCuius regnum sempiternum estrdquo (212r)

158

tempo do reino dos Santos seraacute interligado com o tempo da prisatildeo do Dragatildeordquo533 Seraacute um

tempo breve de duraccedilatildeo incerta no qual a Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e alcaccedilaraacute a

plena possessatildeo da ldquointelligentia spiritualisrdquo

A ressurreiccedilatildeo mencionada por Joatildeo eacute tambeacutem entendida como a prevista em Daniel

12 Jaacute os mortos que natildeo reviveram ateacute o final do milecircnio segundo Joaquim seratildeo os fieacuteis

que ressuscitaratildeo e entraratildeo direto na Nova Jerusaleacutem sem passar pelo julgamento do ldquotrono

brancordquo descrito a partir de Apocalipse 2011 Mas ele admite dificuldades neste ponto e

entende que eacute preciso esperar por novos esclarecimentos espirituais

A terceira parte da seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 205b-6 que natildeo passa

de uma declaraccedilatildeo do estado daqueles que participam da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo Eacute um bloco

muito pequeno soacute ocupando 19 linhas de uma coluna do foacutelio 214v A versatildeo latina citada

pelo abade declara ldquobeatus et sanctus qui habet partem in resurrectione primardquo (Exp Ap

214v) Percebe-se que Joaquim natildeo tem muito para falar sobre estes versiacuteculos do

Apocalipse Ele se contenta em afirmar que aqueles que experimentarem a ldquoprimeira

ressurreiccedilatildeordquo seratildeo realmente felizes (felicius viro) pois natildeo estaratildeo mais ao alcance da

morte

A quarta e uacuteltima seccedilatildeo da seacutetima parte do Expositio corresponde a Apocalipse 207-

10 (a volta de Satanaacutes e o confronto contra Gog e Magog) Joaquim recorre agrave passagem

paulina de 1Tessalonicenses 413 para descrever duas ressurreiccedilotildees Segundo o abade

alguns ressuscitaratildeo logo outros depois Tambeacutem vincula o texto de Joatildeo com uma profecia

de Ezequiel 38 ao descrever um conflito no final dos tempos A paz do periacuteodo sabaacutetico

seraacute interrompida quando Satanaacutes for solto do abismo e instaurar a tribulaccedilatildeo de Gog e

Magog que significa uma uacuteltima ameaccedila para os cristatildeos vinda dos confins do Oriente

talvez de povos que no passado longiacutenquo foram aprisionados por Alexandre o Grande Este

exeacutercito se levantaraacute contra a ldquocidade amada no fim dos seacuteculosrdquo534 mas seraacute logo destruiacutedo

Assim a besta e o falso-profeta foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine

sexte etatis) e Satanaacutes o seraacute no fim da seacutetima (in fine septime)

Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto e fala em muacuteltiplas

ldquoopinionesrdquo Por fim conclui com outra alusatildeo a Daniel no sentido de que quando for vista

533 ldquoIdem tempu intelligatur incarcerationis draconis et regni Santorumrdquo (212r) 534 ldquoCivitatem dilectam in consumatione seculirdquo (214v)

159

a ldquoabominaccedilatildeo da desolaccedilatildeordquo (ldquoabominationem desolationisrdquo) eacute porque ldquoestas coisasrdquo estatildeo

para se cumprir535

74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito

Segundo Bernard MCGinn Joaquim era um ldquoum convicto utopista no sentido de

que ele sentia ardentemente a iminecircncia da condiccedilatildeo ideal de vida sobre a terrardquo536 Sua

descriccedilatildeo desta eacutepoca futura parece realmente estar marcada pela ansiedade Ele desejava

ver o que naquele momento apenas podia imaginar e esperava estar vivo quando tudo

acontecesse jaacute que aguardava a manifestaccedilatildeo deste periacuteodo histoacuterico para breve Mas que

tipo de vida o abade esperava Quais seriam as tais ldquocondiccedilotildees ideaisrdquo de existecircncia humana

sobre a terra

Acima de tudo seria o reino do Espiacuterito (regnus Spiriti Divini) O Espiacuterito eacute a mais

frequente referecircncia de Joaquim para este periacuteodo Ele eacute o ldquoanjordquo que amarraraacute Satanaacutes por

ldquomil anosrdquo ou seja durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo de tempo Talvez por uma geraccedilatildeo (30

anos)537 Assim o ministeacuterio de Cristo a segunda pessoa da Trindade e o ministeacuterio do

Espiacuterito Santo a terceira pessoa durariam igualmente 30 anos Seraacute um periacuteodo curto mas

necessaacuterio agrave luz da revelaccedilatildeo trinitaacuteria agrave humanidade jaacute que o Pai se manifestou no primeiro

status e o Filho no segundo O terceiro status pertence ao Espiacuterito

Durante este tempo o Espiacuterito atuaraacute sobre toda a terra enchendo-a de paz Essa seraacute

sua principal caracteriacutestica Finalmente teraacute acabado a longa seacuterie de conflitos e perseguiccedilotildees

que marcou os dois povos de Deus (Israel e Igreja) desde o iniacutecio da histoacuteria Neste periacuteodo

ambos estaratildeo unidos (judeus e gentios) debaixo da plena posse da ldquointeligecircncia espiritualrdquo

para conhecer os segredos das Escrituras Joaquim fala de uma ldquocidade amadardquo no final da

seacutetima seccedilatildeo do Expositio o que pode ser uma indicaccedilatildeo de que Joaquim esperava que

535 Em Daniel 927 registra-se que algueacutem viraacute sobre ldquoas asas da abominaccedilatildeordquo A mesma imagem eacute usada em

Daniel 1131 e 1211 mas a referecircncia primaacuteria em termos histoacutericos e literaacuterios eacute mesmo Daniel 9 quando

o autor apocaliacuteptico descreve a profanaccedilatildeo do templo por Antiacuteoco Epiacutefanes A funccedilatildeo principal desta narrativa

apocaliacuteptica era garantir que o tempo de anguacutestia dos leitores estava para chegar ao fim e por isso o relato

anuncia uma iminente ldquogrande abominaccedilatildeordquo (referecircncia agrave profanaccedilatildeo do templo de Jerusaleacutem) mas garante

que quando isso acontecer a libertaccedilatildeo divina viraacute em seguida Cf COLLINS John J Daniel with in

introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 1984 p 93 536 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 537 Joaquim usa o termo ldquogeraccedilatildeordquo para descrever periacuteodos histoacutericos Uma geraccedilatildeo teria a duraccedilatildeo de trinta

anos Do nascimento de Jesus ateacute o descanso sabaacutetico 1260 anos 42 geraccedilotildees passaram Cf WEST

ZIMDARS-SWARTZ op cit p 32-35

160

Jerusaleacutem fosse o lugar desta reuniatildeo universal dos ldquopovos do altiacutessimordquo no final dos

tempos538 Assim se a graccedila de Deus se moveu do Oriente para o Ocidente no periacuteodo

sabaacutetico ela voltaraacute do Ocidente para o Oriente

Joaquim denomina o periacuteodo de sabbatum e abre a seacutetima seccedilatildeo do Expositio falando

dos seis ldquotemposrdquo anteriores (tempore laboriosa) Se o ocasiatildeo anterior foi de trabalho este

uacuteltimo tempo da histoacuteria seraacute de descanso Por isso eacute um ldquosaacutebadordquo expressatildeo que faz alusatildeo

agrave semana primordial de criaccedilatildeo das Escrituras hebraicas cuja narrativa descreve a divindade

criando o mundo em seis dias No seacutetimo entretanto descansou ldquode toda a sua obra que

tinha feito E abenccediloou Deus o dia seacutetimo e o santificou porque nele descansou de toda a

obra que como Criador fizerardquo (Gecircnesis 22-3) Esse relato dos primoacuterdios retorna vaacuterias

vezes nas narrativas biacuteblicas Em uma delas surge no coacutedigo legal judaico conhecido como

ldquodez mandamentosrdquo ldquoem seis dias fez o Senhor os ceacuteus e a terra o mar e tudo o que neles

haacute e ao seacutetimo dia descansou por isso o Senhor abenccediloou o dia de saacutebado e o santificourdquo

(Ecircxodo 2011) O texto da Vulgata assim traduziu uma das expressotildees ldquobenedixit Dominus

diei sabbatirdquo Tomando esta semana da criaccedilatildeo como uma das estruturas da histoacuteria da

humanidade o abade vinculou os tempos anteriores de trabalho com os seis primeiros dias

aguardando com muita ansiedade o ldquoseptimum mundi statemrdquo o saacutebado de descanso

espiritual539

Na seacutetima parte do Expositio a descriccedilatildeo deste saacutebado final permanece vaga em

muitos aspectos Joaquim fala de caracteriacutesticas como pax e spiritualis intellectus A

primeira eacute uma inversatildeo dos sucessivos conflitos que caracterizaram a histoacuteria da

humanidade A segunda aponta para um aperfeiccediloamento da sabedoria dos homens e

mulheres do final da histoacuteria que excederaacute a sabedoria dos livros e tornaraacute desnecessaacuteria a

pregaccedilatildeo Mas se desejamos uma caracterizaccedilatildeo mais abrangente precisamos recorrer a

outra fonte do pensamento do abade de Fiore

Joaquim transformou algumas de suas ideias em imagens e esquemas o que faz com

que uma forma de aproximaccedilatildeo ao saacutebado do Espiacuterito esteja no documento conhecido como

Liber Figurarum540 Esta obra sobreviveu como uma coletacircnea de figuras do abade Algumas

538 WHALEN op cit p 123 539 Idem p 106 540 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 169 Para uma anaacutelise ampla do Liber Figurarum cf

REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiore Genuine and spurious collections Medieval and

Renaissance Studies Los Angeles v 3 p 170-199 1954 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo

Gioachimita op cit p 99-106 Usamos a ediccedilatildeo encontrada em GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio

del mistero Le tavole del Liber Figurarum di Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi

Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000

161

destas aparecem no contexto dos livros autecircnticos Outras exclusivamente no Liber No

total satildeo 26 figuras resultado da ediccedilatildeo dos disciacutepulos de Joaquim que natildeo apenas

organizaram suas principais imagens mas tambeacutem desenharam outras seguindo de perto

suas ideias541 Para a professora Reeves estas imagens ldquosatildeo exposiccedilotildees do seu sistema de

pensamento natildeo meramente ilustraccedilotildees para seus textos Satildeo projetos independentes que

incorporam as diversas estruturas do pensamento de Joaquim eventualmente de forma mais

adequada do que palavras poderiam fazerrdquo542

Uma das figuras que mais claramente tratou do periacuteodo sabaacutetico foi a Dispositio novi

ordinis pertinens ad tertium statum (Liber Figurarum Tav XII)543 Eacute um diagrama da

sociedade do final dos tempos Percebe-se que o abade apresenta essa nova sociedade com

elementos de descontinuidade e continuidade em relaccedilatildeo ao tempo anterior A Igreja por

exemplo seraacute transformada mas natildeo necessariamente descontinuada

A nova sociedade foi desenhada na forma de uma cruz grega com suas partes

transformadas em oratoacuterios o que define o centro desta nova realidade humana como uma

grande instituiccedilatildeo religiosa generalizada e universal A figura eacute formada por um oratoacuterio

central cercada por outros quatro oratoacuterios que correspondem a diversos tipos de vida

monaacutestica tendo na parte inferior da figura dois outros oratoacuterios maiores em circunferecircncia

mas distantes dos oratoacuterios centrais Ou seja satildeo cinco oratoacuterios dedicados a tipos distintos

de monges (ordo monachorum) um para os cleacuterigos (ordo clericorum) e outro para os leigos

(ordo coniugatorum)

A imagem foi baseada na passagem de 1Coriacutentios 1212 quando Paulo descreve o

corpo com muitas partes que formam um soacute organismo quando estatildeo todas juntas Joaquim

combinou esta imagem com a visatildeo dos ldquoseres viventesrdquo de Apocalipse 4 um leatildeo um boi

um homem e uma aacuteguia Em seguida ele aplicou a estes seres os ldquocarismasrdquo de Efeacutesios 4

apoacutestolos profetas evangelistas e pastores-mestres O resultado dessa amaacutelgama eacute uma

comunidade que daacute unidade e plenitude ao ldquopovo do altiacutessimordquo na terra

Nesta comunidade religiosa perfeita do fim do mundo numa posiccedilatildeo correspondente

ao ldquonarizrdquo da sociedade estaacute o pater spiritualis que guia pelo exemplo e dedicaccedilatildeo Este

541 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 13-125 p 100 MC GINN Bernard

Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der Joachim of Fiore the

Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 103 542 REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiorehellip op cit p 199 543 Conferir esta imagem no anexo 4 retirada de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op

cit p 13 Para a anaacutelise da Dispositio cf MCGINN Bernard Apocalyptic Spirituality op cit p 111-112

TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 103-104

162

oratoacuterio eacute dedicado agrave ldquoMaria e a Santa Jerusaleacutemrdquo Ele eacute simbolizado pela pomba e funciona

como um conselho para o restante da sociedade Joaquim o denomina tambeacutem de ldquotrono de

Deusrdquo como em Apocalipse 4 O ldquopai espiritualrdquo e os demais membros deste oratoacuterio

seguem a ldquoregrardquo na pureza da forma No interior do oratoacuterio aparece a descriccedilatildeo ldquoEste local

seraacute a matildee de todos os locais Seraacute o pai espiritual que presidiraacute todos os lugaresrdquo544

Agrave esquerda do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPedro e de Todos os Santos

Apoacutestolosrdquo Esta parte representa a matildeo Eacute simbolizada pelo Leatildeo e funciona como uma

casa para pessoas idosas e doentes se recuperarem por meio do ldquoespiacuterito de fortalezardquo

Apesar da fragilidade dos seus membros eles ainda seguem a regra religiosa

Neste oratoacuterio vatildeo viver estes irmatildeos delicados e velhos que por

fraqueza de estocircmago natildeo podem suportar a austeridade da regra e do

jejum mas ainda assim como podem se esforccedilam para proceder de

acordo com a pureza da regra Eles natildeo seratildeo obrigados a sair para os

campos para fazer trabalhos manuais mas vatildeo executar seus trabalhos

em casa debaixo de cuidados Natildeo seraacute permitida a entrada neste oratoacuterio

por vontade proacutepria ou escolha mas apenas aqueles a quem ordenou o

abade545

Agrave direita do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPaulo e de todos os Doutores da

Igrejardquo Esta casa representa a ldquoorelhardquo e eacute simbolizada por um ldquohomemrdquo Funciona como

um centro de aprendizagem onde pessoas iratildeo estudar com a ajuda do ldquoespiacuterito de

inteligecircnciardquo ldquoNeste oratoacuterio vivem homens eruditos entretanto com desejo de aprender as

coisas de Deus e que desejam dedicar-se mais do que os outros para ler e estudar a doutrina

espiritualrdquo546

Acima do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoJoatildeo evangelista e dos Santos Virgensrdquo

Esta parte representa os ldquoolhosrdquo Eacute simbolizada pela aacuteguia e seu papel eacute a contemplaccedilatildeo

debaixo da completa clausura O ldquoespiacuterito de sabedoriardquo estaacute sobre aqueles que estatildeo nesta

casa Eacute aqui que os ldquoviri spiritualesrdquo viveratildeo vidas perfeitas atraveacutes do louvor e da

contemplaccedilatildeo Segundo a descriccedilatildeo na imagem ldquoneste oratoacuterio viveratildeo homens perfeitos e

virtuosos que inflamados pelo desejo de vida espiritual querem levar uma vida

contemplativardquo547 Eles ldquojejuam o tempo todo exceto por motivo de doenccedila Natildeo bebem

544 GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 13-14 545 Idem 546 Idem 547 Idem

163

vinho e nem comem alimentos temperado com oacuteleo exceto nos domingos e nos principais

dias festivosrdquo548

Abaixo do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoEstevatildeo e de todos os Santos

Martirizadosrdquo Ele eacute simbolizado pelo ldquoboirdquo e representa a ldquobocardquo da comunidade Por meio

do ldquoespiacuterito de ciecircnciardquo estes membros seratildeo preparados e treinados em grande disciplina

espiritual Neste oratoacuterio ldquovivem os irmatildeos que tecircm forccedila para a atividade exterior e natildeo

podem progredir na disciplina espiritual como apropriadordquo Esta descriccedilatildeo jaacute indica um

decliacutenio de status em relaccedilatildeo aos membros dos oratoacuterios superiores e seus representantes de

alto ideal de vida religiosa

Na parte inferior da figura haacute ainda outros dois oratoacuterios que consomem um grande

espaccedilo da imagem Haacute um intervalo maior entre eles e a parte superior da Dispositio mas

ainda haacute uma ligaccedilatildeo como aparece no registro ldquoentre o mosteiro e a sede do clero deve

existir uma distacircncia de quase trecircs milhasrdquo Elemento semelhante seraacute repetido para o espaccedilo

que separa as duas casas de baixo

O oratoacuterio do clero eacute chamado de ldquoJoatildeo Batista e dos Profetasrdquo Eacute uma casa larga e

representa os ldquopeacutesrdquo da comunidade Eacute simbolizada por um ldquocachorrordquo Por meio do ldquoespiacuterito

de devoccedilatildeordquo sacerdotes e cleacuterigos vivem em continecircncia e comunidade sob a abstinecircncia

de alguns tipos de alimento e de roupa festiva

Entre o oratoacuterio do clero e o mais inferior que forma a base surge novamente a

menccedilatildeo do espaccedilo de separaccedilatildeo entre os edifiacutecios tema que aponta para um distanciamento

natildeo apenas espacial entre os personagens de cada um mas tambeacutem de poder funccedilatildeo e papel

ldquoentre estes dois oratoacuterios deve existir um espaccedilo de cerca de trecircs estaacutediosrdquo549

Na parte inferior da figura estaacute o oratoacuterio de ldquoAbraatildeo e dos Patriarcasrdquo representado

por uma ovelha cuja funccedilatildeo eacute servir de casa para pessoas casadas e seus filhos sob o ldquotemor

pela salvaccedilatildeordquo Estes viveratildeo em casas privadas mas suas vidas seguiratildeo as ordens do pater

spiritualis e seus supervisores Eles trabalharatildeo regularmente daratildeo o diacutezimo e viveratildeo uma

vida nivelada sem distinccedilatildeo de classes e com bens materiais em comum A imagem ainda

registra ldquoSob o nome deste oratoacuterio estaratildeo reunidos os cocircnjuges com seus filhos e filhas

em forma comunitaacuteria para ter relaccedilotildees com as esposas mais para produzir descendentes

do que para satisfazer os desejosrdquo550

548 Idem 549 Idem 550 Idem

164

Por meio da Dispositio surge a descriccedilatildeo de uma realidade social fortemente

estruturada com espaccedilos geograacuteficos marcados por status funccedilatildeo e dinacircmica religiosa e

social Joaquim recorreu ao texto de Efeacutesios 43 para falar da metaacutefora do corpo de Cristo

com oacutergatildeos diferentes Usou tambeacutem Joatildeo 142 para trazer a imagem das vaacuterias casas

divinas Por meio destas metaacuteforas ele compocircs a imagem de sete ldquocasas espirituaisrdquo nas

quais leigos diferentes niacuteveis de monges cleacuterigos e sacerdotes habitaratildeo551 Estas sete casas

satildeo ordenadas como se fossem a futura Jerusaleacutem transcendental de Apocalipse 22 Natildeo eacute

ainda aquela mas uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica de suas qualidades Esta comunidade

monaacutestica se manifestaraacute no periacuteodo sabaacutetico em ldquosemelhanccedila agrave Jerusaleacutem Celesterdquo552

A Dispositio conteacutem o plano de um monasteacuterio perfeito no qual a vida contemplativa

desempenha o papel central da existecircncia humana553 Apesar do predomiacutenio da ordo

monachorum haveraacute tambeacutem possivelmente sob os influxos da espiritualidade

cisterciense554 espaccedilo para trabalho e estudo Daiacute a existecircncia dos leigos para trabalhar dos

cleacuterigos para ministrar os sacramentos aos leigos e do ldquooratoacuterio do boirdquo formado por

monges que teratildeo contato com cleacuterigos

Mesmo se recusando a definir Joaquim como milenarista em funccedilatildeo de uma definiccedilatildeo

estreita do fenocircmeno555 o francecircs Jean Delumeau descreve longamente o sistema do calabrecircs

na segunda obra de sua trilogia dedicada ao estudo do paraiacuteso556 No momento de resumir a

natureza do repouso sabaacutetico o historiador francecircs recorreu a diversas expressotildees do abade

e forneceu esta siacutentese que dificilmente poderia deixar de ser definida como milenarista

Depois do tempo da ldquolei e da ldquograccedilardquo viraacute portanto o da ldquomaior graccedilardquo

durante o qual a natureza se transformaraacute e se embelezaraacute A liberdade

espiritual floresceraacute no mundo Entatildeo ldquonatildeo haveraacute mais sofrimentos e

gemidos Reinaratildeo ao contraacuterio o repouso a calma a abundacircncia da pazrdquo

Seremos voltados agrave contemplaccedilatildeo ao louvor ldquoDanccedilaremos de alegria ao

contemplar os admiraacuteveis desiacutegnios de Deusrdquo Natildeo haveraacute mais

necessidade de escrever livros para explicar as Escrituras A preacutedica se

deteraacute O tempo da letra teraacute terminado Os fieis contemplaratildeo os misteacuterios

551 Idem 552 Idem 553 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 25 554 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango v

1 p 217-240 2004 p 229 555 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias

Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria

mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 556 A trilogia de Delumeau eacute formada pelas seguintes obras DELUMEAU Jean Une histoire du paradis Le

Jardin des deacutelices Fayard Hachette Litteacuteratures 2002 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma

histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 DELUMEAU Jean O que sobrou do paraiacuteso

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

165

em plena luz O Evangelho segundo a letra seraacute substituiacutedo pelo

ldquoEvangelho eternordquo que procede do Evangelho de Cristo A verdade nos

seraacute dada em sua simplicidade557

O saacutebado do Espiacuterito descrito por Joaquim eacute sim um tipo de milenarismo uma

forma de utopia social558 que espera por um periacuteodo de felicidade para toda a humanidade

mesmo que afirme alguns benefiacutecios especiais para um grupo dentro dela Este periacuteodo seraacute

terreno e natildeo numa realidade transcendental eacute iminente pois a transformaccedilatildeo estaacute proacutexima

de comeccedilar seraacute miraculosa jaacute que as mudanccedilas aconteceratildeo por meio da atuaccedilatildeo

sobrenatural do Espiacuterito divino Tal felicidade seraacute total com a inversatildeo dos males da terra

mas natildeo com a destruiccedilatildeo de todas as instituiccedilotildees anteriores A Igreja sobreviveraacute

completamente transformada e sob a direccedilatildeo de um novo tipo de papado o ldquouniversalis

scilicet pontifex nove Ierusalemrdquo (certamente o pontiacutefice universal da nova Jerusaleacutem) ou

ldquopapa angelicusrdquo559

75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito560

O historiador inglecircs Norman Cohn no momento de apresentar Joaquim de Fiore

como o ldquoinventorrdquo do sistema profeacutetico ldquomais influente de todos os conhecidos na Europa

ateacute ao aparecimento do marxismordquo argumenta que a origem do seu sistema estaacute na

conjugaccedilatildeo de ldquoescatologias derivadas do Apocalipse e dos Oraacuteculos Sibilinosrdquo561 Ao

discutir o conceito de milenarismo na Idade Meacutedia o medievalista Robert Lerner argumenta

557 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 45 As aspas pertencem ao texto citado 558 Assim se expressou Cohn ldquoPor mais respeito que Joaquim tivesse agraves doutrinas exigecircncias e interesses da

Igreja o que ele propusera era na verdade um novo tipo de milenarismo ndash e aliaacutes um tipo que as geraccedilotildees

futuras haveriam de elaborar num sentido antieclesiaacutestico e depois num sentido abertamente secularrdquo Cf

COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia

Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 90 559 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard

K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-

88 p 85 560 Em alguns momentos a busca pelas fontes dos textos eacute uma tarefa ingloacuteria Os autores natildeo informam seus

pontos de partida e o maacuteximo que encontramos satildeo alusotildees mais ou menos transparentes Aleacutem dos topoi

disponiacuteveis para dada conjuntura histoacuterica o que sobra eacute um conjunto de hipoacuteteses com graus diferentes de

plausibilidade Conferir a argumentaccedilatildeo neste sentido em FLANAGAN Sabina Twelfth-Century apocalyptic

imaginations and the coming of the Antichrist The Journal of Religious History v 24 n 1 p 57-69 2000 p

59 561 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 89 O viacutenculo que Cohn fez entre Joaquim e Sibila natildeo

faz muito sentido As sibilas como a Tiburtina eram bem conhecidas no periacuteodo de Joaquim mas

manifestavam um tipo de milenarismo distinto Elas esperavam por um periacuteodo de paz na terra antes do

Anticristo normalmente dirigido por um imperador do final dos tempos ou por um papa poderoso

166

de forma parecida afastando ainda mais o abade do livro joanino e aproximando-o natildeo

necessariamente das Sibilas sugeridas por Cohn mas do poacutes-milenarismo da Glossa

Ordinaria562

Ambos sugerem por caminhos diferentes que o milenarismo de Joaquim de Fiore

natildeo depende inicialmente ou mesmo diretamente do milenarismo de Joatildeo de Patmos

Algumas evidecircncias poderiam reforccedilar as hipoacuteteses destes historiadores O sermatildeo

conhecido como Locuturi aliquid563 escrito por Joaquim em algum momento no iniacutecio da

deacutecada de 1180 em suas uacuteltimas linhas apoacutes descrever o que seria a sexta parte do

Apocalipse termina de forma lacocircnica ldquoEntatildeo viraacute o saacutebado apoacutes a ressurreiccedilatildeo pelo juiacutezo

e finalmente seraacute revelada a gloacuteria da cidade celestialrdquo564 No iniacutecio do sermatildeo ele jaacute

anunciara que o livro de Joatildeo ldquoestaacute dividido e limitado em sete partes e temposrdquo565 Este

texto tambeacutem indica que o abade jaacute tinha consolidada uma perspectiva sobre a estrutura das

seis primeiras partes do Apocalipse elemento que natildeo sofreria mudanccedila ateacute a conclusatildeo do

Expositio quase duas deacutecadas depois A sexta parte encerraria com a derrota da besta e o

falso profeta no final de Apocalipse 19 A seacutetima entatildeo iria de Apocalipse 20 ateacute o capiacutetulo

22 Como jaacute indicamos neste mesmo capiacutetulo Joaquim explicita nas partes iniciais do seu

grande comentaacuterio que ele planejava fazer uma obra de sete partes Se ele mudou para oito

em algum momento do processo foi justamente para dar destaque aos dez versiacuteculos do

texto milenar (a uacutenica mudanccedila significativa na estrutura) destaque que antes ele natildeo dava

A estrutura final do Expositio assim indica como o abade acentuou significativamente o

papel de Apocalipse 201-10 no conjunto da obra ao relacionaacute-lo com o terceiro status e a

seacutetima aetas do mundo

Tanto no Liber de Concordia quanto no Psalterium o abade jaacute apresentou o

desenvolvimento da histoacuteria humana na direccedilatildeo de um cliacutemax de beatitude Talvez uma das

passagens mais claras neste sentido esteja na Concordia

562 LERNER Robert E Millennialism In MC GINN Bernard (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism

Apocalypticism in Western History and Culture New York Continuum 1998 3v V 2 p 326-360 p 346

As Sibilas aludidas por Cohn como a Tiburtina e a Glossa Ordinaria manifestam tipos diferentes de

milenarismos O preacute-milenarismo da Tiburtina descreve um periacuteodo de felicidade na terra anterior ao advento

do Anticristo A Glossa Ordinaria apresenta um poacutes-milenarismo com o periacuteodo de felicidade para depois da

derrota do Anticristo Em ambos os fenocircmenos a parousia (segundo advento de Jesus) natildeo exerce papel na

instauraccedilatildeo da felicidade 563 Sobre este sermatildeo conferir o capiacutetulo IV supra 564 ldquoEt tunc erit sabbatum deinde resurectio ad iudicium et tunc revelabitur gloria civitates supernerdquo Texto

latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 p

130-131 565 ldquoSeptem partibus distinctus et temporibus terminaturrdquo Texto latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino

da Fiore op cit p 130-131

167

Os misteacuterios das divinas paacuteginas mostram-nos enfim os Trecircs Estados do

mundo O primeiro eacute aquele no qual estivemos sob a lei o segundo no qual

estamos sob a graccedila o terceiro que esperamos iminente sob uma graccedila

ampliada [] Por isso o primeiro Estado foi na ciecircncia o segundo na posse

da sabedoria o terceiro na plenitude do sentido O primeiro na servidatildeo

servil o segundo na servidatildeo filial o terceiro na liberdade O primeiro nos

flagelos o segundo na accedilatildeo o terceiro na contemplaccedilatildeo O primeiro no

temor o segundo na feacute o terceiro na caridade O primeiro eacute dos servos o

segundo eacute dos filhos o terceiro eacute dos amigos O primeiro eacute dos velhos o

segundo eacute dos jovens o terceiro das crianccedilas O primeiro na luz da estrela

o segundo na aurora o terceiro ao meio-dia O primeiro no inverno o

segundo na primavera o terceiro no veratildeo O primeiro produz urtigas o

segundo rosas o terceiro liacuterios O primeiro ervas o segundo espigas o

terceiro trigo O primeiro a aacutegua o segundo o vinho o terceiro o oacuteleo O

primeiro pertence agrave Setuageacutegima o segundo agrave Quaresma o terceiro agrave festa

pascal O primeiro Estado pertence ao Pai que eacute criador de todas as coisas

o segundo ao Filho que se dignou assumir nosso limite o terceiro ao

Espiacuterito Santo do qual diz o apoacutestolo Onde se achar o Espiacuterito do Senhor

aiacute estaacute a liberdade (Liber de Concordia 112r)566

O sistema acima apresentado relaciona cada status da histoacuteria da humanidade com

uma pessoa divina explicitando pelo acuacutemulo de imagens e analogias que o segundo

ultrapassou o primeiro e o terceiro ultrapassaraacute o segundo Para o abade a Era do Espiacuterito

seria muito melhor do que as duas anteriores o que significa que a humanidade poderia

esperar por um tempo de esplendor para o futuro sob a tutela do Espiacuterito divino

Sem chamar-se historiador o abade de Fiore se dedicava nos termos de Adeline

Rucquoi agrave ldquoanaacutelise da economia do tempordquo567 A forma como Joaquim entendia a histoacuteria

(preteritae rei) o levou a vaticinar o futuro em uma perspectiva de progresso e de evoluccedilatildeo

loacutegica Para o abade a histoacuteria era uma constante que se desdobrava de forma contiacutenua Se

ele compreende o passado ele pode prever o futuro Neste sentido eacute uacutetil ter uma perspectiva

de siacutentese dos sistemas histoacutericos do abade e verificar a forma como eles demandavam o

periacuteodo sabaacutetico

O editor do Liber de Concordie568 Randolph Daniel professor da Universidade de

Kentucky ao explicar a reflexatildeo histoacuterica de Joaquim o faz por meio daquilo que ele chamou

566 Esta longa citaccedilatildeo estaacute no Livro V capiacutetulo 84 ainda sem ediccedilatildeo criacutetica A traduccedilatildeo em questatildeo eacute de

BAUCHWITZ Oscar Federico A histoacuteria em Joaquim de Fiore Princiacutepios revista de filosofia Natal v 1

n 1 p 109-130 1994 p 110 567 A historiadora Adeline Rucquoi destaca que o seacuteculo XII foi um periacuteodo significativo para a reflexatildeo da

histoacuteria quando filoacutesofos e teoacutelogos se debruccedilaram a buscar uma ratio preterita rei ou o sentido do tempo

Aleacutem de Joaquim ela menciona Hugo de Satildeo Vitor Oton de Freising Anselmo de Havelberg e Petrus

Comestor Cf RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 223-224 568 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti

Philadelphia The American Philosophical Society 1983 O autor sintetiza os sistemas histoacutericos de Joaquim

168

de ldquoinflexotildees do pensamentordquo que aparecem nas poucas notas auto-biograacuteficas que o abade

deixou em suas obras569 A primeira se deu em algum momento durante a peregrinaccedilatildeo agrave

Palestina e deveria jaacute ser o conteuacutedo principal de suas pregaccedilotildees depois que ele retornou

para a Calaacutebria e atuava como pregador itinerante em Rende no iniacutecio da deacutecada de 1170

entremente o pontificado de Alexandre III (papa de 1159-1181)

Este sistema foi chamado por Joaquim de concordia duorum testamentorum ou os

paralelos entre as perseguiccedilotildees de Israel e as perseguiccedilotildees da Igreja Eacute uma maneira de

dividir a histoacuteria em duas grandes etapas Uma se chamava Antigo Testamento e se estendia

da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus A outra era o Novo Testamento e iria do nascimento

de Jesus ateacute o final dos tempos A histoacuteria da humanidade eacute o palco da atuaccedilatildeo de Deus para

salvar seus povos O primeiro era Israel O segundo a Igreja Neste esquema a histoacuteria

avanccedila por meio de tribulaccedilotildees e perseguiccedilotildees que se repetem paralelamente nos dois

testamentos e nos dois povos

As tensotildees poliacuteticas entre o papado e Impeacuterio Germacircnico estavam particularmente

altas depois de deacutecadas de conflito entre o papa Alexandre III (papa de 1159-1181) e o

Imperador Frederico I Barbarorroxa (1122-1190) Este ambiente parece estar traduzido no

alinhamento que Joaquim fez entre as ldquoperseguiccedilotildeesrdquo dos judeus na eacutepoca do Antigo

Testamento com as batalhas contra a Igreja no tempo do Novo Testamento

Joaquim aplicou esta estrutura de perseguiccedilotildees aos sete selos do Apocalipse e a

abordou repetidamente em vaacuterias de suas obras desde Genealogia570 ateacute De Septem

Sigillis571 embora os detalhes mudem de texto para texto Posteriormente este esquema de

dois tempos foi definido pelo abade de secunda diffinitio e o simbolizou pela letra grega

cursiva ocircmega572 Os Testamentos assim satildeo expressotildees tanto canocircnicas quanto histoacutericas

Se toda a histoacuteria de Israel da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus pode ser encontrada no

primeiro testamento Joaquim espera que a histoacuteria completa da Igreja desde sua origem ateacute

o final dos tempos esteja contida no segundo testamento especialmente no Apocalipse de

Joatildeo Mesmo neste esquema de dois tempos ainda haacute um momento sabaacutetico A seacuterie de sete

perseguiccedilotildees de Israel e da Igreja terminam ambas em um periacuteodo de descanso No caso de

em DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of

History Speculum Chicago v 55 n 3 p 469-483 1980 569 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xiii-xviii 570 Genealogia eacute provavelmente a obra mais antiga de Joaquim escrita segundo Potestagrave em 1176 Cf

POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 16 571 Possivelmente de 1198 Cf TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I Sigilli dellrsquoApocalisse In

GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 45 572 Conferir o esquema na posiccedilatildeo inferior esquerda do anexo 6

169

Israel o descanso veio apoacutes os conflitos com os gregos representados por Antiacuteoco Epiacutefanes

e se estendeu ateacute o nascimento de Jesus De maneira paralela apoacutes a seacutetima perseguiccedilatildeo pelo

Anticristo viraacute um descanso para a Igreja O princiacutepio fundamental eacute uma divisatildeo da histoacuteria

em duas partes cada uma delas marcada por perseguiccedilatildeo julgamento e batalha do povo de

Deus No futuro que Joaquim imaginava ser iminente a terceira pessoa da Trindade iria

libertar completamente os cristatildeos fieacuteis do sofrimento e das tribulaccedilotildees que caracterizaram

a histoacuteria desde os tempos de Israel ateacute os dias do abade Os conflitos entre os poderes

temporais e eclesiaacutesticos terminariam de vez jaacute que o periacuteodo sabaacutetico seria caracterizado

principalmente pela paz

A segunda inflexatildeo se deu no fim de 1183 ou iniacutecio de 1184 enquanto Joaquim

esteve em Casamari para tratar de aspectos burocraacuteticos para Corazzo Ali desenvolveu seu

mais conhecido sistema de tria statum em que a Trindade se relaciona com a histoacuteria

imprimindo nela a natureza das pessoas divinas Pai Filho e Espiacuterito573 Este uacuteltimo por sua

vez seria responsaacutevel por implantar uma era de perfeiccedilatildeo espiritual na terra Estes status

eram marcados ainda por initiatio frutificatio e consumatio Ou seja eles apresentavam

um iniacutecio um momento em que frutificam de maneira especial e uma fase de teacutermino No

caso da Era do Pai esta comeccedilou com Adatildeo frutificou em Abraatildeo e terminou em Cristo O

segundo status comeccedilou com Uzias frutificou em Zacarias (pai de Joatildeo Batista) e terminaria

algum tempo depois de Joaquim O terceiro status comeccedilou com Satildeo Bento de Nuacutersia

frutificaria na geraccedilatildeo de Joaquim e terminaria no fim da histoacuteria574 Joaquim aplicou este

esquema trinitaacuterio agrave progressatildeo da vida religiosa na histoacuteria No status do Pai predominavam

os casados no status do Filho predominavam os cleacuterigos no status do Espiacuterito

predominariam os monges Aplicou tambeacutem em trecircs povos a proteccedilatildeo de Deus deixou

Israel passou para os gregos e terminou nos latinos Esta divisatildeo em trecircs status foi definida

pelo abade como prima diffinitio representada simbolicamente pela letra grega uncial

Alfa575 Nesta estrutura a histoacuteria tem uma meta que soacute seraacute alcanccedilada no status do Espiacuterito

apoacutes o fim do segundo status quando se manifestar o descanso sabaacutetico A prima diffinitio

mais ateacute do que a secunda manifesta toda a ansiedade do abade pela perfeiccedilatildeo da vida

monaacutestica e talvez reflita a crise que acabaraacute levando-o a deixar Corazzo e fundar a Ordem

Florense

573 Conferir o diagrama dos Ciacuterculos Trinitaacuterios do anexo 6 574 WHALEN Brett Edward Dominion of God op cit 107 575 Conferir o esquema na posiccedilatildeo superior esquerda do anexo 6

170

O primeiro tempus coincide com o primeiro status O segundo tempus com o segundo

status ateacute a eacutepoca de Joaquim Apesar do saacutebado do segundo tempus natildeo ser tratado de forma

tatildeo proeminente quanto o saacutebado do terceiro status em ambas as diffinitiones a plena

realizaccedilatildeo estaacute no futuro Nas duas haacute uma evoluccedilatildeo de instituiccedilotildees e de qualidade de vida576

Finalmente apoacutes retornar para Corazzo cerca de um ano apoacutes a passagem por

Casamari Joaquim deu mais um passo na consolidaccedilatildeo dos seus sistemas histoacutericos Ele

finalmente conseguiu relacionar a concordia duorum testamentorum e a intervenccedilatildeo divina

por meio dos tria statum atraveacutes da estrutura geral do Apocalipse A obra de Joatildeo assim se

tornou aos olhos do abade a chave para a compreensatildeo inteira da histoacuteria da humanidade

Aleacutem dos sistemas histoacutericos do abade a historiografia tem sugerido outra base

significativa para o saacutebado do Espiacuterito desta vez por meio dos recursos exegeacuteticos do abade

Os leitores ocidentais do Apocalipse de Joatildeo desde as criacuteticas ao quiliasmo de Agostinho

de Hipona Jerocircnimo e Gregoacuterio Magno liam o Apocalipse de forma moralizante e

alegoacuterica sem viacutenculos expliacutecitos com a histoacuteria O milecircnio dos maacutertires de Apocalipse 20

era interpretado de forma a descrever o tempo da Igreja na terra577 Estes autores imaginavam

a histoacuteria caminhando na direccedilatildeo de vaacuterios desastres sendo o penuacuteltimo o advento do

Anticristo Ele instauraria uma grande perseguiccedilatildeo agrave Igreja depois do qual Cristo viria de

forma gloriosa para o uacuteltimo julgamento e a consumaccedilatildeo da histoacuteria do mundo578

Uma ideia surgiu entretanto entre os antigos comentaristas de Daniel Ao comentar

Daniel 1211-12 por volta do ano 400 Jerocircnimo argumentou que o tempo da tribulaccedilatildeo

(1290 dias) e do fim do mundo (1335 dias) tinha um prazo residual de 45 dias Este mecircs e

meio seria entatildeo o intervalo entre a derrota do Anticristo e o julgamento final da humanidade

Beda o Veneraacutevel no iniacutecio do seacuteculo VIII concordou com Jerocircnimo e acrescentou que

este intervalo tambeacutem poderia ser encontrado nos trinta minutos de silecircncio no ceacuteu apoacutes a

576 DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of

History op cit p 482 577 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 29-31 Segundo Desroche esta ldquoconcepccedilatildeo

alcanccedilou posiccedilatildeo hegemocircnica mas nunca deixou de ser sitiada por fileiras de dissidecircncias oriundas das trecircs

grandes confissotildees cristatildes (catolicismo protestantismo ortodoxia)rdquo Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de

messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 22

Por isso Umberto Eco fala de um ldquomillenarismus absconditusrdquo neste periacuteodo de hostilidade contra o quiliasmo

Cf ECO Umberto Wainting for the Millennium In LANDES Richard GOW Andrew VAN METER

David C (ed) The apocalyptic year 1000 religious expectation and social change ndash 950-1050 Oxford Oxford

University Press 2003 p 121-135 p 125 578 FLANAGAN op cit p 59 Flanagan acrescenta que o que variava bastante era a sequecircncia dos eventos

finais o tempo entre cada um deles bem como a perspectiva de iminecircncia

171

abertura do seacutetimo selo do Apocalipse O exegeta do seacuteculo IX Haimo de Auxerre

argumentou ainda que o periacuteodo em questatildeo natildeo precisava ser qualificado de forma precisa

jaacute que era apenas um prazo miacutenimo Estes autores natildeo estavam certos sobre os motivos para

este prazo579 ateacute que a Glossa Ordinaria no iniacutecio do seacuteculo XII em uma de suas notas

sugeriu que o tempo posterior ao advento do Anticristo e anterior agrave volta de Cristo

denominado entatildeo de refrigerium sactorum (descanso dos santos) seria uma fase de

felicidade prosperidade e paz na terra Alguns autores especialmente do mesmo periacuteodo

ampliaram ainda mais este novo conceito como Honorius Augustodunesis (1080-1156) que

argumentou que ele seria o tempo da conversatildeo de todos os pagatildeos ou Otto de Freising

(114-1158) que previu nele o ingresso dos judeus agrave Igreja Levando em conta esta corrente

exegeacutetica Robert Lerner levantou a hipoacutetese que o milenarismo do Espiacuterito de Joaquim

deveria ser entendido como uma expressatildeo exegeacutetica modificada da ldquotradiccedilatildeo do refrigeacuterio

dos santosrdquo580 Eacute possiacutevel concordar parcialmente com Lerner ao indicar uma fonte

plausiacutevel para a escatologia do abade mas natildeo de forma isolada Os sistemas histoacutericos dele

jaacute demandavam a expectativa de um futuro melhor

De qualquer forma o que se percebe eacute que o descanso sabaacutetico que Joaquim

descreveu na passagem de Apocalipse 201-10 teve pontos de partida bem mais amplos do

que o texto joanino O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim parece ser o resultado de sua reflexatildeo

histoacuterica e da tradiccedilatildeo exegeacutetica do refrigeacuterio dos santos Assim nos momentos finais do

Expositio ao fazer a exegese de Apocalipse 20 o abade aplica no milecircnio de Joatildeo as ideias

que jaacute trazia consolidadas que apoacutes a queda do Anticristo e antes da volta de Jesus haveria

na terra natildeo necessariamente um reinado dos maacutertires mas o descanso da Igreja e acima de

tudo o refrigeacuterio dos monges sob a direccedilatildeo final da terceira pessoa da Trindade

76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia

Segundo Sabina Flanagan explicaccedilotildees histoacutericas para as opccedilotildees dos autores podem

ter relaccedilatildeo entre outros fatores com crenccedilas e restriccedilotildees dogmaacuteticas religiosas com

engajamentos poliacuteticos e viacutenculos sociais ou com confrontos contra dissidecircncias581 Essa eacute

579 LERNER Robert E Millennialism op cit p 344 TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I

Sigilli dellrsquoApocalisse op cit p 34 580 LERNER Robert E Millennialism op cit p 347 581 FLANAGAN op cit p 64

172

uma forma de dizer que as representaccedilotildees que se materializaram nas praacuteticas e discursos de

Joaquim configuram respostas a conjunturas poliacuteticas sociais culturais e eclesiaacutesticas que

caracterizavam o Ocidente medieval582

Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai Mauro um notaacuterio a

serviccedilo da chancelaria normanda Inicialmente estes passos foram dados sem sobressaltos

comeccedilando na Calaacutebria e se deslocando em seguida para a corte do Reino da Siciacutelia em

Palermo Ele nasceu em 1135 um pouco depois da fundaccedilatildeo do Reino por Rogeacuterio II e

abandonou a carreira na corte em 1167 um ano depois da morte do rei William I Estas

primeiras deacutecadas de vida e o treinamento recebido para o trabalho na corte devem ter lhe

capacitado para o relacionamento com as diversas populaccedilotildees e etnias do reino Um notaacuterio

especialmente em Palermo deveria ter conhecimento do grego e do aacuterabe para promover

seus registros583 Estas qualidades possivelmente estiveram envolvidas em sua raacutepida

ascensatildeo no monasteacuterio de Corazzo e nas negociaccedilotildees com os poderes eclesiaacutesticos e

temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore

Essa proximidade com a cultura aacuterabe da Siciacutelia ou os contatos proacuteximos que ele

possa ter tido na corte de Palermo entretanto natildeo produziram nele uma perspectiva positiva

quanto ao Islatilde Mesmo que natildeo haja em suas obras nada parecido com as convocaccedilotildees de

Satildeo Bernardo para uma guerra santa584 os muccedilulmanos satildeo descritos recorrentemente pelo

calabrecircs como agentes do diabo para perseguir a Igreja

Ele ingressou numa comunidade religiosa no iniacutecio do governo de William II no

comeccedilo da deacutecada de 1170 Quando este rei morreu em 1189 Joaquim jaacute havia passado por

Casamari comeccedilado a produccedilatildeo de suas grandes obras e tinha jaacute uma definiccedilatildeo das duas

deffinitio que ele usava para refletir a histoacuteria Aqueles foram tempos de muita instabilidade

Depois de quatro governantes de origem normanda (Rogeacuterio I Rogeacuterio II William I e

William II) o reino finalmente passou para as matildeos dos Hohenstaufen apoacutes o governo de

transiccedilatildeo do conde Tancredo Os encontros do abade com o imperador Henrique ou com a

rainha Constacircncia resultaram natildeo apenas em benefiacutecios materiais para Joaquim e seus

irmatildeos de Fiore mas tambeacutem no fim do viacutenculo entre a Babilocircnia e os imperadores

germacircnicos que se manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrecircs Com isso

582 WHALEN op cit p 115 583 Para os aspectos culturais e sociais do Reino da Siciacutelia conferir o capiacutetulo V 584 Cf AacuteLVAREZ PALENZUELA Vicente Aacutengel El Cister y las Oacuterdenes Militares em el impulso hacia

Oriente Cuardernos de Historia Medieval Madrid v 1 p 3-19 1998 p 8

173

na parte final do Expositio o Impeacuterio deixou de ser o grande adversaacuterio da Igreja no final

dos tempos

Joaquim viveu num periacuteodo de mudanccedilas profundas na sociedade medieval585 O

Impeacuterio Bizantino perdera muito do seu poder por causa das derrotas contra os turcos

muccedilulmanos as Igrejas Latina e Grega estavam em processo de consolidar a separaccedilatildeo a

exuberante monarquia normanda instalada na Siciacutelia e no sul da Itaacutelia chegava ao fim o

poder islacircmico na Peniacutensula Ibeacuterica encolhia novas formas de espiritualidade surgiam

quando antigas enfraqueciam Tudo isso pode estar subjacente agrave sua ansiedade pela

transformaccedilatildeo da realidade por meio do descanso sabaacutetico do Espiacuterito Entretanto talvez o

fator mais preponderante esteja no ldquomovimento reformadorrdquo gerado no interior da Igreja

romana586

A perspectiva de que as coisas natildeo eram como deveriam ser de que a Igreja dos

proacuteprios tempos havia se afastado dos propoacutesitos pregados pelos primeiros apoacutestolos e pelo

proacuteprio fundador principalmente na questatildeo da simplicidade de vida acabou dando origem

a partir do seacuteculo XI a movimentos de reforma em diversos setores da sociedade Ocidental

e em diferentes espaccedilos eclesiaacutesticos Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do

clero entendido como corrompido e refletir sobre o papel da Igreja na sociedade em relaccedilatildeo

principalmente com as estruturas dos poderes temporais A professora Andreacuteia Frazatildeo ao

analisar os projetos subjacentes aos conciacutelios lateranenses listou algumas destas

perspectivas reformistas como as implementadas por poderes seculares (monarquias

caroliacutengias ou imperadores germacircnicos por exemplo) as promovidas por movimentos

monaacutesticos (Cluny Gorze Metz etc) as de iniciativa ldquopopularrdquo (como o movimento

patarino) e a fomentada pelos bispos de Roma eventualmente denominada de Reforma

Gregoriana Este uacuteltimo movimento partindo da Cuacuteria Papal procurou impor Roma ldquocomo

centro poliacutetico religioso e administrativo da Igreja ocidental [] e como o principal poder

de caraacuteter universal no Ocidente ao qual todos os demais deveriam se subordinar inclusive

o imperialrdquo 587

A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em funccedilatildeo do papa Gregoacuterio VII (papa

de 1073-1085) que em diversos momentos apelou para o senso de iminecircncia do advento do

585 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 221 586 WHALEN op cit p 102 587 SILVA Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da A luta entre o Regnum et Imperium e a Construccedilatildeo da Ecclesia

Universalis uma anaacutelise comparativa dos Conciacutelios Lateranenses (1123-1215) In SILVA Francisco Carlos

Teixeira CABRAL Ricardo Pereira MUNHOZ Sidnei J (coords) Impeacuterios na Histoacuteria Rio de Janeiro

Elsevier 2009 p 95-105 p 97-98

174

Anticristo para dar legitimidade aos seus apelos reformadores Em uma de suas cartas ele

explica a oposiccedilatildeo como sinal do fim do mundo ldquoE natildeo fiquem admirados Pois quanto mais

perto o dia do Anticristo se manifestar mais ele luta para esmagar a feacute cristatilderdquo588 Este papa

na linha agostiniana evitou fazer prediccedilotildees sobre o fim do mundo mas reiteradamente

manifestou a convicccedilatildeo de que ele deveria estar perto em funccedilatildeo da manifestaccedilatildeo das

heresias e da corrupccedilatildeo da Igreja Neste tipo de visatildeo de histoacuteria os eventos finais deveriam

validar os esforccedilos para buscar pureza moral e ordem correta na instituiccedilatildeo eclesiaacutestica

Mudanccedilas no cenaacuterio poliacutetico recebiam um lugar no cenaacuterio do fim do mundo conflitos de

muacuteltiplas naturezas eram legitimados pela perspectiva do juiacutezo final de forma que a maioria

das crenccedilas apocaliacutepticas medievais passaram a ser instrumentos de retoacuterica religiosa

poliacutetica e social agrave serviccedilo de papas cleacuterigos imperadores reis e seus apologistas

Eacute certo que o senso de fim de mundo ou as representaccedilotildees escatoloacutegicas natildeo

conseguem explicar totalmente as praacuteticas dos movimentos reformadores De qualquer

forma esta relaccedilatildeo entre reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore

conectada com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos monaacutesticos

tradicionais para toda a sociedade (christianitas)589 Mas o abade acabou ultrapassando o

modelo gregoriano e mesmo o imperial em funccedilatildeo de sua ecircnfase numa nova forma de

ecclesia totalmente monasticisada com o foco no futuro O arqueacutetipo deixou de ser a era

apostoacutelica (no passado) mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro)

Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este fenocircmeno de

ldquoapocalipcismo reformadorrdquo um tipo de perspectiva apocaliacuteptica medieval que tinha como

preocupaccedilatildeo primaacuteria a reforma clerical590 Estes autores criam em uma era porvir de

desenvolvimento espiritual na qual os cleacuterigos apoacutes serem ldquopurificadosrdquo pelas tribulaccedilotildees

do final dos tempos se recuperariam de uma forma nunca vista antes Alguns focavam na

reforma de tipo tradicional com sua ecircnfase no retorno ao modelo apostoacutelico de pureza e

simplicidade outros como Joaquim insistiam que a era porvir era o zecircnite da histoacuteria

resultado de um longo processo evolutivo

588 Citado por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform 1100-1500 In MC GINN Bernard

(ed) The Encyclopedia of Apocalypticism Apocalypticism in Western History and Culture New York

Continuum 1998 3v V 2 p 74-109 p 76 589 Este modelo gregoriano buscou expandir-se para a sociedade inteira por meio da divulgaccedilatildeo do ideal da

ldquoIgreja dos tempos apostoacutelicosrdquo Cf MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 78 590 KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge

University Press 1990 p 9 MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 74-109

175

Kathryn resumiu entatildeo as marcas do apocalipticismo reformador um desejo urgente

por reforma preocupaccedilatildeo acentuada com o futuro da Igreja tentativa de entender o presente

agrave luz de esquemas escatoloacutegicos tradicionais preocupaccedilatildeo com o papel de uma ordem

religiosa particular no drama do final dos tempos ou no futuro da igreja um senso de crise

de lideranccedila eclesiaacutestica e temporal uma ansiedade por levar o clero aos princiacutepios

disciplinares dos fundadores do monasticismo ou agrave igreja dos primoacuterdios com ecircnfase

especial na pobreza e na simplicidade de vida tendecircncia conservadora em termos religiosos

e sociais591

Estes reformadores estavam continuamente avaliando as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas de

seus dias e projetavam para ela um periacuteodo dourado de vitalidade espiritual Este tipo de

expectativa eventualmente demandava accedilatildeo e sugeria que indiviacuteduos e instituiccedilotildees poderiam

participar (apropinquare) na viabilizaccedilatildeo do futuro ou pelo menos na definiccedilatildeo de quais

pessoas poderiam participar deste futuro idealizado Eacute uma espeacutecie de descriccedilatildeo de um

futuro ldquodouradordquo para confrontar o presente ldquopoluiacutedordquo

Em termos concretos tanto os movimentos reformadores quanto os apocalipcismos

medievais tiveram seus proacuteprios fatores de surgimento mas alguns destes podem ter

promovido o encontro das duas expectativas Primeiramente o desenvolvimento dos

movimentos hereacuteticos com frequecircncia o resultado de programas reformistas frustrados com

constantes criacuteticas ao clero e a corrupccedilatildeo da Igreja A persistecircncia destes grupos poderia

produzir a sensaccedilatildeo de que as heresias eram consequecircncia do pecado da Igreja e que para

acabar com elas era preciso se purificar Produzia tambeacutem a retoacuterica apocaliacuteptica por parte

das autoridades que constantemente recorriam agraves figuras negativas do final do tempo para

vinculaacute-las com as heresias Um segundo fator poderia estar nas cruzadas que acentuaram a

sensaccedilatildeo de que o cristianismo estava sob constante ameaccedila de povos pagatildeos Finalmente e

talvez o mais significativo os efeitos da controveacutersia das investiduras e o conflito entre

Igreja e poder temporal A persistecircncia dos conflitos com os imperadores germacircnicos pode

ter promovido o surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada de

conflitos histoacutericos desde os seus primoacuterdios A Igreja passa a ser vista como uma

comunidade sagrada que sofre perseguiccedilatildeo intermitente592 O discurso apocaliacuteptico se tornou

uma tentativa de dar sentido aos constantes embates contra os poderes temporais Eacute neste

591 KERBY-FULTON op cit p 9 592 RIEDL Matthias Joachim of Fiore as political thinker In WANNENMACHER Julia Eva Joachim of

Fiore and the influence of inspiration essays in memory of Marjorie Reeves (1905-2003) London Routledge

2013 p 90-116 p 94

176

sentido que os imperadores frequentemente satildeo estigmatizados com retoacuterica apocaliacuteptica

dando ao papado por seu lado um papel acentuado no drama do final dos tempos593

Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de forma milenarista

McGinn cita como exemplo a perspectiva do franciscano Roger Bacon (1214-1294) que

acreditava numa reforma realizada por meio do surgimento de um papa angelicus e de um

imperador ungido que juntos purificariam a Igreja antes do surgimento do Anticristo594 Em

Joaquim entretanto o fenocircmeno foi conjugado com o milenarismo nos moldes do antigo

quiliasmo cristatildeo e manifestou as noccedilotildees de que uma unidade cristatilde idealizada seria

alcanccedilada atraveacutes da transformaccedilatildeo da ecclesia a graccedila de Deus deixou a Igreja grega e

transitou para a Igreja latina595 o Anticristo do final dos tempos iria se manifestar a qualquer

momento para perseguir a Igreja por meio dos sarracenos e dos hereges Quando isso

acontecesse ldquojudeus gregos pagatildeos e talvez mesmo os sarracenos seriam levados agrave

salvaccedilatildeo atraveacutes de homens espirituais da Igreja latina reunidos sob a direccedilatildeo de uma igreja

romana transformadardquo596

77 Resumo

Este capiacutetulo analisou a seacutetima seccedilatildeo do Expositio in Apocalypsim e relacionou-a

com as perspectivas milenaristas de Joaquim presentes em outros lugares de sua obra Nela

Joaquim rompe com a tradiccedilatildeo agostiniana que identificou o milecircnio joanino com a histoacuteria

da Igreja e propotildee em seu lugar um periacuteodo de felicidade na terra para toda a humanidade

sob a direccedilatildeo do Espiacuterito Santo O abade esperava algum tipo de continuidade entre o

presente e o futuro mas com a transformaccedilatildeo de suas instituiccedilotildees sociais especialmente da

Igreja Este periacuteodo de descanso e contemplaccedilatildeo natildeo teve como ponto de partida entretanto

diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim as as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a

tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que esperava uma fase histoacuterica de felicidade na terra

593 KERBY-FULTON op cit p 8 594 Citato por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 81 595 Haacute neste caso aquilo que Whalen chamou de ldquopropoacutesito geograacuteficordquo divino que levou a graccedila de Deus a se

mover do Oriente para o Ocidente e no saacutebado do Espiacuterito retornar para o Oriente Cf WHALEN op cit p

121 596 WHALEN op cit p 123 Joaquim abraccedila o ideal do ldquoservo sofredorrdquo de Isaiacuteas 53 e a espera de uma

grande conversatildeo dos povos no final dos tempos que demanda mais pregaccedilatildeo e menos conflito Nos seus

termos ldquopraedicando magis quam proeliandordquo (Expositio in Apocalypsim 164v) Cf TAGLIAPIETRA

Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 54

177

anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica deste tipo de milenarismo pode estar relacionada

com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica

CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO

DOS MONGES

A tiacutetulo de recapitulaccedilatildeo cabe reafirmar nossos principais argumentos apresentados

e sustentados no decorrer deste trabalho O Apocalipse foi produzido pelo profeta Joatildeo de

Patmos na forma de um instrumento retoacuterico de caraacuteter milenarista cuja funccedilatildeo atendia a

determinadas percepccedilotildees de crise social que seu autor manifestava e que entendendo-se

como convocado divinamente para atuar entre as igrejas da proviacutencia da Aacutesia desejava levaacute-

las ao rompimento sectaacuterio com a sociedade romana Joatildeo se recusava a viver ldquoneste mundordquo

e esperava pela inauguraccedilatildeo de um ldquooutro mundordquo no tempo do milecircnio A visatildeo de histoacuteria

que aparece subjacente agrave sua narrativa religiosa se constitui em uma criacutetica agraves representaccedilotildees

sociais romanas encontradas na proviacutencia asiaacutetica

O Apocalipse foi lido como texto sagrado por Joaquim de Fiore e como base para a

construccedilatildeo de sua filosofia da histoacuteria Por meio do seu comentaacuterio da obra joanina o abade

construiu a expectativa de superaccedilatildeo do tempo presente em uma eacutepoca de ouro dirigida pela

terceira pessoa da Trindade o Espiacuterito Santo As representaccedilotildees milenaristas do calabrecircs

entretanto natildeo partiram diretamente do milecircnio joanino jaacute que dependem mais da tradiccedilatildeo

do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo e de sua reflexatildeo histoacuterico-trinitaacuteria

Convergecircncias e divergecircncias

O Apocalipse foi produzido no final do seacuteculo I na Ilha de Patmos O Expositio por

sua vez surgiu nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XII na Itaacutelia597 O judeu Joatildeo rejeitava a

Peniacutensula Itaacutelica pois nela ficava a capital do Impeacuterio que destruiu sua estimada Jerusaleacutem

Em sua obra o profeta exilado se alonga na imaginaccedilatildeo de como Roma seria devorada pelo

fogo 1100 anos depois um italiano da Calaacutebria se ldquoencantardquo pelo texto de Joatildeo e resolve

gastar os uacuteltimos anos de sua vida para divulgaacute-lo Ao produzir seu escrito Joaquim

transcreveu integralmente o material joanino (na sua traduccedilatildeo latina) fazendo do Expositio

efetivamente uma coacutepia comentada do Apocalipse Haacute aqui um viacutenculo formal entre os dois

textos Mas isso natildeo esclarece totalmente os relacionamentos as recepccedilotildees as adaptaccedilotildees

597 Conferir esta relaccedilatildeo geograacutefica no anexo 4

179

as mutilaccedilotildees as invenccedilotildees os horizontes de leitura criados pela natureza diacrocircnica de tal

viacutenculo Por isso ainda eacute preciso promover anaacutelises comparativas que pressuponham os dois

objetos (apocalipse e comentaacuterio) como fenocircmenos distintos em funccedilatildeo de suas proacuteprias

conjunturas condiccedilotildees de emergecircncia e pontos de partida

Segundo Juumlrgen Kocka comparaccedilatildeo eacute a discussatildeo de ldquodois ou mais fenocircmenos

histoacutericos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenccedilas de modo a se

alcanccedilar determinados objetivos intelectuaisrdquo598 Eacute o que faremos nesta conclusatildeo com

ecircnfase nas diferenccedilas e especificidades599 para assim descrever explicar e interpretar

elementos especiacuteficos de cada um dos objetos de comparaccedilatildeo600 Tomando uma expressatildeo

irocircnica de Kocka e Haupt mesmo que natildeo pudeacutessemos comparar ldquomaccedilatildes e laranjasrdquo (como

um apocalipse e um comentaacuterio biacuteblico) ainda assim poderiacuteamos apontar as peculiaridades

de cada objeto e seus usos particulares601

Para efeitos de comparaccedilatildeo pressupomos as discussotildees dos capiacutetulos anteriores

quando analisamos separadamente os aspectos formais de Apocalipse 201-10 e seu

respectivo comentaacuterio exegeacutetico na seacutetima parte do Expositio contextualizamos cada

unidade de comparaccedilatildeo apontando suas respectivas condiccedilotildees de produccedilatildeo analisamos o

conteuacutedo recortado de cada texto explicitando as representaccedilotildees milenaristas os pontos de

partida e os fatores de emergecircncia No caso especiacutefico de Joaquim ainda discutimos suas

formas de leitura e posturas hermenecircuticas

O que comparamos Eacute o tipo de milenarismo que se objetiva em cada texto Para

tanto analisamos os pontos de contato as convergecircncias e divergecircncias e as compreensotildees

de tais aspectos agrave luz de seus respectivos contextos Usamos como fio norteador para a

anaacutelise comparativa a definiccedilatildeo de milenarismo anteriormente pressuposta e agora

desdobrada602

598 KOCKA Juumlrgen Comparison and beyond History and theory Middletown n 42 p 39-44 2003 p 39 599 Conferir uma siacutentese de modelos de observaccedilatildeo comparada em BARROS Joseacute DacuteAssunccedilatildeo Histoacuteria

comparada um novo modo de ver e fazer a histoacuteria Revista de Histoacuteria Comparada Rio de Janeiro v 1 n

1 p 1-30 2007 p 18-21 600 KOCKA Juumlrgen HAUPT Heinz-Gerhard Comparison and Beyond traditions scope and perspectives of

Comparative History In HAUPT Heins-Gerhard KOCKA Juumlrgen (orgs) Comparative and Transnational

History Central European approaches and new perspectives Oxford Berghahn Books 2009 p 1-30 p 2 601 HAUPT Heinz-Gerhard KOCKA Juumlrgen Comparative History Methods Aims Problems In COHEN

Deborah OrsquoCONNOR Maura Comparison and History Europe in cross-national perspective London

Routledge 2004 p 23-39 p 27 602 Para tanto contamos com as contribuiccedilotildees principalmente da socioacuteloga israelense Yonina Talmon e do

historiador americano Richard Landes Cf TALMON Yonina Millenarism In SILLS David L (ed)

International Encyclopedia of the Social Sciences London The Macmillan Company amp The Free Press 1968

19 v V X p 349-362 LANDES Richard A Millennialism in the Western World In LANDES Richard A

(ed) Encyclopedia of millennialism and millennial movements New York Routledge 2000 p 453-466

180

Por uma definiccedilatildeo de milenarismo

No iniacutecio desta tese anunciamos a definiccedilatildeo de milenarismo do historiador inglecircs

Norman Cohn que entendeu-o como um tipo particular de utopia salvacionista coletiva jaacute

que todos os fieacuteis experimentariam a felicidade terrena jaacute que essa felicidade seria

alcanccedilada na terra e natildeo em uma realidade transcendente total pois aguarda uma completa

inversatildeo dos males da terra iminente pois a transformaccedilatildeo completa estaria perto de

comeccedilar e miraculosa jaacute que a redenccedilatildeo contaria com a ajuda de poderes sobrenaturais603

Alguns autores entretanto como Jean Delumeau optam por uma noccedilatildeo reducionista

do fenocircmeno ldquono cristianismo deve-se chamar de milenarismo a crenccedila num reino terrestre

de Cristo e de seus eleitos ndash reino este que deve durar mil anos entendidos seja literalmente

seja simbolicamenterdquo604 A definiccedilatildeo de Delumeau parece entender por milenarismo apenas

os fenocircmenos que replicam o milecircnio de Apocalipse 20 Isso o leva agrave curiosa sugestatildeo de

que Joaquim de Fiore a quem ele dedicou quase cinquenta paacuteginas do seu livro sobre

ldquomilenarismordquo natildeo poderia ser chamado de milenarista605 Diante de tal posicionamento eacute

preciso lembrar do argumento de Paula Fredriksen ldquoa ideia de um periacuteodo de mil anos

implicada por este termo eacute menos essencial para o seu sentido que o seu foco sobre a terra

a histoacuteria humana como a uacuteltima arena da redenccedilatildeordquo606

No campo oposto ao de Delumeau Kathryn Kerby-Fulton opta por uma definiccedilatildeo

abrangente demais ldquoRefere-se agrave crenccedila num futuro de becircnccedilatildeos na terra antes do fim da

LANDES Richard A Heaven on Earth the varieties of the millennial experience Oxford Oxford Universit

Press 2011 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time In NEWPORT

Kenneth G C GRIBBEN Crawford (eds) Expecting the End millennialism in social and historical context

Waco Baylor University Press 2006 p 1-23 603 Cf COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade

Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 Pesquisadores deste tema continuam partindo das definiccedilotildees

de Cohn mesmo que sua obra sobre os milenaristas revolucionaacuterios da Idade Meacutedia jaacute tenha quase 50 anos

Por exemplo cf CLARKE Peter The origins scope and spread of the millenarian idea In LIEB Michael

MASON Emma Roberts Johathan (edss) The Oxford Handbook of the Reception History of the Bible

Oxford Oxford University Press 2011 p 235-242 604 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras

1997 p 17-18 Tambeacutem minimiza o milenarismo de Joaquim SARANYANA Josep Ignasi Sobre El

milenarismo de Joaquiacuten de Fiore Uma lectura retrospectiva Teologia y Vida Santiago v XLIV p 221-232

2003 605 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias

Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria

mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 606 FREDRIKSEN Paula Tyconius and Augustine on the Apocalypse In EMMERSON Richard K

MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 20-

37 p 20

181

histoacuteriardquo607 Ou entatildeo John Gager ldquoum movimento que espera uma nova ordem de realidade

em um futuro proacuteximordquo608 Diante de tal formulaccedilatildeo tanto o que espera a redenccedilatildeo de forma

iminente quanto aquele que a projetou para milhares de anos agrave frente satildeo tomados como

milenaristas Por isso o proacuteprio Gager refina sua definiccedilatildeo argumentando que a espera

indefinida pelo reino milenar natildeo seria propriamente milenarista Afinal os sacerdotes reais

persas que lanccedilaram o ldquotornar maravilhosordquo de Zaratrusta para sete mil anos agrave frente natildeo

poderiam ser chamados propriamente de milenaristas609 O caraacuteter iminente da crenccedila

milenarista manifesta uma rejeiccedilatildeo da presente ordem social Quando o fim da ordem

presente eacute lanccedilado para um futuro longiacutenquo e indeterminado o resultado eacute a legitimaccedilatildeo

do mundo cotidiano Nos termos de John Collins ldquojulgamento adiado providencia confianccedila

no presenterdquo610

Retomando a definiccedilatildeo de milenarismo o termo tem origem no vocaacutebulo latino

ldquomillerdquo usado para traduzir a palavra grega ldquordquo de Apocalipse 201-10 Ele ganhou um

sentido lato entretanto no campo dos estudos sociais passando a indicar uma determinada

expectativa de movimentos ou grupos611 Cohn como jaacute indicamos anteriormente descreveu

o fenocircmeno como uma ldquoutopiardquo Mas ele eacute propriamente uma reflexatildeo sobre o tempo uma

filosofia da histoacuteria um sistema de representaccedilotildees graacutevido de praacuteticas que se manifestam

em grupos comunidades cultos e movimentos Podemos falar destes entatildeo como cultos

seitas ou movimentos milenaristas Figura significativa entre estas representaccedilotildees e praacuteticas

eacute o profeta milenarista que se torna o seu vulgarizador apologeta e pregador Em algumas

circunstacircncias em torno dele surge um grupo Em outras como no caso de Joatildeo e Joaquim

haacute uma relaccedilatildeo diacrocircnica entre o fundador e os grupos que se dizem seus porta-vozes como

o movimento inspirado nas profecias joaninas de Montano Priscila e Maximila a partir da

deacutecada de 160 nas proviacutencias romanas da Aacutesia menor612 ou a inspiraccedilatildeo joaquimita do grupo

607 Cf KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge

University Press 1990 p 3 608 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 p 57 609 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no

Apocalipse Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 135 610 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do

Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 11 611 TALMON op cit p 349 Henri Desroche cunhou a expressatildeo ldquohomens da esperardquo para fazer referecircncia a

pessoas que aguardam algum tipo de mudanccedila histoacuterica a posteriori Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de

messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 16 612 PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation New York Penguin

Books 2012 p 103-107

182

em torno de Amaury de Begravene na Paris do iniacutecio do seacuteculo XIII condenado formalmente no

IV Conciacutelio de Latratildeo (1215)613

Segundo Norman Cohn um dos mais antigos destes profetas milenaristas surgiu no

Iratilde antigo e ficou conhecido como Zoroastro614 A partir do zoroastrismo em sua

manifestaccedilatildeo imperial persa o fenocircmeno teria transitado para o Judaiacutesmo quando

expressotildees de uma redenccedilatildeo futura deram origem a diversos movimentos ou seitas Uma

destas nascida das pregaccedilotildees do profeta Jesus de Nazareacute e subjacente ao Apocalipse tinha

como significativos traccedilos iniciais uma resiliente combinaccedilatildeo de milenarismo e

messianismo615

Cada profeta milenarista ou movimento milenarista tem particularidades uacutenicas

Mesmo assim eles apresentam alguns traccedilos em comum que eacute o que permite categorizaacute-

los em diferentes lugares e eacutepocas sob o mesmo termo616

Coletiva o povo feliz

A salvaccedilatildeo no milenarismo natildeo eacute de natureza individual mas expectativa de um

grupo ou para um grupo O milenarista natildeo deseja alcanccedilar a salvaccedilatildeo sozinho pois espera

compartilhaacute-la com uma comunidade de pessoas ldquoeleitasrdquo O fenocircmeno assim tem uma

orientaccedilatildeo coletiva O reino milenar do Apocalipse espera ser povoado por uma multidatildeo de

maacutertires ressuscitados O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim veraacute uma humanidade inteira em

paz e contemplaccedilatildeo quando um grande grupo de pessoas se converterem agrave feacute da Igreja latina

especialmente os judeus

Apesar dos leitores posteriores de Joatildeo terem ampliado o puacuteblico do milecircnio em

Apocalipse 20 ele eacute exclusivo daqueles que foram degolados pelas bestas do Dragatildeo o que

pode representar toda a crise do profeta com as mortes violentas ou as notiacutecias de mortes

violentas na guerra judaico-romana De fora ficam natildeo apenas os seus ldquoirmatildeosrdquo que natildeo

alcanccedilarem tal morte (participariam da ldquosegunda ressurreiccedilatildeordquo) mas tambeacutem todos aqueles

que natildeo compartilham de sua perspectiva de Jesus como o Messias de Deus Estes uacuteltimos

613 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 61 614 Para Cohn Zoroastro ldquoeacute o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo especiacutefico de profeta ndash os

chamados lsquomilenaristasrsquordquo Cf COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 133 615 TALMON op cit p 350 616 Como argumentou Paul Veyne os fenocircmenos histoacutericos natildeo se organizam atraveacutes de periacuteodos e de povos

mas atraveacutes de noccedilotildees Mais do que inseridos no seu tempo eles precisam ser postos sob um conceito Cf

VEYNE Paul O inventaacuterio das diferenccedilas Lisboa Gradiva 1989 p 33

183

por sinal entendidos por Joatildeo como seguidores das bestas e do Dragatildeo seriam destruiacutedos

na parousia Natildeo haacute sobreviventes para o reino dos maacutertires O milecircnio para o Apocalipse

soacute seraacute alcanccedilado pela porta do martiacuterio

Neste tipo de milenarismo algumas pessoas alcanccedilam a redenccedilatildeo outras satildeo

destruiacutedas no processo Haacute um dualismo baacutesico uma divisatildeo fundamental da humanidade

entre fieis e infieacuteis entre seguidores e natildeo-seguidores entre crentes e increacutedulos entre justos

e perversos A histoacuteria humana eacute vista como uma luta contiacutenua entre os filhos de Deus contra

os aliados de Satanaacutes De qualquer forma nem no Apocalipse ou no Expositio haacute criteacuterios

de raccedila grupo eacutetnico ou naccedilatildeo para compor a terra da felicidade Em ambos os casos a

participaccedilatildeo se daria em funccedilatildeo de opccedilotildees religiosas

Haacute uma forte ecircnfase na exclusatildeo em Joatildeo e um relativo inclusivismo em Joaquim

com sua expectativa de conversatildeo geral apoacutes o levantamento do Anticristo Apesar de sua

ecircnfase nos monges o descanso natildeo eacute soacute para eles A sociedade da Terceira Era natildeo seria

formada apenas por membros do corpo monaacutestico mas caberiam diversos outros grupos

sociais como a Dispositio o demonstra617 Em seus esquemas o abade fala de uma era de

casados outra de cleacuterigos outra de monges expressotildees que precisam ser entendidas na oacutetica

do protagonismo Na primeira Era o protagonismo foi dos casados na segunda dos cleacuterigos

na terceira dos monges A Dispositivo representaccedilatildeo da sociedade ideal de Joaquim

apresenta sete oratoacuterios cinco satildeo de monges um para o clero e um para os casados Ele vecirc

uma loacutegica de procedecircncia entre as ordens dos casados procedem os cleacuterigos dos cleacuterigos

os monges Mas um natildeo significa o fim do outro Neste tipo de perspectiva a Trindade se

revela na histoacuteria imprimindo nela as caracteriacutesticas peculiares de cada pessoa divina e um

caraacuteter dinacircmico e progressivo cuja meta eacute uma sociedade protagonizada por monges

contemplativos

Eacute possiacutevel fazer ainda uma reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo entre a comunidade futura ideal

e a comunidade real do presente do milenarista Apocalipse e Expositio satildeo produccedilotildees de

liacutederes carismaacuteticos Joatildeo era um profeta itinerante das igrejas da Aacutesia Joaquim era um

abade que conseguiu atrair um grupo de disciacutepulos para as montanhas de Fiore e a partir

deles fundou uma casa monaacutestica e uma ordem religiosa Neste sentido suas obras visavam

a uma comunidade seus textos buscavam operar no interior de um grupo Representaccedilotildees

617 Cf Anexo 5

184

individuais natildeo satildeo elementos estanques mas se relacionam com representaccedilotildees sociais618

Joatildeo e Joaquim representam determinados grupos Suas falas satildeo representativas de

expectativas mesmo que parcialmente compartilhadas entre profeta e comunidade No caso

de Joatildeo sua audiecircncia natildeo lhe eacute totalmente amistosa Ele enfrenta adversaacuterios no interior

das igrejas e deseja com seu Apocalipse simultaneamente convocar os aliados e atacar os

inimigos Joaquim tambeacutem tem alguns adversaacuterios mesmo que seja em escala diferente Ele

enfrenta resistecircncia da Ordem Cisterciense em funccedilatildeo de ter abandonado a abadia de

Corazzo Mas os grandes adversaacuterios de ambos os autores estatildeo ldquodo lado de forardquo de seus

ciacuterculos a sociedade romana para Joatildeo619 os muccedilulmanos para Joaquim Satildeo estes

adversaacuterios os grandes excluiacutedos do reino dos maacutertires ou do saacutebado do Espiacuterito

Terrena o lugar perfeito

Joatildeo de Patmos pode ter testemunhado a morte de muitos de seus irmatildeos e ouvido

falar do martiacuterio de vaacuterios outros Seu texto manifesta a expectativa de acentuada

perseguiccedilatildeo da sociedade romana para um futuro proacuteximo Estes aspectos parecem marcar

sua descriccedilatildeo do passado e do futuro das comunidades de Jesus Tal conjunto de

representaccedilotildees tem o potencial de produzir ruptura em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano e gerar

ansiedade pelo reino milenar Apesar de sua breve descriccedilatildeo no episoacutedio de Apocalipse 20

Joatildeo tambeacutem registrou a mesma expectativa no iniacutecio da segunda seccedilatildeo de sua obra

(Apocalipse 5) Nesta passagem o autor relatou o hino que ele teria ouvido da parte de Vinte

e quatro Presbiacuteteros Celestiais ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste

morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e

naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

(Apocalipse 59-10) Este hino ao ldquoCordeirordquo eacute uma metaacutefora para descrever Jesus e sua

morte seis deacutecadas atraacutes Segundo Joatildeo a morte daquele que ele tem como Messias foi uma

estrateacutegia divina para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo

exclusivo fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus620 Mesmo que as formas verbais estejam no

618 OLIVEIRA Maacutercio de O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves

Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre v 13 n 22 p 67-94 2012 p 71 619 Eacute interessante destacar que a Palestina desde a deacutecada 60 antes da Era Comum era parte do Impeacuterio

Romano Os judeus eram formalmente membros deste Impeacuterio Isso natildeo foi o suficiente para que Joatildeo se

sentisse parte do ldquomundo romanordquo Pelo contraacuterio numa perspectiva sectaacuteria ele rejeita a sociedade que lhe

cerca 620 CHARLES J Daryl A Apocalyptic Tribute to the Lamb (Rev 51-14) Journal of the Evangelical

Theological Society Chicago v 24 n 4 p 461-473 1991 p 471

185

passado como se fossem eventos jaacute realizados por Jesus621 o final do hino manifesta a

mesma expectativa de Apocalipse 20 um reino sobre a terra622

Ao contraacuterio de Joatildeo entretanto a relaccedilatildeo de Joaquim com a sociedade circundante

eacute bem favoraacutevel Joaquim natildeo enfrentou perseguiccedilatildeo As ameaccedilas do Capiacutetulo Geral da

Ordem Cisterciense natildeo podem ser descritas como tal jaacute que o abade contava com o apoio

papal e dos poderes constituiacutedos no reino da Siciacutelia Mesmo assim como Joatildeo as

expectativas joaquitas natildeo satildeo para aleacutem Ele tem elementos concretos no interior de suas

descriccedilotildees do saacutebado do Espiacuterito Sua ecircnfase neste caso se desloca de uma ressurreiccedilatildeo de

maacutertires para o descanso contemplativo monaacutestico que ele aprendeu a admirar apoacutes o retorno

de sua peregrinaccedilatildeo agrave Palestina A situaccedilatildeo de instabilidade poliacutetica no reino normando e os

eventuais embates entre o Impeacuterio e a Igreja romana parecem ter sensibilizado o abade de

Fiore o suficiente para que ele esperasse a paz como a principal marca do tempo do Espiacuterito

Sem conflitos uma humanidade pacificada poderia gastar os dias do descanso sabaacutetico em

contemplaccedilatildeo e comunhatildeo com a divindade Apesar de transformadas pela atuaccedilatildeo

sobrenatural do Espiacuterito na sociedade dos sonhos de Joaquim ainda haveria liturgia trabalho

e estudo marcas da espiritualidade cisterciense no milenarismo do abade623

Joatildeo espera por um periacuteodo milenar em que maacutertires ressuscitados governam julgam

e cultuam e Joaquim ansiou por um descanso sabaacutetico em que viri spirituales cultuassem

trabalhassem e estudassem Com isso ambos manifestam a principal caracteriacutestica do

milenarismo que eacute sua orientaccedilatildeo terrena quando a noccedilatildeo de um tempo ideal (o tempo do

milecircnio) eacute acompanhada da noccedilatildeo de um espaccedilo ideal (a terra do milecircnio)624 Daiacute a ecircnfase

na terra ou em algum lugar especiacutefico da terra em detrimento de uma dimensatildeo

transcendental

Segundo Cohn especialmente entre as religiotildees zoroastrianas judaicas e cristatildes

surgiu a noccedilatildeo de que a histoacuteria caminha na direccedilatildeo de seu fim um eschaton o fim dos

tempos ou o fim do mundo625 No contexto cristatildeo este ldquofim do mundordquo envolveria um juiacutezo

621 PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 124 622 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991

p 62 623 O confronto de Joaquim com os cistercienses de Corazzo e com as autoridades da ordem parece derivado

de sua percepccedilatildeo de que eles estavam sendo infieacuteis ao ldquoespiacuteritordquo de Bernardo de Claraval que ele chamava de

ldquoveneraacutevel pai Bernardordquo Joaquim achava que os cistercienses natildeo deram continuidade agrave reforma que

Bernardo comeccedilou mas ainda assim eles eram uma etapa importante na histoacuteria que o monasticismo deveria

percorrer ateacute atingir sua perfeiccedilatildeo Cf DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De

Joaquiacuten a Schelling Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 21 624 TALMON op cit p 352 625 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 286-294

186

final quando a divindade julgaria as pessoas vivas e mortas o universo material seria

consumido por ldquofogo purificadorrdquo deixando para os fieacuteis uma eternidade celestial

(Apocalipse 21-22) Para o autor de 2Pedro por exemplo o eschaton eacute o fim da vida na terra

como ele e a humanidade conheciam ldquoOra os ceacuteus que agora existem e a terra pela mesma

palavra tecircm sido entesourados para fogo estando reservados para o dia do Juiacutezo e destruiccedilatildeo

dos homens iacutempiosrdquo (2Pedro 37) Em termos socioloacutegicos esta expressatildeo escatoloacutegica

poderia ser definida como teodiceia uma tentativa de encontrar sentido para o sofrimento o

mal e principalmente a morte626

Profetas milenaristas frequentemente se voltam para a questatildeo do sofrimento e suas

causas Mas as expectativas natildeo-histoacutericas transcendentais parecem natildeo os atender Eles

esperam por uma transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de existecircncia na terra e natildeo em um mundo

natildeo-material Por isso as crenccedilas milenaristas antecipam parte das expectativas posteriores

ao fim do mundo para dentro da histoacuteria quando os fieacuteis seriam recompensados em seus

corpos em suas realidades materiais dentro do saeculum627 A paz a justiccedila e as condiccedilotildees

de existecircncia esperadas para um mundo porvir satildeo antecipadas para a terra

Derivadas dessa ecircnfase terrena estatildeo algumas diferenciaccedilotildees futuras dos fieacuteis As

descriccedilotildees feitas por Joaquim da sociedade do Espiacuterito indicam alguma relaccedilatildeo entre espaccedilo

e status O status estaraacute ligado agrave posiccedilatildeo diante do centro da sociedade espiritual ocupada

pelo pater spiritualis Este tipo de diferenciaccedilatildeo foi feita apenas de forma relativa por Joatildeo

quando ele descreveu duas ressurreiccedilotildees a primeira para os martirizados e membros do reino

milenar a segunda para os demais fieacuteis No Apocalipse os maacutertires formam uma espeacutecie de

fiel ideal acentuando o valor religioso do martiacuterio

Curiosamente o ideal asceacutetico manifesta-se nas duas visotildees Joatildeo espera que os

144000 guerreiros escatoloacutegicos do Cordeiro sejam virgens e castos (Apocalipse 141-5) o

abade de Fiore lanccedilou aqueles que ainda continuaratildeo casados no Oratoacuterio mais baixo da

Dispositio separados dos demais por um grande espaccedilo Para os dois religiosos o sexo

oposto eacute perigoso e isso se reflete nas suas descriccedilotildees idealizadas do futuro

626 BERGER Peter L O dossel sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulus

1985 p 65 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 6 627 Landes toma esta expressatildeo de Agostinho para falar da passagem contiacutenua do tempo da mateacuteria e da

histoacuteria Cf LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 7

187

Total inversatildeo escatoloacutegica

O conceito milenarista de redenccedilatildeo eacute total no sentido de que a nova era natildeo traraacute

meramente uma melhora nas condiccedilotildees de vida mas um movimento na direccedilatildeo de condiccedilotildees

perfeitas de existecircncia dentro da histoacuteria As tais ldquocondiccedilotildees de perfeiccedilatildeordquo entretanto

variam em funccedilatildeo das conjunturas histoacutericas dos expoentes do milenarismo Antigas

expectativas judaicas esperavam por um tempo em que os instrumentos de guerra seriam

transformados em arados e foices para trabalhar o campo (Isaiacuteas 21-5) lobos e leotildees

andariam juntos com ovelhas e cabritos e crianccedilas brincariam com serpentes sem se

machucar (Isaiacuteas 61-9) Estas expectativas parecem fazer sentido em comunidades rurais

em crise com conjunturas de opressatildeo aristocraacutetica628 Jaacute os milenaristas de Tabor na

Boecircmia do seacuteculo XV esperavam um milecircnio literal de banquete perpeacutetuo com a supressatildeo

de toda autoridade quando as mulheres poderiam conceber seus filhos sem qualquer

participaccedilatildeo masculina e homens tambeacutem dariam agrave luz629

A inversatildeo escatoloacutegica idealizada por Joatildeo assim esperava o fim de todas as

guerras e violecircncias contra os seguidores de Jesus que viveriam na terra como reis juiacutezes e

sacerdotes expectativas que apontam para o desejo de empoderamento de pessoas agrave margem

do poder A descriccedilatildeo do milecircnio do Apocalipse pretende ser uma inversatildeo de soberanias

Os poderes do presente seriam destronados os sem poderes seriam entronizados e exaltados

Joaquim igualmente aguarda um periacuteodo de felicidade na terra mesmo que

pequeno em que os fieacuteis experimentaratildeo acima de tudo paz com o fim de todos os

conflitos No calabrecircs entretanto natildeo haacute espaccedilo para monarquias ou reis Mesmo que sua

hostilidade contra o Impeacuterio Germacircnico tenha desaparecido no final do Expositio em relaccedilatildeo

agraves suas primeiras exposiccedilotildees do Apocalipse630 ainda assim Joaquim possui a visatildeo de que

se a histoacuteria eclesiaacutestica fora marcada pelo conflito contra os poderes seculares estes

deveriam desaparecer na Terceira Era Somente a Igreja sobreviveria entatildeo transformada

em uma grande instituiccedilatildeo monacal

Gager argumenta que esta caracteriacutestica do milenarismo teria relaccedilatildeo com algum tipo

de privaccedilatildeo poliacutetica econocircmica social religiosa ou uma mistura de cada uma delas Os

milenaristas segundo este historiador aposentado da Princeton University ldquose sentem

628 LANDES Richard A Millennialism in the Western World op cit p 455 629 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 106 630 POTESTA Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p

318-319

188

desfavorecidos de alguma formardquo631 Ele estaacute ciente entretanto que existe muito mais gente

que sofre privaccedilatildeo do que membros de movimentos milenarista Por isso ele enfatiza que a

privaccedilatildeo natildeo precisa ser efetiva Ela pode ser relativa qual seja ldquouma relaccedilatildeo desigual entre

expectativa e os meios de satisfaccedilatildeordquo632 Eacute um tipo de condiccedilatildeo que surge quando novas

esperanccedilas se manifestam mas permanecem natildeo cumpridas

Esta sugestatildeo de Gager poderia ser usada para distinguir o milenarismo de Joatildeo e

Joaquim O profeta de Patmos era membro de um grupo marginal de uma das proviacutencias

orientais do Impeacuterio romano Vaacuterios de seus conterracircneos foram mortos em uma guerra

contra Roma em que causas poliacuteticas econocircmicas sociais e religiosas se encontravam

misturadas A proviacutencia da Aacutesia era uma das mais ricas do Impeacuterio mas figuras como Joatildeo

se sentiam isolados desta riqueza633

Do outro lado o calabrecircs era um abade bem situado e respeitado Norman Cohn

trabalhou em sua obra uma seacuterie de movimentos milenaristas medievais de tipo contestador

vinculados a grupos que viviam agrave margem quer da sociedade quer do poder634 Joaquim

natildeo era um milenarista deste tipo Ele natildeo estava na margem Ele estava perto do poder

Encontrou-se diversas vezes com papas monarcas rainhas e imperadores Era um dos mais

proeminentes abades do reino da Siciacutelia e talvez de toda a Itaacutelia635 Certamente entatildeo o

termo marginalizado natildeo poderia ser usado para descrever Joaquim de Fiore Ele natildeo se via

como marginalizado e natildeo era efetivamente um marginalizado636

A Era do Espiacuterito do abade natildeo parece ter relaccedilatildeo com algum tipo de privaccedilatildeo efetiva

No calabrecircs haacute mais propriamente a questatildeo das expectativas natildeo cumpridas Sua caminhada

religiosa parece evidenciar este aspecto Apoacutes o retorno da Palestina ele abraccedilou o

eremitismo depois procurou se envolver com um modelo monaacutestico cenobiacutetico em pelo

menos trecircs casas Sambucina Corazzo e S Trindade A forma como rejeitou inicialmente o

631 GAGER John G Kingdom and Community op cit p 25 632 Idem p 27 633 Conferir uma anaacutelise da criacutetica joanina agrave riqueza de Roma em KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio

imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 634 COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia

Lisboa Editorial Presenccedila 1970 635 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 636 Mc Ginn alerta que o perfil social da maioria daqueles que se valiam da retoacuterica apocaliacuteptica na Idade Meacutedia

natildeo era de um profeta isolado no alto de uma montanha mas pessoas bem-educadas cleacuterigos e liacutederes na

sociedade membros da corte e escribas Frequentemente ldquoeram poderosas figuras poliacuteticasrdquo Neste contexto

o milenarismo era uma tentativa de interpretar o seu proacuteprio tempo e assim dar suporte para patronos legitimar

a lideranccedila e perseguir determinados propoacutesitos poliacuteticos sociais e religiosos Cf MC GINN Bernard Visions

of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages New York Columbia University Press 1979 p 32

189

cargo de abade de Corazzo e deixou S Trindade indica uma ecircnfase religiosa no isolamento

e na contemplaccedilatildeo Apoacutes uma campanha para ingresso na Ordem Cisterciense abandonou

sua casa para fundar um monasteacuterio no isolamento de Fiore O ideal milenarista de Joaquim

parece revelar sua frustraccedilatildeo com a Igreja tanto latina quanto grega e com as formas de

monasticismo que ele tinha agrave disposiccedilatildeo Para o abade suas altas demandas religiosas natildeo

realizadas nas instituiccedilotildees que ele conhecia seriam atendidas finalmente quando o Espiacuterito

instaurasse a terceira Era da histoacuteria

De qualquer forma ambos os milenarismos refletem algum tipo de rejeiccedilatildeo da

presente ordem do mundo O milecircnio de Joatildeo reflete o conflito com a sociedade romana e

mesmo com outras comunidades de Jesus O de Joaquim com outras propostas de

espiritualidade cristatilde

Iminente bem perto de comeccedilar

Para Joatildeo o governo milenar de Cristo estava para acontecer a qualquer momento

Na sua perspectiva temporal as bestas estavam para iniciar o ataque final contra os fieacuteis

promovendo a morte de vaacuterios deles (Apocalipse 13) mas ao mesmo tempo viabilizando a

parousia de Jesus e a implementaccedilatildeo do milecircnio O autor do Expositio tambeacutem se entende

no limiar de uma nova era Por meio de caacutelculos complexos relacionados com sua

especulaccedilatildeo exegeacutetica o abade entendia que faltavam poucos anos para que os ldquosantosrdquo

experimentassem o refrigeacuterio tatildeo aguardado

Esta semelhante perspectiva quanto agrave urgecircncia dos tempos de Joatildeo e Joaquim

configura uma marca essencial do milenarismo um senso de premecircncia derivado da forma

como o fiel interpreta os eventos agrave sua volta Ele sente que a era salviacutefica estaacute proacutexima e

vive na expectativa de vecirc-la ou em preparaccedilatildeo para alcanccedilaacute-la O pressuposto para esta

confianccedila na proximidade da redenccedilatildeo tem relaccedilatildeo com a crenccedila na histoacuteria como um

processo preacute-determinado Neste sentido bastaria ter acesso a uma determinada chave de

leitura para que se pudesse prever cada uma de suas etapas Os profetas milenaristas

desejavam entender a histoacuteria sua unidade sua estrutura seu objetivo e seu fim637

Segundo Talmon haacute aqui uma combinaccedilatildeo entre consciecircncia histoacuterica de tempo e

consciecircncia miacutetica A perspectiva histoacuterica do tempo como uma sequecircncia de eventos um

637 Idem p 31

190

vir-a-ser de caraacuteter uacutenico e particular eacute combinada com uma consciecircncia de tempo ciacuteclico

infinito e repetitivo638 Afinal o milecircnio de Joatildeo eacute uma interrupccedilatildeo do vir-a-ser um

parecircntese na histoacuteria Natildeo eacute ainda o destino derradeiro dos maacutertires jaacute que apoacutes o juiacutezo final

o profeta descreve uma Nova Jerusaleacutem em termos meta-histoacutericos (Apocalipse 21-22) Na

perspectiva joanina o milecircnio eacute uma demanda da justiccedila divina pois os fieacuteis martirizados

precisavam reinar com seu Cristo na mesma terra que os martirizou

Em Joaquim a sociedade milenar eacute uma antecipaccedilatildeo da Jerusaleacutem celestial

igualmente revestida de historicidade e temporalidade Quando seu periacuteodo acabar chegou

o fim do mundo Joaquim natildeo reflete longamente sobre o que vem a seguir Isso faz com que

sua Nova Era tenha como alvo esta nova sociedade espiritual na terra e natildeo alguma outra

num formato transcendental Eacute uma sociedade ideal ainda com a presenccedila de estruturas

sociais (em torno dos sete oratoacuterios da Dispositio) e de papeacuteis sociais (os viri spirituales da

Dispositio ainda estudam cantam e trabalham)

Relacionado com a questatildeo da iminecircncia estaacute a seacuterie de desastres presente nos

vaticiacutenios milenaristas Para explicar tal caracteriacutestica o socioacutelogo francecircs Desroche

apontou um roteiro de trecircs tempos subjacentes aos milenarismos haacute um tempo de opressatildeo

que se agrava progressivamente ateacute atingir o auge da alienaccedilatildeo e injusticcedila haacute um tempo de

resistecircncia quando os fieacuteis satildeo separados marcados nas frontes por Deus testemunham

vestidos de saco resistem no deserto isolam-se na espera enfrentam o martiacuterio haacute um

tempo de libertaccedilatildeo quando o adversaacuterio eacute finalmente derrotado e os fieacuteis desfrutaratildeo da

paz divina639 Esta relaccedilatildeo entre opressatildeo e redenccedilatildeo gera no milenarista a sensaccedilatildeo de que

quanto pior ficar melhor eacute jaacute que as adversidades histoacutericas seriam sinais da iminecircncia da

intervenccedilatildeo divina640

Assim antes que os maacutertires ressuscitem o Apocalipse de Joatildeo descreve o funesto

convite para que abutres venham devorar as carnes mortas de reis comandantes e poderosos

ldquocarnes de cavalos e seus cavaleiros carnes de todos quer livres quer escravos tanto

pequenos como grandesrdquo (Apocalipse 1918) O refrigeacuterio dos santos de Joaquim por sua

vez soacute surgiria apoacutes a manifestaccedilatildeo do Anticristo e a morte de muitos fieacuteis Neste sentido a

638 TALMON op cit p 352 639 DESROCHE op cit p 50 640 Eacute um apelo nos termos de Desroche em desespero de causa ldquoum apelo em uacuteltima instacircncia uma vez que

as demais instacircncias desmoronaram E ateacute mesmo um apelo para que as demais instacircncias desmoronemrdquo Cf

DESROCHE op cit p 51

191

felicidade almejada natildeo chegaria antes de uma ldquoangustia temporumrdquo ou das duas

ldquotribulationesrdquo quando muitos fieis alcanccedilariam o martiacuterio641

Miraculosa a intervenccedilatildeo divina

Um movimento milenarista compartilha a crenccedila na transformaccedilatildeo do mundo

conjugando-a com um senso de mudanccedila iminente Neste contexto uma significativa

questatildeo guarda relaccedilatildeo com a agecircncia da transformaccedilatildeo ou seja quem traraacute o milecircnio e a

forma como ele viraacute Em sua definiccedilatildeo do fenocircmeno Norman Cohn chamou a atenccedilatildeo para

o aspecto miraculoso da expectativa milenarista no sentido de que uma transiccedilatildeo tatildeo

significativa da realidade precisa da intervenccedilatildeo de forccedilas sobre-humanas642

Eacute neste contexto que se insere o elemento messiacircnico quando a salvaccedilatildeo eacute esperada

sob a conduccedilatildeo de um redentor um mediador entre o ser humano e a divindade

Frequentemente milenarismo envolve messianismo apesar de que os dois fenocircmenos natildeo

necessariamente coincidem Eacute possiacutevel surgir a perspectiva messiacircnica sem a milenarista

Do outro lado nem sempre eacute preciso um messias para que haja a presenccedila do milenarismo

Milenarismo e messianismo satildeo fenocircmenos independentes que eventualmente se unem

mas o dicionaacuterio de Desroche estaacute cheio de casos de um sem o outro643

Especificamente o milenarismo de Joatildeo eacute do tipo messiacircnico jaacute que ele entende que

para que o milecircnio aconteccedila um enviado de Deus um messias o Jesus glorificado precisaria

atuar Para Joaquim entretanto este periacuteodo de paz seria alcanccedilado por meio da atuaccedilatildeo do

Espiacuterito Santo o promotor da felicidade terrena que o abade chamou de ldquodescanso sabaacuteticordquo

O saacutebado do Espiacuterito natildeo demanda a parousia para sua instauraccedilatildeo Tambeacutem natildeo haacute figuras

ungidas exercendo papeacuteis messiacircnicos nas representaccedilotildees joaquitas como um imperador

especial para trazer o ldquosaacutebadordquo ou um papa angelical para instauraacute-lo

O abade de Fiore natildeo esperava por um reino milenar de Jesus na terra Ele deslocou

o reino de Jesus para traz e o tornou um artiacutefice de um periacuteodo completo dentro da histoacuteria

(o segundo status) Com sua visatildeo de progresso contiacutenuo e natildeo de queda contiacutenua Joaquim

imaginou a humanidade se desenvolvendo por meio da atuaccedilatildeo do Pai na primeira Era

passando pela revelaccedilatildeo do Filho na segunda Era ateacute culminar na atuaccedilatildeo do Espiacuterito na

641 GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 75 642 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 11 643 DESROCHE op cit

192

terceira Era Seu milenarismo entatildeo natildeo espera por um Jesus exaltado na terra realizando

um governo com maacutertires ressuscitados Para o calabrecircs natildeo eacute o Filho a esperanccedila dos fieacuteis

e sim o Espiacuterito O tempo de um estava por terminar para que o outro pudesse comeccedilar

Joatildeo esperava um periacuteodo de paz para apoacutes o segundo advento de Jesus Sem Jesus

natildeo haveria felicidade na terra nem reinado dos martirizados nem inversatildeo escatoloacutegica

nem vitoacuteria sobre o Anticristo O milecircnio assim concebido era um parecircntese entre o

segundo advento de Jesus e o final da histoacuteria Um parecircntese que duraria mil anos

Para o abade poreacutem Jesus eacute o centro da histoacuteria mas natildeo o seu aacutepice O aacutepice estaacute

no final na etapa exclusiva do Espiacuterito e sem a demanda do segundo advento de Jesus

(parousia) Em vez de o Filho retornar para trazer a felicidade para a humanidade seu tempo

iria terminar e somente entatildeo debaixo exclusivamente do controle histoacuterico do Espiacuterito os

seres humanos experimentariam a paz Haacute um lugar para a parousia tambeacutem nas

expectativas de Joaquim mas para terminar a histoacuteria e natildeo para dentro dela Na sua visatildeo

quando o Filho retornar a histoacuteria termina o mundo acaba644 Neste sentido o milenarismo

de Joaquim natildeo eacute um milenarismo do Filho e sim do Espiacuterito

Outro aspecto ainda relacionado com a forma de instauraccedilatildeo do milecircnio se desdobra

no papel humano para seu estabelecimento Haacute alguns elementos nas representaccedilotildees

milenaristas que podem atuar para minimizar a atuaccedilatildeo do fiel como por exemplo a

perspectiva de uma redenccedilatildeo predeterminada e inevitaacutevel Neste caso o milenarista natildeo

precisa fazer a revoluccedilatildeo basta esperar pela sua manifestaccedilatildeo sobrenatural Entretanto em

algumas situaccedilotildees a certeza da operaccedilatildeo de acordo com o que estaacute determinado no plano

divino e a confianccedila na vitoacuteria final podem encorajar alguma atividade em vez de

passividade Este parece ser o caso do Apocalipse645 que atribuiu um papel significativo aos

ldquosantosrdquo na instauraccedilatildeo do reino messiacircnico (Apocalipse 69-11) Sem o martiacuterio natildeo haveria

o preenchimento da cota de mortos necessaacuteria para instaurar a parousia (Apocalipse 19) ou

para vencer o Dragatildeo (Apocalipse 12) O profeta de Patmos entende que eacute necessaacuterio algum

tipo de resistecircncia resistecircncia essa que provocaraacute o martiacuterio martiacuterio esse que provocaraacute a

parousia parousia essa que inauguraraacute o milecircnio Ele natildeo demandou uma reaccedilatildeo armada

dos seus seguidores mas esperava deles a rejeiccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo romana o culto

644 Apoacutes o terceiro ciacuterculo da Taacutevola XI do Liber Figurarum aparece a expressatildeo ldquofinis mundirdquo Cf Anexo 6 645 Adela Yarbro Collins definiu o modelo de resistecircncia presente no Apocalipse de Joatildeo como ldquopassivordquo

Mesmo assim ela admite algum tipo de sinergismo jaacute que a morte dos maacutertires aproxima o fiel do eschaton

Cf COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E

J Brill 1996 p 212

193

imperial Na perspectiva joanina quando os disciacutepulos se negassem a participar da adoraccedilatildeo

agraves ldquobestasrdquo eles seriam mortos evento que parece estar subjacente agrave descriccedilatildeo da morte das

Duas Testemunhas (Apocalipse 11) e dos 144000 Guerreiros do Cordeiro (Apocalipse

14)646

Assim no milenarismo do Apocalipse os fieacuteis participam na instauraccedilatildeo do reino

milenar por meio do derramamento do proacuteprio sangue Este tipo de milenarismo pode ser

descrito como revolucionaacuterio ao rejeitar a ordem presente e promover accedilotildees concretas dos

fieacuteis O martiacuterio eacute tomado como uma estrateacutegia de confronto contra a sociedade romana Em

sua descriccedilatildeo do milecircnio Joatildeo explicita que o fiel precisa viver de certo jeito e morrer de

certa forma para estar presente no reino milenar

Em Joaquim entretanto haacute uma reduccedilatildeo do papel humano na instauraccedilatildeo do

descanso do Espiacuterito relacionado justamente com a oacutetica do abade de que os eventos

escatoloacutegicos estatildeo jaacute definidos e determinados Compete aos saacutebios apenas entendecirc-los

anunciar sua chegada e preparar a humanidade para eles Esse caraacuteter de determinaccedilatildeo estaacute

presente no seu esquema da Concordia Natildeo se pode mudar a histoacuteria apenas se preparar

para ela O milenarismo joaquita entatildeo eacute do tipo passivo Natildeo eacute possiacutevel fazer algo para

apressar a chegada do refrigeacuterio dos monges Sua instauraccedilatildeo natildeo depende de pessoas mas

do tempo que precisa ser cumprido

A roda das apropriaccedilotildees

147 anos apoacutes a morte de Joaquim em 1349 o franciscano francecircs Jean de

Roquetaillade enquanto estava encarcerado numa prisatildeo em Avignon escreveu a obra Liber

secretorum eventuum647 Nela ele anuncia a chegada de uma grande tribulaccedilatildeo A Igreja

entatildeo liderada por um papa ldquoangeacutelicordquo saiacutedo dentre os frades menores seria ldquopurgadardquo de

seus erros A partir de entatildeo um grande tempo de paz e prosperidade invadiria o mundo

durante mil anos Roquetaillade como outros franciscanos desde Geraldo San Borgo era

um leitor de Joatildeo de Patmos e Joaquim de Fiore648 Estas apropriaccedilotildees entretanto

tencionavam o pensamento do abade de Fiore na direccedilatildeo de confrontos que natildeo estavam

646 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no

Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 169-175 647 Esta anaacutelise de Roquetaillade segue DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 55-57 648 Idem p 50-57 Conferir tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore e o franciscanismo medieval

Thaumazein Santa Maria v V n 11 p 119-139 2013

194

previstos pelo ldquopaciacuteficordquo calabrecircs649 No Liber secretorum eventuum seu autor natildeo se vale

do esquema das trecircs idades do mundo jaacute criticado pelo protocolo de Agnani durante o

processo contra Geraldo O milenarismo de Jean de Roquetaillade eacute como o de Joaquim

natildeo-messiacircnico mas retomou o quimeacuterico nuacutemero de Joatildeo mil anos Sem parousia como

Joaquim mas por mil anos como Joatildeo Apoacutes o fim deste longo periacuteodo de paz viria entatildeo

o fim do mundo O frade aprisionado tinha a convicccedilatildeo de que o milecircnio comeccedilaria em 1415

ou 1420

Roquetaillade eacute um exemplo dos diversos tensionamentos sofridos pelo pensamento

joaquita reacionaacuterios ou revolucionaacuterios religiosos ou seculares clericais ou leigos no que

se convencionou chamar de ldquojoaquimismordquo650 Quer no paraiacuteso de Dante651 ou nas cartas de

Colombo652 depois de posta em movimento a roda das apropriaccedilotildees653 joaquimitas natildeo

parou de girar para chegar ateacute nos termos de Delumeau agraves ldquoutopias ideoloacutegicas da eacutepoca

contemporacircneardquo654

De qualquer forma este foi apenas um dos veios pelos quais correu a leitura do

Apocalipse e o levou a influenciar direta ou indiretamente a arte a literatura e a cultura no

Ocidente655 O livro foi catalisador de uma seacuterie de movimentos no correr da histoacuteria como

o grupo camponecircs liderado por Thomas Muntzer no seacuteculo XVI656 e a desastrosa

comunidade de 75 pessoas em torno de David Koresh destruiacuteda por um incecircndio em 1993657

A cada nova geraccedilatildeo de leituras um conjunto de representaccedilotildees emerge com

desdobramentos em subsequentes praacuteticas sociais e religiosas Compete aos historiadores e

649 Delumeau assim descreveu Joaquim ldquoum profeta paciacutefico que semeia germes de violecircnciardquo Cf

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ANEXOS

210

Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1658

658 Mapa presente em DMITRIEV Sviatoslav City government in hellenistic and Roman Asia Minor Oxford

Oxford University Press 2005 p xiv

211

Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2659

659 Mapa presente em DMITRIEV op cit pxvi

212

Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia660

660 Mapa presente em LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge

University Press 2007 p xiii

213

Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185)661

661 Mapa presente em DITCHBURN David MACLEAN Simon MACKAY Angus (eds) Atlas de Europa

medieval Madrid Caacutetedra 2011 p 132

214

Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum662

662 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero Le tavole del Liber Figurarum di

Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000 p 13

215

Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios663

663 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 15

Page 2: VALTAIR AFONSO MIRANDA HISTÓRIA E MILENARISMO NO

Valtair Afonso Miranda

HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO DE PATMOS E NO

EXPOSITIO IN APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE

um estudo comparativo

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Instituto de Histoacuteria Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Histoacuteria

Orientadora

Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva

Rio de Janeiro

2017

CIP ndash Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Miranda Valtair Afonso

M672h Histoacuteria e Milenarismo no Apocalipse de Joatildeo de Patmos e no

Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore um estudo

comparativo Valtair Afonso Miranda -- Rio de Janeiro 2017

215 f

Orientadora Andreia Cristiana Lopes Frazatildeo da Silva

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria

Comparada 2017

1 Apocalipse de Joatildeo 2 Joaquim de Fiore 3 Milenarismo

4 Expositio in Apocalypsim I Silva Andreia Cristina Lopes

Frazatildeo da Orient II Tiacutetulo

BANCA EXAMINADORA

Titulares

Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (orientadora)

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profa Dra Leila Rodrigues da Silva

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof Dr Paulo Duarte Silva

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof Dr Paulo Augusto de Souza Nogueira

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo

Universidade Metodista de Satildeo Paulo

Profa Dra Monica Selvatici

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social

Universidade Estadual de Londrina

Suplentes

Prof Dr Andreacute Chevitarese

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profa Dra Carolina Fortes

Instituto de Histoacuteria

Universidade Federal Fluminense

DEDICATOacuteRIA

Agrave Elizete Rafael e Caroline

pela parceria e pelo companheirismo durante a produccedilatildeo desta pequisa

Agrave Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva

pelas orientaccedilotildees pacientes e significativas para esta jornada acadecircmica

Ao Programa de Estudos Medievais e seus coordenadores

pelo ambiente saudaacutevel de trocas e partilhas

ldquoOs milenaristas tiveram razatildeo de natildeo

desviar seu olhar da cidade terrestre e de natildeo

ver nela apenas um lugar de expiaccedilatildeo do

pecado Queriam realizar na terra um

primeiro esboccedilo da cidade celeste fazer

surgir nela o maacuteximo de felicidade e de

fraternidaderdquo

Jean Delumeau

RESUMO

Esta pesquisa analisou de forma comparativa os elementos milenaristas presentes no

Apocalipse de Joatildeo e no Expositio in Apocalypsim O profeta Joatildeo produziu um texto que

propotildee um milenarismo revolucionaacuterio que rejeita a ordem social romana e convida sua

comunidade a abandonar as estruturas religiosas imperiais especialmente a instituiccedilatildeo do

culto imperial esperando que isso provoque o martiacuterio dos seus membros e instaure os

eventos que culminaratildeo no retorno do Jesus Glorificado agrave terra para derrotar todos os

inimigos dos fieis ressuscitar os martirizados e implementar um reino durante mil anos Este

ldquoreino dos maacutertiresrdquo com Cristo parece ser o resultado de tradiccedilotildees messiacircnicas e

apocaliacutepticas do Judaiacutesmo antigo materializado no final do seacuteculo I no Apocalipse em

funccedilatildeo de traumas da guerra judaico-romana (66-70) de conflitos entre igrejas e sinagogas

e das diferentes respostas de lideres carismaacuteticos agrave questatildeo do relacionamento com a

sociedade romana Joaquim por seu turno esperava que a Terceira Era da histoacuteria da

humanidade culminasse num descanso sabaacutetico sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Apesar

de ser um periacuteodo relativamente curto a Era do Espiacuterito iria trazer sobre a humanidade o fim

dos conflitos que caracterizavam a histoacuteria eclesiaacutestica sob a lideranccedila de um pai espiritual

que governaria a sociedade nos moldes de uma casa monaacutestica Este ldquodescanso dos mongesrdquo

natildeo teve como ponto de partida entretanto diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim

as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que aguardava uma

fase de felicidade na terra anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica do milenarismo

joaquita na parte final do seacuteculo XII pode estar relacionada com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos

como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica

Palavras-chave Milenarismo Apocalipse de Joatildeo Joaquim de Fiore Filosofia da Histoacuteria

ABSTRACT

This research has analyzed in a comparative way the millenarian elements wich are present

in the Revelation of John and in the Expositio in Apocalypsim The prophet John produced

a text that proposes a revolutionary millenarianism which rejects the Roman social order and

invites its community to abandon the imperial religious structures especially the institution

of the imperial cult hoping that this provokes the martyrdom of its members and establishes

the events that will culminate in the return of the Glorified Jesus to the earth to defeat all

enemies of the faithful and to resurrect the martyred and to implement a kingdom for a

thousand years This kingdom of martyrs with Christ seems to be the result of messianic

and apocalyptic traditions of ancient Judaism which were materialized at the end of the first

century in the Apocalypse as a result of traumas of the Jewish-Roman War (66-70) of

conflicts between churches and synagogues and the different responses of charismatic

leaders to the question of the relationship with Roman society Joachim for his part hoped

that the Third Age of human history would culminate in a Sabbath rest under the inspiration

of the Holy Spirit In spite of being a relatively short period the Age of the Spirit would

bring to humanity the end of the conflicts that characterized ecclesiastical history under the

leadership of a spiritual father who would govern society in the mold of a monastic house

This rest of the monks did not have as its starting point however directly the millennium

of the Revelation but rather the historical reflections of Joachim and the tradition of the

refreshing of the saints that awaited a phase of happiness in the land before parousia The

historical emergency of Joachite millenarism in the late 12th century may be related to the

combination of phenomena such as apocalypticism and monastic reform

Abstract Millenarianism Revelation of John Joachim of Fiore Philosophy of History

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA 11

I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO 27

11 O autor do Apocalipse 27

12 A data do Apocalipse 35

13 O propoacutesito do Apocalipse 38

14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse 44

15 Resumo 47

II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA 48

21 Patmos o ponto de partida 48

22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia 50

23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia 52

24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia 54

25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo 59

26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo 61

27 Resumo 63

III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO 65

31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse 65

32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo 67

33 O contexto narrativo do reino milenar 69

34 O episoacutedio do reino milenar 71

35 O reinado messiacircnico interino na terra 76

36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 82

37 Resumo 88

IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 89

41 O autor do Expositio in Apocalypsim 89

42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim 98

43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim 100

44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse 106

45 Resumo 107

V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA SICIacuteLIA 108

51 A chegada dos normandos 110

52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia 111

10

53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen 113

54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada 114

55 A Igreja no Reino da Siciacutelia 118

56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda 121

57 Resumo 124

VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA DE JOAQUIM 126

61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo 126

62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo 130

63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde 134

64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas 137

65 Sensus typicus histoacuteria e profecia 139

66 O dom da exegese 142

67 Resumo 143

VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 144

71 Estrutura literaacuteria do Expositio 144

72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim 146

73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio 154

74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito 159

75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito 165

76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 171

77 Resumo 176

CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO DOS MONGES 178

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 196

ANEXOS 209

Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1 210

Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2 211

Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia 212

Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185) 213

Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum 214

Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios 215

INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA

Possivelmente as igrejas espalhadas pela Aacutesia Menor no final do seacuteculo I se

originaram da atividade religiosa de Paulo de Tarso na regiatildeo a partir do ano 58 da Era

Comum Natildeo havia centralizaccedilatildeo religiosa e cada comunidade se organizava e sobrevivia

do seu proacuteprio jeito Em termos de lideranccedila estas comunidades levantavam seus quadros

internamente privilegiando formatos colegiados Mesmo assim uma antiga atividade

religiosa ainda se manifestava entre as igrejas a profecia Profetas itinerantes viajavam para

pregar suas mensagens em cada comunidade e se moviam em funccedilatildeo da ajuda que recebiam

destes grupos

Um destes profetas ainda dentro do primeiro seacuteculo mas vaacuterias deacutecadas apoacutes o iniacutecio

do movimento de Jesus ficou conhecido por causa de um livro em que registrou o que seriam

visotildees relacionadas com o final dos tempos conhecido como Apocalipse Nesta obra ele se

identificou simplesmente como Joatildeo e escreveu suas ldquorevelaccedilotildees divinamente recebidasrdquo a

respeito de fenocircmenos histoacutericos e realidades sobrenaturais durante uma permanecircncia ou

visita agrave Patmos uma pequena ilha do mar Egeu proacutexima de Mileto e Eacutefeso

O livro de Joatildeo escrito em grego comeccedila com a expressatildeo ldquorevelaccedilatildeo de Jesus

Cristordquo (ldquoApokaluyij vIhsou Cristourdquo) Tal ldquorevelaccedilatildeordquo pode ser dividida em linhas gerais

em trecircs partes cada uma apresentando um conjunto de pequenos episoacutedios interconectados1

Na primeira (Apocalipse 1-3) Joatildeo descreve o aparecimento do ldquoFilho do Homemrdquo que lhe

revela o conteuacutedo de sete cartas que deveriam ser encaminhadas para sete igrejas A segunda

seccedilatildeo da obra (Apocalipse 4-11) registra o que Joatildeo teria visto apoacutes uma viagem espiritual

ao ceacuteu O conteuacutedo desta segunda visatildeo eacute narrado por meio da abertura de um rolo selado

com sete selos Eacute uma histoacuteria modelada pelas tradiccedilotildees judaicas sobre o fim do mundo que

culmina na implantaccedilatildeo de um esperado reino messiacircnico A uacuteltima seccedilatildeo do livro eacute bem

maior (Apocalipse 12-22) consumindo a metade da obra Nela se desdobra a histoacuteria da

guerra entre uma figura demoniacuteaca o Dragatildeo Vermelho e o Cordeiro siacutembolo usado por

Joatildeo para fazer referecircncia a Jesus fundador do movimento morto em Jerusaleacutem no iniacutecio

do seacuteculo No Apocalipse entretanto Jesus estaacute vivo e aparece descrito em categorias

1 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa

Polebridge Press 1998 p 10-16 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro Representaccedilatildeo e

construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 32-38

12

exaltadas como um ser angelical ou mesmo divino Esta narrativa de guerra escatoloacutegica eacute

uma estrateacutegia do autor para descrever a histoacuteria na forma de conflitos violecircncia e morte

tanto dos seguidores de Jesus quanto dos seguidores do Dragatildeo num processo contiacutenuo que

terminaria na intervenccedilatildeo divina para a construccedilatildeo de uma realidade paradisiacuteaca

transcendental que Joatildeo chamou de Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 211-27) Esta realidade

para aleacutem da histoacuteria entretanto seria precedida pela realizaccedilatildeo histoacuterica de um reino na

terra durante um periacuteodo de mil anos (Apocalipse 201-10)

Haacute evidecircncias de leitura e uso religioso do Apocalipse durante os dois primeiros

seacuteculos por parte de diversos liacutederes de igrejas Estes primeiros leitores enfatizavam

especialmente a passagem do Apocalipse que fala do periacuteodo de mil anos de governo de

Jesus Cristo na terra ao lado dos seus seguidores Por causa desta ecircnfase no milecircnio estes

primeiros leitores foram chamados eventualmente de quiliastas (termo derivado da palavra

grega traduzida como ldquomilrdquo)2

Nem todas as igrejas entretanto deram o mesmo tratamento para o Apocalipse No

periacuteodo de Euseacutebio de Cesareia (265-339) algumas rechaccedilavam a obra joanina enquanto

outras o contavam entre ldquoos livros admitidosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XXV 1-4) De

qualquer forma a obra de Joatildeo de Patmos acabou se fixando no cacircnon do Novo Testamento

cristatildeo fenocircmeno que no Ocidente se deu mais cedo do que no Oriente Em 397 o Siacutenodo

de Cartago reconheceu-o como texto sagrado e na igreja grega no fim do seacuteculo quinto ele

jaacute tinha aceitaccedilatildeo geral3 A partir de entatildeo ele seraacute lido como obra sagrada pelas diversas

comunidades cristatildes tornando-se elemento significativo no fornecimento de imagens e

siacutembolos para composiccedilatildeo de diversas representaccedilotildees sociais antigas e medievais

Mais de mil anos depois de Joatildeo nasceu em Celico na Calaacutebria sul da Peniacutensula

Itaacutelica um homem chamado Joaquim Quando jovem foi educado para atuar como notaacuterio

a serviccedilo do Reino Normando da Siciacutelia mas acabou deixando a corte para abraccedilar a vocaccedilatildeo

monaacutestica Ele comeccedilou a vida religiosa como eremita mas depois ingressou em um

pequeno cenoacutebio em Corazzo na Calaacutebria terminando por fundar no final da vida uma

casa monaacutestica em Fiore a fim de receber os vaacuterios disciacutepulos que desejavam segui-lo Este

monge de meados do seacuteculo XII produziu uma longa reflexatildeo sobre a histoacuteria lastreada

sobre a exegese dos textos biacuteblicos sobre o dogma trinitaacuterio e principalmente sobre o livro

2 WAINWRIGHT Arthur W Mysterious Apocalypse interpreting the Book of Revelation Wipf and Stock

Publishers Eugene 2001 p 21 3 Idem p 33-34

13

do visionaacuterio de Patmos Segundo ele o curso inteiro da histoacuteria estaria ldquoescondidordquo no

Apocalipse embora suas reflexotildees sejam primariamente dirigidas para a histoacuteria da igreja

desde o nascimento de Jesus ateacute a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de felicidade na terra Joaquim

escreveu vaacuterias obras em que trabalhou este mesmo tema4

- Expositio de prophetia ignota Romae reperta Foi composta em 1184 apoacutes o

encontro entre Joaquim e o papa Luacutecio III e consiste na interpretaccedilatildeo de um texto encontrado

entre os documentos do falecido cardeal Matias de Angers relacionado com profecias cristatildes

tradicionais a respeito do fim dos tempos

- De septem sigillis Eacute um pequeno opuacutesculo composto por Joaquim para servir de

guia e resumo do seu esquema das perseguiccedilotildees paralelas do Antigo e Novo Testamentos

baseado nos sete selos do Apocalipse de Joatildeo

- Enchiridion super Apocalypsim Eacute um manual sobre o Apocalipse e deveria servir

de introduccedilatildeo agrave obra joanina Foi escrito durante o periacuteodo que Joaquim passou em

Casamari entre os anos 1183 e 1184

- Praephatio super Apocalypsim Eacute a reuniatildeo de dois pequenos sermotildees de Joaquim

sobre o Apocalipse de Joatildeo pregados possivelmente para os monges de Corazzo Foram

reunidos posteriormente e circularam como uma uacutenica obra por causa de afinidades

temaacuteticas Eacute a uacutenica obra de Joaquim traduzida para a liacutengua portuguesa5

- Adversus Iudaeos No formato de tratado este texto descreve uma expectativa de

conversatildeo geral dos judeus no final dos tempos

- De ultimis tribulationibus Pequeno texto em forma de oraccedilatildeo possivelmente

declamado durante um encontro lituacutergico no mosteiro de Fiore

- Expositio in Apocalypsim Joaquim o iniciou em 1183-1184 mas soacute foi concluiacutedo

entre 1198 e 1200 Eacute tambeacutem a maior obra de Joaquim escrita num latim denso e complexo

Eacute possiacutevel dizer entatildeo que o abade de Fiore desde que abraccedilou a vocaccedilatildeo

monaacutestica decidiu fazer o que Bernard McGinn chamou de ldquocomer o Apocalipserdquo ou digeri-

lo lentamente analogia ao texto do Apocalipse em que o visionaacuterio eacute convidado a comer um

4 Quanto agrave data das obras cf TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di

Gioacchino da Fiore In GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p

73-106 Para uma lista dos manuscritos joaquimitas cf REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the

Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 511-519 5 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse Veritas Porto Alegre v 47 n 3 p 453-471 2002

BERNARDI Orlando Comentaacuterio ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla

Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010

14

livro entregue por um anjo 6 Dentre seus vaacuterios textos evidentemente o destaque fica para

o Expositio jaacute que representa o trabalho final do abade sobre a obra joanina

A partir destes dois personagens o que fizemos nesta tese foi analisar de forma

comparativa o Apocalipse de Joatildeo e o Expositio de Joaquim Em funccedilatildeo mesmo da extensatildeo

das obras e das dificuldades provocadas pelas distacircncias geograacuteficas e temporais entre elas

focaremos na categoria descrita como ldquomilenarismordquo7 e os recortes textuais de Apocalipse

201-10 bem como sua apropriaccedilatildeo na seacutetima parte do Expositio in Apocalypsim (209v-

213r) Em termos especiacuteficos indagaremos sobre a forma como Joaquim interpretou o

milecircnio do Apocalipse e a concepccedilatildeo milenarista que aparece no final

Eacute preciso destacar que cada um de nossos objetos de pesquisa tem sua proacutepria

historiografia Sobre Joatildeo de Patmos e seu Apocalipse por exemplo eacute preciso mencionar

primeiramente o grande volume de obras que se propotildee a fazer uma interpretaccedilatildeo semi-

literal esperando que as visotildees de Joatildeo se convertam em cenas histoacutericas de futuro proacuteximo

tomando o livro joanino como um depoacutesito de profecias predominantemente de

cumprimento iminente Esta tradiccedilatildeo interpretativa nas suas principais configuraccedilotildees

contemporacircneas parecem retroceder a John Nelson Darby (1800-1882) e agraves notas da Biacuteblia

de Estudo Scofield cuja primeira ediccedilatildeo saiu em 19098 Nesta linha eacute possiacutevel mencionar

obras de enorme circularidade como The Late Great Planet Earth (1970) de Hal Lindsey

que vendeu mais de 20 milhotildees de exemplares na sua primeira deacutecada de publicaccedilatildeo9 ou a

seacuterie de dez novelas de Tim LaHaye e Jerry Jenkins intitulada Left Behind escritas de 1995

ateacute 2002 que ultrapassou a quantia de 63 milhotildees de coacutepias vendidas em 37 paiacuteses e 33

liacutenguas diferentes10 Esta tradiccedilatildeo pode ser caracterizada por algumas ecircnfases gerais como

a ideia de um arrebatamento secreto dos crentes fieacuteis a Jesus a conversatildeo final dos judeus

ao Cristianismo e um periacuteodo milenar de felicidade na terra O Apocalipse eacute tratado como

6 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale Gecircnova

Casa Editrice Marietti 1990 p 159 A passagem em questatildeo se encontra em Apocalipse 10 7 Adotamos aqui a concepccedilatildeo de ldquomilenarismordquo do historiador inglecircs Norman Cohn entendendo-a como um

tipo particular de utopia salvacionista que apresenta os seguintes traccedilos gerais coletiva jaacute que todos os fieacuteis

experimentariam a felicidade terrena em funccedilatildeo do fato de que essa felicidade seria alcanccedilada neste mundo e

natildeo numa realidade transcendente total pois aguarda uma completa inversatildeo de todos os males da terra

iminente jaacute que essa transformaccedilatildeo completa estaria perto de comeccedilar e miraculosa agrave luz da certeza de que

essa mudanccedila contaria com a ajuda de seres sobrenaturais Cf COHN Norman Na senda do milecircnio

milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 8 Sobre o papel significativo de John Nelson Darby e a Biacuteblia de Estudo Scofield na interpretaccedilatildeo

contemporacircnea do Apocalipse cf KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford

Blackwell Publishing 2004 p 24-25 WAINWRINGHT op cit p 82-83 9 WAINWRINGHT op cit p 84 10 MONAHAN Torin Marketing the beast Left Behind and the apocalypse industry Media Culture amp

Society Thousand Oaks n 30 p 813-830 2008 p 817

15

parte de um grande quebra-cabeccedila que revelaria por meio de coacutedigos e imagens eventos

dos dias contemporacircneos como o papel dos Estados Unidos no aparecimento do Anticristo

ou o surgimento de um liacuteder poliacutetico de origem socialista como o falso profeta de Apocalipse

13

Do outro lado normalmente vinculados a instituiccedilotildees universitaacuterias estatildeo

pesquisadores cujo foco reside em aspectos histoacutericos do Apocalipse Estudiosos desta linha

histoacuterica se preocupam com a relaccedilatildeo entre Joatildeo e o tempo de produccedilatildeo do Apocalipse

Sendo assim eles procuram perceber ateacute onde o autor na sua narrativa apocaliacuteptica reflete

os medos e esperanccedilas dos grupos que representa ou antagoniza Esses autores tendem a

procurar similaridades entre as visotildees de Joatildeo e eventos contemporacircneos do primeiro seacuteculo

Eles estudam as razotildees que teriam levado o autor ateacute a ilha de Patmos ateacute que ponto o

Impeacuterio Romano promoveu algum tipo de desconforto para as igrejas e as implicaccedilotildees do

governo de Domiciano sobre o movimento de Jesus no final do primeiro seacuteculo Essas

ecircnfases histoacutericas podem ser encontradas por exemplo em R H Charles11 G B Caird12

A Y Collins13 C Rowland14 Leonard Thompson15 C Bauckham16 E S Fiorenza17 e

David Aune18 Estudos como os de C J Hemer19 ainda podem ser uacuteteis para esclarecer

aspectos especiacuteficos das igrejas da Aacutesia menor

Uma significativa tendecircncia de pesquisa eacute a que busca trabalhar o livro de Joatildeo agrave luz

de questotildees como retoacuterica20 e gecircnero21 Esta linha transita do meacutetodo histoacuterico e literaacuterio

para um paradigma de interpretaccedilatildeo retoacuterica Dentro dessa tendecircncia estuda-se a obra de

11 CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New York Charles

Scribner amp Sons 1920 12 CAIRD G B A Commentary on the Revelation of St John the Divine New York Harper amp Row Publishers

1966 13 COLLINS Adela Yarbro The Apocalypse Wilmington Michael Grazier Inc 1982 14 ROWLAND Christopher The Open Heaven A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity

London SPCK 1982 15 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University

Press 1990 16 BAUCKHAM Richard The cliacutemax of Prophecy London T amp T Clark 1993 17 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation Vision of a Just World Minneapolis Augsburg Fortress 1991 18 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 AUNE David E Revelation

6-16 Nashville Thomas Nelson Publishers 1998 AUNE David E Revelation 17-22 Nashville Thomas

Nelson Publishers 1998 19 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield

Academic Press Ltd 1986 20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In

BARR David L (ed) The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta

Society of Biblical Literature 2006 p 243-269 21 PIPPIN Tina The heroine and the whore fantasy and the female in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 60 p 67-90 1992

16

Joatildeo em busca da funccedilatildeo almejada para cada seccedilatildeo ou narrativa do livro percebendo-as

como discursos que buscavam retoricamente convencer uma audiecircncia determinada acerca

das posturas idealizadas por Joatildeo vistas de uma maneira geral como asceacuteticas e sectaacuterias

O Apocalipse assim refletiria a tendecircncia de um profeta judeu que cria em Jesus como o

Messias e se percebia em crise com a sociedade22

A sociologia e a antropologia forneceram aos estudiosos importantes instrumentos

de anaacutelise que nas uacuteltimas deacutecadas comeccedilaram igualmente a resultar em influentes

publicaccedilotildees Festinger23 Norman Cohn24 e John Gager25 trabalharam o apocalipse

vinculando-o aos estudos de milenarismo e a movimentos religiosos sectaacuterios A obra de

Joatildeo poderia ser vista entatildeo como o resultado de uma comunidade oprimida em confronto

com uma dissonacircncia cognitiva difiacutecil de ser conciliada com a realidade O resultado eacute a

construccedilatildeo de um mundo simboacutelico alternativo e a projeccedilatildeo de temores e ressentimentos

para o futuro por meio das imagens apocaliacutepticas

No contexto latino-americano eacute possiacutevel apontar a contribuiccedilatildeo de autores que

aplicam ao Apocalipse uma hermenecircutica da libertaccedilatildeo O livro eacute utilizado para interpretar

realidades poliacuteticas e sociais de opressatildeo contra pobres e marginalizados Dentro desta

perspectiva a obra joanina deveria servir de instrumento para promoccedilatildeo de esperanccedila de

uma vida melhor bem como para estimular resistecircncia a situaccedilotildees de violecircncia e injusticcedila

Leituras deste tipo podem ser encontradas por exemplo em Mester e Orofino26 e Pablo

Richard27

Surgiu em Satildeo Paulo na virada do seacuteculo um grupo de estudiosos vinculados agrave

UMESP voltados para trabalhar o Apocalipse literaturas a ele relacionadas e o cristianismo

dos primoacuterdios por uma oacutetica multi-disciplinar onde os temas satildeo analisados com o apoio

de diversos olhares derivados das ciecircncias da religiatildeo Antropologia da religiatildeo sociologia

da religiatildeo fenomenologia da religiatildeo psicologia da religiatildeo histoacuteria das religiotildees religiotildees

22 Entre outros conferir SILVA David A de The Revelation to John a case study in apocalyptic propaganda

and the maintenance of sectarian identity Sociological Analysis Oxford v 53 n 4 p 375-395 1992 SILVA

David A de The social setting of the Revelation to John Conflicts within fears without Westminster

Theological Journal Philadelfia v 54 p 273-302 1992 23 FESTINGER Leon (ed) When prophecy fails a social and psychological study of a modern group that

predicted the destruction of the world London Pinter amp Martin Ltda 2008 24 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 25 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 26 MESTERS Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo A teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis

Vozes 2003 27 RICHARD Pablo Apocalipse reconstruccedilatildeo da esperanccedila Petroacutepolis Vozes 1996

17

comparadas e estudos literaacuterios Nesta linha trabalham autores como Paulo Nogueira28 e Joseacute

Adriano Filho29 entre outros

Jaacute a historiografia de Joaquim de Fiore parece ter sofrido um incremento a partir das

pesquisas de Herbert Grundmann no iniacutecio do seacuteculo XX30 Grundmann focava na produccedilatildeo

de uma biografia de Joaquim daiacute seu interesse nas hagiografias e narrativas antigas sobre o

abade Em 1960 ele editou duas destas antigas narrativas uma anocircnima e outra atribuiacuteda a

Rainers de Ponza que se tornaram entatildeo fontes fundamentais dos estudiosos

contemporacircneos sobre o abade de Fiore

No mesmo periacuteodo em que Grundmann pesquisava na Alemanha Ernesto Buonaiuti

especialmente a partir de 1930 trabalhava na Itaacutelia na ediccedilatildeo das obras de Joaquim de

pequeno porte O pesquisador italiano chegou a produzir uma anaacutelise abrangente do

pensamento joaquimita31 poreacutem concentrou-se em disponibilizar para os pesquisadores

ediccedilotildees criacuteticas das obras Ele tambeacutem traduziu algumas dessas obras para a liacutengua italiana

Outros estudiosos se envolveram no mesmo ofiacutecio de Buonaiuti fazendo com que as

seguintes obras jaacute apresentassem ediccedilotildees criacuteticas Tractatus super Quatuor Evangelia

(1930) De articulis fidei e Sermotildees (1936) Epistola universis Christi fidelibus e Epistola

domini Valdonensi (1937) Dialogi de prescientia Dei et predestinatione electorum (1938)

Enchiridion in Apocalypsim (1938) Hymnus de paacutetria coelesti (1899) Visio admiranda de

gloria paradisi (18991938) De vita sancti Benedicti et de officio divino secundum ejus

doctrinam (1951) Liber Figurarum (1953) Super flumina Babylonis (1953) De septem

sigillis (1954) Adversus Iudeos (1957) Carta Testamentaacuteria (1960)

Das grandes obras de Joaquim entretanto apenas uma recebeu ediccedilatildeo parcial E

Randolph Daniel editou Liber Condordiae Novi ac Veteris Testamenti32 As outras duas

Expositio in Apocalypsim e Psalterium decem chordarum somente estatildeo acessiacuteveis pelas

ediccedilotildees da Junta de Veneza (seacuteculo XVI) reimpressas em 19641965 pela Editora Minerva

de Frankfurt

28 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza (org) Religiatildeo de visionaacuterios apocaliacuteptica e misticismo no

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Loyola 2005 29 ADRIANO FILHO Joseacute O Apocalipse de Joatildeo como relato de uma experiecircncia visionaacuteria Anotaccedilotildees em

torno da estrutura do livro Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana Satildeo Paulo n 34 p 7-29 1999 30 GRUNDMANN Herbert Studien uumlber Joachim von Floris GMBH Springer Fachmedien Wiesbaden

1927 Para a historiografia anterior a Grundmann cf LA PINA George Joachim of Flora a critical survey

Speculum Cambridge v 7 n 2 p 257-282 1932 31 BUONAIUTI Ernesto Gioacchino da Fiore I tempi La vita Il messaggio Roma Consenza 1931 32 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Noui ac Veteris Testamenti

Independence Square American Philosophical Society 1983

18

O trabalho editorial das obras de Joaquim tem sido pontual e esporaacutedico Ainda haacute

muito espaccedilo para reflexotildees nesta aacuterea mesmo do material jaacute editado no iniacutecio do seacuteculo

XX em funccedilatildeo do avanccedilo no trabalho de restauraccedilatildeo de manuscritos antigos Vaacuterias obras

de Joaquim ainda precisam ser traduzidas para liacutenguas modernas o que facilitaria a pesquisa

e a compreensatildeo de seus textos Neste sentido eacute uacutetil apontar o trabalho de um dos membros

do conselho editorial do Centro Internazionale di Studi Gioachamiti Gian Luca Potestagrave Este

conselho desde que foi formado em 199533 tem como propoacutesito reeditar as obras de

Joaquim do iniacutecio do seacuteculo e promover a ediccedilatildeo de obras ainda natildeo editadas Potestagrave precisa

ser mencionado por ser um dos principais bioacutegrafos atuais de Joaquim especialmente depois

de sua obra Il tempo dellacuteApocalisse34

O professor alematildeo Kurt-Victor Selge outro membro do conselho editorial acima

mencionado argumentou que pelo menos trecircs fatores atrasaram a produccedilatildeo de ediccedilotildees

criacuteticas de Joaquim Primeiramente faltou apoio de alguma instituiccedilatildeo religiosa como

aquele que o luteranismo alematildeo deu para as Ediccedilotildees de Weimar das obras de Lutero ou o

papado para a Editio Leonina de Tomaacutes de Aquino a Ordem Florense fundada pelo abade

que poderia ser este apoio se enfraqueceu apoacutes sua morte ateacute desaparecer no seacuteculo XVI

por fim Joaquim se converteu num marginalizado da histoacuteria do pensamento cristatildeo Mesmo

sendo saudado por revolucionaacuterios e iluministas tal aceitaccedilatildeo natildeo se traduziu na fundaccedilatildeo

de alguma instituiccedilatildeo Nesse sentido o renovado interesse em Joaquim a partir do iniacutecio do

seacuteculo XX poderia ser explicado pelo aparecimento de uma ala modernista dentro da Igreja

Catoacutelica que buscava uma figura que legitimasse seu interesse por uma igreja mais livre e

pela busca de historiadores e filoacutesofos que se perguntavam por formas adequadas de vida

comunitaacuteria que poderiam mitigar a crise que a sociedade europeia carregava desde o seacuteculo

XIX As ideias de Joaquim chamaram a atenccedilatildeo desses estudiosos em nuacutemero cada vez

maior especialmente na Itaacutelia e Alemanha e depois tambeacutem na Espanha Inglaterra e

Estados Unidos35

Um outro tipo de pesquisa se debate natildeo com o proacuteprio Joaquim mas com o

desdobrar do seu pensamento dando origem ao que se convencionou chamar de

joaquimismo Pesquisadores desta linha se concentram em encontrar a influecircncia de Joaquim

33 HONEacuteE Eugegravene Joachim of Fiore The development of his life and the genesis of his works and doctrines

About the merits of Gian Luca Potestagraveacutes new biography Church History and Religious Culture Leida v 87

n 1 p 47-74 2007 p 49 34 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 35 Conferir esta anaacutelise em SELGE Kurt-Victor La edicioacuten criacutetica de las Opera omnia de Joaquiacuten de Fiore

Anuario de Historia de la Iglesia Navarra n 11 p 89-94 2002

19

em pensadores e escritores posteriores Em especial alguns estatildeo envolvidos em demonstrar

quais ideias de Joaquim deram iacutempetos a outras figuras e movimentos importantes Neste

acircmbito se situam autores como Marjorie Reeves36 Bernard McGinn37 e Henri de Lubac38

Estes livros se tornaram ponto de partida recente para os estudos sobre a influecircncia de

Joaquim e o desenvolvimento do joaquimismo

Nesta tendecircncia ainda se situam estudos que procuram sua contribuiccedilatildeo para a

teologia e a filosofia da histoacuteria em especial No primeiro caso apontamos Juumlrgen

Moltmann e o seu livro The Trinity and the Kingdom (1981) No segundo indicamos

pesquisadores brasileiros como Vicente Dobroruka e a busca pela relaccedilatildeo de Joaquim com

o pensamento de Ephraim Lessing (1995)39 e Noeli Dutra Rossatto sobre a relaccedilatildeo entre

Trindade e histoacuteria (2004)40 Eacute do historiador brasileiro Dobroruka a avaliaccedilatildeo de que o

sistema profeacutetico de Joaquim eacute considerado um dos pilares da moderna reflexatildeo acerca do

sentido da histoacuteria41

A partir das pontes levantadas pela historiografia aproximamo-nos das questotildees por

meio de um conjunto de conceitos oriundos da abordagem da histoacuteria cultural especialmente

promovidos pelo historiador francecircs Roger Chartier praacutetica representaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo42

Uma de suas aacutereas de pesquisa busca compreender as formas como a produccedilatildeo e recepccedilatildeo

de objetos culturais atuam na configuraccedilatildeo do mundo social Essa abordagem se mostra

revelante para nossa pesquisa justamente por promover uma histoacuteria do livro da leitura ou

das interpretaccedilotildees sociais o que nos ajuda a entender a operaccedilatildeo realizada por Joaquim de

Fiore e Joatildeo de Patmos em seus respectivos contextos Ambos satildeo produtores e receptores

de textos e tradiccedilotildees e consequemente por meio de suas praacuteticas e apropriaccedilotildees atuaram

na construccedilatildeo de novas representaccedilotildees sociais

36 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976

REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit 37 MCGINN Bernard The calabrian abbot Joachim of Fiore in the history of Western Thought New York

Macmillan Pub Co 1985 38 De LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore Madri Ediciones Encuentro 2011 39 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore Revista

Muacuteltipla Brasiacutelia v 5 n 8 p 9-28 2000 Cf tambeacutem sua obra DOBRORUKA Vicente Histoacuteria e

milenarismo ensaios sobre tempo histoacuteria e o milecircnio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 40 ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 41 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore op cit p 9 42 A noccedilatildeo de ldquopraacuteticardquo eacute intercambiaacutevel com produccedilatildeo cultural ldquoapropriaccedilatildeordquo tem relaccedilatildeo com recepccedilatildeo

cultural ldquorepresentaccedilatildeordquo entretanto carrega certa ambiguidade Em alguns momentos Chartier a usa para

falar de estruturas em outro do conteuacutedo das estruturas Cf CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre

praacuteticas e representaccedilotildees Algeacutes Difusatildeo Editorial 2002 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo

Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191 1991

20

Eacute possiacutevel entender as representaccedilotildees como classificaccedilotildees divisotildees e delimitaccedilotildees

que organizam a apreensatildeo do mundo social Elas satildeo categorias intelectuais elementos

mentais estruturantes da realidade exterior subjetivaccedilotildees de realidades materiais

organizadas segundo determinados padrotildees O ser humano jaacute nasce mergulhado num mundo

construiacutedo Ele natildeo participou de sua construccedilatildeo mas em algum momento precisou introjetaacute-

lo e estruturaacute-lo subjetivamente para que ele se tornasse o seu proacuteprio mundo43 Estas

representaccedilotildees individuais ou coletivas geram praacuteticas culturais como a produccedilatildeo de um

livro a verbalizaccedilatildeo dos discursos a idealizaccedilatildeo de comportamentos e valores especiacuteficos

em detrimento da estigmatizaccedilatildeo de outros

A noccedilatildeo dupla de representaccedilotildees e praacuteticas se constitui como poacutelo de um processo

amplo jaacute que natildeo apenas as representaccedilotildees geram praacuteticas mas tambeacutem as praacuteticas geram

representaccedilotildees O tal mundo social como representaccedilatildeo eacute formado por um processo

contiacutenuo de moldes e formas manifestados em discursos que tanto o apreendem quanto o

estruturam44 Numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre as praacuteticas e representaccedilotildees Chartier aponta

a apropriaccedilatildeo entendida como o processo pelo qual um sentido eacute historicamente

produzido45 Apropriaccedilatildeo tem a ver com construccedilatildeo de sentido interpretaccedilatildeo categoria uacutetil

para problematizar a dinacircmica entre sujeito produtor de cultura e sujeito consumidor de

cultura Um livro como objeto da cultura eacute o resultado da produccedilatildeo de sentido de um autor

mas tambeacutem gerador de sentidos nas matildeos de um leitor que se apropria da obra e cria novos

significados Uma anaacutelise das apropriaccedilotildees teria relaccedilatildeo com as condiccedilotildees e os processos de

produccedilatildeo de sentido Cabe descobrir como isso se daacute e verificar as novas formas

constitutivas de mundo46 a partir da leitura ou audiccedilatildeo jaacute que textos podem ser lidos ou

ouvidos em espaccedilos privados ou puacuteblicos Segundo Chartier a apropriaccedilatildeo natildeo se daacute de

forma passiva jaacute que quem recebe um texto pode promover uma apropriaccedilatildeo seletiva ou

mesmo criativa transformando e ateacute negando o sentido do texto lido47 Joaquim por

exemplo construiu um comentaacuterio biacuteblico gecircnero literaacuterio voltado primariamente para

buscar e criar sentidos atraveacutes da apropriaccedilatildeo do texto do Apocalipse de Joatildeo

43 BERGER Peter LUCKMANN Thomas A construccedilatildeo social da realidade tratado de sociologia do

conhecimento Petroacutepolis Vozes 1973 p 87 44 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 23 45 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 179 46 Para os socioacutelogos Berger e Luckmann ldquomundordquo eacute aquilo que as pessoas reconhecem ou entendem existir

independente de sua vontade ou independente delas Cf BERGER Peter LUCKMANN Thomas op cit p

10 47 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 10

21

Daiacute a necessidade de buscar as praacuteticas que organizam os modos de relacionamento

com os textos diferenciadas histoacuterica e socialmente48 Cada comunidade grupo ou

sociedade tem sua proacutepria maneira de ler e interpretar Haacute processos historicamente

condicionados de padronizaccedilatildeo de escrita (gecircnero literaacuterio) da mesma forma como de

leitura que criam limites para o que eacute possiacutevel escrever mas tambeacutem para o que eacute possiacutevel

ver no que estaacute escrito Satildeo as determinaccedilotildees enquadramentos e condicionamentos que

viabilizam tanto a produccedilatildeo quando a apropriaccedilatildeo de uma obra

A apropriaccedilatildeo eacute para o historiador francecircs uma relaccedilatildeo sempre dinacircmica e

dependente de uma seacuterie de fatores Neste sentido as determinaccedilotildees podem se materializar

em situaccedilotildees como a forma em que o manuscrito foi acessado o tipo de material os

procedimentos de leitura a competecircncia dos inteacuterpretes os viacutenculos sociais dos leitores ou

o espaccedilo da audiccedilatildeo49 Os atos de ler e interpretar estatildeo situados no limite entre leitores

determinados por suas posiccedilotildees e textos cujos significados dependem da forma como se

apresentam os discursos e as maneiras como eles satildeo acessados

A leitura neste caso pode gerar tanto representaccedilotildees quanto praacuteticas que natildeo se

identificam completamente com as do texto lido ou com o que o autor tentou imprimir em

sua obra50 Leitores inventam nos textos algo diferente daquilo que seria alguma intenccedilatildeo

autoral A leitura fragmenta o texto junta partes distantes preenche brechas e cria sentidos

Essa dinacircmica entre autor e leitor viabiliza o que Chartier chama de histoacuteria social

das interpretaccedilotildees ou anaacutelise das determinaccedilotildees fundamentais (sociais institucionais

culturais) dos textos e das leituras51 Daacute origem tambeacutem a uma histoacuteria da exegese ou da

hermenecircutica dos textos

O relacionamento das praacuteticas representaccedilotildees e apropriaccedilotildees se articulam com o

mundo social principalmente por trecircs aspectos

- o mundo eacute construiacutedo de forma contraditoacuteria pelos diferentes grupos que compotildeem

uma sociedade a partir de classificaccedilotildees e recortes que produzem as representaccedilotildees

- as praacuteticas promovem uma determinada identidade social uma definida maneira de

ser no mundo a indicaccedilatildeo simboacutelica de uma posiccedilatildeo ou um estatuto

- a proacutepria existecircncia do grupo ou da comunidade eacute marcada e confirmada pelas

formas institucionalizadas e objetivadas que se derivam das praacuteticas Eacute neste sentido que

48 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 181 49 Idem 50 Idem p 59 51 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 26 e 131

22

indiviacuteduos representam instituiccedilotildees e textos se tornam representativos de determinadas

posiccedilotildees sociais

Aqui Chartier alerta para um tipo de luta que natildeo eacute entre classes sociais mas entre

representaccedilotildees diferentes ou formas rivais defendidas por cada grupo para ordenar e

hierarquizar o mundo social52

Chartier nos ajudou a entender Joatildeo e Joaquim como mergulhados em diferentes lutas

de representaccedilotildees53 Nos seus textos eles manifestam conflitos sociais viacutenculos

institucionais e praacuteticas culturais Ambos em suas respectivas conjunturas histoacutericas satildeo

simultaneamente autor e leitor Eles se apropriam de fontes anteriores ou contemporacircneas

imprimindo nelas suas proacuteprias estrateacutegias de consumo de texto produzindo novos sentidos

que se materializaram em suas subsequumlentes obras Em vaacuterios momentos desta pesquisa nos

detemos em questotildees sobre as fontes que cada um leu como elas foram lidas e os sentidos

entatildeo construiacutedos Especialmente no caso do abade ele eacute um leitor expliacutecito do Apocalipse

de Joatildeo e seu comentaacuterio o resultado formal desta leitura

Nosso corpus documental assim leva em conta estes dois objetos de pesquisa com

histoacuterias textuais bem diferentes Enquanto o Apocalipse por fazer parte do cacircnon cristatildeo

tem o suporte das chamadas Sociedades Biacuteblicas54 o Expositio nem mesmo tem uma ediccedilatildeo

criacutetica

Em termos concretos existem cinco tipos de testemunhas55 do texto do Apocalipse

- seis papiros todos fragmentaacuterios

- onze manuscritos unciais trecircs deles com o texto completo

- 293 manuscritos minuacutesculos

- citaccedilotildees patriacutesticas

52 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 182 53 Em algum momento eacute possiacutevel que mesmo universos conflitantes sobrevivam simultaneamente Eacute o caso de

um grupo que constroacutei uma subsociedade dentro da sociedade maior formando uma espeacutecie de refuacutegio e base

para a manutenccedilatildeo do seu mundo dissidente Para isso ele precisa criar procedimentos para proteger a

existecircncia precaacuteria dessa subsociedade das ameaccedilas que vecircm de fora Um dos mais importantes procedimentos

seraacute a limitaccedilatildeo dos relacionamentos significativos para exclusiva ou predominantemente dentro do grupo

Os membros do grupo devem evitar se relacionar significativamente com pessoas de fora que possuem visotildees

divergentes de mundo surgindo entatildeo um comportamento sectaacuterio Cf NEWSOM Carol A The Self as

Symbolic Space Constructing Identity and Community at Qumran Atlanta Society of Biblical Literature

2007 p 12 54 Sobre a produccedilatildeo do texto criacutetico do Apocalipse cf DELOBEL J Le texte de lApocalypse Problegravemes de

meacutethode In Lambrecht (ed) LrsquoApocalypse Johannique et lrsquoApocalyptique dans le Nouveau Testament

Louvain University Press 1980 p 151-166 AUNE David E Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-clix 55 O termo ldquotestemunhardquo eacute usado em ediccedilotildees criacuteticas e obras de criacutetica textual do Novo Testamento para fazer

referecircncia a fontes que conteacutem de forma completa ou fragmentaacuteria o texto biacuteblico como por exemplo um

manuscrito uma traduccedilatildeo antiga uma citaccedilatildeo antiga ou uma transcriccedilatildeo em artefatos arqueoloacutegicos

23

- traduccedilotildees antigas

Estas testemunhas formam a base sobre a qual trabalham os estudiosos que preparam

ediccedilotildees criacuteticas do Apocalipse Dentre essas as trecircs primeiras (papiros unciais e

minuacutesculos) destacam-se na reconstruccedilatildeo do que teria sido o autoacutegrafo56 do Apocalipse pela

relaccedilatildeo direta com o grego idioma de origem da obra joanina

Os seis papiros (P18 P24 P43 P47 P85 e P98) contecircm apenas fragmentos de texto O

mais antigo destes o P98 datado para um periacuteodo tatildeo recuado quanto o seacuteculo II e

consequentemente a mais antiga testemunha textual do Apocalipse preserva apenas

Apocalipse 113-20 Os demais papiros foram produzidos entre os seacuteculos III e V57

Dentre os 11 manuscritos unciais relacionados com o Apocalipse (a A C P 046

051 052 0163 0169 0207 0229) apenas trecircs deles possuem o Apocalipse na sua forma

completa (a A e 046) Os demais preservaram apenas fragmentos como o MS 0169 que

conteacutem apenas Apocalipse 319-43Trecircs deles satildeo datados para o seacuteculo IV (a 0169 e 0207)

trecircs para o seacuteculo V (A C e 0163) um para os seacuteculos VII-VIII (0229) um para o seacuteculo IX

(P) e trecircs para o seacuteculo X (046 051 e 052) Isso significa que a coacutepia completa mais antiga

do texto grego do Apocalipse estaacute no MS a do seacuteculo IV localizado no London British

Museum58

293 manuscritos minuacutesculos satildeo conhecidos por conter pelo menos alguma parte do

Apocalipse Um eacute coacutepia do seacuteculo IX oito do seacuteculo X 35 do seacuteculo XI 30 do seacuteculo XII

58 do seacuteculo XIV 57 do seacuteculo XV 40 do seacuteculo XVI 13 do seacuteculo XVII cinco do seacuteculo

XVIII e dois do seacuteculo XIX Os outros 44 manuscritos minuacutesculos apresentam dificuldades

para a dataccedilatildeo com sugestotildees que variam do seacuteculo IX ateacute o XV59

O conjunto das jaacute mencionadas testemunhas textuais com a inclusatildeo das citaccedilotildees

patriacutesticas e as traduccedilotildees antigas pode ser estruturado em quatro tradiccedilotildees textuais

56 Termo utilizado para fazer referecircncia a um hipoteacutetico texto original Como os originais se perderam a funccedilatildeo

dos estudiosos eacute reconstruiacute-los por meio de comparaccedilatildeo e colagem de diversos tipos de testemunhas seguindo

criteacuterios como antiguidade estilo origem do manuscrito famiacutelia de manuscritos entre outros Conferir uma

descriccedilatildeo destes procedimentos em ALAND Kurt ALAND Barbara The text of the New Testament an

introduction to the critical editions and to the theory and practice of modern textual criticism Grand Rapids

William B Eerdmans Publishing Company 1989 p 280-316 ELLIOTT J K New Testament textual

criticism the application of thoroughgoing principles Leiden Brill 2010 p 13-52 VAGANAY Leon An

introduction to the New Testament textual criticism Cambridge Cambridge University Press 1982 p 52-88 57 AUNE David Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-cxxxviii 58 Idem p cxxxviii 59 Conferir a lista completa dos 293 manuscritos com dataccedilatildeo e descriccedilatildeo do conteuacutedo em AUNE David E

Revelation 1-5 op cit p cxxxix-cxlviii

24

- A primeira eacute denominada de ldquotexto neutrordquo por Aune que a considera a ldquoa melhor

testemunha do texto grego do Apocalipserdquo60 Ela consiste dos unciais A e C bem como do

minuacutesculo 2053

- A segunda consiste no P47 o mais antigo manuscrito do Apocalipse datado para o

segundo seacuteculo junto com o uncial a e as citaccedilotildees de Oriacutegenes

- A terceira parte do texto encontrado no comentaacuterio do Apocalipse de Andreas de

Cesareia na Capadoacutecia que escreveu entre 563-614 Tambeacutem se inscrevem nesta tradiccedilatildeo

textual as duas coacutepias da versatildeo geoacutergica do Apocalipse datadas para o seacuteculo X

- A quarta eacute a mais numerosa e recebe o tiacutetulo de ldquotexto bizantinordquo definida em linhas

gerais como de pouca confianccedila para a restauraccedilatildeo do autoacutegrafo61

A maioria dos manuscritos gregos do Apocalipse62 bem como as demais

testemunhas em linhas gerais guardam relaccedilatildeo predominantemente com o texto bizantino

Isso significa que os textos criacuteticos tendem a partir do texto neutro confrontando-o com a

segunda e terceira tradiccedilatildeo63 e em alguns poucos casos com o texto bizantino

A perspectiva desta histoacuteria textual do Apocalipse eacute uacutetil para o caso de confronto

entre as variantes textuais de alguma passagem especiacutefica do texto de Joatildeo mas o trabalho

eacute enormemente facilitado pelas ferramentas jaacute disponiacuteveis nas duas ediccedilotildees criacuteticas

publicadas

- ALAND Kurt (ed) The Greek New Testament Stuttgart Deutsche

Bibelgesellschaft 1994

- NESTLE Eberhard NESTLE Erwin ALAND Kurt (org) Novum Testamentum

Graece 27 ed Stuttgart Gesamtherstellung Biblia-Druck 1993

Ambas as ediccedilotildees utilizam o mesmo texto criacutetico mas variam na forma como

apresentam e organizam as variantes textuais Destacamos ainda que o papel da ediccedilatildeo

criacutetica do Apocalipse eacute de indicar o autoacutegrafo provaacutevel produzido por Joatildeo natildeo

necessariamente o texto lido por Joaquim nas bibliotecas monaacutesticas por onde passou

(Sambucina Corazzo Casamari e Fiore) Esta uacuteltima por sinal foi destruiacuteda num incecircndio

apoacutes a morte do seu fundador

60 Idem p clvi 61 Idem p clvii 62 Uma lista ampla destes manuscritos com anaacutelise individualizada pode ser encontrada em HOSKIER H

C Concerning the text of the Apocalypse London Bernard Quaritch Ltd 1929 2 v Outra anaacutelise estaacute

disponiacutevel em CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New

York Charles Scribner amp Sons 1920 2 v V 2 p 227-385 63 ELLIOTT op cit p 150

25

Natildeo se sabe quantas coacutepias dos manuscritos de Joaquim foram queimados neste

incecircndio De qualquer forma como jaacute argumentamos foram outros os motivos que

limitaram a difusatildeo dos manuscritos do abade Muito diferente do nuacutemero de testemunhas

de Apocalipse o Expositio in Apocalypsim sobreviveu em apenas seis manuscritos64

- MS 249 em Troyes na Biblioteca Municipal nos foacutelios 38-107 do seacuteculo XIII

- MS H 15 em Milatildeo na Biblioteca Ambrosiana nos foacutelios 65-160 do seacuteculo XIII

ou XIV

- MS Chig A VIII 231 em Roma na Biblioteca do Vaticano nos foacutelios 1-104 do

seacuteculo XIV

- MS 1411 em Roma na Biblioteca Casanatense foacutelios 1-91 do seacuteculo XIV

- MS Cent II 51 em Nuremberg na Stadtbibliothek nos foacutelios 127-373 do seacuteculo

XV

- MS Harley 3049 em Londres no Museu Britacircnico nos foacutelios 137-220 do seacuteculo

XV

- MS A 450 em Rouen na Biblioteca Municipal nos foacutelios 1-31 do seacuteculoXVI

No seacuteculo XVI entretanto a Junta de Veneza editou na forma de incunaacutebolo as trecircs

obras principais de Joaquim Concordia no ano 1519 Expositio e Psalterium em 1527 Estas

foram reimpressas no seacuteculo XX pela Editora Minerva Eacute esta ediccedilatildeo do Expositio in

Apocalypsim65 que usamos em nossa anaacutelise Ela estaacute composta por foacutelios escritos na frente

e no verso Apenas as partes frontais dos foacutelios satildeo numeradas de 1 a 224 Cada foacutelio ainda

tem duas colunas Sendo assim o Expositio eacute referenciado indicando-se o nuacutemero do foacutelio

e se eacute frente ou verso (ldquorrdquo quando for a parte frontal ldquovrdquo para o verso do foacutelio) Neste sentido

ele comeccedila em 26v ou seja no verso do foacutelio 26 e termina em 224r ou seja na parte frontal

do foacutelio 224

Nosso trabalho estaacute estruturado em sete capiacutetulos Usaremos o primeiro capiacutetulo para

analisar a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso implica discutir as condiccedilotildees

histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento de Jesus ateacute a ilha de Patmos

para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na proviacutencia da Aacutesia

Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destinataacuterios data e propoacutesito do Apocalipse bem

64 REEVES Marjorie The influence of prophecy in the later Midlle Ageshellip p 513 65 JOAQUIM VON FIORE Expositio in Apocalypsim Frankfurt Minerva 1964

26

como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com forma e conteuacutedo

definidos

No capiacutetulo segundo nos deteremos na anaacutelise da situaccedilatildeo das igrejas da proviacutencia

romana da Aacutesia em especial as disputas de poder os conflitos com as comunidades judaicas

e as tentativas de interaccedilatildeo com a sociedade romana O objetivo eacute definir as condiccedilotildees de

produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo

O terceiro capiacutetulo analisaraacute Apocalipse 201-10 tendo em vista sua relaccedilatildeo com a

obra como um todo por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos partindo da

traduccedilatildeo do texto grego para definir suas representaccedilotildees de histoacuteria e milenarismo bem

como seus pontos de partida e condiccedilotildees de emergecircncia

O quarto capiacutetulo aplicaraacute no Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram

lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar

elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso

este seraacute o espaccedilo privilegiado para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando

apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o

livro joanino

O quinto capiacutetulo analisa as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia

meridional normanda bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio

Hohenstaufen Estes aspectos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim seus

condicionados e viacutenculos poliacuteticos e religiosos

O sexto capiacutetulo problematizaraacute as estrateacutegias de leitura de Joaquim e sua

metodologia hermenecircutica para tanto analisando formas de apropriaccedilatildeo mediadas pela

diacronia O seacutetimo capiacutetulo partindo de uma siacutentese do texto latino trataraacute da seacutetima parte

do Expositio por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos Analisamos nele as

representaccedilotildees milenaristas e histoacutericas do abade e igualmente seus antecedentes e fatores

de emergecircncia Por fim na conclusatildeo nos perguntamos pelas convergecircncias e divergecircncias

entre Joatildeo e Joaquim profeta e monge Apocalipse e Expositio Patmos e Calaacutebria

I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Neste capiacutetulo analisaremos a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso

implica discutir as condiccedilotildees histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento66

de Jesus ateacute a ilha de Patmos para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na

proviacutencia da Aacutesia Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destino data e propoacutesito do

Apocalipse bem como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com

forma e conteuacutedo definidos

11 O autor do Apocalipse

A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta pelo menos dois

elementos principais Primeiramente busca-se em fontes antigas ou paralelas algo que

indique quem escreveu o texto Satildeo as chamadas evidecircncias externas Num segundo instante

observa-se a obra para verificar o que ela mesma consegue indiciar sobre seu autor no que

se pode denominar de evidecircncia interna No caso do Apocalipse tanto um quanto outro

levam em conta a aparente auto-identificaccedilatildeo do autor como ldquoJoatildeordquo (Ἰωάννhj)

- ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas

que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao

seu servo Joatildeordquo (Apocalipse 11)67

- ldquoJoatildeo agraves sete igrejas que se encontram na Aacutesia graccedila e paz a voacutes outros da parte

daquele que eacute que era e que haacute de vir da parte dos sete Espiacuteritos que se acham diante do seu

tronordquo (Apocalipse 14)

66 O termo ldquomovimentordquo eacute uacutetil para descrever a fase preacute-institucional do que viria a se tornar o Cristianismo

Quanto ao uso deste termo conferir o socioacutelogo THEISSEN Gerd Sociologia do Movimento de Jesus Satildeo

Leopoldo Sinodal 1997 p 11 tambeacutem STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria

social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo

Satildeo Leopoldo Sinodal 2004 p 218 Sobre a relaccedilatildeo entre essas comunidades e o restante do Judaiacutesmo Cf

FRIESEN Steve Sarcasm in Revelation 2-3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In

BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta

Society of Biblical Literature 2006 p 142 67 Usaremos para as citaccedilotildees biacuteblicas em portuguecircs a Versatildeo Revista e Atualizada de Almeida salvo quando

se tratar de traduccedilatildeo proacutepria como encontrada em BIacuteBLIA SAGRADA Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1980

28

- ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila

em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho

de Jesusrdquo (Apocalipse 19)

- ldquoEu Joatildeo sou quem ouviu e viu estas coisas E quando as ouvi e vi prostrei-me

ante os peacutes do anjo que me mostrou essas coisas para adoraacute-lordquo (Apocalipse 228)

Essas passagens do Apocalipse indicam que Joatildeo eacute o nome assumido pelo autor

autor este que se insere na obra na forma de um personagem enquanto descreve eventos e

experiecircncias religiosas Natildeo haacute qualquer outro nome vinculado a Joatildeo Identificaccedilotildees

romanas levavam em conta geralmente preacute-nome nome e poacutes-nome como o Imperador

Titus Flavius Domitianus Identificaccedilotildees judaicas seguiam nome e filiaccedilatildeo geralmente o

nome do pai (Isaque ben Abraatildeo) mas agraves vezes a identificaccedilatildeo da cidade (Jesus de Nazareacute)

O Joatildeo do Apocalipse entretanto parece ser suficientemente conhecido da sua audiecircncia

para que natildeo precise se apresentar com nada mais aleacutem do que um nome Kuumlmmel entende

em funccedilatildeo disso que ldquoo simples nome de Joatildeo indica uma personalidade comumente

conhecida e a maneira auto-evidente com que ele coloca seus apelos no sentido de ser

ouvido mostra dever tratar-se de um homem que goza de grande autoridaderdquo68

O autor do livro tambeacutem se apresenta como irmatildeo e companheiro (ldquoἀδελφς καὶ

συγκοινωνςrdquo) daqueles que iratildeo receber sua mensagem (Apocalipse 19) o que reforccedila a

sugestatildeo de que ele era bem conhecido de sua audiecircncia

O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse pelo que se conhece foi

Papias bispo de Hierapolis uma cidade proacutexima de Laodiceia uma das cidades que aparece

como destinataacuteria do livro (Apocalipse 314-22) Ele atuou como liacuteder eclesiaacutestico no inicio

do segundo seacuteculo e escreveu uma obra intitulada ldquoInterpretaccedilotildees de ditos do Senhorrdquo Esta

obra se perdeu mas foi citada por muitos autores antigos Andreas bispo de Cesareia na

Capadoacutecia escrevendo um comentaacuterio do Apocalipse no seacuteculo VI registrou que Papias

conheceu o Apocalipse considerava-o inspirado por Deus e comentou uma de suas

passagens (A interpretaccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo o Teoacutelogo 1011) Infelizmente natildeo haacute

nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menccedilatildeo clara sobre quem escreveu o

Apocalipse

Justino Maacutertir chegou a residir em Eacutefeso outra das cidades mencionadas diretamente

no Apocalipse (Apocalipse 21-7) por volta do ano 135 Ele escreveu no seu ldquoDialogo com

68 KUumlMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 618

29

Trifordquo na seccedilatildeo em que defende o cumprimento literal de profecias judaicas que esperavam

um reinado literal do Messias na terra que um homem chamado Joatildeo um dos apoacutestolos de

Cristo ldquonuma revelaccedilatildeo que lhe foi feita profetizou que os que tiverem acreditado em nosso

Cristo passaratildeo mil anos em Jerusaleacutemrdquo (Diaacutelogo com Trifo 814) Nos seus termos ele fez

uma referecircncia ao mais tradicional ciacuterculo de disciacutepulos de Jesus descrito regularmente

como ldquoos doze apoacutestolosrdquo Os Evangelhos canocircnicos (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo)

descrevem Jesus durante sua atividade religiosa pela Palestina cercado de um grupo de

disciacutepulos que o acompanhava a todos os lugares O Evangelho de Marcos o mais antigo

dos quatro escrito no final da deacutecada de 60 do seacuteculo I69 relaciona os seguintes nomes neste

ciacuterculo de seguidores Simatildeo Pedro Tiago e Joatildeo filhos de Zebedeu Andreacute Filipe

Bartolomeu Mateus Tomeacute Tiago filho de Alfeu Tadeu Simatildeo o cananeu e Judas

Iscariotes (Marcos 316-19) Aparentemente entatildeo Justino entendeu que o ldquoJoatildeordquo

mencionado no iniacutecio do Apocalipse era o mesmo ldquoJoatildeordquo dos primoacuterdios do movimento de

Jesus um dos seus disciacutepulos originais

Irineu fez o mesmo que Justino em torno de 180 e natildeo soacute ligou o Apocalipse ao

filho de Zebedeu como tambeacutem ao quarto Evangelho canocircnico conhecido como Evangelho

de Joatildeo (Contra as Heresias V30) Apesar de bispo na cidade de Leon na Gaacutelia ele passou

parte da infacircncia em Esmirna na Aacutesia outra das sete cidades do Apocalipse (Apocalipse

28-11)

Autores antigos como Hipolito de Roma (170-236) Tertuliano de Cartago (160-220)

e Origenes de Alexandria (morreu em 254) seguiram Irineu na opiniatildeo de que o Apocalipse

e o Evangelho de Joatildeo foram escritos pela mesma pessoa um dos disciacutepulos diretos de Jesus

o filho de Zebedeu70

No seacuteculo III entretanto Gaio um presbiacutetero da igreja de Roma promoveu forte

criacutetica contra o Apocalipse Na base deste ataque estava uma oposiccedilatildeo ao movimento

montanista Como Montano e seus seguidores eram fervorosos leitores do Apocalipse Gaio

entendeu que o livro precisava ser totalmente rejeitado pelas igrejas Ele argumentou entatildeo

que a obra natildeo era nem do apoacutestolo Joatildeo nem do presbiacutetero Joatildeo mas de um homem

chamado Cerinto Sua criacutetica foi registrada por Euseacutebio

No entanto tambeacutem Cerinto por meio de revelaccedilotildees que diz serem escritas

por um grande apoacutestolo apresenta milagres com a mentira de que lhe

69 KUumlMMEL op cit p 117 70 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The Westminster

Press 1984 p 26

30

teriam sido mostradas por ministeacuterios dos anjos e diz que depois da

ressurreiccedilatildeo o reino de Cristo seraacute terrestre e que novamente a carne que

habitaraacute em Jerusaleacutem seraacute escrava de paixotildees e prazeres Como inimigo

das Escrituras de Deus e querendo fazer errar diz que haveraacute um nuacutemero

de mil anos de festa nupcial (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XVIII 2)

Entretanto tanto a sugestatildeo de Justino e Irineu quanto a de Gaio se mostram fraacutegeis

A relaccedilatildeo do Apocalipse com um disciacutepulo direto de Jesus natildeo encontra eco dentro do

proacuteprio livro O autor se autodenomina realmente Joatildeo mas natildeo declara viacutenculo algum com

Zebedeu com um apoacutestolo ou com qualquer outro disciacutepulo de Jesus dos tempos iniciais

Se as doze pedras mencionadas na descriccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 2119-21)

evocam realmente os doze apoacutestolos como Adela Collins argumenta71 isso indicaria que os

apoacutestolos no tempo do Apocalipse jaacute haviam alcanccedilado um alto e elevado status dentro das

comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da feacute e base para a existecircncia das

igrejas Mas nada sugere que o autor se veja entre estes Os indiacutecios indicam que os apoacutestolos

eram figuras do seu passado

Nesta mesma linha se os apoacutestolos eram figuras tatildeo importantes para as igrejas e o

livro fosse uma obra pseudocircnima escrita por uma figura histoacuterica de nome Cerinto mas

atribuiacuteda retroativamente ex eventu a um grande liacuteder do passado esperava-se que o

Apocalipse contivesse viacutenculos mais expliacutecitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de

Nazareacute Mas natildeo haacute qualquer elemento no livro que pudesse levar os primeiros leitores a

fazer essa identificaccedilatildeo a natildeo ser a curta auto-apresentaccedilatildeo do autor homocircnima de um dos

antigos disciacutepulos O proacuteprio Jesus que aparece no livro estaacute bem distante daquele que se

movimenta nos Evangelhos Eacute uma figura exaltada e glorificada descrita por meio de

categorias angelicais ou divinas (Apocalipse 113-18) A ausecircncia de traccedilos ou indiacutecios de

natureza biograacutefica inviabiliza a hipoacutetese do presbiacutetero Gaio de que a obra seja pseudocircnima

O vinculo do Apocalipse com o Evangelho de Joatildeo eacute igualmente fraacutegil Dionisio um

bispo de Alexandria na segunda metade do seacuteculo III apesar de natildeo simpatizar em linhas

gerais com o Apocalipse rejeitou o ataque que Gaio e outros fizeram agrave obra Ele argumentou

que Apocalipse e Evangelho satildeo obras muito diferentes para terem sido escritas pela mesma

pessoa Sua conclusatildeo registrada por Euseacutebio foi no sentido de que os textos satildeo de autoria

diferente

Portanto natildeo contradirei que ele se chamava Joatildeo e que este livro eacute de

Joatildeo Porque inclusive estou de acordo de que eacute obra de um homem santo

e inspirado por Deus Mas eu natildeo poderia concordar facilmente em que

71 Idem p 27

31

este fosse o apoacutestolo o filho de Zebedeu e irmatildeo de Tiago de quem eacute o

Evangelho intitulado de Joatildeo e a carta catoacutelica (Histoacuteria Eclesiaacutestica VII

XXV 7)

Em funccedilatildeo de um grande nuacutemero de pessoas possuir o mesmo nome teria sempre a

possibilidade de equiacutevocos de identificaccedilatildeo Alem disso havia a tendecircncia de associar livros

sagrados a grandes figuras do passado Este era um criteacuterio comum para que estas obras

fossem aceitas e usadas nas igrejas ao lado das Escrituras judaicas

Dionisio ainda argumentou que deveria haver outro liacuteder cristatildeo de nome Joatildeo na

Aacutesia Ele faz referencia neste sentido a dois tuacutemulos ainda encontrados nos seus dias na

cidade de Eacutefeso dedicados a liacutederes antigos que levavam este nome Euseacutebio resumiu esta

perspectiva

De forma que tambeacutem isto demonstra que eacute verdade a histoacuteria dos que

dizem que na Aacutesia houve dois com este mesmo nome e em Eacutefeso dois

sepulcros dos quais ainda hoje se afirma que satildeo um e outro de Joatildeo Eacute

necessaacuterio prestar atenccedilatildeo a estes fatos porque eacute provaacutevel que fosse o

segundo ndash se natildeo se prefere o primeiro ndash o que viu a Revelaccedilatildeo

(Apocalipse) que corre sob o nome de Joatildeo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III

XXXIX 6)

Eacute difiacutecil entretanto relacionar o Joatildeo do Apocalipse com qualquer tiacutetulo eclesiaacutestico

Ele natildeo usa epiacutetetos conhecidos do periacuteodo como apoacutestolo evangelista mestre bispo

presbiacutetero ou diaacutecono Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas e

possivelmente ele as conhecia ele se recusou a usaacute-las Essa recusa pode indicar que ele natildeo

se enxergava nesses tiacutetulos ou entatildeo que as comunidades que receberam o Apocalipse natildeo

o reconheciam nos mesmos

Desta forma ainda assumindo que o nome que aparece no iniacutecio do livro eacute uma

referecircncia autecircntica (natildeo-pseudocircnima) a seu autor e que ele se chamava realmente Joatildeo as

evidecircncias externas acumuladas sobre ele natildeo representam muito O Joatildeo do Apocalipse natildeo

parece ser entatildeo o filho de Zebedeu um dos disciacutepulos originais de Jesus ou o autor do

Evangelho de Joatildeo ou uma figura antiga das igrejas conhecida como Joatildeo o presbiacutetero

Possivelmente foi a tendecircncia das igrejas em identificar os autores das obras

sagradas como apoacutestolos de Jesus e o fato do livro identificar seu autor com um ldquoJoatildeordquo que

levou Justino Irineu e os outros antigos escritores cristatildeos a associaacute-lo com o filho de

Zebedeu ou com o autor do quarto Evangelho O que parece eacute que o livro foi escrito por um

homem chamado Joatildeo que se tornou significativo para a histoacuteria do cristianismo pela

32

produccedilatildeo de apenas um livro livro esse que se constitui entatildeo na fonte mais expressiva

para indicar outros aspectos de sua identidade e seu lugar social

Aleacutem das observaccedilotildees anteriores de que Joatildeo era bem conhecido de sua audiecircncia

um segundo elemento interno a respeito de sua identidade social eacute a ligaccedilatildeo com uma

atividade conhecida como ldquoprofeciardquo Joatildeo natildeo se denomina explicitamente profeta mas o

faz implicitamente em vaacuterios lugares do Apocalipse Ele intitula sua mensagem de profecia

(Apocalipse 13 227 10 18) e narra uma experiecircncia de vocaccedilatildeo de forma muito

semelhante a profetas da tradiccedilatildeo judaica (Isaiacuteas 61-13 Jeremias 14-10 Ezequiel 28-333)

Por isso Lohse argumenta que Joatildeo foi um ldquoprofeta dos primoacuterdios do cristianismo que

atuou nas comunidades da Aacutesia com grande vigorrdquo72 Assim tambeacutem entende Bovon para

quem Joatildeo como profeta apresenta-se como um instrumento da revelaccedilatildeo divina e uma voz

do Cristo exaltado73

Estudiosos tendem a relacionar o fenocircmeno da profecia no movimento de Jesus ateacute

o inicio do segundo seacuteculo com a atividade de lideranccedila itinerante principalmente como

encontrada nas proviacutencias da Aacutesia Menor74 As comunidades locais eram dirigidas por

liacutederes assentados no meio delas que moravam nas cidades e dirigiam as congregaccedilotildees

Documentos do movimento de Jesus do iniacutecio do segundo seacuteculo denominavam estes liacutederes

de epiacutescopos presbiacuteteros e diaacuteconos (1Timoacuteteo 31-13 Tito 15-9) Do outro lado existiam

liacutederes itinerantes que viajavam de igreja em igreja de um lugar para outro normalmente

denominados de profetas apoacutestolos evangelistas ou mestres Estas distinccedilotildees natildeo eram tatildeo

riacutegidas jaacute que liacutederes locais poderiam viajar enquanto liacutederes itinerantes poderiam parar

durante certo tempo em uma igreja Um liacuteder local poderia ser itinerante num momento o

itinerante poderia eventualmente residir numa cidade Mesmo assim as definiccedilotildees

funcionais ou carismaacuteticas podem iluminar a atividade de Joatildeo como profeta na regiatildeo da

Aacutesia No Apocalipse ele faz referecircncia a sete igrejas em sete cidades (Apocalipse 111) o

que indica que ele transitava por elas O conteuacutedo das cartas do Apocalipse (Apocalipse 2-

3) sugere tambeacutem que as igrejas o conheciam o que aponta para uma atividade religiosa

mais ampla do que uma especiacutefica igreja local

Por ser profeta e profeta itinerante Joatildeo pode ter abraccedilado um estilo de vida asceacutetico

como o seu livro parece sugerir (Apocalipse 141-5) Este tipo de vida seria derivado do

72 LOHSE Eduard Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Leopoldo Sinodal 1985 p 249 73 BOVON Franccedilois Johnrsquos Self-presentation in Revelation 19-10 Catholic Biblical Quaterly Washington

n 62 p 693-700 2000 p 700 74 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 34

33

formato da atividade religiosa que Jesus desenvolveu com os seus disciacutepulos Nos

Evangelhos eles satildeo vistos constantemente viajando de lugar para lugar sem casa fixa

Ditos dos Evangelhos (Marcos 820 Mateus 1023 entre outros) ainda reforccedilam essa postura

que foi chamada por Gerd Theissen de carismatismo itinerante com a expectativa de uma

vida sem paacutetria sem famiacutelia sem posses e sem proteccedilatildeo75

Viajar de lugar para lugar rompia com os laccedilos locais de estabilidade social Os

disciacutepulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida asceacutetica e mesmo apoacutes a morte do

fundador do movimento alguns continuaram na vida andarilha Talvez seja por isso que o

autor do Didaqueacute no iniacutecio do seacuteculo II chamou a itineracircncia de ldquomodo de vida do Senhorrdquo

(Didaqueacute 118) Aleacutem dos laccedilos sociais os andarilhos tambeacutem renunciavam agrave famiacutelia Um

logia de Jesus encontrado no Evangelho de Marcos aponta neste sentido

Tornou Jesus Em verdade vos digo que ningueacutem haacute que tenha deixado

casa ou irmatildeos ou irmatildes ou matildee ou pai ou filhos ou campos por amor

de mim e por amor do evangelho que natildeo receba jaacute no presente o cecircntuplo

de casas irmatildeos irmatildes matildees filhos e campos com perseguiccedilotildees e no

mundo por vir a vida eterna (Marcos 1029-30)

Poucos dos missinaacuterios destacados pelo autor dos Atos dos Apoacutestolos satildeo descritos

em atividade familiar Natildeo haacute qualquer referecircncia agrave famiacutelia de Paulo Estes itinerantes

renunciavam tambeacutem a propriedades ou recursos financeiros o que dava ao pregador

condiccedilotildees de fazer a criacutetica contra a riqueza Quem perambulava pela Palestina Siacuteria e Aacutesia

Menor em pobreza demonstrativa poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em

descreacutedito76 Por isso o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades de Jesus

localmente constituiacutedas para ter uma porccedilatildeo miacutenima para sobreviver Isso lhes parecia bem

como aos olhos das comunidades locais uma demonstraccedilatildeo da bondade divina que natildeo

deixava o itinerante carismaacutetico morrer de fome ou sede

De qualquer forma a praacutetica do carismatismo itinerante demandava abraccedilar um estilo

radical de vida religiosa com niacutetidas consequecircncias asceacuteticas e combinava amplamente com

uma perspectiva escatoloacutegica de fim iminente da histoacuteria como provavelmente pregada por

Jesus77

75 THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op cit p 18 76 Na anaacutelise da atividade carismaacutetica itinerante cf THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op

cit p 16-22 77 ALLISON Dale C Jesus of Nazareth Millenarian prophet Minneapolis Fortress Press 1998 p 60-61

34

Aleacutem do seu papel religioso como profeta autores sugerem que Joatildeo era judeu por

nascimento um nativo da Palestina onde passou um bom tempo de sua vida78 Haacute

possibilidade de ele ter residido na Judeacuteia ateacute a instauraccedilatildeo da guerra contra os romanos (66-

70) que terminou com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico79 Esse tipo de

identificaccedilatildeo ilumina a forma como Joatildeo compreendia a relaccedilatildeo entre Israel e Igreja Ele natildeo

entendia o movimento de Jesus e suas comunidades como uma religiatildeo nova e independente

do grande e plural fenocircmeno religioso que os estudiosos chamam de Judaiacutesmo80

Joatildeo reinvidica o uso do termo ldquojudeurdquo (Ἰουδαίος) para os seguidores de Jesus

(Apocalipse 29 39) e demonstra tensatildeo com sinagogas locais que poderia indiciar mais

uma crise interna do que um conflito entre religiotildees distintas Seu uso das Escrituras judaicas

o grego semitizante do Apocalipse81 o domiacutenio da tradiccedilatildeo religiosa do periacuteodo do Segundo

Templo como apocalipses e oraacuteculos indicam uma pessoa fortemente envolvida com as

tradiccedilotildees do antigo Israel Muitas de suas perspectivas sociais e poliacuteticas poderiam derivar

de determinadas tradiccedilotildees judaicas mais do que de correntes especiacuteficas do movimento de

Jesus

Mesmo assim um aspecto significativo da identidade social do autor do Apocalipse

tem relaccedilatildeo justamente com essa ldquoseita judaicardquo O Judaiacutesmo no periacuteodo que vai da ascenccedilatildeo

hasmoneana (167 aC) ateacute pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 dC) abarcava

diversos partidos e grupos religiosos82 Um destes grupos teve iniacutecio com a atuaccedilatildeo da pessoa

de Jesus de Nazareacute entre 27-30 inicialmente na Galileacuteia para terminar com sua morte em

Jerusaleacutem O autor do Apocalipse afirma ser seguidor de Jesus (Apocalipse 19) de quem

recebeu a sua revelaccedilatildeo

Apesar de choques eventuais entre os grupos eles se reconheciam mutuamente como

herdeiros das mesmas tradiccedilotildees religiosas antigas das alianccedilas dos patriarcas das Escrituras

judaicas e da Lei de Moiseacutes Provavelmente Joatildeo se via como um judeu e membro do

fenocircmeno religioso judaico83 O mesmo poderia ser afirmado a respeito das comunidades

78 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 p 276 79 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 47 80 Sobre a pluralidade de perspectivas no interior do Judaiacutesmo cf BAUMGARTEN Albert I Ancient Jewish

Sectarianism Judaism Genebra v 47 n 4 p 387-403 1998 81 Para uma discussatildeo da linguagem do Apocalipse sua sintaxe e seu vocabulaacuterio cf CALLAHAN Allen

Dwight The Language of Apocalypse Harvad Theological Review Cambridge v 88 n 4 p 453-470 1995 82 Para uma anaacutelise ampla sobre a questatildeo da identidade judaica na antiguidade cf GOODMAN Martin

Judaism in the Roman World collected essays Leiden Brill 2007 p 21-32 83 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 277

35

que receberam o Apocalipse Elas faziam parte de um movimento que ainda se entende

judaico84 apesar da identificaccedilatildeo com um grupo especiacutefico dentro do Judaiacutesmo Eacute possiacutevel

denomina-los mesmo como judeus que reconhecem Jesus como o messias

Duas deacutecadas depois na mesma regiatildeo do Apocalipse entretanto Inaacutecio de

Antioquia falaria em suas cartas de ldquoCristianismordquo () e descreveraacute seus membros

como ldquocristatildeosrdquo () o que indica que o movimento naquele periacuteodo e na sua

expressatildeo asiaacutetica jaacute tem formulado uma identidade autocircnoma em relaccedilatildeo ao Judaismo Nos

termos de Inaacutecio ldquoeacute melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaiacutesmo

de incircuncisordquo (Carta aos Filipenses 61)85

12 A data do Apocalipse

O Apocalipse de Joatildeo eacute uma obra escrita no chamado grego koinecirc liacutengua comum

aos territoacuterios do antigo Impeacuterio de Alexandre o Grande A obra de grande porte para os

padrotildees do periacuteodo comeccedila desta forma ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para

mostrar aos servos dele as coisas que devem acontecer em breve e enviou-a sinalizando

atraveacutes do seu anjo para o seu servo Joatildeordquo86

Como boa parte das fontes antigas a obra natildeo tem tiacutetulo ou marca de identificaccedilatildeo

Mas durante seu uso logo passou a ser identificada por meio da sua primeira palavra

apocalipse transliteraccedilatildeo simples de ποκάλυψις O termo pode ser traduzido como

ldquorevelaccedilatildeordquo87

No momento de definir a data da obra o testemunho de Irineu eacute novamente invocado

pelos estudiosos Ele registrou que ldquoo Apocalipse foi visto natildeo haacute muito tempo em nossa

proacutepria geraccedilatildeo no fim do reinado de Domicianordquo (Contra as Heresias 5303) Grande parte

dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definiccedilatildeo entendendo que mesmo

que o testemunho de Irineu quanto ao nome do autor natildeo seja confiaacutevel a data ainda pode

84 Enquanto categoria religiosa e natildeo eacutetnica jaacute que natildeo era preciso ser etnicamente judeu para fazer parte do

Judaiacutesmo 85 Noutro lugar ldquoEacute preciso natildeo soacute levar o nome de cristatildeo mas ser de fatordquo (Carta aos Magneacutesios 4) A respeito

do cristianismo e judaiacutesmo em oposiccedilatildeo nas cartas de Inaacutecio cf COHEN Shaye J D Judaism without

Circumcision and ldquoJudaismrdquo without ldquoCircumcisionrdquo in Ignatius Harvard Theological Review Cambridge v

95 n 4 p 395-415 2002 86 ldquoἈποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ ἣν ἔδωκεν αὐτῷ ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐν τάχει καὶ

ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃrdquo (Apocalipse 11) 87 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 67

36

ser mantida para o fim do reinado de Domiciano em meados de 95-9688 Segundo Adela

Yarbro Colllins natildeo existe nenhuma boa razatildeo para duvidar da sugestatildeo de Irineu quanto agrave

eacutepoca do Apocalipse89 Ela pressupotildee neste caso que a obra na sua forma atual eacute o

resultado de um uacutenico autor O Apocalipse apresenta uso de fontes tradicionais ou literaacuterias

mas ainda possui uma unidade coerente subjacente a uma uacutenica autoria Nos termos de

Collins ldquoa unidade de estilo e a cuidadosa complexa e deliberada estrutura do livro como

um todo torna supeacuterflua a hipoacutetese da compilaccedilatildeo de extensas fontes escritas ou uma seacuterie

de ediccedilotildeesrdquo90

Vitorino de Pettau morto em 303 escreveu o mais antigo comentaacuterio completo do

Apocalipse a sobreviver Ao comentar a passagem do Apocalipse em que Joatildeo come um

livro (Apocalipse 103) ele escreveu

Joatildeo teve esta visatildeo quando estava na ilha de Patmos condenado agraves minas

por Cesar Domiciano Parece pois que Joatildeo escreveu dali o Apocalipse

quando jaacute era um anciatildeo Depois de seus sofrimentos quando foi

assassinado Domiciano e anulados todos os seus decretos foi Joatildeo

liberado das minas e transmitiu este mesmo Apocalipse que recebeu do

Senhor (Comentaacuterio ao Apocalipse 103)

Euseacutebio de Cesareacuteia faz comentaacuterio parecido com o de Vitorino ldquoEacute tradiccedilatildeo que

neste tempo o apoacutestolo e evangelista Joatildeo que ainda vivia foi condenado a habitar a ilha

de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deusrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III VIII 1)

Ainda ldquoFoi entatildeo que o apoacutestolo Joatildeo voltando de seu desterro na ilha retirou-se para viver

em Eacutefeso segundo relata a tradiccedilatildeo de nossos antigosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XX 9)

Esses dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante o reino de

Domiciano Ambos acrescentam que Joatildeo foi banido para Patmos pelo Imperador tendo

sido liberado apoacutes a morte do mesmo A tradiccedilatildeo neles preservada do desterro de Joatildeo ou

de Patmos como uma colocircnia penal entretanto natildeo eacute apoiada pela historiografia91 Mesmo

assim os testemunhos de Vitorino e de Euseacutebio satildeo importantes para definir a data do

Apocalipse mais ateacute do que para descrever a situaccedilatildeo em que isso se deu

Em termos de evidecircncia interna Adella Collins indicou alguns elementos que

reforccedilam a hipoacutetese da deacutecada de 90 Um primeiro pode ser encontrado no uso muito

especiacutefico que o Apocalipse faz do nome Babilocircnia (Apocalipse 148 1619 175 182

88 Entre outros KUumlMMEL op cit p 613-617 89 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57 90 Idem p 54 91 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University

Press 1990

37

10 21) Eacute muito difiacutecil que o autor da obra esteja fazendo referecircncia a antiga cidade da

Mesopotacircmia presente nas tradiccedilotildees literaacuterias judaicas por ter destruiacutedo o reino de Judaacute em

586 aC derrubado a capital Jerusaleacutem e o templo de Salomatildeo Em Apocalipse 17 Joatildeo

descreve Babilocircnia como uma mulher e pelo menos duas marcas na fala do anjo indicam

que a mulher representa a cidade de Roma O versiacuteculo nove descreve-a assentada sobre sete

montanhas ldquoAqui estaacute o sentido da sabedoria as sete cabeccedilas satildeo sete montanhas onde a

mulher estaacute assentada Tambeacutem satildeo sete reisrdquo (Apocalipse 179) O versiacuteculo 18 a apresenta

como uma cidade ldquoque tem poder sobre os reis da terrardquo Estas indicaccedilotildees para uma

audiecircncia da Aacutesia no final do primeiro seacuteculo indicariam que Babilocircnia era um siacutembolo para

a cidade de Roma A capital do Impeacuterio aparece frequentemente como a cidade das sete

montanhas (Capitoacutelio Quirinal Viminal Esquilino Ceacutelio Aventino e Palatino) e era a

cidade mais importante politicamente do Mediterracircneo

E o que essa associaccedilatildeo entre Babilocircnia e Roma poderia indicar em termos de dataccedilatildeo

para o Apocalipse A maioria das ocorrecircncias de Babilocircnia como nome simboacutelico para

Roma na literatura judaica estaacute em 4Esdras 2Apocalipse de Baruque e no quinto livro dos

Oraculos Sibilinos Nestas obras Roma eacute chamada de Babilocircnia porque ela como a antiga

cidade mesopotacircmica destruiu Jerusaleacutem e o Templo Ou seja o nome simboacutelico de Roma

Babilocircnia eacute forte indiacutecio de que o Apocalipse foi escrito apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e o

Templo no ano 7092

Aleacutem do uso simboacutelico do termo Babilocircnia para descrever Roma tiacutepico de obras

judaicas posteriores ao ano 70 Collins aponta outros elementos internos

- A lenda do retorno de Nero em Apocalipse 13 e 17 principalmente a referecircncia agraves

cabeccedilas da besta (Apocalipse 179-11) reforccedila a hipoacutetese de que o Apocalipse eacute posterior agrave

morte de Nero em 68 dC e ao aparecimento da tradiccedilatildeo de que ele retornaria para retomar

o poder93

- A concepccedilatildeo de Joatildeo de que a comunidade de Jesus eacute o novo templo de Deus bem

como a profecia de que na Nova Jerusaleacutem natildeo haveria mais templos indicariam que o

Apocalipse eacute posterior agrave destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem (70 dC)94

92 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57-58 PAGELS Elaine The Social History of

Satan Part Three John of Patmos and Ignatius of Antioch Contrasting Visions of ldquoGods Peoplerdquo Harvad

Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006 p 494 93 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 58-64 94 Idem p 64-69

38

Outros elementos como os indiacutecios de conflitos com sinagogas locais em Esmirna e

Filadeacutelfia as referecircncias a perseguiccedilotildees por parte do Impeacuterio Romano ou a crise com a

instituiccedilatildeo do Culto Imperial satildeo muito vagos para precisar melhor a data do Apocalipse

A partir dos dados internos muito provavelmente o livro eacute posterior ao ano 70 e agrave

destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico Se a hipoacutetese de que o autor saiu da Palestina

em funccedilatildeo do conflito for autecircntica era preciso algum tempo para que ele consolidasse uma

atuaccedilatildeo profeacutetica fora da sua terra na Aacutesia Menor e especificamente na proviacutencia

proconsular da Aacutesia Dado o conhecimento que Papias teve da obra seria preciso algum

tempo entre sua produccedilatildeo e circulaccedilatildeo entre as igrejas Isso nos leva a tomar o testemunho

de Irineu realmente como a hipoacutetese mais provaacutevel localizando o livro no fim do governo

do Imperador Titus Flavius Domitianus assassinado no dia 18 de setembro de 96 Segundo

o bispo de Leon (Contra as Heresias 5303) foi em algum momento anterior agrave morte do

Imperador que Joatildeo de Patmos escreveu o Apocalipse

13 O propoacutesito do Apocalipse

Se aceitarmos as indicaccedilotildees do Apocalipse ele foi escrito para ser encaminhado para

sete igrejas da proviacutencia proconsular da Aacutesia ldquoAchei-me em espiacuterito em o dia do Senhor e

ouvi atraacutes de mim uma voz grande como de trombeta dizendo O que vecircs escreve em livro

e envia para as sete igrejasrdquo (Apocalipse 110-11)

As cartas em questatildeo aparecem um pouco depois na estrutura da obra

- Apocalipse 21-7 Carta agrave Igreja em Eacutefeso

- Apocalipse 28-11 Carta agrave Igreja em Esmirna

- Apocalipse 212-17 Carta agrave Igreja em Peacutergamo

- Apocalipse 218-29 Carta agrave Igreja em Tiatira

- Apocalipse 31-6 Carta agrave Igreja em Sardes

- Apocalipse 37-13 Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia

- Apocalipse 314-22 Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia

As cartas escritas como oraacuteculos profeacuteticos apresentam terceirizados o remetente e

o destinataacuterio Concretamente eacute o profeta Joatildeo que escreve contudo retoricamente satildeo

palavras diretas do Cristo exaltado entre os candelabros (Apocalipse 113) Eacute uma mensagem

39

para os membros das igrejas mas dirigidas aos anjos que estariam ali presentes (Apocalipse

21 28 212 218 31 37 314) Joatildeo se coloca como o intermediaacuterio entre duas

personalidades celestiais Mesmo que algueacutem se recuse a ouvi-lo natildeo poderia deixar de

atender ao anjo da igreja principalmente porque a mensagem do anjo teria origem direta no

Jesus glorificado Neste sentido as cartas se tornam proclamaccedilotildees profeacuteticas do soberano

Cristo exaltado95

Esta estrateacutegia literaacuteria eacute um instrumento retoacuterico de legitimaccedilatildeo o que denuncia

algum tipo de conflito ou tensatildeo entre Joatildeo o autor e os membros das igrejas Ao usar este

esquema para atingir o seu puacuteblico o autor indica toda a dificuldade que enfrentava para se

fazer ouvir96 A agressividade do texto e as diversas ameaccedilas indicam ainda mais a forccedila

necessaacuteria para que as cartas e o livro como um todo pudessem ser recebidos Segundo

Friedrich

as sete proclamaccedilotildees satildeo semelhantes aos antigos editos reais e imperiais

na medida em que exibem normalmente e estruturalmente semelhantes

praescriptiones narrationes dispositiones e sanctiones Em termos de

conteuacutedo as narrationes e dispositiones exibem caracteriacutesticas da profecia

do cristianismo das origens influenciada pela profecia do Antigo

Testamento97

As cartas indicam dois tipos baacutesicos de tensatildeo Internamente haacute algum tipo de

conflito entre Joatildeo e a lideranccedila de algumas igrejas e algum tipo de crise com sinagogas

locais98 Externamente a sociedade urbana da aacutesia parece representar algum desconforto

especialmente em funccedilatildeo das demandas relacionadas com as interaccedilotildees sociais

Para as tensotildees internas entre os liacutederes das igrejas Paul Duff sugeriu a seguinte

tipologia99

95 Conferir neste sentido FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria

Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 96 RUIZ Jean-Pierre Hearing and seeing but not saying a rhetoric de authority in Revelation 104 and 2

Corinthians 124 In BARR David L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of

Revelation Atlanta Society of Biclical Literature 2006 p 91-111 p 93 97 FRIEDRICH Nestor Paulo O edito-profeacutetico para a Igreja em Tiatira (Apocalipse 218-29) uma anaacutelise

literaacuteria soacutecio-poliacutetica e teoloacutegica Tese (Doutor em Teologia) ndash Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia Escola

Superior de Teologia Satildeo Leopoldo 2000 p 60 98 DUFF Paul B ldquoThe synagogue of Satanrdquo Crisis mongering and the Apocalypse of John In BARR David

L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biclical

Literature 2006 p 164-165 p 148 99 DUFF Paul B Who Rides the Beast Prophetic Rivalry and the Rhetoric of Crisis in the Churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 p 25

40

- Igrejas divididas entre a lideranccedila de Joatildeo e alguma outra lideranccedila local Eacutefeso

Peacutergamo Tiatira Para estas igrejas Joatildeo fornece nas respectivas cartas uma elaboraccedilatildeo dos

problemas da comunidade Consistiriam no principal foco do Apocalipse

- Igrejas onde Joatildeo tem pouca ou mesmo nenhuma influecircncia Sardes e Laodiceacuteia Eacute

provaacutevel que ele tenha aliados em potencial nessas comunidades mas estatildeo em nuacutemero

muito pequeno Por isso o seu tom menos conciliador Para elas o autor natildeo fornece

nenhuma elaboraccedilatildeo de problemas e pouco se tiver algum encorajamento

- Igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo Esmirna e Filadeacutelfia Natildeo haacute chamada ao

arrependimento ou qualquer tipo de ameaccedila ao mesmo tempo em que recebem fortes

louvores Satildeo igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo e ao tipo de mensagem que ele defendia

Com relaccedilatildeo aos membros das sinagogas locais Joatildeo assim se expressou ldquose dizem

judeus mas natildeo o satildeordquo Para o autor do Apocalipse eles natildeo eram verdadeiros judeus mas

ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo (Apocalipse 29 39)100 O professor Nogueira argumenta que essa

crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga estar ldquoenvolvida em um processo

sincreacutetico de interaccedilatildeo com os gentios Eles falavam grego expressavam suas crenccedilas e

praacuteticas religiosas com categorias helenistas e estavam em maior ou menor grau envolvidos

na vida puacuteblica de suas cidadesrdquo101

O Apocalipse fala da morte de Antipas (Apocalipse 213) que pode ter ocorrido em

funccedilatildeo de algum conflito com a sociedade O Apocalipse apresenta a expectativa que o

mesmo fenocircmeno que promoveu a morte deste membro do movimento de Jesus proveraacute

dentro em breve a prisatildeo e a ruiacutena de muitos outros (Apocalipse 210)102 Para Thompson

ldquoa descriccedilatildeo do visionaacuterio de guerra e conflito contem suficientes referecircncias e alusotildees a

Roma e ao culto imperial para concluir que o visionaacuterio esperava tribulaccedilatildeo e opressatildeo de

instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas na Aacutesiardquo103 Como Prigent enfatiza ldquoo autor de

100 FRANKFURTER David Jews or Not Reconstructing the ldquoOtherrdquo in Rev 29 and 39 Harvard

Theological Review Cambridge v 4 n 94 p 403-425 2001 Duff argumenta que o comentaacuterio negativo de

Joatildeo sobre as sinagogas foi feito para exacerbar a tensatildeo entre as igrejas e as sinagogas Ao promover inimizade

contra as sinagogas e medo de hostilidade de judeus locais Joatildeo desejava desencorajar aliados iacutentimos

(membros das igrejas de Esmirna e Filadeacutelfia) de apostastar para as sinagogas Cf DUFF Paul B ldquoThe

synagogue of Satanrdquo op cit p 148 101 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza Experiecircncia religiosa e criacutetica social no cristianismo primitivo Satildeo

Paulo Paulinas p 137 102 HOWARD-BROOK Wes GWYTHER Anthony Desmascarando o imperialismo interpretaccedilatildeo do

Apocalipse ontem e hoje Satildeo Paulo Paulus 2003 p 120-155 103 THOMPSON Leonard A Sociological Analysis of Tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 36 p 147-174 1986 p 148

41

Apocalipse afirma com grande energia que o Impeacuterio estaacute a serviccedilo de Satatilde comprovado

pela idolatria que embasa todo o sistemardquo104

Durante boa parte da histoacuteria da leitura do Apocalipse105 a descriccedilatildeo de mundo no

seu livro cheia de conflitos e violecircncia era tomada como equivalente da situaccedilatildeo concreta

de vida do autor e de suas comunidades O contexto histoacuterico era precisamente como

transparecia atraveacutes das imagens do livro106 Foi somente a partir de meados do seacuteculo XX

quando alguns estudiosos deixaram de assumir que o mundo do texto de Apocalipse

espelhava diretamente o contexto histoacuterico em torno do mesmo Neste caso eles se voltaram

para oferecer sugestotildees de como conciliar e relacionar a tensatildeo entre o mundo do Apocalipse

e o mundo concreto das comunidades de seguidores de Jesus no final do primeiro seacuteculo na

Aacutesia romana

Uma destas pesquisadoras Fiorenza sugeriu que as imagens que o livro constroacutei

foram produzidas como instrumentos retoacutericos de persuasatildeo Ela entende que o visionaacuterio

parece estar realmente convencido de que o Impeacuterio Romano eacute uma ameaccedila para seguidores

de Jesus e escreve para persuadir sua audiecircncia a aceitar sua leitura da realidade

empurrando-a para uma determinada posiccedilatildeo frente ao contexto social em que viviam107

Adela Collins por sua vez argumentou que Joatildeo escreveu em resposta ao conflito

entre a feacute em Jesus como Joatildeo a entendia e a situaccedilatildeo social como ele a percebia Para esta

autora o autor realiza seu propoacutesito por meio da construccedilatildeo de um universo simboacutelico com

valores terapecircuticos Diante do Apocalipse leitores e ouvintes alcanccedilariam uma catarse de

medo e ressentimento e uma internalizaccedilatildeo de demandas para sustentar-se agrave parte de uma

ordem social opositora por meio da praacutetica de abstinecircncia sexual pobreza e martiacuterio108

Outro pesquisador Steven Friesen definiu o Apocalipse de Joatildeo como uma obra

engajada na construccedilatildeo de um mundo simboacutelico com o objetivo de produzir resistecircncia

simboacutelica Enquanto a ideologia imperial construiacutea seus mitos e os disseminava para afirmar

104 PRIGENT P O Apocalipse In COTHENET E et al Os escritos de Satildeo Joatildeo e a Epiacutestola aos Hebreus

Satildeo Paulo Paulinas 1998 p 229-306 p 255 105 Para a histoacuteria da recepccedilatildeo do livro conferir WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse

Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 KOVACS Judith

ROWLAND Christopher C Revelation Oxford Blackwell Publishing 2004 KYRTATAS Dimitris The

Transformations of the Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text

The Writing of Ancient History London Duckworth 1986 p 144-162 106 Conferir neste sentido o comentaacuterio de Euseacutebio de Cesareacuteia ldquoDomiciano deu provas de uma grande

crueldade para com muitos [] e foi o segundo a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutesrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica

III VII 1) 107 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Apocalipsis Visioacuten de un mundo justo Estella Editorial Verbo Divino

1997 p 58 108 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsis op cit p 127-131

42

que o Imperador era o rei dos reis Joatildeo ressignifica estes mitos para afirmar que a autoridade

uacuteltima sobre o mundo proveacutem no fim de fora mesmo deste mundo109 Eacute um conflito de

mundos construiacutedos de siacutembolos de identidades de ideologias110

Em termos concretos entretanto Domiciano natildeo parece ter instigado uma

perseguiccedilatildeo oficial aos seguidores de Jesus Existe pouca evidecircncia de que ele tenha

perseguido diretamente as igrejas e como insistiu Thompson nenhuma evidecircncia de que ele

tenha banido Joatildeo para a Ilha de Patmos111

Isso natildeo significa que conflitos locais natildeo pudessem se manifestar dentro de cada

cidade da Aacutesia conflitos estes que poderiam ter ligaccedilatildeo com o relacionamento entre os

membros do movimento de Jesus e a instituiccedilatildeo do culto imperial112 Possivelmente ao falar

do culto agraves bestas Joatildeo entra em polecircmica com a praacutetica do culto ao Imperador no contexto

urbano da proviacutencia onde a primeira Besta (Apocalipse 131-10) representa o Impeacuterio

Romano ou o proacuteprio Imperador e a segunda Besta (Apocalipse 1311-18) eacute possivelmente

o sacerdote do culto imperial113 Acompanhar a posiccedilatildeo do Apocalipse neste sentido poderia

gerar suspeiccedilatildeo e hostilidade por parte da populaccedilatildeo local e causar as acusaccedilotildees subjacentes

aos processos descritos por Pliacutenio o Jovem ao Imperador Trajano pouco mais de uma deacutecada

depois de Joatildeo na proviacutencia de Bitiacutenia e Ponto vizinha das igrejas da Aacutesia (Epiacutestola

10965)

O culto imperial era uma expressatildeo de religiosidade individual e coletiva e uma

demonstraccedilatildeo de coesatildeo e ordem social e poliacutetica do Impeacuterio Para propoacutesitos imperiais o

culto ao Imperador servia como uma expressatildeo de lealdade e gratidatildeo por parte dos cidadatildeos

Pagels tenta resumir este processo Para ela anteriormente os membros do

movimento de Jesus se identificavam com os grupos judaicos ao serem expulsos desses

109 FRIESEN Steven J Myth and Symbolic Resistance in Revelation 13 Journal of Biblical Literature

Atlanta v 2 n 123 p 281-313 2004 p 281 e 311 110 FRIESEN Steven J Satanrsquos throne imperial cults and the social settings of Revelation Journal for the

Study of the New Testament Cambridge v 27 n 3 p 351-373 2005 p 352 111 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L Reading the

Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 34 DUFF Paul B ldquoThe

Synagogue of Satanrdquo op cit p 149 112 Para uma anaacutelise das distintas formas que o culto imperial poderia assumir nas diferentes regiotildees do Impeacuterio

cf SCHERRER Steven J Signs and Wonders in the Imperial Cult a New Look at a Roman Religious

Institution in the Light of Rev 1313-15 Journal of Biblical Literature Atlanta v 4 n 103 p 599-610 1984

SORDI Marta The Christians and the Roman Empire London and New York Routledge 1994 Sobre a

relaccedilatildeo das comunidades judaicas com o culto imperial conferir MCLAREN James S Jews and the Imperial

Cult from Augustus to Domitian Journal for the Study of the New Testament Cambridge n 27 p 257-278

2005 113 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p

34

43

grupos eles precisavam criar novas identidades em oposiccedilatildeo agravequeles que antes eram seus

irmatildeos Entretanto quando essas mesmas comunidades passam a ser formadas

predominantemente de natildeo-judeus agora eram excluiacutedos natildeo mais de ciacuterculos judaicos mas

dos ciacuterculos sociais que antes conviviam Era desses ciacuterculos que as ameaccedilas agora partiam

de ldquooficiais romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu lsquoateiacutesmorsquo que temiam que

pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteirasrdquo114

O cenaacuterio descrito por Pagels talvez se aplique agrave Bitiacutenia e Ponto dos tempos de Pliacutenio

mas ainda natildeo o eacute para o tempo do Apocalipse A ecircnfase na ruptura com a sociedade

encontrada no texto joanino indica que boa parte dos membros das igrejas da Aacutesia ainda

vivia suas vidas com seus vizinhos sem grandes conflitos Eacute Joatildeo que espera por tensatildeo e

crise Ele aguarda uma violenta perseguiccedilatildeo contra as comunidades para um futuro

proacuteximo115 Subjacentes aos roacutetulos da oposiccedilatildeo interna (os balamitas e nicolaiacutetas de

Peacutergamo Jezabel e seus seguidores em Tiatira e os falsos apoacutestolos de Eacutefeso) parecem estar

pessoas que ocupavam posiccedilatildeo de lideranccedila dentro das igrejas nas quais estavam inseridas

consideradas como adversaacuterias por Joatildeo O que estes liacutederes de diferentes igrejas teriam em

comum Aparentemente eles natildeo estavam de acordo quanto agrave forma de conduzir os fieacuteis

nas suas relaccedilotildees com o Impeacuterio116 Assim diante da diferenccedila de respostas existente entre

os proacuteprios liacutederes sobre a interaccedilatildeo com a sociedade Joatildeo reage com forccedila Para ele

qualquer acomodaccedilatildeo social eacute prostituiccedilatildeo e idolatria categorias religiosas retiradas da

antiga profecia judaica

Como sintetizou Norman Cohn ldquoo propoacutesito de Joatildeo era estimular os cristatildeos a se

verem em conflito com ciacuterculos mais amplos da sociedaderdquo117 Para tanto ele descreveu o

governo romano natildeo como reflexo de uma ordem divina mas do poder de Satatilde A alianccedila

com o Jesus Glorificado do Apocalipse inviabilizaria qualquer relacionamento com a

sociedade romana

Joatildeo por meio de sua obra demoniza praacuteticas de interaccedilatildeo social poliacutetica e religiosa

com o Impeacuterio118 Sua estrateacutegia eacute exacerbar a situaccedilatildeo para promover uma crise na sua

114 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na

sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996 p 134 115 SILVA David A de The Revelation to Johnhellip op cit 116 FRIESEN Steven J Satanrsquos Throne Imperial Cults and the Social Settings of Revelation op cit p 368 117 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 280 118 MESTERS Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das

comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n 69 p 72-82 2001 p 77

Conferir tambeacutem BIGUZZI Giancarlo Ephesus its Artemision its Temple to the Flavian Emperors and

idolatry in Revelation Novum Testamentum Leida v 3 n 40 p 276-290 1998

44

audiecircncia119 pelo menos nas igrejas nas quais tinha alguma influecircncia e invibializar os

relacionamentos significativos com pessoas de fora da comunidade Para isso ele provecirc

motivaccedilotildees tanto positivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos demais

grupos judaicos Em termos sinteacuteticos ele demoniza seus adversaacuterios estressa fortemente

as diferenccedilas de padrotildees e valores escala antagonismo e vaticina um tempo proacuteximo de

rejeiccedilatildeo muacutetua120

14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse

Aparentemente os antigos inteacuterpretes do Apocalipse o liam da mesma forma como

liam outros livros profeacuteticos da tradiccedilatildeo judaica Para eles Joatildeo era profeta e seu livro uma

profecia Foi somente no seacuteculo XIX que se levantou a sugestatildeo de que o Apocalipse de Joatildeo

deveria ser visto como um tipo distinto de literatura121 O argumento era de que o livro natildeo

era como as demais obras da tradiccedilatildeo profeacutetica judaica Aleacutem disso as evidecircncias indicavam

que existia um corpo de escritos parecidos com o Apocalipse formando uma corrente

literaacuteria na qual a obra de Joatildeo poderia ser inserida122 Esta corrente se estenderia para cerca

de trecircs seacuteculos antes do aparecimento do Apocalipse de Joatildeo com acentuada produccedilatildeo em

torno da Guerra dos Macabeus e avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70)123

A partir de entatildeo os estudiosos passaram a tentar definir o que seria o gecircnero

ldquoapocalipserdquo Estas tentativas de definiccedilatildeo consistiam de listas de caracteriacutesticas tiacutepicas

119 Segundo Paul Duff ldquopor causa da fragilidade da fonte do seu poder liacutederes carismaacuteticos atraveacutes da histoacuteria

tecircm usado uma variedade de estrateacutegias para combater as ameaccedilas agrave perda do controle Uma destas estrateacutegias

eacute o fomento das crises ou seja criar crises ou exacerbar uma situaccedilatildeo instaacutevel ao ponto que isso resulte numa

crise Esta taacutetica tem o potencial para acentuar a indispensabilidade do liacuteder inspiradordquo Cf DUFF Paul B

ldquoThe Synagogue of Satanrdquohellip op cit p 164-165 120 Idem p 164-165 121 BARR David L Beyond Genre In BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics

in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p 71-79 p 75 122 COLLINS Adela Yarbro The Early Christian Apocalypses Semeia Atlanta n 14 p 61-121 1979 p 70

Para ela o Apocalipse de Joatildeo poderia ser definido como um apocalipse histoacuterico sem a presenccedila de viagem

celestial Conferir tambeacutem KUumlMMEL op cit p 602 ldquoO material miacutetico os nuacutemeros secretos as visotildees e os

fenocircmenos do ceacuteu como meios a serviccedilo da revelaccedilatildeo de coisas do mundo do aleacutem a representaccedilatildeo das visotildees

atraveacutes de imagens fantaacutesticas e ricamente embelezadas bem como a frequumlente dependecircncia do Antigo

Testamento caracterizam o Apocalipse como uma obra pertencente ao mesmo gecircnero literaacuterio dos apocalipses

judaicosrdquo 123 LOHSE op cit p 240 Sotelo propocircs trecircs hipoacuteteses gerais sobre a origem deste gecircnero literaacuterio Uma delas

entende que ele surgiu de tradiccedilotildees persas sendo completamente estranho aos autores anteriores de Israel

outra argumenta que ele veio da tradiccedilatildeo sapiencial de Israel e uma terceira o liga ao profetismo claacutessico

israelita Cf SOTELO Daniel Origem da apocaliptica In MARASCHIN Jaci Correia (ed) Apocaliptica

Satildeo Bernardo do Campo Instituto Metodista de Ensino Superior 1983 p 17-21 p 17

45

Autores como D S Russell124 procuraram apontar poucos traccedilos distintivos para abraccedilar um

nuacutemero maior de obras Entretanto o resultado eacute que obras que se parecem muito pouco

passaram a ser vistas igualmente como apocalipses

Muitas outras listas surgiram Cada uma apresentava um traccedilo diferente que

considerava ser tiacutepico de um apocalipse Isso fazia com que um livro que um determinado

autor apontava como apocalipse fosse considerado por outro estudioso como de gecircnero

diferente

Um princiacutepio baacutesico subjacente agrave pesquisa do gecircnero destes textos eacute que um

apocalipse como outros tipos de literatura natildeo poderia ser considerado como obra literaacuteria

estanque pois estaria relacionado com outras obras e tradiccedilotildees atraveacutes de uma seacuterie de traccedilos

e conexotildees Por isso definir um apocalipse passou a ser uma questatildeo de precisar os limites

ou paracircmetros dentro dos quais as obras seriam recebidas por seus leitores

Essa definiccedilatildeo avanccedilou consideravelmente como resultado das pesquisas publicadas

no nuacutemero 14 da revista Semeia Ela continuou na tradiccedilatildeo de gerar listas de caracteriacutesticas

para tipificar um apocalipse mas deu um passo a mais por causa da precisatildeo com que estes

traccedilos foram postulados Os resultados foram resumidos por Collins

Apocalipse eacute um gecircnero de literatura de revelaccedilatildeo com uma estrutura

narrativa no qual uma revelaccedilatildeo eacute mediada por um ser sobrenatural para

um ser humano revelando uma realidade transcendente que eacute tanto

temporal enquanto considera salvaccedilatildeo escatoloacutegica quanto espacial

enquanto envolve outro mundo sobrenatural125

A lista de caracteriacutesticas de Collins apresenta um apocalipse do ponto de vista da

forma (literatura de revelaccedilatildeo de estrutura narrativa) e do conteuacutedo (mediaccedilatildeo sobrenatural

realidades transcendentes temporal e espacial) Ao aplicar esta lista de caracteriacutesticas ao

livro de Joatildeo Collins entende que a obra se enquadra com precisatildeo no interior da tradiccedilatildeo

literaacuteria que gerou os apocalipses

Escritores natildeo conseguem escrever sem ter em mente outros textos que eles leram

os quais se tornam modelos para serem imitados transformados ou contrapostos A inserccedilatildeo

de um texto num determinado veio tradicional ou literaacuterio assim tem funccedilatildeo natildeo somente

promotora de caracteriacutesticas (forma conteuacutedo e funccedilatildeo) mas tambeacutem hermenecircutica Afinal

124 RUSSELL D S Desvelamento divino uma introduccedilatildeo agrave apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo Paulus 1997 125 COLLINS John J Introduction Towards the Morphology of a Genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979

p 9

46

leitores natildeo conseguem ler e entender uma obra se eles natildeo estiverem habilitados para

relacionaacute-la com outras que eles tiveram a oportunidade de ler ou conhecer

O propoacutesito da identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo de uma obra eacute orientar e guiar a produccedilatildeo

ou a recepccedilatildeo da mesma Este processo eacute normalmente deliberado e consciente por parte

do autor do livro como um de seus recursos para guiar o seu leitor

A classificaccedilatildeo de textos consiste no levantamento de um conjunto de convenccedilotildees

impliacutecitas ou expliacutecitas O escritor conhece estas convenccedilotildees do contexto no qual e contra o

qual escreve No processo de produccedilatildeo de sua obra ele ajuda o leitor por meio de indicaccedilotildees

para-textuais como tiacutetulos subtiacutetulos prefaacutecios ou outros sinais menos oacutebvios Com isso se

forma um tipo de ldquocontratordquo que orienta antecipadamente a leitura e a apropriaccedilatildeo da obra

Afinal estas marcas estatildeo ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido

Paul Duff destaca que Joatildeo como todo escritor ou orador precisou antecipar a reaccedilatildeo

dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem126 As tais marcas

viabilizam as classificaccedilotildees ou categorizaccedilotildees e formam uma espeacutecie de guia de leitura que

pode ser aceito ou natildeo pelos leitores

Linton insiste que mesmo que uma obra natildeo tenha estes sinais claramente os leitores

tenderatildeo a construir seus proacuteprios guias de interpretaccedilatildeo normalmente comparando a obra

com outras similares de forma a construir um corpo de convenccedilotildees para guiar a leitura127

A praacutetica da leitura se torna entatildeo um contiacutenuo processo de comparaccedilatildeo com leituras

anteriores

Autores se valem de categorias Leitores se aproveitam delas Em ambas as situaccedilotildees

a construccedilatildeo do texto e a busca pelo seu sentido eacute uma atividade de comparaccedilatildeo na qual as

categorias se tornam ferramentas heuriacutesticas significativas Ao escrever sua obra Joatildeo

deliberadamente revestiu-a de marcas e traccedilos de obras que viriam posteriormente a ser

conhecidas como ldquoapocalipsesrdquo Ao assim fazer ele forneceu a forma como ele esperava

que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Aacutesia e com quais textos o Apocalipse deveria

ser comparado

126 DUFF Paul B Who rides the beast op cit p 72 127 LINTON Gregory L Reading the Apocalypse as Apocalypse In BARR David L (ed) The Reality of

Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p

9-41 p 15

47

15 Resumo

O Apocalipse foi escrito por um judeu de nome Joatildeo que migrou da Palestina apoacutes a

guerra judaico-romana (66-70) e desenvolvou uma atividade profeacutetica entre as comunidades

do movimento de Jesus na Aacutesia menor Perto do final do seacuteculo pouco antes do fim do

governo do Imperador Domiciano (96) ele se deslocou ou foi descolocado para a ilha de

Patmos onde escreveu um texto marcado por traccedilos da tradiccedilatildeo literaacuteria judaica denominada

pelos estudiosos como ldquoapocalipserdquo Com sua obra ele desejava convencer alguns membros

especialmente de sete igrejas da proviacutencia asiaacutetica a romperem relacionamentos

significativos com a sociedade romana

II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA

Como discutimos no capiacutetulo anterior o Apocalipse de Joatildeo foi escrito nos anos 90

do primeiro seacuteculo da Era Comum provavelmente nos uacuteltimos anos do principado do

imperador Domiciano (Titus Flavius Domitianus)128 A partir de uma referecircncia interna

(Apocalipse 19) eacute possiacutevel circunscrever seu local de origem como sendo a pequena ilha

do mar Egeu de nome Patmos e seu destino como um conjunto de comunidades do

movimento de Jesus localizadas na proviacutencia proconsular da Aacutesia (Apocalipse 111) Eacutefeso

Esmirna Peacutergamo Tiatira Sardes Filadeacutelfia e Laodiceacuteia

Este Joatildeo de Patmos estaacute longe de Roma capital do Impeacuterio Apesar dos atos e gestos

do Imperador poderem refletir diretamente na vida de Joatildeo e no puacuteblico de sua obra em

termos sociais poliacuteticos econocircmicos ou culturais o contexto especiacutefico do Apocalipse eacute

mesmo a Aacutesia romana Em funccedilatildeo disso neste capiacutetulo nos deteremos em analisar a situaccedilatildeo

desta proviacutencia focando em aspectos que poderiam iluminar de alguma forma o processo

histoacuterico de produccedilatildeo do Apocalipse

21 Patmos o ponto de partida

Segundo o Apocalipse seu autor Joatildeo recebeu a seacuterie de visotildees que deu origem agrave

obra enquanto estava na ilha de Patmos no mar Egeu ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro

na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por

causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo (Apocalipse 19)

Patmos eacute uma ilha pequena Em termos gerais satildeo treze quilocircmetros de extensatildeo por

oito de largura Poreacutem sua costa recortada reduz consideravelmente suas dimensotildees Sua

margem fica a 64 quilocircmetros da foz do rio Maeander o ponto mais proacuteximo da peniacutensula

da Aacutesia Menor129 Esta distacircncia relativa tambeacutem a separava de Mileto seu principal viacutenculo

128 Domiciano foi assassinado no dia 18 de setembro de 96 por uma conspiraccedilatildeo palaciana e substituido no

mesmo dia por um dos seus amici o senador M Cocceius Nerva Cf JONES Brian W The emperor Domitian

Londres Routledge 1992 p 93 129 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield

Academic Press Ltd 1986 p 27

49

social com o continente Das cidades mencionadas no Apocalipse entretanto a mais

proacutexima era Eacutefeso distante da ilha cerca de 100 quilocircmetros130

A associaccedilatildeo de Patmos com Mileto era formal fazendo parte do seu territoacuterio junto

com as ilhas de Lipsos e Leros Nas trecircs ilhas havia algum tipo de povoamento Em Patmos

especificamente seu povo era conhecido como frouroi e seus liacutederes frourarchoi atuando

como parte do governo de Mileto para a populaccedilatildeo local131

Eacute preciso insistir no fato de que Patmos natildeo era uma ilha deserta ou mesmo uma

colocircnia penal O professor David Aune argumenta neste sentido e aponta como evidecircncia

duas inscriccedilotildees encontradas na ilha Uma datada para o seacuteculo II aC faz referecircncia a uma

associaccedilatildeo local de atletas agrave presenccedila de um gymnasium e agrave figura de um gymnasiarcha

eleito sete vezes para a mesma funccedilatildeo Outra de duzentos anos depois jaacute na Era Comum

fala de uma hidrophore sacerdotisa de Artemis e a presenccedila de um templo local bem

estabelecido para esta deusa132

Joatildeo escreve de uma ilha pertencente agrave Mileto a polis mais proacutexima de onde ele ldquose

achavardquo133 Curiosamente entretanto ela estaacute ausente da lista de cidades mencionadas no

Apocalipse Talvez a resposta a esta questatildeo tenha relaccedilatildeo com a falta de uma comunidade

do movimento de Jesus em Mileto O livro Atos dos Apoacutestolos escrito de um lugar

indeterminado entre os anos 80 e 90134 conteacutem uma narrativa que parece indiciar a ausecircncia

de uma comunidade na cidade Nela (Atos 2017-38) Paulo se prepara para fazer uma

viagem a Roma Entre seus preparativos estaacute uma visita agrave igreja de Jerusaleacutem Durante sua

viagem ele se detem em Mileto para conversar natildeo com disciacutepulos da cidade mas com

liacutederes que vieram da igreja de Eacutefeso O autor anocircnimo explicita que ldquode Mileto mandou a

Eacutefeso chamar os presbiacuteteros da igrejardquo (Atos 2017) Natildeo haacute qualquer menccedilatildeo agrave presenccedila de

seguidores do movimento de Jesus pelo menos perto do ano 60 quando os eventos narrados

por Atos se deram135 Neste sentido a omissatildeo do Apocalipse pode indicar que as trecircs

deacutecadas que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de Joatildeo por ela natildeo foram

suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar

130 Conferir os mapas da Aacutesia romana nos anexos 1 e 2 131 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 p 76 132 Idem p 77 133 Ele usa o termo grego ldquoἐγενόμηνrdquo primeira pessoa do aoristo do indicativo meacutedio ldquoachei-merdquo 134 KUMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 238 135 GALBIATTI Enrico Rodolfo ALETTI Aldo Atlas histoacuterico da Biacuteblia e do Antigo Oriente Petroacutepolis

Vozes 1991 p 216

50

22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia

Para Ciacutecero (107-43 aC) a ldquoAacutesia eacute oacutetima e feacutertilrdquo (ldquoAsia vero tam optima est ac

fertilisrdquo) e acrescentou que ldquona riqueza de seus oacuteleos na variedade de seus produtos na

extensatildeo de seus pastos e no nuacutemero de suas exportaccedilotildees ela ultrapassa todas as outras

terrasrdquo (De Imperio cn Pompei ad qurites oratio 14) A Aacutesia Menor era uma das regiotildees

mais ricas do Impeacuterio e dentre as seis proviacutencias da peniacutensula a Aacutesia era a mais rica136

Formalmente ela era uma proviacutencia senatorial governada por um prococircnsul indicado pelo

senado romano137 Entretanto tanto o imperador quanto o senado poderiam promover

regulamentos que afetariam a proviacutencia Justamente por isso nela havia representantes

imperial e senatorial

Durante o governo da dinastia Flaacutevia a gestatildeo da Aacutesia foi marcada pela recuperaccedilatildeo

econocircmica138 A aclamaccedilatildeo de Vespasiano se deu em Alexandria no dia 1 de julho de 69

sendo prontamente reconhecido pelas proviacutencias orientais O novo imperador viajando de

navio parou em vaacuterias cidades da costa da Aacutesia onde oficiais locais fizeram os juramentos

habituais de fidelidade139

Apoacutes sua ascensatildeo ao poder Vespasiano encontrou o tesouro imperial falido pelas

guerras civis que se seguiram agrave morte de Nero Para restaurar as financcedilas puacuteblicas ele adotou

uma poliacutetica econocircmica que reduziu os gastos do governo e procurou aumentar as receitas

do estado reorganizando o recolhimento das taxas puacuteblicas ou criando novas como o fiscus

Alexandrinus e o fiscus Iudaicus Esta segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus para

substituir um imposto recolhido para subsidiar o Templo de Jerusaleacutem recentemente

destruiacutedo pelas legiotildees de Tito filho de Vespasiano140

Uma mudanccedila importante se deu na forma como tais taxas eram cobradas A

cobranccedila saiu das matildeos dos publicani para um agente do governo liderado por um

procurador em Roma e outro em cada proviacutencia Posteriormente Domiciano criou o oficio

136 MAGIE David Roman rule in Asia Minor to the end of third century after Christ Princenton Princenton

University Press 1950 p 34-52 Cf tambeacutem KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no

Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 89 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation

Apocalypse and Empire Oxford Oxford University Press 1990 p 146 137 MAGIE op cit p 569 138 Para uma anaacutelise da reorganizaccedilatildeo efetuada por Vespasiano na proviacutencia mantida e ampliada por Tito e

Domiciano cf LEVICK Barbara Greece and Asia Minor In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient

History Cambridge Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 604-634 p 604 139 MAGIE op cit p 566 140 GRIFFIN Miriam The Flavians In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient History Cambridge

Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 1-83 p 27

51

de curator civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus recursos

Este processo de centralizaccedilatildeo financeira diminuiu a autonomia da proviacutencia contudo

ajudou suas cidades

Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Aacutesia Menor pelo incremento na

construccedilatildeo e manutenccedilatildeo de estradas Estradas importantes foram construiacutedas apoacutes a

ascensatildeo dos Flaacutevios como duas estradas que saiam de Peacutergamo no ano 75 Uma descia na

direccedilatildeo de Esmirna e Eacutefeso margeando a costa Outra seguia pelo interior na direccedilatildeo de

Tiatira e Sardes Estas mesmas estradas foram restauradas por Domiciano Aleacutem das

vantagens para o comeacutercio e a comunicaccedilatildeo o foco nas estradas tinha tambeacutem como objetivo

facilitar o acesso para a regiatildeo oriental da Aacutesia Menor e para as fronteiras com o Impeacuterio

Persa no Eufrates Por elas deveriam circular as legiotildees romanas e o suprimento para as

tropas141 Mas natildeo havia uma legiatildeo especiacutefica estacionada em qualquer proviacutencia da Aacutesia

Menor A defesa da regiatildeo dependia inteiramente das legiotildees fixadas na Siacuteria

O governo de Tito deu sequecircncia agraves poliacuteticas de seu pai ateacute que em setembro de 81

apoacutes sua morte ele foi sucedido por Domiciano Haacute um juiacutezo tradicional negativo a respeito

deste uacuteltimo imperador da dinastia Flaacutevia como ilustrado pela opiniatildeo de Euseacutebio de

Cesareacuteia (263-339)

Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos

dando morte sem julgamento razoaacutevel a natildeo pequeno nuacutemero de

patriacutecios e de homens ilustres e castigando com desterro fora das

fronteiras e confisco de bens a outras inuacutemeras personalidades sem

causa alguma Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero

na animosidade e guerra contra Deus Efetivamente ele foi o segundo

a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutes apesar de que seu pai

Vespasiano nada de mal planejou contra noacutes (Histoacuteria Eclesiaacutestica

III XVII 1)

Este juiacutezo se reflete tambeacutem na historiografia David Magie descreve inicialmente o

governo de Domiciano como inescrupuloso e impiedoso142 mas pouco depois reconhece

que

nas proviacutencias existe pouca evidecircncia de crueldade por parte de

Domiciano ou mesmo de pretensotildees de grandeza exageradas No

oriente mesmo o tiacutetulo de ldquodeusrdquo que incomodava os ouvidos

romanos era tido como normal Ainda o tiacutetulo completo ldquoDeus

invisiacutevel fundador da cidaderdquo inscrito no peacute de uma estatua do

imperador em Priene natildeo era mais extravagante do que outros dados

141 MAGIE op cit p 571 142 Idem p 577

52

a muitos de seus antecessores e a outorga do epiacuteteto de ldquofundadorrdquo

parece indicar que ele realmente beneficiou a cidade143

A relaccedilatildeo de Domiciano com a Aacutesia assim natildeo foi diferente da forma como seu

irmatildeo Tito e seu pai Vespasiano trataram a proviacutencia A proviacutencia se beneficiou com a

gestatildeo dos Flaacutevios que terminou com a morte de Domiciano em setembro de 96 jaacute que o

imperador natildeo deixou herdeiro

Um testemunho da prosperidade do periacuteodo pode ser encontrado em um dos livros

dos Oraacuteculos Sibilinos surgido perto do ano 80 O oraacuteculo escrito na perspectiva do

Judaiacutesmo da diaacutespora na Aacutesia atacou o Impeacuterio Romano mas natildeo deixou de evidenciar a

riqueza da proviacutencia segundo seu autor espoliada em favor de Roma

Grande riqueza viraacute para Aacutesia riqueza que uma vez Roma tendo

tomado-a por rapina armazenou em uma casa de insuperaacuteveis

riquezas mas sem demora ela faz uma dupla restituiccedilatildeo para a Aacutesia

entatildeo haveraacute um excesso de conflitos (Oraacuteculo Sibilino IV I 42)144

Durante as deacutecadas da dinastia Flaacutevia a situaccedilatildeo econocircmica da Aacutesia se refletiu no

volume de novas construccedilotildees natildeo apenas por meio de recursos puacuteblicos mas tambeacutem atraveacutes

de subsiacutedios de pessoas ricas Estas liturgias incluiacuteam recursos para as edificaccedilotildees para o

reparo de construccedilotildees para a manutenccedilatildeo de centros sociais e para a realizaccedilatildeo de

festivais145

A cidade mais beneficiada no periacuteodo foi possivelmente a sede da proviacutencia Eacutefeso

Nela residia o proconsul da cidade O procurador ou vice-proconsul com alguma

probabilidade tambeacutem morava nela A partir da deacutecada de 90 mesmo sem uma precisatildeo

maior trecircs pessoas se sucederam no governo da Aacutesia ateacute a morte de Domiciano Sextus

Vettulenus Civica Cerialis C Minicius e L Junius Caesennius Paetus146

23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia

Os mais antigos membros das igrejas da Aacutesia eram oriundos de comunidades judaicas

da Aacutesia Menor Das centenas de cidades da proviacutencia asiaacutetica a presenccedila do movimento de

143 Idem p 577 144 Citado a partir de MAGIE op cit p 582 145 Idem p 583 146 Idem p 1582-1583

53

Jesus era atestada onde existia tambeacutem uma comunidade judaica147 Eacute plausiacutevel mesmo

tratar o movimento de Jesus na Aacutesia como parte do Judaiacutesmo da diaacutespora

Frequentadores de sinagogas ou de igrejas viviam na Aacutesia Menor no final do

primeiro seacuteculo e iniacutecio do segundo em grandes aacutereas urbanas e o que puder ser dito sobre

o primeiro grupo vale tambeacutem para o segundo O movimento de Jesus estaacute em processo de

ruptura e construccedilatildeo de identidade proacutepria todavia esse movimento ainda natildeo se completou

na regiatildeo como o proacuteprio Apocalipse pode evidenciar Apesar de membros da sociedade

romana especialmente seus magistrados jaacute perceberem alguma diferenccedila entre um e outro

na vida cotidiana eles permaneciam histoacuterica social e teologicamente envolvidos Esse

parece ser o motivo que levou Joatildeo de Patmos a se envolver em disputas com membros das

sinagogas locais (Apocalipse 29 39)148

A crise com as sinagogas de Esmirna (Apocalipse 29) e Filadeacutelfia (Apocalipse 39)

pode ter relaccedilatildeo com a forma como as comunidades judaicas se adaptaram ao contexto

urbano da proviacutencia Judeus habitavam a regiatildeo desde que Antioco III ordenou a realocaccedilatildeo

de duas mil famiacutelias judaicas da Babilocircnia para a Frigia como uma colocircnia militar a fim de

minimizar revoltas na regiatildeo149 Desde entatildeo judeus estavam amplamente presentes na parte

ocidental da Aacutesia Menor vivendo suas praacuteticas religiosas mas com relativa integraccedilatildeo na

vida ciacutevica das cidades150

Mesmo depois da guerra judaico-romana (66-70) os judeus da Aacutesia continuaram a

compartilhar da prosperidade da proviacutencia sem ameaccedila de puniccedilotildees por algum tipo de

conexatildeo com a guerra na Judeacuteia151 Com exceccedilatildeo do Fiscus Iudaicus nenhuma outra

consequecircncia poliacutetica ou social foi imposta aos judeus da diaacutespora pelo Impeacuterio Romano

apoacutes a guerra Segundo Josefo ldquoo mesmo soberano ordenou tambeacutem que os judeus em

qualquer lugar onde morassem deveriam pagar cada qual todos os anos duas dracmas ao

Capitoacutelio como antes pagavam ao templo de Jerusaleacutemrdquo (Guerra dos Judeus 27) A

identificaccedilatildeo dos judeus com a sociedade romana tambeacutem eacute testemunhada por este

sobrevivente da guerra Em Antiguidades Judaicas ele argumenta que judeus em Sardes

eram sardianos em Eacutefeso eram efeacutesios em Antioquia eram antioquenos (Antiguidades

Judaicas 239)

147 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 133 148 Idem p 145 149 TREBILCO Paul Jewish communities in Asia Minor Cambridge Cambridge Univesity Press 1991 p 5 150 Idem p 173 151 Idem p 32

54

Judeus eram membros ativos de associaccedilotildees comerciais e sindicatos Tambeacutem eram

agricultores vinhateiros marinheiros trabalhadores com metal e perfumaria Estavam

envolvidos ainda em manufaturas tecircxtil como tintureiros vendedores e fabricantes de

roupa152

Em cada uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse judeus viviam suas vidas

segundo as tradiccedilotildees judaicas poreacutem sem desprezar a participaccedilatildeo em atividades urbanas

locais Foi a partir destas comunidades judaicas engajadas na vida cotidiana do Impeacuterio que

o movimento de Jesus da Aacutesia formou suas igrejas

24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia

A proviacutencia da Aacutesia se situava na costa ocidental da peniacutensula da Aacutesia Menor O

autor do Apocalipse Joatildeo aponta a ilha de Patmos pertencente agrave cidade de Mileto como o

local de origem do livro Todas as cidades mencionadas explicitamente na obra satildeo cidades

de grande porte dentro da proviacutencia

As principais evidecircncias da presenccedila de cristatildeos nestas cidades vecircm de fontes do

proacuteprio movimento (cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos cartas de Pedro Apocalipse e

Inaacutecio de Antioquia) A mais antiga referecircncia a igrejas na regiatildeo vem de cartas que Paulo

de Tarso escreveu para comunidades de disciacutepulos de Corinto na deacutecada de 50 Ele estava

em Eacutefeso enquanto escrevia estas cartas (1Coriacutentios e 2Coriacutentios) O autor do livro Atos dos

Apoacutestolos tambeacutem falou do tempo em que Paulo ficou em Eacutefeso Segundo ele Paulo ficou

na cidade por trecircs anos (Atos 2031)

Tanto as cartas a Coriacutentios quanto Atos dos Apoacutestolos evidenciam que na capital da

proviacutencia existiam outros liacutederes do movimento Paulo natildeo era o uacutenico Outros como

Aacutequila Priscila e Apolo tambeacutem satildeo mencionados Estes liacutederes eram artesatildeos

independentes oriundos de comunidades judaicas da Aacutesia Menor Isso se nota por meio de

sua mobilidade sua ocupaccedilatildeo e a hospedagem de igrejas em suas casas Pessoas com a

mobilidade que eles possuiacuteam deveriam possuir recursos Para acomodar pessoas suas casas

tambeacutem deveriam ter razoaacutevel espaccedilo Natildeo eram pessoas de classes inferiores da sociedade

romana

152 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 144

55

Jaacute nos tempos de Paulo se manifestou a questatildeo da interaccedilatildeo das comunidades com

a vida urbana da cidade especialmente na questatildeo da alimentaccedilatildeo em atividades religiosas

ou ciacutevicas Em cidades gregas e romanas as pessoas tinham vaacuterias oportunidades para

participar de refeiccedilotildees cuacutelticas Isso poderia acontecer em ocasiotildees puacuteblicas (funerais

celebraccedilotildees festas ciacutevicas etc) ou privadas (clubes organizaccedilotildees comerciais refeiccedilotildees

privadas etc) Tanto em uma quanto em outra situaccedilatildeo as refeiccedilotildees expressavam conexatildeo

social em torno de causas comuns153

Fazer refeiccedilotildees puacuteblicas e comer carne oriunda de sacrifiacutecios religiosos satildeo

elementos diretamente ligados agrave questatildeo da participaccedilatildeo nas instituiccedilotildees sociais da cidade e

do Impeacuterio Este tipo de pressatildeo poderia ser diferente para status sociais distintos Segundo

Gerd Theissen cristatildeos ricos teriam mais oportunidades de se envolver em refeiccedilotildees cuacutelticas

de caraacuteter puacuteblico do que cristatildeos pobres154

Quando Paulo tratou deste assunto em 1Coriacutentios 8-10 ele relacionou a participaccedilatildeo

nas refeiccedilotildees com a situaccedilatildeo dos fracos e fortes dentro da comunidade Seu argumento

caminha na direccedilatildeo de que somente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto

os ldquofracosrdquo e os ldquofortesrdquo (ἀσθενεiς kai ἰσχυροί) participassem juntos como em festivais

puacuteblicos eacute que os disciacutepulos deveriam se abster (1Coriacutentios 87-13) Nas instacircncias privadas

poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela origem da comida

(1Corintios 1027) As igrejas da Aacutesia provavelmente nasceram a partir de mensagens e

perspectivas semelhantes agraves de Paulo de Tarso

O autor do Apocalipse quatro deacutecadas depois de missionaacuterios como Paulo Aacutequila

Priscila e Apolo terem fundado essas comunidades escreve uma obra na qual defende

posiccedilotildees divergentes Os adversaacuterios de Joatildeo descritos em sua obra como os nicolaiacutetas

baalamitas ou Jesabel satildeo atacados por promoveram algum tipo de interaccedilatildeo com a

sociedade interaccedilatildeo essa que parece ter relaccedilatildeo com a mesma questatildeo respondida por Paulo

na sua carta aos Coriacutentios a participaccedilatildeo em refeiccedilotildees ou atividades sociais que envolviam

a ingestatildeo de carne originada em sacrifiacutecio religioso Aqueles que Joatildeo enxerga como

adversaacuterios satildeo provavelmente membros do movimento de Jesus que possuem uma

perspectiva semelhante agrave que Paulo deu aos crentes de Corinto155 Thompson analisa a

153 Idem p 123 154 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva Satildeo Leopoldo Sinodal 1983 p 146 155 Assim resumiu Pagels ldquomuitas praacuteticas que Joatildeo atacava eram as mesmas que Paulo anteriormente

recomendavardquo Cf PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation

New York Penguin Books 2012 p 54

56

questatildeo e sugere que como as respostas que os adversaacuterios de Joatildeo datildeo satildeo semelhantes agrave

do antigo missionaacuterio de Tarso possivelmente eles possuiacuteam posiccedilotildees sociais semelhantes

ou seja estavam envolvidos em atividades comerciais possuiacuteam responsabilidades ciacutevicas

e pertenciam a um estrato mais rico da lideranccedila das igrejas da Aacutesia156 Este mesmo autor

defende que as igrejas da Aacutesia deveriam ter em linhas gerais uma mesma composiccedilatildeo

social Elas possuiacuteam em seus quadros pessoas livres e escravas homens e mulheres ricos

e pobres e deveriam se parecer com muitas associaccedilotildees religiosas ou sociais que existiam

na Aacutesia157 Estas associaccedilotildees synodos proliferavam consideravelmente desde a instauraccedilatildeo

do Impeacuterio e se manifestavam no Ocidente e no Oriente Segundo Meeks elas surgiam a

partir da decisatildeo de um grupo de doze a quarenta pessoas de se encontrarem em algum lugar

para reuniotildees158

Nestas reuniotildees era comum haver certa semelhanccedila de status social entre seus

membros Entretanto o proacuteprio fenocircmeno ldquostatusrdquo eacute complexo e possui vaacuterias dimensotildees

No status social de uma pessoa ou famiacutelia influiam elementos como poder prestiacutegio da

ocupaccedilatildeo renda ou riqueza educaccedilatildeo e cultura religiatildeo e pureza ritual famiacutelia ou grupo

eacutetnico status da comunidade local em que se estava envolvido Cada um destes elementos

poderia ser conjugado de forma diferente em uma dada circunstacircncia histoacuterica Na praacutetica

o status de um cidadatildeo romano era o resultado de como estas variaacuteveis eram consideradas

na sociedade local Mesmo que existisse certa perspectiva geral um sacerdote de Eacutefeso

poderia ter mais status do que um comerciante rico da cidade Em outra cidade o

conhecimento poderia ser mais importante do que a etnia em outra a pureza ritual poderia

valer mais do que a descendecircncia familiar A riqueza poderia dar mais status do que o

conhecimento mas em algumas circunstacircncias pertencer a uma famiacutelia nobre era mais

importante do que ter recursos financeiros159

Atentando para esses elementos o que as fontes geradas pelo movimento de Jesus

poderiam apontar sobre o status social dos seus membros O missionaacuterio Paulo de Tarso na

mesma carta que escreveu para a comunidade de Corinto informa que ldquonatildeo muitos da

comunidade eram saacutebios segundo o mundo nem poderosos nem de nobre nascimentordquo

(1Coriacutentios 126) Dizer que natildeo havia muitos significa afirmar que havia alguns Entre os

156 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 129 157 Idem p 127 158 MEEKS Wayne A Os primeiros cristatildeos urbanos o mundo social do Apoacutestolo Paulo Satildeo Paulo Paulinas

1992 p 54 159 Conferir esta discussatildeo em MEEKS op cit p 91

57

membros do movimento na cidade havia pessoas cultas (ldquordquo) ricas

(ldquordquo) ou bem-nascidas (ldquordquo) Pelo argumento de Paulo estes formavam uma

minoria dentro da comunidade apesar de se constituiacuterem numa minoria dominante160

Outro testemunho sobre as posiccedilotildees sociais dentro das comunidades da Aacutesia pode vir

de uma carta que Pliacutenio o Jovem escreveu em 112 enquanto atuava como governador da

proviacutencia da Bitiacutenia e Ponto tambeacutem na Aacutesia Menor O quadro descrito por Pliacutenio parece

ser bem parecido com a composiccedilatildeo da igreja de Eacutefeso ou das demais cidades mencionadas

no Apocalipse Pliacutenio resolveu tratar deste assunto com o Imperador Trajano porque

entendeu que a questatildeo era digna de consideraccedilatildeo imperial em funccedilatildeo do nuacutemero de pessoas

que se engajavam no movimento Estes ldquochristianirdquo eram de todas as idades (ldquoominis

aetatisrdquo) todas as ordens (ldquoomnis ordinisrdquo) tanto homem quanto mulher (ldquoutrisque sexusrdquo)

(Epiacutestolas 10968)

Uma carta que Paulo escreveu a Filemon jaacute na deacutecada de 60 no periacuteodo em que

esteve preso em Roma indica outro aspecto significativo da composiccedilatildeo destas

comunidades Filemon era proprietaacuterio de escravo Um deles Oneacutesimo fugiu encontrou-se

com Paulo em Roma converteu-se ao movimento e foi orientado a voltar para seu antigo

dominus este tambeacutem um convertido morador da Aacutesia Uma igreja se reunia na casa deste

senhor de escravos (Filemon 2) Natildeo eacute possiacutevel saber quantos escravos Filemon possuiacutea

mas ele recebe a orientaccedilatildeo de Paulo para que aceitasse seu antigo escravo de forma

amistosa natildeo mais como escravo (ldquow`j doulonrdquo) e sim como algueacutem mais do que escravo

(ldquou`per doulonrdquo) O escravo agora deveria ser tratado como irmatildeo (ldquow`j avdelfonrdquo) A taacutebua

domeacutestica registrada na carta aos Efeacutesios (Efeacutesios 65) documento deuteropaulino anocircnimo

escrito em algum momento entre os anos 80-100 possivelmente da Aacutesia161 especifica que

os escravos deveriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor (ldquometa fobou kai

tromourdquo)

Isso indica que as comunidades de Jesus tinham a presenccedila de pessoas livres e

escravas senhores e servos mas as orientaccedilotildees de seus liacutederes tendiam a tomar o lado dos

senhores em vez dos escravos

Outros elementos tambeacutem podem iluminar o quadro social destas comunidades da

Aacutesia162 Primeiramente o fato de alguns de seus membros escreverem livros e cartas para

160 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva op cit p 146-147 161 KUMMEL op cit p 480 162 Sobre estas sugestotildees cf THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 128-129

58

serem lidas no interior do movimento indica uma presenccedila significativa de pessoas que

sabiam escrever e ler numa sociedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas

mas parcamente encontradas Um segundo aspecto pode ser localizado naqueles que

hospedavam a comunidade em sua casa os quais deveriam ter certa ascendecircncia sobre os

membros do movimento Possivelmente eles agiam como ldquopatronosrdquo da igreja da mesma

forma como outros patronos da cidade suportavam clubes e associaccedilotildees comerciais Por fim

cristatildeos viajavam muito num periacuteodo em que viagens eram muito custosas Meeks sugeriu

a partir dos itineraacuterios apresentados nos Atos dos Apoacutestolos que o missionaacuterio Paulo de

Tarso pode ter viajado aproximadamente dezesseis mil quilocircmetros durante sua carreira

religiosa163 Estas viagens eram bancadas geralmente por atividades profissionais proacuteprias

mas em algumas circunstacircncias como no caso de Joatildeo de Patmos algum tipo de patrociacutenio

poderia ser buscado entre as comunidades visitadas

Com comunidades assim constituiacutedas de que maneira seus membros se

relacionavam com a sociedade Como jaacute indicamos no capiacutetulo anterior os membros do

movimento de Jesus da Aacutesia estavam inseridos na vida cotidiana da proviacutencia e natildeo

buscavam ruptura com seus vizinhos Apesar da dificuldade em se situar geograficamente a

origem ou o destino escrevendo em meados do segundo seacuteculo o autor da carta a Diogneto

resumiu

Os cristatildeos de fato natildeo se distinguem dos outros homens nem por sua

terra nem por liacutenguas ou costumes Com efeito natildeo moram em cidades

proacuteprias nem falam liacutengua estranha nem tecircm algum modo especial de

viver Sua doutrina natildeo foi inventada por eles graccedilas ao talento e

especulaccedilatildeo de homens curiosos nem professam como outros algum

ensinamento humano Pelo contraacuterio vivendo em cidades gregas e

baacuterbaras conforme a sorte de cada um e adaptando-se aos costumes do

lugar quanto agrave roupa ao alimento e ao resto testemunham um modo de

vida social admiraacutevel e sem duacutevida paradoxal Vivem na sua paacutetria mas

como forasteiros participam de tudo como cristatildeos e suportam tudo como

estrangeiros Toda paacutetria estrangeira eacute paacutetria deles e cada paacutetria eacute

estrangeira (Carta a Diogneto 51-5)

Tertuliano no final do segundo seacuteculo argumentou de modo semelhante para a

sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia Segundo ele os cristatildeos tinham a mesma

maneira de vida as mesmas roupas e os mesmos costumes eles frequentavam juntos o

mercado o accedilougue os banhos puacuteblicos as lojas as faacutebricas as tavernas as feiras e outros

163 MEEKS op cit p 32

59

negoacutecios Cristatildeos eram marinheiros soldados agricultores e se envolviam no comeacutercio

com natildeo cristatildeos Defendendo sua comunidade ele argumentou que eles proviam

habilidades e serviccedilos para o benefiacutecio de toda a sociedade romana (Apologia 42)

Tanto a Carta a Diogneto quanto Apologia natildeo dizem respeito especiacutefico agrave Aacutesia do

final do primeiro seacuteculo mas pelo menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a

interaccedilatildeo social no movimento de Jesus A perspectiva do missionaacuterio Paulo na deacutecada de

50 e 60 parece estar replicada em Diogneto e Apologia no segundo seacuteculo Isso significa

dizer que os seguidores de Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas

situaccedilotildees que os demais membros da sociedade romana Eles tinham contatos com pessoas

de outros viacutenculos religiosos na economia sociedade famiacutelia e poliacutetica Os seguidores de

Jesus tocavam suas vidas de forma paciacutefica com seus vizinhos tentando viver sem

distuacuterbios ou mesmo sem chamar muita atenccedilatildeo

25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo

No mesmo periacuteodo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse mas longe de Patmos cerca

de 1600 quilocircmetros um dos liacutederes da igreja de Roma o presbiacutetero Clemente escreveu

uma carta para a igreja de Corinto Clemente romano alcanccedilou grande prestiacutegio em vaacuterias

comunidades cristatildes posteriormente a ponto de sua carta aparecer em diversas listas

canocircnicas O que levou Clemente a se manifestar aparentemente foi algum tipo de tumulto

interno do movimento de Jesus em Corinto Alguns liacutederes da igreja teriam sido destituiacutedos

sem motivo aparente o que gerou o protesto de Clemente Ele escreveu ldquoCariacutessimos eacute

vergonhoso muito vergonhoso e indigno de conduta cristatilde ouvir dizer que a firme e antiga

Igreja de Corinto por causa de uma ou duas pessoas estaacute em revolta contra os seus

presbiacuteterosrdquo (1Clemente 476)

Na saudaccedilatildeo inicial ele descreve a igreja da capital como ldquoestrangeira em Romardquo A

expressatildeo poderia ser indiacutecio de algum tipo de desconforto da comunidade em relaccedilatildeo agrave

sociedade romana Outra passagem de sua carta talvez aponte para a mesma direccedilatildeo

ldquoIrmatildeos pelas desgraccedilas e adversidades imprevistas que nos aconteceram uma apoacutes outra

acreditamos ter demorado muito para dar atenccedilatildeo agraves coisas que entre voacutes se discutemrdquo

(1Clemente 11) O autor faz referecircncia a algum tipo de crise que impediu que ele se

60

manifestasse anteriormente sobre a situaccedilatildeo de Corinto mas ele evita descrever a natureza

desta crise em qualquer outro lugar da obra

Ao sugerir o fim para os conflitos internos da comunidade ele toma o exeacutercito

romano como exemplo de organizaccedilatildeo e ordem

Irmatildeos militemos com toda nossa prontidatildeo sob as ordens irrepreensiacuteveis

dele Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos

governantes com que disciplina docilidade e submissatildeo eles executam as

funccedilotildees que lhes satildeo designadas (1Clemente 371-2)

Ao demonstrar certa admiraccedilatildeo pela estrutura militar do Impeacuterio ou quando

denomina os oficiais romanos de ldquonossos governantesrdquo a carta de Clemente parece

evidenciar que os membros da comunidade de Jesus estabelecida na capital do Impeacuterio natildeo

possuem uma crise aberta com a sociedade Em funccedilatildeo de suas analogias o mesmo poderia

ser dito a respeito da igreja de Corinto Essa parece ser tambeacutem a postura que adotou o autor

anocircnimo de 1Pedro possivelmente entre os anos 90-95164 escrevendo talvez de Roma

ldquoSujeitai-vos a toda instituiccedilatildeo humana por causa do Senhor quer seja ao rei como

soberano quer agraves autoridades como enviadas por ele tanto para castigo dos malfeitores

como para louvor dos que praticam o bemrdquo (1Pedro 213-14)

Alguns argumentos de Clemente (1Clemente 552-3) indicam que a igreja jaacute passou

por dificuldades mas ele minimiza a crise inserindo-a numa exortaccedilatildeo em benefiacutecio do bem

comum O presbiacutetero Clemente natildeo atribui agrave sociedade romana a responsabilidade pelas

dificuldades que a comunidade enfrentou Isso sugere a existecircncia de uma comunidade

estabelecida na capital do Impeacuterio engajada em evitar problemas com a sociedade

experiecircncia essa que parecia estar replicada em comunidades da proviacutencia da Aacutesia

Mas se os membros do movimento de Jesus de uma forma geral tentavam manter

laccedilos regulares com a sociedade romana o inverso tambeacutem poderia ser afirmado Da parte

dos governantes geralmente havia certa toleracircncia para com costumes e mesmo divindades

locais desde que natildeo se opusessem aos interesses romanos Esta atitude de toleracircncia relativa

deve ter favorecido o desenvolvimento das igrejas Muitas comunidades existiram sem

serem notadas por quase um seacuteculo165 Accedilotildees oficiais da parte dos prococircnsules procuradores

ou outros magistrados locais como as noticiadas por Pliacutenio o Jovem ao imperador Trajano

no iniacutecio do segundo seacuteculo eram raras

164 KUumlMMEL op cit p 557-558 165 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 p 124

61

Tensotildees se manifestavam de forma intermitente como perseguiccedilotildees eventuais mas

normalmente natildeo eram oficiais Segundo Thompson para pessoas de fora da comunidade o

movimento de Jesus era uma religiatildeo suspeita por quatro motivos era nova estrangeira

secreta e exclusiva166 Provavelmente foi em consequecircncia de uma suspeiccedilatildeo desta natureza

que cristatildeos foram acusados diante do governador da Bitiacutenia algum tempo depois do

Apocalipse

As cartas de Pliacutenio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusaccedilotildees

predominantemente vagas Natildeo havia um crime especiacutefico para o processo contra os cristatildeos

O governador perguntou ldquoHaacute de punir-se o simples fato de algueacutem ser cristatildeo mesmo que

inocente de qualquer crime ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nomerdquo

(Epistola 10962) Ainda assim na duacutevida sobre o que fazer Pliacutenio inaugurou um teste

Os que negarem ser cristatildeos considerei-os merecedores de absolviccedilatildeo De

fato sob minha pressatildeo devotaram-se aos deuses e reverenciaram com

incenso e libaccedilotildees vossa imagem colocada para este propoacutesito ao lado das

estaacutetuas dos deuses e pormenor particular amaldiccediloaram a Cristo coisa

que um genuiacuteno cristatildeo jamais aceita fazer (Epiacutestola 10965)

A proviacutencia governada por Pliacutenio era vizinha da Aacutesia e fazia parte do complexo

cultural da mesma peniacutensula Ainda que o problema principal natildeo fosse o culto imperial o

gesto do governador colocou o movimento em colisatildeo com atividades religiosas locais As

epiacutestolas do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos entendiam ser crime

renegar ritos sagrados locais especialmente o culto imperial

26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo

Nos termos de Leonard Thompson ldquonas proviacutencias rituais imagens templos altares

associados com o culto imperial contribuiacuteam de forma importante para a compreensatildeo das

pessoas acerca da sua relaccedilatildeo com o imperadorrdquo167 Isso fazia da instituiccedilatildeo do culto imperial

uma importante representaccedilatildeo do imperador e do Impeacuterio na Aacutesia Havia entretanto

reciprocidade no seu estabelecimento Era uma honra para a cidade ter um templo ou altar

do culto imperial ao mesmo tempo que era importante para o imperador Impeacuterio e senado

aceitavam a existecircncia do culto imperial e promoviam seu estabelecimento e manutenccedilatildeo

166 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 132 167 Idem p 158

62

como igualmente o faziam as proviacutencias Isso significa que a rede de relaccedilotildees alimentadas

pelo culto imperial entre Roma e Aacutesia era uma rede de poder um instrumento poliacutetico de

vaacuterios niacuteveis168

Simon Price analisou a presenccedila do culto na Aacutesia insistindo na dificuldade de

circunscrever o papel do culto imperial apenas agraves esferas poliacuteticas Ele tinha igualmente um

papel religioso Segundo ele rituais de sacrifiacutecio e devoccedilatildeo puacuteblica ou privada eram

simultaneamente expressotildees religiosas e poliacuteticas169

O culto imperial natildeo foi criado pelo imperador do periacuteodo do Apocalipse Otaacutevio

Augusto recebeu honras das cidades da Aacutesia semelhantes agraves oferecidas aos deuses locais

Sacerdotes do primeiro imperador poderiam ser encontrados em mais de trinta cidades da

Aacutesia Menor e mais parentes seus receberam culto do que qualquer outro imperador depois

dele Durante o governo de Claacuteudio surgiram ao lado do sacerdote exclusivo para o

imperador vivo outros sacerdotes com a responsabilidade de promover culto tambeacutem para

os imperadores mortos Em funccedilatildeo da antiguidade da praacutetica e sua permanecircncia no decorrer

dos governos imperiais eacute possiacutevel afirmar que Domiciano alvo de uma forte criacutetica no

Apocalipse (Apocalipse 13) natildeo foi nem mais nem menos insistente com relaccedilatildeo agraves suas

prerrogativas divinas que qualquer imperador antes ou depois dele170

Todas as cidades do Apocalipse tinham manifestaccedilatildeo do culto imperial em algum

niacutevel cinco delas tinham altares imperiais (com exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia) seis

tinham templos imperiais (com exceccedilatildeo de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com

exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia)171

Aleacutem das praacuteticas e sacrifiacutecios religiosos nos templos e altares dedicados ao

Imperador sacerdotes imperiais promoviam festivais puacuteblicos que eram importantes

expressotildees religiosas e ciacutevicas na Aacutesia Estes festivais poderiam acontecer em diversas datas

mas estavam normalmente vinculados ao aniversaacuterio do Imperador Durante as celebraccedilotildees

os templos e santuaacuterios eram enfeitados e animais eram sacrificados em diversos altares

espalhados pela cidade Em cada local a participaccedilatildeo puacuteblica era aberta e esperada tendo

como cliacutemax uma refeiccedilatildeo ritual172

168 Idem p 159 169 PRICE Simon R F Rituals and Power The Roman imperial cult in Asia Minor Cambridge Cambridge

University Press 1984 p 235 170 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 159 171 PRICE op cit p 55-58 172 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation op cit p 163

63

Dentro dos templos imperiais como nos templos dedicados a outros cultos havia

estaacutetuas do imperador vivo e de outros imperadores alguma iconografia imperial e mesas

para os diversos sacrifiacutecios Estaacutetuas do imperador tambeacutem eram encontradas ao longo das

cidades ou em centros da vida puacuteblica urbana Nem todas as estaacutetuas do imperador

encontradas numa polis eram objeto de culto mas aquelas que estavam em um lugar sagrado

ou quando usadas em um tempo sagrado (um festival religioso por exemplo) tinham um

significado ritual Estas estaacutetuas e imagens tinham sentido religioso e poliacutetico e

funcionavam como um lembrete permanente uma representaccedilatildeo do poder do Imperador173

A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Aacutesia fez com que a

questatildeo do relacionamento com a sociedade se tornasse significativo para o movimento de

Jesus na proviacutencia Era difiacutecil se relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma

de suas celebraccedilotildees puacuteblicas Para alguns liacutederes das igrejas da regiatildeo natildeo havia problema

no envolvimento em atividades proacuteprias da cidade e em comer da comida oriunda dos

sacrifiacutecios religiosos Se participassem destas celebraccedilotildees diminuiriam a tensatildeo com a

sociedade e continuariam envolvidos nos diversos negoacutecios da vida urbana Alguns

entretanto como Joatildeo de Patmos possuiacuteam uma perspectiva distinta Possivelmente ele

representava uma minoria dentro das igrejas da Aacutesia que instava fortemente as comunidades

a exacerbar a tensatildeo com a sociedade e a se isolar das estruturas sociais da peniacutensula174

27 Resumo

A ilha de Patmos de onde partiu o Apocalipse e a proviacutencia romana da Aacutesia seu

destino partilhavam de uma mesma conjuntura social Era uma das regiotildees mais ricas do

Impeacuterio Romano com a presenccedila de comunidades judaicas espalhadas por vaacuterias de suas

cidades Membros destas comunidades que criam em Jesus como o Messias estavam na base

das mais antigas igrejas da regiatildeo Tanto as sinagogas quanto a maioria das igrejas

buscavam desenvolver seus ritos e crenccedilas sem conflito com a sociedade romana local

mesmo diante de tensotildees que poderiam se manifestar em relaccedilatildeo ao culto imperial Alguns

liacutederes buscavam manter orientaccedilotildees que poderiam proceder do apoacutestolo Paulo e assim

permitir a participaccedilatildeo dos membros em atividades ciacutevicas e religiosas locais Essas

173 Idem p 163 174 Idem p 167

64

comunidades natildeo desejavam que suas praacuteticas religiosas inviabilizassem seus

relacionamentos com a sociedade romana Joatildeo de Patmos entretanto manifesta em sua

obra uma postura oposta a liacutederes como seu contemporacircneo Clemente Romano Na

perspectiva do autor do Apocalipse para ser fiel ao seu fundador o movimento de Jesus

precisava rejeitar o Impeacuterio

III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE

JOAtildeO

Joatildeo de Patmos judeu emigrante da Palestina apoacutes a guerra contra os romanos por

meio de narrativas imagens e siacutembolos se apropriou de determinadas tradiccedilotildees religiosas

judaicas e construiu um apocalipse que pretendia explicar a conjuntura histoacuterica que o

movimento de Jesus experimentou e experimentava no interior da proviacutencia romana da Aacutesia

A obra culmina na descriccedilatildeo do juiacutezo final e da nova criaccedilatildeo divina Antes disso entretanto

o autor apresenta um periacuteodo de governo messiacircnico iminente terrenal intra-histoacuterico por

mil anos (Apocalipse 201-10) Apesar de curta a narrativa do milecircnio acabaraacute no centro dos

debates e das interpretaccedilotildees subsequentes do livro joanino175 Queremos neste capiacutetulo

analisar a produccedilatildeo desta periacutecope no contexto da obra joanina a partir de suas apropriaccedilotildees

tradicionais e literaacuterias na direccedilatildeo de novas representaccedilotildees individuais e coletivas

histoacutericas e milenaristas Procuramos refletir tambeacutem sobre a forma como estas

representaccedilotildees poderiam interferir no mundo social de Joatildeo e suas comunidades176

31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse

Adela Y Collins sugeriu que a obra joanina apesar de apresentar certos sinais que

indicariam uma estrutura clara (sete igrejas sete selos sete trombetas e sete taccedilas por

exemplo) natildeo eacute tatildeo transparente assim deixando a audiecircncia com certa expectativa

frustrada Isso poderia explicar os longos debates a respeito da estrutura da obra de Joatildeo177

Entre as alternativas David L Barr preferiu construir um esboccedilo do livro acompanhando o

desenvolvimento de suas narrativas Por isso ele dividiu o Apocalipse joanino em trecircs seccedilotildees

principais emolduradas por uma estrutura epistolar (os versiacuteculos 11-3 formariam o

prefaacutecio enquanto 226-21 a conclusatildeo) Ele as chamou de Seccedilatildeo das Cartas (14-322)

Seccedilatildeo do Culto Celestial (41-1118) e Seccedilatildeo da Guerra Escatoloacutegica (1119-225)178 Nossa

175 Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene

Wipf and Stock Publishers 2001 p 21-87 KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation

Oxford Blackwell Publishing 2004 p 200-219 176 Pensamos aqui nos papeacuteis sociais instituiccedilotildees sociais e relacionamentos sociais 177 Conferir uma histoacuteria da estruturaccedilatildeo do Apocalipse em COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in

the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 13-44 178 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa

Polebridge Press 1998

66

proposta de esboccedilo para o Apocalipse parte das sugestotildees de Barr em funccedilatildeo da forma como

ele compreendeu o desenvolvimento narrativo do livro joanino e o enquadramento

particular de cada episoacutedio literaacuterio no interior da obra como um todo Por meio deste esboccedilo

eacute possiacutevel entatildeo verificar o lugar do milecircnio dentro do Apocalipse Em termos literaacuterios ele

faz parte da narrativa da guerra escatoloacutegica ao descrever a vitoacuteria do Jesus exaltado sobre

Satanaacutes e as bestas num evento que termina com o juiacutezo final e a Nova Jerusaleacutem

- Introduccedilatildeo epistolar (11-3)

- Primeira seccedilatildeo ndash O Filho do Homem e as sete igrejas da Aacutesia (14-322)

Carta agrave Igreja em Eacutefeso (21-7)

Carta agrave Igreja em Esmirna (28-11)

Carta agrave Igreja em Peacutergamo (212-17)

Carta agrave Igreja em Tiatira (218-29)

Carta agrave Igreja em Sardes (31-6)

Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia (37-13)

Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia (314-22)

- Segunda seccedilatildeo ndash O rolo selado com sete selos (41-1119)

O culto ao Anciatildeo no trono (41-11)

O culto ao Cordeiro (51ndash14)

Selo 1 ndash Cavalo branco (61ndash2)

Selo 2 ndash Cavalo vermelho (63ndash4)

Selo 3 ndash Cavalo preto (65-6)

Selo 4 ndash Cavalo amarelo (67-8)

Selo 5 ndash Os maacutertires debaixo do altar (69-11)

Selo 6 ndash Juiacutezo escatoloacutegico (612-17)

Interluacutedio (71-17)

144000 selados (71-8)

Grande multidatildeo (79ndash17)

Selo 7 - Sete trombetas (81ndash1119)

O anjo das oraccedilotildees (81ndash6)

Trombeta 1 ndash Granito e fogo sobre a terra (88-7)

Trombeta 2 ndash Mar se torna em sangue (88-9)

Trombeta 3 ndash Estrelas tornam rios amargos (810-11)

Trombeta 4 ndash Sol lua e estrelas escurecem (812-13)

Trombeta 5 ndash Gafanhotos sobem do abismo (91-12)

Trombeta 6 ndash Quatro anjos e um exeacutercito matam pessoas (913-21)

Interluacutedio (101-1114)

Um livro para ser comido (101-11)

As duas testemunhas (111-14)

Trombeta 7 ndash A chegada do reino de Deus (1115ndash19)

- Terceira seccedilatildeo ndash A guerra escatoloacutegica (121-225)

A origem da guerra (121-18)

Os aliados do Dragatildeo (131-18)

A besta do mar (131-10)

A besta da terra (1311-18)

67

Os 144000 guerreiros do Cordeiro (141-5)

O anuacutencio dos trecircs anjos (146-12)

A bem-aventuranccedila dos mortos (1413)

O juiacutezo como uma ceifa (1414-20)

As sete taccedilas da ira (151-1621)

Os maacutertires diante de Deus (151-8)

Taccedila 1 Dores nos marcados pela besta (161-2)

Taccedila 2 O mar se torna em sangue (163)

Taccedila 3 Os rios se tornam em sangue (164-7)

Taccedila 4 O sol provoca feridas (168-9)

Taccedila 5 Trevas no trono da besta (1610-11)

Taccedila 6 A seca do Rio Eufrates e a coalizatildeo do Dragatildeo (1612-16)

Taccedila 7 Juiacutezo sobre Babilocircnia (1617-21)

A prostituta destruiacuteda (171-18)

Hino fuacutenebre pela queda da Babilocircnia (181-24)

Celebraccedilatildeo no ceacuteu pela queda da Babilocircnia (191-4)

O culto no ceacuteu anuncia as bodas do Cordeiro (195-10)

A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre as bestas (1911-21)

A prisatildeo do Dragatildeo (201-3)

O reino messiacircnico milenar (204-6)

A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre o Dragatildeo (207-10)

O juiacutezo final (2011-15)

A Nova Jerusaleacutem (211-225)

- Conclusatildeo epistolar (226-21)

32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo

Uma das caracteriacutesticas recorrentes nos apocalipses segundo John Collins eacute a

ldquorevelaccedilatildeordquo179 O proacuteprio termo ldquoapocalipserdquo () significa ldquorevelaccedilatildeordquo180 Seus

autores se propotildeem a revelar algo para sua audiecircncia Em linhas amplas estas revelaccedilotildees

poderiam ser divididas em dois eixos um vertical e outro horizontal

No eixo horizontal os autores queriam revelar o passado e o futuro O foco varia de

texto a texto com algumas obras com ecircnfase no passado ao descreverem os primoacuterdios da

histoacuteria da humanidade o iniacutecio da saga do povo de Deus ou mesmo uma descriccedilatildeo

cosmogocircnica sobre como as coisas vieram a ser o que satildeo no seu presente momento Quando

o foco estava no futuro os autores pretendiam descrever a intervenccedilatildeo final de Deus que

promoveria uma inversatildeo escatoloacutegica com todas as suas consequecircncias (cataclismos

coacutesmicos e juiacutezo sobre os inimigos de um lado nova criaccedilatildeo e recompensa para os membros

179 COLLINS John J Introduction towards the morphology of a genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979

p 9 180 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 66

68

do grupo do outro) Nesta perspectiva haacute a construccedilatildeo de um esquema teleoloacutegico da

histoacuteria no qual um fim glorioso resolveria a violecircncia e os traumas do passado e do presente

da comunidade destinataacuteria do apocalipse em questatildeo

No eixo vertical uma obra apocaliacuteptica se propotildee a revelar o que estaacute para aleacutem do

mundo humano o que estaacute acima e o que estaacute abaixo os ceacuteus e os submundos bem como

as coisas e seres que existem nestes espaccedilos Haacute aqui uma preocupaccedilatildeo em entender como

o universo funciona como o mundo sobrenatural interfere no mundo dos seres humanos e

na natureza e como controlar ou pelo menos ter acesso a essas realidades sobrenaturais

O Apocalipse de Joatildeo como outros apocalipses antes dele e depois dele tambeacutem

possui essas preocupaccedilotildees horizontais e verticais Como as revelaccedilotildees apocaliacutepticas satildeo

transmitidas no formato de narrativas o conteuacutedo do livro do profeta de Patmos estaacute

apresentado no interior de trecircs histoacuterias distintas mas inter-relacionadas181 A primeira

histoacuteria a ser narrada eacute a do aparecimento do Filho do Homem que promove o ditado de sete

cartas para um grupo de igrejas da Aacutesia romana Nestas cartas a figura celestial conhecida

das tradiccedilotildees de Daniel182 e 1Enoque183 faz ameaccedilas elogios e promessas e termina cada

carta com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores As mensagens

das cartas giram em torno de distuacuterbios entre os proacuteprios membros do movimento de Jesus

por causa das diferentes posturas de relacionamento com a sociedade romana em cada

contexto local184

Na segunda seccedilatildeo do livro o narrador das revelaccedilotildees eacute levado em espiacuterito (ldquoἐν

πνεύματιrdquo) por uma porta aberta no ceacuteu Neste lugar ele presencia uma sucessatildeo de atos

lituacutergicos e eacute apresentado aos principais personagens celestiais o Anciatildeo sobre o trono os

Quatro Viventes os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais e vaacuterios seres angelicais A figura

181 Interpretamos as narrativas do Apocalipse agrave luz do contexto em que ele foi composto Isso significa que as

analogias que constroacutei as imagens que utiliza os siacutembolos recorrentes na obra seratildeo compreendidos como

referecircncia a eventos histoacutericos do seu tempo ou como elementos escatoloacutegicos proacuteprios ao movimento de

Jesus no final do seacuteculo I especialmente no contexto da regiatildeo Aacutesia-Siacuteria-Palestina Cf COLLINS Adela

Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E J Brill 1996 p 198

Diversas outras formas de interpretar o mesmo conteuacutedo satildeo resumidas e analisadas em WAINWRIGHT op

cit 182 Daniel 7 narra a sucessatildeo de reinos e governos na forma de quatro animais mitoloacutegicos No interior desta

revisatildeo histoacuterica apocaliacuteptica o texto descreve a figura do Anciatildeo celestial e o Filho do Homem que o

representa Cf COLLINS John J Daniel with in introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William

B Eerdmans Publishing Company 1984 p 83 183 Em 1Enoque 7114-17 Enoque ascende aos ceacuteus onde encontra o proacuteprio Deus Ali o patriarca recebe a

informaccedilatildeo que ele eacute realmente o Filho do Homem figura que teria um papel significativo na salvaccedilatildeo

escatoloacutegica dos eleitos de Deus Cf OLSON Daniel C Enoch and the Son of Man in the Epilogue of the

Parables Journal for the Study of the Pseudepigrapha Thousand Oaks n 18 p 27-38 1998 184 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 p 58

69

fundamental entretanto eacute descrita como o Cordeiro (ἀρνίον) Eacute ele que recebe um rolo selado

com sete selos estrateacutegia simboacutelica para interpretar eventos e fenocircmenos histoacutericos A cada

selo corresponde uma revelaccedilatildeo ateacute o seacutetimo que por sua vez se desdobra em outro grupo

de sete elementos desta vez sete trombetas Como os selos cada trombeta estaacute relacionada

com um evento numa escala crescente de intensidade que culmina com a audiccedilatildeo de um

hino que comemora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuaacuterio celestial

A terceira parte do livro conta a histoacuteria de uma guerra que comeccedila quando uma

figura demoniacuteaca o Dragatildeo vermelho fracassa no seu propoacutesito de destruir uma crianccedila e

sua matildee sendo por isso expulso do ceacuteu para a terra Sua reaccedilatildeo eacute instaurar uma guerra contra

outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas Em contrapartida o

Cordeiro reuacutene seu exeacutercito convocando 144000 guerreiros dispostos a lutar ateacute a morte O

confronto resulta no nuacutemero determinado de maacutertires necessaacuterios para instaurar a

intervenccedilatildeo escatoloacutegica de Deus na forma de sete taccedilas de ira Apoacutes o derramamento das

taccedilas Jesus agora como um cavaleiro celestial desce do ceacuteu com uma hoste de anjos para

derrotar o Dragatildeo e seus aliados Num primeiro ato as bestas satildeo lanccediladas num lago de fogo

todo o exeacutercito adversaacuterio eacute morto e o Dragatildeo eacute aprisionado por mil anos O segundo ato

coloca fim agrave guerra quando o Dragatildeo eacute novamente solto somente para ser vencido e lanccedilado

no mesmo espaccedilo de juiacutezo onde jaacute estavam as duas bestas Entre os dois atos a narrativa

apresenta o reino messiacircnico com a participaccedilatildeo da figura exaltada de Jesus e os maacutertires

ressuscitados agora como reis e sacerdotes de Deus Com o fim do milecircnio e da guerra

escatoloacutegica o autor do Apocalipse descreve o fim da histoacuteria marcada pelo juiacutezo final e a

chegada da Nova Jerusaleacutem

33 O contexto narrativo do reino milenar

A sequecircncia narrativa e temporal da terceira seccedilatildeo (Apocalipse 121-225) natildeo eacute

linear Haacute muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como repeticcedilotildees ou incidentes

similares Existe um iacutentimo paralelo entre a sequecircncia das taccedilas (Apocalipse 161-21) e a

sequecircncia das trombetas (Apocalipse 88-1119) bem como vaacuterias cenas que parecem

interromper o fio narrativo Normalmente estas interrupccedilotildees funcionam para apresentar uma

interpretaccedilatildeo de algum aspecto da narrativa Mesmo assim ainda existe um sentido de

movimento para frente O primeiro episoacutedio apresenta o nascimento de uma crianccedila descrita

70

em termos messiacircnicos (Apocalipse 125) o que parece ser alusatildeo ao nascimento de Jesus

nove deacutecadas antes do Apocalipse surgir em Patmos e termina com o juiacutezo final e a

restauraccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo agora descrita como a Nova Jerusaleacutem A primeira cena estaacute

no passado da audiecircncia do Apocalipse e a uacuteltima estaacute no futuro Isso parece evidenciar o

desenvolvimento de uma narraccedilatildeo contiacutenua com princiacutepio meio e fim nos moldes dos

chamados apocalipses histoacutericos da tipologia de John Collins185

Em Apocalipse 121-18 Joatildeo narra uma guerra no ceacuteu e a expulsatildeo do Dragatildeo para

a terra Este tenta destruir a crianccedila messiacircnica mas falha no momento em que ela eacute

arrebatada para o ceacuteu Diante disto o Dragatildeo procura destruir a Mulher que eacute protegida no

deserto Depois de fracassar na perseguiccedilatildeo da Mulher o Dragatildeo parte para a perseguiccedilatildeo

dos outros filhos da Mulher (σπέρματος αὐτῆς) aqueles que ldquoguardam os mandamentos de

Deus e sustentam o testemunho de Jesusrdquo (ldquoτῶν τηρούντων τὰς ἐντολὰς τοῦ θεοῦ καὶ ἐχόντων

τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦrdquo) Tal descriccedilatildeo pretendia explicar para sua audiecircncia que uma iminente

perseguiccedilatildeo das igrejas teria como causa um conflito fora do mundo humano que envolveu

o fracasso de Satanaacutes em destruir Jesus e sua consequente expulsatildeo para a terra186

Um proacuteximo estaacutegio na narrativa apresenta os aliados do Dragatildeo duas bestas (qhria)

descritas em termos que apontavam para o Impeacuterio Romano e suas estruturas na proviacutencia

da Aacutesia como agentes demoniacuteacos187 Com esta estrateacutegia o profeta de Patmos queria indicar

que uma guerra coacutesmica jaacute comeccedilara e o conflito iria se acentuar enormemente mas em

breve Deus iria intervir nos acontecimentos por meio de Jesus Para o Apocalipse as igrejas

da Aacutesia e seus membros se encontravam no meio da luta depois do levantamento das bestas

mas antes que elas instaurassem a perseguiccedilatildeo generalizada

O estaacutegio seguinte da guerra pode ser denominado de ldquoresposta do Cordeirordquo Este

comeccedila sua reaccedilatildeo com a reuniatildeo de um exeacutercito de oposiccedilatildeo sobre o monte Siatildeo

(Apocalipse 141-5) provavelmente uma descriccedilatildeo dos seguidores de Jesus logo

martirizados Como resultado dessas mortes completa-se o nuacutemero dos maacutertires

185 Segundo Collins haacute tipos diferentes de apocalipses Uns como Daniel 7-12 4Esdras e 2Baruque focam

em descriccedilotildees histoacutericas e descrevem julgamentos coacutesmicos Outros como 2Enoque ou 3Baruque se

concentram em viagens celestiais e revelaccedilotildees sobre a realidade da alma apoacutes a morte O Apocalipse de Joatildeo

enfatiza o autor eacute um apocalipse de tipo misto que apesar de apresentar algum tipo de revelaccedilatildeo de mundo

sobrenatural se concentra na reflexatildeo histoacuterica Cf COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura

apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 4 COLLINS John J

Introductionhellip op cit p 13 186 HENTEN Jan Willem Dragon Myth and Imperial Ideology in Revelation 12-13 In BARR David L (ed)

The Reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical

Literature 2006 p 181-203 p 202 187 COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation op cit p 232

71

mencionados no quinto selo (Apocalipse 69-11) dando iniacutecio agraves sete pragas finais sobre a

terra na forma de sete taccedilas O cliacutemax das taccedilas de julgamento estaacute na descriccedilatildeo da queda da

Babilocircnia caracterizaccedilatildeo simboacutelica de Roma

Finalmente chega a fase final da guerra O cavaleiro celestial aparece do ceacuteu e

alcanccedila vitoacuteria sobre as bestas Um anjo desce do ceacuteu e prende o Dragatildeo Um periacuteodo

interino de paz por mil anos eacute estabelecido durante o qual os martirizados retornam agrave vida

como juiacutezes reis e sacerdotes de Cristo Apoacutes o milecircnio Satatilde eacute novamente libertado Ele

reuacutene um exeacutercito demoniacuteaco mas eacute derrotado definitivamente

34 O episoacutedio do reino milenar

Texto Grego188 Traduccedilatildeo proacutepria 1 Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ

οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ

ἅλυσιν μεγάλην ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ

1 E vi um anjo189 descendo do ceacuteu tendo a

chave do abismo190 e uma grande corrente

em suas matildeos 2 καὶ ἐκράτησεν τὸν δράκοντα ὁ ὄφις ὁ

ἀρχαῖος ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς

καὶ ἔδησεν αὐτὸν χίλια ἔτη191

2 E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente

que eacute o Diabo e Satanaacutes192 aprisionando-o

por mil anos 3 καὶ ἔβαλεν αὐτὸν εἰς τὴν ἄβυσσον καὶ

ἔκλεισεν καὶ ἐσφράγισεν ἐπάνω αὐτοῦ ἵνα

μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ

χίλια ἔτη μετὰ ταῦτα δεῖ λυθῆναι αὐτὸν

μικρὸν χρόνον

3 E lanccedilou-o para o abismo fechou e selou

o abismo para que natildeo engane mais as

naccedilotildees ateacute que se complete os mil anos

Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele

seja solto por pouco tempo 4 Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽

αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς καὶ τὰς

ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν

4 E vi tronos e sentaram neles e

[autoridade de] julgamento foi dada a

eles193 tambeacutem as almas dos

188 ALAND Kurt et all The Greek New Testament 4 ed rev London United Bible Society 2008 p 737-

738 O texto grego apresenta muitas dificuldades em funccedilatildeo de deficiecircncias e imprecisotildees sintaacuteticas Faltam

sujeitos haacute um acusativo solto um nominativo no lugar de um acusativo um pronome relativo que poderia

natildeo ter viacutenculos com seu antecedente mais oacutebvio A traduccedilatildeo proposta reflete uma tentativa de ordenaccedilatildeo Cf

MILLOS Samuel Peacuterez Apocalipsis comentario exegeacutetico al texto griego del Nuevo Testamento Barcelona

Editorial Clie 2010 p 1213 189 A expressatildeo aparece indefinida ldquoum anjordquo Natildeo haacute qualquer ecircnfase ou destaque no papel do anjo que prende

Satatilde Todo o destaque da narrativa vai para o Cristo que reina e os martirizados ressuscitados Cf POHL

Adolf Apocalipse de Joatildeo Curitiba Editora Evangeacutelica Esperanccedila 2001 2v V II p 221 190 O abismo natildeo eacute idecircntico ao lago de fogo e parece ser referecircncia agrave morada dos seres demoniacuteacos Cf

PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 363 191 A expressatildeo ldquoχίλια ἔτηrdquo soacute aparece no Novo Testamento nesta passagem do Apocalipse e em 2Pedro 38 192 Todos os tiacutetulos aqui mencionados apareceram antes nos episoacutedios do confronto entre o Dragatildeo e a Mulher

e o Dragatildeo e Miguel em Apocalipse 12 Laacute Satatilde foi lanccedilado para a terra Aqui ele eacute jogado no abismo Cf

FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991 p

107 193 Literalmente ldquoe julgamento foi dado a elesrdquo Pode significar que finalmente um julgamento terminou em

favor dos maacutertires ou como aqui optamos que o julgamento foi confiado a eles ou seja a autoridade para

exercer o juiacutezo Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 365

72

μαρτυρίαν Ἰησοῦ καὶ διὰ τὸν λόγον τοῦ

θεοῦ καὶ οἵτινες οὐ προσεκύνησαν τὸ

θηρίον οὐδὲ τὴν εἰκόνα αὐτοῦ καὶ οὐκ

ἔλαβον τὸ χάραγμα ἐπὶ τὸ μέτωπον καὶ ἐπὶ

τὴν χεῖρα αὐτῶν καὶ ἔζησαν καὶ

ἐβασίλευσαν μετὰ τοῦ Χριστοῦ χίλια ἔτη

decapitados194 por causa do testemunho de

Jesus e da palavra de Deus e todos195 que

natildeo adoraram a besta nem sua imagem e

natildeo receberam a marca dela na fronte e na

matildeo Viveram e reinaram com Cristo por

mil anos 5 οἱ λοιποὶ τῶν νεκρῶν οὐκ ἔζησαν ἄχρι

τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη αὕτη ἡ ἀνάστασις ἡ

πρώτη

5 Os demais mortos natildeo viveram ateacute que

terminasse os mil anos Esta eacute a primeira

ressurreiccedilatildeo196 6 μακάριος καὶ ἅγιος ὁ ἔχων μέρος ἐν τῇ

ἀναστάσει τῇ πρώτῃmiddot ἐπὶ τούτων ὁ

δεύτερος θάνατος οὐκ ἔχει ἐξουσίαν ἀλλ᾽

ἔσονται ἱερεῖς τοῦ θεοῦ καὶ τοῦ Χριστοῦ

καὶ βασιλεύσουσιν μετ᾽ αὐτοῦ [τὰ] χίλια

ἔτη

6 Bendito e santo o que tem parte na

primeira ressurreiccedilatildeo Sobre estes a

segunda morte197 natildeo tem poder poreacutem

seratildeo sacerdotes de Deus e de Cristo e

reinaratildeo com ele por mil anos

7 Καὶ ὅταν τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη λυθήσεται

ὁ Σατανᾶς ἐκ τῆς φυλακῆς αὐτοῦ

7 E quando concluir os mil anos seraacute solto

Satanaacutes da sua prisatildeo 8 καὶ ἐξελεύσεται πλανῆσαι τὰ ἔθνη τὰ ἐν

ταῖς τέσσαρσιν γωνίαις τῆς γῆς τὸν Γὼγ

καὶ Μαγώγ συναγαγεῖν αὐτοὺς εἰς τὸν

πόλεμον ὧν ὁ ἀριθμὸς αὐτῶν ὡς ἡ ἄμμος

τῆς θαλάσσης

8 E viraacute a enganar as naccedilotildees198 que estatildeo

nos quatro cantos da terra Gog e Magog199

e reuni-las para a guerra das quais o

nuacutemero eacute como a areia do mar

9 καὶ ἀνέβησαν ἐπὶ τὸ πλάτος τῆς γῆς καὶ

ἐκύκλευσαν τὴν παρεμβολὴν τῶν ἁγίων

9 E subiram200 entatildeo pela superfiacutecie da terra

e cercaram o acampamento dos santos e a

194 Literalmente ldquodegolados por um machadordquo Termo arcaizante jaacute que este tipo de supliacutecio usado na

Repuacuteblica Romana natildeo era comum nos tempos do Impeacuterio Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p

366 195 Alguns autores argumentam que o pronome relativo οἵτινες daria margem para dois grupos de exaltados (os

ressuscitados e os que natildeo adoraram a besta) Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 366-367

Acompanhamos entretanto o argumento de David Aune que entende a claacuteusula relativa como uma descriccedilatildeo

de um uacutenico grupo os martirizados A expressatildeo fornece as causas positivas para o martiacuterio (testemunho de

Jesus e da Palavra de Deus) e as negativas (natildeo adoraram a besta e natildeo receberam sua marca) Cf AUNE

David E Revelation 17-22 op cit p 1088-1089 196 Segundo este episoacutedio do Apocalipse apenas os maacutertires participam da primeira ressurreiccedilatildeo O livro de

Daniel localizou a ressurreiccedilatildeo dos mortos no iniacutecio do reino messiacircnico 4Esdras e 2Baruque a localizam no

final Aparentemente o Apocalipse harmonizou duas tradiccedilotildees diferentes afirmando duas ressurreiccedilotildees uma

no iniacutecio do reino milenar outra no final Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1090-1091 197 Segundo Aune a expressatildeo ldquosegunda morterdquo pode significar a exclusatildeo da ressurreiccedilatildeo do final dos tempos

ou a eterna danaccedilatildeo Ele sugere a segunda opccedilatildeo como mais plausiacutevel neste contexto da narrativa do

Apocalipse Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1093 198 As naccedilotildees aqui seduzidas oriundas dos quatro cantos da terra que precisam subir pela superfiacutecie para cercar

o acampamento dos santos parecem aludir a um exeacutercito de seres demoniacuteacos que estavam no submundo com

Satatilde Cf FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 106 POHL op cit p 236 199 Alusatildeo a Ezequiel 38-39 que vaticinou um ataque de naccedilotildees hostis aos habitantes da Palestina nos uacuteltimos

dias No Apocalipse entretanto Gog e Magog natildeo satildeo descriccedilotildees de povos ou naccedilotildees mas referecircncia

metafoacuterica ao exeacutercito demoniacuteaco de oposiccedilatildeo final Cf POHL op cit p 237 200 Haacute nos versiacuteculos 9 e 10 uma curiosa inconsistecircncia verbal Os verbos que descrevem a prisatildeo inicial de

Satatilde estatildeo no aoristo indicativo traduzidos normalmente pelo preteacuterito A partir do versiacuteculo 7 as claacuteusulas

temporais passam para o futuro (ldquoenganaraacute as naccedilotildeesrdquo ldquoreuniraacute para a guerrardquo) mas retornam para o aoristo

no relato do confronto final (ldquosubiram pela superfiacutecierdquo ldquocercaram o acampamentordquo ldquodesceu fogordquo etc)

Possivelmente isto tenha origem na jaacute mencionada desordenaccedilatildeo gramatical da passagem Cf MILLOS op

cit p 1213

73

καὶ τὴν πόλιν τὴν ἠγαπημένην καὶ κατέβη

πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e os

queimou 10 καὶ ὁ διάβολος ὁ πλανῶν αὐτοὺς ἐβλήθη

εἰς τὴν λίμνην τοῦ πυρὸς καὶ θείου ὅπου

καὶ τὸ θηρίον καὶ ὁ ψευδοπροφήτης καὶ

βασανισθήσονται ἡμέρας καὶ νυκτὸς εἰς

τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων

10 E o diabo o enganador deles foi jogado

para o lago201 de fogo e enxofre onde

tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta e

seratildeo atormentados dia e noite para todo o

sempre

O episoacutedio do milecircnio pode ser dividido em trecircs partes a prisatildeo do Dragatildeo

(versiacuteculos 1-3) os maacutertires ressuscitados (versiacuteculos 4-6) a condenaccedilatildeo do Dragatildeo

(versiacuteculos 7-10) Satildeo trecircs partes contudo apenas duas histoacuterias que se unem pela expressatildeo

temporal ldquomil anosrdquo (χίλια ἔτη) aqui narradas como parte da revelaccedilatildeo vertical ou seja

eventos que ocorreratildeo no futuro em relaccedilatildeo ao tempo da audiecircncia A narrativa do juiacutezo

sobre Satanaacutes segue do versiacuteculo 1 ao 3 e eacute retomada nos versiacuteculos 7-10 No meio dela estaacute

a narraccedilatildeo do reinado dos maacutertires202 Se narrada de forma linear sem a interrupccedilatildeo este

seria o episoacutedio da prisatildeo e destruiccedilatildeo do Dragatildeo

E vi um anjo descendo do ceacuteu tendo a chave do abismo e uma grande

corrente em suas matildeos E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente que eacute o

Diabo e Satanaacutes aprisionou-o por mil anos E lanccedilou-o para o abismo

fechou e selou o abismo para que natildeo enganasse mais as naccedilotildees ateacute que se

completasse os mil anos Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele seja

solto por pouco tempo E quando concluir os mil anos Satanaacutes seraacute solto

da sua prisatildeo E viraacute a enganar as naccedilotildees que estatildeo nos quatro cantos da

terra Gog e Magog e reuni-las para a guerra das quais o nuacutemero eacute como

a areia do mar E subiram entatildeo pela superfiacutecie da terra e cercaram o

acampamento dos santos e a cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e as

queimou E o diabo o enganador delas foi jogado para o lago de fogo e

enxofre onde tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta E seratildeo

atormentados dia e noite para todo o sempre

A prisatildeo e condenaccedilatildeo de Satanaacutes concluem a cena da vitoacuteria de Jesus sobre seus

adversaacuterios que aparece em Apocalipse 1911 como um cavaleiro montado sobre um cavalo

branco Aparentemente toda a seccedilatildeo posterior ao aparecimento do Jesus exaltado estaacute

estruturada segundo um esquema encontrado em Ezequiel203 Eacute possiacutevel relacionar por

201 O termo λίμνην pode significar lago tanque ou neste caso especiacutefico charco pacircntano ou lodaccedilal A

expressatildeo λίμνην τοῦ πυρὸς parece fazer referecircncia ao lugar conhecido como geena descrita em Mateus 522

como geenan tou puroj Era um vale que se estendia para fora da muralha sul de Jerusaleacutem conhecido tambeacutem

como Vale de Hinom local que servia nos tempos de Jesus como depoacutesito de lixo O portatildeo para o vale chegava

a ser chamado de Portatildeo do Esterco O lixo era constantemente incendiado fazendo do vale um espaccedilo de

fumaccedila e fedor Alguns judeus o tinham como o lugar mais asqueroso do mundo Daiacute a relaccedilatildeo com a descriccedilatildeo

do sofrimento escatoloacutegico ser feita com traccedilos do Vale de Hinom Cf POHL op cit p 219 202 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 107 203 ULFGARD Hakan Biblical and para-biblical origins of millennarianism Religiologiques Montreal n 20

p 25-49 1999 p 34

74

exemplo a ressurreiccedilatildeo dos maacutertires com o levantamento dos ossos secos de Ezequiel 37 o

confronto final de Satanaacutes com o ataque de Gog de Magog (Ezequiel 38)204 a nova

Jerusaleacutem de Apocalipse com o novo templo e a nova cidade de Ezequiel 40-48205

No interior desta longa cena de conquista dos adversaacuterios Satanaacutes eacute aprisionado

provisoriamente A noccedilatildeo de uma prisatildeo temporaacuteria para seres sobrenaturais natildeo era

desconhecida do Judaiacutesmo antigo O autor do Mito dos Vigilantes (1Enoque 1-36) em algum

momento do seacuteculo II antes da Era Comum apoacutes descrever a transgressatildeo dos vigilantes

celestiais narra o destino deles em duas versotildees Em 1Enoque 104-6

- Deus envia o anjo Rafael

- Azazel eacute amarrado por um anjo

- Azazel eacute lanccedilado na escuridatildeo e aprisionado para sempre

- o tempo do aprisionamento eacute descrito como o grande dia do julgamento

- Azazel eacute lanccedilado no fogo no grande dia do julgamento

Logo depois outra versatildeo do juiacutezo eacute narrada em 1Enoque 1011-13

- Deus envia o anjo Miguel

- o anjo amarra Semjaza e seus associados

- eles satildeo aprisionados sob a terra

- o periacuteodo de prisatildeo eacute limitado a 70 geraccedilotildees

- no dia do julgamento eles seratildeo lanccedilados no abismo de fogo

Esta narrativa dupla parece ser o resultado da fusatildeo de tradiccedilotildees que vinculavam a

presenccedila dos males no mundo a seres demoniacuteacos que receberam de Deus uma dupla

sentenccedila o aprisionamento em alguma regiatildeo do cosmos e a destruiccedilatildeo no final dos tempos

Nestas tradiccedilotildees judaicas os adversaacuterios sobrenaturais possuem nomes diferentes mas satildeo

condenados igualmente agrave prisatildeo enquanto aguardam a destruiccedilatildeo final (Jubileus 56 107-

11 2Enoque 72 2Apocalipse de Baruque 5613 Judas 6)

David Aune sugeriu que a base comum a essas tradiccedilotildees poderia ser uma releitura de

Isaias 2421-22 ldquoNaquele dia o Senhor castigaraacute no ceacuteu as hostes celestes e os reis da

terra na terra Seratildeo ajuntados como presos em masmorra e encerrados num caacutercere e

204 A passagem de Ezequiel 382 fala do rei Gog da terra de Magog Apocalipse entretanto nivelou as duas

expressotildees como se fossem dois reis ou dois povos Gog e Magog Esta apropriaccedilatildeo joanina do texto de

Ezequiel parece refletir a expectativa presente em alguns apocalipses antigos que o povo de Deus seria atacado

por um ajuntamento de forccedilas inimigas no final dos tempos Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p

371 205 Cf tambeacutem PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 350 POHL op cit p 235

75

castigados depois de muitos diasrdquo206 Na adaptaccedilatildeo joanina entretanto a histoacuteria do

aprisionamento dos seres demoniacuteacos aparece secionada em duas partes pois entre elas o

Apocalipse apresentou o reinado dos maacutertires exaltados (versiacuteculos 4-6)

Estes maacutertires aparecem em diversas passagens do Apocalipse Uma das mais

significativas eacute a cena do quinto selo (Apocalipse 69-11) Debaixo do altar estatildeo pessoas

que morreram por causa da palavra de Deus e do testemunho () Elas querem saber

quando eacute que o seu sangue seraacute vingado por Deus Como resposta ouvem uma espeacutecie de

enigma apocaliacuteptico ldquofoi-lhes dito que repousassem por mais um pouco de tempo ateacute que

se completasse o nuacutemero de seus companheiros e irmatildeos que iriam ser mortos como eles

foramrdquo (Apocalipse 611) O autor do Apocalipse argumenta que Deus vai trazer justiccedila

sobre todos os que mataram seus seguidores poreacutem antes eacute preciso que se complete uma

determinada cota de disciacutepulos que deveratildeo morrer O juiacutezo viraacute quando um nuacutemero

especiacutefico de pessoas tiver morrido da mesma forma como aqueles que jaacute estatildeo debaixo do

altar o foram

Joatildeo promete que estes maacutertires seratildeo recompensados por Deus mais do que os outros

disciacutepulos de Jesus Afinal somente eles ressuscitariam para reinar com Jesus na terra207

Esta expectativa jaacute aparecera bem no iniacutecio da segunda seccedilatildeo Quando o Cordeiro pegou o

livro selado os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais cantaram a canccedilatildeo ldquoDigno eacutes de tomar

o livro e de abrir-lhe os selos porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus

os que procedem de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e para o nosso Deus os constituiacuteste reino

e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo (Apocalipse 59-10) Na narrativa do Apocalipse o

milecircnio seria o cumprimento deste hino cantado no ceacuteu por figuras sobrenaturais

Segundo Aune a cena dos tronos em contexto escatoloacutegico eacute uma cena tiacutepica de

julgamento apesar de estar em estado fragmentaacuterio Afinal os maacutertires sentam em tronos

mas nenhum julgamento eacute descrito neste contexto Eles sentam para julgar todavia o

julgamento natildeo ocorre Tambeacutem natildeo haacute a identificaccedilatildeo de quem seraacute julgado Isso daacute agrave cena

o papel de exaltaccedilatildeo dos maacutertires em vez da descriccedilatildeo de algum ofiacutecio escatoloacutegico208

Neste mesmo sentido Fiorenza argumenta que Joatildeo descreve o reinado interino dos

maacutertires para garantir agrave sua audiecircncia que aqueles que morressem durante o confronto contra

as forccedilas romanas seriam exaltados no futuro como co-governantes com Cristo209 Ao indicar

206 AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1078 207 Idem p 1084 208 Idem p 1085 209 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 109

76

que os maacutertires receberatildeo um tipo de recompensa especial diferente de todos os outros a

cena dos maacutertires no trono desejava incentivar a participaccedilatildeo no martiacuterio

Para Joatildeo mais do que reis os maacutertires seriam juiacutezes e sacerdotes O episoacutedio do

milecircnio entretanto natildeo menciona a identidade de quem serviraacute aos reis de quem seraacute

julgado pelos juiacutezes ou de quem seraacute ministrado pelos sacerdotes Natildeo haacute ningueacutem para ser

condenado oprimido ou orientado porque segundo o profeta de Patmos todos os que

voltarem agrave vida no reino milenar seratildeo reis juiacutezes e sacerdotes

O milecircnio entatildeo como descrito pelo Apocalipse parece ser a junccedilatildeo de dois

episoacutedios nos quais a ecircnfase de um estaacute na destruiccedilatildeo dos inimigos de Deus e do outro na

exaltaccedilatildeo dos maacutertires

35 O reinado messiacircnico interino na terra

Aleacutem do Apocalipse duas outras obras judaicas igualmente produzidas no final do

seacuteculo I apresentam a expectativa de um reino messiacircnico provisoacuterio na terra 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque A primeira210 registrou

Pois eis que viraacute o tempo em que os sinais que tenho predito para vocecirc

aconteceratildeo a cidade que agora natildeo eacute vista apareceraacute e a terra que agora

estaacute escondida seraacute revelada E todo aquele que for libertado dos males que

eu anunciei veraacute as minhas maravilhas Porque meu filho o Messias seraacute

revelado junto com aqueles que estatildeo com ele e estes que permanecerem

regozijar-se-atildeo por quatrocentos anos E depois desses anos meu filho o

Messias morreraacute e todos os seres humanos E o mundo voltaraacute ao silecircncio

primordial por sete dias como foi nos primoacuterdios de modo que ningueacutem

seraacute deixado E depois de sete dias o mundo que ainda dormia seraacute

despertado e o que for corruptiacutevel pereceraacute (4Esdras 72631)211

Posteriormente a narrativa eacute complementada em 4Esdras 1232-34

[] este eacute o Messias que o Altiacutessimo guardou ateacute o fim dos dias que surgiraacute

da posteridade de Davi e viraacute e falaraacute para eles ele os denunciaraacute por seus

erros e por suas maldades e lanccedilaratildeo diante dele seus desprezos

Primeiramente ele os traraacute para julgamento diante de seu tribunal e

quando forem reprovados entatildeo ele os destruiraacute Mas ele livraraacute com

misericoacuterdia o remanescente do meu povo aqueles que estiverem salvos

210 4Esdras foi escrito em algum lugar da Palestina no periacuteodo posterior agrave guerra judaico-romana (66-70) Cf

COLLINS John J A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica uma introduccedilatildeo agrave literatura apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo

Paulus 2010 p 281 211 As citaccedilotildees de 4Esdras vem de METZGER B M The Fourth Book of Ezra In CHARLESWORTH

James H The Old Testament Pseudepigrapha New York Doubleday and Company Inc 1983 2v V 1 p

517-559

77

do meu lado ele os tornaraacute alegres ateacute o fim o dia do juiacutezo do qual falei

com vocecirc no iniacutecio

A outra obra 2Apocalipse de Baruque surgiu na mesma conjuntura posterior agrave

guerra na Judeacuteia possivelmente tambeacutem originada na Palestina Seu autor anocircnimo tratou

do futuro periacuteodo messiacircnico nos capiacutetulos 29-30 Segue o texto

Ele falou-me O que vai acontecer atingiraacute toda a terra dessa forma

experimentaacute-lo-atildeo todos os que estiverem em vida Mas naquele tempo eu

protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste paiacutes Uma

vez cumprido aquilo que deve acontecer nos periacuteodos do tempo o Messias

comeccedilaraacute a sua revelaccedilatildeo Tambeacutem Behemoth viraacute dos seus domiacutenios e

Leviatatilde se levantaraacute do mar os dois imensos monstros marinhos por mim

criados no quinto dia da Criaccedilatildeo e que reservo para aqueles dias eles

serviratildeo de alimento para todos os que sobreviverem Entatildeo a terra

produziraacute os seus frutos ao cecircntuplo numa cepa de videira haveraacute mil

ramos um ramo carregaraacute mil racimos e um racimo mil bagos e um bago

daraacute ateacute quarenta litros de vinho Os que sofreram fome comeratildeo

regiamente e a cada dia lhes estatildeo reservadas novas maravilhas Pois de

mim procederatildeo ventos que traratildeo todas as manhatildes o perfume de frutos

saborosos e faratildeo gotejar ao final do dia o orvalho salviacutefico Do alto cairaacute

de novo grande quantidade de manaacute dele comeratildeo eles naqueles anos por

haverem participado do final dos tempos Terminado o tempo vigente do

Messias ele voltaraacute de novo agrave gloacuteria do ceacuteu Entatildeo haveratildeo de ressuscitar

todos aqueles que outrora adormeceram na sua esperanccedila Naquele tempo

aconteceraacute que se abriratildeo as cacircmaras onde se demoram as almas dos

piedosos elas sairatildeo e todas essas numerosas almas como legiatildeo de um

soacute coraccedilatildeo apareceratildeo todas juntas abertamente As que foram as

primeiras alegrar-se-atildeo as que foram as uacuteltimas natildeo estaratildeo tristes Cada

uma delas sabe que foi chegado o tempo previsto como o fim de todos os

tempos As almas dos pecadores perder-se-atildeo em anguacutestia ao

presenciarem tudo isso Pois elas jaacute sabem que o tormento as atingiraacute e

que a hora da sua condenaccedilatildeo eacute chegada212

O autor anocircnimo retoma o assunto mais agrave frente ao descrever a prisatildeo e destruiccedilatildeo

dos adversaacuterios do Messias (2Apocalipse de Baruque 397-404) Apesar de algumas

diferenccedilas em ecircnfase Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e 2Apocalipse de Baruque descrevem o

aparecimento de uma figura messiacircnica no fim dos tempos para inaugurar um periacuteodo

interino de becircnccedilatildeo especial para o povo de Deus na terra antes do juiacutezo final Entretanto a

funccedilatildeo e o papel do messias variam entre os textos Segundo 4Esdras o messias avanccedilaraacute

sem armas contra seus inimigos e os venceraacute com um rio de fogo que sairaacute de sua boca

(4Esdras 135) Depois de quatrocentos anos de tranquilidade ele e todos os seus seguidores

morreratildeo durante uma semana de silecircncio primordial 2Apocalipse de Baruque por sua vez

212 As citaccedilotildees de 2Apocalipse de Baruque vecircm de TRICCA Maria Helena de Oliveira Apoacutecrifos os proscritos

da Biacuteblia Satildeo Paulo Mercuryo 1995 4v V III p 303-348

78

descreve o messias trazendo vinganccedila militar com um governo limitado no tempo Jaacute no

Apocalipse a figura messiacircnica surge sobre um cavalo branco derrota seus adversaacuterios e

reina com os maacutertires ressuscitados durante o periacuteodo milenar da prisatildeo de Satanaacutes

Apesar das divergecircncias nos detalhes as trecircs obras possuem a mesma perspectiva de

um interluacutedio de felicidade no interior da histoacuteria antes do final dos tempos Segundo

Kovacs e Rowland isto sugeriria que esta expectativa de dois estaacutegios escatoloacutegicos era

comum entre grupos judaicos da Palestina no periacuteodo entre as duas guerras judaicas contra

os romanos (66-136)213 Estes autores ainda argumentam que o surgimento do montanismo

na metade do segundo seacuteculo poderia ser indiacutecio de que a espera por um reino messiacircnico

terreno estava bem espalhada pela Aacutesia menor e natildeo somente pela proviacutencia da Aacutesia214

Teriacuteamos entatildeo um fenocircmeno difundido pelas regiotildees da Palestina Siacuteria e Aacutesia menor pelo

menos no periacuteodo em questatildeo resultado da fusatildeo de antigas noccedilotildees judaicas o messianismo

a reflexatildeo apocaliacuteptica sobre as etapas da histoacuteria o retorno ao paraiacuteso215 Estas noccedilotildees

surgiram em contextos histoacutericos e literaacuterios distintos mas foram reunidas para formar o

milenarismo como encontrado no Apocalipse de Joatildeo e parcialmente em 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque

A primeira noccedilatildeo a crenccedila numa figura messiacircnica que promoveria a restauraccedilatildeo do

povo de Deus tem relaccedilatildeo histoacuterica com as diversas aspiraccedilotildees judaicas de restauraccedilatildeo de

Israel posteriores ao domiacutenio helenista da Palestina (seacuteculo IV AEC)216 Alguns grupos

combinavam passagens das Escrituras judaicas para produzir a expectativa de uma

restauraccedilatildeo poliacutetica de Israel na terra sob a lideranccedila de uma figura ungida por Deus217

O segundo elemento a reflexatildeo sobre as etapas da histoacuteria reflete o interesse de

grupos apocaliacutepticos judaicos em compreender o desenvolvimento da histoacuteria O fenocircmeno

pode ser encontrado particularmente nas tradiccedilotildees de Enoque e de Daniel O texto chamado

213 KOVACS ROWLAND op cit p 210 Leva-se em conta que o Apocalipse surgido na proviacutencia da Aacutesia

teve um autor que emigrou da Palestina durante a guerra de 66-70 214 Idem p 211 215 A sugestatildeo da fusatildeo destas trecircs noccedilotildees vem de ULFGARD op cit p 25-49 216 Charlesworth prefere colocar como ponto de partida as guerras dos macabeus do seacuteculo II AEC Cf

CHARLESWORTH James H From messianology to christology problems and prospects In

CHARLESWORTH James H (ed) The Messiah developments in earliest Judaism and Christianity

Minneapolis Fortress Press 1987 p 3-35 p 3 217 Desroche define o messianismo em termos restritos como o conjunto de crenccedilas judaicas relacionadas com

um ungido de Deus proclamado no antigo Testamento Num sentido mais largo poreacutem designa ensinamentos

ou movimentos que prometem a chegada de um enviado divino para trazer ordem ao mundo com justiccedila e paz

edecircmicas Neste uacuteltimo sentido o fenocircmeno ultrapassa as tradiccedilotildees religiosas judaico-cristatildes Cf DESROCHE

Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo

Paulo 2000 p 22

79

Apocalipse das Semanas (1Enoque 931-10 9112-17) eacute um exemplo deste fenocircmeno

quando o passado e o futuro aparecem divididos em dez semanas O autor subjacente a este

antigo apocalipse escreve da perspectiva da seacutetima semana esperando a restauraccedilatildeo do povo

de Deus para a oitava semana

Altas expectativas escatoloacutegicas originadas de uma conjuntura de deterioraccedilatildeo de

condiccedilotildees poliacuteticas e sociais agraves vezes de perseguiccedilatildeo e sofrimento podem promover nesta

reflexatildeo sobre os periacuteodos da histoacuteria a ideia de que se vive perto do fim do mundo Eacute assim

que esta noccedilatildeo aparece nos apocalipses de Daniel 7-12 produzidos no contexto da Guerra

dos Macabeus (167-163 AEC) Daniel 9 por exemplo faz uma releitura de Jeremias

(Jeremias 2511 2910) acerca da desolaccedilatildeo de Jerusaleacutem por 70 anos Os setentas anos satildeo

interpretados como semanas de anos O apocalipse de Daniel garante que faltam poucas

destas semanas para o fim dos tempos

Estas antigas tradiccedilotildees judaicas representadas por 1Enoque e Daniel exemplificam o

interesse pela periodizaccedilatildeo da histoacuteria mundial e manifestam a convicccedilatildeo de seus autores

provavelmente compartilhada com a comunidade destinataacuteria do texto de que eles viviam a

uacuteltima e crucial fase da histoacuteria antes da intervenccedilatildeo final de Deus que traraacute a salvaccedilatildeo e o

julgamento218 A histoacuteria eacute imaginada linearmente como uma sucessatildeo de tempos

determinados de adversidades antes que venham dias de felicidade219

A terceira noccedilatildeo eacute o retorno agraves condiccedilotildees paradisiacuteacas quando o paraiacuteso dos tempos

primordiais (urzeit) seria restabelecido no fim dos tempos (endzeit) Os benefiacutecios esperados

seriam aqueles que o ser humano experimentara em suas origens220 Esta ideia foi

desenvolvida nos textos apocaliacutepticos por meio de vaticiacutenios acerca da restauraccedilatildeo da

prosperidade da criaccedilatildeo da fertilidade e da paz no mundo 1Enoque 10-11 por exemplo ao

falar da queda dos vigilantes combina estruturaccedilatildeo da histoacuteria com a expectativa de um

retorno agraves condiccedilotildees do paraiacuteso na era da salvaccedilatildeo Eacute possiacutevel notar que este texto tem

elementos que seratildeo apropriados de vaacuterias maneiras posteriormente como a fertilidade da

terra a destruiccedilatildeo das forccedilas demoniacuteacas e os justos ressuscitados Segue o texto

E a Raphael disse o Senhor Amarra Azazel de matildeos e peacutes e lanccedila-o nas

trevas Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo Deposita

218 ULFGARD op cit p 44 219 Frankfurt sugeriu que tal conceito de histoacuteria eacute dependente de tradiccedilotildees zoroastrianas que apresentavam a

histoacuteria dividida em periacuteodos alternados de domiacutenio entre as figuras divinas de Ahura Mazda e Angra Mainyu

que culminariam no fim na vitoacuteria do bem sobre o mal Cf FRANKFURTER David Early Christian

Apocalypticism literature and social world In COLLINS John J (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism

the origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity New York Continuum 1999 p 415-456 p 441 220 PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 353

80

pedras aacutesperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridatildeo Deixa-

o permanecer laacute para sempre e veda-lhe o rosto para que natildeo veja a luz

No dia do grande Juiacutezo ele deveraacute ser arremessado ao tremedal de fogo

Purifica a terra corrompida pelos Anjos e anuncia-lhe a Salvaccedilatildeo para

que terminem os seus sofrimentos e natildeo se percam todos os filhos dos

homens em virtude das coisas secretas que os Guardiotildees revelaram e

ensinaram aos seus filhos Toda a terra estaacute corrompida por causa das obras

transmitidas por Azazel A ele atribui todos os pecados E a Gabriel disse

o Senhor Levanta a guerra entre os bastardos os monstros os filhos das

prostituiacutedas e extirpa-os do meio dos homens juntamente com todos os

filhos dos Guardiotildees Instiga-os uns contra os outros para que na batalha

se eliminem mutuamente Natildeo se prolongue por mais tempo a sua vida

Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deveraacute ser atendido eles

esperam ter vida para sempre e que cada um viva quinhentos anos A

Michael disse o Senhor Vai e potildee a ferros Semjaza e os seus sequazes que

se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as

suas impurezas Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente

e quando os pais tiverem presenciado o extermiacutenio dos seus amados filhos

amarra-os por sele geraccedilotildees nos vales da terra ateacute o dia do seu julgamento

ateacute o dia do Juiacutezo Final Nesse dia eles seratildeo atirados ao abismo de fogo

na reclusatildeo e no tormento onde ficaratildeo encerrados para todo o sempre E

todo aquele que for sentenciado agrave condenaccedilatildeo eterna seja juntado a eles e

seja com eles mantido em correntes ateacute o fim de todas as geraccedilotildees

Extermina os espiacuteritos de todos os monstros juntamente com todos os

filhos dos Guardiotildees porque eles maltrataram os homens Purga a terra de

todo ato de violecircncia Toda obra maacute deve ser eliminada Que floresccedila a

aacutervore da Verdade e da Justiccedila O sinal da becircnccedilatildeo seraacute o seguinte as obras

da Verdade e da Justiccedila sempre seratildeo semeadas na alegria verdadeira

Entatildeo floresceratildeo os justos e haveratildeo de viver ateacute gerarem mil filhos e

completaratildeo em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice Entatildeo

toda a terra seraacute cultivada com a Justiccedila inteiramente plantada de aacutervores

e cheia de becircnccedilatildeo Toda espeacutecie de aacutervore boa seraacute plantada sobre ela

igualmente videiras e as videiras produziratildeo uvas em abundacircncia De

todas as sementes que forem semeadas uma medida produziraacute mil outras

e uma medida de olivas daraacute dez cubas de oacuteleo Purifica a terra de todo ato

de violecircncia de toda injusticcedila de todo pecado e impiedade elimina toda a

impudiciacutecia que sobre ela se pratica Todos os homens seratildeo justos todos

os povos me prestaratildeo honra e gloacuteria e todos me adoraratildeo A terra entatildeo

ficaraacute expurgada de toda maldade de todo pecado de toda praga de todo

tormento e nunca mais mandarei sobre ela um diluacutevio ao longo de todas

as geraccedilotildees por toda a eternidade Naqueles dias eu abrirei as cacircmaras dos

depoacutesitos da becircnccedilatildeo do ceacuteu e deixaacute-las-ei derramar-se sobre a terra sobre

as obras e os trabalhos dos filhos dos homens Entatildeo a Verdade e a Paz

juntar-se-atildeo por todos os dias da terra e por todas as geraccedilotildees dos homens

(1Enoque 1012-112)221

Assim a expectativa do reino messiacircnico interino na histoacuteria parece ser uma

combinaccedilatildeo de antigas noccedilotildees sobre o messias o retorno ao paraiacuteso e a periodizaccedilatildeo dos

221 A citaccedilatildeo de 1Enoque veio de TRICCA op cit p 117-202

81

tempos 4Esdras falou em quatrocentos anos de duraccedilatildeo o Apocalipse de Joatildeo registrou mil

anos

Ulfgard sugeriu que o caminho para compreender o tempo do reino messiacircnico na

terra estaria no uso tipoloacutegico do Salmo 9015 ldquoAlegra-nos pelos dias em que nos afligiste

e pelos anos em que vimos o malrdquo Esta era uma foacutermula usada por grupos judaicos para

calcular os dias do messias Deus iria recompensar o povo na terra pelo tempo em que ele

foi maltratado sobre ela Alguns propunham 40 anos para fazer frente ao tempo que o povo

passou no deserto antes de entrar em Canaatilde Outros sugeriam quatrocentos anos

correspondente ao periacuteodo de permanecircncia no Egito A sugestatildeo dos mil anos entretanto

poderia ter relaccedilatildeo com o versiacuteculo 4 deste mesmo Salmo 90 ldquoporque mil anos aos teus

olhos satildeo como o dia de ontem que passou e como uma vigiacutelia de noiterdquo222 De qualquer

forma tanto em 4Esdras quanto no Apocalipse de Joatildeo as expressotildees temporais natildeo satildeo o

elemento principal Afinal em ambas as obras o governo messiacircnico na terra tem um fim

A ecircnfase dos autores destes textos estaacute na expectativa de que a terra experimentaraacute ainda

dentro da histoacuteria um uacuteltimo periacuteodo de paz

Dentro do contexto narrativo maior que comeccedila em Apocalipse 1911 e conclui em

225 Joatildeo inseriu a expectativa do reino messiacircnico na terra quando o Jesus glorificado

retornaria para vencer seus inimigos ressuscitaria seus seguidores martirizados e viveria

com eles por um periacuteodo de mil anos Tomamos esta expectativa como a objetivaccedilatildeo de um

conjunto de representaccedilotildees natildeo apenas derivado de praacuteticas sociais mas tambeacutem promotor

de outras tantas Enquanto tal o milecircnio pode ser visto como uma arma nas lutas de

representaccedilotildees entre certas comunidades religiosas do final do primeiro seacuteculo a resposta

de um liacuteder religioso agraves praacuteticas plurais do movimento de Jesus diante das conjunturas

histoacutericas da proviacutencia romana da Aacutesia O que buscamos nos paraacutegrafos a seguir satildeo fatores

ou condiccedilotildees de emergecircncia para este determinado sistema de representaccedilotildees

222 ULFGARD op cit p 49 Prigent por sua vez sugere que o tempo messiacircnico poderia ser uma alusatildeo a

Jubileus 430 Aqui a morte de Adatildeo com 930 anos eacute entendida como consequecircncia dele natildeo ter alcanccedilado a

idade perfeita de 1000 anos Aleacutem do mais seria cumprimento da profecia de Genesis 217 que declarou que

no dia que ele comesse da arvore ele morreria Nestes termos Apocalipse 204-6 simbolizaria a restauraccedilatildeo da

vida humana ideal nos moldes do paraiacuteso na era messiacircnica No reino messiacircnico as consequecircncias do pecado

de Adatildeo satildeo canceladas Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 358

82

36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia

Jaacute tratamos no capiacutetulo anterior a respeito dos conflitos de lideranccedila do movimento

de Jesus no periacuteodo do Apocalipse numa fase de consolidaccedilatildeo das comunidades dentro da

sociedade romana e de construccedilatildeo de uma identidade separada do Judaiacutesmo Aparentemente

o tema da prisatildeo e destruiccedilatildeo de Satanaacutes223 no interior do complexo narrativo da destruiccedilatildeo

dos adversaacuterios do Jesus glorificado pode ter relaccedilatildeo justamente com essa conjuntura

conflitiva

David Frankfurt analisou vaacuterios apocalipses judaicos e cristatildeos no periacuteodo entre 200

anos antes e 200 depois da Era Comum tentando construir uma tipologia geograacutefica dos

textos apocaliacutepticos224 Segundo ele o milenarismo sectaacuterio eacute um traccedilo significativo do

apocalipsismo asiaacutetico em funccedilatildeo da atuaccedilatildeo privilegiada de figuras profeacuteticas com

performances orais itinerantes a necessidade de forte legitimaccedilatildeo carismaacutetica e o

envolvimento eventual em conflitos de lideranccedila Ele o denomina como ldquomilenarismo

sectaacuteriordquo porque o seu proponente se entende representar natildeo a totalidade da sociedade ou

mesmo do seu grupo social mas uma parcela dentro dele As demais pessoas e grupos satildeo

vistos como adversaacuterios e destinados agrave destruiccedilatildeo escatoloacutegica Este milenarismo eacute

geralmente centrado em figuras profeacuteticas e manifesta algum tipo de luta pela lideranccedila nas

comunidades quando liacutederes carismaacuteticos usam a estigmatizaccedilatildeo para deslegitimar os

adversaacuterios e afirmar a proacutepria autoridade225 Neste contexto de disputa como Elaine Pagels

tentou demonstrar a oposiccedilatildeo eacute frequentemente associada a seres demoniacuteacos e aos

monstros do caos226

O bispo Inaacutecio de Antioquia ao passar pela Aacutesia menor registrou em uma carta uma

justaposiccedilatildeo entre Cristianismo e Judaiacutesmo (Carta aos Magneacutesios X) Ele parece evidenciar

assim que pelo menos alguns seguidores de Jesus naquela regiatildeo e naquele periacuteodo tinham

a percepccedilatildeo de que faziam parte de um movimento independente e mesmo superior ao

Judaiacutesmo Esse debate sobre a identidade das comunidades poderia ser ampliado ainda pelas

distinccedilotildees jaacute feitas pelos magistrados romanos (como as cartas de Pliacutenio jaacute mencionadas) e

223 Como jaacute argumentamos o episoacutedio do milecircnio relata duas narrativas ligadas entre si pelo marco temporal

(mil anos) A narrativa da prisatildeo de Satanaacutes faz parte de uma cena maior que descreve a vitoacuteria do Jesus

glorificado sobre seus adversaacuterios A outra narrativa descreve a exaltaccedilatildeo dos maacutertires 224 FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit 225 Idem 435 226 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na

sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996

83

por pressotildees de sinagogas locais que natildeo queriam ser identificadas com as igrejas227

Possivelmente pouco mais de uma deacutecada antes de Inaacutecio quando as igrejas da Aacutesia jaacute

viviam um momento de instabilidade identitaacuteria os projetos distintos das lideranccedilas geraram

uma crise de legitimidade e a consequente percepccedilatildeo de que o mal poderia vir de dentro da

comunidade

A pequena obra canocircnica conhecida como 3Joatildeo entre os anos 90-110228 registra

um embate entre seu autor anocircnimo e um liacuteder adversaacuterio conhecido como Dioacutetrefes

ldquoEscrevi alguma coisa agrave igreja mas Dioacutetrefes que gosta de exercer a primazia entre eles

natildeo nos daacute acolhidardquo (3Joatildeo 19) Situaccedilotildees como essa geravam respostas diferentes para os

mesmos problemas entre os liacutederes das igrejas Natildeo bastava a um profeta dar a orientaccedilatildeo

para a comunidade jaacute que ele precisava tambeacutem atacar quem divergia de seu

posicionamento Este senso de mal interno foi trabalhado por Joatildeo de duas maneiras Ele

desejava purgar a comunidade de membros que dele divergiam vinculando-os a adversaacuterios

externos da comunidade (membros de sinagogas locais e magistrados romanos) Ao mesmo

tempo ele projeta o conflito para o mundo celestial indicando laccedilos entre seus desafetos e

figuras demoniacuteacas tradicionais como Satatilde229

Este parece ser o caso da polecircmica contra ldquoJezabelrdquo no Apocalipse (Apocalipse 218-

29) A mulher assim intitulada por Joatildeo era uma das liacutederes da comunidade de disciacutepulos de

Tiatira As acusaccedilotildees contra ela indicam que o cerne do conflito estava em aspectos sociais

ldquoJezabelrdquo defendia o engajamento com a sociedade maior e Joatildeo recomendava o

afastamento na direccedilatildeo de um gueto religioso Em termos religiosos eacute possiacutevel que Jezabel

possuiacutesse uma vantagem sobre o profeta de Patmos jaacute que ela tinha amparo no ensino que

o apoacutestolo Paulo deixara trinta anos antes para as igrejas da regiatildeo230 Como argumenta Duff

uma das estrateacutegias de Joatildeo neste confronto foi conectar sua rival com Babilocircnia e por

implicaccedilatildeo com Satatilde231 Em escala maior os membros do movimento de Jesus que Joatildeo

227 Uma evidecircncia neste sentido pode ser o uso do termo ldquominimrdquo para descrever os membros do movimento

de Jesus em maldiccedilotildees pronunciadas em sinagogas em periacuteodo tatildeo recuado quanto 80-85 Para que pudesse ser

disseminada por diversas comunidades judaicas uma maldiccedilatildeo foi inserida entre as 18 becircnccedilatildeos conhecidas

como ldquobirkat-hamminimrdquo que dizia ldquoQue os nosrim (nazarenos) e os minim (hereges) morram subitamente

e sejam excluiacutedos do livro da vida para que natildeo sejam ali recordados juntamente com os justos Bendito sejas

Tu oacute Senhor que abaixas os orgulhososrdquo Cf BAGATTI Bellarmino A igreja da circuncisatildeo histoacuteria e

arqueologia dos judeu-cristatildeos Petroacutepolis Vozes 1975 p 44 228 KUumlMMEL op cit p 593 229 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 230 Idem p 71 231 Idem p 72

84

considerava desviantes passaram a ser rotulados como chamou Pagels de ldquoagentes secretosrdquo

de forccedilas demoniacuteacas sobrenaturais232

Portanto Joatildeo natildeo demoniza apenas a sociedade romana em sua manifestaccedilatildeo

asiaacutetica ou o Impeacuterio na figura das bestas de Apocalipse 13 Ele tambeacutem entende que

mesmo dentro das igrejas existiam aliados de Satanaacutes os ldquoinimigos iacutentimosrdquo233 Este tipo de

perspectiva poderia explicar o grande espaccedilo dado agraves descriccedilotildees dos poderes demoniacuteacos no

Apocalipse bem como a necessidade de um milecircnio que tem como pano de fundo a

destruiccedilatildeo destas mesmas forccedilas de oposiccedilatildeo

Um reino milenar precedido pelo sangue dos adversaacuterios pode refletir entatildeo um

contexto social cheio de tensotildees dentro das proacuteprias igrejas (divergecircncias sobre a identidade

do movimento) entre as igrejas e grupos judaicos (hostilidade contra sinagogas locais) entre

as comunidades de Jesus e a sociedade romana (demandas por acomodaccedilatildeo cultural) e entre

os seguidores de Jesus e o Impeacuterio (interaccedilatildeo entre religiatildeo sociedade e poliacutetica)234

Nosso argumento eacute que a situaccedilatildeo das comunidades envolvidas em distuacuterbios

identitaacuterios com sinagogas locais e em conflitos de lideranccedila acabou se tornando um fator

plausiacutevel no surgimento do milecircnio do Apocalipse ao provocar a expectativa de um tempo

em que todos os inimigos internos e externos seriam destruiacutedos violentamente

Um segundo aspecto frequentemente sugerido pelos autores eacute a oposiccedilatildeo de Joatildeo a

Roma235 A forma como o Apocalipse ataca a sociedade romana o coloca ao lado de outros

grupos judaicos anti-romanos posteriores ao conflito que terminou com a destruiccedilatildeo do

templo e da cidade de Jerusaleacutem (66-70) como os zelotes da Palestina236 Nestes grupos e

movimentos manifestou-se a perspectiva criacutetica de que o Impeacuterio Romano era incompatiacutevel

com o reino de Deus frequentemente traduzida por uma forte rejeiccedilatildeo dos siacutembolos e

232 PAGELS Elaine H The Social History of Satan part three John of Patmos and Ignatius of Antiochi

Contrasting Visions of Gods People Harvard Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006

p 489 233 Idem p 494 234 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The

Westminster Press 1984 p 84-99 SILVA David A de The social setting of the Revelation to John conflicts

within fears without Westminster Theological Journal Philadelfia n 54 p 273-302 1992 p 287 235 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In

BARR David L The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society

of Biblical Literature 2006 p 243-269 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de

Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 MESTER Carlos e OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano

e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n

69 p 72-82 2001 PAGELS Elaine Revelationshellip op cit 236 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p

213

85

imagens do poder romano entre eles o culto imperial Outros fatores ainda poderiam ter

atuado para produzir esta oposiccedilatildeo como expectativas religiosas de um Israel independente

de poderes estrangeiros ou medidas financeiras dos procuradores romanos237

De qualquer forma Pagels historiadora da religiatildeo chamou o Apocalipse de

ldquoliteratura de guerrardquo238 porque Joatildeo teria saiacutedo da Judeacuteia sua terra natal logo apoacutes

testemunhar o iniacutecio do confronto de seus conterracircneos judeus contra as forccedilas romanas em

66 Mesmo ausente ele pode ter ouvido falar dos 60 mil soldados romanos que cercaram

Jerusaleacutem e destruiacuteram a cidade Quando finalmente o cerco terminou eles a invadiram e a

deixaram em ruiacutenas O templo judaico que terminara de ser reformado poucos anos antes

foi destruiacutedo junto com a cidade O responsaacutevel inicial pelo cerco o general Vespasiano

acabou como o Imperador de Roma No tempo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse era

seu filho Domiciano que dirigia o Impeacuterio O impacto da destruiccedilatildeo do Templo e de

Jerusaleacutem foi significativo para diversos setores do Judaismo mas teve um impulso

particular em Joatildeo e pode ser considerado mesmo como ponto de partida para sua oposiccedilatildeo

a Roma

Para o Apocalipse entatildeo o Impeacuterio era um peso opressor que deveria ser eliminado

antes que o mundo viesse a conhecer a justiccedila Seu milecircnio pode ser visto como a

manifestaccedilatildeo do desejo pelo fim da ldquoRoma eternardquo Por isso como em outros apocalipses

judaicos a histoacuteria no Apocalipse eacute uma sequecircncia de poderes Aquele era o tempo de Roma

mas ela iria passar para ser sucedida pelo reino milenar do Messias Este ldquooacutediordquo pela

sociedade do presente histoacuterico parece ser assim mais um fator na promoccedilatildeo da expectativa

milenarista de Joatildeo de que um novo reino se levantaria em breve para substituir o atual

O milecircnio de Joatildeo o futuro reino do Messias expressa a condenaccedilatildeo joanina da

presente ordem romana Nos termos de John Collins em nenhum outro lugar a queda dos

poderosos eacute imaginada com tal alegria como neste apocalipse cristatildeo onde um anjo de peacute

sobre o sol convida os paacutessaros a comer a carne dos reis dos capitatildees e dos poderosos

(Apocalipse 1918)rdquo239

237 Uma anaacutelise dos conflitos entre judeus e romanos no seacuteculo I pode ser encontrada em GOODMAN Martin

Rome and Jerusalem the clash of ancient civilizations London Pinguin Books 2007 Especificamente sobre

a guerra de 66-70 cf REICKE Bo Histoacuteria do tempo do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 1996 p 282-

294 238 PAGELS Elaine Revelations op cit p 7 239 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica op cit p 18

86

Outro fator de emergecircncia do milecircnio joanino pode ter relaccedilatildeo com a situaccedilatildeo

perigosa de vida dos membros da comunidade de Jesus240 com a jaacute mencionada memoacuteria de

mortes violentas de disciacutepulos na guerra judaico-romana e na crise nerodiana da deacutecada de

60 e com a crucificaccedilatildeo de Jesus Isso parece estar subjacente agrave representaccedilatildeo dos maacutertires

no episoacutedio do milecircnio Afinal mesmo que natildeo haja evidecircncias de uma perseguiccedilatildeo e morte

generalizada dos membros das igrejas no periacuteodo do Apocalipse e o livro faccedila referecircncia a

apenas uma morte (Apocalipse 213) o milecircnio gira em torno dos maacutertires

O contexto mais amplo do aparecimento dos apocalipses judaicos foi de rejeiccedilatildeo ao

domiacutenio pagatildeo241 A resistecircncia poderia vir em forma ativa como a revolta dos macabeus

ou em forma passiva como a elaborada nos apocalipses de Daniel 7-12 no qual se anseia

pela destruiccedilatildeo dos poderes estrangeiros por forccedilas sobrenaturais mas sem qualquer

participaccedilatildeo humana no confronto Um tipo de resistecircncia intermediaacuteria envolve a

expectativa de sinergismo entre forccedilas divinas e humanas na destruiccedilatildeo escatoloacutegica dos

adversaacuterios como aparece na frase de Assunccedilatildeo de Moiseacutes ldquonosso sangue seraacute vingado pelo

Senhorrdquo (97) Esperava-se que a morte voluntaacuteria do judeu piedoso provocaria a vinganccedila

de Deus242 Eacute neste sentido que o Apocalipse descreve um nuacutemero fixado de maacutertires que

devem encontrar a morte antes que chegue o fim

Joatildeo advoga uma ruptura das comunidades de Jesus com a sociedade romana o que

na sua oacutetica provocaria a perseguiccedilatildeo e morte dos membros das igrejas Contudo seria

justamente essa perseguiccedilatildeo que ao promover o martiacuterio dos disciacutepulos iria apressar a

chegada do reino messiacircnico de Jesus243 O milecircnio assim pode ser visto como uma

propaganda martiroloacutegica Afinal os maacutertires satildeo os mais abenccediloados seguidores de Jesus e

as consequecircncias de seus atos continuam mesmo apoacutes suas mortes Nos termos do

Apocalipse ldquoFelizes os mortos que desde agora morrem no Senhor Sim diz o Espiacuterito

para que descansem das suas fadigas pois as suas obras os acompanhamrdquo (Apocalipse

1413)

240 A correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano na proviacutencia vizinha alguns anos apoacutes o Apocalipse pode ser

evidecircncia de que as comunidades jaacute corriam risco no final do seacuteculo I 241 Esta anaacutelise da relaccedilatildeo entre Apocalipse e poliacutetica pode ser encontrada em COLLINS Adela Yarbro The

political perspective of the Revelation to John Journal of Biblical Literature Atlanta v 96 n 2 p 241-256

1977 242 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p

209 243 Frankfurt descreve o periacuteodo entre a produccedilatildeo do evangelho de Marcos e o Apocalipse de Joatildeo (70-100)

como um periacuteodo de ldquofasciacutenio com o martiacuterio e a necessidade de imaginar a perseguiccedilatildeordquo entre algumas igrejas

Cf FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit p 436

87

O tema da morte violenta domina muitas visotildees de Joatildeo De vaacuterias formas forccedilas

demoniacuteacas ameaccedilam o movimento de Jesus a besta que persegue as duas testemunhas

(Apocalipse 111-13) o Dragatildeo que persegue a Mulher e sua semente (Apocalipse 121-17)

as bestas do mar e da terra que perseguem os ldquosantosrdquo (Apocalipse 131-1412) a Babilocircnia

que persegue as testemunhas de Jesus (Apocalipse 171-195)244

Eacute neste contexto que se entende a memoacuteria da crucificaccedilatildeo de Jesus Joatildeo vecirc paralelos

entre a situaccedilatildeo dos fieacuteis e do fundador do movimento e com isso constroacutei uma narrativa

que idealiza a imitaccedilatildeo de Cristo atraveacutes do sofrimento e martiacuterio Um significativo texto

neste sentido eacute Apocalipse 1210-12 onde os santos imitam Cristo vencendo o Dragatildeo pelo

sangue do Cordeiro (ldquoτὸ αἷμα τοῦ ἀρνίουrdquo) e pela palavra do testemunho (ldquoδιὰ τὸν λόγον τῆς

μαρτυρίας αὐτῶνrdquo) porque natildeo amaram a proacutepria vida mesmo diante da morte (ldquoοὐκ ἠγάπησαν

τὴν ψυχὴν αὐτῶν ἄχρι θανάτουrdquo) Segundo essa formulaccedilatildeo joanina a vitoacuteria sobre os poderes

demoniacuteacos estaacute ligada diretamente agrave morte (de Jesus e dos disciacutepulos) Para Thompson esta

identificaccedilatildeo com ldquoo Cordeiro crucificadordquo (ldquoἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένονrdquo - Apocalipse

56) tinha como objetivo promover uma especiacutefica identidade no fiel e suportar

determinados comportamentos245

Este imaginaacuterio de tribulaccedilatildeo funciona independente das experiecircncias concretas de

perseguiccedilatildeo das comunidades de disciacutepulos jaacute que deriva da construccedilatildeo de viacutenculos com

traumas no passado do movimento (a morte de Jesus as perseguiccedilotildees de Nero em Roma as

guerras na Judeacuteia a morte de Antipas) Assim a memoacuteria de mortes passadas e a expectativa

de muitas outras pode ser considerado mais um fator para o surgimento do milecircnio sectaacuterio

de Joatildeo ao aguardar a participaccedilatildeo seletiva de um grupo especial de fieacuteis os martirizados

no reino do Jesus exaltado246

Assim diante de fatores como estes entatildeo apontados a resposta de Joatildeo veio na

forma de apropriaccedilatildeo de tradiccedilotildees apocaliacutepticas a respeito do messias da periodizaccedilatildeo da

histoacuteria e do retorno ao paraiacuteso e da construccedilatildeo de um conjunto de representaccedilotildees

milenaristas que convidava ao levantamento dos muros da comunidade a ruptura sectaacuteria

244 THOMPSON Leonard A sociological analysis of tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 36 p 147-174 1986 p 148 245 Idem p 170 246 Em Daniel 123 tambeacutem apenas um grupo especial de fieacuteis os saacutebios passaria pela ressurreiccedilatildeo Cf

COLLINS John J Danielhellip op cit p 103

88

com membros divergentes a espera ansiosa pelo martiacuterio e finalmente o governo vitorioso

dos maacutertires durante o milecircnio

Existiam outros liacutederes como a liacuteder estigmatizada Jezabel (Apocalipse 220) que

propunham praacuteticas diferentes por entenderem que o relacionamento com a sociedade era

necessaacuterio para a sobrevivecircncia da comunidade247 Para estes a sociedade romana era o

espaccedilo de sobrevivecircncia e natildeo do confronto Mesmo que as categorias propostas por Joatildeo

tenham sido eventualmente abraccediladas em subsequentes apropriaccedilotildees sectaacuterias do milecircnio248

isso natildeo promoveu necessariamente a ruptura com a sociedade249 Isso levou Thompson a

afirmar com certa ironia que a continuidade do movimento de Jesus foi viabilizada porque

seus membros natildeo conseguiram objetivar as representaccedilotildees do Apocalipse250

37 Resumo

Joatildeo encerra seu Apocalipse com a narrativa daquilo que ele entendia ser o fim do

mundo e da histoacuteria Antes disso entretanto ele descreve um periacuteodo de governo milenar

do Jesus Glorificado e seus maacutertires ressuscitados O milecircnio aparece no livro joanino como

o tempo do aprisionamento de Satanaacutes e do reinado messiacircnico interino na terra Estas

expectativas parecem ter origem em tradiccedilotildees literaacuterias judaicas que combinavam noccedilotildees

sobre um redentor ungido por Deus um retorno aos tempos paradisiacuteacos e periodizaccedilotildees da

histoacuteria Estas antigas noccedilotildees parecem ter se reunido de uma forma muito semelhante na

regiatildeo da Aacutesia-Siacuteria-Palestina no final do seacuteculo I nas obras Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque por causa entre outros fatores dos traumas da guerra judaico-

romana No caso especiacutefico da versatildeo joanina sua emergecircncia ainda pode ter relaccedilatildeo com

conflitos de lideranccedila das comunidades de Jesus em funccedilatildeo de respostas diferentes agrave questatildeo

do relacionamento com a sociedade romana

247 DUFF Paul B Who rides the Beast op cit p 77 248 Como os movimentos milenaristas analisados em COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas

revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 249 Como a apropriaccedilatildeo do milecircnio em Agostinho Cf KYRTATAS Dimitris The Transformations of the

Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text The Writing of Ancient

History London Duckworth 1986 p 144-162 250 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L (ed) Reading

the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 46

IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM

Neste capiacutetulo aplicaremos ao Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram

lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar

elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso

este seraacute o espaccedilo principal para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando

apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o

livro joanino

41 O autor do Expositio in Apocalypsim

A obra intitulada Expositio in Apocalypsim editada pela Junta de Veneza em 1527 e

reimpressa pela Editora Miverva em 1964 reuacutene de fato trecircs textos distintos todos

vinculados a uma mesma pessoa O primeiro no foacutelio 1r na parte superior eacute aberto nestes

termos Incipit epistola prologalis domini Abbatis Joachim florensis O segundo comeccedila

no foacutelio 1v com estas palavras Incipit prologus domini Joaquim Abbatis florensis in expone

libri Apocalipsis e termina no 16v Explicit liber primus dictus introductorius Somente

entatildeo comeccedila o terceiro texto neste mesmo foacutelio 16v (Incipit prima septem partius in

expositione Apocalipsis) que se estende longamente ateacute o final da obra veneziana no foacutelio

224r (Explicit admiranda Expositio venerabilis Abbatis Joachim in Librus Apocalipsis Beati

Joannis Apostoli et Evangeliste) Eacute apenas este uacuteltimo e longo texto que se trata do

Expositio in Apocalypsim identificado no explicit como de autoria de Joaquim de Fiore No

interior do Expositio natildeo haacute outras auto-identificaccedilotildees Mesmo assim estudiosos do assunto

satildeo unacircnimes em aceitar o texto como obra do abade de S Joatildeo de Fiore bem como as outras

duas que abrem a versatildeo veneziana seiscentista A primeira eacute intitulada Carta Testamentaacuteria

pela historiografia251 a segunda recebe o tiacutetulo de Liber Introductorius que funciona como

uma siacutentese do Expositio

Tomando como ponto de partida este viacutenculo aceitando-o como autecircntico o que eacute

possiacutevel dizer sobre este Venerabilis Abbatis Joachim Nos seacuteculos posteriores agrave sua morte

ele foi estigmatizado por exemplo por Tomaacutes de Aquino que tratou as obras de Joaquim

251 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 69

90

como conjecturas252 contudo louvado por Dante Aliguiere que no final do canto XII de sua

Divina Comeacutedia colocou na boca de Satildeo Boaventura ldquoSabe que ao meu lado brilha o

calabrecircs abade Giovachino que tem o dom de profetizarrdquo253 Ele apareceu em cataacutelogo de

santos e em lista de heresias254 mas nunca chegou a ser oficialmente declarado herege ou

santo255 No meio deste ambiacuteguo rastro muitas lendas se acumularam a respeito desta figura

do medievo italiano Por isso uma reconstruccedilatildeo biograacutefica de Joaquim precisa levar em

conta os seguintes elementos

- os poucos dados deixados por ele na sua Carta Testamentaacuteria por volta de 1200 jaacute

no final de sua vida endereccedilada a um abade de sua Ordem

- estes poucos dados da Carta Testamentaacuteria precisam ser comparados com duas

hagiografias sobre Joaquim de Fiore escritas por contemporacircneos seus uma produzida pelo

seu secretaacuterio Lucas de Consenza Virtutum Beati Joachimi synopsis e Vita beati Joachimi

abbatis escrita provavelmente pouco depois de sua morte obra de um monge anocircnimo que

trabalhou com Joaquim enquanto ele era abade de Corazzo acompanhou-o posteriormente

para Petralata e por fim para S Joatildeo em Fiore256

- narrativas de caraacuteter lendaacuterio sobre ele encontradas em outras fontes que precisam

ser avaliadas pelo caraacuteter de plausibilidade e podem ajudar a esclarecer aspectos obscuros

de sua biografia

Com estes elementos cotejados eacute que estudiosos de Joaquim reconstroem sua vida257

Seu nascimento se deu provavelmente em 1135 em Celico uma vila pequena agrave leste de

Consenza na Calaacutebria proviacutencia do Reino normando da Siciacutelia Seu pai era Mauro um

notaacuterio do Arcebispo Sancio de Consenza Sobre sua matildee soacute se conhece seu nome Gema

Ele era o sexto de oito filhos do casal e o mais velho a sobreviver258

Joaquim foi enviado ainda jovem para trabalhar tambeacutem em Consenza como oficial

da Chancelaria normanda da Calaacutebria Sua famiacutelia o treinava para ser um notaacuterio como seu

252 MC GINN Bernard The abbot and the doctors scholastic reactions to the radical eschatology of Joaquim

of Fiore Church History Cambridge v 40 n 1 p 30-47 1971 p 19 253 DANTE ALIGUIERE A divina comeacutedia Satildeo Paulo Nova Cultural 2002 p 338 254 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London

University of Notre Dame Press 1993 p 3 255 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 256 TRONCARELLI Fabio Gioacchino da Fiore la vita il pensiero le opere Roma Cittagrave Nuova Editrice

2002 p 15 257 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4 TRONCARELLI op cit p 15 DANIEL E Randolph Abbot

Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical

Society 1983 p xii REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 258 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii

91

pai259 Isso lhe forneceu preparo intelectual com o domiacutenio do grego liacutengua predominante

nos registros de governo da Calaacutebria e Siciacutelia bem como do Latim O aacuterabe era bem

conhecido nos espaccedilos da corte da Siciacutelia poreacutem natildeo haacute indiacutecios de que Joaquim dominava

este idioma apesar dos provaacuteveis contatos com ele durante o tempo em que esteve na corte

do reino em Palermo

Apoacutes um periacuteodo inicial em Consenza o ainda jovem Joaquim foi encaminhado para

a corte de William II na Siciacutelia onde trabalhou para o chanceler Estevatildeo de Perche Apoacutes

algum tempo na corte foi com o notaacuterio Santoro para Apuacutelia e Val di Crati onde foi

acometido de uma doenccedila Possivelmente para tratar da enfermidade ele retornou para a

corte em Palermo

Em meados de 1167 Joaquim decidiu fazer uma peregrinaccedilatildeo agrave Jerusaleacutem Eacute difiacutecil

saber as causas desta accedilatildeo de Joaquim apesar da probabilidade de sua doenccedila ter alguma

relaccedilatildeo com o evento tanto com o abandono da corte quanto com a viagem para a Terra

Santa260 Troncarelli argumenta que jaacute na base desta peregrinaccedilatildeo estava a decisatildeo juvenil

de Joaquim de abraccedilar o eremitismo e todo o desenvolvimento da sua viagem jaacute seria parte

deste propoacutesito de vida eremita261 Para Randolph Daniel entretanto a vocaccedilatildeo de Joaquim

se deu durante a peregrinaccedilatildeo quando ao passar por Tripoli na Siria ele teria enfrentado

outra enfermidade desta vez por causa de uma epidemia local Como sobreviveu a ela

tomou a decisatildeo de abraccedilar o monasticismo ainda que neste periacuteodo a opccedilatildeo tenha sido por

um tipo de monasticismo natildeo-cenobiacutetico em isolamento e ascetismo262 Independentemente

entretanto do momento especiacutefico em que se deu a vocaccedilatildeo religiosa de Joaquim ela deve

ter tido alguma relaccedilatildeo com sua peregrinaccedilatildeo ao oriente263

Joaquim concluiu a peregrinaccedilatildeo a Jerusaleacutem e voltou para Siciacutelia em 1171264 natildeo

para a corte mas como outros monges gregos da ilha para uma regiatildeo montanhosa e isolada

Ele escolheu a proximidade do Monte Etna perto de um antigo monasteacuterio oriental265

Alguns meses depois atravessou o estreito de Messina na direccedilatildeo da Calaacutebria sua terra natal

259 TRONCARELLI op cit p 16 260 Adeline Rucquoi analisa as motivaccedilotildees provaacuteveis de peregrinos na Idade Meacutedia e menciona a relaccedilatildeo entre

enfermidade e voto de peregrinaccedilatildeo como uma causa frequente Cf RUCQUOI Adeline Peregrinos

medievales Tiempo de historia Salamanca v VII n 75 p 82-99 1981 p 85 261 TRONCARELLI op cit p 18 262 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii 263 SANTI Francesco La Bibbia in Gioacchino da Fiore In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio

(ed) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 257-267 p 259 264 AFFLECK Toby Joachim of Fiore Access History Brisbane v 1 n 1 p 45-54 1997 p 45 265 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der

Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98

92

Buscou um abrigo ou mesmo uma caverna em Guarassanum perto de Consenza e da vila

onde nasceu Narrativas de caraacuteter lendaacuterio entatildeo narram um encontro entre Joaquim e

Mauro Eacute um topos recorrente na biografia de grandes figuras religiosas do periacuteodo quando

o pai tenta dissuadir o filho de sua missatildeo religiosa para retomar uma vida social em

ascensatildeo Randolph Daniel destaca entretanto que apesar da natureza artificial da narrativa

encontros como este poderiam ser frequumlentes quando filhos de famiacutelias bem situadas na

sociedade decidiam abandonar uma carreira de sucesso para abraccedilar uma vocaccedilatildeo religiosa

de pouco prestiacutegio como era a vida isolada de um eremita266 O proacuteprio Joaquim parece falar

de um conflito com sua famiacutelia no interior de sua Concordia com a mensagem de que havia

recusado a promoccedilatildeo social a escala de sucesso no interior do Reino da Siciacutelia para abraccedilar

a ascese267

Apoacutes um periacuteodo recluso em Guarassanum Joaquim aceitou a hospitalidade da

abadia cisterciense de Sambucina ainda perto de Consenza Mas natildeo ficou muito tempo ali

pois se deslocou para Rende cerca de 10 quilocircmetros a noroeste onde por um ano pregou

agraves pessoas da regiatildeo Receoso de estar cometendo algum ato de desobediecircncia por pregar

sem autorizaccedilatildeo procurou o bispo Roberto de Catanzaro de quem recebeu o ordenamento

sacerdotal e a referida autorizaccedilatildeo para pregar Foi neste periacuteodo que Joaquim conheceu o

monasteacuterio de S Maria de Corazzo jaacute que tanto para ir quanto para voltar de Catanzaro ele

precisou se hospedar ali

Ele retomou sua atividade em Rende como pregador itinerante mas natildeo demorou

muito para tomar a decisatildeo de abandonar o clero secular e ingressar no monasteacuterio de

Corazzo como noviccedilo268 Este monasteacuterio fora fundado em 1157 por Rogeacuterio de Martirano

O abade desde o tempo da fundaccedilatildeo era Columbano Em 1177 entretanto por algum

motivo natildeo explicitado apenas relatado como scandala os monges de Corazzo resolveram

afastaacute-lo e na sequecircncia elegeram Joaquim para substituiacute-lo o que indica o status de

lideranccedila que o ex-peregrino jaacute havia adquirido entre eles Os monges podem ter percebido

que a formaccedilatildeo cultural de Joaquim o havia capacitado para dirigir a casa funccedilatildeo essa que

266 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xiii 267 Idem p xx Troncarelli entende que esse conflito poderia ser ainda mais significativo em funccedilatildeo do fato de

Joaquim ter se afastado da chancelaria normanda durante um periacuteodo de desenvolvimento do Reino da Siciacutelia

ldquoperiacuteodo de prosperidade e paz sem igualrdquo Cf TRONCARELLI op cit p 19 268 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p iv

93

envolvia certo grau de relacionamento com os poderes sociais circundantes na defesa da

propriedade e dos direitos do monasteacuterio269

Joaquim natildeo aceitou a eleiccedilatildeo rejeitou o cargo e saiu do mosteiro Foi inicialmente

para S Trindade em Acri monasteacuterio fundado em 1080 pelo conde Rogeacuterio I270 Insatisfeito

com o pouco isolamento do local deixou-o igualmente e procurou a abadia de Sambucina

na qual jaacute havia se hospedado Esta era a uacutenica casa da Ordem de Cister no Reino da Siciacutelia

ateacute o momento Joaquim tentou nela seu ingresso mas foi rejeitado por estar jaacute filiado a

Corazzo

Enquanto estava em Sambucina ele foi pressionado pelo abade da casa pelo

arcebispo Ruffus de Consenza e por Melis um juiz de Rende a retornar ao seu monasteacuterio

e aceitar o resultado da eleiccedilatildeo Diante dos apelos Joaquim assumiu a direccedilatildeo da abadia de

Corazzo ainda no ano de 1177271

Enquanto abade ele dedicou boa parte de suas energias na tentativa de filiar sua casa

agrave Ordem Cisterciense Uma carta do bispo Miguel de Martirano datada de 1177 faz menccedilatildeo

a um privileacutegio outorgado pelo papa Alexandre III (1159-1181) a Corazzo para que os

monges adotassem os costumes cistercienses Natildeo daacute para saber se a adoccedilatildeo destes costumes

eacute anterior ou posterior agrave eleiccedilatildeo de Joaquim De qualquer forma para conseguir ingressar

efetivamente na Ordem era preciso ser aceito como casa-filha de uma casa jaacute estabelecida

na Ordem de Cister272

A primeira tentativa de Joaquim foi Sambucina proacutexima de Corazzo igualmente na

Calaacutebria e com quem ele jaacute tinha tido contatos em mais de uma ocasiatildeo O pleito poreacutem

foi rejeitado aparentemente em funccedilatildeo de questotildees ligadas agrave propriedade do monasteacuterio de

Joaquim273 Com a rejeiccedilatildeo de Sambucina o abade calabrecircs se voltou para Casamari uma

casa cistersiense fora do Reino da Siciacutelia fundada em 1140 a leste de Roma274 Ali ele

chegou em 1183 e ficou por oito meses partindo somente no ano seguinte A resposta de

Casamari foi semelhante agrave de Sambucina mas durante este periacuteodo Joaquim encontrou a

269 Graham Loud analisou o processo de eleiccedilatildeo no interior das abadias da Itaacutelia meridional em LOUD

Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007 p 462-467 270 Idem p 86 271 DESROCHE Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade

Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 269 272 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xv 273 TRONCARELLI op cit p 21 274 DUBY Georges Atlas Histoacuterico Mundial Madrid Editorial Debate 1987 p 49

94

hospitalidade do abade Geraldo (abade de 1183-1209) e dedicou a maior parte do tempo no

estudo do acervo da rica biblioteca do monasteacuterio275

No mecircs de maio de 1184 aproveitou a oportunidade para visitar o papa Luacutecio II

(papa de 1181-1185) que se encontrava em Veroli Segundo Marjorie Reeves esta visita ao

Papa era uma tentativa de Joaquim de legitimar a produccedilatildeo de suas obras o que naquele

momento era sua missatildeo de vida276 Diante do pontiacutefece ele teve a oportunidade de explicar

um manuscrito encontrado em Roma entre os documentos do falecido Cardeal Mathias de

Angers O texto tratava de profecias tradicionais sobre o final dos tempos cobrindo temas

como o Anticristo a grande tribulaccedilatildeo e o fim do mundo Diante de Luacutecio III Joaquim

aplicou no documento anocircnimo a mesma forma de exegese que ele jaacute aplicava nos textos

biacuteblicos buscando elementos do seu tempo que pudessem corresponder agraves profecias

narradas na obra277 Posteriormente ele transcreveu sua exposiccedilatildeo deste documento num

pequeno tratado intitulado Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno 1184278

onde trata da tribulaccedilatildeo futura da Igreja originada em forccedilas do Impeacuterio Germacircnico como

parte do processo divino de purificaccedilatildeo da Igreja279

Como resultado do encontro o papa Luacutecio aprovou o meacutetodo hermenecircutico de

Joaquim e exortou-o a concluir os escritos que desejava produzir280 Entendendo que o papa

havia dado a ele a licenccedila que ele queria o abade calabrecircs iniciou ainda em Casamari a

produccedilatildeo simultacircnea de vaacuterias obras Ele natildeo se contentava em comeccedilar e terminar cada

uma mas trabalhava nelas de forma concomitante auxiliado por dois escribas e um

secretaacuterio Lucas de Consenza que se tornou seu amigo a partir de entatildeo Ele ditava e

revisava o material que os seus ajudantes escreviam281

Joaquim retornou para Corazzo em 1184 Segundo West e Zimdars-Swartz ele

voltou com a clara perspectiva de que as questotildees administrativas vinculadas ao seu cargo o

atrapalhavam natildeo soacute a escrever suas ideias mas tambeacutem a divulgaacute-las para preparar a igreja

para os eventos iminentes que estavam por vir282

Em 1186 Joaquim foi a Verona para render homenagem ao novo pontiacutefice Urbano

III (papa de 1185-1187) onde o papa renovou a autorizaccedilatildeo dada anteriormente por Luacutecio

275 TRONCARELLI op cit p 21 276 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 6 277 SANTI op cit p 261-265 278 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 90 279 TRONCARELLI op cit p 23-24 280 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 7 281 TRONCARELLI op cit p 22 282 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4

95

II e ainda ldquoincitou-o a continuar seus escritosrdquo283 Diante da autorizaccedilatildeo de dois papas para

que escrevesse ele procurou na primavera desde mesmo ano uma sela mais reservada num

local perto de Corazzo chamado Petralata sem rompimento formal ainda com o seu

monasteacuterio

Em 1188 Joaquim foi a Roma onde Clemente III (papa de 1187-1191) emitiu uma

carta na qual renovou as autorizaccedilotildees anteriores e solicitou que fossem levadas apoacutes

concluiacutedas para a avaliaccedilatildeo da cuacuteria romana O pontiacutefece ainda teria aprovado a resignaccedilatildeo

de Joaquim do cargo de abade de Corazzo no momento exato em que Corazzo finalmente

conseguiu ingresso na ordem Cisterciense como filha da abadia de Fossanova uma das

maiores casas da Ordem no territoacuterio papal fundada em 1135 ao sul de Roma284 O

abandono de Corazzo agora cisterciense rendeu a Joaquim o ressentimento dos seus

monges e do proacuteprio Capiacutetulo Geral da Ordem que passou a exigir sua volta Eles o

acusaram de transgredir o primeiro voto da profissatildeo monaacutestica beneditina que eacute a

estabilidade no monasteacuterio285

Em vez de retornar entretanto de posse da resignaccedilatildeo papal ele continuou por um

tempo em Petralata contando com a ajuda de Rainer um eremita da ilha de Ponza que se

juntou a ele No inverno de 1188 insatisfeitos com as interrupccedilotildees e visitas eles foram atraacutes

de um lugar mais isolado e o encontraram nas montanhas calabresas de Fiore para onde se

mudaram em maio de 1189 Naquele lugar agrave medida que disciacutepulos vinham se juntar a

Joaquim nasceu a necessidade de organizar um monasteacuterio O resultado foi a fundaccedilatildeo da

abadia de S Joatildeo de Fiore286

A fundaccedilatildeo da casa entretanto se deu no contexto adverso da transiccedilatildeo dinaacutestica

entre a morte de William II no final de 1189 o curto governo de Tancredo (entre 1190-1194)

e a coroaccedilatildeo de Henrique VI (final de 1194) Eacute um periacuteodo no qual apesar de ter renunciado

anteriormente agrave direccedilatildeo do monasteacuterio de Corazzo Joaquim estaacute nos termos de Troncarelli

ldquoapaixonadamenterdquo envolvido na fundaccedilatildeo de uma casa proacutepria287 Ele renunciara agrave

283 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xviii 284 DUBY op cit p 49 285 TRONCARELLI op cit p 24 Alguns autores sugerem entretanto que Joaquim deixou Corazzo por

entender que a Ordem de Cister jaacute natildeo era riacutegida o suficiente principalmente na questatildeo da disciplina

monaacutestica Ele desejava o cumprimento estrito da Ordem de S Bento o que para o abade significava o

abandono das questotildees temporais uma vida de simplicidade a pureza de coraccedilatildeo e a vida contemplativa Cf

DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

p 41 286 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5 287 TRONCARELLI op cit p 27

96

lideranccedila de uma casa para ser liacuteder de outra Esta mudanccedila de perspectiva de Joaquim

poderia ter relaccedilatildeo com o papel que ele imaginou ter nos tempos que estariam por vir sobre

a Igreja Segundo este professor da Universitagrave della Tuscia ele entendeu que precisava do

apoio de uma nova casa monaacutestica na promoccedilatildeo de sua missatildeo de preparar as pessoas para

a intervenccedilatildeo iminente do Espiacuterito Santo288

Por isso se antes ele queria o isolamento agora ele precisa de apoio natildeo apenas dos

papas mas tambeacutem dos poderes poliacuteticos Entre 1190-1191 ele passou um periacuteodo em

Palermo enquanto solicitava ajuda de Tancredo para as obras de S Joatildeo de Fiore A resposta

do rei normando foi favoraacutevel a Joaquim por meio de uma ldquogenerosa doaccedilatildeordquo289

Enquanto esteve na Siciacutelia em negociaccedilatildeo com Tancredo a ilha se tornou ponto de

parada de uma cruzada a caminho de Jerusaleacutem Joaquim foi convocado para se encontrar

com Ricardo Coraccedilatildeo de Leatildeo da Inglaterra e um grupo de ingleses em Messina290 Ricardo

desejava de Joaquim algum tipo de vaticiacutenio a respeito da cruzada em Jerusaleacutem o que

demonstra que neste periacuteodo o calabrecircs havia alcanccedilado a reputaccedilatildeo de profeta entre alguns

de seus conterracircneos291 O abade usou a visatildeo de Apocalipse 179-10 que descreve uma

besta com sete cabeccedilas para interpretar a Cruzada A passagem apocaliacuteptica fala de sete reis

dos quais caiacuteram cinco um existe e outro ainda natildeo chegou Segundo o autor do Expositio

as cinco cabeccedilas que caiacuteram seriam Herodes Nero Constantino Maomeacute e Melsemuto A

sexta cabeccedila neste caso seria Saladino aquele ldquoum que existerdquo que seria destruiacutedo em

breve para que a seacutetima cabeccedila o que ldquoainda natildeo chegourdquo o derradeiro Anticristo se

manifestasse Este teria jaacute 15 anos e estaria pronto para assumir seu poder

O rei Ricardo perguntou a Joaquim onde o Anticristo teria nascido e onde iria reinar

Joaquim respondeu que ele nascera in urbe Romana e obteria a Seacute Apostoacutelica A visatildeo

aparentemente pouco ortodoxa de Joaquim sobre o Anticristo agradou o monarca inglecircs

adversaacuterio do papa Reeves argumenta entretanto que ao apontar Roma como o local de

nascimento do Anticristo Joaquim estava somente traduzindo a antiga expectativa em seus

proacuteprios termos Joaquim esperava um falso papa como uma de suas manifestaccedilotildees mas

288 Idem p 29 289 Idem p 28 290 Conferir a siacutentese e uma anaacutelise do encontro em REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later

Middle Ageshellip op cit p 7-9 291 Segundo Mc Ginn ldquoreis e rainhas papas e priacutencipes buscavam seus conselhosrdquo a ponto de se tornar uma

das figuras religiosas mais significativas do periacuteodo Cf MC GINN Bernard Apocalyptic Spiritualityhellip op

cit p 98

97

sem implicar neste caso que a Igreja romana deveria ser identificada com a Babilocircnia de

Apocalipse 17-19292

Apoacutes os eventos de Messina o fundador de Fiore voltou para Calaacutebria Mas em 1191

precisou descer novamente da regiatildeo montanhosa na direccedilatildeo de Naacutepoles para um encontro

com Henrique VI que em disputa pela coroa da Siciacutelia viera destituir Tancredo do trono O

abade exortou o monarca germacircnico a natildeo agir com violecircncia contra a coroa siciliana ou

seus aliados Ele usou uma passagem do Antigo Testamento Ezequiel 267 para criticar a

accedilatildeo de Henrique relacionando os eventos de Babilocircnia e Tiro com Henrique e a Siciacutelia293

Independentemente do peso que as palavras de Joaquim tiveram na decisatildeo de

Henrique o monarca realmente decidiu abandonar a regiatildeo e voltar para a Germacircnia Os

eventos posteriores viriam a mostrar um Henrique realmente disposto a ajudar a casa de

Fiore Apoacutes a morte de Tancredo a caminho para assumir o reino da Siciacutelia Henrique

encaminhou uma carta em que fazia uma doaccedilatildeo ao novo monasteacuterio Nela Joaquim eacute pela

primeira vez declarado abade de S Joatildeo em Fiore Em 6 de marccedilo de 1195 alguns meses

apoacutes a coroaccedilatildeo o monarca germacircnico escreveu uma segunda carta garantindo a S Joatildeo um

dote anual em moedas de ouro Bizantinas294

Agora com o apoio do Imperador Joaquim retornou ao papa Celestino III (1191-

1198) e pediu a ele sua aprovaccedilatildeo para S Joatildeo de Fiore Em Roma no dia 25 de agosto de

1196 Celestino emitiu uma bula na qual formalmente aprovou S Joatildeo e a Regra da nova

Ordem Florense295 Ainda nesta bula Joaquim aparece descrito como o abade de Fiore

indicando que pelo menos aos olhos do papa ele natildeo tinha mais conexotildees com Corazzo nem

com a Ordem Cisterciense A mesma aprovaccedilatildeo se deu em 1204 por Inocecircncio III e duas

vezes por Honoacuterio em 1216 e 1220 Mesmo assim desde 1192 Joaquim era considerado

fugitivus pelo Capiacutetulo Geral Cisterciense296

Em 1196 Joaquim retornou a Palermo na qualidade de confessor da rainha

Constacircncia que veio a confirmar todas as doaccedilotildees da coroa para Fiore apoacutes a morte de

Henrique VI em 1197

292 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 9 293 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 66 294 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 295 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n

1 p 217-240 2004 p 219 Esta Regra se perdeu apesar de estudiosos entenderem que ela deveria ser bem

proacutexima da Regra Cisterciense 296 TRONCARELLI op cit p 30

98

O abade Joaquim escreveu em marccedilo de 1200 um documento narrando as

autorizaccedilotildees que entendeu ter recebido do papado de Roma para escrever suas obras e o

compromisso assumido para enviaacute-las quando estivessem prontas (Expositio in

Apocalpysim 1r-v) Ele encaminhou suas trecircs principais obras (Expositio in Apocalypsim

Concordia Novi ac Veteris Testamenti e Psalterium decem Chordarum) para anaacutelise da

cuacuteria papal Mas natildeo teve tempo para receber de Roma a tal avaliaccedilatildeo pois no dia 30 de

marccedilo de 1202 na abadia de S Martino di Giove que havia sido dada para a Ordem de Fiore

em 1201 pelo Arcebispo Andreas de Cosenzza ele veio a falecer297 sendo transferido

posteriormente para S Joatildeo de Fiore

42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim

Um fenocircmeno significativo nas obras de Joaquim eacute a forma como ele reelabora e

repete os mesmos temas seguidamente num processo contiacutenuo e dinacircmico Torna-se

importante entatildeo apontar data e momento de produccedilatildeo natildeo apenas para o Expositio in

Apocalysim mas para as demais obras do abade relacionadas com o Apocalipse de Joatildeo que

sobreviveram e estatildeo disponiacuteveis para consulta Praephatio super Apocalypsim Enchiridio

super Apocalypsim e Liber Introductorius298 A produccedilatildeo do comentaacuterio maior (Expositio)

se deu por meio da produccedilatildeo de obras menores (em formato de sermatildeo e tratado) desde os

primeiros anos da deacutecada de 1180 ateacute os anos proacuteximos de sua morte299

A mais antiga destas obras entretanto o Praephatio super Apocalypsim eacute marcada

pela natureza compoacutesita Antes de ser um uacutenico texto eacute formado pela reuniatildeo de dois

pequenos sermotildees nos quais o abade faz uma apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o Apocalipse de

Joatildeo e a histoacuteria da Igreja300

O primeiro sermatildeo comeccedila com a expressatildeo ldquoO Livro do Apocalipse eacute o uacuteltimo de

todos os livros escritos com espiacuterito de profecia incluiacutedo no cataacutelogo das Sagradas

297 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 298 Haacute ainda um ldquoindependente e curto comentaacuterio do Apocalipserdquo ineacutedito e sem publicaccedilatildeo denominado pela

historiadora Marjorie Reeves como Apocalypsis Nova presente em dois manuscritos do seacuteculo XIII Cf

REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 513 299 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p

286 300 SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 Foi desta

ediccedilatildeo que partiu a traduccedilatildeo para o portuguecircs do professor Rossatto ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao

Apocalipse op cit Outra traduccedilatildeo em portuguecircs pode ser encontrada em BERNARDI Orlando Comentaacuterio

ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010

99

Escriturasrdquo301 O segundo inicia com a frase ldquoAntes de dizer qualquer coisa sobre o livro do

Apocalipse devemos considerar que este livro estaacute provido de um tiacutetulo de uma saudaccedilatildeo

de um prefaacuteciordquo302 Cada sermatildeo tem sua proacutepria unidade interna e foram reunidos em

circunstacircncias desconhecidas por causa de afinidades temaacuteticas Iremos distingui-los como

faz Potestagrave pelas primeiras palavras latinas de cada um303 O primeiro e mais antigo pode

ser denominado Apocalipsis liber ultimus O segundo Locuturi aliquid Ambos foram

escritos por Joaquim para servir de base para a pregaccedilatildeo em contexto lituacutergico num periacuteodo

anterior agrave sua passagem por Casamari (1183-1184)304 Estes tratados constituem uma

primeira aproximaccedilatildeo exegeacutetica de Joaquim ao Apocalipse de Joatildeo cujo puacuteblico alvo

imediato era formado pelos monges do monasteacuterio de Corazzo

A proacutexima obra de Joaquim a desenvolver uma leitura do Apocalipse eacute o Enchiridion

super Apocalypsim Ele foi escrito no periacuteodo em que o abade pousou em Casamari (1183-

1184)305 Nele Joaquim faz uma apresentaccedilatildeo ampla da obra de Joatildeo sem discutir frase a

frase como faraacute no Expositio mas jaacute expondo suas partes principais O termo ldquoEnchiridionrdquo

pode ser traduzido como ldquomanualrdquo e foi escrito segundo o abade para ldquoapresentar o

conteuacutedo de todo o livro do Apocalipserdquo (Enchiridion l 56-57)306 Eacute uma siacutentese portanto

do conteuacutedo que ele entendia estar presente no uacuteltimo livro da Biacuteblia cristatilde e poderia ser

utilizado como ldquotexto introdutoacuterio e explicativordquo307 do seu Expositio Isto daacute ao Enchiridion

tambeacutem um papel de esquema ou projeto do comentaacuterio ao Apocalipse que o abade

comeccedilaria a produzir em Casamari

O texto comeccedila com ldquoIncipit Enchiridion abbatis Joachim super Apocalypsimrdquo (l

1) seguido da primeira frase do texto ldquoComo catoacutelicos e ortodoxos lutamos (certatum) com

os mais fortes entusiasmos (studiis) para lanccedilar os fundamentos da Igreja (ecclesiae

fundamenta)rdquo (l 2-3)308 Este texto foi produzido por Joaquim para apresentar o Expositio e

lhe servir de resumo mas no momento em que o Expositio estava para ser concluiacutedo o

301 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse op cit p 453 302 Idem p 462 303 POTESTAgrave op cit p 290 e 294 304 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 75 Potestagrave entretanto sugere um periacuteodo

posterior agrave Casamari entre 1185-1186 para Apocalipsis liacuteber ultimus e uma data subsequente para Locuturi

aliquid Cf POTESTAgrave op cit p 290 e 294 305 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 92 Potestagrave entretanto prefere datar o Enchiridion

para uma data posterior a 1194 Cf POTESTAgrave op cit p 328 306 As citaccedilotildees do Enchridion seguem o texto criacutetico de BURGER Edward K Joachim of Fiore Enchiridion

super Apocalypsim Toronto Pontifical Institute of Mediaeval Studies 1986 307 POTESTAgrave op cit p 327 308 BURGER op cit p 9

100

Enchiridion sofreu uma revisatildeo tatildeo profunda com alteraccedilatildeo de aspectos significativos do

seu conteuacutedo que os estudiosos preferem mudar seu nome chamando-o entatildeo de Liber

introductorius309 Gian Luca Potestagrave estima que esta revisatildeo do Enchiridion pode ter ficado

pronta no uacuteltimo ano do pontificado do papa Celestino III (papa de 1191-1198) ainda com

a funccedilatildeo de ldquosimplificar e sintetizar os resultados da obra maiorrdquo310

Uma comparaccedilatildeo entre a primeira redaccedilatildeo (Enchiridion iniacutecio da deacutecada de 1180) e

essa segunda redaccedilatildeo (Liber introductorius 1198) revela mudanccedilas por exemplo na postura

quanto ao Impeacuterio Germacircnico que eacute tratado de forma criacutetica no Enchiridion mas de forma

branda no Liber introductorius Afinal a monarquia Hohenstaufen antes temida por

Joaquim havia se manifestado concretamente apoacutes 1191 na figura generosa de Henrique VI

e suas doaccedilotildees para a casa de S Joatildeo de Fiore311

Com relaccedilatildeo ao Expositio in Apocalypsim como jaacute argumentado anteriormente ele

eacute o resultado de mais de uma deacutecada de trabalho e elaboraccedilatildeo Joaquim o comeccedilou ainda em

Casamari (1183-1184) e soacute o concluiu no final do seacuteculo A informaccedilatildeo sobre a conclusatildeo eacute

dada pelo proacuteprio Joaquim na Carta Testamentaacuteria (Expositio in Apocalypsim 1r) Se a data

de 1198 para o Liber introductorius estiver correta as repetidas referecircncias a ele encontradas

no interior do Expositio indicam que Joaquim usou o periacuteodo entre 1198 e 1200 para fazer

uma revisatildeo completa de seu grande comentaacuterio do Apocalipse312

43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim

O Expositio in Apocalypsim eacute certamente a maior obra de Joaquim de Fiore Nas

ediccedilotildees seiscentistas de Veneza o Expositio tem 224 foacutelios contra 135 da Concordia O

abade denominou o Expositio na sua Carta Testamentaacuteria de ldquoexpositione Apocalipsisrdquo

(Expositio in Apocalypsim 1r) Mas o que consistiria em termos formais esta ldquoexposiccedilatildeo

do Apocalipserdquo Ela natildeo segue a forma literaacuteria da Concordia nem do Psalterium ou

mesmo do Enchiridion Eacute importante neste caso aplicar ao Expositio uma questatildeo que jaacute

aplicamos ao Apocalipse de Joatildeo justamente porque a definiccedilatildeo do gecircnero literaacuterio de uma

obra eacute parte da escolha do autor para definir a forma como ele desejaria que seu livro fosse

309 POTESTAgrave op cit p 327 310 Idem p 329 311 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 108 312 POTESTAgrave op cit p 287

101

lido313 A obra de Joatildeo eacute enquanto gecircnero literaacuterio um ldquoapocalipserdquo e se insere na longa

tradiccedilatildeo literaacuteria judaica apocaliacuteptica que retrocede ao seacuteculo II antes de Cristo O Expositio

entretanto natildeo eacute um apocalipse antes eacute um comentaacuterio biacuteblico do Apocalipse

Um comentaacuterio biacuteblico eacute formalmente uma explicaccedilatildeo sistemaacutetica abrangente e

sequencial de um determinado livro da Biacuteblia cujo propoacutesito eacute adaptar o material biacuteblico

para as circunstacircncias das novas audiecircncias314 A explicaccedilatildeo de apenas algumas porccedilotildees

capiacutetulos versiacuteculos ou periacutecopes natildeo poderia formalmente ser definida como um

comentaacuterio jaacute que ele precisava cobrir todo o livro biacuteblico Por sequencial entende-se o

acompanhamento da estrutura do texto biacuteblico que se estaacute comentando No caso do

Apocalipse o comentarista o seguia nos blocos ou periacutecopes natildeo necessariamente versiacuteculo

a versiacuteculo ou capiacutetulo por capiacutetulo jaacute que essa padronizaccedilatildeo soacute comeccedilaria a partir do seacuteculo

XIII315

O embate narrado por Euseacutebio de Cesareacuteia entre o bispo Neacutepos e Dioniacutesio serve para

ilustrar a forma como o Apocalipse era usado nos trecircs primeiros seacuteculos (Histoacuteria

Eclesiaacutestica VII XXIV 1-9) Neacutepos era um quiliasta316 cuja mensagem enfatizava a

realidade de um futuro governo terreno de Cristo na terra Para se contrapor a uma exegese

alegoacuterica do Apocalipse que tentava minimizar a realidade histoacuterica deste reinado

messiacircnico este bispo do Egito escreveu um livro intitulado Refutaccedilatildeo dos alegoristas

Contra Neacutepos e seu livro se levantou Dioniacutesio que escreveu Sobre as promessas tambeacutem

para discutir o Apocalipse de Joatildeo Euseacutebio ainda narrou que neste periacuteodo aconteceu um

longo debate acerca da forma como o livro de Joatildeo deveria ser interpretado

O bispo de Cesareacuteia fala de dois liacutederes cristatildeos que escreveram textos e recorrem

parcialmente ao Apocalipse para defender suas ideias Em linhas gerais a maioria das

pessoas que recorriam ao Apocalipse neste periacuteodo o usa em contexto de polecircmica

doutrinaacuteria ou apologeacutetica para responder a uma heresia dar suporte a uma determinada

posiccedilatildeo teoloacutegica encorajar cristatildeos perseguidos Papias Justino Martir Irineu Tertuliano

313 Conferir esta discussatildeo no primeiro capiacutetulo desta tese 314 MATTER E Ann The Apocalypse in Early Medieval Exegesis In EMMERSON Richard K MCGINN

Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 38-50 p 38-

39 315 SMALLEY Beryl The study of the Bible in the Middle Ages Oxford Basil Blackwell 1952 p 222-224 316 O quiliasmo eacute definido por Wainwright como ldquoa crenccedila de que Cristo retornaraacute para a terra e inauguraraacute

uma era de prosperidade de mil anos sobre o planetardquo Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious

Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 21

102

Hipolitus Vitorino Lactantius Metodius e Comodianus317 Destes com exceccedilatildeo de

Vitorino todos fizeram uso apenas de pequenas porccedilotildees do Apocalipse

Eacute de Vitorino em diante que surge a praacutetica de comentar o Apocalipse inteiro ldquocomo

resposta a problemas particulares da igreja de cada eacutepocardquo318 O bispo de Pettau na Panocircnia

Superior romana escreveu um comentaacuterio ao Apocalipse em grego cerca do ano 300 Sobre

ele opinou Jerocircnimo ao falar da praacutetica de explicar um livro biacuteblico inteiro ldquoentre os latinos

por outra parte haacute um grande silecircncio exceccedilatildeo feita do maacutertir Vitorino de santa memoacuteria

que podia dizer com o apoacutestolo que apesar de carecer de eloquumlecircncia natildeo carecia de

ciecircnciardquo319 No Oriente o primeiro comentaacuterio em grego surgiu apenas no sexto seacuteculo de

um autor anocircnimo conhecido apenas como Ecumecircnio320 sendo seguido de perto pelo

Comentaacuterio de Andreas de Cesareia na Capadoacutecia321

O original grego do Comentarius de Vitorino estaacute perdido mas seu texto eacute bem

conhecido por meio da recensatildeo feita por Jerocircnimo para o Latim O bispo de Pettau morreu

no tempo das perseguiccedilotildees de Diocleciano e isso aparece marcado em sua interpretaccedilatildeo do

Apocalipse322 Ele entendia que os eventos narrados no livro de Joatildeo eram iminentes pois

diziam respeito agraves tribulaccedilotildees das igrejas de sua eacutepoca Ele segue a estrutura do Apocalipse

procurando destacar e explicar as passagens do texto joanino que julgava serem mais

difiacuteceis Ao comentar Apocalipse 20 Vitorino expressou a expectativa quiliasta de um reino

milenar de Cristo na terra

Assim pois os que natildeo tomarem a dianteira ao ressuscitar na primeira

ressurreiccedilatildeo e reinar com Cristo sobre toda a terra (super ordem) e sobre

todas as gentes (super gentes universae) ressuscitaratildeo ao toque da

trombeta final depois de mil anos (Commentarius in Apocalypsim 167-

169 PLS)323

Esta expectativa entretanto tornou-se um problema para a Igreja posterior a

Constantino e ao Edito de Toleracircncia de 313 em funccedilatildeo das novas formas eclesiaacutesticas e o

desenvolvimento de redes de relacionamento com o poder temporal324 Por isso a recensatildeo

317 WAINWRIGHT op cit CONSTANTINOU Eugenia Scarvelis Andrew of Caesarea and the Apocalypse

in the Ancient Church of the East Quebec Universiteacute Laval 2008 p 126 318 MATTER op cit p 38 319 Citado a partir de TORROacute Joaquiacuten Pascual Introduccioacuten general In VICTORINO DE PETOVIO

Comentaacuterio al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 9-26 p 11 320 ECUMENIO Comentario sobre el apocalipsis Madrid Cidad Nueva 2008 321 CONSTANTINOU op cit p 134 322 TORROacute op cit p 9 323 VITORINO DE PETOVIO Comentario al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 208-

209 324 MATTER op cit p 39

103

de Jerocircnimo procurou moldar a obra de Vitorino expurgando as afirmaccedilotildees milenaristas

fazendo-a corresponder a uma eacutepoca em que a Igreja estava em paz com o Impeacuterio e com a

sociedade A leitura literal do milecircnio foi transformada em leitura alegoacuterica Segundo

Jerocircnimo na sua revisatildeo do comentaacuterio de Vitorino de Apocalipse 20 ldquoo nuacutemero denaacuterio

significa o decaacutelogo e o centenaacuterio eacute a coroa da virgindaderdquo o que indicaria que o texto

joanino queria ensinar que os cristatildeos virgens natildeo apenas do corpo mas tambeacutem da liacutengua

e do pensamento seratildeo exaltados pelo Cristo do fim dos tempos325

Quase um seacuteculo depois de Vitorino outro autor resolveu escrever uma exposiccedilatildeo

completa do Apocalipse Ele eacute conhecido como Ticocircnio (330-395) e era membro da igreja

donatista do norte da Aacutefrica326 Ele expocircs todo o livro do Apocalipse utilizando os princiacutepios

que havia formulado numa outra obra intitulada Liber regularum327 O comentaacuterio de

Ticocircnio se perdeu mas estudiosos tecircm acesso aos princiacutepios que ele usou para escrevecirc-lo

bem como a reconstruccedilotildees parciais do seu conteuacutedo a partir das citaccedilotildees que dele fizeram

entre outros Primasio Beda e Beato de Liebana

As regras do Liber regularum levaram Ticocircnio a fazer uma leitura do Apocalipse

com ecircnfase na encarnaccedilatildeo de Jesus (Regra 1) no relacionamento entre o Antigo e o Novo

Testamento (Regra III) no simbolismo dos nuacutemeros (Regra V) na recapitulaccedilatildeo (Regra VI)

e na espiritualizaccedilatildeo do milecircnio com uma forte rejeiccedilatildeo do quiliasmo328

O proacuteximo exegeta latino a compor um comentaacuterio ao Apocalipse foi Primasio329

Sua obra Commentarius in Apocalypsim faz uma siacutentese de Vitorino e Ticocircnio Primasio

foi bispo de Justiniapolis no norte da Aacutefrica proviacutencia da Numidia de 527-565 num periacuteodo

de colapso da accedilatildeo imperialista bizantina Apesar de envolvido num clima de instabilidade

social o interesse do bispo africano continuou na linha de Jerocircnimo e Agostinho ao fazer

uma exegese alegoacuterica do Apocalipse330 Como o Apocalipse ainda natildeo tinha marcas de

capiacutetulo e versiacuteculo as definiccedilotildees estruturais do seu comentaacuterio se tornaram importantes na

interpretaccedilatildeo do livro joanino Ele o dividiu em cinco partes 1) sete igrejas 2) sete selos 3)

sete trombetas e a mulher ensolarada 4) as bestas da terra e mar as sete pragas e as sete

325 O texto de Vitorino estaacute publicado em duas seccedilotildees A superior apresenta o texto do proacuteprio bispo de Pettau

traduzido para o Latim A inferior registra a anaacutelise feita por Jerocircnimo sobre a exegese de Vitorino A anaacutelise

de Jerocircnimo mencionada no corpo deste texto estaacute em VITORINO DE PETOVIO op cit p 211 326 CALVO Juan Joseacute Ayaacuten Introduccioacuten In TICONIO Livro de Las Reglas Madri Cidad Nueva 2009 p

11-78 p 14 327 Idem p 28 328 Idem p 39-44 329 MATTER op cit p 41 330 Idem p 42

104

taccedilas 5) o cordeiro sobre o trono o novo ceacuteu e a nova terra331 Matter avalia que todos os

comentaristas do Apocalipse no Ocidente posteriores a Primasio ateacute o seacuteculo XII foram

influenciados por este comentaacuterio332

Autor Data Lugar

Primasio 540 Numiacutedia

Cesaacuterio de Arles 540 Sul da Gaacutelia

Apringius 550 Ibeacuteria

Cassiodoro 575 Sul da Itaacutelia

Beda 730 Northumbria

Ambrosio Autpert 760 Benevento

Beato de Liebana 780 Ibeacuteria

Alcuino 800 Franccedila

Haimo 840 Franccedila

Anocircnimo Seacuteculo IX Franccedila

Glossa Ordinaria 1100 Regiatildeo de Leon

O Beato de Liebana aleacutem de depender de Primasio recorreu pesadamente a Vitorino

e Ticocircnio Em funccedilatildeo do seu papel dentro do cristianismo hispacircnico do seacuteculo VIII os temas

recorrentes no seu comentaacuterio eram a santidade da Igreja e a defesa da divindade de Cristo

contra a teologia adocionista dos seguidores do bispo Elipando de Toledo333

Haacute no Beato uma combinaccedilatildeo significativa de exegese eclesiologia e cristologia que

se tornou recorrente em ambientes monaacutesticos a partir do seacuteculo VIII A perspectiva era de

que o Apocalipse deveria ser interpretado tendo como referecircncia a histoacuteria da Igreja na terra

Beda e Ambrosio Autpert incorporaram as contribuiccedilotildees de Primasio e se tornaram

as grandes bases de interpretaccedilatildeo do Apocalipse no periacuteodo caroliacutengio334 Por meio da obra

Explanatio Apocalypsis Beda apresenta a histoacuteria da Igreja e ao mesmo tempo mantem um

olhar sobre a histoacuteria de toda a criaccedilatildeo Ele fez uso das sete regras de Ticocircnio para descrever

sete periacuteodos da histoacuteria do mundo no Apocalipse 1) as sete igrejas da Aacutesia que descrevem

na realidade as igrejas de Cristo 2) os quatro animais e a abertura dos sete selos revelam os

331 Idem p 43 332 Idem p 44 333 Idem p 46 334 Idem p 47

105

conflitos futuros e triunfos da Igreja 3) as sete trombetas descrevem futuros acontecimentos

da Igreja 4) a Mulher e o Dragatildeo revelam as obras e vitoacuterias da Igreja 5) as sete pragas que

infestaratildeo a terra 6) o castigo da prostituta ou cidade iacutempia 7) a Jerusaleacutem como noiva que

desce do ceacuteu335

O comentaacuterio de Ambrosio Autpert construiu uma leitura alegoacuterica detalhada do

Apocalipse Foi escrito entre 758-767 no ducado Lombardo de Benevento Ele absorveu os

comentaacuterios de Vitorino Ticocircnio Primasio aleacutem das anaacutelises de Agostinho e Gregoacuterio o

Grande Ele estava motivado a fazer uma siacutentese de suas fontes com ecircnfase no ldquocasamento

espiritualrdquo entre Cristo e a Igreja336

Os comentaristas posteriores ao periacuteodo caroliacutengio insistiam em ver no Apocalipse

uma alegoria da histoacuteria da Igreja e procuravam nos comentaacuterios anteriores elementos para

apoiar seus pressupostos exegeacuteticos Haacute pouco interesse na perspectiva da iminecircncia do fim

do mundo que aparecia nos leitores quiliastas dos seacuteculo II e III A insistecircncia dos

comentaristas posteriores a Ticocircnio de rejeitar o quiliasmo levou a uma interpretaccedilatildeo do

Apocalipse que o entende como um guia para a Igreja na terra esperar a uniatildeo com uma

Igreja que jaacute se encontra no ceacuteu337

Neste sentido quando surgem no seacuteculo XII a Glossa ordinaria e os comentaacuterios

de Ruperto de Deutz o conteuacutedo tratado por meio de um comentaacuterio ao Apocalipse era de

cunho mais eclesioloacutegico do que escatoloacutegico Eacute nesta grande tradiccedilatildeo entatildeo que retrocede

a Vitorino e Ticocircnio no Ocidente e Ecumecircnio e Andreas de Cesareia no Oriente que se

insere o Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore

Ao discutir o gecircnero literaacuterio ldquocomentaacuterio biacuteblicordquo entretanto natildeo queremos indicar

que o milenarismo soacute poderia nele se manifestar Nem mesmo afirmar algum tipo de

dependecircncia do Expositio em relaccedilatildeo a um comentaacuterio especiacutefico338 O objetivo eacute demonstrar

que desde Vitorino existiu a praacutetica de comentar de maneira sistemaacutetica e abrangente o

livro do Apocalipse de Joatildeo Um comentaacuterio biacuteblico era um tipo de texto voltado

principalmente para a lideranccedila das igrejas mas com potencial de alcance muito maior jaacute

que logo era transformado em base para os sermotildees dos cleacuterigos339

335 Idem 336 Idem p 48 337 Idem 338 Os autores West e Zindars-Swartz encontram indiacutecio no Expositio de recurso a pelo menos dois comentaacuterios

latinos do Apocalipse Haimo de Auxerre e Beda Cf WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 37 339 Comparar com a anaacutelise de Raquel Parmegiani em PARMEGIANI Raquel de Faacutetima Leituras Medievais

do Apocalipse Comentaacuterio ao Beato de Liebana Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernardo do Campo v 23 n 36

107-125 2009 p 122-124

106

44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse

No Liber introductorius Joaquim explicitou o que o teria levado a escrever o

Expositio

Aceitei expor o Apocalipse que o beato Joatildeo isolado na ilha de Patmos

narrou a partir da sequecircncia de eventos (ex cuius serie) como eu penso (ut

ego extimo) para demonstrar claramente o que eu havia previsto e se estas

coisas satildeo dignas de maior aprofundamento de modo que possam incitar

ao desprezo do mundo (possint ad conseptus seculi) a esposa e os filhos do

reino e endossar a palavra do Senhor que disse ldquoexultai e erguei a cabeccedila

porque a vossa salvaccedilatildeo estaacute proacuteximardquo (Lucas 2128) (Expositio in

Apocalypsim 2b)340

Por meio do seu comentaacuterio ao Apocalipse de Joatildeo o abade queria promover o seu

ideal de pureza para a Igreja latina bem como produzir na audiecircncia do seu Expositio

ldquodesprezo pelo mundordquo (conseptus seculi) O termo conseptus traduzido por

constrangimento desprezo aparece num dicionaacuterio como ldquocom cerca ao redor derdquo ldquocercado

por todos os ladosrdquo ldquofechado completamenterdquo341 Neste sentido tanto Joatildeo quanto Joaquim

parecem se valer de seus textos para incitar e promover ascetismo entre suas respectivas

audiecircncias

Joaquim usou o Expositio para apresentar uma ldquohistoacuteria teoloacutegica do

Cristianismordquo342 narrando o desenvolvimento da Igreja Para o abade desde os dias do seu

aparecimento a Igreja estava se desenvolvendo na direccedilatildeo da sua mais plena expressatildeo

quando deixaraacute de ser a instituiccedilatildeo de Pedro e se transformaraacute na instituiccedilatildeo de Joatildeo um tipo

de monasticismo contemplativo no periacuteodo do descanso sabaacutetico343

Uma das metas de Joaquim era encontrar sentido na histoacuteria humana e ele entendeu

que o Apocalipse poderia ser a fonte para isso344 Ao encaminhar o Expositio para a cuacuteria

papal o abade de Fiore desejava disseminar a ideia de que uma cristandade reformada e

purificada era o objetivo de um processo histoacuterico dinacircmico que tinha suas raiacutezes na

340 Traduzido a partir de TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 80 341 DICIONAacuteRIO LATIM PORTUGUEcircS Porto Editora Porto 2001 p 171 342 POTESTAgrave op cit p 297 343 LERNER Robert E The medieval return to the thousand-year Sabbath In EMMERSON Richard K

MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 51-

71 p 57 344 SMALLEY op cit p 289 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the

Apocalypse In EMMERSON Richard K MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages

London Cornell University Press 1992 p 72-88 p 87

107

antiguidade da histoacuteria de Israel345 A chave para enxergar esta histoacuteria estava no uacuteltimo livro

da Biacuteblia o Apocalipse de Joatildeo

45 Resumo

Joaquim foi um notaacuterio da Calaacutebria que abraccedilou a vocaccedilatildeo monaacutestica depois de uma

peregrinaccedilatildeo agrave Palestina Ingressou num monasteacuterio em Corazzo e se esforccedilou para

incorporaacute-lo a Ordem Cisterciense mas abandonou-o para fundar uma casa monaacutestica nas

montanhas calabresas de Fiore Desde seu retorno agrave Calaacutebria ele manifestou o interesse em

promover ideias a respeito de uma eminente e imimente intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Sua estrateacutegia para divulga-las envolveu a produccedilatildeo de vaacuterios livros entre eles o Expositio

in Apocalypsim uma apresentaccedilatildeo da histoacuteria da Igreja na forma de um comentaacuterio ao

Apocalipse de Joatildeo

345 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 87

V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA

SICIacuteLIA

Em 1191 Joaquim desceu do isolamento de Fiore na Calaacutebria e foi ao encontro de

Henrique VI Imperador Germacircnico perto dos muros de Naacutepoles346 William II rei da

Siciacutelia morrera sem deixar herdeiros e a coroa do Reino fora entregue com o apoio da cuacuteria

romana para o conde Tancredo sobrinho do falecido rei O imperador entretanto entendia

que a coroa da Siciacutelia lhe pertencia Por isso atravessou a Itaacutelia e iniciou uma ofensiva contra

os aliados de Tancredo Joaquim foi ateacute o imperador cujas tropas estavam sofrendo com

uma epidemia e declarou que o evento era consequecircncia do juiacutezo divino Citando a

passagem biacuteblica de Ezequiel 26 Joaquim comparou o sul da Itaacutelia com Tiro e Henrique

com o rei da Babilocircnia Se o monarca persistisse Deus o derrotaria mas se ele se retirasse

em poucos anos Deus daria a ele a vitoacuteria sem que precisasse lutar347

Eacute difiacutecil saber como as palavras de Joaquim influiacuteram nos eventos que se seguiram

Talvez por causa da forccedila de resistecircncia dos aliados de Tancredo ou porque a ajuda naval

que Henrique esperava atrasara ou porque surgira problemas na Germacircnia que precisavam

de sua atenccedilatildeo no final o Imperador e seus cavaleiros voltaram para o norte dos Alpes

Poucos anos depois em 1194 Tancredo morreu e deixou a coroa da Siciacutelia para seu

pequeno filho chamado entatildeo de William III Novamente Henrique reclamou o Reino para

si e sua esposa Constacircncia princesa normanda filha legiacutetima de Rogeacuterio II o fundador do

Reino da Siciacutelia Segundo o Tratado de Veneza de 1177 entre o Reino da Siciacutelia e o Impeacuterio

Germacircnico caso William II morresse sem filhos Constacircncia sua tia seria a herdeira da

Coroa348 Desta vez Henrique entrou na Itaacutelia meridional atravessou o canal de Messina na

direccedilatildeo da Siciacutelia retirou sem grandes dificuldades o filho de Tancredo do trono venceu

pequenos focos de resistecircncia em Palermo e nesta mesma cidade na catedral real foi

coroado rei no natal de 1194 Com isso ele repetiu o gesto que o fundador do Reino Rogeacuterio

II realizara no natal de 1130

346 TURLEY Thomas Joachim of Fiore In EMMERSON Richard K (org) Key figures in medieval Europe

an encyclopedia New York Routledge 2006 p 372-374 p 373 347 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti

Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xix REEVES Marjorie The influence of

Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993

p 11 348 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south In ABULAFIA David (org) Italy in the Central

Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 58-81 p 69

109

Independentemente do papel de Joaquim nos eventos de 1191 ele deve ter sido

significativo porque outro encontro entre o abade de Fiore e o imperador germacircnico se deu

em Palermo Joaquim compareceu agrave coroaccedilatildeo e foi recebido respeitosamente Em outubro

de 1194 pouco antes de receber a coroa da Siciacutelia Henrique VI escreveu uma carta na qual

descreveu Joaquim como ldquoabade de Fiorerdquo e falou claramente do monasteacuterio de Satildeo Joatildeo

em Fiore antes mesmo de uma autorizaccedilatildeo papal para a fundaccedilatildeo da ordem Florense o que

soacute ocorreu em 1196349 Em marccedilo de 1195 Henrique escreveu outra carta garantindo a Satildeo

Joatildeo um dote anual de cinquenta moedas de ouro Bizantinas350 No pouco tempo que

Henrique sobreviveu a estes eventos (ele morreu em 1197) Joaquim e seus monges se

tornaram protegidos do imperador germacircnico e rei da Siciacutelia A rainha Constacircncia fez do

abade seu confessor pessoal ateacute morrer em Palermo em novembro de 1198

Joaquim de Fiore viveu num momento significativo da Itaacutelia meridional entre o auge

e o fim da dinastia normanda no Reino da Siciacutelia periacuteodo descrito pelo historiador inglecircs

Graham Loud como eacutepoca de ouro para o sul da Peniacutensula quando comparada com os

distuacuterbios sociais anteriores agrave chegada dos normandos e a crise da transiccedilatildeo dinaacutestica

posterior agrave morte de William II351 Foi uma eacutepoca em que reis da dinastia Hauteville

conseguiram unificar sob um mesmo governo toda a regiatildeo inferior ao Patrimocircnio de Satildeo

Pedro do rio Garigliano ateacute a ilha da Siciacutelia territoacuterio marcado fortemente pela presenccedila

grega e muccedilulmana espaccedilo de sobrevivecircncias interaccedilotildees e trocas culturais entre grupos

eacutetnicos e religiotildees distintas Espaccedilo onde mesmo o Cristianismo era pluralizado nas formas

grega e latina Para compreender o papel social e religioso do monge calabrecircs eacute importante

atentar para as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia meridional normanda

bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio Hohenstaufen Estes

elementos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim e seus objetivos enquanto

ermitatildeo monge abade escritor e fundador da Ordem Florense

349 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx 350 Idem 351 LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007

p 524

110

51 A chegada dos normandos

Os primeiros normandos chegaram ao sul da Itaacutelia por volta do ano 1000 em

circunstacircncias natildeo tatildeo claras Jaacute eacute possiacutevel discernir a presenccedila deles na revolta de nobres da

Apuacutelia contra autoridades bizantinas em 1017 e 1018352 O quadro encontrado na regiatildeo

manifestava uma divisatildeo poliacutetica complexa com estruturas culturais pluralizadas sem um

poder central Sob este contexto cavaleiros normandos se colocaram como mercenaacuterios a

serviccedilo da populaccedilatildeo lombarda contra os bizantinos de um territoacuterio lombardo contra outro

de liacutederes bizantinos contra sarracenos e eventualmente ateacute mesmo a serviccedilo dos

muccedilulmanos da Siciacutelia contra outros poderes em conflito na ilha353 Inicialmente eles natildeo

passavam de algumas dezenas de cavaleiros que vendiam seus serviccedilos a poderes locais em

vez de se reunirem sob a lideranccedila de outro normando

Nos principados e ducados lombardos eles encontraram um tipo de aristocracia

sobre a qual foram constituiacutedos como condes Em Apuacutelia a estrutura social em funccedilatildeo dos

traccedilos da administraccedilatildeo bizantina era baseada nos encastelamentos um tipo de cidadela ou

vila fortificada e um significativo nuacutemero de pequenos proprietaacuterios Estas vilas fortificadas

(castella) ficavam em posiccedilotildees estrateacutegicas e serviam como centros administrativos da

aristocracia local Na Calaacutebria um terceiro tipo de domiacutenio se manifestou atraveacutes da

construccedilatildeo de castelos utilizados para controlar a regiatildeo circundante por meio de tratados

com as cidades juramento de fidelidade e implementaccedilatildeo de tributos Apoacutes a conquista os

castelos foram entregues a parentes e vassalos dos normandos

Os assentamentos e conquistas dos normandos natildeo tinham como base algum tipo de

acordo amplo para a conquista da Itaacutelia meridional Na busca pelo domiacutenio das regiotildees os

proacuteprios normandos se envolviam em conflitos No final do seacuteculo XI entretanto dois

liacutederes de uma mesma famiacutelia assumiram o poder sobre quase todo o sul da Itaacutelia Roberto

Guiscard com o domiacutenio dos territoacuterios abaixo do Patrimocircnio de Satildeo Pedro ateacute a Calaacutebria

e seu irmatildeo Rogeacuterio de Hauteville que dirigiu a conquista da ilha da Siciacutelia

Roberto Guiscard morreu em 1085 deixando o territoacuterio conquistado para seus

filhos Rogeacuterio de Hauteville entretanto posteriormente conhecido como Rogeacuterio I

sobreviveu ao seu irmatildeo mais de uma deacutecada promovendo um estaacutevel governo sobre a

Siciacutelia O conde Rogeacuterio I se casou trecircs vezes mas foi com sua terceira esposa Adelaide

352 Idem p 17 353 CHIBNALL Marjorie The Normans Oxford Blackwell Publishing 2006 p 76

111

filha do marquecircs Manfredo de Savona do norte da Itaacutelia que ele teve seus herdeiros Simatildeo

e Rogeacuterio posteriormente Rogeacuterio II Sua morte em 1101 legou o condado da Siciacutelia para

seus filhos ainda menores Simatildeo era o sucessor imediato mas faleceu logo deixando

Rogeacuterio como uacutenico herdeiro Adelaide de Savona no periacuteodo de menoridade governou o

ducado Uma de suas accedilotildees foi levar a corte para Palermo na Siciacutelia que fora a sede do

domiacutenio muccedilulmano Em 1112 finalmente Rogeacuterio II assumiu o poder e no ano seguinte

Adelaide deixou a Siciacutelia para se casar com o rei Balduiacuteno de Jerusaleacutem354

52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia

A partir de 1121 Rogeacuterio II avanccedilou sobre a Calaacutebria agrave custa de seu primo o duque

William de Apuacutelia No ano seguinte jaacute era senhor de todo o territoacuterio calabrecircs e a partir de

1129 o sul italiano estava unificado sob um uacutenico poder mais uma vez coisa que natildeo

acontecia desde o imperador Justiniano no seacuteculo VI355 A extensatildeo do seu domiacutenio pela

Sicilia Calaacutebria Apuacutelia e outros territoacuterios que se estendiam quase ateacute Roma356 poderiam

justificar um status real mas a transiccedilatildeo para a monarquia teve como ponto de partida um

conflito dentro da Igreja de Roma

Em fevereiro de 1130 apoacutes a morte do papa Honoacuterio II um coleacutegio de cardeais

dividido provocou um cisma papal Anacleto II foi eleito papa e permaneceu em Roma

Inocecircncio II recebeu o tiacutetulo e deixou a cidade em busca de apoio357 Anacleto II recorreu ao

conde Rogeacuterio II da Siciacutelia com a disposiccedilatildeo de coroaacute-lo como rei em troca de proteccedilatildeo e

suporte financeiro Apoacutes a efetivaccedilatildeo do acordo nasceu o Reino da Siciacutelia atraveacutes da bula

papal de setembro de 1130 A coroaccedilatildeo se deu no natal deste mesmo ano na catedral de

Palermo358

Anacleto II morreu em 1138 e Inocecircncio II voltou para Roma como uacutenico papa Ele

declarou nulas todas as accedilotildees de Anacleto e ainda promoveu uma cruzada contra Rogeacuterio

354 MAYER Hans Eberhard The Latin east 1098-1205 In LUSCOMBE David (org) The New Cambridge

Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v V 4 p

644-674 p 648 355 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century In LUSCOMBE David (org) The New

Cambridge Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v

V 4 p 442-474 p 447 356 Conferir um mapa do Reino Normando da Siciacutelia no anexo 3 357 CHIBNALL op cit p 86 358 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 448

112

Aleacutem da inimizade papal a alianccedila entre um papa cismaacutetico e Rogeacuterio havia colocado o

Reino da Siciacutelia em conflito com as forccedilas do Impeacuterio Germacircnico e do Impeacuterio Bizantino

ambos se declarando senhores legiacutetimos da Itaacutelia meridional e rejeitando a prerrogativa

normanda

Mesmo assim a liga construiacuteda por Inocecircncio II para enfrentar o Reino da Siciacutelia natildeo

conseguiu impedir a estabilizaccedilatildeo e o desenvolvimento das estruturas monaacuterquicas359

Finalmente em julho de 1139 o proacuteprio papa foi capturado pelas forccedilas de Rogeacuterio II

forccedilando o reconhecimento da monarquia Rogeacuterio foi aclamado como Rei da Sicilia duque

da Apuacutelia e Priacutencipe de Caacutepua (Rex Siciliae ducatus Apuliae et principatus Capuae) Apoacutes

o fim de uma deacutecada de conflitos o rei Rogeacuterio finalmente conseguiu derrotar as grandes

frentes de oposiccedilatildeo ao Reino

Rogeacuterio II se casou trecircs vezes Com a primeira esposa Elvira filha de Alfonso VI de

Castela teve quatro filhos Rogeacuterio Anfusus Tancredo e William Casou-se ainda com

Sibilia filha do duque Hugo da Burgundia na Franccedila e por fim com Beatriz filha do conde

Rethel igualmente francesa360 Com esta uacuteltima ele teve uma filha que nasceu pouco depois

de sua morte Constacircncia posteriormente desposada por Henrique VI da Germacircnia

Quando Rogeacuterio II morreu em 1154 o sucessor escolhido William posteriormente

conhecido como William I ainda era uma crianccedila O reino precisou ser governado por

Beatriz durante o tempo de menoridade do novo rei Um periacuteodo de instabilidade poliacutetica se

manifestou principalmente na parte continental do reino e se estendeu por todo o tempo de

governo (1154-1166)361

Siciacutelia continuava debaixo da hostilidade do Imperador Germacircnico e do Impeacuterio

Bizantino A cuacuteria papal ainda era hostil com o argumento de que o reino fora reconhecido

por Inocecircncio II apenas sob coaccedilatildeo A nobreza das proviacutencias fronteiriccedilas como o

principado de Caacutepua e as bordas de Abruzzi entraram em revolta As cidades de Apuacutelia

igualmente saiacuteram do controle real e reivindicaram autonomia Mas novamente os

adversaacuterios do reino natildeo se juntaram e perseguiram propoacutesitos distintos O imperador

Frederico Barbarroxa precisou rapidamente se concentrar na luta contra as comunas do norte

da Itaacutelia o que deixou o reino circunstancialmente fora de suas investidas O papa Adriano

IV finalmente fechou um acordo com o rei William I em Benevento em 1156 que

359 Idem 360 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily

Mediterranean Studies State College Pennsylvania v 12 p 1-15 2003 p 12 361 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 454

113

restaurou as boas relaccedilotildees entre o Reino da Siciacutelia e o papado A ameaccedila de Bizacircncio por

sua vez conseguiu ser parcialmente neutralizada com um tratado em 1158

Mas se as ameaccedilas internacionais foram minimizadas principalmente por meio de

acordos a situaccedilatildeo interna do Reino ainda era conflituosa As agitaccedilotildees internas

acompanharam William I praticamente ateacute o fim do seu governo Ele morreu em 1166

deixando o reino para o filho igualmente chamado William ainda menor O reino foi

governado pela matildee do jovem sucessor a rainha Margarete filha do rei Garcia de Navarra

na Espanha ateacute 1171 quando William II atingiu a maioridade

William II como o pai viveu a maior parte de sua vida em seu palaacutecio em Palermo

governando por meio do coleacutegio familiares362 Ele conseguiu pacificar internamente o reino

inclusive trazendo de volta opositores que tinham sido exilados no governo anterior

Externamente os antigos adversaacuterios foram pacificados por meio de tratados O rei renovou

o tratado com o papado e com o Impeacuterio Bizantino Soacute faltava mesmo vencer a resistecircncia

do Impeacuterio Germacircnico o que foi alcanccedilado com o Tratado de Veneza de 1177 que

assegurou a treacutegua em troca do casamento da tia de William II Constacircncia com Henrique

VI filho de Frederico Barbarroxa O casamento aconteceu em Milatildeo em janeiro de 1186

Com esse acordo o Impeacuterio Germacircnico finalmente reconheceu a legitimidade do Reino da

Siciacutelia O preccedilo a ser pago foi a designaccedilatildeo de Constacircncia como herdeira da coroa real caso

William morresse sem herdeiros Quando o acordo foi feito a idade do rei e da rainha Joana

filha do rei Henrique II da Inglaterra era um fator de confianccedila na descendecircncia real A

maior probabilidade era que o casal viesse a ter um herdeiro o que automaticamente

invalidaria o direito de Constacircncia363 Mas este acordo com a Germacircnia colocou um fim na

dinastia Hauteville na Itaacutelia meridional jaacute que William II morreu bruscamente no dia 11 de

novembro de 1189 sem deixar herdeiros

53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen

A morte de William II foi seguida por uma divisatildeo dentro do reino Um grupo de

oficiais proeminentes da corte liderados por um membro do coleacutegio familiares Mateus de

Salerno levantou um candidato proacuteprio o conde Trancredo de Lecce primo de William II

362 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p

10-11 363 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 472

114

rejeitando os direitos de Constacircncia e Henrique Tancredo foi coroado rei em 18 de janeiro

de 1190 com o apoio do papado que natildeo desejava a uniatildeo do Reino da Siciacutelia com o Impeacuterio

Germacircnico364

Henrique ateacute tentou destituir Tancredo mas acabou retornando para a Germacircnia apoacutes

o cerco a Naacutepolis jaacute mencionado na abertura deste capiacutetulo Com isso Tancredo conseguiu

governar o Reino da Siciacutelia com o apoio da Igreja de Roma ateacute morrer em fevereiro de

1194 O filho de Tancredo William III foi declarado rei mas era apenas uma crianccedila

Henrique VI novamente reivindicou o direito sobre a coroa da Siciacutelia Desta vez suas

investidas foram mais eficientes Palermo caiu em novembro de 1194 e Henrique foi

coroado rei da Siciacutelia no dia 25 de dezembro na catedral da cidade

Mesmo que Constacircncia fosse uma herdeira normanda legiacutetima filha do fundador do

Reino Rogeacuterio II o rei agora era um monarca estrangeiro de linhagem germacircnica Frederico

II filho de Constacircncia e Henrique apoacutes a morte dos pais e um longo periacuteodo de menoridade

sob a tutela do papa Inocecircncio III implementaraacute um novo governo forte e centralizado365

Todavia mesmo carregando o sangue Hauteville por parte da matildee tambeacutem era herdeiro dos

Hohenstaufen por parte do pai Ele precisou se dividir em ser rei na Itaacutelia e Imperador na

Germacircnia

54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada

Em 1140 o filho mais velho do rei Rogeacuterio II e Elvira de Castela o duque Rogeacuterio

de Apuacutelia foi ateacute a regiatildeo central da Siciacutelia Ele precisava averiguar o patrimocircnio da coroa

que estava em uso irregular de um monasteacuterio grego O monasteacuterio em questatildeo era Satildeo

Cosme de Gonato que tinha se apossado de terras de cultivo algumas vinhas e um moinho

real O duque Rogeacuterio durante a investigaccedilatildeo interrogou o abade local Metoacutedio que alegou

ter recebido o patrimocircnio em possessatildeo durante a gestatildeo do governador Caid Maimunes366

Apoacutes a investigaccedilatildeo o duque Rogeacuterio emitiu um documento para o monasteacuterio em

1142 que comeccedilava com as seguintes palavras

364 Idem 365 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south op cit p 70 366 Conferir a anaacutelise deste evento bem como uma reproduccedilatildeo do documento em grego e espanhol em

ANDREacuteS Gregoacuterio de Um diploma griego del Duque Normando Roger Priacutencipe de Sicilia (A 1142)

Erytheia Revista de estuacutedios bizantinos y neogriegos Madri v 1 n 6 p 61-68 1985

115

Diploma dado por mim Rogeacuterio ilustriacutessimo Duque e filho do piedoso e

grande rei dirigido a ti Metoacutedio abade do monasteacuterio de Satildeo Cosme

chamado o Gonato situado nos montes de Petraacutelia no mecircs de abril dia 6

quinta-feira Depois que entrei em completo domiacutenio e governo da regiatildeo

de Petraacutelia que o poderosiacutessimo rei e meu pai me entregou chegou a meus

ouvidos que muitas e diversas pessoas tecircm se apossado de campos

cultivados e vinhas de domiacutenio real como se fossem proacuteprios367

Rogeacuterio argumentou que as posses eram da coroa e natildeo do governador e neste caso

a doaccedilatildeo fora irregular No decorrer do diploma Rogeacuterio reinvindicou a propriedade real

sobre o moinho mas ciente de que o monasteacuterio precisava dele prometeu um dote de trigo

anual procedente de terras reais com a ldquocondiccedilatildeo de que se rogue pela salvaccedilatildeo espiritual

do pai Rogeacuterio II e a matildee Elvira pela sua proacutepria e pela paz do mundordquo368 Quanto agraves terras

e vinhas Rogeacuterio tanto declarou-as como propriedade da Coroa como devolveu-as como

dote real definitivo para o monasteacuterio ldquoenquanto o mundo natildeo acabarrdquo369

Este evento bem como o diploma do conde Rogeacuterio apresentam um elemento

significativo do Reino da Siciacutelia no periacuteodo dos Hauteville elemento que apesar de se

alterar com o passar do tempo esteve presente ateacute o fim do seacuteculo XII a diversidade cultural

e religiosa bem como as interaccedilotildees franqueadas entre estas diversas culturas Trecircs grupos

sociais aparecem no diploma O normando representado pelo duque Rogeacuterio filho do rei

Rogeacuterio II o grego representado pelo abade Metoacutedio e seu monasteacuterio o aacuterabe

representado pelo Caid Maimunes administrador da regiatildeo de Petraacutelia370 O termo caid

era um vocaacutebulo de dignidade entre os sarracenos mas foi usado frequentemente no Reino

da Siciacutelia para descrever um muccedilulmano que se convertia ao cristianismo e atuava em algum

espaccedilo do governo geralmente na administraccedilatildeo financeira como coletor de impostos ou

tesoureiro

O monasteacuterio grego de Satildeo Cosme de Gonato na Petraacutelia evidencia a presenccedila de

diversas casas gregas espalhadas pelo reino isentas da jurisdiccedilatildeo episcopal latina que

viviam um tipo de monasticismo oriental basiliano Vaacuterios deles podem ter se instalado na

Itaacutelia meridional durante a perseguiccedilatildeo dos imperadores iconoclastas e sobreviveram na

Siciacutelia mesmo durante o domiacutenio muccedilulmano371

367 Idem p 66 368 Idem p 67-68 369 Idem p 68 370 Idem p 63 371 BUONAIUTI Ernesto Storia del Cristianesimo II - Evo Medio Milano DallOglio 1960 p 365

116

Em termos literaacuterios o diploma do duque Rogeacuterio de Apuacutelia foi escrito em grego

tendo em vista que o abade e seus monges eram gregos Possivelmente o duque Rogeacuterio I

instaurador da dinastia Hauteville na Siciacutelia tinha dificuldades com a liacutengua grega ou aacuterabe

e precisou da ajuda de autoacutectones para se comunicar com a populaccedilatildeo dominada Mas seu

filho Rogeacuterio II criado na Calaacutebria primeira sede do ducado natildeo apresentava a mesma

dificuldade Ele conhecia as liacutenguas grega e aacuterabe e marcou a corte do Reino da Siciacutelia com

elementos dessas culturas Quase todas as suas assinaturas sobreviventes foram escritas em

grego Selos reais continham a seguinte legenda grega ldquoRogerioj Krataioj Eusebhj Rhxrdquo

(ldquoRogeacuterio forte e poderoso reirdquo) Posteriormente ele acrescentou uma inscriccedilatildeo latina

ldquoRogerius Dei Gracia Sicilie Calabrie Apulie Rexrdquo (ldquoRogeacuterio pela graccedila de Deus rei da

Siciacutelia Calabria e Apuliardquo)372 Segundo Takayama tanto Rogeacuterio II quanto seus

descendentes William I e William II tiveram interesse em aprender artes e reuniram saacutebios

astroacutelogos filoacutesofos e geoacutegrafos de origem grega e aacuterabe no palaacutecio real de Palermo373 Este

historiador japonecircs avalia que ldquoos reis normandos da Siciacutelia com o suporte destes burocratas

gregos e aacuterabes eram reis cristatildeos mergulhados ateacute os joelhos nas culturas islacircmica e

gregardquo374

Em termos administrativos a Calaacutebria antes bizantina manteve muito de sua

estrutura administrativa sob o domiacutenio Hauteville O mesmo se deu na Siciacutelia com os

elementos estruturais criados pelos muccedilulmanos Em ambas as regiotildees oficiais indiacutegenas

locais continuaram sendo aproveitados pelos reis normandos na administraccedilatildeo do reino375

Apoacutes a unificaccedilatildeo em 1130 como parte da organizaccedilatildeo da coroa novas leis foram

criadas No prefaacutecio das Leis de Ariano de 1140 por exemplo a questatildeo das interaccedilotildees

culturais chama a atenccedilatildeo ao assinalar que ldquodiferentes povos sob o governo poderiam

manter seus proacuteprios costumes e leis desde que natildeo se colocassem em direto confronto com

as novas leis do Reinordquo376 Especialmente durante o governo de Rogeacuterio II os muccedilulmanos

poderiam guardar a lei coracircnica entre eles e os gregos o direito justiniano377

372 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p

5 373 Idem p 6 374 Idem p 15 375 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 460 376 Idem p 461 cf tambeacutem DRELL Joanna H Cultural syncretism and ethnic identity The Norman

lsquoconquestrsquo of Southern Italy and Sicily Journal of Medieval History Amsterdam v 25 n 3 p 187-202 1999

p 201 377 SZAacuteSDI LEON-BORJA Istvaacuten CORREIA DE LACERDA Vitaline Alfonso Henriques y Roger II de

Sicilia dos vidas paralelas de condes a reyes Una clave para la comprensioacuten del nascimento del Reino de

Portugal Estudios de Historia de Espantildea Buenos Aires v 13 p 55-72 2011 p 64 Hubert Houben

117

Isso significava a autorizaccedilatildeo para que os nativos italianos ainda chamados de

lombardos bem como gregos e muccedilulmanos permanecessem sob o poder de costumes

proacuteprios administrados por seus juiacutezes especialmente nas cidades ou por aristocratas que

possuiacuteam autoridade judicial em suas proacuteprias terras A justiccedila real se encarregaria

particularmente da ordem puacuteblica e das disputas de propriedade funcionando mais como

uma corte de apelaccedilatildeo378 Aleacutem disso especialmente na ilha da Siciacutelia sede do governo as

leis e decretos reais eram publicados em grego latim e aacuterabe379

Mesmo com as mudanccedilas demograacuteficas provocadas pelas migraccedilotildees latinas

favorecidas com a presenccedila do domiacutenio normando o Reino da Siciacutelia chegou ao final do

seacuteculo XII como uma entidade unificada politicamente mas pluralizada etnicamente380

fenocircmeno que Marjorie Chibnall definiu como ldquomulti-culturalrdquo381

No caso dos gregos havia uma presenccedila substancial desta populaccedilatildeo na ilha da

Siciacutelia e na Calaacutebria principalmente na parte sul desta proviacutencia Eles se concentravam tanto

nas cidades quanto nos campos onde construiacuteam suas igrejas com ritos e liturgia orientais382

Com a chegada dos Hauteville natildeo havia mais qualquer impedimento para que essa

populaccedilatildeo buscasse fazer novos membros atraveacutes do proselitismo O mesmo natildeo poderia

mais se dar por parte dos muccedilulmanos Isso fazia com que conversotildees de muccedilulmanos para

o cristianismo grego se tornassem um fenocircmeno relativamente frequente Jaacute a conversatildeo

muccedilulmana para o cristianismo latino era mais rara383

Em relaccedilatildeo ao elemento muccedilulmano Rogeacuterio I jaacute havia prometido no momento da

conquista natildeo promover accedilotildees agressivas contra essa parte da populaccedilatildeo da Siciacutelia As

maiores mesquitas foram confiscadas mas os muccedilulmanos receberam a garantia de que

poderiam praticar sua religiatildeo em troca do pagamento de uma taxa a gesia384 Nesta fase

entretanto problematiza esta questatildeo argumentando que ldquoa liberdade religiosa eram somente garantida onde

a maioria dos habitantes era muccedilulmana como era o caso de Palermo onde havia a necessidade de contiacutenua

cooperaccedilatildeordquo Cf HOUBEN Hubert Religious toleration in the South Italian Peninsula during the Norman and

Staufen Periods In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002 p

319-339 p 322 378 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 461 379 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 64 380 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 471 381 CHIBNALL op cit p 88 382 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in

Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 22 383 ABULAFIA David The Italian other Greeks Muslims and Jews In ABULAFIA David (org) Italy in

the Central Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 215-236 p 220 384 Idem p 223

118

da conquista o objetivo de Rogeacuterio era pragmaacutetico Ele precisava da populaccedilatildeo muccedilulmana

para dar estabilidade agrave ilha

Com o passar do tempo entretanto a populaccedilatildeo muccedilulmana declinou

substancialmente ateacute que durante o governo de Frederico II (rei de 1198-1250) natildeo

restassem mais do que 40 mil muccedilulmanos que acabaram sendo deportados para o

continente formando uma colocircnia em Lucera A causa mais imediata desse decliacutenio foi o

fluxo migratoacuterio de cristatildeos latinos para a ilha principalmente oriundos do norte da Itaacutelia

Mas outros fatores podem ser mencionados como a saiacuteda de muccedilulmanos para outros

espaccedilos de domiacutenio muccedilulmano como o norte da Aacutefrica a conversatildeo de muccedilulmanos para

o cristianismo mesmo que sob a forma de pseudo-conversatildeo e a escravizaccedilatildeo Os poucos

muccedilulmanos que ainda sobreviveram na Siciacutelia no seacuteculo XIII em sua maioria eram

escravos ou comerciantes

55 A Igreja no Reino da Siciacutelia

Formalmente o reino da Siciacutelia era um feudo papal da mesma forma que o ducado

de Apuacutelia e o principado de Caacutepua tinham sido a partir de 1059 Em 1130 o tiacutetulo real foi

dado pelo papa Anacleto II durante o cisma em 1139 Rogeacuterio II fez homenagem ao papa

Inocecircncio II em 1156 William I repetiu o gesto do pai diante de Adriano IV Ambos os reis

concordaram em pagar um census anual ao papado como recompensa pelo feudo385 Essa

relaccedilatildeo feudal entretanto precisa ser problematizada Os Hauteville jaacute eram governantes

antes de receberem o reconhecimento papal O domiacutenio natildeo foi criado pela homenagem

papal Eacute neste sentido que se daacute a sugestatildeo de Istvaacuten Szaacuteszdi Leoacuten-Borja e Vitaline Correia

de Lacerda de que este relacionamento feudal era parte de uma estrateacutegia dos liacutederes

normandos para obter o reconhecimento da Cristandade quanto a seus domiacutenios386 No caso

da igreja de Roma poderia ser uma estrateacutegia para aumentar a autoridade papal dentro do

reino o que natildeo aconteceu necessariamente apoacutes a fundaccedilatildeo do Reino da Siciacutelia em funccedilatildeo

do cisma papal A relaccedilatildeo entre a coroa e o papado foi difiacutecil principalmente entre 1139 e

1156 A reorganizaccedilatildeo episcopal feita na Siciacutelia a pedido do papa cismaacutetico Anacleto II

entre 1130-1131 especialmente era inaceitaacutevel para a cuacuteria papal

385 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 465 386 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 55

119

Aleacutem disso a forma como o duque e posteriormente rei Rogeacuterio II exercia o

controle sobre a Igreja dentro do seu territoacuterio era considerado uma infraccedilatildeo agrave autonomia da

igreja387 Suas accedilotildees tinham como fundamento um antigo acordo realizado por Rogeacuterio I e

o papa Urbano II para a organizaccedilatildeo da Igreja da Siciacutelia Em um dos elementos do acordo

o papa se comprometia a natildeo eleger o legado papal para a ilha sem a aquiescecircncia de Rogeacuterio

e na ausecircncia do legado o proacuteprio conde exerceria este papel388 Rogeacuterio II entendeu que

este benefiacutecio pouco usual para um leigo era hereditaacuterio e passou a agir como legado papal

na Siciacutelia389

Finalmente o Tratado de Benevento em junho de 1156 entre o papa Adriano IV e

William I marcou o fim do periacuteodo de hostilidade Graham Loud destaca trecircs aspectos do

tratado como significativos para as relaccedilotildees entre a coroa e o papado Primeiramente

Adriano IV recebeu a homenagem do rei normando e investiu-o no seu reino Com isso a

natureza hereditaacuteria do tiacutetulo real estava confirmada Em segundo lugar as fronteiras ateacute

entatildeo em disputa foram confirmadas comeccedilando em Abruzzi no norte e terminando na

ilha da Siciacutelia Terceiro os direitos reais sobre a Igreja do reino foram definidos Bispos e

abadias faziam suas proacuteprias eleiccedilotildees devendo o rei apenas aceitar ou vetar a escolha O

privileacutegio ainda dado por Urbano II a Rogeacuterio I foi confirmado mas exclusivamente para a

ilha da Siciacutelia no sentido de que os legados papais precisariam ser confirmados pelo rei e

na ausecircncia deles o proacuteprio rei exerceria este papel390

Com a chegada dos normandos a relaccedilatildeo entre igreja latina e grega sofreu o impacto

das mudanccedilas poliacuteticas391 Em 1059 Roberto Guiscard estabeleceu com o Papa Nicolau II o

compromisso de transferir para a jurisdiccedilatildeo papal todas as igrejas de seus domiacutenios Ele fez

juramento similar diante do papa Gregoacuterio VII em 1080 Em outros instantes entretanto o

liacuteder normando poderia dar um arcebispado ou um monasteacuterio importante sob seu domiacutenio

para um cleacuterigo de sua terra natal da Normandia ou Franccedila Contudo natildeo havia por parte

dos governantes algum movimento expliacutecito de latinizaccedilatildeo das igrejas gregas392 Isso porque

387 Idem p 465 388 Idem p 61 389 SKINNER Patricia Roger I (1031-1101 r 1085-1101) In EMMERSON Richard K (org) Key figures

in medieval Europe an encyclopedia New York Routledge 2006 p 575-576 p 574 390 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 164-165 391 HERDE Peter The Papacy and the Greek Church in the Sourthern Italy between the eleventh and the

thirteenth century In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002

p 213-251 p 216 392 Para James Morton a hipoacutetese de uma poliacutetica expliacutecita de latinizaccedilatildeo por parte dos normandos ou do

papado eacute fruto de uma perspectiva ldquofrancocecircntricardquo da histoacuteria medieval Cf MORTON op cit p 8

120

uma igreja grega poderia sobreviver debaixo da jurisdiccedilatildeo de um bispo latino desde que se

fizesse juramento de fidelidade ao bispo de Roma393 Bispos e cleacuterigos gregos poderiam

manter seus ofiacutecios e seus ritos bastando declarar ou admitir a prerrogativa papal de

primazia e o direito de investidura dos papas sobres os bispos da Itaacutelia394

Divergecircncias menores entre as duas igrejas poderiam aparecer no campo da

linguagem do rito e dos costumes Enquanto na Igreja Latina a liacutengua lituacutergica era o latim

na Igreja Grega a liacutengua era o grego395 Os ritos poderiam variar principalmente a Eucaristia

por causa da divergecircncia sobre o patildeo apropriado para a celebraccedilatildeo ou a mistura de aacutegua no

vinho No campo dos costumes debates poderiam aparecer a respeito das vestimentas dos

cleacuterigos e ateacute mesmo sobre a presenccedila ou ausecircncia de barba nos sacerdotes

A divergecircncia significativa entretanto estava no espaccedilo do dogma com a questatildeo

da claacuteusula filioque Do periacuteodo caroliacutengio para frente a Igreja latina passou a professar que

o Espiacuterito procedia do Pai e do Filho uma alteraccedilatildeo do antigo credo que os gregos nunca

aceitaram396

A questatildeo do celibato dos cleacuterigos era outro significativo elemento de distinccedilatildeo entre

igreja grega e latina Enquanto a Igreja Latina proibia bispos e sacerdotes de se casarem na

Igreja Grega eles poderiam continuar casados397 Na Itaacutelia meridional onde cleacuterigos gregos

e latinos viviam lado a lado era difiacutecil impor a observacircncia do celibato sobre todos os latinos

No iniacutecio do seacuteculo XIII Inocecircncio III demandou que bispos gregos da Itaacutelia

meridional atuassem apenas onde a populaccedilatildeo fosse exclusivamente grega e desde que estes

bispos gregos se submetessem ao papado Em dioceses onde a populaccedilatildeo contivesse a

presenccedila de gregos e latinos o bispo deveria ser latino Com o pontificado deste papa natural

de Anagni os ritos gregos passaram a ser limitados398 O resultado foi o desaparecimento da

Igreja Grega na Itaacutelia meridional convertida em latina com algumas poucas exceccedilotildees como

o monasteacuterio de Theotokos de Patiron em Rossano que permaneceu grego quanto agrave

linguagem e rito ateacute meados do seacuteculo XIX399

393 HERDE op cit p 217 394 Idem p 222 395 Idem p 224 396 Idem p 234 397 Idem p 237 398 Idem p 243 399 MORTON op cit p 6

121

56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda

A Itaacutelia meridional nos seacuteculos XI e XII contava com a presenccedila tanto do

monasticismo ocidental quanto do oriental O oriental especificamente era encontrado sob

algumas formas baacutesicas koinobion comunidades monaacutesticas vivendo segundo uma regra

em comum normalmente uacutenica para aquele monasteacuterio a lavra uma comunidade de

monges que viviam perto uns dos outros e compartilhavam serviccedilos lituacutergicos a kella que

era uma rejeiccedilatildeo da comunidade usualmente natildeo tendo mais do que um monge e seus poucos

disciacutepulos vivendo em uma caverna ou casa desabitada400

Segundo Morton em periacuteodos de crise econocircmica e social predominava o tipo anti-

comunitaacuterio Em periacuteodos de estabilidade poliacutetica e social predominavam as comunidades

melhor organizadas do tipo cenoacutebio401 O periacuteodo anterior agrave chegada dos normandos na Itaacutelia

Meridional foi marcado por instabilidade consequentemente com predomiacutenio do

monasticismo anti-comunitaacuterio com foco em ascetas individuais e itinerantes Estas

fundaccedilotildees monaacutesticas eram efecircmeras e sumiam assim que o fundador morria Os disciacutepulos

se juntavam em torno de uma pessoa e natildeo em torno de uma instituiccedilatildeo As comunidades

poderiam ter alguma propriedade mas eram relativamente independentes

As comunidades sentiam o impacto das invasotildees no sul da Itaacutelia que se sucederam a

partir da chegada dos lombardos no seacuteculo VI Lombardos sarracenos e bizantinos

disputaram a regiatildeo durante os seacuteculos anteriores agrave chegada dos normandos promovendo

instabilidade para as casas monaacutesticas O monasteacuterio de Monte Cassino pode ser um

exemplo neste caso A casa foi fundada na primeira metade do seacuteculo VI mas abandonada

em 581 durante as invasotildees lombardas Em 718 foi novamente povoada ateacute que em 883 foi

capturada pelos sarracenos Seus monges fugiram para a Campanha e parecem ter retornado

apenas algumas deacutecadas depois O periacuteodo das invasotildees era marcado por saques e violecircncias

contras as casas estabelecidas Em funccedilatildeo disso predominava no Sul o monasticismo

itinerante em torno de ascetas carismaacuteticos Quando a situaccedilatildeo poliacutetica ganhava alguma

estabilidade os novos poderes lombardos ou bizantinos imprimiam nas casas o caraacuteter

descentralizado da regiatildeo Os priacutencipes ou duques patrocinavam a reconstruccedilatildeo das casas

monaacutesticas mas sem organizaccedilatildeo ou centralizaccedilatildeo eclesiaacutestica Segundo Loud tanto o

400 Idem p 39 401 Idem p 40

122

papado quanto Bizacircncio tentaram controlar as casas e as igrejas do Sul com a criaccedilatildeo de

novos arcebispados gregos e latinos mas o resultado foi muito pequeno402

A maioria das fundaccedilotildees deste periacuteodo seguiam na teoria a Regra de Satildeo Bento

apesar das praacuteticas e costumes variarem consideravelmente Especialmente na Calaacutebria

havia uma grande presenccedila do monasticismo grego tanto na sua versatildeo cenobiacutetica quanto

na eremita

Apoacutes a consolidaccedilatildeo da conquista normanda os novos condes e duques logo se

tornaram tambeacutem patronos dos monasteacuterios gregos e latinos403 Em linhas gerais eles se

envolviam mais no patrociacutenio de casas monaacutesticas jaacute presentes na regiatildeo do que fundando

casas rivais Mesmo assim numerosas casas foram criadas pelos novos governantes Dos

cerca de 20 monasteacuterios gregos surgidos durante o governo do conde Rogeacuterio I ele esteve

pessoalmente envolvido em 14 deles404

Ateacute cerca de 1150 os maiores monasteacuterios do sul da Itaacutelia eram todos de rito

beneditino Monte Cassino Cava Venosa Lipari e Catania405 Segundo Loud ldquoa conquista

normanda sem duacutevida beneficiou o monasticismo beneditinordquo406 que ganhou a proteccedilatildeo dos

novos governantes expandiu suas congregaccedilotildees adquiriu novas propriedades e aumentou a

aacuterea geograacutefica de seus domiacutenios Montecassino liderou o processo de crescimento Durante

o periacuteodo de 1058-1105 este monasteacuterio recebeu 134 igrejas tanto por dote quanto pela

compra de igrejas subordinadas407 A forte criacutetica contra a igreja privada apesar de natildeo ter

eliminado completamente o fenocircmeno incentivou muitas transferecircncias de igrejas das matildeos

de leigos para instituiccedilotildees monaacutesticas

A conquista normanda poderia ter aberto o monasticismo meridional italiano para

influecircncias externas mas isso se deu de forma muito lenta Somente uma casa cluniesense

foi fundada na ilha da Siciacutelia durante o seacuteculo XII talvez sob o iacutempeto de Elvira a esposa

de Rogeacuterio II cujo pai Alfonso VI de Castela era um patrono do movimento de Cluny408

Outros novos movimentos religiosos tambeacutem natildeo tiveram impacto significativo no sul da

Itaacutelia antes do final do seacuteculo XII O conde Rogeacuterio I fundou uma casa Agostiniana em

402 LOUD G The Latin Church in the Norman Italy op cit p 35 403 MORTON op cit p 45 404 Idem p 50 405 Idem p 56 406 LOUD Graham H The Latin Church in the Norman Italy op cit p 430 Este historiador acrescenta ldquoas

pequenas casas independentes tendiam a ser absorvidas pelas congregaccedilotildees das grandes casas beneditinas e

novas fundaccedilotildees observavam a Regra de Satildeo Benedito desde o seu iniacuteciordquo Idem p 470 407 Idem p 434 408 Idem p 484

123

Bagnara sul da Calaacutebria em 1085 Posteriormente em 1090 convidou Bruno de Cologne

fundador da ordem Cartusiana para fundar uma comunidade na mesma regiatildeo em 1090

Comparado com o norte da Europa entretanto o nuacutemero destas casas sob o domiacutenio

normando era muito pequeno

Neste mesmo sentido se deu a chegada dos Cistercienses O primeiro monasteacuterio da

Ordem de Cister na regiatildeo foi Santa Maria Sambucina perto de Cosenza Calabria terra

natal de Joaquim de Fiore pouco antes de 1145409 Outro monasteacuterio cisterciense foi

estabelecido na Siciacutelia em Prizzi em 1155 mas como seu fundador esteve envolvido na

morte do primeiro ministro Maio de Bari isto tirou a possibilidade de que esta casa tivesse

progresso dentro do reino A proacutexima casa cisterciense fundada foi Santa Maria de Ferraria

na diocese de Teano principado de Caacutepua em 1171 como um priorado de Fossanova e se

tornou abadia de fato em 1184 Em 1188 o arcebispo Walter de Palermo converteu um

monasteacuterio grego na Calaacutebria que estava com dificuldades para recrutar novos membros

em uma casa da Ordem Em 1191 uma abadia cisterciense foi fundada em Palermo pelo

arcebispo Mateus mas esta ficou em dificuldades apoacutes a consagraccedilatildeo de Henrique VI jaacute

que foi organizada por algueacutem contraacuterio agrave chegada dos Hohenstaufen Com isso o imperador

entregou a casa agrave ordem dos Cavaleiros Teutocircnicos em 1197

Assim ainda em 1200 natildeo havia mais do que 13 abadias da ordem cisterciense no

reino da Siciacutelia em grande parte inseridas no movimento Cisterciense na uacuteltima deacutecada A

maioria destas fundaccedilotildees se deram por conversatildeo de casas jaacute estabelecidas jaacute que para

fundar uma casa nova era preciso o envio pela casa-matildee de pelo menos doze monges410 A

dificuldade que Joaquim teve para inserir o monasteacuterio de Corazzo na Ordem Cisterciense

parece indicar a forma lenta como a ordem se desenvolvia na Itaacutelia meridional dentro do

seacuteculo XII O monasteacuterio do qual ele fora abade entre 1177 e 1186 possivelmente jaacute seguia

os costumes de Cister antes mesmo de Joaquim ingressar na casa Enquanto abade ele fez

vaacuterios esforccedilos para concluir o processo de filiaccedilatildeo Para tanto era necessaacuterio que fosse

recebido por uma abadia que lhe servisse como casa-matildee Joaquim tentou essa filiaccedilatildeo com

duas abadias cistercienses e natildeo obteve sucesso Sambucina e Casamari A filiaccedilatildeo soacute se

completou quando a abadia de Fossanova uma das principais casas cistercienses do territoacuterio

papal recebeu Corazzo como casa-filha em 1188411

409 Idem p 486 410 Idem p 489 411 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx

124

A Ordem de Joaquim a Florense nasceu sob a inspiraccedilatildeo de Cister aprovada pelo

papa Celestino III em 1196 A Regra da nova ordem possivelmente era uma adaptaccedilatildeo

daquela que o abade jaacute seguia em Corazzo412 A Ordem Florense comeccedilou a se expandir

rapidamente depois de 1195 pelo menos ateacute o seacuteculo seguinte quando veio a estagnar413

Ela chegou a ter 60 casas mas 300 anos depois em 1505 a maioria dos membros se uniu

aos Cistercienses enquanto outros se juntaram aos Cartusianos ou Dominicanos414 De

qualquer forma seraacute no interior do movimento franciscano que Joaquim encontraraacute seus

principais seguidores

Ateacute o fim do periacuteodo normando o Reino da Siciacutelia manifestou um monasticismo

predominantemente beneditino com grandes casas dominando a regiatildeo continental Elas jaacute

existiam antes da chegada dos normandos poreacutem foram grandemente beneficiadas por eles

Elas conviviam ao lado de outros tipos de inspiraccedilatildeo ou movimentos religiosos como os

monasteacuterios gregos e os movimentos eremitas com seu ascetismo e desejo de reclusatildeo

Estes uacuteltimos em especial eram de curta duraccedilatildeo e logo eram inseridos nas tradiccedilotildees

beneditinas ou basilianas Apenas no final do seacuteculo XII as novas ordens religiosas

especialmente os cistercienses conseguiram ter um papel predominante na sociedade iacutetalo-

meridional

57 Resumo

Este capiacutetulo demonstrou o caraacuteter culturalmente plural do Reino da Siciacutelia espaccedilo

de convivecircncias trocas relacionamentos e conflitos entre normandos latinos gregos e

muccedilulmanos Esta sociedade viabilizou a manifestaccedilatildeo de praacuteticas sociais e religiosas de

uma forma rica com a presenccedila de igrejas gregas e latinas e monasticismos beneditinos e

basilianos frequentemente lado a lado O seacuteculo XII foi tambeacutem o periacuteodo em que a cuacuteria

romana expandiu seu controle sobre as igrejas e comunidades da Itaacutelia meridional a partir

de acordos com governantes normandos No fim do seacuteculo entretanto o poder sairia das

matildeos normandas para cair sob o controle da dinastia germacircnica Hohenstaufen Essa

412 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n

1 p 217-240 2004 p 219 413 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der

Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98 414 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5

125

conjuntura de instabilidade social provocada pela transiccedilatildeo poliacutetica acabaraacute transparecendo

no Expositio in Apocalypsim

VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA

DE JOAQUIM

Enquanto consomem textos leitores criam sentidos inventam significados Mas a

forma muacuteltipla como Joaquim fez isso produziu na historiografia curiosas avaliaccedilotildees O

historiador italiano Ernesto Buonaiuti descreveu a metodologia do abade de ldquoorgia

simboacutelicardquo415 A pesquisadora inglesa Marjorie Reeves resumiu sua obra como resultado de

uma ldquoimaginaccedilatildeo caleidoscoacutepicardquo em funccedilatildeo do enlace iacutentimo entre texto e imagem416 O

cardeal francecircs Henri de Lubac historiador da exegese medieval definiu seu pensamento

como ldquodesorbitadordquo pois gerava sem cessar siacutembolos e tipos que se entrelaccedilavam

cruzavam e harmonizavam entre si417 Este capiacutetulo descreveraacute as tais formas de leitura de

Joaquim e sua metodologia hermenecircutica em confronto com a tradiccedilatildeo exegeacutetica e com

padrotildees de leitura encontrados especialmente no chamado novo monaquismo418

61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo

Jean Leclercq estudioso francecircs da cultura monaacutestica419 sintetizou os usos da Biacuteblia

nas diversas esferas sociais e religiosas ocidentais entre Gregoacuterio Magno e o seacuteculo XII

sugerindo que era ela utilizada para auto-instruccedilatildeo e para o ensino puacuteblico manual para

catequeze livro base da adoraccedilatildeo puacuteblica e privada (gerando tanto a liturgia da comunidade

quando a piedade individual) fonte de material para a pregaccedilatildeo a arte e a iconografia

415 Citado por DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling

Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 47 416 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976 p

8 417 DE LUBAC La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 47 418 O termo ldquonovo monaquismordquo eacute aqui usado para fazer um contraponto ao monaquismo do tipo beneditino

(Monges Negros) Cf VAUCHEZ Andreacute A espiritualidade na Idade Meacutedia ocidental (seacuteculos VIII a XIII)

Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 p 86 LOGAN F Donald A history of the Church in the Middle

Ages London Routledge 2002 p 136-145 LAWRENCE C H El monacato medieval formas de vida

religiosa en Europa occidental durante la Edad Media Madrid Editorial Gredos 1989 p 234-239 419 Sua obra mais significativa neste campo eacute LECLERCQ Jean The love of learning and the desire for God

A study of monastic culture New York Fordham University Press 1961

127

Segundo Leclercq apesar destes usos amplos os principais inteacuterpretes das Escrituras cristatildes

eram encontrados no monasticismo420

Eacute certo que as casas monaacutesticas poderiam receber monges natildeo-letrados mas a

vivecircncia no seu interior requeria certo envolvimento com a cultura escrita Afinal eles

precisavam ler ou cantar na liturgia421 Aleacutem destas praacuteticas outras se somariam como o

manuseio a preservaccedilatildeo e a ilustraccedilatildeo de manuscritos Isso fazia do monasteacuterio um lugar

privilegiado para o desenvolvimento da leitura e interpretaccedilatildeo da Biacuteblia

Ainda segundo o estudioso francecircs no interior dos muros monaacutesticos os monges

imprimiam na praacutetica da leitura biacuteblica um traccedilo muito proacuteprio da clausura Sem grandes

controveacutersias teoloacutegicas quando comparado com os tempos patriacutesticos e com a

efervescecircncia intelectual da escolaacutestica apenas comeccedilando a tendecircncia geral era usar a

leitura biacuteblica como ferramenta da vida contemplativa422 O professor Reventlow

acompanhou Leclercq neste sentido generalizando que o objetivo dos leitores da Biacuteblia

nestes espaccedilos ateacute o seacuteculo XI seria meditar sobre o texto promover a adoraccedilatildeo e fomentar

a contemplaccedilatildeo423

Natildeo muito diferente do francecircs Leclercq e do alematildeo Reventlow o historiador

italiano Ambrogio Piazzoni tambeacutem entende a exegese monaacutestica como um modo particular

de interpretar a Escritura na Idade Meacutedia O professor da Universitagrave degli Studi della Tuscia

entretanto argumenta em prol de uma inflexatildeo significativa dos estudos biacuteblicos no final do

seacuteculo XI e durante o seacuteculo XII caracterizada por uma nova sensibilidade na leitura e no

uso dos textos424 Perspectiva semelhante levou de Lubac a intitular este revigoramento

biacuteblico de ldquouma nova primavera da exegeserdquo425 muito em funccedilatildeo dos representantes do

420 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard In LAMPE G W H (ed) The Cambridge

History of the Bible The West from the Fathers to the Reformation Cambridge Cambridge University Press

1969 p 183-197 p 184 421 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in

Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 3

Sobre este tema conferir uma antiga exortaccedilatildeo a este respeito presente na regra de Ferreol (553-581) bispo de

Uzegrave na Gaacutelia em PARKES Malcom La alta Edad Media In CAVALLO Guglielmo CHARTIER Roger

(eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 153-178 p 157 ldquoaquele que

deseja se chamar monge natildeo pode se permitir ficar na ignoracircncia das letrasrdquo (ldquoOmnis qui nomem vult monachi

vidicare litteras ei ignorare non liceatrdquo) 422 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard op cit p 184 423 REVENTLOW Henning Graf History of Biblical Interpretation From Late Antiquity to the End of the

Middle Ages Atlanta Society of Biblical Literature 2009 3 v V 2 p 172 424 PIAZZONI Ambrogio M Lesegesi neomonastica In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio

(eds) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 217-237 p 218 425 DE LUBAC Henri Medieval exegesis the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans

Publishing Company 2000 2 v V II p 151

128

chamado neomonasticismo destacadamente os cistercienses mas sem esquecer tambeacutem

alguns expoentes do ldquovelho monaquismordquo426

A praacutetica da leitura biacuteblica era um dos pilares da vida do monge Para um religioso

a Biacuteblia era nos termos de Piazzoni o livro de ldquocada dia todo o dia e muitas vezes ao

diardquo427 Ele percorria suas paacuteginas escutava sua leitura lia-a sozinho cantava-a com seus

irmatildeos na liturgia

A lectio428 monaacutestica poderia ser ilustrada pelo testemunho do cartusiano Guigo II

abade entre 1174 e 1180 da casa-matildee da Ordem dos Cartuxos em Saint-Pierre-de-

Chartreuse na Franccedila Segundo este abade o desenvolvimento espiritual comeccedila com a

lectio passa pela meditatio conduz agrave oratio e conclui com a contemplatio Eacute uma escala

ascendente429 Neste mesmo sentido registrava ainda um opuacutesculo anocircnimo destinado aos

novos monges ldquoQuando ler procure o sabor e natildeo o saberrdquo (ldquoSi ad legendum accedat non

quaerat scientiam sed saporemrdquo) E acrescentava ldquono momento da leitura poderaacute

contemplar e orarrdquo (ldquoin ipsa lectione poterit contemplari et orarerdquo)430 Desta forma a lectio

entrava na vida do monge como uma forma de oraccedilatildeo ou culto

Esta exegese monaacutestica se fundava sobre as bases de um relacionamento contiacutenuo

com o texto sagrado de uma memoacuteria impregnada das Escrituras Como resumiu ainda

Piazzoni era uma memoacuteria visual de palavras escritas muscular de palavras pronunciadas e

auditiva de palavras escutadas431 O aspecto visual nascia tanto das leituras quanto das

representaccedilotildees da Biacuteblia em imagens espalhadas por quadros esculturas e iacutecones nas

paredes nas colunas e nos tetos das construccedilotildees O aspecto muscular se desenvolvia por

causa da leitura em voz alta ao articular-se as palavras lidas com a boca432 A leitura era

murmurada mesmo se feita sozinha o que gerou a expressatildeo ruminatio433 Como

426 PIAZZONI op cit p 218 427 Idem p 219 428 Leitura e explicaccedilatildeo das Escrituras Cf BLAISE Albert Lexicon Latinitatis Medii Aevi Turnholti

Typografhi Brepols 1975 p 528 429 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 221 430 Idem p 222 431 Idem 432 Ao menos para a alta Idade Meacutedia cf PARKES op cit p 160 Segundo Hamesse essa praacutetica de leitura

sofreu uma profunda transformaccedilatildeo no seacuteculo XII em funccedilatildeo de novos padrotildees exercitados nas escolas ou

universidades Cf HAMESSE Jacqueline El modelo escolastico de la lectura In CAVALLO Guglielmo

CHARTIER Roger (eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 179-210

p 207 Entretanto o argumento de Hamesse natildeo impede a perspectiva de que estas ldquonovidadesrdquo natildeo alteraram

a ruminatio entre os monges 433 O termo ldquoruminatiordquo vem do verbo ldquoruminarerdquo que expressa a ideia de ruminaccedilatildeo girar na mente accedilatildeo

cotidiana Cf LEWIS Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p

1604 Albert Blaise entatildeo preferiu traduzir como ldquocantar sozinhordquo Cf BLAISE op cit p 806

129

consequecircncia tambeacutem da memoacuteria muscular desenvolvia-se a memoacuteria auditiva enquanto

ouvia a proacutepria voz ou em funccedilatildeo de outros processos em que o monge escutava a leitura

Biacuteblica implementados na liturgia na pregaccedilatildeo ou durante as refeiccedilotildees

A praacutetica de ruminar a Biacuteblia de ldquomastigaacute-lardquo todo o dia e o dia todo criava o

fenocircmeno da reminiscecircncia Assim para explicar uma passagem da Biacuteblia o monge fazia

uso de outra passagem que em sua mente se associava remanejando suas frases e

construindo novos textos Neste sentido Piazzoni argumenta que certo desprendimento em

relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo eacute um significativo traccedilo da exegese monaacutestica e neomonaacutestica do seacuteculo

XII Guilherme (1085- 1148) abade de Sant-Thierry escreveu ldquoA escritura deve ser lida no

espiacuterito em que foi gerada Neste espiacuterito deve ser compreendidardquo434 Segundo ele o mesmo

Espiacuterito que inspirou os textos estaria com aqueles que entatildeo os interpretavam

Ruperto (1075-1130) abade na cidade germacircnica de Deutz representante do

monasticismo beneditino insistia que a interpretaccedilatildeo da Biacuteblia depende de uma

compreensatildeo especial que eacute dom do Espiacuterito Santo dom esse similar agravequele que ele deu aos

apoacutestolos para que pudessem compreender o Antigo Testamento Quem recebe tal dom de

interpretaccedilatildeo tem o dever de expor o que percebe na Biacuteblia Ele afirmou assim a existecircncia

de um ldquodom da exegeserdquo nos moldes dos antigos dons do apostolado e profecia435 o que

promovia a autonomia do inteacuterprete em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde

Neste sentido tambeacutem o cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153) que insistia

que tudo na Biacuteblia tinha um sentido para o leitor e nenhum detalhe dos textos biacuteblicos

poderia ser negligenciado Como os textos tinham vaacuterios sentidos Deus o mestre das

Escrituras ajudaria os leitores a compreender da mesma forma como ajudou os autores a

escrever O resultado desta leitura sagrada eacute entatildeo um cacircntico de amor (carmen spiritus) um

ato lituacutergico Cada leitor da Biacuteblia poderia ser inspirado quase como os proacuteprios autores

originais o que justificaria a diversidade de interpretaccedilatildeo dos textos sagrados436

A exegese praticada por representantes tanto do antigo monasticismo quanto das

novas casas monaacutesticas ocidentais no seacuteculo XII conhecia os sentidos tradicionais praticados

desde Oriacutegenes (185-254) histoacuterico alegoacuterico tropoloacutegico e anagoacutegico437 Este sistema de

alegorizaccedilatildeo foi desenvolvido de acordo com o qual quatro significados deveriam ser

434 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 223 435 Idem p 228 436 Idem p 229 437 Uma anaacutelise diacrocircnica dos quatro sentidos pode ser encontrada em DE LUBAC Henri Medieval exegesis

the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2000 2 v V I p 15-

267

130

procurados em cada texto biacuteblico O nuacutemero de sentidos variava entre os autores Alguns

trabalhavam com dois sentidos outros com ateacute sete Mas o nuacutemero mais frequentemente

usado era quatro438 Um pequeno diacutestico presente na obra Rotulus pugillaris do dominicano

Agostinho de Dacia em 1260 ilustra os quatro sentidos ldquoA letra nos mostra os eventos a

alegoria nos mostra a feacute o significado moral nos ensina a agir a anagogia nos indica para

onde vamosrdquo439

Os monges dos tempos reformistas em funccedilatildeo do anseio pela contemplaccedilatildeo tinham

o sentido tropoloacutegicomoral como alvo maior A letra deveria ser superada em prol de um

sentido mais elevado de compreensatildeo das Escrituras O resultado eacute uma leitura biacuteblica

interiorizante ldquoespiritualrdquo que prosperava dentro do monasteacuterio Do lado de fora dos seus

muros entretanto outro padratildeo de hermenecircutica comeccedilava a se fortalecer em que se

buscava natildeo mais a meditatio mas a disputatio Esta forma extra claustrum de interpretaccedilatildeo

biacuteblica feita por pessoas ldquoque por meios escolaacutesticos se enchem de conhecimentordquo (ldquoqui

scholastica inflantur scientiardquo)440 aborrecia alguns monges entre eles o autor do Expositio

in Apocalypsim

62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo

No iniacutecio do Expositio Joaquim resumiu sua maneira de relacionar Biacuteblia e histoacuteria

O primeiro dos trecircs status dos quais noacutes falamos era no tempo da Lei

quando o povo do Senhor serviu como uma crianccedila pequena por um tempo

debaixo dos elementos (rudimentos) do mundo Eles natildeo estavam

habilitados ainda a alcanccedilar a liberdade do Espiacuterito ateacute que venha de quem

se disse ldquoSe o Filho libertar vocecircs vocecircs verdadeiramente seratildeo livresrdquo

(Joatildeo 866) O segundo status estava sob o Evangelho e permaneceu ateacute o

presente com liberdade em comparaccedilatildeo com o passado mas natildeo com

liberdade em comparaccedilatildeo com o futuro Porque o Apoacutestolo disse ldquoAgora

noacutes conhecemos em parte e profetizamos em parte o que eacute perfeito tiver

vindo o que eacute em parte passaraacuterdquo (1Coriacutentios 1312) E em outro lugar

ldquoOnde o Espiacuterito do Senhor estaacute aqui haacute liberdaderdquo (2Coriacutentios 317) Por

conseguinte o terceiro status viraacute ao se aproximar o fim do mundo natildeo

distante sob o veacuteu da carta mas na plenitude do Espiacuterito quando apoacutes a

destruiccedilatildeo e cancelamento do falso evangelho do Filho da Perdiccedilatildeo e seus

profetas aqueles que ensinaratildeo a muitos sobre justiccedila seratildeo como o

438 TRACY Robert TRACY David A short history of the interpretation of the Bible Minneapolis Fortress

Press 1984 p 136-145 439 ldquoLittera gesta docet quid credas allegoria Moralis quid agas quo tendas anagogiardquo Citado a partir de

DE LUBAC Henri Medieval exegesishellip v I op cit 1 440 Expressatildeo de Joaquim de Fiore no Tractatus Super Quatuor Evangelia citado a partir de DE LUBAC La

posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 16

131

esplendor do firmamento e como as estrelas para sempre (Expositio in

Apocalypsim 5r-v)441

Nesta mesma passagem algumas linhas agrave frente o abade faz referecircncia a uma certa

forma de ler e interpretar a Biacuteblia ldquoA carta do Primeiro Testamento parece por certa

propriedade de semelhanccedila pertencer ao Pai A carta do Novo Testamento pertence ao Filho

Entatildeo a compreensatildeo espiritual que procede de ambos pertence ao Espiacuterito Santordquo Mas que

hermenecircutica ldquoespiritualrdquo eacute essa que Joaquim chamou de ldquonovo tipo de exposiccedilatildeordquo (ldquonovo

saltem generi exponendirdquo)442 Ela seria ldquonovardquo em que sentido

A insistecircncia do abade em chamar sua forma de exponere a Biacuteblia de ldquonovardquo indica

algum tipo de insatisfaccedilatildeo com as metodologias exegeacuteticas que ele encontrou nos espaccedilos

religiosos Isso pode ter relaccedilatildeo com sua ansiedade apocaliacuteptica Apoacutes uma peregrinaccedilatildeo agrave

Palestina ele possui a convicccedilatildeo de que a humanidade estaacute se aproximando de um estaacutegio

histoacuterico decisivo Ele deseja compreender estes sinais dos tempos e procura ler os textos

biacuteblicos agrave procura de uma explicaccedilatildeo religiosa Contudo as ferramentas exegeacuteticas

disponiacuteveis natildeo lhe satisfazem ou pelo menos lhe parecem ineficientes para interpretar os

textos sagrados e encontrar algum sentido para a conjuntura histoacuterica dos seus dias Seria

preciso entatildeo elaborar uma metodologia ldquonovardquo para interpretar a Biacuteblia e a histoacuteria443

Essa perspectiva de ldquonovidaderdquo em Joaquim tambeacutem teria relaccedilatildeo com sua

compreensatildeo da natureza da exegese Como Ruperto de Deutz jaacute anteriormente

mencionado o abade parece falar de um ldquodom da exegeserdquo uma capacitaccedilatildeo sobrenatural

necessaacuteria para apreender o que natildeo estaria disponiacutevel para a compreensatildeo de todos As

passagens da Biacuteblia natildeo conteriam apenas palavras e frases acessiacuteveis de imediato a qualquer

leitor mas igualmente misteacuterios (mysteria) e segredos (secreta) especialmente relacionados

com os propoacutesitos divinos quanto agrave histoacuteria humana

Para Joaquim o Apocalipse de Joatildeo narraria a histoacuteria de como Deus entregou um

livro para o Cordeiro fechado com sete selos (Apocalipse 51-14) Esta narrativa biacuteblica

indicaria que o sentido dos personagens e dos eventos da histoacuteria humana estatildeo encobertos

A revelaccedilatildeo se encontraria inteiramente nas matildeos do Cristo do Apocalipse Estava completa

441 Traduccedilatildeo a partir de MC GINN Bernard Visions of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages

New York Columbia University Press 1979 p 133-134 442 O verbo ldquoexponerordquo pode ser traduzido como ldquorevelaccedilatildeordquo ldquoexposiccedilatildeordquo ldquoproduccedilatildeordquo Cf BLAISE op cit

p 363 443 REVENTLOW op cit p 173 tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval a compreensatildeo

espiritual de Joaquim de Fiore Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 35 p 99-118 2012 p 101

132

mas escondida tornando-se disponiacutevel apenas com ajuda divina Sem este amparo os textos

biacuteblicos seriam hermeacuteticos pelo menos no que tange ao sentido ldquoespiritualrdquo jaacute que sentidos

inferiores ainda poderiam ser acessados pela razatildeo humana (como os escolaacutesticos ldquoinchados

de ciecircnciardquo que ele critica) Em outras palavras para o abade algumas coisas estatildeo

encobertas outras estatildeo escondidas algumas pessoas podem acessar as coisas encobertas

outras somente compreendem a superfiacutecie dos textos sagrados

Entre as coisas escondidas na Biacuteblia estatildeo os eventos e tribulaccedilotildees do final dos

tempos os falsos profetas os anticristos e a materializaccedilatildeo do reino divino na histoacuteria Deus

por meio de Cristo teria disponibilizado uma ldquocompreensatildeo espiritualrdquo a algumas pessoas

permitindo a elas adentrarem as profundezas das Escrituras e alcanccedilarem os segredos e

misteacuterios Joaquim faz assim uma distinccedilatildeo entre a capacidade de ler as Escrituras e a de

penetrar nos misteacuterios sagrados por meio de uma diferenciaccedilatildeo entre pessoas naturais (viri

animales) e pessoas espirituais (viri spirituales) Os misteacuterios da Escritura seriam

conhecidos apenas das pessoas espirituais jaacute que as naturais natildeo os podem perceber A

praacutetica da interpretaccedilatildeo biacuteblica ldquoespiritualrdquo consequentemente se daria pela obtenccedilatildeo da

ldquointeligecircnciardquo necessaacuteria por meio da iluminaccedilatildeo do Espirito Santo que permitiria aos assim

escolhidos (electi) duas coisas a capacidade de discernir a Biacuteblia e a habilidade de entender

o sentido da histoacuteria especialmente os ldquosinais dos temposrdquo444

Joaquim se apoiava em ideias paulinas como a oposiccedilatildeo entre compreensatildeo natural

e espiritual (1Coriacutentios 26-16) e a indicaccedilatildeo de uma forma infantil em oposiccedilatildeo agrave uma

forma adulta de entender as coisas de Deus (1Coriacutentios 139-12)445 Como consequecircncia ele

afirma pelo menos dois tipos de interpretaccedilatildeo uma que trabalha com a letra (secundum

litteram) e outra que se move para um niacutevel mais profundo (secundum spiritum)

A partir destes dois procedimentos baacutesicos (segundo a letra e segundo o espiacuterito) o

abade daacute mais um passo na estruturaccedilatildeo do seu meacutetodo relacionando a lectio com a Trinitas

Desta reflexatildeo trinitaacuteria surgiu o conjunto das ferramentas do seu sistema hermenecircutico

composto por trecircs partes a concordia equivalente agrave leitura segundo a letra e a alegoria e a

444 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 19 445 Esta segunda passagem de Paulo eacute uma das preferidas de Joaquim retornando constantemente em suas

explicaccedilotildees metodoloacutegicas ldquoPorque em parte conhecemos e em parte profetizamos Quando poreacutem vier o

que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino falava como menino sentia

como menino pensava como menino quando cheguei a ser homem desisti das coisas proacuteprias de menino

Porque agora vemos como em espelho obscuramente entatildeo veremos face a face Agora conheccedilo em parte

entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Coriacutentios 139-12)

133

tipologia como leituras espirituais446 Jaacute que a Trindade eacute formada por trecircs pessoas divinas

que atuam como se fossem uma soacute as ferramentas exegeacuteticas de Joaquim tambeacutem deveriam

operar como se fossem apenas uma Somadas elas resultam na denominada ldquonova forma de

exposiccedilatildeordquo

Mas seria realmente ldquonovardquo esta metodologia exegeacutetico-hermenecircutica A resposta

da historiografia eacute dupla neste caso A tendecircncia eacute afirmar algum tipo de viacutenculo tradicional

ao mesmo tempo em que se indica em que sentido seu caminho poderia ser novo como o

professor Rossatto ao considerar que Joaquim teria partido da tradiccedilatildeo por assumir e

revigorar antigos meacutetodos de interpretaccedilatildeo poreacutem simultaneamente proposto um modo

ineacutedito de compreensatildeo no caso a concordia447 Isso significa dizer que a primeira parte do

sistema eacute nova enquanto a segunda jaacute era longamente utilizada pelos inteacuterpretes da Biacuteblia

A historiadora italiana Tagliapietra explica esta relaccedilatildeo entre novidade e tradiccedilatildeo

com o recurso aos jaacute mencionados quatro sentidos da exegese medieval O sentido literal foi

transformado por Joaquim na sua concordia A alegoria foi multiplicada pelo abade em cinco

tipos diferentes (histoacuterica moral tropoloacutegica contemplativa e anagoacutegica) A estes o abade

acrescentou o antigo meacutetodo da tipologia subdivido em sete formas diferentes Como

resultado os sentidos tradicionais se transformaram nas matildeos do abade em doze

possibilidades de significaccedilatildeo448 Contudo ele natildeo os chama todos do mesmo jeito Apenas

trecircs satildeo denominados ldquosentidosrdquo a letra (concordia) a alegoria (allegoricus intellectus) e a

tipologia (intelligentia typica)449 As demais divisotildees satildeo chamadas de espeacutecies (species)

inteligecircncias espirituais (inteligentiae spirituales) ou interpretaccedilatildeo espiritual (mystica

interpretatio)

Assim em siacutentese o sistema hermenecircutico de Joaquim de Fiore se articula sobre trecircs

bases a exposiccedilatildeo dos diversos tipos de alegoria dos diversos tipos de tipologia e a

concordia que funciona como o elemento que coloca o sistema em movimento450

446 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 101 447 Idem p 100 448 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 26 449 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 44 450 SANTI op cit p 261

134

63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde

A noccedilatildeo fundamental do sistema exegeacutetico de Joaquim eacute chamada por ele de

concordia Blaise no seu Lexicon Latinitatis Medi Aevi traduz o substantivo feminino

concordia como entre outras acepccedilotildees ldquoato de organizarrdquo e o verbo concordiare como

ldquofazer acordordquo451 Outro uso muito comum aparece em Suetocircnio (69-141) historiador dos

doze ceacutesares que apresenta uma divindade chamada Concordia a quem os romanos

dedicavam cultos e festas apoacutes distuacuterbios beacutelicos especialmente no final de uma guerra civil

(De vita caesarum III 20)452 Como antocircnimo de discordia o termo era relativamente

frequente tanto na prosa quanto na poesia latina

Mas como as palavras natildeo satildeo estaacuteticas e podem variar de sentido com o tempo e a

situaccedilatildeo Tagliapietra analisou as ocorrecircncias de concordia em Joaquim de Fiore e reuniu

quatro possibilidades de significado harmonia semelhanccedila correlaccedilatildeo e compensaccedilatildeo A

ldquoharmoniardquo poderia lembrar ao leitor moderno o sentido de sinopse como exemplificado

pelo Diatessaron de Taciano (120-180) que resumiu quatro evangelhos de Jesus em uma

uacutenica narrativa Jaacute ldquosemelhanccedilardquo tem relaccedilatildeo com paralelismo e aparece no tiacutetulo da obra

mais conhecida de Joaquim (Liber de Concordia Novi ac Veteris Testamenti) que comeccedila

com a expressatildeo ldquoIncipit praephatio libri concordantiarumrdquo (1r) O terceiro significado

ldquocorrelaccedilatildeordquo tem ligaccedilatildeo com periodizaccedilatildeo da histoacuteria uma espeacutecie de lei estrutural do

curso do tempo ou uma filosofia da histoacuteria O quarto significado ldquocompensaccedilatildeordquo indica

que cada pessoa cada evento da histoacuteria reverbera no futuro segundo uma reserva de

sentido fazendo com que o estudo do passado se torne tambeacutem um exerciacutecio de vaticiacutenio453

O proacuteprio Joaquim deu a sua definiccedilatildeo do termo concordia ldquouma similaridade de

igual proporccedilatildeo entre o Novo e o Antigo Testamentos igual eu digo quanto ao nuacutemero natildeo

quanto a dignidaderdquo454 (Liber de Concordia 7rb) Ele a ilustrou com a imagem de uma

estrada contiacutenua que liga uma cidade a um deserto cujos viajantes passam por vales e

montanhas Nos vales eles podem admirar a paisagem Nas montanhas eles conseguem ver

451 BLAISE op cit p 222 452 Esta eacute a referecircncia especiacutefica ldquoDedicavit et Concordiae aedem item Pollucis et Castoris suo fratrisque

nomine de manubiisrdquo Uma traduccedilatildeo seria Tibeacuterio ldquodedicou um templo agrave deusa Concordia e outro a Castor e

Polux em seu nome e em nome de seu irmatildeordquo Conferir uma ediccedilatildeo biliacutengue em SUETONIUS Lives of the

Caesars Cambridge Harvard University Press 1979 2 v V 1 p 322 Outra traduccedilatildeo para o inglecircs pode ser

encontrada em SUETONIUS Lives of the Caesars Oxford Oxford University Press 2000 p 109 453 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 21-25 454 ldquoConcordiam proprie esse dicimus similitudinem eque proportionis novi ac veteris testamenti eque dico

quo ad numerum non quo ad dignitatemrdquo

135

o que veio antes e o que vem depois Ele costumava usar tambeacutem duas imagens biacuteblicas para

explicar sua ferramenta metodoloacutegica os dois querubins que estavam sobre a tampa da arca

(Ecircxodo 2520)455 e as duas rodas da visatildeo de Ezequiel (Ezequiel 116)456 No primeiro caso

duas figuras angelicais estatildeo voltadas uma para a outra em cima da arca da alianccedila No

segundo caso duas rodas giram uma dentro da outra embaixo do trono-carruagem de Javeacute

A primeira imagem reforccedila o senso de paralelismo entre os dois testamentos (concordia

duorum testamentorum) jaacute que um se volta para o outro No caso da segunda imagem ela

desenvolve o sentido de correlaccedilatildeo entre os trecircs status (concordia trium statuum) ao apontar

para eventos que se desenvolvem dinamicamente na histoacuteria

Tanto no caso dos dois testamentos quanto no dos trecircs estados o meacutetodo da

concordia consiste entatildeo em encontrar posiccedilotildees semelhantes de pessoas e eventos dentro

de tempos (tempora ou status) diferentes e apontar em que sentido eles satildeo similares (em

caracteriacutesticas ou atos)457 Um exemplo poderia ser dado pelo caso do patriarca Jacoacute que

ocupa a mesma posiccedilatildeo dentro do primeiro status que o homem Jesus ocupa no segundo

Ocupando posiccedilotildees semelhantes no interior de seus respectivos status eles manifestam atos

espirituais parecidos e exercem papeis religiosos paralelos Entretanto natildeo satildeo iguais em

dignidade Eacute isso que significa ser ldquosimilar quanto a nuacutemerordquo e natildeo quanto a ldquodignidaderdquo

As pessoas ocupam as mesmas posiccedilotildees em suas proacuteprias geraccedilotildees e tecircm papel semelhante

mas natildeo possuem o mesmo status espiritual O homem Jesus foi maior em dignidade que

Jacoacute o que significa dizer que ele possuiacutea uma compreensatildeo espiritual maior e realizou obras

maiores458

Joaquim comeccedila o exerciacutecio de sua concordia por meio da distinccedilatildeo entre histoacuteria

geral e histoacuteria especial Segundo o abade

Toda a floresta de histoacuterias que ofusca o Antigo Testamento eacute dividida em

cinco partes das quais uma eacute geral e quatro satildeo especiais Porque haacute uma

roda que tem quatro faces Existe uma histoacuteria geral agrave qual quatro histoacuterias

especiais satildeo unidas A histoacuteria geral eacute aquela que comeccedila no iniacutecio do

mundo e caminha direto ateacute o livro de Esdras [] Existem quatro histoacuterias

especiais pequenas das quais a primeira eacute Joacute a segunda eacute Tobias a

terceira eacute Judite e a quarta eacute Ester Aquela eacute a roda Estas satildeo as faces

(Enchridion super Apocalypsim 2r-3r)459

455 ldquoOs querubins estenderatildeo as asas por cima cobrindo com elas o propiciatoacuterio estaratildeo eles de faces voltadas

uma para a outra olhando para o propiciatoacuteriordquo (Ecircxodo 2520) 456 ldquoO aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o berilo tinham as quatro a mesma aparecircncia

cujo aspecto e estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outrardquo (Ezequiel 116) 457 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip p 79 458 Idem 459 Traduccedilatildeo a partir da versatildeo italiana GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Traduzione e cura di

Andrea Tagliapietra Milano Feltrinelli 2008 p 133

136

O que ele chama de ldquohistoacuteria geralrdquo eacute uma grande narrativa presente no Antigo

Testamento que parte do livro de Gecircnesis e se estende ateacute a obra de Esdras Usando a

imagem das duas rodas concecircntricas de Ezequiel o abade denomina esta ldquohistoacuteria geralrdquo de

ldquoroda exteriorrdquo agrave qual estatildeo vinculadas quatro pequenas histoacuterias (denominadas ldquohistoacuterias

especiais) presentes em obras menores Joacute Tobias Judite e Ester As histoacuterias especiais se

vinculam agrave roda exterior como as ldquoluzesrdquo nas rodas da visatildeo ezequieacutelica460

A operaccedilatildeo da concordia encontrou esta mesma estrutura no Novo Testamento

Tambeacutem nele haacute uma histoacuteria geral e quatro histoacuterias especiais Joaquim identificou a

histoacuteria geral com o Apocalipse de Joatildeo enquanto as quatro especiais correspondem aos

quatro evangelhos canocircnicos Mateus Marcos Lucas e Joatildeo E se o Antigo Testamento

forma a roda exterior o Apocalipse corresponde agrave roda interior da visatildeo do profeta do exiacutelio

babilocircnico Como satildeo duas rodas concecircntricas ambas giram de forma paralela de tal

maneira que uma pessoa dotada da ldquointeligecircncia espiritualrdquo poderia perceber os eventos que

se repetem Voltando a uma imagem anterior a concordia eacute a estrada que liga as duas rodas

permitindo aos viajantes visualizar por meio de suas montanhas o que jaacute aconteceu e o que

estaacute por acontecer461

Sendo assim como insistiu o professor Emmett Randolph Daniel o que acontece na

concordia natildeo pode ser confundido nem com alegoria nem com tipologia Seu trabalho

precede as outras duas atividades hermenecircuticas do abade462 Este sentido ldquosegundo a letrardquo

era a percepccedilatildeo de narrativas biacuteblicas como uma descriccedilatildeo natildeo apenas do que teria

acontecido mas tambeacutem do que ainda aconteceria Por meio destas narrativas seria possiacutevel

discernir o passado o presente e futuro463 Natildeo haacute na concordia uma relaccedilatildeo horizontal entre

anuacutencio e realizaccedilatildeo como na tipologia ou vertical entre letra e espiacuterito como na alegoria464

O que haacute eacute um paralelismo histoacuterico dinacircmico e progressivo

460 Na visatildeo de Ezequiel aparentemente haviam luzes que brilhavam tanto na roda exterior quanto na interior

enquanto o trono de Deus se movia (Ezequiel 11-25) 461 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 78 462 Idem p 79 tambeacutem MC GINN Bernard Visions of the Endhellip op cit p 126-141 WEST ZIMDARS-

SARTZ op cit p 42 463 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard

K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-

88 79 464 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 106 DE LUBAC Henri La posteridad

espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 44

137

64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas

Durante um dos mais antigos exerciacutecios exegeacuteticos conhecidos de Joaquim presente

no primeiro sermatildeo do Praephatio super Apocalypsim datado para o iniacutecio da deacutecada de

1180 no periacuteodo em que ainda era abade de Corazzo apoacutes usar a concordia para apontar

paralelos entre as doze tribos de Israel e a histoacuteria da igreja ele afirma ldquoMas deixemos estas

coisas no invoacutelucro externo da noz para mostrar agora algo de sua casca de maneira que

num terceiro momento possamos extrair um viscoso alimentordquo465

Mais agrave frente apoacutes algumas frases ele retoma a imagem da noz ldquoEis que jaacute eacute viziacutevel

o nuacutecleo que estava encoberto pela casca aparece a verdadeira vida que os panos envolviam

no sepulcrordquo466 Desta vez ele faz alusatildeo ao sepultamento de Jesus e aos panos que

envolviam seu corpo467

As imagens das camadas da noz e do corpo enrolado pelos panos refletem o convite

do abade para ir aleacutem da concordia dos textos biacuteblicos coisa que ele colocou em praacutetica em

suas vaacuterias obras de exposiccedilatildeo biacuteblica (entre elas o Expositio in Apocalypsim) movendo-se

de uma compreensatildeo segundo a letra para justificar uma compreensatildeo segundo o espiacuterito (da

concordia para os princiacutepios espirituais)468

Neste processo contiacutenuo de aprofundamento na direccedilatildeo do ldquoviscoso alimento da

nozrdquo ele toma a alegoria469 e a subdivide em cinco princiacutepios alegoacutericos Por que cinco A

Trindade tambeacutem usada para justificar as trecircs partes de sua metodologia (concordia

alegoria e tipologia) agora eacute usada como base para as cinco subdivisotildees alegoacutericas

465 O sermatildeo eacute o Apocalipsis liber ultimus citado a partir de ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao

Apocalipse op cit p 460 466 Idem p 461 467 ldquoTomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lenccediloacuteis com os aromas como eacute de uso entre os judeus

na preparaccedilatildeo para o sepulcrordquo (Joatildeo 1940) 468 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 46 Estes princiacutepios espirituais satildeo derivados da operaccedilatildeo

alegoacuterica e tipoloacutegica Uma descriccedilatildeo das duas tradiccedilotildees pode ser encontrada em YOUNG Frances

Alexandrian and Antiochene Exegesis In HAUSER Alan J WATSON Duane F (eds) A history of biblical

interpretation The Ancient Period Grande Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2003 2 v V

1 p 334-354 469 Segundo Stefaniw este tipo de interpretaccedilatildeo concebia o texto como um meio de revelaccedilatildeo de misteacuterios

escondidos ldquopor traacutes das letrasrdquo Cf STEFANIW Blossom Reading Revelation Allegorical Exegesis in Late

Antique Alexandria Revue de lrsquohistoire des religions Paris n 2 p 231-251 2007 p 231-232 Ulleacuten distingue

alegoria como gecircnero literaacuterio como utilizado por Dante na obra ldquoDivina Comeacutediardquo de alegoria como forma

de interpretaccedilatildeo Aparentemente o primeiro fenocircmeno nasceu em consequecircncia do segundo que por sua vez

eacute tatildeo antigo quanto as primeiras interpretaccedilotildees dos eacutepicos de Homero Sua definiccedilatildeo de alegoria como meacutetodo

hermenecircutico eacute ldquouma forma sistemaacutetica de compreender o texto que se baseia em uma norma

intersubjetivamente determinadardquo Cf ULLEacuteN Magnus Dante in Paradise The End of Allegorical

Interpretation New Literary History Baltimore v 32 n 1 p 177-199 2001 p 183

138

Sua confissatildeo trinitaacuteria foi resumida por West e Zimdars-Swartz como ldquoDeus eacute um

Deus sem confusatildeo de pessoas e trecircs pessoas sem divisatildeo de substacircnciardquo470 Ele faz uma

distinccedilatildeo das trecircs Pessoas divinas baseadas em sua origem O Pai natildeo eacute gerado (ingenitus)

o Filho eacute gerado pelo Pai (genitus) e o Espiacuterito Santo procede de ambos (ab utroque

procedens) Associado com a origem das Pessoas da Trindade estaacute tambeacutem o relacionamento

entre elas expresso na forma como satildeo nomeados O Pai eacute assim chamado porque tem um

Filho igualmente o Filho porque tem um Pai jaacute o Espiacuterito eacute assim nominado porque

procede de ambos O abade entatildeo enumera as cinco possiacuteveis relaccedilotildees entre as Pessoas

divinas ligando cada uma com um tipo diferente de alegoria

ndash alegoria histoacuterica a relaccedilatildeo do Pai com o Filho afinal ele eacute Pai de um Filho

ndash alegoria moral a relaccedilatildeo do Filho com o Pai afinal ele eacute Filho de um Pai

ndash alegoria tropoloacutegica a relaccedilatildeo entre o Pai e o Filho com o Espiacuterito afinal este vem

de ambos

ndash alegoria contemplativa a relaccedilatildeo do Filho e do Espiacuterito com o Pai afinal ambos

satildeo enviados pela primeira Pessoa divina

ndash alegoria anagoacutegica a relaccedilatildeo das trecircs Pessoas com cada criatura afinal as trecircs satildeo

Deus e Criador471

Como jaacute indicamos Joaquim soacute denominava de ldquosentidosrdquo a concordia a alegoria e

a tipologia As subdivisotildees (tanto da alegoria quanto da tipologia) por sua vez ele as

denomina species ou intelligentia Assim a primeira species de alegoria eacute a historica

intelligentia ou compreensatildeo histoacuterica Apesar do nome ela natildeo corresponde agrave letra do

texto mas indica o significado de um evento ou figura histoacuterica como exemplo de uma

condiccedilatildeo espiritual Joaquim ilustrou esta species com as duas esposas de Abraatildeo A alegoria

histoacuterica veria em Sara a representaccedilatildeo de uma mulher livre enquanto Hagar representaria

uma escrava Este sentido alegoacuterico teria um caraacuteter mais cognoscitivo apesar de

implicitamente convidar agrave associaccedilatildeo com a esposa livre em vez da escrava

A alegoria moral (moralis intelligentia) indica que haacute uma semelhanccedila entre coisas

visiacuteveis e coisas invisiacuteveis que se exprime na forma de uma qualidade eacutetica Sara neste niacutevel

representaria o prazer espiritual enquanto Hagar a escravidatildeo da carne Esta secunda

species alegoacuterica quer fornecer ensinamentos e demandas de ordem moral

470 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 53 Para uma anaacutelise da doutrina trinitaacuteria em Joaquim cf

ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 471 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 44 tambeacutem TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo

Gioachimita op cit p 27-28

139

A alegoria tropoloacutegica (tropologica intelligentia) tem relaccedilatildeo com doutrina Neste

niacutevel o inteacuterprete busca reforccedilos e componentes para a doutrina cristatilde Nele Hagar significa

a letra enquanto Sara significa a compreensatildeo espiritual da Palavra de Deus

A alegoria contemplativa (contemplativa intelligentia) centraliza-se na vida

contemplativa e nos dons do Espiacuterito Santo Por exemplo Hagar significa a vida ativa

enquanto Sara significa a vida contemplativa

A alegoria anagoacutegica (anagogica intelligentia) a quinta species convida para a

prospectiva escatoloacutegica tradicional com o olhar para o mundo transcendental para aleacutem da

histoacuteria e por meio da oposiccedilatildeo ceacuteu-terra Neste caso Hagar significa a vida presente

enquanto Sara indica a vida futura

Apesar de apresentar o meacutetodo472 nas suas maiores obras de exposiccedilatildeo biacuteblica

(Expositio in Apocalypsim Psalterium decem Chordarum e Tractatus super quatuor

Evangelion) o abade nem sempre faz uso dos cinco princiacutepios alegoacutericos ou mesmo indica

qual princiacutepio estaacute usando em cada caso Eacute comum que ele apenas indique que um

personagem ou evento ldquosignificardquo ou ldquodesignardquo outra coisa

65 Sensus typicus histoacuteria e profecia

Durante os trecircs meses passados em Corinto entre os anos 55 e 56 ao escrever sua

epiacutestola para os disciacutepulos de Roma o apoacutestolo Paulo tratou da relaccedilatildeo entre Adatildeo e Jesus

(Romanos 514) descrevendo o primeiro como uma ldquofigura do que haveria de virrdquo (ldquoτύπος

τοῦ μέλλοντοςrdquo) Os termos usados foram o substantivo ldquoτύποςrdquo e o verbo ldquomέλλwrdquo O

primeiro significa ldquosinal marca vestiacutegio imagem figura tipo modelo exemplordquo473 A

segunda palavra pode ser traduzida como ldquodever estar destinado ardquo que daacute origem agrave forma

adjetivada do verbo (ldquoo` mέλλwnrdquo) o melhor o aguardado o futuro474

Em termos semacircnticos um ldquotipordquo era a marca impressa de um golpe em entalhe ou

em relevo de tal forma que um aponta para a outro Mas o uso que Paulo fez do termo jaacute lhe

deu um sentido hermenecircutico Ele o usou para descrever uma releitura das Escrituras

judaicas agrave luz da sua feacute em Jesus como o Messias

472 Em especial na segunda parte do Liber de Concordia 473 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 464 474 Idem p 300

140

Posteriormente autores cristatildeos do seacuteculo II como Tertuliano de Cartago

latinizaram o termo (typos) mas tanto em autores gregos ou latinos (Melito de Sardes

Justino Irineu Clemente de Alexandria Oriacutegenes Cipriano de Cartago Tertuliano) a

praacutetica de Paulo continuou a ser exercida geralmente com o propoacutesito de encontrar nas

Escrituras judaicas as promessas que se cumpriram na vida de Jesus ou como uma estrateacutegia

para vincular estas mesmas Escrituras com o Novo Testamento cristatildeo em formaccedilatildeo475 A

tipologia se constituiu entatildeo como uma ferramenta usada pelos exegetas cristatildeos a partir do

segundo seacuteculo para ver unidade entre as Escrituras judaicas e cristatildes como uma linha

horizontal de continuidade e progresso histoacutericos que culmina em Jesus e no

Cristianismo476

Eacute entatildeo este antigo procedimento que Joaquim usaraacute na sua proacutexima fase exegeacutetica

As cinco espeacutecies de alegoria formam apenas um momento de sua interpretaccedilatildeo e

normalmente natildeo constituem o final do processo477 No manejo da tipologia natildeo se trata

mais de opor verticalmente letra e espiacuterito como na alegoria mas de relacionar uma letra

com outra letra um elemento com outro elemento segundo uma dinacircmica horizontal de

promessa e cumprimento478

De qualquer forma apesar da metodologia tipoloacutegica jaacute ser conhecida na tradiccedilatildeo

exegeacutetica cristatilde o uso que dela faz Joaquim tambeacutem natildeo deixa de ser singular A forma

como o abade relacionava histoacuteria e Escritura o levou a natildeo ver mais distinccedilotildees entre ambas

Assim enquanto a tipologia claacutessica interrompia o fluxo tipoloacutegico nos eventos do Novo

Testamento Joaquim ampliou o olhar do exegeta encontrando antiacutetipos em toda a histoacuteria

da Igreja479

475 Conferir esta anaacutelise em ETCHEVERRIacuteA Ramoacuten Trevijano La Biblia em el cristianismo antiguo

Prenicenos Gnoacutesticos Apoacutecrifos Estella Editorial Verbo Divino 2001 p 92-108 476 Natildeo se sustenta mais um reducionismo que vincula a tipologia a uma ldquotradiccedilatildeo antioquianardquo e a alegoria a

uma ldquotradiccedilatildeo alexandrinardquo Tanto tipologia quanto alegoria satildeo efetivamente ferramentas hermenecircuticas que

tecircm como meta ir aleacutem da ldquoletrardquo ou do sentido mais imediato das palavras Etcheverriacutea chega a classificar a

tipologia como um tipo de alegoria Ambas satildeo ldquoformas de representaccedilatildeordquo como tambeacutem a metaacutefora a

metoniacutemia e a sineacutedoque Cf ETCHEVERRIacuteA op cit p 85 Aleacutem do mais mesmo em um exegeta

ldquorepresentativordquo da denominada escola antioquiana como Teodoro de Mopsueacutestia (350-428) eacute possiacutevel

encontrar o uso tanto da alegoria quanto da tipologia Cf WILES M F Theodore of Mopsuestia as

representative of the antiochene school In ACKROYD P R EVANS G F (eds) The Cambridge history

of the Bible from the beginnings to Jerome Cambridge Cambridge University Press 1970 3 v V 1 p 489-

509 477 SANTI op cit p 263 478 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 28 479 A estrutura ldquotipordquo e ldquoantiacutetipordquo natildeo daacute conta da praacutetica joaquimita Tipo seria a promessa antiacutetipo o

cumprimento Em Joaquim o fenocircmeno poderia ser descrito como ldquotipo-tipo-antiacutetipordquo

141

A tipologia em Joaquim fornece significado a eventos e personagens histoacutericos no

formato de anuacutencio e realizaccedilatildeo mas hierarquiza-os no interior dos trecircs status do mundo

Adatildeo personagem do primeiro status corresponderia a Cristo um tipo mais elevado do

segundo Ambos convergem entretanto num antiacutetipo ainda mais superior que se

concretizaraacute num personagem futuro do terceiro status

O abade de Fiore denominou a tipologia de ldquosensus typicusrdquo ou inteligecircncia tiacutepica

e a subdividiu em sete species baseadas numa estrutura derivada igualmente de sua

especulaccedilatildeo trinitaacuteria correspondendo agraves sete possiacuteveis formas de uma pessoa professar a

Trindade 1) sob o sinal do Pai 2) sob o sinal do Filho 3) sob o sinal do Espiacuterito 4) sob o

signo do Pai e do Filho 5) sob o signo do Pai e do Espiacuterito 6) sob o signo do Filho e do

Espiacuterito 7) sob o signo da Trindade inteira480

Desta vez o abade natildeo diferencia cada tipo dando um nome ou mesmo definindo

mas apenas fornecendo um exemplo Segundo a primeira compreensatildeo tipoloacutegica que eacute

apropriada ao Pai Abraatildeo representa os sacerdotes dos judeus Hagar o povo israelita Sara

a Tribo de Levi que foi chamada para a obra de Deus No segundo tipo de tipologia que eacute

apropriada ao Filho Abraatildeo representa os bispos Hagar a igreja dos leigos Sara a igreja

dos cleacuterigos Segundo o terceiro tipo de tipologia que eacute apropriada ao Espiacuterito Abraatildeo

representa os sacerdotes que servem monasteacuterios Hagar representa a Igreja do povo leigo

que vive sob regras monaacutesticas (conversi) e Sara representa a igreja dos monges Segundo

a seacutetima compreensatildeo tipoloacutegica que pertence agraves trecircs pessoas da Trindade Hagar representa

as igrejas da primeira e segunda eacutepoca (status) que vive a vida ativa Sara representa a igreja

da contemplaccedilatildeo paz e descanso da seacutetima era (aetas) Estes foram os quatro usos

tipoloacutegicos mais usados por Joaquim481

A quarta quinta e sexta species de tipologia natildeo satildeo normalmente usadas Mesmo

assim ele faz uma breve apresentaccedilatildeo delas (Liber de Concordia 61v-73v) A quarta

tipologia pertence ao Pai e ao Filho Nela Abraatildeo significa os bispos dos judeus e gregos

Hagar a sinagoga Sara a igreja dos Gregos A quinta tipologia pertence ao Pai e ao Espiacuterito

e nela Abraatildeo significa os sacerdotes dos judeus e os bispos do povo latino Hagar a

sinagoga (como na tipologia anterior) e Sara a igreja do povo Latino A sexta compreensatildeo

tipoloacutegica pertence ao Filho e ao Espiacuterito Santo Nela Abraatildeo significa os sacerdotes da

480 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 29 481 Em termos gerais a primeira species tipoloacutegica trata da primeira eacutepoca a segunda da segunda eacutepoca a

terceira da terceira eacutepoca A seacutetima tenta englobar a histoacuteria como um todo

142

segunda e terceira eacutepoca Hagar a igreja dos trabalhadores (vida ativa) e Sara a igreja

espiritual da contemplaccedilatildeo482

66 O dom da exegese

O ex-eremita agora no interior de um cenoacutebio em Fiore parece ver no Novo

Testamento natildeo mais do que uma segunda letra em concordacircncia com a primeira Daiacute resulta

a conclusatildeo de que ldquonatildeo se pode considerar o segundo testamento como mais definitivo que

o primeirordquo483 Ele natildeo chega a abolir o Novo Testamento mas entende que ele seraacute

transformado por meio de uma nova interpretaccedilatildeo espiritual Entatildeo se abriratildeo as ldquoportasrdquo

dos dois Testamentos e pessoas que antes natildeo conseguiam ler mais do que a letra entatildeo

conseguiratildeo penetrar nos sentidos espirituais da Escritura

Apesar de ser o porta-voz desta ldquodescoberta espiritualrdquo Joaquim se recusou a assumir

o tiacutetulo de profeta que outros lhe atribuiacuteam Mas ele natildeo esconde que teve suas

ldquoiluminaccedilotildeesrdquo Ele parece falar de trecircs destas experiecircncias que quase o aproximam do termo

ldquovisionaacuteriordquo Em uma delas ele recebeu a concordia dos Testamentos em outra

compreendeu a relaccedilatildeo entre Trindade Escritura e histoacuteria por fim uma terceira abriu seus

olhos para o papel do Apocalipse na sua estrutura hermenecircutica484 Aleacutem destas experiecircncias

narradas em suas obras o abade estava persuadido de ter recebido um ldquoespiacuterito de

inteligecircnciardquo para interpretar as Escrituras485 a fim de alertar e despertar os ldquosonolentos

espiacuteritos de seu tempordquo a respeito dos ldquoextrema temporardquo486 Aos olhos de Joaquim sua

capacidade exegeacutetica era um dom de Deus Natildeo era apenas fruto de uma investigaccedilatildeo

humana Era como a estrela brilhante que guiou os magos ateacute Jesus

O abade via brilhar agrave sua frente um novo tempo (ldquoIta felices homines illius

statusrdquo)487 e o espera para breve Ele o descreve sem cessar em suas obras por meio das

482 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 45-46 483 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 46 484 Conferir uma descriccedilatildeo das trecircs visotildees em DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de

Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xiii-xviii 485 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London

University of Notre Dame Press 1993 p 16 486 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 48 487 Expressatildeo encontrada em Expositio in Apocalypsim 175v

143

duas combinaccedilotildees da concordia das cinco inteligecircncias espirituais (alegoria) e dos sete tipos

de inteligecircncia tiacutepica (tipologia)488

Considerado profeta chamado de visionaacuterio descrito como miacutestico Joaquim natildeo

queria ser como resumiu de Lubac outra coisa a natildeo ser um exegeta489

67 Resumo

Este capiacutetulo procurou apresentar as formas e procedimentos de leitura e

interpretaccedilatildeo de Joaquim de Fiore Comeccedilando pela concordia passando pela alegoria e

terminando na tipologia o abade estruturou um meacutetodo que foi aplicado por ele tanto em

textos biacuteblicos quanto em eventos e fenocircmenos histoacutericos Justamente essa relaccedilatildeo iacutentima

entre Biacuteblia e histoacuteria parece ser a raiz loacutegica do seu sistema milenarista490 A praacutetica

exegeacutetica do abade em vaacuterios momentos se constituiu num exerciacutecio de reflexatildeo sobre o

sentido da histoacuteria

488 O sistema metoloacutegico de trecircs partes formado pela concoacutercia e por doze sentidos ldquoespirituaisrdquo (cinco

alegoacutericos e sete tipoloacutegicos) eacute o mais recorrente nas exposiccedilotildees de Joaquim mas natildeo eacute o uacutenico Ele usa no

Psalterium um sistema compreendido por quinze sentidos baseado no nuacutemero total dos salmos Estes sistemas

indicam o esforccedilo do abade de Fiore para multiplicar e entrelaccedilar as imagens biacuteblicas Cf SANTI op cit p

264 O medievalista Falbel denomina o meacutetodo do abade de ldquoalegoacuterico-trinitaacuteriordquo Cf FALBEL Nachman

Satildeo Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202) Revista USP Satildeo Paulo n 30 p 273-276

1996 p 273 489 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 53 Talvez seja possiacutevel falar

numa exegese profeacutetica (projetada para o futuro) ou uma exegese visionaacuteria (materializada em imagens) ou

mesmo uma exegese miacutestica (com foco na contemplaccedilatildeo) 490 Idem p 43

VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN

APOCALYPSIM

Este capiacutetulo se deteraacute principalmente no Expositio in Apocalypsim a maior e mais

bem estruturada obra de Joaquim de Fiore491 Eacute um texto que acompanhou o abade por quase

vinte anos concluiacutedo apenas dois anos antes de sua morte Em um trabalho desta natureza

escrito ao sabor dos anos eacute possiacutevel encontrar alteraccedilatildeo nas proacuteprias pespectivas do abade492

De qualquer forma o trecho que nos interessa especialmente estaacute ao final na seacutetima parte

quando apoacutes deixar Corazzo e jaacute no isolamento das montanhas de Fiore Joaquim se deteacutem

a construir sua exegese de Apocalipse 201-10 a periacutecope joanina que descreveu o reino

milenarista dos martirizados com Cristo Para analisaacute-la entretanto precisamos antes situaacute-

la no interior do Expositio por meio de alguns apontamentos sobre a estrutura geral da obra

e de uma siacutentese de conteuacutedo

71 Estrutura literaacuteria do Expositio

O Expositio in Apocalypsim na sua versatildeo presente no incunaacutebalo veneziano eacute

precedido por trecircs documentos distintos O primeiro eacute a Carta Testamentaacuteria (1r) na qual o

abade calabrecircs relata suas motivaccedilotildees ao escrever suas grandes obras e manifesta o desejo

de apresentaacute-las agrave cuacuteria papal Em seguida haacute uma carta de Clemente III (papa de 1187-

1191) para Joaquim (1v) datada para o dia 8 de junho de 1188 solicitando que o abade

encaminhe suas obras para a Seacute romana493 Apoacutes as duas cartas comeccedila o Liber

Introductorius in Apocalypsim (1v-25v) um longo texto que teria a funccedilatildeo de apresentar o

Expositio suas partes baacutesicas uma siacutentese das principais ideias do abade especialmente os

trecircs status do mundo a concordia dos dois Testamentos e as sete fases (aetas) da histoacuteria

491 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 79 492 A visatildeo de Joaquim quanto ao Impeacuterio Germacircnico por exemplo variou de uma postura criacutetica no iniacutecio da

obra para uma postura neutra no final Cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di

Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p 325-327 493 Uma ediccedilatildeo latina da carta pode ser encontrada em ELLIOTT E B Horae Apocalypticae a commentary

on the Apocalypse critical and historical Londres Seeley 1862 4 v V 4 p 386

145

da Igreja Finalmente no foacutelio 26v tem iniacutecio o Expositio por meio da expressatildeo ldquoIncipit

prima septem partius in expositione Apocalipsisrdquo494

A forma como o comentaacuterio de Joaquim foi construiacutedo permite visualizar as

seguintes seccedilotildees495

26v Parte I Sete Igrejas

51v Eacutefeso

67r Esmirna

69r Peacutergamo

73v Tiatira

78r Sardes

82v Filadeacutelfia

92v Laodiceacuteia

99r Parte II Sete selos

113v Primeiro Selo

114r Segundo Selo

114v Terceiro Selo

115v Quarto Selo

116v Quinto Selo

117v Sexto Selo

123v Seacutetimo Selo

123v Parte III Sete Trombetas

127v Primeiro Anjo

128v Segundo Anjo

128v Terceiro Anjo

129v Quarto Anjo

130v Quinto Anjo

133v Sexto Anjo

152r Seacutetimo Anjo

153r Parte IV A Mulher vestida de Sol e o Dragatildeo

154r Primeira distinccedilatildeo

158r Segunda distinccedilatildeo

160v Terceira distinccedilatildeo

161v Quarta distinccedilatildeo

172v Quinta distinccedilatildeo

173r Sexta distinccedilatildeo

174v Seacutetima distinccedilatildeo

177r Parte V Sete Taccedilas

187r Primeira Taccedila

187r Segunda Taccedila

494 Por esta expressatildeo eacute possiacutevel perceber uma ambiguidade estrutural na obra Joaquim anunciou sete seccedilotildees

mas terminou a obra com oito 495 Adaptamos aqui a estrutura sugerida por WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of

Fiore a Study in Spiritual Perception and History Bloomington Indiana University Press 1983 p 74-75

146

188v Terceira Taccedila

189r Quarta Taccedila

189v Quinta Taccedila

190r Sexta Taccedila

191r Seacutetima Taccedila

191v Parte VI A queda da Babilocircnia e a derrota das bestas

191v Primeira distinccedilatildeo

202v Segunda distinccedilatildeo

206r Terceira distinccedilatildeo

209v Parte VII Descanso sabaacutetico

Pars prima

Pars secunda

Pars tertia

Pars quarta

215r Parte VIII Jerusaleacutem Celestial

72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim496

Joaquim se propotildee a escrever um comentaacuterio exegeacutetico do Apocalipse de Joatildeo tarefa

que o coloca na tradiccedilatildeo de outros exegetas medievais da obra joanina como Beda o

Veneraacutevel ou Beato de Lieacutebana497 Mas o resultado entretanto vai aleacutem de discussotildees

teoloacutegicas para se tornar o que Potestagrave chamou de ldquohistoacuteria teoloacutegica do Cristianismordquo498

Esta histoacuteria aparece no Expositio de duas formas linear e ciacuteclica Tanto na narrativa linear

quanto na ciacuteclica haacute uma preocupaccedilatildeo contiacutenua do abade em vincular cada texto do

Apocalipse a eventos histoacutericos da forma mais estreita possiacutevel499

A revelaccedilatildeo linear aparece quando o abade estrutura o uacuteltimo livro do Novo

Testamento em oito partes sendo que as sete primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da

histoacuteria da Igreja Das sete seis relatam algum tipo de confronto da Igreja As quatro

primeiras fases apresentam protagonistas diferentes (apoacutestolos maacutertires doutores monges

496 Para esta siacutentese cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297-325 ELLIOTT E

B Horae Apocalypticae op cit p 384-420 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit

p 79-84 497 Conferir a discussatildeo anterior sobre o gecircnero literaacuterio do Expositio na qual indicamos autores anteriores agrave

Joaquim que tambeacutem escreveram exposiccedilotildees exegeacuteticas do Apocalipse 498 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297 MCGinn acompanha Potestagrave nesta

avaliaccedilatildeo e toma Joaquim como criador da mais imponente teologia da histoacuteria desde De civitate Dei de

Agostinho Cf MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero

occidentale Gecircnova Casa Editrice Marietti 1990 p 172 499 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 298

147

e virgens) Na quinta e na sexta eacute a Igreja em geral que enfrenta a Babilocircnia e o Anticristo

A seacutetima seria de descanso na forma de um sabbatum500 especial Finalmente viria o oitavo

periacuteodo que seria a consumaccedilatildeo final da histoacuteria e a eternidade transcendental501 Esta seria

a relaccedilatildeo esquemaacutetica entre a histoacuteria da Igreja e as partes do Apocalipse

- Primeira parte (Apocalipse 19-322) os apoacutestolos lutam contra os judeus

- Segundo parte (Apocalipse 41-81) os maacutertires lutam contra a Roma pagatilde

- Terceira parte (Apocalipse 82-1119) os doutores da Igreja lutam contra Aacuterio e os

governantes arianos

- Quarta parte (Apocalipse 121-1420) os monges e as virgens lutam contra os

sarracenos

- Quinta parte (Apocalipse 151-1617) a Igreja em geral luta contra a Babilocircnia

- Sexta parte (Apocalipse 1618-1921) a Igreja em geral luta contra o Anticristo

- Seacutetima parte (Apocalipse 201-10) o descanso sabaacutetico

- Oitava parte (Apocalipse 2011-2221) a Nova Jerusaleacutem

A histoacuteria da igreja aparece de forma ciacuteclica (recapitulatio) nas cinco primeiras

seccedilotildees do Apocalipse justamente aquelas em que Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura

seacutetupla Em cada uma delas ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma

histoacuteria que comeccedilaria na encarnaccedilatildeo de Cristo502 Aparentemente todas terminam no

descanso sabaacutetico um tempo de felicidade na terra Isso indica que a seacuterie de recapitulaccedilotildees

pode ter se restringido apenas agraves cinco primeiras partes do Expositio em funccedilatildeo da

perspectiva do abade de estar vivendo no tempo da sexta seccedilatildeo quando os eventos lhe satildeo

contemporacircneos ou estatildeo para acontecer em breve503

A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentaacuterios de Joaquim sobre

Apocalipse 11-322 (a seccedilatildeo das sete cartas para sete igrejas) Eacute a mais longa seccedilatildeo do

comentaacuterio Na estrutura geral eacute o primeiro tempo da Igreja a luta dos apoacutestolos contra a

sinagoga dos judeus Na histoacuteria da salvaccedilatildeo ela corresponde a sete geraccedilotildees com cada

500 Termo de origem hebraica (בת aparece na Vulgata como sabbatum (substantivo neutro de segunda (ש

declinaccedilatildeo) Seu significado eacute o seacutetimo dia da semana no calendaacuterio judaico ou o dia de descanso Cf LEWIS

Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p 1609 Ele retornaraacute de

forma recorrente no Expositio para descrever um periacuteodo de ldquodescansordquo para a Igreja de suas tribulaccedilotildees 501 COURT John M Approaching the Apocalypse a short history of Christian millenarianism New York I

B Tauris 2008 p 73 502 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 162 503 O abade entende o proacuteprio tempo como a hora da abertura do sexto selo e o iniacutecio do terceiro status Cf

MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 167

148

igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos A igreja de Eacutefeso apresenta a

ordem dos apoacutestolos em luta contra os inimigos judaizantes a de Esmirna descreve a ordem

dos maacutertires no confronto contra inimigos pagatildeos a de Peacutergamo simboliza a ordem dos

doutores e seus adversaacuterios arianos e sabelianos a de Tiatira aponta para a ordem dos virgens

em confronto contra os falsos contemplativos a de Sardes indica a ordem dos monges

cenobiacuteticos cujos inimigos eram monges hipoacutecritas a de Filadeacutelfia revela a ordem dos

eremitas e contemplativos numa luta contra falsos cristatildeos e falsos profetas a de Laodiceacuteia

por fim representa a ordem dos monges do terceiro status

Na seccedilatildeo das cartas o abade ainda apresenta o relacionamento entre Pedro e Joatildeo

questatildeo que ele retoma repetidas vezes no Expositio O primeiro eacute typos504 de Cristo e

representa a Ordem Ativa enquanto o segundo eacute typos do Espiacuterito Santo e representa a

Ordem Contemplativa Ao passo que Pedro deixou Jerusaleacutem para fundar a sede apostoacutelica

em Roma Joatildeo saiu da Judeacuteia e foi para a Aacutesia escrever o Apocalipse para as sete igrejas

Pedro morreu primeiro Joatildeo sobreviveu-lhe cerca de trecircs deacutecadas Isso indicaria que a Igreja

Contemplativa (de Joatildeo) vai ultrapassar historicamente a Igreja Ativa (de Pedro)

Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a seccedilatildeo dos selos

(Apocalipse 41-81) Na estrutura geral eacute o segundo tempo da Igreja quando os principais

personagens satildeo os maacutertires em luta contra os pagatildeos em um tempo que vai ateacute o momento

de paz da Igreja no tempo de Constantino e Silvestre Corresponde tambeacutem a sete tribulaccedilotildees

paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos Desta forma o abade desenvolveu um sistema

de duplo septenaacuterio um trata de eventos da histoacuteria de Israel e o outro aponta para a histoacuteria

da Igreja Durante todo o seu comentaacuterio os meacutetodos hermenecircuticos do abade permitem que

ele encontre vaacuterios significados para os mesmos personagens e eventos do Apocalipse

O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi imaginado por

Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho enquanto eacute perseguida pelos judeus

No Antigo Testamento significa o nascimento de Israel por meio do cativeiro egiacutepcio

A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo vermelho cujo

cavaleiro carrega uma espada mortal O cavalo simboliza a Roma pagatilde com seus sacerdotes

e exeacutercitos Na histoacuteria da Igreja este selo inaugura a perseguiccedilatildeo dos fieacuteis sob o antigo

Impeacuterio Romano Corresponde na histoacuteria dos judeus agrave conquista de Canaatilde que vai do

tempo dos juiacutezes ateacute o governo de Davi

504 Conferir a discussatildeo sobre tipologia no capiacutetulo anterior

149

O terceiro selo que descreve um homem com um par de balanccedilas eacute a heresia de

Aacuterio cujo clero aparece representado no cavaleiro que traz terror e escuridatildeo para a feacute cristatilde

O ser angelical que anuncia este selo representa a ordem de doutores que proclamou a

verdade e enfrentou os arianos Na histoacuteria do Antigo Testamento corresponde ao periacuteodo

de enfrentamento dos siacuterios

Na abertura do quarto selo um cavalo paacutelido aparece trazendo pragas e eacute seguido

pelo Hades Este representa a ameaccedila sarracena cujo cavaleiro eacute Maomeacute que persegue os

cristatildeos Durante este periacuteodo os monges e virgens tentaram sobreviver e manter a feacute cristatilde

Corresponde ao tempo da tribulaccedilatildeo de Israel sob os assiacuterios

Ao abrir o quinto selo o Apocalipse descreve um grupo de almas debaixo do altar

Nos quatro primeiros selos cristatildeos foram perseguidos e mortos na Judeacuteia Roma Greacutecia e

Araacutebia Esta quinta perseguiccedilatildeo vem da Mauritacircnia e Espanha onde sarracenos mataram

muitos cristatildeos Tambeacutem significa o sofrimento da Igreja romana em luta contra os

imperadores germacircnicos As roupas brancas significam que os maacutertires passaram do luto

para a alegria A expressatildeo ldquoateacute que seus irmatildeos sejam mortosrdquo indica para Joaquim que

ainda resta um conflito final que promoveraacute o martiacuterio de muitos cristatildeos

O sexto selo descreve cataclismos coacutesmicos Ele representa o dia do julgamento da

Babilocircnia cujo significado eacute ldquoquem quer que ataque a Igreja de Pedro moral ou

fisicamenterdquo505 especialmente os falsos cristatildeos ou falsos membros da Igreja romana O

abade espera perseguiccedilotildees para os fieacuteis com papel significativo na histoacuteria jaacute que por meio

delas a Igreja seraacute purificada de sua corrupccedilatildeo

Na abertura do seacutetimo selo um silecircncio se manifesta no ceacuteu Para Joaquim ele

representa o sabbatum de descanso no qual um silecircncio contemplativo seraacute trazido agrave

realidade Em comparaccedilatildeo na correspondente era do Antigo Testamento depois de Esdras

e Malaquias cessou a produccedilatildeo de Escritura Entatildeo sob o seacutetimo selo natildeo seraacute mais preciso

a pregaccedilatildeo

A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas do Apocalipse

(Apocalipse 82-1118) Na estrutura geral eacute o tempo terceiro quando a ordem dos doutores

digladia contra os hereges em particular os arianos Mas tambeacutem corresponde a sete fases

A trombeta de nuacutemero um eacute a fase dos Apoacutestolos principalmente Paulo pregando contra o

Judaiacutesmo e o legalismo O granizo misturado com fogo e sangue significa o espiacuterito de

505 ldquoQuicumque Petri ecclesiam moribus viribusque impugnantrdquo (117v) As traduccedilotildees do Expositio neste

capiacutetulo satildeo proacuteprias a natildeo ser que haja indicaccedilotildees em contraacuterio

150

escuridatildeo dos coraccedilotildees dos judeus Como resultado um terccedilo dos judeus convertidos

apostatou de volta para o Judaiacutesmo

A segunda trombeta significa os Maacutertires da era poacutes-apostoacutelica pregando contra a

heresia dos nicolaiacutetas Nicolau eacute a montanha que caiu no ldquomar dos gentiosrdquo Por causa dele

um terccedilo dos pagatildeos convertidos abandonou a feacute A terceira trombeta simboliza os doutores

do tempo de Constantino O meteoro que cai eacute Aacuterio cujo erro desabou sobre bispos e

sacerdotes e contaminou a aacutegua pura das escrituras A quarta trombeta tipifica os monges e

as virgens que como luminares celestiais caminhando em contemplaccedilatildeo iluminam o

mundo Seratildeo em larga medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos A quinta

trombeta descreve gafanhotos-escorpiotildees que representam os pathareni506 As arvores que

os gafanhotos destroem indicam a Igreja catoacutelica A couraccedila dos escorpiotildees aponta para o

coraccedilatildeo duro dos perfecti entre os pathareni Neste ponto de seu comentaacuterio o abade fala de

um homem que escapou de uma prisatildeo em Alexandria no ano anterior (1195) Joaquim o

encontrou em Messina e ouviu dele notiacutecias de uma alianccedila entre sarracenos e pathareni A

esta alianccedila outras naccedilotildees hostis se juntaratildeo como os turcos do Oriente os mouros e os

berberes do sul

Entre a sexta e a seacutetima trombeta o Apocalipse descreveu trecircs cenas distintas a

convocaccedilatildeo para que se coma um livro a descriccedilatildeo da medida do templo e a atuaccedilatildeo das

duas testemunhas martirizadas pela besta Na cena em que o livro eacute comido o abade

descreveu a ordem monaacutestica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne)

A cidade santa que aparece na mediccedilatildeo do templo significa a Igreja romana A Igreja grega

por ter se afastado da seacute apostoacutelica eacute a parte externa do templo que seraacute dada aos gentios

Aos olhos de Joaquim isso jaacute aconteceu em grande medida mas os gregos podem esperar

por novas desolaccedilotildees A rejeiccedilatildeo ao filioque era para o abade a maior prova de apostasia da

Igreja grega507 Sobre as duas testemunhas Joaquim as entende como Moiseacutes e Elias ou

duas ordens espirituais que viratildeo no poder destes antigos personagens biacuteblicos para pregar

contra o Anticristo Segundo o abade ldquoMoiseacutes foi um Levita e pastor do povo de Israel

506 Joaquim usa o termo pathareni para se referir ao movimento dissidente conhecido como ldquocatarismordquo Cf

POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 308 Especificamente sobre esta dissidecircncia

medieval cf AGUSTIacute David Los caacutetaros el desafio de los humildes Madrid Siacutelex Ediciones 2006 507 WHALEN Brett Edward Dominion of God Christendom and Apocalypse in the Middle Ages Cambridge

Harvard University Press 2009 p 111 O filioque era uma foacutermula latina de descriccedilatildeo do relacionamento entre

as pessoas da Trindade Ela afirma a dupla origem do Espiacuterito procedendo simultaneamente do Pai e do Filho

Sobre a importacircncia do filioque para o pensamento de Joaquim cf DANIEL Randolph E The double

procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiores Understanding of History Speculum Chicago v 55 n 3

p 469-483 1980

151

Elias foi um homem solitaacuterio que natildeo teve esposa ou filhos Logo um representa a ordem

dos cleacuterigos o outro a ordem dos mongesrdquo508 Finalmente surge a seacutetima trombeta Eacute tempo

do julgamento da besta e do falso profeta O Anticristo e os seus seguidores seratildeo

exterminados Comeccedilaraacute entatildeo a fase final da histoacuteria da Igreja ldquoo terceiro status do mundo

que seraacute um tempo de descanso e contemplaccedilatildeo Nele apoacutes o fim das pessoas corruptas da

terra reinaraacute o povo santo do Altiacutessimordquo509 Esta seccedilatildeo termina com uma longa descriccedilatildeo da

conversatildeo final dos gregos e judeus agrave Igreja latina

A quarta parte do Expositio (153r-174v) natildeo apresenta uma estrutura clara no

Apocalipse (Apocalipse 1119-1420) mas mesmo assim o abade optou pela divisatildeo em sete

distinccedilotildees (distinctiones) A seccedilatildeo comeccedila na abertura do santuaacuterio celestial mas tem como

foco a histoacuteria do Dragatildeo510 Eacute o quarto tempo da histoacuteria da Igreja no qual a ordem dos

monges e das virgens luta contra Maomeacute a quarta cabeccedila do Dragatildeo Igualmente

corresponde a sete fases

A primeira distinccedilatildeo apresenta o conflito entre a mulher vestida de sol e o Dragatildeo

Nesta primeira batalha os protagonistas foram Pedro e seus sucessores O inimigo por sua

vez agiu atraveacutes de Herodes e Nero A segunda distinccedilatildeo apresenta a guerra entre Miguel e

o Dragatildeo (Apocalipse 127-12) como siacutembolo da perseguiccedilatildeo pagatilde aos cristatildeos ateacute o tempo

de Constantino A terceira distinccedilatildeo descreve a fuga da mulher para o deserto que representa

a perseguiccedilatildeo agrave igreja atraveacutes das monarquias arianas Ela fugiraacute para uma vida de retiro e

contemplaccedilatildeo durante 42 meses ou 1260 dias

A quarta distinccedilatildeo comeccedila em Apocalipse 1217 com o levantamento das duas

bestas e vai ateacute 145 (o ajuntamento das 144000 testemunhas do Cordeiro) A besta

representa a perseguiccedilatildeo sarracena aos eremitas e virgens mas tambeacutem indica por meio de

suas cabeccedilas uma seacuterie de adversaacuterios histoacutericos da igreja As quatro primeiras cabeccedilas

respectivamente eram os judeus pagatildeos romanos arianos e sarracenos Esta cabeccedila

sarracena parecia ter morrido em funccedilatildeo da tomada de Jerusaleacutem da conquista normanda

na Siciacutelia e da expulsatildeo dos mouros na Espanha Para Joaquim entretanto ela voltou a

viver tatildeo terriacutevel quanto antes e a tomada de Jerusaleacutem seria uma demonstraccedilatildeo disso Eacute a

508 ldquoMoses fuit Levita et pastor Populi Israel Helyas vir solitarius no habens filios aut uxorem Ille ergo

significat ordinem clericorum iste ordinem monachorumrdquo (148v) Muito se especularaacute posteriormente na

recepccedilatildeo do pensamento joaquimita sobre a relaccedilatildeo entre as duas testemunhas de Apocalipse e as ordens de

Francisco e Domingos Cf REEVES Marjorie The influence of prophecy in the Later Middle Ages a study

in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 72-73 509 ldquoEt ad tertium statum mundi qui erit in sabbatum et quietem in quo exterminatis prius corruptoribus

terrae regnaturus est populus sanetorum Altissimirdquo (152v) 510 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 314

152

cabeccedila que parecia ter morrido mas reviveu para impressionar o mundo todo Joaquim

interpretou a segunda besta de Apocalipse como um falso-profeta que se levantaraacute do meio

da igreja conhecendo e falando como um cristatildeo Este faraacute alianccedila com a ldquocabeccedila sarracenardquo

da primeira besta Satildeo os pathareni ldquoa escoacuteria dos heregesrdquo (haereticorum fex) Os 144000

que aparecem em Apocalipse 14 satildeo para o abade os monges e virgens da igreja que se

opotildee agravequeles que tecircm a marca da besta

A quinta distinccedilatildeo cobre apenas dois versiacuteculos do Apocalipse (Apocalipse 146-7)

Eacute o anuacutencio do Evangelho Eterno e do juiacutezo511 Tambeacutem eacute o tempo da desolaccedilatildeo da

Babilocircnia A sexta distinccedilatildeo (Apocalipse 148-12) descreve o anuacutencio dos dois uacuteltimos anjos

no ceacuteu Eacute o tempo do advento da Besta e do falso-profeta No momento de descrever a seacutetima

distinccedilatildeo (Apocalipse 1413-20) a cena do Filho do Homem e a ceifa Joaquim anuncia a

idade sabaacutetica final quando os fieacuteis viveratildeo na terra com aqueles que sobreviverem agrave queda

do Anticristo

Potestagrave alerta que o Expositio eacute um comentaacuterio biacuteblico e natildeo um tratado escolaacutestico

Aleacutem do mais ele foi escrito no transcurso de quase vinte anos de trabalho Isso faz com que

ele comporte algumas contradiccedilotildees ou oscilaccedilotildees Nesta seacutetima distinccedilatildeo por exemplo o

descanso sabaacutetico parece ter a presenccedila de Cristo na terra com os santos Nas outras

referecircncias ao mesmo periacuteodo Cristo natildeo exerce um papel pessoal na transiccedilatildeo para a era

do Espiacuterito512

A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seccedilatildeo das sete taccedilas do Apocalipse

(Apocalipse 151-1617) Eacute o quinto tempo da Igreja indicando o confronto da Igreja

romana simbolizada pelo trono de Deus contra Babilocircnia Cada taccedila representa tambeacutem

sete destinataacuterios da ira divina A primeira taccedila da ira foi despejada sobre os judaizantes que

adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica A segunda sobre a igreja infiel

antes de Constantino A terceira sobre os bispos arianos e seus ensinos depois de

Constantino A quarta sobre os hipoacutecritas das ordens contemplativas A quinta sobre os

falsos cleacuterigos e monges A sexta sobre os perversos do mundo A seacutetima taccedila sobre os

proacuteprios eleitos na forma de uma perseguiccedilatildeo purificadora

511 A expressatildeo ldquoEvangelho Eternordquo estaacute na origem da condenaccedilatildeo imposta a algumas ideias de Joaquim em

Anagni no ano de 1255 em funccedilatildeo da atividade do franciscano Geraldo de Borgo san Donnino Cf

ROSSATTO Noeli Dutra et all Evangelho eterno a hermenecircutica condenada Filosofia Unisinos Satildeo

Leopoldo v 11 n 3 p 298-339 2010 512 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 317

153

A sexta parte do Expositio (191v-209v) natildeo apresenta mais a divisatildeo septenaacuteria Esta

seccedilatildeo do Apocalipse descreve a queda da Babilocircnia e o juiacutezo sobre as bestas (Apocalipse

1618-1921) Eacute o sexto tempo da histoacuteria e trata da luta dos viri spirituales primeiramente

contra o Dragatildeo depois contra a besta que veio do mar e a besta que veio da terra O abade

viu nesta longa passagem biacuteblica trecircs distinccedilotildees A primeira (Apocalipse 1618-1824)

descreve a queda da Babilocircnia e da besta que a sustenta Potestagrave destaca que um aspecto

marcante desta distinccedilatildeo estaacute no fato de Joaquim ter retirado o Impeacuterio Germacircnico da seacuterie

de inimigos finais da igreja No seu sermatildeo de 1184 (Apocalipsis liber ultimus) o Impeacuterio

seria o adversaacuterio que iria purificar a Igreja dos seus pecados O mesmo aparece no texto

Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno (1184) Mas no momento em que o

abade escreve a sexta parte do Expositio o Impeacuterio natildeo representa mais um inimigo a ser

temido A cidade que cairaacute agora natildeo representa Roma ou o Impeacuterio Germacircnico mas

Constantinopla e o Impeacuterio Bizantino Babilocircnia se torna siacutembolo para qualquer oposiccedilatildeo agrave

Igreja de Roma513

A segunda distinccedilatildeo (Apocalipse 191-10) apresenta a exultaccedilatildeo dos fieacuteis diante da

ruiacutena da Babilocircnia A terceira distinccedilatildeo (Apocalipse 1911-21) apresenta a derrota da besta

e do falso-profeta Ambos representam inimigos da igreja desde o tempo dos apoacutestolos Nos

termos de Joaquim satildeo as ldquonaccedilotildees increacutedulas que uma vez estiveram sujeitas ao Impeacuterio

Romano e entatildeo perseguem a Cristo e sua Igrejardquo514 Suas sete cabeccedilas sucessivas satildeo a)

Herodes e seus judeus no reino da Judeacuteia b) os pagatildeos do Impeacuterio Romano ateacute o tempo de

Diocleciano c) reino grego ariano d) reino godo ariano e) reino vacircndalo ariano f) reino

lombardo ariano g) o impeacuterio de Maomeacute O tempo da seacutetima cabeccedila eacute o tempo da desolaccedilatildeo

da Babilocircnia Esta terceira distinccedilatildeo descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo branco

Segundo o abade esse cavaleiro pode indicar a manifestaccedilatildeo de Cristo para destruir a besta

atraveacutes de sua volta pessoal ou o poder de Cristo operado por meio de outras figuras

Inicialmente ele se inclina para uma vinda pessoal Depois entretanto admite que isso pode

ser explicado pela accedilatildeo invisiacutevel de Cristo em sua Igreja militante

Finalmente as duas proacuteximas seccedilotildees do Expositio fecham o livro A parte seacutetima

(209v-215r) discute o milecircnio (Apocalipse 201-10) e a oitava (215r-224r) a Jerusaleacutem

513 Idem p 319-320 514 ldquoUniversas gentes infideles quae aliquando subjectae fuerunt Romano imperio et persecutae sunt Christum

et ecclesiam ejusrdquo (196r)

154

Celestial (Apocalipse 2011-2221) Esta uacuteltima corresponde ao oitavo aetas natildeo mais

dentro da histoacuteria mas no seculum futurum posterior ao uacuteltimo tempo da humanidade

73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio

A seacutetima seccedilatildeo do Expositio eacute a menor do comentaacuterio de Joaquim o que natildeo significa

status diminuiacutedo O episoacutedio do milecircnio de Apocalipse 201-10 foi transformado em uma

espeacutecie de aacutepice antes do cliacutemax O fim do mundo com o juiacutezo final e a esfera porvir

continuam no horizonte (a seccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem) do abade mas este fim aguardado para

a ldquoeternidaderdquo recebeu uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica na histoacuteria Como argumentou Potestagrave a

estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade ldquoa descoberta que

a primeira parte de Apocalipse 20 trata daquele grande saacutebado futuro no final do mundo515

Curiosamente se Joaquim procura com sua metodologia hermenecircutica ldquoinventarrdquo

muacuteltiplos sentidos nas outras seccedilotildees do comentaacuterio nesta ele eacute econocircmico em detalhes sobre

as figuras e os eventos Em outros lugares do Expositio como na anaacutelise das duas

testemunhas do capiacutetulo 11 de Apocalipse ele multiplica os significados por meio da

alegoria tipologia e concordia516 Ao interpretar os dez versiacuteculos do reino messiacircnico de

Joatildeo (Apocalipse 201-10) entretanto ele se contenta em fornecer um agraves vezes dois

sentidos mas ainda vagos e imprecisos Diferente de Papias que chega a descrever o

tamanho das uvas do reino milenar517 o abade de Fiore no final de sua vida entende que

alguns poucos aspectos espirituais jaacute seriam suficientes para alimentar a expectativa da

Igreja

Joaquim dividiu esta seacutetima seccedilatildeo do Expositio em quatro partes precedidas de uma

introduccedilatildeo

- Introduccedilatildeo 209v-210v

- Pars prima 210v-212r (comentaacuterio de Apocalipse 201-3)

- Pars secunda 212r-214v (comentaacuterio de Apocalipse 204)

515 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 299 516 Extrateacutegias hermenecircuticas apresentadas no capiacutetulo anterior 517 Conferir a citaccedilatildeo em DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1997 p 23 ldquoViratildeo dias em que as vinhas cresceratildeo em que cada uma teraacute dez mil

vides e em cada vide dez mil ramos e em cada ramo dez mil bototildees e em cada botatildeo dez mil cachos e em

cada cacho dez mil uvas e cada uva prensada daraacute vinte e cinco medidas de vinho E quando um dos santos

colher um cacho o outro lhe diraacute sou melhor colha-me e abenccediloa o Senhor atraveacutes de mimrdquo

155

- Pars tertia 214v (comentaacuterio de Apocalipse 205-6)

- Pars quarta 214v-215r (comentaacuterio de Apocalipse 207-10)

A introduccedilatildeo eacute aberta logo com a frase ldquoestatildeo completadas seis partes do livro de

Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de trabalho Vem agora a seacutetima parte na

qual vemos aquele saacutebado futuro no fim do mundo que em outro lugar chamamos de terceiro

statusrdquo518 Fica clara assim a relaccedilatildeo construiacuteda por Joaquim entre o milecircnio de Apocalipse

20 e um periacuteodo de paz na terra durante o fim do terceiro status da histoacuteria da humanidade

Ele completa ainda que se trata do ldquotertium statum sive etiam septimam mundi statemrdquo (do

terceiro status ou da seacutetima idade do mundo) Corresponde tambeacutem agrave seacutetima aetas da Igreja

que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do seu Expositio

Apoacutes estas frases de definiccedilatildeo ou mesmo de contextualizaccedilatildeo o abade recorre a

Agostinho e uma figura que ele chama de St Remigius Do primeiro ele toma a ideia de que

a expressatildeo ldquodia finalrdquo nas Escrituras natildeo precisa ser entendida como significando o uacuteltimo

momento do mundo podendo antes ser uma uacuteltima fase ou entatildeo o tempo do fim Por isso

os autores biacuteblicos poderiam dizer haacute mais de mil anos que ldquojaacute era a uacuteltima horardquo No

segundo ele busca apoio para a afirmaccedilatildeo de que haveraacute um certo tempo de duraccedilatildeo

indeterminada posterior agrave derrota do Anticristo Esse parece ser o motivo dele ter buscado

nesta figura de identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua

interpretaccedilatildeo Segundo Potestagrave provavelmente este Remigius foi um exegeta do seacuteculo XII

cuja obra foi atribuiacuteda a um certo Aimone de Halberstadt519

A ideia de um periacuteodo sabaacutetico na terra representa descontinuidade com a tradiccedilatildeo

exegeacutetica de Agostinho520 Joaquim estaacute ciente disso e gasta algumas linhas do seu

comentaacuterio para explicar que a expectativa da vinda agrave terra de uma seacutetima aetas na qual a

Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e reinaria sem perturbaccedilatildeo na plena possessatildeo da

ldquointeligecircncia espiritualrdquo natildeo eacute um erro mas uma maior compreensatildeo Segundo o abade eacute

uma ldquoopiniatildeo racional natildeo contraacuteria agrave feacuterdquo521

518 ldquoPeractis sex partibus libri Apocalypsis in quibus notata sunt sex tempora laboriosa Veniendum est

quandoque ad septimam partem im qua agitur de magno illo sabbato in fine mundi futuro quod vocari placluit

tertium statumrdquo (209v) 519 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 323 520 Segundo MC Ginn ldquoem nenhuma outra parte do seu longo comentaacuterio Joaquim mostra a ruptura com

setecentos anos de tradiccedilatildeo exegeacutetica latina como na descriccedilatildeo do reino milenar de Cristo e dos santos na terra

de Apocalipse 20rdquo Cf MCGINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 521 ldquoTamen esse potest rationabilis opinio que non sit contra fidemrdquo (210v)

156

Apoacutes isso ele usa boa parte da introduccedilatildeo para retomar aspectos que precederiam o

periacuteodo sabaacutetico o diabo lanccedilaraacute os sarracenos contra o impeacuterio cristatildeo apoacutes a queda da

Babilocircnia haveraacute um pequeno periacuteodo de tranquilidade para a Igreja entatildeo a besta que

parecia morta se ergueraacute novamente para uma segunda batalha contra os exeacutercitos de fieacuteis

o resultado seraacute a derrota da besta e do falso profeta e finalmente se seguiraacute uma grande

paz o descanso sabaacutetico

A partir de entatildeo ele analisa os versiacuteculos de Apocalipse 201-10 por meio da

estrateacutegia que jaacute utilizou no restante do comentaacuterio haacute uma transcriccedilatildeo de uma pequena

porccedilatildeo do texto na sua versatildeo latina522 seguido de comentaacuterios exegeacuteticos filoloacutegicos e

histoacutericos

A primeira parte da seccedilatildeo corresponde a Apocalipse 201-3 (a prisatildeo de Satanaacutes) Eacute

possiacutevel notar uma pequena diferenccedila entre o texto latino usado por Joaquim e a Vulgata

Clementina No versiacuteculo trecircs a Clementina usou o termo consummentur (seja concluiacutedo)

enquanto Joaquim transcreveu compleant (seja completado) De qualquer forma satildeo termos

intercambiaacuteveis sem grandes implicaccedilotildees textuais para a periacutecope

O abade comeccedila com a discussatildeo do significado da expressatildeo ldquomil anosrdquo O nuacutemero

natildeo eacute literal jaacute que ele significa um nuacutemero perfeito523 Isso indicaria que a duraccedilatildeo da prisatildeo

de Satanaacutes seria durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo Mesmo assim o abade aplica ao tempo

milenar dois significados secundum parte et secundum plenitudinem O primeiro teve um

cumprimento inicial (incipient) no tempo da ressureiccedilatildeo de Cristo Neste sentido o milecircnio

se estenderia daquela eacutepoca ateacute o fim do mundo durante todo o tempo da histoacuteria da Igreja

(ldquoad totum tempus ecdesierdquo) Mas seu perfeito e completo cumprimento seraacute no tempo

sabaacutetico (ldquoad sabbatumrdquo) depois da destruiccedilatildeo da besta

Nos seus termos o milecircnio do Apocalipse teria um cumprimento duplo

ldquoparcialmente a partir daquele saacutebado em que o Senhor descansou no sepulcro plenamente

apoacutes a destruiccedilatildeo da Besta e do Falso-profetardquo524 Eacute uma forma curiosa de afirmar a posiccedilatildeo

de Agostinho (milecircnio como o tempo de existecircncia histoacuterica da Igreja) para logo em seguida

522 Natildeo haacute marcaccedilatildeo de capiacutetulos ou versiacuteculos na versatildeo latina usada por Joaquim Ela difere levemente da

Vulgata Clementina usada nesta tese COLUNGA Alberto TURRADO Laurentio Biblia Sacra iuxta

Vulgatam Clementinam Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1965 523 ldquoMillenarius numerus perfectissimus estrdquo (210v) 524 ldquoSecundum partem incipit ab illo sabbato quo requievit Dominus in sepulchro secundum plenitudinem sui

a ruina Bestiae et Pseudo-Profhetaerdquo (211r)

157

abandonaacute-la em prol da retomada da antiga posiccedilatildeo quiliasta (milecircnio como um periacuteodo

futuro intra-histoacuterico)525

Para Joaquim o autor de ldquoConfessionesrdquo estava correto apenas parcialmente Como

ele o abade insiste em afirmar que o milecircnio natildeo seraacute literal Pode ser longo ou curto mas

sua ldquoduraccedilatildeo seraacute segundo o arbiacutetrio de Deusrdquo526 Talvez seja mesmo curto mas o tempo

esclareceraacute isto

Sobre a atuaccedilatildeo do Espiacuterito o abade afirma que ele manteraacute a chave da prisatildeo de

Satanaacutes Neste periacuteodo a terceira pessoa da Trindade atuaraacute sobre toda a terra natildeo apenas

sobre os fieacuteis mas tambeacutem sobre os pagatildeos Por isso ldquohaveraacute uma grande paz como nunca

antes desde o princiacutepio dos seacuteculosrdquo527

Ele volta a mencionar Agostinho que afirmara inicialmente uma opiniatildeo sobre o

milecircnio e depois mudou de ideia528 Seu argumento eacute que o bispo de Hipona soacute deixou a

perspectiva de um milecircnio histoacuterico por causa das expressotildees exageradamente ldquocarnaisrdquo dos

defensores do quiliasmo daquela eacutepoca Mas o fato de crer na vinda sobre a terra de uma

seacutetima aetas muito melhor que as anteriores natildeo constitui um erro mas eacute sim uma

ldquocompreensatildeo tranquilardquo529

No foacutelio 211r o abade fala do ldquoreinar do Espiacuterito Santordquo (ldquoregnare Spiritus divinusrdquo)

no que se constitui uma significativa alternativa ao ldquoreino de Cristordquo de Apocalipse 201-10

Haacute ainda uma insistecircncia de Joaquim em caracterizar este periacuteodo como um tempo de paz

ldquoGenuiacutena paz fruiraacute para a Igreja de Cristordquo530

A segunda parte da seacutetima seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 204-5a531 e

ocupa apenas uma coluna do foacutelio 212r Joaquim comeccedila indicando a relaccedilatildeo do texto de

Joatildeo com ldquoo povo santo do altiacutessimordquo descrito por Daniel ldquocujo reino eacute eternordquo532 O abade

entende que os ldquomille annirdquo destes versiacuteculos devem ser paralelos agrave prisatildeo de Satanaacutes ldquoO

525 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 324 MC GINN Bernard LrsquoAbate

Calabrese op cit p 169 526 ldquoCujus terminus erit in arbitrio Deirdquo (210b) 527 ldquoErit magna pax qualis non fuit aprincipio seculirdquo (210v) 528 ldquoVera fuit illo opinio immo non jam opiniordquo (211r) A citaccedilatildeo veio de De Civitate Dei 2071 Versatildeo

consultada SANTO AGOSTINHO A cidade de Deus Petroacutepolis Vozes 2012 2 v V 1 p 514 529 ldquoSerenissimus intellectusrdquo (211r) 530 ldquoVera pace frui poterit ecclesia Christirdquo (211r) 531 No texto joanino o bloco comeccedila com a menccedilatildeo dos tronos passa pela descriccedilatildeo dos maacutertires que

reviveram e termina na explicaccedilatildeo de que os demais natildeo reviveram ateacute o fim dos mil anos 532 ldquoCuius regnum sempiternum estrdquo (212r)

158

tempo do reino dos Santos seraacute interligado com o tempo da prisatildeo do Dragatildeordquo533 Seraacute um

tempo breve de duraccedilatildeo incerta no qual a Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e alcaccedilaraacute a

plena possessatildeo da ldquointelligentia spiritualisrdquo

A ressurreiccedilatildeo mencionada por Joatildeo eacute tambeacutem entendida como a prevista em Daniel

12 Jaacute os mortos que natildeo reviveram ateacute o final do milecircnio segundo Joaquim seratildeo os fieacuteis

que ressuscitaratildeo e entraratildeo direto na Nova Jerusaleacutem sem passar pelo julgamento do ldquotrono

brancordquo descrito a partir de Apocalipse 2011 Mas ele admite dificuldades neste ponto e

entende que eacute preciso esperar por novos esclarecimentos espirituais

A terceira parte da seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 205b-6 que natildeo passa

de uma declaraccedilatildeo do estado daqueles que participam da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo Eacute um bloco

muito pequeno soacute ocupando 19 linhas de uma coluna do foacutelio 214v A versatildeo latina citada

pelo abade declara ldquobeatus et sanctus qui habet partem in resurrectione primardquo (Exp Ap

214v) Percebe-se que Joaquim natildeo tem muito para falar sobre estes versiacuteculos do

Apocalipse Ele se contenta em afirmar que aqueles que experimentarem a ldquoprimeira

ressurreiccedilatildeordquo seratildeo realmente felizes (felicius viro) pois natildeo estaratildeo mais ao alcance da

morte

A quarta e uacuteltima seccedilatildeo da seacutetima parte do Expositio corresponde a Apocalipse 207-

10 (a volta de Satanaacutes e o confronto contra Gog e Magog) Joaquim recorre agrave passagem

paulina de 1Tessalonicenses 413 para descrever duas ressurreiccedilotildees Segundo o abade

alguns ressuscitaratildeo logo outros depois Tambeacutem vincula o texto de Joatildeo com uma profecia

de Ezequiel 38 ao descrever um conflito no final dos tempos A paz do periacuteodo sabaacutetico

seraacute interrompida quando Satanaacutes for solto do abismo e instaurar a tribulaccedilatildeo de Gog e

Magog que significa uma uacuteltima ameaccedila para os cristatildeos vinda dos confins do Oriente

talvez de povos que no passado longiacutenquo foram aprisionados por Alexandre o Grande Este

exeacutercito se levantaraacute contra a ldquocidade amada no fim dos seacuteculosrdquo534 mas seraacute logo destruiacutedo

Assim a besta e o falso-profeta foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine

sexte etatis) e Satanaacutes o seraacute no fim da seacutetima (in fine septime)

Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto e fala em muacuteltiplas

ldquoopinionesrdquo Por fim conclui com outra alusatildeo a Daniel no sentido de que quando for vista

533 ldquoIdem tempu intelligatur incarcerationis draconis et regni Santorumrdquo (212r) 534 ldquoCivitatem dilectam in consumatione seculirdquo (214v)

159

a ldquoabominaccedilatildeo da desolaccedilatildeordquo (ldquoabominationem desolationisrdquo) eacute porque ldquoestas coisasrdquo estatildeo

para se cumprir535

74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito

Segundo Bernard MCGinn Joaquim era um ldquoum convicto utopista no sentido de

que ele sentia ardentemente a iminecircncia da condiccedilatildeo ideal de vida sobre a terrardquo536 Sua

descriccedilatildeo desta eacutepoca futura parece realmente estar marcada pela ansiedade Ele desejava

ver o que naquele momento apenas podia imaginar e esperava estar vivo quando tudo

acontecesse jaacute que aguardava a manifestaccedilatildeo deste periacuteodo histoacuterico para breve Mas que

tipo de vida o abade esperava Quais seriam as tais ldquocondiccedilotildees ideaisrdquo de existecircncia humana

sobre a terra

Acima de tudo seria o reino do Espiacuterito (regnus Spiriti Divini) O Espiacuterito eacute a mais

frequente referecircncia de Joaquim para este periacuteodo Ele eacute o ldquoanjordquo que amarraraacute Satanaacutes por

ldquomil anosrdquo ou seja durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo de tempo Talvez por uma geraccedilatildeo (30

anos)537 Assim o ministeacuterio de Cristo a segunda pessoa da Trindade e o ministeacuterio do

Espiacuterito Santo a terceira pessoa durariam igualmente 30 anos Seraacute um periacuteodo curto mas

necessaacuterio agrave luz da revelaccedilatildeo trinitaacuteria agrave humanidade jaacute que o Pai se manifestou no primeiro

status e o Filho no segundo O terceiro status pertence ao Espiacuterito

Durante este tempo o Espiacuterito atuaraacute sobre toda a terra enchendo-a de paz Essa seraacute

sua principal caracteriacutestica Finalmente teraacute acabado a longa seacuterie de conflitos e perseguiccedilotildees

que marcou os dois povos de Deus (Israel e Igreja) desde o iniacutecio da histoacuteria Neste periacuteodo

ambos estaratildeo unidos (judeus e gentios) debaixo da plena posse da ldquointeligecircncia espiritualrdquo

para conhecer os segredos das Escrituras Joaquim fala de uma ldquocidade amadardquo no final da

seacutetima seccedilatildeo do Expositio o que pode ser uma indicaccedilatildeo de que Joaquim esperava que

535 Em Daniel 927 registra-se que algueacutem viraacute sobre ldquoas asas da abominaccedilatildeordquo A mesma imagem eacute usada em

Daniel 1131 e 1211 mas a referecircncia primaacuteria em termos histoacutericos e literaacuterios eacute mesmo Daniel 9 quando

o autor apocaliacuteptico descreve a profanaccedilatildeo do templo por Antiacuteoco Epiacutefanes A funccedilatildeo principal desta narrativa

apocaliacuteptica era garantir que o tempo de anguacutestia dos leitores estava para chegar ao fim e por isso o relato

anuncia uma iminente ldquogrande abominaccedilatildeordquo (referecircncia agrave profanaccedilatildeo do templo de Jerusaleacutem) mas garante

que quando isso acontecer a libertaccedilatildeo divina viraacute em seguida Cf COLLINS John J Daniel with in

introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 1984 p 93 536 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 537 Joaquim usa o termo ldquogeraccedilatildeordquo para descrever periacuteodos histoacutericos Uma geraccedilatildeo teria a duraccedilatildeo de trinta

anos Do nascimento de Jesus ateacute o descanso sabaacutetico 1260 anos 42 geraccedilotildees passaram Cf WEST

ZIMDARS-SWARTZ op cit p 32-35

160

Jerusaleacutem fosse o lugar desta reuniatildeo universal dos ldquopovos do altiacutessimordquo no final dos

tempos538 Assim se a graccedila de Deus se moveu do Oriente para o Ocidente no periacuteodo

sabaacutetico ela voltaraacute do Ocidente para o Oriente

Joaquim denomina o periacuteodo de sabbatum e abre a seacutetima seccedilatildeo do Expositio falando

dos seis ldquotemposrdquo anteriores (tempore laboriosa) Se o ocasiatildeo anterior foi de trabalho este

uacuteltimo tempo da histoacuteria seraacute de descanso Por isso eacute um ldquosaacutebadordquo expressatildeo que faz alusatildeo

agrave semana primordial de criaccedilatildeo das Escrituras hebraicas cuja narrativa descreve a divindade

criando o mundo em seis dias No seacutetimo entretanto descansou ldquode toda a sua obra que

tinha feito E abenccediloou Deus o dia seacutetimo e o santificou porque nele descansou de toda a

obra que como Criador fizerardquo (Gecircnesis 22-3) Esse relato dos primoacuterdios retorna vaacuterias

vezes nas narrativas biacuteblicas Em uma delas surge no coacutedigo legal judaico conhecido como

ldquodez mandamentosrdquo ldquoem seis dias fez o Senhor os ceacuteus e a terra o mar e tudo o que neles

haacute e ao seacutetimo dia descansou por isso o Senhor abenccediloou o dia de saacutebado e o santificourdquo

(Ecircxodo 2011) O texto da Vulgata assim traduziu uma das expressotildees ldquobenedixit Dominus

diei sabbatirdquo Tomando esta semana da criaccedilatildeo como uma das estruturas da histoacuteria da

humanidade o abade vinculou os tempos anteriores de trabalho com os seis primeiros dias

aguardando com muita ansiedade o ldquoseptimum mundi statemrdquo o saacutebado de descanso

espiritual539

Na seacutetima parte do Expositio a descriccedilatildeo deste saacutebado final permanece vaga em

muitos aspectos Joaquim fala de caracteriacutesticas como pax e spiritualis intellectus A

primeira eacute uma inversatildeo dos sucessivos conflitos que caracterizaram a histoacuteria da

humanidade A segunda aponta para um aperfeiccediloamento da sabedoria dos homens e

mulheres do final da histoacuteria que excederaacute a sabedoria dos livros e tornaraacute desnecessaacuteria a

pregaccedilatildeo Mas se desejamos uma caracterizaccedilatildeo mais abrangente precisamos recorrer a

outra fonte do pensamento do abade de Fiore

Joaquim transformou algumas de suas ideias em imagens e esquemas o que faz com

que uma forma de aproximaccedilatildeo ao saacutebado do Espiacuterito esteja no documento conhecido como

Liber Figurarum540 Esta obra sobreviveu como uma coletacircnea de figuras do abade Algumas

538 WHALEN op cit p 123 539 Idem p 106 540 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 169 Para uma anaacutelise ampla do Liber Figurarum cf

REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiore Genuine and spurious collections Medieval and

Renaissance Studies Los Angeles v 3 p 170-199 1954 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo

Gioachimita op cit p 99-106 Usamos a ediccedilatildeo encontrada em GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio

del mistero Le tavole del Liber Figurarum di Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi

Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000

161

destas aparecem no contexto dos livros autecircnticos Outras exclusivamente no Liber No

total satildeo 26 figuras resultado da ediccedilatildeo dos disciacutepulos de Joaquim que natildeo apenas

organizaram suas principais imagens mas tambeacutem desenharam outras seguindo de perto

suas ideias541 Para a professora Reeves estas imagens ldquosatildeo exposiccedilotildees do seu sistema de

pensamento natildeo meramente ilustraccedilotildees para seus textos Satildeo projetos independentes que

incorporam as diversas estruturas do pensamento de Joaquim eventualmente de forma mais

adequada do que palavras poderiam fazerrdquo542

Uma das figuras que mais claramente tratou do periacuteodo sabaacutetico foi a Dispositio novi

ordinis pertinens ad tertium statum (Liber Figurarum Tav XII)543 Eacute um diagrama da

sociedade do final dos tempos Percebe-se que o abade apresenta essa nova sociedade com

elementos de descontinuidade e continuidade em relaccedilatildeo ao tempo anterior A Igreja por

exemplo seraacute transformada mas natildeo necessariamente descontinuada

A nova sociedade foi desenhada na forma de uma cruz grega com suas partes

transformadas em oratoacuterios o que define o centro desta nova realidade humana como uma

grande instituiccedilatildeo religiosa generalizada e universal A figura eacute formada por um oratoacuterio

central cercada por outros quatro oratoacuterios que correspondem a diversos tipos de vida

monaacutestica tendo na parte inferior da figura dois outros oratoacuterios maiores em circunferecircncia

mas distantes dos oratoacuterios centrais Ou seja satildeo cinco oratoacuterios dedicados a tipos distintos

de monges (ordo monachorum) um para os cleacuterigos (ordo clericorum) e outro para os leigos

(ordo coniugatorum)

A imagem foi baseada na passagem de 1Coriacutentios 1212 quando Paulo descreve o

corpo com muitas partes que formam um soacute organismo quando estatildeo todas juntas Joaquim

combinou esta imagem com a visatildeo dos ldquoseres viventesrdquo de Apocalipse 4 um leatildeo um boi

um homem e uma aacuteguia Em seguida ele aplicou a estes seres os ldquocarismasrdquo de Efeacutesios 4

apoacutestolos profetas evangelistas e pastores-mestres O resultado dessa amaacutelgama eacute uma

comunidade que daacute unidade e plenitude ao ldquopovo do altiacutessimordquo na terra

Nesta comunidade religiosa perfeita do fim do mundo numa posiccedilatildeo correspondente

ao ldquonarizrdquo da sociedade estaacute o pater spiritualis que guia pelo exemplo e dedicaccedilatildeo Este

541 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 13-125 p 100 MC GINN Bernard

Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der Joachim of Fiore the

Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 103 542 REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiorehellip op cit p 199 543 Conferir esta imagem no anexo 4 retirada de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op

cit p 13 Para a anaacutelise da Dispositio cf MCGINN Bernard Apocalyptic Spirituality op cit p 111-112

TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 103-104

162

oratoacuterio eacute dedicado agrave ldquoMaria e a Santa Jerusaleacutemrdquo Ele eacute simbolizado pela pomba e funciona

como um conselho para o restante da sociedade Joaquim o denomina tambeacutem de ldquotrono de

Deusrdquo como em Apocalipse 4 O ldquopai espiritualrdquo e os demais membros deste oratoacuterio

seguem a ldquoregrardquo na pureza da forma No interior do oratoacuterio aparece a descriccedilatildeo ldquoEste local

seraacute a matildee de todos os locais Seraacute o pai espiritual que presidiraacute todos os lugaresrdquo544

Agrave esquerda do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPedro e de Todos os Santos

Apoacutestolosrdquo Esta parte representa a matildeo Eacute simbolizada pelo Leatildeo e funciona como uma

casa para pessoas idosas e doentes se recuperarem por meio do ldquoespiacuterito de fortalezardquo

Apesar da fragilidade dos seus membros eles ainda seguem a regra religiosa

Neste oratoacuterio vatildeo viver estes irmatildeos delicados e velhos que por

fraqueza de estocircmago natildeo podem suportar a austeridade da regra e do

jejum mas ainda assim como podem se esforccedilam para proceder de

acordo com a pureza da regra Eles natildeo seratildeo obrigados a sair para os

campos para fazer trabalhos manuais mas vatildeo executar seus trabalhos

em casa debaixo de cuidados Natildeo seraacute permitida a entrada neste oratoacuterio

por vontade proacutepria ou escolha mas apenas aqueles a quem ordenou o

abade545

Agrave direita do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPaulo e de todos os Doutores da

Igrejardquo Esta casa representa a ldquoorelhardquo e eacute simbolizada por um ldquohomemrdquo Funciona como

um centro de aprendizagem onde pessoas iratildeo estudar com a ajuda do ldquoespiacuterito de

inteligecircnciardquo ldquoNeste oratoacuterio vivem homens eruditos entretanto com desejo de aprender as

coisas de Deus e que desejam dedicar-se mais do que os outros para ler e estudar a doutrina

espiritualrdquo546

Acima do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoJoatildeo evangelista e dos Santos Virgensrdquo

Esta parte representa os ldquoolhosrdquo Eacute simbolizada pela aacuteguia e seu papel eacute a contemplaccedilatildeo

debaixo da completa clausura O ldquoespiacuterito de sabedoriardquo estaacute sobre aqueles que estatildeo nesta

casa Eacute aqui que os ldquoviri spiritualesrdquo viveratildeo vidas perfeitas atraveacutes do louvor e da

contemplaccedilatildeo Segundo a descriccedilatildeo na imagem ldquoneste oratoacuterio viveratildeo homens perfeitos e

virtuosos que inflamados pelo desejo de vida espiritual querem levar uma vida

contemplativardquo547 Eles ldquojejuam o tempo todo exceto por motivo de doenccedila Natildeo bebem

544 GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 13-14 545 Idem 546 Idem 547 Idem

163

vinho e nem comem alimentos temperado com oacuteleo exceto nos domingos e nos principais

dias festivosrdquo548

Abaixo do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoEstevatildeo e de todos os Santos

Martirizadosrdquo Ele eacute simbolizado pelo ldquoboirdquo e representa a ldquobocardquo da comunidade Por meio

do ldquoespiacuterito de ciecircnciardquo estes membros seratildeo preparados e treinados em grande disciplina

espiritual Neste oratoacuterio ldquovivem os irmatildeos que tecircm forccedila para a atividade exterior e natildeo

podem progredir na disciplina espiritual como apropriadordquo Esta descriccedilatildeo jaacute indica um

decliacutenio de status em relaccedilatildeo aos membros dos oratoacuterios superiores e seus representantes de

alto ideal de vida religiosa

Na parte inferior da figura haacute ainda outros dois oratoacuterios que consomem um grande

espaccedilo da imagem Haacute um intervalo maior entre eles e a parte superior da Dispositio mas

ainda haacute uma ligaccedilatildeo como aparece no registro ldquoentre o mosteiro e a sede do clero deve

existir uma distacircncia de quase trecircs milhasrdquo Elemento semelhante seraacute repetido para o espaccedilo

que separa as duas casas de baixo

O oratoacuterio do clero eacute chamado de ldquoJoatildeo Batista e dos Profetasrdquo Eacute uma casa larga e

representa os ldquopeacutesrdquo da comunidade Eacute simbolizada por um ldquocachorrordquo Por meio do ldquoespiacuterito

de devoccedilatildeordquo sacerdotes e cleacuterigos vivem em continecircncia e comunidade sob a abstinecircncia

de alguns tipos de alimento e de roupa festiva

Entre o oratoacuterio do clero e o mais inferior que forma a base surge novamente a

menccedilatildeo do espaccedilo de separaccedilatildeo entre os edifiacutecios tema que aponta para um distanciamento

natildeo apenas espacial entre os personagens de cada um mas tambeacutem de poder funccedilatildeo e papel

ldquoentre estes dois oratoacuterios deve existir um espaccedilo de cerca de trecircs estaacutediosrdquo549

Na parte inferior da figura estaacute o oratoacuterio de ldquoAbraatildeo e dos Patriarcasrdquo representado

por uma ovelha cuja funccedilatildeo eacute servir de casa para pessoas casadas e seus filhos sob o ldquotemor

pela salvaccedilatildeordquo Estes viveratildeo em casas privadas mas suas vidas seguiratildeo as ordens do pater

spiritualis e seus supervisores Eles trabalharatildeo regularmente daratildeo o diacutezimo e viveratildeo uma

vida nivelada sem distinccedilatildeo de classes e com bens materiais em comum A imagem ainda

registra ldquoSob o nome deste oratoacuterio estaratildeo reunidos os cocircnjuges com seus filhos e filhas

em forma comunitaacuteria para ter relaccedilotildees com as esposas mais para produzir descendentes

do que para satisfazer os desejosrdquo550

548 Idem 549 Idem 550 Idem

164

Por meio da Dispositio surge a descriccedilatildeo de uma realidade social fortemente

estruturada com espaccedilos geograacuteficos marcados por status funccedilatildeo e dinacircmica religiosa e

social Joaquim recorreu ao texto de Efeacutesios 43 para falar da metaacutefora do corpo de Cristo

com oacutergatildeos diferentes Usou tambeacutem Joatildeo 142 para trazer a imagem das vaacuterias casas

divinas Por meio destas metaacuteforas ele compocircs a imagem de sete ldquocasas espirituaisrdquo nas

quais leigos diferentes niacuteveis de monges cleacuterigos e sacerdotes habitaratildeo551 Estas sete casas

satildeo ordenadas como se fossem a futura Jerusaleacutem transcendental de Apocalipse 22 Natildeo eacute

ainda aquela mas uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica de suas qualidades Esta comunidade

monaacutestica se manifestaraacute no periacuteodo sabaacutetico em ldquosemelhanccedila agrave Jerusaleacutem Celesterdquo552

A Dispositio conteacutem o plano de um monasteacuterio perfeito no qual a vida contemplativa

desempenha o papel central da existecircncia humana553 Apesar do predomiacutenio da ordo

monachorum haveraacute tambeacutem possivelmente sob os influxos da espiritualidade

cisterciense554 espaccedilo para trabalho e estudo Daiacute a existecircncia dos leigos para trabalhar dos

cleacuterigos para ministrar os sacramentos aos leigos e do ldquooratoacuterio do boirdquo formado por

monges que teratildeo contato com cleacuterigos

Mesmo se recusando a definir Joaquim como milenarista em funccedilatildeo de uma definiccedilatildeo

estreita do fenocircmeno555 o francecircs Jean Delumeau descreve longamente o sistema do calabrecircs

na segunda obra de sua trilogia dedicada ao estudo do paraiacuteso556 No momento de resumir a

natureza do repouso sabaacutetico o historiador francecircs recorreu a diversas expressotildees do abade

e forneceu esta siacutentese que dificilmente poderia deixar de ser definida como milenarista

Depois do tempo da ldquolei e da ldquograccedilardquo viraacute portanto o da ldquomaior graccedilardquo

durante o qual a natureza se transformaraacute e se embelezaraacute A liberdade

espiritual floresceraacute no mundo Entatildeo ldquonatildeo haveraacute mais sofrimentos e

gemidos Reinaratildeo ao contraacuterio o repouso a calma a abundacircncia da pazrdquo

Seremos voltados agrave contemplaccedilatildeo ao louvor ldquoDanccedilaremos de alegria ao

contemplar os admiraacuteveis desiacutegnios de Deusrdquo Natildeo haveraacute mais

necessidade de escrever livros para explicar as Escrituras A preacutedica se

deteraacute O tempo da letra teraacute terminado Os fieis contemplaratildeo os misteacuterios

551 Idem 552 Idem 553 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 25 554 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango v

1 p 217-240 2004 p 229 555 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias

Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria

mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 556 A trilogia de Delumeau eacute formada pelas seguintes obras DELUMEAU Jean Une histoire du paradis Le

Jardin des deacutelices Fayard Hachette Litteacuteratures 2002 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma

histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 DELUMEAU Jean O que sobrou do paraiacuteso

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

165

em plena luz O Evangelho segundo a letra seraacute substituiacutedo pelo

ldquoEvangelho eternordquo que procede do Evangelho de Cristo A verdade nos

seraacute dada em sua simplicidade557

O saacutebado do Espiacuterito descrito por Joaquim eacute sim um tipo de milenarismo uma

forma de utopia social558 que espera por um periacuteodo de felicidade para toda a humanidade

mesmo que afirme alguns benefiacutecios especiais para um grupo dentro dela Este periacuteodo seraacute

terreno e natildeo numa realidade transcendental eacute iminente pois a transformaccedilatildeo estaacute proacutexima

de comeccedilar seraacute miraculosa jaacute que as mudanccedilas aconteceratildeo por meio da atuaccedilatildeo

sobrenatural do Espiacuterito divino Tal felicidade seraacute total com a inversatildeo dos males da terra

mas natildeo com a destruiccedilatildeo de todas as instituiccedilotildees anteriores A Igreja sobreviveraacute

completamente transformada e sob a direccedilatildeo de um novo tipo de papado o ldquouniversalis

scilicet pontifex nove Ierusalemrdquo (certamente o pontiacutefice universal da nova Jerusaleacutem) ou

ldquopapa angelicusrdquo559

75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito560

O historiador inglecircs Norman Cohn no momento de apresentar Joaquim de Fiore

como o ldquoinventorrdquo do sistema profeacutetico ldquomais influente de todos os conhecidos na Europa

ateacute ao aparecimento do marxismordquo argumenta que a origem do seu sistema estaacute na

conjugaccedilatildeo de ldquoescatologias derivadas do Apocalipse e dos Oraacuteculos Sibilinosrdquo561 Ao

discutir o conceito de milenarismo na Idade Meacutedia o medievalista Robert Lerner argumenta

557 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 45 As aspas pertencem ao texto citado 558 Assim se expressou Cohn ldquoPor mais respeito que Joaquim tivesse agraves doutrinas exigecircncias e interesses da

Igreja o que ele propusera era na verdade um novo tipo de milenarismo ndash e aliaacutes um tipo que as geraccedilotildees

futuras haveriam de elaborar num sentido antieclesiaacutestico e depois num sentido abertamente secularrdquo Cf

COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia

Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 90 559 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard

K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-

88 p 85 560 Em alguns momentos a busca pelas fontes dos textos eacute uma tarefa ingloacuteria Os autores natildeo informam seus

pontos de partida e o maacuteximo que encontramos satildeo alusotildees mais ou menos transparentes Aleacutem dos topoi

disponiacuteveis para dada conjuntura histoacuterica o que sobra eacute um conjunto de hipoacuteteses com graus diferentes de

plausibilidade Conferir a argumentaccedilatildeo neste sentido em FLANAGAN Sabina Twelfth-Century apocalyptic

imaginations and the coming of the Antichrist The Journal of Religious History v 24 n 1 p 57-69 2000 p

59 561 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 89 O viacutenculo que Cohn fez entre Joaquim e Sibila natildeo

faz muito sentido As sibilas como a Tiburtina eram bem conhecidas no periacuteodo de Joaquim mas

manifestavam um tipo de milenarismo distinto Elas esperavam por um periacuteodo de paz na terra antes do

Anticristo normalmente dirigido por um imperador do final dos tempos ou por um papa poderoso

166

de forma parecida afastando ainda mais o abade do livro joanino e aproximando-o natildeo

necessariamente das Sibilas sugeridas por Cohn mas do poacutes-milenarismo da Glossa

Ordinaria562

Ambos sugerem por caminhos diferentes que o milenarismo de Joaquim de Fiore

natildeo depende inicialmente ou mesmo diretamente do milenarismo de Joatildeo de Patmos

Algumas evidecircncias poderiam reforccedilar as hipoacuteteses destes historiadores O sermatildeo

conhecido como Locuturi aliquid563 escrito por Joaquim em algum momento no iniacutecio da

deacutecada de 1180 em suas uacuteltimas linhas apoacutes descrever o que seria a sexta parte do

Apocalipse termina de forma lacocircnica ldquoEntatildeo viraacute o saacutebado apoacutes a ressurreiccedilatildeo pelo juiacutezo

e finalmente seraacute revelada a gloacuteria da cidade celestialrdquo564 No iniacutecio do sermatildeo ele jaacute

anunciara que o livro de Joatildeo ldquoestaacute dividido e limitado em sete partes e temposrdquo565 Este

texto tambeacutem indica que o abade jaacute tinha consolidada uma perspectiva sobre a estrutura das

seis primeiras partes do Apocalipse elemento que natildeo sofreria mudanccedila ateacute a conclusatildeo do

Expositio quase duas deacutecadas depois A sexta parte encerraria com a derrota da besta e o

falso profeta no final de Apocalipse 19 A seacutetima entatildeo iria de Apocalipse 20 ateacute o capiacutetulo

22 Como jaacute indicamos neste mesmo capiacutetulo Joaquim explicita nas partes iniciais do seu

grande comentaacuterio que ele planejava fazer uma obra de sete partes Se ele mudou para oito

em algum momento do processo foi justamente para dar destaque aos dez versiacuteculos do

texto milenar (a uacutenica mudanccedila significativa na estrutura) destaque que antes ele natildeo dava

A estrutura final do Expositio assim indica como o abade acentuou significativamente o

papel de Apocalipse 201-10 no conjunto da obra ao relacionaacute-lo com o terceiro status e a

seacutetima aetas do mundo

Tanto no Liber de Concordia quanto no Psalterium o abade jaacute apresentou o

desenvolvimento da histoacuteria humana na direccedilatildeo de um cliacutemax de beatitude Talvez uma das

passagens mais claras neste sentido esteja na Concordia

562 LERNER Robert E Millennialism In MC GINN Bernard (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism

Apocalypticism in Western History and Culture New York Continuum 1998 3v V 2 p 326-360 p 346

As Sibilas aludidas por Cohn como a Tiburtina e a Glossa Ordinaria manifestam tipos diferentes de

milenarismos O preacute-milenarismo da Tiburtina descreve um periacuteodo de felicidade na terra anterior ao advento

do Anticristo A Glossa Ordinaria apresenta um poacutes-milenarismo com o periacuteodo de felicidade para depois da

derrota do Anticristo Em ambos os fenocircmenos a parousia (segundo advento de Jesus) natildeo exerce papel na

instauraccedilatildeo da felicidade 563 Sobre este sermatildeo conferir o capiacutetulo IV supra 564 ldquoEt tunc erit sabbatum deinde resurectio ad iudicium et tunc revelabitur gloria civitates supernerdquo Texto

latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 p

130-131 565 ldquoSeptem partibus distinctus et temporibus terminaturrdquo Texto latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino

da Fiore op cit p 130-131

167

Os misteacuterios das divinas paacuteginas mostram-nos enfim os Trecircs Estados do

mundo O primeiro eacute aquele no qual estivemos sob a lei o segundo no qual

estamos sob a graccedila o terceiro que esperamos iminente sob uma graccedila

ampliada [] Por isso o primeiro Estado foi na ciecircncia o segundo na posse

da sabedoria o terceiro na plenitude do sentido O primeiro na servidatildeo

servil o segundo na servidatildeo filial o terceiro na liberdade O primeiro nos

flagelos o segundo na accedilatildeo o terceiro na contemplaccedilatildeo O primeiro no

temor o segundo na feacute o terceiro na caridade O primeiro eacute dos servos o

segundo eacute dos filhos o terceiro eacute dos amigos O primeiro eacute dos velhos o

segundo eacute dos jovens o terceiro das crianccedilas O primeiro na luz da estrela

o segundo na aurora o terceiro ao meio-dia O primeiro no inverno o

segundo na primavera o terceiro no veratildeo O primeiro produz urtigas o

segundo rosas o terceiro liacuterios O primeiro ervas o segundo espigas o

terceiro trigo O primeiro a aacutegua o segundo o vinho o terceiro o oacuteleo O

primeiro pertence agrave Setuageacutegima o segundo agrave Quaresma o terceiro agrave festa

pascal O primeiro Estado pertence ao Pai que eacute criador de todas as coisas

o segundo ao Filho que se dignou assumir nosso limite o terceiro ao

Espiacuterito Santo do qual diz o apoacutestolo Onde se achar o Espiacuterito do Senhor

aiacute estaacute a liberdade (Liber de Concordia 112r)566

O sistema acima apresentado relaciona cada status da histoacuteria da humanidade com

uma pessoa divina explicitando pelo acuacutemulo de imagens e analogias que o segundo

ultrapassou o primeiro e o terceiro ultrapassaraacute o segundo Para o abade a Era do Espiacuterito

seria muito melhor do que as duas anteriores o que significa que a humanidade poderia

esperar por um tempo de esplendor para o futuro sob a tutela do Espiacuterito divino

Sem chamar-se historiador o abade de Fiore se dedicava nos termos de Adeline

Rucquoi agrave ldquoanaacutelise da economia do tempordquo567 A forma como Joaquim entendia a histoacuteria

(preteritae rei) o levou a vaticinar o futuro em uma perspectiva de progresso e de evoluccedilatildeo

loacutegica Para o abade a histoacuteria era uma constante que se desdobrava de forma contiacutenua Se

ele compreende o passado ele pode prever o futuro Neste sentido eacute uacutetil ter uma perspectiva

de siacutentese dos sistemas histoacutericos do abade e verificar a forma como eles demandavam o

periacuteodo sabaacutetico

O editor do Liber de Concordie568 Randolph Daniel professor da Universidade de

Kentucky ao explicar a reflexatildeo histoacuterica de Joaquim o faz por meio daquilo que ele chamou

566 Esta longa citaccedilatildeo estaacute no Livro V capiacutetulo 84 ainda sem ediccedilatildeo criacutetica A traduccedilatildeo em questatildeo eacute de

BAUCHWITZ Oscar Federico A histoacuteria em Joaquim de Fiore Princiacutepios revista de filosofia Natal v 1

n 1 p 109-130 1994 p 110 567 A historiadora Adeline Rucquoi destaca que o seacuteculo XII foi um periacuteodo significativo para a reflexatildeo da

histoacuteria quando filoacutesofos e teoacutelogos se debruccedilaram a buscar uma ratio preterita rei ou o sentido do tempo

Aleacutem de Joaquim ela menciona Hugo de Satildeo Vitor Oton de Freising Anselmo de Havelberg e Petrus

Comestor Cf RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 223-224 568 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti

Philadelphia The American Philosophical Society 1983 O autor sintetiza os sistemas histoacutericos de Joaquim

168

de ldquoinflexotildees do pensamentordquo que aparecem nas poucas notas auto-biograacuteficas que o abade

deixou em suas obras569 A primeira se deu em algum momento durante a peregrinaccedilatildeo agrave

Palestina e deveria jaacute ser o conteuacutedo principal de suas pregaccedilotildees depois que ele retornou

para a Calaacutebria e atuava como pregador itinerante em Rende no iniacutecio da deacutecada de 1170

entremente o pontificado de Alexandre III (papa de 1159-1181)

Este sistema foi chamado por Joaquim de concordia duorum testamentorum ou os

paralelos entre as perseguiccedilotildees de Israel e as perseguiccedilotildees da Igreja Eacute uma maneira de

dividir a histoacuteria em duas grandes etapas Uma se chamava Antigo Testamento e se estendia

da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus A outra era o Novo Testamento e iria do nascimento

de Jesus ateacute o final dos tempos A histoacuteria da humanidade eacute o palco da atuaccedilatildeo de Deus para

salvar seus povos O primeiro era Israel O segundo a Igreja Neste esquema a histoacuteria

avanccedila por meio de tribulaccedilotildees e perseguiccedilotildees que se repetem paralelamente nos dois

testamentos e nos dois povos

As tensotildees poliacuteticas entre o papado e Impeacuterio Germacircnico estavam particularmente

altas depois de deacutecadas de conflito entre o papa Alexandre III (papa de 1159-1181) e o

Imperador Frederico I Barbarorroxa (1122-1190) Este ambiente parece estar traduzido no

alinhamento que Joaquim fez entre as ldquoperseguiccedilotildeesrdquo dos judeus na eacutepoca do Antigo

Testamento com as batalhas contra a Igreja no tempo do Novo Testamento

Joaquim aplicou esta estrutura de perseguiccedilotildees aos sete selos do Apocalipse e a

abordou repetidamente em vaacuterias de suas obras desde Genealogia570 ateacute De Septem

Sigillis571 embora os detalhes mudem de texto para texto Posteriormente este esquema de

dois tempos foi definido pelo abade de secunda diffinitio e o simbolizou pela letra grega

cursiva ocircmega572 Os Testamentos assim satildeo expressotildees tanto canocircnicas quanto histoacutericas

Se toda a histoacuteria de Israel da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus pode ser encontrada no

primeiro testamento Joaquim espera que a histoacuteria completa da Igreja desde sua origem ateacute

o final dos tempos esteja contida no segundo testamento especialmente no Apocalipse de

Joatildeo Mesmo neste esquema de dois tempos ainda haacute um momento sabaacutetico A seacuterie de sete

perseguiccedilotildees de Israel e da Igreja terminam ambas em um periacuteodo de descanso No caso de

em DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of

History Speculum Chicago v 55 n 3 p 469-483 1980 569 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xiii-xviii 570 Genealogia eacute provavelmente a obra mais antiga de Joaquim escrita segundo Potestagrave em 1176 Cf

POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 16 571 Possivelmente de 1198 Cf TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I Sigilli dellrsquoApocalisse In

GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 45 572 Conferir o esquema na posiccedilatildeo inferior esquerda do anexo 6

169

Israel o descanso veio apoacutes os conflitos com os gregos representados por Antiacuteoco Epiacutefanes

e se estendeu ateacute o nascimento de Jesus De maneira paralela apoacutes a seacutetima perseguiccedilatildeo pelo

Anticristo viraacute um descanso para a Igreja O princiacutepio fundamental eacute uma divisatildeo da histoacuteria

em duas partes cada uma delas marcada por perseguiccedilatildeo julgamento e batalha do povo de

Deus No futuro que Joaquim imaginava ser iminente a terceira pessoa da Trindade iria

libertar completamente os cristatildeos fieacuteis do sofrimento e das tribulaccedilotildees que caracterizaram

a histoacuteria desde os tempos de Israel ateacute os dias do abade Os conflitos entre os poderes

temporais e eclesiaacutesticos terminariam de vez jaacute que o periacuteodo sabaacutetico seria caracterizado

principalmente pela paz

A segunda inflexatildeo se deu no fim de 1183 ou iniacutecio de 1184 enquanto Joaquim

esteve em Casamari para tratar de aspectos burocraacuteticos para Corazzo Ali desenvolveu seu

mais conhecido sistema de tria statum em que a Trindade se relaciona com a histoacuteria

imprimindo nela a natureza das pessoas divinas Pai Filho e Espiacuterito573 Este uacuteltimo por sua

vez seria responsaacutevel por implantar uma era de perfeiccedilatildeo espiritual na terra Estes status

eram marcados ainda por initiatio frutificatio e consumatio Ou seja eles apresentavam

um iniacutecio um momento em que frutificam de maneira especial e uma fase de teacutermino No

caso da Era do Pai esta comeccedilou com Adatildeo frutificou em Abraatildeo e terminou em Cristo O

segundo status comeccedilou com Uzias frutificou em Zacarias (pai de Joatildeo Batista) e terminaria

algum tempo depois de Joaquim O terceiro status comeccedilou com Satildeo Bento de Nuacutersia

frutificaria na geraccedilatildeo de Joaquim e terminaria no fim da histoacuteria574 Joaquim aplicou este

esquema trinitaacuterio agrave progressatildeo da vida religiosa na histoacuteria No status do Pai predominavam

os casados no status do Filho predominavam os cleacuterigos no status do Espiacuterito

predominariam os monges Aplicou tambeacutem em trecircs povos a proteccedilatildeo de Deus deixou

Israel passou para os gregos e terminou nos latinos Esta divisatildeo em trecircs status foi definida

pelo abade como prima diffinitio representada simbolicamente pela letra grega uncial

Alfa575 Nesta estrutura a histoacuteria tem uma meta que soacute seraacute alcanccedilada no status do Espiacuterito

apoacutes o fim do segundo status quando se manifestar o descanso sabaacutetico A prima diffinitio

mais ateacute do que a secunda manifesta toda a ansiedade do abade pela perfeiccedilatildeo da vida

monaacutestica e talvez reflita a crise que acabaraacute levando-o a deixar Corazzo e fundar a Ordem

Florense

573 Conferir o diagrama dos Ciacuterculos Trinitaacuterios do anexo 6 574 WHALEN Brett Edward Dominion of God op cit 107 575 Conferir o esquema na posiccedilatildeo superior esquerda do anexo 6

170

O primeiro tempus coincide com o primeiro status O segundo tempus com o segundo

status ateacute a eacutepoca de Joaquim Apesar do saacutebado do segundo tempus natildeo ser tratado de forma

tatildeo proeminente quanto o saacutebado do terceiro status em ambas as diffinitiones a plena

realizaccedilatildeo estaacute no futuro Nas duas haacute uma evoluccedilatildeo de instituiccedilotildees e de qualidade de vida576

Finalmente apoacutes retornar para Corazzo cerca de um ano apoacutes a passagem por

Casamari Joaquim deu mais um passo na consolidaccedilatildeo dos seus sistemas histoacutericos Ele

finalmente conseguiu relacionar a concordia duorum testamentorum e a intervenccedilatildeo divina

por meio dos tria statum atraveacutes da estrutura geral do Apocalipse A obra de Joatildeo assim se

tornou aos olhos do abade a chave para a compreensatildeo inteira da histoacuteria da humanidade

Aleacutem dos sistemas histoacutericos do abade a historiografia tem sugerido outra base

significativa para o saacutebado do Espiacuterito desta vez por meio dos recursos exegeacuteticos do abade

Os leitores ocidentais do Apocalipse de Joatildeo desde as criacuteticas ao quiliasmo de Agostinho

de Hipona Jerocircnimo e Gregoacuterio Magno liam o Apocalipse de forma moralizante e

alegoacuterica sem viacutenculos expliacutecitos com a histoacuteria O milecircnio dos maacutertires de Apocalipse 20

era interpretado de forma a descrever o tempo da Igreja na terra577 Estes autores imaginavam

a histoacuteria caminhando na direccedilatildeo de vaacuterios desastres sendo o penuacuteltimo o advento do

Anticristo Ele instauraria uma grande perseguiccedilatildeo agrave Igreja depois do qual Cristo viria de

forma gloriosa para o uacuteltimo julgamento e a consumaccedilatildeo da histoacuteria do mundo578

Uma ideia surgiu entretanto entre os antigos comentaristas de Daniel Ao comentar

Daniel 1211-12 por volta do ano 400 Jerocircnimo argumentou que o tempo da tribulaccedilatildeo

(1290 dias) e do fim do mundo (1335 dias) tinha um prazo residual de 45 dias Este mecircs e

meio seria entatildeo o intervalo entre a derrota do Anticristo e o julgamento final da humanidade

Beda o Veneraacutevel no iniacutecio do seacuteculo VIII concordou com Jerocircnimo e acrescentou que

este intervalo tambeacutem poderia ser encontrado nos trinta minutos de silecircncio no ceacuteu apoacutes a

576 DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of

History op cit p 482 577 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 29-31 Segundo Desroche esta ldquoconcepccedilatildeo

alcanccedilou posiccedilatildeo hegemocircnica mas nunca deixou de ser sitiada por fileiras de dissidecircncias oriundas das trecircs

grandes confissotildees cristatildes (catolicismo protestantismo ortodoxia)rdquo Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de

messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 22

Por isso Umberto Eco fala de um ldquomillenarismus absconditusrdquo neste periacuteodo de hostilidade contra o quiliasmo

Cf ECO Umberto Wainting for the Millennium In LANDES Richard GOW Andrew VAN METER

David C (ed) The apocalyptic year 1000 religious expectation and social change ndash 950-1050 Oxford Oxford

University Press 2003 p 121-135 p 125 578 FLANAGAN op cit p 59 Flanagan acrescenta que o que variava bastante era a sequecircncia dos eventos

finais o tempo entre cada um deles bem como a perspectiva de iminecircncia

171

abertura do seacutetimo selo do Apocalipse O exegeta do seacuteculo IX Haimo de Auxerre

argumentou ainda que o periacuteodo em questatildeo natildeo precisava ser qualificado de forma precisa

jaacute que era apenas um prazo miacutenimo Estes autores natildeo estavam certos sobre os motivos para

este prazo579 ateacute que a Glossa Ordinaria no iniacutecio do seacuteculo XII em uma de suas notas

sugeriu que o tempo posterior ao advento do Anticristo e anterior agrave volta de Cristo

denominado entatildeo de refrigerium sactorum (descanso dos santos) seria uma fase de

felicidade prosperidade e paz na terra Alguns autores especialmente do mesmo periacuteodo

ampliaram ainda mais este novo conceito como Honorius Augustodunesis (1080-1156) que

argumentou que ele seria o tempo da conversatildeo de todos os pagatildeos ou Otto de Freising

(114-1158) que previu nele o ingresso dos judeus agrave Igreja Levando em conta esta corrente

exegeacutetica Robert Lerner levantou a hipoacutetese que o milenarismo do Espiacuterito de Joaquim

deveria ser entendido como uma expressatildeo exegeacutetica modificada da ldquotradiccedilatildeo do refrigeacuterio

dos santosrdquo580 Eacute possiacutevel concordar parcialmente com Lerner ao indicar uma fonte

plausiacutevel para a escatologia do abade mas natildeo de forma isolada Os sistemas histoacutericos dele

jaacute demandavam a expectativa de um futuro melhor

De qualquer forma o que se percebe eacute que o descanso sabaacutetico que Joaquim

descreveu na passagem de Apocalipse 201-10 teve pontos de partida bem mais amplos do

que o texto joanino O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim parece ser o resultado de sua reflexatildeo

histoacuterica e da tradiccedilatildeo exegeacutetica do refrigeacuterio dos santos Assim nos momentos finais do

Expositio ao fazer a exegese de Apocalipse 20 o abade aplica no milecircnio de Joatildeo as ideias

que jaacute trazia consolidadas que apoacutes a queda do Anticristo e antes da volta de Jesus haveria

na terra natildeo necessariamente um reinado dos maacutertires mas o descanso da Igreja e acima de

tudo o refrigeacuterio dos monges sob a direccedilatildeo final da terceira pessoa da Trindade

76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia

Segundo Sabina Flanagan explicaccedilotildees histoacutericas para as opccedilotildees dos autores podem

ter relaccedilatildeo entre outros fatores com crenccedilas e restriccedilotildees dogmaacuteticas religiosas com

engajamentos poliacuteticos e viacutenculos sociais ou com confrontos contra dissidecircncias581 Essa eacute

579 LERNER Robert E Millennialism op cit p 344 TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I

Sigilli dellrsquoApocalisse op cit p 34 580 LERNER Robert E Millennialism op cit p 347 581 FLANAGAN op cit p 64

172

uma forma de dizer que as representaccedilotildees que se materializaram nas praacuteticas e discursos de

Joaquim configuram respostas a conjunturas poliacuteticas sociais culturais e eclesiaacutesticas que

caracterizavam o Ocidente medieval582

Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai Mauro um notaacuterio a

serviccedilo da chancelaria normanda Inicialmente estes passos foram dados sem sobressaltos

comeccedilando na Calaacutebria e se deslocando em seguida para a corte do Reino da Siciacutelia em

Palermo Ele nasceu em 1135 um pouco depois da fundaccedilatildeo do Reino por Rogeacuterio II e

abandonou a carreira na corte em 1167 um ano depois da morte do rei William I Estas

primeiras deacutecadas de vida e o treinamento recebido para o trabalho na corte devem ter lhe

capacitado para o relacionamento com as diversas populaccedilotildees e etnias do reino Um notaacuterio

especialmente em Palermo deveria ter conhecimento do grego e do aacuterabe para promover

seus registros583 Estas qualidades possivelmente estiveram envolvidas em sua raacutepida

ascensatildeo no monasteacuterio de Corazzo e nas negociaccedilotildees com os poderes eclesiaacutesticos e

temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore

Essa proximidade com a cultura aacuterabe da Siciacutelia ou os contatos proacuteximos que ele

possa ter tido na corte de Palermo entretanto natildeo produziram nele uma perspectiva positiva

quanto ao Islatilde Mesmo que natildeo haja em suas obras nada parecido com as convocaccedilotildees de

Satildeo Bernardo para uma guerra santa584 os muccedilulmanos satildeo descritos recorrentemente pelo

calabrecircs como agentes do diabo para perseguir a Igreja

Ele ingressou numa comunidade religiosa no iniacutecio do governo de William II no

comeccedilo da deacutecada de 1170 Quando este rei morreu em 1189 Joaquim jaacute havia passado por

Casamari comeccedilado a produccedilatildeo de suas grandes obras e tinha jaacute uma definiccedilatildeo das duas

deffinitio que ele usava para refletir a histoacuteria Aqueles foram tempos de muita instabilidade

Depois de quatro governantes de origem normanda (Rogeacuterio I Rogeacuterio II William I e

William II) o reino finalmente passou para as matildeos dos Hohenstaufen apoacutes o governo de

transiccedilatildeo do conde Tancredo Os encontros do abade com o imperador Henrique ou com a

rainha Constacircncia resultaram natildeo apenas em benefiacutecios materiais para Joaquim e seus

irmatildeos de Fiore mas tambeacutem no fim do viacutenculo entre a Babilocircnia e os imperadores

germacircnicos que se manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrecircs Com isso

582 WHALEN op cit p 115 583 Para os aspectos culturais e sociais do Reino da Siciacutelia conferir o capiacutetulo V 584 Cf AacuteLVAREZ PALENZUELA Vicente Aacutengel El Cister y las Oacuterdenes Militares em el impulso hacia

Oriente Cuardernos de Historia Medieval Madrid v 1 p 3-19 1998 p 8

173

na parte final do Expositio o Impeacuterio deixou de ser o grande adversaacuterio da Igreja no final

dos tempos

Joaquim viveu num periacuteodo de mudanccedilas profundas na sociedade medieval585 O

Impeacuterio Bizantino perdera muito do seu poder por causa das derrotas contra os turcos

muccedilulmanos as Igrejas Latina e Grega estavam em processo de consolidar a separaccedilatildeo a

exuberante monarquia normanda instalada na Siciacutelia e no sul da Itaacutelia chegava ao fim o

poder islacircmico na Peniacutensula Ibeacuterica encolhia novas formas de espiritualidade surgiam

quando antigas enfraqueciam Tudo isso pode estar subjacente agrave sua ansiedade pela

transformaccedilatildeo da realidade por meio do descanso sabaacutetico do Espiacuterito Entretanto talvez o

fator mais preponderante esteja no ldquomovimento reformadorrdquo gerado no interior da Igreja

romana586

A perspectiva de que as coisas natildeo eram como deveriam ser de que a Igreja dos

proacuteprios tempos havia se afastado dos propoacutesitos pregados pelos primeiros apoacutestolos e pelo

proacuteprio fundador principalmente na questatildeo da simplicidade de vida acabou dando origem

a partir do seacuteculo XI a movimentos de reforma em diversos setores da sociedade Ocidental

e em diferentes espaccedilos eclesiaacutesticos Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do

clero entendido como corrompido e refletir sobre o papel da Igreja na sociedade em relaccedilatildeo

principalmente com as estruturas dos poderes temporais A professora Andreacuteia Frazatildeo ao

analisar os projetos subjacentes aos conciacutelios lateranenses listou algumas destas

perspectivas reformistas como as implementadas por poderes seculares (monarquias

caroliacutengias ou imperadores germacircnicos por exemplo) as promovidas por movimentos

monaacutesticos (Cluny Gorze Metz etc) as de iniciativa ldquopopularrdquo (como o movimento

patarino) e a fomentada pelos bispos de Roma eventualmente denominada de Reforma

Gregoriana Este uacuteltimo movimento partindo da Cuacuteria Papal procurou impor Roma ldquocomo

centro poliacutetico religioso e administrativo da Igreja ocidental [] e como o principal poder

de caraacuteter universal no Ocidente ao qual todos os demais deveriam se subordinar inclusive

o imperialrdquo 587

A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em funccedilatildeo do papa Gregoacuterio VII (papa

de 1073-1085) que em diversos momentos apelou para o senso de iminecircncia do advento do

585 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 221 586 WHALEN op cit p 102 587 SILVA Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da A luta entre o Regnum et Imperium e a Construccedilatildeo da Ecclesia

Universalis uma anaacutelise comparativa dos Conciacutelios Lateranenses (1123-1215) In SILVA Francisco Carlos

Teixeira CABRAL Ricardo Pereira MUNHOZ Sidnei J (coords) Impeacuterios na Histoacuteria Rio de Janeiro

Elsevier 2009 p 95-105 p 97-98

174

Anticristo para dar legitimidade aos seus apelos reformadores Em uma de suas cartas ele

explica a oposiccedilatildeo como sinal do fim do mundo ldquoE natildeo fiquem admirados Pois quanto mais

perto o dia do Anticristo se manifestar mais ele luta para esmagar a feacute cristatilderdquo588 Este papa

na linha agostiniana evitou fazer prediccedilotildees sobre o fim do mundo mas reiteradamente

manifestou a convicccedilatildeo de que ele deveria estar perto em funccedilatildeo da manifestaccedilatildeo das

heresias e da corrupccedilatildeo da Igreja Neste tipo de visatildeo de histoacuteria os eventos finais deveriam

validar os esforccedilos para buscar pureza moral e ordem correta na instituiccedilatildeo eclesiaacutestica

Mudanccedilas no cenaacuterio poliacutetico recebiam um lugar no cenaacuterio do fim do mundo conflitos de

muacuteltiplas naturezas eram legitimados pela perspectiva do juiacutezo final de forma que a maioria

das crenccedilas apocaliacutepticas medievais passaram a ser instrumentos de retoacuterica religiosa

poliacutetica e social agrave serviccedilo de papas cleacuterigos imperadores reis e seus apologistas

Eacute certo que o senso de fim de mundo ou as representaccedilotildees escatoloacutegicas natildeo

conseguem explicar totalmente as praacuteticas dos movimentos reformadores De qualquer

forma esta relaccedilatildeo entre reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore

conectada com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos monaacutesticos

tradicionais para toda a sociedade (christianitas)589 Mas o abade acabou ultrapassando o

modelo gregoriano e mesmo o imperial em funccedilatildeo de sua ecircnfase numa nova forma de

ecclesia totalmente monasticisada com o foco no futuro O arqueacutetipo deixou de ser a era

apostoacutelica (no passado) mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro)

Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este fenocircmeno de

ldquoapocalipcismo reformadorrdquo um tipo de perspectiva apocaliacuteptica medieval que tinha como

preocupaccedilatildeo primaacuteria a reforma clerical590 Estes autores criam em uma era porvir de

desenvolvimento espiritual na qual os cleacuterigos apoacutes serem ldquopurificadosrdquo pelas tribulaccedilotildees

do final dos tempos se recuperariam de uma forma nunca vista antes Alguns focavam na

reforma de tipo tradicional com sua ecircnfase no retorno ao modelo apostoacutelico de pureza e

simplicidade outros como Joaquim insistiam que a era porvir era o zecircnite da histoacuteria

resultado de um longo processo evolutivo

588 Citado por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform 1100-1500 In MC GINN Bernard

(ed) The Encyclopedia of Apocalypticism Apocalypticism in Western History and Culture New York

Continuum 1998 3v V 2 p 74-109 p 76 589 Este modelo gregoriano buscou expandir-se para a sociedade inteira por meio da divulgaccedilatildeo do ideal da

ldquoIgreja dos tempos apostoacutelicosrdquo Cf MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 78 590 KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge

University Press 1990 p 9 MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 74-109

175

Kathryn resumiu entatildeo as marcas do apocalipticismo reformador um desejo urgente

por reforma preocupaccedilatildeo acentuada com o futuro da Igreja tentativa de entender o presente

agrave luz de esquemas escatoloacutegicos tradicionais preocupaccedilatildeo com o papel de uma ordem

religiosa particular no drama do final dos tempos ou no futuro da igreja um senso de crise

de lideranccedila eclesiaacutestica e temporal uma ansiedade por levar o clero aos princiacutepios

disciplinares dos fundadores do monasticismo ou agrave igreja dos primoacuterdios com ecircnfase

especial na pobreza e na simplicidade de vida tendecircncia conservadora em termos religiosos

e sociais591

Estes reformadores estavam continuamente avaliando as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas de

seus dias e projetavam para ela um periacuteodo dourado de vitalidade espiritual Este tipo de

expectativa eventualmente demandava accedilatildeo e sugeria que indiviacuteduos e instituiccedilotildees poderiam

participar (apropinquare) na viabilizaccedilatildeo do futuro ou pelo menos na definiccedilatildeo de quais

pessoas poderiam participar deste futuro idealizado Eacute uma espeacutecie de descriccedilatildeo de um

futuro ldquodouradordquo para confrontar o presente ldquopoluiacutedordquo

Em termos concretos tanto os movimentos reformadores quanto os apocalipcismos

medievais tiveram seus proacuteprios fatores de surgimento mas alguns destes podem ter

promovido o encontro das duas expectativas Primeiramente o desenvolvimento dos

movimentos hereacuteticos com frequecircncia o resultado de programas reformistas frustrados com

constantes criacuteticas ao clero e a corrupccedilatildeo da Igreja A persistecircncia destes grupos poderia

produzir a sensaccedilatildeo de que as heresias eram consequecircncia do pecado da Igreja e que para

acabar com elas era preciso se purificar Produzia tambeacutem a retoacuterica apocaliacuteptica por parte

das autoridades que constantemente recorriam agraves figuras negativas do final do tempo para

vinculaacute-las com as heresias Um segundo fator poderia estar nas cruzadas que acentuaram a

sensaccedilatildeo de que o cristianismo estava sob constante ameaccedila de povos pagatildeos Finalmente e

talvez o mais significativo os efeitos da controveacutersia das investiduras e o conflito entre

Igreja e poder temporal A persistecircncia dos conflitos com os imperadores germacircnicos pode

ter promovido o surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada de

conflitos histoacutericos desde os seus primoacuterdios A Igreja passa a ser vista como uma

comunidade sagrada que sofre perseguiccedilatildeo intermitente592 O discurso apocaliacuteptico se tornou

uma tentativa de dar sentido aos constantes embates contra os poderes temporais Eacute neste

591 KERBY-FULTON op cit p 9 592 RIEDL Matthias Joachim of Fiore as political thinker In WANNENMACHER Julia Eva Joachim of

Fiore and the influence of inspiration essays in memory of Marjorie Reeves (1905-2003) London Routledge

2013 p 90-116 p 94

176

sentido que os imperadores frequentemente satildeo estigmatizados com retoacuterica apocaliacuteptica

dando ao papado por seu lado um papel acentuado no drama do final dos tempos593

Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de forma milenarista

McGinn cita como exemplo a perspectiva do franciscano Roger Bacon (1214-1294) que

acreditava numa reforma realizada por meio do surgimento de um papa angelicus e de um

imperador ungido que juntos purificariam a Igreja antes do surgimento do Anticristo594 Em

Joaquim entretanto o fenocircmeno foi conjugado com o milenarismo nos moldes do antigo

quiliasmo cristatildeo e manifestou as noccedilotildees de que uma unidade cristatilde idealizada seria

alcanccedilada atraveacutes da transformaccedilatildeo da ecclesia a graccedila de Deus deixou a Igreja grega e

transitou para a Igreja latina595 o Anticristo do final dos tempos iria se manifestar a qualquer

momento para perseguir a Igreja por meio dos sarracenos e dos hereges Quando isso

acontecesse ldquojudeus gregos pagatildeos e talvez mesmo os sarracenos seriam levados agrave

salvaccedilatildeo atraveacutes de homens espirituais da Igreja latina reunidos sob a direccedilatildeo de uma igreja

romana transformadardquo596

77 Resumo

Este capiacutetulo analisou a seacutetima seccedilatildeo do Expositio in Apocalypsim e relacionou-a

com as perspectivas milenaristas de Joaquim presentes em outros lugares de sua obra Nela

Joaquim rompe com a tradiccedilatildeo agostiniana que identificou o milecircnio joanino com a histoacuteria

da Igreja e propotildee em seu lugar um periacuteodo de felicidade na terra para toda a humanidade

sob a direccedilatildeo do Espiacuterito Santo O abade esperava algum tipo de continuidade entre o

presente e o futuro mas com a transformaccedilatildeo de suas instituiccedilotildees sociais especialmente da

Igreja Este periacuteodo de descanso e contemplaccedilatildeo natildeo teve como ponto de partida entretanto

diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim as as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a

tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que esperava uma fase histoacuterica de felicidade na terra

593 KERBY-FULTON op cit p 8 594 Citato por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 81 595 Haacute neste caso aquilo que Whalen chamou de ldquopropoacutesito geograacuteficordquo divino que levou a graccedila de Deus a se

mover do Oriente para o Ocidente e no saacutebado do Espiacuterito retornar para o Oriente Cf WHALEN op cit p

121 596 WHALEN op cit p 123 Joaquim abraccedila o ideal do ldquoservo sofredorrdquo de Isaiacuteas 53 e a espera de uma

grande conversatildeo dos povos no final dos tempos que demanda mais pregaccedilatildeo e menos conflito Nos seus

termos ldquopraedicando magis quam proeliandordquo (Expositio in Apocalypsim 164v) Cf TAGLIAPIETRA

Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 54

177

anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica deste tipo de milenarismo pode estar relacionada

com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica

CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO

DOS MONGES

A tiacutetulo de recapitulaccedilatildeo cabe reafirmar nossos principais argumentos apresentados

e sustentados no decorrer deste trabalho O Apocalipse foi produzido pelo profeta Joatildeo de

Patmos na forma de um instrumento retoacuterico de caraacuteter milenarista cuja funccedilatildeo atendia a

determinadas percepccedilotildees de crise social que seu autor manifestava e que entendendo-se

como convocado divinamente para atuar entre as igrejas da proviacutencia da Aacutesia desejava levaacute-

las ao rompimento sectaacuterio com a sociedade romana Joatildeo se recusava a viver ldquoneste mundordquo

e esperava pela inauguraccedilatildeo de um ldquooutro mundordquo no tempo do milecircnio A visatildeo de histoacuteria

que aparece subjacente agrave sua narrativa religiosa se constitui em uma criacutetica agraves representaccedilotildees

sociais romanas encontradas na proviacutencia asiaacutetica

O Apocalipse foi lido como texto sagrado por Joaquim de Fiore e como base para a

construccedilatildeo de sua filosofia da histoacuteria Por meio do seu comentaacuterio da obra joanina o abade

construiu a expectativa de superaccedilatildeo do tempo presente em uma eacutepoca de ouro dirigida pela

terceira pessoa da Trindade o Espiacuterito Santo As representaccedilotildees milenaristas do calabrecircs

entretanto natildeo partiram diretamente do milecircnio joanino jaacute que dependem mais da tradiccedilatildeo

do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo e de sua reflexatildeo histoacuterico-trinitaacuteria

Convergecircncias e divergecircncias

O Apocalipse foi produzido no final do seacuteculo I na Ilha de Patmos O Expositio por

sua vez surgiu nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XII na Itaacutelia597 O judeu Joatildeo rejeitava a

Peniacutensula Itaacutelica pois nela ficava a capital do Impeacuterio que destruiu sua estimada Jerusaleacutem

Em sua obra o profeta exilado se alonga na imaginaccedilatildeo de como Roma seria devorada pelo

fogo 1100 anos depois um italiano da Calaacutebria se ldquoencantardquo pelo texto de Joatildeo e resolve

gastar os uacuteltimos anos de sua vida para divulgaacute-lo Ao produzir seu escrito Joaquim

transcreveu integralmente o material joanino (na sua traduccedilatildeo latina) fazendo do Expositio

efetivamente uma coacutepia comentada do Apocalipse Haacute aqui um viacutenculo formal entre os dois

textos Mas isso natildeo esclarece totalmente os relacionamentos as recepccedilotildees as adaptaccedilotildees

597 Conferir esta relaccedilatildeo geograacutefica no anexo 4

179

as mutilaccedilotildees as invenccedilotildees os horizontes de leitura criados pela natureza diacrocircnica de tal

viacutenculo Por isso ainda eacute preciso promover anaacutelises comparativas que pressuponham os dois

objetos (apocalipse e comentaacuterio) como fenocircmenos distintos em funccedilatildeo de suas proacuteprias

conjunturas condiccedilotildees de emergecircncia e pontos de partida

Segundo Juumlrgen Kocka comparaccedilatildeo eacute a discussatildeo de ldquodois ou mais fenocircmenos

histoacutericos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenccedilas de modo a se

alcanccedilar determinados objetivos intelectuaisrdquo598 Eacute o que faremos nesta conclusatildeo com

ecircnfase nas diferenccedilas e especificidades599 para assim descrever explicar e interpretar

elementos especiacuteficos de cada um dos objetos de comparaccedilatildeo600 Tomando uma expressatildeo

irocircnica de Kocka e Haupt mesmo que natildeo pudeacutessemos comparar ldquomaccedilatildes e laranjasrdquo (como

um apocalipse e um comentaacuterio biacuteblico) ainda assim poderiacuteamos apontar as peculiaridades

de cada objeto e seus usos particulares601

Para efeitos de comparaccedilatildeo pressupomos as discussotildees dos capiacutetulos anteriores

quando analisamos separadamente os aspectos formais de Apocalipse 201-10 e seu

respectivo comentaacuterio exegeacutetico na seacutetima parte do Expositio contextualizamos cada

unidade de comparaccedilatildeo apontando suas respectivas condiccedilotildees de produccedilatildeo analisamos o

conteuacutedo recortado de cada texto explicitando as representaccedilotildees milenaristas os pontos de

partida e os fatores de emergecircncia No caso especiacutefico de Joaquim ainda discutimos suas

formas de leitura e posturas hermenecircuticas

O que comparamos Eacute o tipo de milenarismo que se objetiva em cada texto Para

tanto analisamos os pontos de contato as convergecircncias e divergecircncias e as compreensotildees

de tais aspectos agrave luz de seus respectivos contextos Usamos como fio norteador para a

anaacutelise comparativa a definiccedilatildeo de milenarismo anteriormente pressuposta e agora

desdobrada602

598 KOCKA Juumlrgen Comparison and beyond History and theory Middletown n 42 p 39-44 2003 p 39 599 Conferir uma siacutentese de modelos de observaccedilatildeo comparada em BARROS Joseacute DacuteAssunccedilatildeo Histoacuteria

comparada um novo modo de ver e fazer a histoacuteria Revista de Histoacuteria Comparada Rio de Janeiro v 1 n

1 p 1-30 2007 p 18-21 600 KOCKA Juumlrgen HAUPT Heinz-Gerhard Comparison and Beyond traditions scope and perspectives of

Comparative History In HAUPT Heins-Gerhard KOCKA Juumlrgen (orgs) Comparative and Transnational

History Central European approaches and new perspectives Oxford Berghahn Books 2009 p 1-30 p 2 601 HAUPT Heinz-Gerhard KOCKA Juumlrgen Comparative History Methods Aims Problems In COHEN

Deborah OrsquoCONNOR Maura Comparison and History Europe in cross-national perspective London

Routledge 2004 p 23-39 p 27 602 Para tanto contamos com as contribuiccedilotildees principalmente da socioacuteloga israelense Yonina Talmon e do

historiador americano Richard Landes Cf TALMON Yonina Millenarism In SILLS David L (ed)

International Encyclopedia of the Social Sciences London The Macmillan Company amp The Free Press 1968

19 v V X p 349-362 LANDES Richard A Millennialism in the Western World In LANDES Richard A

(ed) Encyclopedia of millennialism and millennial movements New York Routledge 2000 p 453-466

180

Por uma definiccedilatildeo de milenarismo

No iniacutecio desta tese anunciamos a definiccedilatildeo de milenarismo do historiador inglecircs

Norman Cohn que entendeu-o como um tipo particular de utopia salvacionista coletiva jaacute

que todos os fieacuteis experimentariam a felicidade terrena jaacute que essa felicidade seria

alcanccedilada na terra e natildeo em uma realidade transcendente total pois aguarda uma completa

inversatildeo dos males da terra iminente pois a transformaccedilatildeo completa estaria perto de

comeccedilar e miraculosa jaacute que a redenccedilatildeo contaria com a ajuda de poderes sobrenaturais603

Alguns autores entretanto como Jean Delumeau optam por uma noccedilatildeo reducionista

do fenocircmeno ldquono cristianismo deve-se chamar de milenarismo a crenccedila num reino terrestre

de Cristo e de seus eleitos ndash reino este que deve durar mil anos entendidos seja literalmente

seja simbolicamenterdquo604 A definiccedilatildeo de Delumeau parece entender por milenarismo apenas

os fenocircmenos que replicam o milecircnio de Apocalipse 20 Isso o leva agrave curiosa sugestatildeo de

que Joaquim de Fiore a quem ele dedicou quase cinquenta paacuteginas do seu livro sobre

ldquomilenarismordquo natildeo poderia ser chamado de milenarista605 Diante de tal posicionamento eacute

preciso lembrar do argumento de Paula Fredriksen ldquoa ideia de um periacuteodo de mil anos

implicada por este termo eacute menos essencial para o seu sentido que o seu foco sobre a terra

a histoacuteria humana como a uacuteltima arena da redenccedilatildeordquo606

No campo oposto ao de Delumeau Kathryn Kerby-Fulton opta por uma definiccedilatildeo

abrangente demais ldquoRefere-se agrave crenccedila num futuro de becircnccedilatildeos na terra antes do fim da

LANDES Richard A Heaven on Earth the varieties of the millennial experience Oxford Oxford Universit

Press 2011 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time In NEWPORT

Kenneth G C GRIBBEN Crawford (eds) Expecting the End millennialism in social and historical context

Waco Baylor University Press 2006 p 1-23 603 Cf COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade

Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 Pesquisadores deste tema continuam partindo das definiccedilotildees

de Cohn mesmo que sua obra sobre os milenaristas revolucionaacuterios da Idade Meacutedia jaacute tenha quase 50 anos

Por exemplo cf CLARKE Peter The origins scope and spread of the millenarian idea In LIEB Michael

MASON Emma Roberts Johathan (edss) The Oxford Handbook of the Reception History of the Bible

Oxford Oxford University Press 2011 p 235-242 604 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras

1997 p 17-18 Tambeacutem minimiza o milenarismo de Joaquim SARANYANA Josep Ignasi Sobre El

milenarismo de Joaquiacuten de Fiore Uma lectura retrospectiva Teologia y Vida Santiago v XLIV p 221-232

2003 605 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias

Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria

mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 606 FREDRIKSEN Paula Tyconius and Augustine on the Apocalypse In EMMERSON Richard K

MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 20-

37 p 20

181

histoacuteriardquo607 Ou entatildeo John Gager ldquoum movimento que espera uma nova ordem de realidade

em um futuro proacuteximordquo608 Diante de tal formulaccedilatildeo tanto o que espera a redenccedilatildeo de forma

iminente quanto aquele que a projetou para milhares de anos agrave frente satildeo tomados como

milenaristas Por isso o proacuteprio Gager refina sua definiccedilatildeo argumentando que a espera

indefinida pelo reino milenar natildeo seria propriamente milenarista Afinal os sacerdotes reais

persas que lanccedilaram o ldquotornar maravilhosordquo de Zaratrusta para sete mil anos agrave frente natildeo

poderiam ser chamados propriamente de milenaristas609 O caraacuteter iminente da crenccedila

milenarista manifesta uma rejeiccedilatildeo da presente ordem social Quando o fim da ordem

presente eacute lanccedilado para um futuro longiacutenquo e indeterminado o resultado eacute a legitimaccedilatildeo

do mundo cotidiano Nos termos de John Collins ldquojulgamento adiado providencia confianccedila

no presenterdquo610

Retomando a definiccedilatildeo de milenarismo o termo tem origem no vocaacutebulo latino

ldquomillerdquo usado para traduzir a palavra grega ldquordquo de Apocalipse 201-10 Ele ganhou um

sentido lato entretanto no campo dos estudos sociais passando a indicar uma determinada

expectativa de movimentos ou grupos611 Cohn como jaacute indicamos anteriormente descreveu

o fenocircmeno como uma ldquoutopiardquo Mas ele eacute propriamente uma reflexatildeo sobre o tempo uma

filosofia da histoacuteria um sistema de representaccedilotildees graacutevido de praacuteticas que se manifestam

em grupos comunidades cultos e movimentos Podemos falar destes entatildeo como cultos

seitas ou movimentos milenaristas Figura significativa entre estas representaccedilotildees e praacuteticas

eacute o profeta milenarista que se torna o seu vulgarizador apologeta e pregador Em algumas

circunstacircncias em torno dele surge um grupo Em outras como no caso de Joatildeo e Joaquim

haacute uma relaccedilatildeo diacrocircnica entre o fundador e os grupos que se dizem seus porta-vozes como

o movimento inspirado nas profecias joaninas de Montano Priscila e Maximila a partir da

deacutecada de 160 nas proviacutencias romanas da Aacutesia menor612 ou a inspiraccedilatildeo joaquimita do grupo

607 Cf KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge

University Press 1990 p 3 608 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 p 57 609 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no

Apocalipse Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 135 610 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do

Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 11 611 TALMON op cit p 349 Henri Desroche cunhou a expressatildeo ldquohomens da esperardquo para fazer referecircncia a

pessoas que aguardam algum tipo de mudanccedila histoacuterica a posteriori Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de

messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 16 612 PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation New York Penguin

Books 2012 p 103-107

182

em torno de Amaury de Begravene na Paris do iniacutecio do seacuteculo XIII condenado formalmente no

IV Conciacutelio de Latratildeo (1215)613

Segundo Norman Cohn um dos mais antigos destes profetas milenaristas surgiu no

Iratilde antigo e ficou conhecido como Zoroastro614 A partir do zoroastrismo em sua

manifestaccedilatildeo imperial persa o fenocircmeno teria transitado para o Judaiacutesmo quando

expressotildees de uma redenccedilatildeo futura deram origem a diversos movimentos ou seitas Uma

destas nascida das pregaccedilotildees do profeta Jesus de Nazareacute e subjacente ao Apocalipse tinha

como significativos traccedilos iniciais uma resiliente combinaccedilatildeo de milenarismo e

messianismo615

Cada profeta milenarista ou movimento milenarista tem particularidades uacutenicas

Mesmo assim eles apresentam alguns traccedilos em comum que eacute o que permite categorizaacute-

los em diferentes lugares e eacutepocas sob o mesmo termo616

Coletiva o povo feliz

A salvaccedilatildeo no milenarismo natildeo eacute de natureza individual mas expectativa de um

grupo ou para um grupo O milenarista natildeo deseja alcanccedilar a salvaccedilatildeo sozinho pois espera

compartilhaacute-la com uma comunidade de pessoas ldquoeleitasrdquo O fenocircmeno assim tem uma

orientaccedilatildeo coletiva O reino milenar do Apocalipse espera ser povoado por uma multidatildeo de

maacutertires ressuscitados O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim veraacute uma humanidade inteira em

paz e contemplaccedilatildeo quando um grande grupo de pessoas se converterem agrave feacute da Igreja latina

especialmente os judeus

Apesar dos leitores posteriores de Joatildeo terem ampliado o puacuteblico do milecircnio em

Apocalipse 20 ele eacute exclusivo daqueles que foram degolados pelas bestas do Dragatildeo o que

pode representar toda a crise do profeta com as mortes violentas ou as notiacutecias de mortes

violentas na guerra judaico-romana De fora ficam natildeo apenas os seus ldquoirmatildeosrdquo que natildeo

alcanccedilarem tal morte (participariam da ldquosegunda ressurreiccedilatildeordquo) mas tambeacutem todos aqueles

que natildeo compartilham de sua perspectiva de Jesus como o Messias de Deus Estes uacuteltimos

613 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 61 614 Para Cohn Zoroastro ldquoeacute o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo especiacutefico de profeta ndash os

chamados lsquomilenaristasrsquordquo Cf COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 133 615 TALMON op cit p 350 616 Como argumentou Paul Veyne os fenocircmenos histoacutericos natildeo se organizam atraveacutes de periacuteodos e de povos

mas atraveacutes de noccedilotildees Mais do que inseridos no seu tempo eles precisam ser postos sob um conceito Cf

VEYNE Paul O inventaacuterio das diferenccedilas Lisboa Gradiva 1989 p 33

183

por sinal entendidos por Joatildeo como seguidores das bestas e do Dragatildeo seriam destruiacutedos

na parousia Natildeo haacute sobreviventes para o reino dos maacutertires O milecircnio para o Apocalipse

soacute seraacute alcanccedilado pela porta do martiacuterio

Neste tipo de milenarismo algumas pessoas alcanccedilam a redenccedilatildeo outras satildeo

destruiacutedas no processo Haacute um dualismo baacutesico uma divisatildeo fundamental da humanidade

entre fieis e infieacuteis entre seguidores e natildeo-seguidores entre crentes e increacutedulos entre justos

e perversos A histoacuteria humana eacute vista como uma luta contiacutenua entre os filhos de Deus contra

os aliados de Satanaacutes De qualquer forma nem no Apocalipse ou no Expositio haacute criteacuterios

de raccedila grupo eacutetnico ou naccedilatildeo para compor a terra da felicidade Em ambos os casos a

participaccedilatildeo se daria em funccedilatildeo de opccedilotildees religiosas

Haacute uma forte ecircnfase na exclusatildeo em Joatildeo e um relativo inclusivismo em Joaquim

com sua expectativa de conversatildeo geral apoacutes o levantamento do Anticristo Apesar de sua

ecircnfase nos monges o descanso natildeo eacute soacute para eles A sociedade da Terceira Era natildeo seria

formada apenas por membros do corpo monaacutestico mas caberiam diversos outros grupos

sociais como a Dispositio o demonstra617 Em seus esquemas o abade fala de uma era de

casados outra de cleacuterigos outra de monges expressotildees que precisam ser entendidas na oacutetica

do protagonismo Na primeira Era o protagonismo foi dos casados na segunda dos cleacuterigos

na terceira dos monges A Dispositivo representaccedilatildeo da sociedade ideal de Joaquim

apresenta sete oratoacuterios cinco satildeo de monges um para o clero e um para os casados Ele vecirc

uma loacutegica de procedecircncia entre as ordens dos casados procedem os cleacuterigos dos cleacuterigos

os monges Mas um natildeo significa o fim do outro Neste tipo de perspectiva a Trindade se

revela na histoacuteria imprimindo nela as caracteriacutesticas peculiares de cada pessoa divina e um

caraacuteter dinacircmico e progressivo cuja meta eacute uma sociedade protagonizada por monges

contemplativos

Eacute possiacutevel fazer ainda uma reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo entre a comunidade futura ideal

e a comunidade real do presente do milenarista Apocalipse e Expositio satildeo produccedilotildees de

liacutederes carismaacuteticos Joatildeo era um profeta itinerante das igrejas da Aacutesia Joaquim era um

abade que conseguiu atrair um grupo de disciacutepulos para as montanhas de Fiore e a partir

deles fundou uma casa monaacutestica e uma ordem religiosa Neste sentido suas obras visavam

a uma comunidade seus textos buscavam operar no interior de um grupo Representaccedilotildees

617 Cf Anexo 5

184

individuais natildeo satildeo elementos estanques mas se relacionam com representaccedilotildees sociais618

Joatildeo e Joaquim representam determinados grupos Suas falas satildeo representativas de

expectativas mesmo que parcialmente compartilhadas entre profeta e comunidade No caso

de Joatildeo sua audiecircncia natildeo lhe eacute totalmente amistosa Ele enfrenta adversaacuterios no interior

das igrejas e deseja com seu Apocalipse simultaneamente convocar os aliados e atacar os

inimigos Joaquim tambeacutem tem alguns adversaacuterios mesmo que seja em escala diferente Ele

enfrenta resistecircncia da Ordem Cisterciense em funccedilatildeo de ter abandonado a abadia de

Corazzo Mas os grandes adversaacuterios de ambos os autores estatildeo ldquodo lado de forardquo de seus

ciacuterculos a sociedade romana para Joatildeo619 os muccedilulmanos para Joaquim Satildeo estes

adversaacuterios os grandes excluiacutedos do reino dos maacutertires ou do saacutebado do Espiacuterito

Terrena o lugar perfeito

Joatildeo de Patmos pode ter testemunhado a morte de muitos de seus irmatildeos e ouvido

falar do martiacuterio de vaacuterios outros Seu texto manifesta a expectativa de acentuada

perseguiccedilatildeo da sociedade romana para um futuro proacuteximo Estes aspectos parecem marcar

sua descriccedilatildeo do passado e do futuro das comunidades de Jesus Tal conjunto de

representaccedilotildees tem o potencial de produzir ruptura em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano e gerar

ansiedade pelo reino milenar Apesar de sua breve descriccedilatildeo no episoacutedio de Apocalipse 20

Joatildeo tambeacutem registrou a mesma expectativa no iniacutecio da segunda seccedilatildeo de sua obra

(Apocalipse 5) Nesta passagem o autor relatou o hino que ele teria ouvido da parte de Vinte

e quatro Presbiacuteteros Celestiais ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste

morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e

naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

(Apocalipse 59-10) Este hino ao ldquoCordeirordquo eacute uma metaacutefora para descrever Jesus e sua

morte seis deacutecadas atraacutes Segundo Joatildeo a morte daquele que ele tem como Messias foi uma

estrateacutegia divina para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo

exclusivo fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus620 Mesmo que as formas verbais estejam no

618 OLIVEIRA Maacutercio de O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves

Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre v 13 n 22 p 67-94 2012 p 71 619 Eacute interessante destacar que a Palestina desde a deacutecada 60 antes da Era Comum era parte do Impeacuterio

Romano Os judeus eram formalmente membros deste Impeacuterio Isso natildeo foi o suficiente para que Joatildeo se

sentisse parte do ldquomundo romanordquo Pelo contraacuterio numa perspectiva sectaacuteria ele rejeita a sociedade que lhe

cerca 620 CHARLES J Daryl A Apocalyptic Tribute to the Lamb (Rev 51-14) Journal of the Evangelical

Theological Society Chicago v 24 n 4 p 461-473 1991 p 471

185

passado como se fossem eventos jaacute realizados por Jesus621 o final do hino manifesta a

mesma expectativa de Apocalipse 20 um reino sobre a terra622

Ao contraacuterio de Joatildeo entretanto a relaccedilatildeo de Joaquim com a sociedade circundante

eacute bem favoraacutevel Joaquim natildeo enfrentou perseguiccedilatildeo As ameaccedilas do Capiacutetulo Geral da

Ordem Cisterciense natildeo podem ser descritas como tal jaacute que o abade contava com o apoio

papal e dos poderes constituiacutedos no reino da Siciacutelia Mesmo assim como Joatildeo as

expectativas joaquitas natildeo satildeo para aleacutem Ele tem elementos concretos no interior de suas

descriccedilotildees do saacutebado do Espiacuterito Sua ecircnfase neste caso se desloca de uma ressurreiccedilatildeo de

maacutertires para o descanso contemplativo monaacutestico que ele aprendeu a admirar apoacutes o retorno

de sua peregrinaccedilatildeo agrave Palestina A situaccedilatildeo de instabilidade poliacutetica no reino normando e os

eventuais embates entre o Impeacuterio e a Igreja romana parecem ter sensibilizado o abade de

Fiore o suficiente para que ele esperasse a paz como a principal marca do tempo do Espiacuterito

Sem conflitos uma humanidade pacificada poderia gastar os dias do descanso sabaacutetico em

contemplaccedilatildeo e comunhatildeo com a divindade Apesar de transformadas pela atuaccedilatildeo

sobrenatural do Espiacuterito na sociedade dos sonhos de Joaquim ainda haveria liturgia trabalho

e estudo marcas da espiritualidade cisterciense no milenarismo do abade623

Joatildeo espera por um periacuteodo milenar em que maacutertires ressuscitados governam julgam

e cultuam e Joaquim ansiou por um descanso sabaacutetico em que viri spirituales cultuassem

trabalhassem e estudassem Com isso ambos manifestam a principal caracteriacutestica do

milenarismo que eacute sua orientaccedilatildeo terrena quando a noccedilatildeo de um tempo ideal (o tempo do

milecircnio) eacute acompanhada da noccedilatildeo de um espaccedilo ideal (a terra do milecircnio)624 Daiacute a ecircnfase

na terra ou em algum lugar especiacutefico da terra em detrimento de uma dimensatildeo

transcendental

Segundo Cohn especialmente entre as religiotildees zoroastrianas judaicas e cristatildes

surgiu a noccedilatildeo de que a histoacuteria caminha na direccedilatildeo de seu fim um eschaton o fim dos

tempos ou o fim do mundo625 No contexto cristatildeo este ldquofim do mundordquo envolveria um juiacutezo

621 PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 124 622 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991

p 62 623 O confronto de Joaquim com os cistercienses de Corazzo e com as autoridades da ordem parece derivado

de sua percepccedilatildeo de que eles estavam sendo infieacuteis ao ldquoespiacuteritordquo de Bernardo de Claraval que ele chamava de

ldquoveneraacutevel pai Bernardordquo Joaquim achava que os cistercienses natildeo deram continuidade agrave reforma que

Bernardo comeccedilou mas ainda assim eles eram uma etapa importante na histoacuteria que o monasticismo deveria

percorrer ateacute atingir sua perfeiccedilatildeo Cf DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De

Joaquiacuten a Schelling Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 21 624 TALMON op cit p 352 625 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 286-294

186

final quando a divindade julgaria as pessoas vivas e mortas o universo material seria

consumido por ldquofogo purificadorrdquo deixando para os fieacuteis uma eternidade celestial

(Apocalipse 21-22) Para o autor de 2Pedro por exemplo o eschaton eacute o fim da vida na terra

como ele e a humanidade conheciam ldquoOra os ceacuteus que agora existem e a terra pela mesma

palavra tecircm sido entesourados para fogo estando reservados para o dia do Juiacutezo e destruiccedilatildeo

dos homens iacutempiosrdquo (2Pedro 37) Em termos socioloacutegicos esta expressatildeo escatoloacutegica

poderia ser definida como teodiceia uma tentativa de encontrar sentido para o sofrimento o

mal e principalmente a morte626

Profetas milenaristas frequentemente se voltam para a questatildeo do sofrimento e suas

causas Mas as expectativas natildeo-histoacutericas transcendentais parecem natildeo os atender Eles

esperam por uma transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de existecircncia na terra e natildeo em um mundo

natildeo-material Por isso as crenccedilas milenaristas antecipam parte das expectativas posteriores

ao fim do mundo para dentro da histoacuteria quando os fieacuteis seriam recompensados em seus

corpos em suas realidades materiais dentro do saeculum627 A paz a justiccedila e as condiccedilotildees

de existecircncia esperadas para um mundo porvir satildeo antecipadas para a terra

Derivadas dessa ecircnfase terrena estatildeo algumas diferenciaccedilotildees futuras dos fieacuteis As

descriccedilotildees feitas por Joaquim da sociedade do Espiacuterito indicam alguma relaccedilatildeo entre espaccedilo

e status O status estaraacute ligado agrave posiccedilatildeo diante do centro da sociedade espiritual ocupada

pelo pater spiritualis Este tipo de diferenciaccedilatildeo foi feita apenas de forma relativa por Joatildeo

quando ele descreveu duas ressurreiccedilotildees a primeira para os martirizados e membros do reino

milenar a segunda para os demais fieacuteis No Apocalipse os maacutertires formam uma espeacutecie de

fiel ideal acentuando o valor religioso do martiacuterio

Curiosamente o ideal asceacutetico manifesta-se nas duas visotildees Joatildeo espera que os

144000 guerreiros escatoloacutegicos do Cordeiro sejam virgens e castos (Apocalipse 141-5) o

abade de Fiore lanccedilou aqueles que ainda continuaratildeo casados no Oratoacuterio mais baixo da

Dispositio separados dos demais por um grande espaccedilo Para os dois religiosos o sexo

oposto eacute perigoso e isso se reflete nas suas descriccedilotildees idealizadas do futuro

626 BERGER Peter L O dossel sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulus

1985 p 65 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 6 627 Landes toma esta expressatildeo de Agostinho para falar da passagem contiacutenua do tempo da mateacuteria e da

histoacuteria Cf LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 7

187

Total inversatildeo escatoloacutegica

O conceito milenarista de redenccedilatildeo eacute total no sentido de que a nova era natildeo traraacute

meramente uma melhora nas condiccedilotildees de vida mas um movimento na direccedilatildeo de condiccedilotildees

perfeitas de existecircncia dentro da histoacuteria As tais ldquocondiccedilotildees de perfeiccedilatildeordquo entretanto

variam em funccedilatildeo das conjunturas histoacutericas dos expoentes do milenarismo Antigas

expectativas judaicas esperavam por um tempo em que os instrumentos de guerra seriam

transformados em arados e foices para trabalhar o campo (Isaiacuteas 21-5) lobos e leotildees

andariam juntos com ovelhas e cabritos e crianccedilas brincariam com serpentes sem se

machucar (Isaiacuteas 61-9) Estas expectativas parecem fazer sentido em comunidades rurais

em crise com conjunturas de opressatildeo aristocraacutetica628 Jaacute os milenaristas de Tabor na

Boecircmia do seacuteculo XV esperavam um milecircnio literal de banquete perpeacutetuo com a supressatildeo

de toda autoridade quando as mulheres poderiam conceber seus filhos sem qualquer

participaccedilatildeo masculina e homens tambeacutem dariam agrave luz629

A inversatildeo escatoloacutegica idealizada por Joatildeo assim esperava o fim de todas as

guerras e violecircncias contra os seguidores de Jesus que viveriam na terra como reis juiacutezes e

sacerdotes expectativas que apontam para o desejo de empoderamento de pessoas agrave margem

do poder A descriccedilatildeo do milecircnio do Apocalipse pretende ser uma inversatildeo de soberanias

Os poderes do presente seriam destronados os sem poderes seriam entronizados e exaltados

Joaquim igualmente aguarda um periacuteodo de felicidade na terra mesmo que

pequeno em que os fieacuteis experimentaratildeo acima de tudo paz com o fim de todos os

conflitos No calabrecircs entretanto natildeo haacute espaccedilo para monarquias ou reis Mesmo que sua

hostilidade contra o Impeacuterio Germacircnico tenha desaparecido no final do Expositio em relaccedilatildeo

agraves suas primeiras exposiccedilotildees do Apocalipse630 ainda assim Joaquim possui a visatildeo de que

se a histoacuteria eclesiaacutestica fora marcada pelo conflito contra os poderes seculares estes

deveriam desaparecer na Terceira Era Somente a Igreja sobreviveria entatildeo transformada

em uma grande instituiccedilatildeo monacal

Gager argumenta que esta caracteriacutestica do milenarismo teria relaccedilatildeo com algum tipo

de privaccedilatildeo poliacutetica econocircmica social religiosa ou uma mistura de cada uma delas Os

milenaristas segundo este historiador aposentado da Princeton University ldquose sentem

628 LANDES Richard A Millennialism in the Western World op cit p 455 629 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 106 630 POTESTA Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p

318-319

188

desfavorecidos de alguma formardquo631 Ele estaacute ciente entretanto que existe muito mais gente

que sofre privaccedilatildeo do que membros de movimentos milenarista Por isso ele enfatiza que a

privaccedilatildeo natildeo precisa ser efetiva Ela pode ser relativa qual seja ldquouma relaccedilatildeo desigual entre

expectativa e os meios de satisfaccedilatildeordquo632 Eacute um tipo de condiccedilatildeo que surge quando novas

esperanccedilas se manifestam mas permanecem natildeo cumpridas

Esta sugestatildeo de Gager poderia ser usada para distinguir o milenarismo de Joatildeo e

Joaquim O profeta de Patmos era membro de um grupo marginal de uma das proviacutencias

orientais do Impeacuterio romano Vaacuterios de seus conterracircneos foram mortos em uma guerra

contra Roma em que causas poliacuteticas econocircmicas sociais e religiosas se encontravam

misturadas A proviacutencia da Aacutesia era uma das mais ricas do Impeacuterio mas figuras como Joatildeo

se sentiam isolados desta riqueza633

Do outro lado o calabrecircs era um abade bem situado e respeitado Norman Cohn

trabalhou em sua obra uma seacuterie de movimentos milenaristas medievais de tipo contestador

vinculados a grupos que viviam agrave margem quer da sociedade quer do poder634 Joaquim

natildeo era um milenarista deste tipo Ele natildeo estava na margem Ele estava perto do poder

Encontrou-se diversas vezes com papas monarcas rainhas e imperadores Era um dos mais

proeminentes abades do reino da Siciacutelia e talvez de toda a Itaacutelia635 Certamente entatildeo o

termo marginalizado natildeo poderia ser usado para descrever Joaquim de Fiore Ele natildeo se via

como marginalizado e natildeo era efetivamente um marginalizado636

A Era do Espiacuterito do abade natildeo parece ter relaccedilatildeo com algum tipo de privaccedilatildeo efetiva

No calabrecircs haacute mais propriamente a questatildeo das expectativas natildeo cumpridas Sua caminhada

religiosa parece evidenciar este aspecto Apoacutes o retorno da Palestina ele abraccedilou o

eremitismo depois procurou se envolver com um modelo monaacutestico cenobiacutetico em pelo

menos trecircs casas Sambucina Corazzo e S Trindade A forma como rejeitou inicialmente o

631 GAGER John G Kingdom and Community op cit p 25 632 Idem p 27 633 Conferir uma anaacutelise da criacutetica joanina agrave riqueza de Roma em KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio

imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 634 COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia

Lisboa Editorial Presenccedila 1970 635 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 636 Mc Ginn alerta que o perfil social da maioria daqueles que se valiam da retoacuterica apocaliacuteptica na Idade Meacutedia

natildeo era de um profeta isolado no alto de uma montanha mas pessoas bem-educadas cleacuterigos e liacutederes na

sociedade membros da corte e escribas Frequentemente ldquoeram poderosas figuras poliacuteticasrdquo Neste contexto

o milenarismo era uma tentativa de interpretar o seu proacuteprio tempo e assim dar suporte para patronos legitimar

a lideranccedila e perseguir determinados propoacutesitos poliacuteticos sociais e religiosos Cf MC GINN Bernard Visions

of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages New York Columbia University Press 1979 p 32

189

cargo de abade de Corazzo e deixou S Trindade indica uma ecircnfase religiosa no isolamento

e na contemplaccedilatildeo Apoacutes uma campanha para ingresso na Ordem Cisterciense abandonou

sua casa para fundar um monasteacuterio no isolamento de Fiore O ideal milenarista de Joaquim

parece revelar sua frustraccedilatildeo com a Igreja tanto latina quanto grega e com as formas de

monasticismo que ele tinha agrave disposiccedilatildeo Para o abade suas altas demandas religiosas natildeo

realizadas nas instituiccedilotildees que ele conhecia seriam atendidas finalmente quando o Espiacuterito

instaurasse a terceira Era da histoacuteria

De qualquer forma ambos os milenarismos refletem algum tipo de rejeiccedilatildeo da

presente ordem do mundo O milecircnio de Joatildeo reflete o conflito com a sociedade romana e

mesmo com outras comunidades de Jesus O de Joaquim com outras propostas de

espiritualidade cristatilde

Iminente bem perto de comeccedilar

Para Joatildeo o governo milenar de Cristo estava para acontecer a qualquer momento

Na sua perspectiva temporal as bestas estavam para iniciar o ataque final contra os fieacuteis

promovendo a morte de vaacuterios deles (Apocalipse 13) mas ao mesmo tempo viabilizando a

parousia de Jesus e a implementaccedilatildeo do milecircnio O autor do Expositio tambeacutem se entende

no limiar de uma nova era Por meio de caacutelculos complexos relacionados com sua

especulaccedilatildeo exegeacutetica o abade entendia que faltavam poucos anos para que os ldquosantosrdquo

experimentassem o refrigeacuterio tatildeo aguardado

Esta semelhante perspectiva quanto agrave urgecircncia dos tempos de Joatildeo e Joaquim

configura uma marca essencial do milenarismo um senso de premecircncia derivado da forma

como o fiel interpreta os eventos agrave sua volta Ele sente que a era salviacutefica estaacute proacutexima e

vive na expectativa de vecirc-la ou em preparaccedilatildeo para alcanccedilaacute-la O pressuposto para esta

confianccedila na proximidade da redenccedilatildeo tem relaccedilatildeo com a crenccedila na histoacuteria como um

processo preacute-determinado Neste sentido bastaria ter acesso a uma determinada chave de

leitura para que se pudesse prever cada uma de suas etapas Os profetas milenaristas

desejavam entender a histoacuteria sua unidade sua estrutura seu objetivo e seu fim637

Segundo Talmon haacute aqui uma combinaccedilatildeo entre consciecircncia histoacuterica de tempo e

consciecircncia miacutetica A perspectiva histoacuterica do tempo como uma sequecircncia de eventos um

637 Idem p 31

190

vir-a-ser de caraacuteter uacutenico e particular eacute combinada com uma consciecircncia de tempo ciacuteclico

infinito e repetitivo638 Afinal o milecircnio de Joatildeo eacute uma interrupccedilatildeo do vir-a-ser um

parecircntese na histoacuteria Natildeo eacute ainda o destino derradeiro dos maacutertires jaacute que apoacutes o juiacutezo final

o profeta descreve uma Nova Jerusaleacutem em termos meta-histoacutericos (Apocalipse 21-22) Na

perspectiva joanina o milecircnio eacute uma demanda da justiccedila divina pois os fieacuteis martirizados

precisavam reinar com seu Cristo na mesma terra que os martirizou

Em Joaquim a sociedade milenar eacute uma antecipaccedilatildeo da Jerusaleacutem celestial

igualmente revestida de historicidade e temporalidade Quando seu periacuteodo acabar chegou

o fim do mundo Joaquim natildeo reflete longamente sobre o que vem a seguir Isso faz com que

sua Nova Era tenha como alvo esta nova sociedade espiritual na terra e natildeo alguma outra

num formato transcendental Eacute uma sociedade ideal ainda com a presenccedila de estruturas

sociais (em torno dos sete oratoacuterios da Dispositio) e de papeacuteis sociais (os viri spirituales da

Dispositio ainda estudam cantam e trabalham)

Relacionado com a questatildeo da iminecircncia estaacute a seacuterie de desastres presente nos

vaticiacutenios milenaristas Para explicar tal caracteriacutestica o socioacutelogo francecircs Desroche

apontou um roteiro de trecircs tempos subjacentes aos milenarismos haacute um tempo de opressatildeo

que se agrava progressivamente ateacute atingir o auge da alienaccedilatildeo e injusticcedila haacute um tempo de

resistecircncia quando os fieacuteis satildeo separados marcados nas frontes por Deus testemunham

vestidos de saco resistem no deserto isolam-se na espera enfrentam o martiacuterio haacute um

tempo de libertaccedilatildeo quando o adversaacuterio eacute finalmente derrotado e os fieacuteis desfrutaratildeo da

paz divina639 Esta relaccedilatildeo entre opressatildeo e redenccedilatildeo gera no milenarista a sensaccedilatildeo de que

quanto pior ficar melhor eacute jaacute que as adversidades histoacutericas seriam sinais da iminecircncia da

intervenccedilatildeo divina640

Assim antes que os maacutertires ressuscitem o Apocalipse de Joatildeo descreve o funesto

convite para que abutres venham devorar as carnes mortas de reis comandantes e poderosos

ldquocarnes de cavalos e seus cavaleiros carnes de todos quer livres quer escravos tanto

pequenos como grandesrdquo (Apocalipse 1918) O refrigeacuterio dos santos de Joaquim por sua

vez soacute surgiria apoacutes a manifestaccedilatildeo do Anticristo e a morte de muitos fieacuteis Neste sentido a

638 TALMON op cit p 352 639 DESROCHE op cit p 50 640 Eacute um apelo nos termos de Desroche em desespero de causa ldquoum apelo em uacuteltima instacircncia uma vez que

as demais instacircncias desmoronaram E ateacute mesmo um apelo para que as demais instacircncias desmoronemrdquo Cf

DESROCHE op cit p 51

191

felicidade almejada natildeo chegaria antes de uma ldquoangustia temporumrdquo ou das duas

ldquotribulationesrdquo quando muitos fieis alcanccedilariam o martiacuterio641

Miraculosa a intervenccedilatildeo divina

Um movimento milenarista compartilha a crenccedila na transformaccedilatildeo do mundo

conjugando-a com um senso de mudanccedila iminente Neste contexto uma significativa

questatildeo guarda relaccedilatildeo com a agecircncia da transformaccedilatildeo ou seja quem traraacute o milecircnio e a

forma como ele viraacute Em sua definiccedilatildeo do fenocircmeno Norman Cohn chamou a atenccedilatildeo para

o aspecto miraculoso da expectativa milenarista no sentido de que uma transiccedilatildeo tatildeo

significativa da realidade precisa da intervenccedilatildeo de forccedilas sobre-humanas642

Eacute neste contexto que se insere o elemento messiacircnico quando a salvaccedilatildeo eacute esperada

sob a conduccedilatildeo de um redentor um mediador entre o ser humano e a divindade

Frequentemente milenarismo envolve messianismo apesar de que os dois fenocircmenos natildeo

necessariamente coincidem Eacute possiacutevel surgir a perspectiva messiacircnica sem a milenarista

Do outro lado nem sempre eacute preciso um messias para que haja a presenccedila do milenarismo

Milenarismo e messianismo satildeo fenocircmenos independentes que eventualmente se unem

mas o dicionaacuterio de Desroche estaacute cheio de casos de um sem o outro643

Especificamente o milenarismo de Joatildeo eacute do tipo messiacircnico jaacute que ele entende que

para que o milecircnio aconteccedila um enviado de Deus um messias o Jesus glorificado precisaria

atuar Para Joaquim entretanto este periacuteodo de paz seria alcanccedilado por meio da atuaccedilatildeo do

Espiacuterito Santo o promotor da felicidade terrena que o abade chamou de ldquodescanso sabaacuteticordquo

O saacutebado do Espiacuterito natildeo demanda a parousia para sua instauraccedilatildeo Tambeacutem natildeo haacute figuras

ungidas exercendo papeacuteis messiacircnicos nas representaccedilotildees joaquitas como um imperador

especial para trazer o ldquosaacutebadordquo ou um papa angelical para instauraacute-lo

O abade de Fiore natildeo esperava por um reino milenar de Jesus na terra Ele deslocou

o reino de Jesus para traz e o tornou um artiacutefice de um periacuteodo completo dentro da histoacuteria

(o segundo status) Com sua visatildeo de progresso contiacutenuo e natildeo de queda contiacutenua Joaquim

imaginou a humanidade se desenvolvendo por meio da atuaccedilatildeo do Pai na primeira Era

passando pela revelaccedilatildeo do Filho na segunda Era ateacute culminar na atuaccedilatildeo do Espiacuterito na

641 GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 75 642 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 11 643 DESROCHE op cit

192

terceira Era Seu milenarismo entatildeo natildeo espera por um Jesus exaltado na terra realizando

um governo com maacutertires ressuscitados Para o calabrecircs natildeo eacute o Filho a esperanccedila dos fieacuteis

e sim o Espiacuterito O tempo de um estava por terminar para que o outro pudesse comeccedilar

Joatildeo esperava um periacuteodo de paz para apoacutes o segundo advento de Jesus Sem Jesus

natildeo haveria felicidade na terra nem reinado dos martirizados nem inversatildeo escatoloacutegica

nem vitoacuteria sobre o Anticristo O milecircnio assim concebido era um parecircntese entre o

segundo advento de Jesus e o final da histoacuteria Um parecircntese que duraria mil anos

Para o abade poreacutem Jesus eacute o centro da histoacuteria mas natildeo o seu aacutepice O aacutepice estaacute

no final na etapa exclusiva do Espiacuterito e sem a demanda do segundo advento de Jesus

(parousia) Em vez de o Filho retornar para trazer a felicidade para a humanidade seu tempo

iria terminar e somente entatildeo debaixo exclusivamente do controle histoacuterico do Espiacuterito os

seres humanos experimentariam a paz Haacute um lugar para a parousia tambeacutem nas

expectativas de Joaquim mas para terminar a histoacuteria e natildeo para dentro dela Na sua visatildeo

quando o Filho retornar a histoacuteria termina o mundo acaba644 Neste sentido o milenarismo

de Joaquim natildeo eacute um milenarismo do Filho e sim do Espiacuterito

Outro aspecto ainda relacionado com a forma de instauraccedilatildeo do milecircnio se desdobra

no papel humano para seu estabelecimento Haacute alguns elementos nas representaccedilotildees

milenaristas que podem atuar para minimizar a atuaccedilatildeo do fiel como por exemplo a

perspectiva de uma redenccedilatildeo predeterminada e inevitaacutevel Neste caso o milenarista natildeo

precisa fazer a revoluccedilatildeo basta esperar pela sua manifestaccedilatildeo sobrenatural Entretanto em

algumas situaccedilotildees a certeza da operaccedilatildeo de acordo com o que estaacute determinado no plano

divino e a confianccedila na vitoacuteria final podem encorajar alguma atividade em vez de

passividade Este parece ser o caso do Apocalipse645 que atribuiu um papel significativo aos

ldquosantosrdquo na instauraccedilatildeo do reino messiacircnico (Apocalipse 69-11) Sem o martiacuterio natildeo haveria

o preenchimento da cota de mortos necessaacuteria para instaurar a parousia (Apocalipse 19) ou

para vencer o Dragatildeo (Apocalipse 12) O profeta de Patmos entende que eacute necessaacuterio algum

tipo de resistecircncia resistecircncia essa que provocaraacute o martiacuterio martiacuterio esse que provocaraacute a

parousia parousia essa que inauguraraacute o milecircnio Ele natildeo demandou uma reaccedilatildeo armada

dos seus seguidores mas esperava deles a rejeiccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo romana o culto

644 Apoacutes o terceiro ciacuterculo da Taacutevola XI do Liber Figurarum aparece a expressatildeo ldquofinis mundirdquo Cf Anexo 6 645 Adela Yarbro Collins definiu o modelo de resistecircncia presente no Apocalipse de Joatildeo como ldquopassivordquo

Mesmo assim ela admite algum tipo de sinergismo jaacute que a morte dos maacutertires aproxima o fiel do eschaton

Cf COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E

J Brill 1996 p 212

193

imperial Na perspectiva joanina quando os disciacutepulos se negassem a participar da adoraccedilatildeo

agraves ldquobestasrdquo eles seriam mortos evento que parece estar subjacente agrave descriccedilatildeo da morte das

Duas Testemunhas (Apocalipse 11) e dos 144000 Guerreiros do Cordeiro (Apocalipse

14)646

Assim no milenarismo do Apocalipse os fieacuteis participam na instauraccedilatildeo do reino

milenar por meio do derramamento do proacuteprio sangue Este tipo de milenarismo pode ser

descrito como revolucionaacuterio ao rejeitar a ordem presente e promover accedilotildees concretas dos

fieacuteis O martiacuterio eacute tomado como uma estrateacutegia de confronto contra a sociedade romana Em

sua descriccedilatildeo do milecircnio Joatildeo explicita que o fiel precisa viver de certo jeito e morrer de

certa forma para estar presente no reino milenar

Em Joaquim entretanto haacute uma reduccedilatildeo do papel humano na instauraccedilatildeo do

descanso do Espiacuterito relacionado justamente com a oacutetica do abade de que os eventos

escatoloacutegicos estatildeo jaacute definidos e determinados Compete aos saacutebios apenas entendecirc-los

anunciar sua chegada e preparar a humanidade para eles Esse caraacuteter de determinaccedilatildeo estaacute

presente no seu esquema da Concordia Natildeo se pode mudar a histoacuteria apenas se preparar

para ela O milenarismo joaquita entatildeo eacute do tipo passivo Natildeo eacute possiacutevel fazer algo para

apressar a chegada do refrigeacuterio dos monges Sua instauraccedilatildeo natildeo depende de pessoas mas

do tempo que precisa ser cumprido

A roda das apropriaccedilotildees

147 anos apoacutes a morte de Joaquim em 1349 o franciscano francecircs Jean de

Roquetaillade enquanto estava encarcerado numa prisatildeo em Avignon escreveu a obra Liber

secretorum eventuum647 Nela ele anuncia a chegada de uma grande tribulaccedilatildeo A Igreja

entatildeo liderada por um papa ldquoangeacutelicordquo saiacutedo dentre os frades menores seria ldquopurgadardquo de

seus erros A partir de entatildeo um grande tempo de paz e prosperidade invadiria o mundo

durante mil anos Roquetaillade como outros franciscanos desde Geraldo San Borgo era

um leitor de Joatildeo de Patmos e Joaquim de Fiore648 Estas apropriaccedilotildees entretanto

tencionavam o pensamento do abade de Fiore na direccedilatildeo de confrontos que natildeo estavam

646 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no

Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 169-175 647 Esta anaacutelise de Roquetaillade segue DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 55-57 648 Idem p 50-57 Conferir tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore e o franciscanismo medieval

Thaumazein Santa Maria v V n 11 p 119-139 2013

194

previstos pelo ldquopaciacuteficordquo calabrecircs649 No Liber secretorum eventuum seu autor natildeo se vale

do esquema das trecircs idades do mundo jaacute criticado pelo protocolo de Agnani durante o

processo contra Geraldo O milenarismo de Jean de Roquetaillade eacute como o de Joaquim

natildeo-messiacircnico mas retomou o quimeacuterico nuacutemero de Joatildeo mil anos Sem parousia como

Joaquim mas por mil anos como Joatildeo Apoacutes o fim deste longo periacuteodo de paz viria entatildeo

o fim do mundo O frade aprisionado tinha a convicccedilatildeo de que o milecircnio comeccedilaria em 1415

ou 1420

Roquetaillade eacute um exemplo dos diversos tensionamentos sofridos pelo pensamento

joaquita reacionaacuterios ou revolucionaacuterios religiosos ou seculares clericais ou leigos no que

se convencionou chamar de ldquojoaquimismordquo650 Quer no paraiacuteso de Dante651 ou nas cartas de

Colombo652 depois de posta em movimento a roda das apropriaccedilotildees653 joaquimitas natildeo

parou de girar para chegar ateacute nos termos de Delumeau agraves ldquoutopias ideoloacutegicas da eacutepoca

contemporacircneardquo654

De qualquer forma este foi apenas um dos veios pelos quais correu a leitura do

Apocalipse e o levou a influenciar direta ou indiretamente a arte a literatura e a cultura no

Ocidente655 O livro foi catalisador de uma seacuterie de movimentos no correr da histoacuteria como

o grupo camponecircs liderado por Thomas Muntzer no seacuteculo XVI656 e a desastrosa

comunidade de 75 pessoas em torno de David Koresh destruiacuteda por um incecircndio em 1993657

A cada nova geraccedilatildeo de leituras um conjunto de representaccedilotildees emerge com

desdobramentos em subsequentes praacuteticas sociais e religiosas Compete aos historiadores e

649 Delumeau assim descreveu Joaquim ldquoum profeta paciacutefico que semeia germes de violecircnciardquo Cf

DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 46 650 Conferir DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling Madrid

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do Apocalipse Cf PHELAN John Leddy The millennial kingdom of the Franciscans in the new world

Berkeley University of California Press 1970 p 17 653 Retomando Chartier apropriaccedilatildeo eacute o processo historicamente determinado de construccedilatildeo de sentido Cf

CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191

1991 p 179 654 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 57 655 Conferir uma descriccedilatildeo panoracircmica em KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford

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ANEXOS

210

Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1658

658 Mapa presente em DMITRIEV Sviatoslav City government in hellenistic and Roman Asia Minor Oxford

Oxford University Press 2005 p xiv

211

Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2659

659 Mapa presente em DMITRIEV op cit pxvi

212

Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia660

660 Mapa presente em LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge

University Press 2007 p xiii

213

Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185)661

661 Mapa presente em DITCHBURN David MACLEAN Simon MACKAY Angus (eds) Atlas de Europa

medieval Madrid Caacutetedra 2011 p 132

214

Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum662

662 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero Le tavole del Liber Figurarum di

Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000 p 13

215

Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios663

663 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 15

Page 3: VALTAIR AFONSO MIRANDA HISTÓRIA E MILENARISMO NO

CIP ndash Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Miranda Valtair Afonso

M672h Histoacuteria e Milenarismo no Apocalipse de Joatildeo de Patmos e no

Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore um estudo

comparativo Valtair Afonso Miranda -- Rio de Janeiro 2017

215 f

Orientadora Andreia Cristiana Lopes Frazatildeo da Silva

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria

Comparada 2017

1 Apocalipse de Joatildeo 2 Joaquim de Fiore 3 Milenarismo

4 Expositio in Apocalypsim I Silva Andreia Cristina Lopes

Frazatildeo da Orient II Tiacutetulo

BANCA EXAMINADORA

Titulares

Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (orientadora)

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profa Dra Leila Rodrigues da Silva

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof Dr Paulo Duarte Silva

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof Dr Paulo Augusto de Souza Nogueira

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo

Universidade Metodista de Satildeo Paulo

Profa Dra Monica Selvatici

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social

Universidade Estadual de Londrina

Suplentes

Prof Dr Andreacute Chevitarese

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profa Dra Carolina Fortes

Instituto de Histoacuteria

Universidade Federal Fluminense

DEDICATOacuteRIA

Agrave Elizete Rafael e Caroline

pela parceria e pelo companheirismo durante a produccedilatildeo desta pequisa

Agrave Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva

pelas orientaccedilotildees pacientes e significativas para esta jornada acadecircmica

Ao Programa de Estudos Medievais e seus coordenadores

pelo ambiente saudaacutevel de trocas e partilhas

ldquoOs milenaristas tiveram razatildeo de natildeo

desviar seu olhar da cidade terrestre e de natildeo

ver nela apenas um lugar de expiaccedilatildeo do

pecado Queriam realizar na terra um

primeiro esboccedilo da cidade celeste fazer

surgir nela o maacuteximo de felicidade e de

fraternidaderdquo

Jean Delumeau

RESUMO

Esta pesquisa analisou de forma comparativa os elementos milenaristas presentes no

Apocalipse de Joatildeo e no Expositio in Apocalypsim O profeta Joatildeo produziu um texto que

propotildee um milenarismo revolucionaacuterio que rejeita a ordem social romana e convida sua

comunidade a abandonar as estruturas religiosas imperiais especialmente a instituiccedilatildeo do

culto imperial esperando que isso provoque o martiacuterio dos seus membros e instaure os

eventos que culminaratildeo no retorno do Jesus Glorificado agrave terra para derrotar todos os

inimigos dos fieis ressuscitar os martirizados e implementar um reino durante mil anos Este

ldquoreino dos maacutertiresrdquo com Cristo parece ser o resultado de tradiccedilotildees messiacircnicas e

apocaliacutepticas do Judaiacutesmo antigo materializado no final do seacuteculo I no Apocalipse em

funccedilatildeo de traumas da guerra judaico-romana (66-70) de conflitos entre igrejas e sinagogas

e das diferentes respostas de lideres carismaacuteticos agrave questatildeo do relacionamento com a

sociedade romana Joaquim por seu turno esperava que a Terceira Era da histoacuteria da

humanidade culminasse num descanso sabaacutetico sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Apesar

de ser um periacuteodo relativamente curto a Era do Espiacuterito iria trazer sobre a humanidade o fim

dos conflitos que caracterizavam a histoacuteria eclesiaacutestica sob a lideranccedila de um pai espiritual

que governaria a sociedade nos moldes de uma casa monaacutestica Este ldquodescanso dos mongesrdquo

natildeo teve como ponto de partida entretanto diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim

as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que aguardava uma

fase de felicidade na terra anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica do milenarismo

joaquita na parte final do seacuteculo XII pode estar relacionada com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos

como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica

Palavras-chave Milenarismo Apocalipse de Joatildeo Joaquim de Fiore Filosofia da Histoacuteria

ABSTRACT

This research has analyzed in a comparative way the millenarian elements wich are present

in the Revelation of John and in the Expositio in Apocalypsim The prophet John produced

a text that proposes a revolutionary millenarianism which rejects the Roman social order and

invites its community to abandon the imperial religious structures especially the institution

of the imperial cult hoping that this provokes the martyrdom of its members and establishes

the events that will culminate in the return of the Glorified Jesus to the earth to defeat all

enemies of the faithful and to resurrect the martyred and to implement a kingdom for a

thousand years This kingdom of martyrs with Christ seems to be the result of messianic

and apocalyptic traditions of ancient Judaism which were materialized at the end of the first

century in the Apocalypse as a result of traumas of the Jewish-Roman War (66-70) of

conflicts between churches and synagogues and the different responses of charismatic

leaders to the question of the relationship with Roman society Joachim for his part hoped

that the Third Age of human history would culminate in a Sabbath rest under the inspiration

of the Holy Spirit In spite of being a relatively short period the Age of the Spirit would

bring to humanity the end of the conflicts that characterized ecclesiastical history under the

leadership of a spiritual father who would govern society in the mold of a monastic house

This rest of the monks did not have as its starting point however directly the millennium

of the Revelation but rather the historical reflections of Joachim and the tradition of the

refreshing of the saints that awaited a phase of happiness in the land before parousia The

historical emergency of Joachite millenarism in the late 12th century may be related to the

combination of phenomena such as apocalypticism and monastic reform

Abstract Millenarianism Revelation of John Joachim of Fiore Philosophy of History

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA 11

I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO 27

11 O autor do Apocalipse 27

12 A data do Apocalipse 35

13 O propoacutesito do Apocalipse 38

14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse 44

15 Resumo 47

II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA 48

21 Patmos o ponto de partida 48

22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia 50

23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia 52

24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia 54

25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo 59

26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo 61

27 Resumo 63

III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO 65

31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse 65

32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo 67

33 O contexto narrativo do reino milenar 69

34 O episoacutedio do reino milenar 71

35 O reinado messiacircnico interino na terra 76

36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 82

37 Resumo 88

IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 89

41 O autor do Expositio in Apocalypsim 89

42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim 98

43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim 100

44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse 106

45 Resumo 107

V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA SICIacuteLIA 108

51 A chegada dos normandos 110

52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia 111

10

53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen 113

54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada 114

55 A Igreja no Reino da Siciacutelia 118

56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda 121

57 Resumo 124

VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA DE JOAQUIM 126

61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo 126

62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo 130

63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde 134

64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas 137

65 Sensus typicus histoacuteria e profecia 139

66 O dom da exegese 142

67 Resumo 143

VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 144

71 Estrutura literaacuteria do Expositio 144

72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim 146

73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio 154

74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito 159

75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito 165

76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 171

77 Resumo 176

CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO DOS MONGES 178

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 196

ANEXOS 209

Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1 210

Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2 211

Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia 212

Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185) 213

Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum 214

Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios 215

INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA

Possivelmente as igrejas espalhadas pela Aacutesia Menor no final do seacuteculo I se

originaram da atividade religiosa de Paulo de Tarso na regiatildeo a partir do ano 58 da Era

Comum Natildeo havia centralizaccedilatildeo religiosa e cada comunidade se organizava e sobrevivia

do seu proacuteprio jeito Em termos de lideranccedila estas comunidades levantavam seus quadros

internamente privilegiando formatos colegiados Mesmo assim uma antiga atividade

religiosa ainda se manifestava entre as igrejas a profecia Profetas itinerantes viajavam para

pregar suas mensagens em cada comunidade e se moviam em funccedilatildeo da ajuda que recebiam

destes grupos

Um destes profetas ainda dentro do primeiro seacuteculo mas vaacuterias deacutecadas apoacutes o iniacutecio

do movimento de Jesus ficou conhecido por causa de um livro em que registrou o que seriam

visotildees relacionadas com o final dos tempos conhecido como Apocalipse Nesta obra ele se

identificou simplesmente como Joatildeo e escreveu suas ldquorevelaccedilotildees divinamente recebidasrdquo a

respeito de fenocircmenos histoacutericos e realidades sobrenaturais durante uma permanecircncia ou

visita agrave Patmos uma pequena ilha do mar Egeu proacutexima de Mileto e Eacutefeso

O livro de Joatildeo escrito em grego comeccedila com a expressatildeo ldquorevelaccedilatildeo de Jesus

Cristordquo (ldquoApokaluyij vIhsou Cristourdquo) Tal ldquorevelaccedilatildeordquo pode ser dividida em linhas gerais

em trecircs partes cada uma apresentando um conjunto de pequenos episoacutedios interconectados1

Na primeira (Apocalipse 1-3) Joatildeo descreve o aparecimento do ldquoFilho do Homemrdquo que lhe

revela o conteuacutedo de sete cartas que deveriam ser encaminhadas para sete igrejas A segunda

seccedilatildeo da obra (Apocalipse 4-11) registra o que Joatildeo teria visto apoacutes uma viagem espiritual

ao ceacuteu O conteuacutedo desta segunda visatildeo eacute narrado por meio da abertura de um rolo selado

com sete selos Eacute uma histoacuteria modelada pelas tradiccedilotildees judaicas sobre o fim do mundo que

culmina na implantaccedilatildeo de um esperado reino messiacircnico A uacuteltima seccedilatildeo do livro eacute bem

maior (Apocalipse 12-22) consumindo a metade da obra Nela se desdobra a histoacuteria da

guerra entre uma figura demoniacuteaca o Dragatildeo Vermelho e o Cordeiro siacutembolo usado por

Joatildeo para fazer referecircncia a Jesus fundador do movimento morto em Jerusaleacutem no iniacutecio

do seacuteculo No Apocalipse entretanto Jesus estaacute vivo e aparece descrito em categorias

1 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa

Polebridge Press 1998 p 10-16 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro Representaccedilatildeo e

construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 32-38

12

exaltadas como um ser angelical ou mesmo divino Esta narrativa de guerra escatoloacutegica eacute

uma estrateacutegia do autor para descrever a histoacuteria na forma de conflitos violecircncia e morte

tanto dos seguidores de Jesus quanto dos seguidores do Dragatildeo num processo contiacutenuo que

terminaria na intervenccedilatildeo divina para a construccedilatildeo de uma realidade paradisiacuteaca

transcendental que Joatildeo chamou de Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 211-27) Esta realidade

para aleacutem da histoacuteria entretanto seria precedida pela realizaccedilatildeo histoacuterica de um reino na

terra durante um periacuteodo de mil anos (Apocalipse 201-10)

Haacute evidecircncias de leitura e uso religioso do Apocalipse durante os dois primeiros

seacuteculos por parte de diversos liacutederes de igrejas Estes primeiros leitores enfatizavam

especialmente a passagem do Apocalipse que fala do periacuteodo de mil anos de governo de

Jesus Cristo na terra ao lado dos seus seguidores Por causa desta ecircnfase no milecircnio estes

primeiros leitores foram chamados eventualmente de quiliastas (termo derivado da palavra

grega traduzida como ldquomilrdquo)2

Nem todas as igrejas entretanto deram o mesmo tratamento para o Apocalipse No

periacuteodo de Euseacutebio de Cesareia (265-339) algumas rechaccedilavam a obra joanina enquanto

outras o contavam entre ldquoos livros admitidosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XXV 1-4) De

qualquer forma a obra de Joatildeo de Patmos acabou se fixando no cacircnon do Novo Testamento

cristatildeo fenocircmeno que no Ocidente se deu mais cedo do que no Oriente Em 397 o Siacutenodo

de Cartago reconheceu-o como texto sagrado e na igreja grega no fim do seacuteculo quinto ele

jaacute tinha aceitaccedilatildeo geral3 A partir de entatildeo ele seraacute lido como obra sagrada pelas diversas

comunidades cristatildes tornando-se elemento significativo no fornecimento de imagens e

siacutembolos para composiccedilatildeo de diversas representaccedilotildees sociais antigas e medievais

Mais de mil anos depois de Joatildeo nasceu em Celico na Calaacutebria sul da Peniacutensula

Itaacutelica um homem chamado Joaquim Quando jovem foi educado para atuar como notaacuterio

a serviccedilo do Reino Normando da Siciacutelia mas acabou deixando a corte para abraccedilar a vocaccedilatildeo

monaacutestica Ele comeccedilou a vida religiosa como eremita mas depois ingressou em um

pequeno cenoacutebio em Corazzo na Calaacutebria terminando por fundar no final da vida uma

casa monaacutestica em Fiore a fim de receber os vaacuterios disciacutepulos que desejavam segui-lo Este

monge de meados do seacuteculo XII produziu uma longa reflexatildeo sobre a histoacuteria lastreada

sobre a exegese dos textos biacuteblicos sobre o dogma trinitaacuterio e principalmente sobre o livro

2 WAINWRIGHT Arthur W Mysterious Apocalypse interpreting the Book of Revelation Wipf and Stock

Publishers Eugene 2001 p 21 3 Idem p 33-34

13

do visionaacuterio de Patmos Segundo ele o curso inteiro da histoacuteria estaria ldquoescondidordquo no

Apocalipse embora suas reflexotildees sejam primariamente dirigidas para a histoacuteria da igreja

desde o nascimento de Jesus ateacute a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de felicidade na terra Joaquim

escreveu vaacuterias obras em que trabalhou este mesmo tema4

- Expositio de prophetia ignota Romae reperta Foi composta em 1184 apoacutes o

encontro entre Joaquim e o papa Luacutecio III e consiste na interpretaccedilatildeo de um texto encontrado

entre os documentos do falecido cardeal Matias de Angers relacionado com profecias cristatildes

tradicionais a respeito do fim dos tempos

- De septem sigillis Eacute um pequeno opuacutesculo composto por Joaquim para servir de

guia e resumo do seu esquema das perseguiccedilotildees paralelas do Antigo e Novo Testamentos

baseado nos sete selos do Apocalipse de Joatildeo

- Enchiridion super Apocalypsim Eacute um manual sobre o Apocalipse e deveria servir

de introduccedilatildeo agrave obra joanina Foi escrito durante o periacuteodo que Joaquim passou em

Casamari entre os anos 1183 e 1184

- Praephatio super Apocalypsim Eacute a reuniatildeo de dois pequenos sermotildees de Joaquim

sobre o Apocalipse de Joatildeo pregados possivelmente para os monges de Corazzo Foram

reunidos posteriormente e circularam como uma uacutenica obra por causa de afinidades

temaacuteticas Eacute a uacutenica obra de Joaquim traduzida para a liacutengua portuguesa5

- Adversus Iudaeos No formato de tratado este texto descreve uma expectativa de

conversatildeo geral dos judeus no final dos tempos

- De ultimis tribulationibus Pequeno texto em forma de oraccedilatildeo possivelmente

declamado durante um encontro lituacutergico no mosteiro de Fiore

- Expositio in Apocalypsim Joaquim o iniciou em 1183-1184 mas soacute foi concluiacutedo

entre 1198 e 1200 Eacute tambeacutem a maior obra de Joaquim escrita num latim denso e complexo

Eacute possiacutevel dizer entatildeo que o abade de Fiore desde que abraccedilou a vocaccedilatildeo

monaacutestica decidiu fazer o que Bernard McGinn chamou de ldquocomer o Apocalipserdquo ou digeri-

lo lentamente analogia ao texto do Apocalipse em que o visionaacuterio eacute convidado a comer um

4 Quanto agrave data das obras cf TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di

Gioacchino da Fiore In GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p

73-106 Para uma lista dos manuscritos joaquimitas cf REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the

Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 511-519 5 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse Veritas Porto Alegre v 47 n 3 p 453-471 2002

BERNARDI Orlando Comentaacuterio ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla

Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010

14

livro entregue por um anjo 6 Dentre seus vaacuterios textos evidentemente o destaque fica para

o Expositio jaacute que representa o trabalho final do abade sobre a obra joanina

A partir destes dois personagens o que fizemos nesta tese foi analisar de forma

comparativa o Apocalipse de Joatildeo e o Expositio de Joaquim Em funccedilatildeo mesmo da extensatildeo

das obras e das dificuldades provocadas pelas distacircncias geograacuteficas e temporais entre elas

focaremos na categoria descrita como ldquomilenarismordquo7 e os recortes textuais de Apocalipse

201-10 bem como sua apropriaccedilatildeo na seacutetima parte do Expositio in Apocalypsim (209v-

213r) Em termos especiacuteficos indagaremos sobre a forma como Joaquim interpretou o

milecircnio do Apocalipse e a concepccedilatildeo milenarista que aparece no final

Eacute preciso destacar que cada um de nossos objetos de pesquisa tem sua proacutepria

historiografia Sobre Joatildeo de Patmos e seu Apocalipse por exemplo eacute preciso mencionar

primeiramente o grande volume de obras que se propotildee a fazer uma interpretaccedilatildeo semi-

literal esperando que as visotildees de Joatildeo se convertam em cenas histoacutericas de futuro proacuteximo

tomando o livro joanino como um depoacutesito de profecias predominantemente de

cumprimento iminente Esta tradiccedilatildeo interpretativa nas suas principais configuraccedilotildees

contemporacircneas parecem retroceder a John Nelson Darby (1800-1882) e agraves notas da Biacuteblia

de Estudo Scofield cuja primeira ediccedilatildeo saiu em 19098 Nesta linha eacute possiacutevel mencionar

obras de enorme circularidade como The Late Great Planet Earth (1970) de Hal Lindsey

que vendeu mais de 20 milhotildees de exemplares na sua primeira deacutecada de publicaccedilatildeo9 ou a

seacuterie de dez novelas de Tim LaHaye e Jerry Jenkins intitulada Left Behind escritas de 1995

ateacute 2002 que ultrapassou a quantia de 63 milhotildees de coacutepias vendidas em 37 paiacuteses e 33

liacutenguas diferentes10 Esta tradiccedilatildeo pode ser caracterizada por algumas ecircnfases gerais como

a ideia de um arrebatamento secreto dos crentes fieacuteis a Jesus a conversatildeo final dos judeus

ao Cristianismo e um periacuteodo milenar de felicidade na terra O Apocalipse eacute tratado como

6 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale Gecircnova

Casa Editrice Marietti 1990 p 159 A passagem em questatildeo se encontra em Apocalipse 10 7 Adotamos aqui a concepccedilatildeo de ldquomilenarismordquo do historiador inglecircs Norman Cohn entendendo-a como um

tipo particular de utopia salvacionista que apresenta os seguintes traccedilos gerais coletiva jaacute que todos os fieacuteis

experimentariam a felicidade terrena em funccedilatildeo do fato de que essa felicidade seria alcanccedilada neste mundo e

natildeo numa realidade transcendente total pois aguarda uma completa inversatildeo de todos os males da terra

iminente jaacute que essa transformaccedilatildeo completa estaria perto de comeccedilar e miraculosa agrave luz da certeza de que

essa mudanccedila contaria com a ajuda de seres sobrenaturais Cf COHN Norman Na senda do milecircnio

milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 8 Sobre o papel significativo de John Nelson Darby e a Biacuteblia de Estudo Scofield na interpretaccedilatildeo

contemporacircnea do Apocalipse cf KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford

Blackwell Publishing 2004 p 24-25 WAINWRINGHT op cit p 82-83 9 WAINWRINGHT op cit p 84 10 MONAHAN Torin Marketing the beast Left Behind and the apocalypse industry Media Culture amp

Society Thousand Oaks n 30 p 813-830 2008 p 817

15

parte de um grande quebra-cabeccedila que revelaria por meio de coacutedigos e imagens eventos

dos dias contemporacircneos como o papel dos Estados Unidos no aparecimento do Anticristo

ou o surgimento de um liacuteder poliacutetico de origem socialista como o falso profeta de Apocalipse

13

Do outro lado normalmente vinculados a instituiccedilotildees universitaacuterias estatildeo

pesquisadores cujo foco reside em aspectos histoacutericos do Apocalipse Estudiosos desta linha

histoacuterica se preocupam com a relaccedilatildeo entre Joatildeo e o tempo de produccedilatildeo do Apocalipse

Sendo assim eles procuram perceber ateacute onde o autor na sua narrativa apocaliacuteptica reflete

os medos e esperanccedilas dos grupos que representa ou antagoniza Esses autores tendem a

procurar similaridades entre as visotildees de Joatildeo e eventos contemporacircneos do primeiro seacuteculo

Eles estudam as razotildees que teriam levado o autor ateacute a ilha de Patmos ateacute que ponto o

Impeacuterio Romano promoveu algum tipo de desconforto para as igrejas e as implicaccedilotildees do

governo de Domiciano sobre o movimento de Jesus no final do primeiro seacuteculo Essas

ecircnfases histoacutericas podem ser encontradas por exemplo em R H Charles11 G B Caird12

A Y Collins13 C Rowland14 Leonard Thompson15 C Bauckham16 E S Fiorenza17 e

David Aune18 Estudos como os de C J Hemer19 ainda podem ser uacuteteis para esclarecer

aspectos especiacuteficos das igrejas da Aacutesia menor

Uma significativa tendecircncia de pesquisa eacute a que busca trabalhar o livro de Joatildeo agrave luz

de questotildees como retoacuterica20 e gecircnero21 Esta linha transita do meacutetodo histoacuterico e literaacuterio

para um paradigma de interpretaccedilatildeo retoacuterica Dentro dessa tendecircncia estuda-se a obra de

11 CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New York Charles

Scribner amp Sons 1920 12 CAIRD G B A Commentary on the Revelation of St John the Divine New York Harper amp Row Publishers

1966 13 COLLINS Adela Yarbro The Apocalypse Wilmington Michael Grazier Inc 1982 14 ROWLAND Christopher The Open Heaven A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity

London SPCK 1982 15 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University

Press 1990 16 BAUCKHAM Richard The cliacutemax of Prophecy London T amp T Clark 1993 17 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation Vision of a Just World Minneapolis Augsburg Fortress 1991 18 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 AUNE David E Revelation

6-16 Nashville Thomas Nelson Publishers 1998 AUNE David E Revelation 17-22 Nashville Thomas

Nelson Publishers 1998 19 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield

Academic Press Ltd 1986 20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In

BARR David L (ed) The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta

Society of Biblical Literature 2006 p 243-269 21 PIPPIN Tina The heroine and the whore fantasy and the female in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 60 p 67-90 1992

16

Joatildeo em busca da funccedilatildeo almejada para cada seccedilatildeo ou narrativa do livro percebendo-as

como discursos que buscavam retoricamente convencer uma audiecircncia determinada acerca

das posturas idealizadas por Joatildeo vistas de uma maneira geral como asceacuteticas e sectaacuterias

O Apocalipse assim refletiria a tendecircncia de um profeta judeu que cria em Jesus como o

Messias e se percebia em crise com a sociedade22

A sociologia e a antropologia forneceram aos estudiosos importantes instrumentos

de anaacutelise que nas uacuteltimas deacutecadas comeccedilaram igualmente a resultar em influentes

publicaccedilotildees Festinger23 Norman Cohn24 e John Gager25 trabalharam o apocalipse

vinculando-o aos estudos de milenarismo e a movimentos religiosos sectaacuterios A obra de

Joatildeo poderia ser vista entatildeo como o resultado de uma comunidade oprimida em confronto

com uma dissonacircncia cognitiva difiacutecil de ser conciliada com a realidade O resultado eacute a

construccedilatildeo de um mundo simboacutelico alternativo e a projeccedilatildeo de temores e ressentimentos

para o futuro por meio das imagens apocaliacutepticas

No contexto latino-americano eacute possiacutevel apontar a contribuiccedilatildeo de autores que

aplicam ao Apocalipse uma hermenecircutica da libertaccedilatildeo O livro eacute utilizado para interpretar

realidades poliacuteticas e sociais de opressatildeo contra pobres e marginalizados Dentro desta

perspectiva a obra joanina deveria servir de instrumento para promoccedilatildeo de esperanccedila de

uma vida melhor bem como para estimular resistecircncia a situaccedilotildees de violecircncia e injusticcedila

Leituras deste tipo podem ser encontradas por exemplo em Mester e Orofino26 e Pablo

Richard27

Surgiu em Satildeo Paulo na virada do seacuteculo um grupo de estudiosos vinculados agrave

UMESP voltados para trabalhar o Apocalipse literaturas a ele relacionadas e o cristianismo

dos primoacuterdios por uma oacutetica multi-disciplinar onde os temas satildeo analisados com o apoio

de diversos olhares derivados das ciecircncias da religiatildeo Antropologia da religiatildeo sociologia

da religiatildeo fenomenologia da religiatildeo psicologia da religiatildeo histoacuteria das religiotildees religiotildees

22 Entre outros conferir SILVA David A de The Revelation to John a case study in apocalyptic propaganda

and the maintenance of sectarian identity Sociological Analysis Oxford v 53 n 4 p 375-395 1992 SILVA

David A de The social setting of the Revelation to John Conflicts within fears without Westminster

Theological Journal Philadelfia v 54 p 273-302 1992 23 FESTINGER Leon (ed) When prophecy fails a social and psychological study of a modern group that

predicted the destruction of the world London Pinter amp Martin Ltda 2008 24 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 25 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 26 MESTERS Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo A teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis

Vozes 2003 27 RICHARD Pablo Apocalipse reconstruccedilatildeo da esperanccedila Petroacutepolis Vozes 1996

17

comparadas e estudos literaacuterios Nesta linha trabalham autores como Paulo Nogueira28 e Joseacute

Adriano Filho29 entre outros

Jaacute a historiografia de Joaquim de Fiore parece ter sofrido um incremento a partir das

pesquisas de Herbert Grundmann no iniacutecio do seacuteculo XX30 Grundmann focava na produccedilatildeo

de uma biografia de Joaquim daiacute seu interesse nas hagiografias e narrativas antigas sobre o

abade Em 1960 ele editou duas destas antigas narrativas uma anocircnima e outra atribuiacuteda a

Rainers de Ponza que se tornaram entatildeo fontes fundamentais dos estudiosos

contemporacircneos sobre o abade de Fiore

No mesmo periacuteodo em que Grundmann pesquisava na Alemanha Ernesto Buonaiuti

especialmente a partir de 1930 trabalhava na Itaacutelia na ediccedilatildeo das obras de Joaquim de

pequeno porte O pesquisador italiano chegou a produzir uma anaacutelise abrangente do

pensamento joaquimita31 poreacutem concentrou-se em disponibilizar para os pesquisadores

ediccedilotildees criacuteticas das obras Ele tambeacutem traduziu algumas dessas obras para a liacutengua italiana

Outros estudiosos se envolveram no mesmo ofiacutecio de Buonaiuti fazendo com que as

seguintes obras jaacute apresentassem ediccedilotildees criacuteticas Tractatus super Quatuor Evangelia

(1930) De articulis fidei e Sermotildees (1936) Epistola universis Christi fidelibus e Epistola

domini Valdonensi (1937) Dialogi de prescientia Dei et predestinatione electorum (1938)

Enchiridion in Apocalypsim (1938) Hymnus de paacutetria coelesti (1899) Visio admiranda de

gloria paradisi (18991938) De vita sancti Benedicti et de officio divino secundum ejus

doctrinam (1951) Liber Figurarum (1953) Super flumina Babylonis (1953) De septem

sigillis (1954) Adversus Iudeos (1957) Carta Testamentaacuteria (1960)

Das grandes obras de Joaquim entretanto apenas uma recebeu ediccedilatildeo parcial E

Randolph Daniel editou Liber Condordiae Novi ac Veteris Testamenti32 As outras duas

Expositio in Apocalypsim e Psalterium decem chordarum somente estatildeo acessiacuteveis pelas

ediccedilotildees da Junta de Veneza (seacuteculo XVI) reimpressas em 19641965 pela Editora Minerva

de Frankfurt

28 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza (org) Religiatildeo de visionaacuterios apocaliacuteptica e misticismo no

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Loyola 2005 29 ADRIANO FILHO Joseacute O Apocalipse de Joatildeo como relato de uma experiecircncia visionaacuteria Anotaccedilotildees em

torno da estrutura do livro Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana Satildeo Paulo n 34 p 7-29 1999 30 GRUNDMANN Herbert Studien uumlber Joachim von Floris GMBH Springer Fachmedien Wiesbaden

1927 Para a historiografia anterior a Grundmann cf LA PINA George Joachim of Flora a critical survey

Speculum Cambridge v 7 n 2 p 257-282 1932 31 BUONAIUTI Ernesto Gioacchino da Fiore I tempi La vita Il messaggio Roma Consenza 1931 32 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Noui ac Veteris Testamenti

Independence Square American Philosophical Society 1983

18

O trabalho editorial das obras de Joaquim tem sido pontual e esporaacutedico Ainda haacute

muito espaccedilo para reflexotildees nesta aacuterea mesmo do material jaacute editado no iniacutecio do seacuteculo

XX em funccedilatildeo do avanccedilo no trabalho de restauraccedilatildeo de manuscritos antigos Vaacuterias obras

de Joaquim ainda precisam ser traduzidas para liacutenguas modernas o que facilitaria a pesquisa

e a compreensatildeo de seus textos Neste sentido eacute uacutetil apontar o trabalho de um dos membros

do conselho editorial do Centro Internazionale di Studi Gioachamiti Gian Luca Potestagrave Este

conselho desde que foi formado em 199533 tem como propoacutesito reeditar as obras de

Joaquim do iniacutecio do seacuteculo e promover a ediccedilatildeo de obras ainda natildeo editadas Potestagrave precisa

ser mencionado por ser um dos principais bioacutegrafos atuais de Joaquim especialmente depois

de sua obra Il tempo dellacuteApocalisse34

O professor alematildeo Kurt-Victor Selge outro membro do conselho editorial acima

mencionado argumentou que pelo menos trecircs fatores atrasaram a produccedilatildeo de ediccedilotildees

criacuteticas de Joaquim Primeiramente faltou apoio de alguma instituiccedilatildeo religiosa como

aquele que o luteranismo alematildeo deu para as Ediccedilotildees de Weimar das obras de Lutero ou o

papado para a Editio Leonina de Tomaacutes de Aquino a Ordem Florense fundada pelo abade

que poderia ser este apoio se enfraqueceu apoacutes sua morte ateacute desaparecer no seacuteculo XVI

por fim Joaquim se converteu num marginalizado da histoacuteria do pensamento cristatildeo Mesmo

sendo saudado por revolucionaacuterios e iluministas tal aceitaccedilatildeo natildeo se traduziu na fundaccedilatildeo

de alguma instituiccedilatildeo Nesse sentido o renovado interesse em Joaquim a partir do iniacutecio do

seacuteculo XX poderia ser explicado pelo aparecimento de uma ala modernista dentro da Igreja

Catoacutelica que buscava uma figura que legitimasse seu interesse por uma igreja mais livre e

pela busca de historiadores e filoacutesofos que se perguntavam por formas adequadas de vida

comunitaacuteria que poderiam mitigar a crise que a sociedade europeia carregava desde o seacuteculo

XIX As ideias de Joaquim chamaram a atenccedilatildeo desses estudiosos em nuacutemero cada vez

maior especialmente na Itaacutelia e Alemanha e depois tambeacutem na Espanha Inglaterra e

Estados Unidos35

Um outro tipo de pesquisa se debate natildeo com o proacuteprio Joaquim mas com o

desdobrar do seu pensamento dando origem ao que se convencionou chamar de

joaquimismo Pesquisadores desta linha se concentram em encontrar a influecircncia de Joaquim

33 HONEacuteE Eugegravene Joachim of Fiore The development of his life and the genesis of his works and doctrines

About the merits of Gian Luca Potestagraveacutes new biography Church History and Religious Culture Leida v 87

n 1 p 47-74 2007 p 49 34 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 35 Conferir esta anaacutelise em SELGE Kurt-Victor La edicioacuten criacutetica de las Opera omnia de Joaquiacuten de Fiore

Anuario de Historia de la Iglesia Navarra n 11 p 89-94 2002

19

em pensadores e escritores posteriores Em especial alguns estatildeo envolvidos em demonstrar

quais ideias de Joaquim deram iacutempetos a outras figuras e movimentos importantes Neste

acircmbito se situam autores como Marjorie Reeves36 Bernard McGinn37 e Henri de Lubac38

Estes livros se tornaram ponto de partida recente para os estudos sobre a influecircncia de

Joaquim e o desenvolvimento do joaquimismo

Nesta tendecircncia ainda se situam estudos que procuram sua contribuiccedilatildeo para a

teologia e a filosofia da histoacuteria em especial No primeiro caso apontamos Juumlrgen

Moltmann e o seu livro The Trinity and the Kingdom (1981) No segundo indicamos

pesquisadores brasileiros como Vicente Dobroruka e a busca pela relaccedilatildeo de Joaquim com

o pensamento de Ephraim Lessing (1995)39 e Noeli Dutra Rossatto sobre a relaccedilatildeo entre

Trindade e histoacuteria (2004)40 Eacute do historiador brasileiro Dobroruka a avaliaccedilatildeo de que o

sistema profeacutetico de Joaquim eacute considerado um dos pilares da moderna reflexatildeo acerca do

sentido da histoacuteria41

A partir das pontes levantadas pela historiografia aproximamo-nos das questotildees por

meio de um conjunto de conceitos oriundos da abordagem da histoacuteria cultural especialmente

promovidos pelo historiador francecircs Roger Chartier praacutetica representaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo42

Uma de suas aacutereas de pesquisa busca compreender as formas como a produccedilatildeo e recepccedilatildeo

de objetos culturais atuam na configuraccedilatildeo do mundo social Essa abordagem se mostra

revelante para nossa pesquisa justamente por promover uma histoacuteria do livro da leitura ou

das interpretaccedilotildees sociais o que nos ajuda a entender a operaccedilatildeo realizada por Joaquim de

Fiore e Joatildeo de Patmos em seus respectivos contextos Ambos satildeo produtores e receptores

de textos e tradiccedilotildees e consequemente por meio de suas praacuteticas e apropriaccedilotildees atuaram

na construccedilatildeo de novas representaccedilotildees sociais

36 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976

REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit 37 MCGINN Bernard The calabrian abbot Joachim of Fiore in the history of Western Thought New York

Macmillan Pub Co 1985 38 De LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore Madri Ediciones Encuentro 2011 39 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore Revista

Muacuteltipla Brasiacutelia v 5 n 8 p 9-28 2000 Cf tambeacutem sua obra DOBRORUKA Vicente Histoacuteria e

milenarismo ensaios sobre tempo histoacuteria e o milecircnio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 40 ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 41 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore op cit p 9 42 A noccedilatildeo de ldquopraacuteticardquo eacute intercambiaacutevel com produccedilatildeo cultural ldquoapropriaccedilatildeordquo tem relaccedilatildeo com recepccedilatildeo

cultural ldquorepresentaccedilatildeordquo entretanto carrega certa ambiguidade Em alguns momentos Chartier a usa para

falar de estruturas em outro do conteuacutedo das estruturas Cf CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre

praacuteticas e representaccedilotildees Algeacutes Difusatildeo Editorial 2002 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo

Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191 1991

20

Eacute possiacutevel entender as representaccedilotildees como classificaccedilotildees divisotildees e delimitaccedilotildees

que organizam a apreensatildeo do mundo social Elas satildeo categorias intelectuais elementos

mentais estruturantes da realidade exterior subjetivaccedilotildees de realidades materiais

organizadas segundo determinados padrotildees O ser humano jaacute nasce mergulhado num mundo

construiacutedo Ele natildeo participou de sua construccedilatildeo mas em algum momento precisou introjetaacute-

lo e estruturaacute-lo subjetivamente para que ele se tornasse o seu proacuteprio mundo43 Estas

representaccedilotildees individuais ou coletivas geram praacuteticas culturais como a produccedilatildeo de um

livro a verbalizaccedilatildeo dos discursos a idealizaccedilatildeo de comportamentos e valores especiacuteficos

em detrimento da estigmatizaccedilatildeo de outros

A noccedilatildeo dupla de representaccedilotildees e praacuteticas se constitui como poacutelo de um processo

amplo jaacute que natildeo apenas as representaccedilotildees geram praacuteticas mas tambeacutem as praacuteticas geram

representaccedilotildees O tal mundo social como representaccedilatildeo eacute formado por um processo

contiacutenuo de moldes e formas manifestados em discursos que tanto o apreendem quanto o

estruturam44 Numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre as praacuteticas e representaccedilotildees Chartier aponta

a apropriaccedilatildeo entendida como o processo pelo qual um sentido eacute historicamente

produzido45 Apropriaccedilatildeo tem a ver com construccedilatildeo de sentido interpretaccedilatildeo categoria uacutetil

para problematizar a dinacircmica entre sujeito produtor de cultura e sujeito consumidor de

cultura Um livro como objeto da cultura eacute o resultado da produccedilatildeo de sentido de um autor

mas tambeacutem gerador de sentidos nas matildeos de um leitor que se apropria da obra e cria novos

significados Uma anaacutelise das apropriaccedilotildees teria relaccedilatildeo com as condiccedilotildees e os processos de

produccedilatildeo de sentido Cabe descobrir como isso se daacute e verificar as novas formas

constitutivas de mundo46 a partir da leitura ou audiccedilatildeo jaacute que textos podem ser lidos ou

ouvidos em espaccedilos privados ou puacuteblicos Segundo Chartier a apropriaccedilatildeo natildeo se daacute de

forma passiva jaacute que quem recebe um texto pode promover uma apropriaccedilatildeo seletiva ou

mesmo criativa transformando e ateacute negando o sentido do texto lido47 Joaquim por

exemplo construiu um comentaacuterio biacuteblico gecircnero literaacuterio voltado primariamente para

buscar e criar sentidos atraveacutes da apropriaccedilatildeo do texto do Apocalipse de Joatildeo

43 BERGER Peter LUCKMANN Thomas A construccedilatildeo social da realidade tratado de sociologia do

conhecimento Petroacutepolis Vozes 1973 p 87 44 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 23 45 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 179 46 Para os socioacutelogos Berger e Luckmann ldquomundordquo eacute aquilo que as pessoas reconhecem ou entendem existir

independente de sua vontade ou independente delas Cf BERGER Peter LUCKMANN Thomas op cit p

10 47 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 10

21

Daiacute a necessidade de buscar as praacuteticas que organizam os modos de relacionamento

com os textos diferenciadas histoacuterica e socialmente48 Cada comunidade grupo ou

sociedade tem sua proacutepria maneira de ler e interpretar Haacute processos historicamente

condicionados de padronizaccedilatildeo de escrita (gecircnero literaacuterio) da mesma forma como de

leitura que criam limites para o que eacute possiacutevel escrever mas tambeacutem para o que eacute possiacutevel

ver no que estaacute escrito Satildeo as determinaccedilotildees enquadramentos e condicionamentos que

viabilizam tanto a produccedilatildeo quando a apropriaccedilatildeo de uma obra

A apropriaccedilatildeo eacute para o historiador francecircs uma relaccedilatildeo sempre dinacircmica e

dependente de uma seacuterie de fatores Neste sentido as determinaccedilotildees podem se materializar

em situaccedilotildees como a forma em que o manuscrito foi acessado o tipo de material os

procedimentos de leitura a competecircncia dos inteacuterpretes os viacutenculos sociais dos leitores ou

o espaccedilo da audiccedilatildeo49 Os atos de ler e interpretar estatildeo situados no limite entre leitores

determinados por suas posiccedilotildees e textos cujos significados dependem da forma como se

apresentam os discursos e as maneiras como eles satildeo acessados

A leitura neste caso pode gerar tanto representaccedilotildees quanto praacuteticas que natildeo se

identificam completamente com as do texto lido ou com o que o autor tentou imprimir em

sua obra50 Leitores inventam nos textos algo diferente daquilo que seria alguma intenccedilatildeo

autoral A leitura fragmenta o texto junta partes distantes preenche brechas e cria sentidos

Essa dinacircmica entre autor e leitor viabiliza o que Chartier chama de histoacuteria social

das interpretaccedilotildees ou anaacutelise das determinaccedilotildees fundamentais (sociais institucionais

culturais) dos textos e das leituras51 Daacute origem tambeacutem a uma histoacuteria da exegese ou da

hermenecircutica dos textos

O relacionamento das praacuteticas representaccedilotildees e apropriaccedilotildees se articulam com o

mundo social principalmente por trecircs aspectos

- o mundo eacute construiacutedo de forma contraditoacuteria pelos diferentes grupos que compotildeem

uma sociedade a partir de classificaccedilotildees e recortes que produzem as representaccedilotildees

- as praacuteticas promovem uma determinada identidade social uma definida maneira de

ser no mundo a indicaccedilatildeo simboacutelica de uma posiccedilatildeo ou um estatuto

- a proacutepria existecircncia do grupo ou da comunidade eacute marcada e confirmada pelas

formas institucionalizadas e objetivadas que se derivam das praacuteticas Eacute neste sentido que

48 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 181 49 Idem 50 Idem p 59 51 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 26 e 131

22

indiviacuteduos representam instituiccedilotildees e textos se tornam representativos de determinadas

posiccedilotildees sociais

Aqui Chartier alerta para um tipo de luta que natildeo eacute entre classes sociais mas entre

representaccedilotildees diferentes ou formas rivais defendidas por cada grupo para ordenar e

hierarquizar o mundo social52

Chartier nos ajudou a entender Joatildeo e Joaquim como mergulhados em diferentes lutas

de representaccedilotildees53 Nos seus textos eles manifestam conflitos sociais viacutenculos

institucionais e praacuteticas culturais Ambos em suas respectivas conjunturas histoacutericas satildeo

simultaneamente autor e leitor Eles se apropriam de fontes anteriores ou contemporacircneas

imprimindo nelas suas proacuteprias estrateacutegias de consumo de texto produzindo novos sentidos

que se materializaram em suas subsequumlentes obras Em vaacuterios momentos desta pesquisa nos

detemos em questotildees sobre as fontes que cada um leu como elas foram lidas e os sentidos

entatildeo construiacutedos Especialmente no caso do abade ele eacute um leitor expliacutecito do Apocalipse

de Joatildeo e seu comentaacuterio o resultado formal desta leitura

Nosso corpus documental assim leva em conta estes dois objetos de pesquisa com

histoacuterias textuais bem diferentes Enquanto o Apocalipse por fazer parte do cacircnon cristatildeo

tem o suporte das chamadas Sociedades Biacuteblicas54 o Expositio nem mesmo tem uma ediccedilatildeo

criacutetica

Em termos concretos existem cinco tipos de testemunhas55 do texto do Apocalipse

- seis papiros todos fragmentaacuterios

- onze manuscritos unciais trecircs deles com o texto completo

- 293 manuscritos minuacutesculos

- citaccedilotildees patriacutesticas

52 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 182 53 Em algum momento eacute possiacutevel que mesmo universos conflitantes sobrevivam simultaneamente Eacute o caso de

um grupo que constroacutei uma subsociedade dentro da sociedade maior formando uma espeacutecie de refuacutegio e base

para a manutenccedilatildeo do seu mundo dissidente Para isso ele precisa criar procedimentos para proteger a

existecircncia precaacuteria dessa subsociedade das ameaccedilas que vecircm de fora Um dos mais importantes procedimentos

seraacute a limitaccedilatildeo dos relacionamentos significativos para exclusiva ou predominantemente dentro do grupo

Os membros do grupo devem evitar se relacionar significativamente com pessoas de fora que possuem visotildees

divergentes de mundo surgindo entatildeo um comportamento sectaacuterio Cf NEWSOM Carol A The Self as

Symbolic Space Constructing Identity and Community at Qumran Atlanta Society of Biblical Literature

2007 p 12 54 Sobre a produccedilatildeo do texto criacutetico do Apocalipse cf DELOBEL J Le texte de lApocalypse Problegravemes de

meacutethode In Lambrecht (ed) LrsquoApocalypse Johannique et lrsquoApocalyptique dans le Nouveau Testament

Louvain University Press 1980 p 151-166 AUNE David E Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-clix 55 O termo ldquotestemunhardquo eacute usado em ediccedilotildees criacuteticas e obras de criacutetica textual do Novo Testamento para fazer

referecircncia a fontes que conteacutem de forma completa ou fragmentaacuteria o texto biacuteblico como por exemplo um

manuscrito uma traduccedilatildeo antiga uma citaccedilatildeo antiga ou uma transcriccedilatildeo em artefatos arqueoloacutegicos

23

- traduccedilotildees antigas

Estas testemunhas formam a base sobre a qual trabalham os estudiosos que preparam

ediccedilotildees criacuteticas do Apocalipse Dentre essas as trecircs primeiras (papiros unciais e

minuacutesculos) destacam-se na reconstruccedilatildeo do que teria sido o autoacutegrafo56 do Apocalipse pela

relaccedilatildeo direta com o grego idioma de origem da obra joanina

Os seis papiros (P18 P24 P43 P47 P85 e P98) contecircm apenas fragmentos de texto O

mais antigo destes o P98 datado para um periacuteodo tatildeo recuado quanto o seacuteculo II e

consequentemente a mais antiga testemunha textual do Apocalipse preserva apenas

Apocalipse 113-20 Os demais papiros foram produzidos entre os seacuteculos III e V57

Dentre os 11 manuscritos unciais relacionados com o Apocalipse (a A C P 046

051 052 0163 0169 0207 0229) apenas trecircs deles possuem o Apocalipse na sua forma

completa (a A e 046) Os demais preservaram apenas fragmentos como o MS 0169 que

conteacutem apenas Apocalipse 319-43Trecircs deles satildeo datados para o seacuteculo IV (a 0169 e 0207)

trecircs para o seacuteculo V (A C e 0163) um para os seacuteculos VII-VIII (0229) um para o seacuteculo IX

(P) e trecircs para o seacuteculo X (046 051 e 052) Isso significa que a coacutepia completa mais antiga

do texto grego do Apocalipse estaacute no MS a do seacuteculo IV localizado no London British

Museum58

293 manuscritos minuacutesculos satildeo conhecidos por conter pelo menos alguma parte do

Apocalipse Um eacute coacutepia do seacuteculo IX oito do seacuteculo X 35 do seacuteculo XI 30 do seacuteculo XII

58 do seacuteculo XIV 57 do seacuteculo XV 40 do seacuteculo XVI 13 do seacuteculo XVII cinco do seacuteculo

XVIII e dois do seacuteculo XIX Os outros 44 manuscritos minuacutesculos apresentam dificuldades

para a dataccedilatildeo com sugestotildees que variam do seacuteculo IX ateacute o XV59

O conjunto das jaacute mencionadas testemunhas textuais com a inclusatildeo das citaccedilotildees

patriacutesticas e as traduccedilotildees antigas pode ser estruturado em quatro tradiccedilotildees textuais

56 Termo utilizado para fazer referecircncia a um hipoteacutetico texto original Como os originais se perderam a funccedilatildeo

dos estudiosos eacute reconstruiacute-los por meio de comparaccedilatildeo e colagem de diversos tipos de testemunhas seguindo

criteacuterios como antiguidade estilo origem do manuscrito famiacutelia de manuscritos entre outros Conferir uma

descriccedilatildeo destes procedimentos em ALAND Kurt ALAND Barbara The text of the New Testament an

introduction to the critical editions and to the theory and practice of modern textual criticism Grand Rapids

William B Eerdmans Publishing Company 1989 p 280-316 ELLIOTT J K New Testament textual

criticism the application of thoroughgoing principles Leiden Brill 2010 p 13-52 VAGANAY Leon An

introduction to the New Testament textual criticism Cambridge Cambridge University Press 1982 p 52-88 57 AUNE David Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-cxxxviii 58 Idem p cxxxviii 59 Conferir a lista completa dos 293 manuscritos com dataccedilatildeo e descriccedilatildeo do conteuacutedo em AUNE David E

Revelation 1-5 op cit p cxxxix-cxlviii

24

- A primeira eacute denominada de ldquotexto neutrordquo por Aune que a considera a ldquoa melhor

testemunha do texto grego do Apocalipserdquo60 Ela consiste dos unciais A e C bem como do

minuacutesculo 2053

- A segunda consiste no P47 o mais antigo manuscrito do Apocalipse datado para o

segundo seacuteculo junto com o uncial a e as citaccedilotildees de Oriacutegenes

- A terceira parte do texto encontrado no comentaacuterio do Apocalipse de Andreas de

Cesareia na Capadoacutecia que escreveu entre 563-614 Tambeacutem se inscrevem nesta tradiccedilatildeo

textual as duas coacutepias da versatildeo geoacutergica do Apocalipse datadas para o seacuteculo X

- A quarta eacute a mais numerosa e recebe o tiacutetulo de ldquotexto bizantinordquo definida em linhas

gerais como de pouca confianccedila para a restauraccedilatildeo do autoacutegrafo61

A maioria dos manuscritos gregos do Apocalipse62 bem como as demais

testemunhas em linhas gerais guardam relaccedilatildeo predominantemente com o texto bizantino

Isso significa que os textos criacuteticos tendem a partir do texto neutro confrontando-o com a

segunda e terceira tradiccedilatildeo63 e em alguns poucos casos com o texto bizantino

A perspectiva desta histoacuteria textual do Apocalipse eacute uacutetil para o caso de confronto

entre as variantes textuais de alguma passagem especiacutefica do texto de Joatildeo mas o trabalho

eacute enormemente facilitado pelas ferramentas jaacute disponiacuteveis nas duas ediccedilotildees criacuteticas

publicadas

- ALAND Kurt (ed) The Greek New Testament Stuttgart Deutsche

Bibelgesellschaft 1994

- NESTLE Eberhard NESTLE Erwin ALAND Kurt (org) Novum Testamentum

Graece 27 ed Stuttgart Gesamtherstellung Biblia-Druck 1993

Ambas as ediccedilotildees utilizam o mesmo texto criacutetico mas variam na forma como

apresentam e organizam as variantes textuais Destacamos ainda que o papel da ediccedilatildeo

criacutetica do Apocalipse eacute de indicar o autoacutegrafo provaacutevel produzido por Joatildeo natildeo

necessariamente o texto lido por Joaquim nas bibliotecas monaacutesticas por onde passou

(Sambucina Corazzo Casamari e Fiore) Esta uacuteltima por sinal foi destruiacuteda num incecircndio

apoacutes a morte do seu fundador

60 Idem p clvi 61 Idem p clvii 62 Uma lista ampla destes manuscritos com anaacutelise individualizada pode ser encontrada em HOSKIER H

C Concerning the text of the Apocalypse London Bernard Quaritch Ltd 1929 2 v Outra anaacutelise estaacute

disponiacutevel em CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New

York Charles Scribner amp Sons 1920 2 v V 2 p 227-385 63 ELLIOTT op cit p 150

25

Natildeo se sabe quantas coacutepias dos manuscritos de Joaquim foram queimados neste

incecircndio De qualquer forma como jaacute argumentamos foram outros os motivos que

limitaram a difusatildeo dos manuscritos do abade Muito diferente do nuacutemero de testemunhas

de Apocalipse o Expositio in Apocalypsim sobreviveu em apenas seis manuscritos64

- MS 249 em Troyes na Biblioteca Municipal nos foacutelios 38-107 do seacuteculo XIII

- MS H 15 em Milatildeo na Biblioteca Ambrosiana nos foacutelios 65-160 do seacuteculo XIII

ou XIV

- MS Chig A VIII 231 em Roma na Biblioteca do Vaticano nos foacutelios 1-104 do

seacuteculo XIV

- MS 1411 em Roma na Biblioteca Casanatense foacutelios 1-91 do seacuteculo XIV

- MS Cent II 51 em Nuremberg na Stadtbibliothek nos foacutelios 127-373 do seacuteculo

XV

- MS Harley 3049 em Londres no Museu Britacircnico nos foacutelios 137-220 do seacuteculo

XV

- MS A 450 em Rouen na Biblioteca Municipal nos foacutelios 1-31 do seacuteculoXVI

No seacuteculo XVI entretanto a Junta de Veneza editou na forma de incunaacutebolo as trecircs

obras principais de Joaquim Concordia no ano 1519 Expositio e Psalterium em 1527 Estas

foram reimpressas no seacuteculo XX pela Editora Minerva Eacute esta ediccedilatildeo do Expositio in

Apocalypsim65 que usamos em nossa anaacutelise Ela estaacute composta por foacutelios escritos na frente

e no verso Apenas as partes frontais dos foacutelios satildeo numeradas de 1 a 224 Cada foacutelio ainda

tem duas colunas Sendo assim o Expositio eacute referenciado indicando-se o nuacutemero do foacutelio

e se eacute frente ou verso (ldquorrdquo quando for a parte frontal ldquovrdquo para o verso do foacutelio) Neste sentido

ele comeccedila em 26v ou seja no verso do foacutelio 26 e termina em 224r ou seja na parte frontal

do foacutelio 224

Nosso trabalho estaacute estruturado em sete capiacutetulos Usaremos o primeiro capiacutetulo para

analisar a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso implica discutir as condiccedilotildees

histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento de Jesus ateacute a ilha de Patmos

para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na proviacutencia da Aacutesia

Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destinataacuterios data e propoacutesito do Apocalipse bem

64 REEVES Marjorie The influence of prophecy in the later Midlle Ageshellip p 513 65 JOAQUIM VON FIORE Expositio in Apocalypsim Frankfurt Minerva 1964

26

como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com forma e conteuacutedo

definidos

No capiacutetulo segundo nos deteremos na anaacutelise da situaccedilatildeo das igrejas da proviacutencia

romana da Aacutesia em especial as disputas de poder os conflitos com as comunidades judaicas

e as tentativas de interaccedilatildeo com a sociedade romana O objetivo eacute definir as condiccedilotildees de

produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo

O terceiro capiacutetulo analisaraacute Apocalipse 201-10 tendo em vista sua relaccedilatildeo com a

obra como um todo por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos partindo da

traduccedilatildeo do texto grego para definir suas representaccedilotildees de histoacuteria e milenarismo bem

como seus pontos de partida e condiccedilotildees de emergecircncia

O quarto capiacutetulo aplicaraacute no Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram

lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar

elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso

este seraacute o espaccedilo privilegiado para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando

apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o

livro joanino

O quinto capiacutetulo analisa as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia

meridional normanda bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio

Hohenstaufen Estes aspectos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim seus

condicionados e viacutenculos poliacuteticos e religiosos

O sexto capiacutetulo problematizaraacute as estrateacutegias de leitura de Joaquim e sua

metodologia hermenecircutica para tanto analisando formas de apropriaccedilatildeo mediadas pela

diacronia O seacutetimo capiacutetulo partindo de uma siacutentese do texto latino trataraacute da seacutetima parte

do Expositio por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos Analisamos nele as

representaccedilotildees milenaristas e histoacutericas do abade e igualmente seus antecedentes e fatores

de emergecircncia Por fim na conclusatildeo nos perguntamos pelas convergecircncias e divergecircncias

entre Joatildeo e Joaquim profeta e monge Apocalipse e Expositio Patmos e Calaacutebria

I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Neste capiacutetulo analisaremos a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso

implica discutir as condiccedilotildees histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento66

de Jesus ateacute a ilha de Patmos para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na

proviacutencia da Aacutesia Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destino data e propoacutesito do

Apocalipse bem como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com

forma e conteuacutedo definidos

11 O autor do Apocalipse

A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta pelo menos dois

elementos principais Primeiramente busca-se em fontes antigas ou paralelas algo que

indique quem escreveu o texto Satildeo as chamadas evidecircncias externas Num segundo instante

observa-se a obra para verificar o que ela mesma consegue indiciar sobre seu autor no que

se pode denominar de evidecircncia interna No caso do Apocalipse tanto um quanto outro

levam em conta a aparente auto-identificaccedilatildeo do autor como ldquoJoatildeordquo (Ἰωάννhj)

- ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas

que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao

seu servo Joatildeordquo (Apocalipse 11)67

- ldquoJoatildeo agraves sete igrejas que se encontram na Aacutesia graccedila e paz a voacutes outros da parte

daquele que eacute que era e que haacute de vir da parte dos sete Espiacuteritos que se acham diante do seu

tronordquo (Apocalipse 14)

66 O termo ldquomovimentordquo eacute uacutetil para descrever a fase preacute-institucional do que viria a se tornar o Cristianismo

Quanto ao uso deste termo conferir o socioacutelogo THEISSEN Gerd Sociologia do Movimento de Jesus Satildeo

Leopoldo Sinodal 1997 p 11 tambeacutem STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria

social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo

Satildeo Leopoldo Sinodal 2004 p 218 Sobre a relaccedilatildeo entre essas comunidades e o restante do Judaiacutesmo Cf

FRIESEN Steve Sarcasm in Revelation 2-3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In

BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta

Society of Biblical Literature 2006 p 142 67 Usaremos para as citaccedilotildees biacuteblicas em portuguecircs a Versatildeo Revista e Atualizada de Almeida salvo quando

se tratar de traduccedilatildeo proacutepria como encontrada em BIacuteBLIA SAGRADA Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1980

28

- ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila

em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho

de Jesusrdquo (Apocalipse 19)

- ldquoEu Joatildeo sou quem ouviu e viu estas coisas E quando as ouvi e vi prostrei-me

ante os peacutes do anjo que me mostrou essas coisas para adoraacute-lordquo (Apocalipse 228)

Essas passagens do Apocalipse indicam que Joatildeo eacute o nome assumido pelo autor

autor este que se insere na obra na forma de um personagem enquanto descreve eventos e

experiecircncias religiosas Natildeo haacute qualquer outro nome vinculado a Joatildeo Identificaccedilotildees

romanas levavam em conta geralmente preacute-nome nome e poacutes-nome como o Imperador

Titus Flavius Domitianus Identificaccedilotildees judaicas seguiam nome e filiaccedilatildeo geralmente o

nome do pai (Isaque ben Abraatildeo) mas agraves vezes a identificaccedilatildeo da cidade (Jesus de Nazareacute)

O Joatildeo do Apocalipse entretanto parece ser suficientemente conhecido da sua audiecircncia

para que natildeo precise se apresentar com nada mais aleacutem do que um nome Kuumlmmel entende

em funccedilatildeo disso que ldquoo simples nome de Joatildeo indica uma personalidade comumente

conhecida e a maneira auto-evidente com que ele coloca seus apelos no sentido de ser

ouvido mostra dever tratar-se de um homem que goza de grande autoridaderdquo68

O autor do livro tambeacutem se apresenta como irmatildeo e companheiro (ldquoἀδελφς καὶ

συγκοινωνςrdquo) daqueles que iratildeo receber sua mensagem (Apocalipse 19) o que reforccedila a

sugestatildeo de que ele era bem conhecido de sua audiecircncia

O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse pelo que se conhece foi

Papias bispo de Hierapolis uma cidade proacutexima de Laodiceia uma das cidades que aparece

como destinataacuteria do livro (Apocalipse 314-22) Ele atuou como liacuteder eclesiaacutestico no inicio

do segundo seacuteculo e escreveu uma obra intitulada ldquoInterpretaccedilotildees de ditos do Senhorrdquo Esta

obra se perdeu mas foi citada por muitos autores antigos Andreas bispo de Cesareia na

Capadoacutecia escrevendo um comentaacuterio do Apocalipse no seacuteculo VI registrou que Papias

conheceu o Apocalipse considerava-o inspirado por Deus e comentou uma de suas

passagens (A interpretaccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo o Teoacutelogo 1011) Infelizmente natildeo haacute

nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menccedilatildeo clara sobre quem escreveu o

Apocalipse

Justino Maacutertir chegou a residir em Eacutefeso outra das cidades mencionadas diretamente

no Apocalipse (Apocalipse 21-7) por volta do ano 135 Ele escreveu no seu ldquoDialogo com

68 KUumlMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 618

29

Trifordquo na seccedilatildeo em que defende o cumprimento literal de profecias judaicas que esperavam

um reinado literal do Messias na terra que um homem chamado Joatildeo um dos apoacutestolos de

Cristo ldquonuma revelaccedilatildeo que lhe foi feita profetizou que os que tiverem acreditado em nosso

Cristo passaratildeo mil anos em Jerusaleacutemrdquo (Diaacutelogo com Trifo 814) Nos seus termos ele fez

uma referecircncia ao mais tradicional ciacuterculo de disciacutepulos de Jesus descrito regularmente

como ldquoos doze apoacutestolosrdquo Os Evangelhos canocircnicos (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo)

descrevem Jesus durante sua atividade religiosa pela Palestina cercado de um grupo de

disciacutepulos que o acompanhava a todos os lugares O Evangelho de Marcos o mais antigo

dos quatro escrito no final da deacutecada de 60 do seacuteculo I69 relaciona os seguintes nomes neste

ciacuterculo de seguidores Simatildeo Pedro Tiago e Joatildeo filhos de Zebedeu Andreacute Filipe

Bartolomeu Mateus Tomeacute Tiago filho de Alfeu Tadeu Simatildeo o cananeu e Judas

Iscariotes (Marcos 316-19) Aparentemente entatildeo Justino entendeu que o ldquoJoatildeordquo

mencionado no iniacutecio do Apocalipse era o mesmo ldquoJoatildeordquo dos primoacuterdios do movimento de

Jesus um dos seus disciacutepulos originais

Irineu fez o mesmo que Justino em torno de 180 e natildeo soacute ligou o Apocalipse ao

filho de Zebedeu como tambeacutem ao quarto Evangelho canocircnico conhecido como Evangelho

de Joatildeo (Contra as Heresias V30) Apesar de bispo na cidade de Leon na Gaacutelia ele passou

parte da infacircncia em Esmirna na Aacutesia outra das sete cidades do Apocalipse (Apocalipse

28-11)

Autores antigos como Hipolito de Roma (170-236) Tertuliano de Cartago (160-220)

e Origenes de Alexandria (morreu em 254) seguiram Irineu na opiniatildeo de que o Apocalipse

e o Evangelho de Joatildeo foram escritos pela mesma pessoa um dos disciacutepulos diretos de Jesus

o filho de Zebedeu70

No seacuteculo III entretanto Gaio um presbiacutetero da igreja de Roma promoveu forte

criacutetica contra o Apocalipse Na base deste ataque estava uma oposiccedilatildeo ao movimento

montanista Como Montano e seus seguidores eram fervorosos leitores do Apocalipse Gaio

entendeu que o livro precisava ser totalmente rejeitado pelas igrejas Ele argumentou entatildeo

que a obra natildeo era nem do apoacutestolo Joatildeo nem do presbiacutetero Joatildeo mas de um homem

chamado Cerinto Sua criacutetica foi registrada por Euseacutebio

No entanto tambeacutem Cerinto por meio de revelaccedilotildees que diz serem escritas

por um grande apoacutestolo apresenta milagres com a mentira de que lhe

69 KUumlMMEL op cit p 117 70 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The Westminster

Press 1984 p 26

30

teriam sido mostradas por ministeacuterios dos anjos e diz que depois da

ressurreiccedilatildeo o reino de Cristo seraacute terrestre e que novamente a carne que

habitaraacute em Jerusaleacutem seraacute escrava de paixotildees e prazeres Como inimigo

das Escrituras de Deus e querendo fazer errar diz que haveraacute um nuacutemero

de mil anos de festa nupcial (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XVIII 2)

Entretanto tanto a sugestatildeo de Justino e Irineu quanto a de Gaio se mostram fraacutegeis

A relaccedilatildeo do Apocalipse com um disciacutepulo direto de Jesus natildeo encontra eco dentro do

proacuteprio livro O autor se autodenomina realmente Joatildeo mas natildeo declara viacutenculo algum com

Zebedeu com um apoacutestolo ou com qualquer outro disciacutepulo de Jesus dos tempos iniciais

Se as doze pedras mencionadas na descriccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 2119-21)

evocam realmente os doze apoacutestolos como Adela Collins argumenta71 isso indicaria que os

apoacutestolos no tempo do Apocalipse jaacute haviam alcanccedilado um alto e elevado status dentro das

comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da feacute e base para a existecircncia das

igrejas Mas nada sugere que o autor se veja entre estes Os indiacutecios indicam que os apoacutestolos

eram figuras do seu passado

Nesta mesma linha se os apoacutestolos eram figuras tatildeo importantes para as igrejas e o

livro fosse uma obra pseudocircnima escrita por uma figura histoacuterica de nome Cerinto mas

atribuiacuteda retroativamente ex eventu a um grande liacuteder do passado esperava-se que o

Apocalipse contivesse viacutenculos mais expliacutecitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de

Nazareacute Mas natildeo haacute qualquer elemento no livro que pudesse levar os primeiros leitores a

fazer essa identificaccedilatildeo a natildeo ser a curta auto-apresentaccedilatildeo do autor homocircnima de um dos

antigos disciacutepulos O proacuteprio Jesus que aparece no livro estaacute bem distante daquele que se

movimenta nos Evangelhos Eacute uma figura exaltada e glorificada descrita por meio de

categorias angelicais ou divinas (Apocalipse 113-18) A ausecircncia de traccedilos ou indiacutecios de

natureza biograacutefica inviabiliza a hipoacutetese do presbiacutetero Gaio de que a obra seja pseudocircnima

O vinculo do Apocalipse com o Evangelho de Joatildeo eacute igualmente fraacutegil Dionisio um

bispo de Alexandria na segunda metade do seacuteculo III apesar de natildeo simpatizar em linhas

gerais com o Apocalipse rejeitou o ataque que Gaio e outros fizeram agrave obra Ele argumentou

que Apocalipse e Evangelho satildeo obras muito diferentes para terem sido escritas pela mesma

pessoa Sua conclusatildeo registrada por Euseacutebio foi no sentido de que os textos satildeo de autoria

diferente

Portanto natildeo contradirei que ele se chamava Joatildeo e que este livro eacute de

Joatildeo Porque inclusive estou de acordo de que eacute obra de um homem santo

e inspirado por Deus Mas eu natildeo poderia concordar facilmente em que

71 Idem p 27

31

este fosse o apoacutestolo o filho de Zebedeu e irmatildeo de Tiago de quem eacute o

Evangelho intitulado de Joatildeo e a carta catoacutelica (Histoacuteria Eclesiaacutestica VII

XXV 7)

Em funccedilatildeo de um grande nuacutemero de pessoas possuir o mesmo nome teria sempre a

possibilidade de equiacutevocos de identificaccedilatildeo Alem disso havia a tendecircncia de associar livros

sagrados a grandes figuras do passado Este era um criteacuterio comum para que estas obras

fossem aceitas e usadas nas igrejas ao lado das Escrituras judaicas

Dionisio ainda argumentou que deveria haver outro liacuteder cristatildeo de nome Joatildeo na

Aacutesia Ele faz referencia neste sentido a dois tuacutemulos ainda encontrados nos seus dias na

cidade de Eacutefeso dedicados a liacutederes antigos que levavam este nome Euseacutebio resumiu esta

perspectiva

De forma que tambeacutem isto demonstra que eacute verdade a histoacuteria dos que

dizem que na Aacutesia houve dois com este mesmo nome e em Eacutefeso dois

sepulcros dos quais ainda hoje se afirma que satildeo um e outro de Joatildeo Eacute

necessaacuterio prestar atenccedilatildeo a estes fatos porque eacute provaacutevel que fosse o

segundo ndash se natildeo se prefere o primeiro ndash o que viu a Revelaccedilatildeo

(Apocalipse) que corre sob o nome de Joatildeo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III

XXXIX 6)

Eacute difiacutecil entretanto relacionar o Joatildeo do Apocalipse com qualquer tiacutetulo eclesiaacutestico

Ele natildeo usa epiacutetetos conhecidos do periacuteodo como apoacutestolo evangelista mestre bispo

presbiacutetero ou diaacutecono Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas e

possivelmente ele as conhecia ele se recusou a usaacute-las Essa recusa pode indicar que ele natildeo

se enxergava nesses tiacutetulos ou entatildeo que as comunidades que receberam o Apocalipse natildeo

o reconheciam nos mesmos

Desta forma ainda assumindo que o nome que aparece no iniacutecio do livro eacute uma

referecircncia autecircntica (natildeo-pseudocircnima) a seu autor e que ele se chamava realmente Joatildeo as

evidecircncias externas acumuladas sobre ele natildeo representam muito O Joatildeo do Apocalipse natildeo

parece ser entatildeo o filho de Zebedeu um dos disciacutepulos originais de Jesus ou o autor do

Evangelho de Joatildeo ou uma figura antiga das igrejas conhecida como Joatildeo o presbiacutetero

Possivelmente foi a tendecircncia das igrejas em identificar os autores das obras

sagradas como apoacutestolos de Jesus e o fato do livro identificar seu autor com um ldquoJoatildeordquo que

levou Justino Irineu e os outros antigos escritores cristatildeos a associaacute-lo com o filho de

Zebedeu ou com o autor do quarto Evangelho O que parece eacute que o livro foi escrito por um

homem chamado Joatildeo que se tornou significativo para a histoacuteria do cristianismo pela

32

produccedilatildeo de apenas um livro livro esse que se constitui entatildeo na fonte mais expressiva

para indicar outros aspectos de sua identidade e seu lugar social

Aleacutem das observaccedilotildees anteriores de que Joatildeo era bem conhecido de sua audiecircncia

um segundo elemento interno a respeito de sua identidade social eacute a ligaccedilatildeo com uma

atividade conhecida como ldquoprofeciardquo Joatildeo natildeo se denomina explicitamente profeta mas o

faz implicitamente em vaacuterios lugares do Apocalipse Ele intitula sua mensagem de profecia

(Apocalipse 13 227 10 18) e narra uma experiecircncia de vocaccedilatildeo de forma muito

semelhante a profetas da tradiccedilatildeo judaica (Isaiacuteas 61-13 Jeremias 14-10 Ezequiel 28-333)

Por isso Lohse argumenta que Joatildeo foi um ldquoprofeta dos primoacuterdios do cristianismo que

atuou nas comunidades da Aacutesia com grande vigorrdquo72 Assim tambeacutem entende Bovon para

quem Joatildeo como profeta apresenta-se como um instrumento da revelaccedilatildeo divina e uma voz

do Cristo exaltado73

Estudiosos tendem a relacionar o fenocircmeno da profecia no movimento de Jesus ateacute

o inicio do segundo seacuteculo com a atividade de lideranccedila itinerante principalmente como

encontrada nas proviacutencias da Aacutesia Menor74 As comunidades locais eram dirigidas por

liacutederes assentados no meio delas que moravam nas cidades e dirigiam as congregaccedilotildees

Documentos do movimento de Jesus do iniacutecio do segundo seacuteculo denominavam estes liacutederes

de epiacutescopos presbiacuteteros e diaacuteconos (1Timoacuteteo 31-13 Tito 15-9) Do outro lado existiam

liacutederes itinerantes que viajavam de igreja em igreja de um lugar para outro normalmente

denominados de profetas apoacutestolos evangelistas ou mestres Estas distinccedilotildees natildeo eram tatildeo

riacutegidas jaacute que liacutederes locais poderiam viajar enquanto liacutederes itinerantes poderiam parar

durante certo tempo em uma igreja Um liacuteder local poderia ser itinerante num momento o

itinerante poderia eventualmente residir numa cidade Mesmo assim as definiccedilotildees

funcionais ou carismaacuteticas podem iluminar a atividade de Joatildeo como profeta na regiatildeo da

Aacutesia No Apocalipse ele faz referecircncia a sete igrejas em sete cidades (Apocalipse 111) o

que indica que ele transitava por elas O conteuacutedo das cartas do Apocalipse (Apocalipse 2-

3) sugere tambeacutem que as igrejas o conheciam o que aponta para uma atividade religiosa

mais ampla do que uma especiacutefica igreja local

Por ser profeta e profeta itinerante Joatildeo pode ter abraccedilado um estilo de vida asceacutetico

como o seu livro parece sugerir (Apocalipse 141-5) Este tipo de vida seria derivado do

72 LOHSE Eduard Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Leopoldo Sinodal 1985 p 249 73 BOVON Franccedilois Johnrsquos Self-presentation in Revelation 19-10 Catholic Biblical Quaterly Washington

n 62 p 693-700 2000 p 700 74 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 34

33

formato da atividade religiosa que Jesus desenvolveu com os seus disciacutepulos Nos

Evangelhos eles satildeo vistos constantemente viajando de lugar para lugar sem casa fixa

Ditos dos Evangelhos (Marcos 820 Mateus 1023 entre outros) ainda reforccedilam essa postura

que foi chamada por Gerd Theissen de carismatismo itinerante com a expectativa de uma

vida sem paacutetria sem famiacutelia sem posses e sem proteccedilatildeo75

Viajar de lugar para lugar rompia com os laccedilos locais de estabilidade social Os

disciacutepulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida asceacutetica e mesmo apoacutes a morte do

fundador do movimento alguns continuaram na vida andarilha Talvez seja por isso que o

autor do Didaqueacute no iniacutecio do seacuteculo II chamou a itineracircncia de ldquomodo de vida do Senhorrdquo

(Didaqueacute 118) Aleacutem dos laccedilos sociais os andarilhos tambeacutem renunciavam agrave famiacutelia Um

logia de Jesus encontrado no Evangelho de Marcos aponta neste sentido

Tornou Jesus Em verdade vos digo que ningueacutem haacute que tenha deixado

casa ou irmatildeos ou irmatildes ou matildee ou pai ou filhos ou campos por amor

de mim e por amor do evangelho que natildeo receba jaacute no presente o cecircntuplo

de casas irmatildeos irmatildes matildees filhos e campos com perseguiccedilotildees e no

mundo por vir a vida eterna (Marcos 1029-30)

Poucos dos missinaacuterios destacados pelo autor dos Atos dos Apoacutestolos satildeo descritos

em atividade familiar Natildeo haacute qualquer referecircncia agrave famiacutelia de Paulo Estes itinerantes

renunciavam tambeacutem a propriedades ou recursos financeiros o que dava ao pregador

condiccedilotildees de fazer a criacutetica contra a riqueza Quem perambulava pela Palestina Siacuteria e Aacutesia

Menor em pobreza demonstrativa poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em

descreacutedito76 Por isso o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades de Jesus

localmente constituiacutedas para ter uma porccedilatildeo miacutenima para sobreviver Isso lhes parecia bem

como aos olhos das comunidades locais uma demonstraccedilatildeo da bondade divina que natildeo

deixava o itinerante carismaacutetico morrer de fome ou sede

De qualquer forma a praacutetica do carismatismo itinerante demandava abraccedilar um estilo

radical de vida religiosa com niacutetidas consequecircncias asceacuteticas e combinava amplamente com

uma perspectiva escatoloacutegica de fim iminente da histoacuteria como provavelmente pregada por

Jesus77

75 THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op cit p 18 76 Na anaacutelise da atividade carismaacutetica itinerante cf THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op

cit p 16-22 77 ALLISON Dale C Jesus of Nazareth Millenarian prophet Minneapolis Fortress Press 1998 p 60-61

34

Aleacutem do seu papel religioso como profeta autores sugerem que Joatildeo era judeu por

nascimento um nativo da Palestina onde passou um bom tempo de sua vida78 Haacute

possibilidade de ele ter residido na Judeacuteia ateacute a instauraccedilatildeo da guerra contra os romanos (66-

70) que terminou com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico79 Esse tipo de

identificaccedilatildeo ilumina a forma como Joatildeo compreendia a relaccedilatildeo entre Israel e Igreja Ele natildeo

entendia o movimento de Jesus e suas comunidades como uma religiatildeo nova e independente

do grande e plural fenocircmeno religioso que os estudiosos chamam de Judaiacutesmo80

Joatildeo reinvidica o uso do termo ldquojudeurdquo (Ἰουδαίος) para os seguidores de Jesus

(Apocalipse 29 39) e demonstra tensatildeo com sinagogas locais que poderia indiciar mais

uma crise interna do que um conflito entre religiotildees distintas Seu uso das Escrituras judaicas

o grego semitizante do Apocalipse81 o domiacutenio da tradiccedilatildeo religiosa do periacuteodo do Segundo

Templo como apocalipses e oraacuteculos indicam uma pessoa fortemente envolvida com as

tradiccedilotildees do antigo Israel Muitas de suas perspectivas sociais e poliacuteticas poderiam derivar

de determinadas tradiccedilotildees judaicas mais do que de correntes especiacuteficas do movimento de

Jesus

Mesmo assim um aspecto significativo da identidade social do autor do Apocalipse

tem relaccedilatildeo justamente com essa ldquoseita judaicardquo O Judaiacutesmo no periacuteodo que vai da ascenccedilatildeo

hasmoneana (167 aC) ateacute pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 dC) abarcava

diversos partidos e grupos religiosos82 Um destes grupos teve iniacutecio com a atuaccedilatildeo da pessoa

de Jesus de Nazareacute entre 27-30 inicialmente na Galileacuteia para terminar com sua morte em

Jerusaleacutem O autor do Apocalipse afirma ser seguidor de Jesus (Apocalipse 19) de quem

recebeu a sua revelaccedilatildeo

Apesar de choques eventuais entre os grupos eles se reconheciam mutuamente como

herdeiros das mesmas tradiccedilotildees religiosas antigas das alianccedilas dos patriarcas das Escrituras

judaicas e da Lei de Moiseacutes Provavelmente Joatildeo se via como um judeu e membro do

fenocircmeno religioso judaico83 O mesmo poderia ser afirmado a respeito das comunidades

78 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 p 276 79 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 47 80 Sobre a pluralidade de perspectivas no interior do Judaiacutesmo cf BAUMGARTEN Albert I Ancient Jewish

Sectarianism Judaism Genebra v 47 n 4 p 387-403 1998 81 Para uma discussatildeo da linguagem do Apocalipse sua sintaxe e seu vocabulaacuterio cf CALLAHAN Allen

Dwight The Language of Apocalypse Harvad Theological Review Cambridge v 88 n 4 p 453-470 1995 82 Para uma anaacutelise ampla sobre a questatildeo da identidade judaica na antiguidade cf GOODMAN Martin

Judaism in the Roman World collected essays Leiden Brill 2007 p 21-32 83 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 277

35

que receberam o Apocalipse Elas faziam parte de um movimento que ainda se entende

judaico84 apesar da identificaccedilatildeo com um grupo especiacutefico dentro do Judaiacutesmo Eacute possiacutevel

denomina-los mesmo como judeus que reconhecem Jesus como o messias

Duas deacutecadas depois na mesma regiatildeo do Apocalipse entretanto Inaacutecio de

Antioquia falaria em suas cartas de ldquoCristianismordquo () e descreveraacute seus membros

como ldquocristatildeosrdquo () o que indica que o movimento naquele periacuteodo e na sua

expressatildeo asiaacutetica jaacute tem formulado uma identidade autocircnoma em relaccedilatildeo ao Judaismo Nos

termos de Inaacutecio ldquoeacute melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaiacutesmo

de incircuncisordquo (Carta aos Filipenses 61)85

12 A data do Apocalipse

O Apocalipse de Joatildeo eacute uma obra escrita no chamado grego koinecirc liacutengua comum

aos territoacuterios do antigo Impeacuterio de Alexandre o Grande A obra de grande porte para os

padrotildees do periacuteodo comeccedila desta forma ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para

mostrar aos servos dele as coisas que devem acontecer em breve e enviou-a sinalizando

atraveacutes do seu anjo para o seu servo Joatildeordquo86

Como boa parte das fontes antigas a obra natildeo tem tiacutetulo ou marca de identificaccedilatildeo

Mas durante seu uso logo passou a ser identificada por meio da sua primeira palavra

apocalipse transliteraccedilatildeo simples de ποκάλυψις O termo pode ser traduzido como

ldquorevelaccedilatildeordquo87

No momento de definir a data da obra o testemunho de Irineu eacute novamente invocado

pelos estudiosos Ele registrou que ldquoo Apocalipse foi visto natildeo haacute muito tempo em nossa

proacutepria geraccedilatildeo no fim do reinado de Domicianordquo (Contra as Heresias 5303) Grande parte

dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definiccedilatildeo entendendo que mesmo

que o testemunho de Irineu quanto ao nome do autor natildeo seja confiaacutevel a data ainda pode

84 Enquanto categoria religiosa e natildeo eacutetnica jaacute que natildeo era preciso ser etnicamente judeu para fazer parte do

Judaiacutesmo 85 Noutro lugar ldquoEacute preciso natildeo soacute levar o nome de cristatildeo mas ser de fatordquo (Carta aos Magneacutesios 4) A respeito

do cristianismo e judaiacutesmo em oposiccedilatildeo nas cartas de Inaacutecio cf COHEN Shaye J D Judaism without

Circumcision and ldquoJudaismrdquo without ldquoCircumcisionrdquo in Ignatius Harvard Theological Review Cambridge v

95 n 4 p 395-415 2002 86 ldquoἈποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ ἣν ἔδωκεν αὐτῷ ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐν τάχει καὶ

ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃrdquo (Apocalipse 11) 87 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 67

36

ser mantida para o fim do reinado de Domiciano em meados de 95-9688 Segundo Adela

Yarbro Colllins natildeo existe nenhuma boa razatildeo para duvidar da sugestatildeo de Irineu quanto agrave

eacutepoca do Apocalipse89 Ela pressupotildee neste caso que a obra na sua forma atual eacute o

resultado de um uacutenico autor O Apocalipse apresenta uso de fontes tradicionais ou literaacuterias

mas ainda possui uma unidade coerente subjacente a uma uacutenica autoria Nos termos de

Collins ldquoa unidade de estilo e a cuidadosa complexa e deliberada estrutura do livro como

um todo torna supeacuterflua a hipoacutetese da compilaccedilatildeo de extensas fontes escritas ou uma seacuterie

de ediccedilotildeesrdquo90

Vitorino de Pettau morto em 303 escreveu o mais antigo comentaacuterio completo do

Apocalipse a sobreviver Ao comentar a passagem do Apocalipse em que Joatildeo come um

livro (Apocalipse 103) ele escreveu

Joatildeo teve esta visatildeo quando estava na ilha de Patmos condenado agraves minas

por Cesar Domiciano Parece pois que Joatildeo escreveu dali o Apocalipse

quando jaacute era um anciatildeo Depois de seus sofrimentos quando foi

assassinado Domiciano e anulados todos os seus decretos foi Joatildeo

liberado das minas e transmitiu este mesmo Apocalipse que recebeu do

Senhor (Comentaacuterio ao Apocalipse 103)

Euseacutebio de Cesareacuteia faz comentaacuterio parecido com o de Vitorino ldquoEacute tradiccedilatildeo que

neste tempo o apoacutestolo e evangelista Joatildeo que ainda vivia foi condenado a habitar a ilha

de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deusrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III VIII 1)

Ainda ldquoFoi entatildeo que o apoacutestolo Joatildeo voltando de seu desterro na ilha retirou-se para viver

em Eacutefeso segundo relata a tradiccedilatildeo de nossos antigosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XX 9)

Esses dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante o reino de

Domiciano Ambos acrescentam que Joatildeo foi banido para Patmos pelo Imperador tendo

sido liberado apoacutes a morte do mesmo A tradiccedilatildeo neles preservada do desterro de Joatildeo ou

de Patmos como uma colocircnia penal entretanto natildeo eacute apoiada pela historiografia91 Mesmo

assim os testemunhos de Vitorino e de Euseacutebio satildeo importantes para definir a data do

Apocalipse mais ateacute do que para descrever a situaccedilatildeo em que isso se deu

Em termos de evidecircncia interna Adella Collins indicou alguns elementos que

reforccedilam a hipoacutetese da deacutecada de 90 Um primeiro pode ser encontrado no uso muito

especiacutefico que o Apocalipse faz do nome Babilocircnia (Apocalipse 148 1619 175 182

88 Entre outros KUumlMMEL op cit p 613-617 89 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57 90 Idem p 54 91 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University

Press 1990

37

10 21) Eacute muito difiacutecil que o autor da obra esteja fazendo referecircncia a antiga cidade da

Mesopotacircmia presente nas tradiccedilotildees literaacuterias judaicas por ter destruiacutedo o reino de Judaacute em

586 aC derrubado a capital Jerusaleacutem e o templo de Salomatildeo Em Apocalipse 17 Joatildeo

descreve Babilocircnia como uma mulher e pelo menos duas marcas na fala do anjo indicam

que a mulher representa a cidade de Roma O versiacuteculo nove descreve-a assentada sobre sete

montanhas ldquoAqui estaacute o sentido da sabedoria as sete cabeccedilas satildeo sete montanhas onde a

mulher estaacute assentada Tambeacutem satildeo sete reisrdquo (Apocalipse 179) O versiacuteculo 18 a apresenta

como uma cidade ldquoque tem poder sobre os reis da terrardquo Estas indicaccedilotildees para uma

audiecircncia da Aacutesia no final do primeiro seacuteculo indicariam que Babilocircnia era um siacutembolo para

a cidade de Roma A capital do Impeacuterio aparece frequentemente como a cidade das sete

montanhas (Capitoacutelio Quirinal Viminal Esquilino Ceacutelio Aventino e Palatino) e era a

cidade mais importante politicamente do Mediterracircneo

E o que essa associaccedilatildeo entre Babilocircnia e Roma poderia indicar em termos de dataccedilatildeo

para o Apocalipse A maioria das ocorrecircncias de Babilocircnia como nome simboacutelico para

Roma na literatura judaica estaacute em 4Esdras 2Apocalipse de Baruque e no quinto livro dos

Oraculos Sibilinos Nestas obras Roma eacute chamada de Babilocircnia porque ela como a antiga

cidade mesopotacircmica destruiu Jerusaleacutem e o Templo Ou seja o nome simboacutelico de Roma

Babilocircnia eacute forte indiacutecio de que o Apocalipse foi escrito apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e o

Templo no ano 7092

Aleacutem do uso simboacutelico do termo Babilocircnia para descrever Roma tiacutepico de obras

judaicas posteriores ao ano 70 Collins aponta outros elementos internos

- A lenda do retorno de Nero em Apocalipse 13 e 17 principalmente a referecircncia agraves

cabeccedilas da besta (Apocalipse 179-11) reforccedila a hipoacutetese de que o Apocalipse eacute posterior agrave

morte de Nero em 68 dC e ao aparecimento da tradiccedilatildeo de que ele retornaria para retomar

o poder93

- A concepccedilatildeo de Joatildeo de que a comunidade de Jesus eacute o novo templo de Deus bem

como a profecia de que na Nova Jerusaleacutem natildeo haveria mais templos indicariam que o

Apocalipse eacute posterior agrave destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem (70 dC)94

92 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57-58 PAGELS Elaine The Social History of

Satan Part Three John of Patmos and Ignatius of Antioch Contrasting Visions of ldquoGods Peoplerdquo Harvad

Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006 p 494 93 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 58-64 94 Idem p 64-69

38

Outros elementos como os indiacutecios de conflitos com sinagogas locais em Esmirna e

Filadeacutelfia as referecircncias a perseguiccedilotildees por parte do Impeacuterio Romano ou a crise com a

instituiccedilatildeo do Culto Imperial satildeo muito vagos para precisar melhor a data do Apocalipse

A partir dos dados internos muito provavelmente o livro eacute posterior ao ano 70 e agrave

destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico Se a hipoacutetese de que o autor saiu da Palestina

em funccedilatildeo do conflito for autecircntica era preciso algum tempo para que ele consolidasse uma

atuaccedilatildeo profeacutetica fora da sua terra na Aacutesia Menor e especificamente na proviacutencia

proconsular da Aacutesia Dado o conhecimento que Papias teve da obra seria preciso algum

tempo entre sua produccedilatildeo e circulaccedilatildeo entre as igrejas Isso nos leva a tomar o testemunho

de Irineu realmente como a hipoacutetese mais provaacutevel localizando o livro no fim do governo

do Imperador Titus Flavius Domitianus assassinado no dia 18 de setembro de 96 Segundo

o bispo de Leon (Contra as Heresias 5303) foi em algum momento anterior agrave morte do

Imperador que Joatildeo de Patmos escreveu o Apocalipse

13 O propoacutesito do Apocalipse

Se aceitarmos as indicaccedilotildees do Apocalipse ele foi escrito para ser encaminhado para

sete igrejas da proviacutencia proconsular da Aacutesia ldquoAchei-me em espiacuterito em o dia do Senhor e

ouvi atraacutes de mim uma voz grande como de trombeta dizendo O que vecircs escreve em livro

e envia para as sete igrejasrdquo (Apocalipse 110-11)

As cartas em questatildeo aparecem um pouco depois na estrutura da obra

- Apocalipse 21-7 Carta agrave Igreja em Eacutefeso

- Apocalipse 28-11 Carta agrave Igreja em Esmirna

- Apocalipse 212-17 Carta agrave Igreja em Peacutergamo

- Apocalipse 218-29 Carta agrave Igreja em Tiatira

- Apocalipse 31-6 Carta agrave Igreja em Sardes

- Apocalipse 37-13 Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia

- Apocalipse 314-22 Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia

As cartas escritas como oraacuteculos profeacuteticos apresentam terceirizados o remetente e

o destinataacuterio Concretamente eacute o profeta Joatildeo que escreve contudo retoricamente satildeo

palavras diretas do Cristo exaltado entre os candelabros (Apocalipse 113) Eacute uma mensagem

39

para os membros das igrejas mas dirigidas aos anjos que estariam ali presentes (Apocalipse

21 28 212 218 31 37 314) Joatildeo se coloca como o intermediaacuterio entre duas

personalidades celestiais Mesmo que algueacutem se recuse a ouvi-lo natildeo poderia deixar de

atender ao anjo da igreja principalmente porque a mensagem do anjo teria origem direta no

Jesus glorificado Neste sentido as cartas se tornam proclamaccedilotildees profeacuteticas do soberano

Cristo exaltado95

Esta estrateacutegia literaacuteria eacute um instrumento retoacuterico de legitimaccedilatildeo o que denuncia

algum tipo de conflito ou tensatildeo entre Joatildeo o autor e os membros das igrejas Ao usar este

esquema para atingir o seu puacuteblico o autor indica toda a dificuldade que enfrentava para se

fazer ouvir96 A agressividade do texto e as diversas ameaccedilas indicam ainda mais a forccedila

necessaacuteria para que as cartas e o livro como um todo pudessem ser recebidos Segundo

Friedrich

as sete proclamaccedilotildees satildeo semelhantes aos antigos editos reais e imperiais

na medida em que exibem normalmente e estruturalmente semelhantes

praescriptiones narrationes dispositiones e sanctiones Em termos de

conteuacutedo as narrationes e dispositiones exibem caracteriacutesticas da profecia

do cristianismo das origens influenciada pela profecia do Antigo

Testamento97

As cartas indicam dois tipos baacutesicos de tensatildeo Internamente haacute algum tipo de

conflito entre Joatildeo e a lideranccedila de algumas igrejas e algum tipo de crise com sinagogas

locais98 Externamente a sociedade urbana da aacutesia parece representar algum desconforto

especialmente em funccedilatildeo das demandas relacionadas com as interaccedilotildees sociais

Para as tensotildees internas entre os liacutederes das igrejas Paul Duff sugeriu a seguinte

tipologia99

95 Conferir neste sentido FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria

Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 96 RUIZ Jean-Pierre Hearing and seeing but not saying a rhetoric de authority in Revelation 104 and 2

Corinthians 124 In BARR David L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of

Revelation Atlanta Society of Biclical Literature 2006 p 91-111 p 93 97 FRIEDRICH Nestor Paulo O edito-profeacutetico para a Igreja em Tiatira (Apocalipse 218-29) uma anaacutelise

literaacuteria soacutecio-poliacutetica e teoloacutegica Tese (Doutor em Teologia) ndash Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia Escola

Superior de Teologia Satildeo Leopoldo 2000 p 60 98 DUFF Paul B ldquoThe synagogue of Satanrdquo Crisis mongering and the Apocalypse of John In BARR David

L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biclical

Literature 2006 p 164-165 p 148 99 DUFF Paul B Who Rides the Beast Prophetic Rivalry and the Rhetoric of Crisis in the Churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 p 25

40

- Igrejas divididas entre a lideranccedila de Joatildeo e alguma outra lideranccedila local Eacutefeso

Peacutergamo Tiatira Para estas igrejas Joatildeo fornece nas respectivas cartas uma elaboraccedilatildeo dos

problemas da comunidade Consistiriam no principal foco do Apocalipse

- Igrejas onde Joatildeo tem pouca ou mesmo nenhuma influecircncia Sardes e Laodiceacuteia Eacute

provaacutevel que ele tenha aliados em potencial nessas comunidades mas estatildeo em nuacutemero

muito pequeno Por isso o seu tom menos conciliador Para elas o autor natildeo fornece

nenhuma elaboraccedilatildeo de problemas e pouco se tiver algum encorajamento

- Igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo Esmirna e Filadeacutelfia Natildeo haacute chamada ao

arrependimento ou qualquer tipo de ameaccedila ao mesmo tempo em que recebem fortes

louvores Satildeo igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo e ao tipo de mensagem que ele defendia

Com relaccedilatildeo aos membros das sinagogas locais Joatildeo assim se expressou ldquose dizem

judeus mas natildeo o satildeordquo Para o autor do Apocalipse eles natildeo eram verdadeiros judeus mas

ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo (Apocalipse 29 39)100 O professor Nogueira argumenta que essa

crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga estar ldquoenvolvida em um processo

sincreacutetico de interaccedilatildeo com os gentios Eles falavam grego expressavam suas crenccedilas e

praacuteticas religiosas com categorias helenistas e estavam em maior ou menor grau envolvidos

na vida puacuteblica de suas cidadesrdquo101

O Apocalipse fala da morte de Antipas (Apocalipse 213) que pode ter ocorrido em

funccedilatildeo de algum conflito com a sociedade O Apocalipse apresenta a expectativa que o

mesmo fenocircmeno que promoveu a morte deste membro do movimento de Jesus proveraacute

dentro em breve a prisatildeo e a ruiacutena de muitos outros (Apocalipse 210)102 Para Thompson

ldquoa descriccedilatildeo do visionaacuterio de guerra e conflito contem suficientes referecircncias e alusotildees a

Roma e ao culto imperial para concluir que o visionaacuterio esperava tribulaccedilatildeo e opressatildeo de

instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas na Aacutesiardquo103 Como Prigent enfatiza ldquoo autor de

100 FRANKFURTER David Jews or Not Reconstructing the ldquoOtherrdquo in Rev 29 and 39 Harvard

Theological Review Cambridge v 4 n 94 p 403-425 2001 Duff argumenta que o comentaacuterio negativo de

Joatildeo sobre as sinagogas foi feito para exacerbar a tensatildeo entre as igrejas e as sinagogas Ao promover inimizade

contra as sinagogas e medo de hostilidade de judeus locais Joatildeo desejava desencorajar aliados iacutentimos

(membros das igrejas de Esmirna e Filadeacutelfia) de apostastar para as sinagogas Cf DUFF Paul B ldquoThe

synagogue of Satanrdquo op cit p 148 101 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza Experiecircncia religiosa e criacutetica social no cristianismo primitivo Satildeo

Paulo Paulinas p 137 102 HOWARD-BROOK Wes GWYTHER Anthony Desmascarando o imperialismo interpretaccedilatildeo do

Apocalipse ontem e hoje Satildeo Paulo Paulus 2003 p 120-155 103 THOMPSON Leonard A Sociological Analysis of Tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 36 p 147-174 1986 p 148

41

Apocalipse afirma com grande energia que o Impeacuterio estaacute a serviccedilo de Satatilde comprovado

pela idolatria que embasa todo o sistemardquo104

Durante boa parte da histoacuteria da leitura do Apocalipse105 a descriccedilatildeo de mundo no

seu livro cheia de conflitos e violecircncia era tomada como equivalente da situaccedilatildeo concreta

de vida do autor e de suas comunidades O contexto histoacuterico era precisamente como

transparecia atraveacutes das imagens do livro106 Foi somente a partir de meados do seacuteculo XX

quando alguns estudiosos deixaram de assumir que o mundo do texto de Apocalipse

espelhava diretamente o contexto histoacuterico em torno do mesmo Neste caso eles se voltaram

para oferecer sugestotildees de como conciliar e relacionar a tensatildeo entre o mundo do Apocalipse

e o mundo concreto das comunidades de seguidores de Jesus no final do primeiro seacuteculo na

Aacutesia romana

Uma destas pesquisadoras Fiorenza sugeriu que as imagens que o livro constroacutei

foram produzidas como instrumentos retoacutericos de persuasatildeo Ela entende que o visionaacuterio

parece estar realmente convencido de que o Impeacuterio Romano eacute uma ameaccedila para seguidores

de Jesus e escreve para persuadir sua audiecircncia a aceitar sua leitura da realidade

empurrando-a para uma determinada posiccedilatildeo frente ao contexto social em que viviam107

Adela Collins por sua vez argumentou que Joatildeo escreveu em resposta ao conflito

entre a feacute em Jesus como Joatildeo a entendia e a situaccedilatildeo social como ele a percebia Para esta

autora o autor realiza seu propoacutesito por meio da construccedilatildeo de um universo simboacutelico com

valores terapecircuticos Diante do Apocalipse leitores e ouvintes alcanccedilariam uma catarse de

medo e ressentimento e uma internalizaccedilatildeo de demandas para sustentar-se agrave parte de uma

ordem social opositora por meio da praacutetica de abstinecircncia sexual pobreza e martiacuterio108

Outro pesquisador Steven Friesen definiu o Apocalipse de Joatildeo como uma obra

engajada na construccedilatildeo de um mundo simboacutelico com o objetivo de produzir resistecircncia

simboacutelica Enquanto a ideologia imperial construiacutea seus mitos e os disseminava para afirmar

104 PRIGENT P O Apocalipse In COTHENET E et al Os escritos de Satildeo Joatildeo e a Epiacutestola aos Hebreus

Satildeo Paulo Paulinas 1998 p 229-306 p 255 105 Para a histoacuteria da recepccedilatildeo do livro conferir WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse

Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 KOVACS Judith

ROWLAND Christopher C Revelation Oxford Blackwell Publishing 2004 KYRTATAS Dimitris The

Transformations of the Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text

The Writing of Ancient History London Duckworth 1986 p 144-162 106 Conferir neste sentido o comentaacuterio de Euseacutebio de Cesareacuteia ldquoDomiciano deu provas de uma grande

crueldade para com muitos [] e foi o segundo a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutesrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica

III VII 1) 107 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Apocalipsis Visioacuten de un mundo justo Estella Editorial Verbo Divino

1997 p 58 108 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsis op cit p 127-131

42

que o Imperador era o rei dos reis Joatildeo ressignifica estes mitos para afirmar que a autoridade

uacuteltima sobre o mundo proveacutem no fim de fora mesmo deste mundo109 Eacute um conflito de

mundos construiacutedos de siacutembolos de identidades de ideologias110

Em termos concretos entretanto Domiciano natildeo parece ter instigado uma

perseguiccedilatildeo oficial aos seguidores de Jesus Existe pouca evidecircncia de que ele tenha

perseguido diretamente as igrejas e como insistiu Thompson nenhuma evidecircncia de que ele

tenha banido Joatildeo para a Ilha de Patmos111

Isso natildeo significa que conflitos locais natildeo pudessem se manifestar dentro de cada

cidade da Aacutesia conflitos estes que poderiam ter ligaccedilatildeo com o relacionamento entre os

membros do movimento de Jesus e a instituiccedilatildeo do culto imperial112 Possivelmente ao falar

do culto agraves bestas Joatildeo entra em polecircmica com a praacutetica do culto ao Imperador no contexto

urbano da proviacutencia onde a primeira Besta (Apocalipse 131-10) representa o Impeacuterio

Romano ou o proacuteprio Imperador e a segunda Besta (Apocalipse 1311-18) eacute possivelmente

o sacerdote do culto imperial113 Acompanhar a posiccedilatildeo do Apocalipse neste sentido poderia

gerar suspeiccedilatildeo e hostilidade por parte da populaccedilatildeo local e causar as acusaccedilotildees subjacentes

aos processos descritos por Pliacutenio o Jovem ao Imperador Trajano pouco mais de uma deacutecada

depois de Joatildeo na proviacutencia de Bitiacutenia e Ponto vizinha das igrejas da Aacutesia (Epiacutestola

10965)

O culto imperial era uma expressatildeo de religiosidade individual e coletiva e uma

demonstraccedilatildeo de coesatildeo e ordem social e poliacutetica do Impeacuterio Para propoacutesitos imperiais o

culto ao Imperador servia como uma expressatildeo de lealdade e gratidatildeo por parte dos cidadatildeos

Pagels tenta resumir este processo Para ela anteriormente os membros do

movimento de Jesus se identificavam com os grupos judaicos ao serem expulsos desses

109 FRIESEN Steven J Myth and Symbolic Resistance in Revelation 13 Journal of Biblical Literature

Atlanta v 2 n 123 p 281-313 2004 p 281 e 311 110 FRIESEN Steven J Satanrsquos throne imperial cults and the social settings of Revelation Journal for the

Study of the New Testament Cambridge v 27 n 3 p 351-373 2005 p 352 111 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L Reading the

Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 34 DUFF Paul B ldquoThe

Synagogue of Satanrdquo op cit p 149 112 Para uma anaacutelise das distintas formas que o culto imperial poderia assumir nas diferentes regiotildees do Impeacuterio

cf SCHERRER Steven J Signs and Wonders in the Imperial Cult a New Look at a Roman Religious

Institution in the Light of Rev 1313-15 Journal of Biblical Literature Atlanta v 4 n 103 p 599-610 1984

SORDI Marta The Christians and the Roman Empire London and New York Routledge 1994 Sobre a

relaccedilatildeo das comunidades judaicas com o culto imperial conferir MCLAREN James S Jews and the Imperial

Cult from Augustus to Domitian Journal for the Study of the New Testament Cambridge n 27 p 257-278

2005 113 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p

34

43

grupos eles precisavam criar novas identidades em oposiccedilatildeo agravequeles que antes eram seus

irmatildeos Entretanto quando essas mesmas comunidades passam a ser formadas

predominantemente de natildeo-judeus agora eram excluiacutedos natildeo mais de ciacuterculos judaicos mas

dos ciacuterculos sociais que antes conviviam Era desses ciacuterculos que as ameaccedilas agora partiam

de ldquooficiais romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu lsquoateiacutesmorsquo que temiam que

pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteirasrdquo114

O cenaacuterio descrito por Pagels talvez se aplique agrave Bitiacutenia e Ponto dos tempos de Pliacutenio

mas ainda natildeo o eacute para o tempo do Apocalipse A ecircnfase na ruptura com a sociedade

encontrada no texto joanino indica que boa parte dos membros das igrejas da Aacutesia ainda

vivia suas vidas com seus vizinhos sem grandes conflitos Eacute Joatildeo que espera por tensatildeo e

crise Ele aguarda uma violenta perseguiccedilatildeo contra as comunidades para um futuro

proacuteximo115 Subjacentes aos roacutetulos da oposiccedilatildeo interna (os balamitas e nicolaiacutetas de

Peacutergamo Jezabel e seus seguidores em Tiatira e os falsos apoacutestolos de Eacutefeso) parecem estar

pessoas que ocupavam posiccedilatildeo de lideranccedila dentro das igrejas nas quais estavam inseridas

consideradas como adversaacuterias por Joatildeo O que estes liacutederes de diferentes igrejas teriam em

comum Aparentemente eles natildeo estavam de acordo quanto agrave forma de conduzir os fieacuteis

nas suas relaccedilotildees com o Impeacuterio116 Assim diante da diferenccedila de respostas existente entre

os proacuteprios liacutederes sobre a interaccedilatildeo com a sociedade Joatildeo reage com forccedila Para ele

qualquer acomodaccedilatildeo social eacute prostituiccedilatildeo e idolatria categorias religiosas retiradas da

antiga profecia judaica

Como sintetizou Norman Cohn ldquoo propoacutesito de Joatildeo era estimular os cristatildeos a se

verem em conflito com ciacuterculos mais amplos da sociedaderdquo117 Para tanto ele descreveu o

governo romano natildeo como reflexo de uma ordem divina mas do poder de Satatilde A alianccedila

com o Jesus Glorificado do Apocalipse inviabilizaria qualquer relacionamento com a

sociedade romana

Joatildeo por meio de sua obra demoniza praacuteticas de interaccedilatildeo social poliacutetica e religiosa

com o Impeacuterio118 Sua estrateacutegia eacute exacerbar a situaccedilatildeo para promover uma crise na sua

114 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na

sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996 p 134 115 SILVA David A de The Revelation to Johnhellip op cit 116 FRIESEN Steven J Satanrsquos Throne Imperial Cults and the Social Settings of Revelation op cit p 368 117 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 280 118 MESTERS Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das

comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n 69 p 72-82 2001 p 77

Conferir tambeacutem BIGUZZI Giancarlo Ephesus its Artemision its Temple to the Flavian Emperors and

idolatry in Revelation Novum Testamentum Leida v 3 n 40 p 276-290 1998

44

audiecircncia119 pelo menos nas igrejas nas quais tinha alguma influecircncia e invibializar os

relacionamentos significativos com pessoas de fora da comunidade Para isso ele provecirc

motivaccedilotildees tanto positivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos demais

grupos judaicos Em termos sinteacuteticos ele demoniza seus adversaacuterios estressa fortemente

as diferenccedilas de padrotildees e valores escala antagonismo e vaticina um tempo proacuteximo de

rejeiccedilatildeo muacutetua120

14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse

Aparentemente os antigos inteacuterpretes do Apocalipse o liam da mesma forma como

liam outros livros profeacuteticos da tradiccedilatildeo judaica Para eles Joatildeo era profeta e seu livro uma

profecia Foi somente no seacuteculo XIX que se levantou a sugestatildeo de que o Apocalipse de Joatildeo

deveria ser visto como um tipo distinto de literatura121 O argumento era de que o livro natildeo

era como as demais obras da tradiccedilatildeo profeacutetica judaica Aleacutem disso as evidecircncias indicavam

que existia um corpo de escritos parecidos com o Apocalipse formando uma corrente

literaacuteria na qual a obra de Joatildeo poderia ser inserida122 Esta corrente se estenderia para cerca

de trecircs seacuteculos antes do aparecimento do Apocalipse de Joatildeo com acentuada produccedilatildeo em

torno da Guerra dos Macabeus e avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70)123

A partir de entatildeo os estudiosos passaram a tentar definir o que seria o gecircnero

ldquoapocalipserdquo Estas tentativas de definiccedilatildeo consistiam de listas de caracteriacutesticas tiacutepicas

119 Segundo Paul Duff ldquopor causa da fragilidade da fonte do seu poder liacutederes carismaacuteticos atraveacutes da histoacuteria

tecircm usado uma variedade de estrateacutegias para combater as ameaccedilas agrave perda do controle Uma destas estrateacutegias

eacute o fomento das crises ou seja criar crises ou exacerbar uma situaccedilatildeo instaacutevel ao ponto que isso resulte numa

crise Esta taacutetica tem o potencial para acentuar a indispensabilidade do liacuteder inspiradordquo Cf DUFF Paul B

ldquoThe Synagogue of Satanrdquohellip op cit p 164-165 120 Idem p 164-165 121 BARR David L Beyond Genre In BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics

in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p 71-79 p 75 122 COLLINS Adela Yarbro The Early Christian Apocalypses Semeia Atlanta n 14 p 61-121 1979 p 70

Para ela o Apocalipse de Joatildeo poderia ser definido como um apocalipse histoacuterico sem a presenccedila de viagem

celestial Conferir tambeacutem KUumlMMEL op cit p 602 ldquoO material miacutetico os nuacutemeros secretos as visotildees e os

fenocircmenos do ceacuteu como meios a serviccedilo da revelaccedilatildeo de coisas do mundo do aleacutem a representaccedilatildeo das visotildees

atraveacutes de imagens fantaacutesticas e ricamente embelezadas bem como a frequumlente dependecircncia do Antigo

Testamento caracterizam o Apocalipse como uma obra pertencente ao mesmo gecircnero literaacuterio dos apocalipses

judaicosrdquo 123 LOHSE op cit p 240 Sotelo propocircs trecircs hipoacuteteses gerais sobre a origem deste gecircnero literaacuterio Uma delas

entende que ele surgiu de tradiccedilotildees persas sendo completamente estranho aos autores anteriores de Israel

outra argumenta que ele veio da tradiccedilatildeo sapiencial de Israel e uma terceira o liga ao profetismo claacutessico

israelita Cf SOTELO Daniel Origem da apocaliptica In MARASCHIN Jaci Correia (ed) Apocaliptica

Satildeo Bernardo do Campo Instituto Metodista de Ensino Superior 1983 p 17-21 p 17

45

Autores como D S Russell124 procuraram apontar poucos traccedilos distintivos para abraccedilar um

nuacutemero maior de obras Entretanto o resultado eacute que obras que se parecem muito pouco

passaram a ser vistas igualmente como apocalipses

Muitas outras listas surgiram Cada uma apresentava um traccedilo diferente que

considerava ser tiacutepico de um apocalipse Isso fazia com que um livro que um determinado

autor apontava como apocalipse fosse considerado por outro estudioso como de gecircnero

diferente

Um princiacutepio baacutesico subjacente agrave pesquisa do gecircnero destes textos eacute que um

apocalipse como outros tipos de literatura natildeo poderia ser considerado como obra literaacuteria

estanque pois estaria relacionado com outras obras e tradiccedilotildees atraveacutes de uma seacuterie de traccedilos

e conexotildees Por isso definir um apocalipse passou a ser uma questatildeo de precisar os limites

ou paracircmetros dentro dos quais as obras seriam recebidas por seus leitores

Essa definiccedilatildeo avanccedilou consideravelmente como resultado das pesquisas publicadas

no nuacutemero 14 da revista Semeia Ela continuou na tradiccedilatildeo de gerar listas de caracteriacutesticas

para tipificar um apocalipse mas deu um passo a mais por causa da precisatildeo com que estes

traccedilos foram postulados Os resultados foram resumidos por Collins

Apocalipse eacute um gecircnero de literatura de revelaccedilatildeo com uma estrutura

narrativa no qual uma revelaccedilatildeo eacute mediada por um ser sobrenatural para

um ser humano revelando uma realidade transcendente que eacute tanto

temporal enquanto considera salvaccedilatildeo escatoloacutegica quanto espacial

enquanto envolve outro mundo sobrenatural125

A lista de caracteriacutesticas de Collins apresenta um apocalipse do ponto de vista da

forma (literatura de revelaccedilatildeo de estrutura narrativa) e do conteuacutedo (mediaccedilatildeo sobrenatural

realidades transcendentes temporal e espacial) Ao aplicar esta lista de caracteriacutesticas ao

livro de Joatildeo Collins entende que a obra se enquadra com precisatildeo no interior da tradiccedilatildeo

literaacuteria que gerou os apocalipses

Escritores natildeo conseguem escrever sem ter em mente outros textos que eles leram

os quais se tornam modelos para serem imitados transformados ou contrapostos A inserccedilatildeo

de um texto num determinado veio tradicional ou literaacuterio assim tem funccedilatildeo natildeo somente

promotora de caracteriacutesticas (forma conteuacutedo e funccedilatildeo) mas tambeacutem hermenecircutica Afinal

124 RUSSELL D S Desvelamento divino uma introduccedilatildeo agrave apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo Paulus 1997 125 COLLINS John J Introduction Towards the Morphology of a Genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979

p 9

46

leitores natildeo conseguem ler e entender uma obra se eles natildeo estiverem habilitados para

relacionaacute-la com outras que eles tiveram a oportunidade de ler ou conhecer

O propoacutesito da identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo de uma obra eacute orientar e guiar a produccedilatildeo

ou a recepccedilatildeo da mesma Este processo eacute normalmente deliberado e consciente por parte

do autor do livro como um de seus recursos para guiar o seu leitor

A classificaccedilatildeo de textos consiste no levantamento de um conjunto de convenccedilotildees

impliacutecitas ou expliacutecitas O escritor conhece estas convenccedilotildees do contexto no qual e contra o

qual escreve No processo de produccedilatildeo de sua obra ele ajuda o leitor por meio de indicaccedilotildees

para-textuais como tiacutetulos subtiacutetulos prefaacutecios ou outros sinais menos oacutebvios Com isso se

forma um tipo de ldquocontratordquo que orienta antecipadamente a leitura e a apropriaccedilatildeo da obra

Afinal estas marcas estatildeo ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido

Paul Duff destaca que Joatildeo como todo escritor ou orador precisou antecipar a reaccedilatildeo

dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem126 As tais marcas

viabilizam as classificaccedilotildees ou categorizaccedilotildees e formam uma espeacutecie de guia de leitura que

pode ser aceito ou natildeo pelos leitores

Linton insiste que mesmo que uma obra natildeo tenha estes sinais claramente os leitores

tenderatildeo a construir seus proacuteprios guias de interpretaccedilatildeo normalmente comparando a obra

com outras similares de forma a construir um corpo de convenccedilotildees para guiar a leitura127

A praacutetica da leitura se torna entatildeo um contiacutenuo processo de comparaccedilatildeo com leituras

anteriores

Autores se valem de categorias Leitores se aproveitam delas Em ambas as situaccedilotildees

a construccedilatildeo do texto e a busca pelo seu sentido eacute uma atividade de comparaccedilatildeo na qual as

categorias se tornam ferramentas heuriacutesticas significativas Ao escrever sua obra Joatildeo

deliberadamente revestiu-a de marcas e traccedilos de obras que viriam posteriormente a ser

conhecidas como ldquoapocalipsesrdquo Ao assim fazer ele forneceu a forma como ele esperava

que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Aacutesia e com quais textos o Apocalipse deveria

ser comparado

126 DUFF Paul B Who rides the beast op cit p 72 127 LINTON Gregory L Reading the Apocalypse as Apocalypse In BARR David L (ed) The Reality of

Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p

9-41 p 15

47

15 Resumo

O Apocalipse foi escrito por um judeu de nome Joatildeo que migrou da Palestina apoacutes a

guerra judaico-romana (66-70) e desenvolvou uma atividade profeacutetica entre as comunidades

do movimento de Jesus na Aacutesia menor Perto do final do seacuteculo pouco antes do fim do

governo do Imperador Domiciano (96) ele se deslocou ou foi descolocado para a ilha de

Patmos onde escreveu um texto marcado por traccedilos da tradiccedilatildeo literaacuteria judaica denominada

pelos estudiosos como ldquoapocalipserdquo Com sua obra ele desejava convencer alguns membros

especialmente de sete igrejas da proviacutencia asiaacutetica a romperem relacionamentos

significativos com a sociedade romana

II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA

Como discutimos no capiacutetulo anterior o Apocalipse de Joatildeo foi escrito nos anos 90

do primeiro seacuteculo da Era Comum provavelmente nos uacuteltimos anos do principado do

imperador Domiciano (Titus Flavius Domitianus)128 A partir de uma referecircncia interna

(Apocalipse 19) eacute possiacutevel circunscrever seu local de origem como sendo a pequena ilha

do mar Egeu de nome Patmos e seu destino como um conjunto de comunidades do

movimento de Jesus localizadas na proviacutencia proconsular da Aacutesia (Apocalipse 111) Eacutefeso

Esmirna Peacutergamo Tiatira Sardes Filadeacutelfia e Laodiceacuteia

Este Joatildeo de Patmos estaacute longe de Roma capital do Impeacuterio Apesar dos atos e gestos

do Imperador poderem refletir diretamente na vida de Joatildeo e no puacuteblico de sua obra em

termos sociais poliacuteticos econocircmicos ou culturais o contexto especiacutefico do Apocalipse eacute

mesmo a Aacutesia romana Em funccedilatildeo disso neste capiacutetulo nos deteremos em analisar a situaccedilatildeo

desta proviacutencia focando em aspectos que poderiam iluminar de alguma forma o processo

histoacuterico de produccedilatildeo do Apocalipse

21 Patmos o ponto de partida

Segundo o Apocalipse seu autor Joatildeo recebeu a seacuterie de visotildees que deu origem agrave

obra enquanto estava na ilha de Patmos no mar Egeu ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro

na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por

causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo (Apocalipse 19)

Patmos eacute uma ilha pequena Em termos gerais satildeo treze quilocircmetros de extensatildeo por

oito de largura Poreacutem sua costa recortada reduz consideravelmente suas dimensotildees Sua

margem fica a 64 quilocircmetros da foz do rio Maeander o ponto mais proacuteximo da peniacutensula

da Aacutesia Menor129 Esta distacircncia relativa tambeacutem a separava de Mileto seu principal viacutenculo

128 Domiciano foi assassinado no dia 18 de setembro de 96 por uma conspiraccedilatildeo palaciana e substituido no

mesmo dia por um dos seus amici o senador M Cocceius Nerva Cf JONES Brian W The emperor Domitian

Londres Routledge 1992 p 93 129 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield

Academic Press Ltd 1986 p 27

49

social com o continente Das cidades mencionadas no Apocalipse entretanto a mais

proacutexima era Eacutefeso distante da ilha cerca de 100 quilocircmetros130

A associaccedilatildeo de Patmos com Mileto era formal fazendo parte do seu territoacuterio junto

com as ilhas de Lipsos e Leros Nas trecircs ilhas havia algum tipo de povoamento Em Patmos

especificamente seu povo era conhecido como frouroi e seus liacutederes frourarchoi atuando

como parte do governo de Mileto para a populaccedilatildeo local131

Eacute preciso insistir no fato de que Patmos natildeo era uma ilha deserta ou mesmo uma

colocircnia penal O professor David Aune argumenta neste sentido e aponta como evidecircncia

duas inscriccedilotildees encontradas na ilha Uma datada para o seacuteculo II aC faz referecircncia a uma

associaccedilatildeo local de atletas agrave presenccedila de um gymnasium e agrave figura de um gymnasiarcha

eleito sete vezes para a mesma funccedilatildeo Outra de duzentos anos depois jaacute na Era Comum

fala de uma hidrophore sacerdotisa de Artemis e a presenccedila de um templo local bem

estabelecido para esta deusa132

Joatildeo escreve de uma ilha pertencente agrave Mileto a polis mais proacutexima de onde ele ldquose

achavardquo133 Curiosamente entretanto ela estaacute ausente da lista de cidades mencionadas no

Apocalipse Talvez a resposta a esta questatildeo tenha relaccedilatildeo com a falta de uma comunidade

do movimento de Jesus em Mileto O livro Atos dos Apoacutestolos escrito de um lugar

indeterminado entre os anos 80 e 90134 conteacutem uma narrativa que parece indiciar a ausecircncia

de uma comunidade na cidade Nela (Atos 2017-38) Paulo se prepara para fazer uma

viagem a Roma Entre seus preparativos estaacute uma visita agrave igreja de Jerusaleacutem Durante sua

viagem ele se detem em Mileto para conversar natildeo com disciacutepulos da cidade mas com

liacutederes que vieram da igreja de Eacutefeso O autor anocircnimo explicita que ldquode Mileto mandou a

Eacutefeso chamar os presbiacuteteros da igrejardquo (Atos 2017) Natildeo haacute qualquer menccedilatildeo agrave presenccedila de

seguidores do movimento de Jesus pelo menos perto do ano 60 quando os eventos narrados

por Atos se deram135 Neste sentido a omissatildeo do Apocalipse pode indicar que as trecircs

deacutecadas que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de Joatildeo por ela natildeo foram

suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar

130 Conferir os mapas da Aacutesia romana nos anexos 1 e 2 131 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 p 76 132 Idem p 77 133 Ele usa o termo grego ldquoἐγενόμηνrdquo primeira pessoa do aoristo do indicativo meacutedio ldquoachei-merdquo 134 KUMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 238 135 GALBIATTI Enrico Rodolfo ALETTI Aldo Atlas histoacuterico da Biacuteblia e do Antigo Oriente Petroacutepolis

Vozes 1991 p 216

50

22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia

Para Ciacutecero (107-43 aC) a ldquoAacutesia eacute oacutetima e feacutertilrdquo (ldquoAsia vero tam optima est ac

fertilisrdquo) e acrescentou que ldquona riqueza de seus oacuteleos na variedade de seus produtos na

extensatildeo de seus pastos e no nuacutemero de suas exportaccedilotildees ela ultrapassa todas as outras

terrasrdquo (De Imperio cn Pompei ad qurites oratio 14) A Aacutesia Menor era uma das regiotildees

mais ricas do Impeacuterio e dentre as seis proviacutencias da peniacutensula a Aacutesia era a mais rica136

Formalmente ela era uma proviacutencia senatorial governada por um prococircnsul indicado pelo

senado romano137 Entretanto tanto o imperador quanto o senado poderiam promover

regulamentos que afetariam a proviacutencia Justamente por isso nela havia representantes

imperial e senatorial

Durante o governo da dinastia Flaacutevia a gestatildeo da Aacutesia foi marcada pela recuperaccedilatildeo

econocircmica138 A aclamaccedilatildeo de Vespasiano se deu em Alexandria no dia 1 de julho de 69

sendo prontamente reconhecido pelas proviacutencias orientais O novo imperador viajando de

navio parou em vaacuterias cidades da costa da Aacutesia onde oficiais locais fizeram os juramentos

habituais de fidelidade139

Apoacutes sua ascensatildeo ao poder Vespasiano encontrou o tesouro imperial falido pelas

guerras civis que se seguiram agrave morte de Nero Para restaurar as financcedilas puacuteblicas ele adotou

uma poliacutetica econocircmica que reduziu os gastos do governo e procurou aumentar as receitas

do estado reorganizando o recolhimento das taxas puacuteblicas ou criando novas como o fiscus

Alexandrinus e o fiscus Iudaicus Esta segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus para

substituir um imposto recolhido para subsidiar o Templo de Jerusaleacutem recentemente

destruiacutedo pelas legiotildees de Tito filho de Vespasiano140

Uma mudanccedila importante se deu na forma como tais taxas eram cobradas A

cobranccedila saiu das matildeos dos publicani para um agente do governo liderado por um

procurador em Roma e outro em cada proviacutencia Posteriormente Domiciano criou o oficio

136 MAGIE David Roman rule in Asia Minor to the end of third century after Christ Princenton Princenton

University Press 1950 p 34-52 Cf tambeacutem KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no

Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 89 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation

Apocalypse and Empire Oxford Oxford University Press 1990 p 146 137 MAGIE op cit p 569 138 Para uma anaacutelise da reorganizaccedilatildeo efetuada por Vespasiano na proviacutencia mantida e ampliada por Tito e

Domiciano cf LEVICK Barbara Greece and Asia Minor In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient

History Cambridge Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 604-634 p 604 139 MAGIE op cit p 566 140 GRIFFIN Miriam The Flavians In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient History Cambridge

Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 1-83 p 27

51

de curator civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus recursos

Este processo de centralizaccedilatildeo financeira diminuiu a autonomia da proviacutencia contudo

ajudou suas cidades

Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Aacutesia Menor pelo incremento na

construccedilatildeo e manutenccedilatildeo de estradas Estradas importantes foram construiacutedas apoacutes a

ascensatildeo dos Flaacutevios como duas estradas que saiam de Peacutergamo no ano 75 Uma descia na

direccedilatildeo de Esmirna e Eacutefeso margeando a costa Outra seguia pelo interior na direccedilatildeo de

Tiatira e Sardes Estas mesmas estradas foram restauradas por Domiciano Aleacutem das

vantagens para o comeacutercio e a comunicaccedilatildeo o foco nas estradas tinha tambeacutem como objetivo

facilitar o acesso para a regiatildeo oriental da Aacutesia Menor e para as fronteiras com o Impeacuterio

Persa no Eufrates Por elas deveriam circular as legiotildees romanas e o suprimento para as

tropas141 Mas natildeo havia uma legiatildeo especiacutefica estacionada em qualquer proviacutencia da Aacutesia

Menor A defesa da regiatildeo dependia inteiramente das legiotildees fixadas na Siacuteria

O governo de Tito deu sequecircncia agraves poliacuteticas de seu pai ateacute que em setembro de 81

apoacutes sua morte ele foi sucedido por Domiciano Haacute um juiacutezo tradicional negativo a respeito

deste uacuteltimo imperador da dinastia Flaacutevia como ilustrado pela opiniatildeo de Euseacutebio de

Cesareacuteia (263-339)

Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos

dando morte sem julgamento razoaacutevel a natildeo pequeno nuacutemero de

patriacutecios e de homens ilustres e castigando com desterro fora das

fronteiras e confisco de bens a outras inuacutemeras personalidades sem

causa alguma Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero

na animosidade e guerra contra Deus Efetivamente ele foi o segundo

a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutes apesar de que seu pai

Vespasiano nada de mal planejou contra noacutes (Histoacuteria Eclesiaacutestica

III XVII 1)

Este juiacutezo se reflete tambeacutem na historiografia David Magie descreve inicialmente o

governo de Domiciano como inescrupuloso e impiedoso142 mas pouco depois reconhece

que

nas proviacutencias existe pouca evidecircncia de crueldade por parte de

Domiciano ou mesmo de pretensotildees de grandeza exageradas No

oriente mesmo o tiacutetulo de ldquodeusrdquo que incomodava os ouvidos

romanos era tido como normal Ainda o tiacutetulo completo ldquoDeus

invisiacutevel fundador da cidaderdquo inscrito no peacute de uma estatua do

imperador em Priene natildeo era mais extravagante do que outros dados

141 MAGIE op cit p 571 142 Idem p 577

52

a muitos de seus antecessores e a outorga do epiacuteteto de ldquofundadorrdquo

parece indicar que ele realmente beneficiou a cidade143

A relaccedilatildeo de Domiciano com a Aacutesia assim natildeo foi diferente da forma como seu

irmatildeo Tito e seu pai Vespasiano trataram a proviacutencia A proviacutencia se beneficiou com a

gestatildeo dos Flaacutevios que terminou com a morte de Domiciano em setembro de 96 jaacute que o

imperador natildeo deixou herdeiro

Um testemunho da prosperidade do periacuteodo pode ser encontrado em um dos livros

dos Oraacuteculos Sibilinos surgido perto do ano 80 O oraacuteculo escrito na perspectiva do

Judaiacutesmo da diaacutespora na Aacutesia atacou o Impeacuterio Romano mas natildeo deixou de evidenciar a

riqueza da proviacutencia segundo seu autor espoliada em favor de Roma

Grande riqueza viraacute para Aacutesia riqueza que uma vez Roma tendo

tomado-a por rapina armazenou em uma casa de insuperaacuteveis

riquezas mas sem demora ela faz uma dupla restituiccedilatildeo para a Aacutesia

entatildeo haveraacute um excesso de conflitos (Oraacuteculo Sibilino IV I 42)144

Durante as deacutecadas da dinastia Flaacutevia a situaccedilatildeo econocircmica da Aacutesia se refletiu no

volume de novas construccedilotildees natildeo apenas por meio de recursos puacuteblicos mas tambeacutem atraveacutes

de subsiacutedios de pessoas ricas Estas liturgias incluiacuteam recursos para as edificaccedilotildees para o

reparo de construccedilotildees para a manutenccedilatildeo de centros sociais e para a realizaccedilatildeo de

festivais145

A cidade mais beneficiada no periacuteodo foi possivelmente a sede da proviacutencia Eacutefeso

Nela residia o proconsul da cidade O procurador ou vice-proconsul com alguma

probabilidade tambeacutem morava nela A partir da deacutecada de 90 mesmo sem uma precisatildeo

maior trecircs pessoas se sucederam no governo da Aacutesia ateacute a morte de Domiciano Sextus

Vettulenus Civica Cerialis C Minicius e L Junius Caesennius Paetus146

23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia

Os mais antigos membros das igrejas da Aacutesia eram oriundos de comunidades judaicas

da Aacutesia Menor Das centenas de cidades da proviacutencia asiaacutetica a presenccedila do movimento de

143 Idem p 577 144 Citado a partir de MAGIE op cit p 582 145 Idem p 583 146 Idem p 1582-1583

53

Jesus era atestada onde existia tambeacutem uma comunidade judaica147 Eacute plausiacutevel mesmo

tratar o movimento de Jesus na Aacutesia como parte do Judaiacutesmo da diaacutespora

Frequentadores de sinagogas ou de igrejas viviam na Aacutesia Menor no final do

primeiro seacuteculo e iniacutecio do segundo em grandes aacutereas urbanas e o que puder ser dito sobre

o primeiro grupo vale tambeacutem para o segundo O movimento de Jesus estaacute em processo de

ruptura e construccedilatildeo de identidade proacutepria todavia esse movimento ainda natildeo se completou

na regiatildeo como o proacuteprio Apocalipse pode evidenciar Apesar de membros da sociedade

romana especialmente seus magistrados jaacute perceberem alguma diferenccedila entre um e outro

na vida cotidiana eles permaneciam histoacuterica social e teologicamente envolvidos Esse

parece ser o motivo que levou Joatildeo de Patmos a se envolver em disputas com membros das

sinagogas locais (Apocalipse 29 39)148

A crise com as sinagogas de Esmirna (Apocalipse 29) e Filadeacutelfia (Apocalipse 39)

pode ter relaccedilatildeo com a forma como as comunidades judaicas se adaptaram ao contexto

urbano da proviacutencia Judeus habitavam a regiatildeo desde que Antioco III ordenou a realocaccedilatildeo

de duas mil famiacutelias judaicas da Babilocircnia para a Frigia como uma colocircnia militar a fim de

minimizar revoltas na regiatildeo149 Desde entatildeo judeus estavam amplamente presentes na parte

ocidental da Aacutesia Menor vivendo suas praacuteticas religiosas mas com relativa integraccedilatildeo na

vida ciacutevica das cidades150

Mesmo depois da guerra judaico-romana (66-70) os judeus da Aacutesia continuaram a

compartilhar da prosperidade da proviacutencia sem ameaccedila de puniccedilotildees por algum tipo de

conexatildeo com a guerra na Judeacuteia151 Com exceccedilatildeo do Fiscus Iudaicus nenhuma outra

consequecircncia poliacutetica ou social foi imposta aos judeus da diaacutespora pelo Impeacuterio Romano

apoacutes a guerra Segundo Josefo ldquoo mesmo soberano ordenou tambeacutem que os judeus em

qualquer lugar onde morassem deveriam pagar cada qual todos os anos duas dracmas ao

Capitoacutelio como antes pagavam ao templo de Jerusaleacutemrdquo (Guerra dos Judeus 27) A

identificaccedilatildeo dos judeus com a sociedade romana tambeacutem eacute testemunhada por este

sobrevivente da guerra Em Antiguidades Judaicas ele argumenta que judeus em Sardes

eram sardianos em Eacutefeso eram efeacutesios em Antioquia eram antioquenos (Antiguidades

Judaicas 239)

147 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 133 148 Idem p 145 149 TREBILCO Paul Jewish communities in Asia Minor Cambridge Cambridge Univesity Press 1991 p 5 150 Idem p 173 151 Idem p 32

54

Judeus eram membros ativos de associaccedilotildees comerciais e sindicatos Tambeacutem eram

agricultores vinhateiros marinheiros trabalhadores com metal e perfumaria Estavam

envolvidos ainda em manufaturas tecircxtil como tintureiros vendedores e fabricantes de

roupa152

Em cada uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse judeus viviam suas vidas

segundo as tradiccedilotildees judaicas poreacutem sem desprezar a participaccedilatildeo em atividades urbanas

locais Foi a partir destas comunidades judaicas engajadas na vida cotidiana do Impeacuterio que

o movimento de Jesus da Aacutesia formou suas igrejas

24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia

A proviacutencia da Aacutesia se situava na costa ocidental da peniacutensula da Aacutesia Menor O

autor do Apocalipse Joatildeo aponta a ilha de Patmos pertencente agrave cidade de Mileto como o

local de origem do livro Todas as cidades mencionadas explicitamente na obra satildeo cidades

de grande porte dentro da proviacutencia

As principais evidecircncias da presenccedila de cristatildeos nestas cidades vecircm de fontes do

proacuteprio movimento (cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos cartas de Pedro Apocalipse e

Inaacutecio de Antioquia) A mais antiga referecircncia a igrejas na regiatildeo vem de cartas que Paulo

de Tarso escreveu para comunidades de disciacutepulos de Corinto na deacutecada de 50 Ele estava

em Eacutefeso enquanto escrevia estas cartas (1Coriacutentios e 2Coriacutentios) O autor do livro Atos dos

Apoacutestolos tambeacutem falou do tempo em que Paulo ficou em Eacutefeso Segundo ele Paulo ficou

na cidade por trecircs anos (Atos 2031)

Tanto as cartas a Coriacutentios quanto Atos dos Apoacutestolos evidenciam que na capital da

proviacutencia existiam outros liacutederes do movimento Paulo natildeo era o uacutenico Outros como

Aacutequila Priscila e Apolo tambeacutem satildeo mencionados Estes liacutederes eram artesatildeos

independentes oriundos de comunidades judaicas da Aacutesia Menor Isso se nota por meio de

sua mobilidade sua ocupaccedilatildeo e a hospedagem de igrejas em suas casas Pessoas com a

mobilidade que eles possuiacuteam deveriam possuir recursos Para acomodar pessoas suas casas

tambeacutem deveriam ter razoaacutevel espaccedilo Natildeo eram pessoas de classes inferiores da sociedade

romana

152 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 144

55

Jaacute nos tempos de Paulo se manifestou a questatildeo da interaccedilatildeo das comunidades com

a vida urbana da cidade especialmente na questatildeo da alimentaccedilatildeo em atividades religiosas

ou ciacutevicas Em cidades gregas e romanas as pessoas tinham vaacuterias oportunidades para

participar de refeiccedilotildees cuacutelticas Isso poderia acontecer em ocasiotildees puacuteblicas (funerais

celebraccedilotildees festas ciacutevicas etc) ou privadas (clubes organizaccedilotildees comerciais refeiccedilotildees

privadas etc) Tanto em uma quanto em outra situaccedilatildeo as refeiccedilotildees expressavam conexatildeo

social em torno de causas comuns153

Fazer refeiccedilotildees puacuteblicas e comer carne oriunda de sacrifiacutecios religiosos satildeo

elementos diretamente ligados agrave questatildeo da participaccedilatildeo nas instituiccedilotildees sociais da cidade e

do Impeacuterio Este tipo de pressatildeo poderia ser diferente para status sociais distintos Segundo

Gerd Theissen cristatildeos ricos teriam mais oportunidades de se envolver em refeiccedilotildees cuacutelticas

de caraacuteter puacuteblico do que cristatildeos pobres154

Quando Paulo tratou deste assunto em 1Coriacutentios 8-10 ele relacionou a participaccedilatildeo

nas refeiccedilotildees com a situaccedilatildeo dos fracos e fortes dentro da comunidade Seu argumento

caminha na direccedilatildeo de que somente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto

os ldquofracosrdquo e os ldquofortesrdquo (ἀσθενεiς kai ἰσχυροί) participassem juntos como em festivais

puacuteblicos eacute que os disciacutepulos deveriam se abster (1Coriacutentios 87-13) Nas instacircncias privadas

poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela origem da comida

(1Corintios 1027) As igrejas da Aacutesia provavelmente nasceram a partir de mensagens e

perspectivas semelhantes agraves de Paulo de Tarso

O autor do Apocalipse quatro deacutecadas depois de missionaacuterios como Paulo Aacutequila

Priscila e Apolo terem fundado essas comunidades escreve uma obra na qual defende

posiccedilotildees divergentes Os adversaacuterios de Joatildeo descritos em sua obra como os nicolaiacutetas

baalamitas ou Jesabel satildeo atacados por promoveram algum tipo de interaccedilatildeo com a

sociedade interaccedilatildeo essa que parece ter relaccedilatildeo com a mesma questatildeo respondida por Paulo

na sua carta aos Coriacutentios a participaccedilatildeo em refeiccedilotildees ou atividades sociais que envolviam

a ingestatildeo de carne originada em sacrifiacutecio religioso Aqueles que Joatildeo enxerga como

adversaacuterios satildeo provavelmente membros do movimento de Jesus que possuem uma

perspectiva semelhante agrave que Paulo deu aos crentes de Corinto155 Thompson analisa a

153 Idem p 123 154 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva Satildeo Leopoldo Sinodal 1983 p 146 155 Assim resumiu Pagels ldquomuitas praacuteticas que Joatildeo atacava eram as mesmas que Paulo anteriormente

recomendavardquo Cf PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation

New York Penguin Books 2012 p 54

56

questatildeo e sugere que como as respostas que os adversaacuterios de Joatildeo datildeo satildeo semelhantes agrave

do antigo missionaacuterio de Tarso possivelmente eles possuiacuteam posiccedilotildees sociais semelhantes

ou seja estavam envolvidos em atividades comerciais possuiacuteam responsabilidades ciacutevicas

e pertenciam a um estrato mais rico da lideranccedila das igrejas da Aacutesia156 Este mesmo autor

defende que as igrejas da Aacutesia deveriam ter em linhas gerais uma mesma composiccedilatildeo

social Elas possuiacuteam em seus quadros pessoas livres e escravas homens e mulheres ricos

e pobres e deveriam se parecer com muitas associaccedilotildees religiosas ou sociais que existiam

na Aacutesia157 Estas associaccedilotildees synodos proliferavam consideravelmente desde a instauraccedilatildeo

do Impeacuterio e se manifestavam no Ocidente e no Oriente Segundo Meeks elas surgiam a

partir da decisatildeo de um grupo de doze a quarenta pessoas de se encontrarem em algum lugar

para reuniotildees158

Nestas reuniotildees era comum haver certa semelhanccedila de status social entre seus

membros Entretanto o proacuteprio fenocircmeno ldquostatusrdquo eacute complexo e possui vaacuterias dimensotildees

No status social de uma pessoa ou famiacutelia influiam elementos como poder prestiacutegio da

ocupaccedilatildeo renda ou riqueza educaccedilatildeo e cultura religiatildeo e pureza ritual famiacutelia ou grupo

eacutetnico status da comunidade local em que se estava envolvido Cada um destes elementos

poderia ser conjugado de forma diferente em uma dada circunstacircncia histoacuterica Na praacutetica

o status de um cidadatildeo romano era o resultado de como estas variaacuteveis eram consideradas

na sociedade local Mesmo que existisse certa perspectiva geral um sacerdote de Eacutefeso

poderia ter mais status do que um comerciante rico da cidade Em outra cidade o

conhecimento poderia ser mais importante do que a etnia em outra a pureza ritual poderia

valer mais do que a descendecircncia familiar A riqueza poderia dar mais status do que o

conhecimento mas em algumas circunstacircncias pertencer a uma famiacutelia nobre era mais

importante do que ter recursos financeiros159

Atentando para esses elementos o que as fontes geradas pelo movimento de Jesus

poderiam apontar sobre o status social dos seus membros O missionaacuterio Paulo de Tarso na

mesma carta que escreveu para a comunidade de Corinto informa que ldquonatildeo muitos da

comunidade eram saacutebios segundo o mundo nem poderosos nem de nobre nascimentordquo

(1Coriacutentios 126) Dizer que natildeo havia muitos significa afirmar que havia alguns Entre os

156 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 129 157 Idem p 127 158 MEEKS Wayne A Os primeiros cristatildeos urbanos o mundo social do Apoacutestolo Paulo Satildeo Paulo Paulinas

1992 p 54 159 Conferir esta discussatildeo em MEEKS op cit p 91

57

membros do movimento na cidade havia pessoas cultas (ldquordquo) ricas

(ldquordquo) ou bem-nascidas (ldquordquo) Pelo argumento de Paulo estes formavam uma

minoria dentro da comunidade apesar de se constituiacuterem numa minoria dominante160

Outro testemunho sobre as posiccedilotildees sociais dentro das comunidades da Aacutesia pode vir

de uma carta que Pliacutenio o Jovem escreveu em 112 enquanto atuava como governador da

proviacutencia da Bitiacutenia e Ponto tambeacutem na Aacutesia Menor O quadro descrito por Pliacutenio parece

ser bem parecido com a composiccedilatildeo da igreja de Eacutefeso ou das demais cidades mencionadas

no Apocalipse Pliacutenio resolveu tratar deste assunto com o Imperador Trajano porque

entendeu que a questatildeo era digna de consideraccedilatildeo imperial em funccedilatildeo do nuacutemero de pessoas

que se engajavam no movimento Estes ldquochristianirdquo eram de todas as idades (ldquoominis

aetatisrdquo) todas as ordens (ldquoomnis ordinisrdquo) tanto homem quanto mulher (ldquoutrisque sexusrdquo)

(Epiacutestolas 10968)

Uma carta que Paulo escreveu a Filemon jaacute na deacutecada de 60 no periacuteodo em que

esteve preso em Roma indica outro aspecto significativo da composiccedilatildeo destas

comunidades Filemon era proprietaacuterio de escravo Um deles Oneacutesimo fugiu encontrou-se

com Paulo em Roma converteu-se ao movimento e foi orientado a voltar para seu antigo

dominus este tambeacutem um convertido morador da Aacutesia Uma igreja se reunia na casa deste

senhor de escravos (Filemon 2) Natildeo eacute possiacutevel saber quantos escravos Filemon possuiacutea

mas ele recebe a orientaccedilatildeo de Paulo para que aceitasse seu antigo escravo de forma

amistosa natildeo mais como escravo (ldquow`j doulonrdquo) e sim como algueacutem mais do que escravo

(ldquou`per doulonrdquo) O escravo agora deveria ser tratado como irmatildeo (ldquow`j avdelfonrdquo) A taacutebua

domeacutestica registrada na carta aos Efeacutesios (Efeacutesios 65) documento deuteropaulino anocircnimo

escrito em algum momento entre os anos 80-100 possivelmente da Aacutesia161 especifica que

os escravos deveriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor (ldquometa fobou kai

tromourdquo)

Isso indica que as comunidades de Jesus tinham a presenccedila de pessoas livres e

escravas senhores e servos mas as orientaccedilotildees de seus liacutederes tendiam a tomar o lado dos

senhores em vez dos escravos

Outros elementos tambeacutem podem iluminar o quadro social destas comunidades da

Aacutesia162 Primeiramente o fato de alguns de seus membros escreverem livros e cartas para

160 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva op cit p 146-147 161 KUMMEL op cit p 480 162 Sobre estas sugestotildees cf THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 128-129

58

serem lidas no interior do movimento indica uma presenccedila significativa de pessoas que

sabiam escrever e ler numa sociedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas

mas parcamente encontradas Um segundo aspecto pode ser localizado naqueles que

hospedavam a comunidade em sua casa os quais deveriam ter certa ascendecircncia sobre os

membros do movimento Possivelmente eles agiam como ldquopatronosrdquo da igreja da mesma

forma como outros patronos da cidade suportavam clubes e associaccedilotildees comerciais Por fim

cristatildeos viajavam muito num periacuteodo em que viagens eram muito custosas Meeks sugeriu

a partir dos itineraacuterios apresentados nos Atos dos Apoacutestolos que o missionaacuterio Paulo de

Tarso pode ter viajado aproximadamente dezesseis mil quilocircmetros durante sua carreira

religiosa163 Estas viagens eram bancadas geralmente por atividades profissionais proacuteprias

mas em algumas circunstacircncias como no caso de Joatildeo de Patmos algum tipo de patrociacutenio

poderia ser buscado entre as comunidades visitadas

Com comunidades assim constituiacutedas de que maneira seus membros se

relacionavam com a sociedade Como jaacute indicamos no capiacutetulo anterior os membros do

movimento de Jesus da Aacutesia estavam inseridos na vida cotidiana da proviacutencia e natildeo

buscavam ruptura com seus vizinhos Apesar da dificuldade em se situar geograficamente a

origem ou o destino escrevendo em meados do segundo seacuteculo o autor da carta a Diogneto

resumiu

Os cristatildeos de fato natildeo se distinguem dos outros homens nem por sua

terra nem por liacutenguas ou costumes Com efeito natildeo moram em cidades

proacuteprias nem falam liacutengua estranha nem tecircm algum modo especial de

viver Sua doutrina natildeo foi inventada por eles graccedilas ao talento e

especulaccedilatildeo de homens curiosos nem professam como outros algum

ensinamento humano Pelo contraacuterio vivendo em cidades gregas e

baacuterbaras conforme a sorte de cada um e adaptando-se aos costumes do

lugar quanto agrave roupa ao alimento e ao resto testemunham um modo de

vida social admiraacutevel e sem duacutevida paradoxal Vivem na sua paacutetria mas

como forasteiros participam de tudo como cristatildeos e suportam tudo como

estrangeiros Toda paacutetria estrangeira eacute paacutetria deles e cada paacutetria eacute

estrangeira (Carta a Diogneto 51-5)

Tertuliano no final do segundo seacuteculo argumentou de modo semelhante para a

sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia Segundo ele os cristatildeos tinham a mesma

maneira de vida as mesmas roupas e os mesmos costumes eles frequentavam juntos o

mercado o accedilougue os banhos puacuteblicos as lojas as faacutebricas as tavernas as feiras e outros

163 MEEKS op cit p 32

59

negoacutecios Cristatildeos eram marinheiros soldados agricultores e se envolviam no comeacutercio

com natildeo cristatildeos Defendendo sua comunidade ele argumentou que eles proviam

habilidades e serviccedilos para o benefiacutecio de toda a sociedade romana (Apologia 42)

Tanto a Carta a Diogneto quanto Apologia natildeo dizem respeito especiacutefico agrave Aacutesia do

final do primeiro seacuteculo mas pelo menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a

interaccedilatildeo social no movimento de Jesus A perspectiva do missionaacuterio Paulo na deacutecada de

50 e 60 parece estar replicada em Diogneto e Apologia no segundo seacuteculo Isso significa

dizer que os seguidores de Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas

situaccedilotildees que os demais membros da sociedade romana Eles tinham contatos com pessoas

de outros viacutenculos religiosos na economia sociedade famiacutelia e poliacutetica Os seguidores de

Jesus tocavam suas vidas de forma paciacutefica com seus vizinhos tentando viver sem

distuacuterbios ou mesmo sem chamar muita atenccedilatildeo

25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo

No mesmo periacuteodo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse mas longe de Patmos cerca

de 1600 quilocircmetros um dos liacutederes da igreja de Roma o presbiacutetero Clemente escreveu

uma carta para a igreja de Corinto Clemente romano alcanccedilou grande prestiacutegio em vaacuterias

comunidades cristatildes posteriormente a ponto de sua carta aparecer em diversas listas

canocircnicas O que levou Clemente a se manifestar aparentemente foi algum tipo de tumulto

interno do movimento de Jesus em Corinto Alguns liacutederes da igreja teriam sido destituiacutedos

sem motivo aparente o que gerou o protesto de Clemente Ele escreveu ldquoCariacutessimos eacute

vergonhoso muito vergonhoso e indigno de conduta cristatilde ouvir dizer que a firme e antiga

Igreja de Corinto por causa de uma ou duas pessoas estaacute em revolta contra os seus

presbiacuteterosrdquo (1Clemente 476)

Na saudaccedilatildeo inicial ele descreve a igreja da capital como ldquoestrangeira em Romardquo A

expressatildeo poderia ser indiacutecio de algum tipo de desconforto da comunidade em relaccedilatildeo agrave

sociedade romana Outra passagem de sua carta talvez aponte para a mesma direccedilatildeo

ldquoIrmatildeos pelas desgraccedilas e adversidades imprevistas que nos aconteceram uma apoacutes outra

acreditamos ter demorado muito para dar atenccedilatildeo agraves coisas que entre voacutes se discutemrdquo

(1Clemente 11) O autor faz referecircncia a algum tipo de crise que impediu que ele se

60

manifestasse anteriormente sobre a situaccedilatildeo de Corinto mas ele evita descrever a natureza

desta crise em qualquer outro lugar da obra

Ao sugerir o fim para os conflitos internos da comunidade ele toma o exeacutercito

romano como exemplo de organizaccedilatildeo e ordem

Irmatildeos militemos com toda nossa prontidatildeo sob as ordens irrepreensiacuteveis

dele Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos

governantes com que disciplina docilidade e submissatildeo eles executam as

funccedilotildees que lhes satildeo designadas (1Clemente 371-2)

Ao demonstrar certa admiraccedilatildeo pela estrutura militar do Impeacuterio ou quando

denomina os oficiais romanos de ldquonossos governantesrdquo a carta de Clemente parece

evidenciar que os membros da comunidade de Jesus estabelecida na capital do Impeacuterio natildeo

possuem uma crise aberta com a sociedade Em funccedilatildeo de suas analogias o mesmo poderia

ser dito a respeito da igreja de Corinto Essa parece ser tambeacutem a postura que adotou o autor

anocircnimo de 1Pedro possivelmente entre os anos 90-95164 escrevendo talvez de Roma

ldquoSujeitai-vos a toda instituiccedilatildeo humana por causa do Senhor quer seja ao rei como

soberano quer agraves autoridades como enviadas por ele tanto para castigo dos malfeitores

como para louvor dos que praticam o bemrdquo (1Pedro 213-14)

Alguns argumentos de Clemente (1Clemente 552-3) indicam que a igreja jaacute passou

por dificuldades mas ele minimiza a crise inserindo-a numa exortaccedilatildeo em benefiacutecio do bem

comum O presbiacutetero Clemente natildeo atribui agrave sociedade romana a responsabilidade pelas

dificuldades que a comunidade enfrentou Isso sugere a existecircncia de uma comunidade

estabelecida na capital do Impeacuterio engajada em evitar problemas com a sociedade

experiecircncia essa que parecia estar replicada em comunidades da proviacutencia da Aacutesia

Mas se os membros do movimento de Jesus de uma forma geral tentavam manter

laccedilos regulares com a sociedade romana o inverso tambeacutem poderia ser afirmado Da parte

dos governantes geralmente havia certa toleracircncia para com costumes e mesmo divindades

locais desde que natildeo se opusessem aos interesses romanos Esta atitude de toleracircncia relativa

deve ter favorecido o desenvolvimento das igrejas Muitas comunidades existiram sem

serem notadas por quase um seacuteculo165 Accedilotildees oficiais da parte dos prococircnsules procuradores

ou outros magistrados locais como as noticiadas por Pliacutenio o Jovem ao imperador Trajano

no iniacutecio do segundo seacuteculo eram raras

164 KUumlMMEL op cit p 557-558 165 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 p 124

61

Tensotildees se manifestavam de forma intermitente como perseguiccedilotildees eventuais mas

normalmente natildeo eram oficiais Segundo Thompson para pessoas de fora da comunidade o

movimento de Jesus era uma religiatildeo suspeita por quatro motivos era nova estrangeira

secreta e exclusiva166 Provavelmente foi em consequecircncia de uma suspeiccedilatildeo desta natureza

que cristatildeos foram acusados diante do governador da Bitiacutenia algum tempo depois do

Apocalipse

As cartas de Pliacutenio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusaccedilotildees

predominantemente vagas Natildeo havia um crime especiacutefico para o processo contra os cristatildeos

O governador perguntou ldquoHaacute de punir-se o simples fato de algueacutem ser cristatildeo mesmo que

inocente de qualquer crime ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nomerdquo

(Epistola 10962) Ainda assim na duacutevida sobre o que fazer Pliacutenio inaugurou um teste

Os que negarem ser cristatildeos considerei-os merecedores de absolviccedilatildeo De

fato sob minha pressatildeo devotaram-se aos deuses e reverenciaram com

incenso e libaccedilotildees vossa imagem colocada para este propoacutesito ao lado das

estaacutetuas dos deuses e pormenor particular amaldiccediloaram a Cristo coisa

que um genuiacuteno cristatildeo jamais aceita fazer (Epiacutestola 10965)

A proviacutencia governada por Pliacutenio era vizinha da Aacutesia e fazia parte do complexo

cultural da mesma peniacutensula Ainda que o problema principal natildeo fosse o culto imperial o

gesto do governador colocou o movimento em colisatildeo com atividades religiosas locais As

epiacutestolas do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos entendiam ser crime

renegar ritos sagrados locais especialmente o culto imperial

26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo

Nos termos de Leonard Thompson ldquonas proviacutencias rituais imagens templos altares

associados com o culto imperial contribuiacuteam de forma importante para a compreensatildeo das

pessoas acerca da sua relaccedilatildeo com o imperadorrdquo167 Isso fazia da instituiccedilatildeo do culto imperial

uma importante representaccedilatildeo do imperador e do Impeacuterio na Aacutesia Havia entretanto

reciprocidade no seu estabelecimento Era uma honra para a cidade ter um templo ou altar

do culto imperial ao mesmo tempo que era importante para o imperador Impeacuterio e senado

aceitavam a existecircncia do culto imperial e promoviam seu estabelecimento e manutenccedilatildeo

166 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 132 167 Idem p 158

62

como igualmente o faziam as proviacutencias Isso significa que a rede de relaccedilotildees alimentadas

pelo culto imperial entre Roma e Aacutesia era uma rede de poder um instrumento poliacutetico de

vaacuterios niacuteveis168

Simon Price analisou a presenccedila do culto na Aacutesia insistindo na dificuldade de

circunscrever o papel do culto imperial apenas agraves esferas poliacuteticas Ele tinha igualmente um

papel religioso Segundo ele rituais de sacrifiacutecio e devoccedilatildeo puacuteblica ou privada eram

simultaneamente expressotildees religiosas e poliacuteticas169

O culto imperial natildeo foi criado pelo imperador do periacuteodo do Apocalipse Otaacutevio

Augusto recebeu honras das cidades da Aacutesia semelhantes agraves oferecidas aos deuses locais

Sacerdotes do primeiro imperador poderiam ser encontrados em mais de trinta cidades da

Aacutesia Menor e mais parentes seus receberam culto do que qualquer outro imperador depois

dele Durante o governo de Claacuteudio surgiram ao lado do sacerdote exclusivo para o

imperador vivo outros sacerdotes com a responsabilidade de promover culto tambeacutem para

os imperadores mortos Em funccedilatildeo da antiguidade da praacutetica e sua permanecircncia no decorrer

dos governos imperiais eacute possiacutevel afirmar que Domiciano alvo de uma forte criacutetica no

Apocalipse (Apocalipse 13) natildeo foi nem mais nem menos insistente com relaccedilatildeo agraves suas

prerrogativas divinas que qualquer imperador antes ou depois dele170

Todas as cidades do Apocalipse tinham manifestaccedilatildeo do culto imperial em algum

niacutevel cinco delas tinham altares imperiais (com exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia) seis

tinham templos imperiais (com exceccedilatildeo de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com

exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia)171

Aleacutem das praacuteticas e sacrifiacutecios religiosos nos templos e altares dedicados ao

Imperador sacerdotes imperiais promoviam festivais puacuteblicos que eram importantes

expressotildees religiosas e ciacutevicas na Aacutesia Estes festivais poderiam acontecer em diversas datas

mas estavam normalmente vinculados ao aniversaacuterio do Imperador Durante as celebraccedilotildees

os templos e santuaacuterios eram enfeitados e animais eram sacrificados em diversos altares

espalhados pela cidade Em cada local a participaccedilatildeo puacuteblica era aberta e esperada tendo

como cliacutemax uma refeiccedilatildeo ritual172

168 Idem p 159 169 PRICE Simon R F Rituals and Power The Roman imperial cult in Asia Minor Cambridge Cambridge

University Press 1984 p 235 170 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 159 171 PRICE op cit p 55-58 172 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation op cit p 163

63

Dentro dos templos imperiais como nos templos dedicados a outros cultos havia

estaacutetuas do imperador vivo e de outros imperadores alguma iconografia imperial e mesas

para os diversos sacrifiacutecios Estaacutetuas do imperador tambeacutem eram encontradas ao longo das

cidades ou em centros da vida puacuteblica urbana Nem todas as estaacutetuas do imperador

encontradas numa polis eram objeto de culto mas aquelas que estavam em um lugar sagrado

ou quando usadas em um tempo sagrado (um festival religioso por exemplo) tinham um

significado ritual Estas estaacutetuas e imagens tinham sentido religioso e poliacutetico e

funcionavam como um lembrete permanente uma representaccedilatildeo do poder do Imperador173

A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Aacutesia fez com que a

questatildeo do relacionamento com a sociedade se tornasse significativo para o movimento de

Jesus na proviacutencia Era difiacutecil se relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma

de suas celebraccedilotildees puacuteblicas Para alguns liacutederes das igrejas da regiatildeo natildeo havia problema

no envolvimento em atividades proacuteprias da cidade e em comer da comida oriunda dos

sacrifiacutecios religiosos Se participassem destas celebraccedilotildees diminuiriam a tensatildeo com a

sociedade e continuariam envolvidos nos diversos negoacutecios da vida urbana Alguns

entretanto como Joatildeo de Patmos possuiacuteam uma perspectiva distinta Possivelmente ele

representava uma minoria dentro das igrejas da Aacutesia que instava fortemente as comunidades

a exacerbar a tensatildeo com a sociedade e a se isolar das estruturas sociais da peniacutensula174

27 Resumo

A ilha de Patmos de onde partiu o Apocalipse e a proviacutencia romana da Aacutesia seu

destino partilhavam de uma mesma conjuntura social Era uma das regiotildees mais ricas do

Impeacuterio Romano com a presenccedila de comunidades judaicas espalhadas por vaacuterias de suas

cidades Membros destas comunidades que criam em Jesus como o Messias estavam na base

das mais antigas igrejas da regiatildeo Tanto as sinagogas quanto a maioria das igrejas

buscavam desenvolver seus ritos e crenccedilas sem conflito com a sociedade romana local

mesmo diante de tensotildees que poderiam se manifestar em relaccedilatildeo ao culto imperial Alguns

liacutederes buscavam manter orientaccedilotildees que poderiam proceder do apoacutestolo Paulo e assim

permitir a participaccedilatildeo dos membros em atividades ciacutevicas e religiosas locais Essas

173 Idem p 163 174 Idem p 167

64

comunidades natildeo desejavam que suas praacuteticas religiosas inviabilizassem seus

relacionamentos com a sociedade romana Joatildeo de Patmos entretanto manifesta em sua

obra uma postura oposta a liacutederes como seu contemporacircneo Clemente Romano Na

perspectiva do autor do Apocalipse para ser fiel ao seu fundador o movimento de Jesus

precisava rejeitar o Impeacuterio

III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE

JOAtildeO

Joatildeo de Patmos judeu emigrante da Palestina apoacutes a guerra contra os romanos por

meio de narrativas imagens e siacutembolos se apropriou de determinadas tradiccedilotildees religiosas

judaicas e construiu um apocalipse que pretendia explicar a conjuntura histoacuterica que o

movimento de Jesus experimentou e experimentava no interior da proviacutencia romana da Aacutesia

A obra culmina na descriccedilatildeo do juiacutezo final e da nova criaccedilatildeo divina Antes disso entretanto

o autor apresenta um periacuteodo de governo messiacircnico iminente terrenal intra-histoacuterico por

mil anos (Apocalipse 201-10) Apesar de curta a narrativa do milecircnio acabaraacute no centro dos

debates e das interpretaccedilotildees subsequentes do livro joanino175 Queremos neste capiacutetulo

analisar a produccedilatildeo desta periacutecope no contexto da obra joanina a partir de suas apropriaccedilotildees

tradicionais e literaacuterias na direccedilatildeo de novas representaccedilotildees individuais e coletivas

histoacutericas e milenaristas Procuramos refletir tambeacutem sobre a forma como estas

representaccedilotildees poderiam interferir no mundo social de Joatildeo e suas comunidades176

31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse

Adela Y Collins sugeriu que a obra joanina apesar de apresentar certos sinais que

indicariam uma estrutura clara (sete igrejas sete selos sete trombetas e sete taccedilas por

exemplo) natildeo eacute tatildeo transparente assim deixando a audiecircncia com certa expectativa

frustrada Isso poderia explicar os longos debates a respeito da estrutura da obra de Joatildeo177

Entre as alternativas David L Barr preferiu construir um esboccedilo do livro acompanhando o

desenvolvimento de suas narrativas Por isso ele dividiu o Apocalipse joanino em trecircs seccedilotildees

principais emolduradas por uma estrutura epistolar (os versiacuteculos 11-3 formariam o

prefaacutecio enquanto 226-21 a conclusatildeo) Ele as chamou de Seccedilatildeo das Cartas (14-322)

Seccedilatildeo do Culto Celestial (41-1118) e Seccedilatildeo da Guerra Escatoloacutegica (1119-225)178 Nossa

175 Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene

Wipf and Stock Publishers 2001 p 21-87 KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation

Oxford Blackwell Publishing 2004 p 200-219 176 Pensamos aqui nos papeacuteis sociais instituiccedilotildees sociais e relacionamentos sociais 177 Conferir uma histoacuteria da estruturaccedilatildeo do Apocalipse em COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in

the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 13-44 178 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa

Polebridge Press 1998

66

proposta de esboccedilo para o Apocalipse parte das sugestotildees de Barr em funccedilatildeo da forma como

ele compreendeu o desenvolvimento narrativo do livro joanino e o enquadramento

particular de cada episoacutedio literaacuterio no interior da obra como um todo Por meio deste esboccedilo

eacute possiacutevel entatildeo verificar o lugar do milecircnio dentro do Apocalipse Em termos literaacuterios ele

faz parte da narrativa da guerra escatoloacutegica ao descrever a vitoacuteria do Jesus exaltado sobre

Satanaacutes e as bestas num evento que termina com o juiacutezo final e a Nova Jerusaleacutem

- Introduccedilatildeo epistolar (11-3)

- Primeira seccedilatildeo ndash O Filho do Homem e as sete igrejas da Aacutesia (14-322)

Carta agrave Igreja em Eacutefeso (21-7)

Carta agrave Igreja em Esmirna (28-11)

Carta agrave Igreja em Peacutergamo (212-17)

Carta agrave Igreja em Tiatira (218-29)

Carta agrave Igreja em Sardes (31-6)

Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia (37-13)

Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia (314-22)

- Segunda seccedilatildeo ndash O rolo selado com sete selos (41-1119)

O culto ao Anciatildeo no trono (41-11)

O culto ao Cordeiro (51ndash14)

Selo 1 ndash Cavalo branco (61ndash2)

Selo 2 ndash Cavalo vermelho (63ndash4)

Selo 3 ndash Cavalo preto (65-6)

Selo 4 ndash Cavalo amarelo (67-8)

Selo 5 ndash Os maacutertires debaixo do altar (69-11)

Selo 6 ndash Juiacutezo escatoloacutegico (612-17)

Interluacutedio (71-17)

144000 selados (71-8)

Grande multidatildeo (79ndash17)

Selo 7 - Sete trombetas (81ndash1119)

O anjo das oraccedilotildees (81ndash6)

Trombeta 1 ndash Granito e fogo sobre a terra (88-7)

Trombeta 2 ndash Mar se torna em sangue (88-9)

Trombeta 3 ndash Estrelas tornam rios amargos (810-11)

Trombeta 4 ndash Sol lua e estrelas escurecem (812-13)

Trombeta 5 ndash Gafanhotos sobem do abismo (91-12)

Trombeta 6 ndash Quatro anjos e um exeacutercito matam pessoas (913-21)

Interluacutedio (101-1114)

Um livro para ser comido (101-11)

As duas testemunhas (111-14)

Trombeta 7 ndash A chegada do reino de Deus (1115ndash19)

- Terceira seccedilatildeo ndash A guerra escatoloacutegica (121-225)

A origem da guerra (121-18)

Os aliados do Dragatildeo (131-18)

A besta do mar (131-10)

A besta da terra (1311-18)

67

Os 144000 guerreiros do Cordeiro (141-5)

O anuacutencio dos trecircs anjos (146-12)

A bem-aventuranccedila dos mortos (1413)

O juiacutezo como uma ceifa (1414-20)

As sete taccedilas da ira (151-1621)

Os maacutertires diante de Deus (151-8)

Taccedila 1 Dores nos marcados pela besta (161-2)

Taccedila 2 O mar se torna em sangue (163)

Taccedila 3 Os rios se tornam em sangue (164-7)

Taccedila 4 O sol provoca feridas (168-9)

Taccedila 5 Trevas no trono da besta (1610-11)

Taccedila 6 A seca do Rio Eufrates e a coalizatildeo do Dragatildeo (1612-16)

Taccedila 7 Juiacutezo sobre Babilocircnia (1617-21)

A prostituta destruiacuteda (171-18)

Hino fuacutenebre pela queda da Babilocircnia (181-24)

Celebraccedilatildeo no ceacuteu pela queda da Babilocircnia (191-4)

O culto no ceacuteu anuncia as bodas do Cordeiro (195-10)

A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre as bestas (1911-21)

A prisatildeo do Dragatildeo (201-3)

O reino messiacircnico milenar (204-6)

A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre o Dragatildeo (207-10)

O juiacutezo final (2011-15)

A Nova Jerusaleacutem (211-225)

- Conclusatildeo epistolar (226-21)

32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo

Uma das caracteriacutesticas recorrentes nos apocalipses segundo John Collins eacute a

ldquorevelaccedilatildeordquo179 O proacuteprio termo ldquoapocalipserdquo () significa ldquorevelaccedilatildeordquo180 Seus

autores se propotildeem a revelar algo para sua audiecircncia Em linhas amplas estas revelaccedilotildees

poderiam ser divididas em dois eixos um vertical e outro horizontal

No eixo horizontal os autores queriam revelar o passado e o futuro O foco varia de

texto a texto com algumas obras com ecircnfase no passado ao descreverem os primoacuterdios da

histoacuteria da humanidade o iniacutecio da saga do povo de Deus ou mesmo uma descriccedilatildeo

cosmogocircnica sobre como as coisas vieram a ser o que satildeo no seu presente momento Quando

o foco estava no futuro os autores pretendiam descrever a intervenccedilatildeo final de Deus que

promoveria uma inversatildeo escatoloacutegica com todas as suas consequecircncias (cataclismos

coacutesmicos e juiacutezo sobre os inimigos de um lado nova criaccedilatildeo e recompensa para os membros

179 COLLINS John J Introduction towards the morphology of a genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979

p 9 180 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 66

68

do grupo do outro) Nesta perspectiva haacute a construccedilatildeo de um esquema teleoloacutegico da

histoacuteria no qual um fim glorioso resolveria a violecircncia e os traumas do passado e do presente

da comunidade destinataacuteria do apocalipse em questatildeo

No eixo vertical uma obra apocaliacuteptica se propotildee a revelar o que estaacute para aleacutem do

mundo humano o que estaacute acima e o que estaacute abaixo os ceacuteus e os submundos bem como

as coisas e seres que existem nestes espaccedilos Haacute aqui uma preocupaccedilatildeo em entender como

o universo funciona como o mundo sobrenatural interfere no mundo dos seres humanos e

na natureza e como controlar ou pelo menos ter acesso a essas realidades sobrenaturais

O Apocalipse de Joatildeo como outros apocalipses antes dele e depois dele tambeacutem

possui essas preocupaccedilotildees horizontais e verticais Como as revelaccedilotildees apocaliacutepticas satildeo

transmitidas no formato de narrativas o conteuacutedo do livro do profeta de Patmos estaacute

apresentado no interior de trecircs histoacuterias distintas mas inter-relacionadas181 A primeira

histoacuteria a ser narrada eacute a do aparecimento do Filho do Homem que promove o ditado de sete

cartas para um grupo de igrejas da Aacutesia romana Nestas cartas a figura celestial conhecida

das tradiccedilotildees de Daniel182 e 1Enoque183 faz ameaccedilas elogios e promessas e termina cada

carta com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores As mensagens

das cartas giram em torno de distuacuterbios entre os proacuteprios membros do movimento de Jesus

por causa das diferentes posturas de relacionamento com a sociedade romana em cada

contexto local184

Na segunda seccedilatildeo do livro o narrador das revelaccedilotildees eacute levado em espiacuterito (ldquoἐν

πνεύματιrdquo) por uma porta aberta no ceacuteu Neste lugar ele presencia uma sucessatildeo de atos

lituacutergicos e eacute apresentado aos principais personagens celestiais o Anciatildeo sobre o trono os

Quatro Viventes os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais e vaacuterios seres angelicais A figura

181 Interpretamos as narrativas do Apocalipse agrave luz do contexto em que ele foi composto Isso significa que as

analogias que constroacutei as imagens que utiliza os siacutembolos recorrentes na obra seratildeo compreendidos como

referecircncia a eventos histoacutericos do seu tempo ou como elementos escatoloacutegicos proacuteprios ao movimento de

Jesus no final do seacuteculo I especialmente no contexto da regiatildeo Aacutesia-Siacuteria-Palestina Cf COLLINS Adela

Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E J Brill 1996 p 198

Diversas outras formas de interpretar o mesmo conteuacutedo satildeo resumidas e analisadas em WAINWRIGHT op

cit 182 Daniel 7 narra a sucessatildeo de reinos e governos na forma de quatro animais mitoloacutegicos No interior desta

revisatildeo histoacuterica apocaliacuteptica o texto descreve a figura do Anciatildeo celestial e o Filho do Homem que o

representa Cf COLLINS John J Daniel with in introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William

B Eerdmans Publishing Company 1984 p 83 183 Em 1Enoque 7114-17 Enoque ascende aos ceacuteus onde encontra o proacuteprio Deus Ali o patriarca recebe a

informaccedilatildeo que ele eacute realmente o Filho do Homem figura que teria um papel significativo na salvaccedilatildeo

escatoloacutegica dos eleitos de Deus Cf OLSON Daniel C Enoch and the Son of Man in the Epilogue of the

Parables Journal for the Study of the Pseudepigrapha Thousand Oaks n 18 p 27-38 1998 184 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 p 58

69

fundamental entretanto eacute descrita como o Cordeiro (ἀρνίον) Eacute ele que recebe um rolo selado

com sete selos estrateacutegia simboacutelica para interpretar eventos e fenocircmenos histoacutericos A cada

selo corresponde uma revelaccedilatildeo ateacute o seacutetimo que por sua vez se desdobra em outro grupo

de sete elementos desta vez sete trombetas Como os selos cada trombeta estaacute relacionada

com um evento numa escala crescente de intensidade que culmina com a audiccedilatildeo de um

hino que comemora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuaacuterio celestial

A terceira parte do livro conta a histoacuteria de uma guerra que comeccedila quando uma

figura demoniacuteaca o Dragatildeo vermelho fracassa no seu propoacutesito de destruir uma crianccedila e

sua matildee sendo por isso expulso do ceacuteu para a terra Sua reaccedilatildeo eacute instaurar uma guerra contra

outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas Em contrapartida o

Cordeiro reuacutene seu exeacutercito convocando 144000 guerreiros dispostos a lutar ateacute a morte O

confronto resulta no nuacutemero determinado de maacutertires necessaacuterios para instaurar a

intervenccedilatildeo escatoloacutegica de Deus na forma de sete taccedilas de ira Apoacutes o derramamento das

taccedilas Jesus agora como um cavaleiro celestial desce do ceacuteu com uma hoste de anjos para

derrotar o Dragatildeo e seus aliados Num primeiro ato as bestas satildeo lanccediladas num lago de fogo

todo o exeacutercito adversaacuterio eacute morto e o Dragatildeo eacute aprisionado por mil anos O segundo ato

coloca fim agrave guerra quando o Dragatildeo eacute novamente solto somente para ser vencido e lanccedilado

no mesmo espaccedilo de juiacutezo onde jaacute estavam as duas bestas Entre os dois atos a narrativa

apresenta o reino messiacircnico com a participaccedilatildeo da figura exaltada de Jesus e os maacutertires

ressuscitados agora como reis e sacerdotes de Deus Com o fim do milecircnio e da guerra

escatoloacutegica o autor do Apocalipse descreve o fim da histoacuteria marcada pelo juiacutezo final e a

chegada da Nova Jerusaleacutem

33 O contexto narrativo do reino milenar

A sequecircncia narrativa e temporal da terceira seccedilatildeo (Apocalipse 121-225) natildeo eacute

linear Haacute muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como repeticcedilotildees ou incidentes

similares Existe um iacutentimo paralelo entre a sequecircncia das taccedilas (Apocalipse 161-21) e a

sequecircncia das trombetas (Apocalipse 88-1119) bem como vaacuterias cenas que parecem

interromper o fio narrativo Normalmente estas interrupccedilotildees funcionam para apresentar uma

interpretaccedilatildeo de algum aspecto da narrativa Mesmo assim ainda existe um sentido de

movimento para frente O primeiro episoacutedio apresenta o nascimento de uma crianccedila descrita

70

em termos messiacircnicos (Apocalipse 125) o que parece ser alusatildeo ao nascimento de Jesus

nove deacutecadas antes do Apocalipse surgir em Patmos e termina com o juiacutezo final e a

restauraccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo agora descrita como a Nova Jerusaleacutem A primeira cena estaacute

no passado da audiecircncia do Apocalipse e a uacuteltima estaacute no futuro Isso parece evidenciar o

desenvolvimento de uma narraccedilatildeo contiacutenua com princiacutepio meio e fim nos moldes dos

chamados apocalipses histoacutericos da tipologia de John Collins185

Em Apocalipse 121-18 Joatildeo narra uma guerra no ceacuteu e a expulsatildeo do Dragatildeo para

a terra Este tenta destruir a crianccedila messiacircnica mas falha no momento em que ela eacute

arrebatada para o ceacuteu Diante disto o Dragatildeo procura destruir a Mulher que eacute protegida no

deserto Depois de fracassar na perseguiccedilatildeo da Mulher o Dragatildeo parte para a perseguiccedilatildeo

dos outros filhos da Mulher (σπέρματος αὐτῆς) aqueles que ldquoguardam os mandamentos de

Deus e sustentam o testemunho de Jesusrdquo (ldquoτῶν τηρούντων τὰς ἐντολὰς τοῦ θεοῦ καὶ ἐχόντων

τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦrdquo) Tal descriccedilatildeo pretendia explicar para sua audiecircncia que uma iminente

perseguiccedilatildeo das igrejas teria como causa um conflito fora do mundo humano que envolveu

o fracasso de Satanaacutes em destruir Jesus e sua consequente expulsatildeo para a terra186

Um proacuteximo estaacutegio na narrativa apresenta os aliados do Dragatildeo duas bestas (qhria)

descritas em termos que apontavam para o Impeacuterio Romano e suas estruturas na proviacutencia

da Aacutesia como agentes demoniacuteacos187 Com esta estrateacutegia o profeta de Patmos queria indicar

que uma guerra coacutesmica jaacute comeccedilara e o conflito iria se acentuar enormemente mas em

breve Deus iria intervir nos acontecimentos por meio de Jesus Para o Apocalipse as igrejas

da Aacutesia e seus membros se encontravam no meio da luta depois do levantamento das bestas

mas antes que elas instaurassem a perseguiccedilatildeo generalizada

O estaacutegio seguinte da guerra pode ser denominado de ldquoresposta do Cordeirordquo Este

comeccedila sua reaccedilatildeo com a reuniatildeo de um exeacutercito de oposiccedilatildeo sobre o monte Siatildeo

(Apocalipse 141-5) provavelmente uma descriccedilatildeo dos seguidores de Jesus logo

martirizados Como resultado dessas mortes completa-se o nuacutemero dos maacutertires

185 Segundo Collins haacute tipos diferentes de apocalipses Uns como Daniel 7-12 4Esdras e 2Baruque focam

em descriccedilotildees histoacutericas e descrevem julgamentos coacutesmicos Outros como 2Enoque ou 3Baruque se

concentram em viagens celestiais e revelaccedilotildees sobre a realidade da alma apoacutes a morte O Apocalipse de Joatildeo

enfatiza o autor eacute um apocalipse de tipo misto que apesar de apresentar algum tipo de revelaccedilatildeo de mundo

sobrenatural se concentra na reflexatildeo histoacuterica Cf COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura

apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 4 COLLINS John J

Introductionhellip op cit p 13 186 HENTEN Jan Willem Dragon Myth and Imperial Ideology in Revelation 12-13 In BARR David L (ed)

The Reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical

Literature 2006 p 181-203 p 202 187 COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation op cit p 232

71

mencionados no quinto selo (Apocalipse 69-11) dando iniacutecio agraves sete pragas finais sobre a

terra na forma de sete taccedilas O cliacutemax das taccedilas de julgamento estaacute na descriccedilatildeo da queda da

Babilocircnia caracterizaccedilatildeo simboacutelica de Roma

Finalmente chega a fase final da guerra O cavaleiro celestial aparece do ceacuteu e

alcanccedila vitoacuteria sobre as bestas Um anjo desce do ceacuteu e prende o Dragatildeo Um periacuteodo

interino de paz por mil anos eacute estabelecido durante o qual os martirizados retornam agrave vida

como juiacutezes reis e sacerdotes de Cristo Apoacutes o milecircnio Satatilde eacute novamente libertado Ele

reuacutene um exeacutercito demoniacuteaco mas eacute derrotado definitivamente

34 O episoacutedio do reino milenar

Texto Grego188 Traduccedilatildeo proacutepria 1 Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ

οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ

ἅλυσιν μεγάλην ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ

1 E vi um anjo189 descendo do ceacuteu tendo a

chave do abismo190 e uma grande corrente

em suas matildeos 2 καὶ ἐκράτησεν τὸν δράκοντα ὁ ὄφις ὁ

ἀρχαῖος ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς

καὶ ἔδησεν αὐτὸν χίλια ἔτη191

2 E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente

que eacute o Diabo e Satanaacutes192 aprisionando-o

por mil anos 3 καὶ ἔβαλεν αὐτὸν εἰς τὴν ἄβυσσον καὶ

ἔκλεισεν καὶ ἐσφράγισεν ἐπάνω αὐτοῦ ἵνα

μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ

χίλια ἔτη μετὰ ταῦτα δεῖ λυθῆναι αὐτὸν

μικρὸν χρόνον

3 E lanccedilou-o para o abismo fechou e selou

o abismo para que natildeo engane mais as

naccedilotildees ateacute que se complete os mil anos

Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele

seja solto por pouco tempo 4 Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽

αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς καὶ τὰς

ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν

4 E vi tronos e sentaram neles e

[autoridade de] julgamento foi dada a

eles193 tambeacutem as almas dos

188 ALAND Kurt et all The Greek New Testament 4 ed rev London United Bible Society 2008 p 737-

738 O texto grego apresenta muitas dificuldades em funccedilatildeo de deficiecircncias e imprecisotildees sintaacuteticas Faltam

sujeitos haacute um acusativo solto um nominativo no lugar de um acusativo um pronome relativo que poderia

natildeo ter viacutenculos com seu antecedente mais oacutebvio A traduccedilatildeo proposta reflete uma tentativa de ordenaccedilatildeo Cf

MILLOS Samuel Peacuterez Apocalipsis comentario exegeacutetico al texto griego del Nuevo Testamento Barcelona

Editorial Clie 2010 p 1213 189 A expressatildeo aparece indefinida ldquoum anjordquo Natildeo haacute qualquer ecircnfase ou destaque no papel do anjo que prende

Satatilde Todo o destaque da narrativa vai para o Cristo que reina e os martirizados ressuscitados Cf POHL

Adolf Apocalipse de Joatildeo Curitiba Editora Evangeacutelica Esperanccedila 2001 2v V II p 221 190 O abismo natildeo eacute idecircntico ao lago de fogo e parece ser referecircncia agrave morada dos seres demoniacuteacos Cf

PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 363 191 A expressatildeo ldquoχίλια ἔτηrdquo soacute aparece no Novo Testamento nesta passagem do Apocalipse e em 2Pedro 38 192 Todos os tiacutetulos aqui mencionados apareceram antes nos episoacutedios do confronto entre o Dragatildeo e a Mulher

e o Dragatildeo e Miguel em Apocalipse 12 Laacute Satatilde foi lanccedilado para a terra Aqui ele eacute jogado no abismo Cf

FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991 p

107 193 Literalmente ldquoe julgamento foi dado a elesrdquo Pode significar que finalmente um julgamento terminou em

favor dos maacutertires ou como aqui optamos que o julgamento foi confiado a eles ou seja a autoridade para

exercer o juiacutezo Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 365

72

μαρτυρίαν Ἰησοῦ καὶ διὰ τὸν λόγον τοῦ

θεοῦ καὶ οἵτινες οὐ προσεκύνησαν τὸ

θηρίον οὐδὲ τὴν εἰκόνα αὐτοῦ καὶ οὐκ

ἔλαβον τὸ χάραγμα ἐπὶ τὸ μέτωπον καὶ ἐπὶ

τὴν χεῖρα αὐτῶν καὶ ἔζησαν καὶ

ἐβασίλευσαν μετὰ τοῦ Χριστοῦ χίλια ἔτη

decapitados194 por causa do testemunho de

Jesus e da palavra de Deus e todos195 que

natildeo adoraram a besta nem sua imagem e

natildeo receberam a marca dela na fronte e na

matildeo Viveram e reinaram com Cristo por

mil anos 5 οἱ λοιποὶ τῶν νεκρῶν οὐκ ἔζησαν ἄχρι

τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη αὕτη ἡ ἀνάστασις ἡ

πρώτη

5 Os demais mortos natildeo viveram ateacute que

terminasse os mil anos Esta eacute a primeira

ressurreiccedilatildeo196 6 μακάριος καὶ ἅγιος ὁ ἔχων μέρος ἐν τῇ

ἀναστάσει τῇ πρώτῃmiddot ἐπὶ τούτων ὁ

δεύτερος θάνατος οὐκ ἔχει ἐξουσίαν ἀλλ᾽

ἔσονται ἱερεῖς τοῦ θεοῦ καὶ τοῦ Χριστοῦ

καὶ βασιλεύσουσιν μετ᾽ αὐτοῦ [τὰ] χίλια

ἔτη

6 Bendito e santo o que tem parte na

primeira ressurreiccedilatildeo Sobre estes a

segunda morte197 natildeo tem poder poreacutem

seratildeo sacerdotes de Deus e de Cristo e

reinaratildeo com ele por mil anos

7 Καὶ ὅταν τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη λυθήσεται

ὁ Σατανᾶς ἐκ τῆς φυλακῆς αὐτοῦ

7 E quando concluir os mil anos seraacute solto

Satanaacutes da sua prisatildeo 8 καὶ ἐξελεύσεται πλανῆσαι τὰ ἔθνη τὰ ἐν

ταῖς τέσσαρσιν γωνίαις τῆς γῆς τὸν Γὼγ

καὶ Μαγώγ συναγαγεῖν αὐτοὺς εἰς τὸν

πόλεμον ὧν ὁ ἀριθμὸς αὐτῶν ὡς ἡ ἄμμος

τῆς θαλάσσης

8 E viraacute a enganar as naccedilotildees198 que estatildeo

nos quatro cantos da terra Gog e Magog199

e reuni-las para a guerra das quais o

nuacutemero eacute como a areia do mar

9 καὶ ἀνέβησαν ἐπὶ τὸ πλάτος τῆς γῆς καὶ

ἐκύκλευσαν τὴν παρεμβολὴν τῶν ἁγίων

9 E subiram200 entatildeo pela superfiacutecie da terra

e cercaram o acampamento dos santos e a

194 Literalmente ldquodegolados por um machadordquo Termo arcaizante jaacute que este tipo de supliacutecio usado na

Repuacuteblica Romana natildeo era comum nos tempos do Impeacuterio Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p

366 195 Alguns autores argumentam que o pronome relativo οἵτινες daria margem para dois grupos de exaltados (os

ressuscitados e os que natildeo adoraram a besta) Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 366-367

Acompanhamos entretanto o argumento de David Aune que entende a claacuteusula relativa como uma descriccedilatildeo

de um uacutenico grupo os martirizados A expressatildeo fornece as causas positivas para o martiacuterio (testemunho de

Jesus e da Palavra de Deus) e as negativas (natildeo adoraram a besta e natildeo receberam sua marca) Cf AUNE

David E Revelation 17-22 op cit p 1088-1089 196 Segundo este episoacutedio do Apocalipse apenas os maacutertires participam da primeira ressurreiccedilatildeo O livro de

Daniel localizou a ressurreiccedilatildeo dos mortos no iniacutecio do reino messiacircnico 4Esdras e 2Baruque a localizam no

final Aparentemente o Apocalipse harmonizou duas tradiccedilotildees diferentes afirmando duas ressurreiccedilotildees uma

no iniacutecio do reino milenar outra no final Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1090-1091 197 Segundo Aune a expressatildeo ldquosegunda morterdquo pode significar a exclusatildeo da ressurreiccedilatildeo do final dos tempos

ou a eterna danaccedilatildeo Ele sugere a segunda opccedilatildeo como mais plausiacutevel neste contexto da narrativa do

Apocalipse Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1093 198 As naccedilotildees aqui seduzidas oriundas dos quatro cantos da terra que precisam subir pela superfiacutecie para cercar

o acampamento dos santos parecem aludir a um exeacutercito de seres demoniacuteacos que estavam no submundo com

Satatilde Cf FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 106 POHL op cit p 236 199 Alusatildeo a Ezequiel 38-39 que vaticinou um ataque de naccedilotildees hostis aos habitantes da Palestina nos uacuteltimos

dias No Apocalipse entretanto Gog e Magog natildeo satildeo descriccedilotildees de povos ou naccedilotildees mas referecircncia

metafoacuterica ao exeacutercito demoniacuteaco de oposiccedilatildeo final Cf POHL op cit p 237 200 Haacute nos versiacuteculos 9 e 10 uma curiosa inconsistecircncia verbal Os verbos que descrevem a prisatildeo inicial de

Satatilde estatildeo no aoristo indicativo traduzidos normalmente pelo preteacuterito A partir do versiacuteculo 7 as claacuteusulas

temporais passam para o futuro (ldquoenganaraacute as naccedilotildeesrdquo ldquoreuniraacute para a guerrardquo) mas retornam para o aoristo

no relato do confronto final (ldquosubiram pela superfiacutecierdquo ldquocercaram o acampamentordquo ldquodesceu fogordquo etc)

Possivelmente isto tenha origem na jaacute mencionada desordenaccedilatildeo gramatical da passagem Cf MILLOS op

cit p 1213

73

καὶ τὴν πόλιν τὴν ἠγαπημένην καὶ κατέβη

πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e os

queimou 10 καὶ ὁ διάβολος ὁ πλανῶν αὐτοὺς ἐβλήθη

εἰς τὴν λίμνην τοῦ πυρὸς καὶ θείου ὅπου

καὶ τὸ θηρίον καὶ ὁ ψευδοπροφήτης καὶ

βασανισθήσονται ἡμέρας καὶ νυκτὸς εἰς

τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων

10 E o diabo o enganador deles foi jogado

para o lago201 de fogo e enxofre onde

tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta e

seratildeo atormentados dia e noite para todo o

sempre

O episoacutedio do milecircnio pode ser dividido em trecircs partes a prisatildeo do Dragatildeo

(versiacuteculos 1-3) os maacutertires ressuscitados (versiacuteculos 4-6) a condenaccedilatildeo do Dragatildeo

(versiacuteculos 7-10) Satildeo trecircs partes contudo apenas duas histoacuterias que se unem pela expressatildeo

temporal ldquomil anosrdquo (χίλια ἔτη) aqui narradas como parte da revelaccedilatildeo vertical ou seja

eventos que ocorreratildeo no futuro em relaccedilatildeo ao tempo da audiecircncia A narrativa do juiacutezo

sobre Satanaacutes segue do versiacuteculo 1 ao 3 e eacute retomada nos versiacuteculos 7-10 No meio dela estaacute

a narraccedilatildeo do reinado dos maacutertires202 Se narrada de forma linear sem a interrupccedilatildeo este

seria o episoacutedio da prisatildeo e destruiccedilatildeo do Dragatildeo

E vi um anjo descendo do ceacuteu tendo a chave do abismo e uma grande

corrente em suas matildeos E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente que eacute o

Diabo e Satanaacutes aprisionou-o por mil anos E lanccedilou-o para o abismo

fechou e selou o abismo para que natildeo enganasse mais as naccedilotildees ateacute que se

completasse os mil anos Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele seja

solto por pouco tempo E quando concluir os mil anos Satanaacutes seraacute solto

da sua prisatildeo E viraacute a enganar as naccedilotildees que estatildeo nos quatro cantos da

terra Gog e Magog e reuni-las para a guerra das quais o nuacutemero eacute como

a areia do mar E subiram entatildeo pela superfiacutecie da terra e cercaram o

acampamento dos santos e a cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e as

queimou E o diabo o enganador delas foi jogado para o lago de fogo e

enxofre onde tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta E seratildeo

atormentados dia e noite para todo o sempre

A prisatildeo e condenaccedilatildeo de Satanaacutes concluem a cena da vitoacuteria de Jesus sobre seus

adversaacuterios que aparece em Apocalipse 1911 como um cavaleiro montado sobre um cavalo

branco Aparentemente toda a seccedilatildeo posterior ao aparecimento do Jesus exaltado estaacute

estruturada segundo um esquema encontrado em Ezequiel203 Eacute possiacutevel relacionar por

201 O termo λίμνην pode significar lago tanque ou neste caso especiacutefico charco pacircntano ou lodaccedilal A

expressatildeo λίμνην τοῦ πυρὸς parece fazer referecircncia ao lugar conhecido como geena descrita em Mateus 522

como geenan tou puroj Era um vale que se estendia para fora da muralha sul de Jerusaleacutem conhecido tambeacutem

como Vale de Hinom local que servia nos tempos de Jesus como depoacutesito de lixo O portatildeo para o vale chegava

a ser chamado de Portatildeo do Esterco O lixo era constantemente incendiado fazendo do vale um espaccedilo de

fumaccedila e fedor Alguns judeus o tinham como o lugar mais asqueroso do mundo Daiacute a relaccedilatildeo com a descriccedilatildeo

do sofrimento escatoloacutegico ser feita com traccedilos do Vale de Hinom Cf POHL op cit p 219 202 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 107 203 ULFGARD Hakan Biblical and para-biblical origins of millennarianism Religiologiques Montreal n 20

p 25-49 1999 p 34

74

exemplo a ressurreiccedilatildeo dos maacutertires com o levantamento dos ossos secos de Ezequiel 37 o

confronto final de Satanaacutes com o ataque de Gog de Magog (Ezequiel 38)204 a nova

Jerusaleacutem de Apocalipse com o novo templo e a nova cidade de Ezequiel 40-48205

No interior desta longa cena de conquista dos adversaacuterios Satanaacutes eacute aprisionado

provisoriamente A noccedilatildeo de uma prisatildeo temporaacuteria para seres sobrenaturais natildeo era

desconhecida do Judaiacutesmo antigo O autor do Mito dos Vigilantes (1Enoque 1-36) em algum

momento do seacuteculo II antes da Era Comum apoacutes descrever a transgressatildeo dos vigilantes

celestiais narra o destino deles em duas versotildees Em 1Enoque 104-6

- Deus envia o anjo Rafael

- Azazel eacute amarrado por um anjo

- Azazel eacute lanccedilado na escuridatildeo e aprisionado para sempre

- o tempo do aprisionamento eacute descrito como o grande dia do julgamento

- Azazel eacute lanccedilado no fogo no grande dia do julgamento

Logo depois outra versatildeo do juiacutezo eacute narrada em 1Enoque 1011-13

- Deus envia o anjo Miguel

- o anjo amarra Semjaza e seus associados

- eles satildeo aprisionados sob a terra

- o periacuteodo de prisatildeo eacute limitado a 70 geraccedilotildees

- no dia do julgamento eles seratildeo lanccedilados no abismo de fogo

Esta narrativa dupla parece ser o resultado da fusatildeo de tradiccedilotildees que vinculavam a

presenccedila dos males no mundo a seres demoniacuteacos que receberam de Deus uma dupla

sentenccedila o aprisionamento em alguma regiatildeo do cosmos e a destruiccedilatildeo no final dos tempos

Nestas tradiccedilotildees judaicas os adversaacuterios sobrenaturais possuem nomes diferentes mas satildeo

condenados igualmente agrave prisatildeo enquanto aguardam a destruiccedilatildeo final (Jubileus 56 107-

11 2Enoque 72 2Apocalipse de Baruque 5613 Judas 6)

David Aune sugeriu que a base comum a essas tradiccedilotildees poderia ser uma releitura de

Isaias 2421-22 ldquoNaquele dia o Senhor castigaraacute no ceacuteu as hostes celestes e os reis da

terra na terra Seratildeo ajuntados como presos em masmorra e encerrados num caacutercere e

204 A passagem de Ezequiel 382 fala do rei Gog da terra de Magog Apocalipse entretanto nivelou as duas

expressotildees como se fossem dois reis ou dois povos Gog e Magog Esta apropriaccedilatildeo joanina do texto de

Ezequiel parece refletir a expectativa presente em alguns apocalipses antigos que o povo de Deus seria atacado

por um ajuntamento de forccedilas inimigas no final dos tempos Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p

371 205 Cf tambeacutem PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 350 POHL op cit p 235

75

castigados depois de muitos diasrdquo206 Na adaptaccedilatildeo joanina entretanto a histoacuteria do

aprisionamento dos seres demoniacuteacos aparece secionada em duas partes pois entre elas o

Apocalipse apresentou o reinado dos maacutertires exaltados (versiacuteculos 4-6)

Estes maacutertires aparecem em diversas passagens do Apocalipse Uma das mais

significativas eacute a cena do quinto selo (Apocalipse 69-11) Debaixo do altar estatildeo pessoas

que morreram por causa da palavra de Deus e do testemunho () Elas querem saber

quando eacute que o seu sangue seraacute vingado por Deus Como resposta ouvem uma espeacutecie de

enigma apocaliacuteptico ldquofoi-lhes dito que repousassem por mais um pouco de tempo ateacute que

se completasse o nuacutemero de seus companheiros e irmatildeos que iriam ser mortos como eles

foramrdquo (Apocalipse 611) O autor do Apocalipse argumenta que Deus vai trazer justiccedila

sobre todos os que mataram seus seguidores poreacutem antes eacute preciso que se complete uma

determinada cota de disciacutepulos que deveratildeo morrer O juiacutezo viraacute quando um nuacutemero

especiacutefico de pessoas tiver morrido da mesma forma como aqueles que jaacute estatildeo debaixo do

altar o foram

Joatildeo promete que estes maacutertires seratildeo recompensados por Deus mais do que os outros

disciacutepulos de Jesus Afinal somente eles ressuscitariam para reinar com Jesus na terra207

Esta expectativa jaacute aparecera bem no iniacutecio da segunda seccedilatildeo Quando o Cordeiro pegou o

livro selado os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais cantaram a canccedilatildeo ldquoDigno eacutes de tomar

o livro e de abrir-lhe os selos porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus

os que procedem de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e para o nosso Deus os constituiacuteste reino

e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo (Apocalipse 59-10) Na narrativa do Apocalipse o

milecircnio seria o cumprimento deste hino cantado no ceacuteu por figuras sobrenaturais

Segundo Aune a cena dos tronos em contexto escatoloacutegico eacute uma cena tiacutepica de

julgamento apesar de estar em estado fragmentaacuterio Afinal os maacutertires sentam em tronos

mas nenhum julgamento eacute descrito neste contexto Eles sentam para julgar todavia o

julgamento natildeo ocorre Tambeacutem natildeo haacute a identificaccedilatildeo de quem seraacute julgado Isso daacute agrave cena

o papel de exaltaccedilatildeo dos maacutertires em vez da descriccedilatildeo de algum ofiacutecio escatoloacutegico208

Neste mesmo sentido Fiorenza argumenta que Joatildeo descreve o reinado interino dos

maacutertires para garantir agrave sua audiecircncia que aqueles que morressem durante o confronto contra

as forccedilas romanas seriam exaltados no futuro como co-governantes com Cristo209 Ao indicar

206 AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1078 207 Idem p 1084 208 Idem p 1085 209 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 109

76

que os maacutertires receberatildeo um tipo de recompensa especial diferente de todos os outros a

cena dos maacutertires no trono desejava incentivar a participaccedilatildeo no martiacuterio

Para Joatildeo mais do que reis os maacutertires seriam juiacutezes e sacerdotes O episoacutedio do

milecircnio entretanto natildeo menciona a identidade de quem serviraacute aos reis de quem seraacute

julgado pelos juiacutezes ou de quem seraacute ministrado pelos sacerdotes Natildeo haacute ningueacutem para ser

condenado oprimido ou orientado porque segundo o profeta de Patmos todos os que

voltarem agrave vida no reino milenar seratildeo reis juiacutezes e sacerdotes

O milecircnio entatildeo como descrito pelo Apocalipse parece ser a junccedilatildeo de dois

episoacutedios nos quais a ecircnfase de um estaacute na destruiccedilatildeo dos inimigos de Deus e do outro na

exaltaccedilatildeo dos maacutertires

35 O reinado messiacircnico interino na terra

Aleacutem do Apocalipse duas outras obras judaicas igualmente produzidas no final do

seacuteculo I apresentam a expectativa de um reino messiacircnico provisoacuterio na terra 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque A primeira210 registrou

Pois eis que viraacute o tempo em que os sinais que tenho predito para vocecirc

aconteceratildeo a cidade que agora natildeo eacute vista apareceraacute e a terra que agora

estaacute escondida seraacute revelada E todo aquele que for libertado dos males que

eu anunciei veraacute as minhas maravilhas Porque meu filho o Messias seraacute

revelado junto com aqueles que estatildeo com ele e estes que permanecerem

regozijar-se-atildeo por quatrocentos anos E depois desses anos meu filho o

Messias morreraacute e todos os seres humanos E o mundo voltaraacute ao silecircncio

primordial por sete dias como foi nos primoacuterdios de modo que ningueacutem

seraacute deixado E depois de sete dias o mundo que ainda dormia seraacute

despertado e o que for corruptiacutevel pereceraacute (4Esdras 72631)211

Posteriormente a narrativa eacute complementada em 4Esdras 1232-34

[] este eacute o Messias que o Altiacutessimo guardou ateacute o fim dos dias que surgiraacute

da posteridade de Davi e viraacute e falaraacute para eles ele os denunciaraacute por seus

erros e por suas maldades e lanccedilaratildeo diante dele seus desprezos

Primeiramente ele os traraacute para julgamento diante de seu tribunal e

quando forem reprovados entatildeo ele os destruiraacute Mas ele livraraacute com

misericoacuterdia o remanescente do meu povo aqueles que estiverem salvos

210 4Esdras foi escrito em algum lugar da Palestina no periacuteodo posterior agrave guerra judaico-romana (66-70) Cf

COLLINS John J A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica uma introduccedilatildeo agrave literatura apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo

Paulus 2010 p 281 211 As citaccedilotildees de 4Esdras vem de METZGER B M The Fourth Book of Ezra In CHARLESWORTH

James H The Old Testament Pseudepigrapha New York Doubleday and Company Inc 1983 2v V 1 p

517-559

77

do meu lado ele os tornaraacute alegres ateacute o fim o dia do juiacutezo do qual falei

com vocecirc no iniacutecio

A outra obra 2Apocalipse de Baruque surgiu na mesma conjuntura posterior agrave

guerra na Judeacuteia possivelmente tambeacutem originada na Palestina Seu autor anocircnimo tratou

do futuro periacuteodo messiacircnico nos capiacutetulos 29-30 Segue o texto

Ele falou-me O que vai acontecer atingiraacute toda a terra dessa forma

experimentaacute-lo-atildeo todos os que estiverem em vida Mas naquele tempo eu

protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste paiacutes Uma

vez cumprido aquilo que deve acontecer nos periacuteodos do tempo o Messias

comeccedilaraacute a sua revelaccedilatildeo Tambeacutem Behemoth viraacute dos seus domiacutenios e

Leviatatilde se levantaraacute do mar os dois imensos monstros marinhos por mim

criados no quinto dia da Criaccedilatildeo e que reservo para aqueles dias eles

serviratildeo de alimento para todos os que sobreviverem Entatildeo a terra

produziraacute os seus frutos ao cecircntuplo numa cepa de videira haveraacute mil

ramos um ramo carregaraacute mil racimos e um racimo mil bagos e um bago

daraacute ateacute quarenta litros de vinho Os que sofreram fome comeratildeo

regiamente e a cada dia lhes estatildeo reservadas novas maravilhas Pois de

mim procederatildeo ventos que traratildeo todas as manhatildes o perfume de frutos

saborosos e faratildeo gotejar ao final do dia o orvalho salviacutefico Do alto cairaacute

de novo grande quantidade de manaacute dele comeratildeo eles naqueles anos por

haverem participado do final dos tempos Terminado o tempo vigente do

Messias ele voltaraacute de novo agrave gloacuteria do ceacuteu Entatildeo haveratildeo de ressuscitar

todos aqueles que outrora adormeceram na sua esperanccedila Naquele tempo

aconteceraacute que se abriratildeo as cacircmaras onde se demoram as almas dos

piedosos elas sairatildeo e todas essas numerosas almas como legiatildeo de um

soacute coraccedilatildeo apareceratildeo todas juntas abertamente As que foram as

primeiras alegrar-se-atildeo as que foram as uacuteltimas natildeo estaratildeo tristes Cada

uma delas sabe que foi chegado o tempo previsto como o fim de todos os

tempos As almas dos pecadores perder-se-atildeo em anguacutestia ao

presenciarem tudo isso Pois elas jaacute sabem que o tormento as atingiraacute e

que a hora da sua condenaccedilatildeo eacute chegada212

O autor anocircnimo retoma o assunto mais agrave frente ao descrever a prisatildeo e destruiccedilatildeo

dos adversaacuterios do Messias (2Apocalipse de Baruque 397-404) Apesar de algumas

diferenccedilas em ecircnfase Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e 2Apocalipse de Baruque descrevem o

aparecimento de uma figura messiacircnica no fim dos tempos para inaugurar um periacuteodo

interino de becircnccedilatildeo especial para o povo de Deus na terra antes do juiacutezo final Entretanto a

funccedilatildeo e o papel do messias variam entre os textos Segundo 4Esdras o messias avanccedilaraacute

sem armas contra seus inimigos e os venceraacute com um rio de fogo que sairaacute de sua boca

(4Esdras 135) Depois de quatrocentos anos de tranquilidade ele e todos os seus seguidores

morreratildeo durante uma semana de silecircncio primordial 2Apocalipse de Baruque por sua vez

212 As citaccedilotildees de 2Apocalipse de Baruque vecircm de TRICCA Maria Helena de Oliveira Apoacutecrifos os proscritos

da Biacuteblia Satildeo Paulo Mercuryo 1995 4v V III p 303-348

78

descreve o messias trazendo vinganccedila militar com um governo limitado no tempo Jaacute no

Apocalipse a figura messiacircnica surge sobre um cavalo branco derrota seus adversaacuterios e

reina com os maacutertires ressuscitados durante o periacuteodo milenar da prisatildeo de Satanaacutes

Apesar das divergecircncias nos detalhes as trecircs obras possuem a mesma perspectiva de

um interluacutedio de felicidade no interior da histoacuteria antes do final dos tempos Segundo

Kovacs e Rowland isto sugeriria que esta expectativa de dois estaacutegios escatoloacutegicos era

comum entre grupos judaicos da Palestina no periacuteodo entre as duas guerras judaicas contra

os romanos (66-136)213 Estes autores ainda argumentam que o surgimento do montanismo

na metade do segundo seacuteculo poderia ser indiacutecio de que a espera por um reino messiacircnico

terreno estava bem espalhada pela Aacutesia menor e natildeo somente pela proviacutencia da Aacutesia214

Teriacuteamos entatildeo um fenocircmeno difundido pelas regiotildees da Palestina Siacuteria e Aacutesia menor pelo

menos no periacuteodo em questatildeo resultado da fusatildeo de antigas noccedilotildees judaicas o messianismo

a reflexatildeo apocaliacuteptica sobre as etapas da histoacuteria o retorno ao paraiacuteso215 Estas noccedilotildees

surgiram em contextos histoacutericos e literaacuterios distintos mas foram reunidas para formar o

milenarismo como encontrado no Apocalipse de Joatildeo e parcialmente em 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque

A primeira noccedilatildeo a crenccedila numa figura messiacircnica que promoveria a restauraccedilatildeo do

povo de Deus tem relaccedilatildeo histoacuterica com as diversas aspiraccedilotildees judaicas de restauraccedilatildeo de

Israel posteriores ao domiacutenio helenista da Palestina (seacuteculo IV AEC)216 Alguns grupos

combinavam passagens das Escrituras judaicas para produzir a expectativa de uma

restauraccedilatildeo poliacutetica de Israel na terra sob a lideranccedila de uma figura ungida por Deus217

O segundo elemento a reflexatildeo sobre as etapas da histoacuteria reflete o interesse de

grupos apocaliacutepticos judaicos em compreender o desenvolvimento da histoacuteria O fenocircmeno

pode ser encontrado particularmente nas tradiccedilotildees de Enoque e de Daniel O texto chamado

213 KOVACS ROWLAND op cit p 210 Leva-se em conta que o Apocalipse surgido na proviacutencia da Aacutesia

teve um autor que emigrou da Palestina durante a guerra de 66-70 214 Idem p 211 215 A sugestatildeo da fusatildeo destas trecircs noccedilotildees vem de ULFGARD op cit p 25-49 216 Charlesworth prefere colocar como ponto de partida as guerras dos macabeus do seacuteculo II AEC Cf

CHARLESWORTH James H From messianology to christology problems and prospects In

CHARLESWORTH James H (ed) The Messiah developments in earliest Judaism and Christianity

Minneapolis Fortress Press 1987 p 3-35 p 3 217 Desroche define o messianismo em termos restritos como o conjunto de crenccedilas judaicas relacionadas com

um ungido de Deus proclamado no antigo Testamento Num sentido mais largo poreacutem designa ensinamentos

ou movimentos que prometem a chegada de um enviado divino para trazer ordem ao mundo com justiccedila e paz

edecircmicas Neste uacuteltimo sentido o fenocircmeno ultrapassa as tradiccedilotildees religiosas judaico-cristatildes Cf DESROCHE

Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo

Paulo 2000 p 22

79

Apocalipse das Semanas (1Enoque 931-10 9112-17) eacute um exemplo deste fenocircmeno

quando o passado e o futuro aparecem divididos em dez semanas O autor subjacente a este

antigo apocalipse escreve da perspectiva da seacutetima semana esperando a restauraccedilatildeo do povo

de Deus para a oitava semana

Altas expectativas escatoloacutegicas originadas de uma conjuntura de deterioraccedilatildeo de

condiccedilotildees poliacuteticas e sociais agraves vezes de perseguiccedilatildeo e sofrimento podem promover nesta

reflexatildeo sobre os periacuteodos da histoacuteria a ideia de que se vive perto do fim do mundo Eacute assim

que esta noccedilatildeo aparece nos apocalipses de Daniel 7-12 produzidos no contexto da Guerra

dos Macabeus (167-163 AEC) Daniel 9 por exemplo faz uma releitura de Jeremias

(Jeremias 2511 2910) acerca da desolaccedilatildeo de Jerusaleacutem por 70 anos Os setentas anos satildeo

interpretados como semanas de anos O apocalipse de Daniel garante que faltam poucas

destas semanas para o fim dos tempos

Estas antigas tradiccedilotildees judaicas representadas por 1Enoque e Daniel exemplificam o

interesse pela periodizaccedilatildeo da histoacuteria mundial e manifestam a convicccedilatildeo de seus autores

provavelmente compartilhada com a comunidade destinataacuteria do texto de que eles viviam a

uacuteltima e crucial fase da histoacuteria antes da intervenccedilatildeo final de Deus que traraacute a salvaccedilatildeo e o

julgamento218 A histoacuteria eacute imaginada linearmente como uma sucessatildeo de tempos

determinados de adversidades antes que venham dias de felicidade219

A terceira noccedilatildeo eacute o retorno agraves condiccedilotildees paradisiacuteacas quando o paraiacuteso dos tempos

primordiais (urzeit) seria restabelecido no fim dos tempos (endzeit) Os benefiacutecios esperados

seriam aqueles que o ser humano experimentara em suas origens220 Esta ideia foi

desenvolvida nos textos apocaliacutepticos por meio de vaticiacutenios acerca da restauraccedilatildeo da

prosperidade da criaccedilatildeo da fertilidade e da paz no mundo 1Enoque 10-11 por exemplo ao

falar da queda dos vigilantes combina estruturaccedilatildeo da histoacuteria com a expectativa de um

retorno agraves condiccedilotildees do paraiacuteso na era da salvaccedilatildeo Eacute possiacutevel notar que este texto tem

elementos que seratildeo apropriados de vaacuterias maneiras posteriormente como a fertilidade da

terra a destruiccedilatildeo das forccedilas demoniacuteacas e os justos ressuscitados Segue o texto

E a Raphael disse o Senhor Amarra Azazel de matildeos e peacutes e lanccedila-o nas

trevas Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo Deposita

218 ULFGARD op cit p 44 219 Frankfurt sugeriu que tal conceito de histoacuteria eacute dependente de tradiccedilotildees zoroastrianas que apresentavam a

histoacuteria dividida em periacuteodos alternados de domiacutenio entre as figuras divinas de Ahura Mazda e Angra Mainyu

que culminariam no fim na vitoacuteria do bem sobre o mal Cf FRANKFURTER David Early Christian

Apocalypticism literature and social world In COLLINS John J (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism

the origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity New York Continuum 1999 p 415-456 p 441 220 PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 353

80

pedras aacutesperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridatildeo Deixa-

o permanecer laacute para sempre e veda-lhe o rosto para que natildeo veja a luz

No dia do grande Juiacutezo ele deveraacute ser arremessado ao tremedal de fogo

Purifica a terra corrompida pelos Anjos e anuncia-lhe a Salvaccedilatildeo para

que terminem os seus sofrimentos e natildeo se percam todos os filhos dos

homens em virtude das coisas secretas que os Guardiotildees revelaram e

ensinaram aos seus filhos Toda a terra estaacute corrompida por causa das obras

transmitidas por Azazel A ele atribui todos os pecados E a Gabriel disse

o Senhor Levanta a guerra entre os bastardos os monstros os filhos das

prostituiacutedas e extirpa-os do meio dos homens juntamente com todos os

filhos dos Guardiotildees Instiga-os uns contra os outros para que na batalha

se eliminem mutuamente Natildeo se prolongue por mais tempo a sua vida

Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deveraacute ser atendido eles

esperam ter vida para sempre e que cada um viva quinhentos anos A

Michael disse o Senhor Vai e potildee a ferros Semjaza e os seus sequazes que

se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as

suas impurezas Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente

e quando os pais tiverem presenciado o extermiacutenio dos seus amados filhos

amarra-os por sele geraccedilotildees nos vales da terra ateacute o dia do seu julgamento

ateacute o dia do Juiacutezo Final Nesse dia eles seratildeo atirados ao abismo de fogo

na reclusatildeo e no tormento onde ficaratildeo encerrados para todo o sempre E

todo aquele que for sentenciado agrave condenaccedilatildeo eterna seja juntado a eles e

seja com eles mantido em correntes ateacute o fim de todas as geraccedilotildees

Extermina os espiacuteritos de todos os monstros juntamente com todos os

filhos dos Guardiotildees porque eles maltrataram os homens Purga a terra de

todo ato de violecircncia Toda obra maacute deve ser eliminada Que floresccedila a

aacutervore da Verdade e da Justiccedila O sinal da becircnccedilatildeo seraacute o seguinte as obras

da Verdade e da Justiccedila sempre seratildeo semeadas na alegria verdadeira

Entatildeo floresceratildeo os justos e haveratildeo de viver ateacute gerarem mil filhos e

completaratildeo em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice Entatildeo

toda a terra seraacute cultivada com a Justiccedila inteiramente plantada de aacutervores

e cheia de becircnccedilatildeo Toda espeacutecie de aacutervore boa seraacute plantada sobre ela

igualmente videiras e as videiras produziratildeo uvas em abundacircncia De

todas as sementes que forem semeadas uma medida produziraacute mil outras

e uma medida de olivas daraacute dez cubas de oacuteleo Purifica a terra de todo ato

de violecircncia de toda injusticcedila de todo pecado e impiedade elimina toda a

impudiciacutecia que sobre ela se pratica Todos os homens seratildeo justos todos

os povos me prestaratildeo honra e gloacuteria e todos me adoraratildeo A terra entatildeo

ficaraacute expurgada de toda maldade de todo pecado de toda praga de todo

tormento e nunca mais mandarei sobre ela um diluacutevio ao longo de todas

as geraccedilotildees por toda a eternidade Naqueles dias eu abrirei as cacircmaras dos

depoacutesitos da becircnccedilatildeo do ceacuteu e deixaacute-las-ei derramar-se sobre a terra sobre

as obras e os trabalhos dos filhos dos homens Entatildeo a Verdade e a Paz

juntar-se-atildeo por todos os dias da terra e por todas as geraccedilotildees dos homens

(1Enoque 1012-112)221

Assim a expectativa do reino messiacircnico interino na histoacuteria parece ser uma

combinaccedilatildeo de antigas noccedilotildees sobre o messias o retorno ao paraiacuteso e a periodizaccedilatildeo dos

221 A citaccedilatildeo de 1Enoque veio de TRICCA op cit p 117-202

81

tempos 4Esdras falou em quatrocentos anos de duraccedilatildeo o Apocalipse de Joatildeo registrou mil

anos

Ulfgard sugeriu que o caminho para compreender o tempo do reino messiacircnico na

terra estaria no uso tipoloacutegico do Salmo 9015 ldquoAlegra-nos pelos dias em que nos afligiste

e pelos anos em que vimos o malrdquo Esta era uma foacutermula usada por grupos judaicos para

calcular os dias do messias Deus iria recompensar o povo na terra pelo tempo em que ele

foi maltratado sobre ela Alguns propunham 40 anos para fazer frente ao tempo que o povo

passou no deserto antes de entrar em Canaatilde Outros sugeriam quatrocentos anos

correspondente ao periacuteodo de permanecircncia no Egito A sugestatildeo dos mil anos entretanto

poderia ter relaccedilatildeo com o versiacuteculo 4 deste mesmo Salmo 90 ldquoporque mil anos aos teus

olhos satildeo como o dia de ontem que passou e como uma vigiacutelia de noiterdquo222 De qualquer

forma tanto em 4Esdras quanto no Apocalipse de Joatildeo as expressotildees temporais natildeo satildeo o

elemento principal Afinal em ambas as obras o governo messiacircnico na terra tem um fim

A ecircnfase dos autores destes textos estaacute na expectativa de que a terra experimentaraacute ainda

dentro da histoacuteria um uacuteltimo periacuteodo de paz

Dentro do contexto narrativo maior que comeccedila em Apocalipse 1911 e conclui em

225 Joatildeo inseriu a expectativa do reino messiacircnico na terra quando o Jesus glorificado

retornaria para vencer seus inimigos ressuscitaria seus seguidores martirizados e viveria

com eles por um periacuteodo de mil anos Tomamos esta expectativa como a objetivaccedilatildeo de um

conjunto de representaccedilotildees natildeo apenas derivado de praacuteticas sociais mas tambeacutem promotor

de outras tantas Enquanto tal o milecircnio pode ser visto como uma arma nas lutas de

representaccedilotildees entre certas comunidades religiosas do final do primeiro seacuteculo a resposta

de um liacuteder religioso agraves praacuteticas plurais do movimento de Jesus diante das conjunturas

histoacutericas da proviacutencia romana da Aacutesia O que buscamos nos paraacutegrafos a seguir satildeo fatores

ou condiccedilotildees de emergecircncia para este determinado sistema de representaccedilotildees

222 ULFGARD op cit p 49 Prigent por sua vez sugere que o tempo messiacircnico poderia ser uma alusatildeo a

Jubileus 430 Aqui a morte de Adatildeo com 930 anos eacute entendida como consequecircncia dele natildeo ter alcanccedilado a

idade perfeita de 1000 anos Aleacutem do mais seria cumprimento da profecia de Genesis 217 que declarou que

no dia que ele comesse da arvore ele morreria Nestes termos Apocalipse 204-6 simbolizaria a restauraccedilatildeo da

vida humana ideal nos moldes do paraiacuteso na era messiacircnica No reino messiacircnico as consequecircncias do pecado

de Adatildeo satildeo canceladas Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 358

82

36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia

Jaacute tratamos no capiacutetulo anterior a respeito dos conflitos de lideranccedila do movimento

de Jesus no periacuteodo do Apocalipse numa fase de consolidaccedilatildeo das comunidades dentro da

sociedade romana e de construccedilatildeo de uma identidade separada do Judaiacutesmo Aparentemente

o tema da prisatildeo e destruiccedilatildeo de Satanaacutes223 no interior do complexo narrativo da destruiccedilatildeo

dos adversaacuterios do Jesus glorificado pode ter relaccedilatildeo justamente com essa conjuntura

conflitiva

David Frankfurt analisou vaacuterios apocalipses judaicos e cristatildeos no periacuteodo entre 200

anos antes e 200 depois da Era Comum tentando construir uma tipologia geograacutefica dos

textos apocaliacutepticos224 Segundo ele o milenarismo sectaacuterio eacute um traccedilo significativo do

apocalipsismo asiaacutetico em funccedilatildeo da atuaccedilatildeo privilegiada de figuras profeacuteticas com

performances orais itinerantes a necessidade de forte legitimaccedilatildeo carismaacutetica e o

envolvimento eventual em conflitos de lideranccedila Ele o denomina como ldquomilenarismo

sectaacuteriordquo porque o seu proponente se entende representar natildeo a totalidade da sociedade ou

mesmo do seu grupo social mas uma parcela dentro dele As demais pessoas e grupos satildeo

vistos como adversaacuterios e destinados agrave destruiccedilatildeo escatoloacutegica Este milenarismo eacute

geralmente centrado em figuras profeacuteticas e manifesta algum tipo de luta pela lideranccedila nas

comunidades quando liacutederes carismaacuteticos usam a estigmatizaccedilatildeo para deslegitimar os

adversaacuterios e afirmar a proacutepria autoridade225 Neste contexto de disputa como Elaine Pagels

tentou demonstrar a oposiccedilatildeo eacute frequentemente associada a seres demoniacuteacos e aos

monstros do caos226

O bispo Inaacutecio de Antioquia ao passar pela Aacutesia menor registrou em uma carta uma

justaposiccedilatildeo entre Cristianismo e Judaiacutesmo (Carta aos Magneacutesios X) Ele parece evidenciar

assim que pelo menos alguns seguidores de Jesus naquela regiatildeo e naquele periacuteodo tinham

a percepccedilatildeo de que faziam parte de um movimento independente e mesmo superior ao

Judaiacutesmo Esse debate sobre a identidade das comunidades poderia ser ampliado ainda pelas

distinccedilotildees jaacute feitas pelos magistrados romanos (como as cartas de Pliacutenio jaacute mencionadas) e

223 Como jaacute argumentamos o episoacutedio do milecircnio relata duas narrativas ligadas entre si pelo marco temporal

(mil anos) A narrativa da prisatildeo de Satanaacutes faz parte de uma cena maior que descreve a vitoacuteria do Jesus

glorificado sobre seus adversaacuterios A outra narrativa descreve a exaltaccedilatildeo dos maacutertires 224 FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit 225 Idem 435 226 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na

sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996

83

por pressotildees de sinagogas locais que natildeo queriam ser identificadas com as igrejas227

Possivelmente pouco mais de uma deacutecada antes de Inaacutecio quando as igrejas da Aacutesia jaacute

viviam um momento de instabilidade identitaacuteria os projetos distintos das lideranccedilas geraram

uma crise de legitimidade e a consequente percepccedilatildeo de que o mal poderia vir de dentro da

comunidade

A pequena obra canocircnica conhecida como 3Joatildeo entre os anos 90-110228 registra

um embate entre seu autor anocircnimo e um liacuteder adversaacuterio conhecido como Dioacutetrefes

ldquoEscrevi alguma coisa agrave igreja mas Dioacutetrefes que gosta de exercer a primazia entre eles

natildeo nos daacute acolhidardquo (3Joatildeo 19) Situaccedilotildees como essa geravam respostas diferentes para os

mesmos problemas entre os liacutederes das igrejas Natildeo bastava a um profeta dar a orientaccedilatildeo

para a comunidade jaacute que ele precisava tambeacutem atacar quem divergia de seu

posicionamento Este senso de mal interno foi trabalhado por Joatildeo de duas maneiras Ele

desejava purgar a comunidade de membros que dele divergiam vinculando-os a adversaacuterios

externos da comunidade (membros de sinagogas locais e magistrados romanos) Ao mesmo

tempo ele projeta o conflito para o mundo celestial indicando laccedilos entre seus desafetos e

figuras demoniacuteacas tradicionais como Satatilde229

Este parece ser o caso da polecircmica contra ldquoJezabelrdquo no Apocalipse (Apocalipse 218-

29) A mulher assim intitulada por Joatildeo era uma das liacutederes da comunidade de disciacutepulos de

Tiatira As acusaccedilotildees contra ela indicam que o cerne do conflito estava em aspectos sociais

ldquoJezabelrdquo defendia o engajamento com a sociedade maior e Joatildeo recomendava o

afastamento na direccedilatildeo de um gueto religioso Em termos religiosos eacute possiacutevel que Jezabel

possuiacutesse uma vantagem sobre o profeta de Patmos jaacute que ela tinha amparo no ensino que

o apoacutestolo Paulo deixara trinta anos antes para as igrejas da regiatildeo230 Como argumenta Duff

uma das estrateacutegias de Joatildeo neste confronto foi conectar sua rival com Babilocircnia e por

implicaccedilatildeo com Satatilde231 Em escala maior os membros do movimento de Jesus que Joatildeo

227 Uma evidecircncia neste sentido pode ser o uso do termo ldquominimrdquo para descrever os membros do movimento

de Jesus em maldiccedilotildees pronunciadas em sinagogas em periacuteodo tatildeo recuado quanto 80-85 Para que pudesse ser

disseminada por diversas comunidades judaicas uma maldiccedilatildeo foi inserida entre as 18 becircnccedilatildeos conhecidas

como ldquobirkat-hamminimrdquo que dizia ldquoQue os nosrim (nazarenos) e os minim (hereges) morram subitamente

e sejam excluiacutedos do livro da vida para que natildeo sejam ali recordados juntamente com os justos Bendito sejas

Tu oacute Senhor que abaixas os orgulhososrdquo Cf BAGATTI Bellarmino A igreja da circuncisatildeo histoacuteria e

arqueologia dos judeu-cristatildeos Petroacutepolis Vozes 1975 p 44 228 KUumlMMEL op cit p 593 229 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 230 Idem p 71 231 Idem p 72

84

considerava desviantes passaram a ser rotulados como chamou Pagels de ldquoagentes secretosrdquo

de forccedilas demoniacuteacas sobrenaturais232

Portanto Joatildeo natildeo demoniza apenas a sociedade romana em sua manifestaccedilatildeo

asiaacutetica ou o Impeacuterio na figura das bestas de Apocalipse 13 Ele tambeacutem entende que

mesmo dentro das igrejas existiam aliados de Satanaacutes os ldquoinimigos iacutentimosrdquo233 Este tipo de

perspectiva poderia explicar o grande espaccedilo dado agraves descriccedilotildees dos poderes demoniacuteacos no

Apocalipse bem como a necessidade de um milecircnio que tem como pano de fundo a

destruiccedilatildeo destas mesmas forccedilas de oposiccedilatildeo

Um reino milenar precedido pelo sangue dos adversaacuterios pode refletir entatildeo um

contexto social cheio de tensotildees dentro das proacuteprias igrejas (divergecircncias sobre a identidade

do movimento) entre as igrejas e grupos judaicos (hostilidade contra sinagogas locais) entre

as comunidades de Jesus e a sociedade romana (demandas por acomodaccedilatildeo cultural) e entre

os seguidores de Jesus e o Impeacuterio (interaccedilatildeo entre religiatildeo sociedade e poliacutetica)234

Nosso argumento eacute que a situaccedilatildeo das comunidades envolvidas em distuacuterbios

identitaacuterios com sinagogas locais e em conflitos de lideranccedila acabou se tornando um fator

plausiacutevel no surgimento do milecircnio do Apocalipse ao provocar a expectativa de um tempo

em que todos os inimigos internos e externos seriam destruiacutedos violentamente

Um segundo aspecto frequentemente sugerido pelos autores eacute a oposiccedilatildeo de Joatildeo a

Roma235 A forma como o Apocalipse ataca a sociedade romana o coloca ao lado de outros

grupos judaicos anti-romanos posteriores ao conflito que terminou com a destruiccedilatildeo do

templo e da cidade de Jerusaleacutem (66-70) como os zelotes da Palestina236 Nestes grupos e

movimentos manifestou-se a perspectiva criacutetica de que o Impeacuterio Romano era incompatiacutevel

com o reino de Deus frequentemente traduzida por uma forte rejeiccedilatildeo dos siacutembolos e

232 PAGELS Elaine H The Social History of Satan part three John of Patmos and Ignatius of Antiochi

Contrasting Visions of Gods People Harvard Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006

p 489 233 Idem p 494 234 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The

Westminster Press 1984 p 84-99 SILVA David A de The social setting of the Revelation to John conflicts

within fears without Westminster Theological Journal Philadelfia n 54 p 273-302 1992 p 287 235 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In

BARR David L The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society

of Biblical Literature 2006 p 243-269 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de

Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 MESTER Carlos e OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano

e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n

69 p 72-82 2001 PAGELS Elaine Revelationshellip op cit 236 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p

213

85

imagens do poder romano entre eles o culto imperial Outros fatores ainda poderiam ter

atuado para produzir esta oposiccedilatildeo como expectativas religiosas de um Israel independente

de poderes estrangeiros ou medidas financeiras dos procuradores romanos237

De qualquer forma Pagels historiadora da religiatildeo chamou o Apocalipse de

ldquoliteratura de guerrardquo238 porque Joatildeo teria saiacutedo da Judeacuteia sua terra natal logo apoacutes

testemunhar o iniacutecio do confronto de seus conterracircneos judeus contra as forccedilas romanas em

66 Mesmo ausente ele pode ter ouvido falar dos 60 mil soldados romanos que cercaram

Jerusaleacutem e destruiacuteram a cidade Quando finalmente o cerco terminou eles a invadiram e a

deixaram em ruiacutenas O templo judaico que terminara de ser reformado poucos anos antes

foi destruiacutedo junto com a cidade O responsaacutevel inicial pelo cerco o general Vespasiano

acabou como o Imperador de Roma No tempo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse era

seu filho Domiciano que dirigia o Impeacuterio O impacto da destruiccedilatildeo do Templo e de

Jerusaleacutem foi significativo para diversos setores do Judaismo mas teve um impulso

particular em Joatildeo e pode ser considerado mesmo como ponto de partida para sua oposiccedilatildeo

a Roma

Para o Apocalipse entatildeo o Impeacuterio era um peso opressor que deveria ser eliminado

antes que o mundo viesse a conhecer a justiccedila Seu milecircnio pode ser visto como a

manifestaccedilatildeo do desejo pelo fim da ldquoRoma eternardquo Por isso como em outros apocalipses

judaicos a histoacuteria no Apocalipse eacute uma sequecircncia de poderes Aquele era o tempo de Roma

mas ela iria passar para ser sucedida pelo reino milenar do Messias Este ldquooacutediordquo pela

sociedade do presente histoacuterico parece ser assim mais um fator na promoccedilatildeo da expectativa

milenarista de Joatildeo de que um novo reino se levantaria em breve para substituir o atual

O milecircnio de Joatildeo o futuro reino do Messias expressa a condenaccedilatildeo joanina da

presente ordem romana Nos termos de John Collins em nenhum outro lugar a queda dos

poderosos eacute imaginada com tal alegria como neste apocalipse cristatildeo onde um anjo de peacute

sobre o sol convida os paacutessaros a comer a carne dos reis dos capitatildees e dos poderosos

(Apocalipse 1918)rdquo239

237 Uma anaacutelise dos conflitos entre judeus e romanos no seacuteculo I pode ser encontrada em GOODMAN Martin

Rome and Jerusalem the clash of ancient civilizations London Pinguin Books 2007 Especificamente sobre

a guerra de 66-70 cf REICKE Bo Histoacuteria do tempo do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 1996 p 282-

294 238 PAGELS Elaine Revelations op cit p 7 239 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica op cit p 18

86

Outro fator de emergecircncia do milecircnio joanino pode ter relaccedilatildeo com a situaccedilatildeo

perigosa de vida dos membros da comunidade de Jesus240 com a jaacute mencionada memoacuteria de

mortes violentas de disciacutepulos na guerra judaico-romana e na crise nerodiana da deacutecada de

60 e com a crucificaccedilatildeo de Jesus Isso parece estar subjacente agrave representaccedilatildeo dos maacutertires

no episoacutedio do milecircnio Afinal mesmo que natildeo haja evidecircncias de uma perseguiccedilatildeo e morte

generalizada dos membros das igrejas no periacuteodo do Apocalipse e o livro faccedila referecircncia a

apenas uma morte (Apocalipse 213) o milecircnio gira em torno dos maacutertires

O contexto mais amplo do aparecimento dos apocalipses judaicos foi de rejeiccedilatildeo ao

domiacutenio pagatildeo241 A resistecircncia poderia vir em forma ativa como a revolta dos macabeus

ou em forma passiva como a elaborada nos apocalipses de Daniel 7-12 no qual se anseia

pela destruiccedilatildeo dos poderes estrangeiros por forccedilas sobrenaturais mas sem qualquer

participaccedilatildeo humana no confronto Um tipo de resistecircncia intermediaacuteria envolve a

expectativa de sinergismo entre forccedilas divinas e humanas na destruiccedilatildeo escatoloacutegica dos

adversaacuterios como aparece na frase de Assunccedilatildeo de Moiseacutes ldquonosso sangue seraacute vingado pelo

Senhorrdquo (97) Esperava-se que a morte voluntaacuteria do judeu piedoso provocaria a vinganccedila

de Deus242 Eacute neste sentido que o Apocalipse descreve um nuacutemero fixado de maacutertires que

devem encontrar a morte antes que chegue o fim

Joatildeo advoga uma ruptura das comunidades de Jesus com a sociedade romana o que

na sua oacutetica provocaria a perseguiccedilatildeo e morte dos membros das igrejas Contudo seria

justamente essa perseguiccedilatildeo que ao promover o martiacuterio dos disciacutepulos iria apressar a

chegada do reino messiacircnico de Jesus243 O milecircnio assim pode ser visto como uma

propaganda martiroloacutegica Afinal os maacutertires satildeo os mais abenccediloados seguidores de Jesus e

as consequecircncias de seus atos continuam mesmo apoacutes suas mortes Nos termos do

Apocalipse ldquoFelizes os mortos que desde agora morrem no Senhor Sim diz o Espiacuterito

para que descansem das suas fadigas pois as suas obras os acompanhamrdquo (Apocalipse

1413)

240 A correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano na proviacutencia vizinha alguns anos apoacutes o Apocalipse pode ser

evidecircncia de que as comunidades jaacute corriam risco no final do seacuteculo I 241 Esta anaacutelise da relaccedilatildeo entre Apocalipse e poliacutetica pode ser encontrada em COLLINS Adela Yarbro The

political perspective of the Revelation to John Journal of Biblical Literature Atlanta v 96 n 2 p 241-256

1977 242 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p

209 243 Frankfurt descreve o periacuteodo entre a produccedilatildeo do evangelho de Marcos e o Apocalipse de Joatildeo (70-100)

como um periacuteodo de ldquofasciacutenio com o martiacuterio e a necessidade de imaginar a perseguiccedilatildeordquo entre algumas igrejas

Cf FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit p 436

87

O tema da morte violenta domina muitas visotildees de Joatildeo De vaacuterias formas forccedilas

demoniacuteacas ameaccedilam o movimento de Jesus a besta que persegue as duas testemunhas

(Apocalipse 111-13) o Dragatildeo que persegue a Mulher e sua semente (Apocalipse 121-17)

as bestas do mar e da terra que perseguem os ldquosantosrdquo (Apocalipse 131-1412) a Babilocircnia

que persegue as testemunhas de Jesus (Apocalipse 171-195)244

Eacute neste contexto que se entende a memoacuteria da crucificaccedilatildeo de Jesus Joatildeo vecirc paralelos

entre a situaccedilatildeo dos fieacuteis e do fundador do movimento e com isso constroacutei uma narrativa

que idealiza a imitaccedilatildeo de Cristo atraveacutes do sofrimento e martiacuterio Um significativo texto

neste sentido eacute Apocalipse 1210-12 onde os santos imitam Cristo vencendo o Dragatildeo pelo

sangue do Cordeiro (ldquoτὸ αἷμα τοῦ ἀρνίουrdquo) e pela palavra do testemunho (ldquoδιὰ τὸν λόγον τῆς

μαρτυρίας αὐτῶνrdquo) porque natildeo amaram a proacutepria vida mesmo diante da morte (ldquoοὐκ ἠγάπησαν

τὴν ψυχὴν αὐτῶν ἄχρι θανάτουrdquo) Segundo essa formulaccedilatildeo joanina a vitoacuteria sobre os poderes

demoniacuteacos estaacute ligada diretamente agrave morte (de Jesus e dos disciacutepulos) Para Thompson esta

identificaccedilatildeo com ldquoo Cordeiro crucificadordquo (ldquoἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένονrdquo - Apocalipse

56) tinha como objetivo promover uma especiacutefica identidade no fiel e suportar

determinados comportamentos245

Este imaginaacuterio de tribulaccedilatildeo funciona independente das experiecircncias concretas de

perseguiccedilatildeo das comunidades de disciacutepulos jaacute que deriva da construccedilatildeo de viacutenculos com

traumas no passado do movimento (a morte de Jesus as perseguiccedilotildees de Nero em Roma as

guerras na Judeacuteia a morte de Antipas) Assim a memoacuteria de mortes passadas e a expectativa

de muitas outras pode ser considerado mais um fator para o surgimento do milecircnio sectaacuterio

de Joatildeo ao aguardar a participaccedilatildeo seletiva de um grupo especial de fieacuteis os martirizados

no reino do Jesus exaltado246

Assim diante de fatores como estes entatildeo apontados a resposta de Joatildeo veio na

forma de apropriaccedilatildeo de tradiccedilotildees apocaliacutepticas a respeito do messias da periodizaccedilatildeo da

histoacuteria e do retorno ao paraiacuteso e da construccedilatildeo de um conjunto de representaccedilotildees

milenaristas que convidava ao levantamento dos muros da comunidade a ruptura sectaacuteria

244 THOMPSON Leonard A sociological analysis of tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 36 p 147-174 1986 p 148 245 Idem p 170 246 Em Daniel 123 tambeacutem apenas um grupo especial de fieacuteis os saacutebios passaria pela ressurreiccedilatildeo Cf

COLLINS John J Danielhellip op cit p 103

88

com membros divergentes a espera ansiosa pelo martiacuterio e finalmente o governo vitorioso

dos maacutertires durante o milecircnio

Existiam outros liacutederes como a liacuteder estigmatizada Jezabel (Apocalipse 220) que

propunham praacuteticas diferentes por entenderem que o relacionamento com a sociedade era

necessaacuterio para a sobrevivecircncia da comunidade247 Para estes a sociedade romana era o

espaccedilo de sobrevivecircncia e natildeo do confronto Mesmo que as categorias propostas por Joatildeo

tenham sido eventualmente abraccediladas em subsequentes apropriaccedilotildees sectaacuterias do milecircnio248

isso natildeo promoveu necessariamente a ruptura com a sociedade249 Isso levou Thompson a

afirmar com certa ironia que a continuidade do movimento de Jesus foi viabilizada porque

seus membros natildeo conseguiram objetivar as representaccedilotildees do Apocalipse250

37 Resumo

Joatildeo encerra seu Apocalipse com a narrativa daquilo que ele entendia ser o fim do

mundo e da histoacuteria Antes disso entretanto ele descreve um periacuteodo de governo milenar

do Jesus Glorificado e seus maacutertires ressuscitados O milecircnio aparece no livro joanino como

o tempo do aprisionamento de Satanaacutes e do reinado messiacircnico interino na terra Estas

expectativas parecem ter origem em tradiccedilotildees literaacuterias judaicas que combinavam noccedilotildees

sobre um redentor ungido por Deus um retorno aos tempos paradisiacuteacos e periodizaccedilotildees da

histoacuteria Estas antigas noccedilotildees parecem ter se reunido de uma forma muito semelhante na

regiatildeo da Aacutesia-Siacuteria-Palestina no final do seacuteculo I nas obras Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque por causa entre outros fatores dos traumas da guerra judaico-

romana No caso especiacutefico da versatildeo joanina sua emergecircncia ainda pode ter relaccedilatildeo com

conflitos de lideranccedila das comunidades de Jesus em funccedilatildeo de respostas diferentes agrave questatildeo

do relacionamento com a sociedade romana

247 DUFF Paul B Who rides the Beast op cit p 77 248 Como os movimentos milenaristas analisados em COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas

revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 249 Como a apropriaccedilatildeo do milecircnio em Agostinho Cf KYRTATAS Dimitris The Transformations of the

Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text The Writing of Ancient

History London Duckworth 1986 p 144-162 250 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L (ed) Reading

the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 46

IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM

Neste capiacutetulo aplicaremos ao Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram

lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar

elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso

este seraacute o espaccedilo principal para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando

apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o

livro joanino

41 O autor do Expositio in Apocalypsim

A obra intitulada Expositio in Apocalypsim editada pela Junta de Veneza em 1527 e

reimpressa pela Editora Miverva em 1964 reuacutene de fato trecircs textos distintos todos

vinculados a uma mesma pessoa O primeiro no foacutelio 1r na parte superior eacute aberto nestes

termos Incipit epistola prologalis domini Abbatis Joachim florensis O segundo comeccedila

no foacutelio 1v com estas palavras Incipit prologus domini Joaquim Abbatis florensis in expone

libri Apocalipsis e termina no 16v Explicit liber primus dictus introductorius Somente

entatildeo comeccedila o terceiro texto neste mesmo foacutelio 16v (Incipit prima septem partius in

expositione Apocalipsis) que se estende longamente ateacute o final da obra veneziana no foacutelio

224r (Explicit admiranda Expositio venerabilis Abbatis Joachim in Librus Apocalipsis Beati

Joannis Apostoli et Evangeliste) Eacute apenas este uacuteltimo e longo texto que se trata do

Expositio in Apocalypsim identificado no explicit como de autoria de Joaquim de Fiore No

interior do Expositio natildeo haacute outras auto-identificaccedilotildees Mesmo assim estudiosos do assunto

satildeo unacircnimes em aceitar o texto como obra do abade de S Joatildeo de Fiore bem como as outras

duas que abrem a versatildeo veneziana seiscentista A primeira eacute intitulada Carta Testamentaacuteria

pela historiografia251 a segunda recebe o tiacutetulo de Liber Introductorius que funciona como

uma siacutentese do Expositio

Tomando como ponto de partida este viacutenculo aceitando-o como autecircntico o que eacute

possiacutevel dizer sobre este Venerabilis Abbatis Joachim Nos seacuteculos posteriores agrave sua morte

ele foi estigmatizado por exemplo por Tomaacutes de Aquino que tratou as obras de Joaquim

251 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 69

90

como conjecturas252 contudo louvado por Dante Aliguiere que no final do canto XII de sua

Divina Comeacutedia colocou na boca de Satildeo Boaventura ldquoSabe que ao meu lado brilha o

calabrecircs abade Giovachino que tem o dom de profetizarrdquo253 Ele apareceu em cataacutelogo de

santos e em lista de heresias254 mas nunca chegou a ser oficialmente declarado herege ou

santo255 No meio deste ambiacuteguo rastro muitas lendas se acumularam a respeito desta figura

do medievo italiano Por isso uma reconstruccedilatildeo biograacutefica de Joaquim precisa levar em

conta os seguintes elementos

- os poucos dados deixados por ele na sua Carta Testamentaacuteria por volta de 1200 jaacute

no final de sua vida endereccedilada a um abade de sua Ordem

- estes poucos dados da Carta Testamentaacuteria precisam ser comparados com duas

hagiografias sobre Joaquim de Fiore escritas por contemporacircneos seus uma produzida pelo

seu secretaacuterio Lucas de Consenza Virtutum Beati Joachimi synopsis e Vita beati Joachimi

abbatis escrita provavelmente pouco depois de sua morte obra de um monge anocircnimo que

trabalhou com Joaquim enquanto ele era abade de Corazzo acompanhou-o posteriormente

para Petralata e por fim para S Joatildeo em Fiore256

- narrativas de caraacuteter lendaacuterio sobre ele encontradas em outras fontes que precisam

ser avaliadas pelo caraacuteter de plausibilidade e podem ajudar a esclarecer aspectos obscuros

de sua biografia

Com estes elementos cotejados eacute que estudiosos de Joaquim reconstroem sua vida257

Seu nascimento se deu provavelmente em 1135 em Celico uma vila pequena agrave leste de

Consenza na Calaacutebria proviacutencia do Reino normando da Siciacutelia Seu pai era Mauro um

notaacuterio do Arcebispo Sancio de Consenza Sobre sua matildee soacute se conhece seu nome Gema

Ele era o sexto de oito filhos do casal e o mais velho a sobreviver258

Joaquim foi enviado ainda jovem para trabalhar tambeacutem em Consenza como oficial

da Chancelaria normanda da Calaacutebria Sua famiacutelia o treinava para ser um notaacuterio como seu

252 MC GINN Bernard The abbot and the doctors scholastic reactions to the radical eschatology of Joaquim

of Fiore Church History Cambridge v 40 n 1 p 30-47 1971 p 19 253 DANTE ALIGUIERE A divina comeacutedia Satildeo Paulo Nova Cultural 2002 p 338 254 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London

University of Notre Dame Press 1993 p 3 255 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 256 TRONCARELLI Fabio Gioacchino da Fiore la vita il pensiero le opere Roma Cittagrave Nuova Editrice

2002 p 15 257 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4 TRONCARELLI op cit p 15 DANIEL E Randolph Abbot

Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical

Society 1983 p xii REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 258 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii

91

pai259 Isso lhe forneceu preparo intelectual com o domiacutenio do grego liacutengua predominante

nos registros de governo da Calaacutebria e Siciacutelia bem como do Latim O aacuterabe era bem

conhecido nos espaccedilos da corte da Siciacutelia poreacutem natildeo haacute indiacutecios de que Joaquim dominava

este idioma apesar dos provaacuteveis contatos com ele durante o tempo em que esteve na corte

do reino em Palermo

Apoacutes um periacuteodo inicial em Consenza o ainda jovem Joaquim foi encaminhado para

a corte de William II na Siciacutelia onde trabalhou para o chanceler Estevatildeo de Perche Apoacutes

algum tempo na corte foi com o notaacuterio Santoro para Apuacutelia e Val di Crati onde foi

acometido de uma doenccedila Possivelmente para tratar da enfermidade ele retornou para a

corte em Palermo

Em meados de 1167 Joaquim decidiu fazer uma peregrinaccedilatildeo agrave Jerusaleacutem Eacute difiacutecil

saber as causas desta accedilatildeo de Joaquim apesar da probabilidade de sua doenccedila ter alguma

relaccedilatildeo com o evento tanto com o abandono da corte quanto com a viagem para a Terra

Santa260 Troncarelli argumenta que jaacute na base desta peregrinaccedilatildeo estava a decisatildeo juvenil

de Joaquim de abraccedilar o eremitismo e todo o desenvolvimento da sua viagem jaacute seria parte

deste propoacutesito de vida eremita261 Para Randolph Daniel entretanto a vocaccedilatildeo de Joaquim

se deu durante a peregrinaccedilatildeo quando ao passar por Tripoli na Siria ele teria enfrentado

outra enfermidade desta vez por causa de uma epidemia local Como sobreviveu a ela

tomou a decisatildeo de abraccedilar o monasticismo ainda que neste periacuteodo a opccedilatildeo tenha sido por

um tipo de monasticismo natildeo-cenobiacutetico em isolamento e ascetismo262 Independentemente

entretanto do momento especiacutefico em que se deu a vocaccedilatildeo religiosa de Joaquim ela deve

ter tido alguma relaccedilatildeo com sua peregrinaccedilatildeo ao oriente263

Joaquim concluiu a peregrinaccedilatildeo a Jerusaleacutem e voltou para Siciacutelia em 1171264 natildeo

para a corte mas como outros monges gregos da ilha para uma regiatildeo montanhosa e isolada

Ele escolheu a proximidade do Monte Etna perto de um antigo monasteacuterio oriental265

Alguns meses depois atravessou o estreito de Messina na direccedilatildeo da Calaacutebria sua terra natal

259 TRONCARELLI op cit p 16 260 Adeline Rucquoi analisa as motivaccedilotildees provaacuteveis de peregrinos na Idade Meacutedia e menciona a relaccedilatildeo entre

enfermidade e voto de peregrinaccedilatildeo como uma causa frequente Cf RUCQUOI Adeline Peregrinos

medievales Tiempo de historia Salamanca v VII n 75 p 82-99 1981 p 85 261 TRONCARELLI op cit p 18 262 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii 263 SANTI Francesco La Bibbia in Gioacchino da Fiore In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio

(ed) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 257-267 p 259 264 AFFLECK Toby Joachim of Fiore Access History Brisbane v 1 n 1 p 45-54 1997 p 45 265 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der

Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98

92

Buscou um abrigo ou mesmo uma caverna em Guarassanum perto de Consenza e da vila

onde nasceu Narrativas de caraacuteter lendaacuterio entatildeo narram um encontro entre Joaquim e

Mauro Eacute um topos recorrente na biografia de grandes figuras religiosas do periacuteodo quando

o pai tenta dissuadir o filho de sua missatildeo religiosa para retomar uma vida social em

ascensatildeo Randolph Daniel destaca entretanto que apesar da natureza artificial da narrativa

encontros como este poderiam ser frequumlentes quando filhos de famiacutelias bem situadas na

sociedade decidiam abandonar uma carreira de sucesso para abraccedilar uma vocaccedilatildeo religiosa

de pouco prestiacutegio como era a vida isolada de um eremita266 O proacuteprio Joaquim parece falar

de um conflito com sua famiacutelia no interior de sua Concordia com a mensagem de que havia

recusado a promoccedilatildeo social a escala de sucesso no interior do Reino da Siciacutelia para abraccedilar

a ascese267

Apoacutes um periacuteodo recluso em Guarassanum Joaquim aceitou a hospitalidade da

abadia cisterciense de Sambucina ainda perto de Consenza Mas natildeo ficou muito tempo ali

pois se deslocou para Rende cerca de 10 quilocircmetros a noroeste onde por um ano pregou

agraves pessoas da regiatildeo Receoso de estar cometendo algum ato de desobediecircncia por pregar

sem autorizaccedilatildeo procurou o bispo Roberto de Catanzaro de quem recebeu o ordenamento

sacerdotal e a referida autorizaccedilatildeo para pregar Foi neste periacuteodo que Joaquim conheceu o

monasteacuterio de S Maria de Corazzo jaacute que tanto para ir quanto para voltar de Catanzaro ele

precisou se hospedar ali

Ele retomou sua atividade em Rende como pregador itinerante mas natildeo demorou

muito para tomar a decisatildeo de abandonar o clero secular e ingressar no monasteacuterio de

Corazzo como noviccedilo268 Este monasteacuterio fora fundado em 1157 por Rogeacuterio de Martirano

O abade desde o tempo da fundaccedilatildeo era Columbano Em 1177 entretanto por algum

motivo natildeo explicitado apenas relatado como scandala os monges de Corazzo resolveram

afastaacute-lo e na sequecircncia elegeram Joaquim para substituiacute-lo o que indica o status de

lideranccedila que o ex-peregrino jaacute havia adquirido entre eles Os monges podem ter percebido

que a formaccedilatildeo cultural de Joaquim o havia capacitado para dirigir a casa funccedilatildeo essa que

266 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xiii 267 Idem p xx Troncarelli entende que esse conflito poderia ser ainda mais significativo em funccedilatildeo do fato de

Joaquim ter se afastado da chancelaria normanda durante um periacuteodo de desenvolvimento do Reino da Siciacutelia

ldquoperiacuteodo de prosperidade e paz sem igualrdquo Cf TRONCARELLI op cit p 19 268 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p iv

93

envolvia certo grau de relacionamento com os poderes sociais circundantes na defesa da

propriedade e dos direitos do monasteacuterio269

Joaquim natildeo aceitou a eleiccedilatildeo rejeitou o cargo e saiu do mosteiro Foi inicialmente

para S Trindade em Acri monasteacuterio fundado em 1080 pelo conde Rogeacuterio I270 Insatisfeito

com o pouco isolamento do local deixou-o igualmente e procurou a abadia de Sambucina

na qual jaacute havia se hospedado Esta era a uacutenica casa da Ordem de Cister no Reino da Siciacutelia

ateacute o momento Joaquim tentou nela seu ingresso mas foi rejeitado por estar jaacute filiado a

Corazzo

Enquanto estava em Sambucina ele foi pressionado pelo abade da casa pelo

arcebispo Ruffus de Consenza e por Melis um juiz de Rende a retornar ao seu monasteacuterio

e aceitar o resultado da eleiccedilatildeo Diante dos apelos Joaquim assumiu a direccedilatildeo da abadia de

Corazzo ainda no ano de 1177271

Enquanto abade ele dedicou boa parte de suas energias na tentativa de filiar sua casa

agrave Ordem Cisterciense Uma carta do bispo Miguel de Martirano datada de 1177 faz menccedilatildeo

a um privileacutegio outorgado pelo papa Alexandre III (1159-1181) a Corazzo para que os

monges adotassem os costumes cistercienses Natildeo daacute para saber se a adoccedilatildeo destes costumes

eacute anterior ou posterior agrave eleiccedilatildeo de Joaquim De qualquer forma para conseguir ingressar

efetivamente na Ordem era preciso ser aceito como casa-filha de uma casa jaacute estabelecida

na Ordem de Cister272

A primeira tentativa de Joaquim foi Sambucina proacutexima de Corazzo igualmente na

Calaacutebria e com quem ele jaacute tinha tido contatos em mais de uma ocasiatildeo O pleito poreacutem

foi rejeitado aparentemente em funccedilatildeo de questotildees ligadas agrave propriedade do monasteacuterio de

Joaquim273 Com a rejeiccedilatildeo de Sambucina o abade calabrecircs se voltou para Casamari uma

casa cistersiense fora do Reino da Siciacutelia fundada em 1140 a leste de Roma274 Ali ele

chegou em 1183 e ficou por oito meses partindo somente no ano seguinte A resposta de

Casamari foi semelhante agrave de Sambucina mas durante este periacuteodo Joaquim encontrou a

269 Graham Loud analisou o processo de eleiccedilatildeo no interior das abadias da Itaacutelia meridional em LOUD

Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007 p 462-467 270 Idem p 86 271 DESROCHE Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade

Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 269 272 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xv 273 TRONCARELLI op cit p 21 274 DUBY Georges Atlas Histoacuterico Mundial Madrid Editorial Debate 1987 p 49

94

hospitalidade do abade Geraldo (abade de 1183-1209) e dedicou a maior parte do tempo no

estudo do acervo da rica biblioteca do monasteacuterio275

No mecircs de maio de 1184 aproveitou a oportunidade para visitar o papa Luacutecio II

(papa de 1181-1185) que se encontrava em Veroli Segundo Marjorie Reeves esta visita ao

Papa era uma tentativa de Joaquim de legitimar a produccedilatildeo de suas obras o que naquele

momento era sua missatildeo de vida276 Diante do pontiacutefece ele teve a oportunidade de explicar

um manuscrito encontrado em Roma entre os documentos do falecido Cardeal Mathias de

Angers O texto tratava de profecias tradicionais sobre o final dos tempos cobrindo temas

como o Anticristo a grande tribulaccedilatildeo e o fim do mundo Diante de Luacutecio III Joaquim

aplicou no documento anocircnimo a mesma forma de exegese que ele jaacute aplicava nos textos

biacuteblicos buscando elementos do seu tempo que pudessem corresponder agraves profecias

narradas na obra277 Posteriormente ele transcreveu sua exposiccedilatildeo deste documento num

pequeno tratado intitulado Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno 1184278

onde trata da tribulaccedilatildeo futura da Igreja originada em forccedilas do Impeacuterio Germacircnico como

parte do processo divino de purificaccedilatildeo da Igreja279

Como resultado do encontro o papa Luacutecio aprovou o meacutetodo hermenecircutico de

Joaquim e exortou-o a concluir os escritos que desejava produzir280 Entendendo que o papa

havia dado a ele a licenccedila que ele queria o abade calabrecircs iniciou ainda em Casamari a

produccedilatildeo simultacircnea de vaacuterias obras Ele natildeo se contentava em comeccedilar e terminar cada

uma mas trabalhava nelas de forma concomitante auxiliado por dois escribas e um

secretaacuterio Lucas de Consenza que se tornou seu amigo a partir de entatildeo Ele ditava e

revisava o material que os seus ajudantes escreviam281

Joaquim retornou para Corazzo em 1184 Segundo West e Zimdars-Swartz ele

voltou com a clara perspectiva de que as questotildees administrativas vinculadas ao seu cargo o

atrapalhavam natildeo soacute a escrever suas ideias mas tambeacutem a divulgaacute-las para preparar a igreja

para os eventos iminentes que estavam por vir282

Em 1186 Joaquim foi a Verona para render homenagem ao novo pontiacutefice Urbano

III (papa de 1185-1187) onde o papa renovou a autorizaccedilatildeo dada anteriormente por Luacutecio

275 TRONCARELLI op cit p 21 276 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 6 277 SANTI op cit p 261-265 278 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 90 279 TRONCARELLI op cit p 23-24 280 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 7 281 TRONCARELLI op cit p 22 282 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4

95

II e ainda ldquoincitou-o a continuar seus escritosrdquo283 Diante da autorizaccedilatildeo de dois papas para

que escrevesse ele procurou na primavera desde mesmo ano uma sela mais reservada num

local perto de Corazzo chamado Petralata sem rompimento formal ainda com o seu

monasteacuterio

Em 1188 Joaquim foi a Roma onde Clemente III (papa de 1187-1191) emitiu uma

carta na qual renovou as autorizaccedilotildees anteriores e solicitou que fossem levadas apoacutes

concluiacutedas para a avaliaccedilatildeo da cuacuteria romana O pontiacutefece ainda teria aprovado a resignaccedilatildeo

de Joaquim do cargo de abade de Corazzo no momento exato em que Corazzo finalmente

conseguiu ingresso na ordem Cisterciense como filha da abadia de Fossanova uma das

maiores casas da Ordem no territoacuterio papal fundada em 1135 ao sul de Roma284 O

abandono de Corazzo agora cisterciense rendeu a Joaquim o ressentimento dos seus

monges e do proacuteprio Capiacutetulo Geral da Ordem que passou a exigir sua volta Eles o

acusaram de transgredir o primeiro voto da profissatildeo monaacutestica beneditina que eacute a

estabilidade no monasteacuterio285

Em vez de retornar entretanto de posse da resignaccedilatildeo papal ele continuou por um

tempo em Petralata contando com a ajuda de Rainer um eremita da ilha de Ponza que se

juntou a ele No inverno de 1188 insatisfeitos com as interrupccedilotildees e visitas eles foram atraacutes

de um lugar mais isolado e o encontraram nas montanhas calabresas de Fiore para onde se

mudaram em maio de 1189 Naquele lugar agrave medida que disciacutepulos vinham se juntar a

Joaquim nasceu a necessidade de organizar um monasteacuterio O resultado foi a fundaccedilatildeo da

abadia de S Joatildeo de Fiore286

A fundaccedilatildeo da casa entretanto se deu no contexto adverso da transiccedilatildeo dinaacutestica

entre a morte de William II no final de 1189 o curto governo de Tancredo (entre 1190-1194)

e a coroaccedilatildeo de Henrique VI (final de 1194) Eacute um periacuteodo no qual apesar de ter renunciado

anteriormente agrave direccedilatildeo do monasteacuterio de Corazzo Joaquim estaacute nos termos de Troncarelli

ldquoapaixonadamenterdquo envolvido na fundaccedilatildeo de uma casa proacutepria287 Ele renunciara agrave

283 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xviii 284 DUBY op cit p 49 285 TRONCARELLI op cit p 24 Alguns autores sugerem entretanto que Joaquim deixou Corazzo por

entender que a Ordem de Cister jaacute natildeo era riacutegida o suficiente principalmente na questatildeo da disciplina

monaacutestica Ele desejava o cumprimento estrito da Ordem de S Bento o que para o abade significava o

abandono das questotildees temporais uma vida de simplicidade a pureza de coraccedilatildeo e a vida contemplativa Cf

DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

p 41 286 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5 287 TRONCARELLI op cit p 27

96

lideranccedila de uma casa para ser liacuteder de outra Esta mudanccedila de perspectiva de Joaquim

poderia ter relaccedilatildeo com o papel que ele imaginou ter nos tempos que estariam por vir sobre

a Igreja Segundo este professor da Universitagrave della Tuscia ele entendeu que precisava do

apoio de uma nova casa monaacutestica na promoccedilatildeo de sua missatildeo de preparar as pessoas para

a intervenccedilatildeo iminente do Espiacuterito Santo288

Por isso se antes ele queria o isolamento agora ele precisa de apoio natildeo apenas dos

papas mas tambeacutem dos poderes poliacuteticos Entre 1190-1191 ele passou um periacuteodo em

Palermo enquanto solicitava ajuda de Tancredo para as obras de S Joatildeo de Fiore A resposta

do rei normando foi favoraacutevel a Joaquim por meio de uma ldquogenerosa doaccedilatildeordquo289

Enquanto esteve na Siciacutelia em negociaccedilatildeo com Tancredo a ilha se tornou ponto de

parada de uma cruzada a caminho de Jerusaleacutem Joaquim foi convocado para se encontrar

com Ricardo Coraccedilatildeo de Leatildeo da Inglaterra e um grupo de ingleses em Messina290 Ricardo

desejava de Joaquim algum tipo de vaticiacutenio a respeito da cruzada em Jerusaleacutem o que

demonstra que neste periacuteodo o calabrecircs havia alcanccedilado a reputaccedilatildeo de profeta entre alguns

de seus conterracircneos291 O abade usou a visatildeo de Apocalipse 179-10 que descreve uma

besta com sete cabeccedilas para interpretar a Cruzada A passagem apocaliacuteptica fala de sete reis

dos quais caiacuteram cinco um existe e outro ainda natildeo chegou Segundo o autor do Expositio

as cinco cabeccedilas que caiacuteram seriam Herodes Nero Constantino Maomeacute e Melsemuto A

sexta cabeccedila neste caso seria Saladino aquele ldquoum que existerdquo que seria destruiacutedo em

breve para que a seacutetima cabeccedila o que ldquoainda natildeo chegourdquo o derradeiro Anticristo se

manifestasse Este teria jaacute 15 anos e estaria pronto para assumir seu poder

O rei Ricardo perguntou a Joaquim onde o Anticristo teria nascido e onde iria reinar

Joaquim respondeu que ele nascera in urbe Romana e obteria a Seacute Apostoacutelica A visatildeo

aparentemente pouco ortodoxa de Joaquim sobre o Anticristo agradou o monarca inglecircs

adversaacuterio do papa Reeves argumenta entretanto que ao apontar Roma como o local de

nascimento do Anticristo Joaquim estava somente traduzindo a antiga expectativa em seus

proacuteprios termos Joaquim esperava um falso papa como uma de suas manifestaccedilotildees mas

288 Idem p 29 289 Idem p 28 290 Conferir a siacutentese e uma anaacutelise do encontro em REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later

Middle Ageshellip op cit p 7-9 291 Segundo Mc Ginn ldquoreis e rainhas papas e priacutencipes buscavam seus conselhosrdquo a ponto de se tornar uma

das figuras religiosas mais significativas do periacuteodo Cf MC GINN Bernard Apocalyptic Spiritualityhellip op

cit p 98

97

sem implicar neste caso que a Igreja romana deveria ser identificada com a Babilocircnia de

Apocalipse 17-19292

Apoacutes os eventos de Messina o fundador de Fiore voltou para Calaacutebria Mas em 1191

precisou descer novamente da regiatildeo montanhosa na direccedilatildeo de Naacutepoles para um encontro

com Henrique VI que em disputa pela coroa da Siciacutelia viera destituir Tancredo do trono O

abade exortou o monarca germacircnico a natildeo agir com violecircncia contra a coroa siciliana ou

seus aliados Ele usou uma passagem do Antigo Testamento Ezequiel 267 para criticar a

accedilatildeo de Henrique relacionando os eventos de Babilocircnia e Tiro com Henrique e a Siciacutelia293

Independentemente do peso que as palavras de Joaquim tiveram na decisatildeo de

Henrique o monarca realmente decidiu abandonar a regiatildeo e voltar para a Germacircnia Os

eventos posteriores viriam a mostrar um Henrique realmente disposto a ajudar a casa de

Fiore Apoacutes a morte de Tancredo a caminho para assumir o reino da Siciacutelia Henrique

encaminhou uma carta em que fazia uma doaccedilatildeo ao novo monasteacuterio Nela Joaquim eacute pela

primeira vez declarado abade de S Joatildeo em Fiore Em 6 de marccedilo de 1195 alguns meses

apoacutes a coroaccedilatildeo o monarca germacircnico escreveu uma segunda carta garantindo a S Joatildeo um

dote anual em moedas de ouro Bizantinas294

Agora com o apoio do Imperador Joaquim retornou ao papa Celestino III (1191-

1198) e pediu a ele sua aprovaccedilatildeo para S Joatildeo de Fiore Em Roma no dia 25 de agosto de

1196 Celestino emitiu uma bula na qual formalmente aprovou S Joatildeo e a Regra da nova

Ordem Florense295 Ainda nesta bula Joaquim aparece descrito como o abade de Fiore

indicando que pelo menos aos olhos do papa ele natildeo tinha mais conexotildees com Corazzo nem

com a Ordem Cisterciense A mesma aprovaccedilatildeo se deu em 1204 por Inocecircncio III e duas

vezes por Honoacuterio em 1216 e 1220 Mesmo assim desde 1192 Joaquim era considerado

fugitivus pelo Capiacutetulo Geral Cisterciense296

Em 1196 Joaquim retornou a Palermo na qualidade de confessor da rainha

Constacircncia que veio a confirmar todas as doaccedilotildees da coroa para Fiore apoacutes a morte de

Henrique VI em 1197

292 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 9 293 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 66 294 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 295 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n

1 p 217-240 2004 p 219 Esta Regra se perdeu apesar de estudiosos entenderem que ela deveria ser bem

proacutexima da Regra Cisterciense 296 TRONCARELLI op cit p 30

98

O abade Joaquim escreveu em marccedilo de 1200 um documento narrando as

autorizaccedilotildees que entendeu ter recebido do papado de Roma para escrever suas obras e o

compromisso assumido para enviaacute-las quando estivessem prontas (Expositio in

Apocalpysim 1r-v) Ele encaminhou suas trecircs principais obras (Expositio in Apocalypsim

Concordia Novi ac Veteris Testamenti e Psalterium decem Chordarum) para anaacutelise da

cuacuteria papal Mas natildeo teve tempo para receber de Roma a tal avaliaccedilatildeo pois no dia 30 de

marccedilo de 1202 na abadia de S Martino di Giove que havia sido dada para a Ordem de Fiore

em 1201 pelo Arcebispo Andreas de Cosenzza ele veio a falecer297 sendo transferido

posteriormente para S Joatildeo de Fiore

42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim

Um fenocircmeno significativo nas obras de Joaquim eacute a forma como ele reelabora e

repete os mesmos temas seguidamente num processo contiacutenuo e dinacircmico Torna-se

importante entatildeo apontar data e momento de produccedilatildeo natildeo apenas para o Expositio in

Apocalysim mas para as demais obras do abade relacionadas com o Apocalipse de Joatildeo que

sobreviveram e estatildeo disponiacuteveis para consulta Praephatio super Apocalypsim Enchiridio

super Apocalypsim e Liber Introductorius298 A produccedilatildeo do comentaacuterio maior (Expositio)

se deu por meio da produccedilatildeo de obras menores (em formato de sermatildeo e tratado) desde os

primeiros anos da deacutecada de 1180 ateacute os anos proacuteximos de sua morte299

A mais antiga destas obras entretanto o Praephatio super Apocalypsim eacute marcada

pela natureza compoacutesita Antes de ser um uacutenico texto eacute formado pela reuniatildeo de dois

pequenos sermotildees nos quais o abade faz uma apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o Apocalipse de

Joatildeo e a histoacuteria da Igreja300

O primeiro sermatildeo comeccedila com a expressatildeo ldquoO Livro do Apocalipse eacute o uacuteltimo de

todos os livros escritos com espiacuterito de profecia incluiacutedo no cataacutelogo das Sagradas

297 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 298 Haacute ainda um ldquoindependente e curto comentaacuterio do Apocalipserdquo ineacutedito e sem publicaccedilatildeo denominado pela

historiadora Marjorie Reeves como Apocalypsis Nova presente em dois manuscritos do seacuteculo XIII Cf

REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 513 299 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p

286 300 SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 Foi desta

ediccedilatildeo que partiu a traduccedilatildeo para o portuguecircs do professor Rossatto ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao

Apocalipse op cit Outra traduccedilatildeo em portuguecircs pode ser encontrada em BERNARDI Orlando Comentaacuterio

ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010

99

Escriturasrdquo301 O segundo inicia com a frase ldquoAntes de dizer qualquer coisa sobre o livro do

Apocalipse devemos considerar que este livro estaacute provido de um tiacutetulo de uma saudaccedilatildeo

de um prefaacuteciordquo302 Cada sermatildeo tem sua proacutepria unidade interna e foram reunidos em

circunstacircncias desconhecidas por causa de afinidades temaacuteticas Iremos distingui-los como

faz Potestagrave pelas primeiras palavras latinas de cada um303 O primeiro e mais antigo pode

ser denominado Apocalipsis liber ultimus O segundo Locuturi aliquid Ambos foram

escritos por Joaquim para servir de base para a pregaccedilatildeo em contexto lituacutergico num periacuteodo

anterior agrave sua passagem por Casamari (1183-1184)304 Estes tratados constituem uma

primeira aproximaccedilatildeo exegeacutetica de Joaquim ao Apocalipse de Joatildeo cujo puacuteblico alvo

imediato era formado pelos monges do monasteacuterio de Corazzo

A proacutexima obra de Joaquim a desenvolver uma leitura do Apocalipse eacute o Enchiridion

super Apocalypsim Ele foi escrito no periacuteodo em que o abade pousou em Casamari (1183-

1184)305 Nele Joaquim faz uma apresentaccedilatildeo ampla da obra de Joatildeo sem discutir frase a

frase como faraacute no Expositio mas jaacute expondo suas partes principais O termo ldquoEnchiridionrdquo

pode ser traduzido como ldquomanualrdquo e foi escrito segundo o abade para ldquoapresentar o

conteuacutedo de todo o livro do Apocalipserdquo (Enchiridion l 56-57)306 Eacute uma siacutentese portanto

do conteuacutedo que ele entendia estar presente no uacuteltimo livro da Biacuteblia cristatilde e poderia ser

utilizado como ldquotexto introdutoacuterio e explicativordquo307 do seu Expositio Isto daacute ao Enchiridion

tambeacutem um papel de esquema ou projeto do comentaacuterio ao Apocalipse que o abade

comeccedilaria a produzir em Casamari

O texto comeccedila com ldquoIncipit Enchiridion abbatis Joachim super Apocalypsimrdquo (l

1) seguido da primeira frase do texto ldquoComo catoacutelicos e ortodoxos lutamos (certatum) com

os mais fortes entusiasmos (studiis) para lanccedilar os fundamentos da Igreja (ecclesiae

fundamenta)rdquo (l 2-3)308 Este texto foi produzido por Joaquim para apresentar o Expositio e

lhe servir de resumo mas no momento em que o Expositio estava para ser concluiacutedo o

301 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse op cit p 453 302 Idem p 462 303 POTESTAgrave op cit p 290 e 294 304 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 75 Potestagrave entretanto sugere um periacuteodo

posterior agrave Casamari entre 1185-1186 para Apocalipsis liacuteber ultimus e uma data subsequente para Locuturi

aliquid Cf POTESTAgrave op cit p 290 e 294 305 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 92 Potestagrave entretanto prefere datar o Enchiridion

para uma data posterior a 1194 Cf POTESTAgrave op cit p 328 306 As citaccedilotildees do Enchridion seguem o texto criacutetico de BURGER Edward K Joachim of Fiore Enchiridion

super Apocalypsim Toronto Pontifical Institute of Mediaeval Studies 1986 307 POTESTAgrave op cit p 327 308 BURGER op cit p 9

100

Enchiridion sofreu uma revisatildeo tatildeo profunda com alteraccedilatildeo de aspectos significativos do

seu conteuacutedo que os estudiosos preferem mudar seu nome chamando-o entatildeo de Liber

introductorius309 Gian Luca Potestagrave estima que esta revisatildeo do Enchiridion pode ter ficado

pronta no uacuteltimo ano do pontificado do papa Celestino III (papa de 1191-1198) ainda com

a funccedilatildeo de ldquosimplificar e sintetizar os resultados da obra maiorrdquo310

Uma comparaccedilatildeo entre a primeira redaccedilatildeo (Enchiridion iniacutecio da deacutecada de 1180) e

essa segunda redaccedilatildeo (Liber introductorius 1198) revela mudanccedilas por exemplo na postura

quanto ao Impeacuterio Germacircnico que eacute tratado de forma criacutetica no Enchiridion mas de forma

branda no Liber introductorius Afinal a monarquia Hohenstaufen antes temida por

Joaquim havia se manifestado concretamente apoacutes 1191 na figura generosa de Henrique VI

e suas doaccedilotildees para a casa de S Joatildeo de Fiore311

Com relaccedilatildeo ao Expositio in Apocalypsim como jaacute argumentado anteriormente ele

eacute o resultado de mais de uma deacutecada de trabalho e elaboraccedilatildeo Joaquim o comeccedilou ainda em

Casamari (1183-1184) e soacute o concluiu no final do seacuteculo A informaccedilatildeo sobre a conclusatildeo eacute

dada pelo proacuteprio Joaquim na Carta Testamentaacuteria (Expositio in Apocalypsim 1r) Se a data

de 1198 para o Liber introductorius estiver correta as repetidas referecircncias a ele encontradas

no interior do Expositio indicam que Joaquim usou o periacuteodo entre 1198 e 1200 para fazer

uma revisatildeo completa de seu grande comentaacuterio do Apocalipse312

43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim

O Expositio in Apocalypsim eacute certamente a maior obra de Joaquim de Fiore Nas

ediccedilotildees seiscentistas de Veneza o Expositio tem 224 foacutelios contra 135 da Concordia O

abade denominou o Expositio na sua Carta Testamentaacuteria de ldquoexpositione Apocalipsisrdquo

(Expositio in Apocalypsim 1r) Mas o que consistiria em termos formais esta ldquoexposiccedilatildeo

do Apocalipserdquo Ela natildeo segue a forma literaacuteria da Concordia nem do Psalterium ou

mesmo do Enchiridion Eacute importante neste caso aplicar ao Expositio uma questatildeo que jaacute

aplicamos ao Apocalipse de Joatildeo justamente porque a definiccedilatildeo do gecircnero literaacuterio de uma

obra eacute parte da escolha do autor para definir a forma como ele desejaria que seu livro fosse

309 POTESTAgrave op cit p 327 310 Idem p 329 311 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 108 312 POTESTAgrave op cit p 287

101

lido313 A obra de Joatildeo eacute enquanto gecircnero literaacuterio um ldquoapocalipserdquo e se insere na longa

tradiccedilatildeo literaacuteria judaica apocaliacuteptica que retrocede ao seacuteculo II antes de Cristo O Expositio

entretanto natildeo eacute um apocalipse antes eacute um comentaacuterio biacuteblico do Apocalipse

Um comentaacuterio biacuteblico eacute formalmente uma explicaccedilatildeo sistemaacutetica abrangente e

sequencial de um determinado livro da Biacuteblia cujo propoacutesito eacute adaptar o material biacuteblico

para as circunstacircncias das novas audiecircncias314 A explicaccedilatildeo de apenas algumas porccedilotildees

capiacutetulos versiacuteculos ou periacutecopes natildeo poderia formalmente ser definida como um

comentaacuterio jaacute que ele precisava cobrir todo o livro biacuteblico Por sequencial entende-se o

acompanhamento da estrutura do texto biacuteblico que se estaacute comentando No caso do

Apocalipse o comentarista o seguia nos blocos ou periacutecopes natildeo necessariamente versiacuteculo

a versiacuteculo ou capiacutetulo por capiacutetulo jaacute que essa padronizaccedilatildeo soacute comeccedilaria a partir do seacuteculo

XIII315

O embate narrado por Euseacutebio de Cesareacuteia entre o bispo Neacutepos e Dioniacutesio serve para

ilustrar a forma como o Apocalipse era usado nos trecircs primeiros seacuteculos (Histoacuteria

Eclesiaacutestica VII XXIV 1-9) Neacutepos era um quiliasta316 cuja mensagem enfatizava a

realidade de um futuro governo terreno de Cristo na terra Para se contrapor a uma exegese

alegoacuterica do Apocalipse que tentava minimizar a realidade histoacuterica deste reinado

messiacircnico este bispo do Egito escreveu um livro intitulado Refutaccedilatildeo dos alegoristas

Contra Neacutepos e seu livro se levantou Dioniacutesio que escreveu Sobre as promessas tambeacutem

para discutir o Apocalipse de Joatildeo Euseacutebio ainda narrou que neste periacuteodo aconteceu um

longo debate acerca da forma como o livro de Joatildeo deveria ser interpretado

O bispo de Cesareacuteia fala de dois liacutederes cristatildeos que escreveram textos e recorrem

parcialmente ao Apocalipse para defender suas ideias Em linhas gerais a maioria das

pessoas que recorriam ao Apocalipse neste periacuteodo o usa em contexto de polecircmica

doutrinaacuteria ou apologeacutetica para responder a uma heresia dar suporte a uma determinada

posiccedilatildeo teoloacutegica encorajar cristatildeos perseguidos Papias Justino Martir Irineu Tertuliano

313 Conferir esta discussatildeo no primeiro capiacutetulo desta tese 314 MATTER E Ann The Apocalypse in Early Medieval Exegesis In EMMERSON Richard K MCGINN

Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 38-50 p 38-

39 315 SMALLEY Beryl The study of the Bible in the Middle Ages Oxford Basil Blackwell 1952 p 222-224 316 O quiliasmo eacute definido por Wainwright como ldquoa crenccedila de que Cristo retornaraacute para a terra e inauguraraacute

uma era de prosperidade de mil anos sobre o planetardquo Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious

Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 21

102

Hipolitus Vitorino Lactantius Metodius e Comodianus317 Destes com exceccedilatildeo de

Vitorino todos fizeram uso apenas de pequenas porccedilotildees do Apocalipse

Eacute de Vitorino em diante que surge a praacutetica de comentar o Apocalipse inteiro ldquocomo

resposta a problemas particulares da igreja de cada eacutepocardquo318 O bispo de Pettau na Panocircnia

Superior romana escreveu um comentaacuterio ao Apocalipse em grego cerca do ano 300 Sobre

ele opinou Jerocircnimo ao falar da praacutetica de explicar um livro biacuteblico inteiro ldquoentre os latinos

por outra parte haacute um grande silecircncio exceccedilatildeo feita do maacutertir Vitorino de santa memoacuteria

que podia dizer com o apoacutestolo que apesar de carecer de eloquumlecircncia natildeo carecia de

ciecircnciardquo319 No Oriente o primeiro comentaacuterio em grego surgiu apenas no sexto seacuteculo de

um autor anocircnimo conhecido apenas como Ecumecircnio320 sendo seguido de perto pelo

Comentaacuterio de Andreas de Cesareia na Capadoacutecia321

O original grego do Comentarius de Vitorino estaacute perdido mas seu texto eacute bem

conhecido por meio da recensatildeo feita por Jerocircnimo para o Latim O bispo de Pettau morreu

no tempo das perseguiccedilotildees de Diocleciano e isso aparece marcado em sua interpretaccedilatildeo do

Apocalipse322 Ele entendia que os eventos narrados no livro de Joatildeo eram iminentes pois

diziam respeito agraves tribulaccedilotildees das igrejas de sua eacutepoca Ele segue a estrutura do Apocalipse

procurando destacar e explicar as passagens do texto joanino que julgava serem mais

difiacuteceis Ao comentar Apocalipse 20 Vitorino expressou a expectativa quiliasta de um reino

milenar de Cristo na terra

Assim pois os que natildeo tomarem a dianteira ao ressuscitar na primeira

ressurreiccedilatildeo e reinar com Cristo sobre toda a terra (super ordem) e sobre

todas as gentes (super gentes universae) ressuscitaratildeo ao toque da

trombeta final depois de mil anos (Commentarius in Apocalypsim 167-

169 PLS)323

Esta expectativa entretanto tornou-se um problema para a Igreja posterior a

Constantino e ao Edito de Toleracircncia de 313 em funccedilatildeo das novas formas eclesiaacutesticas e o

desenvolvimento de redes de relacionamento com o poder temporal324 Por isso a recensatildeo

317 WAINWRIGHT op cit CONSTANTINOU Eugenia Scarvelis Andrew of Caesarea and the Apocalypse

in the Ancient Church of the East Quebec Universiteacute Laval 2008 p 126 318 MATTER op cit p 38 319 Citado a partir de TORROacute Joaquiacuten Pascual Introduccioacuten general In VICTORINO DE PETOVIO

Comentaacuterio al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 9-26 p 11 320 ECUMENIO Comentario sobre el apocalipsis Madrid Cidad Nueva 2008 321 CONSTANTINOU op cit p 134 322 TORROacute op cit p 9 323 VITORINO DE PETOVIO Comentario al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 208-

209 324 MATTER op cit p 39

103

de Jerocircnimo procurou moldar a obra de Vitorino expurgando as afirmaccedilotildees milenaristas

fazendo-a corresponder a uma eacutepoca em que a Igreja estava em paz com o Impeacuterio e com a

sociedade A leitura literal do milecircnio foi transformada em leitura alegoacuterica Segundo

Jerocircnimo na sua revisatildeo do comentaacuterio de Vitorino de Apocalipse 20 ldquoo nuacutemero denaacuterio

significa o decaacutelogo e o centenaacuterio eacute a coroa da virgindaderdquo o que indicaria que o texto

joanino queria ensinar que os cristatildeos virgens natildeo apenas do corpo mas tambeacutem da liacutengua

e do pensamento seratildeo exaltados pelo Cristo do fim dos tempos325

Quase um seacuteculo depois de Vitorino outro autor resolveu escrever uma exposiccedilatildeo

completa do Apocalipse Ele eacute conhecido como Ticocircnio (330-395) e era membro da igreja

donatista do norte da Aacutefrica326 Ele expocircs todo o livro do Apocalipse utilizando os princiacutepios

que havia formulado numa outra obra intitulada Liber regularum327 O comentaacuterio de

Ticocircnio se perdeu mas estudiosos tecircm acesso aos princiacutepios que ele usou para escrevecirc-lo

bem como a reconstruccedilotildees parciais do seu conteuacutedo a partir das citaccedilotildees que dele fizeram

entre outros Primasio Beda e Beato de Liebana

As regras do Liber regularum levaram Ticocircnio a fazer uma leitura do Apocalipse

com ecircnfase na encarnaccedilatildeo de Jesus (Regra 1) no relacionamento entre o Antigo e o Novo

Testamento (Regra III) no simbolismo dos nuacutemeros (Regra V) na recapitulaccedilatildeo (Regra VI)

e na espiritualizaccedilatildeo do milecircnio com uma forte rejeiccedilatildeo do quiliasmo328

O proacuteximo exegeta latino a compor um comentaacuterio ao Apocalipse foi Primasio329

Sua obra Commentarius in Apocalypsim faz uma siacutentese de Vitorino e Ticocircnio Primasio

foi bispo de Justiniapolis no norte da Aacutefrica proviacutencia da Numidia de 527-565 num periacuteodo

de colapso da accedilatildeo imperialista bizantina Apesar de envolvido num clima de instabilidade

social o interesse do bispo africano continuou na linha de Jerocircnimo e Agostinho ao fazer

uma exegese alegoacuterica do Apocalipse330 Como o Apocalipse ainda natildeo tinha marcas de

capiacutetulo e versiacuteculo as definiccedilotildees estruturais do seu comentaacuterio se tornaram importantes na

interpretaccedilatildeo do livro joanino Ele o dividiu em cinco partes 1) sete igrejas 2) sete selos 3)

sete trombetas e a mulher ensolarada 4) as bestas da terra e mar as sete pragas e as sete

325 O texto de Vitorino estaacute publicado em duas seccedilotildees A superior apresenta o texto do proacuteprio bispo de Pettau

traduzido para o Latim A inferior registra a anaacutelise feita por Jerocircnimo sobre a exegese de Vitorino A anaacutelise

de Jerocircnimo mencionada no corpo deste texto estaacute em VITORINO DE PETOVIO op cit p 211 326 CALVO Juan Joseacute Ayaacuten Introduccioacuten In TICONIO Livro de Las Reglas Madri Cidad Nueva 2009 p

11-78 p 14 327 Idem p 28 328 Idem p 39-44 329 MATTER op cit p 41 330 Idem p 42

104

taccedilas 5) o cordeiro sobre o trono o novo ceacuteu e a nova terra331 Matter avalia que todos os

comentaristas do Apocalipse no Ocidente posteriores a Primasio ateacute o seacuteculo XII foram

influenciados por este comentaacuterio332

Autor Data Lugar

Primasio 540 Numiacutedia

Cesaacuterio de Arles 540 Sul da Gaacutelia

Apringius 550 Ibeacuteria

Cassiodoro 575 Sul da Itaacutelia

Beda 730 Northumbria

Ambrosio Autpert 760 Benevento

Beato de Liebana 780 Ibeacuteria

Alcuino 800 Franccedila

Haimo 840 Franccedila

Anocircnimo Seacuteculo IX Franccedila

Glossa Ordinaria 1100 Regiatildeo de Leon

O Beato de Liebana aleacutem de depender de Primasio recorreu pesadamente a Vitorino

e Ticocircnio Em funccedilatildeo do seu papel dentro do cristianismo hispacircnico do seacuteculo VIII os temas

recorrentes no seu comentaacuterio eram a santidade da Igreja e a defesa da divindade de Cristo

contra a teologia adocionista dos seguidores do bispo Elipando de Toledo333

Haacute no Beato uma combinaccedilatildeo significativa de exegese eclesiologia e cristologia que

se tornou recorrente em ambientes monaacutesticos a partir do seacuteculo VIII A perspectiva era de

que o Apocalipse deveria ser interpretado tendo como referecircncia a histoacuteria da Igreja na terra

Beda e Ambrosio Autpert incorporaram as contribuiccedilotildees de Primasio e se tornaram

as grandes bases de interpretaccedilatildeo do Apocalipse no periacuteodo caroliacutengio334 Por meio da obra

Explanatio Apocalypsis Beda apresenta a histoacuteria da Igreja e ao mesmo tempo mantem um

olhar sobre a histoacuteria de toda a criaccedilatildeo Ele fez uso das sete regras de Ticocircnio para descrever

sete periacuteodos da histoacuteria do mundo no Apocalipse 1) as sete igrejas da Aacutesia que descrevem

na realidade as igrejas de Cristo 2) os quatro animais e a abertura dos sete selos revelam os

331 Idem p 43 332 Idem p 44 333 Idem p 46 334 Idem p 47

105

conflitos futuros e triunfos da Igreja 3) as sete trombetas descrevem futuros acontecimentos

da Igreja 4) a Mulher e o Dragatildeo revelam as obras e vitoacuterias da Igreja 5) as sete pragas que

infestaratildeo a terra 6) o castigo da prostituta ou cidade iacutempia 7) a Jerusaleacutem como noiva que

desce do ceacuteu335

O comentaacuterio de Ambrosio Autpert construiu uma leitura alegoacuterica detalhada do

Apocalipse Foi escrito entre 758-767 no ducado Lombardo de Benevento Ele absorveu os

comentaacuterios de Vitorino Ticocircnio Primasio aleacutem das anaacutelises de Agostinho e Gregoacuterio o

Grande Ele estava motivado a fazer uma siacutentese de suas fontes com ecircnfase no ldquocasamento

espiritualrdquo entre Cristo e a Igreja336

Os comentaristas posteriores ao periacuteodo caroliacutengio insistiam em ver no Apocalipse

uma alegoria da histoacuteria da Igreja e procuravam nos comentaacuterios anteriores elementos para

apoiar seus pressupostos exegeacuteticos Haacute pouco interesse na perspectiva da iminecircncia do fim

do mundo que aparecia nos leitores quiliastas dos seacuteculo II e III A insistecircncia dos

comentaristas posteriores a Ticocircnio de rejeitar o quiliasmo levou a uma interpretaccedilatildeo do

Apocalipse que o entende como um guia para a Igreja na terra esperar a uniatildeo com uma

Igreja que jaacute se encontra no ceacuteu337

Neste sentido quando surgem no seacuteculo XII a Glossa ordinaria e os comentaacuterios

de Ruperto de Deutz o conteuacutedo tratado por meio de um comentaacuterio ao Apocalipse era de

cunho mais eclesioloacutegico do que escatoloacutegico Eacute nesta grande tradiccedilatildeo entatildeo que retrocede

a Vitorino e Ticocircnio no Ocidente e Ecumecircnio e Andreas de Cesareia no Oriente que se

insere o Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore

Ao discutir o gecircnero literaacuterio ldquocomentaacuterio biacuteblicordquo entretanto natildeo queremos indicar

que o milenarismo soacute poderia nele se manifestar Nem mesmo afirmar algum tipo de

dependecircncia do Expositio em relaccedilatildeo a um comentaacuterio especiacutefico338 O objetivo eacute demonstrar

que desde Vitorino existiu a praacutetica de comentar de maneira sistemaacutetica e abrangente o

livro do Apocalipse de Joatildeo Um comentaacuterio biacuteblico era um tipo de texto voltado

principalmente para a lideranccedila das igrejas mas com potencial de alcance muito maior jaacute

que logo era transformado em base para os sermotildees dos cleacuterigos339

335 Idem 336 Idem p 48 337 Idem 338 Os autores West e Zindars-Swartz encontram indiacutecio no Expositio de recurso a pelo menos dois comentaacuterios

latinos do Apocalipse Haimo de Auxerre e Beda Cf WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 37 339 Comparar com a anaacutelise de Raquel Parmegiani em PARMEGIANI Raquel de Faacutetima Leituras Medievais

do Apocalipse Comentaacuterio ao Beato de Liebana Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernardo do Campo v 23 n 36

107-125 2009 p 122-124

106

44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse

No Liber introductorius Joaquim explicitou o que o teria levado a escrever o

Expositio

Aceitei expor o Apocalipse que o beato Joatildeo isolado na ilha de Patmos

narrou a partir da sequecircncia de eventos (ex cuius serie) como eu penso (ut

ego extimo) para demonstrar claramente o que eu havia previsto e se estas

coisas satildeo dignas de maior aprofundamento de modo que possam incitar

ao desprezo do mundo (possint ad conseptus seculi) a esposa e os filhos do

reino e endossar a palavra do Senhor que disse ldquoexultai e erguei a cabeccedila

porque a vossa salvaccedilatildeo estaacute proacuteximardquo (Lucas 2128) (Expositio in

Apocalypsim 2b)340

Por meio do seu comentaacuterio ao Apocalipse de Joatildeo o abade queria promover o seu

ideal de pureza para a Igreja latina bem como produzir na audiecircncia do seu Expositio

ldquodesprezo pelo mundordquo (conseptus seculi) O termo conseptus traduzido por

constrangimento desprezo aparece num dicionaacuterio como ldquocom cerca ao redor derdquo ldquocercado

por todos os ladosrdquo ldquofechado completamenterdquo341 Neste sentido tanto Joatildeo quanto Joaquim

parecem se valer de seus textos para incitar e promover ascetismo entre suas respectivas

audiecircncias

Joaquim usou o Expositio para apresentar uma ldquohistoacuteria teoloacutegica do

Cristianismordquo342 narrando o desenvolvimento da Igreja Para o abade desde os dias do seu

aparecimento a Igreja estava se desenvolvendo na direccedilatildeo da sua mais plena expressatildeo

quando deixaraacute de ser a instituiccedilatildeo de Pedro e se transformaraacute na instituiccedilatildeo de Joatildeo um tipo

de monasticismo contemplativo no periacuteodo do descanso sabaacutetico343

Uma das metas de Joaquim era encontrar sentido na histoacuteria humana e ele entendeu

que o Apocalipse poderia ser a fonte para isso344 Ao encaminhar o Expositio para a cuacuteria

papal o abade de Fiore desejava disseminar a ideia de que uma cristandade reformada e

purificada era o objetivo de um processo histoacuterico dinacircmico que tinha suas raiacutezes na

340 Traduzido a partir de TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 80 341 DICIONAacuteRIO LATIM PORTUGUEcircS Porto Editora Porto 2001 p 171 342 POTESTAgrave op cit p 297 343 LERNER Robert E The medieval return to the thousand-year Sabbath In EMMERSON Richard K

MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 51-

71 p 57 344 SMALLEY op cit p 289 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the

Apocalypse In EMMERSON Richard K MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages

London Cornell University Press 1992 p 72-88 p 87

107

antiguidade da histoacuteria de Israel345 A chave para enxergar esta histoacuteria estava no uacuteltimo livro

da Biacuteblia o Apocalipse de Joatildeo

45 Resumo

Joaquim foi um notaacuterio da Calaacutebria que abraccedilou a vocaccedilatildeo monaacutestica depois de uma

peregrinaccedilatildeo agrave Palestina Ingressou num monasteacuterio em Corazzo e se esforccedilou para

incorporaacute-lo a Ordem Cisterciense mas abandonou-o para fundar uma casa monaacutestica nas

montanhas calabresas de Fiore Desde seu retorno agrave Calaacutebria ele manifestou o interesse em

promover ideias a respeito de uma eminente e imimente intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Sua estrateacutegia para divulga-las envolveu a produccedilatildeo de vaacuterios livros entre eles o Expositio

in Apocalypsim uma apresentaccedilatildeo da histoacuteria da Igreja na forma de um comentaacuterio ao

Apocalipse de Joatildeo

345 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 87

V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA

SICIacuteLIA

Em 1191 Joaquim desceu do isolamento de Fiore na Calaacutebria e foi ao encontro de

Henrique VI Imperador Germacircnico perto dos muros de Naacutepoles346 William II rei da

Siciacutelia morrera sem deixar herdeiros e a coroa do Reino fora entregue com o apoio da cuacuteria

romana para o conde Tancredo sobrinho do falecido rei O imperador entretanto entendia

que a coroa da Siciacutelia lhe pertencia Por isso atravessou a Itaacutelia e iniciou uma ofensiva contra

os aliados de Tancredo Joaquim foi ateacute o imperador cujas tropas estavam sofrendo com

uma epidemia e declarou que o evento era consequecircncia do juiacutezo divino Citando a

passagem biacuteblica de Ezequiel 26 Joaquim comparou o sul da Itaacutelia com Tiro e Henrique

com o rei da Babilocircnia Se o monarca persistisse Deus o derrotaria mas se ele se retirasse

em poucos anos Deus daria a ele a vitoacuteria sem que precisasse lutar347

Eacute difiacutecil saber como as palavras de Joaquim influiacuteram nos eventos que se seguiram

Talvez por causa da forccedila de resistecircncia dos aliados de Tancredo ou porque a ajuda naval

que Henrique esperava atrasara ou porque surgira problemas na Germacircnia que precisavam

de sua atenccedilatildeo no final o Imperador e seus cavaleiros voltaram para o norte dos Alpes

Poucos anos depois em 1194 Tancredo morreu e deixou a coroa da Siciacutelia para seu

pequeno filho chamado entatildeo de William III Novamente Henrique reclamou o Reino para

si e sua esposa Constacircncia princesa normanda filha legiacutetima de Rogeacuterio II o fundador do

Reino da Siciacutelia Segundo o Tratado de Veneza de 1177 entre o Reino da Siciacutelia e o Impeacuterio

Germacircnico caso William II morresse sem filhos Constacircncia sua tia seria a herdeira da

Coroa348 Desta vez Henrique entrou na Itaacutelia meridional atravessou o canal de Messina na

direccedilatildeo da Siciacutelia retirou sem grandes dificuldades o filho de Tancredo do trono venceu

pequenos focos de resistecircncia em Palermo e nesta mesma cidade na catedral real foi

coroado rei no natal de 1194 Com isso ele repetiu o gesto que o fundador do Reino Rogeacuterio

II realizara no natal de 1130

346 TURLEY Thomas Joachim of Fiore In EMMERSON Richard K (org) Key figures in medieval Europe

an encyclopedia New York Routledge 2006 p 372-374 p 373 347 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti

Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xix REEVES Marjorie The influence of

Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993

p 11 348 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south In ABULAFIA David (org) Italy in the Central

Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 58-81 p 69

109

Independentemente do papel de Joaquim nos eventos de 1191 ele deve ter sido

significativo porque outro encontro entre o abade de Fiore e o imperador germacircnico se deu

em Palermo Joaquim compareceu agrave coroaccedilatildeo e foi recebido respeitosamente Em outubro

de 1194 pouco antes de receber a coroa da Siciacutelia Henrique VI escreveu uma carta na qual

descreveu Joaquim como ldquoabade de Fiorerdquo e falou claramente do monasteacuterio de Satildeo Joatildeo

em Fiore antes mesmo de uma autorizaccedilatildeo papal para a fundaccedilatildeo da ordem Florense o que

soacute ocorreu em 1196349 Em marccedilo de 1195 Henrique escreveu outra carta garantindo a Satildeo

Joatildeo um dote anual de cinquenta moedas de ouro Bizantinas350 No pouco tempo que

Henrique sobreviveu a estes eventos (ele morreu em 1197) Joaquim e seus monges se

tornaram protegidos do imperador germacircnico e rei da Siciacutelia A rainha Constacircncia fez do

abade seu confessor pessoal ateacute morrer em Palermo em novembro de 1198

Joaquim de Fiore viveu num momento significativo da Itaacutelia meridional entre o auge

e o fim da dinastia normanda no Reino da Siciacutelia periacuteodo descrito pelo historiador inglecircs

Graham Loud como eacutepoca de ouro para o sul da Peniacutensula quando comparada com os

distuacuterbios sociais anteriores agrave chegada dos normandos e a crise da transiccedilatildeo dinaacutestica

posterior agrave morte de William II351 Foi uma eacutepoca em que reis da dinastia Hauteville

conseguiram unificar sob um mesmo governo toda a regiatildeo inferior ao Patrimocircnio de Satildeo

Pedro do rio Garigliano ateacute a ilha da Siciacutelia territoacuterio marcado fortemente pela presenccedila

grega e muccedilulmana espaccedilo de sobrevivecircncias interaccedilotildees e trocas culturais entre grupos

eacutetnicos e religiotildees distintas Espaccedilo onde mesmo o Cristianismo era pluralizado nas formas

grega e latina Para compreender o papel social e religioso do monge calabrecircs eacute importante

atentar para as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia meridional normanda

bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio Hohenstaufen Estes

elementos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim e seus objetivos enquanto

ermitatildeo monge abade escritor e fundador da Ordem Florense

349 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx 350 Idem 351 LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007

p 524

110

51 A chegada dos normandos

Os primeiros normandos chegaram ao sul da Itaacutelia por volta do ano 1000 em

circunstacircncias natildeo tatildeo claras Jaacute eacute possiacutevel discernir a presenccedila deles na revolta de nobres da

Apuacutelia contra autoridades bizantinas em 1017 e 1018352 O quadro encontrado na regiatildeo

manifestava uma divisatildeo poliacutetica complexa com estruturas culturais pluralizadas sem um

poder central Sob este contexto cavaleiros normandos se colocaram como mercenaacuterios a

serviccedilo da populaccedilatildeo lombarda contra os bizantinos de um territoacuterio lombardo contra outro

de liacutederes bizantinos contra sarracenos e eventualmente ateacute mesmo a serviccedilo dos

muccedilulmanos da Siciacutelia contra outros poderes em conflito na ilha353 Inicialmente eles natildeo

passavam de algumas dezenas de cavaleiros que vendiam seus serviccedilos a poderes locais em

vez de se reunirem sob a lideranccedila de outro normando

Nos principados e ducados lombardos eles encontraram um tipo de aristocracia

sobre a qual foram constituiacutedos como condes Em Apuacutelia a estrutura social em funccedilatildeo dos

traccedilos da administraccedilatildeo bizantina era baseada nos encastelamentos um tipo de cidadela ou

vila fortificada e um significativo nuacutemero de pequenos proprietaacuterios Estas vilas fortificadas

(castella) ficavam em posiccedilotildees estrateacutegicas e serviam como centros administrativos da

aristocracia local Na Calaacutebria um terceiro tipo de domiacutenio se manifestou atraveacutes da

construccedilatildeo de castelos utilizados para controlar a regiatildeo circundante por meio de tratados

com as cidades juramento de fidelidade e implementaccedilatildeo de tributos Apoacutes a conquista os

castelos foram entregues a parentes e vassalos dos normandos

Os assentamentos e conquistas dos normandos natildeo tinham como base algum tipo de

acordo amplo para a conquista da Itaacutelia meridional Na busca pelo domiacutenio das regiotildees os

proacuteprios normandos se envolviam em conflitos No final do seacuteculo XI entretanto dois

liacutederes de uma mesma famiacutelia assumiram o poder sobre quase todo o sul da Itaacutelia Roberto

Guiscard com o domiacutenio dos territoacuterios abaixo do Patrimocircnio de Satildeo Pedro ateacute a Calaacutebria

e seu irmatildeo Rogeacuterio de Hauteville que dirigiu a conquista da ilha da Siciacutelia

Roberto Guiscard morreu em 1085 deixando o territoacuterio conquistado para seus

filhos Rogeacuterio de Hauteville entretanto posteriormente conhecido como Rogeacuterio I

sobreviveu ao seu irmatildeo mais de uma deacutecada promovendo um estaacutevel governo sobre a

Siciacutelia O conde Rogeacuterio I se casou trecircs vezes mas foi com sua terceira esposa Adelaide

352 Idem p 17 353 CHIBNALL Marjorie The Normans Oxford Blackwell Publishing 2006 p 76

111

filha do marquecircs Manfredo de Savona do norte da Itaacutelia que ele teve seus herdeiros Simatildeo

e Rogeacuterio posteriormente Rogeacuterio II Sua morte em 1101 legou o condado da Siciacutelia para

seus filhos ainda menores Simatildeo era o sucessor imediato mas faleceu logo deixando

Rogeacuterio como uacutenico herdeiro Adelaide de Savona no periacuteodo de menoridade governou o

ducado Uma de suas accedilotildees foi levar a corte para Palermo na Siciacutelia que fora a sede do

domiacutenio muccedilulmano Em 1112 finalmente Rogeacuterio II assumiu o poder e no ano seguinte

Adelaide deixou a Siciacutelia para se casar com o rei Balduiacuteno de Jerusaleacutem354

52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia

A partir de 1121 Rogeacuterio II avanccedilou sobre a Calaacutebria agrave custa de seu primo o duque

William de Apuacutelia No ano seguinte jaacute era senhor de todo o territoacuterio calabrecircs e a partir de

1129 o sul italiano estava unificado sob um uacutenico poder mais uma vez coisa que natildeo

acontecia desde o imperador Justiniano no seacuteculo VI355 A extensatildeo do seu domiacutenio pela

Sicilia Calaacutebria Apuacutelia e outros territoacuterios que se estendiam quase ateacute Roma356 poderiam

justificar um status real mas a transiccedilatildeo para a monarquia teve como ponto de partida um

conflito dentro da Igreja de Roma

Em fevereiro de 1130 apoacutes a morte do papa Honoacuterio II um coleacutegio de cardeais

dividido provocou um cisma papal Anacleto II foi eleito papa e permaneceu em Roma

Inocecircncio II recebeu o tiacutetulo e deixou a cidade em busca de apoio357 Anacleto II recorreu ao

conde Rogeacuterio II da Siciacutelia com a disposiccedilatildeo de coroaacute-lo como rei em troca de proteccedilatildeo e

suporte financeiro Apoacutes a efetivaccedilatildeo do acordo nasceu o Reino da Siciacutelia atraveacutes da bula

papal de setembro de 1130 A coroaccedilatildeo se deu no natal deste mesmo ano na catedral de

Palermo358

Anacleto II morreu em 1138 e Inocecircncio II voltou para Roma como uacutenico papa Ele

declarou nulas todas as accedilotildees de Anacleto e ainda promoveu uma cruzada contra Rogeacuterio

354 MAYER Hans Eberhard The Latin east 1098-1205 In LUSCOMBE David (org) The New Cambridge

Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v V 4 p

644-674 p 648 355 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century In LUSCOMBE David (org) The New

Cambridge Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v

V 4 p 442-474 p 447 356 Conferir um mapa do Reino Normando da Siciacutelia no anexo 3 357 CHIBNALL op cit p 86 358 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 448

112

Aleacutem da inimizade papal a alianccedila entre um papa cismaacutetico e Rogeacuterio havia colocado o

Reino da Siciacutelia em conflito com as forccedilas do Impeacuterio Germacircnico e do Impeacuterio Bizantino

ambos se declarando senhores legiacutetimos da Itaacutelia meridional e rejeitando a prerrogativa

normanda

Mesmo assim a liga construiacuteda por Inocecircncio II para enfrentar o Reino da Siciacutelia natildeo

conseguiu impedir a estabilizaccedilatildeo e o desenvolvimento das estruturas monaacuterquicas359

Finalmente em julho de 1139 o proacuteprio papa foi capturado pelas forccedilas de Rogeacuterio II

forccedilando o reconhecimento da monarquia Rogeacuterio foi aclamado como Rei da Sicilia duque

da Apuacutelia e Priacutencipe de Caacutepua (Rex Siciliae ducatus Apuliae et principatus Capuae) Apoacutes

o fim de uma deacutecada de conflitos o rei Rogeacuterio finalmente conseguiu derrotar as grandes

frentes de oposiccedilatildeo ao Reino

Rogeacuterio II se casou trecircs vezes Com a primeira esposa Elvira filha de Alfonso VI de

Castela teve quatro filhos Rogeacuterio Anfusus Tancredo e William Casou-se ainda com

Sibilia filha do duque Hugo da Burgundia na Franccedila e por fim com Beatriz filha do conde

Rethel igualmente francesa360 Com esta uacuteltima ele teve uma filha que nasceu pouco depois

de sua morte Constacircncia posteriormente desposada por Henrique VI da Germacircnia

Quando Rogeacuterio II morreu em 1154 o sucessor escolhido William posteriormente

conhecido como William I ainda era uma crianccedila O reino precisou ser governado por

Beatriz durante o tempo de menoridade do novo rei Um periacuteodo de instabilidade poliacutetica se

manifestou principalmente na parte continental do reino e se estendeu por todo o tempo de

governo (1154-1166)361

Siciacutelia continuava debaixo da hostilidade do Imperador Germacircnico e do Impeacuterio

Bizantino A cuacuteria papal ainda era hostil com o argumento de que o reino fora reconhecido

por Inocecircncio II apenas sob coaccedilatildeo A nobreza das proviacutencias fronteiriccedilas como o

principado de Caacutepua e as bordas de Abruzzi entraram em revolta As cidades de Apuacutelia

igualmente saiacuteram do controle real e reivindicaram autonomia Mas novamente os

adversaacuterios do reino natildeo se juntaram e perseguiram propoacutesitos distintos O imperador

Frederico Barbarroxa precisou rapidamente se concentrar na luta contra as comunas do norte

da Itaacutelia o que deixou o reino circunstancialmente fora de suas investidas O papa Adriano

IV finalmente fechou um acordo com o rei William I em Benevento em 1156 que

359 Idem 360 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily

Mediterranean Studies State College Pennsylvania v 12 p 1-15 2003 p 12 361 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 454

113

restaurou as boas relaccedilotildees entre o Reino da Siciacutelia e o papado A ameaccedila de Bizacircncio por

sua vez conseguiu ser parcialmente neutralizada com um tratado em 1158

Mas se as ameaccedilas internacionais foram minimizadas principalmente por meio de

acordos a situaccedilatildeo interna do Reino ainda era conflituosa As agitaccedilotildees internas

acompanharam William I praticamente ateacute o fim do seu governo Ele morreu em 1166

deixando o reino para o filho igualmente chamado William ainda menor O reino foi

governado pela matildee do jovem sucessor a rainha Margarete filha do rei Garcia de Navarra

na Espanha ateacute 1171 quando William II atingiu a maioridade

William II como o pai viveu a maior parte de sua vida em seu palaacutecio em Palermo

governando por meio do coleacutegio familiares362 Ele conseguiu pacificar internamente o reino

inclusive trazendo de volta opositores que tinham sido exilados no governo anterior

Externamente os antigos adversaacuterios foram pacificados por meio de tratados O rei renovou

o tratado com o papado e com o Impeacuterio Bizantino Soacute faltava mesmo vencer a resistecircncia

do Impeacuterio Germacircnico o que foi alcanccedilado com o Tratado de Veneza de 1177 que

assegurou a treacutegua em troca do casamento da tia de William II Constacircncia com Henrique

VI filho de Frederico Barbarroxa O casamento aconteceu em Milatildeo em janeiro de 1186

Com esse acordo o Impeacuterio Germacircnico finalmente reconheceu a legitimidade do Reino da

Siciacutelia O preccedilo a ser pago foi a designaccedilatildeo de Constacircncia como herdeira da coroa real caso

William morresse sem herdeiros Quando o acordo foi feito a idade do rei e da rainha Joana

filha do rei Henrique II da Inglaterra era um fator de confianccedila na descendecircncia real A

maior probabilidade era que o casal viesse a ter um herdeiro o que automaticamente

invalidaria o direito de Constacircncia363 Mas este acordo com a Germacircnia colocou um fim na

dinastia Hauteville na Itaacutelia meridional jaacute que William II morreu bruscamente no dia 11 de

novembro de 1189 sem deixar herdeiros

53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen

A morte de William II foi seguida por uma divisatildeo dentro do reino Um grupo de

oficiais proeminentes da corte liderados por um membro do coleacutegio familiares Mateus de

Salerno levantou um candidato proacuteprio o conde Trancredo de Lecce primo de William II

362 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p

10-11 363 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 472

114

rejeitando os direitos de Constacircncia e Henrique Tancredo foi coroado rei em 18 de janeiro

de 1190 com o apoio do papado que natildeo desejava a uniatildeo do Reino da Siciacutelia com o Impeacuterio

Germacircnico364

Henrique ateacute tentou destituir Tancredo mas acabou retornando para a Germacircnia apoacutes

o cerco a Naacutepolis jaacute mencionado na abertura deste capiacutetulo Com isso Tancredo conseguiu

governar o Reino da Siciacutelia com o apoio da Igreja de Roma ateacute morrer em fevereiro de

1194 O filho de Tancredo William III foi declarado rei mas era apenas uma crianccedila

Henrique VI novamente reivindicou o direito sobre a coroa da Siciacutelia Desta vez suas

investidas foram mais eficientes Palermo caiu em novembro de 1194 e Henrique foi

coroado rei da Siciacutelia no dia 25 de dezembro na catedral da cidade

Mesmo que Constacircncia fosse uma herdeira normanda legiacutetima filha do fundador do

Reino Rogeacuterio II o rei agora era um monarca estrangeiro de linhagem germacircnica Frederico

II filho de Constacircncia e Henrique apoacutes a morte dos pais e um longo periacuteodo de menoridade

sob a tutela do papa Inocecircncio III implementaraacute um novo governo forte e centralizado365

Todavia mesmo carregando o sangue Hauteville por parte da matildee tambeacutem era herdeiro dos

Hohenstaufen por parte do pai Ele precisou se dividir em ser rei na Itaacutelia e Imperador na

Germacircnia

54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada

Em 1140 o filho mais velho do rei Rogeacuterio II e Elvira de Castela o duque Rogeacuterio

de Apuacutelia foi ateacute a regiatildeo central da Siciacutelia Ele precisava averiguar o patrimocircnio da coroa

que estava em uso irregular de um monasteacuterio grego O monasteacuterio em questatildeo era Satildeo

Cosme de Gonato que tinha se apossado de terras de cultivo algumas vinhas e um moinho

real O duque Rogeacuterio durante a investigaccedilatildeo interrogou o abade local Metoacutedio que alegou

ter recebido o patrimocircnio em possessatildeo durante a gestatildeo do governador Caid Maimunes366

Apoacutes a investigaccedilatildeo o duque Rogeacuterio emitiu um documento para o monasteacuterio em

1142 que comeccedilava com as seguintes palavras

364 Idem 365 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south op cit p 70 366 Conferir a anaacutelise deste evento bem como uma reproduccedilatildeo do documento em grego e espanhol em

ANDREacuteS Gregoacuterio de Um diploma griego del Duque Normando Roger Priacutencipe de Sicilia (A 1142)

Erytheia Revista de estuacutedios bizantinos y neogriegos Madri v 1 n 6 p 61-68 1985

115

Diploma dado por mim Rogeacuterio ilustriacutessimo Duque e filho do piedoso e

grande rei dirigido a ti Metoacutedio abade do monasteacuterio de Satildeo Cosme

chamado o Gonato situado nos montes de Petraacutelia no mecircs de abril dia 6

quinta-feira Depois que entrei em completo domiacutenio e governo da regiatildeo

de Petraacutelia que o poderosiacutessimo rei e meu pai me entregou chegou a meus

ouvidos que muitas e diversas pessoas tecircm se apossado de campos

cultivados e vinhas de domiacutenio real como se fossem proacuteprios367

Rogeacuterio argumentou que as posses eram da coroa e natildeo do governador e neste caso

a doaccedilatildeo fora irregular No decorrer do diploma Rogeacuterio reinvindicou a propriedade real

sobre o moinho mas ciente de que o monasteacuterio precisava dele prometeu um dote de trigo

anual procedente de terras reais com a ldquocondiccedilatildeo de que se rogue pela salvaccedilatildeo espiritual

do pai Rogeacuterio II e a matildee Elvira pela sua proacutepria e pela paz do mundordquo368 Quanto agraves terras

e vinhas Rogeacuterio tanto declarou-as como propriedade da Coroa como devolveu-as como

dote real definitivo para o monasteacuterio ldquoenquanto o mundo natildeo acabarrdquo369

Este evento bem como o diploma do conde Rogeacuterio apresentam um elemento

significativo do Reino da Siciacutelia no periacuteodo dos Hauteville elemento que apesar de se

alterar com o passar do tempo esteve presente ateacute o fim do seacuteculo XII a diversidade cultural

e religiosa bem como as interaccedilotildees franqueadas entre estas diversas culturas Trecircs grupos

sociais aparecem no diploma O normando representado pelo duque Rogeacuterio filho do rei

Rogeacuterio II o grego representado pelo abade Metoacutedio e seu monasteacuterio o aacuterabe

representado pelo Caid Maimunes administrador da regiatildeo de Petraacutelia370 O termo caid

era um vocaacutebulo de dignidade entre os sarracenos mas foi usado frequentemente no Reino

da Siciacutelia para descrever um muccedilulmano que se convertia ao cristianismo e atuava em algum

espaccedilo do governo geralmente na administraccedilatildeo financeira como coletor de impostos ou

tesoureiro

O monasteacuterio grego de Satildeo Cosme de Gonato na Petraacutelia evidencia a presenccedila de

diversas casas gregas espalhadas pelo reino isentas da jurisdiccedilatildeo episcopal latina que

viviam um tipo de monasticismo oriental basiliano Vaacuterios deles podem ter se instalado na

Itaacutelia meridional durante a perseguiccedilatildeo dos imperadores iconoclastas e sobreviveram na

Siciacutelia mesmo durante o domiacutenio muccedilulmano371

367 Idem p 66 368 Idem p 67-68 369 Idem p 68 370 Idem p 63 371 BUONAIUTI Ernesto Storia del Cristianesimo II - Evo Medio Milano DallOglio 1960 p 365

116

Em termos literaacuterios o diploma do duque Rogeacuterio de Apuacutelia foi escrito em grego

tendo em vista que o abade e seus monges eram gregos Possivelmente o duque Rogeacuterio I

instaurador da dinastia Hauteville na Siciacutelia tinha dificuldades com a liacutengua grega ou aacuterabe

e precisou da ajuda de autoacutectones para se comunicar com a populaccedilatildeo dominada Mas seu

filho Rogeacuterio II criado na Calaacutebria primeira sede do ducado natildeo apresentava a mesma

dificuldade Ele conhecia as liacutenguas grega e aacuterabe e marcou a corte do Reino da Siciacutelia com

elementos dessas culturas Quase todas as suas assinaturas sobreviventes foram escritas em

grego Selos reais continham a seguinte legenda grega ldquoRogerioj Krataioj Eusebhj Rhxrdquo

(ldquoRogeacuterio forte e poderoso reirdquo) Posteriormente ele acrescentou uma inscriccedilatildeo latina

ldquoRogerius Dei Gracia Sicilie Calabrie Apulie Rexrdquo (ldquoRogeacuterio pela graccedila de Deus rei da

Siciacutelia Calabria e Apuliardquo)372 Segundo Takayama tanto Rogeacuterio II quanto seus

descendentes William I e William II tiveram interesse em aprender artes e reuniram saacutebios

astroacutelogos filoacutesofos e geoacutegrafos de origem grega e aacuterabe no palaacutecio real de Palermo373 Este

historiador japonecircs avalia que ldquoos reis normandos da Siciacutelia com o suporte destes burocratas

gregos e aacuterabes eram reis cristatildeos mergulhados ateacute os joelhos nas culturas islacircmica e

gregardquo374

Em termos administrativos a Calaacutebria antes bizantina manteve muito de sua

estrutura administrativa sob o domiacutenio Hauteville O mesmo se deu na Siciacutelia com os

elementos estruturais criados pelos muccedilulmanos Em ambas as regiotildees oficiais indiacutegenas

locais continuaram sendo aproveitados pelos reis normandos na administraccedilatildeo do reino375

Apoacutes a unificaccedilatildeo em 1130 como parte da organizaccedilatildeo da coroa novas leis foram

criadas No prefaacutecio das Leis de Ariano de 1140 por exemplo a questatildeo das interaccedilotildees

culturais chama a atenccedilatildeo ao assinalar que ldquodiferentes povos sob o governo poderiam

manter seus proacuteprios costumes e leis desde que natildeo se colocassem em direto confronto com

as novas leis do Reinordquo376 Especialmente durante o governo de Rogeacuterio II os muccedilulmanos

poderiam guardar a lei coracircnica entre eles e os gregos o direito justiniano377

372 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p

5 373 Idem p 6 374 Idem p 15 375 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 460 376 Idem p 461 cf tambeacutem DRELL Joanna H Cultural syncretism and ethnic identity The Norman

lsquoconquestrsquo of Southern Italy and Sicily Journal of Medieval History Amsterdam v 25 n 3 p 187-202 1999

p 201 377 SZAacuteSDI LEON-BORJA Istvaacuten CORREIA DE LACERDA Vitaline Alfonso Henriques y Roger II de

Sicilia dos vidas paralelas de condes a reyes Una clave para la comprensioacuten del nascimento del Reino de

Portugal Estudios de Historia de Espantildea Buenos Aires v 13 p 55-72 2011 p 64 Hubert Houben

117

Isso significava a autorizaccedilatildeo para que os nativos italianos ainda chamados de

lombardos bem como gregos e muccedilulmanos permanecessem sob o poder de costumes

proacuteprios administrados por seus juiacutezes especialmente nas cidades ou por aristocratas que

possuiacuteam autoridade judicial em suas proacuteprias terras A justiccedila real se encarregaria

particularmente da ordem puacuteblica e das disputas de propriedade funcionando mais como

uma corte de apelaccedilatildeo378 Aleacutem disso especialmente na ilha da Siciacutelia sede do governo as

leis e decretos reais eram publicados em grego latim e aacuterabe379

Mesmo com as mudanccedilas demograacuteficas provocadas pelas migraccedilotildees latinas

favorecidas com a presenccedila do domiacutenio normando o Reino da Siciacutelia chegou ao final do

seacuteculo XII como uma entidade unificada politicamente mas pluralizada etnicamente380

fenocircmeno que Marjorie Chibnall definiu como ldquomulti-culturalrdquo381

No caso dos gregos havia uma presenccedila substancial desta populaccedilatildeo na ilha da

Siciacutelia e na Calaacutebria principalmente na parte sul desta proviacutencia Eles se concentravam tanto

nas cidades quanto nos campos onde construiacuteam suas igrejas com ritos e liturgia orientais382

Com a chegada dos Hauteville natildeo havia mais qualquer impedimento para que essa

populaccedilatildeo buscasse fazer novos membros atraveacutes do proselitismo O mesmo natildeo poderia

mais se dar por parte dos muccedilulmanos Isso fazia com que conversotildees de muccedilulmanos para

o cristianismo grego se tornassem um fenocircmeno relativamente frequente Jaacute a conversatildeo

muccedilulmana para o cristianismo latino era mais rara383

Em relaccedilatildeo ao elemento muccedilulmano Rogeacuterio I jaacute havia prometido no momento da

conquista natildeo promover accedilotildees agressivas contra essa parte da populaccedilatildeo da Siciacutelia As

maiores mesquitas foram confiscadas mas os muccedilulmanos receberam a garantia de que

poderiam praticar sua religiatildeo em troca do pagamento de uma taxa a gesia384 Nesta fase

entretanto problematiza esta questatildeo argumentando que ldquoa liberdade religiosa eram somente garantida onde

a maioria dos habitantes era muccedilulmana como era o caso de Palermo onde havia a necessidade de contiacutenua

cooperaccedilatildeordquo Cf HOUBEN Hubert Religious toleration in the South Italian Peninsula during the Norman and

Staufen Periods In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002 p

319-339 p 322 378 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 461 379 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 64 380 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 471 381 CHIBNALL op cit p 88 382 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in

Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 22 383 ABULAFIA David The Italian other Greeks Muslims and Jews In ABULAFIA David (org) Italy in

the Central Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 215-236 p 220 384 Idem p 223

118

da conquista o objetivo de Rogeacuterio era pragmaacutetico Ele precisava da populaccedilatildeo muccedilulmana

para dar estabilidade agrave ilha

Com o passar do tempo entretanto a populaccedilatildeo muccedilulmana declinou

substancialmente ateacute que durante o governo de Frederico II (rei de 1198-1250) natildeo

restassem mais do que 40 mil muccedilulmanos que acabaram sendo deportados para o

continente formando uma colocircnia em Lucera A causa mais imediata desse decliacutenio foi o

fluxo migratoacuterio de cristatildeos latinos para a ilha principalmente oriundos do norte da Itaacutelia

Mas outros fatores podem ser mencionados como a saiacuteda de muccedilulmanos para outros

espaccedilos de domiacutenio muccedilulmano como o norte da Aacutefrica a conversatildeo de muccedilulmanos para

o cristianismo mesmo que sob a forma de pseudo-conversatildeo e a escravizaccedilatildeo Os poucos

muccedilulmanos que ainda sobreviveram na Siciacutelia no seacuteculo XIII em sua maioria eram

escravos ou comerciantes

55 A Igreja no Reino da Siciacutelia

Formalmente o reino da Siciacutelia era um feudo papal da mesma forma que o ducado

de Apuacutelia e o principado de Caacutepua tinham sido a partir de 1059 Em 1130 o tiacutetulo real foi

dado pelo papa Anacleto II durante o cisma em 1139 Rogeacuterio II fez homenagem ao papa

Inocecircncio II em 1156 William I repetiu o gesto do pai diante de Adriano IV Ambos os reis

concordaram em pagar um census anual ao papado como recompensa pelo feudo385 Essa

relaccedilatildeo feudal entretanto precisa ser problematizada Os Hauteville jaacute eram governantes

antes de receberem o reconhecimento papal O domiacutenio natildeo foi criado pela homenagem

papal Eacute neste sentido que se daacute a sugestatildeo de Istvaacuten Szaacuteszdi Leoacuten-Borja e Vitaline Correia

de Lacerda de que este relacionamento feudal era parte de uma estrateacutegia dos liacutederes

normandos para obter o reconhecimento da Cristandade quanto a seus domiacutenios386 No caso

da igreja de Roma poderia ser uma estrateacutegia para aumentar a autoridade papal dentro do

reino o que natildeo aconteceu necessariamente apoacutes a fundaccedilatildeo do Reino da Siciacutelia em funccedilatildeo

do cisma papal A relaccedilatildeo entre a coroa e o papado foi difiacutecil principalmente entre 1139 e

1156 A reorganizaccedilatildeo episcopal feita na Siciacutelia a pedido do papa cismaacutetico Anacleto II

entre 1130-1131 especialmente era inaceitaacutevel para a cuacuteria papal

385 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 465 386 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 55

119

Aleacutem disso a forma como o duque e posteriormente rei Rogeacuterio II exercia o

controle sobre a Igreja dentro do seu territoacuterio era considerado uma infraccedilatildeo agrave autonomia da

igreja387 Suas accedilotildees tinham como fundamento um antigo acordo realizado por Rogeacuterio I e

o papa Urbano II para a organizaccedilatildeo da Igreja da Siciacutelia Em um dos elementos do acordo

o papa se comprometia a natildeo eleger o legado papal para a ilha sem a aquiescecircncia de Rogeacuterio

e na ausecircncia do legado o proacuteprio conde exerceria este papel388 Rogeacuterio II entendeu que

este benefiacutecio pouco usual para um leigo era hereditaacuterio e passou a agir como legado papal

na Siciacutelia389

Finalmente o Tratado de Benevento em junho de 1156 entre o papa Adriano IV e

William I marcou o fim do periacuteodo de hostilidade Graham Loud destaca trecircs aspectos do

tratado como significativos para as relaccedilotildees entre a coroa e o papado Primeiramente

Adriano IV recebeu a homenagem do rei normando e investiu-o no seu reino Com isso a

natureza hereditaacuteria do tiacutetulo real estava confirmada Em segundo lugar as fronteiras ateacute

entatildeo em disputa foram confirmadas comeccedilando em Abruzzi no norte e terminando na

ilha da Siciacutelia Terceiro os direitos reais sobre a Igreja do reino foram definidos Bispos e

abadias faziam suas proacuteprias eleiccedilotildees devendo o rei apenas aceitar ou vetar a escolha O

privileacutegio ainda dado por Urbano II a Rogeacuterio I foi confirmado mas exclusivamente para a

ilha da Siciacutelia no sentido de que os legados papais precisariam ser confirmados pelo rei e

na ausecircncia deles o proacuteprio rei exerceria este papel390

Com a chegada dos normandos a relaccedilatildeo entre igreja latina e grega sofreu o impacto

das mudanccedilas poliacuteticas391 Em 1059 Roberto Guiscard estabeleceu com o Papa Nicolau II o

compromisso de transferir para a jurisdiccedilatildeo papal todas as igrejas de seus domiacutenios Ele fez

juramento similar diante do papa Gregoacuterio VII em 1080 Em outros instantes entretanto o

liacuteder normando poderia dar um arcebispado ou um monasteacuterio importante sob seu domiacutenio

para um cleacuterigo de sua terra natal da Normandia ou Franccedila Contudo natildeo havia por parte

dos governantes algum movimento expliacutecito de latinizaccedilatildeo das igrejas gregas392 Isso porque

387 Idem p 465 388 Idem p 61 389 SKINNER Patricia Roger I (1031-1101 r 1085-1101) In EMMERSON Richard K (org) Key figures

in medieval Europe an encyclopedia New York Routledge 2006 p 575-576 p 574 390 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 164-165 391 HERDE Peter The Papacy and the Greek Church in the Sourthern Italy between the eleventh and the

thirteenth century In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002

p 213-251 p 216 392 Para James Morton a hipoacutetese de uma poliacutetica expliacutecita de latinizaccedilatildeo por parte dos normandos ou do

papado eacute fruto de uma perspectiva ldquofrancocecircntricardquo da histoacuteria medieval Cf MORTON op cit p 8

120

uma igreja grega poderia sobreviver debaixo da jurisdiccedilatildeo de um bispo latino desde que se

fizesse juramento de fidelidade ao bispo de Roma393 Bispos e cleacuterigos gregos poderiam

manter seus ofiacutecios e seus ritos bastando declarar ou admitir a prerrogativa papal de

primazia e o direito de investidura dos papas sobres os bispos da Itaacutelia394

Divergecircncias menores entre as duas igrejas poderiam aparecer no campo da

linguagem do rito e dos costumes Enquanto na Igreja Latina a liacutengua lituacutergica era o latim

na Igreja Grega a liacutengua era o grego395 Os ritos poderiam variar principalmente a Eucaristia

por causa da divergecircncia sobre o patildeo apropriado para a celebraccedilatildeo ou a mistura de aacutegua no

vinho No campo dos costumes debates poderiam aparecer a respeito das vestimentas dos

cleacuterigos e ateacute mesmo sobre a presenccedila ou ausecircncia de barba nos sacerdotes

A divergecircncia significativa entretanto estava no espaccedilo do dogma com a questatildeo

da claacuteusula filioque Do periacuteodo caroliacutengio para frente a Igreja latina passou a professar que

o Espiacuterito procedia do Pai e do Filho uma alteraccedilatildeo do antigo credo que os gregos nunca

aceitaram396

A questatildeo do celibato dos cleacuterigos era outro significativo elemento de distinccedilatildeo entre

igreja grega e latina Enquanto a Igreja Latina proibia bispos e sacerdotes de se casarem na

Igreja Grega eles poderiam continuar casados397 Na Itaacutelia meridional onde cleacuterigos gregos

e latinos viviam lado a lado era difiacutecil impor a observacircncia do celibato sobre todos os latinos

No iniacutecio do seacuteculo XIII Inocecircncio III demandou que bispos gregos da Itaacutelia

meridional atuassem apenas onde a populaccedilatildeo fosse exclusivamente grega e desde que estes

bispos gregos se submetessem ao papado Em dioceses onde a populaccedilatildeo contivesse a

presenccedila de gregos e latinos o bispo deveria ser latino Com o pontificado deste papa natural

de Anagni os ritos gregos passaram a ser limitados398 O resultado foi o desaparecimento da

Igreja Grega na Itaacutelia meridional convertida em latina com algumas poucas exceccedilotildees como

o monasteacuterio de Theotokos de Patiron em Rossano que permaneceu grego quanto agrave

linguagem e rito ateacute meados do seacuteculo XIX399

393 HERDE op cit p 217 394 Idem p 222 395 Idem p 224 396 Idem p 234 397 Idem p 237 398 Idem p 243 399 MORTON op cit p 6

121

56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda

A Itaacutelia meridional nos seacuteculos XI e XII contava com a presenccedila tanto do

monasticismo ocidental quanto do oriental O oriental especificamente era encontrado sob

algumas formas baacutesicas koinobion comunidades monaacutesticas vivendo segundo uma regra

em comum normalmente uacutenica para aquele monasteacuterio a lavra uma comunidade de

monges que viviam perto uns dos outros e compartilhavam serviccedilos lituacutergicos a kella que

era uma rejeiccedilatildeo da comunidade usualmente natildeo tendo mais do que um monge e seus poucos

disciacutepulos vivendo em uma caverna ou casa desabitada400

Segundo Morton em periacuteodos de crise econocircmica e social predominava o tipo anti-

comunitaacuterio Em periacuteodos de estabilidade poliacutetica e social predominavam as comunidades

melhor organizadas do tipo cenoacutebio401 O periacuteodo anterior agrave chegada dos normandos na Itaacutelia

Meridional foi marcado por instabilidade consequentemente com predomiacutenio do

monasticismo anti-comunitaacuterio com foco em ascetas individuais e itinerantes Estas

fundaccedilotildees monaacutesticas eram efecircmeras e sumiam assim que o fundador morria Os disciacutepulos

se juntavam em torno de uma pessoa e natildeo em torno de uma instituiccedilatildeo As comunidades

poderiam ter alguma propriedade mas eram relativamente independentes

As comunidades sentiam o impacto das invasotildees no sul da Itaacutelia que se sucederam a

partir da chegada dos lombardos no seacuteculo VI Lombardos sarracenos e bizantinos

disputaram a regiatildeo durante os seacuteculos anteriores agrave chegada dos normandos promovendo

instabilidade para as casas monaacutesticas O monasteacuterio de Monte Cassino pode ser um

exemplo neste caso A casa foi fundada na primeira metade do seacuteculo VI mas abandonada

em 581 durante as invasotildees lombardas Em 718 foi novamente povoada ateacute que em 883 foi

capturada pelos sarracenos Seus monges fugiram para a Campanha e parecem ter retornado

apenas algumas deacutecadas depois O periacuteodo das invasotildees era marcado por saques e violecircncias

contras as casas estabelecidas Em funccedilatildeo disso predominava no Sul o monasticismo

itinerante em torno de ascetas carismaacuteticos Quando a situaccedilatildeo poliacutetica ganhava alguma

estabilidade os novos poderes lombardos ou bizantinos imprimiam nas casas o caraacuteter

descentralizado da regiatildeo Os priacutencipes ou duques patrocinavam a reconstruccedilatildeo das casas

monaacutesticas mas sem organizaccedilatildeo ou centralizaccedilatildeo eclesiaacutestica Segundo Loud tanto o

400 Idem p 39 401 Idem p 40

122

papado quanto Bizacircncio tentaram controlar as casas e as igrejas do Sul com a criaccedilatildeo de

novos arcebispados gregos e latinos mas o resultado foi muito pequeno402

A maioria das fundaccedilotildees deste periacuteodo seguiam na teoria a Regra de Satildeo Bento

apesar das praacuteticas e costumes variarem consideravelmente Especialmente na Calaacutebria

havia uma grande presenccedila do monasticismo grego tanto na sua versatildeo cenobiacutetica quanto

na eremita

Apoacutes a consolidaccedilatildeo da conquista normanda os novos condes e duques logo se

tornaram tambeacutem patronos dos monasteacuterios gregos e latinos403 Em linhas gerais eles se

envolviam mais no patrociacutenio de casas monaacutesticas jaacute presentes na regiatildeo do que fundando

casas rivais Mesmo assim numerosas casas foram criadas pelos novos governantes Dos

cerca de 20 monasteacuterios gregos surgidos durante o governo do conde Rogeacuterio I ele esteve

pessoalmente envolvido em 14 deles404

Ateacute cerca de 1150 os maiores monasteacuterios do sul da Itaacutelia eram todos de rito

beneditino Monte Cassino Cava Venosa Lipari e Catania405 Segundo Loud ldquoa conquista

normanda sem duacutevida beneficiou o monasticismo beneditinordquo406 que ganhou a proteccedilatildeo dos

novos governantes expandiu suas congregaccedilotildees adquiriu novas propriedades e aumentou a

aacuterea geograacutefica de seus domiacutenios Montecassino liderou o processo de crescimento Durante

o periacuteodo de 1058-1105 este monasteacuterio recebeu 134 igrejas tanto por dote quanto pela

compra de igrejas subordinadas407 A forte criacutetica contra a igreja privada apesar de natildeo ter

eliminado completamente o fenocircmeno incentivou muitas transferecircncias de igrejas das matildeos

de leigos para instituiccedilotildees monaacutesticas

A conquista normanda poderia ter aberto o monasticismo meridional italiano para

influecircncias externas mas isso se deu de forma muito lenta Somente uma casa cluniesense

foi fundada na ilha da Siciacutelia durante o seacuteculo XII talvez sob o iacutempeto de Elvira a esposa

de Rogeacuterio II cujo pai Alfonso VI de Castela era um patrono do movimento de Cluny408

Outros novos movimentos religiosos tambeacutem natildeo tiveram impacto significativo no sul da

Itaacutelia antes do final do seacuteculo XII O conde Rogeacuterio I fundou uma casa Agostiniana em

402 LOUD G The Latin Church in the Norman Italy op cit p 35 403 MORTON op cit p 45 404 Idem p 50 405 Idem p 56 406 LOUD Graham H The Latin Church in the Norman Italy op cit p 430 Este historiador acrescenta ldquoas

pequenas casas independentes tendiam a ser absorvidas pelas congregaccedilotildees das grandes casas beneditinas e

novas fundaccedilotildees observavam a Regra de Satildeo Benedito desde o seu iniacuteciordquo Idem p 470 407 Idem p 434 408 Idem p 484

123

Bagnara sul da Calaacutebria em 1085 Posteriormente em 1090 convidou Bruno de Cologne

fundador da ordem Cartusiana para fundar uma comunidade na mesma regiatildeo em 1090

Comparado com o norte da Europa entretanto o nuacutemero destas casas sob o domiacutenio

normando era muito pequeno

Neste mesmo sentido se deu a chegada dos Cistercienses O primeiro monasteacuterio da

Ordem de Cister na regiatildeo foi Santa Maria Sambucina perto de Cosenza Calabria terra

natal de Joaquim de Fiore pouco antes de 1145409 Outro monasteacuterio cisterciense foi

estabelecido na Siciacutelia em Prizzi em 1155 mas como seu fundador esteve envolvido na

morte do primeiro ministro Maio de Bari isto tirou a possibilidade de que esta casa tivesse

progresso dentro do reino A proacutexima casa cisterciense fundada foi Santa Maria de Ferraria

na diocese de Teano principado de Caacutepua em 1171 como um priorado de Fossanova e se

tornou abadia de fato em 1184 Em 1188 o arcebispo Walter de Palermo converteu um

monasteacuterio grego na Calaacutebria que estava com dificuldades para recrutar novos membros

em uma casa da Ordem Em 1191 uma abadia cisterciense foi fundada em Palermo pelo

arcebispo Mateus mas esta ficou em dificuldades apoacutes a consagraccedilatildeo de Henrique VI jaacute

que foi organizada por algueacutem contraacuterio agrave chegada dos Hohenstaufen Com isso o imperador

entregou a casa agrave ordem dos Cavaleiros Teutocircnicos em 1197

Assim ainda em 1200 natildeo havia mais do que 13 abadias da ordem cisterciense no

reino da Siciacutelia em grande parte inseridas no movimento Cisterciense na uacuteltima deacutecada A

maioria destas fundaccedilotildees se deram por conversatildeo de casas jaacute estabelecidas jaacute que para

fundar uma casa nova era preciso o envio pela casa-matildee de pelo menos doze monges410 A

dificuldade que Joaquim teve para inserir o monasteacuterio de Corazzo na Ordem Cisterciense

parece indicar a forma lenta como a ordem se desenvolvia na Itaacutelia meridional dentro do

seacuteculo XII O monasteacuterio do qual ele fora abade entre 1177 e 1186 possivelmente jaacute seguia

os costumes de Cister antes mesmo de Joaquim ingressar na casa Enquanto abade ele fez

vaacuterios esforccedilos para concluir o processo de filiaccedilatildeo Para tanto era necessaacuterio que fosse

recebido por uma abadia que lhe servisse como casa-matildee Joaquim tentou essa filiaccedilatildeo com

duas abadias cistercienses e natildeo obteve sucesso Sambucina e Casamari A filiaccedilatildeo soacute se

completou quando a abadia de Fossanova uma das principais casas cistercienses do territoacuterio

papal recebeu Corazzo como casa-filha em 1188411

409 Idem p 486 410 Idem p 489 411 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx

124

A Ordem de Joaquim a Florense nasceu sob a inspiraccedilatildeo de Cister aprovada pelo

papa Celestino III em 1196 A Regra da nova ordem possivelmente era uma adaptaccedilatildeo

daquela que o abade jaacute seguia em Corazzo412 A Ordem Florense comeccedilou a se expandir

rapidamente depois de 1195 pelo menos ateacute o seacuteculo seguinte quando veio a estagnar413

Ela chegou a ter 60 casas mas 300 anos depois em 1505 a maioria dos membros se uniu

aos Cistercienses enquanto outros se juntaram aos Cartusianos ou Dominicanos414 De

qualquer forma seraacute no interior do movimento franciscano que Joaquim encontraraacute seus

principais seguidores

Ateacute o fim do periacuteodo normando o Reino da Siciacutelia manifestou um monasticismo

predominantemente beneditino com grandes casas dominando a regiatildeo continental Elas jaacute

existiam antes da chegada dos normandos poreacutem foram grandemente beneficiadas por eles

Elas conviviam ao lado de outros tipos de inspiraccedilatildeo ou movimentos religiosos como os

monasteacuterios gregos e os movimentos eremitas com seu ascetismo e desejo de reclusatildeo

Estes uacuteltimos em especial eram de curta duraccedilatildeo e logo eram inseridos nas tradiccedilotildees

beneditinas ou basilianas Apenas no final do seacuteculo XII as novas ordens religiosas

especialmente os cistercienses conseguiram ter um papel predominante na sociedade iacutetalo-

meridional

57 Resumo

Este capiacutetulo demonstrou o caraacuteter culturalmente plural do Reino da Siciacutelia espaccedilo

de convivecircncias trocas relacionamentos e conflitos entre normandos latinos gregos e

muccedilulmanos Esta sociedade viabilizou a manifestaccedilatildeo de praacuteticas sociais e religiosas de

uma forma rica com a presenccedila de igrejas gregas e latinas e monasticismos beneditinos e

basilianos frequentemente lado a lado O seacuteculo XII foi tambeacutem o periacuteodo em que a cuacuteria

romana expandiu seu controle sobre as igrejas e comunidades da Itaacutelia meridional a partir

de acordos com governantes normandos No fim do seacuteculo entretanto o poder sairia das

matildeos normandas para cair sob o controle da dinastia germacircnica Hohenstaufen Essa

412 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n

1 p 217-240 2004 p 219 413 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der

Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98 414 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5

125

conjuntura de instabilidade social provocada pela transiccedilatildeo poliacutetica acabaraacute transparecendo

no Expositio in Apocalypsim

VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA

DE JOAQUIM

Enquanto consomem textos leitores criam sentidos inventam significados Mas a

forma muacuteltipla como Joaquim fez isso produziu na historiografia curiosas avaliaccedilotildees O

historiador italiano Ernesto Buonaiuti descreveu a metodologia do abade de ldquoorgia

simboacutelicardquo415 A pesquisadora inglesa Marjorie Reeves resumiu sua obra como resultado de

uma ldquoimaginaccedilatildeo caleidoscoacutepicardquo em funccedilatildeo do enlace iacutentimo entre texto e imagem416 O

cardeal francecircs Henri de Lubac historiador da exegese medieval definiu seu pensamento

como ldquodesorbitadordquo pois gerava sem cessar siacutembolos e tipos que se entrelaccedilavam

cruzavam e harmonizavam entre si417 Este capiacutetulo descreveraacute as tais formas de leitura de

Joaquim e sua metodologia hermenecircutica em confronto com a tradiccedilatildeo exegeacutetica e com

padrotildees de leitura encontrados especialmente no chamado novo monaquismo418

61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo

Jean Leclercq estudioso francecircs da cultura monaacutestica419 sintetizou os usos da Biacuteblia

nas diversas esferas sociais e religiosas ocidentais entre Gregoacuterio Magno e o seacuteculo XII

sugerindo que era ela utilizada para auto-instruccedilatildeo e para o ensino puacuteblico manual para

catequeze livro base da adoraccedilatildeo puacuteblica e privada (gerando tanto a liturgia da comunidade

quando a piedade individual) fonte de material para a pregaccedilatildeo a arte e a iconografia

415 Citado por DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling

Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 47 416 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976 p

8 417 DE LUBAC La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 47 418 O termo ldquonovo monaquismordquo eacute aqui usado para fazer um contraponto ao monaquismo do tipo beneditino

(Monges Negros) Cf VAUCHEZ Andreacute A espiritualidade na Idade Meacutedia ocidental (seacuteculos VIII a XIII)

Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 p 86 LOGAN F Donald A history of the Church in the Middle

Ages London Routledge 2002 p 136-145 LAWRENCE C H El monacato medieval formas de vida

religiosa en Europa occidental durante la Edad Media Madrid Editorial Gredos 1989 p 234-239 419 Sua obra mais significativa neste campo eacute LECLERCQ Jean The love of learning and the desire for God

A study of monastic culture New York Fordham University Press 1961

127

Segundo Leclercq apesar destes usos amplos os principais inteacuterpretes das Escrituras cristatildes

eram encontrados no monasticismo420

Eacute certo que as casas monaacutesticas poderiam receber monges natildeo-letrados mas a

vivecircncia no seu interior requeria certo envolvimento com a cultura escrita Afinal eles

precisavam ler ou cantar na liturgia421 Aleacutem destas praacuteticas outras se somariam como o

manuseio a preservaccedilatildeo e a ilustraccedilatildeo de manuscritos Isso fazia do monasteacuterio um lugar

privilegiado para o desenvolvimento da leitura e interpretaccedilatildeo da Biacuteblia

Ainda segundo o estudioso francecircs no interior dos muros monaacutesticos os monges

imprimiam na praacutetica da leitura biacuteblica um traccedilo muito proacuteprio da clausura Sem grandes

controveacutersias teoloacutegicas quando comparado com os tempos patriacutesticos e com a

efervescecircncia intelectual da escolaacutestica apenas comeccedilando a tendecircncia geral era usar a

leitura biacuteblica como ferramenta da vida contemplativa422 O professor Reventlow

acompanhou Leclercq neste sentido generalizando que o objetivo dos leitores da Biacuteblia

nestes espaccedilos ateacute o seacuteculo XI seria meditar sobre o texto promover a adoraccedilatildeo e fomentar

a contemplaccedilatildeo423

Natildeo muito diferente do francecircs Leclercq e do alematildeo Reventlow o historiador

italiano Ambrogio Piazzoni tambeacutem entende a exegese monaacutestica como um modo particular

de interpretar a Escritura na Idade Meacutedia O professor da Universitagrave degli Studi della Tuscia

entretanto argumenta em prol de uma inflexatildeo significativa dos estudos biacuteblicos no final do

seacuteculo XI e durante o seacuteculo XII caracterizada por uma nova sensibilidade na leitura e no

uso dos textos424 Perspectiva semelhante levou de Lubac a intitular este revigoramento

biacuteblico de ldquouma nova primavera da exegeserdquo425 muito em funccedilatildeo dos representantes do

420 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard In LAMPE G W H (ed) The Cambridge

History of the Bible The West from the Fathers to the Reformation Cambridge Cambridge University Press

1969 p 183-197 p 184 421 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in

Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 3

Sobre este tema conferir uma antiga exortaccedilatildeo a este respeito presente na regra de Ferreol (553-581) bispo de

Uzegrave na Gaacutelia em PARKES Malcom La alta Edad Media In CAVALLO Guglielmo CHARTIER Roger

(eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 153-178 p 157 ldquoaquele que

deseja se chamar monge natildeo pode se permitir ficar na ignoracircncia das letrasrdquo (ldquoOmnis qui nomem vult monachi

vidicare litteras ei ignorare non liceatrdquo) 422 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard op cit p 184 423 REVENTLOW Henning Graf History of Biblical Interpretation From Late Antiquity to the End of the

Middle Ages Atlanta Society of Biblical Literature 2009 3 v V 2 p 172 424 PIAZZONI Ambrogio M Lesegesi neomonastica In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio

(eds) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 217-237 p 218 425 DE LUBAC Henri Medieval exegesis the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans

Publishing Company 2000 2 v V II p 151

128

chamado neomonasticismo destacadamente os cistercienses mas sem esquecer tambeacutem

alguns expoentes do ldquovelho monaquismordquo426

A praacutetica da leitura biacuteblica era um dos pilares da vida do monge Para um religioso

a Biacuteblia era nos termos de Piazzoni o livro de ldquocada dia todo o dia e muitas vezes ao

diardquo427 Ele percorria suas paacuteginas escutava sua leitura lia-a sozinho cantava-a com seus

irmatildeos na liturgia

A lectio428 monaacutestica poderia ser ilustrada pelo testemunho do cartusiano Guigo II

abade entre 1174 e 1180 da casa-matildee da Ordem dos Cartuxos em Saint-Pierre-de-

Chartreuse na Franccedila Segundo este abade o desenvolvimento espiritual comeccedila com a

lectio passa pela meditatio conduz agrave oratio e conclui com a contemplatio Eacute uma escala

ascendente429 Neste mesmo sentido registrava ainda um opuacutesculo anocircnimo destinado aos

novos monges ldquoQuando ler procure o sabor e natildeo o saberrdquo (ldquoSi ad legendum accedat non

quaerat scientiam sed saporemrdquo) E acrescentava ldquono momento da leitura poderaacute

contemplar e orarrdquo (ldquoin ipsa lectione poterit contemplari et orarerdquo)430 Desta forma a lectio

entrava na vida do monge como uma forma de oraccedilatildeo ou culto

Esta exegese monaacutestica se fundava sobre as bases de um relacionamento contiacutenuo

com o texto sagrado de uma memoacuteria impregnada das Escrituras Como resumiu ainda

Piazzoni era uma memoacuteria visual de palavras escritas muscular de palavras pronunciadas e

auditiva de palavras escutadas431 O aspecto visual nascia tanto das leituras quanto das

representaccedilotildees da Biacuteblia em imagens espalhadas por quadros esculturas e iacutecones nas

paredes nas colunas e nos tetos das construccedilotildees O aspecto muscular se desenvolvia por

causa da leitura em voz alta ao articular-se as palavras lidas com a boca432 A leitura era

murmurada mesmo se feita sozinha o que gerou a expressatildeo ruminatio433 Como

426 PIAZZONI op cit p 218 427 Idem p 219 428 Leitura e explicaccedilatildeo das Escrituras Cf BLAISE Albert Lexicon Latinitatis Medii Aevi Turnholti

Typografhi Brepols 1975 p 528 429 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 221 430 Idem p 222 431 Idem 432 Ao menos para a alta Idade Meacutedia cf PARKES op cit p 160 Segundo Hamesse essa praacutetica de leitura

sofreu uma profunda transformaccedilatildeo no seacuteculo XII em funccedilatildeo de novos padrotildees exercitados nas escolas ou

universidades Cf HAMESSE Jacqueline El modelo escolastico de la lectura In CAVALLO Guglielmo

CHARTIER Roger (eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 179-210

p 207 Entretanto o argumento de Hamesse natildeo impede a perspectiva de que estas ldquonovidadesrdquo natildeo alteraram

a ruminatio entre os monges 433 O termo ldquoruminatiordquo vem do verbo ldquoruminarerdquo que expressa a ideia de ruminaccedilatildeo girar na mente accedilatildeo

cotidiana Cf LEWIS Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p

1604 Albert Blaise entatildeo preferiu traduzir como ldquocantar sozinhordquo Cf BLAISE op cit p 806

129

consequecircncia tambeacutem da memoacuteria muscular desenvolvia-se a memoacuteria auditiva enquanto

ouvia a proacutepria voz ou em funccedilatildeo de outros processos em que o monge escutava a leitura

Biacuteblica implementados na liturgia na pregaccedilatildeo ou durante as refeiccedilotildees

A praacutetica de ruminar a Biacuteblia de ldquomastigaacute-lardquo todo o dia e o dia todo criava o

fenocircmeno da reminiscecircncia Assim para explicar uma passagem da Biacuteblia o monge fazia

uso de outra passagem que em sua mente se associava remanejando suas frases e

construindo novos textos Neste sentido Piazzoni argumenta que certo desprendimento em

relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo eacute um significativo traccedilo da exegese monaacutestica e neomonaacutestica do seacuteculo

XII Guilherme (1085- 1148) abade de Sant-Thierry escreveu ldquoA escritura deve ser lida no

espiacuterito em que foi gerada Neste espiacuterito deve ser compreendidardquo434 Segundo ele o mesmo

Espiacuterito que inspirou os textos estaria com aqueles que entatildeo os interpretavam

Ruperto (1075-1130) abade na cidade germacircnica de Deutz representante do

monasticismo beneditino insistia que a interpretaccedilatildeo da Biacuteblia depende de uma

compreensatildeo especial que eacute dom do Espiacuterito Santo dom esse similar agravequele que ele deu aos

apoacutestolos para que pudessem compreender o Antigo Testamento Quem recebe tal dom de

interpretaccedilatildeo tem o dever de expor o que percebe na Biacuteblia Ele afirmou assim a existecircncia

de um ldquodom da exegeserdquo nos moldes dos antigos dons do apostolado e profecia435 o que

promovia a autonomia do inteacuterprete em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde

Neste sentido tambeacutem o cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153) que insistia

que tudo na Biacuteblia tinha um sentido para o leitor e nenhum detalhe dos textos biacuteblicos

poderia ser negligenciado Como os textos tinham vaacuterios sentidos Deus o mestre das

Escrituras ajudaria os leitores a compreender da mesma forma como ajudou os autores a

escrever O resultado desta leitura sagrada eacute entatildeo um cacircntico de amor (carmen spiritus) um

ato lituacutergico Cada leitor da Biacuteblia poderia ser inspirado quase como os proacuteprios autores

originais o que justificaria a diversidade de interpretaccedilatildeo dos textos sagrados436

A exegese praticada por representantes tanto do antigo monasticismo quanto das

novas casas monaacutesticas ocidentais no seacuteculo XII conhecia os sentidos tradicionais praticados

desde Oriacutegenes (185-254) histoacuterico alegoacuterico tropoloacutegico e anagoacutegico437 Este sistema de

alegorizaccedilatildeo foi desenvolvido de acordo com o qual quatro significados deveriam ser

434 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 223 435 Idem p 228 436 Idem p 229 437 Uma anaacutelise diacrocircnica dos quatro sentidos pode ser encontrada em DE LUBAC Henri Medieval exegesis

the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2000 2 v V I p 15-

267

130

procurados em cada texto biacuteblico O nuacutemero de sentidos variava entre os autores Alguns

trabalhavam com dois sentidos outros com ateacute sete Mas o nuacutemero mais frequentemente

usado era quatro438 Um pequeno diacutestico presente na obra Rotulus pugillaris do dominicano

Agostinho de Dacia em 1260 ilustra os quatro sentidos ldquoA letra nos mostra os eventos a

alegoria nos mostra a feacute o significado moral nos ensina a agir a anagogia nos indica para

onde vamosrdquo439

Os monges dos tempos reformistas em funccedilatildeo do anseio pela contemplaccedilatildeo tinham

o sentido tropoloacutegicomoral como alvo maior A letra deveria ser superada em prol de um

sentido mais elevado de compreensatildeo das Escrituras O resultado eacute uma leitura biacuteblica

interiorizante ldquoespiritualrdquo que prosperava dentro do monasteacuterio Do lado de fora dos seus

muros entretanto outro padratildeo de hermenecircutica comeccedilava a se fortalecer em que se

buscava natildeo mais a meditatio mas a disputatio Esta forma extra claustrum de interpretaccedilatildeo

biacuteblica feita por pessoas ldquoque por meios escolaacutesticos se enchem de conhecimentordquo (ldquoqui

scholastica inflantur scientiardquo)440 aborrecia alguns monges entre eles o autor do Expositio

in Apocalypsim

62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo

No iniacutecio do Expositio Joaquim resumiu sua maneira de relacionar Biacuteblia e histoacuteria

O primeiro dos trecircs status dos quais noacutes falamos era no tempo da Lei

quando o povo do Senhor serviu como uma crianccedila pequena por um tempo

debaixo dos elementos (rudimentos) do mundo Eles natildeo estavam

habilitados ainda a alcanccedilar a liberdade do Espiacuterito ateacute que venha de quem

se disse ldquoSe o Filho libertar vocecircs vocecircs verdadeiramente seratildeo livresrdquo

(Joatildeo 866) O segundo status estava sob o Evangelho e permaneceu ateacute o

presente com liberdade em comparaccedilatildeo com o passado mas natildeo com

liberdade em comparaccedilatildeo com o futuro Porque o Apoacutestolo disse ldquoAgora

noacutes conhecemos em parte e profetizamos em parte o que eacute perfeito tiver

vindo o que eacute em parte passaraacuterdquo (1Coriacutentios 1312) E em outro lugar

ldquoOnde o Espiacuterito do Senhor estaacute aqui haacute liberdaderdquo (2Coriacutentios 317) Por

conseguinte o terceiro status viraacute ao se aproximar o fim do mundo natildeo

distante sob o veacuteu da carta mas na plenitude do Espiacuterito quando apoacutes a

destruiccedilatildeo e cancelamento do falso evangelho do Filho da Perdiccedilatildeo e seus

profetas aqueles que ensinaratildeo a muitos sobre justiccedila seratildeo como o

438 TRACY Robert TRACY David A short history of the interpretation of the Bible Minneapolis Fortress

Press 1984 p 136-145 439 ldquoLittera gesta docet quid credas allegoria Moralis quid agas quo tendas anagogiardquo Citado a partir de

DE LUBAC Henri Medieval exegesishellip v I op cit 1 440 Expressatildeo de Joaquim de Fiore no Tractatus Super Quatuor Evangelia citado a partir de DE LUBAC La

posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 16

131

esplendor do firmamento e como as estrelas para sempre (Expositio in

Apocalypsim 5r-v)441

Nesta mesma passagem algumas linhas agrave frente o abade faz referecircncia a uma certa

forma de ler e interpretar a Biacuteblia ldquoA carta do Primeiro Testamento parece por certa

propriedade de semelhanccedila pertencer ao Pai A carta do Novo Testamento pertence ao Filho

Entatildeo a compreensatildeo espiritual que procede de ambos pertence ao Espiacuterito Santordquo Mas que

hermenecircutica ldquoespiritualrdquo eacute essa que Joaquim chamou de ldquonovo tipo de exposiccedilatildeordquo (ldquonovo

saltem generi exponendirdquo)442 Ela seria ldquonovardquo em que sentido

A insistecircncia do abade em chamar sua forma de exponere a Biacuteblia de ldquonovardquo indica

algum tipo de insatisfaccedilatildeo com as metodologias exegeacuteticas que ele encontrou nos espaccedilos

religiosos Isso pode ter relaccedilatildeo com sua ansiedade apocaliacuteptica Apoacutes uma peregrinaccedilatildeo agrave

Palestina ele possui a convicccedilatildeo de que a humanidade estaacute se aproximando de um estaacutegio

histoacuterico decisivo Ele deseja compreender estes sinais dos tempos e procura ler os textos

biacuteblicos agrave procura de uma explicaccedilatildeo religiosa Contudo as ferramentas exegeacuteticas

disponiacuteveis natildeo lhe satisfazem ou pelo menos lhe parecem ineficientes para interpretar os

textos sagrados e encontrar algum sentido para a conjuntura histoacuterica dos seus dias Seria

preciso entatildeo elaborar uma metodologia ldquonovardquo para interpretar a Biacuteblia e a histoacuteria443

Essa perspectiva de ldquonovidaderdquo em Joaquim tambeacutem teria relaccedilatildeo com sua

compreensatildeo da natureza da exegese Como Ruperto de Deutz jaacute anteriormente

mencionado o abade parece falar de um ldquodom da exegeserdquo uma capacitaccedilatildeo sobrenatural

necessaacuteria para apreender o que natildeo estaria disponiacutevel para a compreensatildeo de todos As

passagens da Biacuteblia natildeo conteriam apenas palavras e frases acessiacuteveis de imediato a qualquer

leitor mas igualmente misteacuterios (mysteria) e segredos (secreta) especialmente relacionados

com os propoacutesitos divinos quanto agrave histoacuteria humana

Para Joaquim o Apocalipse de Joatildeo narraria a histoacuteria de como Deus entregou um

livro para o Cordeiro fechado com sete selos (Apocalipse 51-14) Esta narrativa biacuteblica

indicaria que o sentido dos personagens e dos eventos da histoacuteria humana estatildeo encobertos

A revelaccedilatildeo se encontraria inteiramente nas matildeos do Cristo do Apocalipse Estava completa

441 Traduccedilatildeo a partir de MC GINN Bernard Visions of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages

New York Columbia University Press 1979 p 133-134 442 O verbo ldquoexponerordquo pode ser traduzido como ldquorevelaccedilatildeordquo ldquoexposiccedilatildeordquo ldquoproduccedilatildeordquo Cf BLAISE op cit

p 363 443 REVENTLOW op cit p 173 tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval a compreensatildeo

espiritual de Joaquim de Fiore Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 35 p 99-118 2012 p 101

132

mas escondida tornando-se disponiacutevel apenas com ajuda divina Sem este amparo os textos

biacuteblicos seriam hermeacuteticos pelo menos no que tange ao sentido ldquoespiritualrdquo jaacute que sentidos

inferiores ainda poderiam ser acessados pela razatildeo humana (como os escolaacutesticos ldquoinchados

de ciecircnciardquo que ele critica) Em outras palavras para o abade algumas coisas estatildeo

encobertas outras estatildeo escondidas algumas pessoas podem acessar as coisas encobertas

outras somente compreendem a superfiacutecie dos textos sagrados

Entre as coisas escondidas na Biacuteblia estatildeo os eventos e tribulaccedilotildees do final dos

tempos os falsos profetas os anticristos e a materializaccedilatildeo do reino divino na histoacuteria Deus

por meio de Cristo teria disponibilizado uma ldquocompreensatildeo espiritualrdquo a algumas pessoas

permitindo a elas adentrarem as profundezas das Escrituras e alcanccedilarem os segredos e

misteacuterios Joaquim faz assim uma distinccedilatildeo entre a capacidade de ler as Escrituras e a de

penetrar nos misteacuterios sagrados por meio de uma diferenciaccedilatildeo entre pessoas naturais (viri

animales) e pessoas espirituais (viri spirituales) Os misteacuterios da Escritura seriam

conhecidos apenas das pessoas espirituais jaacute que as naturais natildeo os podem perceber A

praacutetica da interpretaccedilatildeo biacuteblica ldquoespiritualrdquo consequentemente se daria pela obtenccedilatildeo da

ldquointeligecircnciardquo necessaacuteria por meio da iluminaccedilatildeo do Espirito Santo que permitiria aos assim

escolhidos (electi) duas coisas a capacidade de discernir a Biacuteblia e a habilidade de entender

o sentido da histoacuteria especialmente os ldquosinais dos temposrdquo444

Joaquim se apoiava em ideias paulinas como a oposiccedilatildeo entre compreensatildeo natural

e espiritual (1Coriacutentios 26-16) e a indicaccedilatildeo de uma forma infantil em oposiccedilatildeo agrave uma

forma adulta de entender as coisas de Deus (1Coriacutentios 139-12)445 Como consequecircncia ele

afirma pelo menos dois tipos de interpretaccedilatildeo uma que trabalha com a letra (secundum

litteram) e outra que se move para um niacutevel mais profundo (secundum spiritum)

A partir destes dois procedimentos baacutesicos (segundo a letra e segundo o espiacuterito) o

abade daacute mais um passo na estruturaccedilatildeo do seu meacutetodo relacionando a lectio com a Trinitas

Desta reflexatildeo trinitaacuteria surgiu o conjunto das ferramentas do seu sistema hermenecircutico

composto por trecircs partes a concordia equivalente agrave leitura segundo a letra e a alegoria e a

444 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 19 445 Esta segunda passagem de Paulo eacute uma das preferidas de Joaquim retornando constantemente em suas

explicaccedilotildees metodoloacutegicas ldquoPorque em parte conhecemos e em parte profetizamos Quando poreacutem vier o

que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino falava como menino sentia

como menino pensava como menino quando cheguei a ser homem desisti das coisas proacuteprias de menino

Porque agora vemos como em espelho obscuramente entatildeo veremos face a face Agora conheccedilo em parte

entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Coriacutentios 139-12)

133

tipologia como leituras espirituais446 Jaacute que a Trindade eacute formada por trecircs pessoas divinas

que atuam como se fossem uma soacute as ferramentas exegeacuteticas de Joaquim tambeacutem deveriam

operar como se fossem apenas uma Somadas elas resultam na denominada ldquonova forma de

exposiccedilatildeordquo

Mas seria realmente ldquonovardquo esta metodologia exegeacutetico-hermenecircutica A resposta

da historiografia eacute dupla neste caso A tendecircncia eacute afirmar algum tipo de viacutenculo tradicional

ao mesmo tempo em que se indica em que sentido seu caminho poderia ser novo como o

professor Rossatto ao considerar que Joaquim teria partido da tradiccedilatildeo por assumir e

revigorar antigos meacutetodos de interpretaccedilatildeo poreacutem simultaneamente proposto um modo

ineacutedito de compreensatildeo no caso a concordia447 Isso significa dizer que a primeira parte do

sistema eacute nova enquanto a segunda jaacute era longamente utilizada pelos inteacuterpretes da Biacuteblia

A historiadora italiana Tagliapietra explica esta relaccedilatildeo entre novidade e tradiccedilatildeo

com o recurso aos jaacute mencionados quatro sentidos da exegese medieval O sentido literal foi

transformado por Joaquim na sua concordia A alegoria foi multiplicada pelo abade em cinco

tipos diferentes (histoacuterica moral tropoloacutegica contemplativa e anagoacutegica) A estes o abade

acrescentou o antigo meacutetodo da tipologia subdivido em sete formas diferentes Como

resultado os sentidos tradicionais se transformaram nas matildeos do abade em doze

possibilidades de significaccedilatildeo448 Contudo ele natildeo os chama todos do mesmo jeito Apenas

trecircs satildeo denominados ldquosentidosrdquo a letra (concordia) a alegoria (allegoricus intellectus) e a

tipologia (intelligentia typica)449 As demais divisotildees satildeo chamadas de espeacutecies (species)

inteligecircncias espirituais (inteligentiae spirituales) ou interpretaccedilatildeo espiritual (mystica

interpretatio)

Assim em siacutentese o sistema hermenecircutico de Joaquim de Fiore se articula sobre trecircs

bases a exposiccedilatildeo dos diversos tipos de alegoria dos diversos tipos de tipologia e a

concordia que funciona como o elemento que coloca o sistema em movimento450

446 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 101 447 Idem p 100 448 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 26 449 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 44 450 SANTI op cit p 261

134

63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde

A noccedilatildeo fundamental do sistema exegeacutetico de Joaquim eacute chamada por ele de

concordia Blaise no seu Lexicon Latinitatis Medi Aevi traduz o substantivo feminino

concordia como entre outras acepccedilotildees ldquoato de organizarrdquo e o verbo concordiare como

ldquofazer acordordquo451 Outro uso muito comum aparece em Suetocircnio (69-141) historiador dos

doze ceacutesares que apresenta uma divindade chamada Concordia a quem os romanos

dedicavam cultos e festas apoacutes distuacuterbios beacutelicos especialmente no final de uma guerra civil

(De vita caesarum III 20)452 Como antocircnimo de discordia o termo era relativamente

frequente tanto na prosa quanto na poesia latina

Mas como as palavras natildeo satildeo estaacuteticas e podem variar de sentido com o tempo e a

situaccedilatildeo Tagliapietra analisou as ocorrecircncias de concordia em Joaquim de Fiore e reuniu

quatro possibilidades de significado harmonia semelhanccedila correlaccedilatildeo e compensaccedilatildeo A

ldquoharmoniardquo poderia lembrar ao leitor moderno o sentido de sinopse como exemplificado

pelo Diatessaron de Taciano (120-180) que resumiu quatro evangelhos de Jesus em uma

uacutenica narrativa Jaacute ldquosemelhanccedilardquo tem relaccedilatildeo com paralelismo e aparece no tiacutetulo da obra

mais conhecida de Joaquim (Liber de Concordia Novi ac Veteris Testamenti) que comeccedila

com a expressatildeo ldquoIncipit praephatio libri concordantiarumrdquo (1r) O terceiro significado

ldquocorrelaccedilatildeordquo tem ligaccedilatildeo com periodizaccedilatildeo da histoacuteria uma espeacutecie de lei estrutural do

curso do tempo ou uma filosofia da histoacuteria O quarto significado ldquocompensaccedilatildeordquo indica

que cada pessoa cada evento da histoacuteria reverbera no futuro segundo uma reserva de

sentido fazendo com que o estudo do passado se torne tambeacutem um exerciacutecio de vaticiacutenio453

O proacuteprio Joaquim deu a sua definiccedilatildeo do termo concordia ldquouma similaridade de

igual proporccedilatildeo entre o Novo e o Antigo Testamentos igual eu digo quanto ao nuacutemero natildeo

quanto a dignidaderdquo454 (Liber de Concordia 7rb) Ele a ilustrou com a imagem de uma

estrada contiacutenua que liga uma cidade a um deserto cujos viajantes passam por vales e

montanhas Nos vales eles podem admirar a paisagem Nas montanhas eles conseguem ver

451 BLAISE op cit p 222 452 Esta eacute a referecircncia especiacutefica ldquoDedicavit et Concordiae aedem item Pollucis et Castoris suo fratrisque

nomine de manubiisrdquo Uma traduccedilatildeo seria Tibeacuterio ldquodedicou um templo agrave deusa Concordia e outro a Castor e

Polux em seu nome e em nome de seu irmatildeordquo Conferir uma ediccedilatildeo biliacutengue em SUETONIUS Lives of the

Caesars Cambridge Harvard University Press 1979 2 v V 1 p 322 Outra traduccedilatildeo para o inglecircs pode ser

encontrada em SUETONIUS Lives of the Caesars Oxford Oxford University Press 2000 p 109 453 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 21-25 454 ldquoConcordiam proprie esse dicimus similitudinem eque proportionis novi ac veteris testamenti eque dico

quo ad numerum non quo ad dignitatemrdquo

135

o que veio antes e o que vem depois Ele costumava usar tambeacutem duas imagens biacuteblicas para

explicar sua ferramenta metodoloacutegica os dois querubins que estavam sobre a tampa da arca

(Ecircxodo 2520)455 e as duas rodas da visatildeo de Ezequiel (Ezequiel 116)456 No primeiro caso

duas figuras angelicais estatildeo voltadas uma para a outra em cima da arca da alianccedila No

segundo caso duas rodas giram uma dentro da outra embaixo do trono-carruagem de Javeacute

A primeira imagem reforccedila o senso de paralelismo entre os dois testamentos (concordia

duorum testamentorum) jaacute que um se volta para o outro No caso da segunda imagem ela

desenvolve o sentido de correlaccedilatildeo entre os trecircs status (concordia trium statuum) ao apontar

para eventos que se desenvolvem dinamicamente na histoacuteria

Tanto no caso dos dois testamentos quanto no dos trecircs estados o meacutetodo da

concordia consiste entatildeo em encontrar posiccedilotildees semelhantes de pessoas e eventos dentro

de tempos (tempora ou status) diferentes e apontar em que sentido eles satildeo similares (em

caracteriacutesticas ou atos)457 Um exemplo poderia ser dado pelo caso do patriarca Jacoacute que

ocupa a mesma posiccedilatildeo dentro do primeiro status que o homem Jesus ocupa no segundo

Ocupando posiccedilotildees semelhantes no interior de seus respectivos status eles manifestam atos

espirituais parecidos e exercem papeis religiosos paralelos Entretanto natildeo satildeo iguais em

dignidade Eacute isso que significa ser ldquosimilar quanto a nuacutemerordquo e natildeo quanto a ldquodignidaderdquo

As pessoas ocupam as mesmas posiccedilotildees em suas proacuteprias geraccedilotildees e tecircm papel semelhante

mas natildeo possuem o mesmo status espiritual O homem Jesus foi maior em dignidade que

Jacoacute o que significa dizer que ele possuiacutea uma compreensatildeo espiritual maior e realizou obras

maiores458

Joaquim comeccedila o exerciacutecio de sua concordia por meio da distinccedilatildeo entre histoacuteria

geral e histoacuteria especial Segundo o abade

Toda a floresta de histoacuterias que ofusca o Antigo Testamento eacute dividida em

cinco partes das quais uma eacute geral e quatro satildeo especiais Porque haacute uma

roda que tem quatro faces Existe uma histoacuteria geral agrave qual quatro histoacuterias

especiais satildeo unidas A histoacuteria geral eacute aquela que comeccedila no iniacutecio do

mundo e caminha direto ateacute o livro de Esdras [] Existem quatro histoacuterias

especiais pequenas das quais a primeira eacute Joacute a segunda eacute Tobias a

terceira eacute Judite e a quarta eacute Ester Aquela eacute a roda Estas satildeo as faces

(Enchridion super Apocalypsim 2r-3r)459

455 ldquoOs querubins estenderatildeo as asas por cima cobrindo com elas o propiciatoacuterio estaratildeo eles de faces voltadas

uma para a outra olhando para o propiciatoacuteriordquo (Ecircxodo 2520) 456 ldquoO aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o berilo tinham as quatro a mesma aparecircncia

cujo aspecto e estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outrardquo (Ezequiel 116) 457 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip p 79 458 Idem 459 Traduccedilatildeo a partir da versatildeo italiana GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Traduzione e cura di

Andrea Tagliapietra Milano Feltrinelli 2008 p 133

136

O que ele chama de ldquohistoacuteria geralrdquo eacute uma grande narrativa presente no Antigo

Testamento que parte do livro de Gecircnesis e se estende ateacute a obra de Esdras Usando a

imagem das duas rodas concecircntricas de Ezequiel o abade denomina esta ldquohistoacuteria geralrdquo de

ldquoroda exteriorrdquo agrave qual estatildeo vinculadas quatro pequenas histoacuterias (denominadas ldquohistoacuterias

especiais) presentes em obras menores Joacute Tobias Judite e Ester As histoacuterias especiais se

vinculam agrave roda exterior como as ldquoluzesrdquo nas rodas da visatildeo ezequieacutelica460

A operaccedilatildeo da concordia encontrou esta mesma estrutura no Novo Testamento

Tambeacutem nele haacute uma histoacuteria geral e quatro histoacuterias especiais Joaquim identificou a

histoacuteria geral com o Apocalipse de Joatildeo enquanto as quatro especiais correspondem aos

quatro evangelhos canocircnicos Mateus Marcos Lucas e Joatildeo E se o Antigo Testamento

forma a roda exterior o Apocalipse corresponde agrave roda interior da visatildeo do profeta do exiacutelio

babilocircnico Como satildeo duas rodas concecircntricas ambas giram de forma paralela de tal

maneira que uma pessoa dotada da ldquointeligecircncia espiritualrdquo poderia perceber os eventos que

se repetem Voltando a uma imagem anterior a concordia eacute a estrada que liga as duas rodas

permitindo aos viajantes visualizar por meio de suas montanhas o que jaacute aconteceu e o que

estaacute por acontecer461

Sendo assim como insistiu o professor Emmett Randolph Daniel o que acontece na

concordia natildeo pode ser confundido nem com alegoria nem com tipologia Seu trabalho

precede as outras duas atividades hermenecircuticas do abade462 Este sentido ldquosegundo a letrardquo

era a percepccedilatildeo de narrativas biacuteblicas como uma descriccedilatildeo natildeo apenas do que teria

acontecido mas tambeacutem do que ainda aconteceria Por meio destas narrativas seria possiacutevel

discernir o passado o presente e futuro463 Natildeo haacute na concordia uma relaccedilatildeo horizontal entre

anuacutencio e realizaccedilatildeo como na tipologia ou vertical entre letra e espiacuterito como na alegoria464

O que haacute eacute um paralelismo histoacuterico dinacircmico e progressivo

460 Na visatildeo de Ezequiel aparentemente haviam luzes que brilhavam tanto na roda exterior quanto na interior

enquanto o trono de Deus se movia (Ezequiel 11-25) 461 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 78 462 Idem p 79 tambeacutem MC GINN Bernard Visions of the Endhellip op cit p 126-141 WEST ZIMDARS-

SARTZ op cit p 42 463 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard

K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-

88 79 464 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 106 DE LUBAC Henri La posteridad

espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 44

137

64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas

Durante um dos mais antigos exerciacutecios exegeacuteticos conhecidos de Joaquim presente

no primeiro sermatildeo do Praephatio super Apocalypsim datado para o iniacutecio da deacutecada de

1180 no periacuteodo em que ainda era abade de Corazzo apoacutes usar a concordia para apontar

paralelos entre as doze tribos de Israel e a histoacuteria da igreja ele afirma ldquoMas deixemos estas

coisas no invoacutelucro externo da noz para mostrar agora algo de sua casca de maneira que

num terceiro momento possamos extrair um viscoso alimentordquo465

Mais agrave frente apoacutes algumas frases ele retoma a imagem da noz ldquoEis que jaacute eacute viziacutevel

o nuacutecleo que estava encoberto pela casca aparece a verdadeira vida que os panos envolviam

no sepulcrordquo466 Desta vez ele faz alusatildeo ao sepultamento de Jesus e aos panos que

envolviam seu corpo467

As imagens das camadas da noz e do corpo enrolado pelos panos refletem o convite

do abade para ir aleacutem da concordia dos textos biacuteblicos coisa que ele colocou em praacutetica em

suas vaacuterias obras de exposiccedilatildeo biacuteblica (entre elas o Expositio in Apocalypsim) movendo-se

de uma compreensatildeo segundo a letra para justificar uma compreensatildeo segundo o espiacuterito (da

concordia para os princiacutepios espirituais)468

Neste processo contiacutenuo de aprofundamento na direccedilatildeo do ldquoviscoso alimento da

nozrdquo ele toma a alegoria469 e a subdivide em cinco princiacutepios alegoacutericos Por que cinco A

Trindade tambeacutem usada para justificar as trecircs partes de sua metodologia (concordia

alegoria e tipologia) agora eacute usada como base para as cinco subdivisotildees alegoacutericas

465 O sermatildeo eacute o Apocalipsis liber ultimus citado a partir de ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao

Apocalipse op cit p 460 466 Idem p 461 467 ldquoTomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lenccediloacuteis com os aromas como eacute de uso entre os judeus

na preparaccedilatildeo para o sepulcrordquo (Joatildeo 1940) 468 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 46 Estes princiacutepios espirituais satildeo derivados da operaccedilatildeo

alegoacuterica e tipoloacutegica Uma descriccedilatildeo das duas tradiccedilotildees pode ser encontrada em YOUNG Frances

Alexandrian and Antiochene Exegesis In HAUSER Alan J WATSON Duane F (eds) A history of biblical

interpretation The Ancient Period Grande Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2003 2 v V

1 p 334-354 469 Segundo Stefaniw este tipo de interpretaccedilatildeo concebia o texto como um meio de revelaccedilatildeo de misteacuterios

escondidos ldquopor traacutes das letrasrdquo Cf STEFANIW Blossom Reading Revelation Allegorical Exegesis in Late

Antique Alexandria Revue de lrsquohistoire des religions Paris n 2 p 231-251 2007 p 231-232 Ulleacuten distingue

alegoria como gecircnero literaacuterio como utilizado por Dante na obra ldquoDivina Comeacutediardquo de alegoria como forma

de interpretaccedilatildeo Aparentemente o primeiro fenocircmeno nasceu em consequecircncia do segundo que por sua vez

eacute tatildeo antigo quanto as primeiras interpretaccedilotildees dos eacutepicos de Homero Sua definiccedilatildeo de alegoria como meacutetodo

hermenecircutico eacute ldquouma forma sistemaacutetica de compreender o texto que se baseia em uma norma

intersubjetivamente determinadardquo Cf ULLEacuteN Magnus Dante in Paradise The End of Allegorical

Interpretation New Literary History Baltimore v 32 n 1 p 177-199 2001 p 183

138

Sua confissatildeo trinitaacuteria foi resumida por West e Zimdars-Swartz como ldquoDeus eacute um

Deus sem confusatildeo de pessoas e trecircs pessoas sem divisatildeo de substacircnciardquo470 Ele faz uma

distinccedilatildeo das trecircs Pessoas divinas baseadas em sua origem O Pai natildeo eacute gerado (ingenitus)

o Filho eacute gerado pelo Pai (genitus) e o Espiacuterito Santo procede de ambos (ab utroque

procedens) Associado com a origem das Pessoas da Trindade estaacute tambeacutem o relacionamento

entre elas expresso na forma como satildeo nomeados O Pai eacute assim chamado porque tem um

Filho igualmente o Filho porque tem um Pai jaacute o Espiacuterito eacute assim nominado porque

procede de ambos O abade entatildeo enumera as cinco possiacuteveis relaccedilotildees entre as Pessoas

divinas ligando cada uma com um tipo diferente de alegoria

ndash alegoria histoacuterica a relaccedilatildeo do Pai com o Filho afinal ele eacute Pai de um Filho

ndash alegoria moral a relaccedilatildeo do Filho com o Pai afinal ele eacute Filho de um Pai

ndash alegoria tropoloacutegica a relaccedilatildeo entre o Pai e o Filho com o Espiacuterito afinal este vem

de ambos

ndash alegoria contemplativa a relaccedilatildeo do Filho e do Espiacuterito com o Pai afinal ambos

satildeo enviados pela primeira Pessoa divina

ndash alegoria anagoacutegica a relaccedilatildeo das trecircs Pessoas com cada criatura afinal as trecircs satildeo

Deus e Criador471

Como jaacute indicamos Joaquim soacute denominava de ldquosentidosrdquo a concordia a alegoria e

a tipologia As subdivisotildees (tanto da alegoria quanto da tipologia) por sua vez ele as

denomina species ou intelligentia Assim a primeira species de alegoria eacute a historica

intelligentia ou compreensatildeo histoacuterica Apesar do nome ela natildeo corresponde agrave letra do

texto mas indica o significado de um evento ou figura histoacuterica como exemplo de uma

condiccedilatildeo espiritual Joaquim ilustrou esta species com as duas esposas de Abraatildeo A alegoria

histoacuterica veria em Sara a representaccedilatildeo de uma mulher livre enquanto Hagar representaria

uma escrava Este sentido alegoacuterico teria um caraacuteter mais cognoscitivo apesar de

implicitamente convidar agrave associaccedilatildeo com a esposa livre em vez da escrava

A alegoria moral (moralis intelligentia) indica que haacute uma semelhanccedila entre coisas

visiacuteveis e coisas invisiacuteveis que se exprime na forma de uma qualidade eacutetica Sara neste niacutevel

representaria o prazer espiritual enquanto Hagar a escravidatildeo da carne Esta secunda

species alegoacuterica quer fornecer ensinamentos e demandas de ordem moral

470 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 53 Para uma anaacutelise da doutrina trinitaacuteria em Joaquim cf

ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 471 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 44 tambeacutem TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo

Gioachimita op cit p 27-28

139

A alegoria tropoloacutegica (tropologica intelligentia) tem relaccedilatildeo com doutrina Neste

niacutevel o inteacuterprete busca reforccedilos e componentes para a doutrina cristatilde Nele Hagar significa

a letra enquanto Sara significa a compreensatildeo espiritual da Palavra de Deus

A alegoria contemplativa (contemplativa intelligentia) centraliza-se na vida

contemplativa e nos dons do Espiacuterito Santo Por exemplo Hagar significa a vida ativa

enquanto Sara significa a vida contemplativa

A alegoria anagoacutegica (anagogica intelligentia) a quinta species convida para a

prospectiva escatoloacutegica tradicional com o olhar para o mundo transcendental para aleacutem da

histoacuteria e por meio da oposiccedilatildeo ceacuteu-terra Neste caso Hagar significa a vida presente

enquanto Sara indica a vida futura

Apesar de apresentar o meacutetodo472 nas suas maiores obras de exposiccedilatildeo biacuteblica

(Expositio in Apocalypsim Psalterium decem Chordarum e Tractatus super quatuor

Evangelion) o abade nem sempre faz uso dos cinco princiacutepios alegoacutericos ou mesmo indica

qual princiacutepio estaacute usando em cada caso Eacute comum que ele apenas indique que um

personagem ou evento ldquosignificardquo ou ldquodesignardquo outra coisa

65 Sensus typicus histoacuteria e profecia

Durante os trecircs meses passados em Corinto entre os anos 55 e 56 ao escrever sua

epiacutestola para os disciacutepulos de Roma o apoacutestolo Paulo tratou da relaccedilatildeo entre Adatildeo e Jesus

(Romanos 514) descrevendo o primeiro como uma ldquofigura do que haveria de virrdquo (ldquoτύπος

τοῦ μέλλοντοςrdquo) Os termos usados foram o substantivo ldquoτύποςrdquo e o verbo ldquomέλλwrdquo O

primeiro significa ldquosinal marca vestiacutegio imagem figura tipo modelo exemplordquo473 A

segunda palavra pode ser traduzida como ldquodever estar destinado ardquo que daacute origem agrave forma

adjetivada do verbo (ldquoo` mέλλwnrdquo) o melhor o aguardado o futuro474

Em termos semacircnticos um ldquotipordquo era a marca impressa de um golpe em entalhe ou

em relevo de tal forma que um aponta para a outro Mas o uso que Paulo fez do termo jaacute lhe

deu um sentido hermenecircutico Ele o usou para descrever uma releitura das Escrituras

judaicas agrave luz da sua feacute em Jesus como o Messias

472 Em especial na segunda parte do Liber de Concordia 473 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 464 474 Idem p 300

140

Posteriormente autores cristatildeos do seacuteculo II como Tertuliano de Cartago

latinizaram o termo (typos) mas tanto em autores gregos ou latinos (Melito de Sardes

Justino Irineu Clemente de Alexandria Oriacutegenes Cipriano de Cartago Tertuliano) a

praacutetica de Paulo continuou a ser exercida geralmente com o propoacutesito de encontrar nas

Escrituras judaicas as promessas que se cumpriram na vida de Jesus ou como uma estrateacutegia

para vincular estas mesmas Escrituras com o Novo Testamento cristatildeo em formaccedilatildeo475 A

tipologia se constituiu entatildeo como uma ferramenta usada pelos exegetas cristatildeos a partir do

segundo seacuteculo para ver unidade entre as Escrituras judaicas e cristatildes como uma linha

horizontal de continuidade e progresso histoacutericos que culmina em Jesus e no

Cristianismo476

Eacute entatildeo este antigo procedimento que Joaquim usaraacute na sua proacutexima fase exegeacutetica

As cinco espeacutecies de alegoria formam apenas um momento de sua interpretaccedilatildeo e

normalmente natildeo constituem o final do processo477 No manejo da tipologia natildeo se trata

mais de opor verticalmente letra e espiacuterito como na alegoria mas de relacionar uma letra

com outra letra um elemento com outro elemento segundo uma dinacircmica horizontal de

promessa e cumprimento478

De qualquer forma apesar da metodologia tipoloacutegica jaacute ser conhecida na tradiccedilatildeo

exegeacutetica cristatilde o uso que dela faz Joaquim tambeacutem natildeo deixa de ser singular A forma

como o abade relacionava histoacuteria e Escritura o levou a natildeo ver mais distinccedilotildees entre ambas

Assim enquanto a tipologia claacutessica interrompia o fluxo tipoloacutegico nos eventos do Novo

Testamento Joaquim ampliou o olhar do exegeta encontrando antiacutetipos em toda a histoacuteria

da Igreja479

475 Conferir esta anaacutelise em ETCHEVERRIacuteA Ramoacuten Trevijano La Biblia em el cristianismo antiguo

Prenicenos Gnoacutesticos Apoacutecrifos Estella Editorial Verbo Divino 2001 p 92-108 476 Natildeo se sustenta mais um reducionismo que vincula a tipologia a uma ldquotradiccedilatildeo antioquianardquo e a alegoria a

uma ldquotradiccedilatildeo alexandrinardquo Tanto tipologia quanto alegoria satildeo efetivamente ferramentas hermenecircuticas que

tecircm como meta ir aleacutem da ldquoletrardquo ou do sentido mais imediato das palavras Etcheverriacutea chega a classificar a

tipologia como um tipo de alegoria Ambas satildeo ldquoformas de representaccedilatildeordquo como tambeacutem a metaacutefora a

metoniacutemia e a sineacutedoque Cf ETCHEVERRIacuteA op cit p 85 Aleacutem do mais mesmo em um exegeta

ldquorepresentativordquo da denominada escola antioquiana como Teodoro de Mopsueacutestia (350-428) eacute possiacutevel

encontrar o uso tanto da alegoria quanto da tipologia Cf WILES M F Theodore of Mopsuestia as

representative of the antiochene school In ACKROYD P R EVANS G F (eds) The Cambridge history

of the Bible from the beginnings to Jerome Cambridge Cambridge University Press 1970 3 v V 1 p 489-

509 477 SANTI op cit p 263 478 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 28 479 A estrutura ldquotipordquo e ldquoantiacutetipordquo natildeo daacute conta da praacutetica joaquimita Tipo seria a promessa antiacutetipo o

cumprimento Em Joaquim o fenocircmeno poderia ser descrito como ldquotipo-tipo-antiacutetipordquo

141

A tipologia em Joaquim fornece significado a eventos e personagens histoacutericos no

formato de anuacutencio e realizaccedilatildeo mas hierarquiza-os no interior dos trecircs status do mundo

Adatildeo personagem do primeiro status corresponderia a Cristo um tipo mais elevado do

segundo Ambos convergem entretanto num antiacutetipo ainda mais superior que se

concretizaraacute num personagem futuro do terceiro status

O abade de Fiore denominou a tipologia de ldquosensus typicusrdquo ou inteligecircncia tiacutepica

e a subdividiu em sete species baseadas numa estrutura derivada igualmente de sua

especulaccedilatildeo trinitaacuteria correspondendo agraves sete possiacuteveis formas de uma pessoa professar a

Trindade 1) sob o sinal do Pai 2) sob o sinal do Filho 3) sob o sinal do Espiacuterito 4) sob o

signo do Pai e do Filho 5) sob o signo do Pai e do Espiacuterito 6) sob o signo do Filho e do

Espiacuterito 7) sob o signo da Trindade inteira480

Desta vez o abade natildeo diferencia cada tipo dando um nome ou mesmo definindo

mas apenas fornecendo um exemplo Segundo a primeira compreensatildeo tipoloacutegica que eacute

apropriada ao Pai Abraatildeo representa os sacerdotes dos judeus Hagar o povo israelita Sara

a Tribo de Levi que foi chamada para a obra de Deus No segundo tipo de tipologia que eacute

apropriada ao Filho Abraatildeo representa os bispos Hagar a igreja dos leigos Sara a igreja

dos cleacuterigos Segundo o terceiro tipo de tipologia que eacute apropriada ao Espiacuterito Abraatildeo

representa os sacerdotes que servem monasteacuterios Hagar representa a Igreja do povo leigo

que vive sob regras monaacutesticas (conversi) e Sara representa a igreja dos monges Segundo

a seacutetima compreensatildeo tipoloacutegica que pertence agraves trecircs pessoas da Trindade Hagar representa

as igrejas da primeira e segunda eacutepoca (status) que vive a vida ativa Sara representa a igreja

da contemplaccedilatildeo paz e descanso da seacutetima era (aetas) Estes foram os quatro usos

tipoloacutegicos mais usados por Joaquim481

A quarta quinta e sexta species de tipologia natildeo satildeo normalmente usadas Mesmo

assim ele faz uma breve apresentaccedilatildeo delas (Liber de Concordia 61v-73v) A quarta

tipologia pertence ao Pai e ao Filho Nela Abraatildeo significa os bispos dos judeus e gregos

Hagar a sinagoga Sara a igreja dos Gregos A quinta tipologia pertence ao Pai e ao Espiacuterito

e nela Abraatildeo significa os sacerdotes dos judeus e os bispos do povo latino Hagar a

sinagoga (como na tipologia anterior) e Sara a igreja do povo Latino A sexta compreensatildeo

tipoloacutegica pertence ao Filho e ao Espiacuterito Santo Nela Abraatildeo significa os sacerdotes da

480 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 29 481 Em termos gerais a primeira species tipoloacutegica trata da primeira eacutepoca a segunda da segunda eacutepoca a

terceira da terceira eacutepoca A seacutetima tenta englobar a histoacuteria como um todo

142

segunda e terceira eacutepoca Hagar a igreja dos trabalhadores (vida ativa) e Sara a igreja

espiritual da contemplaccedilatildeo482

66 O dom da exegese

O ex-eremita agora no interior de um cenoacutebio em Fiore parece ver no Novo

Testamento natildeo mais do que uma segunda letra em concordacircncia com a primeira Daiacute resulta

a conclusatildeo de que ldquonatildeo se pode considerar o segundo testamento como mais definitivo que

o primeirordquo483 Ele natildeo chega a abolir o Novo Testamento mas entende que ele seraacute

transformado por meio de uma nova interpretaccedilatildeo espiritual Entatildeo se abriratildeo as ldquoportasrdquo

dos dois Testamentos e pessoas que antes natildeo conseguiam ler mais do que a letra entatildeo

conseguiratildeo penetrar nos sentidos espirituais da Escritura

Apesar de ser o porta-voz desta ldquodescoberta espiritualrdquo Joaquim se recusou a assumir

o tiacutetulo de profeta que outros lhe atribuiacuteam Mas ele natildeo esconde que teve suas

ldquoiluminaccedilotildeesrdquo Ele parece falar de trecircs destas experiecircncias que quase o aproximam do termo

ldquovisionaacuteriordquo Em uma delas ele recebeu a concordia dos Testamentos em outra

compreendeu a relaccedilatildeo entre Trindade Escritura e histoacuteria por fim uma terceira abriu seus

olhos para o papel do Apocalipse na sua estrutura hermenecircutica484 Aleacutem destas experiecircncias

narradas em suas obras o abade estava persuadido de ter recebido um ldquoespiacuterito de

inteligecircnciardquo para interpretar as Escrituras485 a fim de alertar e despertar os ldquosonolentos

espiacuteritos de seu tempordquo a respeito dos ldquoextrema temporardquo486 Aos olhos de Joaquim sua

capacidade exegeacutetica era um dom de Deus Natildeo era apenas fruto de uma investigaccedilatildeo

humana Era como a estrela brilhante que guiou os magos ateacute Jesus

O abade via brilhar agrave sua frente um novo tempo (ldquoIta felices homines illius

statusrdquo)487 e o espera para breve Ele o descreve sem cessar em suas obras por meio das

482 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 45-46 483 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 46 484 Conferir uma descriccedilatildeo das trecircs visotildees em DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de

Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xiii-xviii 485 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London

University of Notre Dame Press 1993 p 16 486 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 48 487 Expressatildeo encontrada em Expositio in Apocalypsim 175v

143

duas combinaccedilotildees da concordia das cinco inteligecircncias espirituais (alegoria) e dos sete tipos

de inteligecircncia tiacutepica (tipologia)488

Considerado profeta chamado de visionaacuterio descrito como miacutestico Joaquim natildeo

queria ser como resumiu de Lubac outra coisa a natildeo ser um exegeta489

67 Resumo

Este capiacutetulo procurou apresentar as formas e procedimentos de leitura e

interpretaccedilatildeo de Joaquim de Fiore Comeccedilando pela concordia passando pela alegoria e

terminando na tipologia o abade estruturou um meacutetodo que foi aplicado por ele tanto em

textos biacuteblicos quanto em eventos e fenocircmenos histoacutericos Justamente essa relaccedilatildeo iacutentima

entre Biacuteblia e histoacuteria parece ser a raiz loacutegica do seu sistema milenarista490 A praacutetica

exegeacutetica do abade em vaacuterios momentos se constituiu num exerciacutecio de reflexatildeo sobre o

sentido da histoacuteria

488 O sistema metoloacutegico de trecircs partes formado pela concoacutercia e por doze sentidos ldquoespirituaisrdquo (cinco

alegoacutericos e sete tipoloacutegicos) eacute o mais recorrente nas exposiccedilotildees de Joaquim mas natildeo eacute o uacutenico Ele usa no

Psalterium um sistema compreendido por quinze sentidos baseado no nuacutemero total dos salmos Estes sistemas

indicam o esforccedilo do abade de Fiore para multiplicar e entrelaccedilar as imagens biacuteblicas Cf SANTI op cit p

264 O medievalista Falbel denomina o meacutetodo do abade de ldquoalegoacuterico-trinitaacuteriordquo Cf FALBEL Nachman

Satildeo Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202) Revista USP Satildeo Paulo n 30 p 273-276

1996 p 273 489 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 53 Talvez seja possiacutevel falar

numa exegese profeacutetica (projetada para o futuro) ou uma exegese visionaacuteria (materializada em imagens) ou

mesmo uma exegese miacutestica (com foco na contemplaccedilatildeo) 490 Idem p 43

VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN

APOCALYPSIM

Este capiacutetulo se deteraacute principalmente no Expositio in Apocalypsim a maior e mais

bem estruturada obra de Joaquim de Fiore491 Eacute um texto que acompanhou o abade por quase

vinte anos concluiacutedo apenas dois anos antes de sua morte Em um trabalho desta natureza

escrito ao sabor dos anos eacute possiacutevel encontrar alteraccedilatildeo nas proacuteprias pespectivas do abade492

De qualquer forma o trecho que nos interessa especialmente estaacute ao final na seacutetima parte

quando apoacutes deixar Corazzo e jaacute no isolamento das montanhas de Fiore Joaquim se deteacutem

a construir sua exegese de Apocalipse 201-10 a periacutecope joanina que descreveu o reino

milenarista dos martirizados com Cristo Para analisaacute-la entretanto precisamos antes situaacute-

la no interior do Expositio por meio de alguns apontamentos sobre a estrutura geral da obra

e de uma siacutentese de conteuacutedo

71 Estrutura literaacuteria do Expositio

O Expositio in Apocalypsim na sua versatildeo presente no incunaacutebalo veneziano eacute

precedido por trecircs documentos distintos O primeiro eacute a Carta Testamentaacuteria (1r) na qual o

abade calabrecircs relata suas motivaccedilotildees ao escrever suas grandes obras e manifesta o desejo

de apresentaacute-las agrave cuacuteria papal Em seguida haacute uma carta de Clemente III (papa de 1187-

1191) para Joaquim (1v) datada para o dia 8 de junho de 1188 solicitando que o abade

encaminhe suas obras para a Seacute romana493 Apoacutes as duas cartas comeccedila o Liber

Introductorius in Apocalypsim (1v-25v) um longo texto que teria a funccedilatildeo de apresentar o

Expositio suas partes baacutesicas uma siacutentese das principais ideias do abade especialmente os

trecircs status do mundo a concordia dos dois Testamentos e as sete fases (aetas) da histoacuteria

491 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 79 492 A visatildeo de Joaquim quanto ao Impeacuterio Germacircnico por exemplo variou de uma postura criacutetica no iniacutecio da

obra para uma postura neutra no final Cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di

Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p 325-327 493 Uma ediccedilatildeo latina da carta pode ser encontrada em ELLIOTT E B Horae Apocalypticae a commentary

on the Apocalypse critical and historical Londres Seeley 1862 4 v V 4 p 386

145

da Igreja Finalmente no foacutelio 26v tem iniacutecio o Expositio por meio da expressatildeo ldquoIncipit

prima septem partius in expositione Apocalipsisrdquo494

A forma como o comentaacuterio de Joaquim foi construiacutedo permite visualizar as

seguintes seccedilotildees495

26v Parte I Sete Igrejas

51v Eacutefeso

67r Esmirna

69r Peacutergamo

73v Tiatira

78r Sardes

82v Filadeacutelfia

92v Laodiceacuteia

99r Parte II Sete selos

113v Primeiro Selo

114r Segundo Selo

114v Terceiro Selo

115v Quarto Selo

116v Quinto Selo

117v Sexto Selo

123v Seacutetimo Selo

123v Parte III Sete Trombetas

127v Primeiro Anjo

128v Segundo Anjo

128v Terceiro Anjo

129v Quarto Anjo

130v Quinto Anjo

133v Sexto Anjo

152r Seacutetimo Anjo

153r Parte IV A Mulher vestida de Sol e o Dragatildeo

154r Primeira distinccedilatildeo

158r Segunda distinccedilatildeo

160v Terceira distinccedilatildeo

161v Quarta distinccedilatildeo

172v Quinta distinccedilatildeo

173r Sexta distinccedilatildeo

174v Seacutetima distinccedilatildeo

177r Parte V Sete Taccedilas

187r Primeira Taccedila

187r Segunda Taccedila

494 Por esta expressatildeo eacute possiacutevel perceber uma ambiguidade estrutural na obra Joaquim anunciou sete seccedilotildees

mas terminou a obra com oito 495 Adaptamos aqui a estrutura sugerida por WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of

Fiore a Study in Spiritual Perception and History Bloomington Indiana University Press 1983 p 74-75

146

188v Terceira Taccedila

189r Quarta Taccedila

189v Quinta Taccedila

190r Sexta Taccedila

191r Seacutetima Taccedila

191v Parte VI A queda da Babilocircnia e a derrota das bestas

191v Primeira distinccedilatildeo

202v Segunda distinccedilatildeo

206r Terceira distinccedilatildeo

209v Parte VII Descanso sabaacutetico

Pars prima

Pars secunda

Pars tertia

Pars quarta

215r Parte VIII Jerusaleacutem Celestial

72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim496

Joaquim se propotildee a escrever um comentaacuterio exegeacutetico do Apocalipse de Joatildeo tarefa

que o coloca na tradiccedilatildeo de outros exegetas medievais da obra joanina como Beda o

Veneraacutevel ou Beato de Lieacutebana497 Mas o resultado entretanto vai aleacutem de discussotildees

teoloacutegicas para se tornar o que Potestagrave chamou de ldquohistoacuteria teoloacutegica do Cristianismordquo498

Esta histoacuteria aparece no Expositio de duas formas linear e ciacuteclica Tanto na narrativa linear

quanto na ciacuteclica haacute uma preocupaccedilatildeo contiacutenua do abade em vincular cada texto do

Apocalipse a eventos histoacutericos da forma mais estreita possiacutevel499

A revelaccedilatildeo linear aparece quando o abade estrutura o uacuteltimo livro do Novo

Testamento em oito partes sendo que as sete primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da

histoacuteria da Igreja Das sete seis relatam algum tipo de confronto da Igreja As quatro

primeiras fases apresentam protagonistas diferentes (apoacutestolos maacutertires doutores monges

496 Para esta siacutentese cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297-325 ELLIOTT E

B Horae Apocalypticae op cit p 384-420 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit

p 79-84 497 Conferir a discussatildeo anterior sobre o gecircnero literaacuterio do Expositio na qual indicamos autores anteriores agrave

Joaquim que tambeacutem escreveram exposiccedilotildees exegeacuteticas do Apocalipse 498 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297 MCGinn acompanha Potestagrave nesta

avaliaccedilatildeo e toma Joaquim como criador da mais imponente teologia da histoacuteria desde De civitate Dei de

Agostinho Cf MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero

occidentale Gecircnova Casa Editrice Marietti 1990 p 172 499 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 298

147

e virgens) Na quinta e na sexta eacute a Igreja em geral que enfrenta a Babilocircnia e o Anticristo

A seacutetima seria de descanso na forma de um sabbatum500 especial Finalmente viria o oitavo

periacuteodo que seria a consumaccedilatildeo final da histoacuteria e a eternidade transcendental501 Esta seria

a relaccedilatildeo esquemaacutetica entre a histoacuteria da Igreja e as partes do Apocalipse

- Primeira parte (Apocalipse 19-322) os apoacutestolos lutam contra os judeus

- Segundo parte (Apocalipse 41-81) os maacutertires lutam contra a Roma pagatilde

- Terceira parte (Apocalipse 82-1119) os doutores da Igreja lutam contra Aacuterio e os

governantes arianos

- Quarta parte (Apocalipse 121-1420) os monges e as virgens lutam contra os

sarracenos

- Quinta parte (Apocalipse 151-1617) a Igreja em geral luta contra a Babilocircnia

- Sexta parte (Apocalipse 1618-1921) a Igreja em geral luta contra o Anticristo

- Seacutetima parte (Apocalipse 201-10) o descanso sabaacutetico

- Oitava parte (Apocalipse 2011-2221) a Nova Jerusaleacutem

A histoacuteria da igreja aparece de forma ciacuteclica (recapitulatio) nas cinco primeiras

seccedilotildees do Apocalipse justamente aquelas em que Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura

seacutetupla Em cada uma delas ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma

histoacuteria que comeccedilaria na encarnaccedilatildeo de Cristo502 Aparentemente todas terminam no

descanso sabaacutetico um tempo de felicidade na terra Isso indica que a seacuterie de recapitulaccedilotildees

pode ter se restringido apenas agraves cinco primeiras partes do Expositio em funccedilatildeo da

perspectiva do abade de estar vivendo no tempo da sexta seccedilatildeo quando os eventos lhe satildeo

contemporacircneos ou estatildeo para acontecer em breve503

A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentaacuterios de Joaquim sobre

Apocalipse 11-322 (a seccedilatildeo das sete cartas para sete igrejas) Eacute a mais longa seccedilatildeo do

comentaacuterio Na estrutura geral eacute o primeiro tempo da Igreja a luta dos apoacutestolos contra a

sinagoga dos judeus Na histoacuteria da salvaccedilatildeo ela corresponde a sete geraccedilotildees com cada

500 Termo de origem hebraica (בת aparece na Vulgata como sabbatum (substantivo neutro de segunda (ש

declinaccedilatildeo) Seu significado eacute o seacutetimo dia da semana no calendaacuterio judaico ou o dia de descanso Cf LEWIS

Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p 1609 Ele retornaraacute de

forma recorrente no Expositio para descrever um periacuteodo de ldquodescansordquo para a Igreja de suas tribulaccedilotildees 501 COURT John M Approaching the Apocalypse a short history of Christian millenarianism New York I

B Tauris 2008 p 73 502 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 162 503 O abade entende o proacuteprio tempo como a hora da abertura do sexto selo e o iniacutecio do terceiro status Cf

MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 167

148

igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos A igreja de Eacutefeso apresenta a

ordem dos apoacutestolos em luta contra os inimigos judaizantes a de Esmirna descreve a ordem

dos maacutertires no confronto contra inimigos pagatildeos a de Peacutergamo simboliza a ordem dos

doutores e seus adversaacuterios arianos e sabelianos a de Tiatira aponta para a ordem dos virgens

em confronto contra os falsos contemplativos a de Sardes indica a ordem dos monges

cenobiacuteticos cujos inimigos eram monges hipoacutecritas a de Filadeacutelfia revela a ordem dos

eremitas e contemplativos numa luta contra falsos cristatildeos e falsos profetas a de Laodiceacuteia

por fim representa a ordem dos monges do terceiro status

Na seccedilatildeo das cartas o abade ainda apresenta o relacionamento entre Pedro e Joatildeo

questatildeo que ele retoma repetidas vezes no Expositio O primeiro eacute typos504 de Cristo e

representa a Ordem Ativa enquanto o segundo eacute typos do Espiacuterito Santo e representa a

Ordem Contemplativa Ao passo que Pedro deixou Jerusaleacutem para fundar a sede apostoacutelica

em Roma Joatildeo saiu da Judeacuteia e foi para a Aacutesia escrever o Apocalipse para as sete igrejas

Pedro morreu primeiro Joatildeo sobreviveu-lhe cerca de trecircs deacutecadas Isso indicaria que a Igreja

Contemplativa (de Joatildeo) vai ultrapassar historicamente a Igreja Ativa (de Pedro)

Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a seccedilatildeo dos selos

(Apocalipse 41-81) Na estrutura geral eacute o segundo tempo da Igreja quando os principais

personagens satildeo os maacutertires em luta contra os pagatildeos em um tempo que vai ateacute o momento

de paz da Igreja no tempo de Constantino e Silvestre Corresponde tambeacutem a sete tribulaccedilotildees

paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos Desta forma o abade desenvolveu um sistema

de duplo septenaacuterio um trata de eventos da histoacuteria de Israel e o outro aponta para a histoacuteria

da Igreja Durante todo o seu comentaacuterio os meacutetodos hermenecircuticos do abade permitem que

ele encontre vaacuterios significados para os mesmos personagens e eventos do Apocalipse

O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi imaginado por

Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho enquanto eacute perseguida pelos judeus

No Antigo Testamento significa o nascimento de Israel por meio do cativeiro egiacutepcio

A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo vermelho cujo

cavaleiro carrega uma espada mortal O cavalo simboliza a Roma pagatilde com seus sacerdotes

e exeacutercitos Na histoacuteria da Igreja este selo inaugura a perseguiccedilatildeo dos fieacuteis sob o antigo

Impeacuterio Romano Corresponde na histoacuteria dos judeus agrave conquista de Canaatilde que vai do

tempo dos juiacutezes ateacute o governo de Davi

504 Conferir a discussatildeo sobre tipologia no capiacutetulo anterior

149

O terceiro selo que descreve um homem com um par de balanccedilas eacute a heresia de

Aacuterio cujo clero aparece representado no cavaleiro que traz terror e escuridatildeo para a feacute cristatilde

O ser angelical que anuncia este selo representa a ordem de doutores que proclamou a

verdade e enfrentou os arianos Na histoacuteria do Antigo Testamento corresponde ao periacuteodo

de enfrentamento dos siacuterios

Na abertura do quarto selo um cavalo paacutelido aparece trazendo pragas e eacute seguido

pelo Hades Este representa a ameaccedila sarracena cujo cavaleiro eacute Maomeacute que persegue os

cristatildeos Durante este periacuteodo os monges e virgens tentaram sobreviver e manter a feacute cristatilde

Corresponde ao tempo da tribulaccedilatildeo de Israel sob os assiacuterios

Ao abrir o quinto selo o Apocalipse descreve um grupo de almas debaixo do altar

Nos quatro primeiros selos cristatildeos foram perseguidos e mortos na Judeacuteia Roma Greacutecia e

Araacutebia Esta quinta perseguiccedilatildeo vem da Mauritacircnia e Espanha onde sarracenos mataram

muitos cristatildeos Tambeacutem significa o sofrimento da Igreja romana em luta contra os

imperadores germacircnicos As roupas brancas significam que os maacutertires passaram do luto

para a alegria A expressatildeo ldquoateacute que seus irmatildeos sejam mortosrdquo indica para Joaquim que

ainda resta um conflito final que promoveraacute o martiacuterio de muitos cristatildeos

O sexto selo descreve cataclismos coacutesmicos Ele representa o dia do julgamento da

Babilocircnia cujo significado eacute ldquoquem quer que ataque a Igreja de Pedro moral ou

fisicamenterdquo505 especialmente os falsos cristatildeos ou falsos membros da Igreja romana O

abade espera perseguiccedilotildees para os fieacuteis com papel significativo na histoacuteria jaacute que por meio

delas a Igreja seraacute purificada de sua corrupccedilatildeo

Na abertura do seacutetimo selo um silecircncio se manifesta no ceacuteu Para Joaquim ele

representa o sabbatum de descanso no qual um silecircncio contemplativo seraacute trazido agrave

realidade Em comparaccedilatildeo na correspondente era do Antigo Testamento depois de Esdras

e Malaquias cessou a produccedilatildeo de Escritura Entatildeo sob o seacutetimo selo natildeo seraacute mais preciso

a pregaccedilatildeo

A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas do Apocalipse

(Apocalipse 82-1118) Na estrutura geral eacute o tempo terceiro quando a ordem dos doutores

digladia contra os hereges em particular os arianos Mas tambeacutem corresponde a sete fases

A trombeta de nuacutemero um eacute a fase dos Apoacutestolos principalmente Paulo pregando contra o

Judaiacutesmo e o legalismo O granizo misturado com fogo e sangue significa o espiacuterito de

505 ldquoQuicumque Petri ecclesiam moribus viribusque impugnantrdquo (117v) As traduccedilotildees do Expositio neste

capiacutetulo satildeo proacuteprias a natildeo ser que haja indicaccedilotildees em contraacuterio

150

escuridatildeo dos coraccedilotildees dos judeus Como resultado um terccedilo dos judeus convertidos

apostatou de volta para o Judaiacutesmo

A segunda trombeta significa os Maacutertires da era poacutes-apostoacutelica pregando contra a

heresia dos nicolaiacutetas Nicolau eacute a montanha que caiu no ldquomar dos gentiosrdquo Por causa dele

um terccedilo dos pagatildeos convertidos abandonou a feacute A terceira trombeta simboliza os doutores

do tempo de Constantino O meteoro que cai eacute Aacuterio cujo erro desabou sobre bispos e

sacerdotes e contaminou a aacutegua pura das escrituras A quarta trombeta tipifica os monges e

as virgens que como luminares celestiais caminhando em contemplaccedilatildeo iluminam o

mundo Seratildeo em larga medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos A quinta

trombeta descreve gafanhotos-escorpiotildees que representam os pathareni506 As arvores que

os gafanhotos destroem indicam a Igreja catoacutelica A couraccedila dos escorpiotildees aponta para o

coraccedilatildeo duro dos perfecti entre os pathareni Neste ponto de seu comentaacuterio o abade fala de

um homem que escapou de uma prisatildeo em Alexandria no ano anterior (1195) Joaquim o

encontrou em Messina e ouviu dele notiacutecias de uma alianccedila entre sarracenos e pathareni A

esta alianccedila outras naccedilotildees hostis se juntaratildeo como os turcos do Oriente os mouros e os

berberes do sul

Entre a sexta e a seacutetima trombeta o Apocalipse descreveu trecircs cenas distintas a

convocaccedilatildeo para que se coma um livro a descriccedilatildeo da medida do templo e a atuaccedilatildeo das

duas testemunhas martirizadas pela besta Na cena em que o livro eacute comido o abade

descreveu a ordem monaacutestica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne)

A cidade santa que aparece na mediccedilatildeo do templo significa a Igreja romana A Igreja grega

por ter se afastado da seacute apostoacutelica eacute a parte externa do templo que seraacute dada aos gentios

Aos olhos de Joaquim isso jaacute aconteceu em grande medida mas os gregos podem esperar

por novas desolaccedilotildees A rejeiccedilatildeo ao filioque era para o abade a maior prova de apostasia da

Igreja grega507 Sobre as duas testemunhas Joaquim as entende como Moiseacutes e Elias ou

duas ordens espirituais que viratildeo no poder destes antigos personagens biacuteblicos para pregar

contra o Anticristo Segundo o abade ldquoMoiseacutes foi um Levita e pastor do povo de Israel

506 Joaquim usa o termo pathareni para se referir ao movimento dissidente conhecido como ldquocatarismordquo Cf

POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 308 Especificamente sobre esta dissidecircncia

medieval cf AGUSTIacute David Los caacutetaros el desafio de los humildes Madrid Siacutelex Ediciones 2006 507 WHALEN Brett Edward Dominion of God Christendom and Apocalypse in the Middle Ages Cambridge

Harvard University Press 2009 p 111 O filioque era uma foacutermula latina de descriccedilatildeo do relacionamento entre

as pessoas da Trindade Ela afirma a dupla origem do Espiacuterito procedendo simultaneamente do Pai e do Filho

Sobre a importacircncia do filioque para o pensamento de Joaquim cf DANIEL Randolph E The double

procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiores Understanding of History Speculum Chicago v 55 n 3

p 469-483 1980

151

Elias foi um homem solitaacuterio que natildeo teve esposa ou filhos Logo um representa a ordem

dos cleacuterigos o outro a ordem dos mongesrdquo508 Finalmente surge a seacutetima trombeta Eacute tempo

do julgamento da besta e do falso profeta O Anticristo e os seus seguidores seratildeo

exterminados Comeccedilaraacute entatildeo a fase final da histoacuteria da Igreja ldquoo terceiro status do mundo

que seraacute um tempo de descanso e contemplaccedilatildeo Nele apoacutes o fim das pessoas corruptas da

terra reinaraacute o povo santo do Altiacutessimordquo509 Esta seccedilatildeo termina com uma longa descriccedilatildeo da

conversatildeo final dos gregos e judeus agrave Igreja latina

A quarta parte do Expositio (153r-174v) natildeo apresenta uma estrutura clara no

Apocalipse (Apocalipse 1119-1420) mas mesmo assim o abade optou pela divisatildeo em sete

distinccedilotildees (distinctiones) A seccedilatildeo comeccedila na abertura do santuaacuterio celestial mas tem como

foco a histoacuteria do Dragatildeo510 Eacute o quarto tempo da histoacuteria da Igreja no qual a ordem dos

monges e das virgens luta contra Maomeacute a quarta cabeccedila do Dragatildeo Igualmente

corresponde a sete fases

A primeira distinccedilatildeo apresenta o conflito entre a mulher vestida de sol e o Dragatildeo

Nesta primeira batalha os protagonistas foram Pedro e seus sucessores O inimigo por sua

vez agiu atraveacutes de Herodes e Nero A segunda distinccedilatildeo apresenta a guerra entre Miguel e

o Dragatildeo (Apocalipse 127-12) como siacutembolo da perseguiccedilatildeo pagatilde aos cristatildeos ateacute o tempo

de Constantino A terceira distinccedilatildeo descreve a fuga da mulher para o deserto que representa

a perseguiccedilatildeo agrave igreja atraveacutes das monarquias arianas Ela fugiraacute para uma vida de retiro e

contemplaccedilatildeo durante 42 meses ou 1260 dias

A quarta distinccedilatildeo comeccedila em Apocalipse 1217 com o levantamento das duas

bestas e vai ateacute 145 (o ajuntamento das 144000 testemunhas do Cordeiro) A besta

representa a perseguiccedilatildeo sarracena aos eremitas e virgens mas tambeacutem indica por meio de

suas cabeccedilas uma seacuterie de adversaacuterios histoacutericos da igreja As quatro primeiras cabeccedilas

respectivamente eram os judeus pagatildeos romanos arianos e sarracenos Esta cabeccedila

sarracena parecia ter morrido em funccedilatildeo da tomada de Jerusaleacutem da conquista normanda

na Siciacutelia e da expulsatildeo dos mouros na Espanha Para Joaquim entretanto ela voltou a

viver tatildeo terriacutevel quanto antes e a tomada de Jerusaleacutem seria uma demonstraccedilatildeo disso Eacute a

508 ldquoMoses fuit Levita et pastor Populi Israel Helyas vir solitarius no habens filios aut uxorem Ille ergo

significat ordinem clericorum iste ordinem monachorumrdquo (148v) Muito se especularaacute posteriormente na

recepccedilatildeo do pensamento joaquimita sobre a relaccedilatildeo entre as duas testemunhas de Apocalipse e as ordens de

Francisco e Domingos Cf REEVES Marjorie The influence of prophecy in the Later Middle Ages a study

in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 72-73 509 ldquoEt ad tertium statum mundi qui erit in sabbatum et quietem in quo exterminatis prius corruptoribus

terrae regnaturus est populus sanetorum Altissimirdquo (152v) 510 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 314

152

cabeccedila que parecia ter morrido mas reviveu para impressionar o mundo todo Joaquim

interpretou a segunda besta de Apocalipse como um falso-profeta que se levantaraacute do meio

da igreja conhecendo e falando como um cristatildeo Este faraacute alianccedila com a ldquocabeccedila sarracenardquo

da primeira besta Satildeo os pathareni ldquoa escoacuteria dos heregesrdquo (haereticorum fex) Os 144000

que aparecem em Apocalipse 14 satildeo para o abade os monges e virgens da igreja que se

opotildee agravequeles que tecircm a marca da besta

A quinta distinccedilatildeo cobre apenas dois versiacuteculos do Apocalipse (Apocalipse 146-7)

Eacute o anuacutencio do Evangelho Eterno e do juiacutezo511 Tambeacutem eacute o tempo da desolaccedilatildeo da

Babilocircnia A sexta distinccedilatildeo (Apocalipse 148-12) descreve o anuacutencio dos dois uacuteltimos anjos

no ceacuteu Eacute o tempo do advento da Besta e do falso-profeta No momento de descrever a seacutetima

distinccedilatildeo (Apocalipse 1413-20) a cena do Filho do Homem e a ceifa Joaquim anuncia a

idade sabaacutetica final quando os fieacuteis viveratildeo na terra com aqueles que sobreviverem agrave queda

do Anticristo

Potestagrave alerta que o Expositio eacute um comentaacuterio biacuteblico e natildeo um tratado escolaacutestico

Aleacutem do mais ele foi escrito no transcurso de quase vinte anos de trabalho Isso faz com que

ele comporte algumas contradiccedilotildees ou oscilaccedilotildees Nesta seacutetima distinccedilatildeo por exemplo o

descanso sabaacutetico parece ter a presenccedila de Cristo na terra com os santos Nas outras

referecircncias ao mesmo periacuteodo Cristo natildeo exerce um papel pessoal na transiccedilatildeo para a era

do Espiacuterito512

A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seccedilatildeo das sete taccedilas do Apocalipse

(Apocalipse 151-1617) Eacute o quinto tempo da Igreja indicando o confronto da Igreja

romana simbolizada pelo trono de Deus contra Babilocircnia Cada taccedila representa tambeacutem

sete destinataacuterios da ira divina A primeira taccedila da ira foi despejada sobre os judaizantes que

adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica A segunda sobre a igreja infiel

antes de Constantino A terceira sobre os bispos arianos e seus ensinos depois de

Constantino A quarta sobre os hipoacutecritas das ordens contemplativas A quinta sobre os

falsos cleacuterigos e monges A sexta sobre os perversos do mundo A seacutetima taccedila sobre os

proacuteprios eleitos na forma de uma perseguiccedilatildeo purificadora

511 A expressatildeo ldquoEvangelho Eternordquo estaacute na origem da condenaccedilatildeo imposta a algumas ideias de Joaquim em

Anagni no ano de 1255 em funccedilatildeo da atividade do franciscano Geraldo de Borgo san Donnino Cf

ROSSATTO Noeli Dutra et all Evangelho eterno a hermenecircutica condenada Filosofia Unisinos Satildeo

Leopoldo v 11 n 3 p 298-339 2010 512 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 317

153

A sexta parte do Expositio (191v-209v) natildeo apresenta mais a divisatildeo septenaacuteria Esta

seccedilatildeo do Apocalipse descreve a queda da Babilocircnia e o juiacutezo sobre as bestas (Apocalipse

1618-1921) Eacute o sexto tempo da histoacuteria e trata da luta dos viri spirituales primeiramente

contra o Dragatildeo depois contra a besta que veio do mar e a besta que veio da terra O abade

viu nesta longa passagem biacuteblica trecircs distinccedilotildees A primeira (Apocalipse 1618-1824)

descreve a queda da Babilocircnia e da besta que a sustenta Potestagrave destaca que um aspecto

marcante desta distinccedilatildeo estaacute no fato de Joaquim ter retirado o Impeacuterio Germacircnico da seacuterie

de inimigos finais da igreja No seu sermatildeo de 1184 (Apocalipsis liber ultimus) o Impeacuterio

seria o adversaacuterio que iria purificar a Igreja dos seus pecados O mesmo aparece no texto

Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno (1184) Mas no momento em que o

abade escreve a sexta parte do Expositio o Impeacuterio natildeo representa mais um inimigo a ser

temido A cidade que cairaacute agora natildeo representa Roma ou o Impeacuterio Germacircnico mas

Constantinopla e o Impeacuterio Bizantino Babilocircnia se torna siacutembolo para qualquer oposiccedilatildeo agrave

Igreja de Roma513

A segunda distinccedilatildeo (Apocalipse 191-10) apresenta a exultaccedilatildeo dos fieacuteis diante da

ruiacutena da Babilocircnia A terceira distinccedilatildeo (Apocalipse 1911-21) apresenta a derrota da besta

e do falso-profeta Ambos representam inimigos da igreja desde o tempo dos apoacutestolos Nos

termos de Joaquim satildeo as ldquonaccedilotildees increacutedulas que uma vez estiveram sujeitas ao Impeacuterio

Romano e entatildeo perseguem a Cristo e sua Igrejardquo514 Suas sete cabeccedilas sucessivas satildeo a)

Herodes e seus judeus no reino da Judeacuteia b) os pagatildeos do Impeacuterio Romano ateacute o tempo de

Diocleciano c) reino grego ariano d) reino godo ariano e) reino vacircndalo ariano f) reino

lombardo ariano g) o impeacuterio de Maomeacute O tempo da seacutetima cabeccedila eacute o tempo da desolaccedilatildeo

da Babilocircnia Esta terceira distinccedilatildeo descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo branco

Segundo o abade esse cavaleiro pode indicar a manifestaccedilatildeo de Cristo para destruir a besta

atraveacutes de sua volta pessoal ou o poder de Cristo operado por meio de outras figuras

Inicialmente ele se inclina para uma vinda pessoal Depois entretanto admite que isso pode

ser explicado pela accedilatildeo invisiacutevel de Cristo em sua Igreja militante

Finalmente as duas proacuteximas seccedilotildees do Expositio fecham o livro A parte seacutetima

(209v-215r) discute o milecircnio (Apocalipse 201-10) e a oitava (215r-224r) a Jerusaleacutem

513 Idem p 319-320 514 ldquoUniversas gentes infideles quae aliquando subjectae fuerunt Romano imperio et persecutae sunt Christum

et ecclesiam ejusrdquo (196r)

154

Celestial (Apocalipse 2011-2221) Esta uacuteltima corresponde ao oitavo aetas natildeo mais

dentro da histoacuteria mas no seculum futurum posterior ao uacuteltimo tempo da humanidade

73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio

A seacutetima seccedilatildeo do Expositio eacute a menor do comentaacuterio de Joaquim o que natildeo significa

status diminuiacutedo O episoacutedio do milecircnio de Apocalipse 201-10 foi transformado em uma

espeacutecie de aacutepice antes do cliacutemax O fim do mundo com o juiacutezo final e a esfera porvir

continuam no horizonte (a seccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem) do abade mas este fim aguardado para

a ldquoeternidaderdquo recebeu uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica na histoacuteria Como argumentou Potestagrave a

estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade ldquoa descoberta que

a primeira parte de Apocalipse 20 trata daquele grande saacutebado futuro no final do mundo515

Curiosamente se Joaquim procura com sua metodologia hermenecircutica ldquoinventarrdquo

muacuteltiplos sentidos nas outras seccedilotildees do comentaacuterio nesta ele eacute econocircmico em detalhes sobre

as figuras e os eventos Em outros lugares do Expositio como na anaacutelise das duas

testemunhas do capiacutetulo 11 de Apocalipse ele multiplica os significados por meio da

alegoria tipologia e concordia516 Ao interpretar os dez versiacuteculos do reino messiacircnico de

Joatildeo (Apocalipse 201-10) entretanto ele se contenta em fornecer um agraves vezes dois

sentidos mas ainda vagos e imprecisos Diferente de Papias que chega a descrever o

tamanho das uvas do reino milenar517 o abade de Fiore no final de sua vida entende que

alguns poucos aspectos espirituais jaacute seriam suficientes para alimentar a expectativa da

Igreja

Joaquim dividiu esta seacutetima seccedilatildeo do Expositio em quatro partes precedidas de uma

introduccedilatildeo

- Introduccedilatildeo 209v-210v

- Pars prima 210v-212r (comentaacuterio de Apocalipse 201-3)

- Pars secunda 212r-214v (comentaacuterio de Apocalipse 204)

515 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 299 516 Extrateacutegias hermenecircuticas apresentadas no capiacutetulo anterior 517 Conferir a citaccedilatildeo em DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1997 p 23 ldquoViratildeo dias em que as vinhas cresceratildeo em que cada uma teraacute dez mil

vides e em cada vide dez mil ramos e em cada ramo dez mil bototildees e em cada botatildeo dez mil cachos e em

cada cacho dez mil uvas e cada uva prensada daraacute vinte e cinco medidas de vinho E quando um dos santos

colher um cacho o outro lhe diraacute sou melhor colha-me e abenccediloa o Senhor atraveacutes de mimrdquo

155

- Pars tertia 214v (comentaacuterio de Apocalipse 205-6)

- Pars quarta 214v-215r (comentaacuterio de Apocalipse 207-10)

A introduccedilatildeo eacute aberta logo com a frase ldquoestatildeo completadas seis partes do livro de

Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de trabalho Vem agora a seacutetima parte na

qual vemos aquele saacutebado futuro no fim do mundo que em outro lugar chamamos de terceiro

statusrdquo518 Fica clara assim a relaccedilatildeo construiacuteda por Joaquim entre o milecircnio de Apocalipse

20 e um periacuteodo de paz na terra durante o fim do terceiro status da histoacuteria da humanidade

Ele completa ainda que se trata do ldquotertium statum sive etiam septimam mundi statemrdquo (do

terceiro status ou da seacutetima idade do mundo) Corresponde tambeacutem agrave seacutetima aetas da Igreja

que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do seu Expositio

Apoacutes estas frases de definiccedilatildeo ou mesmo de contextualizaccedilatildeo o abade recorre a

Agostinho e uma figura que ele chama de St Remigius Do primeiro ele toma a ideia de que

a expressatildeo ldquodia finalrdquo nas Escrituras natildeo precisa ser entendida como significando o uacuteltimo

momento do mundo podendo antes ser uma uacuteltima fase ou entatildeo o tempo do fim Por isso

os autores biacuteblicos poderiam dizer haacute mais de mil anos que ldquojaacute era a uacuteltima horardquo No

segundo ele busca apoio para a afirmaccedilatildeo de que haveraacute um certo tempo de duraccedilatildeo

indeterminada posterior agrave derrota do Anticristo Esse parece ser o motivo dele ter buscado

nesta figura de identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua

interpretaccedilatildeo Segundo Potestagrave provavelmente este Remigius foi um exegeta do seacuteculo XII

cuja obra foi atribuiacuteda a um certo Aimone de Halberstadt519

A ideia de um periacuteodo sabaacutetico na terra representa descontinuidade com a tradiccedilatildeo

exegeacutetica de Agostinho520 Joaquim estaacute ciente disso e gasta algumas linhas do seu

comentaacuterio para explicar que a expectativa da vinda agrave terra de uma seacutetima aetas na qual a

Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e reinaria sem perturbaccedilatildeo na plena possessatildeo da

ldquointeligecircncia espiritualrdquo natildeo eacute um erro mas uma maior compreensatildeo Segundo o abade eacute

uma ldquoopiniatildeo racional natildeo contraacuteria agrave feacuterdquo521

518 ldquoPeractis sex partibus libri Apocalypsis in quibus notata sunt sex tempora laboriosa Veniendum est

quandoque ad septimam partem im qua agitur de magno illo sabbato in fine mundi futuro quod vocari placluit

tertium statumrdquo (209v) 519 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 323 520 Segundo MC Ginn ldquoem nenhuma outra parte do seu longo comentaacuterio Joaquim mostra a ruptura com

setecentos anos de tradiccedilatildeo exegeacutetica latina como na descriccedilatildeo do reino milenar de Cristo e dos santos na terra

de Apocalipse 20rdquo Cf MCGINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 521 ldquoTamen esse potest rationabilis opinio que non sit contra fidemrdquo (210v)

156

Apoacutes isso ele usa boa parte da introduccedilatildeo para retomar aspectos que precederiam o

periacuteodo sabaacutetico o diabo lanccedilaraacute os sarracenos contra o impeacuterio cristatildeo apoacutes a queda da

Babilocircnia haveraacute um pequeno periacuteodo de tranquilidade para a Igreja entatildeo a besta que

parecia morta se ergueraacute novamente para uma segunda batalha contra os exeacutercitos de fieacuteis

o resultado seraacute a derrota da besta e do falso profeta e finalmente se seguiraacute uma grande

paz o descanso sabaacutetico

A partir de entatildeo ele analisa os versiacuteculos de Apocalipse 201-10 por meio da

estrateacutegia que jaacute utilizou no restante do comentaacuterio haacute uma transcriccedilatildeo de uma pequena

porccedilatildeo do texto na sua versatildeo latina522 seguido de comentaacuterios exegeacuteticos filoloacutegicos e

histoacutericos

A primeira parte da seccedilatildeo corresponde a Apocalipse 201-3 (a prisatildeo de Satanaacutes) Eacute

possiacutevel notar uma pequena diferenccedila entre o texto latino usado por Joaquim e a Vulgata

Clementina No versiacuteculo trecircs a Clementina usou o termo consummentur (seja concluiacutedo)

enquanto Joaquim transcreveu compleant (seja completado) De qualquer forma satildeo termos

intercambiaacuteveis sem grandes implicaccedilotildees textuais para a periacutecope

O abade comeccedila com a discussatildeo do significado da expressatildeo ldquomil anosrdquo O nuacutemero

natildeo eacute literal jaacute que ele significa um nuacutemero perfeito523 Isso indicaria que a duraccedilatildeo da prisatildeo

de Satanaacutes seria durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo Mesmo assim o abade aplica ao tempo

milenar dois significados secundum parte et secundum plenitudinem O primeiro teve um

cumprimento inicial (incipient) no tempo da ressureiccedilatildeo de Cristo Neste sentido o milecircnio

se estenderia daquela eacutepoca ateacute o fim do mundo durante todo o tempo da histoacuteria da Igreja

(ldquoad totum tempus ecdesierdquo) Mas seu perfeito e completo cumprimento seraacute no tempo

sabaacutetico (ldquoad sabbatumrdquo) depois da destruiccedilatildeo da besta

Nos seus termos o milecircnio do Apocalipse teria um cumprimento duplo

ldquoparcialmente a partir daquele saacutebado em que o Senhor descansou no sepulcro plenamente

apoacutes a destruiccedilatildeo da Besta e do Falso-profetardquo524 Eacute uma forma curiosa de afirmar a posiccedilatildeo

de Agostinho (milecircnio como o tempo de existecircncia histoacuterica da Igreja) para logo em seguida

522 Natildeo haacute marcaccedilatildeo de capiacutetulos ou versiacuteculos na versatildeo latina usada por Joaquim Ela difere levemente da

Vulgata Clementina usada nesta tese COLUNGA Alberto TURRADO Laurentio Biblia Sacra iuxta

Vulgatam Clementinam Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1965 523 ldquoMillenarius numerus perfectissimus estrdquo (210v) 524 ldquoSecundum partem incipit ab illo sabbato quo requievit Dominus in sepulchro secundum plenitudinem sui

a ruina Bestiae et Pseudo-Profhetaerdquo (211r)

157

abandonaacute-la em prol da retomada da antiga posiccedilatildeo quiliasta (milecircnio como um periacuteodo

futuro intra-histoacuterico)525

Para Joaquim o autor de ldquoConfessionesrdquo estava correto apenas parcialmente Como

ele o abade insiste em afirmar que o milecircnio natildeo seraacute literal Pode ser longo ou curto mas

sua ldquoduraccedilatildeo seraacute segundo o arbiacutetrio de Deusrdquo526 Talvez seja mesmo curto mas o tempo

esclareceraacute isto

Sobre a atuaccedilatildeo do Espiacuterito o abade afirma que ele manteraacute a chave da prisatildeo de

Satanaacutes Neste periacuteodo a terceira pessoa da Trindade atuaraacute sobre toda a terra natildeo apenas

sobre os fieacuteis mas tambeacutem sobre os pagatildeos Por isso ldquohaveraacute uma grande paz como nunca

antes desde o princiacutepio dos seacuteculosrdquo527

Ele volta a mencionar Agostinho que afirmara inicialmente uma opiniatildeo sobre o

milecircnio e depois mudou de ideia528 Seu argumento eacute que o bispo de Hipona soacute deixou a

perspectiva de um milecircnio histoacuterico por causa das expressotildees exageradamente ldquocarnaisrdquo dos

defensores do quiliasmo daquela eacutepoca Mas o fato de crer na vinda sobre a terra de uma

seacutetima aetas muito melhor que as anteriores natildeo constitui um erro mas eacute sim uma

ldquocompreensatildeo tranquilardquo529

No foacutelio 211r o abade fala do ldquoreinar do Espiacuterito Santordquo (ldquoregnare Spiritus divinusrdquo)

no que se constitui uma significativa alternativa ao ldquoreino de Cristordquo de Apocalipse 201-10

Haacute ainda uma insistecircncia de Joaquim em caracterizar este periacuteodo como um tempo de paz

ldquoGenuiacutena paz fruiraacute para a Igreja de Cristordquo530

A segunda parte da seacutetima seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 204-5a531 e

ocupa apenas uma coluna do foacutelio 212r Joaquim comeccedila indicando a relaccedilatildeo do texto de

Joatildeo com ldquoo povo santo do altiacutessimordquo descrito por Daniel ldquocujo reino eacute eternordquo532 O abade

entende que os ldquomille annirdquo destes versiacuteculos devem ser paralelos agrave prisatildeo de Satanaacutes ldquoO

525 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 324 MC GINN Bernard LrsquoAbate

Calabrese op cit p 169 526 ldquoCujus terminus erit in arbitrio Deirdquo (210b) 527 ldquoErit magna pax qualis non fuit aprincipio seculirdquo (210v) 528 ldquoVera fuit illo opinio immo non jam opiniordquo (211r) A citaccedilatildeo veio de De Civitate Dei 2071 Versatildeo

consultada SANTO AGOSTINHO A cidade de Deus Petroacutepolis Vozes 2012 2 v V 1 p 514 529 ldquoSerenissimus intellectusrdquo (211r) 530 ldquoVera pace frui poterit ecclesia Christirdquo (211r) 531 No texto joanino o bloco comeccedila com a menccedilatildeo dos tronos passa pela descriccedilatildeo dos maacutertires que

reviveram e termina na explicaccedilatildeo de que os demais natildeo reviveram ateacute o fim dos mil anos 532 ldquoCuius regnum sempiternum estrdquo (212r)

158

tempo do reino dos Santos seraacute interligado com o tempo da prisatildeo do Dragatildeordquo533 Seraacute um

tempo breve de duraccedilatildeo incerta no qual a Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e alcaccedilaraacute a

plena possessatildeo da ldquointelligentia spiritualisrdquo

A ressurreiccedilatildeo mencionada por Joatildeo eacute tambeacutem entendida como a prevista em Daniel

12 Jaacute os mortos que natildeo reviveram ateacute o final do milecircnio segundo Joaquim seratildeo os fieacuteis

que ressuscitaratildeo e entraratildeo direto na Nova Jerusaleacutem sem passar pelo julgamento do ldquotrono

brancordquo descrito a partir de Apocalipse 2011 Mas ele admite dificuldades neste ponto e

entende que eacute preciso esperar por novos esclarecimentos espirituais

A terceira parte da seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 205b-6 que natildeo passa

de uma declaraccedilatildeo do estado daqueles que participam da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo Eacute um bloco

muito pequeno soacute ocupando 19 linhas de uma coluna do foacutelio 214v A versatildeo latina citada

pelo abade declara ldquobeatus et sanctus qui habet partem in resurrectione primardquo (Exp Ap

214v) Percebe-se que Joaquim natildeo tem muito para falar sobre estes versiacuteculos do

Apocalipse Ele se contenta em afirmar que aqueles que experimentarem a ldquoprimeira

ressurreiccedilatildeordquo seratildeo realmente felizes (felicius viro) pois natildeo estaratildeo mais ao alcance da

morte

A quarta e uacuteltima seccedilatildeo da seacutetima parte do Expositio corresponde a Apocalipse 207-

10 (a volta de Satanaacutes e o confronto contra Gog e Magog) Joaquim recorre agrave passagem

paulina de 1Tessalonicenses 413 para descrever duas ressurreiccedilotildees Segundo o abade

alguns ressuscitaratildeo logo outros depois Tambeacutem vincula o texto de Joatildeo com uma profecia

de Ezequiel 38 ao descrever um conflito no final dos tempos A paz do periacuteodo sabaacutetico

seraacute interrompida quando Satanaacutes for solto do abismo e instaurar a tribulaccedilatildeo de Gog e

Magog que significa uma uacuteltima ameaccedila para os cristatildeos vinda dos confins do Oriente

talvez de povos que no passado longiacutenquo foram aprisionados por Alexandre o Grande Este

exeacutercito se levantaraacute contra a ldquocidade amada no fim dos seacuteculosrdquo534 mas seraacute logo destruiacutedo

Assim a besta e o falso-profeta foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine

sexte etatis) e Satanaacutes o seraacute no fim da seacutetima (in fine septime)

Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto e fala em muacuteltiplas

ldquoopinionesrdquo Por fim conclui com outra alusatildeo a Daniel no sentido de que quando for vista

533 ldquoIdem tempu intelligatur incarcerationis draconis et regni Santorumrdquo (212r) 534 ldquoCivitatem dilectam in consumatione seculirdquo (214v)

159

a ldquoabominaccedilatildeo da desolaccedilatildeordquo (ldquoabominationem desolationisrdquo) eacute porque ldquoestas coisasrdquo estatildeo

para se cumprir535

74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito

Segundo Bernard MCGinn Joaquim era um ldquoum convicto utopista no sentido de

que ele sentia ardentemente a iminecircncia da condiccedilatildeo ideal de vida sobre a terrardquo536 Sua

descriccedilatildeo desta eacutepoca futura parece realmente estar marcada pela ansiedade Ele desejava

ver o que naquele momento apenas podia imaginar e esperava estar vivo quando tudo

acontecesse jaacute que aguardava a manifestaccedilatildeo deste periacuteodo histoacuterico para breve Mas que

tipo de vida o abade esperava Quais seriam as tais ldquocondiccedilotildees ideaisrdquo de existecircncia humana

sobre a terra

Acima de tudo seria o reino do Espiacuterito (regnus Spiriti Divini) O Espiacuterito eacute a mais

frequente referecircncia de Joaquim para este periacuteodo Ele eacute o ldquoanjordquo que amarraraacute Satanaacutes por

ldquomil anosrdquo ou seja durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo de tempo Talvez por uma geraccedilatildeo (30

anos)537 Assim o ministeacuterio de Cristo a segunda pessoa da Trindade e o ministeacuterio do

Espiacuterito Santo a terceira pessoa durariam igualmente 30 anos Seraacute um periacuteodo curto mas

necessaacuterio agrave luz da revelaccedilatildeo trinitaacuteria agrave humanidade jaacute que o Pai se manifestou no primeiro

status e o Filho no segundo O terceiro status pertence ao Espiacuterito

Durante este tempo o Espiacuterito atuaraacute sobre toda a terra enchendo-a de paz Essa seraacute

sua principal caracteriacutestica Finalmente teraacute acabado a longa seacuterie de conflitos e perseguiccedilotildees

que marcou os dois povos de Deus (Israel e Igreja) desde o iniacutecio da histoacuteria Neste periacuteodo

ambos estaratildeo unidos (judeus e gentios) debaixo da plena posse da ldquointeligecircncia espiritualrdquo

para conhecer os segredos das Escrituras Joaquim fala de uma ldquocidade amadardquo no final da

seacutetima seccedilatildeo do Expositio o que pode ser uma indicaccedilatildeo de que Joaquim esperava que

535 Em Daniel 927 registra-se que algueacutem viraacute sobre ldquoas asas da abominaccedilatildeordquo A mesma imagem eacute usada em

Daniel 1131 e 1211 mas a referecircncia primaacuteria em termos histoacutericos e literaacuterios eacute mesmo Daniel 9 quando

o autor apocaliacuteptico descreve a profanaccedilatildeo do templo por Antiacuteoco Epiacutefanes A funccedilatildeo principal desta narrativa

apocaliacuteptica era garantir que o tempo de anguacutestia dos leitores estava para chegar ao fim e por isso o relato

anuncia uma iminente ldquogrande abominaccedilatildeordquo (referecircncia agrave profanaccedilatildeo do templo de Jerusaleacutem) mas garante

que quando isso acontecer a libertaccedilatildeo divina viraacute em seguida Cf COLLINS John J Daniel with in

introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 1984 p 93 536 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 537 Joaquim usa o termo ldquogeraccedilatildeordquo para descrever periacuteodos histoacutericos Uma geraccedilatildeo teria a duraccedilatildeo de trinta

anos Do nascimento de Jesus ateacute o descanso sabaacutetico 1260 anos 42 geraccedilotildees passaram Cf WEST

ZIMDARS-SWARTZ op cit p 32-35

160

Jerusaleacutem fosse o lugar desta reuniatildeo universal dos ldquopovos do altiacutessimordquo no final dos

tempos538 Assim se a graccedila de Deus se moveu do Oriente para o Ocidente no periacuteodo

sabaacutetico ela voltaraacute do Ocidente para o Oriente

Joaquim denomina o periacuteodo de sabbatum e abre a seacutetima seccedilatildeo do Expositio falando

dos seis ldquotemposrdquo anteriores (tempore laboriosa) Se o ocasiatildeo anterior foi de trabalho este

uacuteltimo tempo da histoacuteria seraacute de descanso Por isso eacute um ldquosaacutebadordquo expressatildeo que faz alusatildeo

agrave semana primordial de criaccedilatildeo das Escrituras hebraicas cuja narrativa descreve a divindade

criando o mundo em seis dias No seacutetimo entretanto descansou ldquode toda a sua obra que

tinha feito E abenccediloou Deus o dia seacutetimo e o santificou porque nele descansou de toda a

obra que como Criador fizerardquo (Gecircnesis 22-3) Esse relato dos primoacuterdios retorna vaacuterias

vezes nas narrativas biacuteblicas Em uma delas surge no coacutedigo legal judaico conhecido como

ldquodez mandamentosrdquo ldquoem seis dias fez o Senhor os ceacuteus e a terra o mar e tudo o que neles

haacute e ao seacutetimo dia descansou por isso o Senhor abenccediloou o dia de saacutebado e o santificourdquo

(Ecircxodo 2011) O texto da Vulgata assim traduziu uma das expressotildees ldquobenedixit Dominus

diei sabbatirdquo Tomando esta semana da criaccedilatildeo como uma das estruturas da histoacuteria da

humanidade o abade vinculou os tempos anteriores de trabalho com os seis primeiros dias

aguardando com muita ansiedade o ldquoseptimum mundi statemrdquo o saacutebado de descanso

espiritual539

Na seacutetima parte do Expositio a descriccedilatildeo deste saacutebado final permanece vaga em

muitos aspectos Joaquim fala de caracteriacutesticas como pax e spiritualis intellectus A

primeira eacute uma inversatildeo dos sucessivos conflitos que caracterizaram a histoacuteria da

humanidade A segunda aponta para um aperfeiccediloamento da sabedoria dos homens e

mulheres do final da histoacuteria que excederaacute a sabedoria dos livros e tornaraacute desnecessaacuteria a

pregaccedilatildeo Mas se desejamos uma caracterizaccedilatildeo mais abrangente precisamos recorrer a

outra fonte do pensamento do abade de Fiore

Joaquim transformou algumas de suas ideias em imagens e esquemas o que faz com

que uma forma de aproximaccedilatildeo ao saacutebado do Espiacuterito esteja no documento conhecido como

Liber Figurarum540 Esta obra sobreviveu como uma coletacircnea de figuras do abade Algumas

538 WHALEN op cit p 123 539 Idem p 106 540 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 169 Para uma anaacutelise ampla do Liber Figurarum cf

REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiore Genuine and spurious collections Medieval and

Renaissance Studies Los Angeles v 3 p 170-199 1954 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo

Gioachimita op cit p 99-106 Usamos a ediccedilatildeo encontrada em GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio

del mistero Le tavole del Liber Figurarum di Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi

Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000

161

destas aparecem no contexto dos livros autecircnticos Outras exclusivamente no Liber No

total satildeo 26 figuras resultado da ediccedilatildeo dos disciacutepulos de Joaquim que natildeo apenas

organizaram suas principais imagens mas tambeacutem desenharam outras seguindo de perto

suas ideias541 Para a professora Reeves estas imagens ldquosatildeo exposiccedilotildees do seu sistema de

pensamento natildeo meramente ilustraccedilotildees para seus textos Satildeo projetos independentes que

incorporam as diversas estruturas do pensamento de Joaquim eventualmente de forma mais

adequada do que palavras poderiam fazerrdquo542

Uma das figuras que mais claramente tratou do periacuteodo sabaacutetico foi a Dispositio novi

ordinis pertinens ad tertium statum (Liber Figurarum Tav XII)543 Eacute um diagrama da

sociedade do final dos tempos Percebe-se que o abade apresenta essa nova sociedade com

elementos de descontinuidade e continuidade em relaccedilatildeo ao tempo anterior A Igreja por

exemplo seraacute transformada mas natildeo necessariamente descontinuada

A nova sociedade foi desenhada na forma de uma cruz grega com suas partes

transformadas em oratoacuterios o que define o centro desta nova realidade humana como uma

grande instituiccedilatildeo religiosa generalizada e universal A figura eacute formada por um oratoacuterio

central cercada por outros quatro oratoacuterios que correspondem a diversos tipos de vida

monaacutestica tendo na parte inferior da figura dois outros oratoacuterios maiores em circunferecircncia

mas distantes dos oratoacuterios centrais Ou seja satildeo cinco oratoacuterios dedicados a tipos distintos

de monges (ordo monachorum) um para os cleacuterigos (ordo clericorum) e outro para os leigos

(ordo coniugatorum)

A imagem foi baseada na passagem de 1Coriacutentios 1212 quando Paulo descreve o

corpo com muitas partes que formam um soacute organismo quando estatildeo todas juntas Joaquim

combinou esta imagem com a visatildeo dos ldquoseres viventesrdquo de Apocalipse 4 um leatildeo um boi

um homem e uma aacuteguia Em seguida ele aplicou a estes seres os ldquocarismasrdquo de Efeacutesios 4

apoacutestolos profetas evangelistas e pastores-mestres O resultado dessa amaacutelgama eacute uma

comunidade que daacute unidade e plenitude ao ldquopovo do altiacutessimordquo na terra

Nesta comunidade religiosa perfeita do fim do mundo numa posiccedilatildeo correspondente

ao ldquonarizrdquo da sociedade estaacute o pater spiritualis que guia pelo exemplo e dedicaccedilatildeo Este

541 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 13-125 p 100 MC GINN Bernard

Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der Joachim of Fiore the

Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 103 542 REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiorehellip op cit p 199 543 Conferir esta imagem no anexo 4 retirada de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op

cit p 13 Para a anaacutelise da Dispositio cf MCGINN Bernard Apocalyptic Spirituality op cit p 111-112

TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 103-104

162

oratoacuterio eacute dedicado agrave ldquoMaria e a Santa Jerusaleacutemrdquo Ele eacute simbolizado pela pomba e funciona

como um conselho para o restante da sociedade Joaquim o denomina tambeacutem de ldquotrono de

Deusrdquo como em Apocalipse 4 O ldquopai espiritualrdquo e os demais membros deste oratoacuterio

seguem a ldquoregrardquo na pureza da forma No interior do oratoacuterio aparece a descriccedilatildeo ldquoEste local

seraacute a matildee de todos os locais Seraacute o pai espiritual que presidiraacute todos os lugaresrdquo544

Agrave esquerda do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPedro e de Todos os Santos

Apoacutestolosrdquo Esta parte representa a matildeo Eacute simbolizada pelo Leatildeo e funciona como uma

casa para pessoas idosas e doentes se recuperarem por meio do ldquoespiacuterito de fortalezardquo

Apesar da fragilidade dos seus membros eles ainda seguem a regra religiosa

Neste oratoacuterio vatildeo viver estes irmatildeos delicados e velhos que por

fraqueza de estocircmago natildeo podem suportar a austeridade da regra e do

jejum mas ainda assim como podem se esforccedilam para proceder de

acordo com a pureza da regra Eles natildeo seratildeo obrigados a sair para os

campos para fazer trabalhos manuais mas vatildeo executar seus trabalhos

em casa debaixo de cuidados Natildeo seraacute permitida a entrada neste oratoacuterio

por vontade proacutepria ou escolha mas apenas aqueles a quem ordenou o

abade545

Agrave direita do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPaulo e de todos os Doutores da

Igrejardquo Esta casa representa a ldquoorelhardquo e eacute simbolizada por um ldquohomemrdquo Funciona como

um centro de aprendizagem onde pessoas iratildeo estudar com a ajuda do ldquoespiacuterito de

inteligecircnciardquo ldquoNeste oratoacuterio vivem homens eruditos entretanto com desejo de aprender as

coisas de Deus e que desejam dedicar-se mais do que os outros para ler e estudar a doutrina

espiritualrdquo546

Acima do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoJoatildeo evangelista e dos Santos Virgensrdquo

Esta parte representa os ldquoolhosrdquo Eacute simbolizada pela aacuteguia e seu papel eacute a contemplaccedilatildeo

debaixo da completa clausura O ldquoespiacuterito de sabedoriardquo estaacute sobre aqueles que estatildeo nesta

casa Eacute aqui que os ldquoviri spiritualesrdquo viveratildeo vidas perfeitas atraveacutes do louvor e da

contemplaccedilatildeo Segundo a descriccedilatildeo na imagem ldquoneste oratoacuterio viveratildeo homens perfeitos e

virtuosos que inflamados pelo desejo de vida espiritual querem levar uma vida

contemplativardquo547 Eles ldquojejuam o tempo todo exceto por motivo de doenccedila Natildeo bebem

544 GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 13-14 545 Idem 546 Idem 547 Idem

163

vinho e nem comem alimentos temperado com oacuteleo exceto nos domingos e nos principais

dias festivosrdquo548

Abaixo do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoEstevatildeo e de todos os Santos

Martirizadosrdquo Ele eacute simbolizado pelo ldquoboirdquo e representa a ldquobocardquo da comunidade Por meio

do ldquoespiacuterito de ciecircnciardquo estes membros seratildeo preparados e treinados em grande disciplina

espiritual Neste oratoacuterio ldquovivem os irmatildeos que tecircm forccedila para a atividade exterior e natildeo

podem progredir na disciplina espiritual como apropriadordquo Esta descriccedilatildeo jaacute indica um

decliacutenio de status em relaccedilatildeo aos membros dos oratoacuterios superiores e seus representantes de

alto ideal de vida religiosa

Na parte inferior da figura haacute ainda outros dois oratoacuterios que consomem um grande

espaccedilo da imagem Haacute um intervalo maior entre eles e a parte superior da Dispositio mas

ainda haacute uma ligaccedilatildeo como aparece no registro ldquoentre o mosteiro e a sede do clero deve

existir uma distacircncia de quase trecircs milhasrdquo Elemento semelhante seraacute repetido para o espaccedilo

que separa as duas casas de baixo

O oratoacuterio do clero eacute chamado de ldquoJoatildeo Batista e dos Profetasrdquo Eacute uma casa larga e

representa os ldquopeacutesrdquo da comunidade Eacute simbolizada por um ldquocachorrordquo Por meio do ldquoespiacuterito

de devoccedilatildeordquo sacerdotes e cleacuterigos vivem em continecircncia e comunidade sob a abstinecircncia

de alguns tipos de alimento e de roupa festiva

Entre o oratoacuterio do clero e o mais inferior que forma a base surge novamente a

menccedilatildeo do espaccedilo de separaccedilatildeo entre os edifiacutecios tema que aponta para um distanciamento

natildeo apenas espacial entre os personagens de cada um mas tambeacutem de poder funccedilatildeo e papel

ldquoentre estes dois oratoacuterios deve existir um espaccedilo de cerca de trecircs estaacutediosrdquo549

Na parte inferior da figura estaacute o oratoacuterio de ldquoAbraatildeo e dos Patriarcasrdquo representado

por uma ovelha cuja funccedilatildeo eacute servir de casa para pessoas casadas e seus filhos sob o ldquotemor

pela salvaccedilatildeordquo Estes viveratildeo em casas privadas mas suas vidas seguiratildeo as ordens do pater

spiritualis e seus supervisores Eles trabalharatildeo regularmente daratildeo o diacutezimo e viveratildeo uma

vida nivelada sem distinccedilatildeo de classes e com bens materiais em comum A imagem ainda

registra ldquoSob o nome deste oratoacuterio estaratildeo reunidos os cocircnjuges com seus filhos e filhas

em forma comunitaacuteria para ter relaccedilotildees com as esposas mais para produzir descendentes

do que para satisfazer os desejosrdquo550

548 Idem 549 Idem 550 Idem

164

Por meio da Dispositio surge a descriccedilatildeo de uma realidade social fortemente

estruturada com espaccedilos geograacuteficos marcados por status funccedilatildeo e dinacircmica religiosa e

social Joaquim recorreu ao texto de Efeacutesios 43 para falar da metaacutefora do corpo de Cristo

com oacutergatildeos diferentes Usou tambeacutem Joatildeo 142 para trazer a imagem das vaacuterias casas

divinas Por meio destas metaacuteforas ele compocircs a imagem de sete ldquocasas espirituaisrdquo nas

quais leigos diferentes niacuteveis de monges cleacuterigos e sacerdotes habitaratildeo551 Estas sete casas

satildeo ordenadas como se fossem a futura Jerusaleacutem transcendental de Apocalipse 22 Natildeo eacute

ainda aquela mas uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica de suas qualidades Esta comunidade

monaacutestica se manifestaraacute no periacuteodo sabaacutetico em ldquosemelhanccedila agrave Jerusaleacutem Celesterdquo552

A Dispositio conteacutem o plano de um monasteacuterio perfeito no qual a vida contemplativa

desempenha o papel central da existecircncia humana553 Apesar do predomiacutenio da ordo

monachorum haveraacute tambeacutem possivelmente sob os influxos da espiritualidade

cisterciense554 espaccedilo para trabalho e estudo Daiacute a existecircncia dos leigos para trabalhar dos

cleacuterigos para ministrar os sacramentos aos leigos e do ldquooratoacuterio do boirdquo formado por

monges que teratildeo contato com cleacuterigos

Mesmo se recusando a definir Joaquim como milenarista em funccedilatildeo de uma definiccedilatildeo

estreita do fenocircmeno555 o francecircs Jean Delumeau descreve longamente o sistema do calabrecircs

na segunda obra de sua trilogia dedicada ao estudo do paraiacuteso556 No momento de resumir a

natureza do repouso sabaacutetico o historiador francecircs recorreu a diversas expressotildees do abade

e forneceu esta siacutentese que dificilmente poderia deixar de ser definida como milenarista

Depois do tempo da ldquolei e da ldquograccedilardquo viraacute portanto o da ldquomaior graccedilardquo

durante o qual a natureza se transformaraacute e se embelezaraacute A liberdade

espiritual floresceraacute no mundo Entatildeo ldquonatildeo haveraacute mais sofrimentos e

gemidos Reinaratildeo ao contraacuterio o repouso a calma a abundacircncia da pazrdquo

Seremos voltados agrave contemplaccedilatildeo ao louvor ldquoDanccedilaremos de alegria ao

contemplar os admiraacuteveis desiacutegnios de Deusrdquo Natildeo haveraacute mais

necessidade de escrever livros para explicar as Escrituras A preacutedica se

deteraacute O tempo da letra teraacute terminado Os fieis contemplaratildeo os misteacuterios

551 Idem 552 Idem 553 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 25 554 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango v

1 p 217-240 2004 p 229 555 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias

Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria

mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 556 A trilogia de Delumeau eacute formada pelas seguintes obras DELUMEAU Jean Une histoire du paradis Le

Jardin des deacutelices Fayard Hachette Litteacuteratures 2002 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma

histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 DELUMEAU Jean O que sobrou do paraiacuteso

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

165

em plena luz O Evangelho segundo a letra seraacute substituiacutedo pelo

ldquoEvangelho eternordquo que procede do Evangelho de Cristo A verdade nos

seraacute dada em sua simplicidade557

O saacutebado do Espiacuterito descrito por Joaquim eacute sim um tipo de milenarismo uma

forma de utopia social558 que espera por um periacuteodo de felicidade para toda a humanidade

mesmo que afirme alguns benefiacutecios especiais para um grupo dentro dela Este periacuteodo seraacute

terreno e natildeo numa realidade transcendental eacute iminente pois a transformaccedilatildeo estaacute proacutexima

de comeccedilar seraacute miraculosa jaacute que as mudanccedilas aconteceratildeo por meio da atuaccedilatildeo

sobrenatural do Espiacuterito divino Tal felicidade seraacute total com a inversatildeo dos males da terra

mas natildeo com a destruiccedilatildeo de todas as instituiccedilotildees anteriores A Igreja sobreviveraacute

completamente transformada e sob a direccedilatildeo de um novo tipo de papado o ldquouniversalis

scilicet pontifex nove Ierusalemrdquo (certamente o pontiacutefice universal da nova Jerusaleacutem) ou

ldquopapa angelicusrdquo559

75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito560

O historiador inglecircs Norman Cohn no momento de apresentar Joaquim de Fiore

como o ldquoinventorrdquo do sistema profeacutetico ldquomais influente de todos os conhecidos na Europa

ateacute ao aparecimento do marxismordquo argumenta que a origem do seu sistema estaacute na

conjugaccedilatildeo de ldquoescatologias derivadas do Apocalipse e dos Oraacuteculos Sibilinosrdquo561 Ao

discutir o conceito de milenarismo na Idade Meacutedia o medievalista Robert Lerner argumenta

557 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 45 As aspas pertencem ao texto citado 558 Assim se expressou Cohn ldquoPor mais respeito que Joaquim tivesse agraves doutrinas exigecircncias e interesses da

Igreja o que ele propusera era na verdade um novo tipo de milenarismo ndash e aliaacutes um tipo que as geraccedilotildees

futuras haveriam de elaborar num sentido antieclesiaacutestico e depois num sentido abertamente secularrdquo Cf

COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia

Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 90 559 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard

K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-

88 p 85 560 Em alguns momentos a busca pelas fontes dos textos eacute uma tarefa ingloacuteria Os autores natildeo informam seus

pontos de partida e o maacuteximo que encontramos satildeo alusotildees mais ou menos transparentes Aleacutem dos topoi

disponiacuteveis para dada conjuntura histoacuterica o que sobra eacute um conjunto de hipoacuteteses com graus diferentes de

plausibilidade Conferir a argumentaccedilatildeo neste sentido em FLANAGAN Sabina Twelfth-Century apocalyptic

imaginations and the coming of the Antichrist The Journal of Religious History v 24 n 1 p 57-69 2000 p

59 561 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 89 O viacutenculo que Cohn fez entre Joaquim e Sibila natildeo

faz muito sentido As sibilas como a Tiburtina eram bem conhecidas no periacuteodo de Joaquim mas

manifestavam um tipo de milenarismo distinto Elas esperavam por um periacuteodo de paz na terra antes do

Anticristo normalmente dirigido por um imperador do final dos tempos ou por um papa poderoso

166

de forma parecida afastando ainda mais o abade do livro joanino e aproximando-o natildeo

necessariamente das Sibilas sugeridas por Cohn mas do poacutes-milenarismo da Glossa

Ordinaria562

Ambos sugerem por caminhos diferentes que o milenarismo de Joaquim de Fiore

natildeo depende inicialmente ou mesmo diretamente do milenarismo de Joatildeo de Patmos

Algumas evidecircncias poderiam reforccedilar as hipoacuteteses destes historiadores O sermatildeo

conhecido como Locuturi aliquid563 escrito por Joaquim em algum momento no iniacutecio da

deacutecada de 1180 em suas uacuteltimas linhas apoacutes descrever o que seria a sexta parte do

Apocalipse termina de forma lacocircnica ldquoEntatildeo viraacute o saacutebado apoacutes a ressurreiccedilatildeo pelo juiacutezo

e finalmente seraacute revelada a gloacuteria da cidade celestialrdquo564 No iniacutecio do sermatildeo ele jaacute

anunciara que o livro de Joatildeo ldquoestaacute dividido e limitado em sete partes e temposrdquo565 Este

texto tambeacutem indica que o abade jaacute tinha consolidada uma perspectiva sobre a estrutura das

seis primeiras partes do Apocalipse elemento que natildeo sofreria mudanccedila ateacute a conclusatildeo do

Expositio quase duas deacutecadas depois A sexta parte encerraria com a derrota da besta e o

falso profeta no final de Apocalipse 19 A seacutetima entatildeo iria de Apocalipse 20 ateacute o capiacutetulo

22 Como jaacute indicamos neste mesmo capiacutetulo Joaquim explicita nas partes iniciais do seu

grande comentaacuterio que ele planejava fazer uma obra de sete partes Se ele mudou para oito

em algum momento do processo foi justamente para dar destaque aos dez versiacuteculos do

texto milenar (a uacutenica mudanccedila significativa na estrutura) destaque que antes ele natildeo dava

A estrutura final do Expositio assim indica como o abade acentuou significativamente o

papel de Apocalipse 201-10 no conjunto da obra ao relacionaacute-lo com o terceiro status e a

seacutetima aetas do mundo

Tanto no Liber de Concordia quanto no Psalterium o abade jaacute apresentou o

desenvolvimento da histoacuteria humana na direccedilatildeo de um cliacutemax de beatitude Talvez uma das

passagens mais claras neste sentido esteja na Concordia

562 LERNER Robert E Millennialism In MC GINN Bernard (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism

Apocalypticism in Western History and Culture New York Continuum 1998 3v V 2 p 326-360 p 346

As Sibilas aludidas por Cohn como a Tiburtina e a Glossa Ordinaria manifestam tipos diferentes de

milenarismos O preacute-milenarismo da Tiburtina descreve um periacuteodo de felicidade na terra anterior ao advento

do Anticristo A Glossa Ordinaria apresenta um poacutes-milenarismo com o periacuteodo de felicidade para depois da

derrota do Anticristo Em ambos os fenocircmenos a parousia (segundo advento de Jesus) natildeo exerce papel na

instauraccedilatildeo da felicidade 563 Sobre este sermatildeo conferir o capiacutetulo IV supra 564 ldquoEt tunc erit sabbatum deinde resurectio ad iudicium et tunc revelabitur gloria civitates supernerdquo Texto

latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 p

130-131 565 ldquoSeptem partibus distinctus et temporibus terminaturrdquo Texto latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino

da Fiore op cit p 130-131

167

Os misteacuterios das divinas paacuteginas mostram-nos enfim os Trecircs Estados do

mundo O primeiro eacute aquele no qual estivemos sob a lei o segundo no qual

estamos sob a graccedila o terceiro que esperamos iminente sob uma graccedila

ampliada [] Por isso o primeiro Estado foi na ciecircncia o segundo na posse

da sabedoria o terceiro na plenitude do sentido O primeiro na servidatildeo

servil o segundo na servidatildeo filial o terceiro na liberdade O primeiro nos

flagelos o segundo na accedilatildeo o terceiro na contemplaccedilatildeo O primeiro no

temor o segundo na feacute o terceiro na caridade O primeiro eacute dos servos o

segundo eacute dos filhos o terceiro eacute dos amigos O primeiro eacute dos velhos o

segundo eacute dos jovens o terceiro das crianccedilas O primeiro na luz da estrela

o segundo na aurora o terceiro ao meio-dia O primeiro no inverno o

segundo na primavera o terceiro no veratildeo O primeiro produz urtigas o

segundo rosas o terceiro liacuterios O primeiro ervas o segundo espigas o

terceiro trigo O primeiro a aacutegua o segundo o vinho o terceiro o oacuteleo O

primeiro pertence agrave Setuageacutegima o segundo agrave Quaresma o terceiro agrave festa

pascal O primeiro Estado pertence ao Pai que eacute criador de todas as coisas

o segundo ao Filho que se dignou assumir nosso limite o terceiro ao

Espiacuterito Santo do qual diz o apoacutestolo Onde se achar o Espiacuterito do Senhor

aiacute estaacute a liberdade (Liber de Concordia 112r)566

O sistema acima apresentado relaciona cada status da histoacuteria da humanidade com

uma pessoa divina explicitando pelo acuacutemulo de imagens e analogias que o segundo

ultrapassou o primeiro e o terceiro ultrapassaraacute o segundo Para o abade a Era do Espiacuterito

seria muito melhor do que as duas anteriores o que significa que a humanidade poderia

esperar por um tempo de esplendor para o futuro sob a tutela do Espiacuterito divino

Sem chamar-se historiador o abade de Fiore se dedicava nos termos de Adeline

Rucquoi agrave ldquoanaacutelise da economia do tempordquo567 A forma como Joaquim entendia a histoacuteria

(preteritae rei) o levou a vaticinar o futuro em uma perspectiva de progresso e de evoluccedilatildeo

loacutegica Para o abade a histoacuteria era uma constante que se desdobrava de forma contiacutenua Se

ele compreende o passado ele pode prever o futuro Neste sentido eacute uacutetil ter uma perspectiva

de siacutentese dos sistemas histoacutericos do abade e verificar a forma como eles demandavam o

periacuteodo sabaacutetico

O editor do Liber de Concordie568 Randolph Daniel professor da Universidade de

Kentucky ao explicar a reflexatildeo histoacuterica de Joaquim o faz por meio daquilo que ele chamou

566 Esta longa citaccedilatildeo estaacute no Livro V capiacutetulo 84 ainda sem ediccedilatildeo criacutetica A traduccedilatildeo em questatildeo eacute de

BAUCHWITZ Oscar Federico A histoacuteria em Joaquim de Fiore Princiacutepios revista de filosofia Natal v 1

n 1 p 109-130 1994 p 110 567 A historiadora Adeline Rucquoi destaca que o seacuteculo XII foi um periacuteodo significativo para a reflexatildeo da

histoacuteria quando filoacutesofos e teoacutelogos se debruccedilaram a buscar uma ratio preterita rei ou o sentido do tempo

Aleacutem de Joaquim ela menciona Hugo de Satildeo Vitor Oton de Freising Anselmo de Havelberg e Petrus

Comestor Cf RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 223-224 568 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti

Philadelphia The American Philosophical Society 1983 O autor sintetiza os sistemas histoacutericos de Joaquim

168

de ldquoinflexotildees do pensamentordquo que aparecem nas poucas notas auto-biograacuteficas que o abade

deixou em suas obras569 A primeira se deu em algum momento durante a peregrinaccedilatildeo agrave

Palestina e deveria jaacute ser o conteuacutedo principal de suas pregaccedilotildees depois que ele retornou

para a Calaacutebria e atuava como pregador itinerante em Rende no iniacutecio da deacutecada de 1170

entremente o pontificado de Alexandre III (papa de 1159-1181)

Este sistema foi chamado por Joaquim de concordia duorum testamentorum ou os

paralelos entre as perseguiccedilotildees de Israel e as perseguiccedilotildees da Igreja Eacute uma maneira de

dividir a histoacuteria em duas grandes etapas Uma se chamava Antigo Testamento e se estendia

da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus A outra era o Novo Testamento e iria do nascimento

de Jesus ateacute o final dos tempos A histoacuteria da humanidade eacute o palco da atuaccedilatildeo de Deus para

salvar seus povos O primeiro era Israel O segundo a Igreja Neste esquema a histoacuteria

avanccedila por meio de tribulaccedilotildees e perseguiccedilotildees que se repetem paralelamente nos dois

testamentos e nos dois povos

As tensotildees poliacuteticas entre o papado e Impeacuterio Germacircnico estavam particularmente

altas depois de deacutecadas de conflito entre o papa Alexandre III (papa de 1159-1181) e o

Imperador Frederico I Barbarorroxa (1122-1190) Este ambiente parece estar traduzido no

alinhamento que Joaquim fez entre as ldquoperseguiccedilotildeesrdquo dos judeus na eacutepoca do Antigo

Testamento com as batalhas contra a Igreja no tempo do Novo Testamento

Joaquim aplicou esta estrutura de perseguiccedilotildees aos sete selos do Apocalipse e a

abordou repetidamente em vaacuterias de suas obras desde Genealogia570 ateacute De Septem

Sigillis571 embora os detalhes mudem de texto para texto Posteriormente este esquema de

dois tempos foi definido pelo abade de secunda diffinitio e o simbolizou pela letra grega

cursiva ocircmega572 Os Testamentos assim satildeo expressotildees tanto canocircnicas quanto histoacutericas

Se toda a histoacuteria de Israel da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus pode ser encontrada no

primeiro testamento Joaquim espera que a histoacuteria completa da Igreja desde sua origem ateacute

o final dos tempos esteja contida no segundo testamento especialmente no Apocalipse de

Joatildeo Mesmo neste esquema de dois tempos ainda haacute um momento sabaacutetico A seacuterie de sete

perseguiccedilotildees de Israel e da Igreja terminam ambas em um periacuteodo de descanso No caso de

em DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of

History Speculum Chicago v 55 n 3 p 469-483 1980 569 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xiii-xviii 570 Genealogia eacute provavelmente a obra mais antiga de Joaquim escrita segundo Potestagrave em 1176 Cf

POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 16 571 Possivelmente de 1198 Cf TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I Sigilli dellrsquoApocalisse In

GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 45 572 Conferir o esquema na posiccedilatildeo inferior esquerda do anexo 6

169

Israel o descanso veio apoacutes os conflitos com os gregos representados por Antiacuteoco Epiacutefanes

e se estendeu ateacute o nascimento de Jesus De maneira paralela apoacutes a seacutetima perseguiccedilatildeo pelo

Anticristo viraacute um descanso para a Igreja O princiacutepio fundamental eacute uma divisatildeo da histoacuteria

em duas partes cada uma delas marcada por perseguiccedilatildeo julgamento e batalha do povo de

Deus No futuro que Joaquim imaginava ser iminente a terceira pessoa da Trindade iria

libertar completamente os cristatildeos fieacuteis do sofrimento e das tribulaccedilotildees que caracterizaram

a histoacuteria desde os tempos de Israel ateacute os dias do abade Os conflitos entre os poderes

temporais e eclesiaacutesticos terminariam de vez jaacute que o periacuteodo sabaacutetico seria caracterizado

principalmente pela paz

A segunda inflexatildeo se deu no fim de 1183 ou iniacutecio de 1184 enquanto Joaquim

esteve em Casamari para tratar de aspectos burocraacuteticos para Corazzo Ali desenvolveu seu

mais conhecido sistema de tria statum em que a Trindade se relaciona com a histoacuteria

imprimindo nela a natureza das pessoas divinas Pai Filho e Espiacuterito573 Este uacuteltimo por sua

vez seria responsaacutevel por implantar uma era de perfeiccedilatildeo espiritual na terra Estes status

eram marcados ainda por initiatio frutificatio e consumatio Ou seja eles apresentavam

um iniacutecio um momento em que frutificam de maneira especial e uma fase de teacutermino No

caso da Era do Pai esta comeccedilou com Adatildeo frutificou em Abraatildeo e terminou em Cristo O

segundo status comeccedilou com Uzias frutificou em Zacarias (pai de Joatildeo Batista) e terminaria

algum tempo depois de Joaquim O terceiro status comeccedilou com Satildeo Bento de Nuacutersia

frutificaria na geraccedilatildeo de Joaquim e terminaria no fim da histoacuteria574 Joaquim aplicou este

esquema trinitaacuterio agrave progressatildeo da vida religiosa na histoacuteria No status do Pai predominavam

os casados no status do Filho predominavam os cleacuterigos no status do Espiacuterito

predominariam os monges Aplicou tambeacutem em trecircs povos a proteccedilatildeo de Deus deixou

Israel passou para os gregos e terminou nos latinos Esta divisatildeo em trecircs status foi definida

pelo abade como prima diffinitio representada simbolicamente pela letra grega uncial

Alfa575 Nesta estrutura a histoacuteria tem uma meta que soacute seraacute alcanccedilada no status do Espiacuterito

apoacutes o fim do segundo status quando se manifestar o descanso sabaacutetico A prima diffinitio

mais ateacute do que a secunda manifesta toda a ansiedade do abade pela perfeiccedilatildeo da vida

monaacutestica e talvez reflita a crise que acabaraacute levando-o a deixar Corazzo e fundar a Ordem

Florense

573 Conferir o diagrama dos Ciacuterculos Trinitaacuterios do anexo 6 574 WHALEN Brett Edward Dominion of God op cit 107 575 Conferir o esquema na posiccedilatildeo superior esquerda do anexo 6

170

O primeiro tempus coincide com o primeiro status O segundo tempus com o segundo

status ateacute a eacutepoca de Joaquim Apesar do saacutebado do segundo tempus natildeo ser tratado de forma

tatildeo proeminente quanto o saacutebado do terceiro status em ambas as diffinitiones a plena

realizaccedilatildeo estaacute no futuro Nas duas haacute uma evoluccedilatildeo de instituiccedilotildees e de qualidade de vida576

Finalmente apoacutes retornar para Corazzo cerca de um ano apoacutes a passagem por

Casamari Joaquim deu mais um passo na consolidaccedilatildeo dos seus sistemas histoacutericos Ele

finalmente conseguiu relacionar a concordia duorum testamentorum e a intervenccedilatildeo divina

por meio dos tria statum atraveacutes da estrutura geral do Apocalipse A obra de Joatildeo assim se

tornou aos olhos do abade a chave para a compreensatildeo inteira da histoacuteria da humanidade

Aleacutem dos sistemas histoacutericos do abade a historiografia tem sugerido outra base

significativa para o saacutebado do Espiacuterito desta vez por meio dos recursos exegeacuteticos do abade

Os leitores ocidentais do Apocalipse de Joatildeo desde as criacuteticas ao quiliasmo de Agostinho

de Hipona Jerocircnimo e Gregoacuterio Magno liam o Apocalipse de forma moralizante e

alegoacuterica sem viacutenculos expliacutecitos com a histoacuteria O milecircnio dos maacutertires de Apocalipse 20

era interpretado de forma a descrever o tempo da Igreja na terra577 Estes autores imaginavam

a histoacuteria caminhando na direccedilatildeo de vaacuterios desastres sendo o penuacuteltimo o advento do

Anticristo Ele instauraria uma grande perseguiccedilatildeo agrave Igreja depois do qual Cristo viria de

forma gloriosa para o uacuteltimo julgamento e a consumaccedilatildeo da histoacuteria do mundo578

Uma ideia surgiu entretanto entre os antigos comentaristas de Daniel Ao comentar

Daniel 1211-12 por volta do ano 400 Jerocircnimo argumentou que o tempo da tribulaccedilatildeo

(1290 dias) e do fim do mundo (1335 dias) tinha um prazo residual de 45 dias Este mecircs e

meio seria entatildeo o intervalo entre a derrota do Anticristo e o julgamento final da humanidade

Beda o Veneraacutevel no iniacutecio do seacuteculo VIII concordou com Jerocircnimo e acrescentou que

este intervalo tambeacutem poderia ser encontrado nos trinta minutos de silecircncio no ceacuteu apoacutes a

576 DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of

History op cit p 482 577 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 29-31 Segundo Desroche esta ldquoconcepccedilatildeo

alcanccedilou posiccedilatildeo hegemocircnica mas nunca deixou de ser sitiada por fileiras de dissidecircncias oriundas das trecircs

grandes confissotildees cristatildes (catolicismo protestantismo ortodoxia)rdquo Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de

messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 22

Por isso Umberto Eco fala de um ldquomillenarismus absconditusrdquo neste periacuteodo de hostilidade contra o quiliasmo

Cf ECO Umberto Wainting for the Millennium In LANDES Richard GOW Andrew VAN METER

David C (ed) The apocalyptic year 1000 religious expectation and social change ndash 950-1050 Oxford Oxford

University Press 2003 p 121-135 p 125 578 FLANAGAN op cit p 59 Flanagan acrescenta que o que variava bastante era a sequecircncia dos eventos

finais o tempo entre cada um deles bem como a perspectiva de iminecircncia

171

abertura do seacutetimo selo do Apocalipse O exegeta do seacuteculo IX Haimo de Auxerre

argumentou ainda que o periacuteodo em questatildeo natildeo precisava ser qualificado de forma precisa

jaacute que era apenas um prazo miacutenimo Estes autores natildeo estavam certos sobre os motivos para

este prazo579 ateacute que a Glossa Ordinaria no iniacutecio do seacuteculo XII em uma de suas notas

sugeriu que o tempo posterior ao advento do Anticristo e anterior agrave volta de Cristo

denominado entatildeo de refrigerium sactorum (descanso dos santos) seria uma fase de

felicidade prosperidade e paz na terra Alguns autores especialmente do mesmo periacuteodo

ampliaram ainda mais este novo conceito como Honorius Augustodunesis (1080-1156) que

argumentou que ele seria o tempo da conversatildeo de todos os pagatildeos ou Otto de Freising

(114-1158) que previu nele o ingresso dos judeus agrave Igreja Levando em conta esta corrente

exegeacutetica Robert Lerner levantou a hipoacutetese que o milenarismo do Espiacuterito de Joaquim

deveria ser entendido como uma expressatildeo exegeacutetica modificada da ldquotradiccedilatildeo do refrigeacuterio

dos santosrdquo580 Eacute possiacutevel concordar parcialmente com Lerner ao indicar uma fonte

plausiacutevel para a escatologia do abade mas natildeo de forma isolada Os sistemas histoacutericos dele

jaacute demandavam a expectativa de um futuro melhor

De qualquer forma o que se percebe eacute que o descanso sabaacutetico que Joaquim

descreveu na passagem de Apocalipse 201-10 teve pontos de partida bem mais amplos do

que o texto joanino O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim parece ser o resultado de sua reflexatildeo

histoacuterica e da tradiccedilatildeo exegeacutetica do refrigeacuterio dos santos Assim nos momentos finais do

Expositio ao fazer a exegese de Apocalipse 20 o abade aplica no milecircnio de Joatildeo as ideias

que jaacute trazia consolidadas que apoacutes a queda do Anticristo e antes da volta de Jesus haveria

na terra natildeo necessariamente um reinado dos maacutertires mas o descanso da Igreja e acima de

tudo o refrigeacuterio dos monges sob a direccedilatildeo final da terceira pessoa da Trindade

76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia

Segundo Sabina Flanagan explicaccedilotildees histoacutericas para as opccedilotildees dos autores podem

ter relaccedilatildeo entre outros fatores com crenccedilas e restriccedilotildees dogmaacuteticas religiosas com

engajamentos poliacuteticos e viacutenculos sociais ou com confrontos contra dissidecircncias581 Essa eacute

579 LERNER Robert E Millennialism op cit p 344 TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I

Sigilli dellrsquoApocalisse op cit p 34 580 LERNER Robert E Millennialism op cit p 347 581 FLANAGAN op cit p 64

172

uma forma de dizer que as representaccedilotildees que se materializaram nas praacuteticas e discursos de

Joaquim configuram respostas a conjunturas poliacuteticas sociais culturais e eclesiaacutesticas que

caracterizavam o Ocidente medieval582

Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai Mauro um notaacuterio a

serviccedilo da chancelaria normanda Inicialmente estes passos foram dados sem sobressaltos

comeccedilando na Calaacutebria e se deslocando em seguida para a corte do Reino da Siciacutelia em

Palermo Ele nasceu em 1135 um pouco depois da fundaccedilatildeo do Reino por Rogeacuterio II e

abandonou a carreira na corte em 1167 um ano depois da morte do rei William I Estas

primeiras deacutecadas de vida e o treinamento recebido para o trabalho na corte devem ter lhe

capacitado para o relacionamento com as diversas populaccedilotildees e etnias do reino Um notaacuterio

especialmente em Palermo deveria ter conhecimento do grego e do aacuterabe para promover

seus registros583 Estas qualidades possivelmente estiveram envolvidas em sua raacutepida

ascensatildeo no monasteacuterio de Corazzo e nas negociaccedilotildees com os poderes eclesiaacutesticos e

temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore

Essa proximidade com a cultura aacuterabe da Siciacutelia ou os contatos proacuteximos que ele

possa ter tido na corte de Palermo entretanto natildeo produziram nele uma perspectiva positiva

quanto ao Islatilde Mesmo que natildeo haja em suas obras nada parecido com as convocaccedilotildees de

Satildeo Bernardo para uma guerra santa584 os muccedilulmanos satildeo descritos recorrentemente pelo

calabrecircs como agentes do diabo para perseguir a Igreja

Ele ingressou numa comunidade religiosa no iniacutecio do governo de William II no

comeccedilo da deacutecada de 1170 Quando este rei morreu em 1189 Joaquim jaacute havia passado por

Casamari comeccedilado a produccedilatildeo de suas grandes obras e tinha jaacute uma definiccedilatildeo das duas

deffinitio que ele usava para refletir a histoacuteria Aqueles foram tempos de muita instabilidade

Depois de quatro governantes de origem normanda (Rogeacuterio I Rogeacuterio II William I e

William II) o reino finalmente passou para as matildeos dos Hohenstaufen apoacutes o governo de

transiccedilatildeo do conde Tancredo Os encontros do abade com o imperador Henrique ou com a

rainha Constacircncia resultaram natildeo apenas em benefiacutecios materiais para Joaquim e seus

irmatildeos de Fiore mas tambeacutem no fim do viacutenculo entre a Babilocircnia e os imperadores

germacircnicos que se manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrecircs Com isso

582 WHALEN op cit p 115 583 Para os aspectos culturais e sociais do Reino da Siciacutelia conferir o capiacutetulo V 584 Cf AacuteLVAREZ PALENZUELA Vicente Aacutengel El Cister y las Oacuterdenes Militares em el impulso hacia

Oriente Cuardernos de Historia Medieval Madrid v 1 p 3-19 1998 p 8

173

na parte final do Expositio o Impeacuterio deixou de ser o grande adversaacuterio da Igreja no final

dos tempos

Joaquim viveu num periacuteodo de mudanccedilas profundas na sociedade medieval585 O

Impeacuterio Bizantino perdera muito do seu poder por causa das derrotas contra os turcos

muccedilulmanos as Igrejas Latina e Grega estavam em processo de consolidar a separaccedilatildeo a

exuberante monarquia normanda instalada na Siciacutelia e no sul da Itaacutelia chegava ao fim o

poder islacircmico na Peniacutensula Ibeacuterica encolhia novas formas de espiritualidade surgiam

quando antigas enfraqueciam Tudo isso pode estar subjacente agrave sua ansiedade pela

transformaccedilatildeo da realidade por meio do descanso sabaacutetico do Espiacuterito Entretanto talvez o

fator mais preponderante esteja no ldquomovimento reformadorrdquo gerado no interior da Igreja

romana586

A perspectiva de que as coisas natildeo eram como deveriam ser de que a Igreja dos

proacuteprios tempos havia se afastado dos propoacutesitos pregados pelos primeiros apoacutestolos e pelo

proacuteprio fundador principalmente na questatildeo da simplicidade de vida acabou dando origem

a partir do seacuteculo XI a movimentos de reforma em diversos setores da sociedade Ocidental

e em diferentes espaccedilos eclesiaacutesticos Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do

clero entendido como corrompido e refletir sobre o papel da Igreja na sociedade em relaccedilatildeo

principalmente com as estruturas dos poderes temporais A professora Andreacuteia Frazatildeo ao

analisar os projetos subjacentes aos conciacutelios lateranenses listou algumas destas

perspectivas reformistas como as implementadas por poderes seculares (monarquias

caroliacutengias ou imperadores germacircnicos por exemplo) as promovidas por movimentos

monaacutesticos (Cluny Gorze Metz etc) as de iniciativa ldquopopularrdquo (como o movimento

patarino) e a fomentada pelos bispos de Roma eventualmente denominada de Reforma

Gregoriana Este uacuteltimo movimento partindo da Cuacuteria Papal procurou impor Roma ldquocomo

centro poliacutetico religioso e administrativo da Igreja ocidental [] e como o principal poder

de caraacuteter universal no Ocidente ao qual todos os demais deveriam se subordinar inclusive

o imperialrdquo 587

A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em funccedilatildeo do papa Gregoacuterio VII (papa

de 1073-1085) que em diversos momentos apelou para o senso de iminecircncia do advento do

585 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 221 586 WHALEN op cit p 102 587 SILVA Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da A luta entre o Regnum et Imperium e a Construccedilatildeo da Ecclesia

Universalis uma anaacutelise comparativa dos Conciacutelios Lateranenses (1123-1215) In SILVA Francisco Carlos

Teixeira CABRAL Ricardo Pereira MUNHOZ Sidnei J (coords) Impeacuterios na Histoacuteria Rio de Janeiro

Elsevier 2009 p 95-105 p 97-98

174

Anticristo para dar legitimidade aos seus apelos reformadores Em uma de suas cartas ele

explica a oposiccedilatildeo como sinal do fim do mundo ldquoE natildeo fiquem admirados Pois quanto mais

perto o dia do Anticristo se manifestar mais ele luta para esmagar a feacute cristatilderdquo588 Este papa

na linha agostiniana evitou fazer prediccedilotildees sobre o fim do mundo mas reiteradamente

manifestou a convicccedilatildeo de que ele deveria estar perto em funccedilatildeo da manifestaccedilatildeo das

heresias e da corrupccedilatildeo da Igreja Neste tipo de visatildeo de histoacuteria os eventos finais deveriam

validar os esforccedilos para buscar pureza moral e ordem correta na instituiccedilatildeo eclesiaacutestica

Mudanccedilas no cenaacuterio poliacutetico recebiam um lugar no cenaacuterio do fim do mundo conflitos de

muacuteltiplas naturezas eram legitimados pela perspectiva do juiacutezo final de forma que a maioria

das crenccedilas apocaliacutepticas medievais passaram a ser instrumentos de retoacuterica religiosa

poliacutetica e social agrave serviccedilo de papas cleacuterigos imperadores reis e seus apologistas

Eacute certo que o senso de fim de mundo ou as representaccedilotildees escatoloacutegicas natildeo

conseguem explicar totalmente as praacuteticas dos movimentos reformadores De qualquer

forma esta relaccedilatildeo entre reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore

conectada com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos monaacutesticos

tradicionais para toda a sociedade (christianitas)589 Mas o abade acabou ultrapassando o

modelo gregoriano e mesmo o imperial em funccedilatildeo de sua ecircnfase numa nova forma de

ecclesia totalmente monasticisada com o foco no futuro O arqueacutetipo deixou de ser a era

apostoacutelica (no passado) mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro)

Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este fenocircmeno de

ldquoapocalipcismo reformadorrdquo um tipo de perspectiva apocaliacuteptica medieval que tinha como

preocupaccedilatildeo primaacuteria a reforma clerical590 Estes autores criam em uma era porvir de

desenvolvimento espiritual na qual os cleacuterigos apoacutes serem ldquopurificadosrdquo pelas tribulaccedilotildees

do final dos tempos se recuperariam de uma forma nunca vista antes Alguns focavam na

reforma de tipo tradicional com sua ecircnfase no retorno ao modelo apostoacutelico de pureza e

simplicidade outros como Joaquim insistiam que a era porvir era o zecircnite da histoacuteria

resultado de um longo processo evolutivo

588 Citado por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform 1100-1500 In MC GINN Bernard

(ed) The Encyclopedia of Apocalypticism Apocalypticism in Western History and Culture New York

Continuum 1998 3v V 2 p 74-109 p 76 589 Este modelo gregoriano buscou expandir-se para a sociedade inteira por meio da divulgaccedilatildeo do ideal da

ldquoIgreja dos tempos apostoacutelicosrdquo Cf MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 78 590 KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge

University Press 1990 p 9 MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 74-109

175

Kathryn resumiu entatildeo as marcas do apocalipticismo reformador um desejo urgente

por reforma preocupaccedilatildeo acentuada com o futuro da Igreja tentativa de entender o presente

agrave luz de esquemas escatoloacutegicos tradicionais preocupaccedilatildeo com o papel de uma ordem

religiosa particular no drama do final dos tempos ou no futuro da igreja um senso de crise

de lideranccedila eclesiaacutestica e temporal uma ansiedade por levar o clero aos princiacutepios

disciplinares dos fundadores do monasticismo ou agrave igreja dos primoacuterdios com ecircnfase

especial na pobreza e na simplicidade de vida tendecircncia conservadora em termos religiosos

e sociais591

Estes reformadores estavam continuamente avaliando as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas de

seus dias e projetavam para ela um periacuteodo dourado de vitalidade espiritual Este tipo de

expectativa eventualmente demandava accedilatildeo e sugeria que indiviacuteduos e instituiccedilotildees poderiam

participar (apropinquare) na viabilizaccedilatildeo do futuro ou pelo menos na definiccedilatildeo de quais

pessoas poderiam participar deste futuro idealizado Eacute uma espeacutecie de descriccedilatildeo de um

futuro ldquodouradordquo para confrontar o presente ldquopoluiacutedordquo

Em termos concretos tanto os movimentos reformadores quanto os apocalipcismos

medievais tiveram seus proacuteprios fatores de surgimento mas alguns destes podem ter

promovido o encontro das duas expectativas Primeiramente o desenvolvimento dos

movimentos hereacuteticos com frequecircncia o resultado de programas reformistas frustrados com

constantes criacuteticas ao clero e a corrupccedilatildeo da Igreja A persistecircncia destes grupos poderia

produzir a sensaccedilatildeo de que as heresias eram consequecircncia do pecado da Igreja e que para

acabar com elas era preciso se purificar Produzia tambeacutem a retoacuterica apocaliacuteptica por parte

das autoridades que constantemente recorriam agraves figuras negativas do final do tempo para

vinculaacute-las com as heresias Um segundo fator poderia estar nas cruzadas que acentuaram a

sensaccedilatildeo de que o cristianismo estava sob constante ameaccedila de povos pagatildeos Finalmente e

talvez o mais significativo os efeitos da controveacutersia das investiduras e o conflito entre

Igreja e poder temporal A persistecircncia dos conflitos com os imperadores germacircnicos pode

ter promovido o surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada de

conflitos histoacutericos desde os seus primoacuterdios A Igreja passa a ser vista como uma

comunidade sagrada que sofre perseguiccedilatildeo intermitente592 O discurso apocaliacuteptico se tornou

uma tentativa de dar sentido aos constantes embates contra os poderes temporais Eacute neste

591 KERBY-FULTON op cit p 9 592 RIEDL Matthias Joachim of Fiore as political thinker In WANNENMACHER Julia Eva Joachim of

Fiore and the influence of inspiration essays in memory of Marjorie Reeves (1905-2003) London Routledge

2013 p 90-116 p 94

176

sentido que os imperadores frequentemente satildeo estigmatizados com retoacuterica apocaliacuteptica

dando ao papado por seu lado um papel acentuado no drama do final dos tempos593

Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de forma milenarista

McGinn cita como exemplo a perspectiva do franciscano Roger Bacon (1214-1294) que

acreditava numa reforma realizada por meio do surgimento de um papa angelicus e de um

imperador ungido que juntos purificariam a Igreja antes do surgimento do Anticristo594 Em

Joaquim entretanto o fenocircmeno foi conjugado com o milenarismo nos moldes do antigo

quiliasmo cristatildeo e manifestou as noccedilotildees de que uma unidade cristatilde idealizada seria

alcanccedilada atraveacutes da transformaccedilatildeo da ecclesia a graccedila de Deus deixou a Igreja grega e

transitou para a Igreja latina595 o Anticristo do final dos tempos iria se manifestar a qualquer

momento para perseguir a Igreja por meio dos sarracenos e dos hereges Quando isso

acontecesse ldquojudeus gregos pagatildeos e talvez mesmo os sarracenos seriam levados agrave

salvaccedilatildeo atraveacutes de homens espirituais da Igreja latina reunidos sob a direccedilatildeo de uma igreja

romana transformadardquo596

77 Resumo

Este capiacutetulo analisou a seacutetima seccedilatildeo do Expositio in Apocalypsim e relacionou-a

com as perspectivas milenaristas de Joaquim presentes em outros lugares de sua obra Nela

Joaquim rompe com a tradiccedilatildeo agostiniana que identificou o milecircnio joanino com a histoacuteria

da Igreja e propotildee em seu lugar um periacuteodo de felicidade na terra para toda a humanidade

sob a direccedilatildeo do Espiacuterito Santo O abade esperava algum tipo de continuidade entre o

presente e o futuro mas com a transformaccedilatildeo de suas instituiccedilotildees sociais especialmente da

Igreja Este periacuteodo de descanso e contemplaccedilatildeo natildeo teve como ponto de partida entretanto

diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim as as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a

tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que esperava uma fase histoacuterica de felicidade na terra

593 KERBY-FULTON op cit p 8 594 Citato por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 81 595 Haacute neste caso aquilo que Whalen chamou de ldquopropoacutesito geograacuteficordquo divino que levou a graccedila de Deus a se

mover do Oriente para o Ocidente e no saacutebado do Espiacuterito retornar para o Oriente Cf WHALEN op cit p

121 596 WHALEN op cit p 123 Joaquim abraccedila o ideal do ldquoservo sofredorrdquo de Isaiacuteas 53 e a espera de uma

grande conversatildeo dos povos no final dos tempos que demanda mais pregaccedilatildeo e menos conflito Nos seus

termos ldquopraedicando magis quam proeliandordquo (Expositio in Apocalypsim 164v) Cf TAGLIAPIETRA

Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 54

177

anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica deste tipo de milenarismo pode estar relacionada

com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica

CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO

DOS MONGES

A tiacutetulo de recapitulaccedilatildeo cabe reafirmar nossos principais argumentos apresentados

e sustentados no decorrer deste trabalho O Apocalipse foi produzido pelo profeta Joatildeo de

Patmos na forma de um instrumento retoacuterico de caraacuteter milenarista cuja funccedilatildeo atendia a

determinadas percepccedilotildees de crise social que seu autor manifestava e que entendendo-se

como convocado divinamente para atuar entre as igrejas da proviacutencia da Aacutesia desejava levaacute-

las ao rompimento sectaacuterio com a sociedade romana Joatildeo se recusava a viver ldquoneste mundordquo

e esperava pela inauguraccedilatildeo de um ldquooutro mundordquo no tempo do milecircnio A visatildeo de histoacuteria

que aparece subjacente agrave sua narrativa religiosa se constitui em uma criacutetica agraves representaccedilotildees

sociais romanas encontradas na proviacutencia asiaacutetica

O Apocalipse foi lido como texto sagrado por Joaquim de Fiore e como base para a

construccedilatildeo de sua filosofia da histoacuteria Por meio do seu comentaacuterio da obra joanina o abade

construiu a expectativa de superaccedilatildeo do tempo presente em uma eacutepoca de ouro dirigida pela

terceira pessoa da Trindade o Espiacuterito Santo As representaccedilotildees milenaristas do calabrecircs

entretanto natildeo partiram diretamente do milecircnio joanino jaacute que dependem mais da tradiccedilatildeo

do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo e de sua reflexatildeo histoacuterico-trinitaacuteria

Convergecircncias e divergecircncias

O Apocalipse foi produzido no final do seacuteculo I na Ilha de Patmos O Expositio por

sua vez surgiu nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XII na Itaacutelia597 O judeu Joatildeo rejeitava a

Peniacutensula Itaacutelica pois nela ficava a capital do Impeacuterio que destruiu sua estimada Jerusaleacutem

Em sua obra o profeta exilado se alonga na imaginaccedilatildeo de como Roma seria devorada pelo

fogo 1100 anos depois um italiano da Calaacutebria se ldquoencantardquo pelo texto de Joatildeo e resolve

gastar os uacuteltimos anos de sua vida para divulgaacute-lo Ao produzir seu escrito Joaquim

transcreveu integralmente o material joanino (na sua traduccedilatildeo latina) fazendo do Expositio

efetivamente uma coacutepia comentada do Apocalipse Haacute aqui um viacutenculo formal entre os dois

textos Mas isso natildeo esclarece totalmente os relacionamentos as recepccedilotildees as adaptaccedilotildees

597 Conferir esta relaccedilatildeo geograacutefica no anexo 4

179

as mutilaccedilotildees as invenccedilotildees os horizontes de leitura criados pela natureza diacrocircnica de tal

viacutenculo Por isso ainda eacute preciso promover anaacutelises comparativas que pressuponham os dois

objetos (apocalipse e comentaacuterio) como fenocircmenos distintos em funccedilatildeo de suas proacuteprias

conjunturas condiccedilotildees de emergecircncia e pontos de partida

Segundo Juumlrgen Kocka comparaccedilatildeo eacute a discussatildeo de ldquodois ou mais fenocircmenos

histoacutericos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenccedilas de modo a se

alcanccedilar determinados objetivos intelectuaisrdquo598 Eacute o que faremos nesta conclusatildeo com

ecircnfase nas diferenccedilas e especificidades599 para assim descrever explicar e interpretar

elementos especiacuteficos de cada um dos objetos de comparaccedilatildeo600 Tomando uma expressatildeo

irocircnica de Kocka e Haupt mesmo que natildeo pudeacutessemos comparar ldquomaccedilatildes e laranjasrdquo (como

um apocalipse e um comentaacuterio biacuteblico) ainda assim poderiacuteamos apontar as peculiaridades

de cada objeto e seus usos particulares601

Para efeitos de comparaccedilatildeo pressupomos as discussotildees dos capiacutetulos anteriores

quando analisamos separadamente os aspectos formais de Apocalipse 201-10 e seu

respectivo comentaacuterio exegeacutetico na seacutetima parte do Expositio contextualizamos cada

unidade de comparaccedilatildeo apontando suas respectivas condiccedilotildees de produccedilatildeo analisamos o

conteuacutedo recortado de cada texto explicitando as representaccedilotildees milenaristas os pontos de

partida e os fatores de emergecircncia No caso especiacutefico de Joaquim ainda discutimos suas

formas de leitura e posturas hermenecircuticas

O que comparamos Eacute o tipo de milenarismo que se objetiva em cada texto Para

tanto analisamos os pontos de contato as convergecircncias e divergecircncias e as compreensotildees

de tais aspectos agrave luz de seus respectivos contextos Usamos como fio norteador para a

anaacutelise comparativa a definiccedilatildeo de milenarismo anteriormente pressuposta e agora

desdobrada602

598 KOCKA Juumlrgen Comparison and beyond History and theory Middletown n 42 p 39-44 2003 p 39 599 Conferir uma siacutentese de modelos de observaccedilatildeo comparada em BARROS Joseacute DacuteAssunccedilatildeo Histoacuteria

comparada um novo modo de ver e fazer a histoacuteria Revista de Histoacuteria Comparada Rio de Janeiro v 1 n

1 p 1-30 2007 p 18-21 600 KOCKA Juumlrgen HAUPT Heinz-Gerhard Comparison and Beyond traditions scope and perspectives of

Comparative History In HAUPT Heins-Gerhard KOCKA Juumlrgen (orgs) Comparative and Transnational

History Central European approaches and new perspectives Oxford Berghahn Books 2009 p 1-30 p 2 601 HAUPT Heinz-Gerhard KOCKA Juumlrgen Comparative History Methods Aims Problems In COHEN

Deborah OrsquoCONNOR Maura Comparison and History Europe in cross-national perspective London

Routledge 2004 p 23-39 p 27 602 Para tanto contamos com as contribuiccedilotildees principalmente da socioacuteloga israelense Yonina Talmon e do

historiador americano Richard Landes Cf TALMON Yonina Millenarism In SILLS David L (ed)

International Encyclopedia of the Social Sciences London The Macmillan Company amp The Free Press 1968

19 v V X p 349-362 LANDES Richard A Millennialism in the Western World In LANDES Richard A

(ed) Encyclopedia of millennialism and millennial movements New York Routledge 2000 p 453-466

180

Por uma definiccedilatildeo de milenarismo

No iniacutecio desta tese anunciamos a definiccedilatildeo de milenarismo do historiador inglecircs

Norman Cohn que entendeu-o como um tipo particular de utopia salvacionista coletiva jaacute

que todos os fieacuteis experimentariam a felicidade terrena jaacute que essa felicidade seria

alcanccedilada na terra e natildeo em uma realidade transcendente total pois aguarda uma completa

inversatildeo dos males da terra iminente pois a transformaccedilatildeo completa estaria perto de

comeccedilar e miraculosa jaacute que a redenccedilatildeo contaria com a ajuda de poderes sobrenaturais603

Alguns autores entretanto como Jean Delumeau optam por uma noccedilatildeo reducionista

do fenocircmeno ldquono cristianismo deve-se chamar de milenarismo a crenccedila num reino terrestre

de Cristo e de seus eleitos ndash reino este que deve durar mil anos entendidos seja literalmente

seja simbolicamenterdquo604 A definiccedilatildeo de Delumeau parece entender por milenarismo apenas

os fenocircmenos que replicam o milecircnio de Apocalipse 20 Isso o leva agrave curiosa sugestatildeo de

que Joaquim de Fiore a quem ele dedicou quase cinquenta paacuteginas do seu livro sobre

ldquomilenarismordquo natildeo poderia ser chamado de milenarista605 Diante de tal posicionamento eacute

preciso lembrar do argumento de Paula Fredriksen ldquoa ideia de um periacuteodo de mil anos

implicada por este termo eacute menos essencial para o seu sentido que o seu foco sobre a terra

a histoacuteria humana como a uacuteltima arena da redenccedilatildeordquo606

No campo oposto ao de Delumeau Kathryn Kerby-Fulton opta por uma definiccedilatildeo

abrangente demais ldquoRefere-se agrave crenccedila num futuro de becircnccedilatildeos na terra antes do fim da

LANDES Richard A Heaven on Earth the varieties of the millennial experience Oxford Oxford Universit

Press 2011 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time In NEWPORT

Kenneth G C GRIBBEN Crawford (eds) Expecting the End millennialism in social and historical context

Waco Baylor University Press 2006 p 1-23 603 Cf COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade

Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 Pesquisadores deste tema continuam partindo das definiccedilotildees

de Cohn mesmo que sua obra sobre os milenaristas revolucionaacuterios da Idade Meacutedia jaacute tenha quase 50 anos

Por exemplo cf CLARKE Peter The origins scope and spread of the millenarian idea In LIEB Michael

MASON Emma Roberts Johathan (edss) The Oxford Handbook of the Reception History of the Bible

Oxford Oxford University Press 2011 p 235-242 604 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras

1997 p 17-18 Tambeacutem minimiza o milenarismo de Joaquim SARANYANA Josep Ignasi Sobre El

milenarismo de Joaquiacuten de Fiore Uma lectura retrospectiva Teologia y Vida Santiago v XLIV p 221-232

2003 605 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias

Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria

mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 606 FREDRIKSEN Paula Tyconius and Augustine on the Apocalypse In EMMERSON Richard K

MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 20-

37 p 20

181

histoacuteriardquo607 Ou entatildeo John Gager ldquoum movimento que espera uma nova ordem de realidade

em um futuro proacuteximordquo608 Diante de tal formulaccedilatildeo tanto o que espera a redenccedilatildeo de forma

iminente quanto aquele que a projetou para milhares de anos agrave frente satildeo tomados como

milenaristas Por isso o proacuteprio Gager refina sua definiccedilatildeo argumentando que a espera

indefinida pelo reino milenar natildeo seria propriamente milenarista Afinal os sacerdotes reais

persas que lanccedilaram o ldquotornar maravilhosordquo de Zaratrusta para sete mil anos agrave frente natildeo

poderiam ser chamados propriamente de milenaristas609 O caraacuteter iminente da crenccedila

milenarista manifesta uma rejeiccedilatildeo da presente ordem social Quando o fim da ordem

presente eacute lanccedilado para um futuro longiacutenquo e indeterminado o resultado eacute a legitimaccedilatildeo

do mundo cotidiano Nos termos de John Collins ldquojulgamento adiado providencia confianccedila

no presenterdquo610

Retomando a definiccedilatildeo de milenarismo o termo tem origem no vocaacutebulo latino

ldquomillerdquo usado para traduzir a palavra grega ldquordquo de Apocalipse 201-10 Ele ganhou um

sentido lato entretanto no campo dos estudos sociais passando a indicar uma determinada

expectativa de movimentos ou grupos611 Cohn como jaacute indicamos anteriormente descreveu

o fenocircmeno como uma ldquoutopiardquo Mas ele eacute propriamente uma reflexatildeo sobre o tempo uma

filosofia da histoacuteria um sistema de representaccedilotildees graacutevido de praacuteticas que se manifestam

em grupos comunidades cultos e movimentos Podemos falar destes entatildeo como cultos

seitas ou movimentos milenaristas Figura significativa entre estas representaccedilotildees e praacuteticas

eacute o profeta milenarista que se torna o seu vulgarizador apologeta e pregador Em algumas

circunstacircncias em torno dele surge um grupo Em outras como no caso de Joatildeo e Joaquim

haacute uma relaccedilatildeo diacrocircnica entre o fundador e os grupos que se dizem seus porta-vozes como

o movimento inspirado nas profecias joaninas de Montano Priscila e Maximila a partir da

deacutecada de 160 nas proviacutencias romanas da Aacutesia menor612 ou a inspiraccedilatildeo joaquimita do grupo

607 Cf KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge

University Press 1990 p 3 608 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 p 57 609 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no

Apocalipse Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 135 610 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do

Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 11 611 TALMON op cit p 349 Henri Desroche cunhou a expressatildeo ldquohomens da esperardquo para fazer referecircncia a

pessoas que aguardam algum tipo de mudanccedila histoacuterica a posteriori Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de

messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 16 612 PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation New York Penguin

Books 2012 p 103-107

182

em torno de Amaury de Begravene na Paris do iniacutecio do seacuteculo XIII condenado formalmente no

IV Conciacutelio de Latratildeo (1215)613

Segundo Norman Cohn um dos mais antigos destes profetas milenaristas surgiu no

Iratilde antigo e ficou conhecido como Zoroastro614 A partir do zoroastrismo em sua

manifestaccedilatildeo imperial persa o fenocircmeno teria transitado para o Judaiacutesmo quando

expressotildees de uma redenccedilatildeo futura deram origem a diversos movimentos ou seitas Uma

destas nascida das pregaccedilotildees do profeta Jesus de Nazareacute e subjacente ao Apocalipse tinha

como significativos traccedilos iniciais uma resiliente combinaccedilatildeo de milenarismo e

messianismo615

Cada profeta milenarista ou movimento milenarista tem particularidades uacutenicas

Mesmo assim eles apresentam alguns traccedilos em comum que eacute o que permite categorizaacute-

los em diferentes lugares e eacutepocas sob o mesmo termo616

Coletiva o povo feliz

A salvaccedilatildeo no milenarismo natildeo eacute de natureza individual mas expectativa de um

grupo ou para um grupo O milenarista natildeo deseja alcanccedilar a salvaccedilatildeo sozinho pois espera

compartilhaacute-la com uma comunidade de pessoas ldquoeleitasrdquo O fenocircmeno assim tem uma

orientaccedilatildeo coletiva O reino milenar do Apocalipse espera ser povoado por uma multidatildeo de

maacutertires ressuscitados O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim veraacute uma humanidade inteira em

paz e contemplaccedilatildeo quando um grande grupo de pessoas se converterem agrave feacute da Igreja latina

especialmente os judeus

Apesar dos leitores posteriores de Joatildeo terem ampliado o puacuteblico do milecircnio em

Apocalipse 20 ele eacute exclusivo daqueles que foram degolados pelas bestas do Dragatildeo o que

pode representar toda a crise do profeta com as mortes violentas ou as notiacutecias de mortes

violentas na guerra judaico-romana De fora ficam natildeo apenas os seus ldquoirmatildeosrdquo que natildeo

alcanccedilarem tal morte (participariam da ldquosegunda ressurreiccedilatildeordquo) mas tambeacutem todos aqueles

que natildeo compartilham de sua perspectiva de Jesus como o Messias de Deus Estes uacuteltimos

613 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 61 614 Para Cohn Zoroastro ldquoeacute o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo especiacutefico de profeta ndash os

chamados lsquomilenaristasrsquordquo Cf COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 133 615 TALMON op cit p 350 616 Como argumentou Paul Veyne os fenocircmenos histoacutericos natildeo se organizam atraveacutes de periacuteodos e de povos

mas atraveacutes de noccedilotildees Mais do que inseridos no seu tempo eles precisam ser postos sob um conceito Cf

VEYNE Paul O inventaacuterio das diferenccedilas Lisboa Gradiva 1989 p 33

183

por sinal entendidos por Joatildeo como seguidores das bestas e do Dragatildeo seriam destruiacutedos

na parousia Natildeo haacute sobreviventes para o reino dos maacutertires O milecircnio para o Apocalipse

soacute seraacute alcanccedilado pela porta do martiacuterio

Neste tipo de milenarismo algumas pessoas alcanccedilam a redenccedilatildeo outras satildeo

destruiacutedas no processo Haacute um dualismo baacutesico uma divisatildeo fundamental da humanidade

entre fieis e infieacuteis entre seguidores e natildeo-seguidores entre crentes e increacutedulos entre justos

e perversos A histoacuteria humana eacute vista como uma luta contiacutenua entre os filhos de Deus contra

os aliados de Satanaacutes De qualquer forma nem no Apocalipse ou no Expositio haacute criteacuterios

de raccedila grupo eacutetnico ou naccedilatildeo para compor a terra da felicidade Em ambos os casos a

participaccedilatildeo se daria em funccedilatildeo de opccedilotildees religiosas

Haacute uma forte ecircnfase na exclusatildeo em Joatildeo e um relativo inclusivismo em Joaquim

com sua expectativa de conversatildeo geral apoacutes o levantamento do Anticristo Apesar de sua

ecircnfase nos monges o descanso natildeo eacute soacute para eles A sociedade da Terceira Era natildeo seria

formada apenas por membros do corpo monaacutestico mas caberiam diversos outros grupos

sociais como a Dispositio o demonstra617 Em seus esquemas o abade fala de uma era de

casados outra de cleacuterigos outra de monges expressotildees que precisam ser entendidas na oacutetica

do protagonismo Na primeira Era o protagonismo foi dos casados na segunda dos cleacuterigos

na terceira dos monges A Dispositivo representaccedilatildeo da sociedade ideal de Joaquim

apresenta sete oratoacuterios cinco satildeo de monges um para o clero e um para os casados Ele vecirc

uma loacutegica de procedecircncia entre as ordens dos casados procedem os cleacuterigos dos cleacuterigos

os monges Mas um natildeo significa o fim do outro Neste tipo de perspectiva a Trindade se

revela na histoacuteria imprimindo nela as caracteriacutesticas peculiares de cada pessoa divina e um

caraacuteter dinacircmico e progressivo cuja meta eacute uma sociedade protagonizada por monges

contemplativos

Eacute possiacutevel fazer ainda uma reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo entre a comunidade futura ideal

e a comunidade real do presente do milenarista Apocalipse e Expositio satildeo produccedilotildees de

liacutederes carismaacuteticos Joatildeo era um profeta itinerante das igrejas da Aacutesia Joaquim era um

abade que conseguiu atrair um grupo de disciacutepulos para as montanhas de Fiore e a partir

deles fundou uma casa monaacutestica e uma ordem religiosa Neste sentido suas obras visavam

a uma comunidade seus textos buscavam operar no interior de um grupo Representaccedilotildees

617 Cf Anexo 5

184

individuais natildeo satildeo elementos estanques mas se relacionam com representaccedilotildees sociais618

Joatildeo e Joaquim representam determinados grupos Suas falas satildeo representativas de

expectativas mesmo que parcialmente compartilhadas entre profeta e comunidade No caso

de Joatildeo sua audiecircncia natildeo lhe eacute totalmente amistosa Ele enfrenta adversaacuterios no interior

das igrejas e deseja com seu Apocalipse simultaneamente convocar os aliados e atacar os

inimigos Joaquim tambeacutem tem alguns adversaacuterios mesmo que seja em escala diferente Ele

enfrenta resistecircncia da Ordem Cisterciense em funccedilatildeo de ter abandonado a abadia de

Corazzo Mas os grandes adversaacuterios de ambos os autores estatildeo ldquodo lado de forardquo de seus

ciacuterculos a sociedade romana para Joatildeo619 os muccedilulmanos para Joaquim Satildeo estes

adversaacuterios os grandes excluiacutedos do reino dos maacutertires ou do saacutebado do Espiacuterito

Terrena o lugar perfeito

Joatildeo de Patmos pode ter testemunhado a morte de muitos de seus irmatildeos e ouvido

falar do martiacuterio de vaacuterios outros Seu texto manifesta a expectativa de acentuada

perseguiccedilatildeo da sociedade romana para um futuro proacuteximo Estes aspectos parecem marcar

sua descriccedilatildeo do passado e do futuro das comunidades de Jesus Tal conjunto de

representaccedilotildees tem o potencial de produzir ruptura em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano e gerar

ansiedade pelo reino milenar Apesar de sua breve descriccedilatildeo no episoacutedio de Apocalipse 20

Joatildeo tambeacutem registrou a mesma expectativa no iniacutecio da segunda seccedilatildeo de sua obra

(Apocalipse 5) Nesta passagem o autor relatou o hino que ele teria ouvido da parte de Vinte

e quatro Presbiacuteteros Celestiais ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste

morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e

naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

(Apocalipse 59-10) Este hino ao ldquoCordeirordquo eacute uma metaacutefora para descrever Jesus e sua

morte seis deacutecadas atraacutes Segundo Joatildeo a morte daquele que ele tem como Messias foi uma

estrateacutegia divina para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo

exclusivo fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus620 Mesmo que as formas verbais estejam no

618 OLIVEIRA Maacutercio de O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves

Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre v 13 n 22 p 67-94 2012 p 71 619 Eacute interessante destacar que a Palestina desde a deacutecada 60 antes da Era Comum era parte do Impeacuterio

Romano Os judeus eram formalmente membros deste Impeacuterio Isso natildeo foi o suficiente para que Joatildeo se

sentisse parte do ldquomundo romanordquo Pelo contraacuterio numa perspectiva sectaacuteria ele rejeita a sociedade que lhe

cerca 620 CHARLES J Daryl A Apocalyptic Tribute to the Lamb (Rev 51-14) Journal of the Evangelical

Theological Society Chicago v 24 n 4 p 461-473 1991 p 471

185

passado como se fossem eventos jaacute realizados por Jesus621 o final do hino manifesta a

mesma expectativa de Apocalipse 20 um reino sobre a terra622

Ao contraacuterio de Joatildeo entretanto a relaccedilatildeo de Joaquim com a sociedade circundante

eacute bem favoraacutevel Joaquim natildeo enfrentou perseguiccedilatildeo As ameaccedilas do Capiacutetulo Geral da

Ordem Cisterciense natildeo podem ser descritas como tal jaacute que o abade contava com o apoio

papal e dos poderes constituiacutedos no reino da Siciacutelia Mesmo assim como Joatildeo as

expectativas joaquitas natildeo satildeo para aleacutem Ele tem elementos concretos no interior de suas

descriccedilotildees do saacutebado do Espiacuterito Sua ecircnfase neste caso se desloca de uma ressurreiccedilatildeo de

maacutertires para o descanso contemplativo monaacutestico que ele aprendeu a admirar apoacutes o retorno

de sua peregrinaccedilatildeo agrave Palestina A situaccedilatildeo de instabilidade poliacutetica no reino normando e os

eventuais embates entre o Impeacuterio e a Igreja romana parecem ter sensibilizado o abade de

Fiore o suficiente para que ele esperasse a paz como a principal marca do tempo do Espiacuterito

Sem conflitos uma humanidade pacificada poderia gastar os dias do descanso sabaacutetico em

contemplaccedilatildeo e comunhatildeo com a divindade Apesar de transformadas pela atuaccedilatildeo

sobrenatural do Espiacuterito na sociedade dos sonhos de Joaquim ainda haveria liturgia trabalho

e estudo marcas da espiritualidade cisterciense no milenarismo do abade623

Joatildeo espera por um periacuteodo milenar em que maacutertires ressuscitados governam julgam

e cultuam e Joaquim ansiou por um descanso sabaacutetico em que viri spirituales cultuassem

trabalhassem e estudassem Com isso ambos manifestam a principal caracteriacutestica do

milenarismo que eacute sua orientaccedilatildeo terrena quando a noccedilatildeo de um tempo ideal (o tempo do

milecircnio) eacute acompanhada da noccedilatildeo de um espaccedilo ideal (a terra do milecircnio)624 Daiacute a ecircnfase

na terra ou em algum lugar especiacutefico da terra em detrimento de uma dimensatildeo

transcendental

Segundo Cohn especialmente entre as religiotildees zoroastrianas judaicas e cristatildes

surgiu a noccedilatildeo de que a histoacuteria caminha na direccedilatildeo de seu fim um eschaton o fim dos

tempos ou o fim do mundo625 No contexto cristatildeo este ldquofim do mundordquo envolveria um juiacutezo

621 PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 124 622 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991

p 62 623 O confronto de Joaquim com os cistercienses de Corazzo e com as autoridades da ordem parece derivado

de sua percepccedilatildeo de que eles estavam sendo infieacuteis ao ldquoespiacuteritordquo de Bernardo de Claraval que ele chamava de

ldquoveneraacutevel pai Bernardordquo Joaquim achava que os cistercienses natildeo deram continuidade agrave reforma que

Bernardo comeccedilou mas ainda assim eles eram uma etapa importante na histoacuteria que o monasticismo deveria

percorrer ateacute atingir sua perfeiccedilatildeo Cf DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De

Joaquiacuten a Schelling Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 21 624 TALMON op cit p 352 625 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 286-294

186

final quando a divindade julgaria as pessoas vivas e mortas o universo material seria

consumido por ldquofogo purificadorrdquo deixando para os fieacuteis uma eternidade celestial

(Apocalipse 21-22) Para o autor de 2Pedro por exemplo o eschaton eacute o fim da vida na terra

como ele e a humanidade conheciam ldquoOra os ceacuteus que agora existem e a terra pela mesma

palavra tecircm sido entesourados para fogo estando reservados para o dia do Juiacutezo e destruiccedilatildeo

dos homens iacutempiosrdquo (2Pedro 37) Em termos socioloacutegicos esta expressatildeo escatoloacutegica

poderia ser definida como teodiceia uma tentativa de encontrar sentido para o sofrimento o

mal e principalmente a morte626

Profetas milenaristas frequentemente se voltam para a questatildeo do sofrimento e suas

causas Mas as expectativas natildeo-histoacutericas transcendentais parecem natildeo os atender Eles

esperam por uma transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de existecircncia na terra e natildeo em um mundo

natildeo-material Por isso as crenccedilas milenaristas antecipam parte das expectativas posteriores

ao fim do mundo para dentro da histoacuteria quando os fieacuteis seriam recompensados em seus

corpos em suas realidades materiais dentro do saeculum627 A paz a justiccedila e as condiccedilotildees

de existecircncia esperadas para um mundo porvir satildeo antecipadas para a terra

Derivadas dessa ecircnfase terrena estatildeo algumas diferenciaccedilotildees futuras dos fieacuteis As

descriccedilotildees feitas por Joaquim da sociedade do Espiacuterito indicam alguma relaccedilatildeo entre espaccedilo

e status O status estaraacute ligado agrave posiccedilatildeo diante do centro da sociedade espiritual ocupada

pelo pater spiritualis Este tipo de diferenciaccedilatildeo foi feita apenas de forma relativa por Joatildeo

quando ele descreveu duas ressurreiccedilotildees a primeira para os martirizados e membros do reino

milenar a segunda para os demais fieacuteis No Apocalipse os maacutertires formam uma espeacutecie de

fiel ideal acentuando o valor religioso do martiacuterio

Curiosamente o ideal asceacutetico manifesta-se nas duas visotildees Joatildeo espera que os

144000 guerreiros escatoloacutegicos do Cordeiro sejam virgens e castos (Apocalipse 141-5) o

abade de Fiore lanccedilou aqueles que ainda continuaratildeo casados no Oratoacuterio mais baixo da

Dispositio separados dos demais por um grande espaccedilo Para os dois religiosos o sexo

oposto eacute perigoso e isso se reflete nas suas descriccedilotildees idealizadas do futuro

626 BERGER Peter L O dossel sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulus

1985 p 65 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 6 627 Landes toma esta expressatildeo de Agostinho para falar da passagem contiacutenua do tempo da mateacuteria e da

histoacuteria Cf LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 7

187

Total inversatildeo escatoloacutegica

O conceito milenarista de redenccedilatildeo eacute total no sentido de que a nova era natildeo traraacute

meramente uma melhora nas condiccedilotildees de vida mas um movimento na direccedilatildeo de condiccedilotildees

perfeitas de existecircncia dentro da histoacuteria As tais ldquocondiccedilotildees de perfeiccedilatildeordquo entretanto

variam em funccedilatildeo das conjunturas histoacutericas dos expoentes do milenarismo Antigas

expectativas judaicas esperavam por um tempo em que os instrumentos de guerra seriam

transformados em arados e foices para trabalhar o campo (Isaiacuteas 21-5) lobos e leotildees

andariam juntos com ovelhas e cabritos e crianccedilas brincariam com serpentes sem se

machucar (Isaiacuteas 61-9) Estas expectativas parecem fazer sentido em comunidades rurais

em crise com conjunturas de opressatildeo aristocraacutetica628 Jaacute os milenaristas de Tabor na

Boecircmia do seacuteculo XV esperavam um milecircnio literal de banquete perpeacutetuo com a supressatildeo

de toda autoridade quando as mulheres poderiam conceber seus filhos sem qualquer

participaccedilatildeo masculina e homens tambeacutem dariam agrave luz629

A inversatildeo escatoloacutegica idealizada por Joatildeo assim esperava o fim de todas as

guerras e violecircncias contra os seguidores de Jesus que viveriam na terra como reis juiacutezes e

sacerdotes expectativas que apontam para o desejo de empoderamento de pessoas agrave margem

do poder A descriccedilatildeo do milecircnio do Apocalipse pretende ser uma inversatildeo de soberanias

Os poderes do presente seriam destronados os sem poderes seriam entronizados e exaltados

Joaquim igualmente aguarda um periacuteodo de felicidade na terra mesmo que

pequeno em que os fieacuteis experimentaratildeo acima de tudo paz com o fim de todos os

conflitos No calabrecircs entretanto natildeo haacute espaccedilo para monarquias ou reis Mesmo que sua

hostilidade contra o Impeacuterio Germacircnico tenha desaparecido no final do Expositio em relaccedilatildeo

agraves suas primeiras exposiccedilotildees do Apocalipse630 ainda assim Joaquim possui a visatildeo de que

se a histoacuteria eclesiaacutestica fora marcada pelo conflito contra os poderes seculares estes

deveriam desaparecer na Terceira Era Somente a Igreja sobreviveria entatildeo transformada

em uma grande instituiccedilatildeo monacal

Gager argumenta que esta caracteriacutestica do milenarismo teria relaccedilatildeo com algum tipo

de privaccedilatildeo poliacutetica econocircmica social religiosa ou uma mistura de cada uma delas Os

milenaristas segundo este historiador aposentado da Princeton University ldquose sentem

628 LANDES Richard A Millennialism in the Western World op cit p 455 629 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 106 630 POTESTA Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p

318-319

188

desfavorecidos de alguma formardquo631 Ele estaacute ciente entretanto que existe muito mais gente

que sofre privaccedilatildeo do que membros de movimentos milenarista Por isso ele enfatiza que a

privaccedilatildeo natildeo precisa ser efetiva Ela pode ser relativa qual seja ldquouma relaccedilatildeo desigual entre

expectativa e os meios de satisfaccedilatildeordquo632 Eacute um tipo de condiccedilatildeo que surge quando novas

esperanccedilas se manifestam mas permanecem natildeo cumpridas

Esta sugestatildeo de Gager poderia ser usada para distinguir o milenarismo de Joatildeo e

Joaquim O profeta de Patmos era membro de um grupo marginal de uma das proviacutencias

orientais do Impeacuterio romano Vaacuterios de seus conterracircneos foram mortos em uma guerra

contra Roma em que causas poliacuteticas econocircmicas sociais e religiosas se encontravam

misturadas A proviacutencia da Aacutesia era uma das mais ricas do Impeacuterio mas figuras como Joatildeo

se sentiam isolados desta riqueza633

Do outro lado o calabrecircs era um abade bem situado e respeitado Norman Cohn

trabalhou em sua obra uma seacuterie de movimentos milenaristas medievais de tipo contestador

vinculados a grupos que viviam agrave margem quer da sociedade quer do poder634 Joaquim

natildeo era um milenarista deste tipo Ele natildeo estava na margem Ele estava perto do poder

Encontrou-se diversas vezes com papas monarcas rainhas e imperadores Era um dos mais

proeminentes abades do reino da Siciacutelia e talvez de toda a Itaacutelia635 Certamente entatildeo o

termo marginalizado natildeo poderia ser usado para descrever Joaquim de Fiore Ele natildeo se via

como marginalizado e natildeo era efetivamente um marginalizado636

A Era do Espiacuterito do abade natildeo parece ter relaccedilatildeo com algum tipo de privaccedilatildeo efetiva

No calabrecircs haacute mais propriamente a questatildeo das expectativas natildeo cumpridas Sua caminhada

religiosa parece evidenciar este aspecto Apoacutes o retorno da Palestina ele abraccedilou o

eremitismo depois procurou se envolver com um modelo monaacutestico cenobiacutetico em pelo

menos trecircs casas Sambucina Corazzo e S Trindade A forma como rejeitou inicialmente o

631 GAGER John G Kingdom and Community op cit p 25 632 Idem p 27 633 Conferir uma anaacutelise da criacutetica joanina agrave riqueza de Roma em KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio

imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 634 COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia

Lisboa Editorial Presenccedila 1970 635 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 636 Mc Ginn alerta que o perfil social da maioria daqueles que se valiam da retoacuterica apocaliacuteptica na Idade Meacutedia

natildeo era de um profeta isolado no alto de uma montanha mas pessoas bem-educadas cleacuterigos e liacutederes na

sociedade membros da corte e escribas Frequentemente ldquoeram poderosas figuras poliacuteticasrdquo Neste contexto

o milenarismo era uma tentativa de interpretar o seu proacuteprio tempo e assim dar suporte para patronos legitimar

a lideranccedila e perseguir determinados propoacutesitos poliacuteticos sociais e religiosos Cf MC GINN Bernard Visions

of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages New York Columbia University Press 1979 p 32

189

cargo de abade de Corazzo e deixou S Trindade indica uma ecircnfase religiosa no isolamento

e na contemplaccedilatildeo Apoacutes uma campanha para ingresso na Ordem Cisterciense abandonou

sua casa para fundar um monasteacuterio no isolamento de Fiore O ideal milenarista de Joaquim

parece revelar sua frustraccedilatildeo com a Igreja tanto latina quanto grega e com as formas de

monasticismo que ele tinha agrave disposiccedilatildeo Para o abade suas altas demandas religiosas natildeo

realizadas nas instituiccedilotildees que ele conhecia seriam atendidas finalmente quando o Espiacuterito

instaurasse a terceira Era da histoacuteria

De qualquer forma ambos os milenarismos refletem algum tipo de rejeiccedilatildeo da

presente ordem do mundo O milecircnio de Joatildeo reflete o conflito com a sociedade romana e

mesmo com outras comunidades de Jesus O de Joaquim com outras propostas de

espiritualidade cristatilde

Iminente bem perto de comeccedilar

Para Joatildeo o governo milenar de Cristo estava para acontecer a qualquer momento

Na sua perspectiva temporal as bestas estavam para iniciar o ataque final contra os fieacuteis

promovendo a morte de vaacuterios deles (Apocalipse 13) mas ao mesmo tempo viabilizando a

parousia de Jesus e a implementaccedilatildeo do milecircnio O autor do Expositio tambeacutem se entende

no limiar de uma nova era Por meio de caacutelculos complexos relacionados com sua

especulaccedilatildeo exegeacutetica o abade entendia que faltavam poucos anos para que os ldquosantosrdquo

experimentassem o refrigeacuterio tatildeo aguardado

Esta semelhante perspectiva quanto agrave urgecircncia dos tempos de Joatildeo e Joaquim

configura uma marca essencial do milenarismo um senso de premecircncia derivado da forma

como o fiel interpreta os eventos agrave sua volta Ele sente que a era salviacutefica estaacute proacutexima e

vive na expectativa de vecirc-la ou em preparaccedilatildeo para alcanccedilaacute-la O pressuposto para esta

confianccedila na proximidade da redenccedilatildeo tem relaccedilatildeo com a crenccedila na histoacuteria como um

processo preacute-determinado Neste sentido bastaria ter acesso a uma determinada chave de

leitura para que se pudesse prever cada uma de suas etapas Os profetas milenaristas

desejavam entender a histoacuteria sua unidade sua estrutura seu objetivo e seu fim637

Segundo Talmon haacute aqui uma combinaccedilatildeo entre consciecircncia histoacuterica de tempo e

consciecircncia miacutetica A perspectiva histoacuterica do tempo como uma sequecircncia de eventos um

637 Idem p 31

190

vir-a-ser de caraacuteter uacutenico e particular eacute combinada com uma consciecircncia de tempo ciacuteclico

infinito e repetitivo638 Afinal o milecircnio de Joatildeo eacute uma interrupccedilatildeo do vir-a-ser um

parecircntese na histoacuteria Natildeo eacute ainda o destino derradeiro dos maacutertires jaacute que apoacutes o juiacutezo final

o profeta descreve uma Nova Jerusaleacutem em termos meta-histoacutericos (Apocalipse 21-22) Na

perspectiva joanina o milecircnio eacute uma demanda da justiccedila divina pois os fieacuteis martirizados

precisavam reinar com seu Cristo na mesma terra que os martirizou

Em Joaquim a sociedade milenar eacute uma antecipaccedilatildeo da Jerusaleacutem celestial

igualmente revestida de historicidade e temporalidade Quando seu periacuteodo acabar chegou

o fim do mundo Joaquim natildeo reflete longamente sobre o que vem a seguir Isso faz com que

sua Nova Era tenha como alvo esta nova sociedade espiritual na terra e natildeo alguma outra

num formato transcendental Eacute uma sociedade ideal ainda com a presenccedila de estruturas

sociais (em torno dos sete oratoacuterios da Dispositio) e de papeacuteis sociais (os viri spirituales da

Dispositio ainda estudam cantam e trabalham)

Relacionado com a questatildeo da iminecircncia estaacute a seacuterie de desastres presente nos

vaticiacutenios milenaristas Para explicar tal caracteriacutestica o socioacutelogo francecircs Desroche

apontou um roteiro de trecircs tempos subjacentes aos milenarismos haacute um tempo de opressatildeo

que se agrava progressivamente ateacute atingir o auge da alienaccedilatildeo e injusticcedila haacute um tempo de

resistecircncia quando os fieacuteis satildeo separados marcados nas frontes por Deus testemunham

vestidos de saco resistem no deserto isolam-se na espera enfrentam o martiacuterio haacute um

tempo de libertaccedilatildeo quando o adversaacuterio eacute finalmente derrotado e os fieacuteis desfrutaratildeo da

paz divina639 Esta relaccedilatildeo entre opressatildeo e redenccedilatildeo gera no milenarista a sensaccedilatildeo de que

quanto pior ficar melhor eacute jaacute que as adversidades histoacutericas seriam sinais da iminecircncia da

intervenccedilatildeo divina640

Assim antes que os maacutertires ressuscitem o Apocalipse de Joatildeo descreve o funesto

convite para que abutres venham devorar as carnes mortas de reis comandantes e poderosos

ldquocarnes de cavalos e seus cavaleiros carnes de todos quer livres quer escravos tanto

pequenos como grandesrdquo (Apocalipse 1918) O refrigeacuterio dos santos de Joaquim por sua

vez soacute surgiria apoacutes a manifestaccedilatildeo do Anticristo e a morte de muitos fieacuteis Neste sentido a

638 TALMON op cit p 352 639 DESROCHE op cit p 50 640 Eacute um apelo nos termos de Desroche em desespero de causa ldquoum apelo em uacuteltima instacircncia uma vez que

as demais instacircncias desmoronaram E ateacute mesmo um apelo para que as demais instacircncias desmoronemrdquo Cf

DESROCHE op cit p 51

191

felicidade almejada natildeo chegaria antes de uma ldquoangustia temporumrdquo ou das duas

ldquotribulationesrdquo quando muitos fieis alcanccedilariam o martiacuterio641

Miraculosa a intervenccedilatildeo divina

Um movimento milenarista compartilha a crenccedila na transformaccedilatildeo do mundo

conjugando-a com um senso de mudanccedila iminente Neste contexto uma significativa

questatildeo guarda relaccedilatildeo com a agecircncia da transformaccedilatildeo ou seja quem traraacute o milecircnio e a

forma como ele viraacute Em sua definiccedilatildeo do fenocircmeno Norman Cohn chamou a atenccedilatildeo para

o aspecto miraculoso da expectativa milenarista no sentido de que uma transiccedilatildeo tatildeo

significativa da realidade precisa da intervenccedilatildeo de forccedilas sobre-humanas642

Eacute neste contexto que se insere o elemento messiacircnico quando a salvaccedilatildeo eacute esperada

sob a conduccedilatildeo de um redentor um mediador entre o ser humano e a divindade

Frequentemente milenarismo envolve messianismo apesar de que os dois fenocircmenos natildeo

necessariamente coincidem Eacute possiacutevel surgir a perspectiva messiacircnica sem a milenarista

Do outro lado nem sempre eacute preciso um messias para que haja a presenccedila do milenarismo

Milenarismo e messianismo satildeo fenocircmenos independentes que eventualmente se unem

mas o dicionaacuterio de Desroche estaacute cheio de casos de um sem o outro643

Especificamente o milenarismo de Joatildeo eacute do tipo messiacircnico jaacute que ele entende que

para que o milecircnio aconteccedila um enviado de Deus um messias o Jesus glorificado precisaria

atuar Para Joaquim entretanto este periacuteodo de paz seria alcanccedilado por meio da atuaccedilatildeo do

Espiacuterito Santo o promotor da felicidade terrena que o abade chamou de ldquodescanso sabaacuteticordquo

O saacutebado do Espiacuterito natildeo demanda a parousia para sua instauraccedilatildeo Tambeacutem natildeo haacute figuras

ungidas exercendo papeacuteis messiacircnicos nas representaccedilotildees joaquitas como um imperador

especial para trazer o ldquosaacutebadordquo ou um papa angelical para instauraacute-lo

O abade de Fiore natildeo esperava por um reino milenar de Jesus na terra Ele deslocou

o reino de Jesus para traz e o tornou um artiacutefice de um periacuteodo completo dentro da histoacuteria

(o segundo status) Com sua visatildeo de progresso contiacutenuo e natildeo de queda contiacutenua Joaquim

imaginou a humanidade se desenvolvendo por meio da atuaccedilatildeo do Pai na primeira Era

passando pela revelaccedilatildeo do Filho na segunda Era ateacute culminar na atuaccedilatildeo do Espiacuterito na

641 GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 75 642 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 11 643 DESROCHE op cit

192

terceira Era Seu milenarismo entatildeo natildeo espera por um Jesus exaltado na terra realizando

um governo com maacutertires ressuscitados Para o calabrecircs natildeo eacute o Filho a esperanccedila dos fieacuteis

e sim o Espiacuterito O tempo de um estava por terminar para que o outro pudesse comeccedilar

Joatildeo esperava um periacuteodo de paz para apoacutes o segundo advento de Jesus Sem Jesus

natildeo haveria felicidade na terra nem reinado dos martirizados nem inversatildeo escatoloacutegica

nem vitoacuteria sobre o Anticristo O milecircnio assim concebido era um parecircntese entre o

segundo advento de Jesus e o final da histoacuteria Um parecircntese que duraria mil anos

Para o abade poreacutem Jesus eacute o centro da histoacuteria mas natildeo o seu aacutepice O aacutepice estaacute

no final na etapa exclusiva do Espiacuterito e sem a demanda do segundo advento de Jesus

(parousia) Em vez de o Filho retornar para trazer a felicidade para a humanidade seu tempo

iria terminar e somente entatildeo debaixo exclusivamente do controle histoacuterico do Espiacuterito os

seres humanos experimentariam a paz Haacute um lugar para a parousia tambeacutem nas

expectativas de Joaquim mas para terminar a histoacuteria e natildeo para dentro dela Na sua visatildeo

quando o Filho retornar a histoacuteria termina o mundo acaba644 Neste sentido o milenarismo

de Joaquim natildeo eacute um milenarismo do Filho e sim do Espiacuterito

Outro aspecto ainda relacionado com a forma de instauraccedilatildeo do milecircnio se desdobra

no papel humano para seu estabelecimento Haacute alguns elementos nas representaccedilotildees

milenaristas que podem atuar para minimizar a atuaccedilatildeo do fiel como por exemplo a

perspectiva de uma redenccedilatildeo predeterminada e inevitaacutevel Neste caso o milenarista natildeo

precisa fazer a revoluccedilatildeo basta esperar pela sua manifestaccedilatildeo sobrenatural Entretanto em

algumas situaccedilotildees a certeza da operaccedilatildeo de acordo com o que estaacute determinado no plano

divino e a confianccedila na vitoacuteria final podem encorajar alguma atividade em vez de

passividade Este parece ser o caso do Apocalipse645 que atribuiu um papel significativo aos

ldquosantosrdquo na instauraccedilatildeo do reino messiacircnico (Apocalipse 69-11) Sem o martiacuterio natildeo haveria

o preenchimento da cota de mortos necessaacuteria para instaurar a parousia (Apocalipse 19) ou

para vencer o Dragatildeo (Apocalipse 12) O profeta de Patmos entende que eacute necessaacuterio algum

tipo de resistecircncia resistecircncia essa que provocaraacute o martiacuterio martiacuterio esse que provocaraacute a

parousia parousia essa que inauguraraacute o milecircnio Ele natildeo demandou uma reaccedilatildeo armada

dos seus seguidores mas esperava deles a rejeiccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo romana o culto

644 Apoacutes o terceiro ciacuterculo da Taacutevola XI do Liber Figurarum aparece a expressatildeo ldquofinis mundirdquo Cf Anexo 6 645 Adela Yarbro Collins definiu o modelo de resistecircncia presente no Apocalipse de Joatildeo como ldquopassivordquo

Mesmo assim ela admite algum tipo de sinergismo jaacute que a morte dos maacutertires aproxima o fiel do eschaton

Cf COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E

J Brill 1996 p 212

193

imperial Na perspectiva joanina quando os disciacutepulos se negassem a participar da adoraccedilatildeo

agraves ldquobestasrdquo eles seriam mortos evento que parece estar subjacente agrave descriccedilatildeo da morte das

Duas Testemunhas (Apocalipse 11) e dos 144000 Guerreiros do Cordeiro (Apocalipse

14)646

Assim no milenarismo do Apocalipse os fieacuteis participam na instauraccedilatildeo do reino

milenar por meio do derramamento do proacuteprio sangue Este tipo de milenarismo pode ser

descrito como revolucionaacuterio ao rejeitar a ordem presente e promover accedilotildees concretas dos

fieacuteis O martiacuterio eacute tomado como uma estrateacutegia de confronto contra a sociedade romana Em

sua descriccedilatildeo do milecircnio Joatildeo explicita que o fiel precisa viver de certo jeito e morrer de

certa forma para estar presente no reino milenar

Em Joaquim entretanto haacute uma reduccedilatildeo do papel humano na instauraccedilatildeo do

descanso do Espiacuterito relacionado justamente com a oacutetica do abade de que os eventos

escatoloacutegicos estatildeo jaacute definidos e determinados Compete aos saacutebios apenas entendecirc-los

anunciar sua chegada e preparar a humanidade para eles Esse caraacuteter de determinaccedilatildeo estaacute

presente no seu esquema da Concordia Natildeo se pode mudar a histoacuteria apenas se preparar

para ela O milenarismo joaquita entatildeo eacute do tipo passivo Natildeo eacute possiacutevel fazer algo para

apressar a chegada do refrigeacuterio dos monges Sua instauraccedilatildeo natildeo depende de pessoas mas

do tempo que precisa ser cumprido

A roda das apropriaccedilotildees

147 anos apoacutes a morte de Joaquim em 1349 o franciscano francecircs Jean de

Roquetaillade enquanto estava encarcerado numa prisatildeo em Avignon escreveu a obra Liber

secretorum eventuum647 Nela ele anuncia a chegada de uma grande tribulaccedilatildeo A Igreja

entatildeo liderada por um papa ldquoangeacutelicordquo saiacutedo dentre os frades menores seria ldquopurgadardquo de

seus erros A partir de entatildeo um grande tempo de paz e prosperidade invadiria o mundo

durante mil anos Roquetaillade como outros franciscanos desde Geraldo San Borgo era

um leitor de Joatildeo de Patmos e Joaquim de Fiore648 Estas apropriaccedilotildees entretanto

tencionavam o pensamento do abade de Fiore na direccedilatildeo de confrontos que natildeo estavam

646 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no

Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 169-175 647 Esta anaacutelise de Roquetaillade segue DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 55-57 648 Idem p 50-57 Conferir tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore e o franciscanismo medieval

Thaumazein Santa Maria v V n 11 p 119-139 2013

194

previstos pelo ldquopaciacuteficordquo calabrecircs649 No Liber secretorum eventuum seu autor natildeo se vale

do esquema das trecircs idades do mundo jaacute criticado pelo protocolo de Agnani durante o

processo contra Geraldo O milenarismo de Jean de Roquetaillade eacute como o de Joaquim

natildeo-messiacircnico mas retomou o quimeacuterico nuacutemero de Joatildeo mil anos Sem parousia como

Joaquim mas por mil anos como Joatildeo Apoacutes o fim deste longo periacuteodo de paz viria entatildeo

o fim do mundo O frade aprisionado tinha a convicccedilatildeo de que o milecircnio comeccedilaria em 1415

ou 1420

Roquetaillade eacute um exemplo dos diversos tensionamentos sofridos pelo pensamento

joaquita reacionaacuterios ou revolucionaacuterios religiosos ou seculares clericais ou leigos no que

se convencionou chamar de ldquojoaquimismordquo650 Quer no paraiacuteso de Dante651 ou nas cartas de

Colombo652 depois de posta em movimento a roda das apropriaccedilotildees653 joaquimitas natildeo

parou de girar para chegar ateacute nos termos de Delumeau agraves ldquoutopias ideoloacutegicas da eacutepoca

contemporacircneardquo654

De qualquer forma este foi apenas um dos veios pelos quais correu a leitura do

Apocalipse e o levou a influenciar direta ou indiretamente a arte a literatura e a cultura no

Ocidente655 O livro foi catalisador de uma seacuterie de movimentos no correr da histoacuteria como

o grupo camponecircs liderado por Thomas Muntzer no seacuteculo XVI656 e a desastrosa

comunidade de 75 pessoas em torno de David Koresh destruiacuteda por um incecircndio em 1993657

A cada nova geraccedilatildeo de leituras um conjunto de representaccedilotildees emerge com

desdobramentos em subsequentes praacuteticas sociais e religiosas Compete aos historiadores e

649 Delumeau assim descreveu Joaquim ldquoum profeta paciacutefico que semeia germes de violecircnciardquo Cf

DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 46 650 Conferir DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling Madrid

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do Apocalipse Cf PHELAN John Leddy The millennial kingdom of the Franciscans in the new world

Berkeley University of California Press 1970 p 17 653 Retomando Chartier apropriaccedilatildeo eacute o processo historicamente determinado de construccedilatildeo de sentido Cf

CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191

1991 p 179 654 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 57 655 Conferir uma descriccedilatildeo panoracircmica em KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford

Blackwell Publishing 2004 p 19-38 656 BLOCH Ernst Thomas Muumlnzer teoacutelogo de la revolucion Madrid Editorial Ciencia Nueva 1963 657 NEWPORT Kenneth G C The Branch Davidians of Waco the history and beliefs of an apocalyptic sect

Oxford Oxford University Press 2006

195

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WATSON Duane F (ed) A history of biblical interpretation The Ancient Period

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ANEXOS

210

Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1658

658 Mapa presente em DMITRIEV Sviatoslav City government in hellenistic and Roman Asia Minor Oxford

Oxford University Press 2005 p xiv

211

Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2659

659 Mapa presente em DMITRIEV op cit pxvi

212

Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia660

660 Mapa presente em LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge

University Press 2007 p xiii

213

Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185)661

661 Mapa presente em DITCHBURN David MACLEAN Simon MACKAY Angus (eds) Atlas de Europa

medieval Madrid Caacutetedra 2011 p 132

214

Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum662

662 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero Le tavole del Liber Figurarum di

Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000 p 13

215

Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios663

663 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 15

Page 4: VALTAIR AFONSO MIRANDA HISTÓRIA E MILENARISMO NO

BANCA EXAMINADORA

Titulares

Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (orientadora)

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profa Dra Leila Rodrigues da Silva

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof Dr Paulo Duarte Silva

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof Dr Paulo Augusto de Souza Nogueira

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo

Universidade Metodista de Satildeo Paulo

Profa Dra Monica Selvatici

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social

Universidade Estadual de Londrina

Suplentes

Prof Dr Andreacute Chevitarese

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profa Dra Carolina Fortes

Instituto de Histoacuteria

Universidade Federal Fluminense

DEDICATOacuteRIA

Agrave Elizete Rafael e Caroline

pela parceria e pelo companheirismo durante a produccedilatildeo desta pequisa

Agrave Profa Dra Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva

pelas orientaccedilotildees pacientes e significativas para esta jornada acadecircmica

Ao Programa de Estudos Medievais e seus coordenadores

pelo ambiente saudaacutevel de trocas e partilhas

ldquoOs milenaristas tiveram razatildeo de natildeo

desviar seu olhar da cidade terrestre e de natildeo

ver nela apenas um lugar de expiaccedilatildeo do

pecado Queriam realizar na terra um

primeiro esboccedilo da cidade celeste fazer

surgir nela o maacuteximo de felicidade e de

fraternidaderdquo

Jean Delumeau

RESUMO

Esta pesquisa analisou de forma comparativa os elementos milenaristas presentes no

Apocalipse de Joatildeo e no Expositio in Apocalypsim O profeta Joatildeo produziu um texto que

propotildee um milenarismo revolucionaacuterio que rejeita a ordem social romana e convida sua

comunidade a abandonar as estruturas religiosas imperiais especialmente a instituiccedilatildeo do

culto imperial esperando que isso provoque o martiacuterio dos seus membros e instaure os

eventos que culminaratildeo no retorno do Jesus Glorificado agrave terra para derrotar todos os

inimigos dos fieis ressuscitar os martirizados e implementar um reino durante mil anos Este

ldquoreino dos maacutertiresrdquo com Cristo parece ser o resultado de tradiccedilotildees messiacircnicas e

apocaliacutepticas do Judaiacutesmo antigo materializado no final do seacuteculo I no Apocalipse em

funccedilatildeo de traumas da guerra judaico-romana (66-70) de conflitos entre igrejas e sinagogas

e das diferentes respostas de lideres carismaacuteticos agrave questatildeo do relacionamento com a

sociedade romana Joaquim por seu turno esperava que a Terceira Era da histoacuteria da

humanidade culminasse num descanso sabaacutetico sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Apesar

de ser um periacuteodo relativamente curto a Era do Espiacuterito iria trazer sobre a humanidade o fim

dos conflitos que caracterizavam a histoacuteria eclesiaacutestica sob a lideranccedila de um pai espiritual

que governaria a sociedade nos moldes de uma casa monaacutestica Este ldquodescanso dos mongesrdquo

natildeo teve como ponto de partida entretanto diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim

as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que aguardava uma

fase de felicidade na terra anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica do milenarismo

joaquita na parte final do seacuteculo XII pode estar relacionada com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos

como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica

Palavras-chave Milenarismo Apocalipse de Joatildeo Joaquim de Fiore Filosofia da Histoacuteria

ABSTRACT

This research has analyzed in a comparative way the millenarian elements wich are present

in the Revelation of John and in the Expositio in Apocalypsim The prophet John produced

a text that proposes a revolutionary millenarianism which rejects the Roman social order and

invites its community to abandon the imperial religious structures especially the institution

of the imperial cult hoping that this provokes the martyrdom of its members and establishes

the events that will culminate in the return of the Glorified Jesus to the earth to defeat all

enemies of the faithful and to resurrect the martyred and to implement a kingdom for a

thousand years This kingdom of martyrs with Christ seems to be the result of messianic

and apocalyptic traditions of ancient Judaism which were materialized at the end of the first

century in the Apocalypse as a result of traumas of the Jewish-Roman War (66-70) of

conflicts between churches and synagogues and the different responses of charismatic

leaders to the question of the relationship with Roman society Joachim for his part hoped

that the Third Age of human history would culminate in a Sabbath rest under the inspiration

of the Holy Spirit In spite of being a relatively short period the Age of the Spirit would

bring to humanity the end of the conflicts that characterized ecclesiastical history under the

leadership of a spiritual father who would govern society in the mold of a monastic house

This rest of the monks did not have as its starting point however directly the millennium

of the Revelation but rather the historical reflections of Joachim and the tradition of the

refreshing of the saints that awaited a phase of happiness in the land before parousia The

historical emergency of Joachite millenarism in the late 12th century may be related to the

combination of phenomena such as apocalypticism and monastic reform

Abstract Millenarianism Revelation of John Joachim of Fiore Philosophy of History

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA 11

I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO 27

11 O autor do Apocalipse 27

12 A data do Apocalipse 35

13 O propoacutesito do Apocalipse 38

14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse 44

15 Resumo 47

II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA 48

21 Patmos o ponto de partida 48

22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia 50

23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia 52

24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia 54

25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo 59

26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo 61

27 Resumo 63

III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE JOAtildeO 65

31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse 65

32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo 67

33 O contexto narrativo do reino milenar 69

34 O episoacutedio do reino milenar 71

35 O reinado messiacircnico interino na terra 76

36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 82

37 Resumo 88

IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 89

41 O autor do Expositio in Apocalypsim 89

42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim 98

43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim 100

44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse 106

45 Resumo 107

V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA SICIacuteLIA 108

51 A chegada dos normandos 110

52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia 111

10

53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen 113

54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada 114

55 A Igreja no Reino da Siciacutelia 118

56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda 121

57 Resumo 124

VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA DE JOAQUIM 126

61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo 126

62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo 130

63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde 134

64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas 137

65 Sensus typicus histoacuteria e profecia 139

66 O dom da exegese 142

67 Resumo 143

VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM 144

71 Estrutura literaacuteria do Expositio 144

72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim 146

73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio 154

74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito 159

75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito 165

76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia 171

77 Resumo 176

CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO DOS MONGES 178

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 196

ANEXOS 209

Anexo 1 - A Aacutesia Romana ndash Mapa 1 210

Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2 211

Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia 212

Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185) 213

Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum 214

Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios 215

INTRODUCcedilAtildeO APRESENTANDO A PESQUISA

Possivelmente as igrejas espalhadas pela Aacutesia Menor no final do seacuteculo I se

originaram da atividade religiosa de Paulo de Tarso na regiatildeo a partir do ano 58 da Era

Comum Natildeo havia centralizaccedilatildeo religiosa e cada comunidade se organizava e sobrevivia

do seu proacuteprio jeito Em termos de lideranccedila estas comunidades levantavam seus quadros

internamente privilegiando formatos colegiados Mesmo assim uma antiga atividade

religiosa ainda se manifestava entre as igrejas a profecia Profetas itinerantes viajavam para

pregar suas mensagens em cada comunidade e se moviam em funccedilatildeo da ajuda que recebiam

destes grupos

Um destes profetas ainda dentro do primeiro seacuteculo mas vaacuterias deacutecadas apoacutes o iniacutecio

do movimento de Jesus ficou conhecido por causa de um livro em que registrou o que seriam

visotildees relacionadas com o final dos tempos conhecido como Apocalipse Nesta obra ele se

identificou simplesmente como Joatildeo e escreveu suas ldquorevelaccedilotildees divinamente recebidasrdquo a

respeito de fenocircmenos histoacutericos e realidades sobrenaturais durante uma permanecircncia ou

visita agrave Patmos uma pequena ilha do mar Egeu proacutexima de Mileto e Eacutefeso

O livro de Joatildeo escrito em grego comeccedila com a expressatildeo ldquorevelaccedilatildeo de Jesus

Cristordquo (ldquoApokaluyij vIhsou Cristourdquo) Tal ldquorevelaccedilatildeordquo pode ser dividida em linhas gerais

em trecircs partes cada uma apresentando um conjunto de pequenos episoacutedios interconectados1

Na primeira (Apocalipse 1-3) Joatildeo descreve o aparecimento do ldquoFilho do Homemrdquo que lhe

revela o conteuacutedo de sete cartas que deveriam ser encaminhadas para sete igrejas A segunda

seccedilatildeo da obra (Apocalipse 4-11) registra o que Joatildeo teria visto apoacutes uma viagem espiritual

ao ceacuteu O conteuacutedo desta segunda visatildeo eacute narrado por meio da abertura de um rolo selado

com sete selos Eacute uma histoacuteria modelada pelas tradiccedilotildees judaicas sobre o fim do mundo que

culmina na implantaccedilatildeo de um esperado reino messiacircnico A uacuteltima seccedilatildeo do livro eacute bem

maior (Apocalipse 12-22) consumindo a metade da obra Nela se desdobra a histoacuteria da

guerra entre uma figura demoniacuteaca o Dragatildeo Vermelho e o Cordeiro siacutembolo usado por

Joatildeo para fazer referecircncia a Jesus fundador do movimento morto em Jerusaleacutem no iniacutecio

do seacuteculo No Apocalipse entretanto Jesus estaacute vivo e aparece descrito em categorias

1 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa

Polebridge Press 1998 p 10-16 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro Representaccedilatildeo e

construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 32-38

12

exaltadas como um ser angelical ou mesmo divino Esta narrativa de guerra escatoloacutegica eacute

uma estrateacutegia do autor para descrever a histoacuteria na forma de conflitos violecircncia e morte

tanto dos seguidores de Jesus quanto dos seguidores do Dragatildeo num processo contiacutenuo que

terminaria na intervenccedilatildeo divina para a construccedilatildeo de uma realidade paradisiacuteaca

transcendental que Joatildeo chamou de Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 211-27) Esta realidade

para aleacutem da histoacuteria entretanto seria precedida pela realizaccedilatildeo histoacuterica de um reino na

terra durante um periacuteodo de mil anos (Apocalipse 201-10)

Haacute evidecircncias de leitura e uso religioso do Apocalipse durante os dois primeiros

seacuteculos por parte de diversos liacutederes de igrejas Estes primeiros leitores enfatizavam

especialmente a passagem do Apocalipse que fala do periacuteodo de mil anos de governo de

Jesus Cristo na terra ao lado dos seus seguidores Por causa desta ecircnfase no milecircnio estes

primeiros leitores foram chamados eventualmente de quiliastas (termo derivado da palavra

grega traduzida como ldquomilrdquo)2

Nem todas as igrejas entretanto deram o mesmo tratamento para o Apocalipse No

periacuteodo de Euseacutebio de Cesareia (265-339) algumas rechaccedilavam a obra joanina enquanto

outras o contavam entre ldquoos livros admitidosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XXV 1-4) De

qualquer forma a obra de Joatildeo de Patmos acabou se fixando no cacircnon do Novo Testamento

cristatildeo fenocircmeno que no Ocidente se deu mais cedo do que no Oriente Em 397 o Siacutenodo

de Cartago reconheceu-o como texto sagrado e na igreja grega no fim do seacuteculo quinto ele

jaacute tinha aceitaccedilatildeo geral3 A partir de entatildeo ele seraacute lido como obra sagrada pelas diversas

comunidades cristatildes tornando-se elemento significativo no fornecimento de imagens e

siacutembolos para composiccedilatildeo de diversas representaccedilotildees sociais antigas e medievais

Mais de mil anos depois de Joatildeo nasceu em Celico na Calaacutebria sul da Peniacutensula

Itaacutelica um homem chamado Joaquim Quando jovem foi educado para atuar como notaacuterio

a serviccedilo do Reino Normando da Siciacutelia mas acabou deixando a corte para abraccedilar a vocaccedilatildeo

monaacutestica Ele comeccedilou a vida religiosa como eremita mas depois ingressou em um

pequeno cenoacutebio em Corazzo na Calaacutebria terminando por fundar no final da vida uma

casa monaacutestica em Fiore a fim de receber os vaacuterios disciacutepulos que desejavam segui-lo Este

monge de meados do seacuteculo XII produziu uma longa reflexatildeo sobre a histoacuteria lastreada

sobre a exegese dos textos biacuteblicos sobre o dogma trinitaacuterio e principalmente sobre o livro

2 WAINWRIGHT Arthur W Mysterious Apocalypse interpreting the Book of Revelation Wipf and Stock

Publishers Eugene 2001 p 21 3 Idem p 33-34

13

do visionaacuterio de Patmos Segundo ele o curso inteiro da histoacuteria estaria ldquoescondidordquo no

Apocalipse embora suas reflexotildees sejam primariamente dirigidas para a histoacuteria da igreja

desde o nascimento de Jesus ateacute a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de felicidade na terra Joaquim

escreveu vaacuterias obras em que trabalhou este mesmo tema4

- Expositio de prophetia ignota Romae reperta Foi composta em 1184 apoacutes o

encontro entre Joaquim e o papa Luacutecio III e consiste na interpretaccedilatildeo de um texto encontrado

entre os documentos do falecido cardeal Matias de Angers relacionado com profecias cristatildes

tradicionais a respeito do fim dos tempos

- De septem sigillis Eacute um pequeno opuacutesculo composto por Joaquim para servir de

guia e resumo do seu esquema das perseguiccedilotildees paralelas do Antigo e Novo Testamentos

baseado nos sete selos do Apocalipse de Joatildeo

- Enchiridion super Apocalypsim Eacute um manual sobre o Apocalipse e deveria servir

de introduccedilatildeo agrave obra joanina Foi escrito durante o periacuteodo que Joaquim passou em

Casamari entre os anos 1183 e 1184

- Praephatio super Apocalypsim Eacute a reuniatildeo de dois pequenos sermotildees de Joaquim

sobre o Apocalipse de Joatildeo pregados possivelmente para os monges de Corazzo Foram

reunidos posteriormente e circularam como uma uacutenica obra por causa de afinidades

temaacuteticas Eacute a uacutenica obra de Joaquim traduzida para a liacutengua portuguesa5

- Adversus Iudaeos No formato de tratado este texto descreve uma expectativa de

conversatildeo geral dos judeus no final dos tempos

- De ultimis tribulationibus Pequeno texto em forma de oraccedilatildeo possivelmente

declamado durante um encontro lituacutergico no mosteiro de Fiore

- Expositio in Apocalypsim Joaquim o iniciou em 1183-1184 mas soacute foi concluiacutedo

entre 1198 e 1200 Eacute tambeacutem a maior obra de Joaquim escrita num latim denso e complexo

Eacute possiacutevel dizer entatildeo que o abade de Fiore desde que abraccedilou a vocaccedilatildeo

monaacutestica decidiu fazer o que Bernard McGinn chamou de ldquocomer o Apocalipserdquo ou digeri-

lo lentamente analogia ao texto do Apocalipse em que o visionaacuterio eacute convidado a comer um

4 Quanto agrave data das obras cf TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di

Gioacchino da Fiore In GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p

73-106 Para uma lista dos manuscritos joaquimitas cf REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the

Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 511-519 5 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse Veritas Porto Alegre v 47 n 3 p 453-471 2002

BERNARDI Orlando Comentaacuterio ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla

Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010

14

livro entregue por um anjo 6 Dentre seus vaacuterios textos evidentemente o destaque fica para

o Expositio jaacute que representa o trabalho final do abade sobre a obra joanina

A partir destes dois personagens o que fizemos nesta tese foi analisar de forma

comparativa o Apocalipse de Joatildeo e o Expositio de Joaquim Em funccedilatildeo mesmo da extensatildeo

das obras e das dificuldades provocadas pelas distacircncias geograacuteficas e temporais entre elas

focaremos na categoria descrita como ldquomilenarismordquo7 e os recortes textuais de Apocalipse

201-10 bem como sua apropriaccedilatildeo na seacutetima parte do Expositio in Apocalypsim (209v-

213r) Em termos especiacuteficos indagaremos sobre a forma como Joaquim interpretou o

milecircnio do Apocalipse e a concepccedilatildeo milenarista que aparece no final

Eacute preciso destacar que cada um de nossos objetos de pesquisa tem sua proacutepria

historiografia Sobre Joatildeo de Patmos e seu Apocalipse por exemplo eacute preciso mencionar

primeiramente o grande volume de obras que se propotildee a fazer uma interpretaccedilatildeo semi-

literal esperando que as visotildees de Joatildeo se convertam em cenas histoacutericas de futuro proacuteximo

tomando o livro joanino como um depoacutesito de profecias predominantemente de

cumprimento iminente Esta tradiccedilatildeo interpretativa nas suas principais configuraccedilotildees

contemporacircneas parecem retroceder a John Nelson Darby (1800-1882) e agraves notas da Biacuteblia

de Estudo Scofield cuja primeira ediccedilatildeo saiu em 19098 Nesta linha eacute possiacutevel mencionar

obras de enorme circularidade como The Late Great Planet Earth (1970) de Hal Lindsey

que vendeu mais de 20 milhotildees de exemplares na sua primeira deacutecada de publicaccedilatildeo9 ou a

seacuterie de dez novelas de Tim LaHaye e Jerry Jenkins intitulada Left Behind escritas de 1995

ateacute 2002 que ultrapassou a quantia de 63 milhotildees de coacutepias vendidas em 37 paiacuteses e 33

liacutenguas diferentes10 Esta tradiccedilatildeo pode ser caracterizada por algumas ecircnfases gerais como

a ideia de um arrebatamento secreto dos crentes fieacuteis a Jesus a conversatildeo final dos judeus

ao Cristianismo e um periacuteodo milenar de felicidade na terra O Apocalipse eacute tratado como

6 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale Gecircnova

Casa Editrice Marietti 1990 p 159 A passagem em questatildeo se encontra em Apocalipse 10 7 Adotamos aqui a concepccedilatildeo de ldquomilenarismordquo do historiador inglecircs Norman Cohn entendendo-a como um

tipo particular de utopia salvacionista que apresenta os seguintes traccedilos gerais coletiva jaacute que todos os fieacuteis

experimentariam a felicidade terrena em funccedilatildeo do fato de que essa felicidade seria alcanccedilada neste mundo e

natildeo numa realidade transcendente total pois aguarda uma completa inversatildeo de todos os males da terra

iminente jaacute que essa transformaccedilatildeo completa estaria perto de comeccedilar e miraculosa agrave luz da certeza de que

essa mudanccedila contaria com a ajuda de seres sobrenaturais Cf COHN Norman Na senda do milecircnio

milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 8 Sobre o papel significativo de John Nelson Darby e a Biacuteblia de Estudo Scofield na interpretaccedilatildeo

contemporacircnea do Apocalipse cf KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation Oxford

Blackwell Publishing 2004 p 24-25 WAINWRINGHT op cit p 82-83 9 WAINWRINGHT op cit p 84 10 MONAHAN Torin Marketing the beast Left Behind and the apocalypse industry Media Culture amp

Society Thousand Oaks n 30 p 813-830 2008 p 817

15

parte de um grande quebra-cabeccedila que revelaria por meio de coacutedigos e imagens eventos

dos dias contemporacircneos como o papel dos Estados Unidos no aparecimento do Anticristo

ou o surgimento de um liacuteder poliacutetico de origem socialista como o falso profeta de Apocalipse

13

Do outro lado normalmente vinculados a instituiccedilotildees universitaacuterias estatildeo

pesquisadores cujo foco reside em aspectos histoacutericos do Apocalipse Estudiosos desta linha

histoacuterica se preocupam com a relaccedilatildeo entre Joatildeo e o tempo de produccedilatildeo do Apocalipse

Sendo assim eles procuram perceber ateacute onde o autor na sua narrativa apocaliacuteptica reflete

os medos e esperanccedilas dos grupos que representa ou antagoniza Esses autores tendem a

procurar similaridades entre as visotildees de Joatildeo e eventos contemporacircneos do primeiro seacuteculo

Eles estudam as razotildees que teriam levado o autor ateacute a ilha de Patmos ateacute que ponto o

Impeacuterio Romano promoveu algum tipo de desconforto para as igrejas e as implicaccedilotildees do

governo de Domiciano sobre o movimento de Jesus no final do primeiro seacuteculo Essas

ecircnfases histoacutericas podem ser encontradas por exemplo em R H Charles11 G B Caird12

A Y Collins13 C Rowland14 Leonard Thompson15 C Bauckham16 E S Fiorenza17 e

David Aune18 Estudos como os de C J Hemer19 ainda podem ser uacuteteis para esclarecer

aspectos especiacuteficos das igrejas da Aacutesia menor

Uma significativa tendecircncia de pesquisa eacute a que busca trabalhar o livro de Joatildeo agrave luz

de questotildees como retoacuterica20 e gecircnero21 Esta linha transita do meacutetodo histoacuterico e literaacuterio

para um paradigma de interpretaccedilatildeo retoacuterica Dentro dessa tendecircncia estuda-se a obra de

11 CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New York Charles

Scribner amp Sons 1920 12 CAIRD G B A Commentary on the Revelation of St John the Divine New York Harper amp Row Publishers

1966 13 COLLINS Adela Yarbro The Apocalypse Wilmington Michael Grazier Inc 1982 14 ROWLAND Christopher The Open Heaven A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity

London SPCK 1982 15 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University

Press 1990 16 BAUCKHAM Richard The cliacutemax of Prophecy London T amp T Clark 1993 17 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation Vision of a Just World Minneapolis Augsburg Fortress 1991 18 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 AUNE David E Revelation

6-16 Nashville Thomas Nelson Publishers 1998 AUNE David E Revelation 17-22 Nashville Thomas

Nelson Publishers 1998 19 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield

Academic Press Ltd 1986 20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In

BARR David L (ed) The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta

Society of Biblical Literature 2006 p 243-269 21 PIPPIN Tina The heroine and the whore fantasy and the female in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 60 p 67-90 1992

16

Joatildeo em busca da funccedilatildeo almejada para cada seccedilatildeo ou narrativa do livro percebendo-as

como discursos que buscavam retoricamente convencer uma audiecircncia determinada acerca

das posturas idealizadas por Joatildeo vistas de uma maneira geral como asceacuteticas e sectaacuterias

O Apocalipse assim refletiria a tendecircncia de um profeta judeu que cria em Jesus como o

Messias e se percebia em crise com a sociedade22

A sociologia e a antropologia forneceram aos estudiosos importantes instrumentos

de anaacutelise que nas uacuteltimas deacutecadas comeccedilaram igualmente a resultar em influentes

publicaccedilotildees Festinger23 Norman Cohn24 e John Gager25 trabalharam o apocalipse

vinculando-o aos estudos de milenarismo e a movimentos religiosos sectaacuterios A obra de

Joatildeo poderia ser vista entatildeo como o resultado de uma comunidade oprimida em confronto

com uma dissonacircncia cognitiva difiacutecil de ser conciliada com a realidade O resultado eacute a

construccedilatildeo de um mundo simboacutelico alternativo e a projeccedilatildeo de temores e ressentimentos

para o futuro por meio das imagens apocaliacutepticas

No contexto latino-americano eacute possiacutevel apontar a contribuiccedilatildeo de autores que

aplicam ao Apocalipse uma hermenecircutica da libertaccedilatildeo O livro eacute utilizado para interpretar

realidades poliacuteticas e sociais de opressatildeo contra pobres e marginalizados Dentro desta

perspectiva a obra joanina deveria servir de instrumento para promoccedilatildeo de esperanccedila de

uma vida melhor bem como para estimular resistecircncia a situaccedilotildees de violecircncia e injusticcedila

Leituras deste tipo podem ser encontradas por exemplo em Mester e Orofino26 e Pablo

Richard27

Surgiu em Satildeo Paulo na virada do seacuteculo um grupo de estudiosos vinculados agrave

UMESP voltados para trabalhar o Apocalipse literaturas a ele relacionadas e o cristianismo

dos primoacuterdios por uma oacutetica multi-disciplinar onde os temas satildeo analisados com o apoio

de diversos olhares derivados das ciecircncias da religiatildeo Antropologia da religiatildeo sociologia

da religiatildeo fenomenologia da religiatildeo psicologia da religiatildeo histoacuteria das religiotildees religiotildees

22 Entre outros conferir SILVA David A de The Revelation to John a case study in apocalyptic propaganda

and the maintenance of sectarian identity Sociological Analysis Oxford v 53 n 4 p 375-395 1992 SILVA

David A de The social setting of the Revelation to John Conflicts within fears without Westminster

Theological Journal Philadelfia v 54 p 273-302 1992 23 FESTINGER Leon (ed) When prophecy fails a social and psychological study of a modern group that

predicted the destruction of the world London Pinter amp Martin Ltda 2008 24 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 25 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 26 MESTERS Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo A teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis

Vozes 2003 27 RICHARD Pablo Apocalipse reconstruccedilatildeo da esperanccedila Petroacutepolis Vozes 1996

17

comparadas e estudos literaacuterios Nesta linha trabalham autores como Paulo Nogueira28 e Joseacute

Adriano Filho29 entre outros

Jaacute a historiografia de Joaquim de Fiore parece ter sofrido um incremento a partir das

pesquisas de Herbert Grundmann no iniacutecio do seacuteculo XX30 Grundmann focava na produccedilatildeo

de uma biografia de Joaquim daiacute seu interesse nas hagiografias e narrativas antigas sobre o

abade Em 1960 ele editou duas destas antigas narrativas uma anocircnima e outra atribuiacuteda a

Rainers de Ponza que se tornaram entatildeo fontes fundamentais dos estudiosos

contemporacircneos sobre o abade de Fiore

No mesmo periacuteodo em que Grundmann pesquisava na Alemanha Ernesto Buonaiuti

especialmente a partir de 1930 trabalhava na Itaacutelia na ediccedilatildeo das obras de Joaquim de

pequeno porte O pesquisador italiano chegou a produzir uma anaacutelise abrangente do

pensamento joaquimita31 poreacutem concentrou-se em disponibilizar para os pesquisadores

ediccedilotildees criacuteticas das obras Ele tambeacutem traduziu algumas dessas obras para a liacutengua italiana

Outros estudiosos se envolveram no mesmo ofiacutecio de Buonaiuti fazendo com que as

seguintes obras jaacute apresentassem ediccedilotildees criacuteticas Tractatus super Quatuor Evangelia

(1930) De articulis fidei e Sermotildees (1936) Epistola universis Christi fidelibus e Epistola

domini Valdonensi (1937) Dialogi de prescientia Dei et predestinatione electorum (1938)

Enchiridion in Apocalypsim (1938) Hymnus de paacutetria coelesti (1899) Visio admiranda de

gloria paradisi (18991938) De vita sancti Benedicti et de officio divino secundum ejus

doctrinam (1951) Liber Figurarum (1953) Super flumina Babylonis (1953) De septem

sigillis (1954) Adversus Iudeos (1957) Carta Testamentaacuteria (1960)

Das grandes obras de Joaquim entretanto apenas uma recebeu ediccedilatildeo parcial E

Randolph Daniel editou Liber Condordiae Novi ac Veteris Testamenti32 As outras duas

Expositio in Apocalypsim e Psalterium decem chordarum somente estatildeo acessiacuteveis pelas

ediccedilotildees da Junta de Veneza (seacuteculo XVI) reimpressas em 19641965 pela Editora Minerva

de Frankfurt

28 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza (org) Religiatildeo de visionaacuterios apocaliacuteptica e misticismo no

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Loyola 2005 29 ADRIANO FILHO Joseacute O Apocalipse de Joatildeo como relato de uma experiecircncia visionaacuteria Anotaccedilotildees em

torno da estrutura do livro Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana Satildeo Paulo n 34 p 7-29 1999 30 GRUNDMANN Herbert Studien uumlber Joachim von Floris GMBH Springer Fachmedien Wiesbaden

1927 Para a historiografia anterior a Grundmann cf LA PINA George Joachim of Flora a critical survey

Speculum Cambridge v 7 n 2 p 257-282 1932 31 BUONAIUTI Ernesto Gioacchino da Fiore I tempi La vita Il messaggio Roma Consenza 1931 32 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Noui ac Veteris Testamenti

Independence Square American Philosophical Society 1983

18

O trabalho editorial das obras de Joaquim tem sido pontual e esporaacutedico Ainda haacute

muito espaccedilo para reflexotildees nesta aacuterea mesmo do material jaacute editado no iniacutecio do seacuteculo

XX em funccedilatildeo do avanccedilo no trabalho de restauraccedilatildeo de manuscritos antigos Vaacuterias obras

de Joaquim ainda precisam ser traduzidas para liacutenguas modernas o que facilitaria a pesquisa

e a compreensatildeo de seus textos Neste sentido eacute uacutetil apontar o trabalho de um dos membros

do conselho editorial do Centro Internazionale di Studi Gioachamiti Gian Luca Potestagrave Este

conselho desde que foi formado em 199533 tem como propoacutesito reeditar as obras de

Joaquim do iniacutecio do seacuteculo e promover a ediccedilatildeo de obras ainda natildeo editadas Potestagrave precisa

ser mencionado por ser um dos principais bioacutegrafos atuais de Joaquim especialmente depois

de sua obra Il tempo dellacuteApocalisse34

O professor alematildeo Kurt-Victor Selge outro membro do conselho editorial acima

mencionado argumentou que pelo menos trecircs fatores atrasaram a produccedilatildeo de ediccedilotildees

criacuteticas de Joaquim Primeiramente faltou apoio de alguma instituiccedilatildeo religiosa como

aquele que o luteranismo alematildeo deu para as Ediccedilotildees de Weimar das obras de Lutero ou o

papado para a Editio Leonina de Tomaacutes de Aquino a Ordem Florense fundada pelo abade

que poderia ser este apoio se enfraqueceu apoacutes sua morte ateacute desaparecer no seacuteculo XVI

por fim Joaquim se converteu num marginalizado da histoacuteria do pensamento cristatildeo Mesmo

sendo saudado por revolucionaacuterios e iluministas tal aceitaccedilatildeo natildeo se traduziu na fundaccedilatildeo

de alguma instituiccedilatildeo Nesse sentido o renovado interesse em Joaquim a partir do iniacutecio do

seacuteculo XX poderia ser explicado pelo aparecimento de uma ala modernista dentro da Igreja

Catoacutelica que buscava uma figura que legitimasse seu interesse por uma igreja mais livre e

pela busca de historiadores e filoacutesofos que se perguntavam por formas adequadas de vida

comunitaacuteria que poderiam mitigar a crise que a sociedade europeia carregava desde o seacuteculo

XIX As ideias de Joaquim chamaram a atenccedilatildeo desses estudiosos em nuacutemero cada vez

maior especialmente na Itaacutelia e Alemanha e depois tambeacutem na Espanha Inglaterra e

Estados Unidos35

Um outro tipo de pesquisa se debate natildeo com o proacuteprio Joaquim mas com o

desdobrar do seu pensamento dando origem ao que se convencionou chamar de

joaquimismo Pesquisadores desta linha se concentram em encontrar a influecircncia de Joaquim

33 HONEacuteE Eugegravene Joachim of Fiore The development of his life and the genesis of his works and doctrines

About the merits of Gian Luca Potestagraveacutes new biography Church History and Religious Culture Leida v 87

n 1 p 47-74 2007 p 49 34 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 35 Conferir esta anaacutelise em SELGE Kurt-Victor La edicioacuten criacutetica de las Opera omnia de Joaquiacuten de Fiore

Anuario de Historia de la Iglesia Navarra n 11 p 89-94 2002

19

em pensadores e escritores posteriores Em especial alguns estatildeo envolvidos em demonstrar

quais ideias de Joaquim deram iacutempetos a outras figuras e movimentos importantes Neste

acircmbito se situam autores como Marjorie Reeves36 Bernard McGinn37 e Henri de Lubac38

Estes livros se tornaram ponto de partida recente para os estudos sobre a influecircncia de

Joaquim e o desenvolvimento do joaquimismo

Nesta tendecircncia ainda se situam estudos que procuram sua contribuiccedilatildeo para a

teologia e a filosofia da histoacuteria em especial No primeiro caso apontamos Juumlrgen

Moltmann e o seu livro The Trinity and the Kingdom (1981) No segundo indicamos

pesquisadores brasileiros como Vicente Dobroruka e a busca pela relaccedilatildeo de Joaquim com

o pensamento de Ephraim Lessing (1995)39 e Noeli Dutra Rossatto sobre a relaccedilatildeo entre

Trindade e histoacuteria (2004)40 Eacute do historiador brasileiro Dobroruka a avaliaccedilatildeo de que o

sistema profeacutetico de Joaquim eacute considerado um dos pilares da moderna reflexatildeo acerca do

sentido da histoacuteria41

A partir das pontes levantadas pela historiografia aproximamo-nos das questotildees por

meio de um conjunto de conceitos oriundos da abordagem da histoacuteria cultural especialmente

promovidos pelo historiador francecircs Roger Chartier praacutetica representaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo42

Uma de suas aacutereas de pesquisa busca compreender as formas como a produccedilatildeo e recepccedilatildeo

de objetos culturais atuam na configuraccedilatildeo do mundo social Essa abordagem se mostra

revelante para nossa pesquisa justamente por promover uma histoacuteria do livro da leitura ou

das interpretaccedilotildees sociais o que nos ajuda a entender a operaccedilatildeo realizada por Joaquim de

Fiore e Joatildeo de Patmos em seus respectivos contextos Ambos satildeo produtores e receptores

de textos e tradiccedilotildees e consequemente por meio de suas praacuteticas e apropriaccedilotildees atuaram

na construccedilatildeo de novas representaccedilotildees sociais

36 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976

REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit 37 MCGINN Bernard The calabrian abbot Joachim of Fiore in the history of Western Thought New York

Macmillan Pub Co 1985 38 De LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore Madri Ediciones Encuentro 2011 39 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore Revista

Muacuteltipla Brasiacutelia v 5 n 8 p 9-28 2000 Cf tambeacutem sua obra DOBRORUKA Vicente Histoacuteria e

milenarismo ensaios sobre tempo histoacuteria e o milecircnio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 40 ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 41 DOBRORUKA Vicente Consideraccedilotildees sobre o pensamento trinitaacuterio de Joaquim de Fiore op cit p 9 42 A noccedilatildeo de ldquopraacuteticardquo eacute intercambiaacutevel com produccedilatildeo cultural ldquoapropriaccedilatildeordquo tem relaccedilatildeo com recepccedilatildeo

cultural ldquorepresentaccedilatildeordquo entretanto carrega certa ambiguidade Em alguns momentos Chartier a usa para

falar de estruturas em outro do conteuacutedo das estruturas Cf CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre

praacuteticas e representaccedilotildees Algeacutes Difusatildeo Editorial 2002 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo

Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 11 n 5 p 173-191 1991

20

Eacute possiacutevel entender as representaccedilotildees como classificaccedilotildees divisotildees e delimitaccedilotildees

que organizam a apreensatildeo do mundo social Elas satildeo categorias intelectuais elementos

mentais estruturantes da realidade exterior subjetivaccedilotildees de realidades materiais

organizadas segundo determinados padrotildees O ser humano jaacute nasce mergulhado num mundo

construiacutedo Ele natildeo participou de sua construccedilatildeo mas em algum momento precisou introjetaacute-

lo e estruturaacute-lo subjetivamente para que ele se tornasse o seu proacuteprio mundo43 Estas

representaccedilotildees individuais ou coletivas geram praacuteticas culturais como a produccedilatildeo de um

livro a verbalizaccedilatildeo dos discursos a idealizaccedilatildeo de comportamentos e valores especiacuteficos

em detrimento da estigmatizaccedilatildeo de outros

A noccedilatildeo dupla de representaccedilotildees e praacuteticas se constitui como poacutelo de um processo

amplo jaacute que natildeo apenas as representaccedilotildees geram praacuteticas mas tambeacutem as praacuteticas geram

representaccedilotildees O tal mundo social como representaccedilatildeo eacute formado por um processo

contiacutenuo de moldes e formas manifestados em discursos que tanto o apreendem quanto o

estruturam44 Numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre as praacuteticas e representaccedilotildees Chartier aponta

a apropriaccedilatildeo entendida como o processo pelo qual um sentido eacute historicamente

produzido45 Apropriaccedilatildeo tem a ver com construccedilatildeo de sentido interpretaccedilatildeo categoria uacutetil

para problematizar a dinacircmica entre sujeito produtor de cultura e sujeito consumidor de

cultura Um livro como objeto da cultura eacute o resultado da produccedilatildeo de sentido de um autor

mas tambeacutem gerador de sentidos nas matildeos de um leitor que se apropria da obra e cria novos

significados Uma anaacutelise das apropriaccedilotildees teria relaccedilatildeo com as condiccedilotildees e os processos de

produccedilatildeo de sentido Cabe descobrir como isso se daacute e verificar as novas formas

constitutivas de mundo46 a partir da leitura ou audiccedilatildeo jaacute que textos podem ser lidos ou

ouvidos em espaccedilos privados ou puacuteblicos Segundo Chartier a apropriaccedilatildeo natildeo se daacute de

forma passiva jaacute que quem recebe um texto pode promover uma apropriaccedilatildeo seletiva ou

mesmo criativa transformando e ateacute negando o sentido do texto lido47 Joaquim por

exemplo construiu um comentaacuterio biacuteblico gecircnero literaacuterio voltado primariamente para

buscar e criar sentidos atraveacutes da apropriaccedilatildeo do texto do Apocalipse de Joatildeo

43 BERGER Peter LUCKMANN Thomas A construccedilatildeo social da realidade tratado de sociologia do

conhecimento Petroacutepolis Vozes 1973 p 87 44 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 23 45 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 179 46 Para os socioacutelogos Berger e Luckmann ldquomundordquo eacute aquilo que as pessoas reconhecem ou entendem existir

independente de sua vontade ou independente delas Cf BERGER Peter LUCKMANN Thomas op cit p

10 47 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 10

21

Daiacute a necessidade de buscar as praacuteticas que organizam os modos de relacionamento

com os textos diferenciadas histoacuterica e socialmente48 Cada comunidade grupo ou

sociedade tem sua proacutepria maneira de ler e interpretar Haacute processos historicamente

condicionados de padronizaccedilatildeo de escrita (gecircnero literaacuterio) da mesma forma como de

leitura que criam limites para o que eacute possiacutevel escrever mas tambeacutem para o que eacute possiacutevel

ver no que estaacute escrito Satildeo as determinaccedilotildees enquadramentos e condicionamentos que

viabilizam tanto a produccedilatildeo quando a apropriaccedilatildeo de uma obra

A apropriaccedilatildeo eacute para o historiador francecircs uma relaccedilatildeo sempre dinacircmica e

dependente de uma seacuterie de fatores Neste sentido as determinaccedilotildees podem se materializar

em situaccedilotildees como a forma em que o manuscrito foi acessado o tipo de material os

procedimentos de leitura a competecircncia dos inteacuterpretes os viacutenculos sociais dos leitores ou

o espaccedilo da audiccedilatildeo49 Os atos de ler e interpretar estatildeo situados no limite entre leitores

determinados por suas posiccedilotildees e textos cujos significados dependem da forma como se

apresentam os discursos e as maneiras como eles satildeo acessados

A leitura neste caso pode gerar tanto representaccedilotildees quanto praacuteticas que natildeo se

identificam completamente com as do texto lido ou com o que o autor tentou imprimir em

sua obra50 Leitores inventam nos textos algo diferente daquilo que seria alguma intenccedilatildeo

autoral A leitura fragmenta o texto junta partes distantes preenche brechas e cria sentidos

Essa dinacircmica entre autor e leitor viabiliza o que Chartier chama de histoacuteria social

das interpretaccedilotildees ou anaacutelise das determinaccedilotildees fundamentais (sociais institucionais

culturais) dos textos e das leituras51 Daacute origem tambeacutem a uma histoacuteria da exegese ou da

hermenecircutica dos textos

O relacionamento das praacuteticas representaccedilotildees e apropriaccedilotildees se articulam com o

mundo social principalmente por trecircs aspectos

- o mundo eacute construiacutedo de forma contraditoacuteria pelos diferentes grupos que compotildeem

uma sociedade a partir de classificaccedilotildees e recortes que produzem as representaccedilotildees

- as praacuteticas promovem uma determinada identidade social uma definida maneira de

ser no mundo a indicaccedilatildeo simboacutelica de uma posiccedilatildeo ou um estatuto

- a proacutepria existecircncia do grupo ou da comunidade eacute marcada e confirmada pelas

formas institucionalizadas e objetivadas que se derivam das praacuteticas Eacute neste sentido que

48 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 181 49 Idem 50 Idem p 59 51 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural op cit p 26 e 131

22

indiviacuteduos representam instituiccedilotildees e textos se tornam representativos de determinadas

posiccedilotildees sociais

Aqui Chartier alerta para um tipo de luta que natildeo eacute entre classes sociais mas entre

representaccedilotildees diferentes ou formas rivais defendidas por cada grupo para ordenar e

hierarquizar o mundo social52

Chartier nos ajudou a entender Joatildeo e Joaquim como mergulhados em diferentes lutas

de representaccedilotildees53 Nos seus textos eles manifestam conflitos sociais viacutenculos

institucionais e praacuteticas culturais Ambos em suas respectivas conjunturas histoacutericas satildeo

simultaneamente autor e leitor Eles se apropriam de fontes anteriores ou contemporacircneas

imprimindo nelas suas proacuteprias estrateacutegias de consumo de texto produzindo novos sentidos

que se materializaram em suas subsequumlentes obras Em vaacuterios momentos desta pesquisa nos

detemos em questotildees sobre as fontes que cada um leu como elas foram lidas e os sentidos

entatildeo construiacutedos Especialmente no caso do abade ele eacute um leitor expliacutecito do Apocalipse

de Joatildeo e seu comentaacuterio o resultado formal desta leitura

Nosso corpus documental assim leva em conta estes dois objetos de pesquisa com

histoacuterias textuais bem diferentes Enquanto o Apocalipse por fazer parte do cacircnon cristatildeo

tem o suporte das chamadas Sociedades Biacuteblicas54 o Expositio nem mesmo tem uma ediccedilatildeo

criacutetica

Em termos concretos existem cinco tipos de testemunhas55 do texto do Apocalipse

- seis papiros todos fragmentaacuterios

- onze manuscritos unciais trecircs deles com o texto completo

- 293 manuscritos minuacutesculos

- citaccedilotildees patriacutesticas

52 CHARTIER Roger O mundo como representaccedilatildeo op cit p 182 53 Em algum momento eacute possiacutevel que mesmo universos conflitantes sobrevivam simultaneamente Eacute o caso de

um grupo que constroacutei uma subsociedade dentro da sociedade maior formando uma espeacutecie de refuacutegio e base

para a manutenccedilatildeo do seu mundo dissidente Para isso ele precisa criar procedimentos para proteger a

existecircncia precaacuteria dessa subsociedade das ameaccedilas que vecircm de fora Um dos mais importantes procedimentos

seraacute a limitaccedilatildeo dos relacionamentos significativos para exclusiva ou predominantemente dentro do grupo

Os membros do grupo devem evitar se relacionar significativamente com pessoas de fora que possuem visotildees

divergentes de mundo surgindo entatildeo um comportamento sectaacuterio Cf NEWSOM Carol A The Self as

Symbolic Space Constructing Identity and Community at Qumran Atlanta Society of Biblical Literature

2007 p 12 54 Sobre a produccedilatildeo do texto criacutetico do Apocalipse cf DELOBEL J Le texte de lApocalypse Problegravemes de

meacutethode In Lambrecht (ed) LrsquoApocalypse Johannique et lrsquoApocalyptique dans le Nouveau Testament

Louvain University Press 1980 p 151-166 AUNE David E Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-clix 55 O termo ldquotestemunhardquo eacute usado em ediccedilotildees criacuteticas e obras de criacutetica textual do Novo Testamento para fazer

referecircncia a fontes que conteacutem de forma completa ou fragmentaacuteria o texto biacuteblico como por exemplo um

manuscrito uma traduccedilatildeo antiga uma citaccedilatildeo antiga ou uma transcriccedilatildeo em artefatos arqueoloacutegicos

23

- traduccedilotildees antigas

Estas testemunhas formam a base sobre a qual trabalham os estudiosos que preparam

ediccedilotildees criacuteticas do Apocalipse Dentre essas as trecircs primeiras (papiros unciais e

minuacutesculos) destacam-se na reconstruccedilatildeo do que teria sido o autoacutegrafo56 do Apocalipse pela

relaccedilatildeo direta com o grego idioma de origem da obra joanina

Os seis papiros (P18 P24 P43 P47 P85 e P98) contecircm apenas fragmentos de texto O

mais antigo destes o P98 datado para um periacuteodo tatildeo recuado quanto o seacuteculo II e

consequentemente a mais antiga testemunha textual do Apocalipse preserva apenas

Apocalipse 113-20 Os demais papiros foram produzidos entre os seacuteculos III e V57

Dentre os 11 manuscritos unciais relacionados com o Apocalipse (a A C P 046

051 052 0163 0169 0207 0229) apenas trecircs deles possuem o Apocalipse na sua forma

completa (a A e 046) Os demais preservaram apenas fragmentos como o MS 0169 que

conteacutem apenas Apocalipse 319-43Trecircs deles satildeo datados para o seacuteculo IV (a 0169 e 0207)

trecircs para o seacuteculo V (A C e 0163) um para os seacuteculos VII-VIII (0229) um para o seacuteculo IX

(P) e trecircs para o seacuteculo X (046 051 e 052) Isso significa que a coacutepia completa mais antiga

do texto grego do Apocalipse estaacute no MS a do seacuteculo IV localizado no London British

Museum58

293 manuscritos minuacutesculos satildeo conhecidos por conter pelo menos alguma parte do

Apocalipse Um eacute coacutepia do seacuteculo IX oito do seacuteculo X 35 do seacuteculo XI 30 do seacuteculo XII

58 do seacuteculo XIV 57 do seacuteculo XV 40 do seacuteculo XVI 13 do seacuteculo XVII cinco do seacuteculo

XVIII e dois do seacuteculo XIX Os outros 44 manuscritos minuacutesculos apresentam dificuldades

para a dataccedilatildeo com sugestotildees que variam do seacuteculo IX ateacute o XV59

O conjunto das jaacute mencionadas testemunhas textuais com a inclusatildeo das citaccedilotildees

patriacutesticas e as traduccedilotildees antigas pode ser estruturado em quatro tradiccedilotildees textuais

56 Termo utilizado para fazer referecircncia a um hipoteacutetico texto original Como os originais se perderam a funccedilatildeo

dos estudiosos eacute reconstruiacute-los por meio de comparaccedilatildeo e colagem de diversos tipos de testemunhas seguindo

criteacuterios como antiguidade estilo origem do manuscrito famiacutelia de manuscritos entre outros Conferir uma

descriccedilatildeo destes procedimentos em ALAND Kurt ALAND Barbara The text of the New Testament an

introduction to the critical editions and to the theory and practice of modern textual criticism Grand Rapids

William B Eerdmans Publishing Company 1989 p 280-316 ELLIOTT J K New Testament textual

criticism the application of thoroughgoing principles Leiden Brill 2010 p 13-52 VAGANAY Leon An

introduction to the New Testament textual criticism Cambridge Cambridge University Press 1982 p 52-88 57 AUNE David Revelation 1-5 op cit p cxxxvi-cxxxviii 58 Idem p cxxxviii 59 Conferir a lista completa dos 293 manuscritos com dataccedilatildeo e descriccedilatildeo do conteuacutedo em AUNE David E

Revelation 1-5 op cit p cxxxix-cxlviii

24

- A primeira eacute denominada de ldquotexto neutrordquo por Aune que a considera a ldquoa melhor

testemunha do texto grego do Apocalipserdquo60 Ela consiste dos unciais A e C bem como do

minuacutesculo 2053

- A segunda consiste no P47 o mais antigo manuscrito do Apocalipse datado para o

segundo seacuteculo junto com o uncial a e as citaccedilotildees de Oriacutegenes

- A terceira parte do texto encontrado no comentaacuterio do Apocalipse de Andreas de

Cesareia na Capadoacutecia que escreveu entre 563-614 Tambeacutem se inscrevem nesta tradiccedilatildeo

textual as duas coacutepias da versatildeo geoacutergica do Apocalipse datadas para o seacuteculo X

- A quarta eacute a mais numerosa e recebe o tiacutetulo de ldquotexto bizantinordquo definida em linhas

gerais como de pouca confianccedila para a restauraccedilatildeo do autoacutegrafo61

A maioria dos manuscritos gregos do Apocalipse62 bem como as demais

testemunhas em linhas gerais guardam relaccedilatildeo predominantemente com o texto bizantino

Isso significa que os textos criacuteticos tendem a partir do texto neutro confrontando-o com a

segunda e terceira tradiccedilatildeo63 e em alguns poucos casos com o texto bizantino

A perspectiva desta histoacuteria textual do Apocalipse eacute uacutetil para o caso de confronto

entre as variantes textuais de alguma passagem especiacutefica do texto de Joatildeo mas o trabalho

eacute enormemente facilitado pelas ferramentas jaacute disponiacuteveis nas duas ediccedilotildees criacuteticas

publicadas

- ALAND Kurt (ed) The Greek New Testament Stuttgart Deutsche

Bibelgesellschaft 1994

- NESTLE Eberhard NESTLE Erwin ALAND Kurt (org) Novum Testamentum

Graece 27 ed Stuttgart Gesamtherstellung Biblia-Druck 1993

Ambas as ediccedilotildees utilizam o mesmo texto criacutetico mas variam na forma como

apresentam e organizam as variantes textuais Destacamos ainda que o papel da ediccedilatildeo

criacutetica do Apocalipse eacute de indicar o autoacutegrafo provaacutevel produzido por Joatildeo natildeo

necessariamente o texto lido por Joaquim nas bibliotecas monaacutesticas por onde passou

(Sambucina Corazzo Casamari e Fiore) Esta uacuteltima por sinal foi destruiacuteda num incecircndio

apoacutes a morte do seu fundador

60 Idem p clvi 61 Idem p clvii 62 Uma lista ampla destes manuscritos com anaacutelise individualizada pode ser encontrada em HOSKIER H

C Concerning the text of the Apocalypse London Bernard Quaritch Ltd 1929 2 v Outra anaacutelise estaacute

disponiacutevel em CHARLES R H A critical and exegetical commentary on the Revelation of St John New

York Charles Scribner amp Sons 1920 2 v V 2 p 227-385 63 ELLIOTT op cit p 150

25

Natildeo se sabe quantas coacutepias dos manuscritos de Joaquim foram queimados neste

incecircndio De qualquer forma como jaacute argumentamos foram outros os motivos que

limitaram a difusatildeo dos manuscritos do abade Muito diferente do nuacutemero de testemunhas

de Apocalipse o Expositio in Apocalypsim sobreviveu em apenas seis manuscritos64

- MS 249 em Troyes na Biblioteca Municipal nos foacutelios 38-107 do seacuteculo XIII

- MS H 15 em Milatildeo na Biblioteca Ambrosiana nos foacutelios 65-160 do seacuteculo XIII

ou XIV

- MS Chig A VIII 231 em Roma na Biblioteca do Vaticano nos foacutelios 1-104 do

seacuteculo XIV

- MS 1411 em Roma na Biblioteca Casanatense foacutelios 1-91 do seacuteculo XIV

- MS Cent II 51 em Nuremberg na Stadtbibliothek nos foacutelios 127-373 do seacuteculo

XV

- MS Harley 3049 em Londres no Museu Britacircnico nos foacutelios 137-220 do seacuteculo

XV

- MS A 450 em Rouen na Biblioteca Municipal nos foacutelios 1-31 do seacuteculoXVI

No seacuteculo XVI entretanto a Junta de Veneza editou na forma de incunaacutebolo as trecircs

obras principais de Joaquim Concordia no ano 1519 Expositio e Psalterium em 1527 Estas

foram reimpressas no seacuteculo XX pela Editora Minerva Eacute esta ediccedilatildeo do Expositio in

Apocalypsim65 que usamos em nossa anaacutelise Ela estaacute composta por foacutelios escritos na frente

e no verso Apenas as partes frontais dos foacutelios satildeo numeradas de 1 a 224 Cada foacutelio ainda

tem duas colunas Sendo assim o Expositio eacute referenciado indicando-se o nuacutemero do foacutelio

e se eacute frente ou verso (ldquorrdquo quando for a parte frontal ldquovrdquo para o verso do foacutelio) Neste sentido

ele comeccedila em 26v ou seja no verso do foacutelio 26 e termina em 224r ou seja na parte frontal

do foacutelio 224

Nosso trabalho estaacute estruturado em sete capiacutetulos Usaremos o primeiro capiacutetulo para

analisar a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso implica discutir as condiccedilotildees

histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento de Jesus ateacute a ilha de Patmos

para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na proviacutencia da Aacutesia

Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destinataacuterios data e propoacutesito do Apocalipse bem

64 REEVES Marjorie The influence of prophecy in the later Midlle Ageshellip p 513 65 JOAQUIM VON FIORE Expositio in Apocalypsim Frankfurt Minerva 1964

26

como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com forma e conteuacutedo

definidos

No capiacutetulo segundo nos deteremos na anaacutelise da situaccedilatildeo das igrejas da proviacutencia

romana da Aacutesia em especial as disputas de poder os conflitos com as comunidades judaicas

e as tentativas de interaccedilatildeo com a sociedade romana O objetivo eacute definir as condiccedilotildees de

produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo

O terceiro capiacutetulo analisaraacute Apocalipse 201-10 tendo em vista sua relaccedilatildeo com a

obra como um todo por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos partindo da

traduccedilatildeo do texto grego para definir suas representaccedilotildees de histoacuteria e milenarismo bem

como seus pontos de partida e condiccedilotildees de emergecircncia

O quarto capiacutetulo aplicaraacute no Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram

lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar

elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso

este seraacute o espaccedilo privilegiado para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando

apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o

livro joanino

O quinto capiacutetulo analisa as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia

meridional normanda bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio

Hohenstaufen Estes aspectos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim seus

condicionados e viacutenculos poliacuteticos e religiosos

O sexto capiacutetulo problematizaraacute as estrateacutegias de leitura de Joaquim e sua

metodologia hermenecircutica para tanto analisando formas de apropriaccedilatildeo mediadas pela

diacronia O seacutetimo capiacutetulo partindo de uma siacutentese do texto latino trataraacute da seacutetima parte

do Expositio por meio de procedimentos exegeacuteticos e lexicograacuteficos Analisamos nele as

representaccedilotildees milenaristas e histoacutericas do abade e igualmente seus antecedentes e fatores

de emergecircncia Por fim na conclusatildeo nos perguntamos pelas convergecircncias e divergecircncias

entre Joatildeo e Joaquim profeta e monge Apocalipse e Expositio Patmos e Calaacutebria

I ndash A PRODUCcedilAtildeO DO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Neste capiacutetulo analisaremos a composiccedilatildeo literaacuteria do Apocalipse de Joatildeo Isso

implica discutir as condiccedilotildees histoacutericas que levaram um determinado liacuteder do movimento66

de Jesus ateacute a ilha de Patmos para em seguida escrever um livro para igrejas localizadas na

proviacutencia da Aacutesia Discutiremos questotildees ligadas agrave autoria destino data e propoacutesito do

Apocalipse bem como a maneira como estes elementos se materializaram no livro com

forma e conteuacutedo definidos

11 O autor do Apocalipse

A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta pelo menos dois

elementos principais Primeiramente busca-se em fontes antigas ou paralelas algo que

indique quem escreveu o texto Satildeo as chamadas evidecircncias externas Num segundo instante

observa-se a obra para verificar o que ela mesma consegue indiciar sobre seu autor no que

se pode denominar de evidecircncia interna No caso do Apocalipse tanto um quanto outro

levam em conta a aparente auto-identificaccedilatildeo do autor como ldquoJoatildeordquo (Ἰωάννhj)

- ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas

que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao

seu servo Joatildeordquo (Apocalipse 11)67

- ldquoJoatildeo agraves sete igrejas que se encontram na Aacutesia graccedila e paz a voacutes outros da parte

daquele que eacute que era e que haacute de vir da parte dos sete Espiacuteritos que se acham diante do seu

tronordquo (Apocalipse 14)

66 O termo ldquomovimentordquo eacute uacutetil para descrever a fase preacute-institucional do que viria a se tornar o Cristianismo

Quanto ao uso deste termo conferir o socioacutelogo THEISSEN Gerd Sociologia do Movimento de Jesus Satildeo

Leopoldo Sinodal 1997 p 11 tambeacutem STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria

social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo

Satildeo Leopoldo Sinodal 2004 p 218 Sobre a relaccedilatildeo entre essas comunidades e o restante do Judaiacutesmo Cf

FRIESEN Steve Sarcasm in Revelation 2-3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In

BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta

Society of Biblical Literature 2006 p 142 67 Usaremos para as citaccedilotildees biacuteblicas em portuguecircs a Versatildeo Revista e Atualizada de Almeida salvo quando

se tratar de traduccedilatildeo proacutepria como encontrada em BIacuteBLIA SAGRADA Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1980

28

- ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila

em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho

de Jesusrdquo (Apocalipse 19)

- ldquoEu Joatildeo sou quem ouviu e viu estas coisas E quando as ouvi e vi prostrei-me

ante os peacutes do anjo que me mostrou essas coisas para adoraacute-lordquo (Apocalipse 228)

Essas passagens do Apocalipse indicam que Joatildeo eacute o nome assumido pelo autor

autor este que se insere na obra na forma de um personagem enquanto descreve eventos e

experiecircncias religiosas Natildeo haacute qualquer outro nome vinculado a Joatildeo Identificaccedilotildees

romanas levavam em conta geralmente preacute-nome nome e poacutes-nome como o Imperador

Titus Flavius Domitianus Identificaccedilotildees judaicas seguiam nome e filiaccedilatildeo geralmente o

nome do pai (Isaque ben Abraatildeo) mas agraves vezes a identificaccedilatildeo da cidade (Jesus de Nazareacute)

O Joatildeo do Apocalipse entretanto parece ser suficientemente conhecido da sua audiecircncia

para que natildeo precise se apresentar com nada mais aleacutem do que um nome Kuumlmmel entende

em funccedilatildeo disso que ldquoo simples nome de Joatildeo indica uma personalidade comumente

conhecida e a maneira auto-evidente com que ele coloca seus apelos no sentido de ser

ouvido mostra dever tratar-se de um homem que goza de grande autoridaderdquo68

O autor do livro tambeacutem se apresenta como irmatildeo e companheiro (ldquoἀδελφς καὶ

συγκοινωνςrdquo) daqueles que iratildeo receber sua mensagem (Apocalipse 19) o que reforccedila a

sugestatildeo de que ele era bem conhecido de sua audiecircncia

O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse pelo que se conhece foi

Papias bispo de Hierapolis uma cidade proacutexima de Laodiceia uma das cidades que aparece

como destinataacuteria do livro (Apocalipse 314-22) Ele atuou como liacuteder eclesiaacutestico no inicio

do segundo seacuteculo e escreveu uma obra intitulada ldquoInterpretaccedilotildees de ditos do Senhorrdquo Esta

obra se perdeu mas foi citada por muitos autores antigos Andreas bispo de Cesareia na

Capadoacutecia escrevendo um comentaacuterio do Apocalipse no seacuteculo VI registrou que Papias

conheceu o Apocalipse considerava-o inspirado por Deus e comentou uma de suas

passagens (A interpretaccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo o Teoacutelogo 1011) Infelizmente natildeo haacute

nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menccedilatildeo clara sobre quem escreveu o

Apocalipse

Justino Maacutertir chegou a residir em Eacutefeso outra das cidades mencionadas diretamente

no Apocalipse (Apocalipse 21-7) por volta do ano 135 Ele escreveu no seu ldquoDialogo com

68 KUumlMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 618

29

Trifordquo na seccedilatildeo em que defende o cumprimento literal de profecias judaicas que esperavam

um reinado literal do Messias na terra que um homem chamado Joatildeo um dos apoacutestolos de

Cristo ldquonuma revelaccedilatildeo que lhe foi feita profetizou que os que tiverem acreditado em nosso

Cristo passaratildeo mil anos em Jerusaleacutemrdquo (Diaacutelogo com Trifo 814) Nos seus termos ele fez

uma referecircncia ao mais tradicional ciacuterculo de disciacutepulos de Jesus descrito regularmente

como ldquoos doze apoacutestolosrdquo Os Evangelhos canocircnicos (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo)

descrevem Jesus durante sua atividade religiosa pela Palestina cercado de um grupo de

disciacutepulos que o acompanhava a todos os lugares O Evangelho de Marcos o mais antigo

dos quatro escrito no final da deacutecada de 60 do seacuteculo I69 relaciona os seguintes nomes neste

ciacuterculo de seguidores Simatildeo Pedro Tiago e Joatildeo filhos de Zebedeu Andreacute Filipe

Bartolomeu Mateus Tomeacute Tiago filho de Alfeu Tadeu Simatildeo o cananeu e Judas

Iscariotes (Marcos 316-19) Aparentemente entatildeo Justino entendeu que o ldquoJoatildeordquo

mencionado no iniacutecio do Apocalipse era o mesmo ldquoJoatildeordquo dos primoacuterdios do movimento de

Jesus um dos seus disciacutepulos originais

Irineu fez o mesmo que Justino em torno de 180 e natildeo soacute ligou o Apocalipse ao

filho de Zebedeu como tambeacutem ao quarto Evangelho canocircnico conhecido como Evangelho

de Joatildeo (Contra as Heresias V30) Apesar de bispo na cidade de Leon na Gaacutelia ele passou

parte da infacircncia em Esmirna na Aacutesia outra das sete cidades do Apocalipse (Apocalipse

28-11)

Autores antigos como Hipolito de Roma (170-236) Tertuliano de Cartago (160-220)

e Origenes de Alexandria (morreu em 254) seguiram Irineu na opiniatildeo de que o Apocalipse

e o Evangelho de Joatildeo foram escritos pela mesma pessoa um dos disciacutepulos diretos de Jesus

o filho de Zebedeu70

No seacuteculo III entretanto Gaio um presbiacutetero da igreja de Roma promoveu forte

criacutetica contra o Apocalipse Na base deste ataque estava uma oposiccedilatildeo ao movimento

montanista Como Montano e seus seguidores eram fervorosos leitores do Apocalipse Gaio

entendeu que o livro precisava ser totalmente rejeitado pelas igrejas Ele argumentou entatildeo

que a obra natildeo era nem do apoacutestolo Joatildeo nem do presbiacutetero Joatildeo mas de um homem

chamado Cerinto Sua criacutetica foi registrada por Euseacutebio

No entanto tambeacutem Cerinto por meio de revelaccedilotildees que diz serem escritas

por um grande apoacutestolo apresenta milagres com a mentira de que lhe

69 KUumlMMEL op cit p 117 70 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The Westminster

Press 1984 p 26

30

teriam sido mostradas por ministeacuterios dos anjos e diz que depois da

ressurreiccedilatildeo o reino de Cristo seraacute terrestre e que novamente a carne que

habitaraacute em Jerusaleacutem seraacute escrava de paixotildees e prazeres Como inimigo

das Escrituras de Deus e querendo fazer errar diz que haveraacute um nuacutemero

de mil anos de festa nupcial (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XVIII 2)

Entretanto tanto a sugestatildeo de Justino e Irineu quanto a de Gaio se mostram fraacutegeis

A relaccedilatildeo do Apocalipse com um disciacutepulo direto de Jesus natildeo encontra eco dentro do

proacuteprio livro O autor se autodenomina realmente Joatildeo mas natildeo declara viacutenculo algum com

Zebedeu com um apoacutestolo ou com qualquer outro disciacutepulo de Jesus dos tempos iniciais

Se as doze pedras mencionadas na descriccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem (Apocalipse 2119-21)

evocam realmente os doze apoacutestolos como Adela Collins argumenta71 isso indicaria que os

apoacutestolos no tempo do Apocalipse jaacute haviam alcanccedilado um alto e elevado status dentro das

comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da feacute e base para a existecircncia das

igrejas Mas nada sugere que o autor se veja entre estes Os indiacutecios indicam que os apoacutestolos

eram figuras do seu passado

Nesta mesma linha se os apoacutestolos eram figuras tatildeo importantes para as igrejas e o

livro fosse uma obra pseudocircnima escrita por uma figura histoacuterica de nome Cerinto mas

atribuiacuteda retroativamente ex eventu a um grande liacuteder do passado esperava-se que o

Apocalipse contivesse viacutenculos mais expliacutecitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de

Nazareacute Mas natildeo haacute qualquer elemento no livro que pudesse levar os primeiros leitores a

fazer essa identificaccedilatildeo a natildeo ser a curta auto-apresentaccedilatildeo do autor homocircnima de um dos

antigos disciacutepulos O proacuteprio Jesus que aparece no livro estaacute bem distante daquele que se

movimenta nos Evangelhos Eacute uma figura exaltada e glorificada descrita por meio de

categorias angelicais ou divinas (Apocalipse 113-18) A ausecircncia de traccedilos ou indiacutecios de

natureza biograacutefica inviabiliza a hipoacutetese do presbiacutetero Gaio de que a obra seja pseudocircnima

O vinculo do Apocalipse com o Evangelho de Joatildeo eacute igualmente fraacutegil Dionisio um

bispo de Alexandria na segunda metade do seacuteculo III apesar de natildeo simpatizar em linhas

gerais com o Apocalipse rejeitou o ataque que Gaio e outros fizeram agrave obra Ele argumentou

que Apocalipse e Evangelho satildeo obras muito diferentes para terem sido escritas pela mesma

pessoa Sua conclusatildeo registrada por Euseacutebio foi no sentido de que os textos satildeo de autoria

diferente

Portanto natildeo contradirei que ele se chamava Joatildeo e que este livro eacute de

Joatildeo Porque inclusive estou de acordo de que eacute obra de um homem santo

e inspirado por Deus Mas eu natildeo poderia concordar facilmente em que

71 Idem p 27

31

este fosse o apoacutestolo o filho de Zebedeu e irmatildeo de Tiago de quem eacute o

Evangelho intitulado de Joatildeo e a carta catoacutelica (Histoacuteria Eclesiaacutestica VII

XXV 7)

Em funccedilatildeo de um grande nuacutemero de pessoas possuir o mesmo nome teria sempre a

possibilidade de equiacutevocos de identificaccedilatildeo Alem disso havia a tendecircncia de associar livros

sagrados a grandes figuras do passado Este era um criteacuterio comum para que estas obras

fossem aceitas e usadas nas igrejas ao lado das Escrituras judaicas

Dionisio ainda argumentou que deveria haver outro liacuteder cristatildeo de nome Joatildeo na

Aacutesia Ele faz referencia neste sentido a dois tuacutemulos ainda encontrados nos seus dias na

cidade de Eacutefeso dedicados a liacutederes antigos que levavam este nome Euseacutebio resumiu esta

perspectiva

De forma que tambeacutem isto demonstra que eacute verdade a histoacuteria dos que

dizem que na Aacutesia houve dois com este mesmo nome e em Eacutefeso dois

sepulcros dos quais ainda hoje se afirma que satildeo um e outro de Joatildeo Eacute

necessaacuterio prestar atenccedilatildeo a estes fatos porque eacute provaacutevel que fosse o

segundo ndash se natildeo se prefere o primeiro ndash o que viu a Revelaccedilatildeo

(Apocalipse) que corre sob o nome de Joatildeo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III

XXXIX 6)

Eacute difiacutecil entretanto relacionar o Joatildeo do Apocalipse com qualquer tiacutetulo eclesiaacutestico

Ele natildeo usa epiacutetetos conhecidos do periacuteodo como apoacutestolo evangelista mestre bispo

presbiacutetero ou diaacutecono Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas e

possivelmente ele as conhecia ele se recusou a usaacute-las Essa recusa pode indicar que ele natildeo

se enxergava nesses tiacutetulos ou entatildeo que as comunidades que receberam o Apocalipse natildeo

o reconheciam nos mesmos

Desta forma ainda assumindo que o nome que aparece no iniacutecio do livro eacute uma

referecircncia autecircntica (natildeo-pseudocircnima) a seu autor e que ele se chamava realmente Joatildeo as

evidecircncias externas acumuladas sobre ele natildeo representam muito O Joatildeo do Apocalipse natildeo

parece ser entatildeo o filho de Zebedeu um dos disciacutepulos originais de Jesus ou o autor do

Evangelho de Joatildeo ou uma figura antiga das igrejas conhecida como Joatildeo o presbiacutetero

Possivelmente foi a tendecircncia das igrejas em identificar os autores das obras

sagradas como apoacutestolos de Jesus e o fato do livro identificar seu autor com um ldquoJoatildeordquo que

levou Justino Irineu e os outros antigos escritores cristatildeos a associaacute-lo com o filho de

Zebedeu ou com o autor do quarto Evangelho O que parece eacute que o livro foi escrito por um

homem chamado Joatildeo que se tornou significativo para a histoacuteria do cristianismo pela

32

produccedilatildeo de apenas um livro livro esse que se constitui entatildeo na fonte mais expressiva

para indicar outros aspectos de sua identidade e seu lugar social

Aleacutem das observaccedilotildees anteriores de que Joatildeo era bem conhecido de sua audiecircncia

um segundo elemento interno a respeito de sua identidade social eacute a ligaccedilatildeo com uma

atividade conhecida como ldquoprofeciardquo Joatildeo natildeo se denomina explicitamente profeta mas o

faz implicitamente em vaacuterios lugares do Apocalipse Ele intitula sua mensagem de profecia

(Apocalipse 13 227 10 18) e narra uma experiecircncia de vocaccedilatildeo de forma muito

semelhante a profetas da tradiccedilatildeo judaica (Isaiacuteas 61-13 Jeremias 14-10 Ezequiel 28-333)

Por isso Lohse argumenta que Joatildeo foi um ldquoprofeta dos primoacuterdios do cristianismo que

atuou nas comunidades da Aacutesia com grande vigorrdquo72 Assim tambeacutem entende Bovon para

quem Joatildeo como profeta apresenta-se como um instrumento da revelaccedilatildeo divina e uma voz

do Cristo exaltado73

Estudiosos tendem a relacionar o fenocircmeno da profecia no movimento de Jesus ateacute

o inicio do segundo seacuteculo com a atividade de lideranccedila itinerante principalmente como

encontrada nas proviacutencias da Aacutesia Menor74 As comunidades locais eram dirigidas por

liacutederes assentados no meio delas que moravam nas cidades e dirigiam as congregaccedilotildees

Documentos do movimento de Jesus do iniacutecio do segundo seacuteculo denominavam estes liacutederes

de epiacutescopos presbiacuteteros e diaacuteconos (1Timoacuteteo 31-13 Tito 15-9) Do outro lado existiam

liacutederes itinerantes que viajavam de igreja em igreja de um lugar para outro normalmente

denominados de profetas apoacutestolos evangelistas ou mestres Estas distinccedilotildees natildeo eram tatildeo

riacutegidas jaacute que liacutederes locais poderiam viajar enquanto liacutederes itinerantes poderiam parar

durante certo tempo em uma igreja Um liacuteder local poderia ser itinerante num momento o

itinerante poderia eventualmente residir numa cidade Mesmo assim as definiccedilotildees

funcionais ou carismaacuteticas podem iluminar a atividade de Joatildeo como profeta na regiatildeo da

Aacutesia No Apocalipse ele faz referecircncia a sete igrejas em sete cidades (Apocalipse 111) o

que indica que ele transitava por elas O conteuacutedo das cartas do Apocalipse (Apocalipse 2-

3) sugere tambeacutem que as igrejas o conheciam o que aponta para uma atividade religiosa

mais ampla do que uma especiacutefica igreja local

Por ser profeta e profeta itinerante Joatildeo pode ter abraccedilado um estilo de vida asceacutetico

como o seu livro parece sugerir (Apocalipse 141-5) Este tipo de vida seria derivado do

72 LOHSE Eduard Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Leopoldo Sinodal 1985 p 249 73 BOVON Franccedilois Johnrsquos Self-presentation in Revelation 19-10 Catholic Biblical Quaterly Washington

n 62 p 693-700 2000 p 700 74 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 34

33

formato da atividade religiosa que Jesus desenvolveu com os seus disciacutepulos Nos

Evangelhos eles satildeo vistos constantemente viajando de lugar para lugar sem casa fixa

Ditos dos Evangelhos (Marcos 820 Mateus 1023 entre outros) ainda reforccedilam essa postura

que foi chamada por Gerd Theissen de carismatismo itinerante com a expectativa de uma

vida sem paacutetria sem famiacutelia sem posses e sem proteccedilatildeo75

Viajar de lugar para lugar rompia com os laccedilos locais de estabilidade social Os

disciacutepulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida asceacutetica e mesmo apoacutes a morte do

fundador do movimento alguns continuaram na vida andarilha Talvez seja por isso que o

autor do Didaqueacute no iniacutecio do seacuteculo II chamou a itineracircncia de ldquomodo de vida do Senhorrdquo

(Didaqueacute 118) Aleacutem dos laccedilos sociais os andarilhos tambeacutem renunciavam agrave famiacutelia Um

logia de Jesus encontrado no Evangelho de Marcos aponta neste sentido

Tornou Jesus Em verdade vos digo que ningueacutem haacute que tenha deixado

casa ou irmatildeos ou irmatildes ou matildee ou pai ou filhos ou campos por amor

de mim e por amor do evangelho que natildeo receba jaacute no presente o cecircntuplo

de casas irmatildeos irmatildes matildees filhos e campos com perseguiccedilotildees e no

mundo por vir a vida eterna (Marcos 1029-30)

Poucos dos missinaacuterios destacados pelo autor dos Atos dos Apoacutestolos satildeo descritos

em atividade familiar Natildeo haacute qualquer referecircncia agrave famiacutelia de Paulo Estes itinerantes

renunciavam tambeacutem a propriedades ou recursos financeiros o que dava ao pregador

condiccedilotildees de fazer a criacutetica contra a riqueza Quem perambulava pela Palestina Siacuteria e Aacutesia

Menor em pobreza demonstrativa poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em

descreacutedito76 Por isso o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades de Jesus

localmente constituiacutedas para ter uma porccedilatildeo miacutenima para sobreviver Isso lhes parecia bem

como aos olhos das comunidades locais uma demonstraccedilatildeo da bondade divina que natildeo

deixava o itinerante carismaacutetico morrer de fome ou sede

De qualquer forma a praacutetica do carismatismo itinerante demandava abraccedilar um estilo

radical de vida religiosa com niacutetidas consequecircncias asceacuteticas e combinava amplamente com

uma perspectiva escatoloacutegica de fim iminente da histoacuteria como provavelmente pregada por

Jesus77

75 THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op cit p 18 76 Na anaacutelise da atividade carismaacutetica itinerante cf THEISSEN Gerd Sociologia do movimento de Jesus op

cit p 16-22 77 ALLISON Dale C Jesus of Nazareth Millenarian prophet Minneapolis Fortress Press 1998 p 60-61

34

Aleacutem do seu papel religioso como profeta autores sugerem que Joatildeo era judeu por

nascimento um nativo da Palestina onde passou um bom tempo de sua vida78 Haacute

possibilidade de ele ter residido na Judeacuteia ateacute a instauraccedilatildeo da guerra contra os romanos (66-

70) que terminou com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico79 Esse tipo de

identificaccedilatildeo ilumina a forma como Joatildeo compreendia a relaccedilatildeo entre Israel e Igreja Ele natildeo

entendia o movimento de Jesus e suas comunidades como uma religiatildeo nova e independente

do grande e plural fenocircmeno religioso que os estudiosos chamam de Judaiacutesmo80

Joatildeo reinvidica o uso do termo ldquojudeurdquo (Ἰουδαίος) para os seguidores de Jesus

(Apocalipse 29 39) e demonstra tensatildeo com sinagogas locais que poderia indiciar mais

uma crise interna do que um conflito entre religiotildees distintas Seu uso das Escrituras judaicas

o grego semitizante do Apocalipse81 o domiacutenio da tradiccedilatildeo religiosa do periacuteodo do Segundo

Templo como apocalipses e oraacuteculos indicam uma pessoa fortemente envolvida com as

tradiccedilotildees do antigo Israel Muitas de suas perspectivas sociais e poliacuteticas poderiam derivar

de determinadas tradiccedilotildees judaicas mais do que de correntes especiacuteficas do movimento de

Jesus

Mesmo assim um aspecto significativo da identidade social do autor do Apocalipse

tem relaccedilatildeo justamente com essa ldquoseita judaicardquo O Judaiacutesmo no periacuteodo que vai da ascenccedilatildeo

hasmoneana (167 aC) ateacute pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 dC) abarcava

diversos partidos e grupos religiosos82 Um destes grupos teve iniacutecio com a atuaccedilatildeo da pessoa

de Jesus de Nazareacute entre 27-30 inicialmente na Galileacuteia para terminar com sua morte em

Jerusaleacutem O autor do Apocalipse afirma ser seguidor de Jesus (Apocalipse 19) de quem

recebeu a sua revelaccedilatildeo

Apesar de choques eventuais entre os grupos eles se reconheciam mutuamente como

herdeiros das mesmas tradiccedilotildees religiosas antigas das alianccedilas dos patriarcas das Escrituras

judaicas e da Lei de Moiseacutes Provavelmente Joatildeo se via como um judeu e membro do

fenocircmeno religioso judaico83 O mesmo poderia ser afirmado a respeito das comunidades

78 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no Apocalipse Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 p 276 79 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsishellip op cit p 47 80 Sobre a pluralidade de perspectivas no interior do Judaiacutesmo cf BAUMGARTEN Albert I Ancient Jewish

Sectarianism Judaism Genebra v 47 n 4 p 387-403 1998 81 Para uma discussatildeo da linguagem do Apocalipse sua sintaxe e seu vocabulaacuterio cf CALLAHAN Allen

Dwight The Language of Apocalypse Harvad Theological Review Cambridge v 88 n 4 p 453-470 1995 82 Para uma anaacutelise ampla sobre a questatildeo da identidade judaica na antiguidade cf GOODMAN Martin

Judaism in the Roman World collected essays Leiden Brill 2007 p 21-32 83 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 277

35

que receberam o Apocalipse Elas faziam parte de um movimento que ainda se entende

judaico84 apesar da identificaccedilatildeo com um grupo especiacutefico dentro do Judaiacutesmo Eacute possiacutevel

denomina-los mesmo como judeus que reconhecem Jesus como o messias

Duas deacutecadas depois na mesma regiatildeo do Apocalipse entretanto Inaacutecio de

Antioquia falaria em suas cartas de ldquoCristianismordquo () e descreveraacute seus membros

como ldquocristatildeosrdquo () o que indica que o movimento naquele periacuteodo e na sua

expressatildeo asiaacutetica jaacute tem formulado uma identidade autocircnoma em relaccedilatildeo ao Judaismo Nos

termos de Inaacutecio ldquoeacute melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaiacutesmo

de incircuncisordquo (Carta aos Filipenses 61)85

12 A data do Apocalipse

O Apocalipse de Joatildeo eacute uma obra escrita no chamado grego koinecirc liacutengua comum

aos territoacuterios do antigo Impeacuterio de Alexandre o Grande A obra de grande porte para os

padrotildees do periacuteodo comeccedila desta forma ldquoRevelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para

mostrar aos servos dele as coisas que devem acontecer em breve e enviou-a sinalizando

atraveacutes do seu anjo para o seu servo Joatildeordquo86

Como boa parte das fontes antigas a obra natildeo tem tiacutetulo ou marca de identificaccedilatildeo

Mas durante seu uso logo passou a ser identificada por meio da sua primeira palavra

apocalipse transliteraccedilatildeo simples de ποκάλυψις O termo pode ser traduzido como

ldquorevelaccedilatildeordquo87

No momento de definir a data da obra o testemunho de Irineu eacute novamente invocado

pelos estudiosos Ele registrou que ldquoo Apocalipse foi visto natildeo haacute muito tempo em nossa

proacutepria geraccedilatildeo no fim do reinado de Domicianordquo (Contra as Heresias 5303) Grande parte

dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definiccedilatildeo entendendo que mesmo

que o testemunho de Irineu quanto ao nome do autor natildeo seja confiaacutevel a data ainda pode

84 Enquanto categoria religiosa e natildeo eacutetnica jaacute que natildeo era preciso ser etnicamente judeu para fazer parte do

Judaiacutesmo 85 Noutro lugar ldquoEacute preciso natildeo soacute levar o nome de cristatildeo mas ser de fatordquo (Carta aos Magneacutesios 4) A respeito

do cristianismo e judaiacutesmo em oposiccedilatildeo nas cartas de Inaacutecio cf COHEN Shaye J D Judaism without

Circumcision and ldquoJudaismrdquo without ldquoCircumcisionrdquo in Ignatius Harvard Theological Review Cambridge v

95 n 4 p 395-415 2002 86 ldquoἈποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ ἣν ἔδωκεν αὐτῷ ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐν τάχει καὶ

ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃrdquo (Apocalipse 11) 87 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 67

36

ser mantida para o fim do reinado de Domiciano em meados de 95-9688 Segundo Adela

Yarbro Colllins natildeo existe nenhuma boa razatildeo para duvidar da sugestatildeo de Irineu quanto agrave

eacutepoca do Apocalipse89 Ela pressupotildee neste caso que a obra na sua forma atual eacute o

resultado de um uacutenico autor O Apocalipse apresenta uso de fontes tradicionais ou literaacuterias

mas ainda possui uma unidade coerente subjacente a uma uacutenica autoria Nos termos de

Collins ldquoa unidade de estilo e a cuidadosa complexa e deliberada estrutura do livro como

um todo torna supeacuterflua a hipoacutetese da compilaccedilatildeo de extensas fontes escritas ou uma seacuterie

de ediccedilotildeesrdquo90

Vitorino de Pettau morto em 303 escreveu o mais antigo comentaacuterio completo do

Apocalipse a sobreviver Ao comentar a passagem do Apocalipse em que Joatildeo come um

livro (Apocalipse 103) ele escreveu

Joatildeo teve esta visatildeo quando estava na ilha de Patmos condenado agraves minas

por Cesar Domiciano Parece pois que Joatildeo escreveu dali o Apocalipse

quando jaacute era um anciatildeo Depois de seus sofrimentos quando foi

assassinado Domiciano e anulados todos os seus decretos foi Joatildeo

liberado das minas e transmitiu este mesmo Apocalipse que recebeu do

Senhor (Comentaacuterio ao Apocalipse 103)

Euseacutebio de Cesareacuteia faz comentaacuterio parecido com o de Vitorino ldquoEacute tradiccedilatildeo que

neste tempo o apoacutestolo e evangelista Joatildeo que ainda vivia foi condenado a habitar a ilha

de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deusrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III VIII 1)

Ainda ldquoFoi entatildeo que o apoacutestolo Joatildeo voltando de seu desterro na ilha retirou-se para viver

em Eacutefeso segundo relata a tradiccedilatildeo de nossos antigosrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica III XX 9)

Esses dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante o reino de

Domiciano Ambos acrescentam que Joatildeo foi banido para Patmos pelo Imperador tendo

sido liberado apoacutes a morte do mesmo A tradiccedilatildeo neles preservada do desterro de Joatildeo ou

de Patmos como uma colocircnia penal entretanto natildeo eacute apoiada pela historiografia91 Mesmo

assim os testemunhos de Vitorino e de Euseacutebio satildeo importantes para definir a data do

Apocalipse mais ateacute do que para descrever a situaccedilatildeo em que isso se deu

Em termos de evidecircncia interna Adella Collins indicou alguns elementos que

reforccedilam a hipoacutetese da deacutecada de 90 Um primeiro pode ser encontrado no uso muito

especiacutefico que o Apocalipse faz do nome Babilocircnia (Apocalipse 148 1619 175 182

88 Entre outros KUumlMMEL op cit p 613-617 89 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57 90 Idem p 54 91 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation Apocalypse and Empire Oxford Oxford University

Press 1990

37

10 21) Eacute muito difiacutecil que o autor da obra esteja fazendo referecircncia a antiga cidade da

Mesopotacircmia presente nas tradiccedilotildees literaacuterias judaicas por ter destruiacutedo o reino de Judaacute em

586 aC derrubado a capital Jerusaleacutem e o templo de Salomatildeo Em Apocalipse 17 Joatildeo

descreve Babilocircnia como uma mulher e pelo menos duas marcas na fala do anjo indicam

que a mulher representa a cidade de Roma O versiacuteculo nove descreve-a assentada sobre sete

montanhas ldquoAqui estaacute o sentido da sabedoria as sete cabeccedilas satildeo sete montanhas onde a

mulher estaacute assentada Tambeacutem satildeo sete reisrdquo (Apocalipse 179) O versiacuteculo 18 a apresenta

como uma cidade ldquoque tem poder sobre os reis da terrardquo Estas indicaccedilotildees para uma

audiecircncia da Aacutesia no final do primeiro seacuteculo indicariam que Babilocircnia era um siacutembolo para

a cidade de Roma A capital do Impeacuterio aparece frequentemente como a cidade das sete

montanhas (Capitoacutelio Quirinal Viminal Esquilino Ceacutelio Aventino e Palatino) e era a

cidade mais importante politicamente do Mediterracircneo

E o que essa associaccedilatildeo entre Babilocircnia e Roma poderia indicar em termos de dataccedilatildeo

para o Apocalipse A maioria das ocorrecircncias de Babilocircnia como nome simboacutelico para

Roma na literatura judaica estaacute em 4Esdras 2Apocalipse de Baruque e no quinto livro dos

Oraculos Sibilinos Nestas obras Roma eacute chamada de Babilocircnia porque ela como a antiga

cidade mesopotacircmica destruiu Jerusaleacutem e o Templo Ou seja o nome simboacutelico de Roma

Babilocircnia eacute forte indiacutecio de que o Apocalipse foi escrito apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e o

Templo no ano 7092

Aleacutem do uso simboacutelico do termo Babilocircnia para descrever Roma tiacutepico de obras

judaicas posteriores ao ano 70 Collins aponta outros elementos internos

- A lenda do retorno de Nero em Apocalipse 13 e 17 principalmente a referecircncia agraves

cabeccedilas da besta (Apocalipse 179-11) reforccedila a hipoacutetese de que o Apocalipse eacute posterior agrave

morte de Nero em 68 dC e ao aparecimento da tradiccedilatildeo de que ele retornaria para retomar

o poder93

- A concepccedilatildeo de Joatildeo de que a comunidade de Jesus eacute o novo templo de Deus bem

como a profecia de que na Nova Jerusaleacutem natildeo haveria mais templos indicariam que o

Apocalipse eacute posterior agrave destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem (70 dC)94

92 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 57-58 PAGELS Elaine The Social History of

Satan Part Three John of Patmos and Ignatius of Antioch Contrasting Visions of ldquoGods Peoplerdquo Harvad

Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006 p 494 93 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsishellip op cit p 58-64 94 Idem p 64-69

38

Outros elementos como os indiacutecios de conflitos com sinagogas locais em Esmirna e

Filadeacutelfia as referecircncias a perseguiccedilotildees por parte do Impeacuterio Romano ou a crise com a

instituiccedilatildeo do Culto Imperial satildeo muito vagos para precisar melhor a data do Apocalipse

A partir dos dados internos muito provavelmente o livro eacute posterior ao ano 70 e agrave

destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo judaico Se a hipoacutetese de que o autor saiu da Palestina

em funccedilatildeo do conflito for autecircntica era preciso algum tempo para que ele consolidasse uma

atuaccedilatildeo profeacutetica fora da sua terra na Aacutesia Menor e especificamente na proviacutencia

proconsular da Aacutesia Dado o conhecimento que Papias teve da obra seria preciso algum

tempo entre sua produccedilatildeo e circulaccedilatildeo entre as igrejas Isso nos leva a tomar o testemunho

de Irineu realmente como a hipoacutetese mais provaacutevel localizando o livro no fim do governo

do Imperador Titus Flavius Domitianus assassinado no dia 18 de setembro de 96 Segundo

o bispo de Leon (Contra as Heresias 5303) foi em algum momento anterior agrave morte do

Imperador que Joatildeo de Patmos escreveu o Apocalipse

13 O propoacutesito do Apocalipse

Se aceitarmos as indicaccedilotildees do Apocalipse ele foi escrito para ser encaminhado para

sete igrejas da proviacutencia proconsular da Aacutesia ldquoAchei-me em espiacuterito em o dia do Senhor e

ouvi atraacutes de mim uma voz grande como de trombeta dizendo O que vecircs escreve em livro

e envia para as sete igrejasrdquo (Apocalipse 110-11)

As cartas em questatildeo aparecem um pouco depois na estrutura da obra

- Apocalipse 21-7 Carta agrave Igreja em Eacutefeso

- Apocalipse 28-11 Carta agrave Igreja em Esmirna

- Apocalipse 212-17 Carta agrave Igreja em Peacutergamo

- Apocalipse 218-29 Carta agrave Igreja em Tiatira

- Apocalipse 31-6 Carta agrave Igreja em Sardes

- Apocalipse 37-13 Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia

- Apocalipse 314-22 Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia

As cartas escritas como oraacuteculos profeacuteticos apresentam terceirizados o remetente e

o destinataacuterio Concretamente eacute o profeta Joatildeo que escreve contudo retoricamente satildeo

palavras diretas do Cristo exaltado entre os candelabros (Apocalipse 113) Eacute uma mensagem

39

para os membros das igrejas mas dirigidas aos anjos que estariam ali presentes (Apocalipse

21 28 212 218 31 37 314) Joatildeo se coloca como o intermediaacuterio entre duas

personalidades celestiais Mesmo que algueacutem se recuse a ouvi-lo natildeo poderia deixar de

atender ao anjo da igreja principalmente porque a mensagem do anjo teria origem direta no

Jesus glorificado Neste sentido as cartas se tornam proclamaccedilotildees profeacuteticas do soberano

Cristo exaltado95

Esta estrateacutegia literaacuteria eacute um instrumento retoacuterico de legitimaccedilatildeo o que denuncia

algum tipo de conflito ou tensatildeo entre Joatildeo o autor e os membros das igrejas Ao usar este

esquema para atingir o seu puacuteblico o autor indica toda a dificuldade que enfrentava para se

fazer ouvir96 A agressividade do texto e as diversas ameaccedilas indicam ainda mais a forccedila

necessaacuteria para que as cartas e o livro como um todo pudessem ser recebidos Segundo

Friedrich

as sete proclamaccedilotildees satildeo semelhantes aos antigos editos reais e imperiais

na medida em que exibem normalmente e estruturalmente semelhantes

praescriptiones narrationes dispositiones e sanctiones Em termos de

conteuacutedo as narrationes e dispositiones exibem caracteriacutesticas da profecia

do cristianismo das origens influenciada pela profecia do Antigo

Testamento97

As cartas indicam dois tipos baacutesicos de tensatildeo Internamente haacute algum tipo de

conflito entre Joatildeo e a lideranccedila de algumas igrejas e algum tipo de crise com sinagogas

locais98 Externamente a sociedade urbana da aacutesia parece representar algum desconforto

especialmente em funccedilatildeo das demandas relacionadas com as interaccedilotildees sociais

Para as tensotildees internas entre os liacutederes das igrejas Paul Duff sugeriu a seguinte

tipologia99

95 Conferir neste sentido FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria

Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 96 RUIZ Jean-Pierre Hearing and seeing but not saying a rhetoric de authority in Revelation 104 and 2

Corinthians 124 In BARR David L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of

Revelation Atlanta Society of Biclical Literature 2006 p 91-111 p 93 97 FRIEDRICH Nestor Paulo O edito-profeacutetico para a Igreja em Tiatira (Apocalipse 218-29) uma anaacutelise

literaacuteria soacutecio-poliacutetica e teoloacutegica Tese (Doutor em Teologia) ndash Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia Escola

Superior de Teologia Satildeo Leopoldo 2000 p 60 98 DUFF Paul B ldquoThe synagogue of Satanrdquo Crisis mongering and the Apocalypse of John In BARR David

L (ed) The reality of Apocalypse rhetoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biclical

Literature 2006 p 164-165 p 148 99 DUFF Paul B Who Rides the Beast Prophetic Rivalry and the Rhetoric of Crisis in the Churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 p 25

40

- Igrejas divididas entre a lideranccedila de Joatildeo e alguma outra lideranccedila local Eacutefeso

Peacutergamo Tiatira Para estas igrejas Joatildeo fornece nas respectivas cartas uma elaboraccedilatildeo dos

problemas da comunidade Consistiriam no principal foco do Apocalipse

- Igrejas onde Joatildeo tem pouca ou mesmo nenhuma influecircncia Sardes e Laodiceacuteia Eacute

provaacutevel que ele tenha aliados em potencial nessas comunidades mas estatildeo em nuacutemero

muito pequeno Por isso o seu tom menos conciliador Para elas o autor natildeo fornece

nenhuma elaboraccedilatildeo de problemas e pouco se tiver algum encorajamento

- Igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo Esmirna e Filadeacutelfia Natildeo haacute chamada ao

arrependimento ou qualquer tipo de ameaccedila ao mesmo tempo em que recebem fortes

louvores Satildeo igrejas simpaacuteticas agrave lideranccedila de Joatildeo e ao tipo de mensagem que ele defendia

Com relaccedilatildeo aos membros das sinagogas locais Joatildeo assim se expressou ldquose dizem

judeus mas natildeo o satildeordquo Para o autor do Apocalipse eles natildeo eram verdadeiros judeus mas

ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo (Apocalipse 29 39)100 O professor Nogueira argumenta que essa

crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga estar ldquoenvolvida em um processo

sincreacutetico de interaccedilatildeo com os gentios Eles falavam grego expressavam suas crenccedilas e

praacuteticas religiosas com categorias helenistas e estavam em maior ou menor grau envolvidos

na vida puacuteblica de suas cidadesrdquo101

O Apocalipse fala da morte de Antipas (Apocalipse 213) que pode ter ocorrido em

funccedilatildeo de algum conflito com a sociedade O Apocalipse apresenta a expectativa que o

mesmo fenocircmeno que promoveu a morte deste membro do movimento de Jesus proveraacute

dentro em breve a prisatildeo e a ruiacutena de muitos outros (Apocalipse 210)102 Para Thompson

ldquoa descriccedilatildeo do visionaacuterio de guerra e conflito contem suficientes referecircncias e alusotildees a

Roma e ao culto imperial para concluir que o visionaacuterio esperava tribulaccedilatildeo e opressatildeo de

instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas na Aacutesiardquo103 Como Prigent enfatiza ldquoo autor de

100 FRANKFURTER David Jews or Not Reconstructing the ldquoOtherrdquo in Rev 29 and 39 Harvard

Theological Review Cambridge v 4 n 94 p 403-425 2001 Duff argumenta que o comentaacuterio negativo de

Joatildeo sobre as sinagogas foi feito para exacerbar a tensatildeo entre as igrejas e as sinagogas Ao promover inimizade

contra as sinagogas e medo de hostilidade de judeus locais Joatildeo desejava desencorajar aliados iacutentimos

(membros das igrejas de Esmirna e Filadeacutelfia) de apostastar para as sinagogas Cf DUFF Paul B ldquoThe

synagogue of Satanrdquo op cit p 148 101 NOGUEIRA Paulo Augusto de Souza Experiecircncia religiosa e criacutetica social no cristianismo primitivo Satildeo

Paulo Paulinas p 137 102 HOWARD-BROOK Wes GWYTHER Anthony Desmascarando o imperialismo interpretaccedilatildeo do

Apocalipse ontem e hoje Satildeo Paulo Paulus 2003 p 120-155 103 THOMPSON Leonard A Sociological Analysis of Tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 36 p 147-174 1986 p 148

41

Apocalipse afirma com grande energia que o Impeacuterio estaacute a serviccedilo de Satatilde comprovado

pela idolatria que embasa todo o sistemardquo104

Durante boa parte da histoacuteria da leitura do Apocalipse105 a descriccedilatildeo de mundo no

seu livro cheia de conflitos e violecircncia era tomada como equivalente da situaccedilatildeo concreta

de vida do autor e de suas comunidades O contexto histoacuterico era precisamente como

transparecia atraveacutes das imagens do livro106 Foi somente a partir de meados do seacuteculo XX

quando alguns estudiosos deixaram de assumir que o mundo do texto de Apocalipse

espelhava diretamente o contexto histoacuterico em torno do mesmo Neste caso eles se voltaram

para oferecer sugestotildees de como conciliar e relacionar a tensatildeo entre o mundo do Apocalipse

e o mundo concreto das comunidades de seguidores de Jesus no final do primeiro seacuteculo na

Aacutesia romana

Uma destas pesquisadoras Fiorenza sugeriu que as imagens que o livro constroacutei

foram produzidas como instrumentos retoacutericos de persuasatildeo Ela entende que o visionaacuterio

parece estar realmente convencido de que o Impeacuterio Romano eacute uma ameaccedila para seguidores

de Jesus e escreve para persuadir sua audiecircncia a aceitar sua leitura da realidade

empurrando-a para uma determinada posiccedilatildeo frente ao contexto social em que viviam107

Adela Collins por sua vez argumentou que Joatildeo escreveu em resposta ao conflito

entre a feacute em Jesus como Joatildeo a entendia e a situaccedilatildeo social como ele a percebia Para esta

autora o autor realiza seu propoacutesito por meio da construccedilatildeo de um universo simboacutelico com

valores terapecircuticos Diante do Apocalipse leitores e ouvintes alcanccedilariam uma catarse de

medo e ressentimento e uma internalizaccedilatildeo de demandas para sustentar-se agrave parte de uma

ordem social opositora por meio da praacutetica de abstinecircncia sexual pobreza e martiacuterio108

Outro pesquisador Steven Friesen definiu o Apocalipse de Joatildeo como uma obra

engajada na construccedilatildeo de um mundo simboacutelico com o objetivo de produzir resistecircncia

simboacutelica Enquanto a ideologia imperial construiacutea seus mitos e os disseminava para afirmar

104 PRIGENT P O Apocalipse In COTHENET E et al Os escritos de Satildeo Joatildeo e a Epiacutestola aos Hebreus

Satildeo Paulo Paulinas 1998 p 229-306 p 255 105 Para a histoacuteria da recepccedilatildeo do livro conferir WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse

Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 KOVACS Judith

ROWLAND Christopher C Revelation Oxford Blackwell Publishing 2004 KYRTATAS Dimitris The

Transformations of the Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text

The Writing of Ancient History London Duckworth 1986 p 144-162 106 Conferir neste sentido o comentaacuterio de Euseacutebio de Cesareacuteia ldquoDomiciano deu provas de uma grande

crueldade para com muitos [] e foi o segundo a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutesrdquo (Histoacuteria Eclesiaacutestica

III VII 1) 107 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Apocalipsis Visioacuten de un mundo justo Estella Editorial Verbo Divino

1997 p 58 108 COLLINS Adela Yarbro Crisis e Catharsis op cit p 127-131

42

que o Imperador era o rei dos reis Joatildeo ressignifica estes mitos para afirmar que a autoridade

uacuteltima sobre o mundo proveacutem no fim de fora mesmo deste mundo109 Eacute um conflito de

mundos construiacutedos de siacutembolos de identidades de ideologias110

Em termos concretos entretanto Domiciano natildeo parece ter instigado uma

perseguiccedilatildeo oficial aos seguidores de Jesus Existe pouca evidecircncia de que ele tenha

perseguido diretamente as igrejas e como insistiu Thompson nenhuma evidecircncia de que ele

tenha banido Joatildeo para a Ilha de Patmos111

Isso natildeo significa que conflitos locais natildeo pudessem se manifestar dentro de cada

cidade da Aacutesia conflitos estes que poderiam ter ligaccedilatildeo com o relacionamento entre os

membros do movimento de Jesus e a instituiccedilatildeo do culto imperial112 Possivelmente ao falar

do culto agraves bestas Joatildeo entra em polecircmica com a praacutetica do culto ao Imperador no contexto

urbano da proviacutencia onde a primeira Besta (Apocalipse 131-10) representa o Impeacuterio

Romano ou o proacuteprio Imperador e a segunda Besta (Apocalipse 1311-18) eacute possivelmente

o sacerdote do culto imperial113 Acompanhar a posiccedilatildeo do Apocalipse neste sentido poderia

gerar suspeiccedilatildeo e hostilidade por parte da populaccedilatildeo local e causar as acusaccedilotildees subjacentes

aos processos descritos por Pliacutenio o Jovem ao Imperador Trajano pouco mais de uma deacutecada

depois de Joatildeo na proviacutencia de Bitiacutenia e Ponto vizinha das igrejas da Aacutesia (Epiacutestola

10965)

O culto imperial era uma expressatildeo de religiosidade individual e coletiva e uma

demonstraccedilatildeo de coesatildeo e ordem social e poliacutetica do Impeacuterio Para propoacutesitos imperiais o

culto ao Imperador servia como uma expressatildeo de lealdade e gratidatildeo por parte dos cidadatildeos

Pagels tenta resumir este processo Para ela anteriormente os membros do

movimento de Jesus se identificavam com os grupos judaicos ao serem expulsos desses

109 FRIESEN Steven J Myth and Symbolic Resistance in Revelation 13 Journal of Biblical Literature

Atlanta v 2 n 123 p 281-313 2004 p 281 e 311 110 FRIESEN Steven J Satanrsquos throne imperial cults and the social settings of Revelation Journal for the

Study of the New Testament Cambridge v 27 n 3 p 351-373 2005 p 352 111 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L Reading the

Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 34 DUFF Paul B ldquoThe

Synagogue of Satanrdquo op cit p 149 112 Para uma anaacutelise das distintas formas que o culto imperial poderia assumir nas diferentes regiotildees do Impeacuterio

cf SCHERRER Steven J Signs and Wonders in the Imperial Cult a New Look at a Roman Religious

Institution in the Light of Rev 1313-15 Journal of Biblical Literature Atlanta v 4 n 103 p 599-610 1984

SORDI Marta The Christians and the Roman Empire London and New York Routledge 1994 Sobre a

relaccedilatildeo das comunidades judaicas com o culto imperial conferir MCLAREN James S Jews and the Imperial

Cult from Augustus to Domitian Journal for the Study of the New Testament Cambridge n 27 p 257-278

2005 113 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p

34

43

grupos eles precisavam criar novas identidades em oposiccedilatildeo agravequeles que antes eram seus

irmatildeos Entretanto quando essas mesmas comunidades passam a ser formadas

predominantemente de natildeo-judeus agora eram excluiacutedos natildeo mais de ciacuterculos judaicos mas

dos ciacuterculos sociais que antes conviviam Era desses ciacuterculos que as ameaccedilas agora partiam

de ldquooficiais romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu lsquoateiacutesmorsquo que temiam que

pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteirasrdquo114

O cenaacuterio descrito por Pagels talvez se aplique agrave Bitiacutenia e Ponto dos tempos de Pliacutenio

mas ainda natildeo o eacute para o tempo do Apocalipse A ecircnfase na ruptura com a sociedade

encontrada no texto joanino indica que boa parte dos membros das igrejas da Aacutesia ainda

vivia suas vidas com seus vizinhos sem grandes conflitos Eacute Joatildeo que espera por tensatildeo e

crise Ele aguarda uma violenta perseguiccedilatildeo contra as comunidades para um futuro

proacuteximo115 Subjacentes aos roacutetulos da oposiccedilatildeo interna (os balamitas e nicolaiacutetas de

Peacutergamo Jezabel e seus seguidores em Tiatira e os falsos apoacutestolos de Eacutefeso) parecem estar

pessoas que ocupavam posiccedilatildeo de lideranccedila dentro das igrejas nas quais estavam inseridas

consideradas como adversaacuterias por Joatildeo O que estes liacutederes de diferentes igrejas teriam em

comum Aparentemente eles natildeo estavam de acordo quanto agrave forma de conduzir os fieacuteis

nas suas relaccedilotildees com o Impeacuterio116 Assim diante da diferenccedila de respostas existente entre

os proacuteprios liacutederes sobre a interaccedilatildeo com a sociedade Joatildeo reage com forccedila Para ele

qualquer acomodaccedilatildeo social eacute prostituiccedilatildeo e idolatria categorias religiosas retiradas da

antiga profecia judaica

Como sintetizou Norman Cohn ldquoo propoacutesito de Joatildeo era estimular os cristatildeos a se

verem em conflito com ciacuterculos mais amplos da sociedaderdquo117 Para tanto ele descreveu o

governo romano natildeo como reflexo de uma ordem divina mas do poder de Satatilde A alianccedila

com o Jesus Glorificado do Apocalipse inviabilizaria qualquer relacionamento com a

sociedade romana

Joatildeo por meio de sua obra demoniza praacuteticas de interaccedilatildeo social poliacutetica e religiosa

com o Impeacuterio118 Sua estrateacutegia eacute exacerbar a situaccedilatildeo para promover uma crise na sua

114 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na

sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996 p 134 115 SILVA David A de The Revelation to Johnhellip op cit 116 FRIESEN Steven J Satanrsquos Throne Imperial Cults and the Social Settings of Revelation op cit p 368 117 COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 280 118 MESTERS Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das

comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n 69 p 72-82 2001 p 77

Conferir tambeacutem BIGUZZI Giancarlo Ephesus its Artemision its Temple to the Flavian Emperors and

idolatry in Revelation Novum Testamentum Leida v 3 n 40 p 276-290 1998

44

audiecircncia119 pelo menos nas igrejas nas quais tinha alguma influecircncia e invibializar os

relacionamentos significativos com pessoas de fora da comunidade Para isso ele provecirc

motivaccedilotildees tanto positivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos demais

grupos judaicos Em termos sinteacuteticos ele demoniza seus adversaacuterios estressa fortemente

as diferenccedilas de padrotildees e valores escala antagonismo e vaticina um tempo proacuteximo de

rejeiccedilatildeo muacutetua120

14 O gecircnero literaacuterio do Apocalipse

Aparentemente os antigos inteacuterpretes do Apocalipse o liam da mesma forma como

liam outros livros profeacuteticos da tradiccedilatildeo judaica Para eles Joatildeo era profeta e seu livro uma

profecia Foi somente no seacuteculo XIX que se levantou a sugestatildeo de que o Apocalipse de Joatildeo

deveria ser visto como um tipo distinto de literatura121 O argumento era de que o livro natildeo

era como as demais obras da tradiccedilatildeo profeacutetica judaica Aleacutem disso as evidecircncias indicavam

que existia um corpo de escritos parecidos com o Apocalipse formando uma corrente

literaacuteria na qual a obra de Joatildeo poderia ser inserida122 Esta corrente se estenderia para cerca

de trecircs seacuteculos antes do aparecimento do Apocalipse de Joatildeo com acentuada produccedilatildeo em

torno da Guerra dos Macabeus e avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70)123

A partir de entatildeo os estudiosos passaram a tentar definir o que seria o gecircnero

ldquoapocalipserdquo Estas tentativas de definiccedilatildeo consistiam de listas de caracteriacutesticas tiacutepicas

119 Segundo Paul Duff ldquopor causa da fragilidade da fonte do seu poder liacutederes carismaacuteticos atraveacutes da histoacuteria

tecircm usado uma variedade de estrateacutegias para combater as ameaccedilas agrave perda do controle Uma destas estrateacutegias

eacute o fomento das crises ou seja criar crises ou exacerbar uma situaccedilatildeo instaacutevel ao ponto que isso resulte numa

crise Esta taacutetica tem o potencial para acentuar a indispensabilidade do liacuteder inspiradordquo Cf DUFF Paul B

ldquoThe Synagogue of Satanrdquohellip op cit p 164-165 120 Idem p 164-165 121 BARR David L Beyond Genre In BARR David L (ed) The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics

in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p 71-79 p 75 122 COLLINS Adela Yarbro The Early Christian Apocalypses Semeia Atlanta n 14 p 61-121 1979 p 70

Para ela o Apocalipse de Joatildeo poderia ser definido como um apocalipse histoacuterico sem a presenccedila de viagem

celestial Conferir tambeacutem KUumlMMEL op cit p 602 ldquoO material miacutetico os nuacutemeros secretos as visotildees e os

fenocircmenos do ceacuteu como meios a serviccedilo da revelaccedilatildeo de coisas do mundo do aleacutem a representaccedilatildeo das visotildees

atraveacutes de imagens fantaacutesticas e ricamente embelezadas bem como a frequumlente dependecircncia do Antigo

Testamento caracterizam o Apocalipse como uma obra pertencente ao mesmo gecircnero literaacuterio dos apocalipses

judaicosrdquo 123 LOHSE op cit p 240 Sotelo propocircs trecircs hipoacuteteses gerais sobre a origem deste gecircnero literaacuterio Uma delas

entende que ele surgiu de tradiccedilotildees persas sendo completamente estranho aos autores anteriores de Israel

outra argumenta que ele veio da tradiccedilatildeo sapiencial de Israel e uma terceira o liga ao profetismo claacutessico

israelita Cf SOTELO Daniel Origem da apocaliptica In MARASCHIN Jaci Correia (ed) Apocaliptica

Satildeo Bernardo do Campo Instituto Metodista de Ensino Superior 1983 p 17-21 p 17

45

Autores como D S Russell124 procuraram apontar poucos traccedilos distintivos para abraccedilar um

nuacutemero maior de obras Entretanto o resultado eacute que obras que se parecem muito pouco

passaram a ser vistas igualmente como apocalipses

Muitas outras listas surgiram Cada uma apresentava um traccedilo diferente que

considerava ser tiacutepico de um apocalipse Isso fazia com que um livro que um determinado

autor apontava como apocalipse fosse considerado por outro estudioso como de gecircnero

diferente

Um princiacutepio baacutesico subjacente agrave pesquisa do gecircnero destes textos eacute que um

apocalipse como outros tipos de literatura natildeo poderia ser considerado como obra literaacuteria

estanque pois estaria relacionado com outras obras e tradiccedilotildees atraveacutes de uma seacuterie de traccedilos

e conexotildees Por isso definir um apocalipse passou a ser uma questatildeo de precisar os limites

ou paracircmetros dentro dos quais as obras seriam recebidas por seus leitores

Essa definiccedilatildeo avanccedilou consideravelmente como resultado das pesquisas publicadas

no nuacutemero 14 da revista Semeia Ela continuou na tradiccedilatildeo de gerar listas de caracteriacutesticas

para tipificar um apocalipse mas deu um passo a mais por causa da precisatildeo com que estes

traccedilos foram postulados Os resultados foram resumidos por Collins

Apocalipse eacute um gecircnero de literatura de revelaccedilatildeo com uma estrutura

narrativa no qual uma revelaccedilatildeo eacute mediada por um ser sobrenatural para

um ser humano revelando uma realidade transcendente que eacute tanto

temporal enquanto considera salvaccedilatildeo escatoloacutegica quanto espacial

enquanto envolve outro mundo sobrenatural125

A lista de caracteriacutesticas de Collins apresenta um apocalipse do ponto de vista da

forma (literatura de revelaccedilatildeo de estrutura narrativa) e do conteuacutedo (mediaccedilatildeo sobrenatural

realidades transcendentes temporal e espacial) Ao aplicar esta lista de caracteriacutesticas ao

livro de Joatildeo Collins entende que a obra se enquadra com precisatildeo no interior da tradiccedilatildeo

literaacuteria que gerou os apocalipses

Escritores natildeo conseguem escrever sem ter em mente outros textos que eles leram

os quais se tornam modelos para serem imitados transformados ou contrapostos A inserccedilatildeo

de um texto num determinado veio tradicional ou literaacuterio assim tem funccedilatildeo natildeo somente

promotora de caracteriacutesticas (forma conteuacutedo e funccedilatildeo) mas tambeacutem hermenecircutica Afinal

124 RUSSELL D S Desvelamento divino uma introduccedilatildeo agrave apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo Paulus 1997 125 COLLINS John J Introduction Towards the Morphology of a Genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979

p 9

46

leitores natildeo conseguem ler e entender uma obra se eles natildeo estiverem habilitados para

relacionaacute-la com outras que eles tiveram a oportunidade de ler ou conhecer

O propoacutesito da identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo de uma obra eacute orientar e guiar a produccedilatildeo

ou a recepccedilatildeo da mesma Este processo eacute normalmente deliberado e consciente por parte

do autor do livro como um de seus recursos para guiar o seu leitor

A classificaccedilatildeo de textos consiste no levantamento de um conjunto de convenccedilotildees

impliacutecitas ou expliacutecitas O escritor conhece estas convenccedilotildees do contexto no qual e contra o

qual escreve No processo de produccedilatildeo de sua obra ele ajuda o leitor por meio de indicaccedilotildees

para-textuais como tiacutetulos subtiacutetulos prefaacutecios ou outros sinais menos oacutebvios Com isso se

forma um tipo de ldquocontratordquo que orienta antecipadamente a leitura e a apropriaccedilatildeo da obra

Afinal estas marcas estatildeo ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido

Paul Duff destaca que Joatildeo como todo escritor ou orador precisou antecipar a reaccedilatildeo

dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem126 As tais marcas

viabilizam as classificaccedilotildees ou categorizaccedilotildees e formam uma espeacutecie de guia de leitura que

pode ser aceito ou natildeo pelos leitores

Linton insiste que mesmo que uma obra natildeo tenha estes sinais claramente os leitores

tenderatildeo a construir seus proacuteprios guias de interpretaccedilatildeo normalmente comparando a obra

com outras similares de forma a construir um corpo de convenccedilotildees para guiar a leitura127

A praacutetica da leitura se torna entatildeo um contiacutenuo processo de comparaccedilatildeo com leituras

anteriores

Autores se valem de categorias Leitores se aproveitam delas Em ambas as situaccedilotildees

a construccedilatildeo do texto e a busca pelo seu sentido eacute uma atividade de comparaccedilatildeo na qual as

categorias se tornam ferramentas heuriacutesticas significativas Ao escrever sua obra Joatildeo

deliberadamente revestiu-a de marcas e traccedilos de obras que viriam posteriormente a ser

conhecidas como ldquoapocalipsesrdquo Ao assim fazer ele forneceu a forma como ele esperava

que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Aacutesia e com quais textos o Apocalipse deveria

ser comparado

126 DUFF Paul B Who rides the beast op cit p 72 127 LINTON Gregory L Reading the Apocalypse as Apocalypse In BARR David L (ed) The Reality of

Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2006 p

9-41 p 15

47

15 Resumo

O Apocalipse foi escrito por um judeu de nome Joatildeo que migrou da Palestina apoacutes a

guerra judaico-romana (66-70) e desenvolvou uma atividade profeacutetica entre as comunidades

do movimento de Jesus na Aacutesia menor Perto do final do seacuteculo pouco antes do fim do

governo do Imperador Domiciano (96) ele se deslocou ou foi descolocado para a ilha de

Patmos onde escreveu um texto marcado por traccedilos da tradiccedilatildeo literaacuteria judaica denominada

pelos estudiosos como ldquoapocalipserdquo Com sua obra ele desejava convencer alguns membros

especialmente de sete igrejas da proviacutencia asiaacutetica a romperem relacionamentos

significativos com a sociedade romana

II ndash RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NA AacuteSIA ROMANA

Como discutimos no capiacutetulo anterior o Apocalipse de Joatildeo foi escrito nos anos 90

do primeiro seacuteculo da Era Comum provavelmente nos uacuteltimos anos do principado do

imperador Domiciano (Titus Flavius Domitianus)128 A partir de uma referecircncia interna

(Apocalipse 19) eacute possiacutevel circunscrever seu local de origem como sendo a pequena ilha

do mar Egeu de nome Patmos e seu destino como um conjunto de comunidades do

movimento de Jesus localizadas na proviacutencia proconsular da Aacutesia (Apocalipse 111) Eacutefeso

Esmirna Peacutergamo Tiatira Sardes Filadeacutelfia e Laodiceacuteia

Este Joatildeo de Patmos estaacute longe de Roma capital do Impeacuterio Apesar dos atos e gestos

do Imperador poderem refletir diretamente na vida de Joatildeo e no puacuteblico de sua obra em

termos sociais poliacuteticos econocircmicos ou culturais o contexto especiacutefico do Apocalipse eacute

mesmo a Aacutesia romana Em funccedilatildeo disso neste capiacutetulo nos deteremos em analisar a situaccedilatildeo

desta proviacutencia focando em aspectos que poderiam iluminar de alguma forma o processo

histoacuterico de produccedilatildeo do Apocalipse

21 Patmos o ponto de partida

Segundo o Apocalipse seu autor Joatildeo recebeu a seacuterie de visotildees que deu origem agrave

obra enquanto estava na ilha de Patmos no mar Egeu ldquoEu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro

na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por

causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo (Apocalipse 19)

Patmos eacute uma ilha pequena Em termos gerais satildeo treze quilocircmetros de extensatildeo por

oito de largura Poreacutem sua costa recortada reduz consideravelmente suas dimensotildees Sua

margem fica a 64 quilocircmetros da foz do rio Maeander o ponto mais proacuteximo da peniacutensula

da Aacutesia Menor129 Esta distacircncia relativa tambeacutem a separava de Mileto seu principal viacutenculo

128 Domiciano foi assassinado no dia 18 de setembro de 96 por uma conspiraccedilatildeo palaciana e substituido no

mesmo dia por um dos seus amici o senador M Cocceius Nerva Cf JONES Brian W The emperor Domitian

Londres Routledge 1992 p 93 129 HEMER Colin J The letters to the seven churches of Asia in their local setting Sheffield Sheffield

Academic Press Ltd 1986 p 27

49

social com o continente Das cidades mencionadas no Apocalipse entretanto a mais

proacutexima era Eacutefeso distante da ilha cerca de 100 quilocircmetros130

A associaccedilatildeo de Patmos com Mileto era formal fazendo parte do seu territoacuterio junto

com as ilhas de Lipsos e Leros Nas trecircs ilhas havia algum tipo de povoamento Em Patmos

especificamente seu povo era conhecido como frouroi e seus liacutederes frourarchoi atuando

como parte do governo de Mileto para a populaccedilatildeo local131

Eacute preciso insistir no fato de que Patmos natildeo era uma ilha deserta ou mesmo uma

colocircnia penal O professor David Aune argumenta neste sentido e aponta como evidecircncia

duas inscriccedilotildees encontradas na ilha Uma datada para o seacuteculo II aC faz referecircncia a uma

associaccedilatildeo local de atletas agrave presenccedila de um gymnasium e agrave figura de um gymnasiarcha

eleito sete vezes para a mesma funccedilatildeo Outra de duzentos anos depois jaacute na Era Comum

fala de uma hidrophore sacerdotisa de Artemis e a presenccedila de um templo local bem

estabelecido para esta deusa132

Joatildeo escreve de uma ilha pertencente agrave Mileto a polis mais proacutexima de onde ele ldquose

achavardquo133 Curiosamente entretanto ela estaacute ausente da lista de cidades mencionadas no

Apocalipse Talvez a resposta a esta questatildeo tenha relaccedilatildeo com a falta de uma comunidade

do movimento de Jesus em Mileto O livro Atos dos Apoacutestolos escrito de um lugar

indeterminado entre os anos 80 e 90134 conteacutem uma narrativa que parece indiciar a ausecircncia

de uma comunidade na cidade Nela (Atos 2017-38) Paulo se prepara para fazer uma

viagem a Roma Entre seus preparativos estaacute uma visita agrave igreja de Jerusaleacutem Durante sua

viagem ele se detem em Mileto para conversar natildeo com disciacutepulos da cidade mas com

liacutederes que vieram da igreja de Eacutefeso O autor anocircnimo explicita que ldquode Mileto mandou a

Eacutefeso chamar os presbiacuteteros da igrejardquo (Atos 2017) Natildeo haacute qualquer menccedilatildeo agrave presenccedila de

seguidores do movimento de Jesus pelo menos perto do ano 60 quando os eventos narrados

por Atos se deram135 Neste sentido a omissatildeo do Apocalipse pode indicar que as trecircs

deacutecadas que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de Joatildeo por ela natildeo foram

suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar

130 Conferir os mapas da Aacutesia romana nos anexos 1 e 2 131 AUNE David E Revelation 1-5 Nashville Thomas Nelson Publishers 1997 p 76 132 Idem p 77 133 Ele usa o termo grego ldquoἐγενόμηνrdquo primeira pessoa do aoristo do indicativo meacutedio ldquoachei-merdquo 134 KUMMEL Werner G Introduccedilatildeo ao Novo Testamento Satildeo Paulo Paulinas 1982 p 238 135 GALBIATTI Enrico Rodolfo ALETTI Aldo Atlas histoacuterico da Biacuteblia e do Antigo Oriente Petroacutepolis

Vozes 1991 p 216

50

22 Proviacutencia proconsular da Aacutesia

Para Ciacutecero (107-43 aC) a ldquoAacutesia eacute oacutetima e feacutertilrdquo (ldquoAsia vero tam optima est ac

fertilisrdquo) e acrescentou que ldquona riqueza de seus oacuteleos na variedade de seus produtos na

extensatildeo de seus pastos e no nuacutemero de suas exportaccedilotildees ela ultrapassa todas as outras

terrasrdquo (De Imperio cn Pompei ad qurites oratio 14) A Aacutesia Menor era uma das regiotildees

mais ricas do Impeacuterio e dentre as seis proviacutencias da peniacutensula a Aacutesia era a mais rica136

Formalmente ela era uma proviacutencia senatorial governada por um prococircnsul indicado pelo

senado romano137 Entretanto tanto o imperador quanto o senado poderiam promover

regulamentos que afetariam a proviacutencia Justamente por isso nela havia representantes

imperial e senatorial

Durante o governo da dinastia Flaacutevia a gestatildeo da Aacutesia foi marcada pela recuperaccedilatildeo

econocircmica138 A aclamaccedilatildeo de Vespasiano se deu em Alexandria no dia 1 de julho de 69

sendo prontamente reconhecido pelas proviacutencias orientais O novo imperador viajando de

navio parou em vaacuterias cidades da costa da Aacutesia onde oficiais locais fizeram os juramentos

habituais de fidelidade139

Apoacutes sua ascensatildeo ao poder Vespasiano encontrou o tesouro imperial falido pelas

guerras civis que se seguiram agrave morte de Nero Para restaurar as financcedilas puacuteblicas ele adotou

uma poliacutetica econocircmica que reduziu os gastos do governo e procurou aumentar as receitas

do estado reorganizando o recolhimento das taxas puacuteblicas ou criando novas como o fiscus

Alexandrinus e o fiscus Iudaicus Esta segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus para

substituir um imposto recolhido para subsidiar o Templo de Jerusaleacutem recentemente

destruiacutedo pelas legiotildees de Tito filho de Vespasiano140

Uma mudanccedila importante se deu na forma como tais taxas eram cobradas A

cobranccedila saiu das matildeos dos publicani para um agente do governo liderado por um

procurador em Roma e outro em cada proviacutencia Posteriormente Domiciano criou o oficio

136 MAGIE David Roman rule in Asia Minor to the end of third century after Christ Princenton Princenton

University Press 1950 p 34-52 Cf tambeacutem KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no

Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 89 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation

Apocalypse and Empire Oxford Oxford University Press 1990 p 146 137 MAGIE op cit p 569 138 Para uma anaacutelise da reorganizaccedilatildeo efetuada por Vespasiano na proviacutencia mantida e ampliada por Tito e

Domiciano cf LEVICK Barbara Greece and Asia Minor In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient

History Cambridge Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 604-634 p 604 139 MAGIE op cit p 566 140 GRIFFIN Miriam The Flavians In BOWMAN Alan (ed) The Cambridge Ancient History Cambridge

Cambridge University Press 2000 14 v V XI p 1-83 p 27

51

de curator civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus recursos

Este processo de centralizaccedilatildeo financeira diminuiu a autonomia da proviacutencia contudo

ajudou suas cidades

Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Aacutesia Menor pelo incremento na

construccedilatildeo e manutenccedilatildeo de estradas Estradas importantes foram construiacutedas apoacutes a

ascensatildeo dos Flaacutevios como duas estradas que saiam de Peacutergamo no ano 75 Uma descia na

direccedilatildeo de Esmirna e Eacutefeso margeando a costa Outra seguia pelo interior na direccedilatildeo de

Tiatira e Sardes Estas mesmas estradas foram restauradas por Domiciano Aleacutem das

vantagens para o comeacutercio e a comunicaccedilatildeo o foco nas estradas tinha tambeacutem como objetivo

facilitar o acesso para a regiatildeo oriental da Aacutesia Menor e para as fronteiras com o Impeacuterio

Persa no Eufrates Por elas deveriam circular as legiotildees romanas e o suprimento para as

tropas141 Mas natildeo havia uma legiatildeo especiacutefica estacionada em qualquer proviacutencia da Aacutesia

Menor A defesa da regiatildeo dependia inteiramente das legiotildees fixadas na Siacuteria

O governo de Tito deu sequecircncia agraves poliacuteticas de seu pai ateacute que em setembro de 81

apoacutes sua morte ele foi sucedido por Domiciano Haacute um juiacutezo tradicional negativo a respeito

deste uacuteltimo imperador da dinastia Flaacutevia como ilustrado pela opiniatildeo de Euseacutebio de

Cesareacuteia (263-339)

Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos

dando morte sem julgamento razoaacutevel a natildeo pequeno nuacutemero de

patriacutecios e de homens ilustres e castigando com desterro fora das

fronteiras e confisco de bens a outras inuacutemeras personalidades sem

causa alguma Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero

na animosidade e guerra contra Deus Efetivamente ele foi o segundo

a promover a perseguiccedilatildeo contra noacutes apesar de que seu pai

Vespasiano nada de mal planejou contra noacutes (Histoacuteria Eclesiaacutestica

III XVII 1)

Este juiacutezo se reflete tambeacutem na historiografia David Magie descreve inicialmente o

governo de Domiciano como inescrupuloso e impiedoso142 mas pouco depois reconhece

que

nas proviacutencias existe pouca evidecircncia de crueldade por parte de

Domiciano ou mesmo de pretensotildees de grandeza exageradas No

oriente mesmo o tiacutetulo de ldquodeusrdquo que incomodava os ouvidos

romanos era tido como normal Ainda o tiacutetulo completo ldquoDeus

invisiacutevel fundador da cidaderdquo inscrito no peacute de uma estatua do

imperador em Priene natildeo era mais extravagante do que outros dados

141 MAGIE op cit p 571 142 Idem p 577

52

a muitos de seus antecessores e a outorga do epiacuteteto de ldquofundadorrdquo

parece indicar que ele realmente beneficiou a cidade143

A relaccedilatildeo de Domiciano com a Aacutesia assim natildeo foi diferente da forma como seu

irmatildeo Tito e seu pai Vespasiano trataram a proviacutencia A proviacutencia se beneficiou com a

gestatildeo dos Flaacutevios que terminou com a morte de Domiciano em setembro de 96 jaacute que o

imperador natildeo deixou herdeiro

Um testemunho da prosperidade do periacuteodo pode ser encontrado em um dos livros

dos Oraacuteculos Sibilinos surgido perto do ano 80 O oraacuteculo escrito na perspectiva do

Judaiacutesmo da diaacutespora na Aacutesia atacou o Impeacuterio Romano mas natildeo deixou de evidenciar a

riqueza da proviacutencia segundo seu autor espoliada em favor de Roma

Grande riqueza viraacute para Aacutesia riqueza que uma vez Roma tendo

tomado-a por rapina armazenou em uma casa de insuperaacuteveis

riquezas mas sem demora ela faz uma dupla restituiccedilatildeo para a Aacutesia

entatildeo haveraacute um excesso de conflitos (Oraacuteculo Sibilino IV I 42)144

Durante as deacutecadas da dinastia Flaacutevia a situaccedilatildeo econocircmica da Aacutesia se refletiu no

volume de novas construccedilotildees natildeo apenas por meio de recursos puacuteblicos mas tambeacutem atraveacutes

de subsiacutedios de pessoas ricas Estas liturgias incluiacuteam recursos para as edificaccedilotildees para o

reparo de construccedilotildees para a manutenccedilatildeo de centros sociais e para a realizaccedilatildeo de

festivais145

A cidade mais beneficiada no periacuteodo foi possivelmente a sede da proviacutencia Eacutefeso

Nela residia o proconsul da cidade O procurador ou vice-proconsul com alguma

probabilidade tambeacutem morava nela A partir da deacutecada de 90 mesmo sem uma precisatildeo

maior trecircs pessoas se sucederam no governo da Aacutesia ateacute a morte de Domiciano Sextus

Vettulenus Civica Cerialis C Minicius e L Junius Caesennius Paetus146

23 Comunidades judaicas na proviacutencia da Aacutesia

Os mais antigos membros das igrejas da Aacutesia eram oriundos de comunidades judaicas

da Aacutesia Menor Das centenas de cidades da proviacutencia asiaacutetica a presenccedila do movimento de

143 Idem p 577 144 Citado a partir de MAGIE op cit p 582 145 Idem p 583 146 Idem p 1582-1583

53

Jesus era atestada onde existia tambeacutem uma comunidade judaica147 Eacute plausiacutevel mesmo

tratar o movimento de Jesus na Aacutesia como parte do Judaiacutesmo da diaacutespora

Frequentadores de sinagogas ou de igrejas viviam na Aacutesia Menor no final do

primeiro seacuteculo e iniacutecio do segundo em grandes aacutereas urbanas e o que puder ser dito sobre

o primeiro grupo vale tambeacutem para o segundo O movimento de Jesus estaacute em processo de

ruptura e construccedilatildeo de identidade proacutepria todavia esse movimento ainda natildeo se completou

na regiatildeo como o proacuteprio Apocalipse pode evidenciar Apesar de membros da sociedade

romana especialmente seus magistrados jaacute perceberem alguma diferenccedila entre um e outro

na vida cotidiana eles permaneciam histoacuterica social e teologicamente envolvidos Esse

parece ser o motivo que levou Joatildeo de Patmos a se envolver em disputas com membros das

sinagogas locais (Apocalipse 29 39)148

A crise com as sinagogas de Esmirna (Apocalipse 29) e Filadeacutelfia (Apocalipse 39)

pode ter relaccedilatildeo com a forma como as comunidades judaicas se adaptaram ao contexto

urbano da proviacutencia Judeus habitavam a regiatildeo desde que Antioco III ordenou a realocaccedilatildeo

de duas mil famiacutelias judaicas da Babilocircnia para a Frigia como uma colocircnia militar a fim de

minimizar revoltas na regiatildeo149 Desde entatildeo judeus estavam amplamente presentes na parte

ocidental da Aacutesia Menor vivendo suas praacuteticas religiosas mas com relativa integraccedilatildeo na

vida ciacutevica das cidades150

Mesmo depois da guerra judaico-romana (66-70) os judeus da Aacutesia continuaram a

compartilhar da prosperidade da proviacutencia sem ameaccedila de puniccedilotildees por algum tipo de

conexatildeo com a guerra na Judeacuteia151 Com exceccedilatildeo do Fiscus Iudaicus nenhuma outra

consequecircncia poliacutetica ou social foi imposta aos judeus da diaacutespora pelo Impeacuterio Romano

apoacutes a guerra Segundo Josefo ldquoo mesmo soberano ordenou tambeacutem que os judeus em

qualquer lugar onde morassem deveriam pagar cada qual todos os anos duas dracmas ao

Capitoacutelio como antes pagavam ao templo de Jerusaleacutemrdquo (Guerra dos Judeus 27) A

identificaccedilatildeo dos judeus com a sociedade romana tambeacutem eacute testemunhada por este

sobrevivente da guerra Em Antiguidades Judaicas ele argumenta que judeus em Sardes

eram sardianos em Eacutefeso eram efeacutesios em Antioquia eram antioquenos (Antiguidades

Judaicas 239)

147 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 133 148 Idem p 145 149 TREBILCO Paul Jewish communities in Asia Minor Cambridge Cambridge Univesity Press 1991 p 5 150 Idem p 173 151 Idem p 32

54

Judeus eram membros ativos de associaccedilotildees comerciais e sindicatos Tambeacutem eram

agricultores vinhateiros marinheiros trabalhadores com metal e perfumaria Estavam

envolvidos ainda em manufaturas tecircxtil como tintureiros vendedores e fabricantes de

roupa152

Em cada uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse judeus viviam suas vidas

segundo as tradiccedilotildees judaicas poreacutem sem desprezar a participaccedilatildeo em atividades urbanas

locais Foi a partir destas comunidades judaicas engajadas na vida cotidiana do Impeacuterio que

o movimento de Jesus da Aacutesia formou suas igrejas

24 O movimento de Jesus na proviacutencia da Aacutesia

A proviacutencia da Aacutesia se situava na costa ocidental da peniacutensula da Aacutesia Menor O

autor do Apocalipse Joatildeo aponta a ilha de Patmos pertencente agrave cidade de Mileto como o

local de origem do livro Todas as cidades mencionadas explicitamente na obra satildeo cidades

de grande porte dentro da proviacutencia

As principais evidecircncias da presenccedila de cristatildeos nestas cidades vecircm de fontes do

proacuteprio movimento (cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos cartas de Pedro Apocalipse e

Inaacutecio de Antioquia) A mais antiga referecircncia a igrejas na regiatildeo vem de cartas que Paulo

de Tarso escreveu para comunidades de disciacutepulos de Corinto na deacutecada de 50 Ele estava

em Eacutefeso enquanto escrevia estas cartas (1Coriacutentios e 2Coriacutentios) O autor do livro Atos dos

Apoacutestolos tambeacutem falou do tempo em que Paulo ficou em Eacutefeso Segundo ele Paulo ficou

na cidade por trecircs anos (Atos 2031)

Tanto as cartas a Coriacutentios quanto Atos dos Apoacutestolos evidenciam que na capital da

proviacutencia existiam outros liacutederes do movimento Paulo natildeo era o uacutenico Outros como

Aacutequila Priscila e Apolo tambeacutem satildeo mencionados Estes liacutederes eram artesatildeos

independentes oriundos de comunidades judaicas da Aacutesia Menor Isso se nota por meio de

sua mobilidade sua ocupaccedilatildeo e a hospedagem de igrejas em suas casas Pessoas com a

mobilidade que eles possuiacuteam deveriam possuir recursos Para acomodar pessoas suas casas

tambeacutem deveriam ter razoaacutevel espaccedilo Natildeo eram pessoas de classes inferiores da sociedade

romana

152 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 144

55

Jaacute nos tempos de Paulo se manifestou a questatildeo da interaccedilatildeo das comunidades com

a vida urbana da cidade especialmente na questatildeo da alimentaccedilatildeo em atividades religiosas

ou ciacutevicas Em cidades gregas e romanas as pessoas tinham vaacuterias oportunidades para

participar de refeiccedilotildees cuacutelticas Isso poderia acontecer em ocasiotildees puacuteblicas (funerais

celebraccedilotildees festas ciacutevicas etc) ou privadas (clubes organizaccedilotildees comerciais refeiccedilotildees

privadas etc) Tanto em uma quanto em outra situaccedilatildeo as refeiccedilotildees expressavam conexatildeo

social em torno de causas comuns153

Fazer refeiccedilotildees puacuteblicas e comer carne oriunda de sacrifiacutecios religiosos satildeo

elementos diretamente ligados agrave questatildeo da participaccedilatildeo nas instituiccedilotildees sociais da cidade e

do Impeacuterio Este tipo de pressatildeo poderia ser diferente para status sociais distintos Segundo

Gerd Theissen cristatildeos ricos teriam mais oportunidades de se envolver em refeiccedilotildees cuacutelticas

de caraacuteter puacuteblico do que cristatildeos pobres154

Quando Paulo tratou deste assunto em 1Coriacutentios 8-10 ele relacionou a participaccedilatildeo

nas refeiccedilotildees com a situaccedilatildeo dos fracos e fortes dentro da comunidade Seu argumento

caminha na direccedilatildeo de que somente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto

os ldquofracosrdquo e os ldquofortesrdquo (ἀσθενεiς kai ἰσχυροί) participassem juntos como em festivais

puacuteblicos eacute que os disciacutepulos deveriam se abster (1Coriacutentios 87-13) Nas instacircncias privadas

poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela origem da comida

(1Corintios 1027) As igrejas da Aacutesia provavelmente nasceram a partir de mensagens e

perspectivas semelhantes agraves de Paulo de Tarso

O autor do Apocalipse quatro deacutecadas depois de missionaacuterios como Paulo Aacutequila

Priscila e Apolo terem fundado essas comunidades escreve uma obra na qual defende

posiccedilotildees divergentes Os adversaacuterios de Joatildeo descritos em sua obra como os nicolaiacutetas

baalamitas ou Jesabel satildeo atacados por promoveram algum tipo de interaccedilatildeo com a

sociedade interaccedilatildeo essa que parece ter relaccedilatildeo com a mesma questatildeo respondida por Paulo

na sua carta aos Coriacutentios a participaccedilatildeo em refeiccedilotildees ou atividades sociais que envolviam

a ingestatildeo de carne originada em sacrifiacutecio religioso Aqueles que Joatildeo enxerga como

adversaacuterios satildeo provavelmente membros do movimento de Jesus que possuem uma

perspectiva semelhante agrave que Paulo deu aos crentes de Corinto155 Thompson analisa a

153 Idem p 123 154 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva Satildeo Leopoldo Sinodal 1983 p 146 155 Assim resumiu Pagels ldquomuitas praacuteticas que Joatildeo atacava eram as mesmas que Paulo anteriormente

recomendavardquo Cf PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation

New York Penguin Books 2012 p 54

56

questatildeo e sugere que como as respostas que os adversaacuterios de Joatildeo datildeo satildeo semelhantes agrave

do antigo missionaacuterio de Tarso possivelmente eles possuiacuteam posiccedilotildees sociais semelhantes

ou seja estavam envolvidos em atividades comerciais possuiacuteam responsabilidades ciacutevicas

e pertenciam a um estrato mais rico da lideranccedila das igrejas da Aacutesia156 Este mesmo autor

defende que as igrejas da Aacutesia deveriam ter em linhas gerais uma mesma composiccedilatildeo

social Elas possuiacuteam em seus quadros pessoas livres e escravas homens e mulheres ricos

e pobres e deveriam se parecer com muitas associaccedilotildees religiosas ou sociais que existiam

na Aacutesia157 Estas associaccedilotildees synodos proliferavam consideravelmente desde a instauraccedilatildeo

do Impeacuterio e se manifestavam no Ocidente e no Oriente Segundo Meeks elas surgiam a

partir da decisatildeo de um grupo de doze a quarenta pessoas de se encontrarem em algum lugar

para reuniotildees158

Nestas reuniotildees era comum haver certa semelhanccedila de status social entre seus

membros Entretanto o proacuteprio fenocircmeno ldquostatusrdquo eacute complexo e possui vaacuterias dimensotildees

No status social de uma pessoa ou famiacutelia influiam elementos como poder prestiacutegio da

ocupaccedilatildeo renda ou riqueza educaccedilatildeo e cultura religiatildeo e pureza ritual famiacutelia ou grupo

eacutetnico status da comunidade local em que se estava envolvido Cada um destes elementos

poderia ser conjugado de forma diferente em uma dada circunstacircncia histoacuterica Na praacutetica

o status de um cidadatildeo romano era o resultado de como estas variaacuteveis eram consideradas

na sociedade local Mesmo que existisse certa perspectiva geral um sacerdote de Eacutefeso

poderia ter mais status do que um comerciante rico da cidade Em outra cidade o

conhecimento poderia ser mais importante do que a etnia em outra a pureza ritual poderia

valer mais do que a descendecircncia familiar A riqueza poderia dar mais status do que o

conhecimento mas em algumas circunstacircncias pertencer a uma famiacutelia nobre era mais

importante do que ter recursos financeiros159

Atentando para esses elementos o que as fontes geradas pelo movimento de Jesus

poderiam apontar sobre o status social dos seus membros O missionaacuterio Paulo de Tarso na

mesma carta que escreveu para a comunidade de Corinto informa que ldquonatildeo muitos da

comunidade eram saacutebios segundo o mundo nem poderosos nem de nobre nascimentordquo

(1Coriacutentios 126) Dizer que natildeo havia muitos significa afirmar que havia alguns Entre os

156 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 129 157 Idem p 127 158 MEEKS Wayne A Os primeiros cristatildeos urbanos o mundo social do Apoacutestolo Paulo Satildeo Paulo Paulinas

1992 p 54 159 Conferir esta discussatildeo em MEEKS op cit p 91

57

membros do movimento na cidade havia pessoas cultas (ldquordquo) ricas

(ldquordquo) ou bem-nascidas (ldquordquo) Pelo argumento de Paulo estes formavam uma

minoria dentro da comunidade apesar de se constituiacuterem numa minoria dominante160

Outro testemunho sobre as posiccedilotildees sociais dentro das comunidades da Aacutesia pode vir

de uma carta que Pliacutenio o Jovem escreveu em 112 enquanto atuava como governador da

proviacutencia da Bitiacutenia e Ponto tambeacutem na Aacutesia Menor O quadro descrito por Pliacutenio parece

ser bem parecido com a composiccedilatildeo da igreja de Eacutefeso ou das demais cidades mencionadas

no Apocalipse Pliacutenio resolveu tratar deste assunto com o Imperador Trajano porque

entendeu que a questatildeo era digna de consideraccedilatildeo imperial em funccedilatildeo do nuacutemero de pessoas

que se engajavam no movimento Estes ldquochristianirdquo eram de todas as idades (ldquoominis

aetatisrdquo) todas as ordens (ldquoomnis ordinisrdquo) tanto homem quanto mulher (ldquoutrisque sexusrdquo)

(Epiacutestolas 10968)

Uma carta que Paulo escreveu a Filemon jaacute na deacutecada de 60 no periacuteodo em que

esteve preso em Roma indica outro aspecto significativo da composiccedilatildeo destas

comunidades Filemon era proprietaacuterio de escravo Um deles Oneacutesimo fugiu encontrou-se

com Paulo em Roma converteu-se ao movimento e foi orientado a voltar para seu antigo

dominus este tambeacutem um convertido morador da Aacutesia Uma igreja se reunia na casa deste

senhor de escravos (Filemon 2) Natildeo eacute possiacutevel saber quantos escravos Filemon possuiacutea

mas ele recebe a orientaccedilatildeo de Paulo para que aceitasse seu antigo escravo de forma

amistosa natildeo mais como escravo (ldquow`j doulonrdquo) e sim como algueacutem mais do que escravo

(ldquou`per doulonrdquo) O escravo agora deveria ser tratado como irmatildeo (ldquow`j avdelfonrdquo) A taacutebua

domeacutestica registrada na carta aos Efeacutesios (Efeacutesios 65) documento deuteropaulino anocircnimo

escrito em algum momento entre os anos 80-100 possivelmente da Aacutesia161 especifica que

os escravos deveriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor (ldquometa fobou kai

tromourdquo)

Isso indica que as comunidades de Jesus tinham a presenccedila de pessoas livres e

escravas senhores e servos mas as orientaccedilotildees de seus liacutederes tendiam a tomar o lado dos

senhores em vez dos escravos

Outros elementos tambeacutem podem iluminar o quadro social destas comunidades da

Aacutesia162 Primeiramente o fato de alguns de seus membros escreverem livros e cartas para

160 THEISSEN Gerd Sociologia da cristandade primitiva op cit p 146-147 161 KUMMEL op cit p 480 162 Sobre estas sugestotildees cf THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 128-129

58

serem lidas no interior do movimento indica uma presenccedila significativa de pessoas que

sabiam escrever e ler numa sociedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas

mas parcamente encontradas Um segundo aspecto pode ser localizado naqueles que

hospedavam a comunidade em sua casa os quais deveriam ter certa ascendecircncia sobre os

membros do movimento Possivelmente eles agiam como ldquopatronosrdquo da igreja da mesma

forma como outros patronos da cidade suportavam clubes e associaccedilotildees comerciais Por fim

cristatildeos viajavam muito num periacuteodo em que viagens eram muito custosas Meeks sugeriu

a partir dos itineraacuterios apresentados nos Atos dos Apoacutestolos que o missionaacuterio Paulo de

Tarso pode ter viajado aproximadamente dezesseis mil quilocircmetros durante sua carreira

religiosa163 Estas viagens eram bancadas geralmente por atividades profissionais proacuteprias

mas em algumas circunstacircncias como no caso de Joatildeo de Patmos algum tipo de patrociacutenio

poderia ser buscado entre as comunidades visitadas

Com comunidades assim constituiacutedas de que maneira seus membros se

relacionavam com a sociedade Como jaacute indicamos no capiacutetulo anterior os membros do

movimento de Jesus da Aacutesia estavam inseridos na vida cotidiana da proviacutencia e natildeo

buscavam ruptura com seus vizinhos Apesar da dificuldade em se situar geograficamente a

origem ou o destino escrevendo em meados do segundo seacuteculo o autor da carta a Diogneto

resumiu

Os cristatildeos de fato natildeo se distinguem dos outros homens nem por sua

terra nem por liacutenguas ou costumes Com efeito natildeo moram em cidades

proacuteprias nem falam liacutengua estranha nem tecircm algum modo especial de

viver Sua doutrina natildeo foi inventada por eles graccedilas ao talento e

especulaccedilatildeo de homens curiosos nem professam como outros algum

ensinamento humano Pelo contraacuterio vivendo em cidades gregas e

baacuterbaras conforme a sorte de cada um e adaptando-se aos costumes do

lugar quanto agrave roupa ao alimento e ao resto testemunham um modo de

vida social admiraacutevel e sem duacutevida paradoxal Vivem na sua paacutetria mas

como forasteiros participam de tudo como cristatildeos e suportam tudo como

estrangeiros Toda paacutetria estrangeira eacute paacutetria deles e cada paacutetria eacute

estrangeira (Carta a Diogneto 51-5)

Tertuliano no final do segundo seacuteculo argumentou de modo semelhante para a

sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia Segundo ele os cristatildeos tinham a mesma

maneira de vida as mesmas roupas e os mesmos costumes eles frequentavam juntos o

mercado o accedilougue os banhos puacuteblicos as lojas as faacutebricas as tavernas as feiras e outros

163 MEEKS op cit p 32

59

negoacutecios Cristatildeos eram marinheiros soldados agricultores e se envolviam no comeacutercio

com natildeo cristatildeos Defendendo sua comunidade ele argumentou que eles proviam

habilidades e serviccedilos para o benefiacutecio de toda a sociedade romana (Apologia 42)

Tanto a Carta a Diogneto quanto Apologia natildeo dizem respeito especiacutefico agrave Aacutesia do

final do primeiro seacuteculo mas pelo menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a

interaccedilatildeo social no movimento de Jesus A perspectiva do missionaacuterio Paulo na deacutecada de

50 e 60 parece estar replicada em Diogneto e Apologia no segundo seacuteculo Isso significa

dizer que os seguidores de Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas

situaccedilotildees que os demais membros da sociedade romana Eles tinham contatos com pessoas

de outros viacutenculos religiosos na economia sociedade famiacutelia e poliacutetica Os seguidores de

Jesus tocavam suas vidas de forma paciacutefica com seus vizinhos tentando viver sem

distuacuterbios ou mesmo sem chamar muita atenccedilatildeo

25 A sociedade enquanto foco de tensatildeo

No mesmo periacuteodo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse mas longe de Patmos cerca

de 1600 quilocircmetros um dos liacutederes da igreja de Roma o presbiacutetero Clemente escreveu

uma carta para a igreja de Corinto Clemente romano alcanccedilou grande prestiacutegio em vaacuterias

comunidades cristatildes posteriormente a ponto de sua carta aparecer em diversas listas

canocircnicas O que levou Clemente a se manifestar aparentemente foi algum tipo de tumulto

interno do movimento de Jesus em Corinto Alguns liacutederes da igreja teriam sido destituiacutedos

sem motivo aparente o que gerou o protesto de Clemente Ele escreveu ldquoCariacutessimos eacute

vergonhoso muito vergonhoso e indigno de conduta cristatilde ouvir dizer que a firme e antiga

Igreja de Corinto por causa de uma ou duas pessoas estaacute em revolta contra os seus

presbiacuteterosrdquo (1Clemente 476)

Na saudaccedilatildeo inicial ele descreve a igreja da capital como ldquoestrangeira em Romardquo A

expressatildeo poderia ser indiacutecio de algum tipo de desconforto da comunidade em relaccedilatildeo agrave

sociedade romana Outra passagem de sua carta talvez aponte para a mesma direccedilatildeo

ldquoIrmatildeos pelas desgraccedilas e adversidades imprevistas que nos aconteceram uma apoacutes outra

acreditamos ter demorado muito para dar atenccedilatildeo agraves coisas que entre voacutes se discutemrdquo

(1Clemente 11) O autor faz referecircncia a algum tipo de crise que impediu que ele se

60

manifestasse anteriormente sobre a situaccedilatildeo de Corinto mas ele evita descrever a natureza

desta crise em qualquer outro lugar da obra

Ao sugerir o fim para os conflitos internos da comunidade ele toma o exeacutercito

romano como exemplo de organizaccedilatildeo e ordem

Irmatildeos militemos com toda nossa prontidatildeo sob as ordens irrepreensiacuteveis

dele Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos

governantes com que disciplina docilidade e submissatildeo eles executam as

funccedilotildees que lhes satildeo designadas (1Clemente 371-2)

Ao demonstrar certa admiraccedilatildeo pela estrutura militar do Impeacuterio ou quando

denomina os oficiais romanos de ldquonossos governantesrdquo a carta de Clemente parece

evidenciar que os membros da comunidade de Jesus estabelecida na capital do Impeacuterio natildeo

possuem uma crise aberta com a sociedade Em funccedilatildeo de suas analogias o mesmo poderia

ser dito a respeito da igreja de Corinto Essa parece ser tambeacutem a postura que adotou o autor

anocircnimo de 1Pedro possivelmente entre os anos 90-95164 escrevendo talvez de Roma

ldquoSujeitai-vos a toda instituiccedilatildeo humana por causa do Senhor quer seja ao rei como

soberano quer agraves autoridades como enviadas por ele tanto para castigo dos malfeitores

como para louvor dos que praticam o bemrdquo (1Pedro 213-14)

Alguns argumentos de Clemente (1Clemente 552-3) indicam que a igreja jaacute passou

por dificuldades mas ele minimiza a crise inserindo-a numa exortaccedilatildeo em benefiacutecio do bem

comum O presbiacutetero Clemente natildeo atribui agrave sociedade romana a responsabilidade pelas

dificuldades que a comunidade enfrentou Isso sugere a existecircncia de uma comunidade

estabelecida na capital do Impeacuterio engajada em evitar problemas com a sociedade

experiecircncia essa que parecia estar replicada em comunidades da proviacutencia da Aacutesia

Mas se os membros do movimento de Jesus de uma forma geral tentavam manter

laccedilos regulares com a sociedade romana o inverso tambeacutem poderia ser afirmado Da parte

dos governantes geralmente havia certa toleracircncia para com costumes e mesmo divindades

locais desde que natildeo se opusessem aos interesses romanos Esta atitude de toleracircncia relativa

deve ter favorecido o desenvolvimento das igrejas Muitas comunidades existiram sem

serem notadas por quase um seacuteculo165 Accedilotildees oficiais da parte dos prococircnsules procuradores

ou outros magistrados locais como as noticiadas por Pliacutenio o Jovem ao imperador Trajano

no iniacutecio do segundo seacuteculo eram raras

164 KUumlMMEL op cit p 557-558 165 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 p 124

61

Tensotildees se manifestavam de forma intermitente como perseguiccedilotildees eventuais mas

normalmente natildeo eram oficiais Segundo Thompson para pessoas de fora da comunidade o

movimento de Jesus era uma religiatildeo suspeita por quatro motivos era nova estrangeira

secreta e exclusiva166 Provavelmente foi em consequecircncia de uma suspeiccedilatildeo desta natureza

que cristatildeos foram acusados diante do governador da Bitiacutenia algum tempo depois do

Apocalipse

As cartas de Pliacutenio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusaccedilotildees

predominantemente vagas Natildeo havia um crime especiacutefico para o processo contra os cristatildeos

O governador perguntou ldquoHaacute de punir-se o simples fato de algueacutem ser cristatildeo mesmo que

inocente de qualquer crime ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nomerdquo

(Epistola 10962) Ainda assim na duacutevida sobre o que fazer Pliacutenio inaugurou um teste

Os que negarem ser cristatildeos considerei-os merecedores de absolviccedilatildeo De

fato sob minha pressatildeo devotaram-se aos deuses e reverenciaram com

incenso e libaccedilotildees vossa imagem colocada para este propoacutesito ao lado das

estaacutetuas dos deuses e pormenor particular amaldiccediloaram a Cristo coisa

que um genuiacuteno cristatildeo jamais aceita fazer (Epiacutestola 10965)

A proviacutencia governada por Pliacutenio era vizinha da Aacutesia e fazia parte do complexo

cultural da mesma peniacutensula Ainda que o problema principal natildeo fosse o culto imperial o

gesto do governador colocou o movimento em colisatildeo com atividades religiosas locais As

epiacutestolas do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos entendiam ser crime

renegar ritos sagrados locais especialmente o culto imperial

26 O culto imperial enquanto foco de tensatildeo

Nos termos de Leonard Thompson ldquonas proviacutencias rituais imagens templos altares

associados com o culto imperial contribuiacuteam de forma importante para a compreensatildeo das

pessoas acerca da sua relaccedilatildeo com o imperadorrdquo167 Isso fazia da instituiccedilatildeo do culto imperial

uma importante representaccedilatildeo do imperador e do Impeacuterio na Aacutesia Havia entretanto

reciprocidade no seu estabelecimento Era uma honra para a cidade ter um templo ou altar

do culto imperial ao mesmo tempo que era importante para o imperador Impeacuterio e senado

aceitavam a existecircncia do culto imperial e promoviam seu estabelecimento e manutenccedilatildeo

166 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 132 167 Idem p 158

62

como igualmente o faziam as proviacutencias Isso significa que a rede de relaccedilotildees alimentadas

pelo culto imperial entre Roma e Aacutesia era uma rede de poder um instrumento poliacutetico de

vaacuterios niacuteveis168

Simon Price analisou a presenccedila do culto na Aacutesia insistindo na dificuldade de

circunscrever o papel do culto imperial apenas agraves esferas poliacuteticas Ele tinha igualmente um

papel religioso Segundo ele rituais de sacrifiacutecio e devoccedilatildeo puacuteblica ou privada eram

simultaneamente expressotildees religiosas e poliacuteticas169

O culto imperial natildeo foi criado pelo imperador do periacuteodo do Apocalipse Otaacutevio

Augusto recebeu honras das cidades da Aacutesia semelhantes agraves oferecidas aos deuses locais

Sacerdotes do primeiro imperador poderiam ser encontrados em mais de trinta cidades da

Aacutesia Menor e mais parentes seus receberam culto do que qualquer outro imperador depois

dele Durante o governo de Claacuteudio surgiram ao lado do sacerdote exclusivo para o

imperador vivo outros sacerdotes com a responsabilidade de promover culto tambeacutem para

os imperadores mortos Em funccedilatildeo da antiguidade da praacutetica e sua permanecircncia no decorrer

dos governos imperiais eacute possiacutevel afirmar que Domiciano alvo de uma forte criacutetica no

Apocalipse (Apocalipse 13) natildeo foi nem mais nem menos insistente com relaccedilatildeo agraves suas

prerrogativas divinas que qualquer imperador antes ou depois dele170

Todas as cidades do Apocalipse tinham manifestaccedilatildeo do culto imperial em algum

niacutevel cinco delas tinham altares imperiais (com exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia) seis

tinham templos imperiais (com exceccedilatildeo de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com

exceccedilatildeo de Filadeacutelfia e Laodiceacuteia)171

Aleacutem das praacuteticas e sacrifiacutecios religiosos nos templos e altares dedicados ao

Imperador sacerdotes imperiais promoviam festivais puacuteblicos que eram importantes

expressotildees religiosas e ciacutevicas na Aacutesia Estes festivais poderiam acontecer em diversas datas

mas estavam normalmente vinculados ao aniversaacuterio do Imperador Durante as celebraccedilotildees

os templos e santuaacuterios eram enfeitados e animais eram sacrificados em diversos altares

espalhados pela cidade Em cada local a participaccedilatildeo puacuteblica era aberta e esperada tendo

como cliacutemax uma refeiccedilatildeo ritual172

168 Idem p 159 169 PRICE Simon R F Rituals and Power The Roman imperial cult in Asia Minor Cambridge Cambridge

University Press 1984 p 235 170 THOMPSON Leonard L The Book of Revelationhellip op cit p 159 171 PRICE op cit p 55-58 172 THOMPSON Leonard L The Book of Revelation op cit p 163

63

Dentro dos templos imperiais como nos templos dedicados a outros cultos havia

estaacutetuas do imperador vivo e de outros imperadores alguma iconografia imperial e mesas

para os diversos sacrifiacutecios Estaacutetuas do imperador tambeacutem eram encontradas ao longo das

cidades ou em centros da vida puacuteblica urbana Nem todas as estaacutetuas do imperador

encontradas numa polis eram objeto de culto mas aquelas que estavam em um lugar sagrado

ou quando usadas em um tempo sagrado (um festival religioso por exemplo) tinham um

significado ritual Estas estaacutetuas e imagens tinham sentido religioso e poliacutetico e

funcionavam como um lembrete permanente uma representaccedilatildeo do poder do Imperador173

A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Aacutesia fez com que a

questatildeo do relacionamento com a sociedade se tornasse significativo para o movimento de

Jesus na proviacutencia Era difiacutecil se relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma

de suas celebraccedilotildees puacuteblicas Para alguns liacutederes das igrejas da regiatildeo natildeo havia problema

no envolvimento em atividades proacuteprias da cidade e em comer da comida oriunda dos

sacrifiacutecios religiosos Se participassem destas celebraccedilotildees diminuiriam a tensatildeo com a

sociedade e continuariam envolvidos nos diversos negoacutecios da vida urbana Alguns

entretanto como Joatildeo de Patmos possuiacuteam uma perspectiva distinta Possivelmente ele

representava uma minoria dentro das igrejas da Aacutesia que instava fortemente as comunidades

a exacerbar a tensatildeo com a sociedade e a se isolar das estruturas sociais da peniacutensula174

27 Resumo

A ilha de Patmos de onde partiu o Apocalipse e a proviacutencia romana da Aacutesia seu

destino partilhavam de uma mesma conjuntura social Era uma das regiotildees mais ricas do

Impeacuterio Romano com a presenccedila de comunidades judaicas espalhadas por vaacuterias de suas

cidades Membros destas comunidades que criam em Jesus como o Messias estavam na base

das mais antigas igrejas da regiatildeo Tanto as sinagogas quanto a maioria das igrejas

buscavam desenvolver seus ritos e crenccedilas sem conflito com a sociedade romana local

mesmo diante de tensotildees que poderiam se manifestar em relaccedilatildeo ao culto imperial Alguns

liacutederes buscavam manter orientaccedilotildees que poderiam proceder do apoacutestolo Paulo e assim

permitir a participaccedilatildeo dos membros em atividades ciacutevicas e religiosas locais Essas

173 Idem p 163 174 Idem p 167

64

comunidades natildeo desejavam que suas praacuteticas religiosas inviabilizassem seus

relacionamentos com a sociedade romana Joatildeo de Patmos entretanto manifesta em sua

obra uma postura oposta a liacutederes como seu contemporacircneo Clemente Romano Na

perspectiva do autor do Apocalipse para ser fiel ao seu fundador o movimento de Jesus

precisava rejeitar o Impeacuterio

III ndash HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO APOCALIPSE DE

JOAtildeO

Joatildeo de Patmos judeu emigrante da Palestina apoacutes a guerra contra os romanos por

meio de narrativas imagens e siacutembolos se apropriou de determinadas tradiccedilotildees religiosas

judaicas e construiu um apocalipse que pretendia explicar a conjuntura histoacuterica que o

movimento de Jesus experimentou e experimentava no interior da proviacutencia romana da Aacutesia

A obra culmina na descriccedilatildeo do juiacutezo final e da nova criaccedilatildeo divina Antes disso entretanto

o autor apresenta um periacuteodo de governo messiacircnico iminente terrenal intra-histoacuterico por

mil anos (Apocalipse 201-10) Apesar de curta a narrativa do milecircnio acabaraacute no centro dos

debates e das interpretaccedilotildees subsequentes do livro joanino175 Queremos neste capiacutetulo

analisar a produccedilatildeo desta periacutecope no contexto da obra joanina a partir de suas apropriaccedilotildees

tradicionais e literaacuterias na direccedilatildeo de novas representaccedilotildees individuais e coletivas

histoacutericas e milenaristas Procuramos refletir tambeacutem sobre a forma como estas

representaccedilotildees poderiam interferir no mundo social de Joatildeo e suas comunidades176

31 Estrutura literaacuteria do Apocalipse

Adela Y Collins sugeriu que a obra joanina apesar de apresentar certos sinais que

indicariam uma estrutura clara (sete igrejas sete selos sete trombetas e sete taccedilas por

exemplo) natildeo eacute tatildeo transparente assim deixando a audiecircncia com certa expectativa

frustrada Isso poderia explicar os longos debates a respeito da estrutura da obra de Joatildeo177

Entre as alternativas David L Barr preferiu construir um esboccedilo do livro acompanhando o

desenvolvimento de suas narrativas Por isso ele dividiu o Apocalipse joanino em trecircs seccedilotildees

principais emolduradas por uma estrutura epistolar (os versiacuteculos 11-3 formariam o

prefaacutecio enquanto 226-21 a conclusatildeo) Ele as chamou de Seccedilatildeo das Cartas (14-322)

Seccedilatildeo do Culto Celestial (41-1118) e Seccedilatildeo da Guerra Escatoloacutegica (1119-225)178 Nossa

175 Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene

Wipf and Stock Publishers 2001 p 21-87 KOVACS Judith ROWLAND Christopher C Revelation

Oxford Blackwell Publishing 2004 p 200-219 176 Pensamos aqui nos papeacuteis sociais instituiccedilotildees sociais e relacionamentos sociais 177 Conferir uma histoacuteria da estruturaccedilatildeo do Apocalipse em COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in

the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 13-44 178 BARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa

Polebridge Press 1998

66

proposta de esboccedilo para o Apocalipse parte das sugestotildees de Barr em funccedilatildeo da forma como

ele compreendeu o desenvolvimento narrativo do livro joanino e o enquadramento

particular de cada episoacutedio literaacuterio no interior da obra como um todo Por meio deste esboccedilo

eacute possiacutevel entatildeo verificar o lugar do milecircnio dentro do Apocalipse Em termos literaacuterios ele

faz parte da narrativa da guerra escatoloacutegica ao descrever a vitoacuteria do Jesus exaltado sobre

Satanaacutes e as bestas num evento que termina com o juiacutezo final e a Nova Jerusaleacutem

- Introduccedilatildeo epistolar (11-3)

- Primeira seccedilatildeo ndash O Filho do Homem e as sete igrejas da Aacutesia (14-322)

Carta agrave Igreja em Eacutefeso (21-7)

Carta agrave Igreja em Esmirna (28-11)

Carta agrave Igreja em Peacutergamo (212-17)

Carta agrave Igreja em Tiatira (218-29)

Carta agrave Igreja em Sardes (31-6)

Carta agrave Igreja em Filadeacutelfia (37-13)

Carta agrave Igreja em Laodiceacuteia (314-22)

- Segunda seccedilatildeo ndash O rolo selado com sete selos (41-1119)

O culto ao Anciatildeo no trono (41-11)

O culto ao Cordeiro (51ndash14)

Selo 1 ndash Cavalo branco (61ndash2)

Selo 2 ndash Cavalo vermelho (63ndash4)

Selo 3 ndash Cavalo preto (65-6)

Selo 4 ndash Cavalo amarelo (67-8)

Selo 5 ndash Os maacutertires debaixo do altar (69-11)

Selo 6 ndash Juiacutezo escatoloacutegico (612-17)

Interluacutedio (71-17)

144000 selados (71-8)

Grande multidatildeo (79ndash17)

Selo 7 - Sete trombetas (81ndash1119)

O anjo das oraccedilotildees (81ndash6)

Trombeta 1 ndash Granito e fogo sobre a terra (88-7)

Trombeta 2 ndash Mar se torna em sangue (88-9)

Trombeta 3 ndash Estrelas tornam rios amargos (810-11)

Trombeta 4 ndash Sol lua e estrelas escurecem (812-13)

Trombeta 5 ndash Gafanhotos sobem do abismo (91-12)

Trombeta 6 ndash Quatro anjos e um exeacutercito matam pessoas (913-21)

Interluacutedio (101-1114)

Um livro para ser comido (101-11)

As duas testemunhas (111-14)

Trombeta 7 ndash A chegada do reino de Deus (1115ndash19)

- Terceira seccedilatildeo ndash A guerra escatoloacutegica (121-225)

A origem da guerra (121-18)

Os aliados do Dragatildeo (131-18)

A besta do mar (131-10)

A besta da terra (1311-18)

67

Os 144000 guerreiros do Cordeiro (141-5)

O anuacutencio dos trecircs anjos (146-12)

A bem-aventuranccedila dos mortos (1413)

O juiacutezo como uma ceifa (1414-20)

As sete taccedilas da ira (151-1621)

Os maacutertires diante de Deus (151-8)

Taccedila 1 Dores nos marcados pela besta (161-2)

Taccedila 2 O mar se torna em sangue (163)

Taccedila 3 Os rios se tornam em sangue (164-7)

Taccedila 4 O sol provoca feridas (168-9)

Taccedila 5 Trevas no trono da besta (1610-11)

Taccedila 6 A seca do Rio Eufrates e a coalizatildeo do Dragatildeo (1612-16)

Taccedila 7 Juiacutezo sobre Babilocircnia (1617-21)

A prostituta destruiacuteda (171-18)

Hino fuacutenebre pela queda da Babilocircnia (181-24)

Celebraccedilatildeo no ceacuteu pela queda da Babilocircnia (191-4)

O culto no ceacuteu anuncia as bodas do Cordeiro (195-10)

A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre as bestas (1911-21)

A prisatildeo do Dragatildeo (201-3)

O reino messiacircnico milenar (204-6)

A vitoacuteria do Jesus exaltado sobre o Dragatildeo (207-10)

O juiacutezo final (2011-15)

A Nova Jerusaleacutem (211-225)

- Conclusatildeo epistolar (226-21)

32 Siacutentese do Apocalipse de Joatildeo

Uma das caracteriacutesticas recorrentes nos apocalipses segundo John Collins eacute a

ldquorevelaccedilatildeordquo179 O proacuteprio termo ldquoapocalipserdquo () significa ldquorevelaccedilatildeordquo180 Seus

autores se propotildeem a revelar algo para sua audiecircncia Em linhas amplas estas revelaccedilotildees

poderiam ser divididas em dois eixos um vertical e outro horizontal

No eixo horizontal os autores queriam revelar o passado e o futuro O foco varia de

texto a texto com algumas obras com ecircnfase no passado ao descreverem os primoacuterdios da

histoacuteria da humanidade o iniacutecio da saga do povo de Deus ou mesmo uma descriccedilatildeo

cosmogocircnica sobre como as coisas vieram a ser o que satildeo no seu presente momento Quando

o foco estava no futuro os autores pretendiam descrever a intervenccedilatildeo final de Deus que

promoveria uma inversatildeo escatoloacutegica com todas as suas consequecircncias (cataclismos

coacutesmicos e juiacutezo sobre os inimigos de um lado nova criaccedilatildeo e recompensa para os membros

179 COLLINS John J Introduction towards the morphology of a genre Semeia Atlanta n 14 p 1-19 1979

p 9 180 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 66

68

do grupo do outro) Nesta perspectiva haacute a construccedilatildeo de um esquema teleoloacutegico da

histoacuteria no qual um fim glorioso resolveria a violecircncia e os traumas do passado e do presente

da comunidade destinataacuteria do apocalipse em questatildeo

No eixo vertical uma obra apocaliacuteptica se propotildee a revelar o que estaacute para aleacutem do

mundo humano o que estaacute acima e o que estaacute abaixo os ceacuteus e os submundos bem como

as coisas e seres que existem nestes espaccedilos Haacute aqui uma preocupaccedilatildeo em entender como

o universo funciona como o mundo sobrenatural interfere no mundo dos seres humanos e

na natureza e como controlar ou pelo menos ter acesso a essas realidades sobrenaturais

O Apocalipse de Joatildeo como outros apocalipses antes dele e depois dele tambeacutem

possui essas preocupaccedilotildees horizontais e verticais Como as revelaccedilotildees apocaliacutepticas satildeo

transmitidas no formato de narrativas o conteuacutedo do livro do profeta de Patmos estaacute

apresentado no interior de trecircs histoacuterias distintas mas inter-relacionadas181 A primeira

histoacuteria a ser narrada eacute a do aparecimento do Filho do Homem que promove o ditado de sete

cartas para um grupo de igrejas da Aacutesia romana Nestas cartas a figura celestial conhecida

das tradiccedilotildees de Daniel182 e 1Enoque183 faz ameaccedilas elogios e promessas e termina cada

carta com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores As mensagens

das cartas giram em torno de distuacuterbios entre os proacuteprios membros do movimento de Jesus

por causa das diferentes posturas de relacionamento com a sociedade romana em cada

contexto local184

Na segunda seccedilatildeo do livro o narrador das revelaccedilotildees eacute levado em espiacuterito (ldquoἐν

πνεύματιrdquo) por uma porta aberta no ceacuteu Neste lugar ele presencia uma sucessatildeo de atos

lituacutergicos e eacute apresentado aos principais personagens celestiais o Anciatildeo sobre o trono os

Quatro Viventes os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais e vaacuterios seres angelicais A figura

181 Interpretamos as narrativas do Apocalipse agrave luz do contexto em que ele foi composto Isso significa que as

analogias que constroacutei as imagens que utiliza os siacutembolos recorrentes na obra seratildeo compreendidos como

referecircncia a eventos histoacutericos do seu tempo ou como elementos escatoloacutegicos proacuteprios ao movimento de

Jesus no final do seacuteculo I especialmente no contexto da regiatildeo Aacutesia-Siacuteria-Palestina Cf COLLINS Adela

Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E J Brill 1996 p 198

Diversas outras formas de interpretar o mesmo conteuacutedo satildeo resumidas e analisadas em WAINWRIGHT op

cit 182 Daniel 7 narra a sucessatildeo de reinos e governos na forma de quatro animais mitoloacutegicos No interior desta

revisatildeo histoacuterica apocaliacuteptica o texto descreve a figura do Anciatildeo celestial e o Filho do Homem que o

representa Cf COLLINS John J Daniel with in introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William

B Eerdmans Publishing Company 1984 p 83 183 Em 1Enoque 7114-17 Enoque ascende aos ceacuteus onde encontra o proacuteprio Deus Ali o patriarca recebe a

informaccedilatildeo que ele eacute realmente o Filho do Homem figura que teria um papel significativo na salvaccedilatildeo

escatoloacutegica dos eleitos de Deus Cf OLSON Daniel C Enoch and the Son of Man in the Epilogue of the

Parables Journal for the Study of the Pseudepigrapha Thousand Oaks n 18 p 27-38 1998 184 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 p 58

69

fundamental entretanto eacute descrita como o Cordeiro (ἀρνίον) Eacute ele que recebe um rolo selado

com sete selos estrateacutegia simboacutelica para interpretar eventos e fenocircmenos histoacutericos A cada

selo corresponde uma revelaccedilatildeo ateacute o seacutetimo que por sua vez se desdobra em outro grupo

de sete elementos desta vez sete trombetas Como os selos cada trombeta estaacute relacionada

com um evento numa escala crescente de intensidade que culmina com a audiccedilatildeo de um

hino que comemora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuaacuterio celestial

A terceira parte do livro conta a histoacuteria de uma guerra que comeccedila quando uma

figura demoniacuteaca o Dragatildeo vermelho fracassa no seu propoacutesito de destruir uma crianccedila e

sua matildee sendo por isso expulso do ceacuteu para a terra Sua reaccedilatildeo eacute instaurar uma guerra contra

outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas Em contrapartida o

Cordeiro reuacutene seu exeacutercito convocando 144000 guerreiros dispostos a lutar ateacute a morte O

confronto resulta no nuacutemero determinado de maacutertires necessaacuterios para instaurar a

intervenccedilatildeo escatoloacutegica de Deus na forma de sete taccedilas de ira Apoacutes o derramamento das

taccedilas Jesus agora como um cavaleiro celestial desce do ceacuteu com uma hoste de anjos para

derrotar o Dragatildeo e seus aliados Num primeiro ato as bestas satildeo lanccediladas num lago de fogo

todo o exeacutercito adversaacuterio eacute morto e o Dragatildeo eacute aprisionado por mil anos O segundo ato

coloca fim agrave guerra quando o Dragatildeo eacute novamente solto somente para ser vencido e lanccedilado

no mesmo espaccedilo de juiacutezo onde jaacute estavam as duas bestas Entre os dois atos a narrativa

apresenta o reino messiacircnico com a participaccedilatildeo da figura exaltada de Jesus e os maacutertires

ressuscitados agora como reis e sacerdotes de Deus Com o fim do milecircnio e da guerra

escatoloacutegica o autor do Apocalipse descreve o fim da histoacuteria marcada pelo juiacutezo final e a

chegada da Nova Jerusaleacutem

33 O contexto narrativo do reino milenar

A sequecircncia narrativa e temporal da terceira seccedilatildeo (Apocalipse 121-225) natildeo eacute

linear Haacute muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como repeticcedilotildees ou incidentes

similares Existe um iacutentimo paralelo entre a sequecircncia das taccedilas (Apocalipse 161-21) e a

sequecircncia das trombetas (Apocalipse 88-1119) bem como vaacuterias cenas que parecem

interromper o fio narrativo Normalmente estas interrupccedilotildees funcionam para apresentar uma

interpretaccedilatildeo de algum aspecto da narrativa Mesmo assim ainda existe um sentido de

movimento para frente O primeiro episoacutedio apresenta o nascimento de uma crianccedila descrita

70

em termos messiacircnicos (Apocalipse 125) o que parece ser alusatildeo ao nascimento de Jesus

nove deacutecadas antes do Apocalipse surgir em Patmos e termina com o juiacutezo final e a

restauraccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo agora descrita como a Nova Jerusaleacutem A primeira cena estaacute

no passado da audiecircncia do Apocalipse e a uacuteltima estaacute no futuro Isso parece evidenciar o

desenvolvimento de uma narraccedilatildeo contiacutenua com princiacutepio meio e fim nos moldes dos

chamados apocalipses histoacutericos da tipologia de John Collins185

Em Apocalipse 121-18 Joatildeo narra uma guerra no ceacuteu e a expulsatildeo do Dragatildeo para

a terra Este tenta destruir a crianccedila messiacircnica mas falha no momento em que ela eacute

arrebatada para o ceacuteu Diante disto o Dragatildeo procura destruir a Mulher que eacute protegida no

deserto Depois de fracassar na perseguiccedilatildeo da Mulher o Dragatildeo parte para a perseguiccedilatildeo

dos outros filhos da Mulher (σπέρματος αὐτῆς) aqueles que ldquoguardam os mandamentos de

Deus e sustentam o testemunho de Jesusrdquo (ldquoτῶν τηρούντων τὰς ἐντολὰς τοῦ θεοῦ καὶ ἐχόντων

τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦrdquo) Tal descriccedilatildeo pretendia explicar para sua audiecircncia que uma iminente

perseguiccedilatildeo das igrejas teria como causa um conflito fora do mundo humano que envolveu

o fracasso de Satanaacutes em destruir Jesus e sua consequente expulsatildeo para a terra186

Um proacuteximo estaacutegio na narrativa apresenta os aliados do Dragatildeo duas bestas (qhria)

descritas em termos que apontavam para o Impeacuterio Romano e suas estruturas na proviacutencia

da Aacutesia como agentes demoniacuteacos187 Com esta estrateacutegia o profeta de Patmos queria indicar

que uma guerra coacutesmica jaacute comeccedilara e o conflito iria se acentuar enormemente mas em

breve Deus iria intervir nos acontecimentos por meio de Jesus Para o Apocalipse as igrejas

da Aacutesia e seus membros se encontravam no meio da luta depois do levantamento das bestas

mas antes que elas instaurassem a perseguiccedilatildeo generalizada

O estaacutegio seguinte da guerra pode ser denominado de ldquoresposta do Cordeirordquo Este

comeccedila sua reaccedilatildeo com a reuniatildeo de um exeacutercito de oposiccedilatildeo sobre o monte Siatildeo

(Apocalipse 141-5) provavelmente uma descriccedilatildeo dos seguidores de Jesus logo

martirizados Como resultado dessas mortes completa-se o nuacutemero dos maacutertires

185 Segundo Collins haacute tipos diferentes de apocalipses Uns como Daniel 7-12 4Esdras e 2Baruque focam

em descriccedilotildees histoacutericas e descrevem julgamentos coacutesmicos Outros como 2Enoque ou 3Baruque se

concentram em viagens celestiais e revelaccedilotildees sobre a realidade da alma apoacutes a morte O Apocalipse de Joatildeo

enfatiza o autor eacute um apocalipse de tipo misto que apesar de apresentar algum tipo de revelaccedilatildeo de mundo

sobrenatural se concentra na reflexatildeo histoacuterica Cf COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura

apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 4 COLLINS John J

Introductionhellip op cit p 13 186 HENTEN Jan Willem Dragon Myth and Imperial Ideology in Revelation 12-13 In BARR David L (ed)

The Reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical

Literature 2006 p 181-203 p 202 187 COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation op cit p 232

71

mencionados no quinto selo (Apocalipse 69-11) dando iniacutecio agraves sete pragas finais sobre a

terra na forma de sete taccedilas O cliacutemax das taccedilas de julgamento estaacute na descriccedilatildeo da queda da

Babilocircnia caracterizaccedilatildeo simboacutelica de Roma

Finalmente chega a fase final da guerra O cavaleiro celestial aparece do ceacuteu e

alcanccedila vitoacuteria sobre as bestas Um anjo desce do ceacuteu e prende o Dragatildeo Um periacuteodo

interino de paz por mil anos eacute estabelecido durante o qual os martirizados retornam agrave vida

como juiacutezes reis e sacerdotes de Cristo Apoacutes o milecircnio Satatilde eacute novamente libertado Ele

reuacutene um exeacutercito demoniacuteaco mas eacute derrotado definitivamente

34 O episoacutedio do reino milenar

Texto Grego188 Traduccedilatildeo proacutepria 1 Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ

οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ

ἅλυσιν μεγάλην ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ

1 E vi um anjo189 descendo do ceacuteu tendo a

chave do abismo190 e uma grande corrente

em suas matildeos 2 καὶ ἐκράτησεν τὸν δράκοντα ὁ ὄφις ὁ

ἀρχαῖος ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς

καὶ ἔδησεν αὐτὸν χίλια ἔτη191

2 E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente

que eacute o Diabo e Satanaacutes192 aprisionando-o

por mil anos 3 καὶ ἔβαλεν αὐτὸν εἰς τὴν ἄβυσσον καὶ

ἔκλεισεν καὶ ἐσφράγισεν ἐπάνω αὐτοῦ ἵνα

μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ

χίλια ἔτη μετὰ ταῦτα δεῖ λυθῆναι αὐτὸν

μικρὸν χρόνον

3 E lanccedilou-o para o abismo fechou e selou

o abismo para que natildeo engane mais as

naccedilotildees ateacute que se complete os mil anos

Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele

seja solto por pouco tempo 4 Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽

αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς καὶ τὰς

ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν

4 E vi tronos e sentaram neles e

[autoridade de] julgamento foi dada a

eles193 tambeacutem as almas dos

188 ALAND Kurt et all The Greek New Testament 4 ed rev London United Bible Society 2008 p 737-

738 O texto grego apresenta muitas dificuldades em funccedilatildeo de deficiecircncias e imprecisotildees sintaacuteticas Faltam

sujeitos haacute um acusativo solto um nominativo no lugar de um acusativo um pronome relativo que poderia

natildeo ter viacutenculos com seu antecedente mais oacutebvio A traduccedilatildeo proposta reflete uma tentativa de ordenaccedilatildeo Cf

MILLOS Samuel Peacuterez Apocalipsis comentario exegeacutetico al texto griego del Nuevo Testamento Barcelona

Editorial Clie 2010 p 1213 189 A expressatildeo aparece indefinida ldquoum anjordquo Natildeo haacute qualquer ecircnfase ou destaque no papel do anjo que prende

Satatilde Todo o destaque da narrativa vai para o Cristo que reina e os martirizados ressuscitados Cf POHL

Adolf Apocalipse de Joatildeo Curitiba Editora Evangeacutelica Esperanccedila 2001 2v V II p 221 190 O abismo natildeo eacute idecircntico ao lago de fogo e parece ser referecircncia agrave morada dos seres demoniacuteacos Cf

PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 363 191 A expressatildeo ldquoχίλια ἔτηrdquo soacute aparece no Novo Testamento nesta passagem do Apocalipse e em 2Pedro 38 192 Todos os tiacutetulos aqui mencionados apareceram antes nos episoacutedios do confronto entre o Dragatildeo e a Mulher

e o Dragatildeo e Miguel em Apocalipse 12 Laacute Satatilde foi lanccedilado para a terra Aqui ele eacute jogado no abismo Cf

FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991 p

107 193 Literalmente ldquoe julgamento foi dado a elesrdquo Pode significar que finalmente um julgamento terminou em

favor dos maacutertires ou como aqui optamos que o julgamento foi confiado a eles ou seja a autoridade para

exercer o juiacutezo Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 365

72

μαρτυρίαν Ἰησοῦ καὶ διὰ τὸν λόγον τοῦ

θεοῦ καὶ οἵτινες οὐ προσεκύνησαν τὸ

θηρίον οὐδὲ τὴν εἰκόνα αὐτοῦ καὶ οὐκ

ἔλαβον τὸ χάραγμα ἐπὶ τὸ μέτωπον καὶ ἐπὶ

τὴν χεῖρα αὐτῶν καὶ ἔζησαν καὶ

ἐβασίλευσαν μετὰ τοῦ Χριστοῦ χίλια ἔτη

decapitados194 por causa do testemunho de

Jesus e da palavra de Deus e todos195 que

natildeo adoraram a besta nem sua imagem e

natildeo receberam a marca dela na fronte e na

matildeo Viveram e reinaram com Cristo por

mil anos 5 οἱ λοιποὶ τῶν νεκρῶν οὐκ ἔζησαν ἄχρι

τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη αὕτη ἡ ἀνάστασις ἡ

πρώτη

5 Os demais mortos natildeo viveram ateacute que

terminasse os mil anos Esta eacute a primeira

ressurreiccedilatildeo196 6 μακάριος καὶ ἅγιος ὁ ἔχων μέρος ἐν τῇ

ἀναστάσει τῇ πρώτῃmiddot ἐπὶ τούτων ὁ

δεύτερος θάνατος οὐκ ἔχει ἐξουσίαν ἀλλ᾽

ἔσονται ἱερεῖς τοῦ θεοῦ καὶ τοῦ Χριστοῦ

καὶ βασιλεύσουσιν μετ᾽ αὐτοῦ [τὰ] χίλια

ἔτη

6 Bendito e santo o que tem parte na

primeira ressurreiccedilatildeo Sobre estes a

segunda morte197 natildeo tem poder poreacutem

seratildeo sacerdotes de Deus e de Cristo e

reinaratildeo com ele por mil anos

7 Καὶ ὅταν τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη λυθήσεται

ὁ Σατανᾶς ἐκ τῆς φυλακῆς αὐτοῦ

7 E quando concluir os mil anos seraacute solto

Satanaacutes da sua prisatildeo 8 καὶ ἐξελεύσεται πλανῆσαι τὰ ἔθνη τὰ ἐν

ταῖς τέσσαρσιν γωνίαις τῆς γῆς τὸν Γὼγ

καὶ Μαγώγ συναγαγεῖν αὐτοὺς εἰς τὸν

πόλεμον ὧν ὁ ἀριθμὸς αὐτῶν ὡς ἡ ἄμμος

τῆς θαλάσσης

8 E viraacute a enganar as naccedilotildees198 que estatildeo

nos quatro cantos da terra Gog e Magog199

e reuni-las para a guerra das quais o

nuacutemero eacute como a areia do mar

9 καὶ ἀνέβησαν ἐπὶ τὸ πλάτος τῆς γῆς καὶ

ἐκύκλευσαν τὴν παρεμβολὴν τῶν ἁγίων

9 E subiram200 entatildeo pela superfiacutecie da terra

e cercaram o acampamento dos santos e a

194 Literalmente ldquodegolados por um machadordquo Termo arcaizante jaacute que este tipo de supliacutecio usado na

Repuacuteblica Romana natildeo era comum nos tempos do Impeacuterio Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p

366 195 Alguns autores argumentam que o pronome relativo οἵτινες daria margem para dois grupos de exaltados (os

ressuscitados e os que natildeo adoraram a besta) Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 366-367

Acompanhamos entretanto o argumento de David Aune que entende a claacuteusula relativa como uma descriccedilatildeo

de um uacutenico grupo os martirizados A expressatildeo fornece as causas positivas para o martiacuterio (testemunho de

Jesus e da Palavra de Deus) e as negativas (natildeo adoraram a besta e natildeo receberam sua marca) Cf AUNE

David E Revelation 17-22 op cit p 1088-1089 196 Segundo este episoacutedio do Apocalipse apenas os maacutertires participam da primeira ressurreiccedilatildeo O livro de

Daniel localizou a ressurreiccedilatildeo dos mortos no iniacutecio do reino messiacircnico 4Esdras e 2Baruque a localizam no

final Aparentemente o Apocalipse harmonizou duas tradiccedilotildees diferentes afirmando duas ressurreiccedilotildees uma

no iniacutecio do reino milenar outra no final Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1090-1091 197 Segundo Aune a expressatildeo ldquosegunda morterdquo pode significar a exclusatildeo da ressurreiccedilatildeo do final dos tempos

ou a eterna danaccedilatildeo Ele sugere a segunda opccedilatildeo como mais plausiacutevel neste contexto da narrativa do

Apocalipse Cf AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1093 198 As naccedilotildees aqui seduzidas oriundas dos quatro cantos da terra que precisam subir pela superfiacutecie para cercar

o acampamento dos santos parecem aludir a um exeacutercito de seres demoniacuteacos que estavam no submundo com

Satatilde Cf FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 106 POHL op cit p 236 199 Alusatildeo a Ezequiel 38-39 que vaticinou um ataque de naccedilotildees hostis aos habitantes da Palestina nos uacuteltimos

dias No Apocalipse entretanto Gog e Magog natildeo satildeo descriccedilotildees de povos ou naccedilotildees mas referecircncia

metafoacuterica ao exeacutercito demoniacuteaco de oposiccedilatildeo final Cf POHL op cit p 237 200 Haacute nos versiacuteculos 9 e 10 uma curiosa inconsistecircncia verbal Os verbos que descrevem a prisatildeo inicial de

Satatilde estatildeo no aoristo indicativo traduzidos normalmente pelo preteacuterito A partir do versiacuteculo 7 as claacuteusulas

temporais passam para o futuro (ldquoenganaraacute as naccedilotildeesrdquo ldquoreuniraacute para a guerrardquo) mas retornam para o aoristo

no relato do confronto final (ldquosubiram pela superfiacutecierdquo ldquocercaram o acampamentordquo ldquodesceu fogordquo etc)

Possivelmente isto tenha origem na jaacute mencionada desordenaccedilatildeo gramatical da passagem Cf MILLOS op

cit p 1213

73

καὶ τὴν πόλιν τὴν ἠγαπημένην καὶ κατέβη

πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e os

queimou 10 καὶ ὁ διάβολος ὁ πλανῶν αὐτοὺς ἐβλήθη

εἰς τὴν λίμνην τοῦ πυρὸς καὶ θείου ὅπου

καὶ τὸ θηρίον καὶ ὁ ψευδοπροφήτης καὶ

βασανισθήσονται ἡμέρας καὶ νυκτὸς εἰς

τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων

10 E o diabo o enganador deles foi jogado

para o lago201 de fogo e enxofre onde

tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta e

seratildeo atormentados dia e noite para todo o

sempre

O episoacutedio do milecircnio pode ser dividido em trecircs partes a prisatildeo do Dragatildeo

(versiacuteculos 1-3) os maacutertires ressuscitados (versiacuteculos 4-6) a condenaccedilatildeo do Dragatildeo

(versiacuteculos 7-10) Satildeo trecircs partes contudo apenas duas histoacuterias que se unem pela expressatildeo

temporal ldquomil anosrdquo (χίλια ἔτη) aqui narradas como parte da revelaccedilatildeo vertical ou seja

eventos que ocorreratildeo no futuro em relaccedilatildeo ao tempo da audiecircncia A narrativa do juiacutezo

sobre Satanaacutes segue do versiacuteculo 1 ao 3 e eacute retomada nos versiacuteculos 7-10 No meio dela estaacute

a narraccedilatildeo do reinado dos maacutertires202 Se narrada de forma linear sem a interrupccedilatildeo este

seria o episoacutedio da prisatildeo e destruiccedilatildeo do Dragatildeo

E vi um anjo descendo do ceacuteu tendo a chave do abismo e uma grande

corrente em suas matildeos E prendeu o Dragatildeo a antiga serpente que eacute o

Diabo e Satanaacutes aprisionou-o por mil anos E lanccedilou-o para o abismo

fechou e selou o abismo para que natildeo enganasse mais as naccedilotildees ateacute que se

completasse os mil anos Depois destas coisas eacute necessaacuterio que ele seja

solto por pouco tempo E quando concluir os mil anos Satanaacutes seraacute solto

da sua prisatildeo E viraacute a enganar as naccedilotildees que estatildeo nos quatro cantos da

terra Gog e Magog e reuni-las para a guerra das quais o nuacutemero eacute como

a areia do mar E subiram entatildeo pela superfiacutecie da terra e cercaram o

acampamento dos santos e a cidade amada Mas desceu fogo do ceacuteu e as

queimou E o diabo o enganador delas foi jogado para o lago de fogo e

enxofre onde tambeacutem estatildeo o animal e o falso profeta E seratildeo

atormentados dia e noite para todo o sempre

A prisatildeo e condenaccedilatildeo de Satanaacutes concluem a cena da vitoacuteria de Jesus sobre seus

adversaacuterios que aparece em Apocalipse 1911 como um cavaleiro montado sobre um cavalo

branco Aparentemente toda a seccedilatildeo posterior ao aparecimento do Jesus exaltado estaacute

estruturada segundo um esquema encontrado em Ezequiel203 Eacute possiacutevel relacionar por

201 O termo λίμνην pode significar lago tanque ou neste caso especiacutefico charco pacircntano ou lodaccedilal A

expressatildeo λίμνην τοῦ πυρὸς parece fazer referecircncia ao lugar conhecido como geena descrita em Mateus 522

como geenan tou puroj Era um vale que se estendia para fora da muralha sul de Jerusaleacutem conhecido tambeacutem

como Vale de Hinom local que servia nos tempos de Jesus como depoacutesito de lixo O portatildeo para o vale chegava

a ser chamado de Portatildeo do Esterco O lixo era constantemente incendiado fazendo do vale um espaccedilo de

fumaccedila e fedor Alguns judeus o tinham como o lugar mais asqueroso do mundo Daiacute a relaccedilatildeo com a descriccedilatildeo

do sofrimento escatoloacutegico ser feita com traccedilos do Vale de Hinom Cf POHL op cit p 219 202 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 107 203 ULFGARD Hakan Biblical and para-biblical origins of millennarianism Religiologiques Montreal n 20

p 25-49 1999 p 34

74

exemplo a ressurreiccedilatildeo dos maacutertires com o levantamento dos ossos secos de Ezequiel 37 o

confronto final de Satanaacutes com o ataque de Gog de Magog (Ezequiel 38)204 a nova

Jerusaleacutem de Apocalipse com o novo templo e a nova cidade de Ezequiel 40-48205

No interior desta longa cena de conquista dos adversaacuterios Satanaacutes eacute aprisionado

provisoriamente A noccedilatildeo de uma prisatildeo temporaacuteria para seres sobrenaturais natildeo era

desconhecida do Judaiacutesmo antigo O autor do Mito dos Vigilantes (1Enoque 1-36) em algum

momento do seacuteculo II antes da Era Comum apoacutes descrever a transgressatildeo dos vigilantes

celestiais narra o destino deles em duas versotildees Em 1Enoque 104-6

- Deus envia o anjo Rafael

- Azazel eacute amarrado por um anjo

- Azazel eacute lanccedilado na escuridatildeo e aprisionado para sempre

- o tempo do aprisionamento eacute descrito como o grande dia do julgamento

- Azazel eacute lanccedilado no fogo no grande dia do julgamento

Logo depois outra versatildeo do juiacutezo eacute narrada em 1Enoque 1011-13

- Deus envia o anjo Miguel

- o anjo amarra Semjaza e seus associados

- eles satildeo aprisionados sob a terra

- o periacuteodo de prisatildeo eacute limitado a 70 geraccedilotildees

- no dia do julgamento eles seratildeo lanccedilados no abismo de fogo

Esta narrativa dupla parece ser o resultado da fusatildeo de tradiccedilotildees que vinculavam a

presenccedila dos males no mundo a seres demoniacuteacos que receberam de Deus uma dupla

sentenccedila o aprisionamento em alguma regiatildeo do cosmos e a destruiccedilatildeo no final dos tempos

Nestas tradiccedilotildees judaicas os adversaacuterios sobrenaturais possuem nomes diferentes mas satildeo

condenados igualmente agrave prisatildeo enquanto aguardam a destruiccedilatildeo final (Jubileus 56 107-

11 2Enoque 72 2Apocalipse de Baruque 5613 Judas 6)

David Aune sugeriu que a base comum a essas tradiccedilotildees poderia ser uma releitura de

Isaias 2421-22 ldquoNaquele dia o Senhor castigaraacute no ceacuteu as hostes celestes e os reis da

terra na terra Seratildeo ajuntados como presos em masmorra e encerrados num caacutercere e

204 A passagem de Ezequiel 382 fala do rei Gog da terra de Magog Apocalipse entretanto nivelou as duas

expressotildees como se fossem dois reis ou dois povos Gog e Magog Esta apropriaccedilatildeo joanina do texto de

Ezequiel parece refletir a expectativa presente em alguns apocalipses antigos que o povo de Deus seria atacado

por um ajuntamento de forccedilas inimigas no final dos tempos Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p

371 205 Cf tambeacutem PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 350 POHL op cit p 235

75

castigados depois de muitos diasrdquo206 Na adaptaccedilatildeo joanina entretanto a histoacuteria do

aprisionamento dos seres demoniacuteacos aparece secionada em duas partes pois entre elas o

Apocalipse apresentou o reinado dos maacutertires exaltados (versiacuteculos 4-6)

Estes maacutertires aparecem em diversas passagens do Apocalipse Uma das mais

significativas eacute a cena do quinto selo (Apocalipse 69-11) Debaixo do altar estatildeo pessoas

que morreram por causa da palavra de Deus e do testemunho () Elas querem saber

quando eacute que o seu sangue seraacute vingado por Deus Como resposta ouvem uma espeacutecie de

enigma apocaliacuteptico ldquofoi-lhes dito que repousassem por mais um pouco de tempo ateacute que

se completasse o nuacutemero de seus companheiros e irmatildeos que iriam ser mortos como eles

foramrdquo (Apocalipse 611) O autor do Apocalipse argumenta que Deus vai trazer justiccedila

sobre todos os que mataram seus seguidores poreacutem antes eacute preciso que se complete uma

determinada cota de disciacutepulos que deveratildeo morrer O juiacutezo viraacute quando um nuacutemero

especiacutefico de pessoas tiver morrido da mesma forma como aqueles que jaacute estatildeo debaixo do

altar o foram

Joatildeo promete que estes maacutertires seratildeo recompensados por Deus mais do que os outros

disciacutepulos de Jesus Afinal somente eles ressuscitariam para reinar com Jesus na terra207

Esta expectativa jaacute aparecera bem no iniacutecio da segunda seccedilatildeo Quando o Cordeiro pegou o

livro selado os Vinte e Quatro Presbiacuteteros Celestiais cantaram a canccedilatildeo ldquoDigno eacutes de tomar

o livro e de abrir-lhe os selos porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus

os que procedem de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e para o nosso Deus os constituiacuteste reino

e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo (Apocalipse 59-10) Na narrativa do Apocalipse o

milecircnio seria o cumprimento deste hino cantado no ceacuteu por figuras sobrenaturais

Segundo Aune a cena dos tronos em contexto escatoloacutegico eacute uma cena tiacutepica de

julgamento apesar de estar em estado fragmentaacuterio Afinal os maacutertires sentam em tronos

mas nenhum julgamento eacute descrito neste contexto Eles sentam para julgar todavia o

julgamento natildeo ocorre Tambeacutem natildeo haacute a identificaccedilatildeo de quem seraacute julgado Isso daacute agrave cena

o papel de exaltaccedilatildeo dos maacutertires em vez da descriccedilatildeo de algum ofiacutecio escatoloacutegico208

Neste mesmo sentido Fiorenza argumenta que Joatildeo descreve o reinado interino dos

maacutertires para garantir agrave sua audiecircncia que aqueles que morressem durante o confronto contra

as forccedilas romanas seriam exaltados no futuro como co-governantes com Cristo209 Ao indicar

206 AUNE David E Revelation 17-22 op cit p 1078 207 Idem p 1084 208 Idem p 1085 209 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelationhellip op cit p 109

76

que os maacutertires receberatildeo um tipo de recompensa especial diferente de todos os outros a

cena dos maacutertires no trono desejava incentivar a participaccedilatildeo no martiacuterio

Para Joatildeo mais do que reis os maacutertires seriam juiacutezes e sacerdotes O episoacutedio do

milecircnio entretanto natildeo menciona a identidade de quem serviraacute aos reis de quem seraacute

julgado pelos juiacutezes ou de quem seraacute ministrado pelos sacerdotes Natildeo haacute ningueacutem para ser

condenado oprimido ou orientado porque segundo o profeta de Patmos todos os que

voltarem agrave vida no reino milenar seratildeo reis juiacutezes e sacerdotes

O milecircnio entatildeo como descrito pelo Apocalipse parece ser a junccedilatildeo de dois

episoacutedios nos quais a ecircnfase de um estaacute na destruiccedilatildeo dos inimigos de Deus e do outro na

exaltaccedilatildeo dos maacutertires

35 O reinado messiacircnico interino na terra

Aleacutem do Apocalipse duas outras obras judaicas igualmente produzidas no final do

seacuteculo I apresentam a expectativa de um reino messiacircnico provisoacuterio na terra 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque A primeira210 registrou

Pois eis que viraacute o tempo em que os sinais que tenho predito para vocecirc

aconteceratildeo a cidade que agora natildeo eacute vista apareceraacute e a terra que agora

estaacute escondida seraacute revelada E todo aquele que for libertado dos males que

eu anunciei veraacute as minhas maravilhas Porque meu filho o Messias seraacute

revelado junto com aqueles que estatildeo com ele e estes que permanecerem

regozijar-se-atildeo por quatrocentos anos E depois desses anos meu filho o

Messias morreraacute e todos os seres humanos E o mundo voltaraacute ao silecircncio

primordial por sete dias como foi nos primoacuterdios de modo que ningueacutem

seraacute deixado E depois de sete dias o mundo que ainda dormia seraacute

despertado e o que for corruptiacutevel pereceraacute (4Esdras 72631)211

Posteriormente a narrativa eacute complementada em 4Esdras 1232-34

[] este eacute o Messias que o Altiacutessimo guardou ateacute o fim dos dias que surgiraacute

da posteridade de Davi e viraacute e falaraacute para eles ele os denunciaraacute por seus

erros e por suas maldades e lanccedilaratildeo diante dele seus desprezos

Primeiramente ele os traraacute para julgamento diante de seu tribunal e

quando forem reprovados entatildeo ele os destruiraacute Mas ele livraraacute com

misericoacuterdia o remanescente do meu povo aqueles que estiverem salvos

210 4Esdras foi escrito em algum lugar da Palestina no periacuteodo posterior agrave guerra judaico-romana (66-70) Cf

COLLINS John J A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica uma introduccedilatildeo agrave literatura apocaliacuteptica judaica Satildeo Paulo

Paulus 2010 p 281 211 As citaccedilotildees de 4Esdras vem de METZGER B M The Fourth Book of Ezra In CHARLESWORTH

James H The Old Testament Pseudepigrapha New York Doubleday and Company Inc 1983 2v V 1 p

517-559

77

do meu lado ele os tornaraacute alegres ateacute o fim o dia do juiacutezo do qual falei

com vocecirc no iniacutecio

A outra obra 2Apocalipse de Baruque surgiu na mesma conjuntura posterior agrave

guerra na Judeacuteia possivelmente tambeacutem originada na Palestina Seu autor anocircnimo tratou

do futuro periacuteodo messiacircnico nos capiacutetulos 29-30 Segue o texto

Ele falou-me O que vai acontecer atingiraacute toda a terra dessa forma

experimentaacute-lo-atildeo todos os que estiverem em vida Mas naquele tempo eu

protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste paiacutes Uma

vez cumprido aquilo que deve acontecer nos periacuteodos do tempo o Messias

comeccedilaraacute a sua revelaccedilatildeo Tambeacutem Behemoth viraacute dos seus domiacutenios e

Leviatatilde se levantaraacute do mar os dois imensos monstros marinhos por mim

criados no quinto dia da Criaccedilatildeo e que reservo para aqueles dias eles

serviratildeo de alimento para todos os que sobreviverem Entatildeo a terra

produziraacute os seus frutos ao cecircntuplo numa cepa de videira haveraacute mil

ramos um ramo carregaraacute mil racimos e um racimo mil bagos e um bago

daraacute ateacute quarenta litros de vinho Os que sofreram fome comeratildeo

regiamente e a cada dia lhes estatildeo reservadas novas maravilhas Pois de

mim procederatildeo ventos que traratildeo todas as manhatildes o perfume de frutos

saborosos e faratildeo gotejar ao final do dia o orvalho salviacutefico Do alto cairaacute

de novo grande quantidade de manaacute dele comeratildeo eles naqueles anos por

haverem participado do final dos tempos Terminado o tempo vigente do

Messias ele voltaraacute de novo agrave gloacuteria do ceacuteu Entatildeo haveratildeo de ressuscitar

todos aqueles que outrora adormeceram na sua esperanccedila Naquele tempo

aconteceraacute que se abriratildeo as cacircmaras onde se demoram as almas dos

piedosos elas sairatildeo e todas essas numerosas almas como legiatildeo de um

soacute coraccedilatildeo apareceratildeo todas juntas abertamente As que foram as

primeiras alegrar-se-atildeo as que foram as uacuteltimas natildeo estaratildeo tristes Cada

uma delas sabe que foi chegado o tempo previsto como o fim de todos os

tempos As almas dos pecadores perder-se-atildeo em anguacutestia ao

presenciarem tudo isso Pois elas jaacute sabem que o tormento as atingiraacute e

que a hora da sua condenaccedilatildeo eacute chegada212

O autor anocircnimo retoma o assunto mais agrave frente ao descrever a prisatildeo e destruiccedilatildeo

dos adversaacuterios do Messias (2Apocalipse de Baruque 397-404) Apesar de algumas

diferenccedilas em ecircnfase Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e 2Apocalipse de Baruque descrevem o

aparecimento de uma figura messiacircnica no fim dos tempos para inaugurar um periacuteodo

interino de becircnccedilatildeo especial para o povo de Deus na terra antes do juiacutezo final Entretanto a

funccedilatildeo e o papel do messias variam entre os textos Segundo 4Esdras o messias avanccedilaraacute

sem armas contra seus inimigos e os venceraacute com um rio de fogo que sairaacute de sua boca

(4Esdras 135) Depois de quatrocentos anos de tranquilidade ele e todos os seus seguidores

morreratildeo durante uma semana de silecircncio primordial 2Apocalipse de Baruque por sua vez

212 As citaccedilotildees de 2Apocalipse de Baruque vecircm de TRICCA Maria Helena de Oliveira Apoacutecrifos os proscritos

da Biacuteblia Satildeo Paulo Mercuryo 1995 4v V III p 303-348

78

descreve o messias trazendo vinganccedila militar com um governo limitado no tempo Jaacute no

Apocalipse a figura messiacircnica surge sobre um cavalo branco derrota seus adversaacuterios e

reina com os maacutertires ressuscitados durante o periacuteodo milenar da prisatildeo de Satanaacutes

Apesar das divergecircncias nos detalhes as trecircs obras possuem a mesma perspectiva de

um interluacutedio de felicidade no interior da histoacuteria antes do final dos tempos Segundo

Kovacs e Rowland isto sugeriria que esta expectativa de dois estaacutegios escatoloacutegicos era

comum entre grupos judaicos da Palestina no periacuteodo entre as duas guerras judaicas contra

os romanos (66-136)213 Estes autores ainda argumentam que o surgimento do montanismo

na metade do segundo seacuteculo poderia ser indiacutecio de que a espera por um reino messiacircnico

terreno estava bem espalhada pela Aacutesia menor e natildeo somente pela proviacutencia da Aacutesia214

Teriacuteamos entatildeo um fenocircmeno difundido pelas regiotildees da Palestina Siacuteria e Aacutesia menor pelo

menos no periacuteodo em questatildeo resultado da fusatildeo de antigas noccedilotildees judaicas o messianismo

a reflexatildeo apocaliacuteptica sobre as etapas da histoacuteria o retorno ao paraiacuteso215 Estas noccedilotildees

surgiram em contextos histoacutericos e literaacuterios distintos mas foram reunidas para formar o

milenarismo como encontrado no Apocalipse de Joatildeo e parcialmente em 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque

A primeira noccedilatildeo a crenccedila numa figura messiacircnica que promoveria a restauraccedilatildeo do

povo de Deus tem relaccedilatildeo histoacuterica com as diversas aspiraccedilotildees judaicas de restauraccedilatildeo de

Israel posteriores ao domiacutenio helenista da Palestina (seacuteculo IV AEC)216 Alguns grupos

combinavam passagens das Escrituras judaicas para produzir a expectativa de uma

restauraccedilatildeo poliacutetica de Israel na terra sob a lideranccedila de uma figura ungida por Deus217

O segundo elemento a reflexatildeo sobre as etapas da histoacuteria reflete o interesse de

grupos apocaliacutepticos judaicos em compreender o desenvolvimento da histoacuteria O fenocircmeno

pode ser encontrado particularmente nas tradiccedilotildees de Enoque e de Daniel O texto chamado

213 KOVACS ROWLAND op cit p 210 Leva-se em conta que o Apocalipse surgido na proviacutencia da Aacutesia

teve um autor que emigrou da Palestina durante a guerra de 66-70 214 Idem p 211 215 A sugestatildeo da fusatildeo destas trecircs noccedilotildees vem de ULFGARD op cit p 25-49 216 Charlesworth prefere colocar como ponto de partida as guerras dos macabeus do seacuteculo II AEC Cf

CHARLESWORTH James H From messianology to christology problems and prospects In

CHARLESWORTH James H (ed) The Messiah developments in earliest Judaism and Christianity

Minneapolis Fortress Press 1987 p 3-35 p 3 217 Desroche define o messianismo em termos restritos como o conjunto de crenccedilas judaicas relacionadas com

um ungido de Deus proclamado no antigo Testamento Num sentido mais largo poreacutem designa ensinamentos

ou movimentos que prometem a chegada de um enviado divino para trazer ordem ao mundo com justiccedila e paz

edecircmicas Neste uacuteltimo sentido o fenocircmeno ultrapassa as tradiccedilotildees religiosas judaico-cristatildes Cf DESROCHE

Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo

Paulo 2000 p 22

79

Apocalipse das Semanas (1Enoque 931-10 9112-17) eacute um exemplo deste fenocircmeno

quando o passado e o futuro aparecem divididos em dez semanas O autor subjacente a este

antigo apocalipse escreve da perspectiva da seacutetima semana esperando a restauraccedilatildeo do povo

de Deus para a oitava semana

Altas expectativas escatoloacutegicas originadas de uma conjuntura de deterioraccedilatildeo de

condiccedilotildees poliacuteticas e sociais agraves vezes de perseguiccedilatildeo e sofrimento podem promover nesta

reflexatildeo sobre os periacuteodos da histoacuteria a ideia de que se vive perto do fim do mundo Eacute assim

que esta noccedilatildeo aparece nos apocalipses de Daniel 7-12 produzidos no contexto da Guerra

dos Macabeus (167-163 AEC) Daniel 9 por exemplo faz uma releitura de Jeremias

(Jeremias 2511 2910) acerca da desolaccedilatildeo de Jerusaleacutem por 70 anos Os setentas anos satildeo

interpretados como semanas de anos O apocalipse de Daniel garante que faltam poucas

destas semanas para o fim dos tempos

Estas antigas tradiccedilotildees judaicas representadas por 1Enoque e Daniel exemplificam o

interesse pela periodizaccedilatildeo da histoacuteria mundial e manifestam a convicccedilatildeo de seus autores

provavelmente compartilhada com a comunidade destinataacuteria do texto de que eles viviam a

uacuteltima e crucial fase da histoacuteria antes da intervenccedilatildeo final de Deus que traraacute a salvaccedilatildeo e o

julgamento218 A histoacuteria eacute imaginada linearmente como uma sucessatildeo de tempos

determinados de adversidades antes que venham dias de felicidade219

A terceira noccedilatildeo eacute o retorno agraves condiccedilotildees paradisiacuteacas quando o paraiacuteso dos tempos

primordiais (urzeit) seria restabelecido no fim dos tempos (endzeit) Os benefiacutecios esperados

seriam aqueles que o ser humano experimentara em suas origens220 Esta ideia foi

desenvolvida nos textos apocaliacutepticos por meio de vaticiacutenios acerca da restauraccedilatildeo da

prosperidade da criaccedilatildeo da fertilidade e da paz no mundo 1Enoque 10-11 por exemplo ao

falar da queda dos vigilantes combina estruturaccedilatildeo da histoacuteria com a expectativa de um

retorno agraves condiccedilotildees do paraiacuteso na era da salvaccedilatildeo Eacute possiacutevel notar que este texto tem

elementos que seratildeo apropriados de vaacuterias maneiras posteriormente como a fertilidade da

terra a destruiccedilatildeo das forccedilas demoniacuteacas e os justos ressuscitados Segue o texto

E a Raphael disse o Senhor Amarra Azazel de matildeos e peacutes e lanccedila-o nas

trevas Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo Deposita

218 ULFGARD op cit p 44 219 Frankfurt sugeriu que tal conceito de histoacuteria eacute dependente de tradiccedilotildees zoroastrianas que apresentavam a

histoacuteria dividida em periacuteodos alternados de domiacutenio entre as figuras divinas de Ahura Mazda e Angra Mainyu

que culminariam no fim na vitoacuteria do bem sobre o mal Cf FRANKFURTER David Early Christian

Apocalypticism literature and social world In COLLINS John J (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism

the origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity New York Continuum 1999 p 415-456 p 441 220 PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 353

80

pedras aacutesperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridatildeo Deixa-

o permanecer laacute para sempre e veda-lhe o rosto para que natildeo veja a luz

No dia do grande Juiacutezo ele deveraacute ser arremessado ao tremedal de fogo

Purifica a terra corrompida pelos Anjos e anuncia-lhe a Salvaccedilatildeo para

que terminem os seus sofrimentos e natildeo se percam todos os filhos dos

homens em virtude das coisas secretas que os Guardiotildees revelaram e

ensinaram aos seus filhos Toda a terra estaacute corrompida por causa das obras

transmitidas por Azazel A ele atribui todos os pecados E a Gabriel disse

o Senhor Levanta a guerra entre os bastardos os monstros os filhos das

prostituiacutedas e extirpa-os do meio dos homens juntamente com todos os

filhos dos Guardiotildees Instiga-os uns contra os outros para que na batalha

se eliminem mutuamente Natildeo se prolongue por mais tempo a sua vida

Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deveraacute ser atendido eles

esperam ter vida para sempre e que cada um viva quinhentos anos A

Michael disse o Senhor Vai e potildee a ferros Semjaza e os seus sequazes que

se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as

suas impurezas Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente

e quando os pais tiverem presenciado o extermiacutenio dos seus amados filhos

amarra-os por sele geraccedilotildees nos vales da terra ateacute o dia do seu julgamento

ateacute o dia do Juiacutezo Final Nesse dia eles seratildeo atirados ao abismo de fogo

na reclusatildeo e no tormento onde ficaratildeo encerrados para todo o sempre E

todo aquele que for sentenciado agrave condenaccedilatildeo eterna seja juntado a eles e

seja com eles mantido em correntes ateacute o fim de todas as geraccedilotildees

Extermina os espiacuteritos de todos os monstros juntamente com todos os

filhos dos Guardiotildees porque eles maltrataram os homens Purga a terra de

todo ato de violecircncia Toda obra maacute deve ser eliminada Que floresccedila a

aacutervore da Verdade e da Justiccedila O sinal da becircnccedilatildeo seraacute o seguinte as obras

da Verdade e da Justiccedila sempre seratildeo semeadas na alegria verdadeira

Entatildeo floresceratildeo os justos e haveratildeo de viver ateacute gerarem mil filhos e

completaratildeo em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice Entatildeo

toda a terra seraacute cultivada com a Justiccedila inteiramente plantada de aacutervores

e cheia de becircnccedilatildeo Toda espeacutecie de aacutervore boa seraacute plantada sobre ela

igualmente videiras e as videiras produziratildeo uvas em abundacircncia De

todas as sementes que forem semeadas uma medida produziraacute mil outras

e uma medida de olivas daraacute dez cubas de oacuteleo Purifica a terra de todo ato

de violecircncia de toda injusticcedila de todo pecado e impiedade elimina toda a

impudiciacutecia que sobre ela se pratica Todos os homens seratildeo justos todos

os povos me prestaratildeo honra e gloacuteria e todos me adoraratildeo A terra entatildeo

ficaraacute expurgada de toda maldade de todo pecado de toda praga de todo

tormento e nunca mais mandarei sobre ela um diluacutevio ao longo de todas

as geraccedilotildees por toda a eternidade Naqueles dias eu abrirei as cacircmaras dos

depoacutesitos da becircnccedilatildeo do ceacuteu e deixaacute-las-ei derramar-se sobre a terra sobre

as obras e os trabalhos dos filhos dos homens Entatildeo a Verdade e a Paz

juntar-se-atildeo por todos os dias da terra e por todas as geraccedilotildees dos homens

(1Enoque 1012-112)221

Assim a expectativa do reino messiacircnico interino na histoacuteria parece ser uma

combinaccedilatildeo de antigas noccedilotildees sobre o messias o retorno ao paraiacuteso e a periodizaccedilatildeo dos

221 A citaccedilatildeo de 1Enoque veio de TRICCA op cit p 117-202

81

tempos 4Esdras falou em quatrocentos anos de duraccedilatildeo o Apocalipse de Joatildeo registrou mil

anos

Ulfgard sugeriu que o caminho para compreender o tempo do reino messiacircnico na

terra estaria no uso tipoloacutegico do Salmo 9015 ldquoAlegra-nos pelos dias em que nos afligiste

e pelos anos em que vimos o malrdquo Esta era uma foacutermula usada por grupos judaicos para

calcular os dias do messias Deus iria recompensar o povo na terra pelo tempo em que ele

foi maltratado sobre ela Alguns propunham 40 anos para fazer frente ao tempo que o povo

passou no deserto antes de entrar em Canaatilde Outros sugeriam quatrocentos anos

correspondente ao periacuteodo de permanecircncia no Egito A sugestatildeo dos mil anos entretanto

poderia ter relaccedilatildeo com o versiacuteculo 4 deste mesmo Salmo 90 ldquoporque mil anos aos teus

olhos satildeo como o dia de ontem que passou e como uma vigiacutelia de noiterdquo222 De qualquer

forma tanto em 4Esdras quanto no Apocalipse de Joatildeo as expressotildees temporais natildeo satildeo o

elemento principal Afinal em ambas as obras o governo messiacircnico na terra tem um fim

A ecircnfase dos autores destes textos estaacute na expectativa de que a terra experimentaraacute ainda

dentro da histoacuteria um uacuteltimo periacuteodo de paz

Dentro do contexto narrativo maior que comeccedila em Apocalipse 1911 e conclui em

225 Joatildeo inseriu a expectativa do reino messiacircnico na terra quando o Jesus glorificado

retornaria para vencer seus inimigos ressuscitaria seus seguidores martirizados e viveria

com eles por um periacuteodo de mil anos Tomamos esta expectativa como a objetivaccedilatildeo de um

conjunto de representaccedilotildees natildeo apenas derivado de praacuteticas sociais mas tambeacutem promotor

de outras tantas Enquanto tal o milecircnio pode ser visto como uma arma nas lutas de

representaccedilotildees entre certas comunidades religiosas do final do primeiro seacuteculo a resposta

de um liacuteder religioso agraves praacuteticas plurais do movimento de Jesus diante das conjunturas

histoacutericas da proviacutencia romana da Aacutesia O que buscamos nos paraacutegrafos a seguir satildeo fatores

ou condiccedilotildees de emergecircncia para este determinado sistema de representaccedilotildees

222 ULFGARD op cit p 49 Prigent por sua vez sugere que o tempo messiacircnico poderia ser uma alusatildeo a

Jubileus 430 Aqui a morte de Adatildeo com 930 anos eacute entendida como consequecircncia dele natildeo ter alcanccedilado a

idade perfeita de 1000 anos Aleacutem do mais seria cumprimento da profecia de Genesis 217 que declarou que

no dia que ele comesse da arvore ele morreria Nestes termos Apocalipse 204-6 simbolizaria a restauraccedilatildeo da

vida humana ideal nos moldes do paraiacuteso na era messiacircnica No reino messiacircnico as consequecircncias do pecado

de Adatildeo satildeo canceladas Cf PRIGENT Pierre O Apocalipse op cit p 358

82

36 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia

Jaacute tratamos no capiacutetulo anterior a respeito dos conflitos de lideranccedila do movimento

de Jesus no periacuteodo do Apocalipse numa fase de consolidaccedilatildeo das comunidades dentro da

sociedade romana e de construccedilatildeo de uma identidade separada do Judaiacutesmo Aparentemente

o tema da prisatildeo e destruiccedilatildeo de Satanaacutes223 no interior do complexo narrativo da destruiccedilatildeo

dos adversaacuterios do Jesus glorificado pode ter relaccedilatildeo justamente com essa conjuntura

conflitiva

David Frankfurt analisou vaacuterios apocalipses judaicos e cristatildeos no periacuteodo entre 200

anos antes e 200 depois da Era Comum tentando construir uma tipologia geograacutefica dos

textos apocaliacutepticos224 Segundo ele o milenarismo sectaacuterio eacute um traccedilo significativo do

apocalipsismo asiaacutetico em funccedilatildeo da atuaccedilatildeo privilegiada de figuras profeacuteticas com

performances orais itinerantes a necessidade de forte legitimaccedilatildeo carismaacutetica e o

envolvimento eventual em conflitos de lideranccedila Ele o denomina como ldquomilenarismo

sectaacuteriordquo porque o seu proponente se entende representar natildeo a totalidade da sociedade ou

mesmo do seu grupo social mas uma parcela dentro dele As demais pessoas e grupos satildeo

vistos como adversaacuterios e destinados agrave destruiccedilatildeo escatoloacutegica Este milenarismo eacute

geralmente centrado em figuras profeacuteticas e manifesta algum tipo de luta pela lideranccedila nas

comunidades quando liacutederes carismaacuteticos usam a estigmatizaccedilatildeo para deslegitimar os

adversaacuterios e afirmar a proacutepria autoridade225 Neste contexto de disputa como Elaine Pagels

tentou demonstrar a oposiccedilatildeo eacute frequentemente associada a seres demoniacuteacos e aos

monstros do caos226

O bispo Inaacutecio de Antioquia ao passar pela Aacutesia menor registrou em uma carta uma

justaposiccedilatildeo entre Cristianismo e Judaiacutesmo (Carta aos Magneacutesios X) Ele parece evidenciar

assim que pelo menos alguns seguidores de Jesus naquela regiatildeo e naquele periacuteodo tinham

a percepccedilatildeo de que faziam parte de um movimento independente e mesmo superior ao

Judaiacutesmo Esse debate sobre a identidade das comunidades poderia ser ampliado ainda pelas

distinccedilotildees jaacute feitas pelos magistrados romanos (como as cartas de Pliacutenio jaacute mencionadas) e

223 Como jaacute argumentamos o episoacutedio do milecircnio relata duas narrativas ligadas entre si pelo marco temporal

(mil anos) A narrativa da prisatildeo de Satanaacutes faz parte de uma cena maior que descreve a vitoacuteria do Jesus

glorificado sobre seus adversaacuterios A outra narrativa descreve a exaltaccedilatildeo dos maacutertires 224 FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit 225 Idem 435 226 PAGELS Elaine As origens de satanaacutes um estudo sobre o poder que as forccedilas irracionais exercem na

sociedade moderna Rio de Janeiro Ediouro 1996

83

por pressotildees de sinagogas locais que natildeo queriam ser identificadas com as igrejas227

Possivelmente pouco mais de uma deacutecada antes de Inaacutecio quando as igrejas da Aacutesia jaacute

viviam um momento de instabilidade identitaacuteria os projetos distintos das lideranccedilas geraram

uma crise de legitimidade e a consequente percepccedilatildeo de que o mal poderia vir de dentro da

comunidade

A pequena obra canocircnica conhecida como 3Joatildeo entre os anos 90-110228 registra

um embate entre seu autor anocircnimo e um liacuteder adversaacuterio conhecido como Dioacutetrefes

ldquoEscrevi alguma coisa agrave igreja mas Dioacutetrefes que gosta de exercer a primazia entre eles

natildeo nos daacute acolhidardquo (3Joatildeo 19) Situaccedilotildees como essa geravam respostas diferentes para os

mesmos problemas entre os liacutederes das igrejas Natildeo bastava a um profeta dar a orientaccedilatildeo

para a comunidade jaacute que ele precisava tambeacutem atacar quem divergia de seu

posicionamento Este senso de mal interno foi trabalhado por Joatildeo de duas maneiras Ele

desejava purgar a comunidade de membros que dele divergiam vinculando-os a adversaacuterios

externos da comunidade (membros de sinagogas locais e magistrados romanos) Ao mesmo

tempo ele projeta o conflito para o mundo celestial indicando laccedilos entre seus desafetos e

figuras demoniacuteacas tradicionais como Satatilde229

Este parece ser o caso da polecircmica contra ldquoJezabelrdquo no Apocalipse (Apocalipse 218-

29) A mulher assim intitulada por Joatildeo era uma das liacutederes da comunidade de disciacutepulos de

Tiatira As acusaccedilotildees contra ela indicam que o cerne do conflito estava em aspectos sociais

ldquoJezabelrdquo defendia o engajamento com a sociedade maior e Joatildeo recomendava o

afastamento na direccedilatildeo de um gueto religioso Em termos religiosos eacute possiacutevel que Jezabel

possuiacutesse uma vantagem sobre o profeta de Patmos jaacute que ela tinha amparo no ensino que

o apoacutestolo Paulo deixara trinta anos antes para as igrejas da regiatildeo230 Como argumenta Duff

uma das estrateacutegias de Joatildeo neste confronto foi conectar sua rival com Babilocircnia e por

implicaccedilatildeo com Satatilde231 Em escala maior os membros do movimento de Jesus que Joatildeo

227 Uma evidecircncia neste sentido pode ser o uso do termo ldquominimrdquo para descrever os membros do movimento

de Jesus em maldiccedilotildees pronunciadas em sinagogas em periacuteodo tatildeo recuado quanto 80-85 Para que pudesse ser

disseminada por diversas comunidades judaicas uma maldiccedilatildeo foi inserida entre as 18 becircnccedilatildeos conhecidas

como ldquobirkat-hamminimrdquo que dizia ldquoQue os nosrim (nazarenos) e os minim (hereges) morram subitamente

e sejam excluiacutedos do livro da vida para que natildeo sejam ali recordados juntamente com os justos Bendito sejas

Tu oacute Senhor que abaixas os orgulhososrdquo Cf BAGATTI Bellarmino A igreja da circuncisatildeo histoacuteria e

arqueologia dos judeu-cristatildeos Petroacutepolis Vozes 1975 p 44 228 KUumlMMEL op cit p 593 229 DUFF Paul B Who rides the beast Prophetic rivalry and the rhetoric of crisis in the churches of the

Apocalypse Oxford University Press 2001 230 Idem p 71 231 Idem p 72

84

considerava desviantes passaram a ser rotulados como chamou Pagels de ldquoagentes secretosrdquo

de forccedilas demoniacuteacas sobrenaturais232

Portanto Joatildeo natildeo demoniza apenas a sociedade romana em sua manifestaccedilatildeo

asiaacutetica ou o Impeacuterio na figura das bestas de Apocalipse 13 Ele tambeacutem entende que

mesmo dentro das igrejas existiam aliados de Satanaacutes os ldquoinimigos iacutentimosrdquo233 Este tipo de

perspectiva poderia explicar o grande espaccedilo dado agraves descriccedilotildees dos poderes demoniacuteacos no

Apocalipse bem como a necessidade de um milecircnio que tem como pano de fundo a

destruiccedilatildeo destas mesmas forccedilas de oposiccedilatildeo

Um reino milenar precedido pelo sangue dos adversaacuterios pode refletir entatildeo um

contexto social cheio de tensotildees dentro das proacuteprias igrejas (divergecircncias sobre a identidade

do movimento) entre as igrejas e grupos judaicos (hostilidade contra sinagogas locais) entre

as comunidades de Jesus e a sociedade romana (demandas por acomodaccedilatildeo cultural) e entre

os seguidores de Jesus e o Impeacuterio (interaccedilatildeo entre religiatildeo sociedade e poliacutetica)234

Nosso argumento eacute que a situaccedilatildeo das comunidades envolvidas em distuacuterbios

identitaacuterios com sinagogas locais e em conflitos de lideranccedila acabou se tornando um fator

plausiacutevel no surgimento do milecircnio do Apocalipse ao provocar a expectativa de um tempo

em que todos os inimigos internos e externos seriam destruiacutedos violentamente

Um segundo aspecto frequentemente sugerido pelos autores eacute a oposiccedilatildeo de Joatildeo a

Roma235 A forma como o Apocalipse ataca a sociedade romana o coloca ao lado de outros

grupos judaicos anti-romanos posteriores ao conflito que terminou com a destruiccedilatildeo do

templo e da cidade de Jerusaleacutem (66-70) como os zelotes da Palestina236 Nestes grupos e

movimentos manifestou-se a perspectiva criacutetica de que o Impeacuterio Romano era incompatiacutevel

com o reino de Deus frequentemente traduzida por uma forte rejeiccedilatildeo dos siacutembolos e

232 PAGELS Elaine H The Social History of Satan part three John of Patmos and Ignatius of Antiochi

Contrasting Visions of Gods People Harvard Theological Review Cambridge v 99 n 4 p 487-505 2006

p 489 233 Idem p 494 234 COLLINS Adela Yarbro Crisis and Catharsis the power of the Apocalypse Philadelphia The

Westminster Press 1984 p 84-99 SILVA David A de The social setting of the Revelation to John conflicts

within fears without Westminster Theological Journal Philadelfia n 54 p 273-302 1992 p 287 235 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Babylon the Great A rhetorical-political reading of Revelation 17-18 In

BARR David L The reality of Apocalypse Rethoric and politics in the Book of Revelation Atlanta Society

of Biblical Literature 2006 p 243-269 KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio imperiais no Apocalipse de

Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 MESTER Carlos e OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano

e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos Petroacutepolis n

69 p 72-82 2001 PAGELS Elaine Revelationshellip op cit 236 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p

213

85

imagens do poder romano entre eles o culto imperial Outros fatores ainda poderiam ter

atuado para produzir esta oposiccedilatildeo como expectativas religiosas de um Israel independente

de poderes estrangeiros ou medidas financeiras dos procuradores romanos237

De qualquer forma Pagels historiadora da religiatildeo chamou o Apocalipse de

ldquoliteratura de guerrardquo238 porque Joatildeo teria saiacutedo da Judeacuteia sua terra natal logo apoacutes

testemunhar o iniacutecio do confronto de seus conterracircneos judeus contra as forccedilas romanas em

66 Mesmo ausente ele pode ter ouvido falar dos 60 mil soldados romanos que cercaram

Jerusaleacutem e destruiacuteram a cidade Quando finalmente o cerco terminou eles a invadiram e a

deixaram em ruiacutenas O templo judaico que terminara de ser reformado poucos anos antes

foi destruiacutedo junto com a cidade O responsaacutevel inicial pelo cerco o general Vespasiano

acabou como o Imperador de Roma No tempo em que Joatildeo escreveu seu Apocalipse era

seu filho Domiciano que dirigia o Impeacuterio O impacto da destruiccedilatildeo do Templo e de

Jerusaleacutem foi significativo para diversos setores do Judaismo mas teve um impulso

particular em Joatildeo e pode ser considerado mesmo como ponto de partida para sua oposiccedilatildeo

a Roma

Para o Apocalipse entatildeo o Impeacuterio era um peso opressor que deveria ser eliminado

antes que o mundo viesse a conhecer a justiccedila Seu milecircnio pode ser visto como a

manifestaccedilatildeo do desejo pelo fim da ldquoRoma eternardquo Por isso como em outros apocalipses

judaicos a histoacuteria no Apocalipse eacute uma sequecircncia de poderes Aquele era o tempo de Roma

mas ela iria passar para ser sucedida pelo reino milenar do Messias Este ldquooacutediordquo pela

sociedade do presente histoacuterico parece ser assim mais um fator na promoccedilatildeo da expectativa

milenarista de Joatildeo de que um novo reino se levantaria em breve para substituir o atual

O milecircnio de Joatildeo o futuro reino do Messias expressa a condenaccedilatildeo joanina da

presente ordem romana Nos termos de John Collins em nenhum outro lugar a queda dos

poderosos eacute imaginada com tal alegria como neste apocalipse cristatildeo onde um anjo de peacute

sobre o sol convida os paacutessaros a comer a carne dos reis dos capitatildees e dos poderosos

(Apocalipse 1918)rdquo239

237 Uma anaacutelise dos conflitos entre judeus e romanos no seacuteculo I pode ser encontrada em GOODMAN Martin

Rome and Jerusalem the clash of ancient civilizations London Pinguin Books 2007 Especificamente sobre

a guerra de 66-70 cf REICKE Bo Histoacuteria do tempo do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 1996 p 282-

294 238 PAGELS Elaine Revelations op cit p 7 239 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica op cit p 18

86

Outro fator de emergecircncia do milecircnio joanino pode ter relaccedilatildeo com a situaccedilatildeo

perigosa de vida dos membros da comunidade de Jesus240 com a jaacute mencionada memoacuteria de

mortes violentas de disciacutepulos na guerra judaico-romana e na crise nerodiana da deacutecada de

60 e com a crucificaccedilatildeo de Jesus Isso parece estar subjacente agrave representaccedilatildeo dos maacutertires

no episoacutedio do milecircnio Afinal mesmo que natildeo haja evidecircncias de uma perseguiccedilatildeo e morte

generalizada dos membros das igrejas no periacuteodo do Apocalipse e o livro faccedila referecircncia a

apenas uma morte (Apocalipse 213) o milecircnio gira em torno dos maacutertires

O contexto mais amplo do aparecimento dos apocalipses judaicos foi de rejeiccedilatildeo ao

domiacutenio pagatildeo241 A resistecircncia poderia vir em forma ativa como a revolta dos macabeus

ou em forma passiva como a elaborada nos apocalipses de Daniel 7-12 no qual se anseia

pela destruiccedilatildeo dos poderes estrangeiros por forccedilas sobrenaturais mas sem qualquer

participaccedilatildeo humana no confronto Um tipo de resistecircncia intermediaacuteria envolve a

expectativa de sinergismo entre forccedilas divinas e humanas na destruiccedilatildeo escatoloacutegica dos

adversaacuterios como aparece na frase de Assunccedilatildeo de Moiseacutes ldquonosso sangue seraacute vingado pelo

Senhorrdquo (97) Esperava-se que a morte voluntaacuteria do judeu piedoso provocaria a vinganccedila

de Deus242 Eacute neste sentido que o Apocalipse descreve um nuacutemero fixado de maacutertires que

devem encontrar a morte antes que chegue o fim

Joatildeo advoga uma ruptura das comunidades de Jesus com a sociedade romana o que

na sua oacutetica provocaria a perseguiccedilatildeo e morte dos membros das igrejas Contudo seria

justamente essa perseguiccedilatildeo que ao promover o martiacuterio dos disciacutepulos iria apressar a

chegada do reino messiacircnico de Jesus243 O milecircnio assim pode ser visto como uma

propaganda martiroloacutegica Afinal os maacutertires satildeo os mais abenccediloados seguidores de Jesus e

as consequecircncias de seus atos continuam mesmo apoacutes suas mortes Nos termos do

Apocalipse ldquoFelizes os mortos que desde agora morrem no Senhor Sim diz o Espiacuterito

para que descansem das suas fadigas pois as suas obras os acompanhamrdquo (Apocalipse

1413)

240 A correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano na proviacutencia vizinha alguns anos apoacutes o Apocalipse pode ser

evidecircncia de que as comunidades jaacute corriam risco no final do seacuteculo I 241 Esta anaacutelise da relaccedilatildeo entre Apocalipse e poliacutetica pode ser encontrada em COLLINS Adela Yarbro The

political perspective of the Revelation to John Journal of Biblical Literature Atlanta v 96 n 2 p 241-256

1977 242 COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism op cit p

209 243 Frankfurt descreve o periacuteodo entre a produccedilatildeo do evangelho de Marcos e o Apocalipse de Joatildeo (70-100)

como um periacuteodo de ldquofasciacutenio com o martiacuterio e a necessidade de imaginar a perseguiccedilatildeordquo entre algumas igrejas

Cf FRANKFURTER David Early Christian Apocalypticismhellip op cit p 436

87

O tema da morte violenta domina muitas visotildees de Joatildeo De vaacuterias formas forccedilas

demoniacuteacas ameaccedilam o movimento de Jesus a besta que persegue as duas testemunhas

(Apocalipse 111-13) o Dragatildeo que persegue a Mulher e sua semente (Apocalipse 121-17)

as bestas do mar e da terra que perseguem os ldquosantosrdquo (Apocalipse 131-1412) a Babilocircnia

que persegue as testemunhas de Jesus (Apocalipse 171-195)244

Eacute neste contexto que se entende a memoacuteria da crucificaccedilatildeo de Jesus Joatildeo vecirc paralelos

entre a situaccedilatildeo dos fieacuteis e do fundador do movimento e com isso constroacutei uma narrativa

que idealiza a imitaccedilatildeo de Cristo atraveacutes do sofrimento e martiacuterio Um significativo texto

neste sentido eacute Apocalipse 1210-12 onde os santos imitam Cristo vencendo o Dragatildeo pelo

sangue do Cordeiro (ldquoτὸ αἷμα τοῦ ἀρνίουrdquo) e pela palavra do testemunho (ldquoδιὰ τὸν λόγον τῆς

μαρτυρίας αὐτῶνrdquo) porque natildeo amaram a proacutepria vida mesmo diante da morte (ldquoοὐκ ἠγάπησαν

τὴν ψυχὴν αὐτῶν ἄχρι θανάτουrdquo) Segundo essa formulaccedilatildeo joanina a vitoacuteria sobre os poderes

demoniacuteacos estaacute ligada diretamente agrave morte (de Jesus e dos disciacutepulos) Para Thompson esta

identificaccedilatildeo com ldquoo Cordeiro crucificadordquo (ldquoἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένονrdquo - Apocalipse

56) tinha como objetivo promover uma especiacutefica identidade no fiel e suportar

determinados comportamentos245

Este imaginaacuterio de tribulaccedilatildeo funciona independente das experiecircncias concretas de

perseguiccedilatildeo das comunidades de disciacutepulos jaacute que deriva da construccedilatildeo de viacutenculos com

traumas no passado do movimento (a morte de Jesus as perseguiccedilotildees de Nero em Roma as

guerras na Judeacuteia a morte de Antipas) Assim a memoacuteria de mortes passadas e a expectativa

de muitas outras pode ser considerado mais um fator para o surgimento do milecircnio sectaacuterio

de Joatildeo ao aguardar a participaccedilatildeo seletiva de um grupo especial de fieacuteis os martirizados

no reino do Jesus exaltado246

Assim diante de fatores como estes entatildeo apontados a resposta de Joatildeo veio na

forma de apropriaccedilatildeo de tradiccedilotildees apocaliacutepticas a respeito do messias da periodizaccedilatildeo da

histoacuteria e do retorno ao paraiacuteso e da construccedilatildeo de um conjunto de representaccedilotildees

milenaristas que convidava ao levantamento dos muros da comunidade a ruptura sectaacuteria

244 THOMPSON Leonard A sociological analysis of tribulation in the Apocalypse of John Semeia Atlanta

n 36 p 147-174 1986 p 148 245 Idem p 170 246 Em Daniel 123 tambeacutem apenas um grupo especial de fieacuteis os saacutebios passaria pela ressurreiccedilatildeo Cf

COLLINS John J Danielhellip op cit p 103

88

com membros divergentes a espera ansiosa pelo martiacuterio e finalmente o governo vitorioso

dos maacutertires durante o milecircnio

Existiam outros liacutederes como a liacuteder estigmatizada Jezabel (Apocalipse 220) que

propunham praacuteticas diferentes por entenderem que o relacionamento com a sociedade era

necessaacuterio para a sobrevivecircncia da comunidade247 Para estes a sociedade romana era o

espaccedilo de sobrevivecircncia e natildeo do confronto Mesmo que as categorias propostas por Joatildeo

tenham sido eventualmente abraccediladas em subsequentes apropriaccedilotildees sectaacuterias do milecircnio248

isso natildeo promoveu necessariamente a ruptura com a sociedade249 Isso levou Thompson a

afirmar com certa ironia que a continuidade do movimento de Jesus foi viabilizada porque

seus membros natildeo conseguiram objetivar as representaccedilotildees do Apocalipse250

37 Resumo

Joatildeo encerra seu Apocalipse com a narrativa daquilo que ele entendia ser o fim do

mundo e da histoacuteria Antes disso entretanto ele descreve um periacuteodo de governo milenar

do Jesus Glorificado e seus maacutertires ressuscitados O milecircnio aparece no livro joanino como

o tempo do aprisionamento de Satanaacutes e do reinado messiacircnico interino na terra Estas

expectativas parecem ter origem em tradiccedilotildees literaacuterias judaicas que combinavam noccedilotildees

sobre um redentor ungido por Deus um retorno aos tempos paradisiacuteacos e periodizaccedilotildees da

histoacuteria Estas antigas noccedilotildees parecem ter se reunido de uma forma muito semelhante na

regiatildeo da Aacutesia-Siacuteria-Palestina no final do seacuteculo I nas obras Apocalipse de Joatildeo 4Esdras e

2Apocalipse de Baruque por causa entre outros fatores dos traumas da guerra judaico-

romana No caso especiacutefico da versatildeo joanina sua emergecircncia ainda pode ter relaccedilatildeo com

conflitos de lideranccedila das comunidades de Jesus em funccedilatildeo de respostas diferentes agrave questatildeo

do relacionamento com a sociedade romana

247 DUFF Paul B Who rides the Beast op cit p 77 248 Como os movimentos milenaristas analisados em COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas

revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 249 Como a apropriaccedilatildeo do milecircnio em Agostinho Cf KYRTATAS Dimitris The Transformations of the

Text the Reception of Johnrsquos Revelation In CAMERON Averil (ed) History as Text The Writing of Ancient

History London Duckworth 1986 p 144-162 250 THOMPSON Leonard L Ordinary Lives John and his First Readers In BARR David L (ed) Reading

the Book of Revelation Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 25-47 p 46

IV - A PRODUCcedilAtildeO DO EXPOSITIO IN APOCALYPSIM

Neste capiacutetulo aplicaremos ao Expositio in Apocalypsim as questotildees que foram

lanccediladas sobre o Apocalipse de Joatildeo no primeiro capiacutetulo com o objetivo de levantar

elementos sobre a autoria a data o gecircnero e o propoacutesito da obra em questatildeo Neste caso

este seraacute o espaccedilo principal para a discussatildeo biograacutefica sobre Joaquim de Fiore tentando

apontar eventos em sua vida que poderiam ajudar a compreender a forma como ele leu o

livro joanino

41 O autor do Expositio in Apocalypsim

A obra intitulada Expositio in Apocalypsim editada pela Junta de Veneza em 1527 e

reimpressa pela Editora Miverva em 1964 reuacutene de fato trecircs textos distintos todos

vinculados a uma mesma pessoa O primeiro no foacutelio 1r na parte superior eacute aberto nestes

termos Incipit epistola prologalis domini Abbatis Joachim florensis O segundo comeccedila

no foacutelio 1v com estas palavras Incipit prologus domini Joaquim Abbatis florensis in expone

libri Apocalipsis e termina no 16v Explicit liber primus dictus introductorius Somente

entatildeo comeccedila o terceiro texto neste mesmo foacutelio 16v (Incipit prima septem partius in

expositione Apocalipsis) que se estende longamente ateacute o final da obra veneziana no foacutelio

224r (Explicit admiranda Expositio venerabilis Abbatis Joachim in Librus Apocalipsis Beati

Joannis Apostoli et Evangeliste) Eacute apenas este uacuteltimo e longo texto que se trata do

Expositio in Apocalypsim identificado no explicit como de autoria de Joaquim de Fiore No

interior do Expositio natildeo haacute outras auto-identificaccedilotildees Mesmo assim estudiosos do assunto

satildeo unacircnimes em aceitar o texto como obra do abade de S Joatildeo de Fiore bem como as outras

duas que abrem a versatildeo veneziana seiscentista A primeira eacute intitulada Carta Testamentaacuteria

pela historiografia251 a segunda recebe o tiacutetulo de Liber Introductorius que funciona como

uma siacutentese do Expositio

Tomando como ponto de partida este viacutenculo aceitando-o como autecircntico o que eacute

possiacutevel dizer sobre este Venerabilis Abbatis Joachim Nos seacuteculos posteriores agrave sua morte

ele foi estigmatizado por exemplo por Tomaacutes de Aquino que tratou as obras de Joaquim

251 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 69

90

como conjecturas252 contudo louvado por Dante Aliguiere que no final do canto XII de sua

Divina Comeacutedia colocou na boca de Satildeo Boaventura ldquoSabe que ao meu lado brilha o

calabrecircs abade Giovachino que tem o dom de profetizarrdquo253 Ele apareceu em cataacutelogo de

santos e em lista de heresias254 mas nunca chegou a ser oficialmente declarado herege ou

santo255 No meio deste ambiacuteguo rastro muitas lendas se acumularam a respeito desta figura

do medievo italiano Por isso uma reconstruccedilatildeo biograacutefica de Joaquim precisa levar em

conta os seguintes elementos

- os poucos dados deixados por ele na sua Carta Testamentaacuteria por volta de 1200 jaacute

no final de sua vida endereccedilada a um abade de sua Ordem

- estes poucos dados da Carta Testamentaacuteria precisam ser comparados com duas

hagiografias sobre Joaquim de Fiore escritas por contemporacircneos seus uma produzida pelo

seu secretaacuterio Lucas de Consenza Virtutum Beati Joachimi synopsis e Vita beati Joachimi

abbatis escrita provavelmente pouco depois de sua morte obra de um monge anocircnimo que

trabalhou com Joaquim enquanto ele era abade de Corazzo acompanhou-o posteriormente

para Petralata e por fim para S Joatildeo em Fiore256

- narrativas de caraacuteter lendaacuterio sobre ele encontradas em outras fontes que precisam

ser avaliadas pelo caraacuteter de plausibilidade e podem ajudar a esclarecer aspectos obscuros

de sua biografia

Com estes elementos cotejados eacute que estudiosos de Joaquim reconstroem sua vida257

Seu nascimento se deu provavelmente em 1135 em Celico uma vila pequena agrave leste de

Consenza na Calaacutebria proviacutencia do Reino normando da Siciacutelia Seu pai era Mauro um

notaacuterio do Arcebispo Sancio de Consenza Sobre sua matildee soacute se conhece seu nome Gema

Ele era o sexto de oito filhos do casal e o mais velho a sobreviver258

Joaquim foi enviado ainda jovem para trabalhar tambeacutem em Consenza como oficial

da Chancelaria normanda da Calaacutebria Sua famiacutelia o treinava para ser um notaacuterio como seu

252 MC GINN Bernard The abbot and the doctors scholastic reactions to the radical eschatology of Joaquim

of Fiore Church History Cambridge v 40 n 1 p 30-47 1971 p 19 253 DANTE ALIGUIERE A divina comeacutedia Satildeo Paulo Nova Cultural 2002 p 338 254 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London

University of Notre Dame Press 1993 p 3 255 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 256 TRONCARELLI Fabio Gioacchino da Fiore la vita il pensiero le opere Roma Cittagrave Nuova Editrice

2002 p 15 257 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4 TRONCARELLI op cit p 15 DANIEL E Randolph Abbot

Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical

Society 1983 p xii REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages op cit p 3 258 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii

91

pai259 Isso lhe forneceu preparo intelectual com o domiacutenio do grego liacutengua predominante

nos registros de governo da Calaacutebria e Siciacutelia bem como do Latim O aacuterabe era bem

conhecido nos espaccedilos da corte da Siciacutelia poreacutem natildeo haacute indiacutecios de que Joaquim dominava

este idioma apesar dos provaacuteveis contatos com ele durante o tempo em que esteve na corte

do reino em Palermo

Apoacutes um periacuteodo inicial em Consenza o ainda jovem Joaquim foi encaminhado para

a corte de William II na Siciacutelia onde trabalhou para o chanceler Estevatildeo de Perche Apoacutes

algum tempo na corte foi com o notaacuterio Santoro para Apuacutelia e Val di Crati onde foi

acometido de uma doenccedila Possivelmente para tratar da enfermidade ele retornou para a

corte em Palermo

Em meados de 1167 Joaquim decidiu fazer uma peregrinaccedilatildeo agrave Jerusaleacutem Eacute difiacutecil

saber as causas desta accedilatildeo de Joaquim apesar da probabilidade de sua doenccedila ter alguma

relaccedilatildeo com o evento tanto com o abandono da corte quanto com a viagem para a Terra

Santa260 Troncarelli argumenta que jaacute na base desta peregrinaccedilatildeo estava a decisatildeo juvenil

de Joaquim de abraccedilar o eremitismo e todo o desenvolvimento da sua viagem jaacute seria parte

deste propoacutesito de vida eremita261 Para Randolph Daniel entretanto a vocaccedilatildeo de Joaquim

se deu durante a peregrinaccedilatildeo quando ao passar por Tripoli na Siria ele teria enfrentado

outra enfermidade desta vez por causa de uma epidemia local Como sobreviveu a ela

tomou a decisatildeo de abraccedilar o monasticismo ainda que neste periacuteodo a opccedilatildeo tenha sido por

um tipo de monasticismo natildeo-cenobiacutetico em isolamento e ascetismo262 Independentemente

entretanto do momento especiacutefico em que se deu a vocaccedilatildeo religiosa de Joaquim ela deve

ter tido alguma relaccedilatildeo com sua peregrinaccedilatildeo ao oriente263

Joaquim concluiu a peregrinaccedilatildeo a Jerusaleacutem e voltou para Siciacutelia em 1171264 natildeo

para a corte mas como outros monges gregos da ilha para uma regiatildeo montanhosa e isolada

Ele escolheu a proximidade do Monte Etna perto de um antigo monasteacuterio oriental265

Alguns meses depois atravessou o estreito de Messina na direccedilatildeo da Calaacutebria sua terra natal

259 TRONCARELLI op cit p 16 260 Adeline Rucquoi analisa as motivaccedilotildees provaacuteveis de peregrinos na Idade Meacutedia e menciona a relaccedilatildeo entre

enfermidade e voto de peregrinaccedilatildeo como uma causa frequente Cf RUCQUOI Adeline Peregrinos

medievales Tiempo de historia Salamanca v VII n 75 p 82-99 1981 p 85 261 TRONCARELLI op cit p 18 262 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xii 263 SANTI Francesco La Bibbia in Gioacchino da Fiore In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio

(ed) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 257-267 p 259 264 AFFLECK Toby Joachim of Fiore Access History Brisbane v 1 n 1 p 45-54 1997 p 45 265 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der

Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98

92

Buscou um abrigo ou mesmo uma caverna em Guarassanum perto de Consenza e da vila

onde nasceu Narrativas de caraacuteter lendaacuterio entatildeo narram um encontro entre Joaquim e

Mauro Eacute um topos recorrente na biografia de grandes figuras religiosas do periacuteodo quando

o pai tenta dissuadir o filho de sua missatildeo religiosa para retomar uma vida social em

ascensatildeo Randolph Daniel destaca entretanto que apesar da natureza artificial da narrativa

encontros como este poderiam ser frequumlentes quando filhos de famiacutelias bem situadas na

sociedade decidiam abandonar uma carreira de sucesso para abraccedilar uma vocaccedilatildeo religiosa

de pouco prestiacutegio como era a vida isolada de um eremita266 O proacuteprio Joaquim parece falar

de um conflito com sua famiacutelia no interior de sua Concordia com a mensagem de que havia

recusado a promoccedilatildeo social a escala de sucesso no interior do Reino da Siciacutelia para abraccedilar

a ascese267

Apoacutes um periacuteodo recluso em Guarassanum Joaquim aceitou a hospitalidade da

abadia cisterciense de Sambucina ainda perto de Consenza Mas natildeo ficou muito tempo ali

pois se deslocou para Rende cerca de 10 quilocircmetros a noroeste onde por um ano pregou

agraves pessoas da regiatildeo Receoso de estar cometendo algum ato de desobediecircncia por pregar

sem autorizaccedilatildeo procurou o bispo Roberto de Catanzaro de quem recebeu o ordenamento

sacerdotal e a referida autorizaccedilatildeo para pregar Foi neste periacuteodo que Joaquim conheceu o

monasteacuterio de S Maria de Corazzo jaacute que tanto para ir quanto para voltar de Catanzaro ele

precisou se hospedar ali

Ele retomou sua atividade em Rende como pregador itinerante mas natildeo demorou

muito para tomar a decisatildeo de abandonar o clero secular e ingressar no monasteacuterio de

Corazzo como noviccedilo268 Este monasteacuterio fora fundado em 1157 por Rogeacuterio de Martirano

O abade desde o tempo da fundaccedilatildeo era Columbano Em 1177 entretanto por algum

motivo natildeo explicitado apenas relatado como scandala os monges de Corazzo resolveram

afastaacute-lo e na sequecircncia elegeram Joaquim para substituiacute-lo o que indica o status de

lideranccedila que o ex-peregrino jaacute havia adquirido entre eles Os monges podem ter percebido

que a formaccedilatildeo cultural de Joaquim o havia capacitado para dirigir a casa funccedilatildeo essa que

266 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xiii 267 Idem p xx Troncarelli entende que esse conflito poderia ser ainda mais significativo em funccedilatildeo do fato de

Joaquim ter se afastado da chancelaria normanda durante um periacuteodo de desenvolvimento do Reino da Siciacutelia

ldquoperiacuteodo de prosperidade e paz sem igualrdquo Cf TRONCARELLI op cit p 19 268 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p iv

93

envolvia certo grau de relacionamento com os poderes sociais circundantes na defesa da

propriedade e dos direitos do monasteacuterio269

Joaquim natildeo aceitou a eleiccedilatildeo rejeitou o cargo e saiu do mosteiro Foi inicialmente

para S Trindade em Acri monasteacuterio fundado em 1080 pelo conde Rogeacuterio I270 Insatisfeito

com o pouco isolamento do local deixou-o igualmente e procurou a abadia de Sambucina

na qual jaacute havia se hospedado Esta era a uacutenica casa da Ordem de Cister no Reino da Siciacutelia

ateacute o momento Joaquim tentou nela seu ingresso mas foi rejeitado por estar jaacute filiado a

Corazzo

Enquanto estava em Sambucina ele foi pressionado pelo abade da casa pelo

arcebispo Ruffus de Consenza e por Melis um juiz de Rende a retornar ao seu monasteacuterio

e aceitar o resultado da eleiccedilatildeo Diante dos apelos Joaquim assumiu a direccedilatildeo da abadia de

Corazzo ainda no ano de 1177271

Enquanto abade ele dedicou boa parte de suas energias na tentativa de filiar sua casa

agrave Ordem Cisterciense Uma carta do bispo Miguel de Martirano datada de 1177 faz menccedilatildeo

a um privileacutegio outorgado pelo papa Alexandre III (1159-1181) a Corazzo para que os

monges adotassem os costumes cistercienses Natildeo daacute para saber se a adoccedilatildeo destes costumes

eacute anterior ou posterior agrave eleiccedilatildeo de Joaquim De qualquer forma para conseguir ingressar

efetivamente na Ordem era preciso ser aceito como casa-filha de uma casa jaacute estabelecida

na Ordem de Cister272

A primeira tentativa de Joaquim foi Sambucina proacutexima de Corazzo igualmente na

Calaacutebria e com quem ele jaacute tinha tido contatos em mais de uma ocasiatildeo O pleito poreacutem

foi rejeitado aparentemente em funccedilatildeo de questotildees ligadas agrave propriedade do monasteacuterio de

Joaquim273 Com a rejeiccedilatildeo de Sambucina o abade calabrecircs se voltou para Casamari uma

casa cistersiense fora do Reino da Siciacutelia fundada em 1140 a leste de Roma274 Ali ele

chegou em 1183 e ficou por oito meses partindo somente no ano seguinte A resposta de

Casamari foi semelhante agrave de Sambucina mas durante este periacuteodo Joaquim encontrou a

269 Graham Loud analisou o processo de eleiccedilatildeo no interior das abadias da Itaacutelia meridional em LOUD

Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007 p 462-467 270 Idem p 86 271 DESROCHE Henri Dicionaacuterio de messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade

Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 269 272 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xv 273 TRONCARELLI op cit p 21 274 DUBY Georges Atlas Histoacuterico Mundial Madrid Editorial Debate 1987 p 49

94

hospitalidade do abade Geraldo (abade de 1183-1209) e dedicou a maior parte do tempo no

estudo do acervo da rica biblioteca do monasteacuterio275

No mecircs de maio de 1184 aproveitou a oportunidade para visitar o papa Luacutecio II

(papa de 1181-1185) que se encontrava em Veroli Segundo Marjorie Reeves esta visita ao

Papa era uma tentativa de Joaquim de legitimar a produccedilatildeo de suas obras o que naquele

momento era sua missatildeo de vida276 Diante do pontiacutefece ele teve a oportunidade de explicar

um manuscrito encontrado em Roma entre os documentos do falecido Cardeal Mathias de

Angers O texto tratava de profecias tradicionais sobre o final dos tempos cobrindo temas

como o Anticristo a grande tribulaccedilatildeo e o fim do mundo Diante de Luacutecio III Joaquim

aplicou no documento anocircnimo a mesma forma de exegese que ele jaacute aplicava nos textos

biacuteblicos buscando elementos do seu tempo que pudessem corresponder agraves profecias

narradas na obra277 Posteriormente ele transcreveu sua exposiccedilatildeo deste documento num

pequeno tratado intitulado Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno 1184278

onde trata da tribulaccedilatildeo futura da Igreja originada em forccedilas do Impeacuterio Germacircnico como

parte do processo divino de purificaccedilatildeo da Igreja279

Como resultado do encontro o papa Luacutecio aprovou o meacutetodo hermenecircutico de

Joaquim e exortou-o a concluir os escritos que desejava produzir280 Entendendo que o papa

havia dado a ele a licenccedila que ele queria o abade calabrecircs iniciou ainda em Casamari a

produccedilatildeo simultacircnea de vaacuterias obras Ele natildeo se contentava em comeccedilar e terminar cada

uma mas trabalhava nelas de forma concomitante auxiliado por dois escribas e um

secretaacuterio Lucas de Consenza que se tornou seu amigo a partir de entatildeo Ele ditava e

revisava o material que os seus ajudantes escreviam281

Joaquim retornou para Corazzo em 1184 Segundo West e Zimdars-Swartz ele

voltou com a clara perspectiva de que as questotildees administrativas vinculadas ao seu cargo o

atrapalhavam natildeo soacute a escrever suas ideias mas tambeacutem a divulgaacute-las para preparar a igreja

para os eventos iminentes que estavam por vir282

Em 1186 Joaquim foi a Verona para render homenagem ao novo pontiacutefice Urbano

III (papa de 1185-1187) onde o papa renovou a autorizaccedilatildeo dada anteriormente por Luacutecio

275 TRONCARELLI op cit p 21 276 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 6 277 SANTI op cit p 261-265 278 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 90 279 TRONCARELLI op cit p 23-24 280 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 7 281 TRONCARELLI op cit p 22 282 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 4

95

II e ainda ldquoincitou-o a continuar seus escritosrdquo283 Diante da autorizaccedilatildeo de dois papas para

que escrevesse ele procurou na primavera desde mesmo ano uma sela mais reservada num

local perto de Corazzo chamado Petralata sem rompimento formal ainda com o seu

monasteacuterio

Em 1188 Joaquim foi a Roma onde Clemente III (papa de 1187-1191) emitiu uma

carta na qual renovou as autorizaccedilotildees anteriores e solicitou que fossem levadas apoacutes

concluiacutedas para a avaliaccedilatildeo da cuacuteria romana O pontiacutefece ainda teria aprovado a resignaccedilatildeo

de Joaquim do cargo de abade de Corazzo no momento exato em que Corazzo finalmente

conseguiu ingresso na ordem Cisterciense como filha da abadia de Fossanova uma das

maiores casas da Ordem no territoacuterio papal fundada em 1135 ao sul de Roma284 O

abandono de Corazzo agora cisterciense rendeu a Joaquim o ressentimento dos seus

monges e do proacuteprio Capiacutetulo Geral da Ordem que passou a exigir sua volta Eles o

acusaram de transgredir o primeiro voto da profissatildeo monaacutestica beneditina que eacute a

estabilidade no monasteacuterio285

Em vez de retornar entretanto de posse da resignaccedilatildeo papal ele continuou por um

tempo em Petralata contando com a ajuda de Rainer um eremita da ilha de Ponza que se

juntou a ele No inverno de 1188 insatisfeitos com as interrupccedilotildees e visitas eles foram atraacutes

de um lugar mais isolado e o encontraram nas montanhas calabresas de Fiore para onde se

mudaram em maio de 1189 Naquele lugar agrave medida que disciacutepulos vinham se juntar a

Joaquim nasceu a necessidade de organizar um monasteacuterio O resultado foi a fundaccedilatildeo da

abadia de S Joatildeo de Fiore286

A fundaccedilatildeo da casa entretanto se deu no contexto adverso da transiccedilatildeo dinaacutestica

entre a morte de William II no final de 1189 o curto governo de Tancredo (entre 1190-1194)

e a coroaccedilatildeo de Henrique VI (final de 1194) Eacute um periacuteodo no qual apesar de ter renunciado

anteriormente agrave direccedilatildeo do monasteacuterio de Corazzo Joaquim estaacute nos termos de Troncarelli

ldquoapaixonadamenterdquo envolvido na fundaccedilatildeo de uma casa proacutepria287 Ele renunciara agrave

283 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xviii 284 DUBY op cit p 49 285 TRONCARELLI op cit p 24 Alguns autores sugerem entretanto que Joaquim deixou Corazzo por

entender que a Ordem de Cister jaacute natildeo era riacutegida o suficiente principalmente na questatildeo da disciplina

monaacutestica Ele desejava o cumprimento estrito da Ordem de S Bento o que para o abade significava o

abandono das questotildees temporais uma vida de simplicidade a pureza de coraccedilatildeo e a vida contemplativa Cf

DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

p 41 286 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5 287 TRONCARELLI op cit p 27

96

lideranccedila de uma casa para ser liacuteder de outra Esta mudanccedila de perspectiva de Joaquim

poderia ter relaccedilatildeo com o papel que ele imaginou ter nos tempos que estariam por vir sobre

a Igreja Segundo este professor da Universitagrave della Tuscia ele entendeu que precisava do

apoio de uma nova casa monaacutestica na promoccedilatildeo de sua missatildeo de preparar as pessoas para

a intervenccedilatildeo iminente do Espiacuterito Santo288

Por isso se antes ele queria o isolamento agora ele precisa de apoio natildeo apenas dos

papas mas tambeacutem dos poderes poliacuteticos Entre 1190-1191 ele passou um periacuteodo em

Palermo enquanto solicitava ajuda de Tancredo para as obras de S Joatildeo de Fiore A resposta

do rei normando foi favoraacutevel a Joaquim por meio de uma ldquogenerosa doaccedilatildeordquo289

Enquanto esteve na Siciacutelia em negociaccedilatildeo com Tancredo a ilha se tornou ponto de

parada de uma cruzada a caminho de Jerusaleacutem Joaquim foi convocado para se encontrar

com Ricardo Coraccedilatildeo de Leatildeo da Inglaterra e um grupo de ingleses em Messina290 Ricardo

desejava de Joaquim algum tipo de vaticiacutenio a respeito da cruzada em Jerusaleacutem o que

demonstra que neste periacuteodo o calabrecircs havia alcanccedilado a reputaccedilatildeo de profeta entre alguns

de seus conterracircneos291 O abade usou a visatildeo de Apocalipse 179-10 que descreve uma

besta com sete cabeccedilas para interpretar a Cruzada A passagem apocaliacuteptica fala de sete reis

dos quais caiacuteram cinco um existe e outro ainda natildeo chegou Segundo o autor do Expositio

as cinco cabeccedilas que caiacuteram seriam Herodes Nero Constantino Maomeacute e Melsemuto A

sexta cabeccedila neste caso seria Saladino aquele ldquoum que existerdquo que seria destruiacutedo em

breve para que a seacutetima cabeccedila o que ldquoainda natildeo chegourdquo o derradeiro Anticristo se

manifestasse Este teria jaacute 15 anos e estaria pronto para assumir seu poder

O rei Ricardo perguntou a Joaquim onde o Anticristo teria nascido e onde iria reinar

Joaquim respondeu que ele nascera in urbe Romana e obteria a Seacute Apostoacutelica A visatildeo

aparentemente pouco ortodoxa de Joaquim sobre o Anticristo agradou o monarca inglecircs

adversaacuterio do papa Reeves argumenta entretanto que ao apontar Roma como o local de

nascimento do Anticristo Joaquim estava somente traduzindo a antiga expectativa em seus

proacuteprios termos Joaquim esperava um falso papa como uma de suas manifestaccedilotildees mas

288 Idem p 29 289 Idem p 28 290 Conferir a siacutentese e uma anaacutelise do encontro em REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later

Middle Ageshellip op cit p 7-9 291 Segundo Mc Ginn ldquoreis e rainhas papas e priacutencipes buscavam seus conselhosrdquo a ponto de se tornar uma

das figuras religiosas mais significativas do periacuteodo Cf MC GINN Bernard Apocalyptic Spiritualityhellip op

cit p 98

97

sem implicar neste caso que a Igreja romana deveria ser identificada com a Babilocircnia de

Apocalipse 17-19292

Apoacutes os eventos de Messina o fundador de Fiore voltou para Calaacutebria Mas em 1191

precisou descer novamente da regiatildeo montanhosa na direccedilatildeo de Naacutepoles para um encontro

com Henrique VI que em disputa pela coroa da Siciacutelia viera destituir Tancredo do trono O

abade exortou o monarca germacircnico a natildeo agir com violecircncia contra a coroa siciliana ou

seus aliados Ele usou uma passagem do Antigo Testamento Ezequiel 267 para criticar a

accedilatildeo de Henrique relacionando os eventos de Babilocircnia e Tiro com Henrique e a Siciacutelia293

Independentemente do peso que as palavras de Joaquim tiveram na decisatildeo de

Henrique o monarca realmente decidiu abandonar a regiatildeo e voltar para a Germacircnia Os

eventos posteriores viriam a mostrar um Henrique realmente disposto a ajudar a casa de

Fiore Apoacutes a morte de Tancredo a caminho para assumir o reino da Siciacutelia Henrique

encaminhou uma carta em que fazia uma doaccedilatildeo ao novo monasteacuterio Nela Joaquim eacute pela

primeira vez declarado abade de S Joatildeo em Fiore Em 6 de marccedilo de 1195 alguns meses

apoacutes a coroaccedilatildeo o monarca germacircnico escreveu uma segunda carta garantindo a S Joatildeo um

dote anual em moedas de ouro Bizantinas294

Agora com o apoio do Imperador Joaquim retornou ao papa Celestino III (1191-

1198) e pediu a ele sua aprovaccedilatildeo para S Joatildeo de Fiore Em Roma no dia 25 de agosto de

1196 Celestino emitiu uma bula na qual formalmente aprovou S Joatildeo e a Regra da nova

Ordem Florense295 Ainda nesta bula Joaquim aparece descrito como o abade de Fiore

indicando que pelo menos aos olhos do papa ele natildeo tinha mais conexotildees com Corazzo nem

com a Ordem Cisterciense A mesma aprovaccedilatildeo se deu em 1204 por Inocecircncio III e duas

vezes por Honoacuterio em 1216 e 1220 Mesmo assim desde 1192 Joaquim era considerado

fugitivus pelo Capiacutetulo Geral Cisterciense296

Em 1196 Joaquim retornou a Palermo na qualidade de confessor da rainha

Constacircncia que veio a confirmar todas as doaccedilotildees da coroa para Fiore apoacutes a morte de

Henrique VI em 1197

292 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 9 293 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 66 294 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 295 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n

1 p 217-240 2004 p 219 Esta Regra se perdeu apesar de estudiosos entenderem que ela deveria ser bem

proacutexima da Regra Cisterciense 296 TRONCARELLI op cit p 30

98

O abade Joaquim escreveu em marccedilo de 1200 um documento narrando as

autorizaccedilotildees que entendeu ter recebido do papado de Roma para escrever suas obras e o

compromisso assumido para enviaacute-las quando estivessem prontas (Expositio in

Apocalpysim 1r-v) Ele encaminhou suas trecircs principais obras (Expositio in Apocalypsim

Concordia Novi ac Veteris Testamenti e Psalterium decem Chordarum) para anaacutelise da

cuacuteria papal Mas natildeo teve tempo para receber de Roma a tal avaliaccedilatildeo pois no dia 30 de

marccedilo de 1202 na abadia de S Martino di Giove que havia sido dada para a Ordem de Fiore

em 1201 pelo Arcebispo Andreas de Cosenzza ele veio a falecer297 sendo transferido

posteriormente para S Joatildeo de Fiore

42 Do Praephatio super Apocalypsim para o Expositio in Apocalypsim

Um fenocircmeno significativo nas obras de Joaquim eacute a forma como ele reelabora e

repete os mesmos temas seguidamente num processo contiacutenuo e dinacircmico Torna-se

importante entatildeo apontar data e momento de produccedilatildeo natildeo apenas para o Expositio in

Apocalysim mas para as demais obras do abade relacionadas com o Apocalipse de Joatildeo que

sobreviveram e estatildeo disponiacuteveis para consulta Praephatio super Apocalypsim Enchiridio

super Apocalypsim e Liber Introductorius298 A produccedilatildeo do comentaacuterio maior (Expositio)

se deu por meio da produccedilatildeo de obras menores (em formato de sermatildeo e tratado) desde os

primeiros anos da deacutecada de 1180 ateacute os anos proacuteximos de sua morte299

A mais antiga destas obras entretanto o Praephatio super Apocalypsim eacute marcada

pela natureza compoacutesita Antes de ser um uacutenico texto eacute formado pela reuniatildeo de dois

pequenos sermotildees nos quais o abade faz uma apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o Apocalipse de

Joatildeo e a histoacuteria da Igreja300

O primeiro sermatildeo comeccedila com a expressatildeo ldquoO Livro do Apocalipse eacute o uacuteltimo de

todos os livros escritos com espiacuterito de profecia incluiacutedo no cataacutelogo das Sagradas

297 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiorehellip op cit p xx 298 Haacute ainda um ldquoindependente e curto comentaacuterio do Apocalipserdquo ineacutedito e sem publicaccedilatildeo denominado pela

historiadora Marjorie Reeves como Apocalypsis Nova presente em dois manuscritos do seacuteculo XIII Cf

REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ageshellip op cit p 513 299 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p

286 300 SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 Foi desta

ediccedilatildeo que partiu a traduccedilatildeo para o portuguecircs do professor Rossatto ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao

Apocalipse op cit Outra traduccedilatildeo em portuguecircs pode ser encontrada em BERNARDI Orlando Comentaacuterio

ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori Scintilla Curitiba v 7 n 2 p 229-257 2010

99

Escriturasrdquo301 O segundo inicia com a frase ldquoAntes de dizer qualquer coisa sobre o livro do

Apocalipse devemos considerar que este livro estaacute provido de um tiacutetulo de uma saudaccedilatildeo

de um prefaacuteciordquo302 Cada sermatildeo tem sua proacutepria unidade interna e foram reunidos em

circunstacircncias desconhecidas por causa de afinidades temaacuteticas Iremos distingui-los como

faz Potestagrave pelas primeiras palavras latinas de cada um303 O primeiro e mais antigo pode

ser denominado Apocalipsis liber ultimus O segundo Locuturi aliquid Ambos foram

escritos por Joaquim para servir de base para a pregaccedilatildeo em contexto lituacutergico num periacuteodo

anterior agrave sua passagem por Casamari (1183-1184)304 Estes tratados constituem uma

primeira aproximaccedilatildeo exegeacutetica de Joaquim ao Apocalipse de Joatildeo cujo puacuteblico alvo

imediato era formado pelos monges do monasteacuterio de Corazzo

A proacutexima obra de Joaquim a desenvolver uma leitura do Apocalipse eacute o Enchiridion

super Apocalypsim Ele foi escrito no periacuteodo em que o abade pousou em Casamari (1183-

1184)305 Nele Joaquim faz uma apresentaccedilatildeo ampla da obra de Joatildeo sem discutir frase a

frase como faraacute no Expositio mas jaacute expondo suas partes principais O termo ldquoEnchiridionrdquo

pode ser traduzido como ldquomanualrdquo e foi escrito segundo o abade para ldquoapresentar o

conteuacutedo de todo o livro do Apocalipserdquo (Enchiridion l 56-57)306 Eacute uma siacutentese portanto

do conteuacutedo que ele entendia estar presente no uacuteltimo livro da Biacuteblia cristatilde e poderia ser

utilizado como ldquotexto introdutoacuterio e explicativordquo307 do seu Expositio Isto daacute ao Enchiridion

tambeacutem um papel de esquema ou projeto do comentaacuterio ao Apocalipse que o abade

comeccedilaria a produzir em Casamari

O texto comeccedila com ldquoIncipit Enchiridion abbatis Joachim super Apocalypsimrdquo (l

1) seguido da primeira frase do texto ldquoComo catoacutelicos e ortodoxos lutamos (certatum) com

os mais fortes entusiasmos (studiis) para lanccedilar os fundamentos da Igreja (ecclesiae

fundamenta)rdquo (l 2-3)308 Este texto foi produzido por Joaquim para apresentar o Expositio e

lhe servir de resumo mas no momento em que o Expositio estava para ser concluiacutedo o

301 ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao Apocalipse op cit p 453 302 Idem p 462 303 POTESTAgrave op cit p 290 e 294 304 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 75 Potestagrave entretanto sugere um periacuteodo

posterior agrave Casamari entre 1185-1186 para Apocalipsis liacuteber ultimus e uma data subsequente para Locuturi

aliquid Cf POTESTAgrave op cit p 290 e 294 305 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 92 Potestagrave entretanto prefere datar o Enchiridion

para uma data posterior a 1194 Cf POTESTAgrave op cit p 328 306 As citaccedilotildees do Enchridion seguem o texto criacutetico de BURGER Edward K Joachim of Fiore Enchiridion

super Apocalypsim Toronto Pontifical Institute of Mediaeval Studies 1986 307 POTESTAgrave op cit p 327 308 BURGER op cit p 9

100

Enchiridion sofreu uma revisatildeo tatildeo profunda com alteraccedilatildeo de aspectos significativos do

seu conteuacutedo que os estudiosos preferem mudar seu nome chamando-o entatildeo de Liber

introductorius309 Gian Luca Potestagrave estima que esta revisatildeo do Enchiridion pode ter ficado

pronta no uacuteltimo ano do pontificado do papa Celestino III (papa de 1191-1198) ainda com

a funccedilatildeo de ldquosimplificar e sintetizar os resultados da obra maiorrdquo310

Uma comparaccedilatildeo entre a primeira redaccedilatildeo (Enchiridion iniacutecio da deacutecada de 1180) e

essa segunda redaccedilatildeo (Liber introductorius 1198) revela mudanccedilas por exemplo na postura

quanto ao Impeacuterio Germacircnico que eacute tratado de forma criacutetica no Enchiridion mas de forma

branda no Liber introductorius Afinal a monarquia Hohenstaufen antes temida por

Joaquim havia se manifestado concretamente apoacutes 1191 na figura generosa de Henrique VI

e suas doaccedilotildees para a casa de S Joatildeo de Fiore311

Com relaccedilatildeo ao Expositio in Apocalypsim como jaacute argumentado anteriormente ele

eacute o resultado de mais de uma deacutecada de trabalho e elaboraccedilatildeo Joaquim o comeccedilou ainda em

Casamari (1183-1184) e soacute o concluiu no final do seacuteculo A informaccedilatildeo sobre a conclusatildeo eacute

dada pelo proacuteprio Joaquim na Carta Testamentaacuteria (Expositio in Apocalypsim 1r) Se a data

de 1198 para o Liber introductorius estiver correta as repetidas referecircncias a ele encontradas

no interior do Expositio indicam que Joaquim usou o periacuteodo entre 1198 e 1200 para fazer

uma revisatildeo completa de seu grande comentaacuterio do Apocalipse312

43 O gecircnero literaacuterio do Expositio in Apocalypsim

O Expositio in Apocalypsim eacute certamente a maior obra de Joaquim de Fiore Nas

ediccedilotildees seiscentistas de Veneza o Expositio tem 224 foacutelios contra 135 da Concordia O

abade denominou o Expositio na sua Carta Testamentaacuteria de ldquoexpositione Apocalipsisrdquo

(Expositio in Apocalypsim 1r) Mas o que consistiria em termos formais esta ldquoexposiccedilatildeo

do Apocalipserdquo Ela natildeo segue a forma literaacuteria da Concordia nem do Psalterium ou

mesmo do Enchiridion Eacute importante neste caso aplicar ao Expositio uma questatildeo que jaacute

aplicamos ao Apocalipse de Joatildeo justamente porque a definiccedilatildeo do gecircnero literaacuterio de uma

obra eacute parte da escolha do autor para definir a forma como ele desejaria que seu livro fosse

309 POTESTAgrave op cit p 327 310 Idem p 329 311 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 108 312 POTESTAgrave op cit p 287

101

lido313 A obra de Joatildeo eacute enquanto gecircnero literaacuterio um ldquoapocalipserdquo e se insere na longa

tradiccedilatildeo literaacuteria judaica apocaliacuteptica que retrocede ao seacuteculo II antes de Cristo O Expositio

entretanto natildeo eacute um apocalipse antes eacute um comentaacuterio biacuteblico do Apocalipse

Um comentaacuterio biacuteblico eacute formalmente uma explicaccedilatildeo sistemaacutetica abrangente e

sequencial de um determinado livro da Biacuteblia cujo propoacutesito eacute adaptar o material biacuteblico

para as circunstacircncias das novas audiecircncias314 A explicaccedilatildeo de apenas algumas porccedilotildees

capiacutetulos versiacuteculos ou periacutecopes natildeo poderia formalmente ser definida como um

comentaacuterio jaacute que ele precisava cobrir todo o livro biacuteblico Por sequencial entende-se o

acompanhamento da estrutura do texto biacuteblico que se estaacute comentando No caso do

Apocalipse o comentarista o seguia nos blocos ou periacutecopes natildeo necessariamente versiacuteculo

a versiacuteculo ou capiacutetulo por capiacutetulo jaacute que essa padronizaccedilatildeo soacute comeccedilaria a partir do seacuteculo

XIII315

O embate narrado por Euseacutebio de Cesareacuteia entre o bispo Neacutepos e Dioniacutesio serve para

ilustrar a forma como o Apocalipse era usado nos trecircs primeiros seacuteculos (Histoacuteria

Eclesiaacutestica VII XXIV 1-9) Neacutepos era um quiliasta316 cuja mensagem enfatizava a

realidade de um futuro governo terreno de Cristo na terra Para se contrapor a uma exegese

alegoacuterica do Apocalipse que tentava minimizar a realidade histoacuterica deste reinado

messiacircnico este bispo do Egito escreveu um livro intitulado Refutaccedilatildeo dos alegoristas

Contra Neacutepos e seu livro se levantou Dioniacutesio que escreveu Sobre as promessas tambeacutem

para discutir o Apocalipse de Joatildeo Euseacutebio ainda narrou que neste periacuteodo aconteceu um

longo debate acerca da forma como o livro de Joatildeo deveria ser interpretado

O bispo de Cesareacuteia fala de dois liacutederes cristatildeos que escreveram textos e recorrem

parcialmente ao Apocalipse para defender suas ideias Em linhas gerais a maioria das

pessoas que recorriam ao Apocalipse neste periacuteodo o usa em contexto de polecircmica

doutrinaacuteria ou apologeacutetica para responder a uma heresia dar suporte a uma determinada

posiccedilatildeo teoloacutegica encorajar cristatildeos perseguidos Papias Justino Martir Irineu Tertuliano

313 Conferir esta discussatildeo no primeiro capiacutetulo desta tese 314 MATTER E Ann The Apocalypse in Early Medieval Exegesis In EMMERSON Richard K MCGINN

Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 38-50 p 38-

39 315 SMALLEY Beryl The study of the Bible in the Middle Ages Oxford Basil Blackwell 1952 p 222-224 316 O quiliasmo eacute definido por Wainwright como ldquoa crenccedila de que Cristo retornaraacute para a terra e inauguraraacute

uma era de prosperidade de mil anos sobre o planetardquo Cf WAINWRINGHT Arthur W Mysterious

Apocalypse Interpreting the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001 p 21

102

Hipolitus Vitorino Lactantius Metodius e Comodianus317 Destes com exceccedilatildeo de

Vitorino todos fizeram uso apenas de pequenas porccedilotildees do Apocalipse

Eacute de Vitorino em diante que surge a praacutetica de comentar o Apocalipse inteiro ldquocomo

resposta a problemas particulares da igreja de cada eacutepocardquo318 O bispo de Pettau na Panocircnia

Superior romana escreveu um comentaacuterio ao Apocalipse em grego cerca do ano 300 Sobre

ele opinou Jerocircnimo ao falar da praacutetica de explicar um livro biacuteblico inteiro ldquoentre os latinos

por outra parte haacute um grande silecircncio exceccedilatildeo feita do maacutertir Vitorino de santa memoacuteria

que podia dizer com o apoacutestolo que apesar de carecer de eloquumlecircncia natildeo carecia de

ciecircnciardquo319 No Oriente o primeiro comentaacuterio em grego surgiu apenas no sexto seacuteculo de

um autor anocircnimo conhecido apenas como Ecumecircnio320 sendo seguido de perto pelo

Comentaacuterio de Andreas de Cesareia na Capadoacutecia321

O original grego do Comentarius de Vitorino estaacute perdido mas seu texto eacute bem

conhecido por meio da recensatildeo feita por Jerocircnimo para o Latim O bispo de Pettau morreu

no tempo das perseguiccedilotildees de Diocleciano e isso aparece marcado em sua interpretaccedilatildeo do

Apocalipse322 Ele entendia que os eventos narrados no livro de Joatildeo eram iminentes pois

diziam respeito agraves tribulaccedilotildees das igrejas de sua eacutepoca Ele segue a estrutura do Apocalipse

procurando destacar e explicar as passagens do texto joanino que julgava serem mais

difiacuteceis Ao comentar Apocalipse 20 Vitorino expressou a expectativa quiliasta de um reino

milenar de Cristo na terra

Assim pois os que natildeo tomarem a dianteira ao ressuscitar na primeira

ressurreiccedilatildeo e reinar com Cristo sobre toda a terra (super ordem) e sobre

todas as gentes (super gentes universae) ressuscitaratildeo ao toque da

trombeta final depois de mil anos (Commentarius in Apocalypsim 167-

169 PLS)323

Esta expectativa entretanto tornou-se um problema para a Igreja posterior a

Constantino e ao Edito de Toleracircncia de 313 em funccedilatildeo das novas formas eclesiaacutesticas e o

desenvolvimento de redes de relacionamento com o poder temporal324 Por isso a recensatildeo

317 WAINWRIGHT op cit CONSTANTINOU Eugenia Scarvelis Andrew of Caesarea and the Apocalypse

in the Ancient Church of the East Quebec Universiteacute Laval 2008 p 126 318 MATTER op cit p 38 319 Citado a partir de TORROacute Joaquiacuten Pascual Introduccioacuten general In VICTORINO DE PETOVIO

Comentaacuterio al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 9-26 p 11 320 ECUMENIO Comentario sobre el apocalipsis Madrid Cidad Nueva 2008 321 CONSTANTINOU op cit p 134 322 TORROacute op cit p 9 323 VITORINO DE PETOVIO Comentario al Apocalipsis y otros escritos Madri Cidad Nueva 2008 p 208-

209 324 MATTER op cit p 39

103

de Jerocircnimo procurou moldar a obra de Vitorino expurgando as afirmaccedilotildees milenaristas

fazendo-a corresponder a uma eacutepoca em que a Igreja estava em paz com o Impeacuterio e com a

sociedade A leitura literal do milecircnio foi transformada em leitura alegoacuterica Segundo

Jerocircnimo na sua revisatildeo do comentaacuterio de Vitorino de Apocalipse 20 ldquoo nuacutemero denaacuterio

significa o decaacutelogo e o centenaacuterio eacute a coroa da virgindaderdquo o que indicaria que o texto

joanino queria ensinar que os cristatildeos virgens natildeo apenas do corpo mas tambeacutem da liacutengua

e do pensamento seratildeo exaltados pelo Cristo do fim dos tempos325

Quase um seacuteculo depois de Vitorino outro autor resolveu escrever uma exposiccedilatildeo

completa do Apocalipse Ele eacute conhecido como Ticocircnio (330-395) e era membro da igreja

donatista do norte da Aacutefrica326 Ele expocircs todo o livro do Apocalipse utilizando os princiacutepios

que havia formulado numa outra obra intitulada Liber regularum327 O comentaacuterio de

Ticocircnio se perdeu mas estudiosos tecircm acesso aos princiacutepios que ele usou para escrevecirc-lo

bem como a reconstruccedilotildees parciais do seu conteuacutedo a partir das citaccedilotildees que dele fizeram

entre outros Primasio Beda e Beato de Liebana

As regras do Liber regularum levaram Ticocircnio a fazer uma leitura do Apocalipse

com ecircnfase na encarnaccedilatildeo de Jesus (Regra 1) no relacionamento entre o Antigo e o Novo

Testamento (Regra III) no simbolismo dos nuacutemeros (Regra V) na recapitulaccedilatildeo (Regra VI)

e na espiritualizaccedilatildeo do milecircnio com uma forte rejeiccedilatildeo do quiliasmo328

O proacuteximo exegeta latino a compor um comentaacuterio ao Apocalipse foi Primasio329

Sua obra Commentarius in Apocalypsim faz uma siacutentese de Vitorino e Ticocircnio Primasio

foi bispo de Justiniapolis no norte da Aacutefrica proviacutencia da Numidia de 527-565 num periacuteodo

de colapso da accedilatildeo imperialista bizantina Apesar de envolvido num clima de instabilidade

social o interesse do bispo africano continuou na linha de Jerocircnimo e Agostinho ao fazer

uma exegese alegoacuterica do Apocalipse330 Como o Apocalipse ainda natildeo tinha marcas de

capiacutetulo e versiacuteculo as definiccedilotildees estruturais do seu comentaacuterio se tornaram importantes na

interpretaccedilatildeo do livro joanino Ele o dividiu em cinco partes 1) sete igrejas 2) sete selos 3)

sete trombetas e a mulher ensolarada 4) as bestas da terra e mar as sete pragas e as sete

325 O texto de Vitorino estaacute publicado em duas seccedilotildees A superior apresenta o texto do proacuteprio bispo de Pettau

traduzido para o Latim A inferior registra a anaacutelise feita por Jerocircnimo sobre a exegese de Vitorino A anaacutelise

de Jerocircnimo mencionada no corpo deste texto estaacute em VITORINO DE PETOVIO op cit p 211 326 CALVO Juan Joseacute Ayaacuten Introduccioacuten In TICONIO Livro de Las Reglas Madri Cidad Nueva 2009 p

11-78 p 14 327 Idem p 28 328 Idem p 39-44 329 MATTER op cit p 41 330 Idem p 42

104

taccedilas 5) o cordeiro sobre o trono o novo ceacuteu e a nova terra331 Matter avalia que todos os

comentaristas do Apocalipse no Ocidente posteriores a Primasio ateacute o seacuteculo XII foram

influenciados por este comentaacuterio332

Autor Data Lugar

Primasio 540 Numiacutedia

Cesaacuterio de Arles 540 Sul da Gaacutelia

Apringius 550 Ibeacuteria

Cassiodoro 575 Sul da Itaacutelia

Beda 730 Northumbria

Ambrosio Autpert 760 Benevento

Beato de Liebana 780 Ibeacuteria

Alcuino 800 Franccedila

Haimo 840 Franccedila

Anocircnimo Seacuteculo IX Franccedila

Glossa Ordinaria 1100 Regiatildeo de Leon

O Beato de Liebana aleacutem de depender de Primasio recorreu pesadamente a Vitorino

e Ticocircnio Em funccedilatildeo do seu papel dentro do cristianismo hispacircnico do seacuteculo VIII os temas

recorrentes no seu comentaacuterio eram a santidade da Igreja e a defesa da divindade de Cristo

contra a teologia adocionista dos seguidores do bispo Elipando de Toledo333

Haacute no Beato uma combinaccedilatildeo significativa de exegese eclesiologia e cristologia que

se tornou recorrente em ambientes monaacutesticos a partir do seacuteculo VIII A perspectiva era de

que o Apocalipse deveria ser interpretado tendo como referecircncia a histoacuteria da Igreja na terra

Beda e Ambrosio Autpert incorporaram as contribuiccedilotildees de Primasio e se tornaram

as grandes bases de interpretaccedilatildeo do Apocalipse no periacuteodo caroliacutengio334 Por meio da obra

Explanatio Apocalypsis Beda apresenta a histoacuteria da Igreja e ao mesmo tempo mantem um

olhar sobre a histoacuteria de toda a criaccedilatildeo Ele fez uso das sete regras de Ticocircnio para descrever

sete periacuteodos da histoacuteria do mundo no Apocalipse 1) as sete igrejas da Aacutesia que descrevem

na realidade as igrejas de Cristo 2) os quatro animais e a abertura dos sete selos revelam os

331 Idem p 43 332 Idem p 44 333 Idem p 46 334 Idem p 47

105

conflitos futuros e triunfos da Igreja 3) as sete trombetas descrevem futuros acontecimentos

da Igreja 4) a Mulher e o Dragatildeo revelam as obras e vitoacuterias da Igreja 5) as sete pragas que

infestaratildeo a terra 6) o castigo da prostituta ou cidade iacutempia 7) a Jerusaleacutem como noiva que

desce do ceacuteu335

O comentaacuterio de Ambrosio Autpert construiu uma leitura alegoacuterica detalhada do

Apocalipse Foi escrito entre 758-767 no ducado Lombardo de Benevento Ele absorveu os

comentaacuterios de Vitorino Ticocircnio Primasio aleacutem das anaacutelises de Agostinho e Gregoacuterio o

Grande Ele estava motivado a fazer uma siacutentese de suas fontes com ecircnfase no ldquocasamento

espiritualrdquo entre Cristo e a Igreja336

Os comentaristas posteriores ao periacuteodo caroliacutengio insistiam em ver no Apocalipse

uma alegoria da histoacuteria da Igreja e procuravam nos comentaacuterios anteriores elementos para

apoiar seus pressupostos exegeacuteticos Haacute pouco interesse na perspectiva da iminecircncia do fim

do mundo que aparecia nos leitores quiliastas dos seacuteculo II e III A insistecircncia dos

comentaristas posteriores a Ticocircnio de rejeitar o quiliasmo levou a uma interpretaccedilatildeo do

Apocalipse que o entende como um guia para a Igreja na terra esperar a uniatildeo com uma

Igreja que jaacute se encontra no ceacuteu337

Neste sentido quando surgem no seacuteculo XII a Glossa ordinaria e os comentaacuterios

de Ruperto de Deutz o conteuacutedo tratado por meio de um comentaacuterio ao Apocalipse era de

cunho mais eclesioloacutegico do que escatoloacutegico Eacute nesta grande tradiccedilatildeo entatildeo que retrocede

a Vitorino e Ticocircnio no Ocidente e Ecumecircnio e Andreas de Cesareia no Oriente que se

insere o Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore

Ao discutir o gecircnero literaacuterio ldquocomentaacuterio biacuteblicordquo entretanto natildeo queremos indicar

que o milenarismo soacute poderia nele se manifestar Nem mesmo afirmar algum tipo de

dependecircncia do Expositio em relaccedilatildeo a um comentaacuterio especiacutefico338 O objetivo eacute demonstrar

que desde Vitorino existiu a praacutetica de comentar de maneira sistemaacutetica e abrangente o

livro do Apocalipse de Joatildeo Um comentaacuterio biacuteblico era um tipo de texto voltado

principalmente para a lideranccedila das igrejas mas com potencial de alcance muito maior jaacute

que logo era transformado em base para os sermotildees dos cleacuterigos339

335 Idem 336 Idem p 48 337 Idem 338 Os autores West e Zindars-Swartz encontram indiacutecio no Expositio de recurso a pelo menos dois comentaacuterios

latinos do Apocalipse Haimo de Auxerre e Beda Cf WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 37 339 Comparar com a anaacutelise de Raquel Parmegiani em PARMEGIANI Raquel de Faacutetima Leituras Medievais

do Apocalipse Comentaacuterio ao Beato de Liebana Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernardo do Campo v 23 n 36

107-125 2009 p 122-124

106

44 O propoacutesito do Expositio Por que escrever um comentaacuterio do Apocalipse

No Liber introductorius Joaquim explicitou o que o teria levado a escrever o

Expositio

Aceitei expor o Apocalipse que o beato Joatildeo isolado na ilha de Patmos

narrou a partir da sequecircncia de eventos (ex cuius serie) como eu penso (ut

ego extimo) para demonstrar claramente o que eu havia previsto e se estas

coisas satildeo dignas de maior aprofundamento de modo que possam incitar

ao desprezo do mundo (possint ad conseptus seculi) a esposa e os filhos do

reino e endossar a palavra do Senhor que disse ldquoexultai e erguei a cabeccedila

porque a vossa salvaccedilatildeo estaacute proacuteximardquo (Lucas 2128) (Expositio in

Apocalypsim 2b)340

Por meio do seu comentaacuterio ao Apocalipse de Joatildeo o abade queria promover o seu

ideal de pureza para a Igreja latina bem como produzir na audiecircncia do seu Expositio

ldquodesprezo pelo mundordquo (conseptus seculi) O termo conseptus traduzido por

constrangimento desprezo aparece num dicionaacuterio como ldquocom cerca ao redor derdquo ldquocercado

por todos os ladosrdquo ldquofechado completamenterdquo341 Neste sentido tanto Joatildeo quanto Joaquim

parecem se valer de seus textos para incitar e promover ascetismo entre suas respectivas

audiecircncias

Joaquim usou o Expositio para apresentar uma ldquohistoacuteria teoloacutegica do

Cristianismordquo342 narrando o desenvolvimento da Igreja Para o abade desde os dias do seu

aparecimento a Igreja estava se desenvolvendo na direccedilatildeo da sua mais plena expressatildeo

quando deixaraacute de ser a instituiccedilatildeo de Pedro e se transformaraacute na instituiccedilatildeo de Joatildeo um tipo

de monasticismo contemplativo no periacuteodo do descanso sabaacutetico343

Uma das metas de Joaquim era encontrar sentido na histoacuteria humana e ele entendeu

que o Apocalipse poderia ser a fonte para isso344 Ao encaminhar o Expositio para a cuacuteria

papal o abade de Fiore desejava disseminar a ideia de que uma cristandade reformada e

purificada era o objetivo de um processo histoacuterico dinacircmico que tinha suas raiacutezes na

340 Traduzido a partir de TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita p 80 341 DICIONAacuteRIO LATIM PORTUGUEcircS Porto Editora Porto 2001 p 171 342 POTESTAgrave op cit p 297 343 LERNER Robert E The medieval return to the thousand-year Sabbath In EMMERSON Richard K

MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 51-

71 p 57 344 SMALLEY op cit p 289 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the

Apocalypse In EMMERSON Richard K MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages

London Cornell University Press 1992 p 72-88 p 87

107

antiguidade da histoacuteria de Israel345 A chave para enxergar esta histoacuteria estava no uacuteltimo livro

da Biacuteblia o Apocalipse de Joatildeo

45 Resumo

Joaquim foi um notaacuterio da Calaacutebria que abraccedilou a vocaccedilatildeo monaacutestica depois de uma

peregrinaccedilatildeo agrave Palestina Ingressou num monasteacuterio em Corazzo e se esforccedilou para

incorporaacute-lo a Ordem Cisterciense mas abandonou-o para fundar uma casa monaacutestica nas

montanhas calabresas de Fiore Desde seu retorno agrave Calaacutebria ele manifestou o interesse em

promover ideias a respeito de uma eminente e imimente intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Sua estrateacutegia para divulga-las envolveu a produccedilatildeo de vaacuterios livros entre eles o Expositio

in Apocalypsim uma apresentaccedilatildeo da histoacuteria da Igreja na forma de um comentaacuterio ao

Apocalipse de Joatildeo

345 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 87

V - RELIGIAtildeO E SOCIEDADE NO REINO NORMANDO DA

SICIacuteLIA

Em 1191 Joaquim desceu do isolamento de Fiore na Calaacutebria e foi ao encontro de

Henrique VI Imperador Germacircnico perto dos muros de Naacutepoles346 William II rei da

Siciacutelia morrera sem deixar herdeiros e a coroa do Reino fora entregue com o apoio da cuacuteria

romana para o conde Tancredo sobrinho do falecido rei O imperador entretanto entendia

que a coroa da Siciacutelia lhe pertencia Por isso atravessou a Itaacutelia e iniciou uma ofensiva contra

os aliados de Tancredo Joaquim foi ateacute o imperador cujas tropas estavam sofrendo com

uma epidemia e declarou que o evento era consequecircncia do juiacutezo divino Citando a

passagem biacuteblica de Ezequiel 26 Joaquim comparou o sul da Itaacutelia com Tiro e Henrique

com o rei da Babilocircnia Se o monarca persistisse Deus o derrotaria mas se ele se retirasse

em poucos anos Deus daria a ele a vitoacuteria sem que precisasse lutar347

Eacute difiacutecil saber como as palavras de Joaquim influiacuteram nos eventos que se seguiram

Talvez por causa da forccedila de resistecircncia dos aliados de Tancredo ou porque a ajuda naval

que Henrique esperava atrasara ou porque surgira problemas na Germacircnia que precisavam

de sua atenccedilatildeo no final o Imperador e seus cavaleiros voltaram para o norte dos Alpes

Poucos anos depois em 1194 Tancredo morreu e deixou a coroa da Siciacutelia para seu

pequeno filho chamado entatildeo de William III Novamente Henrique reclamou o Reino para

si e sua esposa Constacircncia princesa normanda filha legiacutetima de Rogeacuterio II o fundador do

Reino da Siciacutelia Segundo o Tratado de Veneza de 1177 entre o Reino da Siciacutelia e o Impeacuterio

Germacircnico caso William II morresse sem filhos Constacircncia sua tia seria a herdeira da

Coroa348 Desta vez Henrique entrou na Itaacutelia meridional atravessou o canal de Messina na

direccedilatildeo da Siciacutelia retirou sem grandes dificuldades o filho de Tancredo do trono venceu

pequenos focos de resistecircncia em Palermo e nesta mesma cidade na catedral real foi

coroado rei no natal de 1194 Com isso ele repetiu o gesto que o fundador do Reino Rogeacuterio

II realizara no natal de 1130

346 TURLEY Thomas Joachim of Fiore In EMMERSON Richard K (org) Key figures in medieval Europe

an encyclopedia New York Routledge 2006 p 372-374 p 373 347 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti

Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xix REEVES Marjorie The influence of

Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993

p 11 348 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south In ABULAFIA David (org) Italy in the Central

Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 58-81 p 69

109

Independentemente do papel de Joaquim nos eventos de 1191 ele deve ter sido

significativo porque outro encontro entre o abade de Fiore e o imperador germacircnico se deu

em Palermo Joaquim compareceu agrave coroaccedilatildeo e foi recebido respeitosamente Em outubro

de 1194 pouco antes de receber a coroa da Siciacutelia Henrique VI escreveu uma carta na qual

descreveu Joaquim como ldquoabade de Fiorerdquo e falou claramente do monasteacuterio de Satildeo Joatildeo

em Fiore antes mesmo de uma autorizaccedilatildeo papal para a fundaccedilatildeo da ordem Florense o que

soacute ocorreu em 1196349 Em marccedilo de 1195 Henrique escreveu outra carta garantindo a Satildeo

Joatildeo um dote anual de cinquenta moedas de ouro Bizantinas350 No pouco tempo que

Henrique sobreviveu a estes eventos (ele morreu em 1197) Joaquim e seus monges se

tornaram protegidos do imperador germacircnico e rei da Siciacutelia A rainha Constacircncia fez do

abade seu confessor pessoal ateacute morrer em Palermo em novembro de 1198

Joaquim de Fiore viveu num momento significativo da Itaacutelia meridional entre o auge

e o fim da dinastia normanda no Reino da Siciacutelia periacuteodo descrito pelo historiador inglecircs

Graham Loud como eacutepoca de ouro para o sul da Peniacutensula quando comparada com os

distuacuterbios sociais anteriores agrave chegada dos normandos e a crise da transiccedilatildeo dinaacutestica

posterior agrave morte de William II351 Foi uma eacutepoca em que reis da dinastia Hauteville

conseguiram unificar sob um mesmo governo toda a regiatildeo inferior ao Patrimocircnio de Satildeo

Pedro do rio Garigliano ateacute a ilha da Siciacutelia territoacuterio marcado fortemente pela presenccedila

grega e muccedilulmana espaccedilo de sobrevivecircncias interaccedilotildees e trocas culturais entre grupos

eacutetnicos e religiotildees distintas Espaccedilo onde mesmo o Cristianismo era pluralizado nas formas

grega e latina Para compreender o papel social e religioso do monge calabrecircs eacute importante

atentar para as configuraccedilotildees poliacuteticas culturais e religiosas da Itaacutelia meridional normanda

bem como os elementos que promoveram a transiccedilatildeo para o domiacutenio Hohenstaufen Estes

elementos ajudam a compreender os pontos de partida de Joaquim e seus objetivos enquanto

ermitatildeo monge abade escritor e fundador da Ordem Florense

349 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx 350 Idem 351 LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge University Press 2007

p 524

110

51 A chegada dos normandos

Os primeiros normandos chegaram ao sul da Itaacutelia por volta do ano 1000 em

circunstacircncias natildeo tatildeo claras Jaacute eacute possiacutevel discernir a presenccedila deles na revolta de nobres da

Apuacutelia contra autoridades bizantinas em 1017 e 1018352 O quadro encontrado na regiatildeo

manifestava uma divisatildeo poliacutetica complexa com estruturas culturais pluralizadas sem um

poder central Sob este contexto cavaleiros normandos se colocaram como mercenaacuterios a

serviccedilo da populaccedilatildeo lombarda contra os bizantinos de um territoacuterio lombardo contra outro

de liacutederes bizantinos contra sarracenos e eventualmente ateacute mesmo a serviccedilo dos

muccedilulmanos da Siciacutelia contra outros poderes em conflito na ilha353 Inicialmente eles natildeo

passavam de algumas dezenas de cavaleiros que vendiam seus serviccedilos a poderes locais em

vez de se reunirem sob a lideranccedila de outro normando

Nos principados e ducados lombardos eles encontraram um tipo de aristocracia

sobre a qual foram constituiacutedos como condes Em Apuacutelia a estrutura social em funccedilatildeo dos

traccedilos da administraccedilatildeo bizantina era baseada nos encastelamentos um tipo de cidadela ou

vila fortificada e um significativo nuacutemero de pequenos proprietaacuterios Estas vilas fortificadas

(castella) ficavam em posiccedilotildees estrateacutegicas e serviam como centros administrativos da

aristocracia local Na Calaacutebria um terceiro tipo de domiacutenio se manifestou atraveacutes da

construccedilatildeo de castelos utilizados para controlar a regiatildeo circundante por meio de tratados

com as cidades juramento de fidelidade e implementaccedilatildeo de tributos Apoacutes a conquista os

castelos foram entregues a parentes e vassalos dos normandos

Os assentamentos e conquistas dos normandos natildeo tinham como base algum tipo de

acordo amplo para a conquista da Itaacutelia meridional Na busca pelo domiacutenio das regiotildees os

proacuteprios normandos se envolviam em conflitos No final do seacuteculo XI entretanto dois

liacutederes de uma mesma famiacutelia assumiram o poder sobre quase todo o sul da Itaacutelia Roberto

Guiscard com o domiacutenio dos territoacuterios abaixo do Patrimocircnio de Satildeo Pedro ateacute a Calaacutebria

e seu irmatildeo Rogeacuterio de Hauteville que dirigiu a conquista da ilha da Siciacutelia

Roberto Guiscard morreu em 1085 deixando o territoacuterio conquistado para seus

filhos Rogeacuterio de Hauteville entretanto posteriormente conhecido como Rogeacuterio I

sobreviveu ao seu irmatildeo mais de uma deacutecada promovendo um estaacutevel governo sobre a

Siciacutelia O conde Rogeacuterio I se casou trecircs vezes mas foi com sua terceira esposa Adelaide

352 Idem p 17 353 CHIBNALL Marjorie The Normans Oxford Blackwell Publishing 2006 p 76

111

filha do marquecircs Manfredo de Savona do norte da Itaacutelia que ele teve seus herdeiros Simatildeo

e Rogeacuterio posteriormente Rogeacuterio II Sua morte em 1101 legou o condado da Siciacutelia para

seus filhos ainda menores Simatildeo era o sucessor imediato mas faleceu logo deixando

Rogeacuterio como uacutenico herdeiro Adelaide de Savona no periacuteodo de menoridade governou o

ducado Uma de suas accedilotildees foi levar a corte para Palermo na Siciacutelia que fora a sede do

domiacutenio muccedilulmano Em 1112 finalmente Rogeacuterio II assumiu o poder e no ano seguinte

Adelaide deixou a Siciacutelia para se casar com o rei Balduiacuteno de Jerusaleacutem354

52 A criaccedilatildeo do Reino Normando da Siciacutelia

A partir de 1121 Rogeacuterio II avanccedilou sobre a Calaacutebria agrave custa de seu primo o duque

William de Apuacutelia No ano seguinte jaacute era senhor de todo o territoacuterio calabrecircs e a partir de

1129 o sul italiano estava unificado sob um uacutenico poder mais uma vez coisa que natildeo

acontecia desde o imperador Justiniano no seacuteculo VI355 A extensatildeo do seu domiacutenio pela

Sicilia Calaacutebria Apuacutelia e outros territoacuterios que se estendiam quase ateacute Roma356 poderiam

justificar um status real mas a transiccedilatildeo para a monarquia teve como ponto de partida um

conflito dentro da Igreja de Roma

Em fevereiro de 1130 apoacutes a morte do papa Honoacuterio II um coleacutegio de cardeais

dividido provocou um cisma papal Anacleto II foi eleito papa e permaneceu em Roma

Inocecircncio II recebeu o tiacutetulo e deixou a cidade em busca de apoio357 Anacleto II recorreu ao

conde Rogeacuterio II da Siciacutelia com a disposiccedilatildeo de coroaacute-lo como rei em troca de proteccedilatildeo e

suporte financeiro Apoacutes a efetivaccedilatildeo do acordo nasceu o Reino da Siciacutelia atraveacutes da bula

papal de setembro de 1130 A coroaccedilatildeo se deu no natal deste mesmo ano na catedral de

Palermo358

Anacleto II morreu em 1138 e Inocecircncio II voltou para Roma como uacutenico papa Ele

declarou nulas todas as accedilotildees de Anacleto e ainda promoveu uma cruzada contra Rogeacuterio

354 MAYER Hans Eberhard The Latin east 1098-1205 In LUSCOMBE David (org) The New Cambridge

Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v V 4 p

644-674 p 648 355 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century In LUSCOMBE David (org) The New

Cambridge Medieval History C 1024 - C 1198 Part II Cambridge Cambridge University Press 2004 7 v

V 4 p 442-474 p 447 356 Conferir um mapa do Reino Normando da Siciacutelia no anexo 3 357 CHIBNALL op cit p 86 358 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 448

112

Aleacutem da inimizade papal a alianccedila entre um papa cismaacutetico e Rogeacuterio havia colocado o

Reino da Siciacutelia em conflito com as forccedilas do Impeacuterio Germacircnico e do Impeacuterio Bizantino

ambos se declarando senhores legiacutetimos da Itaacutelia meridional e rejeitando a prerrogativa

normanda

Mesmo assim a liga construiacuteda por Inocecircncio II para enfrentar o Reino da Siciacutelia natildeo

conseguiu impedir a estabilizaccedilatildeo e o desenvolvimento das estruturas monaacuterquicas359

Finalmente em julho de 1139 o proacuteprio papa foi capturado pelas forccedilas de Rogeacuterio II

forccedilando o reconhecimento da monarquia Rogeacuterio foi aclamado como Rei da Sicilia duque

da Apuacutelia e Priacutencipe de Caacutepua (Rex Siciliae ducatus Apuliae et principatus Capuae) Apoacutes

o fim de uma deacutecada de conflitos o rei Rogeacuterio finalmente conseguiu derrotar as grandes

frentes de oposiccedilatildeo ao Reino

Rogeacuterio II se casou trecircs vezes Com a primeira esposa Elvira filha de Alfonso VI de

Castela teve quatro filhos Rogeacuterio Anfusus Tancredo e William Casou-se ainda com

Sibilia filha do duque Hugo da Burgundia na Franccedila e por fim com Beatriz filha do conde

Rethel igualmente francesa360 Com esta uacuteltima ele teve uma filha que nasceu pouco depois

de sua morte Constacircncia posteriormente desposada por Henrique VI da Germacircnia

Quando Rogeacuterio II morreu em 1154 o sucessor escolhido William posteriormente

conhecido como William I ainda era uma crianccedila O reino precisou ser governado por

Beatriz durante o tempo de menoridade do novo rei Um periacuteodo de instabilidade poliacutetica se

manifestou principalmente na parte continental do reino e se estendeu por todo o tempo de

governo (1154-1166)361

Siciacutelia continuava debaixo da hostilidade do Imperador Germacircnico e do Impeacuterio

Bizantino A cuacuteria papal ainda era hostil com o argumento de que o reino fora reconhecido

por Inocecircncio II apenas sob coaccedilatildeo A nobreza das proviacutencias fronteiriccedilas como o

principado de Caacutepua e as bordas de Abruzzi entraram em revolta As cidades de Apuacutelia

igualmente saiacuteram do controle real e reivindicaram autonomia Mas novamente os

adversaacuterios do reino natildeo se juntaram e perseguiram propoacutesitos distintos O imperador

Frederico Barbarroxa precisou rapidamente se concentrar na luta contra as comunas do norte

da Itaacutelia o que deixou o reino circunstancialmente fora de suas investidas O papa Adriano

IV finalmente fechou um acordo com o rei William I em Benevento em 1156 que

359 Idem 360 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily

Mediterranean Studies State College Pennsylvania v 12 p 1-15 2003 p 12 361 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 454

113

restaurou as boas relaccedilotildees entre o Reino da Siciacutelia e o papado A ameaccedila de Bizacircncio por

sua vez conseguiu ser parcialmente neutralizada com um tratado em 1158

Mas se as ameaccedilas internacionais foram minimizadas principalmente por meio de

acordos a situaccedilatildeo interna do Reino ainda era conflituosa As agitaccedilotildees internas

acompanharam William I praticamente ateacute o fim do seu governo Ele morreu em 1166

deixando o reino para o filho igualmente chamado William ainda menor O reino foi

governado pela matildee do jovem sucessor a rainha Margarete filha do rei Garcia de Navarra

na Espanha ateacute 1171 quando William II atingiu a maioridade

William II como o pai viveu a maior parte de sua vida em seu palaacutecio em Palermo

governando por meio do coleacutegio familiares362 Ele conseguiu pacificar internamente o reino

inclusive trazendo de volta opositores que tinham sido exilados no governo anterior

Externamente os antigos adversaacuterios foram pacificados por meio de tratados O rei renovou

o tratado com o papado e com o Impeacuterio Bizantino Soacute faltava mesmo vencer a resistecircncia

do Impeacuterio Germacircnico o que foi alcanccedilado com o Tratado de Veneza de 1177 que

assegurou a treacutegua em troca do casamento da tia de William II Constacircncia com Henrique

VI filho de Frederico Barbarroxa O casamento aconteceu em Milatildeo em janeiro de 1186

Com esse acordo o Impeacuterio Germacircnico finalmente reconheceu a legitimidade do Reino da

Siciacutelia O preccedilo a ser pago foi a designaccedilatildeo de Constacircncia como herdeira da coroa real caso

William morresse sem herdeiros Quando o acordo foi feito a idade do rei e da rainha Joana

filha do rei Henrique II da Inglaterra era um fator de confianccedila na descendecircncia real A

maior probabilidade era que o casal viesse a ter um herdeiro o que automaticamente

invalidaria o direito de Constacircncia363 Mas este acordo com a Germacircnia colocou um fim na

dinastia Hauteville na Itaacutelia meridional jaacute que William II morreu bruscamente no dia 11 de

novembro de 1189 sem deixar herdeiros

53 Dos Hauteville para os Hohenstaufen

A morte de William II foi seguida por uma divisatildeo dentro do reino Um grupo de

oficiais proeminentes da corte liderados por um membro do coleacutegio familiares Mateus de

Salerno levantou um candidato proacuteprio o conde Trancredo de Lecce primo de William II

362 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p

10-11 363 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 472

114

rejeitando os direitos de Constacircncia e Henrique Tancredo foi coroado rei em 18 de janeiro

de 1190 com o apoio do papado que natildeo desejava a uniatildeo do Reino da Siciacutelia com o Impeacuterio

Germacircnico364

Henrique ateacute tentou destituir Tancredo mas acabou retornando para a Germacircnia apoacutes

o cerco a Naacutepolis jaacute mencionado na abertura deste capiacutetulo Com isso Tancredo conseguiu

governar o Reino da Siciacutelia com o apoio da Igreja de Roma ateacute morrer em fevereiro de

1194 O filho de Tancredo William III foi declarado rei mas era apenas uma crianccedila

Henrique VI novamente reivindicou o direito sobre a coroa da Siciacutelia Desta vez suas

investidas foram mais eficientes Palermo caiu em novembro de 1194 e Henrique foi

coroado rei da Siciacutelia no dia 25 de dezembro na catedral da cidade

Mesmo que Constacircncia fosse uma herdeira normanda legiacutetima filha do fundador do

Reino Rogeacuterio II o rei agora era um monarca estrangeiro de linhagem germacircnica Frederico

II filho de Constacircncia e Henrique apoacutes a morte dos pais e um longo periacuteodo de menoridade

sob a tutela do papa Inocecircncio III implementaraacute um novo governo forte e centralizado365

Todavia mesmo carregando o sangue Hauteville por parte da matildee tambeacutem era herdeiro dos

Hohenstaufen por parte do pai Ele precisou se dividir em ser rei na Itaacutelia e Imperador na

Germacircnia

54 As estruturas do poder em uma sociedade pluralizada

Em 1140 o filho mais velho do rei Rogeacuterio II e Elvira de Castela o duque Rogeacuterio

de Apuacutelia foi ateacute a regiatildeo central da Siciacutelia Ele precisava averiguar o patrimocircnio da coroa

que estava em uso irregular de um monasteacuterio grego O monasteacuterio em questatildeo era Satildeo

Cosme de Gonato que tinha se apossado de terras de cultivo algumas vinhas e um moinho

real O duque Rogeacuterio durante a investigaccedilatildeo interrogou o abade local Metoacutedio que alegou

ter recebido o patrimocircnio em possessatildeo durante a gestatildeo do governador Caid Maimunes366

Apoacutes a investigaccedilatildeo o duque Rogeacuterio emitiu um documento para o monasteacuterio em

1142 que comeccedilava com as seguintes palavras

364 Idem 365 TAKAYAMA Hiroshi Law and monarchy in the south op cit p 70 366 Conferir a anaacutelise deste evento bem como uma reproduccedilatildeo do documento em grego e espanhol em

ANDREacuteS Gregoacuterio de Um diploma griego del Duque Normando Roger Priacutencipe de Sicilia (A 1142)

Erytheia Revista de estuacutedios bizantinos y neogriegos Madri v 1 n 6 p 61-68 1985

115

Diploma dado por mim Rogeacuterio ilustriacutessimo Duque e filho do piedoso e

grande rei dirigido a ti Metoacutedio abade do monasteacuterio de Satildeo Cosme

chamado o Gonato situado nos montes de Petraacutelia no mecircs de abril dia 6

quinta-feira Depois que entrei em completo domiacutenio e governo da regiatildeo

de Petraacutelia que o poderosiacutessimo rei e meu pai me entregou chegou a meus

ouvidos que muitas e diversas pessoas tecircm se apossado de campos

cultivados e vinhas de domiacutenio real como se fossem proacuteprios367

Rogeacuterio argumentou que as posses eram da coroa e natildeo do governador e neste caso

a doaccedilatildeo fora irregular No decorrer do diploma Rogeacuterio reinvindicou a propriedade real

sobre o moinho mas ciente de que o monasteacuterio precisava dele prometeu um dote de trigo

anual procedente de terras reais com a ldquocondiccedilatildeo de que se rogue pela salvaccedilatildeo espiritual

do pai Rogeacuterio II e a matildee Elvira pela sua proacutepria e pela paz do mundordquo368 Quanto agraves terras

e vinhas Rogeacuterio tanto declarou-as como propriedade da Coroa como devolveu-as como

dote real definitivo para o monasteacuterio ldquoenquanto o mundo natildeo acabarrdquo369

Este evento bem como o diploma do conde Rogeacuterio apresentam um elemento

significativo do Reino da Siciacutelia no periacuteodo dos Hauteville elemento que apesar de se

alterar com o passar do tempo esteve presente ateacute o fim do seacuteculo XII a diversidade cultural

e religiosa bem como as interaccedilotildees franqueadas entre estas diversas culturas Trecircs grupos

sociais aparecem no diploma O normando representado pelo duque Rogeacuterio filho do rei

Rogeacuterio II o grego representado pelo abade Metoacutedio e seu monasteacuterio o aacuterabe

representado pelo Caid Maimunes administrador da regiatildeo de Petraacutelia370 O termo caid

era um vocaacutebulo de dignidade entre os sarracenos mas foi usado frequentemente no Reino

da Siciacutelia para descrever um muccedilulmano que se convertia ao cristianismo e atuava em algum

espaccedilo do governo geralmente na administraccedilatildeo financeira como coletor de impostos ou

tesoureiro

O monasteacuterio grego de Satildeo Cosme de Gonato na Petraacutelia evidencia a presenccedila de

diversas casas gregas espalhadas pelo reino isentas da jurisdiccedilatildeo episcopal latina que

viviam um tipo de monasticismo oriental basiliano Vaacuterios deles podem ter se instalado na

Itaacutelia meridional durante a perseguiccedilatildeo dos imperadores iconoclastas e sobreviveram na

Siciacutelia mesmo durante o domiacutenio muccedilulmano371

367 Idem p 66 368 Idem p 67-68 369 Idem p 68 370 Idem p 63 371 BUONAIUTI Ernesto Storia del Cristianesimo II - Evo Medio Milano DallOglio 1960 p 365

116

Em termos literaacuterios o diploma do duque Rogeacuterio de Apuacutelia foi escrito em grego

tendo em vista que o abade e seus monges eram gregos Possivelmente o duque Rogeacuterio I

instaurador da dinastia Hauteville na Siciacutelia tinha dificuldades com a liacutengua grega ou aacuterabe

e precisou da ajuda de autoacutectones para se comunicar com a populaccedilatildeo dominada Mas seu

filho Rogeacuterio II criado na Calaacutebria primeira sede do ducado natildeo apresentava a mesma

dificuldade Ele conhecia as liacutenguas grega e aacuterabe e marcou a corte do Reino da Siciacutelia com

elementos dessas culturas Quase todas as suas assinaturas sobreviventes foram escritas em

grego Selos reais continham a seguinte legenda grega ldquoRogerioj Krataioj Eusebhj Rhxrdquo

(ldquoRogeacuterio forte e poderoso reirdquo) Posteriormente ele acrescentou uma inscriccedilatildeo latina

ldquoRogerius Dei Gracia Sicilie Calabrie Apulie Rexrdquo (ldquoRogeacuterio pela graccedila de Deus rei da

Siciacutelia Calabria e Apuliardquo)372 Segundo Takayama tanto Rogeacuterio II quanto seus

descendentes William I e William II tiveram interesse em aprender artes e reuniram saacutebios

astroacutelogos filoacutesofos e geoacutegrafos de origem grega e aacuterabe no palaacutecio real de Palermo373 Este

historiador japonecircs avalia que ldquoos reis normandos da Siciacutelia com o suporte destes burocratas

gregos e aacuterabes eram reis cristatildeos mergulhados ateacute os joelhos nas culturas islacircmica e

gregardquo374

Em termos administrativos a Calaacutebria antes bizantina manteve muito de sua

estrutura administrativa sob o domiacutenio Hauteville O mesmo se deu na Siciacutelia com os

elementos estruturais criados pelos muccedilulmanos Em ambas as regiotildees oficiais indiacutegenas

locais continuaram sendo aproveitados pelos reis normandos na administraccedilatildeo do reino375

Apoacutes a unificaccedilatildeo em 1130 como parte da organizaccedilatildeo da coroa novas leis foram

criadas No prefaacutecio das Leis de Ariano de 1140 por exemplo a questatildeo das interaccedilotildees

culturais chama a atenccedilatildeo ao assinalar que ldquodiferentes povos sob o governo poderiam

manter seus proacuteprios costumes e leis desde que natildeo se colocassem em direto confronto com

as novas leis do Reinordquo376 Especialmente durante o governo de Rogeacuterio II os muccedilulmanos

poderiam guardar a lei coracircnica entre eles e os gregos o direito justiniano377

372 TAKAYAMA Hiroshi Central power and multi-cultural elements at the norman court of Sicily op cit p

5 373 Idem p 6 374 Idem p 15 375 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 460 376 Idem p 461 cf tambeacutem DRELL Joanna H Cultural syncretism and ethnic identity The Norman

lsquoconquestrsquo of Southern Italy and Sicily Journal of Medieval History Amsterdam v 25 n 3 p 187-202 1999

p 201 377 SZAacuteSDI LEON-BORJA Istvaacuten CORREIA DE LACERDA Vitaline Alfonso Henriques y Roger II de

Sicilia dos vidas paralelas de condes a reyes Una clave para la comprensioacuten del nascimento del Reino de

Portugal Estudios de Historia de Espantildea Buenos Aires v 13 p 55-72 2011 p 64 Hubert Houben

117

Isso significava a autorizaccedilatildeo para que os nativos italianos ainda chamados de

lombardos bem como gregos e muccedilulmanos permanecessem sob o poder de costumes

proacuteprios administrados por seus juiacutezes especialmente nas cidades ou por aristocratas que

possuiacuteam autoridade judicial em suas proacuteprias terras A justiccedila real se encarregaria

particularmente da ordem puacuteblica e das disputas de propriedade funcionando mais como

uma corte de apelaccedilatildeo378 Aleacutem disso especialmente na ilha da Siciacutelia sede do governo as

leis e decretos reais eram publicados em grego latim e aacuterabe379

Mesmo com as mudanccedilas demograacuteficas provocadas pelas migraccedilotildees latinas

favorecidas com a presenccedila do domiacutenio normando o Reino da Siciacutelia chegou ao final do

seacuteculo XII como uma entidade unificada politicamente mas pluralizada etnicamente380

fenocircmeno que Marjorie Chibnall definiu como ldquomulti-culturalrdquo381

No caso dos gregos havia uma presenccedila substancial desta populaccedilatildeo na ilha da

Siciacutelia e na Calaacutebria principalmente na parte sul desta proviacutencia Eles se concentravam tanto

nas cidades quanto nos campos onde construiacuteam suas igrejas com ritos e liturgia orientais382

Com a chegada dos Hauteville natildeo havia mais qualquer impedimento para que essa

populaccedilatildeo buscasse fazer novos membros atraveacutes do proselitismo O mesmo natildeo poderia

mais se dar por parte dos muccedilulmanos Isso fazia com que conversotildees de muccedilulmanos para

o cristianismo grego se tornassem um fenocircmeno relativamente frequente Jaacute a conversatildeo

muccedilulmana para o cristianismo latino era mais rara383

Em relaccedilatildeo ao elemento muccedilulmano Rogeacuterio I jaacute havia prometido no momento da

conquista natildeo promover accedilotildees agressivas contra essa parte da populaccedilatildeo da Siciacutelia As

maiores mesquitas foram confiscadas mas os muccedilulmanos receberam a garantia de que

poderiam praticar sua religiatildeo em troca do pagamento de uma taxa a gesia384 Nesta fase

entretanto problematiza esta questatildeo argumentando que ldquoa liberdade religiosa eram somente garantida onde

a maioria dos habitantes era muccedilulmana como era o caso de Palermo onde havia a necessidade de contiacutenua

cooperaccedilatildeordquo Cf HOUBEN Hubert Religious toleration in the South Italian Peninsula during the Norman and

Staufen Periods In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002 p

319-339 p 322 378 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century op cit p 461 379 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 64 380 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 471 381 CHIBNALL op cit p 88 382 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in

Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 22 383 ABULAFIA David The Italian other Greeks Muslims and Jews In ABULAFIA David (org) Italy in

the Central Middle Ages - 1000-1300 Oxford Oxford Univesity Press 2004 p 215-236 p 220 384 Idem p 223

118

da conquista o objetivo de Rogeacuterio era pragmaacutetico Ele precisava da populaccedilatildeo muccedilulmana

para dar estabilidade agrave ilha

Com o passar do tempo entretanto a populaccedilatildeo muccedilulmana declinou

substancialmente ateacute que durante o governo de Frederico II (rei de 1198-1250) natildeo

restassem mais do que 40 mil muccedilulmanos que acabaram sendo deportados para o

continente formando uma colocircnia em Lucera A causa mais imediata desse decliacutenio foi o

fluxo migratoacuterio de cristatildeos latinos para a ilha principalmente oriundos do norte da Itaacutelia

Mas outros fatores podem ser mencionados como a saiacuteda de muccedilulmanos para outros

espaccedilos de domiacutenio muccedilulmano como o norte da Aacutefrica a conversatildeo de muccedilulmanos para

o cristianismo mesmo que sob a forma de pseudo-conversatildeo e a escravizaccedilatildeo Os poucos

muccedilulmanos que ainda sobreviveram na Siciacutelia no seacuteculo XIII em sua maioria eram

escravos ou comerciantes

55 A Igreja no Reino da Siciacutelia

Formalmente o reino da Siciacutelia era um feudo papal da mesma forma que o ducado

de Apuacutelia e o principado de Caacutepua tinham sido a partir de 1059 Em 1130 o tiacutetulo real foi

dado pelo papa Anacleto II durante o cisma em 1139 Rogeacuterio II fez homenagem ao papa

Inocecircncio II em 1156 William I repetiu o gesto do pai diante de Adriano IV Ambos os reis

concordaram em pagar um census anual ao papado como recompensa pelo feudo385 Essa

relaccedilatildeo feudal entretanto precisa ser problematizada Os Hauteville jaacute eram governantes

antes de receberem o reconhecimento papal O domiacutenio natildeo foi criado pela homenagem

papal Eacute neste sentido que se daacute a sugestatildeo de Istvaacuten Szaacuteszdi Leoacuten-Borja e Vitaline Correia

de Lacerda de que este relacionamento feudal era parte de uma estrateacutegia dos liacutederes

normandos para obter o reconhecimento da Cristandade quanto a seus domiacutenios386 No caso

da igreja de Roma poderia ser uma estrateacutegia para aumentar a autoridade papal dentro do

reino o que natildeo aconteceu necessariamente apoacutes a fundaccedilatildeo do Reino da Siciacutelia em funccedilatildeo

do cisma papal A relaccedilatildeo entre a coroa e o papado foi difiacutecil principalmente entre 1139 e

1156 A reorganizaccedilatildeo episcopal feita na Siciacutelia a pedido do papa cismaacutetico Anacleto II

entre 1130-1131 especialmente era inaceitaacutevel para a cuacuteria papal

385 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 465 386 SZAacuteSDI LEON-BORJA CORREIA DE LACERDA op cit p 55

119

Aleacutem disso a forma como o duque e posteriormente rei Rogeacuterio II exercia o

controle sobre a Igreja dentro do seu territoacuterio era considerado uma infraccedilatildeo agrave autonomia da

igreja387 Suas accedilotildees tinham como fundamento um antigo acordo realizado por Rogeacuterio I e

o papa Urbano II para a organizaccedilatildeo da Igreja da Siciacutelia Em um dos elementos do acordo

o papa se comprometia a natildeo eleger o legado papal para a ilha sem a aquiescecircncia de Rogeacuterio

e na ausecircncia do legado o proacuteprio conde exerceria este papel388 Rogeacuterio II entendeu que

este benefiacutecio pouco usual para um leigo era hereditaacuterio e passou a agir como legado papal

na Siciacutelia389

Finalmente o Tratado de Benevento em junho de 1156 entre o papa Adriano IV e

William I marcou o fim do periacuteodo de hostilidade Graham Loud destaca trecircs aspectos do

tratado como significativos para as relaccedilotildees entre a coroa e o papado Primeiramente

Adriano IV recebeu a homenagem do rei normando e investiu-o no seu reino Com isso a

natureza hereditaacuteria do tiacutetulo real estava confirmada Em segundo lugar as fronteiras ateacute

entatildeo em disputa foram confirmadas comeccedilando em Abruzzi no norte e terminando na

ilha da Siciacutelia Terceiro os direitos reais sobre a Igreja do reino foram definidos Bispos e

abadias faziam suas proacuteprias eleiccedilotildees devendo o rei apenas aceitar ou vetar a escolha O

privileacutegio ainda dado por Urbano II a Rogeacuterio I foi confirmado mas exclusivamente para a

ilha da Siciacutelia no sentido de que os legados papais precisariam ser confirmados pelo rei e

na ausecircncia deles o proacuteprio rei exerceria este papel390

Com a chegada dos normandos a relaccedilatildeo entre igreja latina e grega sofreu o impacto

das mudanccedilas poliacuteticas391 Em 1059 Roberto Guiscard estabeleceu com o Papa Nicolau II o

compromisso de transferir para a jurisdiccedilatildeo papal todas as igrejas de seus domiacutenios Ele fez

juramento similar diante do papa Gregoacuterio VII em 1080 Em outros instantes entretanto o

liacuteder normando poderia dar um arcebispado ou um monasteacuterio importante sob seu domiacutenio

para um cleacuterigo de sua terra natal da Normandia ou Franccedila Contudo natildeo havia por parte

dos governantes algum movimento expliacutecito de latinizaccedilatildeo das igrejas gregas392 Isso porque

387 Idem p 465 388 Idem p 61 389 SKINNER Patricia Roger I (1031-1101 r 1085-1101) In EMMERSON Richard K (org) Key figures

in medieval Europe an encyclopedia New York Routledge 2006 p 575-576 p 574 390 LOUD Graham A Norman Sicily in the twelfth century p 164-165 391 HERDE Peter The Papacy and the Greek Church in the Sourthern Italy between the eleventh and the

thirteenth century In LOUD G A METCALFE A (ed) The society of Norman Italy Leiden Brill 2002

p 213-251 p 216 392 Para James Morton a hipoacutetese de uma poliacutetica expliacutecita de latinizaccedilatildeo por parte dos normandos ou do

papado eacute fruto de uma perspectiva ldquofrancocecircntricardquo da histoacuteria medieval Cf MORTON op cit p 8

120

uma igreja grega poderia sobreviver debaixo da jurisdiccedilatildeo de um bispo latino desde que se

fizesse juramento de fidelidade ao bispo de Roma393 Bispos e cleacuterigos gregos poderiam

manter seus ofiacutecios e seus ritos bastando declarar ou admitir a prerrogativa papal de

primazia e o direito de investidura dos papas sobres os bispos da Itaacutelia394

Divergecircncias menores entre as duas igrejas poderiam aparecer no campo da

linguagem do rito e dos costumes Enquanto na Igreja Latina a liacutengua lituacutergica era o latim

na Igreja Grega a liacutengua era o grego395 Os ritos poderiam variar principalmente a Eucaristia

por causa da divergecircncia sobre o patildeo apropriado para a celebraccedilatildeo ou a mistura de aacutegua no

vinho No campo dos costumes debates poderiam aparecer a respeito das vestimentas dos

cleacuterigos e ateacute mesmo sobre a presenccedila ou ausecircncia de barba nos sacerdotes

A divergecircncia significativa entretanto estava no espaccedilo do dogma com a questatildeo

da claacuteusula filioque Do periacuteodo caroliacutengio para frente a Igreja latina passou a professar que

o Espiacuterito procedia do Pai e do Filho uma alteraccedilatildeo do antigo credo que os gregos nunca

aceitaram396

A questatildeo do celibato dos cleacuterigos era outro significativo elemento de distinccedilatildeo entre

igreja grega e latina Enquanto a Igreja Latina proibia bispos e sacerdotes de se casarem na

Igreja Grega eles poderiam continuar casados397 Na Itaacutelia meridional onde cleacuterigos gregos

e latinos viviam lado a lado era difiacutecil impor a observacircncia do celibato sobre todos os latinos

No iniacutecio do seacuteculo XIII Inocecircncio III demandou que bispos gregos da Itaacutelia

meridional atuassem apenas onde a populaccedilatildeo fosse exclusivamente grega e desde que estes

bispos gregos se submetessem ao papado Em dioceses onde a populaccedilatildeo contivesse a

presenccedila de gregos e latinos o bispo deveria ser latino Com o pontificado deste papa natural

de Anagni os ritos gregos passaram a ser limitados398 O resultado foi o desaparecimento da

Igreja Grega na Itaacutelia meridional convertida em latina com algumas poucas exceccedilotildees como

o monasteacuterio de Theotokos de Patiron em Rossano que permaneceu grego quanto agrave

linguagem e rito ateacute meados do seacuteculo XIX399

393 HERDE op cit p 217 394 Idem p 222 395 Idem p 224 396 Idem p 234 397 Idem p 237 398 Idem p 243 399 MORTON op cit p 6

121

56 O fenocircmeno monaacutestico na Itaacutelia normanda

A Itaacutelia meridional nos seacuteculos XI e XII contava com a presenccedila tanto do

monasticismo ocidental quanto do oriental O oriental especificamente era encontrado sob

algumas formas baacutesicas koinobion comunidades monaacutesticas vivendo segundo uma regra

em comum normalmente uacutenica para aquele monasteacuterio a lavra uma comunidade de

monges que viviam perto uns dos outros e compartilhavam serviccedilos lituacutergicos a kella que

era uma rejeiccedilatildeo da comunidade usualmente natildeo tendo mais do que um monge e seus poucos

disciacutepulos vivendo em uma caverna ou casa desabitada400

Segundo Morton em periacuteodos de crise econocircmica e social predominava o tipo anti-

comunitaacuterio Em periacuteodos de estabilidade poliacutetica e social predominavam as comunidades

melhor organizadas do tipo cenoacutebio401 O periacuteodo anterior agrave chegada dos normandos na Itaacutelia

Meridional foi marcado por instabilidade consequentemente com predomiacutenio do

monasticismo anti-comunitaacuterio com foco em ascetas individuais e itinerantes Estas

fundaccedilotildees monaacutesticas eram efecircmeras e sumiam assim que o fundador morria Os disciacutepulos

se juntavam em torno de uma pessoa e natildeo em torno de uma instituiccedilatildeo As comunidades

poderiam ter alguma propriedade mas eram relativamente independentes

As comunidades sentiam o impacto das invasotildees no sul da Itaacutelia que se sucederam a

partir da chegada dos lombardos no seacuteculo VI Lombardos sarracenos e bizantinos

disputaram a regiatildeo durante os seacuteculos anteriores agrave chegada dos normandos promovendo

instabilidade para as casas monaacutesticas O monasteacuterio de Monte Cassino pode ser um

exemplo neste caso A casa foi fundada na primeira metade do seacuteculo VI mas abandonada

em 581 durante as invasotildees lombardas Em 718 foi novamente povoada ateacute que em 883 foi

capturada pelos sarracenos Seus monges fugiram para a Campanha e parecem ter retornado

apenas algumas deacutecadas depois O periacuteodo das invasotildees era marcado por saques e violecircncias

contras as casas estabelecidas Em funccedilatildeo disso predominava no Sul o monasticismo

itinerante em torno de ascetas carismaacuteticos Quando a situaccedilatildeo poliacutetica ganhava alguma

estabilidade os novos poderes lombardos ou bizantinos imprimiam nas casas o caraacuteter

descentralizado da regiatildeo Os priacutencipes ou duques patrocinavam a reconstruccedilatildeo das casas

monaacutesticas mas sem organizaccedilatildeo ou centralizaccedilatildeo eclesiaacutestica Segundo Loud tanto o

400 Idem p 39 401 Idem p 40

122

papado quanto Bizacircncio tentaram controlar as casas e as igrejas do Sul com a criaccedilatildeo de

novos arcebispados gregos e latinos mas o resultado foi muito pequeno402

A maioria das fundaccedilotildees deste periacuteodo seguiam na teoria a Regra de Satildeo Bento

apesar das praacuteticas e costumes variarem consideravelmente Especialmente na Calaacutebria

havia uma grande presenccedila do monasticismo grego tanto na sua versatildeo cenobiacutetica quanto

na eremita

Apoacutes a consolidaccedilatildeo da conquista normanda os novos condes e duques logo se

tornaram tambeacutem patronos dos monasteacuterios gregos e latinos403 Em linhas gerais eles se

envolviam mais no patrociacutenio de casas monaacutesticas jaacute presentes na regiatildeo do que fundando

casas rivais Mesmo assim numerosas casas foram criadas pelos novos governantes Dos

cerca de 20 monasteacuterios gregos surgidos durante o governo do conde Rogeacuterio I ele esteve

pessoalmente envolvido em 14 deles404

Ateacute cerca de 1150 os maiores monasteacuterios do sul da Itaacutelia eram todos de rito

beneditino Monte Cassino Cava Venosa Lipari e Catania405 Segundo Loud ldquoa conquista

normanda sem duacutevida beneficiou o monasticismo beneditinordquo406 que ganhou a proteccedilatildeo dos

novos governantes expandiu suas congregaccedilotildees adquiriu novas propriedades e aumentou a

aacuterea geograacutefica de seus domiacutenios Montecassino liderou o processo de crescimento Durante

o periacuteodo de 1058-1105 este monasteacuterio recebeu 134 igrejas tanto por dote quanto pela

compra de igrejas subordinadas407 A forte criacutetica contra a igreja privada apesar de natildeo ter

eliminado completamente o fenocircmeno incentivou muitas transferecircncias de igrejas das matildeos

de leigos para instituiccedilotildees monaacutesticas

A conquista normanda poderia ter aberto o monasticismo meridional italiano para

influecircncias externas mas isso se deu de forma muito lenta Somente uma casa cluniesense

foi fundada na ilha da Siciacutelia durante o seacuteculo XII talvez sob o iacutempeto de Elvira a esposa

de Rogeacuterio II cujo pai Alfonso VI de Castela era um patrono do movimento de Cluny408

Outros novos movimentos religiosos tambeacutem natildeo tiveram impacto significativo no sul da

Itaacutelia antes do final do seacuteculo XII O conde Rogeacuterio I fundou uma casa Agostiniana em

402 LOUD G The Latin Church in the Norman Italy op cit p 35 403 MORTON op cit p 45 404 Idem p 50 405 Idem p 56 406 LOUD Graham H The Latin Church in the Norman Italy op cit p 430 Este historiador acrescenta ldquoas

pequenas casas independentes tendiam a ser absorvidas pelas congregaccedilotildees das grandes casas beneditinas e

novas fundaccedilotildees observavam a Regra de Satildeo Benedito desde o seu iniacuteciordquo Idem p 470 407 Idem p 434 408 Idem p 484

123

Bagnara sul da Calaacutebria em 1085 Posteriormente em 1090 convidou Bruno de Cologne

fundador da ordem Cartusiana para fundar uma comunidade na mesma regiatildeo em 1090

Comparado com o norte da Europa entretanto o nuacutemero destas casas sob o domiacutenio

normando era muito pequeno

Neste mesmo sentido se deu a chegada dos Cistercienses O primeiro monasteacuterio da

Ordem de Cister na regiatildeo foi Santa Maria Sambucina perto de Cosenza Calabria terra

natal de Joaquim de Fiore pouco antes de 1145409 Outro monasteacuterio cisterciense foi

estabelecido na Siciacutelia em Prizzi em 1155 mas como seu fundador esteve envolvido na

morte do primeiro ministro Maio de Bari isto tirou a possibilidade de que esta casa tivesse

progresso dentro do reino A proacutexima casa cisterciense fundada foi Santa Maria de Ferraria

na diocese de Teano principado de Caacutepua em 1171 como um priorado de Fossanova e se

tornou abadia de fato em 1184 Em 1188 o arcebispo Walter de Palermo converteu um

monasteacuterio grego na Calaacutebria que estava com dificuldades para recrutar novos membros

em uma casa da Ordem Em 1191 uma abadia cisterciense foi fundada em Palermo pelo

arcebispo Mateus mas esta ficou em dificuldades apoacutes a consagraccedilatildeo de Henrique VI jaacute

que foi organizada por algueacutem contraacuterio agrave chegada dos Hohenstaufen Com isso o imperador

entregou a casa agrave ordem dos Cavaleiros Teutocircnicos em 1197

Assim ainda em 1200 natildeo havia mais do que 13 abadias da ordem cisterciense no

reino da Siciacutelia em grande parte inseridas no movimento Cisterciense na uacuteltima deacutecada A

maioria destas fundaccedilotildees se deram por conversatildeo de casas jaacute estabelecidas jaacute que para

fundar uma casa nova era preciso o envio pela casa-matildee de pelo menos doze monges410 A

dificuldade que Joaquim teve para inserir o monasteacuterio de Corazzo na Ordem Cisterciense

parece indicar a forma lenta como a ordem se desenvolvia na Itaacutelia meridional dentro do

seacuteculo XII O monasteacuterio do qual ele fora abade entre 1177 e 1186 possivelmente jaacute seguia

os costumes de Cister antes mesmo de Joaquim ingressar na casa Enquanto abade ele fez

vaacuterios esforccedilos para concluir o processo de filiaccedilatildeo Para tanto era necessaacuterio que fosse

recebido por uma abadia que lhe servisse como casa-matildee Joaquim tentou essa filiaccedilatildeo com

duas abadias cistercienses e natildeo obteve sucesso Sambucina e Casamari A filiaccedilatildeo soacute se

completou quando a abadia de Fossanova uma das principais casas cistercienses do territoacuterio

papal recebeu Corazzo como casa-filha em 1188411

409 Idem p 486 410 Idem p 489 411 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xx

124

A Ordem de Joaquim a Florense nasceu sob a inspiraccedilatildeo de Cister aprovada pelo

papa Celestino III em 1196 A Regra da nova ordem possivelmente era uma adaptaccedilatildeo

daquela que o abade jaacute seguia em Corazzo412 A Ordem Florense comeccedilou a se expandir

rapidamente depois de 1195 pelo menos ateacute o seacuteculo seguinte quando veio a estagnar413

Ela chegou a ter 60 casas mas 300 anos depois em 1505 a maioria dos membros se uniu

aos Cistercienses enquanto outros se juntaram aos Cartusianos ou Dominicanos414 De

qualquer forma seraacute no interior do movimento franciscano que Joaquim encontraraacute seus

principais seguidores

Ateacute o fim do periacuteodo normando o Reino da Siciacutelia manifestou um monasticismo

predominantemente beneditino com grandes casas dominando a regiatildeo continental Elas jaacute

existiam antes da chegada dos normandos poreacutem foram grandemente beneficiadas por eles

Elas conviviam ao lado de outros tipos de inspiraccedilatildeo ou movimentos religiosos como os

monasteacuterios gregos e os movimentos eremitas com seu ascetismo e desejo de reclusatildeo

Estes uacuteltimos em especial eram de curta duraccedilatildeo e logo eram inseridos nas tradiccedilotildees

beneditinas ou basilianas Apenas no final do seacuteculo XII as novas ordens religiosas

especialmente os cistercienses conseguiram ter um papel predominante na sociedade iacutetalo-

meridional

57 Resumo

Este capiacutetulo demonstrou o caraacuteter culturalmente plural do Reino da Siciacutelia espaccedilo

de convivecircncias trocas relacionamentos e conflitos entre normandos latinos gregos e

muccedilulmanos Esta sociedade viabilizou a manifestaccedilatildeo de praacuteticas sociais e religiosas de

uma forma rica com a presenccedila de igrejas gregas e latinas e monasticismos beneditinos e

basilianos frequentemente lado a lado O seacuteculo XII foi tambeacutem o periacuteodo em que a cuacuteria

romana expandiu seu controle sobre as igrejas e comunidades da Itaacutelia meridional a partir

de acordos com governantes normandos No fim do seacuteculo entretanto o poder sairia das

matildeos normandas para cair sob o controle da dinastia germacircnica Hohenstaufen Essa

412 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango n

1 p 217-240 2004 p 219 413 MC GINN Bernard Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der

Joachim of Fiore the Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 98 414 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 5

125

conjuntura de instabilidade social provocada pela transiccedilatildeo poliacutetica acabaraacute transparecendo

no Expositio in Apocalypsim

VI - DA EXEGESE PARA A HISTOacuteRIA A HERMENEcircUTICA

DE JOAQUIM

Enquanto consomem textos leitores criam sentidos inventam significados Mas a

forma muacuteltipla como Joaquim fez isso produziu na historiografia curiosas avaliaccedilotildees O

historiador italiano Ernesto Buonaiuti descreveu a metodologia do abade de ldquoorgia

simboacutelicardquo415 A pesquisadora inglesa Marjorie Reeves resumiu sua obra como resultado de

uma ldquoimaginaccedilatildeo caleidoscoacutepicardquo em funccedilatildeo do enlace iacutentimo entre texto e imagem416 O

cardeal francecircs Henri de Lubac historiador da exegese medieval definiu seu pensamento

como ldquodesorbitadordquo pois gerava sem cessar siacutembolos e tipos que se entrelaccedilavam

cruzavam e harmonizavam entre si417 Este capiacutetulo descreveraacute as tais formas de leitura de

Joaquim e sua metodologia hermenecircutica em confronto com a tradiccedilatildeo exegeacutetica e com

padrotildees de leitura encontrados especialmente no chamado novo monaquismo418

61 Non scientiam sed saporem Biacuteblia e monasticismo

Jean Leclercq estudioso francecircs da cultura monaacutestica419 sintetizou os usos da Biacuteblia

nas diversas esferas sociais e religiosas ocidentais entre Gregoacuterio Magno e o seacuteculo XII

sugerindo que era ela utilizada para auto-instruccedilatildeo e para o ensino puacuteblico manual para

catequeze livro base da adoraccedilatildeo puacuteblica e privada (gerando tanto a liturgia da comunidade

quando a piedade individual) fonte de material para a pregaccedilatildeo a arte e a iconografia

415 Citado por DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling

Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 47 416 REEVES Marjorie Joachim of Fiore and the Prophetic Future New York Harper Torchbooks 1976 p

8 417 DE LUBAC La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 47 418 O termo ldquonovo monaquismordquo eacute aqui usado para fazer um contraponto ao monaquismo do tipo beneditino

(Monges Negros) Cf VAUCHEZ Andreacute A espiritualidade na Idade Meacutedia ocidental (seacuteculos VIII a XIII)

Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 p 86 LOGAN F Donald A history of the Church in the Middle

Ages London Routledge 2002 p 136-145 LAWRENCE C H El monacato medieval formas de vida

religiosa en Europa occidental durante la Edad Media Madrid Editorial Gredos 1989 p 234-239 419 Sua obra mais significativa neste campo eacute LECLERCQ Jean The love of learning and the desire for God

A study of monastic culture New York Fordham University Press 1961

127

Segundo Leclercq apesar destes usos amplos os principais inteacuterpretes das Escrituras cristatildes

eram encontrados no monasticismo420

Eacute certo que as casas monaacutesticas poderiam receber monges natildeo-letrados mas a

vivecircncia no seu interior requeria certo envolvimento com a cultura escrita Afinal eles

precisavam ler ou cantar na liturgia421 Aleacutem destas praacuteticas outras se somariam como o

manuseio a preservaccedilatildeo e a ilustraccedilatildeo de manuscritos Isso fazia do monasteacuterio um lugar

privilegiado para o desenvolvimento da leitura e interpretaccedilatildeo da Biacuteblia

Ainda segundo o estudioso francecircs no interior dos muros monaacutesticos os monges

imprimiam na praacutetica da leitura biacuteblica um traccedilo muito proacuteprio da clausura Sem grandes

controveacutersias teoloacutegicas quando comparado com os tempos patriacutesticos e com a

efervescecircncia intelectual da escolaacutestica apenas comeccedilando a tendecircncia geral era usar a

leitura biacuteblica como ferramenta da vida contemplativa422 O professor Reventlow

acompanhou Leclercq neste sentido generalizando que o objetivo dos leitores da Biacuteblia

nestes espaccedilos ateacute o seacuteculo XI seria meditar sobre o texto promover a adoraccedilatildeo e fomentar

a contemplaccedilatildeo423

Natildeo muito diferente do francecircs Leclercq e do alematildeo Reventlow o historiador

italiano Ambrogio Piazzoni tambeacutem entende a exegese monaacutestica como um modo particular

de interpretar a Escritura na Idade Meacutedia O professor da Universitagrave degli Studi della Tuscia

entretanto argumenta em prol de uma inflexatildeo significativa dos estudos biacuteblicos no final do

seacuteculo XI e durante o seacuteculo XII caracterizada por uma nova sensibilidade na leitura e no

uso dos textos424 Perspectiva semelhante levou de Lubac a intitular este revigoramento

biacuteblico de ldquouma nova primavera da exegeserdquo425 muito em funccedilatildeo dos representantes do

420 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard In LAMPE G W H (ed) The Cambridge

History of the Bible The West from the Fathers to the Reformation Cambridge Cambridge University Press

1969 p 183-197 p 184 421 MORTON James Deas David Jack Tam grecos quam latinos A reinterpretation of Structural Change in

Eastern-Rite Monasticism in Medieval Southern Italy 11th-12th Ontario Queenacutes University 2011 p 3

Sobre este tema conferir uma antiga exortaccedilatildeo a este respeito presente na regra de Ferreol (553-581) bispo de

Uzegrave na Gaacutelia em PARKES Malcom La alta Edad Media In CAVALLO Guglielmo CHARTIER Roger

(eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 153-178 p 157 ldquoaquele que

deseja se chamar monge natildeo pode se permitir ficar na ignoracircncia das letrasrdquo (ldquoOmnis qui nomem vult monachi

vidicare litteras ei ignorare non liceatrdquo) 422 LECLERCQ Jean From Gregory the Great to Saint Bernard op cit p 184 423 REVENTLOW Henning Graf History of Biblical Interpretation From Late Antiquity to the End of the

Middle Ages Atlanta Society of Biblical Literature 2009 3 v V 2 p 172 424 PIAZZONI Ambrogio M Lesegesi neomonastica In CREMASCOLI Giuseppe LEONARDI Claudio

(eds) La Bibbia nel Medio Evo Bologna Centro Editoriale Dehoniano 1996 p 217-237 p 218 425 DE LUBAC Henri Medieval exegesis the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans

Publishing Company 2000 2 v V II p 151

128

chamado neomonasticismo destacadamente os cistercienses mas sem esquecer tambeacutem

alguns expoentes do ldquovelho monaquismordquo426

A praacutetica da leitura biacuteblica era um dos pilares da vida do monge Para um religioso

a Biacuteblia era nos termos de Piazzoni o livro de ldquocada dia todo o dia e muitas vezes ao

diardquo427 Ele percorria suas paacuteginas escutava sua leitura lia-a sozinho cantava-a com seus

irmatildeos na liturgia

A lectio428 monaacutestica poderia ser ilustrada pelo testemunho do cartusiano Guigo II

abade entre 1174 e 1180 da casa-matildee da Ordem dos Cartuxos em Saint-Pierre-de-

Chartreuse na Franccedila Segundo este abade o desenvolvimento espiritual comeccedila com a

lectio passa pela meditatio conduz agrave oratio e conclui com a contemplatio Eacute uma escala

ascendente429 Neste mesmo sentido registrava ainda um opuacutesculo anocircnimo destinado aos

novos monges ldquoQuando ler procure o sabor e natildeo o saberrdquo (ldquoSi ad legendum accedat non

quaerat scientiam sed saporemrdquo) E acrescentava ldquono momento da leitura poderaacute

contemplar e orarrdquo (ldquoin ipsa lectione poterit contemplari et orarerdquo)430 Desta forma a lectio

entrava na vida do monge como uma forma de oraccedilatildeo ou culto

Esta exegese monaacutestica se fundava sobre as bases de um relacionamento contiacutenuo

com o texto sagrado de uma memoacuteria impregnada das Escrituras Como resumiu ainda

Piazzoni era uma memoacuteria visual de palavras escritas muscular de palavras pronunciadas e

auditiva de palavras escutadas431 O aspecto visual nascia tanto das leituras quanto das

representaccedilotildees da Biacuteblia em imagens espalhadas por quadros esculturas e iacutecones nas

paredes nas colunas e nos tetos das construccedilotildees O aspecto muscular se desenvolvia por

causa da leitura em voz alta ao articular-se as palavras lidas com a boca432 A leitura era

murmurada mesmo se feita sozinha o que gerou a expressatildeo ruminatio433 Como

426 PIAZZONI op cit p 218 427 Idem p 219 428 Leitura e explicaccedilatildeo das Escrituras Cf BLAISE Albert Lexicon Latinitatis Medii Aevi Turnholti

Typografhi Brepols 1975 p 528 429 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 221 430 Idem p 222 431 Idem 432 Ao menos para a alta Idade Meacutedia cf PARKES op cit p 160 Segundo Hamesse essa praacutetica de leitura

sofreu uma profunda transformaccedilatildeo no seacuteculo XII em funccedilatildeo de novos padrotildees exercitados nas escolas ou

universidades Cf HAMESSE Jacqueline El modelo escolastico de la lectura In CAVALLO Guglielmo

CHARTIER Roger (eds) Historia de la lectura en el mundo occidental Madrid Taurus 2001 p 179-210

p 207 Entretanto o argumento de Hamesse natildeo impede a perspectiva de que estas ldquonovidadesrdquo natildeo alteraram

a ruminatio entre os monges 433 O termo ldquoruminatiordquo vem do verbo ldquoruminarerdquo que expressa a ideia de ruminaccedilatildeo girar na mente accedilatildeo

cotidiana Cf LEWIS Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p

1604 Albert Blaise entatildeo preferiu traduzir como ldquocantar sozinhordquo Cf BLAISE op cit p 806

129

consequecircncia tambeacutem da memoacuteria muscular desenvolvia-se a memoacuteria auditiva enquanto

ouvia a proacutepria voz ou em funccedilatildeo de outros processos em que o monge escutava a leitura

Biacuteblica implementados na liturgia na pregaccedilatildeo ou durante as refeiccedilotildees

A praacutetica de ruminar a Biacuteblia de ldquomastigaacute-lardquo todo o dia e o dia todo criava o

fenocircmeno da reminiscecircncia Assim para explicar uma passagem da Biacuteblia o monge fazia

uso de outra passagem que em sua mente se associava remanejando suas frases e

construindo novos textos Neste sentido Piazzoni argumenta que certo desprendimento em

relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo eacute um significativo traccedilo da exegese monaacutestica e neomonaacutestica do seacuteculo

XII Guilherme (1085- 1148) abade de Sant-Thierry escreveu ldquoA escritura deve ser lida no

espiacuterito em que foi gerada Neste espiacuterito deve ser compreendidardquo434 Segundo ele o mesmo

Espiacuterito que inspirou os textos estaria com aqueles que entatildeo os interpretavam

Ruperto (1075-1130) abade na cidade germacircnica de Deutz representante do

monasticismo beneditino insistia que a interpretaccedilatildeo da Biacuteblia depende de uma

compreensatildeo especial que eacute dom do Espiacuterito Santo dom esse similar agravequele que ele deu aos

apoacutestolos para que pudessem compreender o Antigo Testamento Quem recebe tal dom de

interpretaccedilatildeo tem o dever de expor o que percebe na Biacuteblia Ele afirmou assim a existecircncia

de um ldquodom da exegeserdquo nos moldes dos antigos dons do apostolado e profecia435 o que

promovia a autonomia do inteacuterprete em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde

Neste sentido tambeacutem o cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153) que insistia

que tudo na Biacuteblia tinha um sentido para o leitor e nenhum detalhe dos textos biacuteblicos

poderia ser negligenciado Como os textos tinham vaacuterios sentidos Deus o mestre das

Escrituras ajudaria os leitores a compreender da mesma forma como ajudou os autores a

escrever O resultado desta leitura sagrada eacute entatildeo um cacircntico de amor (carmen spiritus) um

ato lituacutergico Cada leitor da Biacuteblia poderia ser inspirado quase como os proacuteprios autores

originais o que justificaria a diversidade de interpretaccedilatildeo dos textos sagrados436

A exegese praticada por representantes tanto do antigo monasticismo quanto das

novas casas monaacutesticas ocidentais no seacuteculo XII conhecia os sentidos tradicionais praticados

desde Oriacutegenes (185-254) histoacuterico alegoacuterico tropoloacutegico e anagoacutegico437 Este sistema de

alegorizaccedilatildeo foi desenvolvido de acordo com o qual quatro significados deveriam ser

434 Citado a partir de PIAZZONI op cit p 223 435 Idem p 228 436 Idem p 229 437 Uma anaacutelise diacrocircnica dos quatro sentidos pode ser encontrada em DE LUBAC Henri Medieval exegesis

the four senses of Scripture Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2000 2 v V I p 15-

267

130

procurados em cada texto biacuteblico O nuacutemero de sentidos variava entre os autores Alguns

trabalhavam com dois sentidos outros com ateacute sete Mas o nuacutemero mais frequentemente

usado era quatro438 Um pequeno diacutestico presente na obra Rotulus pugillaris do dominicano

Agostinho de Dacia em 1260 ilustra os quatro sentidos ldquoA letra nos mostra os eventos a

alegoria nos mostra a feacute o significado moral nos ensina a agir a anagogia nos indica para

onde vamosrdquo439

Os monges dos tempos reformistas em funccedilatildeo do anseio pela contemplaccedilatildeo tinham

o sentido tropoloacutegicomoral como alvo maior A letra deveria ser superada em prol de um

sentido mais elevado de compreensatildeo das Escrituras O resultado eacute uma leitura biacuteblica

interiorizante ldquoespiritualrdquo que prosperava dentro do monasteacuterio Do lado de fora dos seus

muros entretanto outro padratildeo de hermenecircutica comeccedilava a se fortalecer em que se

buscava natildeo mais a meditatio mas a disputatio Esta forma extra claustrum de interpretaccedilatildeo

biacuteblica feita por pessoas ldquoque por meios escolaacutesticos se enchem de conhecimentordquo (ldquoqui

scholastica inflantur scientiardquo)440 aborrecia alguns monges entre eles o autor do Expositio

in Apocalypsim

62 Novo saltem genere exponendi um novo meacutetodo

No iniacutecio do Expositio Joaquim resumiu sua maneira de relacionar Biacuteblia e histoacuteria

O primeiro dos trecircs status dos quais noacutes falamos era no tempo da Lei

quando o povo do Senhor serviu como uma crianccedila pequena por um tempo

debaixo dos elementos (rudimentos) do mundo Eles natildeo estavam

habilitados ainda a alcanccedilar a liberdade do Espiacuterito ateacute que venha de quem

se disse ldquoSe o Filho libertar vocecircs vocecircs verdadeiramente seratildeo livresrdquo

(Joatildeo 866) O segundo status estava sob o Evangelho e permaneceu ateacute o

presente com liberdade em comparaccedilatildeo com o passado mas natildeo com

liberdade em comparaccedilatildeo com o futuro Porque o Apoacutestolo disse ldquoAgora

noacutes conhecemos em parte e profetizamos em parte o que eacute perfeito tiver

vindo o que eacute em parte passaraacuterdquo (1Coriacutentios 1312) E em outro lugar

ldquoOnde o Espiacuterito do Senhor estaacute aqui haacute liberdaderdquo (2Coriacutentios 317) Por

conseguinte o terceiro status viraacute ao se aproximar o fim do mundo natildeo

distante sob o veacuteu da carta mas na plenitude do Espiacuterito quando apoacutes a

destruiccedilatildeo e cancelamento do falso evangelho do Filho da Perdiccedilatildeo e seus

profetas aqueles que ensinaratildeo a muitos sobre justiccedila seratildeo como o

438 TRACY Robert TRACY David A short history of the interpretation of the Bible Minneapolis Fortress

Press 1984 p 136-145 439 ldquoLittera gesta docet quid credas allegoria Moralis quid agas quo tendas anagogiardquo Citado a partir de

DE LUBAC Henri Medieval exegesishellip v I op cit 1 440 Expressatildeo de Joaquim de Fiore no Tractatus Super Quatuor Evangelia citado a partir de DE LUBAC La

posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 16

131

esplendor do firmamento e como as estrelas para sempre (Expositio in

Apocalypsim 5r-v)441

Nesta mesma passagem algumas linhas agrave frente o abade faz referecircncia a uma certa

forma de ler e interpretar a Biacuteblia ldquoA carta do Primeiro Testamento parece por certa

propriedade de semelhanccedila pertencer ao Pai A carta do Novo Testamento pertence ao Filho

Entatildeo a compreensatildeo espiritual que procede de ambos pertence ao Espiacuterito Santordquo Mas que

hermenecircutica ldquoespiritualrdquo eacute essa que Joaquim chamou de ldquonovo tipo de exposiccedilatildeordquo (ldquonovo

saltem generi exponendirdquo)442 Ela seria ldquonovardquo em que sentido

A insistecircncia do abade em chamar sua forma de exponere a Biacuteblia de ldquonovardquo indica

algum tipo de insatisfaccedilatildeo com as metodologias exegeacuteticas que ele encontrou nos espaccedilos

religiosos Isso pode ter relaccedilatildeo com sua ansiedade apocaliacuteptica Apoacutes uma peregrinaccedilatildeo agrave

Palestina ele possui a convicccedilatildeo de que a humanidade estaacute se aproximando de um estaacutegio

histoacuterico decisivo Ele deseja compreender estes sinais dos tempos e procura ler os textos

biacuteblicos agrave procura de uma explicaccedilatildeo religiosa Contudo as ferramentas exegeacuteticas

disponiacuteveis natildeo lhe satisfazem ou pelo menos lhe parecem ineficientes para interpretar os

textos sagrados e encontrar algum sentido para a conjuntura histoacuterica dos seus dias Seria

preciso entatildeo elaborar uma metodologia ldquonovardquo para interpretar a Biacuteblia e a histoacuteria443

Essa perspectiva de ldquonovidaderdquo em Joaquim tambeacutem teria relaccedilatildeo com sua

compreensatildeo da natureza da exegese Como Ruperto de Deutz jaacute anteriormente

mencionado o abade parece falar de um ldquodom da exegeserdquo uma capacitaccedilatildeo sobrenatural

necessaacuteria para apreender o que natildeo estaria disponiacutevel para a compreensatildeo de todos As

passagens da Biacuteblia natildeo conteriam apenas palavras e frases acessiacuteveis de imediato a qualquer

leitor mas igualmente misteacuterios (mysteria) e segredos (secreta) especialmente relacionados

com os propoacutesitos divinos quanto agrave histoacuteria humana

Para Joaquim o Apocalipse de Joatildeo narraria a histoacuteria de como Deus entregou um

livro para o Cordeiro fechado com sete selos (Apocalipse 51-14) Esta narrativa biacuteblica

indicaria que o sentido dos personagens e dos eventos da histoacuteria humana estatildeo encobertos

A revelaccedilatildeo se encontraria inteiramente nas matildeos do Cristo do Apocalipse Estava completa

441 Traduccedilatildeo a partir de MC GINN Bernard Visions of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages

New York Columbia University Press 1979 p 133-134 442 O verbo ldquoexponerordquo pode ser traduzido como ldquorevelaccedilatildeordquo ldquoexposiccedilatildeordquo ldquoproduccedilatildeordquo Cf BLAISE op cit

p 363 443 REVENTLOW op cit p 173 tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval a compreensatildeo

espiritual de Joaquim de Fiore Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 35 p 99-118 2012 p 101

132

mas escondida tornando-se disponiacutevel apenas com ajuda divina Sem este amparo os textos

biacuteblicos seriam hermeacuteticos pelo menos no que tange ao sentido ldquoespiritualrdquo jaacute que sentidos

inferiores ainda poderiam ser acessados pela razatildeo humana (como os escolaacutesticos ldquoinchados

de ciecircnciardquo que ele critica) Em outras palavras para o abade algumas coisas estatildeo

encobertas outras estatildeo escondidas algumas pessoas podem acessar as coisas encobertas

outras somente compreendem a superfiacutecie dos textos sagrados

Entre as coisas escondidas na Biacuteblia estatildeo os eventos e tribulaccedilotildees do final dos

tempos os falsos profetas os anticristos e a materializaccedilatildeo do reino divino na histoacuteria Deus

por meio de Cristo teria disponibilizado uma ldquocompreensatildeo espiritualrdquo a algumas pessoas

permitindo a elas adentrarem as profundezas das Escrituras e alcanccedilarem os segredos e

misteacuterios Joaquim faz assim uma distinccedilatildeo entre a capacidade de ler as Escrituras e a de

penetrar nos misteacuterios sagrados por meio de uma diferenciaccedilatildeo entre pessoas naturais (viri

animales) e pessoas espirituais (viri spirituales) Os misteacuterios da Escritura seriam

conhecidos apenas das pessoas espirituais jaacute que as naturais natildeo os podem perceber A

praacutetica da interpretaccedilatildeo biacuteblica ldquoespiritualrdquo consequentemente se daria pela obtenccedilatildeo da

ldquointeligecircnciardquo necessaacuteria por meio da iluminaccedilatildeo do Espirito Santo que permitiria aos assim

escolhidos (electi) duas coisas a capacidade de discernir a Biacuteblia e a habilidade de entender

o sentido da histoacuteria especialmente os ldquosinais dos temposrdquo444

Joaquim se apoiava em ideias paulinas como a oposiccedilatildeo entre compreensatildeo natural

e espiritual (1Coriacutentios 26-16) e a indicaccedilatildeo de uma forma infantil em oposiccedilatildeo agrave uma

forma adulta de entender as coisas de Deus (1Coriacutentios 139-12)445 Como consequecircncia ele

afirma pelo menos dois tipos de interpretaccedilatildeo uma que trabalha com a letra (secundum

litteram) e outra que se move para um niacutevel mais profundo (secundum spiritum)

A partir destes dois procedimentos baacutesicos (segundo a letra e segundo o espiacuterito) o

abade daacute mais um passo na estruturaccedilatildeo do seu meacutetodo relacionando a lectio com a Trinitas

Desta reflexatildeo trinitaacuteria surgiu o conjunto das ferramentas do seu sistema hermenecircutico

composto por trecircs partes a concordia equivalente agrave leitura segundo a letra e a alegoria e a

444 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 19 445 Esta segunda passagem de Paulo eacute uma das preferidas de Joaquim retornando constantemente em suas

explicaccedilotildees metodoloacutegicas ldquoPorque em parte conhecemos e em parte profetizamos Quando poreacutem vier o

que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino falava como menino sentia

como menino pensava como menino quando cheguei a ser homem desisti das coisas proacuteprias de menino

Porque agora vemos como em espelho obscuramente entatildeo veremos face a face Agora conheccedilo em parte

entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Coriacutentios 139-12)

133

tipologia como leituras espirituais446 Jaacute que a Trindade eacute formada por trecircs pessoas divinas

que atuam como se fossem uma soacute as ferramentas exegeacuteticas de Joaquim tambeacutem deveriam

operar como se fossem apenas uma Somadas elas resultam na denominada ldquonova forma de

exposiccedilatildeordquo

Mas seria realmente ldquonovardquo esta metodologia exegeacutetico-hermenecircutica A resposta

da historiografia eacute dupla neste caso A tendecircncia eacute afirmar algum tipo de viacutenculo tradicional

ao mesmo tempo em que se indica em que sentido seu caminho poderia ser novo como o

professor Rossatto ao considerar que Joaquim teria partido da tradiccedilatildeo por assumir e

revigorar antigos meacutetodos de interpretaccedilatildeo poreacutem simultaneamente proposto um modo

ineacutedito de compreensatildeo no caso a concordia447 Isso significa dizer que a primeira parte do

sistema eacute nova enquanto a segunda jaacute era longamente utilizada pelos inteacuterpretes da Biacuteblia

A historiadora italiana Tagliapietra explica esta relaccedilatildeo entre novidade e tradiccedilatildeo

com o recurso aos jaacute mencionados quatro sentidos da exegese medieval O sentido literal foi

transformado por Joaquim na sua concordia A alegoria foi multiplicada pelo abade em cinco

tipos diferentes (histoacuterica moral tropoloacutegica contemplativa e anagoacutegica) A estes o abade

acrescentou o antigo meacutetodo da tipologia subdivido em sete formas diferentes Como

resultado os sentidos tradicionais se transformaram nas matildeos do abade em doze

possibilidades de significaccedilatildeo448 Contudo ele natildeo os chama todos do mesmo jeito Apenas

trecircs satildeo denominados ldquosentidosrdquo a letra (concordia) a alegoria (allegoricus intellectus) e a

tipologia (intelligentia typica)449 As demais divisotildees satildeo chamadas de espeacutecies (species)

inteligecircncias espirituais (inteligentiae spirituales) ou interpretaccedilatildeo espiritual (mystica

interpretatio)

Assim em siacutentese o sistema hermenecircutico de Joaquim de Fiore se articula sobre trecircs

bases a exposiccedilatildeo dos diversos tipos de alegoria dos diversos tipos de tipologia e a

concordia que funciona como o elemento que coloca o sistema em movimento450

446 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 101 447 Idem p 100 448 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 26 449 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 44 450 SANTI op cit p 261

134

63 Concordia duorum testamentorum ut trium statuum ontem hoje e amanhatilde

A noccedilatildeo fundamental do sistema exegeacutetico de Joaquim eacute chamada por ele de

concordia Blaise no seu Lexicon Latinitatis Medi Aevi traduz o substantivo feminino

concordia como entre outras acepccedilotildees ldquoato de organizarrdquo e o verbo concordiare como

ldquofazer acordordquo451 Outro uso muito comum aparece em Suetocircnio (69-141) historiador dos

doze ceacutesares que apresenta uma divindade chamada Concordia a quem os romanos

dedicavam cultos e festas apoacutes distuacuterbios beacutelicos especialmente no final de uma guerra civil

(De vita caesarum III 20)452 Como antocircnimo de discordia o termo era relativamente

frequente tanto na prosa quanto na poesia latina

Mas como as palavras natildeo satildeo estaacuteticas e podem variar de sentido com o tempo e a

situaccedilatildeo Tagliapietra analisou as ocorrecircncias de concordia em Joaquim de Fiore e reuniu

quatro possibilidades de significado harmonia semelhanccedila correlaccedilatildeo e compensaccedilatildeo A

ldquoharmoniardquo poderia lembrar ao leitor moderno o sentido de sinopse como exemplificado

pelo Diatessaron de Taciano (120-180) que resumiu quatro evangelhos de Jesus em uma

uacutenica narrativa Jaacute ldquosemelhanccedilardquo tem relaccedilatildeo com paralelismo e aparece no tiacutetulo da obra

mais conhecida de Joaquim (Liber de Concordia Novi ac Veteris Testamenti) que comeccedila

com a expressatildeo ldquoIncipit praephatio libri concordantiarumrdquo (1r) O terceiro significado

ldquocorrelaccedilatildeordquo tem ligaccedilatildeo com periodizaccedilatildeo da histoacuteria uma espeacutecie de lei estrutural do

curso do tempo ou uma filosofia da histoacuteria O quarto significado ldquocompensaccedilatildeordquo indica

que cada pessoa cada evento da histoacuteria reverbera no futuro segundo uma reserva de

sentido fazendo com que o estudo do passado se torne tambeacutem um exerciacutecio de vaticiacutenio453

O proacuteprio Joaquim deu a sua definiccedilatildeo do termo concordia ldquouma similaridade de

igual proporccedilatildeo entre o Novo e o Antigo Testamentos igual eu digo quanto ao nuacutemero natildeo

quanto a dignidaderdquo454 (Liber de Concordia 7rb) Ele a ilustrou com a imagem de uma

estrada contiacutenua que liga uma cidade a um deserto cujos viajantes passam por vales e

montanhas Nos vales eles podem admirar a paisagem Nas montanhas eles conseguem ver

451 BLAISE op cit p 222 452 Esta eacute a referecircncia especiacutefica ldquoDedicavit et Concordiae aedem item Pollucis et Castoris suo fratrisque

nomine de manubiisrdquo Uma traduccedilatildeo seria Tibeacuterio ldquodedicou um templo agrave deusa Concordia e outro a Castor e

Polux em seu nome e em nome de seu irmatildeordquo Conferir uma ediccedilatildeo biliacutengue em SUETONIUS Lives of the

Caesars Cambridge Harvard University Press 1979 2 v V 1 p 322 Outra traduccedilatildeo para o inglecircs pode ser

encontrada em SUETONIUS Lives of the Caesars Oxford Oxford University Press 2000 p 109 453 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 21-25 454 ldquoConcordiam proprie esse dicimus similitudinem eque proportionis novi ac veteris testamenti eque dico

quo ad numerum non quo ad dignitatemrdquo

135

o que veio antes e o que vem depois Ele costumava usar tambeacutem duas imagens biacuteblicas para

explicar sua ferramenta metodoloacutegica os dois querubins que estavam sobre a tampa da arca

(Ecircxodo 2520)455 e as duas rodas da visatildeo de Ezequiel (Ezequiel 116)456 No primeiro caso

duas figuras angelicais estatildeo voltadas uma para a outra em cima da arca da alianccedila No

segundo caso duas rodas giram uma dentro da outra embaixo do trono-carruagem de Javeacute

A primeira imagem reforccedila o senso de paralelismo entre os dois testamentos (concordia

duorum testamentorum) jaacute que um se volta para o outro No caso da segunda imagem ela

desenvolve o sentido de correlaccedilatildeo entre os trecircs status (concordia trium statuum) ao apontar

para eventos que se desenvolvem dinamicamente na histoacuteria

Tanto no caso dos dois testamentos quanto no dos trecircs estados o meacutetodo da

concordia consiste entatildeo em encontrar posiccedilotildees semelhantes de pessoas e eventos dentro

de tempos (tempora ou status) diferentes e apontar em que sentido eles satildeo similares (em

caracteriacutesticas ou atos)457 Um exemplo poderia ser dado pelo caso do patriarca Jacoacute que

ocupa a mesma posiccedilatildeo dentro do primeiro status que o homem Jesus ocupa no segundo

Ocupando posiccedilotildees semelhantes no interior de seus respectivos status eles manifestam atos

espirituais parecidos e exercem papeis religiosos paralelos Entretanto natildeo satildeo iguais em

dignidade Eacute isso que significa ser ldquosimilar quanto a nuacutemerordquo e natildeo quanto a ldquodignidaderdquo

As pessoas ocupam as mesmas posiccedilotildees em suas proacuteprias geraccedilotildees e tecircm papel semelhante

mas natildeo possuem o mesmo status espiritual O homem Jesus foi maior em dignidade que

Jacoacute o que significa dizer que ele possuiacutea uma compreensatildeo espiritual maior e realizou obras

maiores458

Joaquim comeccedila o exerciacutecio de sua concordia por meio da distinccedilatildeo entre histoacuteria

geral e histoacuteria especial Segundo o abade

Toda a floresta de histoacuterias que ofusca o Antigo Testamento eacute dividida em

cinco partes das quais uma eacute geral e quatro satildeo especiais Porque haacute uma

roda que tem quatro faces Existe uma histoacuteria geral agrave qual quatro histoacuterias

especiais satildeo unidas A histoacuteria geral eacute aquela que comeccedila no iniacutecio do

mundo e caminha direto ateacute o livro de Esdras [] Existem quatro histoacuterias

especiais pequenas das quais a primeira eacute Joacute a segunda eacute Tobias a

terceira eacute Judite e a quarta eacute Ester Aquela eacute a roda Estas satildeo as faces

(Enchridion super Apocalypsim 2r-3r)459

455 ldquoOs querubins estenderatildeo as asas por cima cobrindo com elas o propiciatoacuterio estaratildeo eles de faces voltadas

uma para a outra olhando para o propiciatoacuteriordquo (Ecircxodo 2520) 456 ldquoO aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o berilo tinham as quatro a mesma aparecircncia

cujo aspecto e estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outrardquo (Ezequiel 116) 457 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip p 79 458 Idem 459 Traduccedilatildeo a partir da versatildeo italiana GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Traduzione e cura di

Andrea Tagliapietra Milano Feltrinelli 2008 p 133

136

O que ele chama de ldquohistoacuteria geralrdquo eacute uma grande narrativa presente no Antigo

Testamento que parte do livro de Gecircnesis e se estende ateacute a obra de Esdras Usando a

imagem das duas rodas concecircntricas de Ezequiel o abade denomina esta ldquohistoacuteria geralrdquo de

ldquoroda exteriorrdquo agrave qual estatildeo vinculadas quatro pequenas histoacuterias (denominadas ldquohistoacuterias

especiais) presentes em obras menores Joacute Tobias Judite e Ester As histoacuterias especiais se

vinculam agrave roda exterior como as ldquoluzesrdquo nas rodas da visatildeo ezequieacutelica460

A operaccedilatildeo da concordia encontrou esta mesma estrutura no Novo Testamento

Tambeacutem nele haacute uma histoacuteria geral e quatro histoacuterias especiais Joaquim identificou a

histoacuteria geral com o Apocalipse de Joatildeo enquanto as quatro especiais correspondem aos

quatro evangelhos canocircnicos Mateus Marcos Lucas e Joatildeo E se o Antigo Testamento

forma a roda exterior o Apocalipse corresponde agrave roda interior da visatildeo do profeta do exiacutelio

babilocircnico Como satildeo duas rodas concecircntricas ambas giram de forma paralela de tal

maneira que uma pessoa dotada da ldquointeligecircncia espiritualrdquo poderia perceber os eventos que

se repetem Voltando a uma imagem anterior a concordia eacute a estrada que liga as duas rodas

permitindo aos viajantes visualizar por meio de suas montanhas o que jaacute aconteceu e o que

estaacute por acontecer461

Sendo assim como insistiu o professor Emmett Randolph Daniel o que acontece na

concordia natildeo pode ser confundido nem com alegoria nem com tipologia Seu trabalho

precede as outras duas atividades hermenecircuticas do abade462 Este sentido ldquosegundo a letrardquo

era a percepccedilatildeo de narrativas biacuteblicas como uma descriccedilatildeo natildeo apenas do que teria

acontecido mas tambeacutem do que ainda aconteceria Por meio destas narrativas seria possiacutevel

discernir o passado o presente e futuro463 Natildeo haacute na concordia uma relaccedilatildeo horizontal entre

anuacutencio e realizaccedilatildeo como na tipologia ou vertical entre letra e espiacuterito como na alegoria464

O que haacute eacute um paralelismo histoacuterico dinacircmico e progressivo

460 Na visatildeo de Ezequiel aparentemente haviam luzes que brilhavam tanto na roda exterior quanto na interior

enquanto o trono de Deus se movia (Ezequiel 11-25) 461 DANIEL E Randolph Joachim of Fiorehellip op cit p 78 462 Idem p 79 tambeacutem MC GINN Bernard Visions of the Endhellip op cit p 126-141 WEST ZIMDARS-

SARTZ op cit p 42 463 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard

K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-

88 79 464 ROSSATTO Noeli Dutra Hermenecircutica medieval op cit p 106 DE LUBAC Henri La posteridad

espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 44

137

64 Allegoricus intellectus uma noz com vaacuterias camadas

Durante um dos mais antigos exerciacutecios exegeacuteticos conhecidos de Joaquim presente

no primeiro sermatildeo do Praephatio super Apocalypsim datado para o iniacutecio da deacutecada de

1180 no periacuteodo em que ainda era abade de Corazzo apoacutes usar a concordia para apontar

paralelos entre as doze tribos de Israel e a histoacuteria da igreja ele afirma ldquoMas deixemos estas

coisas no invoacutelucro externo da noz para mostrar agora algo de sua casca de maneira que

num terceiro momento possamos extrair um viscoso alimentordquo465

Mais agrave frente apoacutes algumas frases ele retoma a imagem da noz ldquoEis que jaacute eacute viziacutevel

o nuacutecleo que estava encoberto pela casca aparece a verdadeira vida que os panos envolviam

no sepulcrordquo466 Desta vez ele faz alusatildeo ao sepultamento de Jesus e aos panos que

envolviam seu corpo467

As imagens das camadas da noz e do corpo enrolado pelos panos refletem o convite

do abade para ir aleacutem da concordia dos textos biacuteblicos coisa que ele colocou em praacutetica em

suas vaacuterias obras de exposiccedilatildeo biacuteblica (entre elas o Expositio in Apocalypsim) movendo-se

de uma compreensatildeo segundo a letra para justificar uma compreensatildeo segundo o espiacuterito (da

concordia para os princiacutepios espirituais)468

Neste processo contiacutenuo de aprofundamento na direccedilatildeo do ldquoviscoso alimento da

nozrdquo ele toma a alegoria469 e a subdivide em cinco princiacutepios alegoacutericos Por que cinco A

Trindade tambeacutem usada para justificar as trecircs partes de sua metodologia (concordia

alegoria e tipologia) agora eacute usada como base para as cinco subdivisotildees alegoacutericas

465 O sermatildeo eacute o Apocalipsis liber ultimus citado a partir de ROSSATTO Noeli Dutra Introduccedilatildeo ao

Apocalipse op cit p 460 466 Idem p 461 467 ldquoTomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lenccediloacuteis com os aromas como eacute de uso entre os judeus

na preparaccedilatildeo para o sepulcrordquo (Joatildeo 1940) 468 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 46 Estes princiacutepios espirituais satildeo derivados da operaccedilatildeo

alegoacuterica e tipoloacutegica Uma descriccedilatildeo das duas tradiccedilotildees pode ser encontrada em YOUNG Frances

Alexandrian and Antiochene Exegesis In HAUSER Alan J WATSON Duane F (eds) A history of biblical

interpretation The Ancient Period Grande Rapids William B Eerdmans Publishing Company 2003 2 v V

1 p 334-354 469 Segundo Stefaniw este tipo de interpretaccedilatildeo concebia o texto como um meio de revelaccedilatildeo de misteacuterios

escondidos ldquopor traacutes das letrasrdquo Cf STEFANIW Blossom Reading Revelation Allegorical Exegesis in Late

Antique Alexandria Revue de lrsquohistoire des religions Paris n 2 p 231-251 2007 p 231-232 Ulleacuten distingue

alegoria como gecircnero literaacuterio como utilizado por Dante na obra ldquoDivina Comeacutediardquo de alegoria como forma

de interpretaccedilatildeo Aparentemente o primeiro fenocircmeno nasceu em consequecircncia do segundo que por sua vez

eacute tatildeo antigo quanto as primeiras interpretaccedilotildees dos eacutepicos de Homero Sua definiccedilatildeo de alegoria como meacutetodo

hermenecircutico eacute ldquouma forma sistemaacutetica de compreender o texto que se baseia em uma norma

intersubjetivamente determinadardquo Cf ULLEacuteN Magnus Dante in Paradise The End of Allegorical

Interpretation New Literary History Baltimore v 32 n 1 p 177-199 2001 p 183

138

Sua confissatildeo trinitaacuteria foi resumida por West e Zimdars-Swartz como ldquoDeus eacute um

Deus sem confusatildeo de pessoas e trecircs pessoas sem divisatildeo de substacircnciardquo470 Ele faz uma

distinccedilatildeo das trecircs Pessoas divinas baseadas em sua origem O Pai natildeo eacute gerado (ingenitus)

o Filho eacute gerado pelo Pai (genitus) e o Espiacuterito Santo procede de ambos (ab utroque

procedens) Associado com a origem das Pessoas da Trindade estaacute tambeacutem o relacionamento

entre elas expresso na forma como satildeo nomeados O Pai eacute assim chamado porque tem um

Filho igualmente o Filho porque tem um Pai jaacute o Espiacuterito eacute assim nominado porque

procede de ambos O abade entatildeo enumera as cinco possiacuteveis relaccedilotildees entre as Pessoas

divinas ligando cada uma com um tipo diferente de alegoria

ndash alegoria histoacuterica a relaccedilatildeo do Pai com o Filho afinal ele eacute Pai de um Filho

ndash alegoria moral a relaccedilatildeo do Filho com o Pai afinal ele eacute Filho de um Pai

ndash alegoria tropoloacutegica a relaccedilatildeo entre o Pai e o Filho com o Espiacuterito afinal este vem

de ambos

ndash alegoria contemplativa a relaccedilatildeo do Filho e do Espiacuterito com o Pai afinal ambos

satildeo enviados pela primeira Pessoa divina

ndash alegoria anagoacutegica a relaccedilatildeo das trecircs Pessoas com cada criatura afinal as trecircs satildeo

Deus e Criador471

Como jaacute indicamos Joaquim soacute denominava de ldquosentidosrdquo a concordia a alegoria e

a tipologia As subdivisotildees (tanto da alegoria quanto da tipologia) por sua vez ele as

denomina species ou intelligentia Assim a primeira species de alegoria eacute a historica

intelligentia ou compreensatildeo histoacuterica Apesar do nome ela natildeo corresponde agrave letra do

texto mas indica o significado de um evento ou figura histoacuterica como exemplo de uma

condiccedilatildeo espiritual Joaquim ilustrou esta species com as duas esposas de Abraatildeo A alegoria

histoacuterica veria em Sara a representaccedilatildeo de uma mulher livre enquanto Hagar representaria

uma escrava Este sentido alegoacuterico teria um caraacuteter mais cognoscitivo apesar de

implicitamente convidar agrave associaccedilatildeo com a esposa livre em vez da escrava

A alegoria moral (moralis intelligentia) indica que haacute uma semelhanccedila entre coisas

visiacuteveis e coisas invisiacuteveis que se exprime na forma de uma qualidade eacutetica Sara neste niacutevel

representaria o prazer espiritual enquanto Hagar a escravidatildeo da carne Esta secunda

species alegoacuterica quer fornecer ensinamentos e demandas de ordem moral

470 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 53 Para uma anaacutelise da doutrina trinitaacuteria em Joaquim cf

ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore Trindade e nova era Porto Alegre EDIPUCRS 2004 471 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 44 tambeacutem TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo

Gioachimita op cit p 27-28

139

A alegoria tropoloacutegica (tropologica intelligentia) tem relaccedilatildeo com doutrina Neste

niacutevel o inteacuterprete busca reforccedilos e componentes para a doutrina cristatilde Nele Hagar significa

a letra enquanto Sara significa a compreensatildeo espiritual da Palavra de Deus

A alegoria contemplativa (contemplativa intelligentia) centraliza-se na vida

contemplativa e nos dons do Espiacuterito Santo Por exemplo Hagar significa a vida ativa

enquanto Sara significa a vida contemplativa

A alegoria anagoacutegica (anagogica intelligentia) a quinta species convida para a

prospectiva escatoloacutegica tradicional com o olhar para o mundo transcendental para aleacutem da

histoacuteria e por meio da oposiccedilatildeo ceacuteu-terra Neste caso Hagar significa a vida presente

enquanto Sara indica a vida futura

Apesar de apresentar o meacutetodo472 nas suas maiores obras de exposiccedilatildeo biacuteblica

(Expositio in Apocalypsim Psalterium decem Chordarum e Tractatus super quatuor

Evangelion) o abade nem sempre faz uso dos cinco princiacutepios alegoacutericos ou mesmo indica

qual princiacutepio estaacute usando em cada caso Eacute comum que ele apenas indique que um

personagem ou evento ldquosignificardquo ou ldquodesignardquo outra coisa

65 Sensus typicus histoacuteria e profecia

Durante os trecircs meses passados em Corinto entre os anos 55 e 56 ao escrever sua

epiacutestola para os disciacutepulos de Roma o apoacutestolo Paulo tratou da relaccedilatildeo entre Adatildeo e Jesus

(Romanos 514) descrevendo o primeiro como uma ldquofigura do que haveria de virrdquo (ldquoτύπος

τοῦ μέλλοντοςrdquo) Os termos usados foram o substantivo ldquoτύποςrdquo e o verbo ldquomέλλwrdquo O

primeiro significa ldquosinal marca vestiacutegio imagem figura tipo modelo exemplordquo473 A

segunda palavra pode ser traduzida como ldquodever estar destinado ardquo que daacute origem agrave forma

adjetivada do verbo (ldquoo` mέλλwnrdquo) o melhor o aguardado o futuro474

Em termos semacircnticos um ldquotipordquo era a marca impressa de um golpe em entalhe ou

em relevo de tal forma que um aponta para a outro Mas o uso que Paulo fez do termo jaacute lhe

deu um sentido hermenecircutico Ele o usou para descrever uma releitura das Escrituras

judaicas agrave luz da sua feacute em Jesus como o Messias

472 Em especial na segunda parte do Liber de Concordia 473 RUSCONI Carlo Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 464 474 Idem p 300

140

Posteriormente autores cristatildeos do seacuteculo II como Tertuliano de Cartago

latinizaram o termo (typos) mas tanto em autores gregos ou latinos (Melito de Sardes

Justino Irineu Clemente de Alexandria Oriacutegenes Cipriano de Cartago Tertuliano) a

praacutetica de Paulo continuou a ser exercida geralmente com o propoacutesito de encontrar nas

Escrituras judaicas as promessas que se cumpriram na vida de Jesus ou como uma estrateacutegia

para vincular estas mesmas Escrituras com o Novo Testamento cristatildeo em formaccedilatildeo475 A

tipologia se constituiu entatildeo como uma ferramenta usada pelos exegetas cristatildeos a partir do

segundo seacuteculo para ver unidade entre as Escrituras judaicas e cristatildes como uma linha

horizontal de continuidade e progresso histoacutericos que culmina em Jesus e no

Cristianismo476

Eacute entatildeo este antigo procedimento que Joaquim usaraacute na sua proacutexima fase exegeacutetica

As cinco espeacutecies de alegoria formam apenas um momento de sua interpretaccedilatildeo e

normalmente natildeo constituem o final do processo477 No manejo da tipologia natildeo se trata

mais de opor verticalmente letra e espiacuterito como na alegoria mas de relacionar uma letra

com outra letra um elemento com outro elemento segundo uma dinacircmica horizontal de

promessa e cumprimento478

De qualquer forma apesar da metodologia tipoloacutegica jaacute ser conhecida na tradiccedilatildeo

exegeacutetica cristatilde o uso que dela faz Joaquim tambeacutem natildeo deixa de ser singular A forma

como o abade relacionava histoacuteria e Escritura o levou a natildeo ver mais distinccedilotildees entre ambas

Assim enquanto a tipologia claacutessica interrompia o fluxo tipoloacutegico nos eventos do Novo

Testamento Joaquim ampliou o olhar do exegeta encontrando antiacutetipos em toda a histoacuteria

da Igreja479

475 Conferir esta anaacutelise em ETCHEVERRIacuteA Ramoacuten Trevijano La Biblia em el cristianismo antiguo

Prenicenos Gnoacutesticos Apoacutecrifos Estella Editorial Verbo Divino 2001 p 92-108 476 Natildeo se sustenta mais um reducionismo que vincula a tipologia a uma ldquotradiccedilatildeo antioquianardquo e a alegoria a

uma ldquotradiccedilatildeo alexandrinardquo Tanto tipologia quanto alegoria satildeo efetivamente ferramentas hermenecircuticas que

tecircm como meta ir aleacutem da ldquoletrardquo ou do sentido mais imediato das palavras Etcheverriacutea chega a classificar a

tipologia como um tipo de alegoria Ambas satildeo ldquoformas de representaccedilatildeordquo como tambeacutem a metaacutefora a

metoniacutemia e a sineacutedoque Cf ETCHEVERRIacuteA op cit p 85 Aleacutem do mais mesmo em um exegeta

ldquorepresentativordquo da denominada escola antioquiana como Teodoro de Mopsueacutestia (350-428) eacute possiacutevel

encontrar o uso tanto da alegoria quanto da tipologia Cf WILES M F Theodore of Mopsuestia as

representative of the antiochene school In ACKROYD P R EVANS G F (eds) The Cambridge history

of the Bible from the beginnings to Jerome Cambridge Cambridge University Press 1970 3 v V 1 p 489-

509 477 SANTI op cit p 263 478 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 28 479 A estrutura ldquotipordquo e ldquoantiacutetipordquo natildeo daacute conta da praacutetica joaquimita Tipo seria a promessa antiacutetipo o

cumprimento Em Joaquim o fenocircmeno poderia ser descrito como ldquotipo-tipo-antiacutetipordquo

141

A tipologia em Joaquim fornece significado a eventos e personagens histoacutericos no

formato de anuacutencio e realizaccedilatildeo mas hierarquiza-os no interior dos trecircs status do mundo

Adatildeo personagem do primeiro status corresponderia a Cristo um tipo mais elevado do

segundo Ambos convergem entretanto num antiacutetipo ainda mais superior que se

concretizaraacute num personagem futuro do terceiro status

O abade de Fiore denominou a tipologia de ldquosensus typicusrdquo ou inteligecircncia tiacutepica

e a subdividiu em sete species baseadas numa estrutura derivada igualmente de sua

especulaccedilatildeo trinitaacuteria correspondendo agraves sete possiacuteveis formas de uma pessoa professar a

Trindade 1) sob o sinal do Pai 2) sob o sinal do Filho 3) sob o sinal do Espiacuterito 4) sob o

signo do Pai e do Filho 5) sob o signo do Pai e do Espiacuterito 6) sob o signo do Filho e do

Espiacuterito 7) sob o signo da Trindade inteira480

Desta vez o abade natildeo diferencia cada tipo dando um nome ou mesmo definindo

mas apenas fornecendo um exemplo Segundo a primeira compreensatildeo tipoloacutegica que eacute

apropriada ao Pai Abraatildeo representa os sacerdotes dos judeus Hagar o povo israelita Sara

a Tribo de Levi que foi chamada para a obra de Deus No segundo tipo de tipologia que eacute

apropriada ao Filho Abraatildeo representa os bispos Hagar a igreja dos leigos Sara a igreja

dos cleacuterigos Segundo o terceiro tipo de tipologia que eacute apropriada ao Espiacuterito Abraatildeo

representa os sacerdotes que servem monasteacuterios Hagar representa a Igreja do povo leigo

que vive sob regras monaacutesticas (conversi) e Sara representa a igreja dos monges Segundo

a seacutetima compreensatildeo tipoloacutegica que pertence agraves trecircs pessoas da Trindade Hagar representa

as igrejas da primeira e segunda eacutepoca (status) que vive a vida ativa Sara representa a igreja

da contemplaccedilatildeo paz e descanso da seacutetima era (aetas) Estes foram os quatro usos

tipoloacutegicos mais usados por Joaquim481

A quarta quinta e sexta species de tipologia natildeo satildeo normalmente usadas Mesmo

assim ele faz uma breve apresentaccedilatildeo delas (Liber de Concordia 61v-73v) A quarta

tipologia pertence ao Pai e ao Filho Nela Abraatildeo significa os bispos dos judeus e gregos

Hagar a sinagoga Sara a igreja dos Gregos A quinta tipologia pertence ao Pai e ao Espiacuterito

e nela Abraatildeo significa os sacerdotes dos judeus e os bispos do povo latino Hagar a

sinagoga (como na tipologia anterior) e Sara a igreja do povo Latino A sexta compreensatildeo

tipoloacutegica pertence ao Filho e ao Espiacuterito Santo Nela Abraatildeo significa os sacerdotes da

480 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 29 481 Em termos gerais a primeira species tipoloacutegica trata da primeira eacutepoca a segunda da segunda eacutepoca a

terceira da terceira eacutepoca A seacutetima tenta englobar a histoacuteria como um todo

142

segunda e terceira eacutepoca Hagar a igreja dos trabalhadores (vida ativa) e Sara a igreja

espiritual da contemplaccedilatildeo482

66 O dom da exegese

O ex-eremita agora no interior de um cenoacutebio em Fiore parece ver no Novo

Testamento natildeo mais do que uma segunda letra em concordacircncia com a primeira Daiacute resulta

a conclusatildeo de que ldquonatildeo se pode considerar o segundo testamento como mais definitivo que

o primeirordquo483 Ele natildeo chega a abolir o Novo Testamento mas entende que ele seraacute

transformado por meio de uma nova interpretaccedilatildeo espiritual Entatildeo se abriratildeo as ldquoportasrdquo

dos dois Testamentos e pessoas que antes natildeo conseguiam ler mais do que a letra entatildeo

conseguiratildeo penetrar nos sentidos espirituais da Escritura

Apesar de ser o porta-voz desta ldquodescoberta espiritualrdquo Joaquim se recusou a assumir

o tiacutetulo de profeta que outros lhe atribuiacuteam Mas ele natildeo esconde que teve suas

ldquoiluminaccedilotildeesrdquo Ele parece falar de trecircs destas experiecircncias que quase o aproximam do termo

ldquovisionaacuteriordquo Em uma delas ele recebeu a concordia dos Testamentos em outra

compreendeu a relaccedilatildeo entre Trindade Escritura e histoacuteria por fim uma terceira abriu seus

olhos para o papel do Apocalipse na sua estrutura hermenecircutica484 Aleacutem destas experiecircncias

narradas em suas obras o abade estava persuadido de ter recebido um ldquoespiacuterito de

inteligecircnciardquo para interpretar as Escrituras485 a fim de alertar e despertar os ldquosonolentos

espiacuteritos de seu tempordquo a respeito dos ldquoextrema temporardquo486 Aos olhos de Joaquim sua

capacidade exegeacutetica era um dom de Deus Natildeo era apenas fruto de uma investigaccedilatildeo

humana Era como a estrela brilhante que guiou os magos ateacute Jesus

O abade via brilhar agrave sua frente um novo tempo (ldquoIta felices homines illius

statusrdquo)487 e o espera para breve Ele o descreve sem cessar em suas obras por meio das

482 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 45-46 483 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 46 484 Conferir uma descriccedilatildeo das trecircs visotildees em DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de

Concordia Novui ac Veteris Testamenti Philadelphia The American Philosophical Society 1983 p xiii-xviii 485 REEVES Marjorie The influence of Prophecy in the Later Middle Ages a Study in Joachimism London

University of Notre Dame Press 1993 p 16 486 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 48 487 Expressatildeo encontrada em Expositio in Apocalypsim 175v

143

duas combinaccedilotildees da concordia das cinco inteligecircncias espirituais (alegoria) e dos sete tipos

de inteligecircncia tiacutepica (tipologia)488

Considerado profeta chamado de visionaacuterio descrito como miacutestico Joaquim natildeo

queria ser como resumiu de Lubac outra coisa a natildeo ser um exegeta489

67 Resumo

Este capiacutetulo procurou apresentar as formas e procedimentos de leitura e

interpretaccedilatildeo de Joaquim de Fiore Comeccedilando pela concordia passando pela alegoria e

terminando na tipologia o abade estruturou um meacutetodo que foi aplicado por ele tanto em

textos biacuteblicos quanto em eventos e fenocircmenos histoacutericos Justamente essa relaccedilatildeo iacutentima

entre Biacuteblia e histoacuteria parece ser a raiz loacutegica do seu sistema milenarista490 A praacutetica

exegeacutetica do abade em vaacuterios momentos se constituiu num exerciacutecio de reflexatildeo sobre o

sentido da histoacuteria

488 O sistema metoloacutegico de trecircs partes formado pela concoacutercia e por doze sentidos ldquoespirituaisrdquo (cinco

alegoacutericos e sete tipoloacutegicos) eacute o mais recorrente nas exposiccedilotildees de Joaquim mas natildeo eacute o uacutenico Ele usa no

Psalterium um sistema compreendido por quinze sentidos baseado no nuacutemero total dos salmos Estes sistemas

indicam o esforccedilo do abade de Fiore para multiplicar e entrelaccedilar as imagens biacuteblicas Cf SANTI op cit p

264 O medievalista Falbel denomina o meacutetodo do abade de ldquoalegoacuterico-trinitaacuteriordquo Cf FALBEL Nachman

Satildeo Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202) Revista USP Satildeo Paulo n 30 p 273-276

1996 p 273 489 DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore op cit p 53 Talvez seja possiacutevel falar

numa exegese profeacutetica (projetada para o futuro) ou uma exegese visionaacuteria (materializada em imagens) ou

mesmo uma exegese miacutestica (com foco na contemplaccedilatildeo) 490 Idem p 43

VII - HISTOacuteRIA E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN

APOCALYPSIM

Este capiacutetulo se deteraacute principalmente no Expositio in Apocalypsim a maior e mais

bem estruturada obra de Joaquim de Fiore491 Eacute um texto que acompanhou o abade por quase

vinte anos concluiacutedo apenas dois anos antes de sua morte Em um trabalho desta natureza

escrito ao sabor dos anos eacute possiacutevel encontrar alteraccedilatildeo nas proacuteprias pespectivas do abade492

De qualquer forma o trecho que nos interessa especialmente estaacute ao final na seacutetima parte

quando apoacutes deixar Corazzo e jaacute no isolamento das montanhas de Fiore Joaquim se deteacutem

a construir sua exegese de Apocalipse 201-10 a periacutecope joanina que descreveu o reino

milenarista dos martirizados com Cristo Para analisaacute-la entretanto precisamos antes situaacute-

la no interior do Expositio por meio de alguns apontamentos sobre a estrutura geral da obra

e de uma siacutentese de conteuacutedo

71 Estrutura literaacuteria do Expositio

O Expositio in Apocalypsim na sua versatildeo presente no incunaacutebalo veneziano eacute

precedido por trecircs documentos distintos O primeiro eacute a Carta Testamentaacuteria (1r) na qual o

abade calabrecircs relata suas motivaccedilotildees ao escrever suas grandes obras e manifesta o desejo

de apresentaacute-las agrave cuacuteria papal Em seguida haacute uma carta de Clemente III (papa de 1187-

1191) para Joaquim (1v) datada para o dia 8 de junho de 1188 solicitando que o abade

encaminhe suas obras para a Seacute romana493 Apoacutes as duas cartas comeccedila o Liber

Introductorius in Apocalypsim (1v-25v) um longo texto que teria a funccedilatildeo de apresentar o

Expositio suas partes baacutesicas uma siacutentese das principais ideias do abade especialmente os

trecircs status do mundo a concordia dos dois Testamentos e as sete fases (aetas) da histoacuteria

491 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita Introduzione allrsquoopera di Gioacchino da Fiore In

GIOACCHINO DA FIORE SullrsquoApocalisse Milano Feltrinelli 2008 p 13-125 p 79 492 A visatildeo de Joaquim quanto ao Impeacuterio Germacircnico por exemplo variou de uma postura criacutetica no iniacutecio da

obra para uma postura neutra no final Cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di

Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p 325-327 493 Uma ediccedilatildeo latina da carta pode ser encontrada em ELLIOTT E B Horae Apocalypticae a commentary

on the Apocalypse critical and historical Londres Seeley 1862 4 v V 4 p 386

145

da Igreja Finalmente no foacutelio 26v tem iniacutecio o Expositio por meio da expressatildeo ldquoIncipit

prima septem partius in expositione Apocalipsisrdquo494

A forma como o comentaacuterio de Joaquim foi construiacutedo permite visualizar as

seguintes seccedilotildees495

26v Parte I Sete Igrejas

51v Eacutefeso

67r Esmirna

69r Peacutergamo

73v Tiatira

78r Sardes

82v Filadeacutelfia

92v Laodiceacuteia

99r Parte II Sete selos

113v Primeiro Selo

114r Segundo Selo

114v Terceiro Selo

115v Quarto Selo

116v Quinto Selo

117v Sexto Selo

123v Seacutetimo Selo

123v Parte III Sete Trombetas

127v Primeiro Anjo

128v Segundo Anjo

128v Terceiro Anjo

129v Quarto Anjo

130v Quinto Anjo

133v Sexto Anjo

152r Seacutetimo Anjo

153r Parte IV A Mulher vestida de Sol e o Dragatildeo

154r Primeira distinccedilatildeo

158r Segunda distinccedilatildeo

160v Terceira distinccedilatildeo

161v Quarta distinccedilatildeo

172v Quinta distinccedilatildeo

173r Sexta distinccedilatildeo

174v Seacutetima distinccedilatildeo

177r Parte V Sete Taccedilas

187r Primeira Taccedila

187r Segunda Taccedila

494 Por esta expressatildeo eacute possiacutevel perceber uma ambiguidade estrutural na obra Joaquim anunciou sete seccedilotildees

mas terminou a obra com oito 495 Adaptamos aqui a estrutura sugerida por WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of

Fiore a Study in Spiritual Perception and History Bloomington Indiana University Press 1983 p 74-75

146

188v Terceira Taccedila

189r Quarta Taccedila

189v Quinta Taccedila

190r Sexta Taccedila

191r Seacutetima Taccedila

191v Parte VI A queda da Babilocircnia e a derrota das bestas

191v Primeira distinccedilatildeo

202v Segunda distinccedilatildeo

206r Terceira distinccedilatildeo

209v Parte VII Descanso sabaacutetico

Pars prima

Pars secunda

Pars tertia

Pars quarta

215r Parte VIII Jerusaleacutem Celestial

72 Siacutentese do Expositio in Apocalypsim496

Joaquim se propotildee a escrever um comentaacuterio exegeacutetico do Apocalipse de Joatildeo tarefa

que o coloca na tradiccedilatildeo de outros exegetas medievais da obra joanina como Beda o

Veneraacutevel ou Beato de Lieacutebana497 Mas o resultado entretanto vai aleacutem de discussotildees

teoloacutegicas para se tornar o que Potestagrave chamou de ldquohistoacuteria teoloacutegica do Cristianismordquo498

Esta histoacuteria aparece no Expositio de duas formas linear e ciacuteclica Tanto na narrativa linear

quanto na ciacuteclica haacute uma preocupaccedilatildeo contiacutenua do abade em vincular cada texto do

Apocalipse a eventos histoacutericos da forma mais estreita possiacutevel499

A revelaccedilatildeo linear aparece quando o abade estrutura o uacuteltimo livro do Novo

Testamento em oito partes sendo que as sete primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da

histoacuteria da Igreja Das sete seis relatam algum tipo de confronto da Igreja As quatro

primeiras fases apresentam protagonistas diferentes (apoacutestolos maacutertires doutores monges

496 Para esta siacutentese cf POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297-325 ELLIOTT E

B Horae Apocalypticae op cit p 384-420 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit

p 79-84 497 Conferir a discussatildeo anterior sobre o gecircnero literaacuterio do Expositio na qual indicamos autores anteriores agrave

Joaquim que tambeacutem escreveram exposiccedilotildees exegeacuteticas do Apocalipse 498 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 297 MCGinn acompanha Potestagrave nesta

avaliaccedilatildeo e toma Joaquim como criador da mais imponente teologia da histoacuteria desde De civitate Dei de

Agostinho Cf MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero

occidentale Gecircnova Casa Editrice Marietti 1990 p 172 499 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 298

147

e virgens) Na quinta e na sexta eacute a Igreja em geral que enfrenta a Babilocircnia e o Anticristo

A seacutetima seria de descanso na forma de um sabbatum500 especial Finalmente viria o oitavo

periacuteodo que seria a consumaccedilatildeo final da histoacuteria e a eternidade transcendental501 Esta seria

a relaccedilatildeo esquemaacutetica entre a histoacuteria da Igreja e as partes do Apocalipse

- Primeira parte (Apocalipse 19-322) os apoacutestolos lutam contra os judeus

- Segundo parte (Apocalipse 41-81) os maacutertires lutam contra a Roma pagatilde

- Terceira parte (Apocalipse 82-1119) os doutores da Igreja lutam contra Aacuterio e os

governantes arianos

- Quarta parte (Apocalipse 121-1420) os monges e as virgens lutam contra os

sarracenos

- Quinta parte (Apocalipse 151-1617) a Igreja em geral luta contra a Babilocircnia

- Sexta parte (Apocalipse 1618-1921) a Igreja em geral luta contra o Anticristo

- Seacutetima parte (Apocalipse 201-10) o descanso sabaacutetico

- Oitava parte (Apocalipse 2011-2221) a Nova Jerusaleacutem

A histoacuteria da igreja aparece de forma ciacuteclica (recapitulatio) nas cinco primeiras

seccedilotildees do Apocalipse justamente aquelas em que Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura

seacutetupla Em cada uma delas ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma

histoacuteria que comeccedilaria na encarnaccedilatildeo de Cristo502 Aparentemente todas terminam no

descanso sabaacutetico um tempo de felicidade na terra Isso indica que a seacuterie de recapitulaccedilotildees

pode ter se restringido apenas agraves cinco primeiras partes do Expositio em funccedilatildeo da

perspectiva do abade de estar vivendo no tempo da sexta seccedilatildeo quando os eventos lhe satildeo

contemporacircneos ou estatildeo para acontecer em breve503

A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentaacuterios de Joaquim sobre

Apocalipse 11-322 (a seccedilatildeo das sete cartas para sete igrejas) Eacute a mais longa seccedilatildeo do

comentaacuterio Na estrutura geral eacute o primeiro tempo da Igreja a luta dos apoacutestolos contra a

sinagoga dos judeus Na histoacuteria da salvaccedilatildeo ela corresponde a sete geraccedilotildees com cada

500 Termo de origem hebraica (בת aparece na Vulgata como sabbatum (substantivo neutro de segunda (ש

declinaccedilatildeo) Seu significado eacute o seacutetimo dia da semana no calendaacuterio judaico ou o dia de descanso Cf LEWIS

Charlton T SHORT Charles A Latin Dictionary Oxford Clarendon Press 1958 p 1609 Ele retornaraacute de

forma recorrente no Expositio para descrever um periacuteodo de ldquodescansordquo para a Igreja de suas tribulaccedilotildees 501 COURT John M Approaching the Apocalypse a short history of Christian millenarianism New York I

B Tauris 2008 p 73 502 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 162 503 O abade entende o proacuteprio tempo como a hora da abertura do sexto selo e o iniacutecio do terceiro status Cf

MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 167

148

igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos A igreja de Eacutefeso apresenta a

ordem dos apoacutestolos em luta contra os inimigos judaizantes a de Esmirna descreve a ordem

dos maacutertires no confronto contra inimigos pagatildeos a de Peacutergamo simboliza a ordem dos

doutores e seus adversaacuterios arianos e sabelianos a de Tiatira aponta para a ordem dos virgens

em confronto contra os falsos contemplativos a de Sardes indica a ordem dos monges

cenobiacuteticos cujos inimigos eram monges hipoacutecritas a de Filadeacutelfia revela a ordem dos

eremitas e contemplativos numa luta contra falsos cristatildeos e falsos profetas a de Laodiceacuteia

por fim representa a ordem dos monges do terceiro status

Na seccedilatildeo das cartas o abade ainda apresenta o relacionamento entre Pedro e Joatildeo

questatildeo que ele retoma repetidas vezes no Expositio O primeiro eacute typos504 de Cristo e

representa a Ordem Ativa enquanto o segundo eacute typos do Espiacuterito Santo e representa a

Ordem Contemplativa Ao passo que Pedro deixou Jerusaleacutem para fundar a sede apostoacutelica

em Roma Joatildeo saiu da Judeacuteia e foi para a Aacutesia escrever o Apocalipse para as sete igrejas

Pedro morreu primeiro Joatildeo sobreviveu-lhe cerca de trecircs deacutecadas Isso indicaria que a Igreja

Contemplativa (de Joatildeo) vai ultrapassar historicamente a Igreja Ativa (de Pedro)

Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a seccedilatildeo dos selos

(Apocalipse 41-81) Na estrutura geral eacute o segundo tempo da Igreja quando os principais

personagens satildeo os maacutertires em luta contra os pagatildeos em um tempo que vai ateacute o momento

de paz da Igreja no tempo de Constantino e Silvestre Corresponde tambeacutem a sete tribulaccedilotildees

paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos Desta forma o abade desenvolveu um sistema

de duplo septenaacuterio um trata de eventos da histoacuteria de Israel e o outro aponta para a histoacuteria

da Igreja Durante todo o seu comentaacuterio os meacutetodos hermenecircuticos do abade permitem que

ele encontre vaacuterios significados para os mesmos personagens e eventos do Apocalipse

O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi imaginado por

Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho enquanto eacute perseguida pelos judeus

No Antigo Testamento significa o nascimento de Israel por meio do cativeiro egiacutepcio

A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo vermelho cujo

cavaleiro carrega uma espada mortal O cavalo simboliza a Roma pagatilde com seus sacerdotes

e exeacutercitos Na histoacuteria da Igreja este selo inaugura a perseguiccedilatildeo dos fieacuteis sob o antigo

Impeacuterio Romano Corresponde na histoacuteria dos judeus agrave conquista de Canaatilde que vai do

tempo dos juiacutezes ateacute o governo de Davi

504 Conferir a discussatildeo sobre tipologia no capiacutetulo anterior

149

O terceiro selo que descreve um homem com um par de balanccedilas eacute a heresia de

Aacuterio cujo clero aparece representado no cavaleiro que traz terror e escuridatildeo para a feacute cristatilde

O ser angelical que anuncia este selo representa a ordem de doutores que proclamou a

verdade e enfrentou os arianos Na histoacuteria do Antigo Testamento corresponde ao periacuteodo

de enfrentamento dos siacuterios

Na abertura do quarto selo um cavalo paacutelido aparece trazendo pragas e eacute seguido

pelo Hades Este representa a ameaccedila sarracena cujo cavaleiro eacute Maomeacute que persegue os

cristatildeos Durante este periacuteodo os monges e virgens tentaram sobreviver e manter a feacute cristatilde

Corresponde ao tempo da tribulaccedilatildeo de Israel sob os assiacuterios

Ao abrir o quinto selo o Apocalipse descreve um grupo de almas debaixo do altar

Nos quatro primeiros selos cristatildeos foram perseguidos e mortos na Judeacuteia Roma Greacutecia e

Araacutebia Esta quinta perseguiccedilatildeo vem da Mauritacircnia e Espanha onde sarracenos mataram

muitos cristatildeos Tambeacutem significa o sofrimento da Igreja romana em luta contra os

imperadores germacircnicos As roupas brancas significam que os maacutertires passaram do luto

para a alegria A expressatildeo ldquoateacute que seus irmatildeos sejam mortosrdquo indica para Joaquim que

ainda resta um conflito final que promoveraacute o martiacuterio de muitos cristatildeos

O sexto selo descreve cataclismos coacutesmicos Ele representa o dia do julgamento da

Babilocircnia cujo significado eacute ldquoquem quer que ataque a Igreja de Pedro moral ou

fisicamenterdquo505 especialmente os falsos cristatildeos ou falsos membros da Igreja romana O

abade espera perseguiccedilotildees para os fieacuteis com papel significativo na histoacuteria jaacute que por meio

delas a Igreja seraacute purificada de sua corrupccedilatildeo

Na abertura do seacutetimo selo um silecircncio se manifesta no ceacuteu Para Joaquim ele

representa o sabbatum de descanso no qual um silecircncio contemplativo seraacute trazido agrave

realidade Em comparaccedilatildeo na correspondente era do Antigo Testamento depois de Esdras

e Malaquias cessou a produccedilatildeo de Escritura Entatildeo sob o seacutetimo selo natildeo seraacute mais preciso

a pregaccedilatildeo

A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas do Apocalipse

(Apocalipse 82-1118) Na estrutura geral eacute o tempo terceiro quando a ordem dos doutores

digladia contra os hereges em particular os arianos Mas tambeacutem corresponde a sete fases

A trombeta de nuacutemero um eacute a fase dos Apoacutestolos principalmente Paulo pregando contra o

Judaiacutesmo e o legalismo O granizo misturado com fogo e sangue significa o espiacuterito de

505 ldquoQuicumque Petri ecclesiam moribus viribusque impugnantrdquo (117v) As traduccedilotildees do Expositio neste

capiacutetulo satildeo proacuteprias a natildeo ser que haja indicaccedilotildees em contraacuterio

150

escuridatildeo dos coraccedilotildees dos judeus Como resultado um terccedilo dos judeus convertidos

apostatou de volta para o Judaiacutesmo

A segunda trombeta significa os Maacutertires da era poacutes-apostoacutelica pregando contra a

heresia dos nicolaiacutetas Nicolau eacute a montanha que caiu no ldquomar dos gentiosrdquo Por causa dele

um terccedilo dos pagatildeos convertidos abandonou a feacute A terceira trombeta simboliza os doutores

do tempo de Constantino O meteoro que cai eacute Aacuterio cujo erro desabou sobre bispos e

sacerdotes e contaminou a aacutegua pura das escrituras A quarta trombeta tipifica os monges e

as virgens que como luminares celestiais caminhando em contemplaccedilatildeo iluminam o

mundo Seratildeo em larga medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos A quinta

trombeta descreve gafanhotos-escorpiotildees que representam os pathareni506 As arvores que

os gafanhotos destroem indicam a Igreja catoacutelica A couraccedila dos escorpiotildees aponta para o

coraccedilatildeo duro dos perfecti entre os pathareni Neste ponto de seu comentaacuterio o abade fala de

um homem que escapou de uma prisatildeo em Alexandria no ano anterior (1195) Joaquim o

encontrou em Messina e ouviu dele notiacutecias de uma alianccedila entre sarracenos e pathareni A

esta alianccedila outras naccedilotildees hostis se juntaratildeo como os turcos do Oriente os mouros e os

berberes do sul

Entre a sexta e a seacutetima trombeta o Apocalipse descreveu trecircs cenas distintas a

convocaccedilatildeo para que se coma um livro a descriccedilatildeo da medida do templo e a atuaccedilatildeo das

duas testemunhas martirizadas pela besta Na cena em que o livro eacute comido o abade

descreveu a ordem monaacutestica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne)

A cidade santa que aparece na mediccedilatildeo do templo significa a Igreja romana A Igreja grega

por ter se afastado da seacute apostoacutelica eacute a parte externa do templo que seraacute dada aos gentios

Aos olhos de Joaquim isso jaacute aconteceu em grande medida mas os gregos podem esperar

por novas desolaccedilotildees A rejeiccedilatildeo ao filioque era para o abade a maior prova de apostasia da

Igreja grega507 Sobre as duas testemunhas Joaquim as entende como Moiseacutes e Elias ou

duas ordens espirituais que viratildeo no poder destes antigos personagens biacuteblicos para pregar

contra o Anticristo Segundo o abade ldquoMoiseacutes foi um Levita e pastor do povo de Israel

506 Joaquim usa o termo pathareni para se referir ao movimento dissidente conhecido como ldquocatarismordquo Cf

POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 308 Especificamente sobre esta dissidecircncia

medieval cf AGUSTIacute David Los caacutetaros el desafio de los humildes Madrid Siacutelex Ediciones 2006 507 WHALEN Brett Edward Dominion of God Christendom and Apocalypse in the Middle Ages Cambridge

Harvard University Press 2009 p 111 O filioque era uma foacutermula latina de descriccedilatildeo do relacionamento entre

as pessoas da Trindade Ela afirma a dupla origem do Espiacuterito procedendo simultaneamente do Pai e do Filho

Sobre a importacircncia do filioque para o pensamento de Joaquim cf DANIEL Randolph E The double

procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiores Understanding of History Speculum Chicago v 55 n 3

p 469-483 1980

151

Elias foi um homem solitaacuterio que natildeo teve esposa ou filhos Logo um representa a ordem

dos cleacuterigos o outro a ordem dos mongesrdquo508 Finalmente surge a seacutetima trombeta Eacute tempo

do julgamento da besta e do falso profeta O Anticristo e os seus seguidores seratildeo

exterminados Comeccedilaraacute entatildeo a fase final da histoacuteria da Igreja ldquoo terceiro status do mundo

que seraacute um tempo de descanso e contemplaccedilatildeo Nele apoacutes o fim das pessoas corruptas da

terra reinaraacute o povo santo do Altiacutessimordquo509 Esta seccedilatildeo termina com uma longa descriccedilatildeo da

conversatildeo final dos gregos e judeus agrave Igreja latina

A quarta parte do Expositio (153r-174v) natildeo apresenta uma estrutura clara no

Apocalipse (Apocalipse 1119-1420) mas mesmo assim o abade optou pela divisatildeo em sete

distinccedilotildees (distinctiones) A seccedilatildeo comeccedila na abertura do santuaacuterio celestial mas tem como

foco a histoacuteria do Dragatildeo510 Eacute o quarto tempo da histoacuteria da Igreja no qual a ordem dos

monges e das virgens luta contra Maomeacute a quarta cabeccedila do Dragatildeo Igualmente

corresponde a sete fases

A primeira distinccedilatildeo apresenta o conflito entre a mulher vestida de sol e o Dragatildeo

Nesta primeira batalha os protagonistas foram Pedro e seus sucessores O inimigo por sua

vez agiu atraveacutes de Herodes e Nero A segunda distinccedilatildeo apresenta a guerra entre Miguel e

o Dragatildeo (Apocalipse 127-12) como siacutembolo da perseguiccedilatildeo pagatilde aos cristatildeos ateacute o tempo

de Constantino A terceira distinccedilatildeo descreve a fuga da mulher para o deserto que representa

a perseguiccedilatildeo agrave igreja atraveacutes das monarquias arianas Ela fugiraacute para uma vida de retiro e

contemplaccedilatildeo durante 42 meses ou 1260 dias

A quarta distinccedilatildeo comeccedila em Apocalipse 1217 com o levantamento das duas

bestas e vai ateacute 145 (o ajuntamento das 144000 testemunhas do Cordeiro) A besta

representa a perseguiccedilatildeo sarracena aos eremitas e virgens mas tambeacutem indica por meio de

suas cabeccedilas uma seacuterie de adversaacuterios histoacutericos da igreja As quatro primeiras cabeccedilas

respectivamente eram os judeus pagatildeos romanos arianos e sarracenos Esta cabeccedila

sarracena parecia ter morrido em funccedilatildeo da tomada de Jerusaleacutem da conquista normanda

na Siciacutelia e da expulsatildeo dos mouros na Espanha Para Joaquim entretanto ela voltou a

viver tatildeo terriacutevel quanto antes e a tomada de Jerusaleacutem seria uma demonstraccedilatildeo disso Eacute a

508 ldquoMoses fuit Levita et pastor Populi Israel Helyas vir solitarius no habens filios aut uxorem Ille ergo

significat ordinem clericorum iste ordinem monachorumrdquo (148v) Muito se especularaacute posteriormente na

recepccedilatildeo do pensamento joaquimita sobre a relaccedilatildeo entre as duas testemunhas de Apocalipse e as ordens de

Francisco e Domingos Cf REEVES Marjorie The influence of prophecy in the Later Middle Ages a study

in Joachimism London University of Notre Dame Press 1993 p 72-73 509 ldquoEt ad tertium statum mundi qui erit in sabbatum et quietem in quo exterminatis prius corruptoribus

terrae regnaturus est populus sanetorum Altissimirdquo (152v) 510 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 314

152

cabeccedila que parecia ter morrido mas reviveu para impressionar o mundo todo Joaquim

interpretou a segunda besta de Apocalipse como um falso-profeta que se levantaraacute do meio

da igreja conhecendo e falando como um cristatildeo Este faraacute alianccedila com a ldquocabeccedila sarracenardquo

da primeira besta Satildeo os pathareni ldquoa escoacuteria dos heregesrdquo (haereticorum fex) Os 144000

que aparecem em Apocalipse 14 satildeo para o abade os monges e virgens da igreja que se

opotildee agravequeles que tecircm a marca da besta

A quinta distinccedilatildeo cobre apenas dois versiacuteculos do Apocalipse (Apocalipse 146-7)

Eacute o anuacutencio do Evangelho Eterno e do juiacutezo511 Tambeacutem eacute o tempo da desolaccedilatildeo da

Babilocircnia A sexta distinccedilatildeo (Apocalipse 148-12) descreve o anuacutencio dos dois uacuteltimos anjos

no ceacuteu Eacute o tempo do advento da Besta e do falso-profeta No momento de descrever a seacutetima

distinccedilatildeo (Apocalipse 1413-20) a cena do Filho do Homem e a ceifa Joaquim anuncia a

idade sabaacutetica final quando os fieacuteis viveratildeo na terra com aqueles que sobreviverem agrave queda

do Anticristo

Potestagrave alerta que o Expositio eacute um comentaacuterio biacuteblico e natildeo um tratado escolaacutestico

Aleacutem do mais ele foi escrito no transcurso de quase vinte anos de trabalho Isso faz com que

ele comporte algumas contradiccedilotildees ou oscilaccedilotildees Nesta seacutetima distinccedilatildeo por exemplo o

descanso sabaacutetico parece ter a presenccedila de Cristo na terra com os santos Nas outras

referecircncias ao mesmo periacuteodo Cristo natildeo exerce um papel pessoal na transiccedilatildeo para a era

do Espiacuterito512

A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seccedilatildeo das sete taccedilas do Apocalipse

(Apocalipse 151-1617) Eacute o quinto tempo da Igreja indicando o confronto da Igreja

romana simbolizada pelo trono de Deus contra Babilocircnia Cada taccedila representa tambeacutem

sete destinataacuterios da ira divina A primeira taccedila da ira foi despejada sobre os judaizantes que

adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica A segunda sobre a igreja infiel

antes de Constantino A terceira sobre os bispos arianos e seus ensinos depois de

Constantino A quarta sobre os hipoacutecritas das ordens contemplativas A quinta sobre os

falsos cleacuterigos e monges A sexta sobre os perversos do mundo A seacutetima taccedila sobre os

proacuteprios eleitos na forma de uma perseguiccedilatildeo purificadora

511 A expressatildeo ldquoEvangelho Eternordquo estaacute na origem da condenaccedilatildeo imposta a algumas ideias de Joaquim em

Anagni no ano de 1255 em funccedilatildeo da atividade do franciscano Geraldo de Borgo san Donnino Cf

ROSSATTO Noeli Dutra et all Evangelho eterno a hermenecircutica condenada Filosofia Unisinos Satildeo

Leopoldo v 11 n 3 p 298-339 2010 512 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 317

153

A sexta parte do Expositio (191v-209v) natildeo apresenta mais a divisatildeo septenaacuteria Esta

seccedilatildeo do Apocalipse descreve a queda da Babilocircnia e o juiacutezo sobre as bestas (Apocalipse

1618-1921) Eacute o sexto tempo da histoacuteria e trata da luta dos viri spirituales primeiramente

contra o Dragatildeo depois contra a besta que veio do mar e a besta que veio da terra O abade

viu nesta longa passagem biacuteblica trecircs distinccedilotildees A primeira (Apocalipse 1618-1824)

descreve a queda da Babilocircnia e da besta que a sustenta Potestagrave destaca que um aspecto

marcante desta distinccedilatildeo estaacute no fato de Joaquim ter retirado o Impeacuterio Germacircnico da seacuterie

de inimigos finais da igreja No seu sermatildeo de 1184 (Apocalipsis liber ultimus) o Impeacuterio

seria o adversaacuterio que iria purificar a Igreja dos seus pecados O mesmo aparece no texto

Expositio Prophetiae Anonumae Romae repertae anno (1184) Mas no momento em que o

abade escreve a sexta parte do Expositio o Impeacuterio natildeo representa mais um inimigo a ser

temido A cidade que cairaacute agora natildeo representa Roma ou o Impeacuterio Germacircnico mas

Constantinopla e o Impeacuterio Bizantino Babilocircnia se torna siacutembolo para qualquer oposiccedilatildeo agrave

Igreja de Roma513

A segunda distinccedilatildeo (Apocalipse 191-10) apresenta a exultaccedilatildeo dos fieacuteis diante da

ruiacutena da Babilocircnia A terceira distinccedilatildeo (Apocalipse 1911-21) apresenta a derrota da besta

e do falso-profeta Ambos representam inimigos da igreja desde o tempo dos apoacutestolos Nos

termos de Joaquim satildeo as ldquonaccedilotildees increacutedulas que uma vez estiveram sujeitas ao Impeacuterio

Romano e entatildeo perseguem a Cristo e sua Igrejardquo514 Suas sete cabeccedilas sucessivas satildeo a)

Herodes e seus judeus no reino da Judeacuteia b) os pagatildeos do Impeacuterio Romano ateacute o tempo de

Diocleciano c) reino grego ariano d) reino godo ariano e) reino vacircndalo ariano f) reino

lombardo ariano g) o impeacuterio de Maomeacute O tempo da seacutetima cabeccedila eacute o tempo da desolaccedilatildeo

da Babilocircnia Esta terceira distinccedilatildeo descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo branco

Segundo o abade esse cavaleiro pode indicar a manifestaccedilatildeo de Cristo para destruir a besta

atraveacutes de sua volta pessoal ou o poder de Cristo operado por meio de outras figuras

Inicialmente ele se inclina para uma vinda pessoal Depois entretanto admite que isso pode

ser explicado pela accedilatildeo invisiacutevel de Cristo em sua Igreja militante

Finalmente as duas proacuteximas seccedilotildees do Expositio fecham o livro A parte seacutetima

(209v-215r) discute o milecircnio (Apocalipse 201-10) e a oitava (215r-224r) a Jerusaleacutem

513 Idem p 319-320 514 ldquoUniversas gentes infideles quae aliquando subjectae fuerunt Romano imperio et persecutae sunt Christum

et ecclesiam ejusrdquo (196r)

154

Celestial (Apocalipse 2011-2221) Esta uacuteltima corresponde ao oitavo aetas natildeo mais

dentro da histoacuteria mas no seculum futurum posterior ao uacuteltimo tempo da humanidade

73 A seacutetima seccedilatildeo do Expositio

A seacutetima seccedilatildeo do Expositio eacute a menor do comentaacuterio de Joaquim o que natildeo significa

status diminuiacutedo O episoacutedio do milecircnio de Apocalipse 201-10 foi transformado em uma

espeacutecie de aacutepice antes do cliacutemax O fim do mundo com o juiacutezo final e a esfera porvir

continuam no horizonte (a seccedilatildeo da Nova Jerusaleacutem) do abade mas este fim aguardado para

a ldquoeternidaderdquo recebeu uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica na histoacuteria Como argumentou Potestagrave a

estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade ldquoa descoberta que

a primeira parte de Apocalipse 20 trata daquele grande saacutebado futuro no final do mundo515

Curiosamente se Joaquim procura com sua metodologia hermenecircutica ldquoinventarrdquo

muacuteltiplos sentidos nas outras seccedilotildees do comentaacuterio nesta ele eacute econocircmico em detalhes sobre

as figuras e os eventos Em outros lugares do Expositio como na anaacutelise das duas

testemunhas do capiacutetulo 11 de Apocalipse ele multiplica os significados por meio da

alegoria tipologia e concordia516 Ao interpretar os dez versiacuteculos do reino messiacircnico de

Joatildeo (Apocalipse 201-10) entretanto ele se contenta em fornecer um agraves vezes dois

sentidos mas ainda vagos e imprecisos Diferente de Papias que chega a descrever o

tamanho das uvas do reino milenar517 o abade de Fiore no final de sua vida entende que

alguns poucos aspectos espirituais jaacute seriam suficientes para alimentar a expectativa da

Igreja

Joaquim dividiu esta seacutetima seccedilatildeo do Expositio em quatro partes precedidas de uma

introduccedilatildeo

- Introduccedilatildeo 209v-210v

- Pars prima 210v-212r (comentaacuterio de Apocalipse 201-3)

- Pars secunda 212r-214v (comentaacuterio de Apocalipse 204)

515 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 299 516 Extrateacutegias hermenecircuticas apresentadas no capiacutetulo anterior 517 Conferir a citaccedilatildeo em DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1997 p 23 ldquoViratildeo dias em que as vinhas cresceratildeo em que cada uma teraacute dez mil

vides e em cada vide dez mil ramos e em cada ramo dez mil bototildees e em cada botatildeo dez mil cachos e em

cada cacho dez mil uvas e cada uva prensada daraacute vinte e cinco medidas de vinho E quando um dos santos

colher um cacho o outro lhe diraacute sou melhor colha-me e abenccediloa o Senhor atraveacutes de mimrdquo

155

- Pars tertia 214v (comentaacuterio de Apocalipse 205-6)

- Pars quarta 214v-215r (comentaacuterio de Apocalipse 207-10)

A introduccedilatildeo eacute aberta logo com a frase ldquoestatildeo completadas seis partes do livro de

Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de trabalho Vem agora a seacutetima parte na

qual vemos aquele saacutebado futuro no fim do mundo que em outro lugar chamamos de terceiro

statusrdquo518 Fica clara assim a relaccedilatildeo construiacuteda por Joaquim entre o milecircnio de Apocalipse

20 e um periacuteodo de paz na terra durante o fim do terceiro status da histoacuteria da humanidade

Ele completa ainda que se trata do ldquotertium statum sive etiam septimam mundi statemrdquo (do

terceiro status ou da seacutetima idade do mundo) Corresponde tambeacutem agrave seacutetima aetas da Igreja

que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do seu Expositio

Apoacutes estas frases de definiccedilatildeo ou mesmo de contextualizaccedilatildeo o abade recorre a

Agostinho e uma figura que ele chama de St Remigius Do primeiro ele toma a ideia de que

a expressatildeo ldquodia finalrdquo nas Escrituras natildeo precisa ser entendida como significando o uacuteltimo

momento do mundo podendo antes ser uma uacuteltima fase ou entatildeo o tempo do fim Por isso

os autores biacuteblicos poderiam dizer haacute mais de mil anos que ldquojaacute era a uacuteltima horardquo No

segundo ele busca apoio para a afirmaccedilatildeo de que haveraacute um certo tempo de duraccedilatildeo

indeterminada posterior agrave derrota do Anticristo Esse parece ser o motivo dele ter buscado

nesta figura de identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua

interpretaccedilatildeo Segundo Potestagrave provavelmente este Remigius foi um exegeta do seacuteculo XII

cuja obra foi atribuiacuteda a um certo Aimone de Halberstadt519

A ideia de um periacuteodo sabaacutetico na terra representa descontinuidade com a tradiccedilatildeo

exegeacutetica de Agostinho520 Joaquim estaacute ciente disso e gasta algumas linhas do seu

comentaacuterio para explicar que a expectativa da vinda agrave terra de uma seacutetima aetas na qual a

Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e reinaria sem perturbaccedilatildeo na plena possessatildeo da

ldquointeligecircncia espiritualrdquo natildeo eacute um erro mas uma maior compreensatildeo Segundo o abade eacute

uma ldquoopiniatildeo racional natildeo contraacuteria agrave feacuterdquo521

518 ldquoPeractis sex partibus libri Apocalypsis in quibus notata sunt sex tempora laboriosa Veniendum est

quandoque ad septimam partem im qua agitur de magno illo sabbato in fine mundi futuro quod vocari placluit

tertium statumrdquo (209v) 519 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 323 520 Segundo MC Ginn ldquoem nenhuma outra parte do seu longo comentaacuterio Joaquim mostra a ruptura com

setecentos anos de tradiccedilatildeo exegeacutetica latina como na descriccedilatildeo do reino milenar de Cristo e dos santos na terra

de Apocalipse 20rdquo Cf MCGINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 521 ldquoTamen esse potest rationabilis opinio que non sit contra fidemrdquo (210v)

156

Apoacutes isso ele usa boa parte da introduccedilatildeo para retomar aspectos que precederiam o

periacuteodo sabaacutetico o diabo lanccedilaraacute os sarracenos contra o impeacuterio cristatildeo apoacutes a queda da

Babilocircnia haveraacute um pequeno periacuteodo de tranquilidade para a Igreja entatildeo a besta que

parecia morta se ergueraacute novamente para uma segunda batalha contra os exeacutercitos de fieacuteis

o resultado seraacute a derrota da besta e do falso profeta e finalmente se seguiraacute uma grande

paz o descanso sabaacutetico

A partir de entatildeo ele analisa os versiacuteculos de Apocalipse 201-10 por meio da

estrateacutegia que jaacute utilizou no restante do comentaacuterio haacute uma transcriccedilatildeo de uma pequena

porccedilatildeo do texto na sua versatildeo latina522 seguido de comentaacuterios exegeacuteticos filoloacutegicos e

histoacutericos

A primeira parte da seccedilatildeo corresponde a Apocalipse 201-3 (a prisatildeo de Satanaacutes) Eacute

possiacutevel notar uma pequena diferenccedila entre o texto latino usado por Joaquim e a Vulgata

Clementina No versiacuteculo trecircs a Clementina usou o termo consummentur (seja concluiacutedo)

enquanto Joaquim transcreveu compleant (seja completado) De qualquer forma satildeo termos

intercambiaacuteveis sem grandes implicaccedilotildees textuais para a periacutecope

O abade comeccedila com a discussatildeo do significado da expressatildeo ldquomil anosrdquo O nuacutemero

natildeo eacute literal jaacute que ele significa um nuacutemero perfeito523 Isso indicaria que a duraccedilatildeo da prisatildeo

de Satanaacutes seria durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo Mesmo assim o abade aplica ao tempo

milenar dois significados secundum parte et secundum plenitudinem O primeiro teve um

cumprimento inicial (incipient) no tempo da ressureiccedilatildeo de Cristo Neste sentido o milecircnio

se estenderia daquela eacutepoca ateacute o fim do mundo durante todo o tempo da histoacuteria da Igreja

(ldquoad totum tempus ecdesierdquo) Mas seu perfeito e completo cumprimento seraacute no tempo

sabaacutetico (ldquoad sabbatumrdquo) depois da destruiccedilatildeo da besta

Nos seus termos o milecircnio do Apocalipse teria um cumprimento duplo

ldquoparcialmente a partir daquele saacutebado em que o Senhor descansou no sepulcro plenamente

apoacutes a destruiccedilatildeo da Besta e do Falso-profetardquo524 Eacute uma forma curiosa de afirmar a posiccedilatildeo

de Agostinho (milecircnio como o tempo de existecircncia histoacuterica da Igreja) para logo em seguida

522 Natildeo haacute marcaccedilatildeo de capiacutetulos ou versiacuteculos na versatildeo latina usada por Joaquim Ela difere levemente da

Vulgata Clementina usada nesta tese COLUNGA Alberto TURRADO Laurentio Biblia Sacra iuxta

Vulgatam Clementinam Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1965 523 ldquoMillenarius numerus perfectissimus estrdquo (210v) 524 ldquoSecundum partem incipit ab illo sabbato quo requievit Dominus in sepulchro secundum plenitudinem sui

a ruina Bestiae et Pseudo-Profhetaerdquo (211r)

157

abandonaacute-la em prol da retomada da antiga posiccedilatildeo quiliasta (milecircnio como um periacuteodo

futuro intra-histoacuterico)525

Para Joaquim o autor de ldquoConfessionesrdquo estava correto apenas parcialmente Como

ele o abade insiste em afirmar que o milecircnio natildeo seraacute literal Pode ser longo ou curto mas

sua ldquoduraccedilatildeo seraacute segundo o arbiacutetrio de Deusrdquo526 Talvez seja mesmo curto mas o tempo

esclareceraacute isto

Sobre a atuaccedilatildeo do Espiacuterito o abade afirma que ele manteraacute a chave da prisatildeo de

Satanaacutes Neste periacuteodo a terceira pessoa da Trindade atuaraacute sobre toda a terra natildeo apenas

sobre os fieacuteis mas tambeacutem sobre os pagatildeos Por isso ldquohaveraacute uma grande paz como nunca

antes desde o princiacutepio dos seacuteculosrdquo527

Ele volta a mencionar Agostinho que afirmara inicialmente uma opiniatildeo sobre o

milecircnio e depois mudou de ideia528 Seu argumento eacute que o bispo de Hipona soacute deixou a

perspectiva de um milecircnio histoacuterico por causa das expressotildees exageradamente ldquocarnaisrdquo dos

defensores do quiliasmo daquela eacutepoca Mas o fato de crer na vinda sobre a terra de uma

seacutetima aetas muito melhor que as anteriores natildeo constitui um erro mas eacute sim uma

ldquocompreensatildeo tranquilardquo529

No foacutelio 211r o abade fala do ldquoreinar do Espiacuterito Santordquo (ldquoregnare Spiritus divinusrdquo)

no que se constitui uma significativa alternativa ao ldquoreino de Cristordquo de Apocalipse 201-10

Haacute ainda uma insistecircncia de Joaquim em caracterizar este periacuteodo como um tempo de paz

ldquoGenuiacutena paz fruiraacute para a Igreja de Cristordquo530

A segunda parte da seacutetima seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 204-5a531 e

ocupa apenas uma coluna do foacutelio 212r Joaquim comeccedila indicando a relaccedilatildeo do texto de

Joatildeo com ldquoo povo santo do altiacutessimordquo descrito por Daniel ldquocujo reino eacute eternordquo532 O abade

entende que os ldquomille annirdquo destes versiacuteculos devem ser paralelos agrave prisatildeo de Satanaacutes ldquoO

525 POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 324 MC GINN Bernard LrsquoAbate

Calabrese op cit p 169 526 ldquoCujus terminus erit in arbitrio Deirdquo (210b) 527 ldquoErit magna pax qualis non fuit aprincipio seculirdquo (210v) 528 ldquoVera fuit illo opinio immo non jam opiniordquo (211r) A citaccedilatildeo veio de De Civitate Dei 2071 Versatildeo

consultada SANTO AGOSTINHO A cidade de Deus Petroacutepolis Vozes 2012 2 v V 1 p 514 529 ldquoSerenissimus intellectusrdquo (211r) 530 ldquoVera pace frui poterit ecclesia Christirdquo (211r) 531 No texto joanino o bloco comeccedila com a menccedilatildeo dos tronos passa pela descriccedilatildeo dos maacutertires que

reviveram e termina na explicaccedilatildeo de que os demais natildeo reviveram ateacute o fim dos mil anos 532 ldquoCuius regnum sempiternum estrdquo (212r)

158

tempo do reino dos Santos seraacute interligado com o tempo da prisatildeo do Dragatildeordquo533 Seraacute um

tempo breve de duraccedilatildeo incerta no qual a Igreja estaraacute livre de perseguiccedilotildees e alcaccedilaraacute a

plena possessatildeo da ldquointelligentia spiritualisrdquo

A ressurreiccedilatildeo mencionada por Joatildeo eacute tambeacutem entendida como a prevista em Daniel

12 Jaacute os mortos que natildeo reviveram ateacute o final do milecircnio segundo Joaquim seratildeo os fieacuteis

que ressuscitaratildeo e entraratildeo direto na Nova Jerusaleacutem sem passar pelo julgamento do ldquotrono

brancordquo descrito a partir de Apocalipse 2011 Mas ele admite dificuldades neste ponto e

entende que eacute preciso esperar por novos esclarecimentos espirituais

A terceira parte da seccedilatildeo corresponde ao texto de Apocalipse 205b-6 que natildeo passa

de uma declaraccedilatildeo do estado daqueles que participam da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo Eacute um bloco

muito pequeno soacute ocupando 19 linhas de uma coluna do foacutelio 214v A versatildeo latina citada

pelo abade declara ldquobeatus et sanctus qui habet partem in resurrectione primardquo (Exp Ap

214v) Percebe-se que Joaquim natildeo tem muito para falar sobre estes versiacuteculos do

Apocalipse Ele se contenta em afirmar que aqueles que experimentarem a ldquoprimeira

ressurreiccedilatildeordquo seratildeo realmente felizes (felicius viro) pois natildeo estaratildeo mais ao alcance da

morte

A quarta e uacuteltima seccedilatildeo da seacutetima parte do Expositio corresponde a Apocalipse 207-

10 (a volta de Satanaacutes e o confronto contra Gog e Magog) Joaquim recorre agrave passagem

paulina de 1Tessalonicenses 413 para descrever duas ressurreiccedilotildees Segundo o abade

alguns ressuscitaratildeo logo outros depois Tambeacutem vincula o texto de Joatildeo com uma profecia

de Ezequiel 38 ao descrever um conflito no final dos tempos A paz do periacuteodo sabaacutetico

seraacute interrompida quando Satanaacutes for solto do abismo e instaurar a tribulaccedilatildeo de Gog e

Magog que significa uma uacuteltima ameaccedila para os cristatildeos vinda dos confins do Oriente

talvez de povos que no passado longiacutenquo foram aprisionados por Alexandre o Grande Este

exeacutercito se levantaraacute contra a ldquocidade amada no fim dos seacuteculosrdquo534 mas seraacute logo destruiacutedo

Assim a besta e o falso-profeta foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine

sexte etatis) e Satanaacutes o seraacute no fim da seacutetima (in fine septime)

Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto e fala em muacuteltiplas

ldquoopinionesrdquo Por fim conclui com outra alusatildeo a Daniel no sentido de que quando for vista

533 ldquoIdem tempu intelligatur incarcerationis draconis et regni Santorumrdquo (212r) 534 ldquoCivitatem dilectam in consumatione seculirdquo (214v)

159

a ldquoabominaccedilatildeo da desolaccedilatildeordquo (ldquoabominationem desolationisrdquo) eacute porque ldquoestas coisasrdquo estatildeo

para se cumprir535

74 A Idade Sabaacutetica do Espiacuterito

Segundo Bernard MCGinn Joaquim era um ldquoum convicto utopista no sentido de

que ele sentia ardentemente a iminecircncia da condiccedilatildeo ideal de vida sobre a terrardquo536 Sua

descriccedilatildeo desta eacutepoca futura parece realmente estar marcada pela ansiedade Ele desejava

ver o que naquele momento apenas podia imaginar e esperava estar vivo quando tudo

acontecesse jaacute que aguardava a manifestaccedilatildeo deste periacuteodo histoacuterico para breve Mas que

tipo de vida o abade esperava Quais seriam as tais ldquocondiccedilotildees ideaisrdquo de existecircncia humana

sobre a terra

Acima de tudo seria o reino do Espiacuterito (regnus Spiriti Divini) O Espiacuterito eacute a mais

frequente referecircncia de Joaquim para este periacuteodo Ele eacute o ldquoanjordquo que amarraraacute Satanaacutes por

ldquomil anosrdquo ou seja durante um ldquoperiacuteodo perfeitordquo de tempo Talvez por uma geraccedilatildeo (30

anos)537 Assim o ministeacuterio de Cristo a segunda pessoa da Trindade e o ministeacuterio do

Espiacuterito Santo a terceira pessoa durariam igualmente 30 anos Seraacute um periacuteodo curto mas

necessaacuterio agrave luz da revelaccedilatildeo trinitaacuteria agrave humanidade jaacute que o Pai se manifestou no primeiro

status e o Filho no segundo O terceiro status pertence ao Espiacuterito

Durante este tempo o Espiacuterito atuaraacute sobre toda a terra enchendo-a de paz Essa seraacute

sua principal caracteriacutestica Finalmente teraacute acabado a longa seacuterie de conflitos e perseguiccedilotildees

que marcou os dois povos de Deus (Israel e Igreja) desde o iniacutecio da histoacuteria Neste periacuteodo

ambos estaratildeo unidos (judeus e gentios) debaixo da plena posse da ldquointeligecircncia espiritualrdquo

para conhecer os segredos das Escrituras Joaquim fala de uma ldquocidade amadardquo no final da

seacutetima seccedilatildeo do Expositio o que pode ser uma indicaccedilatildeo de que Joaquim esperava que

535 Em Daniel 927 registra-se que algueacutem viraacute sobre ldquoas asas da abominaccedilatildeordquo A mesma imagem eacute usada em

Daniel 1131 e 1211 mas a referecircncia primaacuteria em termos histoacutericos e literaacuterios eacute mesmo Daniel 9 quando

o autor apocaliacuteptico descreve a profanaccedilatildeo do templo por Antiacuteoco Epiacutefanes A funccedilatildeo principal desta narrativa

apocaliacuteptica era garantir que o tempo de anguacutestia dos leitores estava para chegar ao fim e por isso o relato

anuncia uma iminente ldquogrande abominaccedilatildeordquo (referecircncia agrave profanaccedilatildeo do templo de Jerusaleacutem) mas garante

que quando isso acontecer a libertaccedilatildeo divina viraacute em seguida Cf COLLINS John J Daniel with in

introduction to apocalyptic literature Grand Rapids William B Eerdmans Publishing Company 1984 p 93 536 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 168 537 Joaquim usa o termo ldquogeraccedilatildeordquo para descrever periacuteodos histoacutericos Uma geraccedilatildeo teria a duraccedilatildeo de trinta

anos Do nascimento de Jesus ateacute o descanso sabaacutetico 1260 anos 42 geraccedilotildees passaram Cf WEST

ZIMDARS-SWARTZ op cit p 32-35

160

Jerusaleacutem fosse o lugar desta reuniatildeo universal dos ldquopovos do altiacutessimordquo no final dos

tempos538 Assim se a graccedila de Deus se moveu do Oriente para o Ocidente no periacuteodo

sabaacutetico ela voltaraacute do Ocidente para o Oriente

Joaquim denomina o periacuteodo de sabbatum e abre a seacutetima seccedilatildeo do Expositio falando

dos seis ldquotemposrdquo anteriores (tempore laboriosa) Se o ocasiatildeo anterior foi de trabalho este

uacuteltimo tempo da histoacuteria seraacute de descanso Por isso eacute um ldquosaacutebadordquo expressatildeo que faz alusatildeo

agrave semana primordial de criaccedilatildeo das Escrituras hebraicas cuja narrativa descreve a divindade

criando o mundo em seis dias No seacutetimo entretanto descansou ldquode toda a sua obra que

tinha feito E abenccediloou Deus o dia seacutetimo e o santificou porque nele descansou de toda a

obra que como Criador fizerardquo (Gecircnesis 22-3) Esse relato dos primoacuterdios retorna vaacuterias

vezes nas narrativas biacuteblicas Em uma delas surge no coacutedigo legal judaico conhecido como

ldquodez mandamentosrdquo ldquoem seis dias fez o Senhor os ceacuteus e a terra o mar e tudo o que neles

haacute e ao seacutetimo dia descansou por isso o Senhor abenccediloou o dia de saacutebado e o santificourdquo

(Ecircxodo 2011) O texto da Vulgata assim traduziu uma das expressotildees ldquobenedixit Dominus

diei sabbatirdquo Tomando esta semana da criaccedilatildeo como uma das estruturas da histoacuteria da

humanidade o abade vinculou os tempos anteriores de trabalho com os seis primeiros dias

aguardando com muita ansiedade o ldquoseptimum mundi statemrdquo o saacutebado de descanso

espiritual539

Na seacutetima parte do Expositio a descriccedilatildeo deste saacutebado final permanece vaga em

muitos aspectos Joaquim fala de caracteriacutesticas como pax e spiritualis intellectus A

primeira eacute uma inversatildeo dos sucessivos conflitos que caracterizaram a histoacuteria da

humanidade A segunda aponta para um aperfeiccediloamento da sabedoria dos homens e

mulheres do final da histoacuteria que excederaacute a sabedoria dos livros e tornaraacute desnecessaacuteria a

pregaccedilatildeo Mas se desejamos uma caracterizaccedilatildeo mais abrangente precisamos recorrer a

outra fonte do pensamento do abade de Fiore

Joaquim transformou algumas de suas ideias em imagens e esquemas o que faz com

que uma forma de aproximaccedilatildeo ao saacutebado do Espiacuterito esteja no documento conhecido como

Liber Figurarum540 Esta obra sobreviveu como uma coletacircnea de figuras do abade Algumas

538 WHALEN op cit p 123 539 Idem p 106 540 MC GINN Bernard LrsquoAbate Calabrese op cit p 169 Para uma anaacutelise ampla do Liber Figurarum cf

REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiore Genuine and spurious collections Medieval and

Renaissance Studies Los Angeles v 3 p 170-199 1954 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo

Gioachimita op cit p 99-106 Usamos a ediccedilatildeo encontrada em GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio

del mistero Le tavole del Liber Figurarum di Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi

Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000

161

destas aparecem no contexto dos livros autecircnticos Outras exclusivamente no Liber No

total satildeo 26 figuras resultado da ediccedilatildeo dos disciacutepulos de Joaquim que natildeo apenas

organizaram suas principais imagens mas tambeacutem desenharam outras seguindo de perto

suas ideias541 Para a professora Reeves estas imagens ldquosatildeo exposiccedilotildees do seu sistema de

pensamento natildeo meramente ilustraccedilotildees para seus textos Satildeo projetos independentes que

incorporam as diversas estruturas do pensamento de Joaquim eventualmente de forma mais

adequada do que palavras poderiam fazerrdquo542

Uma das figuras que mais claramente tratou do periacuteodo sabaacutetico foi a Dispositio novi

ordinis pertinens ad tertium statum (Liber Figurarum Tav XII)543 Eacute um diagrama da

sociedade do final dos tempos Percebe-se que o abade apresenta essa nova sociedade com

elementos de descontinuidade e continuidade em relaccedilatildeo ao tempo anterior A Igreja por

exemplo seraacute transformada mas natildeo necessariamente descontinuada

A nova sociedade foi desenhada na forma de uma cruz grega com suas partes

transformadas em oratoacuterios o que define o centro desta nova realidade humana como uma

grande instituiccedilatildeo religiosa generalizada e universal A figura eacute formada por um oratoacuterio

central cercada por outros quatro oratoacuterios que correspondem a diversos tipos de vida

monaacutestica tendo na parte inferior da figura dois outros oratoacuterios maiores em circunferecircncia

mas distantes dos oratoacuterios centrais Ou seja satildeo cinco oratoacuterios dedicados a tipos distintos

de monges (ordo monachorum) um para os cleacuterigos (ordo clericorum) e outro para os leigos

(ordo coniugatorum)

A imagem foi baseada na passagem de 1Coriacutentios 1212 quando Paulo descreve o

corpo com muitas partes que formam um soacute organismo quando estatildeo todas juntas Joaquim

combinou esta imagem com a visatildeo dos ldquoseres viventesrdquo de Apocalipse 4 um leatildeo um boi

um homem e uma aacuteguia Em seguida ele aplicou a estes seres os ldquocarismasrdquo de Efeacutesios 4

apoacutestolos profetas evangelistas e pastores-mestres O resultado dessa amaacutelgama eacute uma

comunidade que daacute unidade e plenitude ao ldquopovo do altiacutessimordquo na terra

Nesta comunidade religiosa perfeita do fim do mundo numa posiccedilatildeo correspondente

ao ldquonarizrdquo da sociedade estaacute o pater spiritualis que guia pelo exemplo e dedicaccedilatildeo Este

541 TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 13-125 p 100 MC GINN Bernard

Apocalyptic Spirituality Treatises and Letters of Lactantius Adso of Montier-En-Der Joachim of Fiore the

Franciscan Spirituals Savonarola New York Paulist press 1979 p 103 542 REEVES Marjorie The figurae of Joachim of Fiorehellip op cit p 199 543 Conferir esta imagem no anexo 4 retirada de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op

cit p 13 Para a anaacutelise da Dispositio cf MCGINN Bernard Apocalyptic Spirituality op cit p 111-112

TAGLIAPIETRA Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 103-104

162

oratoacuterio eacute dedicado agrave ldquoMaria e a Santa Jerusaleacutemrdquo Ele eacute simbolizado pela pomba e funciona

como um conselho para o restante da sociedade Joaquim o denomina tambeacutem de ldquotrono de

Deusrdquo como em Apocalipse 4 O ldquopai espiritualrdquo e os demais membros deste oratoacuterio

seguem a ldquoregrardquo na pureza da forma No interior do oratoacuterio aparece a descriccedilatildeo ldquoEste local

seraacute a matildee de todos os locais Seraacute o pai espiritual que presidiraacute todos os lugaresrdquo544

Agrave esquerda do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPedro e de Todos os Santos

Apoacutestolosrdquo Esta parte representa a matildeo Eacute simbolizada pelo Leatildeo e funciona como uma

casa para pessoas idosas e doentes se recuperarem por meio do ldquoespiacuterito de fortalezardquo

Apesar da fragilidade dos seus membros eles ainda seguem a regra religiosa

Neste oratoacuterio vatildeo viver estes irmatildeos delicados e velhos que por

fraqueza de estocircmago natildeo podem suportar a austeridade da regra e do

jejum mas ainda assim como podem se esforccedilam para proceder de

acordo com a pureza da regra Eles natildeo seratildeo obrigados a sair para os

campos para fazer trabalhos manuais mas vatildeo executar seus trabalhos

em casa debaixo de cuidados Natildeo seraacute permitida a entrada neste oratoacuterio

por vontade proacutepria ou escolha mas apenas aqueles a quem ordenou o

abade545

Agrave direita do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoPaulo e de todos os Doutores da

Igrejardquo Esta casa representa a ldquoorelhardquo e eacute simbolizada por um ldquohomemrdquo Funciona como

um centro de aprendizagem onde pessoas iratildeo estudar com a ajuda do ldquoespiacuterito de

inteligecircnciardquo ldquoNeste oratoacuterio vivem homens eruditos entretanto com desejo de aprender as

coisas de Deus e que desejam dedicar-se mais do que os outros para ler e estudar a doutrina

espiritualrdquo546

Acima do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoJoatildeo evangelista e dos Santos Virgensrdquo

Esta parte representa os ldquoolhosrdquo Eacute simbolizada pela aacuteguia e seu papel eacute a contemplaccedilatildeo

debaixo da completa clausura O ldquoespiacuterito de sabedoriardquo estaacute sobre aqueles que estatildeo nesta

casa Eacute aqui que os ldquoviri spiritualesrdquo viveratildeo vidas perfeitas atraveacutes do louvor e da

contemplaccedilatildeo Segundo a descriccedilatildeo na imagem ldquoneste oratoacuterio viveratildeo homens perfeitos e

virtuosos que inflamados pelo desejo de vida espiritual querem levar uma vida

contemplativardquo547 Eles ldquojejuam o tempo todo exceto por motivo de doenccedila Natildeo bebem

544 GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 13-14 545 Idem 546 Idem 547 Idem

163

vinho e nem comem alimentos temperado com oacuteleo exceto nos domingos e nos principais

dias festivosrdquo548

Abaixo do oratoacuterio central estaacute o oratoacuterio de ldquoEstevatildeo e de todos os Santos

Martirizadosrdquo Ele eacute simbolizado pelo ldquoboirdquo e representa a ldquobocardquo da comunidade Por meio

do ldquoespiacuterito de ciecircnciardquo estes membros seratildeo preparados e treinados em grande disciplina

espiritual Neste oratoacuterio ldquovivem os irmatildeos que tecircm forccedila para a atividade exterior e natildeo

podem progredir na disciplina espiritual como apropriadordquo Esta descriccedilatildeo jaacute indica um

decliacutenio de status em relaccedilatildeo aos membros dos oratoacuterios superiores e seus representantes de

alto ideal de vida religiosa

Na parte inferior da figura haacute ainda outros dois oratoacuterios que consomem um grande

espaccedilo da imagem Haacute um intervalo maior entre eles e a parte superior da Dispositio mas

ainda haacute uma ligaccedilatildeo como aparece no registro ldquoentre o mosteiro e a sede do clero deve

existir uma distacircncia de quase trecircs milhasrdquo Elemento semelhante seraacute repetido para o espaccedilo

que separa as duas casas de baixo

O oratoacuterio do clero eacute chamado de ldquoJoatildeo Batista e dos Profetasrdquo Eacute uma casa larga e

representa os ldquopeacutesrdquo da comunidade Eacute simbolizada por um ldquocachorrordquo Por meio do ldquoespiacuterito

de devoccedilatildeordquo sacerdotes e cleacuterigos vivem em continecircncia e comunidade sob a abstinecircncia

de alguns tipos de alimento e de roupa festiva

Entre o oratoacuterio do clero e o mais inferior que forma a base surge novamente a

menccedilatildeo do espaccedilo de separaccedilatildeo entre os edifiacutecios tema que aponta para um distanciamento

natildeo apenas espacial entre os personagens de cada um mas tambeacutem de poder funccedilatildeo e papel

ldquoentre estes dois oratoacuterios deve existir um espaccedilo de cerca de trecircs estaacutediosrdquo549

Na parte inferior da figura estaacute o oratoacuterio de ldquoAbraatildeo e dos Patriarcasrdquo representado

por uma ovelha cuja funccedilatildeo eacute servir de casa para pessoas casadas e seus filhos sob o ldquotemor

pela salvaccedilatildeordquo Estes viveratildeo em casas privadas mas suas vidas seguiratildeo as ordens do pater

spiritualis e seus supervisores Eles trabalharatildeo regularmente daratildeo o diacutezimo e viveratildeo uma

vida nivelada sem distinccedilatildeo de classes e com bens materiais em comum A imagem ainda

registra ldquoSob o nome deste oratoacuterio estaratildeo reunidos os cocircnjuges com seus filhos e filhas

em forma comunitaacuteria para ter relaccedilotildees com as esposas mais para produzir descendentes

do que para satisfazer os desejosrdquo550

548 Idem 549 Idem 550 Idem

164

Por meio da Dispositio surge a descriccedilatildeo de uma realidade social fortemente

estruturada com espaccedilos geograacuteficos marcados por status funccedilatildeo e dinacircmica religiosa e

social Joaquim recorreu ao texto de Efeacutesios 43 para falar da metaacutefora do corpo de Cristo

com oacutergatildeos diferentes Usou tambeacutem Joatildeo 142 para trazer a imagem das vaacuterias casas

divinas Por meio destas metaacuteforas ele compocircs a imagem de sete ldquocasas espirituaisrdquo nas

quais leigos diferentes niacuteveis de monges cleacuterigos e sacerdotes habitaratildeo551 Estas sete casas

satildeo ordenadas como se fossem a futura Jerusaleacutem transcendental de Apocalipse 22 Natildeo eacute

ainda aquela mas uma antecipaccedilatildeo proleacuteptica de suas qualidades Esta comunidade

monaacutestica se manifestaraacute no periacuteodo sabaacutetico em ldquosemelhanccedila agrave Jerusaleacutem Celesterdquo552

A Dispositio conteacutem o plano de um monasteacuterio perfeito no qual a vida contemplativa

desempenha o papel central da existecircncia humana553 Apesar do predomiacutenio da ordo

monachorum haveraacute tambeacutem possivelmente sob os influxos da espiritualidade

cisterciense554 espaccedilo para trabalho e estudo Daiacute a existecircncia dos leigos para trabalhar dos

cleacuterigos para ministrar os sacramentos aos leigos e do ldquooratoacuterio do boirdquo formado por

monges que teratildeo contato com cleacuterigos

Mesmo se recusando a definir Joaquim como milenarista em funccedilatildeo de uma definiccedilatildeo

estreita do fenocircmeno555 o francecircs Jean Delumeau descreve longamente o sistema do calabrecircs

na segunda obra de sua trilogia dedicada ao estudo do paraiacuteso556 No momento de resumir a

natureza do repouso sabaacutetico o historiador francecircs recorreu a diversas expressotildees do abade

e forneceu esta siacutentese que dificilmente poderia deixar de ser definida como milenarista

Depois do tempo da ldquolei e da ldquograccedilardquo viraacute portanto o da ldquomaior graccedilardquo

durante o qual a natureza se transformaraacute e se embelezaraacute A liberdade

espiritual floresceraacute no mundo Entatildeo ldquonatildeo haveraacute mais sofrimentos e

gemidos Reinaratildeo ao contraacuterio o repouso a calma a abundacircncia da pazrdquo

Seremos voltados agrave contemplaccedilatildeo ao louvor ldquoDanccedilaremos de alegria ao

contemplar os admiraacuteveis desiacutegnios de Deusrdquo Natildeo haveraacute mais

necessidade de escrever livros para explicar as Escrituras A preacutedica se

deteraacute O tempo da letra teraacute terminado Os fieis contemplaratildeo os misteacuterios

551 Idem 552 Idem 553 WEST ZIMDARS-SWARTZ op cit p 25 554 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo Joaquiacuten de Fiore y las esperanzas milenaristas

a fine de la Edad Media Cliacuteo amp Criacutemen Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango Durango v

1 p 217-240 2004 p 229 555 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias

Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria

mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 556 A trilogia de Delumeau eacute formada pelas seguintes obras DELUMEAU Jean Une histoire du paradis Le

Jardin des deacutelices Fayard Hachette Litteacuteratures 2002 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma

histoacuteria do paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 DELUMEAU Jean O que sobrou do paraiacuteso

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

165

em plena luz O Evangelho segundo a letra seraacute substituiacutedo pelo

ldquoEvangelho eternordquo que procede do Evangelho de Cristo A verdade nos

seraacute dada em sua simplicidade557

O saacutebado do Espiacuterito descrito por Joaquim eacute sim um tipo de milenarismo uma

forma de utopia social558 que espera por um periacuteodo de felicidade para toda a humanidade

mesmo que afirme alguns benefiacutecios especiais para um grupo dentro dela Este periacuteodo seraacute

terreno e natildeo numa realidade transcendental eacute iminente pois a transformaccedilatildeo estaacute proacutexima

de comeccedilar seraacute miraculosa jaacute que as mudanccedilas aconteceratildeo por meio da atuaccedilatildeo

sobrenatural do Espiacuterito divino Tal felicidade seraacute total com a inversatildeo dos males da terra

mas natildeo com a destruiccedilatildeo de todas as instituiccedilotildees anteriores A Igreja sobreviveraacute

completamente transformada e sob a direccedilatildeo de um novo tipo de papado o ldquouniversalis

scilicet pontifex nove Ierusalemrdquo (certamente o pontiacutefice universal da nova Jerusaleacutem) ou

ldquopapa angelicusrdquo559

75 Antecedentes do saacutebado do Espiacuterito560

O historiador inglecircs Norman Cohn no momento de apresentar Joaquim de Fiore

como o ldquoinventorrdquo do sistema profeacutetico ldquomais influente de todos os conhecidos na Europa

ateacute ao aparecimento do marxismordquo argumenta que a origem do seu sistema estaacute na

conjugaccedilatildeo de ldquoescatologias derivadas do Apocalipse e dos Oraacuteculos Sibilinosrdquo561 Ao

discutir o conceito de milenarismo na Idade Meacutedia o medievalista Robert Lerner argumenta

557 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 45 As aspas pertencem ao texto citado 558 Assim se expressou Cohn ldquoPor mais respeito que Joaquim tivesse agraves doutrinas exigecircncias e interesses da

Igreja o que ele propusera era na verdade um novo tipo de milenarismo ndash e aliaacutes um tipo que as geraccedilotildees

futuras haveriam de elaborar num sentido antieclesiaacutestico e depois num sentido abertamente secularrdquo Cf

COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia

Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 90 559 DANIEL E Randolph Joachim of Fiore Patterns of History in the Apocalypse In EMMERSON Richard

K MCGINN Bernard The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 72-

88 p 85 560 Em alguns momentos a busca pelas fontes dos textos eacute uma tarefa ingloacuteria Os autores natildeo informam seus

pontos de partida e o maacuteximo que encontramos satildeo alusotildees mais ou menos transparentes Aleacutem dos topoi

disponiacuteveis para dada conjuntura histoacuterica o que sobra eacute um conjunto de hipoacuteteses com graus diferentes de

plausibilidade Conferir a argumentaccedilatildeo neste sentido em FLANAGAN Sabina Twelfth-Century apocalyptic

imaginations and the coming of the Antichrist The Journal of Religious History v 24 n 1 p 57-69 2000 p

59 561 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 89 O viacutenculo que Cohn fez entre Joaquim e Sibila natildeo

faz muito sentido As sibilas como a Tiburtina eram bem conhecidas no periacuteodo de Joaquim mas

manifestavam um tipo de milenarismo distinto Elas esperavam por um periacuteodo de paz na terra antes do

Anticristo normalmente dirigido por um imperador do final dos tempos ou por um papa poderoso

166

de forma parecida afastando ainda mais o abade do livro joanino e aproximando-o natildeo

necessariamente das Sibilas sugeridas por Cohn mas do poacutes-milenarismo da Glossa

Ordinaria562

Ambos sugerem por caminhos diferentes que o milenarismo de Joaquim de Fiore

natildeo depende inicialmente ou mesmo diretamente do milenarismo de Joatildeo de Patmos

Algumas evidecircncias poderiam reforccedilar as hipoacuteteses destes historiadores O sermatildeo

conhecido como Locuturi aliquid563 escrito por Joaquim em algum momento no iniacutecio da

deacutecada de 1180 em suas uacuteltimas linhas apoacutes descrever o que seria a sexta parte do

Apocalipse termina de forma lacocircnica ldquoEntatildeo viraacute o saacutebado apoacutes a ressurreiccedilatildeo pelo juiacutezo

e finalmente seraacute revelada a gloacuteria da cidade celestialrdquo564 No iniacutecio do sermatildeo ele jaacute

anunciara que o livro de Joatildeo ldquoestaacute dividido e limitado em sete partes e temposrdquo565 Este

texto tambeacutem indica que o abade jaacute tinha consolidada uma perspectiva sobre a estrutura das

seis primeiras partes do Apocalipse elemento que natildeo sofreria mudanccedila ateacute a conclusatildeo do

Expositio quase duas deacutecadas depois A sexta parte encerraria com a derrota da besta e o

falso profeta no final de Apocalipse 19 A seacutetima entatildeo iria de Apocalipse 20 ateacute o capiacutetulo

22 Como jaacute indicamos neste mesmo capiacutetulo Joaquim explicita nas partes iniciais do seu

grande comentaacuterio que ele planejava fazer uma obra de sete partes Se ele mudou para oito

em algum momento do processo foi justamente para dar destaque aos dez versiacuteculos do

texto milenar (a uacutenica mudanccedila significativa na estrutura) destaque que antes ele natildeo dava

A estrutura final do Expositio assim indica como o abade acentuou significativamente o

papel de Apocalipse 201-10 no conjunto da obra ao relacionaacute-lo com o terceiro status e a

seacutetima aetas do mundo

Tanto no Liber de Concordia quanto no Psalterium o abade jaacute apresentou o

desenvolvimento da histoacuteria humana na direccedilatildeo de um cliacutemax de beatitude Talvez uma das

passagens mais claras neste sentido esteja na Concordia

562 LERNER Robert E Millennialism In MC GINN Bernard (ed) The Encyclopedia of Apocalypticism

Apocalypticism in Western History and Culture New York Continuum 1998 3v V 2 p 326-360 p 346

As Sibilas aludidas por Cohn como a Tiburtina e a Glossa Ordinaria manifestam tipos diferentes de

milenarismos O preacute-milenarismo da Tiburtina descreve um periacuteodo de felicidade na terra anterior ao advento

do Anticristo A Glossa Ordinaria apresenta um poacutes-milenarismo com o periacuteodo de felicidade para depois da

derrota do Anticristo Em ambos os fenocircmenos a parousia (segundo advento de Jesus) natildeo exerce papel na

instauraccedilatildeo da felicidade 563 Sobre este sermatildeo conferir o capiacutetulo IV supra 564 ldquoEt tunc erit sabbatum deinde resurectio ad iudicium et tunc revelabitur gloria civitates supernerdquo Texto

latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino da Fiore ndash Introduzione allrsquoApocalisse Roma Viella 1995 p

130-131 565 ldquoSeptem partibus distinctus et temporibus terminaturrdquo Texto latino em SELGE Kurt-Viktor Gioacchino

da Fiore op cit p 130-131

167

Os misteacuterios das divinas paacuteginas mostram-nos enfim os Trecircs Estados do

mundo O primeiro eacute aquele no qual estivemos sob a lei o segundo no qual

estamos sob a graccedila o terceiro que esperamos iminente sob uma graccedila

ampliada [] Por isso o primeiro Estado foi na ciecircncia o segundo na posse

da sabedoria o terceiro na plenitude do sentido O primeiro na servidatildeo

servil o segundo na servidatildeo filial o terceiro na liberdade O primeiro nos

flagelos o segundo na accedilatildeo o terceiro na contemplaccedilatildeo O primeiro no

temor o segundo na feacute o terceiro na caridade O primeiro eacute dos servos o

segundo eacute dos filhos o terceiro eacute dos amigos O primeiro eacute dos velhos o

segundo eacute dos jovens o terceiro das crianccedilas O primeiro na luz da estrela

o segundo na aurora o terceiro ao meio-dia O primeiro no inverno o

segundo na primavera o terceiro no veratildeo O primeiro produz urtigas o

segundo rosas o terceiro liacuterios O primeiro ervas o segundo espigas o

terceiro trigo O primeiro a aacutegua o segundo o vinho o terceiro o oacuteleo O

primeiro pertence agrave Setuageacutegima o segundo agrave Quaresma o terceiro agrave festa

pascal O primeiro Estado pertence ao Pai que eacute criador de todas as coisas

o segundo ao Filho que se dignou assumir nosso limite o terceiro ao

Espiacuterito Santo do qual diz o apoacutestolo Onde se achar o Espiacuterito do Senhor

aiacute estaacute a liberdade (Liber de Concordia 112r)566

O sistema acima apresentado relaciona cada status da histoacuteria da humanidade com

uma pessoa divina explicitando pelo acuacutemulo de imagens e analogias que o segundo

ultrapassou o primeiro e o terceiro ultrapassaraacute o segundo Para o abade a Era do Espiacuterito

seria muito melhor do que as duas anteriores o que significa que a humanidade poderia

esperar por um tempo de esplendor para o futuro sob a tutela do Espiacuterito divino

Sem chamar-se historiador o abade de Fiore se dedicava nos termos de Adeline

Rucquoi agrave ldquoanaacutelise da economia do tempordquo567 A forma como Joaquim entendia a histoacuteria

(preteritae rei) o levou a vaticinar o futuro em uma perspectiva de progresso e de evoluccedilatildeo

loacutegica Para o abade a histoacuteria era uma constante que se desdobrava de forma contiacutenua Se

ele compreende o passado ele pode prever o futuro Neste sentido eacute uacutetil ter uma perspectiva

de siacutentese dos sistemas histoacutericos do abade e verificar a forma como eles demandavam o

periacuteodo sabaacutetico

O editor do Liber de Concordie568 Randolph Daniel professor da Universidade de

Kentucky ao explicar a reflexatildeo histoacuterica de Joaquim o faz por meio daquilo que ele chamou

566 Esta longa citaccedilatildeo estaacute no Livro V capiacutetulo 84 ainda sem ediccedilatildeo criacutetica A traduccedilatildeo em questatildeo eacute de

BAUCHWITZ Oscar Federico A histoacuteria em Joaquim de Fiore Princiacutepios revista de filosofia Natal v 1

n 1 p 109-130 1994 p 110 567 A historiadora Adeline Rucquoi destaca que o seacuteculo XII foi um periacuteodo significativo para a reflexatildeo da

histoacuteria quando filoacutesofos e teoacutelogos se debruccedilaram a buscar uma ratio preterita rei ou o sentido do tempo

Aleacutem de Joaquim ela menciona Hugo de Satildeo Vitor Oton de Freising Anselmo de Havelberg e Petrus

Comestor Cf RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 223-224 568 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore Liber de Concordia Novui ac Veteris Testamenti

Philadelphia The American Philosophical Society 1983 O autor sintetiza os sistemas histoacutericos de Joaquim

168

de ldquoinflexotildees do pensamentordquo que aparecem nas poucas notas auto-biograacuteficas que o abade

deixou em suas obras569 A primeira se deu em algum momento durante a peregrinaccedilatildeo agrave

Palestina e deveria jaacute ser o conteuacutedo principal de suas pregaccedilotildees depois que ele retornou

para a Calaacutebria e atuava como pregador itinerante em Rende no iniacutecio da deacutecada de 1170

entremente o pontificado de Alexandre III (papa de 1159-1181)

Este sistema foi chamado por Joaquim de concordia duorum testamentorum ou os

paralelos entre as perseguiccedilotildees de Israel e as perseguiccedilotildees da Igreja Eacute uma maneira de

dividir a histoacuteria em duas grandes etapas Uma se chamava Antigo Testamento e se estendia

da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus A outra era o Novo Testamento e iria do nascimento

de Jesus ateacute o final dos tempos A histoacuteria da humanidade eacute o palco da atuaccedilatildeo de Deus para

salvar seus povos O primeiro era Israel O segundo a Igreja Neste esquema a histoacuteria

avanccedila por meio de tribulaccedilotildees e perseguiccedilotildees que se repetem paralelamente nos dois

testamentos e nos dois povos

As tensotildees poliacuteticas entre o papado e Impeacuterio Germacircnico estavam particularmente

altas depois de deacutecadas de conflito entre o papa Alexandre III (papa de 1159-1181) e o

Imperador Frederico I Barbarorroxa (1122-1190) Este ambiente parece estar traduzido no

alinhamento que Joaquim fez entre as ldquoperseguiccedilotildeesrdquo dos judeus na eacutepoca do Antigo

Testamento com as batalhas contra a Igreja no tempo do Novo Testamento

Joaquim aplicou esta estrutura de perseguiccedilotildees aos sete selos do Apocalipse e a

abordou repetidamente em vaacuterias de suas obras desde Genealogia570 ateacute De Septem

Sigillis571 embora os detalhes mudem de texto para texto Posteriormente este esquema de

dois tempos foi definido pelo abade de secunda diffinitio e o simbolizou pela letra grega

cursiva ocircmega572 Os Testamentos assim satildeo expressotildees tanto canocircnicas quanto histoacutericas

Se toda a histoacuteria de Israel da criaccedilatildeo ateacute o nascimento de Jesus pode ser encontrada no

primeiro testamento Joaquim espera que a histoacuteria completa da Igreja desde sua origem ateacute

o final dos tempos esteja contida no segundo testamento especialmente no Apocalipse de

Joatildeo Mesmo neste esquema de dois tempos ainda haacute um momento sabaacutetico A seacuterie de sete

perseguiccedilotildees de Israel e da Igreja terminam ambas em um periacuteodo de descanso No caso de

em DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of

History Speculum Chicago v 55 n 3 p 469-483 1980 569 DANIEL E Randolph Abbot Joachim of Fiore op cit p xiii-xviii 570 Genealogia eacute provavelmente a obra mais antiga de Joaquim escrita segundo Potestagrave em 1176 Cf

POTESTAgrave Gian Luca Il Tempo DellApocalisse op cit p 16 571 Possivelmente de 1198 Cf TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I Sigilli dellrsquoApocalisse In

GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 45 572 Conferir o esquema na posiccedilatildeo inferior esquerda do anexo 6

169

Israel o descanso veio apoacutes os conflitos com os gregos representados por Antiacuteoco Epiacutefanes

e se estendeu ateacute o nascimento de Jesus De maneira paralela apoacutes a seacutetima perseguiccedilatildeo pelo

Anticristo viraacute um descanso para a Igreja O princiacutepio fundamental eacute uma divisatildeo da histoacuteria

em duas partes cada uma delas marcada por perseguiccedilatildeo julgamento e batalha do povo de

Deus No futuro que Joaquim imaginava ser iminente a terceira pessoa da Trindade iria

libertar completamente os cristatildeos fieacuteis do sofrimento e das tribulaccedilotildees que caracterizaram

a histoacuteria desde os tempos de Israel ateacute os dias do abade Os conflitos entre os poderes

temporais e eclesiaacutesticos terminariam de vez jaacute que o periacuteodo sabaacutetico seria caracterizado

principalmente pela paz

A segunda inflexatildeo se deu no fim de 1183 ou iniacutecio de 1184 enquanto Joaquim

esteve em Casamari para tratar de aspectos burocraacuteticos para Corazzo Ali desenvolveu seu

mais conhecido sistema de tria statum em que a Trindade se relaciona com a histoacuteria

imprimindo nela a natureza das pessoas divinas Pai Filho e Espiacuterito573 Este uacuteltimo por sua

vez seria responsaacutevel por implantar uma era de perfeiccedilatildeo espiritual na terra Estes status

eram marcados ainda por initiatio frutificatio e consumatio Ou seja eles apresentavam

um iniacutecio um momento em que frutificam de maneira especial e uma fase de teacutermino No

caso da Era do Pai esta comeccedilou com Adatildeo frutificou em Abraatildeo e terminou em Cristo O

segundo status comeccedilou com Uzias frutificou em Zacarias (pai de Joatildeo Batista) e terminaria

algum tempo depois de Joaquim O terceiro status comeccedilou com Satildeo Bento de Nuacutersia

frutificaria na geraccedilatildeo de Joaquim e terminaria no fim da histoacuteria574 Joaquim aplicou este

esquema trinitaacuterio agrave progressatildeo da vida religiosa na histoacuteria No status do Pai predominavam

os casados no status do Filho predominavam os cleacuterigos no status do Espiacuterito

predominariam os monges Aplicou tambeacutem em trecircs povos a proteccedilatildeo de Deus deixou

Israel passou para os gregos e terminou nos latinos Esta divisatildeo em trecircs status foi definida

pelo abade como prima diffinitio representada simbolicamente pela letra grega uncial

Alfa575 Nesta estrutura a histoacuteria tem uma meta que soacute seraacute alcanccedilada no status do Espiacuterito

apoacutes o fim do segundo status quando se manifestar o descanso sabaacutetico A prima diffinitio

mais ateacute do que a secunda manifesta toda a ansiedade do abade pela perfeiccedilatildeo da vida

monaacutestica e talvez reflita a crise que acabaraacute levando-o a deixar Corazzo e fundar a Ordem

Florense

573 Conferir o diagrama dos Ciacuterculos Trinitaacuterios do anexo 6 574 WHALEN Brett Edward Dominion of God op cit 107 575 Conferir o esquema na posiccedilatildeo superior esquerda do anexo 6

170

O primeiro tempus coincide com o primeiro status O segundo tempus com o segundo

status ateacute a eacutepoca de Joaquim Apesar do saacutebado do segundo tempus natildeo ser tratado de forma

tatildeo proeminente quanto o saacutebado do terceiro status em ambas as diffinitiones a plena

realizaccedilatildeo estaacute no futuro Nas duas haacute uma evoluccedilatildeo de instituiccedilotildees e de qualidade de vida576

Finalmente apoacutes retornar para Corazzo cerca de um ano apoacutes a passagem por

Casamari Joaquim deu mais um passo na consolidaccedilatildeo dos seus sistemas histoacutericos Ele

finalmente conseguiu relacionar a concordia duorum testamentorum e a intervenccedilatildeo divina

por meio dos tria statum atraveacutes da estrutura geral do Apocalipse A obra de Joatildeo assim se

tornou aos olhos do abade a chave para a compreensatildeo inteira da histoacuteria da humanidade

Aleacutem dos sistemas histoacutericos do abade a historiografia tem sugerido outra base

significativa para o saacutebado do Espiacuterito desta vez por meio dos recursos exegeacuteticos do abade

Os leitores ocidentais do Apocalipse de Joatildeo desde as criacuteticas ao quiliasmo de Agostinho

de Hipona Jerocircnimo e Gregoacuterio Magno liam o Apocalipse de forma moralizante e

alegoacuterica sem viacutenculos expliacutecitos com a histoacuteria O milecircnio dos maacutertires de Apocalipse 20

era interpretado de forma a descrever o tempo da Igreja na terra577 Estes autores imaginavam

a histoacuteria caminhando na direccedilatildeo de vaacuterios desastres sendo o penuacuteltimo o advento do

Anticristo Ele instauraria uma grande perseguiccedilatildeo agrave Igreja depois do qual Cristo viria de

forma gloriosa para o uacuteltimo julgamento e a consumaccedilatildeo da histoacuteria do mundo578

Uma ideia surgiu entretanto entre os antigos comentaristas de Daniel Ao comentar

Daniel 1211-12 por volta do ano 400 Jerocircnimo argumentou que o tempo da tribulaccedilatildeo

(1290 dias) e do fim do mundo (1335 dias) tinha um prazo residual de 45 dias Este mecircs e

meio seria entatildeo o intervalo entre a derrota do Anticristo e o julgamento final da humanidade

Beda o Veneraacutevel no iniacutecio do seacuteculo VIII concordou com Jerocircnimo e acrescentou que

este intervalo tambeacutem poderia ser encontrado nos trinta minutos de silecircncio no ceacuteu apoacutes a

576 DANIEL Randolph E The double procession of the Holy Spirit in Joachim of Fiorersquos Understanding of

History op cit p 482 577 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 29-31 Segundo Desroche esta ldquoconcepccedilatildeo

alcanccedilou posiccedilatildeo hegemocircnica mas nunca deixou de ser sitiada por fileiras de dissidecircncias oriundas das trecircs

grandes confissotildees cristatildes (catolicismo protestantismo ortodoxia)rdquo Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de

messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 22

Por isso Umberto Eco fala de um ldquomillenarismus absconditusrdquo neste periacuteodo de hostilidade contra o quiliasmo

Cf ECO Umberto Wainting for the Millennium In LANDES Richard GOW Andrew VAN METER

David C (ed) The apocalyptic year 1000 religious expectation and social change ndash 950-1050 Oxford Oxford

University Press 2003 p 121-135 p 125 578 FLANAGAN op cit p 59 Flanagan acrescenta que o que variava bastante era a sequecircncia dos eventos

finais o tempo entre cada um deles bem como a perspectiva de iminecircncia

171

abertura do seacutetimo selo do Apocalipse O exegeta do seacuteculo IX Haimo de Auxerre

argumentou ainda que o periacuteodo em questatildeo natildeo precisava ser qualificado de forma precisa

jaacute que era apenas um prazo miacutenimo Estes autores natildeo estavam certos sobre os motivos para

este prazo579 ateacute que a Glossa Ordinaria no iniacutecio do seacuteculo XII em uma de suas notas

sugeriu que o tempo posterior ao advento do Anticristo e anterior agrave volta de Cristo

denominado entatildeo de refrigerium sactorum (descanso dos santos) seria uma fase de

felicidade prosperidade e paz na terra Alguns autores especialmente do mesmo periacuteodo

ampliaram ainda mais este novo conceito como Honorius Augustodunesis (1080-1156) que

argumentou que ele seria o tempo da conversatildeo de todos os pagatildeos ou Otto de Freising

(114-1158) que previu nele o ingresso dos judeus agrave Igreja Levando em conta esta corrente

exegeacutetica Robert Lerner levantou a hipoacutetese que o milenarismo do Espiacuterito de Joaquim

deveria ser entendido como uma expressatildeo exegeacutetica modificada da ldquotradiccedilatildeo do refrigeacuterio

dos santosrdquo580 Eacute possiacutevel concordar parcialmente com Lerner ao indicar uma fonte

plausiacutevel para a escatologia do abade mas natildeo de forma isolada Os sistemas histoacutericos dele

jaacute demandavam a expectativa de um futuro melhor

De qualquer forma o que se percebe eacute que o descanso sabaacutetico que Joaquim

descreveu na passagem de Apocalipse 201-10 teve pontos de partida bem mais amplos do

que o texto joanino O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim parece ser o resultado de sua reflexatildeo

histoacuterica e da tradiccedilatildeo exegeacutetica do refrigeacuterio dos santos Assim nos momentos finais do

Expositio ao fazer a exegese de Apocalipse 20 o abade aplica no milecircnio de Joatildeo as ideias

que jaacute trazia consolidadas que apoacutes a queda do Anticristo e antes da volta de Jesus haveria

na terra natildeo necessariamente um reinado dos maacutertires mas o descanso da Igreja e acima de

tudo o refrigeacuterio dos monges sob a direccedilatildeo final da terceira pessoa da Trindade

76 Fatores e condiccedilotildees de emergecircncia

Segundo Sabina Flanagan explicaccedilotildees histoacutericas para as opccedilotildees dos autores podem

ter relaccedilatildeo entre outros fatores com crenccedilas e restriccedilotildees dogmaacuteticas religiosas com

engajamentos poliacuteticos e viacutenculos sociais ou com confrontos contra dissidecircncias581 Essa eacute

579 LERNER Robert E Millennialism op cit p 344 TAGLIAPIETRA Andrea Gioacchino da Fiore e I

Sigilli dellrsquoApocalisse op cit p 34 580 LERNER Robert E Millennialism op cit p 347 581 FLANAGAN op cit p 64

172

uma forma de dizer que as representaccedilotildees que se materializaram nas praacuteticas e discursos de

Joaquim configuram respostas a conjunturas poliacuteticas sociais culturais e eclesiaacutesticas que

caracterizavam o Ocidente medieval582

Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai Mauro um notaacuterio a

serviccedilo da chancelaria normanda Inicialmente estes passos foram dados sem sobressaltos

comeccedilando na Calaacutebria e se deslocando em seguida para a corte do Reino da Siciacutelia em

Palermo Ele nasceu em 1135 um pouco depois da fundaccedilatildeo do Reino por Rogeacuterio II e

abandonou a carreira na corte em 1167 um ano depois da morte do rei William I Estas

primeiras deacutecadas de vida e o treinamento recebido para o trabalho na corte devem ter lhe

capacitado para o relacionamento com as diversas populaccedilotildees e etnias do reino Um notaacuterio

especialmente em Palermo deveria ter conhecimento do grego e do aacuterabe para promover

seus registros583 Estas qualidades possivelmente estiveram envolvidas em sua raacutepida

ascensatildeo no monasteacuterio de Corazzo e nas negociaccedilotildees com os poderes eclesiaacutesticos e

temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore

Essa proximidade com a cultura aacuterabe da Siciacutelia ou os contatos proacuteximos que ele

possa ter tido na corte de Palermo entretanto natildeo produziram nele uma perspectiva positiva

quanto ao Islatilde Mesmo que natildeo haja em suas obras nada parecido com as convocaccedilotildees de

Satildeo Bernardo para uma guerra santa584 os muccedilulmanos satildeo descritos recorrentemente pelo

calabrecircs como agentes do diabo para perseguir a Igreja

Ele ingressou numa comunidade religiosa no iniacutecio do governo de William II no

comeccedilo da deacutecada de 1170 Quando este rei morreu em 1189 Joaquim jaacute havia passado por

Casamari comeccedilado a produccedilatildeo de suas grandes obras e tinha jaacute uma definiccedilatildeo das duas

deffinitio que ele usava para refletir a histoacuteria Aqueles foram tempos de muita instabilidade

Depois de quatro governantes de origem normanda (Rogeacuterio I Rogeacuterio II William I e

William II) o reino finalmente passou para as matildeos dos Hohenstaufen apoacutes o governo de

transiccedilatildeo do conde Tancredo Os encontros do abade com o imperador Henrique ou com a

rainha Constacircncia resultaram natildeo apenas em benefiacutecios materiais para Joaquim e seus

irmatildeos de Fiore mas tambeacutem no fim do viacutenculo entre a Babilocircnia e os imperadores

germacircnicos que se manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrecircs Com isso

582 WHALEN op cit p 115 583 Para os aspectos culturais e sociais do Reino da Siciacutelia conferir o capiacutetulo V 584 Cf AacuteLVAREZ PALENZUELA Vicente Aacutengel El Cister y las Oacuterdenes Militares em el impulso hacia

Oriente Cuardernos de Historia Medieval Madrid v 1 p 3-19 1998 p 8

173

na parte final do Expositio o Impeacuterio deixou de ser o grande adversaacuterio da Igreja no final

dos tempos

Joaquim viveu num periacuteodo de mudanccedilas profundas na sociedade medieval585 O

Impeacuterio Bizantino perdera muito do seu poder por causa das derrotas contra os turcos

muccedilulmanos as Igrejas Latina e Grega estavam em processo de consolidar a separaccedilatildeo a

exuberante monarquia normanda instalada na Siciacutelia e no sul da Itaacutelia chegava ao fim o

poder islacircmico na Peniacutensula Ibeacuterica encolhia novas formas de espiritualidade surgiam

quando antigas enfraqueciam Tudo isso pode estar subjacente agrave sua ansiedade pela

transformaccedilatildeo da realidade por meio do descanso sabaacutetico do Espiacuterito Entretanto talvez o

fator mais preponderante esteja no ldquomovimento reformadorrdquo gerado no interior da Igreja

romana586

A perspectiva de que as coisas natildeo eram como deveriam ser de que a Igreja dos

proacuteprios tempos havia se afastado dos propoacutesitos pregados pelos primeiros apoacutestolos e pelo

proacuteprio fundador principalmente na questatildeo da simplicidade de vida acabou dando origem

a partir do seacuteculo XI a movimentos de reforma em diversos setores da sociedade Ocidental

e em diferentes espaccedilos eclesiaacutesticos Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do

clero entendido como corrompido e refletir sobre o papel da Igreja na sociedade em relaccedilatildeo

principalmente com as estruturas dos poderes temporais A professora Andreacuteia Frazatildeo ao

analisar os projetos subjacentes aos conciacutelios lateranenses listou algumas destas

perspectivas reformistas como as implementadas por poderes seculares (monarquias

caroliacutengias ou imperadores germacircnicos por exemplo) as promovidas por movimentos

monaacutesticos (Cluny Gorze Metz etc) as de iniciativa ldquopopularrdquo (como o movimento

patarino) e a fomentada pelos bispos de Roma eventualmente denominada de Reforma

Gregoriana Este uacuteltimo movimento partindo da Cuacuteria Papal procurou impor Roma ldquocomo

centro poliacutetico religioso e administrativo da Igreja ocidental [] e como o principal poder

de caraacuteter universal no Ocidente ao qual todos os demais deveriam se subordinar inclusive

o imperialrdquo 587

A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em funccedilatildeo do papa Gregoacuterio VII (papa

de 1073-1085) que em diversos momentos apelou para o senso de iminecircncia do advento do

585 RUCQUOI Adeline ldquoNo hay mal que por bien no vengardquo op cit p 221 586 WHALEN op cit p 102 587 SILVA Andreacuteia Cristina Lopes Frazatildeo da A luta entre o Regnum et Imperium e a Construccedilatildeo da Ecclesia

Universalis uma anaacutelise comparativa dos Conciacutelios Lateranenses (1123-1215) In SILVA Francisco Carlos

Teixeira CABRAL Ricardo Pereira MUNHOZ Sidnei J (coords) Impeacuterios na Histoacuteria Rio de Janeiro

Elsevier 2009 p 95-105 p 97-98

174

Anticristo para dar legitimidade aos seus apelos reformadores Em uma de suas cartas ele

explica a oposiccedilatildeo como sinal do fim do mundo ldquoE natildeo fiquem admirados Pois quanto mais

perto o dia do Anticristo se manifestar mais ele luta para esmagar a feacute cristatilderdquo588 Este papa

na linha agostiniana evitou fazer prediccedilotildees sobre o fim do mundo mas reiteradamente

manifestou a convicccedilatildeo de que ele deveria estar perto em funccedilatildeo da manifestaccedilatildeo das

heresias e da corrupccedilatildeo da Igreja Neste tipo de visatildeo de histoacuteria os eventos finais deveriam

validar os esforccedilos para buscar pureza moral e ordem correta na instituiccedilatildeo eclesiaacutestica

Mudanccedilas no cenaacuterio poliacutetico recebiam um lugar no cenaacuterio do fim do mundo conflitos de

muacuteltiplas naturezas eram legitimados pela perspectiva do juiacutezo final de forma que a maioria

das crenccedilas apocaliacutepticas medievais passaram a ser instrumentos de retoacuterica religiosa

poliacutetica e social agrave serviccedilo de papas cleacuterigos imperadores reis e seus apologistas

Eacute certo que o senso de fim de mundo ou as representaccedilotildees escatoloacutegicas natildeo

conseguem explicar totalmente as praacuteticas dos movimentos reformadores De qualquer

forma esta relaccedilatildeo entre reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore

conectada com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos monaacutesticos

tradicionais para toda a sociedade (christianitas)589 Mas o abade acabou ultrapassando o

modelo gregoriano e mesmo o imperial em funccedilatildeo de sua ecircnfase numa nova forma de

ecclesia totalmente monasticisada com o foco no futuro O arqueacutetipo deixou de ser a era

apostoacutelica (no passado) mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro)

Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este fenocircmeno de

ldquoapocalipcismo reformadorrdquo um tipo de perspectiva apocaliacuteptica medieval que tinha como

preocupaccedilatildeo primaacuteria a reforma clerical590 Estes autores criam em uma era porvir de

desenvolvimento espiritual na qual os cleacuterigos apoacutes serem ldquopurificadosrdquo pelas tribulaccedilotildees

do final dos tempos se recuperariam de uma forma nunca vista antes Alguns focavam na

reforma de tipo tradicional com sua ecircnfase no retorno ao modelo apostoacutelico de pureza e

simplicidade outros como Joaquim insistiam que a era porvir era o zecircnite da histoacuteria

resultado de um longo processo evolutivo

588 Citado por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform 1100-1500 In MC GINN Bernard

(ed) The Encyclopedia of Apocalypticism Apocalypticism in Western History and Culture New York

Continuum 1998 3v V 2 p 74-109 p 76 589 Este modelo gregoriano buscou expandir-se para a sociedade inteira por meio da divulgaccedilatildeo do ideal da

ldquoIgreja dos tempos apostoacutelicosrdquo Cf MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 78 590 KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge

University Press 1990 p 9 MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 74-109

175

Kathryn resumiu entatildeo as marcas do apocalipticismo reformador um desejo urgente

por reforma preocupaccedilatildeo acentuada com o futuro da Igreja tentativa de entender o presente

agrave luz de esquemas escatoloacutegicos tradicionais preocupaccedilatildeo com o papel de uma ordem

religiosa particular no drama do final dos tempos ou no futuro da igreja um senso de crise

de lideranccedila eclesiaacutestica e temporal uma ansiedade por levar o clero aos princiacutepios

disciplinares dos fundadores do monasticismo ou agrave igreja dos primoacuterdios com ecircnfase

especial na pobreza e na simplicidade de vida tendecircncia conservadora em termos religiosos

e sociais591

Estes reformadores estavam continuamente avaliando as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas de

seus dias e projetavam para ela um periacuteodo dourado de vitalidade espiritual Este tipo de

expectativa eventualmente demandava accedilatildeo e sugeria que indiviacuteduos e instituiccedilotildees poderiam

participar (apropinquare) na viabilizaccedilatildeo do futuro ou pelo menos na definiccedilatildeo de quais

pessoas poderiam participar deste futuro idealizado Eacute uma espeacutecie de descriccedilatildeo de um

futuro ldquodouradordquo para confrontar o presente ldquopoluiacutedordquo

Em termos concretos tanto os movimentos reformadores quanto os apocalipcismos

medievais tiveram seus proacuteprios fatores de surgimento mas alguns destes podem ter

promovido o encontro das duas expectativas Primeiramente o desenvolvimento dos

movimentos hereacuteticos com frequecircncia o resultado de programas reformistas frustrados com

constantes criacuteticas ao clero e a corrupccedilatildeo da Igreja A persistecircncia destes grupos poderia

produzir a sensaccedilatildeo de que as heresias eram consequecircncia do pecado da Igreja e que para

acabar com elas era preciso se purificar Produzia tambeacutem a retoacuterica apocaliacuteptica por parte

das autoridades que constantemente recorriam agraves figuras negativas do final do tempo para

vinculaacute-las com as heresias Um segundo fator poderia estar nas cruzadas que acentuaram a

sensaccedilatildeo de que o cristianismo estava sob constante ameaccedila de povos pagatildeos Finalmente e

talvez o mais significativo os efeitos da controveacutersia das investiduras e o conflito entre

Igreja e poder temporal A persistecircncia dos conflitos com os imperadores germacircnicos pode

ter promovido o surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada de

conflitos histoacutericos desde os seus primoacuterdios A Igreja passa a ser vista como uma

comunidade sagrada que sofre perseguiccedilatildeo intermitente592 O discurso apocaliacuteptico se tornou

uma tentativa de dar sentido aos constantes embates contra os poderes temporais Eacute neste

591 KERBY-FULTON op cit p 9 592 RIEDL Matthias Joachim of Fiore as political thinker In WANNENMACHER Julia Eva Joachim of

Fiore and the influence of inspiration essays in memory of Marjorie Reeves (1905-2003) London Routledge

2013 p 90-116 p 94

176

sentido que os imperadores frequentemente satildeo estigmatizados com retoacuterica apocaliacuteptica

dando ao papado por seu lado um papel acentuado no drama do final dos tempos593

Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de forma milenarista

McGinn cita como exemplo a perspectiva do franciscano Roger Bacon (1214-1294) que

acreditava numa reforma realizada por meio do surgimento de um papa angelicus e de um

imperador ungido que juntos purificariam a Igreja antes do surgimento do Anticristo594 Em

Joaquim entretanto o fenocircmeno foi conjugado com o milenarismo nos moldes do antigo

quiliasmo cristatildeo e manifestou as noccedilotildees de que uma unidade cristatilde idealizada seria

alcanccedilada atraveacutes da transformaccedilatildeo da ecclesia a graccedila de Deus deixou a Igreja grega e

transitou para a Igreja latina595 o Anticristo do final dos tempos iria se manifestar a qualquer

momento para perseguir a Igreja por meio dos sarracenos e dos hereges Quando isso

acontecesse ldquojudeus gregos pagatildeos e talvez mesmo os sarracenos seriam levados agrave

salvaccedilatildeo atraveacutes de homens espirituais da Igreja latina reunidos sob a direccedilatildeo de uma igreja

romana transformadardquo596

77 Resumo

Este capiacutetulo analisou a seacutetima seccedilatildeo do Expositio in Apocalypsim e relacionou-a

com as perspectivas milenaristas de Joaquim presentes em outros lugares de sua obra Nela

Joaquim rompe com a tradiccedilatildeo agostiniana que identificou o milecircnio joanino com a histoacuteria

da Igreja e propotildee em seu lugar um periacuteodo de felicidade na terra para toda a humanidade

sob a direccedilatildeo do Espiacuterito Santo O abade esperava algum tipo de continuidade entre o

presente e o futuro mas com a transformaccedilatildeo de suas instituiccedilotildees sociais especialmente da

Igreja Este periacuteodo de descanso e contemplaccedilatildeo natildeo teve como ponto de partida entretanto

diretamente o milecircnio do Apocalipse mas sim as as reflexotildees histoacutericas de Joaquim e a

tradiccedilatildeo do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo que esperava uma fase histoacuterica de felicidade na terra

593 KERBY-FULTON op cit p 8 594 Citato por MC GINN Bernard Apocalypticism and church reform op cit p 81 595 Haacute neste caso aquilo que Whalen chamou de ldquopropoacutesito geograacuteficordquo divino que levou a graccedila de Deus a se

mover do Oriente para o Ocidente e no saacutebado do Espiacuterito retornar para o Oriente Cf WHALEN op cit p

121 596 WHALEN op cit p 123 Joaquim abraccedila o ideal do ldquoservo sofredorrdquo de Isaiacuteas 53 e a espera de uma

grande conversatildeo dos povos no final dos tempos que demanda mais pregaccedilatildeo e menos conflito Nos seus

termos ldquopraedicando magis quam proeliandordquo (Expositio in Apocalypsim 164v) Cf TAGLIAPIETRA

Andrea Il ldquoprismardquo Gioachimita op cit p 54

177

anterior agrave parousia A emergecircncia histoacuterica deste tipo de milenarismo pode estar relacionada

com a conjugaccedilatildeo de fenocircmenos como o apocalipsismo e a reforma monaacutestica

CONCLUSAtildeO DO REINO DOS MAacuteRTIRES AO DESCANSO

DOS MONGES

A tiacutetulo de recapitulaccedilatildeo cabe reafirmar nossos principais argumentos apresentados

e sustentados no decorrer deste trabalho O Apocalipse foi produzido pelo profeta Joatildeo de

Patmos na forma de um instrumento retoacuterico de caraacuteter milenarista cuja funccedilatildeo atendia a

determinadas percepccedilotildees de crise social que seu autor manifestava e que entendendo-se

como convocado divinamente para atuar entre as igrejas da proviacutencia da Aacutesia desejava levaacute-

las ao rompimento sectaacuterio com a sociedade romana Joatildeo se recusava a viver ldquoneste mundordquo

e esperava pela inauguraccedilatildeo de um ldquooutro mundordquo no tempo do milecircnio A visatildeo de histoacuteria

que aparece subjacente agrave sua narrativa religiosa se constitui em uma criacutetica agraves representaccedilotildees

sociais romanas encontradas na proviacutencia asiaacutetica

O Apocalipse foi lido como texto sagrado por Joaquim de Fiore e como base para a

construccedilatildeo de sua filosofia da histoacuteria Por meio do seu comentaacuterio da obra joanina o abade

construiu a expectativa de superaccedilatildeo do tempo presente em uma eacutepoca de ouro dirigida pela

terceira pessoa da Trindade o Espiacuterito Santo As representaccedilotildees milenaristas do calabrecircs

entretanto natildeo partiram diretamente do milecircnio joanino jaacute que dependem mais da tradiccedilatildeo

do ldquorefrigeacuterio dos santosrdquo e de sua reflexatildeo histoacuterico-trinitaacuteria

Convergecircncias e divergecircncias

O Apocalipse foi produzido no final do seacuteculo I na Ilha de Patmos O Expositio por

sua vez surgiu nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XII na Itaacutelia597 O judeu Joatildeo rejeitava a

Peniacutensula Itaacutelica pois nela ficava a capital do Impeacuterio que destruiu sua estimada Jerusaleacutem

Em sua obra o profeta exilado se alonga na imaginaccedilatildeo de como Roma seria devorada pelo

fogo 1100 anos depois um italiano da Calaacutebria se ldquoencantardquo pelo texto de Joatildeo e resolve

gastar os uacuteltimos anos de sua vida para divulgaacute-lo Ao produzir seu escrito Joaquim

transcreveu integralmente o material joanino (na sua traduccedilatildeo latina) fazendo do Expositio

efetivamente uma coacutepia comentada do Apocalipse Haacute aqui um viacutenculo formal entre os dois

textos Mas isso natildeo esclarece totalmente os relacionamentos as recepccedilotildees as adaptaccedilotildees

597 Conferir esta relaccedilatildeo geograacutefica no anexo 4

179

as mutilaccedilotildees as invenccedilotildees os horizontes de leitura criados pela natureza diacrocircnica de tal

viacutenculo Por isso ainda eacute preciso promover anaacutelises comparativas que pressuponham os dois

objetos (apocalipse e comentaacuterio) como fenocircmenos distintos em funccedilatildeo de suas proacuteprias

conjunturas condiccedilotildees de emergecircncia e pontos de partida

Segundo Juumlrgen Kocka comparaccedilatildeo eacute a discussatildeo de ldquodois ou mais fenocircmenos

histoacutericos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenccedilas de modo a se

alcanccedilar determinados objetivos intelectuaisrdquo598 Eacute o que faremos nesta conclusatildeo com

ecircnfase nas diferenccedilas e especificidades599 para assim descrever explicar e interpretar

elementos especiacuteficos de cada um dos objetos de comparaccedilatildeo600 Tomando uma expressatildeo

irocircnica de Kocka e Haupt mesmo que natildeo pudeacutessemos comparar ldquomaccedilatildes e laranjasrdquo (como

um apocalipse e um comentaacuterio biacuteblico) ainda assim poderiacuteamos apontar as peculiaridades

de cada objeto e seus usos particulares601

Para efeitos de comparaccedilatildeo pressupomos as discussotildees dos capiacutetulos anteriores

quando analisamos separadamente os aspectos formais de Apocalipse 201-10 e seu

respectivo comentaacuterio exegeacutetico na seacutetima parte do Expositio contextualizamos cada

unidade de comparaccedilatildeo apontando suas respectivas condiccedilotildees de produccedilatildeo analisamos o

conteuacutedo recortado de cada texto explicitando as representaccedilotildees milenaristas os pontos de

partida e os fatores de emergecircncia No caso especiacutefico de Joaquim ainda discutimos suas

formas de leitura e posturas hermenecircuticas

O que comparamos Eacute o tipo de milenarismo que se objetiva em cada texto Para

tanto analisamos os pontos de contato as convergecircncias e divergecircncias e as compreensotildees

de tais aspectos agrave luz de seus respectivos contextos Usamos como fio norteador para a

anaacutelise comparativa a definiccedilatildeo de milenarismo anteriormente pressuposta e agora

desdobrada602

598 KOCKA Juumlrgen Comparison and beyond History and theory Middletown n 42 p 39-44 2003 p 39 599 Conferir uma siacutentese de modelos de observaccedilatildeo comparada em BARROS Joseacute DacuteAssunccedilatildeo Histoacuteria

comparada um novo modo de ver e fazer a histoacuteria Revista de Histoacuteria Comparada Rio de Janeiro v 1 n

1 p 1-30 2007 p 18-21 600 KOCKA Juumlrgen HAUPT Heinz-Gerhard Comparison and Beyond traditions scope and perspectives of

Comparative History In HAUPT Heins-Gerhard KOCKA Juumlrgen (orgs) Comparative and Transnational

History Central European approaches and new perspectives Oxford Berghahn Books 2009 p 1-30 p 2 601 HAUPT Heinz-Gerhard KOCKA Juumlrgen Comparative History Methods Aims Problems In COHEN

Deborah OrsquoCONNOR Maura Comparison and History Europe in cross-national perspective London

Routledge 2004 p 23-39 p 27 602 Para tanto contamos com as contribuiccedilotildees principalmente da socioacuteloga israelense Yonina Talmon e do

historiador americano Richard Landes Cf TALMON Yonina Millenarism In SILLS David L (ed)

International Encyclopedia of the Social Sciences London The Macmillan Company amp The Free Press 1968

19 v V X p 349-362 LANDES Richard A Millennialism in the Western World In LANDES Richard A

(ed) Encyclopedia of millennialism and millennial movements New York Routledge 2000 p 453-466

180

Por uma definiccedilatildeo de milenarismo

No iniacutecio desta tese anunciamos a definiccedilatildeo de milenarismo do historiador inglecircs

Norman Cohn que entendeu-o como um tipo particular de utopia salvacionista coletiva jaacute

que todos os fieacuteis experimentariam a felicidade terrena jaacute que essa felicidade seria

alcanccedilada na terra e natildeo em uma realidade transcendente total pois aguarda uma completa

inversatildeo dos males da terra iminente pois a transformaccedilatildeo completa estaria perto de

comeccedilar e miraculosa jaacute que a redenccedilatildeo contaria com a ajuda de poderes sobrenaturais603

Alguns autores entretanto como Jean Delumeau optam por uma noccedilatildeo reducionista

do fenocircmeno ldquono cristianismo deve-se chamar de milenarismo a crenccedila num reino terrestre

de Cristo e de seus eleitos ndash reino este que deve durar mil anos entendidos seja literalmente

seja simbolicamenterdquo604 A definiccedilatildeo de Delumeau parece entender por milenarismo apenas

os fenocircmenos que replicam o milecircnio de Apocalipse 20 Isso o leva agrave curiosa sugestatildeo de

que Joaquim de Fiore a quem ele dedicou quase cinquenta paacuteginas do seu livro sobre

ldquomilenarismordquo natildeo poderia ser chamado de milenarista605 Diante de tal posicionamento eacute

preciso lembrar do argumento de Paula Fredriksen ldquoa ideia de um periacuteodo de mil anos

implicada por este termo eacute menos essencial para o seu sentido que o seu foco sobre a terra

a histoacuteria humana como a uacuteltima arena da redenccedilatildeordquo606

No campo oposto ao de Delumeau Kathryn Kerby-Fulton opta por uma definiccedilatildeo

abrangente demais ldquoRefere-se agrave crenccedila num futuro de becircnccedilatildeos na terra antes do fim da

LANDES Richard A Heaven on Earth the varieties of the millennial experience Oxford Oxford Universit

Press 2011 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time In NEWPORT

Kenneth G C GRIBBEN Crawford (eds) Expecting the End millennialism in social and historical context

Waco Baylor University Press 2006 p 1-23 603 Cf COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade

Meacutedia Lisboa Editorial Presenccedila 1970 p 11 Pesquisadores deste tema continuam partindo das definiccedilotildees

de Cohn mesmo que sua obra sobre os milenaristas revolucionaacuterios da Idade Meacutedia jaacute tenha quase 50 anos

Por exemplo cf CLARKE Peter The origins scope and spread of the millenarian idea In LIEB Michael

MASON Emma Roberts Johathan (edss) The Oxford Handbook of the Reception History of the Bible

Oxford Oxford University Press 2011 p 235-242 604 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade uma histoacuteria do Paraiacuteso Satildeo Paulo Companhia das Letras

1997 p 17-18 Tambeacutem minimiza o milenarismo de Joaquim SARANYANA Josep Ignasi Sobre El

milenarismo de Joaquiacuten de Fiore Uma lectura retrospectiva Teologia y Vida Santiago v XLIV p 221-232

2003 605 Segundo Delumeau ldquoJoaquim natildeo eacute um messianista pois natildeo divisou no horizonte nenhum novo messias

Tampouco eacute um milenarista em sentido estrito porquanto jamais profetizou que o reinado do Espiacuterito duraria

mil anosrdquo Cf DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 43 606 FREDRIKSEN Paula Tyconius and Augustine on the Apocalypse In EMMERSON Richard K

MCGINN Bernard (ed) The Apocalypse in the Middle Ages London Cornell University Press 1992 p 20-

37 p 20

181

histoacuteriardquo607 Ou entatildeo John Gager ldquoum movimento que espera uma nova ordem de realidade

em um futuro proacuteximordquo608 Diante de tal formulaccedilatildeo tanto o que espera a redenccedilatildeo de forma

iminente quanto aquele que a projetou para milhares de anos agrave frente satildeo tomados como

milenaristas Por isso o proacuteprio Gager refina sua definiccedilatildeo argumentando que a espera

indefinida pelo reino milenar natildeo seria propriamente milenarista Afinal os sacerdotes reais

persas que lanccedilaram o ldquotornar maravilhosordquo de Zaratrusta para sete mil anos agrave frente natildeo

poderiam ser chamados propriamente de milenaristas609 O caraacuteter iminente da crenccedila

milenarista manifesta uma rejeiccedilatildeo da presente ordem social Quando o fim da ordem

presente eacute lanccedilado para um futuro longiacutenquo e indeterminado o resultado eacute a legitimaccedilatildeo

do mundo cotidiano Nos termos de John Collins ldquojulgamento adiado providencia confianccedila

no presenterdquo610

Retomando a definiccedilatildeo de milenarismo o termo tem origem no vocaacutebulo latino

ldquomillerdquo usado para traduzir a palavra grega ldquordquo de Apocalipse 201-10 Ele ganhou um

sentido lato entretanto no campo dos estudos sociais passando a indicar uma determinada

expectativa de movimentos ou grupos611 Cohn como jaacute indicamos anteriormente descreveu

o fenocircmeno como uma ldquoutopiardquo Mas ele eacute propriamente uma reflexatildeo sobre o tempo uma

filosofia da histoacuteria um sistema de representaccedilotildees graacutevido de praacuteticas que se manifestam

em grupos comunidades cultos e movimentos Podemos falar destes entatildeo como cultos

seitas ou movimentos milenaristas Figura significativa entre estas representaccedilotildees e praacuteticas

eacute o profeta milenarista que se torna o seu vulgarizador apologeta e pregador Em algumas

circunstacircncias em torno dele surge um grupo Em outras como no caso de Joatildeo e Joaquim

haacute uma relaccedilatildeo diacrocircnica entre o fundador e os grupos que se dizem seus porta-vozes como

o movimento inspirado nas profecias joaninas de Montano Priscila e Maximila a partir da

deacutecada de 160 nas proviacutencias romanas da Aacutesia menor612 ou a inspiraccedilatildeo joaquimita do grupo

607 Cf KERBY-FULTON Kathryn Reformist apocalypticism and Piers Plowman Cambridge Cambridge

University Press 1990 p 3 608 GAGER John G Kingdom and Community The Social World of Early Christianity New Jersey Prentice-

Hall 1975 p 57 609 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute as origens das crenccedilas no

Apocalipse Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 135 610 COLLINS John J Temporalidade e poliacutetica na literatura apocaliacuteptica judaica Oracula Satildeo Bernardo do

Campo v 1 n 2 p 4-22 2005 p 11 611 TALMON op cit p 349 Henri Desroche cunhou a expressatildeo ldquohomens da esperardquo para fazer referecircncia a

pessoas que aguardam algum tipo de mudanccedila histoacuterica a posteriori Cf DESROCHE Henri Dicionaacuterio de

messianismos e milenarismos Satildeo Bernardo do Campo Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2000 p 16 612 PAGELS Elaine Revelations visions prophecy and politics in the Book of Revelation New York Penguin

Books 2012 p 103-107

182

em torno de Amaury de Begravene na Paris do iniacutecio do seacuteculo XIII condenado formalmente no

IV Conciacutelio de Latratildeo (1215)613

Segundo Norman Cohn um dos mais antigos destes profetas milenaristas surgiu no

Iratilde antigo e ficou conhecido como Zoroastro614 A partir do zoroastrismo em sua

manifestaccedilatildeo imperial persa o fenocircmeno teria transitado para o Judaiacutesmo quando

expressotildees de uma redenccedilatildeo futura deram origem a diversos movimentos ou seitas Uma

destas nascida das pregaccedilotildees do profeta Jesus de Nazareacute e subjacente ao Apocalipse tinha

como significativos traccedilos iniciais uma resiliente combinaccedilatildeo de milenarismo e

messianismo615

Cada profeta milenarista ou movimento milenarista tem particularidades uacutenicas

Mesmo assim eles apresentam alguns traccedilos em comum que eacute o que permite categorizaacute-

los em diferentes lugares e eacutepocas sob o mesmo termo616

Coletiva o povo feliz

A salvaccedilatildeo no milenarismo natildeo eacute de natureza individual mas expectativa de um

grupo ou para um grupo O milenarista natildeo deseja alcanccedilar a salvaccedilatildeo sozinho pois espera

compartilhaacute-la com uma comunidade de pessoas ldquoeleitasrdquo O fenocircmeno assim tem uma

orientaccedilatildeo coletiva O reino milenar do Apocalipse espera ser povoado por uma multidatildeo de

maacutertires ressuscitados O saacutebado do Espiacuterito de Joaquim veraacute uma humanidade inteira em

paz e contemplaccedilatildeo quando um grande grupo de pessoas se converterem agrave feacute da Igreja latina

especialmente os judeus

Apesar dos leitores posteriores de Joatildeo terem ampliado o puacuteblico do milecircnio em

Apocalipse 20 ele eacute exclusivo daqueles que foram degolados pelas bestas do Dragatildeo o que

pode representar toda a crise do profeta com as mortes violentas ou as notiacutecias de mortes

violentas na guerra judaico-romana De fora ficam natildeo apenas os seus ldquoirmatildeosrdquo que natildeo

alcanccedilarem tal morte (participariam da ldquosegunda ressurreiccedilatildeordquo) mas tambeacutem todos aqueles

que natildeo compartilham de sua perspectiva de Jesus como o Messias de Deus Estes uacuteltimos

613 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 61 614 Para Cohn Zoroastro ldquoeacute o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo especiacutefico de profeta ndash os

chamados lsquomilenaristasrsquordquo Cf COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 133 615 TALMON op cit p 350 616 Como argumentou Paul Veyne os fenocircmenos histoacutericos natildeo se organizam atraveacutes de periacuteodos e de povos

mas atraveacutes de noccedilotildees Mais do que inseridos no seu tempo eles precisam ser postos sob um conceito Cf

VEYNE Paul O inventaacuterio das diferenccedilas Lisboa Gradiva 1989 p 33

183

por sinal entendidos por Joatildeo como seguidores das bestas e do Dragatildeo seriam destruiacutedos

na parousia Natildeo haacute sobreviventes para o reino dos maacutertires O milecircnio para o Apocalipse

soacute seraacute alcanccedilado pela porta do martiacuterio

Neste tipo de milenarismo algumas pessoas alcanccedilam a redenccedilatildeo outras satildeo

destruiacutedas no processo Haacute um dualismo baacutesico uma divisatildeo fundamental da humanidade

entre fieis e infieacuteis entre seguidores e natildeo-seguidores entre crentes e increacutedulos entre justos

e perversos A histoacuteria humana eacute vista como uma luta contiacutenua entre os filhos de Deus contra

os aliados de Satanaacutes De qualquer forma nem no Apocalipse ou no Expositio haacute criteacuterios

de raccedila grupo eacutetnico ou naccedilatildeo para compor a terra da felicidade Em ambos os casos a

participaccedilatildeo se daria em funccedilatildeo de opccedilotildees religiosas

Haacute uma forte ecircnfase na exclusatildeo em Joatildeo e um relativo inclusivismo em Joaquim

com sua expectativa de conversatildeo geral apoacutes o levantamento do Anticristo Apesar de sua

ecircnfase nos monges o descanso natildeo eacute soacute para eles A sociedade da Terceira Era natildeo seria

formada apenas por membros do corpo monaacutestico mas caberiam diversos outros grupos

sociais como a Dispositio o demonstra617 Em seus esquemas o abade fala de uma era de

casados outra de cleacuterigos outra de monges expressotildees que precisam ser entendidas na oacutetica

do protagonismo Na primeira Era o protagonismo foi dos casados na segunda dos cleacuterigos

na terceira dos monges A Dispositivo representaccedilatildeo da sociedade ideal de Joaquim

apresenta sete oratoacuterios cinco satildeo de monges um para o clero e um para os casados Ele vecirc

uma loacutegica de procedecircncia entre as ordens dos casados procedem os cleacuterigos dos cleacuterigos

os monges Mas um natildeo significa o fim do outro Neste tipo de perspectiva a Trindade se

revela na histoacuteria imprimindo nela as caracteriacutesticas peculiares de cada pessoa divina e um

caraacuteter dinacircmico e progressivo cuja meta eacute uma sociedade protagonizada por monges

contemplativos

Eacute possiacutevel fazer ainda uma reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo entre a comunidade futura ideal

e a comunidade real do presente do milenarista Apocalipse e Expositio satildeo produccedilotildees de

liacutederes carismaacuteticos Joatildeo era um profeta itinerante das igrejas da Aacutesia Joaquim era um

abade que conseguiu atrair um grupo de disciacutepulos para as montanhas de Fiore e a partir

deles fundou uma casa monaacutestica e uma ordem religiosa Neste sentido suas obras visavam

a uma comunidade seus textos buscavam operar no interior de um grupo Representaccedilotildees

617 Cf Anexo 5

184

individuais natildeo satildeo elementos estanques mas se relacionam com representaccedilotildees sociais618

Joatildeo e Joaquim representam determinados grupos Suas falas satildeo representativas de

expectativas mesmo que parcialmente compartilhadas entre profeta e comunidade No caso

de Joatildeo sua audiecircncia natildeo lhe eacute totalmente amistosa Ele enfrenta adversaacuterios no interior

das igrejas e deseja com seu Apocalipse simultaneamente convocar os aliados e atacar os

inimigos Joaquim tambeacutem tem alguns adversaacuterios mesmo que seja em escala diferente Ele

enfrenta resistecircncia da Ordem Cisterciense em funccedilatildeo de ter abandonado a abadia de

Corazzo Mas os grandes adversaacuterios de ambos os autores estatildeo ldquodo lado de forardquo de seus

ciacuterculos a sociedade romana para Joatildeo619 os muccedilulmanos para Joaquim Satildeo estes

adversaacuterios os grandes excluiacutedos do reino dos maacutertires ou do saacutebado do Espiacuterito

Terrena o lugar perfeito

Joatildeo de Patmos pode ter testemunhado a morte de muitos de seus irmatildeos e ouvido

falar do martiacuterio de vaacuterios outros Seu texto manifesta a expectativa de acentuada

perseguiccedilatildeo da sociedade romana para um futuro proacuteximo Estes aspectos parecem marcar

sua descriccedilatildeo do passado e do futuro das comunidades de Jesus Tal conjunto de

representaccedilotildees tem o potencial de produzir ruptura em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano e gerar

ansiedade pelo reino milenar Apesar de sua breve descriccedilatildeo no episoacutedio de Apocalipse 20

Joatildeo tambeacutem registrou a mesma expectativa no iniacutecio da segunda seccedilatildeo de sua obra

(Apocalipse 5) Nesta passagem o autor relatou o hino que ele teria ouvido da parte de Vinte

e quatro Presbiacuteteros Celestiais ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste

morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e

naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

(Apocalipse 59-10) Este hino ao ldquoCordeirordquo eacute uma metaacutefora para descrever Jesus e sua

morte seis deacutecadas atraacutes Segundo Joatildeo a morte daquele que ele tem como Messias foi uma

estrateacutegia divina para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo

exclusivo fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus620 Mesmo que as formas verbais estejam no

618 OLIVEIRA Maacutercio de O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves

Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre v 13 n 22 p 67-94 2012 p 71 619 Eacute interessante destacar que a Palestina desde a deacutecada 60 antes da Era Comum era parte do Impeacuterio

Romano Os judeus eram formalmente membros deste Impeacuterio Isso natildeo foi o suficiente para que Joatildeo se

sentisse parte do ldquomundo romanordquo Pelo contraacuterio numa perspectiva sectaacuteria ele rejeita a sociedade que lhe

cerca 620 CHARLES J Daryl A Apocalyptic Tribute to the Lamb (Rev 51-14) Journal of the Evangelical

Theological Society Chicago v 24 n 4 p 461-473 1991 p 471

185

passado como se fossem eventos jaacute realizados por Jesus621 o final do hino manifesta a

mesma expectativa de Apocalipse 20 um reino sobre a terra622

Ao contraacuterio de Joatildeo entretanto a relaccedilatildeo de Joaquim com a sociedade circundante

eacute bem favoraacutevel Joaquim natildeo enfrentou perseguiccedilatildeo As ameaccedilas do Capiacutetulo Geral da

Ordem Cisterciense natildeo podem ser descritas como tal jaacute que o abade contava com o apoio

papal e dos poderes constituiacutedos no reino da Siciacutelia Mesmo assim como Joatildeo as

expectativas joaquitas natildeo satildeo para aleacutem Ele tem elementos concretos no interior de suas

descriccedilotildees do saacutebado do Espiacuterito Sua ecircnfase neste caso se desloca de uma ressurreiccedilatildeo de

maacutertires para o descanso contemplativo monaacutestico que ele aprendeu a admirar apoacutes o retorno

de sua peregrinaccedilatildeo agrave Palestina A situaccedilatildeo de instabilidade poliacutetica no reino normando e os

eventuais embates entre o Impeacuterio e a Igreja romana parecem ter sensibilizado o abade de

Fiore o suficiente para que ele esperasse a paz como a principal marca do tempo do Espiacuterito

Sem conflitos uma humanidade pacificada poderia gastar os dias do descanso sabaacutetico em

contemplaccedilatildeo e comunhatildeo com a divindade Apesar de transformadas pela atuaccedilatildeo

sobrenatural do Espiacuterito na sociedade dos sonhos de Joaquim ainda haveria liturgia trabalho

e estudo marcas da espiritualidade cisterciense no milenarismo do abade623

Joatildeo espera por um periacuteodo milenar em que maacutertires ressuscitados governam julgam

e cultuam e Joaquim ansiou por um descanso sabaacutetico em que viri spirituales cultuassem

trabalhassem e estudassem Com isso ambos manifestam a principal caracteriacutestica do

milenarismo que eacute sua orientaccedilatildeo terrena quando a noccedilatildeo de um tempo ideal (o tempo do

milecircnio) eacute acompanhada da noccedilatildeo de um espaccedilo ideal (a terra do milecircnio)624 Daiacute a ecircnfase

na terra ou em algum lugar especiacutefico da terra em detrimento de uma dimensatildeo

transcendental

Segundo Cohn especialmente entre as religiotildees zoroastrianas judaicas e cristatildes

surgiu a noccedilatildeo de que a histoacuteria caminha na direccedilatildeo de seu fim um eschaton o fim dos

tempos ou o fim do mundo625 No contexto cristatildeo este ldquofim do mundordquo envolveria um juiacutezo

621 PRIGENT Pierre O Apocalipse Satildeo Paulo Loyola 1993 p 124 622 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Revelation vision of a just world Edinburgh Augsburg Fortress 1991

p 62 623 O confronto de Joaquim com os cistercienses de Corazzo e com as autoridades da ordem parece derivado

de sua percepccedilatildeo de que eles estavam sendo infieacuteis ao ldquoespiacuteritordquo de Bernardo de Claraval que ele chamava de

ldquoveneraacutevel pai Bernardordquo Joaquim achava que os cistercienses natildeo deram continuidade agrave reforma que

Bernardo comeccedilou mas ainda assim eles eram uma etapa importante na histoacuteria que o monasticismo deveria

percorrer ateacute atingir sua perfeiccedilatildeo Cf DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De

Joaquiacuten a Schelling Madrid Ediciones Encuentro 2011 p 21 624 TALMON op cit p 352 625 Conferir esta anaacutelise em COHN Norman Cosmos caos e o mundo que viraacute op cit p 286-294

186

final quando a divindade julgaria as pessoas vivas e mortas o universo material seria

consumido por ldquofogo purificadorrdquo deixando para os fieacuteis uma eternidade celestial

(Apocalipse 21-22) Para o autor de 2Pedro por exemplo o eschaton eacute o fim da vida na terra

como ele e a humanidade conheciam ldquoOra os ceacuteus que agora existem e a terra pela mesma

palavra tecircm sido entesourados para fogo estando reservados para o dia do Juiacutezo e destruiccedilatildeo

dos homens iacutempiosrdquo (2Pedro 37) Em termos socioloacutegicos esta expressatildeo escatoloacutegica

poderia ser definida como teodiceia uma tentativa de encontrar sentido para o sofrimento o

mal e principalmente a morte626

Profetas milenaristas frequentemente se voltam para a questatildeo do sofrimento e suas

causas Mas as expectativas natildeo-histoacutericas transcendentais parecem natildeo os atender Eles

esperam por uma transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de existecircncia na terra e natildeo em um mundo

natildeo-material Por isso as crenccedilas milenaristas antecipam parte das expectativas posteriores

ao fim do mundo para dentro da histoacuteria quando os fieacuteis seriam recompensados em seus

corpos em suas realidades materiais dentro do saeculum627 A paz a justiccedila e as condiccedilotildees

de existecircncia esperadas para um mundo porvir satildeo antecipadas para a terra

Derivadas dessa ecircnfase terrena estatildeo algumas diferenciaccedilotildees futuras dos fieacuteis As

descriccedilotildees feitas por Joaquim da sociedade do Espiacuterito indicam alguma relaccedilatildeo entre espaccedilo

e status O status estaraacute ligado agrave posiccedilatildeo diante do centro da sociedade espiritual ocupada

pelo pater spiritualis Este tipo de diferenciaccedilatildeo foi feita apenas de forma relativa por Joatildeo

quando ele descreveu duas ressurreiccedilotildees a primeira para os martirizados e membros do reino

milenar a segunda para os demais fieacuteis No Apocalipse os maacutertires formam uma espeacutecie de

fiel ideal acentuando o valor religioso do martiacuterio

Curiosamente o ideal asceacutetico manifesta-se nas duas visotildees Joatildeo espera que os

144000 guerreiros escatoloacutegicos do Cordeiro sejam virgens e castos (Apocalipse 141-5) o

abade de Fiore lanccedilou aqueles que ainda continuaratildeo casados no Oratoacuterio mais baixo da

Dispositio separados dos demais por um grande espaccedilo Para os dois religiosos o sexo

oposto eacute perigoso e isso se reflete nas suas descriccedilotildees idealizadas do futuro

626 BERGER Peter L O dossel sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulus

1985 p 65 LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 6 627 Landes toma esta expressatildeo de Agostinho para falar da passagem contiacutenua do tempo da mateacuteria e da

histoacuteria Cf LANDES Richard A Millennarianism and the dynamics of Apocalyptic Time op cit p 7

187

Total inversatildeo escatoloacutegica

O conceito milenarista de redenccedilatildeo eacute total no sentido de que a nova era natildeo traraacute

meramente uma melhora nas condiccedilotildees de vida mas um movimento na direccedilatildeo de condiccedilotildees

perfeitas de existecircncia dentro da histoacuteria As tais ldquocondiccedilotildees de perfeiccedilatildeordquo entretanto

variam em funccedilatildeo das conjunturas histoacutericas dos expoentes do milenarismo Antigas

expectativas judaicas esperavam por um tempo em que os instrumentos de guerra seriam

transformados em arados e foices para trabalhar o campo (Isaiacuteas 21-5) lobos e leotildees

andariam juntos com ovelhas e cabritos e crianccedilas brincariam com serpentes sem se

machucar (Isaiacuteas 61-9) Estas expectativas parecem fazer sentido em comunidades rurais

em crise com conjunturas de opressatildeo aristocraacutetica628 Jaacute os milenaristas de Tabor na

Boecircmia do seacuteculo XV esperavam um milecircnio literal de banquete perpeacutetuo com a supressatildeo

de toda autoridade quando as mulheres poderiam conceber seus filhos sem qualquer

participaccedilatildeo masculina e homens tambeacutem dariam agrave luz629

A inversatildeo escatoloacutegica idealizada por Joatildeo assim esperava o fim de todas as

guerras e violecircncias contra os seguidores de Jesus que viveriam na terra como reis juiacutezes e

sacerdotes expectativas que apontam para o desejo de empoderamento de pessoas agrave margem

do poder A descriccedilatildeo do milecircnio do Apocalipse pretende ser uma inversatildeo de soberanias

Os poderes do presente seriam destronados os sem poderes seriam entronizados e exaltados

Joaquim igualmente aguarda um periacuteodo de felicidade na terra mesmo que

pequeno em que os fieacuteis experimentaratildeo acima de tudo paz com o fim de todos os

conflitos No calabrecircs entretanto natildeo haacute espaccedilo para monarquias ou reis Mesmo que sua

hostilidade contra o Impeacuterio Germacircnico tenha desaparecido no final do Expositio em relaccedilatildeo

agraves suas primeiras exposiccedilotildees do Apocalipse630 ainda assim Joaquim possui a visatildeo de que

se a histoacuteria eclesiaacutestica fora marcada pelo conflito contra os poderes seculares estes

deveriam desaparecer na Terceira Era Somente a Igreja sobreviveria entatildeo transformada

em uma grande instituiccedilatildeo monacal

Gager argumenta que esta caracteriacutestica do milenarismo teria relaccedilatildeo com algum tipo

de privaccedilatildeo poliacutetica econocircmica social religiosa ou uma mistura de cada uma delas Os

milenaristas segundo este historiador aposentado da Princeton University ldquose sentem

628 LANDES Richard A Millennialism in the Western World op cit p 455 629 DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 106 630 POTESTA Gian Luca Il Tempo DellApocalisse Vita di Gioacchino da Fiore Roma Laterza 2004 p

318-319

188

desfavorecidos de alguma formardquo631 Ele estaacute ciente entretanto que existe muito mais gente

que sofre privaccedilatildeo do que membros de movimentos milenarista Por isso ele enfatiza que a

privaccedilatildeo natildeo precisa ser efetiva Ela pode ser relativa qual seja ldquouma relaccedilatildeo desigual entre

expectativa e os meios de satisfaccedilatildeordquo632 Eacute um tipo de condiccedilatildeo que surge quando novas

esperanccedilas se manifestam mas permanecem natildeo cumpridas

Esta sugestatildeo de Gager poderia ser usada para distinguir o milenarismo de Joatildeo e

Joaquim O profeta de Patmos era membro de um grupo marginal de uma das proviacutencias

orientais do Impeacuterio romano Vaacuterios de seus conterracircneos foram mortos em uma guerra

contra Roma em que causas poliacuteticas econocircmicas sociais e religiosas se encontravam

misturadas A proviacutencia da Aacutesia era uma das mais ricas do Impeacuterio mas figuras como Joatildeo

se sentiam isolados desta riqueza633

Do outro lado o calabrecircs era um abade bem situado e respeitado Norman Cohn

trabalhou em sua obra uma seacuterie de movimentos milenaristas medievais de tipo contestador

vinculados a grupos que viviam agrave margem quer da sociedade quer do poder634 Joaquim

natildeo era um milenarista deste tipo Ele natildeo estava na margem Ele estava perto do poder

Encontrou-se diversas vezes com papas monarcas rainhas e imperadores Era um dos mais

proeminentes abades do reino da Siciacutelia e talvez de toda a Itaacutelia635 Certamente entatildeo o

termo marginalizado natildeo poderia ser usado para descrever Joaquim de Fiore Ele natildeo se via

como marginalizado e natildeo era efetivamente um marginalizado636

A Era do Espiacuterito do abade natildeo parece ter relaccedilatildeo com algum tipo de privaccedilatildeo efetiva

No calabrecircs haacute mais propriamente a questatildeo das expectativas natildeo cumpridas Sua caminhada

religiosa parece evidenciar este aspecto Apoacutes o retorno da Palestina ele abraccedilou o

eremitismo depois procurou se envolver com um modelo monaacutestico cenobiacutetico em pelo

menos trecircs casas Sambucina Corazzo e S Trindade A forma como rejeitou inicialmente o

631 GAGER John G Kingdom and Community op cit p 25 632 Idem p 27 633 Conferir uma anaacutelise da criacutetica joanina agrave riqueza de Roma em KRAYBILL J Nelson Culto e comeacutercio

imperiais no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2004 634 COHN Norman Na senda do milecircnio milenaristas revolucionaacuterios e anarquistas miacutesticos da Idade Meacutedia

Lisboa Editorial Presenccedila 1970 635 WEST Delno C ZIMDARS-SWARTZ Sandra Joachim of Fiore a Study in Spiritual Perception and

History Bloomington Indiana University Press 1983 p 9 636 Mc Ginn alerta que o perfil social da maioria daqueles que se valiam da retoacuterica apocaliacuteptica na Idade Meacutedia

natildeo era de um profeta isolado no alto de uma montanha mas pessoas bem-educadas cleacuterigos e liacutederes na

sociedade membros da corte e escribas Frequentemente ldquoeram poderosas figuras poliacuteticasrdquo Neste contexto

o milenarismo era uma tentativa de interpretar o seu proacuteprio tempo e assim dar suporte para patronos legitimar

a lideranccedila e perseguir determinados propoacutesitos poliacuteticos sociais e religiosos Cf MC GINN Bernard Visions

of the End Apocalyptic Traditions in the Middle Ages New York Columbia University Press 1979 p 32

189

cargo de abade de Corazzo e deixou S Trindade indica uma ecircnfase religiosa no isolamento

e na contemplaccedilatildeo Apoacutes uma campanha para ingresso na Ordem Cisterciense abandonou

sua casa para fundar um monasteacuterio no isolamento de Fiore O ideal milenarista de Joaquim

parece revelar sua frustraccedilatildeo com a Igreja tanto latina quanto grega e com as formas de

monasticismo que ele tinha agrave disposiccedilatildeo Para o abade suas altas demandas religiosas natildeo

realizadas nas instituiccedilotildees que ele conhecia seriam atendidas finalmente quando o Espiacuterito

instaurasse a terceira Era da histoacuteria

De qualquer forma ambos os milenarismos refletem algum tipo de rejeiccedilatildeo da

presente ordem do mundo O milecircnio de Joatildeo reflete o conflito com a sociedade romana e

mesmo com outras comunidades de Jesus O de Joaquim com outras propostas de

espiritualidade cristatilde

Iminente bem perto de comeccedilar

Para Joatildeo o governo milenar de Cristo estava para acontecer a qualquer momento

Na sua perspectiva temporal as bestas estavam para iniciar o ataque final contra os fieacuteis

promovendo a morte de vaacuterios deles (Apocalipse 13) mas ao mesmo tempo viabilizando a

parousia de Jesus e a implementaccedilatildeo do milecircnio O autor do Expositio tambeacutem se entende

no limiar de uma nova era Por meio de caacutelculos complexos relacionados com sua

especulaccedilatildeo exegeacutetica o abade entendia que faltavam poucos anos para que os ldquosantosrdquo

experimentassem o refrigeacuterio tatildeo aguardado

Esta semelhante perspectiva quanto agrave urgecircncia dos tempos de Joatildeo e Joaquim

configura uma marca essencial do milenarismo um senso de premecircncia derivado da forma

como o fiel interpreta os eventos agrave sua volta Ele sente que a era salviacutefica estaacute proacutexima e

vive na expectativa de vecirc-la ou em preparaccedilatildeo para alcanccedilaacute-la O pressuposto para esta

confianccedila na proximidade da redenccedilatildeo tem relaccedilatildeo com a crenccedila na histoacuteria como um

processo preacute-determinado Neste sentido bastaria ter acesso a uma determinada chave de

leitura para que se pudesse prever cada uma de suas etapas Os profetas milenaristas

desejavam entender a histoacuteria sua unidade sua estrutura seu objetivo e seu fim637

Segundo Talmon haacute aqui uma combinaccedilatildeo entre consciecircncia histoacuterica de tempo e

consciecircncia miacutetica A perspectiva histoacuterica do tempo como uma sequecircncia de eventos um

637 Idem p 31

190

vir-a-ser de caraacuteter uacutenico e particular eacute combinada com uma consciecircncia de tempo ciacuteclico

infinito e repetitivo638 Afinal o milecircnio de Joatildeo eacute uma interrupccedilatildeo do vir-a-ser um

parecircntese na histoacuteria Natildeo eacute ainda o destino derradeiro dos maacutertires jaacute que apoacutes o juiacutezo final

o profeta descreve uma Nova Jerusaleacutem em termos meta-histoacutericos (Apocalipse 21-22) Na

perspectiva joanina o milecircnio eacute uma demanda da justiccedila divina pois os fieacuteis martirizados

precisavam reinar com seu Cristo na mesma terra que os martirizou

Em Joaquim a sociedade milenar eacute uma antecipaccedilatildeo da Jerusaleacutem celestial

igualmente revestida de historicidade e temporalidade Quando seu periacuteodo acabar chegou

o fim do mundo Joaquim natildeo reflete longamente sobre o que vem a seguir Isso faz com que

sua Nova Era tenha como alvo esta nova sociedade espiritual na terra e natildeo alguma outra

num formato transcendental Eacute uma sociedade ideal ainda com a presenccedila de estruturas

sociais (em torno dos sete oratoacuterios da Dispositio) e de papeacuteis sociais (os viri spirituales da

Dispositio ainda estudam cantam e trabalham)

Relacionado com a questatildeo da iminecircncia estaacute a seacuterie de desastres presente nos

vaticiacutenios milenaristas Para explicar tal caracteriacutestica o socioacutelogo francecircs Desroche

apontou um roteiro de trecircs tempos subjacentes aos milenarismos haacute um tempo de opressatildeo

que se agrava progressivamente ateacute atingir o auge da alienaccedilatildeo e injusticcedila haacute um tempo de

resistecircncia quando os fieacuteis satildeo separados marcados nas frontes por Deus testemunham

vestidos de saco resistem no deserto isolam-se na espera enfrentam o martiacuterio haacute um

tempo de libertaccedilatildeo quando o adversaacuterio eacute finalmente derrotado e os fieacuteis desfrutaratildeo da

paz divina639 Esta relaccedilatildeo entre opressatildeo e redenccedilatildeo gera no milenarista a sensaccedilatildeo de que

quanto pior ficar melhor eacute jaacute que as adversidades histoacutericas seriam sinais da iminecircncia da

intervenccedilatildeo divina640

Assim antes que os maacutertires ressuscitem o Apocalipse de Joatildeo descreve o funesto

convite para que abutres venham devorar as carnes mortas de reis comandantes e poderosos

ldquocarnes de cavalos e seus cavaleiros carnes de todos quer livres quer escravos tanto

pequenos como grandesrdquo (Apocalipse 1918) O refrigeacuterio dos santos de Joaquim por sua

vez soacute surgiria apoacutes a manifestaccedilatildeo do Anticristo e a morte de muitos fieacuteis Neste sentido a

638 TALMON op cit p 352 639 DESROCHE op cit p 50 640 Eacute um apelo nos termos de Desroche em desespero de causa ldquoum apelo em uacuteltima instacircncia uma vez que

as demais instacircncias desmoronaram E ateacute mesmo um apelo para que as demais instacircncias desmoronemrdquo Cf

DESROCHE op cit p 51

191

felicidade almejada natildeo chegaria antes de uma ldquoangustia temporumrdquo ou das duas

ldquotribulationesrdquo quando muitos fieis alcanccedilariam o martiacuterio641

Miraculosa a intervenccedilatildeo divina

Um movimento milenarista compartilha a crenccedila na transformaccedilatildeo do mundo

conjugando-a com um senso de mudanccedila iminente Neste contexto uma significativa

questatildeo guarda relaccedilatildeo com a agecircncia da transformaccedilatildeo ou seja quem traraacute o milecircnio e a

forma como ele viraacute Em sua definiccedilatildeo do fenocircmeno Norman Cohn chamou a atenccedilatildeo para

o aspecto miraculoso da expectativa milenarista no sentido de que uma transiccedilatildeo tatildeo

significativa da realidade precisa da intervenccedilatildeo de forccedilas sobre-humanas642

Eacute neste contexto que se insere o elemento messiacircnico quando a salvaccedilatildeo eacute esperada

sob a conduccedilatildeo de um redentor um mediador entre o ser humano e a divindade

Frequentemente milenarismo envolve messianismo apesar de que os dois fenocircmenos natildeo

necessariamente coincidem Eacute possiacutevel surgir a perspectiva messiacircnica sem a milenarista

Do outro lado nem sempre eacute preciso um messias para que haja a presenccedila do milenarismo

Milenarismo e messianismo satildeo fenocircmenos independentes que eventualmente se unem

mas o dicionaacuterio de Desroche estaacute cheio de casos de um sem o outro643

Especificamente o milenarismo de Joatildeo eacute do tipo messiacircnico jaacute que ele entende que

para que o milecircnio aconteccedila um enviado de Deus um messias o Jesus glorificado precisaria

atuar Para Joaquim entretanto este periacuteodo de paz seria alcanccedilado por meio da atuaccedilatildeo do

Espiacuterito Santo o promotor da felicidade terrena que o abade chamou de ldquodescanso sabaacuteticordquo

O saacutebado do Espiacuterito natildeo demanda a parousia para sua instauraccedilatildeo Tambeacutem natildeo haacute figuras

ungidas exercendo papeacuteis messiacircnicos nas representaccedilotildees joaquitas como um imperador

especial para trazer o ldquosaacutebadordquo ou um papa angelical para instauraacute-lo

O abade de Fiore natildeo esperava por um reino milenar de Jesus na terra Ele deslocou

o reino de Jesus para traz e o tornou um artiacutefice de um periacuteodo completo dentro da histoacuteria

(o segundo status) Com sua visatildeo de progresso contiacutenuo e natildeo de queda contiacutenua Joaquim

imaginou a humanidade se desenvolvendo por meio da atuaccedilatildeo do Pai na primeira Era

passando pela revelaccedilatildeo do Filho na segunda Era ateacute culminar na atuaccedilatildeo do Espiacuterito na

641 GIOACCHINO DA FIORE I Sette Sigilli Milano Mimesis 2013 p 75 642 COHN Norman Na senda do milecircnio op cit p 11 643 DESROCHE op cit

192

terceira Era Seu milenarismo entatildeo natildeo espera por um Jesus exaltado na terra realizando

um governo com maacutertires ressuscitados Para o calabrecircs natildeo eacute o Filho a esperanccedila dos fieacuteis

e sim o Espiacuterito O tempo de um estava por terminar para que o outro pudesse comeccedilar

Joatildeo esperava um periacuteodo de paz para apoacutes o segundo advento de Jesus Sem Jesus

natildeo haveria felicidade na terra nem reinado dos martirizados nem inversatildeo escatoloacutegica

nem vitoacuteria sobre o Anticristo O milecircnio assim concebido era um parecircntese entre o

segundo advento de Jesus e o final da histoacuteria Um parecircntese que duraria mil anos

Para o abade poreacutem Jesus eacute o centro da histoacuteria mas natildeo o seu aacutepice O aacutepice estaacute

no final na etapa exclusiva do Espiacuterito e sem a demanda do segundo advento de Jesus

(parousia) Em vez de o Filho retornar para trazer a felicidade para a humanidade seu tempo

iria terminar e somente entatildeo debaixo exclusivamente do controle histoacuterico do Espiacuterito os

seres humanos experimentariam a paz Haacute um lugar para a parousia tambeacutem nas

expectativas de Joaquim mas para terminar a histoacuteria e natildeo para dentro dela Na sua visatildeo

quando o Filho retornar a histoacuteria termina o mundo acaba644 Neste sentido o milenarismo

de Joaquim natildeo eacute um milenarismo do Filho e sim do Espiacuterito

Outro aspecto ainda relacionado com a forma de instauraccedilatildeo do milecircnio se desdobra

no papel humano para seu estabelecimento Haacute alguns elementos nas representaccedilotildees

milenaristas que podem atuar para minimizar a atuaccedilatildeo do fiel como por exemplo a

perspectiva de uma redenccedilatildeo predeterminada e inevitaacutevel Neste caso o milenarista natildeo

precisa fazer a revoluccedilatildeo basta esperar pela sua manifestaccedilatildeo sobrenatural Entretanto em

algumas situaccedilotildees a certeza da operaccedilatildeo de acordo com o que estaacute determinado no plano

divino e a confianccedila na vitoacuteria final podem encorajar alguma atividade em vez de

passividade Este parece ser o caso do Apocalipse645 que atribuiu um papel significativo aos

ldquosantosrdquo na instauraccedilatildeo do reino messiacircnico (Apocalipse 69-11) Sem o martiacuterio natildeo haveria

o preenchimento da cota de mortos necessaacuteria para instaurar a parousia (Apocalipse 19) ou

para vencer o Dragatildeo (Apocalipse 12) O profeta de Patmos entende que eacute necessaacuterio algum

tipo de resistecircncia resistecircncia essa que provocaraacute o martiacuterio martiacuterio esse que provocaraacute a

parousia parousia essa que inauguraraacute o milecircnio Ele natildeo demandou uma reaccedilatildeo armada

dos seus seguidores mas esperava deles a rejeiccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo romana o culto

644 Apoacutes o terceiro ciacuterculo da Taacutevola XI do Liber Figurarum aparece a expressatildeo ldquofinis mundirdquo Cf Anexo 6 645 Adela Yarbro Collins definiu o modelo de resistecircncia presente no Apocalipse de Joatildeo como ldquopassivordquo

Mesmo assim ela admite algum tipo de sinergismo jaacute que a morte dos maacutertires aproxima o fiel do eschaton

Cf COLLINS Adela Yarbro Cosmology and eschatology in Jewish and Christian apocalypticism Leiden E

J Brill 1996 p 212

193

imperial Na perspectiva joanina quando os disciacutepulos se negassem a participar da adoraccedilatildeo

agraves ldquobestasrdquo eles seriam mortos evento que parece estar subjacente agrave descriccedilatildeo da morte das

Duas Testemunhas (Apocalipse 11) e dos 144000 Guerreiros do Cordeiro (Apocalipse

14)646

Assim no milenarismo do Apocalipse os fieacuteis participam na instauraccedilatildeo do reino

milenar por meio do derramamento do proacuteprio sangue Este tipo de milenarismo pode ser

descrito como revolucionaacuterio ao rejeitar a ordem presente e promover accedilotildees concretas dos

fieacuteis O martiacuterio eacute tomado como uma estrateacutegia de confronto contra a sociedade romana Em

sua descriccedilatildeo do milecircnio Joatildeo explicita que o fiel precisa viver de certo jeito e morrer de

certa forma para estar presente no reino milenar

Em Joaquim entretanto haacute uma reduccedilatildeo do papel humano na instauraccedilatildeo do

descanso do Espiacuterito relacionado justamente com a oacutetica do abade de que os eventos

escatoloacutegicos estatildeo jaacute definidos e determinados Compete aos saacutebios apenas entendecirc-los

anunciar sua chegada e preparar a humanidade para eles Esse caraacuteter de determinaccedilatildeo estaacute

presente no seu esquema da Concordia Natildeo se pode mudar a histoacuteria apenas se preparar

para ela O milenarismo joaquita entatildeo eacute do tipo passivo Natildeo eacute possiacutevel fazer algo para

apressar a chegada do refrigeacuterio dos monges Sua instauraccedilatildeo natildeo depende de pessoas mas

do tempo que precisa ser cumprido

A roda das apropriaccedilotildees

147 anos apoacutes a morte de Joaquim em 1349 o franciscano francecircs Jean de

Roquetaillade enquanto estava encarcerado numa prisatildeo em Avignon escreveu a obra Liber

secretorum eventuum647 Nela ele anuncia a chegada de uma grande tribulaccedilatildeo A Igreja

entatildeo liderada por um papa ldquoangeacutelicordquo saiacutedo dentre os frades menores seria ldquopurgadardquo de

seus erros A partir de entatildeo um grande tempo de paz e prosperidade invadiria o mundo

durante mil anos Roquetaillade como outros franciscanos desde Geraldo San Borgo era

um leitor de Joatildeo de Patmos e Joaquim de Fiore648 Estas apropriaccedilotildees entretanto

tencionavam o pensamento do abade de Fiore na direccedilatildeo de confrontos que natildeo estavam

646 MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no

Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011 p 169-175 647 Esta anaacutelise de Roquetaillade segue DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 55-57 648 Idem p 50-57 Conferir tambeacutem ROSSATTO Noeli Dutra Joaquim de Fiore e o franciscanismo medieval

Thaumazein Santa Maria v V n 11 p 119-139 2013

194

previstos pelo ldquopaciacuteficordquo calabrecircs649 No Liber secretorum eventuum seu autor natildeo se vale

do esquema das trecircs idades do mundo jaacute criticado pelo protocolo de Agnani durante o

processo contra Geraldo O milenarismo de Jean de Roquetaillade eacute como o de Joaquim

natildeo-messiacircnico mas retomou o quimeacuterico nuacutemero de Joatildeo mil anos Sem parousia como

Joaquim mas por mil anos como Joatildeo Apoacutes o fim deste longo periacuteodo de paz viria entatildeo

o fim do mundo O frade aprisionado tinha a convicccedilatildeo de que o milecircnio comeccedilaria em 1415

ou 1420

Roquetaillade eacute um exemplo dos diversos tensionamentos sofridos pelo pensamento

joaquita reacionaacuterios ou revolucionaacuterios religiosos ou seculares clericais ou leigos no que

se convencionou chamar de ldquojoaquimismordquo650 Quer no paraiacuteso de Dante651 ou nas cartas de

Colombo652 depois de posta em movimento a roda das apropriaccedilotildees653 joaquimitas natildeo

parou de girar para chegar ateacute nos termos de Delumeau agraves ldquoutopias ideoloacutegicas da eacutepoca

contemporacircneardquo654

De qualquer forma este foi apenas um dos veios pelos quais correu a leitura do

Apocalipse e o levou a influenciar direta ou indiretamente a arte a literatura e a cultura no

Ocidente655 O livro foi catalisador de uma seacuterie de movimentos no correr da histoacuteria como

o grupo camponecircs liderado por Thomas Muntzer no seacuteculo XVI656 e a desastrosa

comunidade de 75 pessoas em torno de David Koresh destruiacuteda por um incecircndio em 1993657

A cada nova geraccedilatildeo de leituras um conjunto de representaccedilotildees emerge com

desdobramentos em subsequentes praacuteticas sociais e religiosas Compete aos historiadores e

649 Delumeau assim descreveu Joaquim ldquoum profeta paciacutefico que semeia germes de violecircnciardquo Cf

DELUMEAU Jean Mil anos de felicidade op cit p 46 650 Conferir DE LUBAC Henri La posteridad espiritual de Joaquiacuten de Fiore De Joaquiacuten a Schelling Madrid

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do Apocalipse Cf PHELAN John Leddy The millennial kingdom of the Franciscans in the new world

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658 Mapa presente em DMITRIEV Sviatoslav City government in hellenistic and Roman Asia Minor Oxford

Oxford University Press 2005 p xiv

211

Anexo 2 - A Asia Romana ndash Mapa 2659

659 Mapa presente em DMITRIEV op cit pxvi

212

Anexo 3 - O Reino Normando da Siciacutelia660

660 Mapa presente em LOUD Graham A The Latin Church in the Norman Italy Cambridge Cambridge

University Press 2007 p xiii

213

Anexo 4 ndash Impeacuterio Bizantino (1081-1185)661

661 Mapa presente em DITCHBURN David MACLEAN Simon MACKAY Angus (eds) Atlas de Europa

medieval Madrid Caacutetedra 2011 p 132

214

Anexo 5 ndash Dispositio novi ordinis pertinens ad tertium statum662

662 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero Le tavole del Liber Figurarum di

Gioacchino da Fiore Centro Internazionale di Studi Gioacchimiti San Giovanni in Fiore 2000 p 13

215

Anexo 6 ndash Ciacuterculos Trinitaacuterios663

663 Extraiacuteda de GIOACCHINO DA FIORE Lo specchio del mistero op cit p 15

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