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84 I éPOCA I 16 de junho de 2014 o ato da inscrição, o aviso é cla- ro. Você pode morrer ao parti- cipar da competição. Por isso, os organizadores decidiram ser explícitos no documento por escrito: “Há risco de morte por afogamento, por ferimentos causados por calor e por frio, por fe- rimentos causados por veículos, por mordidas e ferrões de animais, por ata- que cardíaco e por envenenamento”. Há outros riscos. O documento lista apenas os mais importantes. O corredor precisa assinar embaixo deles antes de partici- par das novas modalidades de corridas de obstáculos, que viraram febre lá fora e já chegaram ao Brasil. Essas corridas em nada lembram o esporte olímpico com corredores atlé- ticos pulando cavaletes brancos, num ginásio bem organizado. O número de obstáculos é maior: pode chegar a cen- tenas. A variedade também aumenta. No lugar de cavaletes brancos, há cam- po de arame farpado, piscina de gelo, cortina de fios elétricos, muros altos e chão em chamas. Como em qualquer N corrida, o objetivo é chegar na frente (e vivo). A maior parte dos corredores fica feliz apenas por finalizar o percurso. Há pouco mais de cinco anos, esse es- porte era desconhecido. A primeira cor- rida do gênero foi criada na Inglaterra, em 1987, a Tough Guy. Foi considerada uma gincana excêntrica por mais de 15 anos, quando surgiram concorrentes. A maior delas, a Spartan Race, surgiu em 2005 e hoje está em 14 países. O Wall Street Journal conta 250 empresas de corridas desse tipo no mundo. Spartan Race, Tough Murdder e Warrior Dash são as maiores. Cada uma promove vá- rias provas em diferentes lugares. No Brasil, três empresas entraram em ope- ração no fim do ano passado: Xtreme Race, Iron Race e Black Trunk Race. Há vários tamanhos de competição. De maratonas com 42 quilômetros de extensão a corridas de 5 quilômetros. Todas têm em comum os obstáculos. O objetivo é fazer o corredor desistir. Na Tough Guy, dois terços dos 7 mil corredores que iniciam cada prova a s As corridas com obstáculos como arame farpado, fogo e fios elétricos atraem milhares de competidores no mundo – e matam alguns Flavia Yuri e Felipe Germano 1 4 7 8 FRONTEIRAS DA AVENTURA VIDA VENCE QUEM SOBREVIVE Fotos: Steven Todd/Stockpix.eu/Other Images, Sergei Bachlakov/Xinhua Press/Corbis, Ian Walton/ Getty Images, Michael Regan/Getty Images, Michael Regan/Getty Images,Alistair Linford/REX

Vence quem sobrevive

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Publicado na Revista Época, texto fala sobre corridas como a Spartan Race, que colocam obstáculos com fogo gelo e eletricidade, em meio a corridas que podem ultrapassar os 42 quilômetros de distância.

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o ato da inscrição, o aviso é cla-ro. Você pode morrer ao parti-cipar da competição. Por isso, os

organizadores decidiram ser explícitosno documento por escrito:“Há risco demorte por afogamento, por ferimentoscausados por calor e por frio, por fe-rimentos causados por veículos, pormordidas e ferrões de animais, por ata-que cardíaco e por envenenamento”. Háoutros riscos. O documento lista apenasos mais importantes. O corredor precisaassinar embaixo deles antes de partici-par das novas modalidades de corridasde obstáculos, que viraram febre lá forae já chegaram ao Brasil.

Essas corridas em nada lembram oesporte olímpico com corredores atlé-ticos pulando cavaletes brancos, numginásio bem organizado. O número deobstáculos é maior: pode chegar a cen-tenas. A variedade também aumenta.No lugar de cavaletes brancos, há cam-po de arame farpado, piscina de gelo,cortina de fios elétricos, muros altos echão em chamas. Como em qualquer

N corrida, o objetivo é chegar na frente(e vivo). A maior parte dos corredoresfica feliz apenas por finalizar o percurso.

Há pouco mais de cinco anos, esse es-porte era desconhecido.A primeira cor-rida do gênero foi criada na Inglaterra,em 1987, a Tough Guy. Foi consideradauma gincana excêntrica por mais de 15anos, quando surgiram concorrentes. Amaior delas, a Spartan Race, surgiu em2005 e hoje está em 14 países. O WallStreet Journal conta 250 empresas decorridas desse tipo no mundo. SpartanRace, Tough Murdder e Warrior Dashsão as maiores. Cada uma promove vá-rias provas em diferentes lugares. NoBrasil, três empresas entraram em ope-ração no fim do ano passado: XtremeRace, Iron Race e Black Trunk Race.

Há vários tamanhos de competição.De maratonas com 42 quilômetros deextensão a corridas de 5 quilômetros.Todas têm em comum os obstáculos.O objetivo é fazer o corredor desistir.Na Tough Guy, dois terços dos 7 milcorredores que iniciam cada prova a s

As corridas com obstáculos como aramefarpado, fogo e fios elétricos atraem milhares de

competidores no mundo – e matam algunsFlavia Yuri e Felipe Germano

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fronteiras da aventuraVIDA

Vence quem

sobrevive

Fotos: Steven Todd/Stockpix.eu/Other Images, Sergei Bachlakov/Xinhua Press/Corbis, Ian Walton/Getty Images, Michael Regan/Getty Images, Michael Regan/Getty Images,Alistair Linford/REX

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sem medo de sofrerfotos feitas pelos próprios atletasmostram as dificuldades das provas.1. Cortina de choques elétricos2. arremesso de lanças 3. mergulhoem alçapão de lama 4. Corridade 4 km com cruzes 5. salto sobrechamas 6. Queda na lama 7. Piscinade gelo 8. Campo de arame farpado9. Pirâmide humana 10. Competiçãona água 11. saltos em plataformasmóveis

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abandonam antes do fim. As premia-ções da maioria são simbólicas. Poucas,como a Spartan Race, pagam em dinhei-ro. O prêmio máximo pago até hoje foide US$ 15 mil.

O perfil dos competidores variatanto em idade quanto em ramo deatividade. Há profissionais de todos osramos, adeptos ou não de atividadesfísicas. Muitos eram sedentários até terde se preparar para a corrida. A maioriados corredores são homens. Curiosa-mente, o ranking geral da prova maisdisputada, a Spartan Race, é lideradopor uma mulher, a americana AprilDee. April é veterana de guerra e temapenas um problema com os homenscom que compete: “São muito largos.Tenho de pedir licença para ultrapas-sá-los”. A mais velha das duas filhas deApril, Leilani, de 10 anos, diz que sejuntará à mãe nas provas em breve. Al-gumas corridas permitem participantesa partir de 14 anos, com autorizaçãodos pais. April diz que deixará.

Quem vê o estado dos participantesque terminam as competições e conhe-ce o histórico das corridas não entendepor que alguém se submete a esse tipode desafio. Seis pessoas já morreramnessas corridas entre 2000 e 2012, naInglaterra e nos Estados Unidos. Algunspor afogamento, outros por ataque car-díaco e até por exaustão. Apesar disso,a quantidade de corredores só aumentano mundo todo.

Questionados sobre o que os atraipara uma roubada dessa dimensão, aresposta mais comum é o bem-estarcom a sensação de superação. Os parti-cipantes entoam uma espécie de mantra:só é possível conhecer os próprios limi-tes ao ir além deles. É também um jeitode as empresas venderem a competição.“Não é só uma corrida. É um caminhopara se tornar uma pessoa melhor”, dizJoseph Desena, da Spartan Race. “En-frentamos nossos demônios durante acorrida. Isso muda sua vida”, afirma aatleta April. Há maneiras mais filosóficasde encarar as provas. “A corrida é umametáfora para a vida, que é, também,uma sucessão de obstáculos”, afirma obrasileiro Marcelo Gleiser, professor defísica e astronomia na Universidade deDartmouth, nos EUA. “Sou mais felizdepois que comecei a competir nelas.”

fronteiras da aventura

Os desafiosda corridaAlguns dos obstáculosmais comuns eperigosos das provas

Piscina de aramesPoça grande de lama

coberta por aramefarpado. É preciso se

arrastar rente ao chãopara não se ferir

Corrida de torasÉ preciso cortar

e carregar grandestoras de madeira.

A atividade pode serindividual ou em grupo

Pirâmide humanauma pirâmide humana éformada para chegar aotopo do muro. quando amaioria está em cima, énecessário puxar os que

restaram embaixo

Natação sem aruma piscina de 20 m é

coberta com uma gradee deixa poucos

centímetros paraos participantes

respirarem

Muro em chamasO objetivo é pular um

muro de 1,20 m com umabarreira de fogo na parte

de cima. O corredorcai numa piscina

de lama

AFOGAMEnTO

FRATuRAS

QuEIMAduRA

CORTES

dECEPAMEnTO

ChOQuE ELéTRICO

hIPOTERMIA

Os risCOs de Cada desafiO

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Os que encaram as provas comodesafios físicos gostam da quebra damonotonia em relação às outras com-petições. “As corridas de obstáculostestam nossa capacidade de forma cria-tiva”, afirma Angélica Martins Jensen,empresária de São Paulo. Ela participadas provas da Xtreme Race, uma dascorridas brasileiras. O corredor e trei-nador brasileiro Cesar Curti descrevea variedade de terrenos. “Uma corridaocorreu no campo de treinamento doExército. Outra, num parque aquático.Nunca sabemos o que nos aguarda”, diz.Curti venceu o reality show americanoThe amazing race, em que duplas pas-sam por várias provas numa corridaque atravessa países.

Diante das mortes de alguns com-petidores e das lesões de outros, osmédicos alertam para os perigos desseesporte. Cortes e escoriações, no piqueda adrenalina, podem passar desperce-bidos. Inflamam se passarem muitashoras expostos. Há corridas com dura-ção de 24 horas a quatro dias. Há riscosmais graves. Um deles é conhecido dosatletas de triatlo. É conhecido comorabdomiólise, lesão muscular causadapelo desgaste excessivo que pode levarà morte. “O tempo da prova expõe oscompetidores a alta taxa de degene-ração muscular. A destruição celularé tão grande que o rim não conseguefiltrar o sangue e pode parar de fun-cionar”, afirma Ricardo Munir, diretorda Sociedade Brasileira de Medicina doExercício e do Esporte.

O cansaço extremo também podeacirrar problemas de saúde já exis-tentes. “Doenças latentes, que nor-malmente não apareceriam, podem sedesenvolver quando o corpo é levadoao limite extremo do desgaste”, afirmaMunir. Qualquer paciente de doençaspreexistentes, como cardíacos e diabé-ticos, deve conversar com seus médi-cos. Para os diabéticos, é um desafioequilibrar os níveis de insulina duranteexercícios que consomem muita glicose,por tempo prolongado. Injetar insulinanas coxas (uma prática comum) podeser perigoso. A absorção nessa área émais rápida numa corrida, e isso podecausar hipoglicemia. Os riscos que essescorredores enfrentam não são apenasexternos. Podem ser letais. u

Por cima e por baixoSérie de paredes que

obriga o corredor arastejar, pular e transpor

aberturas no meio doobstáculo

Muro escorregadioA favorita do criador daSpartan Race, Joseph

Desena. É a escalada comcordas de uma parede

escorregadia

escorregadorem chamas

O participante deslizanum escorregador que

termina em chamase cai numa vala funda

de lama

Mergulho no geloSó completa a travessiaquem nada e mergulha

numa piscina cheiade gelo

Piscina elétricaOs competidores têm

de rastejar por umasuperfície de lama,para desviar de fios

eletrificados, penduradosa poucos centímetros

Fotos: Glow Images, Bruce Bennett/Getty Images, Sergei Bachlakov/Xinhua Press/Corbis, picture alliance/StockPix/Other Images, InS news Agency Ltd./REX/Glow Images e picture alliance/StockPix/Other Images

Ilustração: Samuel Rodrigues/éPOCA

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