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Varia 305

Existe uma arte moçárabe? Porperturbadora que possa parecer acolocação de uma tal questão mar-cando o início do discurso num artigocujo título parece assumir, à partida,aquela existência (e sem a qual toda avalidade da exposição que agora seinicia parece ameaçada), esta nãodeixa de ser, de qualquer modo, aquestão fundadora no que aos estu-dos sobre a arte cristã peninsular dosséculos IX ao XI diz respeito. Assu-mida a análise estruturada e conclu-siva destes mesmos estudos – maisdo que a apresentação de qualquertese pretensamente inovadora nestaárea que não é, de resto, objecto danossa investigação mais aprofundada– como proposta fundamental e fiocondutor das nossas reflexões nesteartigo, clarificada estará a pertinênciade um tal começo, ponto de partidade uma análise sobre o moçarabismo,em geral e na arte, que nos conduzirá,de autor em autor, pelo universo dosestudos (das interrogações e das res-postas propostas) sobre a arte moçá-rabe ou sobre o que esta designaçãorepresenta.

Desenvolvido no quadro de umanecessidade de clarificação do enten-

dimento de uma época tão persisten-temente obscura quanto a Alta IdadeMédia, mas também de um interessepelas raízes dessa relação com o ima-ginário islâmico, tão presente, mesmoao nível de uma cultura ainda activa,no Alentejo, em cujas formas de vidae de arte primeiramente ensaiei oolhar crítico e o juízo estético, concre-tiza-se agora este estudo, sugerido eapoiado pelo Prof. Doutor José Cus-tódio Vieira da Silva, num artigo quemais não pretenderá, conforme foidito, do que sistematizar as posiçõesde alguns dos principais investigadoresque sobre a área do moçarabismo sedebruçaram e, apoiando-nos na suaautoridade, analisar o fenómeno econcluir do seu lugar na História daarte peninsular. Serão, por isso, deixa-das em aberto inúmeras questões,testemunhas da riqueza do tema, cujaresolução não tem aqui lugar, algumasdas quais ainda à espera de novosestudos, mas de que a apresentaçãoao leitor será já parte da concreti-zação dos objectivos a que aqui nospropomos.

“Nuestra historia tradicional, laescrita, desconoció casi absolutamentelo mozárabe, y a sido tarea novíssima, y

Estudos sobre a Arte Moçárabe- O Estado da Questão –

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nuestra en cierto grado, el resucitarlo;mas su triunfo ya es definitivo, y precisa-mente en lo artístico sorprende comouna de las expressiones más originalesdel génio español y más descollantesobre lo extranjero”1.

Assim era o estado dos estudossobre a arte moçárabe nos anos 50do século XX, segundo palavras deManuel Gómez-Moreno, as quais aquitranscrevemos, não só por ter sido eleo grande iniciador do discurso maisactual e científico sobre o moçárabe,discurso de que os actuais investiga-dores são ainda os herdeiros (o que,de resto, é claramente assumido nosescritos de quase todos eles)2, mastambém por nelas se encontraremcontidas algumas das mais fecundasquestões que animarão os textos queaqui analisamos, nomeadamente a do“triunfo definitivo” do moçárabe comocategoria artística (aliás, em 2000ainda Dominique Clévenot inicia a suareflexão sobre esta arte precisamente

com a interrogação “Existe-t-il un artmozarabe?”3), a da sua originalidade edas marcas da mesma na arte medie-val peninsular.Tal debate, naturalmenteindissociável das transformações verifi-cadas ao nível do olhar sobre o outroe o exógeno, da relação da escrita daHistória com o Cristianismo e dasconcepções de nação e de estilo, temsuscitado teses diversas que de umanegação absoluta do papel da com-ponente islâmica na formação de umacultura e de uma arte que perdura-ram na especificidade da PenínsulaIbérica, passaram a uma vontade deentendimento mais amplo e imparcial(de certa forma mais científico), queencontrou nessas comunidades mo-çárabes, na cultura por elas preser-vada e na arte por elas concretizada,o principal veículo, na Península, detransmissão das heranças altimedie-vais peninsulares para o Românico,portanto sua fonte maior de originali-dade4.

1 Manuel GÓMEZ-MORENO, “El Arte Árabe Español hasta los Almohades. Arte Mozárabe”, in ArsHispaniae. Historia Universal del Arte Hispânico, vol. 3, Madrid, Editorial Plus Ultra, cop. 1951, p. 355.

2 A grande obra de referência desta inauguração do novo olhar sobre a arte moçárabe, de definiçãoda sua autonomia no seio dos estudos histórico-artísticos, é de Manuel Gómez–Moreno, data de1919 e intitula-se Iglesias mozárabes, Arte español de los siglos IX a XI.

3 Dominique CLÉVENOT, “L’Art Islamique en Espagne”, in L’Art en Espagne et au Portugal (dir. Jean-Louis Augé), Paris, Editio-Éditions Citadelles & Mazenod, 2000, p. 95.

4 José Mattoso reconhece igualmente aos moçárabes o papel, por meio das suas deslocações emterritório peninsular, de instrumento de atenuação da oposição radical entre o Norte asturiano eo Sul islâmico: “Assim, pode-se dizer sem receios que as emigrações de moçárabes para norte prepa-raram as sínteses culturais que depois se fizeram em contactos de massa, com as emigrações de clérigosdo Norte no sentido contrário.” (José MATTOSO,“Os Moçárabes”, in Fragmentos de uma ComposiçãoMedieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1987, p. 24).

Oiçamos, a este propósito, Car-los Alberto Ferreira de Almeida, queassim expõe a questão, em 1986: “Oconhecimento e explicação destes tem-pos obscuros e inovadores é motivo degrandes polémicas entre diferentes his-toriadores, sobretudo no que respeita aonível do despovoamento, ao grau deoriginalidade e da personalidade da cul-tura moçárabe e à classificação da suaarte: se moçárabe, se de repovoamentoou apenas pré-românica”5. Por via des-tas palavras, introduzimos nesta nossareflexão um novo dado, fundamentalpara o início de uma mais profundacompreensão da razão de ser danossa questão inicial: a discussão quedivide os investigadores no que res-peita à denominação mais correcta aatribuir ao conjunto de manifestaçõesartísticas deixadas na parte Norte doterritório da Península, produto daconfluência das tradições cristã-visigó-tica, muçulmana-cordovesa e asturi-ana, combinadas em soluções compó-sitas e onde alguns elementos carolín-

gios, bizantinos e norte-africanosparecem ganhar também momentosde expressão6. A arte cristã, realizadapor e para cristãos, em território dedominação islâmica, parece não ofere-cer actualmente grande resistência àsua classificação como moçárabe. Maso que dizer desta arte desenvolvida econservada em terra livre e que cons-titui, afinal, o maior número de teste-munhos remanescentes desta época?De facto, aceite comummente entreos historiadores para designar os cris-tãos que, durante a ocupação muçul-mana da Península (711-1493) opta-ram por viver sob dominação políticaislâmica, o nome moçárabe ameaçaperder a firmeza dos seus contornosquando aplicado, numa versão qualita-tiva, aos campos respectivos da cul-tura, da liturgia ou da arte.

Regressemos, por isso, à interro-gação que despoletou todo estediscurso e perscrutemos as condicio-nantes existenciais desta arte queconstroem a base daquela questão e

5 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, “Arte moçárabe e da Reconquista”, in História da Arte emPortugal, vol. 2, “Arte da Alta Idade Média”, Lisboa, Publicações Alfa, 1986, p. 96.

6 Note-se que esta discussão, longe de se reduzir a uma questão meramente de ordem vocabular,corresponde a uma verdadeira divergência de opiniões sobre o significado e a essência desta arte,desenvolvida na Península Ibérica ao longo dos séculos X e XI. No fundo, cada uma das designaçõesque tem identificado este conjunto artístico nos diversos autores, corresponde a uma proposta deentendimento singular desta arte, entendimento cuja dificuldade tem determinado a insegurançana aceitação, a nível científico, de uma denominação definitiva. Paulo Almeida Fernandes, na tese deMestrado que apresentou à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em Setembro de 2002,concluiu, assim, em jeito de denúncia: “Carecendo de elementos artísticos unificadores, mas faltando,sobretudo, um correcto e abrangente modelo historiográfico dirigido a este fenómeno…” (Paulo AlmeidaFERNANDES, A Igreja Pré-Românica de São Pedro de Lourosa, p. 21).

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lhe dão sentido. Existe afinal uma artemoçárabe?

Em primeiro lugar, parece-meclara a necessidade de dar a conhecero sentido exacto do termo moçárabe.Surgida pela primeira vez nos Fuerosde Toledo do século XII, após a recon-quista da cidade por Afonso VI7, apalavra moçárabe, provavelmentederivada de mustarib ou mustacrib, foide quantas os árabes usaram paradesignar os cristãos a mais frequentee a que maior futuro revelou. Moçá-rabes eram os cristãos não islamizadosque, vivendo em grupos no seio dasociedade muçulmana, conservavamos traços da sua religião, mas tambémdo seu sistema próprio de adminis-

tração municipal e judicial (emboraesta independência tenha tendido, apouco e pouco, a corromper-se pelapressão da civilização mais desenvol-vida e atractiva dos muçulmanos).Distinguiam-se, quer dos musalima, oscristãos convertidos ao islamismo,quer dos muwalladi, aqueles nascidosde pais convertidos, não árabes, mashispânicos8. Moçarabismo será, destaforma, toda a manifestação que tenharelação com os moçárabes, conse-quência concreta desta vivência bali-zada entre a tradição e a inovação,entre a preservação da fé cristã e acedência à incorporação de certosdados de uma estética oriental9. E,aceitando esta relação simples voca-

7 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.104.

8 Mais tarde, chamou-se a todos estes “novos muçulmanos”, muladies (Cf. José Fernandez ARENAS,La Arquitectura Mozárabe, Barcelona, Ediciones Polígrafa, 1972, pp. 6-12).

9 Vários são os autores a insistir na existência de um ambiente propício a esta assimilação orientali-zante e no seu fácil processamento como consequência natural do reconhecimento da superioridadecultural do califado cordovês – fenómeno confirmado pelas críticas que despoletou no seu própriotempo, críticas denunciadoras das excessivas aproximações dos cristãos ao modus vivendi islâmico,como é o caso das de Eulógio, ou mesmo pelos nomes árabes com que inúmeros monges vindosdo sul da Península são designados em documentos leoneses. “La foi chrétienne s’affadit devant lesattraits matériels, et même intellectuels, de la nouvelle et brillante civilisation islamique d’Al Andalus”,conclui Jacques Fontaine acerca deste processo de secularização e de arabização progressiva dacomunidade moçárabe (mesmo daquela especificamente dedicada à vida religiosa). Este processoteria como uma das mais poderosas facetas o movimento espiritual dos mártires voluntários deCórdova, “symboles dangereux, parce qu’exemplaires, de la résistance chrétienne des mozarabes”(Jacques FONTAINE, L’art préroman hispanique: l’art mozarabe, Zodiaque, 1973-77, pp. 24 e 26).Taisaproximações, definidoras afinal do carácter próprio da comunidade e da arte moçárabes, viriamigualmente a ser causa de um seu afastamento e consequente incompreensão por parte dos cristãosdo Norte, que, na sua conquista do Sul, tenderão a confundi-las com a presença islâmica a neutra-lizar. Não obstante, diz-nos Christophe Picard que “le transfert négocié des reliques de Saint-Vincent en1173, de la zone mozarabe vers Lisbonne, montre, au contraire, un changement d’attitude du pouvoir vis-à-vis des derniers groupes mozarabes pendant la deuxième moitié du XIIe siècle, au moment où ilspouvaient être un soutien à la royauté face aux Almohades.” (Christophe PICARD,“Les Mozarabes deLisbonne: le problème de l’assimilation et de la conversion des chrétiens sous domination musulmaneà la lumière de l’exemple de Lisbonne”, in Arqueologia Medieval, nº 7 (Abril de 2001), pp. 89-94).

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bular, a questão da classificação daarte do Norte, mesmo que não mani-festada em território de dominaçãomuçulmana, porque nascida por acção

da comunidade moçárabe para aídeslocada, parece ter-se tornado deevidente resolução. Esta seria, por-tanto (e é-o, na opinião de autores

Do ponto de vista artístico, existem também, entre os investigadores, algumas referências à anteri-

oridade, na Península, de elementos tendencialmente identificados com a influência da arte muçulmana.

Fernando Chueca Goitia é, contudo, aquele que com maior demora se debruça sobre essas concor-

dâncias com o mundo oriental, activas “desde tempos anteriores à conquista romana, e não se sabendo por

que estranhas tendências e inclinações ancestrais”. Nessa pesquisa reconhece, na arte antiga peninsular, a

existência de influências do oriente grego e de outros povos e civilizações orientais, “durante a época de

colonização dos fenícios, dos gregos e dos cartagineses”, mas também no período romano (refere-se ao

aparecimento do arco de ferradura nalgumas estelas e mosaicos). Esta adopção de formas orientais seria

continuada pelos Visigodos, que empregam com frequência o arco de ferradura, mas também alguns

motivos decorativos predominantemente de origem bizantina (Fernando CHUECA GOITIA, Arquitectura

Muçulmana peninsular e a sua influência na arquitectura cristã: exposição de documentação fotográfica,

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1962).

Cláudio Torres e Santiago Macias consideram mesmo, de resto, a civilização islâmica implantada na

Península uma formulação própria do Mediterrâneo, e não uma intromissão exterior a ele, o que explica-

ria a sua natural aceitação entre os povos conquistados. No fundo, trata-se, de acordo com os arqueólo-

gos e numa posição de algum idealismo, de um processo, em larga medida, de continuidade: “Em vez de

cidades destruídas ou arruinadas, em vez das marcas deixadas pela imposição de novas formas de vida e civi-

lização, nota-se um fenómeno generalizado de continuidades em que se acentua uma aproximação, já anterior-

mente perceptível, às modas arquitectónicas e decorativas do antigo Levante bizantino – onde Damasco se afir-

ma como capital – e da África Proconsular (ou actual Tunísia)”, e continuam, com uma afirmação de ruptura:

“De facto, do ponto de vista da investigação arqueológica, a primeira grande ruptura civilizacional claramente

visível na tradição mediterrânica acontece, não durante os inícios do século VIII e sim nos anos da «Reconquista»,

quando são introduzidos nas terras do Sul os primeiros corpos estranhos de uma nova formação social que, de

um modo geral, catalogamos como «feudalismo».” (Cláudio TORRES e Santiago MACIAS,“A Arte Islâmica no

Ocidente Andaluz”, in História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), vol. I, Círculo de Leitores, 1995, p. 153).

De resto, por que na linha desta ideia de uma implantação particular da arte árabe em território

actualmente português, não podemos deixar de referir os estudos de Correia de Campos.Afirma o inves-

tigador, em palavras que revelam uma posição diversa daquela visão de uma ocupação islâmica em ambi-

ente de total pacifismo, que: “Sabe-se agora pelo conhecimento dos textos árabes que as primeiras revoltas

contra a ocupação árabe começaram primeiro em Sevilha, depois em Beja, donde saiu uma expedição para

socorro dos sevilhanos, seguindo-se-lhe Coimbra e estendendo-se a toda a região galaica, que abrangia todos

os terrenos a Norte do rio Douro. (…) Para manter a ordem em toda a Península, houve necessidade de

recorrer à vinda de contingentes orientais. Num determinado período, há notícias de que esses contingentes se

encontravam nas seguintes localidades: damascenos em Córdova, egípcios em Lisboa, Beja e Todmir, os quinça-

ritas em Jaen e os iemenitas em Silves. E foram os contingentes orientais, antes da criação da arte árabe, que

fixados principalmente no Ocidente peninsular e em colaboração com os aborígenes, vieram a criar o particu-

larismo arquitectónico árabe do nosso território, bem diferenciado do espanhol… (…)” (Correia de CAMPOS,

A Arquitectura Árabe do País e o II Congresso Nacional de Arqueologia, Lisboa, !972 (ed. de autor), p. 17).

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como Manuel Gómez-Moreno, ÉlieLambert, Fernando Chueca Goitia,Pedro de Palol, José Fernandez Arenase Jacques Fontaine, para só nos repor-tarmos a uma historiografia estrangei-ra), uma arte moçárabe. Simplesmente,do mesmo modo que a populaçãodesignada como moçárabe é vária, nãosó nas situações sociais e religiosas acti-vas no seu seio, como nas caracterís-ticas que assume ao longo do períodode dominação islâmica da Península ede Reconquista cristã, também naarte dita moçárabe nos deparamoscom realidades diversas, em função daprópria história peninsular e dosmeios em que é posta em prática.

Compliquemos, contudo, estaaparente clareza. Na verdade, outrosproblemas se colocam. Se se assumeo moçarabismo como uma manifes-tação de definição própria, dona deuma autonomia espacial e temporal, oque dizer das condições paradoxaisque dificultam uma sua caracterizaçãoestanque e que envolvem, inclusiva-mente, a localização dos testemunhossobreviventes dessa arte?

No que respeita aos problemascronológicos, as posições dos inves-tigadores oscilam, fundamentalmente,entre a definição de dois períodos.Reconhecido o século X por todoscomo momento central do desen-volvimento desta arte10, as opiniõesdividem-se quanto à delimitação deum início e de um fim para uma arqui-tectura que, afinal, assegura a con-tinuidade das tradições latino-godas11

e prepara o caminho para a afirmaçãoromânica peninsular, com cujas pri-meiras manifestações ainda convive.

O ano de 711 impõe-se comoprimeiro momento a reter nestecontexto dos estudos sobre as rela-ções entre Árabes e Cristãos naPenínsula Ibérica. Em 711, com efeito,Târiq ibn Zyiad atravessa o estreitodesde então designado de “Gibraltar”e chega ao território peninsular,marcando com isto o início da históriado al-Andalus12, que Élie Lambertdivide em dois períodos: o da monar-quia andaluza, fundada em Córdovapor Abd er-Rahman I, em 756, e o doCalifado do Ocidente, desenvolvido

10 Note-se como Isidro Gonzalo Bango Torviso, interessado em centrar a discussão nos termos dadesignação desta arquitectura, limita cronologicamente a sua análise ao século X, limitação queassume logo no título do artigo: “Arquitectura de la Décima Centuria: Repoblación o mozárabe?”(in Goya. Revista de Arte, nº 122 (1974), pp. 69-75).

11 Esta noção de continuidade leva mesmo Vergílio Correia a denominar esta arte cristã do Nortedos séculos X e XI de neo-goda (Vergílio CORREIA, “Notas sobre o pré-românico coimbrão”,Obras, vol. II, Coimbra, 1949, pp. 31-38).

12 “«Al-Andalus» est le nom arabe de cette Espagne islamique qui, du VIIIe au Xe siècle, s’étend vers lenord jusqu’au Duero et qui, dès le XIIIe, se réduit au petit royaume de Grenade.” (DominiqueCLÉVENOT, ob. cit., p. 77).

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sob os reinados de Abd er-Rahman III(912-961) e de El-Hakam II (961-976)e prolongado pelo governo do minis-tro Al-Mansur (976-1002) e dos seusdois filhos (1002-1009). A estes doisperíodos, Élie Lambert faz corres-ponder, no Norte cristão da Península,o da monarquia asturiana e o períodomoçárabe, numa noção de sucessãoque é, como veremos, largamentediscutível13.

De facto, de 711 a meados doséculo VIII, a dominação islâmica do al-Andalus sofreu de grande instabili-dade; só com a dominação da dinastiaomíada, massacrada pelos Abássidas naSíria, em 750 e de que o único sobre-vivente, o jovem Abd er-Rahman, seveio a refugiar em território penin-sular, onde se proclamou emir, em756, a longínqua província começou aflorescer, de acordo com uma vonta-de expressa dos seus governantes,que pretendiam fazer de Córdova anova Damasco. Esta supremacia dacidade de Córdova não estava, contu-do, destinada a manter-se ao longo detoda a história da presença árabe naPenínsula. A partir do começo doséculo XI, os efeitos das guerras civisque então se sucedem traduzem-sena multiplicação de potentados locaisque farão de cada cidade importantedo território (Saragoça,Toledo, Sevilha,

Algeciras, Málaga, Granada, Valência,Múrcia, etc.) o centro de um pequenoemirato. Embora politicamente esteperíodo, chamado dos Reis de Taifas,não se tenha revelado particular-mente favorável ao poder islâmico –podemos mesmo dizer que esta confli-tuosidade interna serviu frutuosamen-te os interesses dos cristãos reconquis-tadores –, foi, sem dúvida, um tempofecundo para as artes, como o sãotodos aqueles em que a competitivi-dade se expressa no fortalecimentovisível de uma imagem de poder eriqueza. Em 1085, Afonso VI de Cas-tela apodera-se do reino de Toledo,sinal de uma decadência, sem retorno,do poderio islâmico. Para fazer face aesta ameaça crescente, instala-se, naPenínsula, a dinastia dos Almorávidas,dinastia berbere estabelecida emMarrocos, a que se seguem, desde1145, os Almóadas, também eles ber-beres e promotores de um rigorismoreligioso que traria enormes compli-cações à sobrevivência das comunida-des moçárabes em território muçul-mano. Finalmente o reino de Granada,que Muhammad ibn Nasr funda em1237 sobre os escombros do Impérioalmóada, limita-se já a um territórioque vai apenas de Tarifa a Almería.“C’est le dernier bastion de l’islam enEspagne, auquel la Reconquista accorde

13 Élie LAMBERT, Art Musulman et Art Chrétien dans la Péninsule Ibérique, Paris, Privat Éditeur, 1958, p. 6.

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un long surpris, jusqu’en 1492, l’annéemême où Christophe Colomb débarquesur le nouveau continent”14. O últimosoberano muçulmano de Espanha, per-seguido pelos exércitos de Fernandode Aragão e de Isabel de Castela,deixa definitivamente o seu palácio deAlhambra, em Granada, e procuraexílio no Norte de África. O ano de1492 apresenta-se, assim, como asegunda data a reter.

Mas se estas são marcas susceptí-veis de uma aceitação mais ou menospacífica no que respeita à historio-grafia em geral e à identificação pre-cisa do período de presença muçul-mana na Península Ibérica, o mesmonão se verifica quando tratamos dosfenómenos artísticos, sobretudo repor-tando-nos, como no presente artigo, aum grupo de manifestações de exis-tência, mais do que marginal, verda-deiramente “fronteiriça” entre dois

mundos dominantes e melhor defi-nidos, do ponto de vista político ecultural – o islâmico e o cristão.

Assumindo o ano de 711 comoo início do período que nos interessa,parece lógico supor que terão exis-tido moçárabes desde então. Mas apartir de que momento assumemestes a necessidade e a liberdade dese manifestarem artisticamente? Emque momento a fusão entre o cristãoe o árabe que é para nós distintivodesta arte está apta a ser uma reali-dade? As datas que então retivemosameaçam agora ter de se relativizar.Para Manuel Gómez-Moreno, esteparece não ser problema difícil: se emrelação a um início refere apenas adata de 711, no que respeita ao bali-zamento final desta arte (e note-seque falamos aqui fundamentalmentede arquitectura, e particularmente dearquitectura religiosa15) refere-se ge-

14 Dominique CLÉVENOT, ob. cit., p. 77.

15 Não obstante, não podemos perder a noção de que a influência islâmica teve reflexos em áreasartísticas tão diversas como os marfins, a ourivesaria, os bronzes, os tecidos e a iluminura, em cujaprodução se destaca o predomínio dos manuscritos consagrados aos Comentários do Apocalipse,escritos no final do século VIII, por Beato de Liébana, abade de Valcavado, contra a heresia deElipando. Carlos Alberto Ferreira de Almeida associa esta preferência pelo texto do Apocalipse auma mentalidade anti-muçulmana, afirmando: “o texto bíblico mais glosado, é o do Apocalipse, por seraquele que, por aludir expressamente à luta entre o bem e o mal e ao Céu dos mártires e dos puros,melhor responde ao anti-islamismo se então.” (Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.107).Dominique Clévenot considera mesmo que “si l’architecture est le domaine où fut reconnue pour lapremière fois l’existence d’un art mozarabe, la peinture est sans aucune doute la domaine où cet arts’est exprimé avec le plus d’originalité.” (Dominique CLÉVENOT, ob. cit., p. 106). Apesar disto, a ver-dade é que a iluminura dita moçárabe permaneceu longo tempo no esquecimento, desde a suaépoca de expressão (que vai de 900 ao final do século XI) até ao ano de 1924, quando foi realizadauma grande exposição de manuscritos espanhóis iluminados, em Madrid, pela Sociedad de amigosdel arte. O afastamento face à realidade objectiva, bem como a intensidade expressiva do grafismoe da cor, são algumas das características identificadas com esta iluminura estudada nos Beatus, por

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nericamente ao século XII, masapenas para o território de domina-ção muçulmana. Mais comum, con-tudo, é a aceitação do reinado deAfonso III (866-910), o rei cristão im-pulsionador da emigração moçárabepara as terras do Douro, como marcada génese da arquitectura cristã“arabizada”16, e o século XI comomomento de ocaso. Jacques Fontainedefine-a, simplesmente, como “ladernière floraison des arts préromans dela péninsule”17. Compete-nos, contu-do, clarificar a validade de uma talaceitação – a do reinado de Afonso IIIcomo baliza inicial – antes de nosdebruçarmos na análise da expressãode Jacques Fontaine.

De facto, no século IX, sob osreinados de Ordonho I (850-866) e,sobretudo, de Afonso III o Grande(866-910), o reino asturiano, aprovei-tando, como atrás se disse, o mo-mento de instabilidade vivido no

Estado muçulmano andaluz desde amorte de Abd er-Rahman II, em 852,procedeu a um alargamento da suaárea, repovoando progressivamenteos imensos territórios que desde afundação da monarquia cristã haviamservido de fronteira de separaçãorelativamente ao domínio islâmico.Foram colonizadas, a Oeste, a Galiza euma grande parte do Portugal actual;a Sul, toda a área até à linha doDouro. Em 912, o filho e sucessor deAfonso III, Garcia I, definiria novolimite a Este, levando-o até ao cursosuperior do Douro com Roa, SanEsteban de Gormaz e Osma. Nessamesma data, enquanto em Córdovasubia ao poder Abd er-Rahman III, acapital da dinastia asturiana transferia-se de Oviedo para Léon. Este pro-cesso de colonização, ou melhor, dereorganização dos territórios e daspopulações18, foi acompanhado deum considerável afluxo de cristãos

excelência. O lugar reduzido que ocupa relativamente à arquitectura, nos estudos cuja análise éaqui nosso objectivo, explica a prevalência concedida também neste artigo ao campo arquitectó-nico como lugar de expressão do moçarabismo.

16 Élie Lambert, Pedro de Palol e José Fernandez Arenas, são alguns dos investigadores que concor-dam com este balizamento.

17 Jacques FONTAINE, ob. cit., p. 57.

18 A historiografia tradicional tendeu a sobrevalorizar a acção desertificadora de Afonso I das Astúriassobre a bacia do Douro. De acordo com esta perspectiva, este rei teria, em razias sucessivasarrasado povoações árabes e fortalezas nesta região, criando um vazio estratégico, com vista adificultar eventuais invasões muçulmanas. Não obstante, tal como Carlos Alberto Ferreira deAlmeida conclui logo em 1986,“tudo indica que foi o modelo e o itinerário de organização do territóriopromovida por D. Afonso III no vale do Douro que deu a rota à narrativa da actividade despovoadoraentão atribuída a Afonso I.” (Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., pp. 98-99). Esta mesmatese que vem atribuir a Afonso III um papel sobretudo de reorganização das populações éconfirmada por José Mattoso: “Se algum [despovoamento] houve, não podia ter desertificado por

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moçárabes que, fugidos dos terri-tórios dominados pelos muçulmanos,onde até então se haviam mantido(em torno de Córdova e de Toledo),procuravam novas condições de vidanaqueles lugares. Dizem os historia-dores que Afonso o Grande soubeatrair estas populações, através dadoação de terras e da promessa de

uma vida tranquila, em lugar da insta-bilidade (com perseguições, revoltas emartírios) vivida em território muçul-mano, desde a morte de Abd er--Rahman II, em 852. Com efeito, senum primeiro momento os moçára-bes parecem ter gozado de um climade considerável tolerância19, que lhespermitiu conservar as suas instituições,

completo o vale do Douro. Não fez mais do que contribuir para isolar as comunidades ali existentes,reforçar a sua atitude de defesa, acentuar a sua autonomia, aumentar os laços de solidariedade.” (JoséMATTOSO, ob. cit., p. 30). Mais do que de um processo de conquista ou de reconquista (fenómenocuja designação comporta uma noção de acção ofensiva e anti-islâmica que só com Fernando oMagno parece ter tido início), trata-se então da “integração de comunidades independentes nomodelo civilizacional emanado de Oviedo, proporcionada por uma expansão do reino cristão pela ‘terrade ninguém’” (Paulo Almeida FERNANDES, ob. cit., p. 42). Daí a limitação de uma denominaçãodesta arte cristã do Norte subsequente da asturiana com a expressão “de reconquista” (pois esteé um fenómeno cronologicamente não coincidente com o período de manifestação desta arte) oumesmo como “arte fronteiriça” (pois a noção de fronteira tem, na referida época, contornos parti-culares e diversos dos actuais).

19 Jacques Fontaine privilegia à noção de tolerância a de liberdade, uma vez que considera esta situa-ção maioritariamente como o resultado de uma dominação ainda mal instituída, por se encontra-rem os Árabes com as atenções voltadas para outras preocupações, nomeadamente para os con-flitos com os Berberes. Jacques Fontaine apela então para uma posição de equilíbrio nesta análiseda relação entre povo dominador e povo dominado: “Malgré les affirmations rétrospectives deschroniqueurs chrétiens et arabes ultérieurs, les débuts de la conquête arabe de l’Espagne ne furent sansdoute ni plus idylliques ni plus désastreux que ne l’avaient été l’insécurité et les destructions causées parles interminables désordres des invasions du Ve siècle…” (Jacques FONTAINE, ob. cit., p. 23). A estaperspectiva opõem-se, contudo, de certo modo, Cláudio Torres e Santiago Macias: “A arqueologia,e de um modo geral a historiografia actual, não constatam para esta época e nas zonas supostamenteligadas a esses acontecimentos, quaisquer indícios que justifiquem outras convulsões que não asprovocadas por grupos armados, mais ou menos autónomos que, nos últimos e conturbados anos doreino de Toledo, actuavam em todo o lado por sua conta e risco, ou a mando de senhores e caciqueslocais.”. E concluem,“a islamização não resultou de conquistas militares e sim de uma rápida conversãodas populações citadinas mais abertas à troca de mercadorias e de ideias.” (Cláudio TORRES eSantiago MACIAS, ob. cit., pp. 153 e 154). De acordo com esta perspectiva, reduzido papel deve ser,neste processo de islamização peninsular, atribuído às forças militares, sublinhando-se antes aimportância dos caminhos e rotas do comércio oriental. A adopção da religião muçulmana tendeagora a ser encarada como um processo de desenvolvimento lento e gradual. Diz-nos CláudioTorres que apenas em finais do século X os Muçulmanos terão ultrapassado mais de metade dapopulação andaluza, facto que vem contribuir para colocar “em novos moldes a forma como podeser encarado o fenómeno moçárabe, explicando muitos dos problemas que até agora pareciaminsolúveis.” (Cláudio TORRES, “O Garb-Al-Andaluz”, in História de Portugal (dir. José Mattoso), vol. I– “Antes de Portugal”, Círculo de Leitores, 1992, p. 407).

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as suas crenças e as suas igrejas20, apartir do século IX a situação destaspopulações ter-se-á complicado, obri-gando a importantes deslocações,nomeadamente de comunidades mo-násticas, que nas terras do Dourofundaram mosteiros notáveis, centrosexemplares da cultura e da artemoçárabes. Este fenómeno “expliquepourquoi l’on vit s’élever alors dans toutecette partie de la Meseta ibérique denombreuses églises tout autrementconstruites que les monuments asturiens,tandis que les couvents ainsi fondésdevenaient autant de centres artistiquesoù l’influence andalouse se faisait deplus en plus sentir à côté de la traditionvisigothe”21. De facto, deslocados parao Norte cristão, estes homens vindosdo Sul não se puderam manter alhea-dos das tradições artísticas activas nasterras onde então se instalavam. Estassoluções arquitectónicas asturianasforam, assim, incorporadas numa lin-

guagem em que as memórias cordo-vesas não se perderam, harmonizando--se igualmente com a herança visigó-tica, de maneira original de edifíciopara edifício, embora mantendo umcerto “ar de família”, um espíritocomum que nos permite falar de umaarte moçárabe. Esta composição diver-sa – diversa não só nas tradições einfluências que nesta arte convergem,como nas suas manifestações e tipo-logias – tem dificultado uma caracteri-zação definitiva da arquitectura ditamoçárabe (até pela discussão que temenvolvido a origem dos seus elementosdistintivos por excelência – a divisão tri-partida dos espaços interiores, o arcode ferradura, o alfiz, o ajimez, os modi-lhões de rolos, as abóbadas de nervu-ras) e, o que é ainda mais importante,tem orientado toda uma reflexãosobre a validade de um entendimentoautónomo desta arte no seio das ma-nifestações artísticas pré-românicas.

20 Pedro Palol e Max Hirmer afirmam que às comunidades moçárabes preservadas em território dedominação islâmica estavam vedadas a construção de raiz e a reconstrução de qualquer edifícioreligioso (Pedro PALOL e Max HIRMER, L’Art en Espagne. Du Royaume Wisigoth à la Fin de l’ÉpoqueRomane, Paris, Flammarion, 1967, p. 36). Esta suposição de uma proibição de construção serviulongamente os modelos interpretativos da arte cristã do Norte, determinando o seu enten-dimento como resultado da combinação de elementos de origem vária, dada a inexistência de umatradição construtiva estritamente moçárabe. Alimentada, contudo, por sucessivas descobertasarqueológicas e pela investigação de alguns autores, uma nova corrente historiográfica tem vindo aganhar terreno, corrente que aponta para a transposição e a adaptação de modelos moçárabes, jáensaiados no Sul, na parte Norte da Península. Um dos investigadores que, em Portugal, re-presentam esta corrente é Manuel Luís REAL (“Portugal: cultura visigoda e cultura moçárabe”,Visigodos y Omeyas. Un debat entre la Antigüedad Tardia y la Alta Edad Media, Madrid, CSIC, 2000,pp. 39-41).

21 Élie LAMBERT, ob. cit., p. 107.

Varia 315

Verdadeiro fundador do lugarautónomo do moçarabismo no seioda historiografia da ar te, ManuelGómez-Moreno não deixou de reco-nhecer a diversidade que o define,que encarou como expressão maiorda vitalidade de uma arte que seadapta continuamente e se desmulti-plica, em função das características domeio físico e do meio social circun-dante, mas também das pesquisas doartista sobre o modelo cristão22.

Élie Lambert, em 195823, assumejá, sem dificuldades, a existência au-tónoma desta arte, nascida, segundo oautor, da associação da tradição visi-gótica, que funciona como ponto departida, à influência crescente do Islãoandaluz. Para Fernando Chueca Goitia,em 1962, não há dúvida de que “émuito concreta e muito específica a arteque se desenvolve no século X e nosprimeiros decénios do século XI” e quenão hesita em denominar de moçára-be, termo que, sublinha, “não se deveconfundir (…) com o de mudéjar, nemquanto a conceito, nem quanto a crono-logia”24. A mesma certeza é assumidaem 1967 por Pedro de Palol e Max

Hirmer, que, na definição da compo-sição da arte moçárabe, aos elementoshispano-visigóticos e árabes referidospelos outros investigadores acrescen-tam as influências do Norte de Áfricae de Bizâncio, sem esquecer o enri-quecimento proporcionado pela in-corporação de referentes asturianosaquando da concretização desta arteem terras do Norte: “En somme, l’artmozarabe nous offre une sorte de réssu-rection des formes romano-ibériques,byzantines et wisigothiques, dans uneversion arabe…”25. Estes dois estudio-sos são igualmente dos primeiros ainterpretar com segurança a arte mo-çárabe como arte pré-românica, nãonum sentido meramente de valor cro-nológico, mas no quadro de uma evo-lução que faz daquela arte um prelú-dio ou um campo de experimenta-ções com reflexos notáveis no Româ-nico peninsular. Um verdadeiro proto--românico. Cinco anos depois da publi-cação daquele texto, continuamos aencontrar, em José Fernandez Arenas,uma assumpção não discutida domoçárabe como qualificativo válidono âmbito artístico26, o que, contudo,

22 Manuel GÓMEZ-MORENO, ob. cit.. Paulo Almeida Fernandes corrobora, na sua tese de Mestrado,esta perspectiva: “…acreditamos que é precisamente a inexistência de individualidade estilística umadas características essenciais da arte cristã peninsular realizada ao longo dos séculos X e XI” (PauloAlmeida FERNANDES, ob. cit., p. 24).

23 Élie LAMBERT, ob. cit.

24 Fernando CHUECA GOITIA, ob. cit.

25 Pedro PALOL e Max HIRMER, ob. cit., p. 35.

26 José Fernandez ARENAS, ob. cit.

316 Revista de História da Arte

não é garante ainda do “triunfo defi-nitivo” da arte moçárabe com queGómez-Moreno sonhara em 1951.

De facto, é num artigo de 1974,publicado na Revista Goya, que IsidroGonzalo Bango Torviso vem recolocara questão, assumindo-se como o maisacérrimo defensor do modelo inter-pretativo proposto por José CamónAznar, pela primeira vez, em 194827.Assim, ante a pergunta que à classifi-cação da arquitectura hispânica doséculo X coloca duas hipóteses, derepovoamento ou moçárabe, BangoTorviso opta em defintivo pela pri-meira, pretendendo com isto afirmara sobrevivência e o prolongamentoda arte asturiana no Norte, ainda quecom as alterações inevitáveis nascidasdo contacto com os monumentosvisigodos, da afluência de elementosandaluzes e carolíngios e da adaptaçãoa novas realidades políticas e mentais,ao longo da centúria em questão. Adenominação de arquitectura moçárabedeixa-a para as realizações operadasem território de dominação muçul-mana, enquanto para o Norte fala daconvivência de uma arquitectura em

que a tradição asturiana se combinacom formas andaluzas e carolíngias (aarquitectura de repovoamento) comuma arquitectura puramente asturiana.

Jacques Fontaine, nos anos de1973-77, coloca esta teoria a par deoutras sobre a arte moçárabe, quesistematiza, para finalmente reconhe-cer o mérito e o erro comuns a todaselas: “Le mérite de chacune de cesformules est d’avoir mis l’accent sur unefacette particulière de l’art mozarabe;leur défaut (…) est d’avoir prévilégié cettefacette aux dépens des autres…”28.Para Jaques Fontaine, a arte moçárabeé, por isso, simultaneamente uma artedo repovoamento, uma ramificação datradição hispano-romano-visigótica,uma variante local da arquitecturaromana tardia, uma filial da arte deCórdova, uma arte de fronteira, mas ésobretudo como manifestação pré-românica que ela deve ser valorizada.A arte moçárabe é, nas palavras doautor que agora recuperamos, “ladernière floraison des arts préromans dela péninsule”29. E como? Porque sesitua entre uma tradição, que a ali-menta, e um movimento, de que é um

27 José CAMÓN AZNAR, “Arquitectura prerrománica española”, XVI Congrès International d’Histoirede l’art, vol. I, Lisbonne-Porto, Minerva, 1949, pp. 105-123.

28 Jacques FONTAINE, ob. cit., p. 50.

29 Idem, p. 57. Jacques Fontaine segue na esteira de Georges Gaillard, que ele próprio cita, nesta noçãode que a originalidade e a repercussão da arte moçárabe ultrapassam a fragilidade e a dispersãodos seus monumentos corroboram a sua importância. Para Jacques Fontaine, de resto, o fundohispânico que reconhece em todas as artes cristãs peninsulares que se sucederam à moçárabe nãoé compreensível sem este canal último e original de transmissão da tradição.

Varia 317

dos laboratórios de experimentação:a primeira feita das heranças da artepaleocristã, da visigótica e da astu-riana; o segundo correspondendo aoRomânico.

Para se compreender o moçara-bismo na arte ter-se-á, por isso, de tersempre presente, ainda que sem pôrem causa a autonomia e o valorpróprio desta arte, todas as tradições(paleocristãs, omíadas, visigóticas, astu-rianas, meridionais e setentrionais)que nela confluem, não para debilitara sua personalidade individual, maspara construir a sua riqueza maior. Emdata bem mais próxima, DominiqueClévenot30 continua, no ano de 2000,a aceitar a existência de uma artemoçárabe, embora sem deixar de evi-denciar a importância desta proble-mática nos estudos desenvolvidosdesde Manuel Gómez-Moreno. Re-conhecendo nesta arte uma eternaoscilação entre dois pólos culturais eartísticos (o islâmico e o cristão), Do-minique Clévenot considera-a uma

arte “frontalier”, sob os dois pontos devista, estilístico e geográfico31.

Curioso é o facto de não nosdepararmos com o mesmo tipo dehesitações entre os investigadores por-tugueses, posto que a denominação eautonomia desta arte aparecem assu-midas desde momento tão precocequanto o ano de 1927, na obra de JoséPessanha32.Assim, se pela definição queapresenta de arte moçárabe – “a artede hispano-godos que viviam submetidose isolados, tendo apenas contacto commuçulmanos”33 –, parece pretenderlimitar tal adjectivação às edificaçõescristãs em domínio muçulmano, nacontinuação do discurso, José Pessanhareconhece a influência que, nos fins doséculo IX, a “arte do Califado” exercesobre “os principados cristãos do Norte”.Esta “arte moçárabe setentrional dis-tingue-se, todavia”34, conclui.

Aarão de Lacerda, em 1942,aceita de igual modo a denominaçãode moçárabe para a arte cristã cominfluências islâmicas, tanto para a con-

30 Dominique CLÉVENOT, ob. cit.

31 Ver nota 18 supra.

32 D. José PESSANHA, Arquitectura Pré-Românica em Portugal. São Pedro de Balsemão e São Pedro deLourosa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1927.

33 Note-se que esta noção de absoluto isolamento das comunidades cristãs mantidas em territóriode dominação muçulmana está hoje ultrapassada.Assim o afirma Cláudio Torres:“Contradizendo umjustificado isolamento ante as outras igrejas cristãs e ante o papado, sabe-se que no ano de 924 o papaJoão X envia um legado à Espanha muçulmana, onde reconheceu a perfeita ortodoxia e a legitimidadecristã da liturgia visigótica mantida pelos moçárabes.” (Cláudio TORRES, “O Garb-Al-Andaluz”, inHistória de Portugal (dir. José Mattoso), vol. I – “Antes de Portugal”, Círculo de Leitores, 1992, p. 408).

34 D. José PESSANHA, ob. cit., p. 12.

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cretizada no Sul (que considera rude)como para a do Norte (onde reco-nhece uma dignidade monumentalque a afasta da anterior). Não obs-tante, não encontramos neste autorqualquer noção de continuidade entrea arte moçárabe e aquela que lhesucede. Para Aarão de Lacerda, “aarquitectura moçárabe, produto de ummovimento erudito, monástico, teve umavida efémera, pois, extinta a geraçãooriunda do Sul, ela morre reabsorvidapela rusticidade do ambiente”35.

Na obra que Carlos AlbertoFerreira de Almeida dedica à “Arte daAlta Idade Média”, o historiadordesenvolve longamente os aspectosrelativos à arte moçárabe, cuja auto-nomia reconhecida se traduz na atri-buição, no contexto de todo o volu-me, de um capítulo à parte36. Desen-volve, assim, este capítulo em tornoda “arquitectura moçárabe ou da pri-meira reconquista” do Centro e Nortede Portugal, que integra num períodoque vai até ao ano 1000, considerando

o século XI já como um momento,mais do que de empobrecimento dastradições que lhe estão na base, deensaio de novas soluções que pre-param a eclosão do Românico – umaverdadeira “arte pré-românica” ou,recorrendo à classificação de Puig iCadafalch, uma “premier art romanic”37.Carlos Alberto Ferreira de Almeidanão revela qualquer dificuldade emreconhecer aquela arquitectura doactual território português como uma“escola muito própria, bem distinta querda do grupo leonês-toledano quer daoutra da área asturiana”38. Segundo ohistoriador, a arte moçárabe e a artedo repovoamento aproximam-se pelasua fonte comum, em termos sociais ementais. De facto, embora reconhe-cendo a autonomia das duas corren-tes, não considera a existência deargumentos arquitectónicos que im-ponham uma sua separação radical:“unidas por uma mesma mentalidadeanti-islâmica39 e neogoda e por umaespecial monumentalização do coro e

35 Aarão de LACERDA, História da Arte em Portugal, vol. I, Porto, Portucalense Editora, 1942, p. 154.

36 Ver nota 5 supra.

37 J. PUIG I CADAFALCH, Le premier art roman, Paris, 1928.

38 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.104.

39 Esta noção é importante no estudo deste investigador.Ao definir o panorama social que enquadraos desenvolvimentos artísticos a que dedica a análise, Carlos Alberto Ferreira de Almeida fala deuma sociedade marcadamente anti-muçulmana, mas que oscila entre uma necessidade de defesa ede preservação que obriga à formulação de uma concepção negativa do islamismo como religiãodo mal e o inevitável fascínio pela superioridade daquela civilização, o que favorece a abertura àsinovações técnicas e às soluções artísticas de origem islâmica.Trata-se, no fundo, de duas tendênciasque são a razão uma da outra e que constroem a originalidade da arte dita moçárabe.

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do transepto das igrejas, para além deoutras aparentadas soluções espaciais eartísticas.”40 Interessante é, afinal, omodo como, por esta via de enten-dimento, Ferreira de Almeida suavizaa radical oposição que divide osinvestigadores estrangeiros.

Finalmente41, em reflexão recentesobre o que encara ainda como uma“arte sem nome”, Paulo Almeida Fer-nandes recoloca com clareza e sólidaargumentação crítica toda a questãoda arte dita moçárabe, e opta emdefinitivo pela noção abrangente masnão imprecisa ou simplista de uma“arte pré-românica hispânica”, preten-dendo com isto reconhecer a diversi-dade e a heterogeneidade que cons-troem este conjunto artístico, mastambém as suas especificidades. Emlugar de um “aprisionamento” artificialde todas estas manifestações cristãs

concretizadas no Norte peninsularentre os primeiros anos do século Xe a segunda metade do século XInuma fórmula restritiva, estrangula-dora ou idealizada, este investigadorretoma a denominação que encontrá-mos na expressão de Jacques Fon-taine, mas enchendo-a de uma novasignificação, em certa medida até con-trária à do autor francês. De facto,para Paulo Almeida Fernandes, areferida arte é pré-românica apenasem sentido cronológico, pois não é nasua esteira mas sim por oposição aesta (nomeadamente à liturgia queesta serve e representa – a liturgiahispânica) que o Românico se desen-volve em território peninsular42.

Não é, contudo, a diversidade deinfluências conjugadas na arte moçá-rabe o único factor a concorrer paraum questionamento sobre a sua auto-

40 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.96.

41 Nesta análise relativamente abreviada do estado da questão da arte dita moçárabe, não couberamno texto principal alguns investigadores portugueses, limitação que de modo algum pretendesugerir uma sua menor importância, pelo que não poderemos deixar de os referir, nomeadamenteMário BARROCA (“Contribuição para o estudo dos testemunhos pré-românicos de Entre-Douro--e-Minho”, IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, vol. I, Braga, Faculdade de Teologia de Bragada Universidade Católica Portuguesa/Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, 1990, pp. 101-145;“Do Castelo da Reconquista ao Castelo Românico (séc. IX a XII)”, Portugália, Nova Série, vol. X-XI,Porto, Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1990-91, pp. 89--136) e Manuel Luís REAL (“Inovação e resistência: dados recentes sobre a Antiguidade cristã noocidente peninsular”, IV Reunião de arqueologia cristã hispânica (Lisboa, 1992), Barcelona, Institutd’Estudis Catalans/Universitat de Barcelona/Universidade Nova de Lisboa, 1995, pp. 17-68; “OsMoçárabes do Ghab português”, Portugal islâmico (catálogo de exposição), Lisboa, Museu Nacionalde Arqueologia, 1998, pp. 35-56).

42 “Ao contrário do que aconteceu em outras regiões da Europa, onde o Românico sucedeu naturalmenteàs formas autóctones de construir, em solo peninsular instituiu-se como a arte de propaganda dasreformas cluniacense e gregoriana. Neste sentido, foi uma nova arquitectura para uma nova liturgia…”(Paulo Almeida FERNANDES, ob. cit., p. 61).

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nomia.Também a localização dos seustestemunhos remanescentes temcriado dificuldades à compreensão se-gura destas manifestações artísticas eà tentativa de delineamento de umseu percurso, desde a formação àdiluição em novas formas, passandopelo movimento de expansão paraNorte com todas as suas consequên-cias. Com efeito, dos dois mundos quesobre esta arte actuaram apenasaquele outrora cristão manteve con-servados os edifícios ditos moçárabes,facto que se traduz actualmente numaquase absoluta concentração detestemunhos na parte Norte daPenínsula (e alguns em territóriofrancês43), dificultando o entendi-mento da arte moçárabe primordial44.No que se refere ao Sul antes islâ-mico, foram apenas duas, segundoManuel Gómez-Moreno (opinião queé seguida pela maioria dos investiga-dores), as estruturas conservadas: aigreja de Santa Maria de Melque, naregião de Toledo, e a igreja rural deBobastro, nas montanhas de Málaga. Já

em relação ao Norte, vários são,como dissemos, os edifícios conser-vados: San Miguel de Escalada (a su-deste de León, construído em 913),San Cebrián de Mazote (fundado em916), San Millán de la Cogolla eAlbelda (na região de Logroño) e SanJuan de la Peña (Alto Aragão) sãoapenas alguns dos mais comuns nosdiscursos de análise dos investigado-res que sobre a matéria se debruçam.Na verdade, não nos interessa nesteartigo tanto uma apresentação exaus-tiva dos testemunhos identificadoscom a arte moçárabe (pelo menospara o território não português)quanto uma indicação das caracterís-ticas que desde Manuel Gómez-Moreno têm sido consideradas distin-tivas desta arquitectura e, particular-mente, a discussão que tem estadoassociada à pesquisa sobre as origensde cada um desses elementos.

O primeiro de entre eles, atéporque assumido pelo referido inves-tigador como o distintivo básico, é oarco de ferradura, a que todos os

43 A este propósito afirmam Pedro de Palol e Max Hirmer:“Remarquons que depuis Alfonso III le Grand,les églises mozarabes se multiplient, non seulement dans les pays d’Asturie et de Léon, mais aussi dansles territoires qui vont jusqu’à l’ancienne Marche de Catalogne, où Saint-Michel-de-Cuxa nous offre leplus impressionant des bâtiments mozarabes d’esprit cordouan que les vieux pays chrétiens nous aientconservés.” (Pedro PALOL e Max HIRMER, ob. cit., p. 37). Note-se que esta influência moçárabe naCatalunha é relacionada por estes autores com a forte atracção que, em geral, a civilização deCórdova exerceu sobre os conventos catalães desde o começo do século X.

44 Este facto ficou a dever-se à sistemática destruição a que este património foi sendo sujeito, primeiropelos Almorávidas e Almóadas, depois pelos próprios cristãos vindos do Norte e pela importaçãode novos modelos artísticos e culturais como o monaquismo cluniacense.

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autores se reportam. Élie Lambertatribui-o à influência do Islão andaluz,diferenciando-o do da tradição visigó-tica pelas proporções variáveis, pelodescentramento do extradorso relati-vamente ao intradorso e, sobretudo,pelo vulgar enquadramento numrectângulo – o alfiz. Estas são, de resto,as características repetidas nos textossubsequentes a este historiador a fimde distinguir o arco de ferradura deuso na arquitectura visigótica daqueleadoptado nos edifícios moçárabes.Isidro Gonzalo Bango Torviso, contu-do, na sua argumentação a favor dasubstituição da ideia da existência deuma arte moçárabe no Norte pela dacontinuidade da arquitectura astu-riana, vem contrariar a comum asso-ciação daquele elemento à mesquitade Córdova. De acordo com esteinvestigador, o arco de ferradurausado naquela metade da Penínsulanão é o cordovês por vários motivos,mas principalmente pelas proporções,que considera perfeitamente integrá-veis nos limites tradicionais do visigó-tico, e pela decoração nele aplicada. Opróprio efeito do descentramento, dizBango Torviso, pode ser encontradoem monumentos cristãos não espa-nhóis, nomeadamente na arquitectura

lombardo-toscana. De igual modo, osmodilhões de rolos, associados porÉlie Lambert e Chueca Goitia à esté-tica cordovesa, são, segundo o mesmopolémico historiador, de um grandevisigotismo, pois não há, nas construçõesmuçulmanas coetâneas, modilhõesiguais aos moçárabes, nem no tamanho,nem na decoração. As absides deplanta ultrapassada, próximas dosmihrabs, e as abóbadas de nervurassão outros dos elementos presentesna arquitectura moçárabe geralmenteassociados à influência andaluza.Fernando Chueca Goitia conclui: asmarcas do orientalismo brilham emigrejas que, ao nível estrutural, seguemmaioritariamente as normas dasbasílicas latinas e da arte visigótica.

Dirijamo-nos finalmente para oactual território português. Aqui, noque respeita aos testemunhos conser-vados, podemos falar, segundo CarlosAlberto Ferreira de Almeida, dasigrejas de São Frutuoso de Montélios(Braga), que o historiador atribui aosfinais do século IX ou, no máximo, aosinícios do século X, de São Torcato(Guimarães), de São Pedro de Balse-mão (Lamego), de São Gião da Na-zaré e de São Pedro de Lourosa daSerra45, todas estas datáveis do século

45 “Verdadeiro ex-libris da historiografia nacional sobre os tempos moçárabes”, na opinião de CarlosAlberto Ferreira de Almeida, esta igreja é a única de datação relativamente segura, pois nela seencontra uma inscrição datada de 912 (Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.140).

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X. Para além destas, são igualmentereferenciados um mosteiro em Gui-marães, o mosteiro do Cabo de SãoVicente, em Sagres e a igreja de SantaMaria de Faro, estruturas perdidas nocontexto das já faladas destruições.Conclui Carlos Alberto Ferreira deAlmeida, acerca destas obras, quedelas se absorve “a impressão de quehouve nesse período [finais do séculoIX a meados do século X] uma razoá-vel melhoria na vida socioeconómica ecultural das populações cristãs dasáreas do Centro e Norte de Portugal, oque condiz com o que sabemos de ou-tras regiões”46, merecendo neste con-texto particular destaque a cidade deCoimbra, considerada o mais impor-tante foco de moçarabismo nesta re-gião do Ocidente.

Enveredar por um tal caminhodiscursivo, dirigido às transformaçõessociais e económicas desta época pré-

-românica, afastar-nos-ia, contudo, dospropósitos deste artigo, obrigando--nos a considerar questões mais pro-priamente históricas cuja análise nãotem aqui lugar. Limitamo-nos, por isso,a sublinhar a importância, nesta áreados estudos moçárabes, de umaatenção dirigida às particularidades decada região, à sua realidade e evolu-ção próprias, bem como ao esclareci-mento acerca do real papel dascomunidades moçárabes na formaçãode uma cultura e de uma arte par-ticulares47, tendência que tem sidoaquela seguida pela mais recente his-toriografia, de acordo com um desejoque tem de ser o de todos os queinvestigam sobre o moçarabismo deredefinir continuamente os canais deentendimento de uma época ainda aprecisar de um interesse renovado.

Joana Ramôa Melo*

46 Idem, p.145.

47 Este aspecto do peso dos moçárabes imigrados para o Norte da Península na formação da arteaqui desenvolvida nos séculos X e XI é, sem dúvida, fundamental para um futuro esclarecimentoacerca da mais correcta designação a atribuir àquelas manifestações. Afinal, foi neste sentido etendo em conta o papel determinante do poder condal como encomendador e organizador dosterritórios, abrindo caminho, deste modo, à própria instalação das comunidades monásticas, que acorrente historiográfica assente num conceito de arte de época condal se desenvolveu. De qualquermodo, a mesma crítica que não permitiu aceitar a validade de uma tal designação deve orientar-nos na consciência da complexidade de todo o fenómeno que deu origem e serviu de pano defundo a esta arte, e consequentemente da precaução com que uma sua caracterização e classi-ficação definitivas deve ser orientada: a noção de que no processo de repovoamento vários agentesintervêm e de que as relações entre poderes cristão e islâmico apresentam matizes mais ou menospronunciados que algumas perspectivas menos atentas têm tendência a negligenciar.

* Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) – POCTI/EAT/45922/2002 – Imago.