Vendo o Passado

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    11Anais do Museu Paulista. So Paulo.N.Sr. v.15. n.2. p. 11-30. jul- dez. 2007.

    Vendo o passado: representaoe escrita da histria

    Manoel Luiz Salgado Guimares1

    RESUMO: Vivemos uma conjuntura paradoxal: um significativo aumento na capacidade tcnicade arquivamento e armazenamento do passado e a experimentao de uma velocidade dotempo que parece limitar esse mesmo arquivamento dos eventos e experincias vividas. Se oprprio presente quer fazer-se passado, sobretudo pela escrita com imagens, como construirsobre ele um conhecimento que se fundou exatamente no pressuposto de que passado epresente se constituiriam em duas ordens temporais radicalmente diversas e distintas,demandando o tempo como condio necessria de transformao de eventos e experinciasem passado. O presente artigo pretende investigar algumas das estratgias contemporneasde dar visibilidade ao passado, compreendendo-as como parte de um esforo social de

    culturalizao do tempo.PALAVRAS-CHAVE: Cultura visual. Histria e Imagem. Patrimnio. Memria.

    ABSTRACT: We are caught in a paradox. On the one hand, our technical capabilities forarchiving and preserving the past have improved significantly; on the other, the swift pace ofmodern life seems to limit that selfsame capacity to register past events and experiences. If thepresent presses on to make itself past, particularly through writing with images, how can webuild upon it a body of knowledge that is precisely grounded in the assumption that past and

    present are two radically different and separate dimensions of time, requiring time to turnevents and experiences into history? The intent of this paper is to look into some of the currentstrategies used to lend visibility to the past as part of a social effort to transform time intoculture.KEYWORDS: Visual Culture. History and Imagery. Heritage. Memory.

    1. Professor Associado daUniversidade Federal do Rio

    de Janeiro / Instituto de Filo-

    sofia e Cincias Sociais, Lar-go de So Francisco 1,2 an-

    dar, Centro,20050-070, Riode Janeiro RJ,lecionandoTeoria,Metodologia da His-

    tria e Historiografia. Profes-

    sor Adjunto da UniversidadeEstadual do Rio de Janeiro,

    lecionando Histria Moder-

    na. Pesquisador do CEO/PRONEX CNPq/FAPERJ. E-

    mail:

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    Pour savoir il faut simaginer

    Georges Didi-Huberman

    Notas sobre o presente do passado: vendo o passado como patrimnio

    Tornou-se lugar comum a afirmao de que vivemos em um tempomarcado pela fora das imagens e da viso como um dos sentidos fundamentaispara apreenso e decodificao do mundo que nos cerca; somos constitudos

    por uma cultura oculocntrica, que, transformada a partir do Renascimento,adquiriu a centralidade em nossa contemporaneidade. A pergunta formuladapor Franois Hartog2 em seu recente trabalho parece indicar o cerne da questoa ser investigada em nossa conjuntura historiogrfica de final do sculo e comeode um novo. O que ver, quando parece que podemos tudo ver em vir tude dosmeios postos a servio da escrita da histria? Como refletir acerca dessa complexarelao entre o visvel e o invisvel, que est na raiz mesma do trabalho dohistoriador, quando os meios de visibilidade do passado parecem infinitamente

    alargados pela capacidade tcnica de arquivamento do passado? Se, comoafirma Didier-Huberman, o saber est intrinsecamente ligado capacidade deimaginar-se, portanto, de criarem-se imagens que apelam ao sentido da viso,o saber a respeito do passado, na forma de um conhecimento acadmicoespecfico assim como nas diferenciadas formas de demanda das sociedadescontemporneas em torno deste conhecimento3, suporia igualmente uma relaoimportante com o mundo das imagens, com a capacidade de representar opassado atravs de figuras, com o olho associado escrita. Estaramos nos

    aproximando do sonho de uma escrita da histria mais prxima de umatotalizao, em virtude dessas infinitas e sofisticadas capacidades de produodo passado em arquivos?

    importante termos claro que, no caso do trabalho do historiador,essa relao entre o visvel e o invisvel parece revestir-se de uma peculiaridade,pois no se trata apenas de imaginar e visualizar o passado como algo irreal,fora da realidade presente experincia sensorial, mas como algo anterior aonosso tempo, o que configura, portanto, uma especificidade a este ausente a

    ser visualizado: o de ser anterior ao nosso tempo e que, por isso, mantm comele certas relaes4. Esta discusso implica necessariamente um cuidado, nosentido de precisar os termos com que operamos, que se torna evidente j nadefinio do que seria a visualizao do passado, implicada tanto numa narrativaescrita sobre eventos pretritos (que supe do leitor uma imaginao do queest sendo narrado) como tambm num projeto de patrimonializao dessemesmo passado em instituies que do suporte a esta visualizao como, porexemplo, os museus.

    Nesse sentido, as observaes de Ulpiano Bezerra de Meneses5

    constituem-se em indicaes preciosas para este trabalho de preciso dos termosa serem operados. Visando a ir alm de uma perspectiva apenas documentalista

    12 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    2.Cf. Franois Hartog (2005,

    p.15).

    3.Tomo aqui as sugestes de

    Beatriz Sarlo:a distino pro-

    posta pela autora entre umahistria de circulao massi-

    va e uma histr ia de corteacadmico. Ainda podera-

    mos acrescentar uma hist-

    ria com finalidades pedag-gicas,matria de ensino das

    escolas e objeto de polticas

    pblicas. Esta distino, preciso lembrar com a auto-

    ra, no significa uma hierar-

    quizao em termos de qua-

    lidade ou veracidade do que produzido,mas indica regi-

    mes distintos de produodo passado ou de passados.

    Indica que,num dos regimes,

    a noo de testemunho setorna central,uma vez que as-

    sentada na imediatez da voz

    e do corpo,que parecem as-segurar maior credibilidade

    ao que falado ou escrito

    acerca do passado. J parauma histria concebida co-

    mo conhecimento especiali-

    zado do passado, compreen-der se coloca como tarefa

    central, mais at do que re-

    cordar, ainda que,como noslembra Sarlo, para entender

    tambm preciso recordar

    (SARLO,2005,p. 26).

    4.Paul Ricouer (2000,p.306).

    5.Ver especialmente Ulpiano

    Bezerra de Meneses (2003);e, do mesmo autor,Rumo auma histria visual(2005).Consultar tambm,em Paulo

    Knauss,a importante anlise

    da produo sobre Cultura Vi-sual.

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    da imagem largamente conhecida pelos historiadores de ofcio e que, narealidade, tem no modelo da fonte escrita, definida segundo os cnones dadisciplina no sculo XIX, sua fonte de inspirao , Bezerra de Meneses nos

    adverte para a importncia de diferenciar trs ordens de questes ao enforcarmoso problema das imagens e seu tratamento pela histria: a dimenso do visual,a do visvel e a da viso, articuladas em feixe e procedimento enriquecedorpara o tratamento dessa dimenso da experincia social. A tambm encontramosoutra sugesto importante e complexificadora do trabalho do historiador com ouniverso das imagens, que deixaria de ser visto apenas como fonte para a histriaa ser narrada, e ganharia a dimenso de uma experincia social particular e,como tal, dotada de historicidade. Isso significa assumir que a imagem no

    pode ser tratada apenas a partir de sua dimenso documental, fonte deinformaes para a pesquisa. Assim como o texto literrio, a imagem no seesgota como documentao, o que significaria trat-la segundo os procedimentosque a crtica histrica definiu para as fontes escritas, perdendo, dessa forma,sua dimenso de criao que permite a experimentao, sob determinadascondies, de uma experincia do passado6. Ao tratar a dimenso do visual,segundo as indicaes de Bezerra de Meneses, caberia um inventrio dascondies tcnicas, sociais e culturais de produo, circulao, consumo eao dos recursos e produtos visuais7, assim como das instituies que dosuporte aos sistemas visuais e que so tambm produtoras de narrativas sobre opassado a partir dessas imagens. O visvel e o invisvel, na proposta de Bezerrade Meneses, articulam-se a partir da dimenso do poder, daquilo que torna algovisvel ou no; e, neste sentido, aproxima-se daquilo que, a partir de Certeau,poderamos entender como constituinte de uma operao histrica. Uma operaoque tornaria articulvel uma certa visibilidade do passado, atravs deprocedimentos de dar viso, e que, no mesmo movimento, produziria o seuoposto: o invisvel. Finalmente, a viso aponta na direo de um sujeito que v;e das tcnicas e modalidades do ver, supondo, portanto, uma ancoragem notempo. Esse sujeito que v , ao mesmo tempo, produto da histria e lugar apartir do qual certas prticas so articuladas.

    Vivemos, igualmente, um tempo em que a fora dos investimentossociais nas tarefas de memria ganharam grande visibilidade em nossassociedades contemporneas: quer pensemos nas tarefas de patrimonializao emusealizao do passado, objeto de polticas pblicas do Estado e mesmo deorganizaes internacionais como a Unesco, quer consideremos, tambm, aquelasvoltadas para a sua visualizao atravs dos meios de comunicao de massa.Revistas de larga tiragem, vendidas em bancas de jornal, e sries televisivasdisponibilizam aos consumidores de imagem de nosso tempo uma gama depassados desejados por um presente que se apresenta cada vez mais com maiorfora. Na esteira daquilo que se convencionou chamar de dever de memria e como parte dos desdobramentos de experincias traumticas como a do

    holocausto , entramos num tempo em que nossa relao com o passado vem sealterando de maneira significativa. preciso, no entanto, estarmos atentos parao fato de que mais lembrana, como parte das demandas de nossa

    13Annals of Museu Paulista. v. 15. n.2. July -Dez. 2007.

    6.As sugestes de Wolfgang

    Iser,formuladas para o trata-

    mento dos textos literrios,livrando-os de uma aborda-

    gem meramente documen-

    tal ou a partir de sua estritareferencialidade, pode con-

    tribuir para esta discusso

    no campo da abordagem das

    imagens pelo historiador(ISER,1996,esp. p.39-40).

    7.Cf. Meneses (2003,p. 1).

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    contemporaneidade, no implica necessariamente em mais conhecimento dopassado e, muito menos, em uma compreenso crtica dessas experinciaspretritas. preciso ter claro que lembrana e esquecimento caminham juntos,

    como processos ativos e necessrios vida social, e que a escrita pode ser aforma mais rpida para o fcil esquecimento8. Vivemos aquilo que AndreasHuyssen9, de maneira to aguda, denomina a seduo pela memria, um tempoem que nossas sociedades vivem uma verdadeira inflao de memria,acompanhada por uma monumentalizao das formas de relao com o passado.A seduo, que na formulao conceitual freudiana vincula-se recordao decenas vividas ou imaginadas, supe, portanto, uma centralidade da lembrana eseus mecanismos de constituio de sujeitos. No caso da sugesto de Andreas

    Huyssen, como se vivssemos sob o imperativo da recordao, prisioneiros danecessidade de sempre e de tudo lembrar. Este imperativo nos leva compulsopor arquivos e tarefas de arquivamento, esquecendo-nos, como alis bem noslembra Elisabeth Roudinesco10, de que se tudo est arquivado, anotado, controladoe vigiado, a histria como criao no mais possvel, transformando-se o passadoem espelho do prprio arquivo, transmutado em lugar da verdade, reificado ede-historicizado. O arquivo perde sua dimenso de escritura e, portanto, suaforma simblica e necessariamente histrica de significao das experinciashumanas. Perdendo-a a dimenso de escritura , perde com isso sua condiode permitir o acesso imaginao do passado como forma de evocar experinciasvividas por outras sociedades em outros tempos; em outras palavras, tornar oinvisvel, visvel para os homens de outros tempos e outros lugares.

    Vivemos uma conjuntura paradoxal: um significativo aumento nacapacidade tcnica de arquivamento e armazenamento do passado e aexperimentao de uma velocidade do tempo que parece limitar esse mesmoarquivamento dos eventos e experincias vividas. Se o prprio presente querfazer-se passado, sobretudo pela escrita com imagens, como construir sobre eleum conhecimento que se fundou exatamente no pressuposto de que passado epresente se constituiriam em duas ordens temporais radicalmente diversas edistintas, demandando o tempo como condio necessria de transformaode eventos e experincias em passado. Caberia igualmente interrogarmo-nosacerca dessa ordem particular do tempo, que nos impe a necessidade deproduo de mltiplas e diversificadas narrativas do passado, abrindo um enormeespao para sua produo atravs das inmeras possibilidades imagticas: aproduo miditica que, a cada vez, parece tornar o passado consumvel pelosmeios de comunicao, intenso processo de patrimonializao, que tem tornadoa preocupao com a preservao dos bens do passado uma poltica noapenas de Estado mas tambm de organismos como a Unesco.

    Dados recentes dessa organizao indicam este esforo: a 29 Sessodo Comit do Patrimnio Mundial, reunida em Durban, na frica do Sul, emjulho de 2005, inscreveu na lista mundial de bens patrimoniveis trinta novosbens, somando, at o momento, um total de 812 bens preservados em 137pases. O patrimnio como poltica tornou-se tambm uma preocupaoglobalizada. Para os que acompanham a poltica do Ministrio da Cultura11,

    14 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    8.Cf.Harald Weinrich (2001,

    p.112).

    9. Ver Andreas Huyssen

    (2000,p. 41).Em quatro ins-

    tigantes ensaios,o autor nosapresenta as tenses impl-

    citas no processo de monu-mentalizao do passado,em

    curso em nossa contempo-

    raneidade. Especialmente ocaptulo intitulado Seduo

    Monumental apresenta as

    distines entre o sentido demonumentalidade para a

    cultura histrica oitocentis-

    ta e a nossa forma de nos re-

    lacionarmos com o passado.

    10.Cf.Elisabeth Roudinesco

    (2006). Para uma discusso

    que problematiza a noo dearquivo,consultar ainda Alei-

    da Assmann (2003). Interes-

    sante a distino que a auto-ra introduz entre o arquivo

    como memria da histria

    (entendida como aquilo quesucedeu a uma comunidade

    humana no passado) e me-

    mria do poder, necessriacomo fundamento de for-

    mas especficas de exerccio

    de poder em uma sociedade.

    11.Ao consultarmos osite doMinistrio da Cultura,encon-

    tra-se definida a poltica na-

    cional de museus planejadae implementada a partir de

    2003, cujo objetivo articula

    de maneira clara o sentido

    poltico conferido a uma po-ltica estatal da lembrana.

    Segundo os formuladoresdessa poltica,o seu objetivo

    :Promover a valorizao, a

    preservao e a fruio dopatrimnio cultural brasilei-

    ro, considerado como um

    dos dispositivos de inclusosocial e cidadania,por meio

    do desenvolvimento e da re-

    vital izao das instit uiesmuseolgicas existentes e

    pelo fomento criao de

    novos processos de produ-o e institucionalizao de

    memrias constitutivas da

    diversidade scio, tnico ecultural do pas.

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    perceptvel um investimento nesse mesmo esforo de patrimonializao, atravsno s da criao de novos museus como tambm da definio de uma polticapara o patrimnio imaterial.

    Enfim, o que importa apreender nesses diferentes movimentos osentido de temporalidade que est implcito nesse trabalho com o passado, queparece apontar para aquilo que Hartog12 to agudamente indica como a forado presentismo como forma peculiar de uma ordem do tempo prpria ssociedades contemporneas. Uma ordem em que o presente onipresente emassivo em sua fora; e nico horizonte disponvel para as sociedadescontemporneas. Mas , igualmente, um presente atormentado pela busca desuas razes e pelas exigncias de uma memria, reformulando constantemente

    seu projeto de lembrana/esquecimento dos grandes traumas do sculo XX: doHolocausto, passando pela guerra fria e pelas experincia do terrorismo deEstado em experincias polticas latino-americanas. confiana no futuro, quemarcara o projeto das sociedades oitocentistas, agrega-se agora um cuidadoespecial com a salvaguarda e a preservao13.

    Em sua formulao, um regime de historicidade pode ser compreendidocomo a forma como uma sociedade trata seu passado e, igualmente, como umamaneira peculiar de definir uma conscincia de si de uma comunidade humana.A poltica de patrimnio, portanto, no apenas indicaria o cuidado e a atenocom uma herana, com um legado que se acredita valioso o suficiente para serconservado, com a posse de bens que seriam propriedade de uma sociedade,mas, sobretudo, apontaria na direo de uma relao com o tempo, maisespecificamente com o passado, e um passado cuja forma de visibilidadeimportaria para o presente14. E, segundo ainda as sugestes de Franois Hartog,essa forma de visibilidade estaria ligada capacidade de tornar visveis osobjetos de uma maneira distinta daquela prpria ao momento de sua criao.Ao olharmos, portanto, para um objeto do passado sejam aqueles colocadosem exposio para o olhar nos museus, sejam aqueles monumentalizados noespao de nossas cidades a par tir de uma outra gramtica que o vemos,articulado como objeto histrico; como patrimnio histrico. Perdem o sentidopara o qual foram criados e adquirem um novo, conferido pela qualidade dehistrico, estabelecendo, por esse procedimento, uma relao entre o visvel dotempo presente e o invisvel do passado.

    ao refletir sobre o tempo e sua centralidade para o trabalho dohistoriador que Hartog nos sugere uma entrada para o seu exame, atravs deuma cidade que, nas suas palavras, seria uma cidade para historiadores15: aBerlim de uma Alemanha reunificada, novamente capital de um pas, cidade nocentro da Europa, elo de ligao entre Oriente e Ocidente e cenrio dasexperincias mais traumticas da histria recente: nazismo e holocausto,reconstruo e diviso pelo muro construdo em 1961, capital que se quer memriae lembrana, considerando seus inmeros projetos de investimento na histria;mas, tambm, projeto e laboratrio para o futuro. Para ficarmos com apenasalguns desses investimentos sociais em uma poltica do passado, basta lembrarmo-nos do novo projeto de um Museu de Histria Nacional, ocupando as antigas

    15Annals of Museu Paulista. v. 15. n.2. July -Dez. 2007.

    12. Cf. Franois Hartog

    (2003).A pergunta,formula-

    da pelo autor ao introduziro quinto captulo de seu li-

    vro,aponta para a relao en-

    tre processo de patrimonia-lizao e regime presentista

    do tempo:De que regime de

    historicidade a patrimoniali-

    zao galopante dos anos 90pode ser a marca?(p. 163).

    13.Idem,p.200.

    14.Idem,p.167.

    15.Idem,p.20.

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    dependncias do Museu com a mesma finalidade existente na Berlim antigacapital da Repblica Democrtica Alem. Igualmente os projetos vinculados lembrana coletiva do Holocausto (materializados no Museu Judaico e no

    monumento a cu aberto, para recordao do massacre de judeus) apontampara essa preocupao em relao a um passado que no pode passar16. Umacidade onde o passado parece adquirir uma centralidade mpar, e, igualmente,uma que investe em ser a referncia urbana do sculo XXI, tendo em vista seusprojetos arquitetnicos para ocupar os vazios deixados por uma experinciahistrica que espalhou suas marcas na geografia da cidade. Neste sentido, buscapreencher os vazios, apagar as ausncias e lacunas, elas mesmas to expressivasde uma histria que se fazia presente pelo que deixava no preenchido.

    Especialmente em relao ao projeto urbanstico de ocupao darea antes tomada pelo muro no antigo centro da capital berlinense da Repblicade Weimar, clara a inteno de preencher o enorme vazio que dividia acidade, um vazio cheio de significados, ocupado por militares e torres de controleque vigiavam o espao. O muro, que por quase quatro dcadas dividira acidade, transforma-se, com a reunificao, em pea de museu aberto, exposto visitao pblica, sendo agora objeto de uma assepsia que o afasta dasinmeras experincias dramticas a que esteve ligado. Submetido a uma novasintaxe, o muro pode transformar-se, assim, em objeto de museu, vestgio de umpassado controlado pelas exigncias da lembrana que se quer ter no presente,e que se deseja projetar para o futuro. Curiosa transformao a que se desenrolano espao da cidade, lugar onde a histria se escreve com outros sinais emateriais, operando a partir do ato de lembrar-se. Ocupam-se os vazios com alembrana possvel de um passado que se quer superado, mas, tambm, cominvestimentos para um recordar-se num futuro.

    Essa conscincia da necessidade imperiosa de lembrar um passadoexpressava-se j de maneira bastante clara nas palavras do prefeito da cidade,por ocasio das comemoraes dos 750 anos de Berlim, em 1987. Naintroduo ao catlogo da exposio que pretendia visualizar o passado dacidade, desde a fundao contemporaneidade, escrevendo com imagens eobjetos uma narrativa para uma cidade que se via dividida e parecia buscar nopassado a possibilidade de sua unidade perdida, Eberhard Diepgen afirmava:

    Raramente uma cidade, num espao de tempo to curto, moldou e experimentou a histriacomo Berlim. Berlim provoca no apenas uma reflexo acerca de formas de lidar com ahistria como sobretudo acerca da histria contempornea. Sua posio no centro da Europacoloca inapelavelmente a questo em torno de como sero suas relaes com o continenteeuropeu17.

    Uma poltica para o passado , necessariamente, uma demanda dapoltica do presente, e Berlim parece constituir-se no locus ideal para a investigaodos investimentos contemporneos numa poltica de memria e lembrana assimcomo numa preocupao com relao visualizao e exposio do passado18.Ao final de 2004, preparando-se para a lembrana dos 60 anos do fim da

    16 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    16.O historiador e professor

    da Universidade de Jena Nor-

    bert Frei,em seu mais recen-te trabalho (FREI,2005), tra-

    a uma histria da memria

    do Holocausto para a socie-dade alem desde o final da

    Segunda Guerra Mundial,an-

    tes mesmo que o termo te-

    nha se afirmado para desig-nar o extermnio em massa

    de judeus durante o III

    Reich.O autor sublinha as di-ferentes conjunturas polti-

    cas responsveis por diferen-

    tes formas de apropriao,pela sociedade,daquele pas-

    sado recente.

    17. Em Eberhard Diepgen(1987a,p. 5). Em outro tex-

    to, com a mesma finalidade

    de introduzir um catlogodas comemoraes do ani-

    versrio da cidade, o mesmo

    poltico da democracia-cris-t afirmava que a lembrana

    do passado deveria ser a for-

    a para o futuro da cidade,caracterizada como o lugar

    da liberdade,do livre-pensa-mento e da tolerncia (DIEP-GEN,1987b,p.15).

    18.Em Seduzidos pela me-

    mria, de Andreas Huyssen

    (2000),ver especialmente ocaptulo intitulado Os vazios

    de Berlim.A, segundo o au-

    tor,a cidade sobre o Spree um texto que est sendo

    freneticamente escrito e

    reescrito(p.89).

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    17Annals of Museu Paulista. v. 15. n.2. July -Dez. 2007.

    Segunda Guerra Mundial, o Museu Histrico Alem, na capital berlinense,inaugura uma exposio Mitos das Naes. Arena das Lembranas. Partindodo pressuposto que a lembrana da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto

    so elementos fundamentais da nova identidade europia em gestao, aexposio visava a trazer ao pblico as diversas vises, produzidas em diferentessociedades que viveram a Guerra, acerca do fim dos conflitos em maio de 1945.Segundo a concepo da curadoria, as sociedades sadas do confronto blicono recordavam o morticnio que a guerra significou, mas construram o mito daluta de resistncia. Uma lembrana necessria s tarefas de reconstruo nacionalno ps-45. Mitificao e represso aliaram-se para a produo de um passadosuportvel, diante das tarefas de reconstruir sociedades material e simbolicamenteesgaradas. No entanto, como o ttulo da exposio sugere, este um terrenode disputas, uma arena de lembranas19.

    Assim, nossa relao contempornea com o tempo, marcada peloregime de historicidade definido por Franois Hartog como presentista, supeno apenas refletir sobre a escrita da histria no seu sentido acadmico, comoproduo do conhecimento, mas igualmente refletir sobre os usos do passadoem nossa contemporaneidade. Implica, ainda, em formas peculiares de

    visibilidade para esse passado, entendendo-a como parte de uma estratgiasocial e poltica, se quisermos essa visibilidade como parte dos usos possveis enecessrios do passado.

    Refletir sobre o patrimnio, segundo entendo, como uma das formaspossveis de produo dessa visualizao, impe-nos uma reflexo em torno deuma forma especfica das sociedades modernas e contemporneas lidarem coma experincia do transcurso do tempo e seu resultado para o conjunto dasrealizaes humanas. Significa, ento, operar a partir de um duplo incontornvel:

    a ausncia e o sentimento que ela provoca, especialmente num tempo marcadopela sensao de velocidade e fugacidade. Essas mesmas experincias passadass podem ser significveis atravs dos traos/restos/indcios que nos chegam.Traos que podero, assim, ressignificar as construes materiais das sociedadespassadas, fazendo com que seus objetos possam ser vistos como algo diferentedaquilo que o foram quando criados. Reinscritos e lidos sob nova chave, viabilizamformas peculiares de visualidade para o passado, aquela necessria ao nossopresente.

    Como forma peculiar de visualizao prpria ao nosso presente, osesforos em torno do trabalho do patrimnio e sua preservao indicam, portanto,uma das possveis formas de sintomatizao de nosso tempo indcio valiosopara percebermos nossa peculiar relao com sua passagem e os sentidosque a ela podem ser atribudos. Outras formas de visualizao do passado, porsua vez, podem significar igualmente um caminho fecundo para a compreensodas experincias sociais ao logo do tempo, tarefa por excelncia do ofcio de

    historiador.

    19MYTHEN der Nat ionen.

    1945 Arena der Erinnerungen

    (2004).As disputas em tornode um passado para a socie-

    dade alem so tambm tra-

    tadas em instigante artigoacerca da criao de dois es-

    paos museolgicos na Ale-

    manha, ambos com propsi-

    to de expor a histria alem,um na cidade de Berlim e o

    outro na cidade de Bonn,an-

    tiga capital da Repblica Fe-deral Alem.Cf. Michael Wer-

    ner (2001,p. 77-97).

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    Historicizando um problema: a relao entre o escrito e a imagem

    As tenses implicadas na relao entre o escrito e a imagem podemremontar tradio judaica e implantao das religies monotestas comoreligies baseadas na escrita e na lei, definindo-se como assentadas na crena,e no, no culto. Como religies de crena, fundamentam sua prtica a partirda noo de uma revelao que no dada percepo e sensibilidadehumanas e, por isso, s pode ser inteligvel pela crena. Por este caminho, define-se igualmente uma opo que valoriza o escrito em detrimento das imagens,que passam a ser associadas aos cultos pagos, ao erro e incapacidade de

    atingir o verdadeiro Deus. Importa, contudo, lembrarmo-nos de que a escrita serealiza atravs de um conjunto de sinais, e que estes guardam evidentementeuma dimenso visual20. So significativas as conseqncias, assim como tortuososos caminhos, que faro possvel a incorporao das imagens tradiomonotesta crist. Em um instigante trabalho, Jan Assmann21, relendo o clssicode Freud Moiss e o Monotesmo, denomina de deciso mosaica a constituiode duas esferas culturais demarcadas a partir de distintas heranas religiosas.Para o autor, o que importa ressaltar o fato de ser o espao cultural criado

    por esta diferenciao entre falso e verdadeiro no campo da religio o espaodo monotesmo, espao cultural e espiritual habitado pelos europeus h pelomenos dois mil anos. O espao produzido por esta diferenciao apresenta-secomo algo totalmente novo se comparado com a experincia das religiesantigas, politestas, uma vez que estas operavam como tradues culturais, pondoculturas distintas em contato. Essa nova religio e o espao cultural produzidopela experincia do monotesmo impediram a traduo cultural, uma vez que,ao estabelecer um deus verdadeiro e outros deuses como no verdadeiros,impossibilitou que se pudesse formular a traduo de um deus considerado noverdadeiro, um contra-senso para esse universo cultural forjado pela experinciado monotesmo. As conseqncias deste espao cultural aberto pela experinciada deciso mosaica apontavam para uma tenso especfica: de um lado, averdade como nica e baseada na fora do texto, abrindo espao para aeliminao daquilo considerado falso e mentiroso e, por isso, ameaador daverdade da lei; por outro, um caminho aberto a uma maior racionalizao domundo e fundamentao das aes humanas uma tica da ao a partirde constrangimentos de ordem moral e jurdica. Segundo Assmann, a decisomosaica introduz um novo tipo de verdade, absoluta, revelada, metafsica, ouverdade da crena22.

    Uma vez estabelecida a diferenciao cultural, entre o falso e overdadeiro, entre o monotesmo e o politesmo, importante o trabalho delembrana para que os espaos culturalmente divididos possam ser no apenaslembrados como tambm possam ganhar em extenso temporal. Dessa forma alembrana tende a tomar a forma de uma narrativa grandiosa, de um mitofundador que, no caso da mosaische Unterscheidung (deciso mosaica), anarrativa do xodo, que igualmente separa judeus de egpcios, associando a

    18 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    20. Ver Aleida Assmann

    (2003,p. 209).

    21.Ver Jan Assmann (2003).

    22.Idem,p.28.

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    este povo a idia de pagos e condenando uma das prticas recorrentes dessacultura o culto s imagens , que se torna, portanto, o pior dos pecados, quepassa a estar associado mentira: a idolatria. Desta forma os quadros/imagens

    so considerados como outros deuses, uma vez que o verdadeiro deus no sedeixa representar pela imagem.Importante de se sublinhar o fato de que a lembrana, o ato da

    recordao, torna-se duplamente importante na definio dos espaosculturalmente definidos pela deciso mosaica. Por um lado, Assmann adverte-nos para o prprio fato de que Moiss , em si, uma figura da lembrana, umavez que carecem evidncias histricas de sua existncia; por outro lado alembrana que assegura o carter instituinte de uma diferena entre o falso e

    o verdadeiro, entre o deus verdadeiro e os falsos. Mas lembranas no implicamtambm na capacidade de produo de imagens? Ao sublinhar a centralidadeda cultura da lembrana como parte do universo cultural forjado pelo monotesmo,Assmann comea por apontar um curioso paradoxo: aquele existente entre ummapa geogrfico em que Israel e Egito partilham um mesmo territrio de trocase conexes e o que chama um mapa da memria (territrio da memria) emque estas regies aparecem como dois mundos separados. O monotesmoestabelece, portanto, dois territrios culturais, que se diferenciam no atravs de

    um processo evolutivo mas atravs de um movimento de revoluo/ruptura, quevem de fora atravs de uma apario. Neste sentido o xodo, como momentoinaugural, simboliza o momento temporal da separao entre passado e futuro,entre duas pocas distintas da histria da humanidade. Egito representa, assim,no apenas o reino da idolatria, mas sobretudo a superao de um passado.Lembrar esse passado significa no apenas lembrar-se de uma converso e,portanto, de uma diferena, como tambm assegurar a identidade dessadiferena, fundada no escrito e no na imagem. A recusa da imagem abre ocaminho para o mundo do esprito que, por sua vez, significaria um afastamentodo mundo sensvel e, segundo Assmann, lendo Freud, a proibio das imagenstrazia consigo implicitamente trs princpios fundamentais da religio monotesta:a idia de um nico Deus, o descrdito dos cerimoniais mgicos e a nfasenas exigncias de natureza tica23.

    Assim, nos primeiros momentos de sua histria, o cristianismo reafirmauma tradio segundo a qual o mundo do visvel estaria negado ao esprito,reafirmando uma atitude antiidoltrica, expressa de maneira clara por figurascentrais para a cultura crist, como o apstolo Paulo. Para ele, no mundo sensorial,no poderia haver a esperana cujo objeto a salvao para o cristo. Essacultura caracteriza-se por uma clara negao dos prazeres dos sentidos. Peroesperar lo que no vemos, es aguardar con paciencia...24 Poderamos supor,nessa formulao, uma importante herana a ser reescrita pela disciplina histricano sculo XIX, ensinando os homens a desejarem o futu ro, que no vm, masque imaginam; e, por esse caminho, aguard-lo com pacincia e esperana nasua realizao.

    No entanto, a tenso que viria a expressar-se com o filho de Deus sefazendo carne apontaria para importantes alteraes na relao entre a cultura

    19Annals of Museu Paulista. v. 15. n.2. July -Dez. 2007.

    23.Idem,p.136.

    24. Em Facundo Toms

    (2005,p. 45).

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    monotesta e o significado das imagens. Se o prprio filho de Deus se fizerahomem como ns, abria-se uma nova dimenso para pensar e valorizar adimenso carnal da experincia humana, vinculada s experincias sensoriais

    do mundo. O reconhecimento da divindade do filho implicava, em algumamedida, a aceitao da matria no esprito; e especialmente a partir do Concliode feso, proclamando a maternidade divina de Maria, deificava-se a carnedo Filho de Deus, do Salvador. Como prosseguir na estrita separao entreverdade do esprito e falsidade da carne, quando o prprio filho de Deus setornava carne? Como ento compatibilizar escrito e imagem como possibilidadesiguais de acesso a uma verdade, antes concebidas apenas pelo caminho doescrito, lugar da verdade? De fato a progressiva substituio de uma religiodo pai por uma religio do filho, com a conseqente valorizao de sua realidadecarnal, de sua experincia no mundo dos homens, acompanhou o progressivoprocesso de valorizao das imagens e da sensorialidade que a ela correspondia.

    Segundo Facundo Toms25, uma mudana na forma de valorizaodas imagens, e no seu significado para a cultura ocidental, representou, a partirdos sculos III e IV, especialmente aps o cristianismo ter se tornado uma religiooficial, a assimilao de aspectos significativos da cultura do imprio romano e

    dos diferentes povos que o integravam, aspectos que valorizavam sobremaneiraa dimenso imagtica, conformando o que o autor denomina uma cultura icnicaromana. Segundo ainda o mesmo autor, a fora desta sensorialidade icnicateria sido fundamental para que o cristianismo pudesse sintetizar a histria e, nomesmo movimento, afirmar-se com um projeto universal. O papel das imagens,anteriormente percebidas exclusivamente como fonte do erro e do pecado,passam a ser vistas como impulsionadoras da recordao e, por esse caminho,poderiam estimular o pensar e o aproximar-se das foras incorpreas, mais

    prximas verdade da f crist. Ao inventarem-se imagens que teriam por funorecordar a existncia de um divino e de um sagrado, estimulava-se o intelecto ase aproximar destas foras incorpreas e invisveis ao homem, agindo a imagem,portanto, numa dupla chave: a da recordaode um mundo invisvel e a daligaoentre esses dois mundos. Quanto destas heranas no poderamosperceber nas diferentes formas de visualizao do passado que as sociedadesmodernas iro produzir para sua relao com este invisvel, assim tornado pelapassagem do tempo? Facundo Toms sublinha, contudo, que este no foi um

    caminho desprovido de tenses e disputas, uma vez que a alta hierarquia daIgreja continuava mantendo um discurso antiimagtico e bastante reticente quantoao valor e significado das imagens para a vida religiosa, quando na verdadeseus fiis imergiam num mundo das representaes imagticas para representaode sua religiosidade. Educados na religio do filho feito carne para salvar oshomens, essa massa de fiis necessitava contemplar a Deus com seus olhos,senti-lo prximo e tangvel, adorar algo mais perto do que o esprito paternoimaterial sobre o qual se podia pensar com o intelecto mas no captar com ossentidos26. O lento caminho que tornava as imagens valorizadas pela culturacrist impunha, contudo, restries evidentes, sobretudo quanto interpretao

    20 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    25.Idem,p.48.

    26.Idem,p.74.

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    chave interpretativa que acaba por desqualificar a forma especfica de relaocom o passado embutida nesta proposta. O escritor, celebrizado por novelascomo Invanho, retomava na verdade um tema que, durante o sculo XIX, comea

    a ganhar popularidade entre os crculos letrados e cultos: o interesse pelo passado,agora no mais apenas o passado greco-romano, mas o passado mais prximo,o das sociedades europias. O passado nacional. A grandeza e a nobreza dopassado, tidas como caracterstica nica e exclusiva da Grcia e da Romaclssicas, passam a ser possveis tambm para as sociedades existentes antesda conquista romana, incentivando um movimento de interesse pelo conhecimentoe preservao das chamadas antiguidades nacionais29. Especialmente nospases anglo-saxes, esta valorizao de um passado pr-romano incentivara

    no s um interesse pela histria como, sobretudo, pela arqueologia, e pelapreservao dos restos desse passado distante e sem referncia nos textosclssicos. Em pases como a Inglaterra e a Dinamarca, este interesse est naraiz de polticas estatais visando preservao, pesquisa e difuso dosconhecimentos sobre tal passado. Ao escrever sobre ela, Walter Scott estavafamiliarizado com esta tradio, encarnada na figura de seu personagemprincipal: os temas assim como as questes que integram o debate internoprprio ao saber antiqurio vo aparecendo ao longo do texto scottiano.

    Quando, ao longo do sexto captulo, apresenta uma discusso entre doispersonagens acerca da origem gtica ou celta para o nome de uma populao,a argumentao em defesa de uma ou de outra postura recorre aos postuladosda cartografia histrica, formulados por William Camden, segundo os quais oestudo lingstico da toponmia poderia contribuir para distinguir as diferentesorigens histricas das regies em estudo, considerando especialmente seupovoamento e ocupao. Camden era autor de uma obra que conhecera enormesucesso de publicao, intitulada Britannia, em que realiza descrio histrica e

    geogrfica das ilhas britnicas. Publicado em 1586, seu livro ter seis ediesem latim e, em ingls, uma primeira edio no ano de 1610, reimpressa em1637. Ao longo do sculo XVIII, o trabalho de Camden reeditado inmerasvezes, com uma reimpresso no comeo do sculo XIX, vindo a constituir-se emobra de referncia para os estudos antiqurios. Cada um dos personagens doromance scottiano invoca, assim, a autoridade de um especialista em antiguidadespara sustentar sua hiptese30.

    O romance de Walter Scott aparece, portanto, num momento inicialde valorizao das antiguidades nacionais, cujo emblema maior ainda afigura do antiqurio. Ao longo do sculo XVIII, as descobertas arqueolgicas dopassado romano da Inglaterra iriam estimular o interesse antiqurio, presente jnas colees de moedas de Oxford e de outros colleges desde o sculo XVI.Progressivamente, ao longo das dcadas seguintes, esse interesse crescer,procurando dotar a pesquisa arqueolgica de procedimentos cientficos os maisatualizados. Neste sentido, a viagem de Worsaae (figura que viria a constituir-se em personagem central da arqueologia europia no sculo XIX), durante novemeses dos anos de 1846-1847 pela Inglaterra, Esccia e Irlanda, tinha comofinalidade provocar um interesse maior pelas antiguidades nacionais inglesas,

    22 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    29.A respeito,consultar o ar-

    tigo de Krzysztof Pomian

    (1992),em que ele retraa,para os limites do quadro eu-

    ropeu,o surgimento do inte-

    resse pelas antiguidades na-cionais.Desde meados do s-

    culo XVII os objetos desen-

    terrados nos diferentes pa-

    ses europeus comeam aganhar legitimidade e pas-

    sam a integrar diferentes co-

    lees; no entanto sua defi-nio como antiguidades

    nacionais deveria esperar

    at finais do sculo seguin-te. Enfim,com o sculo XIX,

    o passado longnquo das so-

    ciedades nacionais acede repblica das letras,libertan-

    do-se definitivamente de

    uma perspectiva que valori-zava este passado nica e ex-

    clusivamente quando parte

    integrante dos relatos conti-dos nos historiadores da An-

    tiguidade clssica.Uma nova

    galeria de eventos e atores recortada por este novo

    olhar, que instaura no mes-

    mo movimento uma nova re-lao com a tradio antiqu-

    ria. Segundo Pomian, Au

    nom de la gloire prsentequi senracinait dans celle

    des anctres, il fallait donc

    tablir de tels liens entrelhistoire ethnique et lhistoi-

    re universelle;nous retrou-

    vons ici le problme de lin-tgration de deux ples de

    la curiosit antiquaire grce

    la subordination de lun lautre.Et, pour la mme rai-

    son,il fallait que, confronts

    aus hros de lAntiquit,lesncetres se fussent compor-

    ts avec dignit et courage,

    assaisonnes dun grain defolie barbare qui nexclut pas

    une sauvage grandeur.Do

    lnorme popularit des Cel-tes auprs des antiquaires

    franais, allemands et brita-

    niques; ils satisfasaient tou-

    tes ces conditions.Do aus-si le retour des Goths dans

    lhistoriographie scandinaveou des Sarmates chez les Po-

    lonais (p.66).

    30. No obra de Walter Scott,

    The Antiquary (1998,p.48).

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    de forma a constituir espaos especializados e adequados para sua conservaoe exposio. A divulgao da teoria das trs idades pedra, bronze e ferro entre as sociedades de letrados das ilhas britnicas propunha, para o estudo

    das antiguidades nacionais inglesas, uma cronologia que se assemelhava quelaestabelecida para o caso dinamarqus31.Esta cultura antiquria revela-se como uma cultura do objeto, uma

    valorizao por excelncia dos procedimentos da autpsia, com a conseqentevalorizao da viso em detrimento do escrito. Trata-se, na verdade, da disputaentre procedimentos que ainda tm na escrita a fonte para o conhecimento dosobjetos dispostos ao olhar e aqueles que buscam uma autonomia do objeto emrelao ao escrito. Esta disputa pode ser exemplificada pelas concepes de

    Caylus (1692-1765) e Johann Joachim Winckelmann (1717-1768),respectivamente. Enquanto o primeiro procura uma absoluta autonomia do objetoem relao ao texto, o segundo, ainda que tambm valorizando o objeto e aviso como procedimento fundamental para o conhecimento, busca fundar umahermenutica da viso que ainda obedece s mesmas regras aplicveis ao textoescrito32. Caylus, membro da alta nobreza, e bem relacionado com os antiquriosde sua poca, foi crtico sistemtico dos procedimentos interpretativos originadosda tradio filolgica, advogando uma prioridade do objeto sobre o texto,

    acreditando que uma parte da histria desses objetos deveria ser buscada nelesprprios, desde que fossem deixados falar de maneira adequada33. Segundo aanlise de Elisabeth Dcoultot, a hermenutica do antiqurio ainda aquela dofillogo. Somente no sculo XIX se operaria a ruptura radical com a tradiofilolgica que marcara o trabalho daqueles envolvidos com o conhecimento dosobjetos do passado.

    Contudo, a imagem desse homem interessado pelo passado e pelacoleo de seus restos materiais (que nos chega pela mo de Scott) reproduz de

    certa maneira um esteretipo que, desde o sculo anterior, vinha se configurandoem relao a este amante das coisas do passado: erudito desprovido de umsentido mais contemporneo para sua atividade colecionista, alheio s questescentrais de seu tempo e devotando ao passado um culto religioso, sacralizandoos seus objetos pelo prprio fato de trazerem inscritas em si as marcas de umtempo passado e distante, como que um signo suficiente para o seu valor. Noterceiro captulo de seu romance, ao descrever a visita do jovem Mr. Lovel aoantiqurio Jonathan Oldbuck, o personagem principal, ao conduzir o jovemvisitante em direo a sua coleo de antiguidades, refere-se ao lugar comosanctum sanctorum e sua vida como a de um cenobita em meio queles restose provas materiais da existncia do passado34. Aps uma caminhada por aquiloque o autor nos faz parecer um verdadeiro labirinto, pouco iluminado e guardandoperigos a cada passo, chegam finalmente sala onde Mr. Oldbuck guarda suasrelquias do passado e as descortina para um jovem Mr. Lovel, um tanto perplexopelo desarranjo dos objetos misturados a documentos e papis diversos,impressionado pelas explicaes fornecidas pelo antiqurio para os objetos quetinha diante dos olhos, explanaes fundamentadas a partir de referncias adocumentos histricos cujos autores desconhecia por completo.

    23Annals of Museu Paulista. v. 15. n.2. July -Dez. 2007.

    31. Sobre Worsaae e sua im-

    portncia para a definio de

    um campo de trabalho quese convencionou chamar de

    arqueologia cientfica,ver Ju-

    dith Wilkins (1961).

    32. Consultar, a respeito, oimportante trabalho de Eli-

    sabeth Dcultot (2000) so-

    bre Johann Joachim Winckel-mann.

    33.Ver Alain Schnapp (1993).

    34.Cf.Walter Scott (1998, p.

    19-20).

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    A large old-fashioned oaken table was covered with a profusion of papers, parchments,books and nondescript trinkets and gewgaws, which seemed to have little to recommendthem, besides rust and the antiquity which it indicates. In the midst of this wreck of ancientbooks and utensils, with a gravity equal to Marius among the ruins of Carthage sat a largeblack cat, which, to a superstitious eye, might have presented the genius loci, or tutelardaemon of the apartment. The floor, as well as the table and chairs, was overflowed by thesame mare magnum of miscellaneous trumpery, where it would have been as impossible tofind any individual article wanted, as to put it to any use when discovered35.

    A passagem de Scott rene o conjunto de sinais que, desde o sculoXVIII, passam a ser associados atividade do antiqurio: falta de mtodo nacoleo dos objetos que guarda, amadorismo e, sobretudo, uma suposta falta

    de utilidade para um esforo colecionista desta ordem. Mesmo quando seconseguisse encontrar documentos ou objetos em meio desordem da coleoantiquria, esses no teriam qualquer utilidade. O sentido desse esforocolecionista deve, segundo os cnones de um novo interesse pelo passado, sercapaz de tornar esse passado til aos homens do presente a partir de umapragmtica que visa ao. Olhar o passado e interessar-se por ele sem osentido do presente parece significar a atividade do diletante, daquele que temna atividade intelectual apenas o remdio para o cio. Certamente no foi

    sempre esta a imagem dos antiqurios e de sua atividade de colecionadores,sendo seu interesse pelo passado considerado to legtimo quanto o conhecimentohistrico balizado a partir de novos referenciais, como o que praticamos hoje.Quando e porque esta imagem se altera e que elementos esto em jogo paralegitimao de uma nova forma de interesse pelo passado, que necessariamentedesautoriza a prtica antiquria, so questes importantes de serem retomadaspara compreendermos o complexo processo de constituio de uma escritacientfica da histria. Continuar apenas reafirmando a superao da tradio

    antiquria no significa compreender os mecanismos de incorporao datradio, ou melhor, o jogo de constituio desta mesma tradio a partir doscritrios que definiro o que ser ou no legtimo em termos de sua incorporao.Em outras palavras, importa sobretudo considerar as diferentes formas prpriasde nossa cultura de incorporao e de sensibilizao em relao s experinciasdo passado, ora tendendo a v-las como tradio, ora percebendo este mesmopassado como histria36. A menos que consideremos a histria como umaevidncia, expresso de uma natureza dos homens, igual existncia do passado

    registrado das mais diferentes formas, torna-se necessria a compreenso desseprocesso que transforma o passado e suas experincias mais diversas e distintasem um todo organizado e dotado de sentido que passamos a conhecer pelonome de histria. preciso, portanto, romper com a dmarcheingnua de quea existncia pura e simples das experincias passadas a garantia segura paraa histria como disciplina. Se a ocorrncia dessas experincias humanas numtempo recuado condio para que possa existir sua incorporao como histria,passvel, inclusive, de um conhecimento rigoroso e controlado, ela no ocertificado de evidncia da histria. Se, Antiqurios e Historiadores modernos,temos no passado um espao privilegiado para nossas reflexes, no se trata

    24 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    35.Idem,p.22.

    36. Incoporamos aqui as su-

    gestes de Grard Lenclud a

    respeito do conceito de tra-

    dio e de seu tratamento co-mo un mot-problme. O

    tratamento terico sugeridopelo autor pode ajudar-nos

    a superar uma apreciao

    positivista da questo da tra-dio, contribuindo no sen-

    tido de compreender como

    historicamente forjada, esocialmente negociada,a in-

    coporao das tradies

    (LENCLUD,1994).

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    certamente de um mesmo passado, e nem mesmo de uma mesma forma decompreender as relaes deste passado com o presente. So exatamente nestesentido as perguntas e interesses dirigidos ao passado, num esforo de interrog-

    lo a partir de experincias histricas que fundaro a possibilidade da tradio,recortando deste passado as respostas adequadas para nossas perguntas. Asantiguidades nacionais, valorizadas, como dissemos, a partir do comeo dosculo XIX, sempre estiveram existindo em sua materialidade nos lugares ondepretensamente sero descobertas ao longo do oitocentos. Contudo no foramcaptadas como antiguidades seno quando um olhar modernamente constitudopode incorpor-las como parte da tradio e do passado dessas sociedadesnacionais. Sem o exame deste olhar que capta o passado e seus restos e os

    constitui como Antiguidade, continuaremos prisioneiros de procedimentoscanonizados a partir da institucionalizao da histria ao longo do sculo XIX,que procura afirmar a Antiguidade como um valor intrnseco aos objetos em si,mensurvel e quantificvel, fornecendo, com isso, a iluso de uma objetividadedo tempo decorrido. Prisioneiros desta mesma memria disciplinar, reafirmamosas demarcaes e as rupturas que era necessrio este procedimento disciplinarconstituir para se afirmar como portador de um conhecimento legtimo sobre opassado, deixando de perceber no apenas certas continuidades, mas,

    sobretudo, o jogo de silenciamento e de escolhas a que se procedeu para queos antiqurios fossem vistos como incapazes de conhecer verdadeiramente opassado. Com isto, queremos afirmar que a prtica dos antiqurios assim comoa dos historiadores modernos constituem duas possibilidades distintas e diversasde acionar prticas tendentes a uma relao com o passado e que implicamem procedimentos e regras que envolvem no apenas a memorizao comotambm a transmisso, dando origem a uma escritura que definir o legtimo ouilegtimo em relao ao conhecimento deste passado. O primeiro o antiqurio

    torna o passado em presena materializada nos objetos que o circundam; osegundo o historiador torna o passado distante e objeto de uma reflexocientfica, cognoscvel apenas por este procedimento intelectual capaz deapreender este passado como processo, como um vir-a-ser do presente. Enquantoo olhar do antiqurio parece aproximar o passado do presente, estabelecendouma relao entre o visvel e o invisvel segundo determinados dispositivos,produz, para este mesmo passado, uma visibilidade segundo a qual no soos dispositivos de uma cronologia (por vezes associada a uma rgida relaode causao) que estabelecem os nexos entre o que se pode ver e aquilo quese torna, pelas mesmas razes, invisvel.

    A visibilidade do passado pela disciplina histrica oitocentista

    Tornou-se consenso que os fundamentos disciplinares da histria,concebida como projeto cientfico, foram lanados pelo trabalho de Ranke epela clara definio e diferenciao entre fontes primrias e fontes secundrias.

    25Annals of Museu Paulista. v. 15. n.2. July -Dez. 2007.

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    A base da escrita histrica estaria assentada no trabalho de pesquisa dasprimeiras, suporte da escrita do passado. E por fontes primrias entendia-sebasicamente as fontes escritas, registro considerado prioritrio para as tarefas

    da nova disciplina que buscava afirmar-se no espao acadmico prussiano daUniversidade de Berlim. No entanto, tambm datam do final do sculo XVIII ecomeo do sculo XIX, especialmente na Frana ps-revolucionria, os esforosno sentido de organizao do passado atravs de sua visibilidade nos museus.Nessas instituies que so criadas como parte de uma poltica do Estadovoltada para a administrao do passado francs , o visitante, informado porum conhecimento livresco, adquirido pela leitura dos textos sobre o passado,deveria encontrar conforto para seu conhecimento, uma vez que tais espaos

    seriam capazes de produzir para o visitante um efeito do real37. Os objetos,dispostos segundo um princpio historicista, assegurariam ao visitante a certezado passado, possibilitando assim uma visibilidade do invisvel e, sobretudo, acerteza de sua realidade passada. Mas no apenas objetos estariam sendocolecionados no museu oitocentista, e, sim, tambm lugares: uma vez que,arrancados de seus espaos primitivos, tais objetos poderiam evocar tambmseus lugares de origem, combinando, portanto, nessa operao de visualizao,espao e tempo. Numa certa medida como se esta visualidade permitida pelos

    objetos dispostos engendrasse lembranas e recordaes que ultrapassariam oslimites da prpria coleo reunida. Assim escrita e imagem articulam-se de formapeculiar na cultura histrica oitocentista, para conferir um novo sentido ao passado,agora pensado segundo as demandas de uma produo identitria especficaao sculo XIX. A imagem nos espaos dos museus criados ao longo do sculoXIX na Frana deveria no apenas ensinar, parecendo agregar o poder deressuscitar o passado, despertando a histria, segundo o relato de Micheletdescrevendo sua visita ao Museu dos Monumentos Franceses, obra de Alexandre

    Lenoir38. Tornar os homens do passado novamente presentes ao olhar doscontemporneos do sculo XIX era organiz-los segundo uma nova visibilidade:aquela que os transformava em grandes homens a serem lembrados no movimentode produo de uma identidade nacional francesa39. Ressuscitados pelalembrana, tornam-se os elos de uma cadeia que articula os homens do presentee do passado numa associao pela histria, necessria produo de umaidentidade especfica. Ao lado do Museu de Lenoir, outros projetos de exposiodo passado so ativados por esta cultura histrica, como o Museu Napoleo,

    dirigido por Dominique Vivant-Denon entre os anos de 1802 e 1815 e instaladono Louvre; o Museu de Histria da Frana, na cidade de Versailles, criado em1837; e o Museu de Cluny, organizado no ano de 1843 a partir da coleode Alexandre du Sommerard. O museu de Versailles o primeiro museu a seautodenominar de histria e tinha por finalidade tratar de toda histria da Frana,sendo por isso concebido, nas palavras de seus idealizadores, como o encontrode nossa histria nacional40. A estas iniciativas localizadas na capital francesa,ou em suas proximidades, somaram-se outras nas diversas provncias voltadaspara o recolhimento dos arquivos dos tempos passados41, sistematizando eorganizando o interesse pelo passado prprio dessa cultura, enfim, dando

    26 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    37. Ver Dominique Poulot

    (1997,p. 357).

    38. Cf. Chantal Georgel

    (2005,p. 120).

    39.Ver Jean-Claude Bonnet(1998).

    40. Em Chantal Georgel

    (2005,p. 119).

    41.Idem,p.123.

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    visibilidade ao invisvel do passado francs ameaado pelo processo detransformaes profundas sinalizadas pela revoluo de 1789.

    Um outro texto literrio pode nos fornecer pistas interessantes e boas

    para pensarmos a relao entre a visibilidade das runas do passado e oentendimento do presente como resultado de uma cadeia histrica que articulaeventos diversos no tempo. Esta visualizao do passado encontra-se, como nosmuseus organizados pela cultura histrica do oitocentos, a servio de um projetoem que o futuro parece informar o interesse pelo passado e difere, por isso, dasformas de visualizao do passado prprias cultura antiquria. Aqui, umafinalidade especificamente histrica confere o sentido para as imagens expostasdo passado, quer se tratando de uma instituio como os museus, quer se tratando

    de uma visita a uma cidade smbolo de uma viagem ao passado, como ocaso da cidade de Roma, cenrio do romance de Mme. de Stel a que faremosreferncia.

    Ao entrar na cidade de Roma, Corinne, personagem ttulo do livro deMadame de Stal, conduz o seu amado Oswald, lord Nelvil, pelas runas dacidade emblema do passado e de sua grandeza, itinerrio obrigatrio para aboa formao do letrado europeu das Luzes (e cidade tambm visitada pelaautora do romance). A tenso dramtica tem como cenrio a prpria histria,

    presena visvel atravs de seus restos materiais e constante indispensvel paraa cultura letrada do oitocentos, ela mesma se definindo como uma cultura histricapor excelncia. Triunfo da histria na sua capacidade de significar a vida doshomens, dando-lhes um sentido de continuidade para alm do tempo presentede suas experincias finitas.

    Je vous ai fait parcourir bien rapidement, dit Corinne lord Nelvil, quelques traces de lhistoireantique; mais vous comprendrez le plaisir quon peut trouver dans ces recherches, la fois

    savantes et potiques, qui parlent limagination comme la pense. Il y a dans Romebeaucoup dhommes distingus dont la seule occupation est de dcouvir un nouveau rapportentre lhistoire et les ruines. Je ne sais point dtude qui captivt davantage mon intrt, repritlord Nelvil, si je me sentais assez de calme pour my livrer: ce genre drudition est bienplus anim que celle qui sacquiert par les livres: on dirait que lon fait revivre ce quondcouvre, et que le pass reparat sous la poussire qui lensevelit42.

    A histria como parte central da cultura do oitocentos aparece agora,pelas palavras da personagem ttulo do romance, no apenas como um

    conhecimento que pode evocar o prazer esttico, da mesma ordem que o dapoesia, mas com seu conhecimento pode advir um conhecimento savante, quesatisfaa, ao mesmo tempo, imaginao e ao pensamento, entendido comouma forma de conhecimento racional acerca das coisas do passado. Umconhecimento combinando, assim, o prazer esttico e a dmarcheracionalexigida pelos cnones da cultura iluminista. Agora o passado deve serracionalmente apropriado e, para isso, o trabalho de pesquisa se faz necessrioe indispensvel, o que, ainda segundo a personagem do romance, tem estimuladoo trabalho de um novo homem cultivado: justamente aquele que se ocupa deestabelecer as relaes entre os restos visveis na cidade de Roma e o seu

    27Annals of Museu Paulista. v. 15. n.2. July -Dez. 2007.

    42. Madame de Stal (1985,

    p.122).

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    passado. Estes traos e marcas do passado no se prestam apenas ao gostodo amante erudito do passado, cioso da sua conservao, mas sobretudo aoolhar que, ao pousar sobre essas runas, busca estabelecer relaes que

    transformem a experincia do passado em explicao para o presente dassociedades humanas. E, segundo o seu interlocutor, o nobre ingls Nelvil, estaseria uma profisso a que se dedicaria com prazer ao invs de carreira dasarmas a que sua condio de nobre o obrigava , visto que a v como umaforma de erudio superior que se adquire pelos livros no sossego de suabiblioteca. Mas o que seria exatamente novo nesta forma de erudio? Oconhecimento que se adquire pela pesquisa das coisas do passado, significandodesta forma que pode haver o que se conhecer deste passado, superando uma

    perspectiva segundo a qual a erudio no alteraria substantivamente oconhecimento existente acerca do passado das sociedades humanas. Vitriadefinitiva dos modernos, que, ao derrotarem a erudio, transformamdefinitivamente o passado em histria.

    Segundo as palavras da protagonista do romance:

    Les rudits qui soccupent seulement recueillir une collection de noms quils appellent lhistoiresont srement dpourvus de toute imagination. Mais pntrer dans le pass, interroger lecoeur humain travers les sicles, saisir un fait par un mot, et le caractre et les moeurs dunenation par un fait, enfin remonter jusques aux temps les plus reculs, pour tcher de se figurercomment la terre, dans sa premire jeunesse, apparaissait aux regards des hommes, et dequelle manire ils supportaient alors ce don de la vie que la civilisation a tant compliqumaintenant; cest un effort continuel de limagination, qui devine et dcouvre les plus beauxsecrets que la rflexion et ltude puissent nous rvler43.

    Prosseguindo seu percurso pela cidade de Roma e pela visita de seusmonumentos histricos, um outro sentido central da cultura histrica do oitocentos

    delineia-se com clareza para os homens do presente: ao defrontarem-se com ahistria dos homens do passado, poderiam aprender pelo exemplo, a histriareadquirindo assim o seu papel magistral. O mesmo papel, alis, conferidopelos prprios romanos s experincias passadas dignas de lembrana, comoforma de emulao para as novas geraes.

    Vous le savez, mylord, loin que chez les anciens laspect des tombeaux dcouraget lesvivants, on croyait inspirer une mulation nouvelle en plaant ces tombeuax sur les routespubliques, afin que retraant aux jeunes gens le souvenir des hommes illustres, ils invitassentsilencieusement les imiter44.

    Finalmente, a contemplao de Roma e de seu passado poderia estara servio de outro importante componente da cultura histrica das Luzes europia:desde os etruscos (agora j integrados histria de Roma) at o presente, oestudioso do passado poderia acompanhar a evoluo do esprito humanoatravs de suas realizaes materializadas naquela cidade. Portanto, contemplaro passado adquire um sentido preciso. O de poder constatar e mesmo provaresta evoluo que, para alm de marcar as particularidades da sociedaderomana, seria o sentido mesmo de os homens estarem no mundo, cabendo assim

    28 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    43.Idem,p.302.

    44.Idem,p.128.

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    histria o papel de fundamentar esse sentido. Nas palavras da personagemprincipal, Roma como cidade no apenas uma aglomerao de habitaes,mas sobretudo lhistoire du monde, figure par divers emblmes, et reprsente

    sous diverses formes45

    . Visitar Roma era, assim, para os cnones desta culturailuminista, muito mais do que visitar uma cidade, era a prpria possibilidade deacesso histria dos homens materializada de forma privilegiada no espaoda cidade. A viso do passado, mais do que a prpria leitura dos textos, confereum novo poder de convencimento e persuaso para esta cultura iluminista,contribuindo para que o estudo desse passado adquira um novo valor esignificado:

    Cest en vain que lon se fie la lecture de lhistoire pour comprendre lesprit des peuples;ce que lon voit excite en nous bien plus dides que ce quon lit, et les objets extrieurscausent une motion forte, qui donne ltude du pass lintrt et la vie quon trouve danslobservation des hommes et des faits contemporains46.

    Na verdade, a partir da cultura das Luzes, o interesse renovado pelacidade de Roma inscreve-se numa tradio da cultura humanista que, desde oRenascimento, sublinhava o papel central da cidade para a histria dos homens.

    Isto por duas razes, segundo a anlise de Alain Schnapp: em primeiro lugar,pelo papel privilegiado da cidade quanto existncia de manuscritos gregos elatinos e, em seguida, pela possibilidade evidente de descobrir na paisagemmesma da cidade a presena material da Antiguidade47.

    Aproximar os homens do passado do presente pela via da histria e da sua visualizao,eis a definio deste projeto historiogrfico prprio da cultura das Luzes e cujosdesdobramentos e heranas para nossa concepo de Histria so evidentes.

    A vitria desta cultura histrica que busca conferir ao interesse eruditopelas coisas passadas um sentido presente no esforo de reflexo sobre o passado viabilizou a criao de diferentes formas institucionais capazes de pr em marchao projeto de uma histria que, ao mesmo tempo, apropriava-se da tradio e dosmtodos da pesquisa erudita, buscando agora submet-los s exigncias de umacultura histrica modificada. Muitas das vezes este processo complexo dereelaborao intelectual de diversas heranas ficou submetido ao sentido vitorioso

    de uma histria acadmica, que, ao refletir sobre sua prpria trajetria, tendeu aver o passado como a lenta e progressiva caminhada da histria em direo sua cientifizao, evidentemente percebida como a forma mais organizada, racional e portanto verdadeira de acesso e conhecimento do passado. Neste sentido,a herana antiquria foi muitas vezes desconsiderada, quando no, percebidacomo uma forma primria do conhecimento histrico, definitivamente superadapela sua cientifizao na primeira metade do sculo XIX. E este processo decientifizao submete a viso s fontes textuais, mesmo naqueles projetos de

    visualizao do passado como o pretendido pela pintura histrica, que assentavaa produo de imagens pesquisa e ao conhecimento das fontes escritas. As

    29Annals of Museu Paulista. v. 15. n.2. July -Dez. 2007.

    45.Idem,p.136.

    46.Idem,p.219.

    47.Ao tratar do nascimento

    dos antiqurios na cidade deRoma,Schnapp a denominacomo capital da Histria

    (SCHNAPP, 1993).

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    30 Anais do Museu Paulista.v. 15. n.2. jul.-dez. 2007.

    imagens so lidas como fontes, tradio que acabou por encontrar uma largaaceitao entre os historiadores, sobretudo a partir do sculo XX.

    Voltando ao comeo para concluir

    Ver o passado, em nossa contemporaneidade e segundo a relaoparticular que as sociedades atuais vm estabelecendo com o tempo, implicaem repensar igualmente o lugar e as condies de produo das diferentesnarrativas acerca do passado. A imagem virtual, rompendo definitivamente com

    a idia de um referente, de um suporte, implica em repensar os diferentes sentidosque puderam ser produzidos para a imagem e sua relao com o texto e coma possibilidade de visualizao de um invisvel. No caso das visualizaes dopassado, um invisvel, que, no entanto, j teve a visibilidade da existncia efetiva.Mas, como lidar com a nova experincia sensorial permitida pelos meioseletrnicos e virtuais, quando entram nos espaos consagrados histria e aopassado, permitindo a simulao de uma interao com o passado, um transportepara uma outra poca? Correramos ns o risco de perder a profundidade

    histrica, tornando essa ida ao passado um mero jogo de consolo para umpresente experimentado como pouco atraente? A histria e o ocupar-se com elaestariam, ento, a servio no de uma inspirao para a ao, para a recriaodo mundo humano, mas to-somente para o reencontrar-se no passado,reafirmando uma identidade do presente, que parece no querer passar? Comonos ensina Italo Calvino em suas reflexes para o milnio em que j entramos,as respostas para essas perguntas s as teremos fazendo e pensando sobre ahistria a partir da certeza que nos possvel: a de que pensar sobre o passado,

    imagin-lo, e por isso poder conhec-lo, trazendo viso o invisvel, comportouinmeras possibilidades com diferentes formas. V-lo e escrev-lo, para ns epara os que viro, talvez nos ajude a ver e escrever o nosso presente.