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Perfil de Catarina Aguiar, jovem de 24 anos que há dez foi submetida a um transplante de fígado.
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PERFIL
(Este perfil foi extraído do guião de reportagem “Peças de Vida” sobre transplantação hepática realizado por mim no
âmbito da disciplina de Laboratório de Investigação Jornalística.)
“Vejo o transplante como algo que muda a nossa vida
para melhor.”
Passaram alguns anos desde o tempo em que fazer, na companhia dos pais ou do
namorado, um agradável percurso pelo pontão do passeio marítimo era «como fazer
uma maratona», tal o cansaço que daí advinha, a par da enorme felicidade. Hoje,
enquanto faz, com descontracção, o mesmo caminho, as imagens de histórias antigas
ganham vida e voz. Os passeios recomendados para recuperar a massa muscular «e
a genica» depois do internamento depressa se converteram numa fonte de grande
satisfação para Catarina Aguiar que, aos 24 anos, comemora já o décimo aniversário
de transplantada hepática. «Este foi lugar de grandes passeios...no Inverno, tapadinha
o mais possível do frio, com um solzinho e um ventinho q.b...não pensei que fosse
notar tanto, mas como estou habituada a viver perto do mar, acabei por sentir muita
falta disso quando estive afastada», relembra, com o castanho do olhar perdido no
horizonte.
No horizonte, mais ou menos longínquo, Catarina teve, logo a partir do nascimento, a
necessidade de realizar um transplante de fígado. Uma vida que contava ainda com
menos de 48 horas contava já, de tal forma, com desafios que iam muito além dos
habituais. Com sintomas que, inicialmente, se cingiam ao tom amarelado da pele e
dos olhos, coloridos pela icterícia, depressa se descobriu a existência de um
problema. Depois de muitas análises, entre Portugal e França, para onde o pediatra
português a encaminhou junto com os pais, foi-lhe diagnosticada uma doença rara - o
síndrome de Allagille. Não havia dores mas a icterícia desencadeava «terríveis»
ataques de comichão, que vieram a associar-se a outras complicações como a má
absorção dos alimentos. «Às vezes quase ficava com as unhas limadas de tanto
começar a pele», recorda, olhando-as e dando-as a ver como quem volta atrás, antes
de continuar. «A questão da má absorção dos alimentos era outro problema. Enquanto
as pessoas normais comem uma cenoura, eu, para absorver os mesmos nutrientes,
tinha que comer três ou quatro. Tinha de comer quantidades gigantes para absorver o
mínimo essencial.»
De França veio não apenas o diagnóstico como a indicação da necessidade de uma
dieta extremamente rigorosa. Porém, vieram também os alertas, que se estenderam a
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Portugal, de que era impossível um crescimento normal com uma alimentação tão
restrita.
Catarina diz nunca se ter sentido posta de parte ou negativamente discriminada pelas
diferenças que a distinguiam das outras crianças da mesma idade. Desde sempre
compreendeu o que tinha, desde cedo entendeu que, se não fosse assim, ficaria pior
e, também desde cedo, os colegas, não obrigados a crescer tão depressa,
aprenderam que assim deveria ser. «A ideia que tenho de estar à mesa do infantário é
a de ver as freiras servirem a sopa e o prato principal a toda a gente, enquanto eu só
podia comer a fruta. Levava um termo com a minha comida. Era a única altura em que
realmente me sentia diferente dos outros miúdos e eles também acabaram por se
habituar, porque andámos juntos muitos anos. Mas nunca me senti posta de parte.»
As perguntas eram escassas mas, quando existiam, a resposta era natural. Dada com
a inocência de uma maturidade hoje claramente observável e que já então se ia
cimentando. «Eu dizia que tinha um problema de fígado e se comesse aquilo ia fazer-
me mal, ia ficar mal-disposta.» Por vezes, tinha até honras especiais. «Nas festas, por
exemplo, os pais dos meus colegas faziam sempre gelatina, porque era das poucas
coisas doces que eu podia comer. Era conhecida como "a menina da gelatina" e comi
tanta que hoje não consigo sequer ver gelatina à frente!», revela, entre risos e boa
disposição.
Apesar dos esforços, o forte controlo da alimentação e os inúmeros medicamentos
eram somente uma forma de adiar o curso dos acontecimentos que, já se sabia, iam
acabar por desenrolar-se, visto ser «impossível viver assim eternamente». Aos 14
anos, o transplante, inadiável, chegou, como o ponto de partida para uma vida com
muito mais qualidade. Chegou num momento limite, quando o fígado começara já a
fazer uma cirrose.
Sem muitas memórias, Catarina lembra com o pormenor de uma mente jovem, cuja
consciência da realidade era ainda muito ténue, uma consulta no Hospital Pediátrico
de Coimbra. A consulta na qual os pais ficaram a saber que o transplante poderia ser
feito em Portugal e não obrigatoriamente em França, como ponderavam e para cuja
autorização ali se haviam deslocado. Convencidos, era ali mesmo que tudo haveria de
ter lugar. Entretanto, Catarina, ocasionalmente apelidada de "amarelinha" pelos
colegas e professores do 6º ano, observava com irritação o friso da parede, de uma
cor com a qual a relação não era simpática. «Só me lembro de chegar lá, sentar-me e
olhar para o Prof. Linhares Furtado. Com óculos, cabelo branco e uma bata. Lembro-
me, essencialmente, que o friso da parede era amarelo, que era uma coisa que eu
odiava! Já tudo me parecia amarelo!», conta, divertida. «Então ele pediu-me para lhe
mostrar a barriga e só disse: "Ah, sim, é simples, já te podes ir sentar". E eu, com
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pouca noção das coisas, acreditei naquilo e acreditei que não valia a pena estar
preocupada. Portanto, desliguei do resto da conversa.»
Nunca teve medo. Provavelmente, a visão doce da juventude terá contribuído para a
involuntária coragem. "Que alternativa é que eu tinha? Não tinha... e eu era tão nova.
Basicamente, o que eu sabia era que me iam tirar o fígado velho e pôr um novo. Para
mim aquilo devia ser mais ou menos como os legos. Tira-se uma peça, põe-se outra e
já está."
Com a mesma facilidade com que as peças de lego se completam entre si, o
transplante estava feito. O mais difícil, viria, porém, com o processo de recuperação
pós-transplante. «Não fazia a mínima ideia de como aquilo seria. Eu achava que em
meia dúzia de dias estava despachada e ia à minha vida. Mas não foi assim». O
Hospital Pediátrico de Coimbra tornou-se a segunda casa, por uns tempos a primeira,
e o cenário do amadurecimento. «A sensação que eu tenho é que acabamos por ficar
habituados ao Hospital, porque sentimos que ali há todas as condições para sermos
tratados se alguma coisa correr menos bem.»
O tédio era combatido com a televisão, gentilmente colocada no quarto da ala
pediátrica, onde os filmes a horas tardias dificultavam o acordar na manhã seguinte.
«Eu via filmes e a minha mãe fazia os puzzles que me davam. Nunca gostei daquilo!»
Sempre obediente, Catarina seguia à risca a toma da medicação e não reclamava do
soro ou dos incómodos cateteres. A coragem estendia-se, também, a todos esses
processos. «Nada disso me fazia grande impressão. Era normal para mim. Não acho
que devamos pôr em causa aquilo que os médicos e enfermeiros dizem, não faz
sentido. Portanto, eles iam explicando o que iam fazer e eu confiava.»
A confiança estendia-se aos pais, suporte de aço para Catarina, forças e companhias
inabaláveis e constantemente presentes. «Para quem estava mais desapoiado, longe
dos pais, longe da família, qualquer má notícia pesava mais. O facto de eles estarem
sempre ali ajudava muito. O meu pai nunca saía de ao pé de mim, fazia muitas
palhaçadas e divertia-me. No Hospital Pediátrico senti que precisava mesmo muito do
apoio deles.»
Esse apoio foi-lhe dado, sem cessar. O optimismo também nunca cessou, pautando a
cadência dos dias, mesmo os que mais demoravam a passar e aparentavam nunca ter
fim. Independentemente de pequenas quebras, Catarina manteve-se firme. «Houve só
uma vez em que me lembro de ter acordado muito mal-disposta, passei o dia inteiro a
chorar, achava que estava tudo contra a mim. Toda a gente estranhou muito não me
ver a rir. Mas no dia a seguir já estava com o astral completamente renovado!»
Ainda assim, não havia permissão para que a tristeza durasse muito. A própria equipa
hospitalar empenhava-se na concessão de pequenos mimos que alegrassem o dia de
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quem por lá se encontrava. «Às vezes, até nos deixavam encomendar umas pizzas! A
certa altura aquilo já não era um hospital, era um hotel. E eles não eram médicos ou
enfermeiros, eram amigos», conta, com um carinho notório espelhado nas palavras.
Ao fim de seis anos de transplante, ultrapassada já a barreira de tempo definida como
assinalando o período mais sensível, um novo obstáculo se ergueu no horizonte de
Catarina, que parecia naquele momento tão azul como o que se desenha à nossa
frente, nos movimentos efémeros das ondas do mar desfeitas em espuma.
Num dia como qualquer outro, apercebeu-se de que algo não estaria bem. A
comichão voltou, confundida com que lhe era commumente provocada pelos pêlos dos
cães e gatos de Daniel, o namorado, mas a tonalidade amarelada dos olhos não
deixou margem para manobras e conduziu-a ao internamento no Hospital Curry
Cabral, em Lisboa. Uma biópsia inconclusiva e entraves colocados pelos médicos à
concessão dos resultados das análises levaram-na, de novo, a casa e, depois, à
segunda casa - Coimbra. Nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde tornou a
ser internada, foi-lhe então diagnosticada uma rejeição severa. «Disseram-me que
havia várias formas de se contornar o problema e iniciei os tratamentos mas ao fim de
alguns meses os resultados das análises não apresentavam melhoras e, por isso,
colocaram-me em lista para retransplante. Comecei a piorar, enviaram um alerta para
o país e o primeiro fígado que aparecesse era para mim.»
Mas o destino trocou-lhe as voltas. «Houve uma tarde em que as enfermeiras
chegaram ao meu quarto e disseram que eu não podia lanchar, mas não me queriam
explicar porquê. Eu reparei nas movimentações e perguntei: "Então porquê? Por
acaso há por aí um fígado, é?"». Catarina estava certa, mas uma inflamação no
pâncreas detectada quando estava já preparada para entrar no bloco operatório
impossibilitou a marcada intervenção. Na sequência da pancreatite, os valores das
análises melhoraram. «Sem se entender muito bem porquê, provavelmente da fome
que passei nessa altura [risos], fui começando a recuperar. Tiraram-me da lista de
SOS e da lista para retransplante e acabei por não voltar a ser transplantada.»
De regresso à beira-mar que tantas saudades lhe trazia ao coração, Catarina vive hoje
com total normalidade, excepção feita aos ligeiros mas indispensáveis cuidados que a
condição lhe exige. «Se vejo alguém a espirrar na mesa ao lado, sento-me duas
mesas ao lado. Ando sempre com o casaco quando saio de casa, mesmo no Verão.
Faço umas figuras um bocado parvas! [risos] Mas tenho um quotidiano normalíssimo.
Acordo de manhã, tomo os medicamentos e pronto, está feito!», explica, sem deixar
espaço a dúvidas.
Sonhos, teve muitos. Os objectivos, esses, são perseguidos diariamente com o afinco
de quem não desiste nunca. Talvez influenciada pela genética, Catarina ganhou do pai
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o gosto pelo desporto e pelo exercício. Fez ginástica até aos 10 anos e confessa, feliz,
ser ainda "capaz de fazer um pino com a maior facilidade, apesar de, com muita pena,
já estar um bocadinho ferrujenta!» Do lado da mãe, médica, e da experiência de vida
que carrega na mala da memória, bem maior do que aquela que hoje traz pelo braço
enquanto as ondas vêm e vão, veio o gosto pela medicina e pela saúde. Quando era
pequena, sonhava ser professora de educação física, mesmo quando lhe recordavam
que «não tinha saúde para tirar um curso desses». Depois do transplante, nasceu-lhe
o desejo de ser enfermeira. No entretanto, acabou por tirar um curso de Gestão e
Administração, estando actualmente a fazer um mestrado em Marketing, no ISCTE.
Assim, diz Catarina, só conseguiu vantagens. Afinal de contas, «tanto a gestão como o
marketing podem ser aplicados a tudo aquilo que se quiser... desde farmacêuticas à
educação física, passando pela saúde e pela gestão hospitalar. A pediatra de Coimbra
diz que, com estas voltas todas, ainda vou acabar a gerir um Hospital! [risos]»
Por agora, a ambição principal é terminar a tese e trabalhar «no que aparecer para
juntar um pé de meia e depois investir naquilo que quiser».
Em simultâneo, ocupa o cargo de vice-presidente da Hepaturix, associação de apoio
às crianças e jovens transplantados hepáticos ou em vias de o ser e aos respectivos
familiares. Segundo Catarina, o desejo de se associar partiu da noção que adquiriu, ao
longo de anos em contacto com hospitais, outros doentes e outras famílias de que a
informação disseminada é, ainda, pouca para tantas dúvidas e receios. «Assim,
podem partilhar-se experiências e ideias e, no fundo, ajudar outros pais e pessoas que
estejam a passar pelo mesmo por que nós já passámos ou até a passar por situações
pelas quais não passámos e com as quais possamos aprender.», esclarece, afirmando
que «as pessoas estão ainda muito mal informadas, daí eu achar que é fundamental
haver um contacto mais pessoal. É o que nós fazemos na Hepaturix.»
Hoje, não tem qualquer problema em falar do que lhe aconteceu: «Não sou daquelas
pessoas que preferem esquecer que são transplantadas. E não me importo nada de
falar no assunto. Pelo contrário!». Diz ter aprendido que o mais importante é acreditar.
Ter esperança, ter confiança e não desistir de uma postura positiva. Mas não o diz por
dizer: baseia-se na sua história e nas histórias de quem conhece. «Dá-se sempre uma
reviravolta qualquer que altera completamente o rumo dos acontecimentos. Há sempre
uma maneira de dar a volta por cima. É essencial as pessoas não duvidarem de que
isso é possível.»
Lamentar, por seu lado, não tem qualquer utilidade. O caminho faz-se caminhando,
cumprindo o que é necessário cumprir e sem dramatizar. «Não percebo porque é que
se dramatiza tanto. Ai, coitadinho, é transplantado. Coitadinho porquê? Em que é que
isso é mau? Desde que se tenham os devidos cuidados pode fazer-se uma vida
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perfeitamente normal... A mim faz-me muito mais confusão pessoas em cadeiras de
rodas a tentarem andar por Lisboa nos passeios cheios de carros. Isso sim é um
problema», atira, com convicção.
O passeio aproxima-se do seu final, à medida que a hora de almoço se aproxima dos
ponteiros do relógio e a fome começa a apertar. Hoje, sem restrições. Sem reservas,
admite que o que apetecia mesmo era um almoço num restaurante italiano onde
saboreasse as tão amadas massas, agora que Catarina tem vindo a conhecer «os
pequenos prazeres da culinária».
Perdida entre uma e outra gargalhada, uma ideia apenas fica retida no pensamento,
enquanto o dia avança. «Eu vejo o transplante como uma coisa que muda a nossa
vida para melhor. A sensação que tenho é que sou uma pessoa como outra qualquer.
É assim que me sinto. E sinto-me bem.»
TEXTO: Catarina Ferreira