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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP MARCELO BURGOS PIMENTEL DOS SANTOS VIAGENS DE MÁRIO DE ANDRADE: A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO BRASIL DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2012

VIAGENS DE MÁRIO DE ANDRADE: A CONSTRUÇÃO CULTURAL … Burgos... · Andrade. Ainda na França sou especialmente grato à professora Idelette Muzart – Fonseca dos Santos, minha

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

MARCELO BURGOS PIMENTEL DOS SANTOS

VIAGENS DE MÁRIO DE ANDRADE: A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO BRASIL

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

MARCELO BURGOS PIMENTEL DOS SANTOS

VIAGENS DE MÁRIO DE ANDRADE: A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO BRASIL

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais sob orientação do Prof. Dr. Miguel Wady Chaia.

SÃO PAULO 2012

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Ao final de uma tese, deve-se registrar os agradecimentos às pessoas que auxiliaram no

desenvolvimento do trabalho. É preciso ficar claro que o resultado da tese é um esforço

combinado de pessoas que é muito maior e mais amplo que o “simples autor” destas

linhas. Por isso, gostaria de agradecer às muitas pessoas e instituições que auxiliaram na

realização deste estudo.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento

de Pessoal de Nível Superior) pela concessão de bolsa no período entre julho de 2007 e

dezembro de 2008, também responsável pela bolsa (PDEE) para estágio no exterior, que

me permitiu realizar pesquisa durante um ano na Université Paris Ouest – Nanterre – La

Défense, entre janeiro e dezembro de 2010. Ao CNPq (Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pela bolsa oferecida entre janeiro e

dezembro de 2009 e no retorno da França entre janeiro e junho de 2011.

Na trajetória acadêmica vinculado à PUC-SP, tive o privilégio de encontrar pessoas que

se tornaram amigos presentes para além das fronteiras universitárias, sobretudo no

NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política). Agradecimentos especiais ao

Eduardo Viveiros, Cristina Maranhão e Telmo Estevinho. À Syntia Alves, que sempre

esteve disposta a esclarecer dúvidas e anseios. Silvana Martinho e Rose Segurado

também têm sido importantes em diálogos acadêmicos e além destes. Claudio Penteado

e Rafael Araújo, companheiros importantes de artigos, congressos, ideias e

aprendizagens.

Aos professores de doutorado do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências

Sociais da PUC, cujo diálogo e aulas foram incorporados a este trabalho e também em

outros momentos desta trajetória acadêmica, em especial: Maria Celeste Mira, Edgard

de Assis Carvalho e Ana Amélia da Silva que, com frequência, enviavam material sobre

temas e assuntos pertinentes à tese e outras paixões literárias. Também merece um

agradecimento especial, Vera Chaia, com quem tenho tido oportunidade de

aprendizagem nas aulas e pesquisas que coordena no NEAMP.

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Às professoras da banca de qualificação, Silvana Tótora e Ude Baldan, sou

especialmente grato pela disponibilidade de, em final de ano, poderem ler meu trabalho

e fazerem comentários elucidativos sobre os caminhos que deveria seguir. Depois da

qualificação, ainda troquei indicações bibliográficas e esclarecimentos teóricos com a

professora Ude Baldan. Se todas as sugestões não foram contempladas neste trabalho,

não quer dizer que foram ignoradas mas sim, que estão guardadas para serem usadas em

desdobramentos desta tese.

Na PUC, ainda sou muito grato às secretárias Katia Cristina da Silva, do Programa de

Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e Soraia Félix dos Santos, da Secretaria de

Bolsas. Foram elas que sempre me ajudaram com a burocracia e ansiedades inerentes

aos doutorandos.

Durante a estada na França no CRILUS (Centre de Recherche Interdisciplinaires sur le

monde lusophone) ligado à Université Paris Ouest – Nanterre – La Défense, encontrei

algumas pessoas que foram importantes pelo apoio e recepção em um país estrangeiro.

Agradeço em especial Vânia Oliveira, Bibiana de Sá, Anna Esteves e José Mauro

Barbosa Ribeiro. Lá tive oportunidade de assistir às aulas do Prof. Dr. José Manuel da

Costa Esteves no Master en Études Romanes que possibilitaram maior compreensão da

literatura de viagens e, consequentemente, das viagens etnográficas de Mário de

Andrade.

Ainda na França sou especialmente grato à professora Idelette Muzart – Fonseca dos

Santos, minha “directrice de thèse”, que aceitou me receber sob sua orientação, mesmo

sem me conhecer de antemão. Também abriu as portas de sua biblioteca particular para

auxiliar minha pesquisa. Além disso, graças ao seu aceite, pude manter contato com

universidade, pesquisa, bibliotecas e amigos franceses. Sou consciente que sem sua

generosidade este trabalho teria tomado outro rumo.

Antes da viagem à França, pude realizar parte da trajetória que Mário de Andrade

empreendeu para compreender o Brasil. Nesse percurso fui muito bem recebido por

Daliana Cascudo, neta e administradora do Memorial Câmara Cascudo em Natal.

Nínive e Rogério Medeiros me auxiliaram em andanças e esclarecimentos sobre João

Pessoa e Pernambuco. Por fim, a professora Maria Aparecida Lopes Nogueira

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coordenadora do NASEB – Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros da UFPE,

que dialoga comigo desde o seminário de doutorado na PUC-SP, sempre em companhia

de Jarbas.

Nessa caminhada de pesquisa tive o privilégio de trocar colaborações e informações

com Vera Lúcia Cardim de Cerqueira que também me auxiliou em pesquisas no Centro

Cultural São Paulo no acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas. Silvinha Badim

também foi uma grande incentivadora deste e outros trabalhos. Zé Garcez foi de suma

importância enquanto estive na França, sem ele a vida aqui teria ficado muito mais

desorganizada. Tatiana Travisani acompanhou o processo desde o início, estimulando e

compartilhando o mesmo sentimento de “doutorandos”.

À Rosa Maria Ortiz Taleb devo agradecimentos pela paciência em rever o texto com

todos os atrasos típicos de pesquisadores, com prazos a estourar. Além da revisão

cuidadosa também sou grato pela leitura e observações pertinentes através de

comentários críticos que ajudaram muito na redação final.

Minha família também foi importante apoio para a conclusão deste trabalho. Sou muito

grato aos meus pais, Nelson e Regina Helena, pela ajuda em diversos momentos. Seria

impossível elencar tudo o que fizeram. Meus irmãos Maurício, Fernando, Marinella e

Julianna também estiveram sempre presentes. Maurício e Marinella sempre me

receberam de portas abertas em suas casas quando precisei ficar hospedado em São

Paulo e me auxiliaram bastante quando estive fora, assim como Julianna. Fernando tem

sido um interlocutor atento e importante companheiro na vida acadêmica. Além destas

pessoas, há outras que foram incorporadas à minha família com o passar dos anos e

muito me incentivaram: Juliana Ikeda, Ana Cecília e Camilo Neira. Maria de Fátima

Soares também colaborou muito enquanto estive fora.

Juliana Crelier companheira especial que esteve junto desde o início. Mesmo à

distância, ficou próxima. Compartilhou pensamentos, leituras, saberes e experiências,

assim como angústias e ansiedades, apoiando sempre. Foi ainda leitora crítica que soube

excluir e acrescentar informações importantes, na tarefa de tornar este texto mais

legível.

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Por fim, o mais importante. Devo o agradecimento mais sincero ao orientador deste

trabalho, Miguel Chaia. Desde o mestrado tem sido uma pessoa aberta e generosa que

soube orientar os percursos da vida acadêmica e abrir horizontes fora dele. Tenho a

impressão que jamais conseguirei retribuir tudo o que fez por mim.

Algumas pessoas não citadas nominalmente são igualmente importantes nessa trajetória

pelos mais diversos motivos e momentos. Existem os amigos que sempre perguntam

sobre a tese nos estimulando a desenvolver o trabalho e abrindo novas perspectivas de

abordagens através de questionamentos “leigos” mas importantes. Outras pessoas são

responsáveis por discussões mais acadêmicas em diversos pontos do desenvolvimento

desta pesquisa. Outras são responsáveis pela convivência no país estrangeiro e apoio no

Brasil. Como seria impossível citar todas estas pessoas deixo os meus agradecimentos

gerais a eles e elas que muito significam para este doutorando.

Uma última ressalva. Apesar de considerar que a tese é na verdade um trabalho

coletivo, pelas ajudas, estímulos e orientações recebidas neste caminho, as decisões são

tomadas tão somente pelo autor. Assim, os erros e o que não foi obtido com a tese,

devem-se totalmente às escolhas que fiz. E a mais ninguém.

Sem estes apoios jamais teria conseguido chegar até aqui. Muito obrigado a todos!

Espero ter atendido às expectativas.

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RESUMO

Esta tese analisa a relação entre literatura e ciências sociais sob dois aspectos cruciais:

cultura e política. Para isto, analisamos a importância que duas viagens etnográficas – O

Turista Aprendiz – tiveram em parte da obra e trajetória política de Mário de Andrade.

Essas viagens ocorridas nos anos de 1927 e 1928-9 foram importantes por aguçar no

escritor modernista o contato que sempre almejou com o Brasil “de dentro”. Uma das

bandeiras do projeto estético de Mário de Andrade consistia em “olhar pra dentro do

Brasil” na busca por suas verdadeiras origens. Em nossa hipótese, esse olhar foi

responsável por desenvolver duas outras vertentes mariodeandradianas pois

reverberaram em um projeto – Na Pancada do Ganzá – que podem ser explicado, num

primeiro momento, como sua contribuição para o pensamento social brasileiro ao

buscar uma interpretação da brasilidade a partir do campo cultural. Também ecoou em

ações políticas, via institucional, quando assumiu e coordenou o Departamento de

Cultura do Município de São Paulo. Para isso, observamos as ações de Mário de

Andrade, a partir de três eixos básicos: o homem literato, o homem pesquisador e

homem político. Todas essas vertentes estabelecem vínculos entre si que ajudam a

dimensionar a contribuição que Mário de Andrade de para a Ciências Sociais e para a

própria compreensão do Brasil. Além dos elos entre essas vertentes, anotamos como a

colaboração e as redes de relacionamento foram ferramentas importantes nos projetos

de Mário de Andrade seja, na suas concepções estéticas e ideológicas.

Palavras-chave: Mário de Andrade, viagens etnográficas, pensamento social brasileiro,

cultura brasileira, modernismo, política cultural brasileira

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ABSTRACT

This thesis examines the relationship between literature and social sciences in two

crucial aspects: culture and politics. We analyzed the importance of two ethnographic

travels named O Turista Aprendiz, in the work and political career of Mario de

Andrade. These journeys, occurred in 1927 and 1928-9, were important for rousing the

contact with “inside” Brazil that the modernist writer have always looked for. One of

the main issues of the aesthetic project of Mario de Andrade was "to look inside of

Brazil" searching for its true origins. In our view, this look was responsible for

developing two other strands on Andrade's work since reverberated in a project – Na

Pancada do Ganzá – that can be explained, at first, as its contribution to the Brazilian

social thought in seeking an interpretation of Brazilianness from the cultural field. Also

echoed in political actions, in a institutional way, when he took over and led the

Department of Culture of the Municipality of São Paulo. For this, we observe the

actions of Mario de Andrade, from three basic axes: the literary man, the researcher

man and politician man. All these strands establish links among themselves to help the

measurement of the contribution that Andrade gave to the Social Sciences and to

understand Brazil. In addition to the links between these strands, we noted how

collaboration and networking are important tools in Mário de Andrade's work in both its

aesthetic and ideological conceptions.

Keywords: Mário de Andrade, ethnographic travels, Brazilian social thought, brazilian

culture, brazilian cultural policy

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RÉSUMÉ

Cette thèse analyse la relation entre la littérature et les sciences sociales sur deux

aspects cruciaux: de la culture et de la politique. Pour ça, nous analysons que deux

voyages ethnografiques, nommées comme – O Turista Aprendiz – ont eu en partie de

l'oeuvre et trajectoire politique de Mário de Andrade. Cettes voyages arrivées aux

années de 1927 et 1928-9 avaient importantes à cause d'aiguiser au l'écrivain moderniste

le contact que toujours a desiré avec le Brésil du l’interieur. Une des drapeaux du projet

esthétique de Mário de Andrade consistait “en regarder au l’interieur du Brésil” dans la

recherche par ses vraies origines. À notre hypothèse, ce regarde a éte le responsable

pour développer deux autres versantes “mariodeandradianas” car ont réverbéré en autre

project “Na Pancada do Ganzá” que peut être expliqué, au première moment, comme la

contribuition par la pensée social brésilienne au rechercher un interprétation de la

“brésilité” a partir du champ culturel. Aussi a résonné en actions politiques par le

parcours institutionel, quand il a assumé et a coordonné le Département de la Culture de

São Paulo. Pour ça, nous observons les actions de Mário de Andrade, a partir de trois

essieux basiques: l'homme de lettres, l'homme rechercheur et l'homme politique. Tous

ces versants étabient des liens entre soi qui aident a mesurer la contribuition que Mário

de Andrade a donnée aux Sciences Sociales et à la propre compréhension du Brésil. Au-

delà des liens entre ces versants, nous annotons comme la colaboration et les réseaux

ont éte des outiles importantes dans les projets de Mário de Andrade, autant dans ses

conceptions esthétiques, comme idéologiques.

Mots-clé: Mário de Andrade, voyages ethnografiques, pensée social brésilien, culture

brésilienne, modernisme, politique culturel brésilienne.

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SUMÁRIO

Antecedentes

Apresentação............................................................................................................14

Capítulo 1 – O modernismo e Mário de Andrade....................................................44

Parte I – O Turista Aprendiz

Capítulo 2 – O Turista Aprendiz – discussão teórica..............................................70

Capítulo 3 – O Turista Aprendiz – análise interna................................................. 98

Parte II – Desdobramentos Culturais

Capítulo 4 – Na Pancada do Ganzá.......................................................................142

Capítulo 5 – Departamento de Cultura..................................................................170

Considerações Finais............................................................................................189

Anexos...................................................................................................................194

Bibliografia ..........................................................................................................195

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“O importante não é ficar, é viver.

Eu vivo. Meu destino não é ficar.

Meu destino é lembrar que existem

mais coisas que as vistas e ouvidas

por todos”

Mário de Andrade em carta a Manuel Bandeira

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Rio Madeira / Retrato da minha sombra trepada na tolda do Vitória. Julho 1927/ Que-dê o poeta? Foto de Mario de Andrade. Acervo IEB-USP

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APRESENTAÇÃO

A presente tese insere-se na discussão das relações entre literatura e ciências sociais,

focando dois aspectos intimamente vinculados: cultura e política. Tem como objetivo

analisar os significados e repercussões que duas viagens etnográficas realizadas por

Mário de Andrade, na década de 20, tiveram em sua obra e trajetória pública. Essas

viagens ficaram conhecidas através do livro O Turista Aprendiz.

Este trabalho, para isso, considera obras literárias e ensaios do autor que interpretam o

Brasil e a cultura brasileira a partir dessas viagens. Também examina os papeis

desempenhados por Mário de Andrade como ‘homem público’: ora a relevante figura do

modernismo brasileiro, ora o agente de intervenções políticas, através da ocupação de

cargos institucionais, sobretudo a frente do Departamento de Cultura do Município de

São Paulo, que dirigiu a partir de 1935.

As duas viagens etnográficas que compõem O Turista Aprendiz, e que pesquisamos,

percorreram regiões do Norte e Nordeste do Brasil, em 1927 e, posteriormente, nos anos

1928-29, quando retorna ao Nordeste brasileiro. Foram batizadas pelo próprio autor

como Viagens Etnográficas e ocorreram em períodos próximos, mas propósitos

distintos. Na primeira, Mario de Andrade viajou mais descompromissadamente,

querendo acima de tudo conhecer a região amazônica e o nordeste. Na segunda, seu

intuito básico era, além de conhecer, entender melhor a Cultura Brasileira,

compreendida aqui num sentido amplo. Assim, um pressuposto deste trabalho é que

essas foram viagens de formação do autor.

Analisaremos, também, a relação entre o ‘homem literato’ e o ‘homem intelectual’,

além de observar o papel desempenhado por ele no debate sobre o pensamento social

brasileiro, que se institui a partir da década de 30 do século passado. Vale esclarecer que

ambos, o ‘homem literato’ e o ‘homem intelectual’, tem como pilar o ‘homem

pesquisador’, uma vez que, para sustentar esses dois papeis, o escritor modernista

dedicou-se com empenho à pesquisa. E desse estudo fez uso tanto em seus escritos

literários como em suas ações de sujeito político. Em outras palavras, é o ‘homem

pesquisador’ que possibilita o ‘homem literato’ e o ‘homem público’.

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A análise terá como foco primordial o livro O Turista Aprendiz (2002) – fruto direto

dessas duas viagens, publicado postumamente. Essa obra estrutura-se em duas partes

distintas, que tratam de situações específicas vividas em cada uma das viagens.

Outra vertente da pesquisa analisa a importância das viagens para o projeto Na Pancada

do Ganzá, seu projeto de ensaios interpretativos do Brasil pela abordagem cultural e,

posteriormente, sobre suas ações à frente do Departamento de Cultura, na década de 30.

Assim, a hipótese básica é que as viagens etnográficas já citadas foram fundamentais

para os escritos literários e ensaísticos posteriores, e também para suas ações como

‘homem público’, agindo pelos meios institucionais.

Desde a preparação e, posteriormente, ao longo das viagens etnográficas, ele dialoga

com interlocutores, já seus conhecidos, com quem se corresponde e com quem manteria

contato ao longo de sua vida. Um desses parceiros é Câmara Cascudo, seu

correspondente desde 1924, embora só fossem se conhecer pessoalmente em 1928-29

durante a segunda viagem etnográfica. Tais viagens serviram, igualmente, para estreitar

laços com outros modernistas, principalmente os do Nordeste, e exemplificamos com

dois importantes nomes da literatura brasileira: José Américo de Almeida e José Lins do

Rego. Também mantém contato com o poeta pernambucano Ascenso Ferreira e com o

escritor Joaquim Inojosa, ambos pertencentes ao movimento modernista do Nordeste.

Foram, todas elas, relevantes interlocuções, já que Mário de Andrade discute com eles

aspectos relacionados à cultura e artes brasileiras. Notamos aqui o ‘homem literato’

embasando-se na pesquisa. Enquanto preparava a edição de Macunaíma (1928), por

exemplo, escrevia a Câmara Cascudo e a outros correspondentes, solicitando mitos e

lendas para incorporar à obra.

Alguns elementos ou inspirações provenientes das visitas às regiões Norte e Nordeste

do Brasil surgiriam em suas obras mais famosas (poesias, crônicas e romances), mas

também em obras menos conhecidas do público. Todo esse material, em nosso

entendimento, é fundamental para compreender o que Mário de Andrade entendia e

interpretava como aspectos e manifestações culturais do Brasil.

Disso tratam as obras referentes à cultura brasileira e agrupadas no projeto Na Pancada

do Ganzá, que discutiremos no capítulo 4. Assim, pelo viés discutido neste trabalho,

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Mário de Andrade não foi apenas o grande escritor de literatura ou o homem ligado às

artes, embora talvez essa seja sua face mais conhecida. Há outra dimensão fundamental

para entender sua importância: ele também foi um intelectual, pensador que viajou e

estudou para melhor compreender o Brasil e os brasileiros, fundamentalmente no campo

cultural.

Desde o início da primeira de suas viagens etnográficas, Mário de Andrade ensaiava

uma pesquisa sobre a cultura brasileira, a já citada Na Pancada do Ganzá – que não

concluiu devido ao seu precoce falecimento. Tal pesquisa buscava interpretar o Brasil a

partir de sua cultura, tendo por base músicas populares, tradições artísticas, danças

dramáticas, objetos folclóricos, mitos, lendas e manifestações culturais outras. Para esse

projeto, grande parte da coleta de dados e materiais foi realizada por ele próprio,

durante as viagens etnográficas e também em outras viagens aos arredores de São

Paulo. O mesmo material forneceria inspiração para sua obra literária, caso de

Macunaíma, e para algumas crônicas e poesias.

Anos mais tarde, a partir de 1935, Mário de Andrade coordenaria em São Paulo o

Departamento de Cultura, onde dirigiu dois projetos de suma importância para esta

tese: a Sociedade de Etnologia e Folclore (SEF) e a Missão de Pesquisas Folclóricas

(MPF). A primeira incentivava a formação de pesquisadores na coleta de materiais, em

áreas acadêmicas e científicas que surgiam no Brasil. A segunda foi responsável pela

institucionalização da coleta de manifestações artísticas e folclóricas do Brasil. Assim,

analisaremos o papel do autor modernista como ‘homem público’, aqui entendido como

alguém que exerceu cargo político, desenvolvendo atividades que buscavam

institucionalizar políticas culturais no município de São Paulo, e já com preocupações

referentes à preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural brasileiro, material

ou imaterial.

Trataremos primeiramente do Mário de Andrade que denominamos ‘homem literato’, o

reconhecido escritor de romances, poemas, contos e crônicas. Por essa perspectiva, foi

personagem e nome-chave do modernismo brasileiro, autor de obras consagradas na

literatura brasileira: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter; Pauliceia Desvairada;

Amar, verbo intransitivo, entre outras. Macunaíma, aliás, foi produzido junto com

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outras obras importantes do final da década de 20, no momento mesmo em que ele está

“redescobrindo”1 o Brasil através de suas viagens.

Além de Macunaíma, escrito entre as duas viagens etnográficas (e contém mitos e

inspirações oriundas do contato com pessoas e lugares visitados durante a expedição à

região amazônica), citamos, ainda, o livro de poesias Remate de Males (1930),

publicado em 1930, que traz no título referência a uma cidade da Amazônia, visitada

nessa viagem. Outro exemplo é o livro Os filhos da Candinha (1943), uma coletânea de

crônicas publicada pelo autor, algumas delas inspiradas em episódios vividos nas

viagens. Igualmente, nomeamos Dois poemas acreanos, publicado em Clã do Jabuti

(1927), logo após o retorno da viagem à região amazônica, que exala sentimentos de

fraternidade por seringueiros, conhecidos durante essa expedição.

Em seguida trataremos do poeta modernista que participa ativamente da vida política

brasileira, do ‘homem público’ que assumiu a chefia do Departamento de Cultura, entre

os anos 1935-38. Mário de Andrade foi o principal idealizador (ao lado de Paulo

Duarte) e primeiro diretor daquele departamento, que 50 anos mais tarde inspiraria a

criação do Ministério da Cultura (MinC) do Brasil. É nesse momento que Mário de

Andrade, o homem ‘público’, coloca o Departamento de Cultura como um modelo de

pesquisas sobre a cultura brasileira.

Como pilar de sustentação dessas duas facetas, também abordamos outro aspecto da

obra mariodeandradiana, denominada aqui de ‘homem pesquisador’, pela tentativa de

interpretação do Brasil. Como já mencionado, essa vertente, que o faz pesquisar

material e livros sobre o Brasil, subsidiam sua produção literária e também suas ações

de ‘homem público’. Aqui, especificamente, procuramos estudar as obras derivadas do

material recolhido nas viagens etnográficas - o projeto Na Pancada do Ganzá. São

quatro livros que procuram entender as manifestações artísticas e culturais do Brasil,

buscando suas origens e formações. Tais obras promovem um diálogo entre a

Academia – etnologia, antropologia, folclore, sociologia –, e as artes, mais

especificamente as músicas e danças brasileiras. As obras estudadas são: Música de

1 Utilizamos aqui a expressão redescobrindo porque é com esta idéia que Mário de Andrade parte em suas viagens etnográficas. Entretanto, mais que redescoberta o que o autor faz é um aprofundamento sobre a realidade da cultura brasileira.

18

Feitiçaria no Brasil (1963), Os Cocos (1984), As Melodias do Boi e Outras Peças

(1987) e Danças Dramáticas do Brasil (1982)2.

Em suma, o que analisamos é a forma particular, com o viés cultural, que Mário de

Andrade desenvolveu para entender o Brasil. Portanto, este trabalho é a tentativa de ver

e entender as viagens etnográficas do autor como essenciais para a produção de uma

parte significativa de sua escritura literária e também para fundamentar sua prática

política, sobretudo as ações no Departamento de Cultura. Assim, além de inspiração,

supomos que as viagens etnográficas foram importantes por fornecer ao escritor

modernista uma maior dimensão da cultura brasileira através de práticas que ele pôde

observar in loco e, igualmente, pelos diálogos estabelecidos com outros artistas e

intelectuais brasileiros.

É necessário referir que os anos 20 e 30 do século XX foram significativos e

importantes no Brasil, que passou por grandes processos de transformações sociais,

culturais, políticas, urbanas e econômicas. E também que uma das inquietações do

movimento modernista era com aspectos estéticos e ideológicos na busca por um outro

Brasil: novo, mais verdadeiro, autêntico. Assim, é possível falar em um projeto

modernista para o Brasil (ou, conforme a concepção, vários projetos). Afrânio

Coutinho, em Introdução à literatura no Brasil (1988), afirma:

1922 foi mais que uma simples data, porquanto denota que a situação revolucionária chegara ao auge do amadurecimento, e não foi por certo casual a coincidência das revoluções estética e política, iniciada também com o levante dos 18 do Forte de Copacabana, no mesmo ano, o que mostra que a consciência do país atingira um estado agudo de revoltas com a velha ordem, em seus diversos setores. Não se trata de procurar precedência de um fator sobre os outros, o intelectual e artístico, o político, o econômico. Mas de reconhecer que era a estrutura da civilização brasileira, era o todo do organismo nacional, que mobilizava as forças para quebrar as amarras da sujeição ao colonialismo mental, político e econômico, entrando firme na era da maturidade e posse de si mesmo (Coutinho: 1988, 265-6).

Sem a possibilidade de alhear-se dessas transformações multifacetárias da sociedade

brasileira, o movimento modernista, não por acaso, dividiu-se em vários subgrupos

divergentes tanto no campo estético como no político. Os grupos eram: Movimento Pau

Brasil, Movimento Antropofágico, Movimento Verde-Amarelo, Movimento da Anta.

2 Essas datas referem-se ao ano de publicação da 1ª edição. Todas foram publicadas postumamente, com a ajuda de Oneyda Alvarenga, uma de suas principais colaboradoras, a partir da organização realizada pelo próprio escritor.

19

Alguns modernistas e suas correntes possuíam características mais progressistas; outras

colorações fascistas. Seus próprios idealizadores escancaravam seus posicionamentos

políticos e ideológicos, além das respectivas práticas. O exemplo mais notório talvez

seja Plínio Salgado e seu verde-amarelismo, que culminaria com a Ação Integralista

Brasileira (AIB).

Assim, no campo político, alguns modernistas participaram e apoiaram a criação do

Partido Democrático. Outros tinham maior contato com o velho Partido Republicano

Paulista (PRP). Mais tarde, alguns aderiram ao Estado Novo de Getúlio Vargas. Mário

de Andrade, com os companheiros, participou ativamente do debate político do

momento. Nutria simpatia pelo Partido Democrático, onde colaborou como escritor no

jornal partidário (o Diário Nacional) e sua atuação se particularizou no debate público

(e portanto político), como o diretor do Departamento de Cultura, durante a gestão de

Fabio Prado.

Acreditamos que Mário de Andrade foi um sujeito político sob duas perspectivas: a

primeira, como participante ativo de um debate público (com o projeto modernista), que

propunha reformulações e intervenções artísticas e culturais, com claros interesses

estéticos, mas também ideológicos (discutiremos esses assuntos no capítulo 1). Também

consideramos o autor como político no sentido da carreira institucional, como ‘homem

público’ que institucionalizou o campo cultural na política brasileira. Propomos pensar

a esfera do sujeito cultural atuando na política, pois Mário de Andrade sempre teve

como preocupação, demonstrada em diversos momentos de sua obra, a função social do

artista. Ou seja, o papel do artista no conjunto da sociedade. Assim, também como

político observamos o pilar ‘homem pesquisador’, uma vez que sua atuação baseou-se

em práticas metodológicas de cunho científico, que reverberaram na sua atuação

institucional.

As três faces do poeta modernista estudadas aqui, portanto, não devem ser

desmembradas: estão necessariamente interligadas. Como Coutinho (1988) afirma, o

século XX espalhou “a convicção que o Brasil podia ser ‘vivido’ intelectualmente, e,

com a matéria prima que oferece, recriado artisticamente” (pg. 236). Mário de

Andrade não só recria o Brasil artisticamente; age também como fomentador de

transformações políticas.

20

Como ‘homem pesquisador’ são notórios e notáveis os diálogos e redes de contato que

estabeleceu durante toda sua vida (ou parte dela) com artistas e intelectuais brasileiros e

estrangeiros. Manuel Bandeira, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Vitor Brecheret, Tarsila do

Amaral, Anita Malfatti, Lasar Segall, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de

Andrade, Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de

Holanda, Câmara Cascudo, Paulo Prado, Blaise Cendrars, o casal Dina e Claude Lévi-

Strauss e Roger Bastide são alguns exemplos. Talvez possamos acrescentar que o traço

comum de todos esses diálogos tenha sido, grosso modo, a ideia de brasilidade.

Coutinho (1988) lembra que:

Será difícil apontar noutra cultura tão importante, vasta e substanciosa soma de estudos como a que oferece a nossa “brasiliana”, que ocupa um setor relevante de nossa história cultural, num plano em que se misturam e cooperam entre si a literatura, a filosofia, a história, a sociologia, a antropologia, a etnografia, a geografia, a linguística, a economia, etc., criando quase um gênero intelectual desconhecido de outros povos (...) é toda uma linhagem de pensamento e pesquisa acerca da terra e da gente brasileiras, para conhecer e revelar o país e o povo, a fim de dar aos brasileiros a consciência da sua civilização e cultura, e consolidar a sua fisionomia (Coutinho: 1988, 237).

Em outras palavras, estudamos a maneira como as ideias modernistas buscavam

interpretar o Brasil e a forma como interagiam e influenciavam a sociedade brasileira da

época, imersa em transformações. Em seguida, fazemos uma análise do movimento

modernista através de seu(s) projeto(s) estético-ideológico(s), e em suas diversas

manifestações, aproximações e divergências.

O foco que nos concentramos é a compreensão que Mário de Andrade tinha do

modernismo e do papel estético-ideológico que ele atribuía a si mesmo e ao movimento.

Ou seja, buscamos as particularidades do modernismo em Mário de Andrade. Além

disso, estudamos um gênero que bem elucida os objetos desta tese: a literatura de

viagens, um gênero que se consolidou desde o período das Grandes Descobertas, nos

séculos XV-XVI, na literatura ocidental, e em especial na lusófona. Basta mencionar Os

Lusíadas, de Luís de Camões, obra fundante das nossas letras, que trata das grandes

viagens portuguesas. Citamos a Carta de Pero Vaz de Caminha aos reis de Portugal, na

qual relata a descoberta do Brasil. Mário de Andrade, de alguma forma, foi seduzido e

atraído pela literatura de viagens, e por isso realizou as chamadas “viagens

etnográficas”.

21

Consideramos que o escritor recupera esse gênero literário, também inspirado em

escritos semelhantes, como o livro Apontamentos de Viagem, escrito por seu avô, J. A.

Leite, a partir de andanças pelo interior do Brasil. Esse gênero combina preocupações

literárias e interesses específicos, retomando a ideia de brasiliana defendida por

Coutinho (1988). Na literatura de viagens o real pode, por vezes, se sobrepor ao

ficcional. As anotações técnicas e observações do real convivem com a figura do

“criador literário”. É notável observar como as viagens propiciaram que a literatura de

Mario de Andrade transitasse entre o sensível e o inteligível. A poeticidade da

experiência aparece em alguns poemas e crônicas; e suas observações, calcadas na

realidade e elaboradas pela racionalidade, dariam origem a outras narrativas, que

surgem nos relatos da segunda viagem.

N’O Turista Aprendiz (2002), diversas passagens ficcionais remetem ao gênero depois

associado à literatura latino americana do século XX – o realismo mágico –

característica também presente em trechos de Macunaíma. Esse realismo mágico, em

Macunaíma, aparece com a desterritorialização ou desgeografização do Brasil pelo

herói sem nenhum caráter, cujas narrativas misturam lugares do Sul, do Norte e do

Nordeste brasileiros, numa tentativa de recriar um novo espaço brasileiro, onde as

fronteiras reais já não fazem mais sentido. Talvez fosse necessário recriar um novo

espaço do Brasil.

Telê Porto Ancona Lopez (2002), na introdução do livro O Turista Aprendiz, afirma:

Desde as primeiras declarações do escritor, ficam claras suas intenções quanto ao gênero do livro: um diário, cuja abertura para a narrativa da viagem visava não deixar escapar o peso de uma ótica impressionista, capaz de unir a referencialidade à poeticidade, transformando a experiência vivida (o sentido, o pensado, o biográfico – o real, enfim), em um texto com finalidade artística que é burilado em termos de distanciamento do arte-fazer. O confessional do diário e o referencial pertencente ao dado da viagem, embora filtrados pela arte, ainda permanecem com elementos do real, dado o hibridismo do gênero mas a seu lado, firme, intromete-se a ficção” (2002, p 31).

Essa ótica impressionista advém da inspiração exterior, em que a impressão é seguida

da reprodução do observado, ou seja, o artista reproduz “as impressões despertadas no

seu espírito pelo mundo exterior” (Coutinho: 1988, 242). Telê Lopez ressalta a

perspectiva e impressões que as viagens etnográficas assumem em alguns momentos na

obra de Mário de Andrade. Por mais que, em princípio, o escritor modernista ensaiasse

produzir um diário de suas viagens, este não fica limitado à descrição do real observado.

22

Vai além, usando o vivido e o experienciado no exercício da criação literária. Em

alguns momentos cria personagens que passam a viajar com ele; em outros, a partir do

contato concreto com pessoas, desenvolve narrativas ficcionais sobre elas mesmas.

Algumas experiências são retomadas em anos posteriores, quando o escritor volta aos

seus diários e escreve novas crônicas, poesias e narrativas literárias.

Os exemplos dados pertencem ao universo literário, mas reafirmamos as referidas

viagens do autor como instrumento de novas percepções da cultura brasileira. Ele

observa e descreve manifestações culturais relativas a músicas e danças que o

auxiliaram em suas pesquisas musicológicas. Também recolhe material artesanal e/ou

artístico, que comporiam sua coleção particular de objetos brasileiros (hoje disponíveis

nas coleções do IEB-USP). Mais tarde, no Departamento de Cultura, mantém a prática

de recolhimento de artesanato, criando uma coleção pública.

Voltando ao recorte da literatura de viagens, aprofundaremos a análise dos significados

das duas viagens etnográficas feitas por Mário de Andrade. A primeira ocorreu entre 7

de maio e 15 de agosto de 1927, e o escritor modernista viajou acompanhado por três

mulheres, capitaneadas pela amiga D. Olívia Guedes Penteado – uma das mecenas do

modernismo brasileiro. As outras duas eram sua sobrinha, Margarida Guedes Nogueira,

e Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral. Essa viagem foi fruto da

empolgação do grupo modernista com outra viagem, que ficou conhecida como

“viagem da descoberta do Brasil”, em 1924 (Lopez: 2002, 16), pelo interior de Minas

Gerais. Mais especificamente por suas cidades históricas e por Belo Horizonte, na

companhia do poeta modernista francês Blaise Cendrars, que repercutiu tanto em

concepções do modernismo brasileiro como na obra do escritor francês.

Essa primeira viagem à Amazônia, em princípio, seria composta por uma comitiva

maior, com outros modernistas. Porém ficou reduzida a esses quatro viajantes e seguia

os mesmos moldes da viagem feita pelos modernistas em 1924, por Minas Gerais.

Viajar só causou grande desconforto e constrangimento ao poeta, pois embarcar apenas

na companhia de três mulheres era um fato anormal para a época, mesmo para um

grupo que se colocava como vanguarda na sociedade.

23

É curioso saber que Mário de Andrade admitiria, nos diários que originaram o livro O

Turista Aprendiz, que não gostava de viajar, por mais contraditório que isso possa

parecer. No dia inicial do diário, antes da primeira viagem, anota: Não fui feito pra

viajar, bolas! Estou sorrindo, mas por dentro de mim vai um arrependimento

assombrado, cor de incesto (Andrade: 2002, 51). Mais adiante, quando se encontra em

Belém reclama: É incrível como vivo excitado, se vê que ainda não sei viajar, gozo

demais, concordo demais, não saboreio bem a vida (Andrade: 2002, 63). Alguns dias

mais tarde, ao narrar um pesadelo, conclui mais uma vez: Não fui feito pra viajar, meu

destino é viver em casa entre meus livros, sem lidar com muita gente estranha

(Andrade: 2002, 129).

A segunda viagem etnográfica começa com a mesma reclamação: Se repetiu a mesma

sensação desagradável do ano passado quando parti pro Amazonas. Está provado que

não fui feito pra viajar (Andrade: 2002, 180). Aqui, cabe uma aproximação com o

antropólogo e etnólogo francês Claude Lévi-Strauss, outro viajante como Mário de

Andrade (eles se conheceriam anos mais tarde, com a vinda da Missão Universitária

Francesa para lecionar na fundação da USP). Lévi-Strauss, no início do seu famoso

livro Tristes Trópicos, num trecho bastante conhecido, afirma: Odeio as viagens e os

exploradores (Lévi-Strauss: 2005, 15), embora também nunca tenha se furtado a

realizá-las, e em roteiros muito mais amplos do que as viagens de Mário de Andrade.

Fato é que a dificuldade de viajar sempre esteve presente na vida do escritor, e talvez

explique porque não viajou para a Europa com parte dos amigos modernistas, e nem

mesmo em possíveis missões oficiais, quando dirigia o Departamento de Cultura.

A primeira viagem etnográfica, que compõe a primeira parte do livro O Turista

Aprendiz, foi denominada por Mário de Andrade como: O turista aprendiz: Viagens

pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia por Marajó até dizer chega –

1927, e daria início ao seu projeto Na Pancada do Ganzá. O título irreverente brinca e

faz alusão a nomes de outras obras literárias classificadas como literatura de viagens e

que, normalmente, possuem longos títulos, numa tentativa de incorporar os lugares

visitados por seus autores3.

3 Para mais detalhes, observar a obra de Fernando Cristóvão (1999), que enumera diversos títulos para exemplificar essa característica do gênero literatura de viagens.

24

O presente trabalho também analisa a 2ª parte do livro O Turista Aprendiz, que trata da

segunda viagem, entre 28 de novembro de 1928 e 24 de fevereiro de 1929. Nessa

expedição o poeta embarca sozinho rumo ao Nordeste, com a intenção de pesquisar,

recolher, registrar e catalogar manifestações sonoras e visuais das expressões artísticas e

culturais que ele considerava genuinamente brasileiras. Sua motivação quase que

exclusiva, portanto, é pesquisar e estudar a cultura brasileira. Para isso, concentrou sua

viagem a poucos estados nordestinos: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e, de

passagem, Alagoas. Em Natal ficará hospedado na casa de Câmara Cascudo, com quem

manterá intensa discussão durante toda a vida4.

Nessa segunda viagem reúne uma quantidade imensa de material, que deveria ser

trabalhado e analisado com calma nos anos subsequentes, como parte do projeto Na

Pancada do Ganzá. Telê Lopez (2002) afirma:

Além das crônicas de ‘O Turista Aprendiz’, a viagem ao Nordeste terá outros resultados também bastante significativos. Mário reunirá fartíssimo material de pesquisa sobre danças dramáticas, sobre melodias do Boi, sobre música de feitiçaria, religiosidade popular, crenças e superstições, poesia popular (Lopez: 2002, 21)

Observamos que a primeira viagem etnográfica, embora já com um intuito de trabalho e

pesquisa, foi bem menos sistematizada, uma vez que Mário de Andrade viajava em

companhia de outras pessoas e esteve sempre preso aos compromissos oficiais da

Rainha do Café, apelido de D. Olivia Penteado, como ele mesmo salientou algumas

vezes. A segunda viagem, ao contrário, é muito mais planejada para pesquisa e trabalho,

não apenas em seu roteiro e contatos, mas também do ponto de vista econômico, para

realizá-la de modo efetivo. Temos, aqui, a primeira diferença entre as duas viagens.

Sobre a segunda, José Tavares Lira (2005) afirma:

Mário desta vez viaja só, portanto, isento dos compromissos de cavalheiro e protocolo, porém a trabalho: chama a expedição de “viagem etnográfica” e em parte será custeada pela função de cronista do Diário Nacional, em que era responsável pela coluna diária, que chamará durante a ausência de São Paulo de “O turista aprendiz”. Diferente no objetivo e na prosa, a viagem sofre uma mutação fundamental: as mediações com o destino não se dão agora pelas autoridades locais, mas pelos amigos, modernistas e simpatizantes, seus anfitriões, cicerones ou condutores pelas coisas populares (Lira: 2005, 150)5.

4 Mário de Andrade, na verdade, mantém contato com várias outras pessoas, sobretudo através de cartas, constituindo sua epistolografia um importante material de pesquisa para compreensão de sua vida e obra. A relação entre Mário de Andrade e Câmara Cascudo, e outras pessoas, será melhor discutida no decorrer da tese. 5 Os grifos são do próprio autor.

25

Essa viagem, então, envolve a publicação de artigos jornalísticos, crônicas que o autor

enviava diariamente, como correspondente, para o jornal com o qual colaborava, o

Diário Nacional6. Desempenha dupla função, portanto: além de pesquisar a cultura

brasileira, tem o compromisso de escrever crônicas para seu jornal.

No intervalo entre as duas viagens, Mário de Andrade publica Clã do Jabuti (1927);

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928) e Ensaio sobre a música brasileira

(1928). De acordo com Marta Batista (2004), Clã do Jabuti é um livro de “poesia

experimental, exercício de seu projeto modernista – ‘tese de Brasil’” (p.35). Para Sérgio

Miceli, em seu artigo: Mário de Andrade: a invenção do moderno intelectual brasileiro

(2009), esse livro de poesias:

explora as tensões entre o litoral civilizado europeizado, e o sertão selvagem, valendo-se de expedientes de composição reminiscentes de Macunaíma: o apelo ao folclore, às manifestações de cultura popular, aos meneios da prática literária erudita, o intento era unificar esses polos de vibração da “alma nacional” por meio de um itinerário das expressões regionais do país; o poeta dividido entre o chão de experiência nativa e a cultura estrangeira, entre a conquista de um rosto autóctone e a alienação imposta pelo esquadro europeu (Miceli: 2009, 171).

Alguns dos poemas mais conhecidos de Mário de Andrade são publicados nesse livro, e

tem origem em contatos e experiências com o Brasil nordestino e, sobretudo, com o

nortista. Exemplificamos com a parte conclusiva de O Poeta Come Amendoim, poema

de abertura do livro, que mostra claramente uma identificação com o Brasil e com a

brasilidade.

Brasil... Mastigado na gostosura quente de amendoim... Falado numa língua curumim De palavras incertas num remeleixo melado melancólico... Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons... Molham meus beiços que dão beijos alastrados E depois remurmuram sem malícia as rezas bem nascidas... Brasil amado não porque seja minha pátria, Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der... Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço venturoso, O gosto dos meus descansos, O balanço das minhas cantigas amores e danças Brasil que sou porque é a minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento, Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.7

6 O Diário Nacional foi um jornal ligado ao Partido Democrático, do qual Mário de Andrade sempre esteve próximo. Seu redator-chefe foi Paulo Duarte, amigo do escritor modernista. Para saber mais, ver: Duarte (1976) e Miceli (2009). 7 Esta versão, encontra-se no livro Poesias Completas, de Mário de Andrade, 2005, p.162.

26

O poema desenvolve algumas características de ritmo e sonoridade marcados pelo uso

de palavras que se evidenciam, como: “num remeleixo melado melancólico”, ou ainda,

“saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons”, “molham meus beiços que

dão beijos alastrados”... Pode-se notar que a forma poética é utilizada para criar novos

sentidos sonoros e rítmicos aos leitores. Também revela aspectos que ocuparão lugar

importante na produção artística e intelectual do autor, como a questão da linguagem.

Nota-se a preocupação com a língua falada no Brasil, e a nomeia no próprio poema:

“falado numa língua curumim”. Essa língua curumim será buscada ao longo de toda a

sua vida, a língua brasileira falada nas ruas, a língua popular. Mário de Andrade muitas

vezes grafava o si ao invés do gramaticalmente correto se, pois era a forma que mais se

parecia com a língua falada pelo brasileiro comum. Seus livros mostram a preocupação

estética de escrever através de uma linguagem mais popular e menos erudita, buscando

aproximar a oralidade da escrita.

Mesmo em suas relações pessoais essa questão estava presente: ele insistia em escrever

para a amiga e uma das principais colaboradoras, Oneyda Alvarenga, grafando Oneida,

trocando o y pelo i, por ser mais brasileiro. A inquietação com a língua nacional, sempre

presente, também aparece aqui, no ritmo do poema.

O poema mostra aproximações com a antropologia, quando fala do “descansar”, uma

vez que revela as particularidades culturais dos muitos “brasis” (mesmo tratando de

hábitos corriqueiros e naturais). O descanso, no Norte e no Nordeste, muitas vezes

ocorre na rede, o que muito aprazia Mario de Andrade. “O balanço das minhas cantigas

amores e danças”, um certo “sentimento pachorrento”, ou mesmo “meu jeito de

ganhar dinheiro, de comer e de dormir”.

A pesquisadora Telê Lopez em seu livro Mário de Andrade: Ramais e caminhos (1972)

nos diz que esse poema foi escrito em 1924, e já é possível notar o interesse do escritor

por um maior entendimento do que seria o povo brasileiro que faria parte de sua

brasiliana. Quando analisa o referido poema, do ponto de vista da ideia “pátria”,

pondera:

O conceito abstrato de pátria é superado pela caracterização do Brasil, através da conceituação individual do poeta como brasileiro, valorizando-se como indivíduo bem

27

representativo de seu povo (...) O interesse pela nacionalidade faz com que concentre suas preocupações na área do particular. Além disso, o nacionalismo serve para desgastar o conceito tradicional de pátria e reforçar a importância de pátria = consciência da realidade brasileira, sugerindo através da forma pela qual se situa, como brasileiro, a necessidade de caracterização crítica para a nação (Lopez: 1972, 47).

O que Mário de Andrade procura não é síntese da identidade nacional, e sim várias

identidades, fundamentais para formar a cultura ou as culturas brasileiras. E no plural,

pois não é possível falar de uma única cultura brasileira: nossos matizes são múltiplos.

Quando faz suas próprias pesquisas ou dirige o grupo de pesquisadores incumbidos de

realizar a Missão de Pesquisas Folclóricas, Mário de Andrade conceitua a identidade

cultural brasileira no plural.

O último poema do livro, Dois Poemas Acreanos, cuja primeira parte – Descobrimento

– reproduzimos, tenta falar dessa brasilidade multifacetada, dos infinitos “brasis”, dos

infinitos brasileiros: intitulado como:

Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De sopetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim, Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu...8

Fica clara a identificação entre o escritor paulistano e seu “conterrâneo” acreano, dois

brasileiros, sem que suas diferenças sejam significativas; o que importa são os traços de

proximidade e similitudes. Essa percepção de outros brasileiros e outros “brasis”

aparece durante sua primeira viagem etnográfica, na região amazônica. Em diversos

momentos ele se mostra ansioso por conhecer os seringais amazônicos. Finalmente, na

região do rio Madeira, consegue realizar a visita. No livro O Turista Aprendiz (2002),

ele relata o contato com um seringueiro e o retrata (mesmo sendo portador de malária)

com traços semelhantes aos mencionados no poema acima,:

Na proa, de-pé olhando o ‘Vitória’[nome do vapor onde viajavam], vem um rapaz, que idade? não é possível saber, a pele lisa, bem barbeada, boca fina, um risco apenas, olhos

8 Mário de Andrade, Poesias Completas, 2005, p. 203.

28

fundos, cinzentas olheiras profundas, onde se dispersa um olhar embaçado, que não vê coisa nenhuma, levemente mais claro que as olheiras. O cabelo encardido liso cai finíssimo. (...) Está claro que todos na amurada, olhando a lancha, comentando o caso, um rapaz novo assim nos cafundós dum seringal vivendo. É simpático. (...) A imagem do moço me persegue (Andrade: 2002, 142).

Na continuidade de Dois Poemas Acreanos, Mário de Andrade mostra preocupação

com as condições sociais e de trabalho do seringueiro (e do trabalhador braçal, em

geral), tema que será objeto de comentários e reflexões em outros textos, além de n’ O

Turista Aprendiz. De acordo com estudiosos da obra de Mário de Andrade, nesse

momento o escritor já se mostrava preocupado com a função social do artista. Para Telê

Lopez (1972), nessa época ele já entrara em contato com algumas obras marxistas, cuja

ótica será desenvolvida na segunda viagem etnográfica.

Para João Luiz Lafetá em seu livro 1930: a crítica e o modernismo (2001), o livro de

poesias Clã do Jabuti consiste em:

Espécie de “repertório do Brasil inteiro”, em que a dança do “Carnaval carioca” se mistura à meditação do “Noturno de Belo Horizonte”, o “Coco do Major” Venâncio da Silva convive com a “Moda da cadeia de Porto Alegre” e com a cama paulista de Gonçalo Pires, ou, por fim, a escrivaninha da Rua Lopes Chaves descobre em assombro o acreano “pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos”(Lafetá: 2001, 187-8).

Esse livro traz poemas de 1924, como o “Noturno de Belo Horizonte”, certamente

escrito sob o impacto da “viagem da descoberta do Brasil”. “Eu queria mostrar todas

as histórias de Minas/ Aos brasileiros do Brasil...”9. Até sua publicação, em 1927, ele

pareceu amadurecer visões do Brasil.

Finalmente, é outra pesquisadora da obra de Mário de Andrade – Telê Porto Ancona

Lopez – quem organiza as pastas da viagem e publica o livro O Turista Aprendiz, que

são seus diários de viagem. Ele mesmo revisou os escritos relativos à primeira viagem,

com a intenção de publicação. A própria organizadora nos informa:

Pretendemos nesta edição de O Turista Aprendiz, reunir numa estrutura de diário os textos que narram as “viagens etnográficas” e que se apresentam marcados por uma elaboração destinada ao público: o diário de 1927, organizado como livro em 1943, e a série “O Turista Aprendiz”, do Diário Nacional (Lopez: 2002, 35)10.

9 Noturno de Belo Horizonte, in: Andrade, Mário de (2005). Poesias Completas, pg. 186. 10 Para mais detalhes ver A edição de “O Turista Aprendiz”, de Telê Lopez in: Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, 2002. Os grifos são da própria autora.

29

Observamos redações diferentes nas duas partes que compõem o livro, já que as

crônicas nos dizem algo do cotidiano observado, e os outros textos do livro podem

manter um maior distanciamento desse mesmo cotidiano. Exemplificamos com Vida do

Cantador11, que fala sobre Chico Antônio, cantador de coco, que Mário de Andrade

conheceu no Engenho Bom Jardim, próximo a Natal, onde fora levado por Câmara

Cascudo. Encanta-se com ele, a ponto de afirmar que o cantor “vale mais que dez

carusos” (o famoso tenor italiano Enrico Caruso que deslumbrou o mundo na passagem

do séc. XIX ao XX). Aliás, Chico Antônio seria inspirador de uma das personagens de

sua opereta inacabada, Café, que retratava a crise da economia cafeeira paulista, pós-

crise econômica mundial de 1929. Também mencionamos Os filhos da Candinha, livro

em que republica crônicas escritas anteriormente para jornais, algumas delas referentes

ao período de suas viagens etnográficas. Essas crônicas, por vezes, recebiam uma nova

redação.

Em outro livro, igualmente não finalizado, Balança, Trombeta e Battleship – ou o

descobrimento da alma (1994), suas personagens principais são as companheiras da

primeira viagem à região amazônica, onde Balança é o apelido dado a Margarida

Guedes Nogueira e Trombeta, o de Dulce do Amaral Pinto.

Mário de Andrade acreditava que o processo de industrialização que então se iniciava

no Brasil, mais especificamente em São Paulo, era fomentador de grandes mudanças

sociais, culturais e políticas. Envolvia, por exemplo, a onda migratória de brasileiros

para o Sudeste – principalmente para São Paulo. O município deveria, então, buscar os

registros culturais de outras regiões e colocá-los à disposição de toda a população que

seria cada vez mais miscigenada. Esses registros, se constituiriam assim em memória do

local de origem, para esses migrantes.

A partir desta concepção inicial, coordena a Missão de Pesquisas Folclóricas,

montando uma equipe com 4 pesquisadores – Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedito

Pacheco e Antônio Ladeira – preparados para registrar, catalogar e, na medida do

possível, trazer para São Paulo, objetos culturais e artísticos de todo o País. Esse grupo

parte para as regiões Norte e Nordeste do país, com intenção de gravar músicas, e

11 Publicado originalmente em 1993, com edição crítica de Raimunda de Brito Batista.

30

danças dramáticas brasileiras, que seriam mais tarde disponibilizadas a toda população

paulista.

Flavia Camargo Toni (2004) nos informa que, após anos de estudos, Oneyda Alvarenga

organizou 4378 fichas de material catalogado nessa viagem, organizadas sob diversos

rótulos: “fonogramas, notações, filmes, textos, Folclore Nacional – discos, gêneros,

regiões e fotografias – permitem recuperar as informações coletadas” (Toni: 2004b,

9)12.

Para desempenhar suas novas atividades e projetos, Mário de Andrade permanece em

São Paulo enquanto a equipe viaja e coleta materiais da cultura popular brasileira. Este

trabalho só se encerraria – sem conclusão definitiva – com a demissão de Mário de

Andrade do Departamento de Cultura, por conta das divergências provocadas pela nova

situação política nacional, iniciada com o golpe de Getúlio Vargas, que deu origem ao

Estado Novo.

No desenvolvimento desse projeto, a ideia de cultura brasileira, na visão

mariodeandradiana, é considerada mais brasileira e menos paulista, pois a MPF parte

para as regiões que Mário de Andrade já havia visitado. E, mais que tudo, foi um

projeto político de preservação da cultura brasileira.

Nesse período Mário de Andrade mantém contato e diálogo com muitas pessoas,

principalmente franceses que residiam em São Paulo, o que também o auxiliou no

desenvolvimento do pensamento social brasileiro. Citamos os pontos de convergências

estabelecidos entre Mário de Andrade e o casal Lévi-Strauss – sobretudo com Dina

Lévi-Strauss, na sua passagem pelo Brasil, quando colaboraram na fundação e formação

da Sociedade de Etnografia e Folclore, e também com Roger Bastide e com o poeta

Blaise Cendrars. Recordamos que a proximidade com o casal Lévi-Strauss foi

importante também para eles, pois foi o Departamento de Cultura que financiou parte

da primeira viagem do antropólogo francês para o interior do Brasil auxiliando-o no

desenvolvimento de suas pesquisas etnológicas, como ele retrata em Tristes Trópicos e

em outros trabalhos.

12 As peças coletadas pela MPF estão disponíveis no Centro Cultural São Paulo (CCSP) e Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP).

31

Buscamos, ao fim, realizar uma análise cartográfica dos contatos e convergências que

Mário de Andrade criou em torno de si, com brasileiros e estrangeiros, reiterando que

foram contatos de mão dupla, em que ambos os lados se retro-alimentam de inspirações

e ideias. O mesmo processo de reciprocidade ocorreu com Mário de Andrade e Câmara

Cascudo. Na correspondência do escritor modernista com colegas e amigos fica nítida a

rica troca de informações e opiniões, cujas trocas ocorreram durante toda a vida do

escritor.

Para esclarecer e melhor entender o escopo desta pesquisa, elaboramos um quadro com

as datas e roteiros das duas viagens etnográficas que fazem parte do livro-base deste

doutorado: O Turista Aprendiz.

Além desse quadro, que mostra datas e roteiros, outro foi elaborado, relacionando

momentos das duas viagens com obras literárias e ações políticas que Mário de Andrade

desempenhou como homem público.

Manaus RecifeItacoatiara IgaraçuManicoré OlindaTonantins MamanguapeS. Paulo de Olivença Catolé do RochaTabatinga Capital da ParaíbaRemate de Males NatalTefé MacaúParintins CaicóBelém RedinhaSantarém Engenho Bom JardimÓbidos Rio de JaneiroMarajó BahiaPorto Velho MaceióMadeira-MamoréGuajará-MirimSeringal

NanaySan Pablo

LetíciaIquitosBahia Salvador

Alagoas MaceióPernambuco Recife

Ceará FortalezaRio Grandedo Norte Areia Branca

NatalVitória

Rio deJaneiroSão Paulo

Viagens analisadas

Viagem 1 - O Turista Aprendiz (viagem pelo Amazonas até o Perú, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega)

Viagem 2 - O Turista Aprendiz (viagem etnográfica)

Período/datas1927 1928-1929

07/05/1927 a 15/08/1927 28/11/1928 a 24/02/1929

Localização

Norte/Nordeste Nordeste

Norte

Amazonas

PE

PB

RN

Para

Outros

Rondônia

Peru

Nordeste

Outros

32

Essas categorias não são estanques: o livro de poesia Remate de Males, publicado em

1930, por exemplo, é o nome de uma cidade visitada na região amazônica, portanto na

primeira viagem etnográfica. Da mesma forma, algumas observações presentes nos

livros do projeto Na Pancada do Ganzá também fazem parte da viagem amazônica.

Possivelmente as análises e escritos literários precisaram de mais tempo (e outra

viagem) para que fossem gestados e retrabalhados para publicação.

Remate de Males traz ainda uma série de poemas publicados sob o título Poemas da

Negra, onde aparece a figura religiosa de Mestre Carlos (A jurema perde as folhas

derradeiras/Sobre Mestre Carlos que morreu...)13 que Mário de Andrade tanto retratou

em O Turista Aprendiz, assim como a jurema, planta típica do nordeste que é utilizada

em rituais religiosos observados por Mário de Andrade na sua segunda viagem

etnográfica. Nesse livro aparecem também os poemas líricos de Tempo de Maria. Telê

Lopez (2002) lembra ainda que nesse poema aparece o conceito de perfil duro, também

presente na Uiara de Macunaíma. Além é claro, da constatação do próprio autor quando

percebe o “Grito imperioso de brancura em mim”14. Na realidade, o livro está repleto

de citações, passagens e referências sobre a cultura brasileira e, por vezes, retoma

situações já colocadas em Macunaíma.

Metodologia

Para realizar este trabalho, buscamos uma abordagem multidisciplinar, trazendo para as

Ciências Sociais, mais especificamente, para a compreensão do pensamento social

brasileiro, aspectos da Sociologia, da Ciência Política, e ainda contribuições de áreas

afins: Literatura e Filosofia. Assumimos que o conhecimento dessas outras áreas, que

tangenciam as Ciências Sociais, permite maior entendimento e compreensão do tema

desta tese.

13 Para mais detalhes, ver Poesias Completas (2005), pg. 251. 14 Idem, pg.265.

33

Também realizamos um estudo bibliográfico sobre a contextualização histórica do

Brasil durante o momento analisado, início do século XX. Esse histórico auxilia no

entendimento do papel do modernismo e, mais especificamente, do papel de Mário de

Andrade nessas discussões sobre o Brasil.

Antonio Candido, em Literatura e Sociedade (2000), fala da importância da literatura

como forma de compreensão do país, o que justifica o intento desta pesquisa, que tem a

literatura como um de seus pilares de fundamentação. Candido (2000) lembra que essa

busca pelo Brasil já fazia parte de nossos escritores e intelectuais bem antes do

Movimento Modernista:

A literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar a consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel importantíssimo do romance oitocentista como exploração e revelação do Brasil aos brasileiros. (Candido: 2000, 121).

Em O Turista Aprendiz percebe-se a tentativa de Mário de Andrade em “refletir sobre a

consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas Brasil”, principalmente na

segunda viagem etnográfica, quando as crônicas se aproximam de relatos, a partir das

impressões causadas pela observação cotidiana, e reverberam na coluna assinada por ele

no Diário Nacional.

Ainda pensando na relação entre literatura e ciências sociais, Octavio Ianni em

Sociologia e Literatura (1998) afirma:

Sob vários aspectos, o sociólogo e o escritor narram. O mesmo se pode dizer do historiador, antropólogo e outros cientistas sociais; assim como do poeta, pintor, cineasta e outros artistas. Também o filósofo narra. Narrar é algo comum a todos, como a dimensão mais geral do processo de elaboração, produção, criação ou realização de uns e outros. Em todos os casos, a despeito das diferenças de linguagens, todas as realizações traduzem-se em textos ou narrativas nas quais há sempre algo de exorcismo, sublimação ou fabulação (Ianni: 1998, 38).

Observa-se também a diferença das linguagens utilizadas nos textos que compõe cada

parte d’O Turista Aprendiz (2002). Na segunda parte do livro há uma preocupação com

a narrativa crônica propriamente dita. Nessa perspectiva, citamos Walter Benjamim, em

seu famoso artigo O Narrador (2008): “cronista é o narrador da história” (pg. 209).

34

Sua análise aprofunda-se ao estabelecer ligação entre narração e história enquanto

formas de registro dos acontecimentos:

O historiador é obrigado a explicar de uma maneira ou outra os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representa-los como modelos de história do mundo. É exatamente o que faz o cronista, especialmente através de seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna (Benjamin: 2008, 209).

Essa função de narrador da história fica latente nos escritos da segunda viagem

etnográfica, constituída basicamente por crônicas elaboradas a partir das observações

que Mário de Andrade fazia da realidade brasileira. Afrânio Coutinho (1988) recorda

que a crônica e o cronista têm a mesma origem etimológica na palavra grega cronos e

“relacionavam-se com o relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar”

(pg. 306). Por sua vez, Antonio Candido, no texto, A vida ao rés-do-chão (1992)

classifica-a como um gênero brasileiro “pela naturalidade com que se aclimatou aqui e

a originalidade com que aqui se desenvolveu” (pg.15) além de buscar a oralidade na

escrita, o que, sabemos, foi algo constante nas obras de Mário de Andrade.

Em suma, analisamos aqui o papel de Mário de Andrade no processo constante de

entender o Brasil, ao mesmo tempo em que o apresenta e representa aos brasileiros.

Pesquisamos suas diversas faces seja a do poeta e escritor modernista (homem literato),

do intelectual (homem pesquisador) ou de agente da política-institucional (homem

público). Vemos em Mário de Andrade uma polifonia que ele mesmo observa em

alguns momentos de sua poesia, como no poema Eu sou trezentos... escrito em

07/06/1929, pouco depois do retorno de sua segunda viagem etnográfica, e publicado

como poema de abertura do livro Remate de Males. Pode ser considerado como uma,

das diversas autodefinições de Mário de Andrade, pelos múltiplos interesses presentes

em sua obra e na sua vida.

Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh Pirineus! Ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! Abraço no meu leito as milhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios; Eu piso a terra como quem descobre a furto Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos! Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo...,

35

Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo.15

Essa poesia exprime todas as gamas de interesse do universo mariodeandradiano

abordadas no decorrer desta tese. Mesmo que esses trezentos ou trezentos e cincoenta

personagens sugiram algo de arrogância e ironia, como definiu Gilda de Mello e Souza

(1984: pg. XV), não deixam de refletir seus interesses multifacetados. Outro poema que

revela os muitos interesses do universo do escritor modernista foi publicado em 1944,

no livro Lira Paulistana, que, como o próprio nome indica, está mais centrado nas

percepções do seu ser paulistano. Esse é o enfoque principal do livro, composto por

poemas urbanos ou poemas de São Paulo, como definidos por ele.

Quando eu morrer quero ficar, Não contem aos meu inimigos, Sepultado em minha cidade, Saudade. Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paiçandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam. No Pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos. Escondam no Correio o ouvido Direito, o esquerdo nos Telégrafos, Quero saber da vida alheia, Sereia. O nariz guardem nos rosais, A língua no alto do Ipiranga Para cantar a liberdade. Saudade... Os olhos lá no Jaraguá Assistirão ao que há-de vir, O joelho na Universidade,

Saudade... As mãos atirem por aí, Que desvivam como viveram, As tripas atirem pro Diabo, Que o espírito será de Deus. Adeus16

15 Mário de Andrade, Poesias Completas, 2005, p 211. 16 Mário de Andrade, Poesias Completas, 2005, p. 381.

36

Neste poema a repetição do último verso mantem a memória e qualifica aquilo que já

foi dito/vivido por seu autor. Começa com a expressão do morrer em contradição com o

quero ficar. Embalado pelo desejo de se manter sepultado em São Paulo, sua cidade.

Além da presença da saudade, que também é expresso pelo sentimento dos rosais,

Ipiranga, Jaraguá e a própria Universidade, no caso a USP (com o qual manteve

vínculo). O poema continua como um passar pelo centro de São Paulo na rua Aurora,

no largo do Paiçandu e a Lopes Chaves, seu próprio endereço residencial, onde a

cabeça (memória) se mistura com o esquecimento. O passeio segue pelo Pátio do

Colégio onde deveria ser guardado seus dois corações: um coração vivo e um

defunto/Bem juntos. O Correio e Telégrafos demonstram seu interesse e mesmo sua

prática “antenada” com o mundo e saber da vida alheia. Não à toa é ali que aparece a

Sereia, presença importante no folclore brasileiro e em outras culturas longíquas, assim

como, em Macunaíma e algumas poesias. Por fim que sua unidade seja divida em dois:

diabo e deus. Mesmo que diabo fique com as tripas e o espírito (supondo que seja a

melhor parte) fique com Deus.

Valentim Facioli (1992) analisa este poema através da perspectiva das danças

dramáticas do Boi, cujo enredo também trata da própria partilha do animal:

O corpo do poeta deve ser dilacerado como num ritual popular das tradições do boi, o boi Paciência, ou o boi Estácio, para integrar em suas partes as partes da cidade, fragmentos integrativos de corpo a corpo, em busca da realização de uma totalidade pela qual o poeta sempre ansiou e que afinal restou produzida em sua obra, não como harmonia do mundo, senão como enorme problema cultural e poético, dos mais relevantes da moderna cultura letrada no Brasil (...). Finalmente, viu-se que há um fio condutor da obra de Mário de Andrade que me parece ser a relação amorosa do poeta com sua cidade natal, moderna-arcaica, em torno da qual se agregam os inúmeros problemas implicados por sua vasta e variada produção (Facioli: 1992, 78-9).

Outra fonte de estudo importante neste trabalho são os arquivos do CCSP e do IEB-

USP, onde estão guardados os materiais e coleções do próprio Mário de Andrade, das

suas duas viagens etnográficas e parte do material recolhido pela Missão de Pesquisas

Folclóricas.

O primeiro concentra os arquivos do Departamento de Cultura, ou seja, há vasto

material tanto da Missão de Pesquisas Folclóricas como também da Sociedade de

Etnologia e Folclore. Pode-se consultar atas, aulas transcritas e fichas de catalogação,

além de revistas e artigos publicados sobre a mesma temática. Também guarda os

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registros sonoros obtidos e coletados na MPF, que pertencem à discoteca pública

Oneyda Alvarenga, do CCSP. Por outro lado, o acervo do IEB-USP possui documentos,

livros e diversos objetos artísticos e pessoais que pertenciam à coleção particular de

Mário de Andrade, hoje disponíveis aos pesquisadores e demais interessados. É a

principal fonte de pesquisa sobre a vida e obra desse autor.

Observamos que a obra literária tem um significado em si mesmo, a construção de uma

realidade própria que possui significado estético. Ao manter essa ideia germinal, essa

tese é um esforço de deslocar a obra de Mário de Andrade para as Ciências Sociais.

Essa tarefa de interpretação sociológica tem em vista as atividades práticas do escritor e

a institucionalização de suas ideias.

Para a análise da tese, a metodologia está pautada em duas abordagens teóricas e

metodológicas inter-relacionadas, a saber: uma análise interna e outra, externa, das

obras de Mário de Andrade. A primeira busca compreender estruturalmente ideias e

conceitos desenvolvidos n’O Turista Aprendiz. Procuramos destrinchar essa obra, a

mais significativa neste trabalho, mas também os livros que compuseram o projeto Na

Pancada do Ganzá. Além desse esforço, buscamos analisar outras obras literárias e

ensaísticas que, em alguma medida, repercutiram as viagens etnográficas realizadas

pelo escritor. Assim, no capítulo 3 é realizada a análise interna d’O Turista aprendiz e,

no capítulo seguinte, as obras do projeto Na Pancada do Ganzá.

Além disso, explanamos as condições sócio-econômicas e políticas existentes durante a

produção das obras em questão, objetivando uma vinculação conjuntural e histórica

com a biografia do autor. Convém ainda indicar que as obras serão analisadas na relação

que mantêm entre si, construindo uma rede de ideias, de modo a compor um quadro

final de referências, formulações e conceitos de Mário de Andrade sobre a finalidade

desta pesquisa.

Estrutura dos Capítulos

Na Apresentação, resumimos as discussões e análises que serão desenvolvidas no

decorrer da presente tese. No capítulo 1 discute-se as ideias gerais do modernismo no

Brasil, e como elas dialogaram com todas as perspectivas de transformações culturais,

artísticas, sociais e políticas do período compreendido entre as décadas de 20 e 30 do

38

século passado. Em outras palavras, estudamos as questões que tangem o modernismo

em seus projetos estéticos e ideológicos. Mais especificamente, discutiremos

particularidades do modernismo mariodeandradiano, como o autor o praticava e como

exercia seus ideais modernistas em parte de sua obra e trajetória política. Esse capítulo

fornece subsídios para as análises que realizaremos no decorrer dos capítulos

subsequentes.

Na primeira parte (capítulos 2 e 3), trataremos do conceito de literatura de viagens, na

medida em que o livro se encaixa neste gênero. Também observaremos mais

detalhadamente os escritos de Mario de Andrade durante e após as viagens etnográficas,

que originaram o livro O Turista Aprendiz. Em seguida, tratamos da repercussão dessas

viagens em algumas obras literárias, sejam poesias, romances, contos ou crônicas. A

preocupação foi determinar alguns textos literários tangenciados pelas viagens

etnográficas, procurando atestar a importância delas em sua obra e trajetória política.

Na segunda parte (capítulos 4 e 5) veremos com as viagens etnográficas foram

fundamentais para a obra de Mário de Andrade e sua trajetória política. O capítulo 4

está focado em seu projeto de interpretação do Brasil, Na Pancada do Ganzá.

Analisamos suas propostas e pesquisas sobre a brasilidade. Os livros que tratam desse

projeto – Os Cocos, Danças Dramáticas do Brasil, Música de Feitiçaria no Brasil e As

Melodias do Boi e outras peças – tem a perspectiva de uma cultura brasileira mais

popular, oriunda das três heranças culturais que formam o brasileiro: indígena,

portuguesa, africana. No capítulo 5, procuramos analisar o reflexo das viagens

etnográficas em seu trabalho no Departamento de Cultura do Município de São Paulo e

suas ações na Missão de Pesquisas Folclóricas e também na Sociedade de Etnologia e

Folclore. Acreditamos que as viagens aprimoraram uma visão de mundo pautada por

uma postura crítica em relação às profundas transformações que a sociedade brasileira

passava naqueles anos. E, como homem público, baseou suas ações em conhecimentos

antropológicos e etnológicos que o fizeram propor políticas de preservação da cultura

brasileira.

Capítulo 1 – O Modernismo e Mário de Andrade

Discutimos aqui as propostas modernistas e, mais especificamente, comparando-as com

as de Mário de Andrade. A análise observa suas concepções e entendimento acerca do

39

modernismo e como se diferenciam de outros colegas de movimento. Assim,

desenvolvemos uma análise sobre os projetos estéticos e ideológicos do modernismo

brasileiro. Outro escopo é a reconstituição do contexto histórico dos anos 20 e 30,

período tomado como base para a pesquisa. Essa reconstituição tem como tarefa

entender as transformações sócio-político-culturais pelas quais o Brasil passou nesse

período, muito significativas para o país. O intuito é entender melhor as escolhas do

autor, quando viaja para pesquisar o Brasil e, posteriormente, suas atividades e

propostas de homem público, atuando no Departamento de Cultura.

Também procuramos entender o modernismo como um projeto estético, político,

ideológico e social, que objetivava intervir na vida social brasileira. Vários dos

modernistas aderiram a projetos políticos, inclusive partidários, em espectros tanto

ligados à esquerda como à direita. Tudo isso dentro do olhar e perspectiva de Mário de

Andrade modernista e sua relação com outros atores do mesmo movimento.

Capítulo 2 – O Turista Aprendiz, discussão teórica

Este capítulo e o seguinte tratam da principal hipótese desta tese, que é a importância

das viagens etnográficas de Mário de Andrade, e o impacto que tiveram em sua

trajetória política e em parte de sua obra literária. Assim, problematizamos a questão da

literatura de viagens como gênero literário que abarca O Turista Aprendiz.

Conceitualmente, discutiremos a literatura de viagens à luz de teorias literárias que

interpretam esse gênero como importante e tradicional na literatura ocidental, sobretudo

na literatura de língua portuguesa.

O primeiro livro é fruto da primeira viagem etnográfica e, no prefácio, o autor se auto-

define como um “antiviajante”. Nessa primeira parte, diversos relatos estão no domínio

da ficção, que Mário de Andrade cria a partir de sua experiência real. Ao mesmo tempo,

usa a mesma vivência para expandir suas percepções e análises críticas do Brasil. Aqui,

de acordo com alguns estudiosos de sua obra, há um mergulho no universo da

brasilidade e na coleta de materiais que faria parte de sua brasiliana.

Trataremos das crônicas ficcionais sobre os índios do-mi-sol e Pacaás Novos, que, em

nosso entendimento, são importantes, transcendem a pura ficção e se aproximam da

antropologia, da etnologia e dos folcloristas. A pesquisadora Telê Lopez (1994) lembra:

40

No diário do Turista, o exercício da ficção arquiteta uma particular tribo dos Pacaás Novos e os índios Do-Mi-Sol, sátiras desvelando o que a moral civilizada oculta, no inverter das interdições relativas ao corpo. Ambos renegam a fala e se obrigam a vestir o rosto e a cabeça (Lopez: 1994, 63).

Outra questão desenvolvida neste capítulo é a percepção, nesse livro, da figura do

Narrador, de Walter Benjamim, a pessoa que cria histórias a partir de histórias que

outras pessoas (terceiros) contam e que, então, retransmite a mensagem recebida.

Algumas das pessoas e histórias que aparecem nessa primeira parte de O Turista

Aprendiz são reais, vivenciadas e recriadas pelo autor. A figura do narrador, ainda, nos

remete ao anti-herói Macunaíma: quem nos conta a história é um papagaio. Assim, a

presença do narrador benjaminiano aparece tanto na obra híbrida (O Turista Aprendiz)

como em sua obra-prima, Macunaíma.

A segunda viagem etnográfica é solitária e tem como finalidade pesquisar a cultura

brasileira. Mário de Andrade parte com intenção deliberada de registrar músicas, danças

populares e outras manifestações artísticas brasileiras através do contato direto com seus

produtores e executores. Para isso, organiza atividades em que recolhe letras, melodias e

passos das danças populares e dramáticas brasileiras.

Também discutiremos nesse capítulo o uso de imagens fotográficas, sempre caras ao

escritor modernista. Mário de Andrade, através de assinaturas de revistas e outros

materiais, acompanhava o desenvolvimento dessa arte na Europa e nos Estados Unidos.

Já na primeira viagem levou equipamento para “fotar”17 parte de suas experiências e

percepções amazônicas. Na segunda também parte com câmera fotográfica, mas o

cuidado com a documentação fotográfica foi mais constante na primeira viagem

etnográfica.

Capítulo 3 – O Turista Aprendiz, análise interna

É uma continuação do capítulo anterior, mas aprofunda a análise do próprio conteúdo

do livro O Turista Aprendiz (2002). Aqui, interessamo-nos por uma visão mais

sistematizada do conteúdo interno do livro publicado. Também discutimos a relação

entre o real e o ficcional, nos escritos realizados durante as viagens etnográficas.

17 Fotar é um neologismo criado por Mário de Andrade para o exercício de fotografar.

41

Na análise interna que realizamos da primeira parte do livro, alguns temas são bem

particulares da viagem realizada em 1927, a saber: o espaço amazônico, a criação

literária, o estrangeiro, os compromissos oficiais, a culinária e alimentação, o homem-

do-povo, as manifestações culturais e a civilização brasileira. Alguns desses relatos

foram escritos em uma estrutura mais próxima da ordem do sensível; outros mais

próximos do inteligível, sobretudo quando observadas as crônicas da segunda viagem

etnográfica. Alguns escritos foram feitos no decorrer dos acontecimentos; outros,

possivelmente, depois de maturação racional e burilamento do texto com reflexões

sobre os fenômenos sociais, políticos e culturais observados.

Na análise interna referente à segunda viagem etnográfica, os temas suscitados são um

pouco diferentes dos temas que apareceram durante a viagem anterior, entretanto outros

coincidem, a saber: a civilização brasileira, as manifestações culturais, os contatos, as

crônicas críticas, os aspectos religiosos, a arquitetura, a criação literária e o homem-

do-povo.

No momento dessa segunda viagem, é notório o trabalho voltado para publicação no

Diário Nacional, com crônicas críticas sobre a realidade nordestina e a percepção do

enorme abandono que sofre o chamado Brasil real.

Capítulo 4 – Na Pancada do Ganzá

Este capítulo aprofunda o estudo dos livros compostos com o material obtido por Mario

de Andrade nas viagens etnográficas. Tais livros são considerados, nesta tese, como a

síntese da visão do autor sobre a cultura brasileira, também baseados no trabalho

etnográfico que ele próprio realizou. Podem ser vistos como seus livros de interpretação

do Brasil, da mesma forma que as obras – posteriores – de Gilberto Freyre e Sergio

Buarque de Holanda, igualmente intelectuais pensadores do Brasil.

Metodologicamente, e como no capítulo anterior, pretende-se a análise interna das

obras, extraindo delas seus temas e o desenvolvimento dos mesmos. Parte do material

coletado nas viagens foi usado em conferências, artigos e ensaios, alguns publicados em

jornais, outros em livros ou revistas. Incluímos aqui, então, outras publicações de Mário

de Andrade que dialogam com seu projeto de estudos e compreensão da cultura

brasileira. Também tratamos da intensa troca de ideias que manteve com alguns

42

interlocutores durante o processo e escritura deste material. Aqui, o material analisado

se encaixaria mais numa abordagem inteligível (entendido como algo mais próximo do

cognoscível ou perceptível pela razão), diferente do material de O Turista Aprendiz,

uma vez que houve tempo para o escritor modernista se empenhar no trabalho de

análise destes materiais.

Também é propósito deste capítulo compreender melhor o homem pesquisador, que

entendemos como essencial para o homem literato e para o homem público.

Corroborando a faceta do homem pesquisador em Mário de Andrade, encontramos

referência, por exemplo, em Antonio Candido, que afirmou em entrevista publicada na

revista Trans/Form/Ação, nº 1 de 1979 e republicada no vol.34 (2011)18:

Mário ressalta mais claramente a noção de serviço, coletividade, de busca do popular. É preciso não esquecer que ele foi o único escritor brasileiro de primeira plana que procurou levar efetivamente a cultura do povo, transformando-a em bem coletivo.

Entendemos que essa “transformação da cultura em bem coletivo de todos os

brasileiros” começou com os estudos das manifestações culturais e artísticas brasileiras,

e que, como homem público, desenvolveria em seu trabalho à frente do Departamento

de Cultura.

Capítulo 5 – Departamento de Cultura

Neste capítulo discutimos o papel de Mário de Andrade quando à frente Departamento

de Cultura do Município de São Paulo, entendendo que, com esse cargo, efetivamente

teve uma atuação política institucional. Foi nessa circunstância que desenvolveu a

Missão de Pesquisas Folclóricas e as atividades da Sociedade de Etnologia e Folclore

(SEF). Mas julgamos que sua atuação política é bem mais abrangente, pois está presente

também em sua obra literária e em seu projeto estético de modernista.

Cabe fazer um parênteses aqui, para afirmar que não é só neste momento que Mário de

Andrade faz política, pois a sua própria escrita literária e projeto estético continham

elementos políticos e ideológicos. Isto posto, é através da ação deste departamento que

18 Para mais detalhes, ver: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/article/view/1058. Acesso em: 10/02/2012.

43

incentivou práticas e realização de ações institucionais muito significativas até os dias

de hoje.

Vale referir brevemente, aqui, que a criação da Sociedade de Etnologia e Folclore,

anterior à MPF, tinha como objetivo a formação de pesquisadores e técnicos capazes de

reconhecer e coletar dados de populações tradicionais brasileiras, inspirados em

trabalhos que ocorriam em outros lugares do mundo e que Mário de Andrade conhecia a

partir de revistas e livros que colecionava. Para isso, criou cursos que eram coordenados

pela etnóloga Dina Lévi-Strauss, primeira mulher do antropólogo Claude Lévi-Strauss.

Tanto a MPF quanto a SEF são representativos do que Mário de Andrade entendia por

pesquisas sobre cultura popular brasileira. De acordo com Antonio Candido (na

entrevista citada), era Mário de Andrade, no grupo modernista, quem tinha a

preocupação maior em pensar com profundidade a realidade brasileira. Algumas das

ações desse homem público propiciaram a visão da cultura popular brasileira como um

legado, um patrimônio que deveria ser estudado e preservado. Essa ideia permanece

viva até os dias atuais.

Esses dois projetos institucionais, tão caros a Mário de Andrade, ecoam traços já

delineados por ele próprio na realização de suas viagens, são, por todos esses motivos,

objeto de análises mais acuradas neste capítulo.

44

CAPÍTULO 1 – O Modernismo e Mário de Andrade

Na Lagoa do Amanium perto (?) do igarapé de Barcarena / Manaus / 7-VI-27 / Minha obra prima. Foto de Mario de Andrade. Acervo IEB-USP

45

Neste primeiro capítulo pretende-se discutir em detalhes as propostas do modernismo

brasileiro, e mais pormenorizadamente, as de Mário de Andrade. Inicialmente,

contextualizamos brevemente os anos que antecederam 1922 (marco da fundação do

modernismo brasileiro, com a Semana de 22) e de outros movimentos culturais e

artísticos que inspiraram, ou ao menos aproximam-se do modernismo. Também

discutiremos as ideias e projetos de Mário de Andrade, cotejando-as com as de outros

escritores modernistas brasileiros. Procuraremos definir o que o escritor entendia por

modernismo e como essa conceituação guarda proximidade ou se distancia de outros

modernistas, tanto no campo da estética como no político e ideológico.

Também buscaremos avaliar em que medida as atividades artísticas, culturais e

intelectuais de Mário de Andrade foram fundamentadas em sua concepção modernista

e, mais tarde, influenciaram sua participação política na sociedade brasileira. Daí a

breve reconstituição histórica do início do século XX no Brasil, visando entender as

transformações sócio-político-culturais que o país e, mais especificamente, a cidade de

São Paulo, passaram nesse período, tão importantes para seu posterior desenvolvimento.

Essas significativas mudanças da sociedade brasileira podem ser condensadas em

transformações das estruturas políticas, econômicas, sociais, culturais e urbanas. No

início do século XX o Brasil deixava de ser Imperial, escravista, monocultor e agro-

exportador, e passava a contar com uma nova mão-de-obra – a do imigrante europeu.

Tornou-se uma República cada vez mais urbana e industrializada. Lafetá (2001) lembra

que essas mudanças começaram no século XIX com a abolição da escravidão, a criação

do emprego assalariado, surtos de industrialização e ondas imigratórias europeias, além

das agitações operárias dos primeiros anos do século XX. Observa-se a ascensão de

uma nova burguesia, baseada no desenvolvimento capitalista, o surgimento de uma

nova classe média e do proletariado. Foram transformações de monta, estimulando

intelectuais e artistas brasileiros, sobretudo nos modernistas, novas formas de

representar a sociedade brasileira, além de gerar uma busca pela identidade nacional,

expressa na brasilidade.

Figuras proeminentes da nossa intelectualidade e cultura se debruçam, então, sobre uma

temática mais nacional. A própria sociologia brasileira surgiu também por esse mesmo

46

recorte da cultura, com a obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933,

como observado por Candido & Castello (2006). Genericamente, intelectuais e artistas

modernistas pretendiam, nesses anos iniciais do movimento, olhar o Brasil a partir de

suas características interiores, e não mais pelo viés proveniente do exterior, por mais

que isso fosse uma contradição já apontada dentro do próprio modernismo brasileiro.

A importância de estudarmos um movimento cultural e artístico no Brasil como forma

de entender a própria sociedade brasileira, deriva de uma concepção apontada por vários

estudiosos, entre eles, Antônio Candido. Em uma de suas obras mais importantes,

Literatura e Sociedade (2000), o principal crítico literário do país, afirma:

A força do Modernismo reside na largueza com que se propôs a encarar a nova situação, facilitando o desenvolvimento até então embrionário da sociologia, da história social, da etnografia, da teoria educacional, da teoria política. Não é preciso lembrar a sincronia dos acontecimentos literários, políticos, educacionais, artísticos, para sugerir o poderoso impacto que os anos de 1920-1935 representam na sociedade e na ideologia do passado (Candido: 2000, 122).

Assim, para este autor, o modernismo, além de importante para artes e culturas

brasileiras, ultrapassa essas fronteiras, ajudando na elaboração da então nascente

sociologia brasileira (e igualmente, da antropologia). Para ele, uma das principais

características das letras brasileiras e latino-americanas é o ensaio interpretativo. E é

pela força do ensaio que a sociologia brasileira nasce com Gilberto Freyre, Sérgio

Buarque de Holanda e Caio Prado Jr (lembramos que os dois primeiros tiveram contato

com o modernismo). Nesta tese, incluímos o nome de Mário de Andrade como

intérprete do Brasil, a partir do campo cultural. Essa interpretação, em nosso

entendimento, será desenvolvida a partir das viagens etnográficas.

Antonio Candido & José Aderaldo Castello em Presença da Literatura Brasileira:

Modernismo, história e antologia (2006) sintetizam assim o movimento modernista: “A

denominação de Modernismo abrange, em nossa literatura, três fatos intimamente

ligados: um movimento, uma estética e um período” (Candido & Castello: 2006, 9).

Consequentemente, o modernismo expande sua importância para além da questão

literária, contribuindo também para moldar aspectos da sociedade e da política

brasileiras, na primeira metade do séc. XX. É essa relação, entre movimento, estética e

período, que nos interessa estudar aqui. E, além dela, também a da vertente ideológica e

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política. Antonio Candido (2000), sintetiza sua percepção sobre o modernismo da

seguinte maneira:

Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido mais amplo de movimento das ideias, e não apenas das letras) corresponde à tendência mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro. Nele, e sobretudo na culminância em que todos os seus frutos amadureceram (1930-40), fundiram-se a libertação do academicismo, dos recalques históricos, do oficialismo literário; as tendências de educação política e reforma social; o ardor de conhecer o país (Candido: 2000, 114).

Notemos que “o ardor de conhecer o país” seria elemento importante para os

modernistas e, mais ainda, para Mário de Andrade. Este ardor continuará com ele e, em

anos posteriores, o fará realizar as duas viagens etnográficas. A relação observada entre

sociologia, literatura e modernismo também é objeto de análise por parte de Candido

(2000):

Antes, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, a sociologia aparecia mais como “ponto de vista” do que como pesquisa objetiva da realidade presente. O poderoso ímã da literatura interferia com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil, e à qual devemos a pouco literária História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, Os Sertões, de Euclides da Cunha, Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, a obra de Gilberto Freyre e as Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Não será exagero afirmar que esta linha de ensaio – em que se combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e a observação, a ciência e a arte – constitui o traço mais característico e original do nosso pensamento (Candido: 2000, 119)19.

João Luiz Lafetá em seu livro 1930: a Crítica e o Modernismo (2001), coloca o

modernismo como um movimento que “retoma e aprofunda uma tradição” que já era

presente na literatura brasileira. Ele afirma:

Nesse panorama de modernização geral se inscreve a corrente artística renovadora que, assumindo o arranco burguês, consegue paradoxalmente exprimir de igual forma as aspirações de outras classes, abrindo-se para a totalidade da nação através da crítica radical às instituições já ultrapassadas. Nesse ponto o Modernismo retoma e aprofunda uma tradição que vem de Euclides da Cunha, passa por Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato: trata-se da denúncia do Brasil arcaico, regido por uma política ineficaz e incompetente (Lafetá: 2001, 27).

Deste modo, apesar de inúmeras renovações que o modernismo brasileiro propõe, ele

representa também a manutenção de uma tradição artística e, sobretudo, literária muito

forte no Brasil, que é a busca pela brasilidade. Outros autores das letras brasileiras já

externavam essa preocupação com um “olhar para dentro do Brasil”, como a Escola do

19 Os grifos são de Antonio Candido.

48

Recife (1870), além dos já citados por Lafetá. Assim, esta pesquisa analisa a

importância do modernismo para o debate dentro do pensamento social brasileiro,

observando seus desdobramentos para além do universo literário e artístico, tentando

compreender melhor a relação entre movimento, estética, período e também a política

dos anos 20 e 30, onde se situam os grandes debates estéticos e ideológicos do

modernismo.

Antonio Candido (2000) coloca ainda a importância literária de obras de outros

escritores, como José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo e também do

modernista Graciliano Ramos como formas das “melhores expressões do pensamento e

sensibilidade” no Brasil (Candido: 2000, 119). Ele inclui na lista as poesias de

Gonçalves Dias, de Castro Alves e do próprio Mário de Andrade, além de ensaios de

Joaquim Nabuco, Euclydes da Cunha e Gilberto Freyre. E conclui: “Diferentemente do

que sucede em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as

ciência humanas, o fenômeno central da vida do espírito” (Candido: 2000, 119). Fica

evidente a importância que a literatura tem na vida social brasileira, sobretudo no início

do século XX. E também dentro do próprio modernismo, pois foram as letras que

estimularam muito da reflexão sobre a sociedade brasileira. Ainda hoje, quando

pensamos em modernismo, são os nomes de escritores como Oswald e Mário de

Andrade os primeiros a serem lembrados, mostrando a importância da escrita nesse

movimento e processo de entendimento de Brasil. Afrânio Coutinho (1988) comenta:

Dos mais importantes movimentos do Brasil, o Modernismo, exaltação da psique moderna, não se limitou à esfera literária e artística, mas envolveu todo o complexo da cultura, e se a literatura e as artes foram radicalmente renovadas, toda a cultura brasileira foi atingida por uma transformação profunda. Como disse Graça Aranha na conferência da Academia, o espírito moderno ‘não se deveria limitar às letras e às artes, mas possuir uma identificação total com o povo e o país’. Além disso, com envolver todas as formas da vida e atividade cultural teve âmbito nacional. Foi um movimento de integração (Coutinho: 1988, 279-280).

João Luiz Lafetá (2001) concorda que uma das características de nossa literatura é o “o

processo de conhecimento e interpretação da realidade nacional” (p. 21). E Eduardo

Jardim de Moraes em seu livro A Brasilidade Modernista – sua dimensão filosófica

(1978) também lembra que:

A filosofia é chamada, desta forma, a participar do exame que empreendemos da questão, na medida em que o próprio movimento se propôs à definição ou uma nova maneira de ler o pensamento nacional e de indicar caminhos para o seu desenvolvimento (...) que concernem à questão da brasilidade (Moraes: 1978, 11-12).

49

Coutinho (1988) aponta que esta valorização da realidade brasileira “redundaria na

criação de um verdadeiro gênero cultural”, a saber: o de estudos brasileiros. E que

seria composto por trabalhos de Alberto Torres, Oliveira Vianna, Nina Rodrigues e do

próprio Euclydes da Cunha. O movimento de olhar para dentro do Brasil, típico do

modernismo, não era, então, totalmente inédito na história literária brasileira. O mesmo

Jardim de Moraes (1978), mais adiante lembra que “a formulação da ‘problemática da

brasilidade’ tem suas raízes ligadas à tradição do pensamento brasileiro” (p.12).

Nicolau Sevcenko em Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na

Primeira República (2003) também aponta essa característica ao analisar a obra de dois

escritores imediatamente anteriores ao período modernista: Lima Barreto e Euclydes da

Cunha.

Ainda de acordo com Sevcenko (2003), foi a transição entre os séculos XIX e XX que

assinalou “mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira” (p.286), como a

proclamação da República, por exemplo. Antes mesmo dos modernistas, são vários os

intelectuais e artistas que se propõem a pensar o Brasil e os brasileiros. Citamos José de

Alencar e o movimento indianista, o sergipano Tobias Barreto e sua aproximação com a

Escola do Recife, Lima Barreto com suas crônicas urbanas sobre o Rio de Janeiro e

ainda Euclydes da Cunha e a questão sertaneja, com a Guerra de Canudos (1896-7).

Para Sevcenko (2003), já havia um empenho em Lima Barreto de “fazer de seu

instrumento artístico um instrumento de difusão das grandes ideias do tempo” (p. 99),

que também seria incorporado pelos modernistas no início do século XX. Na realidade,

Sevcenko aponta que, após a 1ª Guerra Mundial, há um florescimento do sentimento

nacionalista, ainda mais forte e presente nas letras brasileiras, nos anos subsequentes:

Em 1916, contudo, Olavo Bilac, discursando na Academia de Ciências de Lisboa, ao mesmo tempo que declarava passada a ‘fase ignóbil’ da ironia, proclamava que ‘a nossa literatura, aqui e no Brasil, é hoje nacionalista, e será nacionalista’. São os efeitos da guerra sobre a cultura. Uma onda copiosa de literatura nacionalista toma conta do país, com destaque para São Paulo, onde são instituídos concursos públicos de literatura sobre temas populares e folclóricos (Sevcenko: 2003, 124)20.

20 Os grifos são do autor. Lembramos ainda que, a partir da década de 30, há um recrudescimento das questões ideológicas no mundo todo e que, inclusive, pautará grande parte do embate ideológico e estético entre os modernistas brasileiros.

50

Um desses concursos foi realizado por Monteiro Lobato em 1918, através do jornal O

Estado de São Paulo, do qual era colaborador. Solicitou aos leitores que escrevessem

causos de aparecimentos do Sacy-Pererê, no interior do Brasil, pois temia que esse

personagem do folclore brasileiro desaparecesse com os processos de transformações

sociais e urbanas em voga naquele momento. A resposta foi tão grande que ele acabou

por publicar um livro (sem assinar seu nome) – Sacy-Pererê: resultado de um inquérito

– a partir desse concurso.

Por sua vez, José Paulo Paes e Massaud Moisés, em Pequeno Dicionário de Literatura

Brasileira (1964) também apontam o ano de 1916 como início de uma nova

mentalidade brasileira, que culminaria com a Semana de Arte Moderna de 22:

Em perspectivas largas, o Modernismo foi apenas, na década de 20, a outra face de um ímpeto de reforma, inclusive política e social, de que se surpreendem as exsurgências mais diversas e inesperadas. Parece, portanto, perfeitamente correto tomar o ano de 1916 como a data convencional em que a caracterização de um novo estado de espírito implicará no aparecimento de uma nova escola literária e artística capaz de substituir o Parnasianismo e o Simbolismo, já então decididamente esgotados enquanto tipo de sensibilidade coletiva. (Paes & Moisés: 1964, 164).

Assim, situando o movimento modernista, observamos que suas ideias não surgem de

forma repentina ou espontaneamente, o mesmo vale para a Semana de Arte Moderna.

Essas ideias aparecem e amadurecem com o passar dos anos, desde pelo menos o início

do século XX. Para Coutinho (1988), o ano de 1909 é importante pela publicação da

obra Recordações de Isaías Caminha, de Lima Barreto, de “espírito inconformista” (p.

256).

Outro evento significativo, na cultura brasileira, é a famosa exposição da pintora Anita

Malfatti, em 1917, e o debate que suscitou entre Monteiro Lobato e Mário de Andrade.

Enquanto Monteiro Lobato criticou o novo fazer artístico, Mário de Andrade procurou

defender Anita Malfatti contra o excesso de academicismo, ainda em vigor no Brasil.

Esse academicismo foi tratado como um “passadismo”, criticado pelo movimento

modernista e que deveria ser superado por uma nova linguagem estética21. Também por

esse embate, após a publicação do artigo Paranoia ou mistificação, de Monteiro Lobato,

21 Aliás, sobre a questão de transformação da linguagem estética, vale observar melhor o livro de João Luiz Lafetá (2011).

51

ocorreu o afastamento entre esse autor e o modernismo enquanto movimento (embora

haja outras aproximações entre eles).

Nicolau Sevcenko (2003) procura, também, apontar as condições para a emergência de

novas posturas sociais, culturais, estéticas, políticas e ideológicas. Ele escreve:

A cena estava mais clara e definida agora com a nova situação internacional. Obrigados a voltar-se para si mesmo, para o seu território e sua própria gente, na necessidade crua de garantir a sua própria sobrevivência, todos os grupos intelectuais patenteavam a urgência e a conveniência de prover um saber eficaz sobre a realidade da nação. (...) É de tal entrecruzamento de fatores que nasceu a proposta estética mais candente desse fim de período, da pena de Monteiro Lobato. Graça Aranha, em A estética da vida, de 1921, pouco mais faria que dar maior consistência filosófica e teórica, à parte de um maior refinamento literário, a uma matéria que Lobato já entalhara. O mérito maior talvez seja mais das condições do período do que de qualquer dos dois (Sevcenko: 2003, 136).

Fica clara, portanto, uma cena interna no Brasil, que estimula a busca generalizada por

suas próprias raízes. Jardim de Moraes (1978), aliás, mostra uma leve discordância de

Sevcenko (2003). Para ele, a obra A Estética da Vida, de Graça Aranha, lançada em

1921 é importante para o movimento, sobretudo em questões que abordam a

brasilidade, e teria suas “raízes ligadas à tradição do pensamento brasileiro” (Moraes:

1978, 12).

Nessa mesma obra, Moraes (1978) relaciona e aproxima a procura mais inteligível da

brasilidade, na obra de Mário de Andrade, ao trabalho realizado pela Escola do Recife,

principalmente pelo papel de Silvio Romero e sua enorme obra de recenseamento da

cultura nacional. Para Moraes, Mário de Andrade havia retomado este caminho. Como

consequência a valorização do intuitivo era mais próxima de Oswald de Andrade, Plínio

Salgado e Graça Aranha. Mário de Andrade, na análise dos trabalhos aqui analisados,

desenvolve um lado mais racionalizado das experiências vivenciadas. Ele afirma:

Podemos verificar na oposição de Mário a Oswald de Andrade, particularmente na defesa que o primeiro faz da sabedoria, do estudo, da “sabença” para utilizar sua expressão, que as vias de construção da cultura brasileira começavam a divergir. Sabemos como Mário de Andrade, desde essa época, preocupava-se mais em pesquisar, no sentido quase universitário da palavra, os elementos que constituem a brasilidade. Sua obra, com raras exceções, é obra de um estudioso. Ao final, de sua vida, Mário haverá de recriminar a si próprio o fato de ter praticamente abandonado o setor de criação artística da sua obra e de ter encaminhado para empreender o imenso levantamento da cultura brasileira em que ele energicamente batalhou (Moraes: 1978, 93).

Enfim, a prática dessa “sabença” adquire grande importância para esta tese, pois é

justamente com a busca da “sabença” do homem-do-povo que Mário de Andrade

52

constrói sua concepção cultural do Brasil e, ao mesmo tempo, é o que procura em suas

viagens etnográficas.

Lembramos que, para Mário de Andrade, sobretudo em O Turista Aprendiz, a intenção

de suas pesquisas residia em unir um “arte-fazer”, onde realidade e ficção poderiam ser

compartilhadas. Mais: ficção, poesia, crônicas e outras expressões literárias poderiam

ser artisticamente trabalhadas, de maneira mais inteligível, a partir do contato com a

realidade. Ou ainda, como afirma Davi Arrigucci Jr. no posfácio O que é no mais fundo

(1994):

Em 1927, aos 34 anos, Mário de Andrade viveu a experiência ímpar de uma viagem ao norte do Brasil na companhia de duas belas mocinhas de quinze anos e uma elegante mulher madura, embarcados em alegre camaradagem ao longo dos rios amazônicos. A viagem em princípio uma excursão modernista para coleta de material etnográfico e reconhecimento do País, parece ter dado também em outras praias, tornando-se importante para o escritor, sob vários aspectos. Foi parcialmente relatada, como se sabe, no diário de bordo de O Turista Aprendiz; nem tudo, porém, se acha ali. (1994, 178)

Assim, o contato com a realidade brasileira, proveniente das viagens etnográficas,

serviu tanto para a exploração de novos temas a em sua literatura, como para refletir as

condições do país (voltaremos a esse assunto no próximo capítulo).

Outra figura importante para o desenvolvimento do modernismo brasileiro é o escritor e

poeta francês Blaise Cendrars. O contato entre esse poeta, figura-chave do modernismo

francês, e os modernistas brasileiros, começa com a amizade que estabelecida com

Paulo Prado. Em 1923, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, que passavam uma

temporada em Paris, entram em contato com o poeta francês e começam a frequentar

com mais assiduidade salões e espaços artísticos parisienses. Surge, então, o convite

para conhecer o Brasil, aceito no ano seguinte, e de importância ímpar para o

desenvolvimento de sentidos estéticos nos principais próceres do modernismo

brasileiro: Oswald e Mário de Andrade.

Foi na companhia desse francês que um grupo modernista realiza uma importante

viagem para Minas Gerais, passando pelas cidades históricas, durante a Semana Santa

de 1924 (quando se deparam com a figura de Aleijadinho). Foi a “viagem da descoberta

do Brasil”. Ao mesmo tempo, a obra de Blaise Cendrars mostrava preocupação e busca

com e pelo primitivismo, o que o Brasil do início da década de 20 poderia conter.

53

Manifestou-se no movimento Pau Brasil, comandado por Oswald de Andrade, e

também na busca de Mário de Andrade pelas raízes mais populares. Aracy Amaral

(1997) nos informa que Mário de Andrade já havia visitado as cidades históricas

mineiras, em 1916. E que já publicara, a respeito, alguns artigos na Revista do Brasil

(Amaral: 1997, 60). Assim, antes dos modernistas, Mário de Andrade conhecia a obra

barroca mineira.

Pouco antes dessa viagem a Minas Gerais, o mesmo grupo modernista passa o Carnaval

no Rio de Janeiro, observando festas e manifestações populares brasileiras. Essas visitas

tinham como motivação o encontro com um primitivismo que deveria pautar a

tendência modernista. Para tanto, escolheram datas tradicionais – Quaresma e Semana

Santa – que, eventualmente, possibilitariam observações acuradas nas cidades históricas

mineiras. O primitivismo se fez presente no modernismo brasileiro como uma

influência das vanguardas europeias e seus muitos artistas e intelectuais próximos dessa

conceituação: Gauguin, Pablo Picasso, Paul Klee, Joan Miró, André Breton, Blaise

Cendrars, entre outros.

Para Lafetá (2001), “os vanguardistas europeus foram buscar inspiração, em grande

parte, nos procedimentos técnicos da arte primitiva, aliando-os à tradição artística de

que provinham e, por essa via, transformando-a (pg. 22)”. Ou seja, o mesmo objetivo

perseguido pela vanguarda modernista do Brasil. Lafetá (2011) ainda diz:

No Brasil – já o notou Antonio Candido – as artes negra e ameríndia estavam tão presentes e atuantes quanto a cultura branca, de procedência europeia. O senso do fantástico, a deformação do sobrenatural, o canto do cotidiano ou a espontaneidade da inspiração eram elementos que circundavam as formas acadêmicas de produção artística. Dirigindo-se a eles e dando-lhes lugar na nova estética o Modernismo, de um só passo, rompia com a ideologia que segregava o popular – distorcendo assim a nossa realidade – e instalava uma linguagem conforme à modernidade do século (Lafetá: 2001, 22-3).

Retornando à Viagem da descoberta do Brasil 22 : ela não faz parte das viagens

etnográficas, e portanto não é escopo de análises desta tese. Mas importa mencioná-la,

pelo papel significativo de Blaise Cendrars para o modernismo brasileiro. A comitiva

dessa viagem foi composta pelo poeta francês, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade,

Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado, René

22 Para maiores detalhes e informações dessa viagem, ver Aracy Amaral em Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas (1997) e Alexandre Eulálio, em A aventura brasileira de Blaise Cendrars (2001). E também as obras do próprio Blaise Cendrars.

54

Thiollier e Gofredo da Silva Teles. Percorreram, no interior mineiro, as cidades

históricas do ciclo do ouro, a saber: Mariana, Congonhas do Campo, Ouro Preto, São

João del Rey, e Sabará, além da capital, Belo Horizonte. Procurava um contato mais

próximo com o povo, dentro da perspectiva estética do primitivismo proposta pelas

vanguardas europeias. A viagem ocorre entre 16 e 29 de abril de 1924, período que

inclui a Semana Santa. E foi suficiente por criar respeito e admiração, do grupo

modernista, pelo barroco mineiro e, sobretudo, para as obras de Aleijadinho.

Segundo Jardim de Moraes (1978), a viagem foi importante para a constatação de que,

se naquele período não havia artes plásticas, o Brasil já contara com ela, no período

colonial, através de Aleijadinho. Aliás, alguns autores apontariam que, no campo

artístico, tínhamos uma literatura pungente, mas não artes plásticas. Moraes (1978)

escreve: “O conhecimento ou descobrimento das artes plásticas do período colonial,

como do Aleijadinho, por exemplo, é resultante do surto de redescoberta do país

empreendido pela geração modernista” (p.39). Assim, o contato com o passado e a

possível reconciliação histórica com ele é fruto dessa viagem a Minas Gerias. E o

retorno de Mário de Andrade à essa região histórica talvez tenha sido fundamental para

sua redescoberta do Brasil e, quem sabe, impulsionado a realização das viagens

etnográficas. .

O impacto dessa viagem em seus participantes foi destacado, entre outros, por Telê

Lopez (2002), Aracy Amaral (1997) e Alexandre Eulálio (2001), e foram objeto nas

cartas trocadas pelos próprios modernistas, onde se identificam momentos de inspiração

e de discussão estética. Telê Lopez afirma:

A reflexão modernista, vinda deste contacto que se pretendeu direto com uma parcela do povo brasileiro, pôde focalizar os processos de criação popular percebendo-os mais livres e mais condizentes com nossas condições e, em alguns pontos, até mesmo apresentando coincidência com propostas de determinadas vanguardas européias. A “viagem da descoberta do Brasil” [a Minas Gerais] provoca um amadurecimento no projeto nacionalista de nossos modernistas, fazendo com que a ênfase, que de início recaía com mais força sobre o dado estético, possa ir, progressivamente, abrangendo e sulcando o projeto ideológico (Lopez: 2002, 16).

O contato com a poesia de Blaise Cendrars foi importante para Manuel Bandeira e para

Mário de Andrade. Mas foi essencial para Oswald de Andrade e para o movimento que

lideraria mais tarde, o Movimento Pau Brasil. Alexandre Eulálio (2001) afirma que

Manuel Bandeira reconhecia a influência do livro Du monde entier, do poeta francês,

55

sobre ele e outros modernistas. Por seu lado, Mário de Andrade afirmou-se impactado

por Dix-neuf poèmes élastiques, também de Cendrars, e que essa obra repercutiria no

livro de poemas publicado em 1926, Losango Cáqui. Cendrars apareceria também em

Macunaíma, citado no capítulo Macumba, em que o herói vai a uma sessão de

macumba solicitar uma surra no inimigo, Venceslau Pietro Pietra. Mário de Andrade

escreveria também uma crítica sobre Cendrars na revista carioca Estética, em 1925,

quando ainda próximo do modernista francês.

Sinteticamente, pode-se dizer que o modernismo, embora reflexo de movimentos que

ocorriam no mundo desde fins do século XIX, só se consolida de fato no Brasil com a

Semana de Arte Moderna de 22. E que também carrega uma contradição interna pois,

oriundo de ideias estrangeiras (atitude tão criticada pelos modernistas), ao mesmo

tempo se propõe um olhar para dentro do próprio país. O modernismo europeu,

sobretudo com suas correntes futuristas, cubistas, dadaístas e outras, já existia na cena

cultural e artística daquele continente e serviu de inspiração aqui, apesar das críticas dos

modernistas brasileiros aos excessos de estrangeirismos presentes no Brasil. Cumpre

também notar que esse movimento, ao propor uma nova forma de fazer artístico – além

da pesquisa estética por uma brasilidade – acabou por moldar toda uma sociedade,

desqualificando as formas artísticas anteriores como passadistas.

Para alguns autores estudados, como vimos, essa busca pela brasilidade, talvez uma das

características mais marcantes do modernismo brasileiro, foi acentuada a partir de 1924,

provavelmente por influência do contato com Blaise Cendrars e pela “viagem da

descoberta do Brasil”. Lopez (1993) sintetiza a importância desta viagem:

(...) percorre a Minas Gerais da tradição, deslumbrando-se com as cidadezinhas, cores e formas, as histórias, a música, a imaginária religiosa. E percebendo o primitivismo estético, perseguido pelas vanguardas da Europa, seria, para nós, simplesmente o reconhecimento de nossa sensibilidade. A aventura brasileira de Blaise Cendrars, no dizer de Alexandre Eulálio, significa, de fato, a aventura da descoberta de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral na pintura e na poesia, de Cendrars em Le Formose e Mário de Andrade em Clã do Jabuti (Lopez: 1993, 109).

Em 1924, por exemplo, Oswald de Andrade lança, pouco depois da viagem, o famoso

Manifesto Pau Brasil, também título do livro de poesia, inaugurando uma corrente

estética e ideológica dentro do modernismo. O livro foi dedicado ao amigo Blaise

Cendrars, “por ocasião da descoberta do Brasil”, como assina o próprio Oswald de

56

Andrade. Esta corrente que é representada diretamente por Oswald de Andrade na

literatura e Tarsila do Amaral nas artes plásticas e, notadamente na pintura são muitos

inspiradas pelo contato com o poeta francês e seu primitivismo. Paulo Prado, outro

modernista é quem assina a apresentação do livro de Oswald de Andrade. Coutinho

(1988) denomina essa corrente como primitivista e, além dos dois modernistas, inclui

Raul Bopp e Alcântara Machado. Candido & Castello (2006) falam desse movimento

como a busca por “uma poesia construída ingenuamente, de descoberta do mundo, da

terra brasileira e da sensibilidade individual” (p. 18).

É esse um dos traços mais peculiares do movimento modernista no Brasil: o querer

buscar um desenvolvimento da arte e da cultura genuinamente brasileiros. Para tanto, os

envolvidos começam a abandonar teorias e influências estrangeiras para tentar buscar

inspirações mais próximas da representatividade e realidade nacionais. Até aquele

momento, com raras exceções, a intelectualidade brasileira nutria-se de ideias vindas do

exterior (algo ainda presente em muitos de nossos hábitos culturais). Mário de Andrade,

em alguns textos e palestras, criticou o excesso de “francesismos” existentes no país.

Daí a proposta estética do modernismo, sempre pela busca de um primitivismo ainda

presente em nossa sociedade.

O olhar do poeta, fascinado pelo mundo, foi decisivo para construir o olhar de

brasileiros que buscavam a brasilidade. Aracy Amaral em Blaise Cendrars no Brasil e

os modernistas (1997) define a importância do encontro entre Cendrars e os

modernistas brasileiros:

Cendrars era um fascinado pelo mundo, por cada uma das riquezas que descobria fora dos limites de Paris. É esse o segredo que possuía e transmitiu aos jovens modernistas brasileiros, que por meio dessa chave também se descobriam a si próprios com maior segurança (Amaral: 1997, 41-2).

Em outra parte do seu estudo, Aracy Amaral (1997) transcreve a impressão de dois

companheiros de viagem: Gofredo da Silva Telles e René Thiollier julgavam ser

Cendrars o que mais aproveitava a viagem, querendo saber tudo. Naquele momento já

estava claro o interesse de Cendrars por uma linguagem estética primitivista e pela arte

negra, em geral.

57

O crítico literário Wilson Martins, em seu texto Cendrars e o Brasil (2001), refletindo

sobre o papel e impacto da viagem a Minas Gerias nos modernistas, afirma:

A partir da viagem de 1924, os modernistas podem ser nacionalistas e até ‘passadistas’ sem remorsos: Mário de Andrade pode escrever sobre escultura religiosa, Tarsila pode pintar seus quadros ingênuos, Oswald de Andrade pode inventar a poesia Pau-Brasil, o caminho está aberto para a fase de fervoroso nacionalismo que então se inaugura e que se vai prolongar por todo o resto da história modernista: depois do Pau-Brasil e por causa dele, o Verdeamarelismo; e por causa do Verdeamarelismo, a Antropofagia, que, segundo penso haver demonstrado em na ‘História da Inteligência Brasileira’, é bem possível que também se deva a Blaise Cendrars em uma de suas funções paradigmáticas de grande intermediário (Martins: 2001, 497).

Pensamos ter definido a inegável contribuição de Blaise Cendrars aos modernistas,

principalmente para Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, desde o primeiro encontro

com o poeta francês em 1923 e, mais ainda, após a convivência no Brasil. Para Mário de

Andrade foi igualmente importante, ao menos na percepção da necessidade de olhar

para dentro do Brasil. Nessa época Mário de Andrade afirma: “só sendo brasileiro é

que nos universalizaremos”23.

Antes de continuar a explanação sobre as características modernistas brasileiras e suas

especificidades, julgamos relevante uma análise sobre as periodizações, baseados nos

principais estudiosos do período, pois o intervalo de tempo conhecido como

modernismo (1922-1945) não é uniforme nas interpretações e guarda particularidades

que devem ser abordadas. Em outras palavras, há pequenas discrepâncias sobre a

divisão cronológica interna do modernismo brasileiro. Pensamos que não comprometem

este trabalho. Antes, auxiliam-no na compreensão cronológica geral do modernismo

brasileiro. Grosso modo, o início de qualquer movimento artístico e cultural possui uma

primeira fase, em geral mais radical ou aguerrida, exatamente para se impor frente ao

anterior.

Para Candido & Castello (2006), a primeira fase do modernismo vai de 1922 a 1930 e

seria sua fase mais combativa, justamente a que mais interessa a esta pesquisa.

Propunha grandes transformações na sociedade brasileira. Aqui importa observar as

cisões e os diversos grupos e movimentos internos do próprio modernismo nesta

periodização. Uma segunda fase seria entre os anos 1930 e 1945, quando o combate

23 Há uma confusão sobre esta frase, pois também é atribuída a Graça Aranha. Para saber mais, ver Jardim de Moraes (1978, p.44).

58

arrefece e surge um tempo de “grande fecundidade” (p.32), e para além do universo

artístico, apontando para a emergência de novas áreas de conhecimento, justamente

como consequência da primeira fase modernista:

É o caso dos estudos históricos e sociais: Sociologia, folclore, etnologia, história econômica e social, que passam por acentuada renovação, focalizando com intensidade crítica a realidade do País nas obras de Gilberto Freyre, Artur Ramos, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo, Caio Prado Júnior e outros. É o momento em que se fundam grandes coleções de estudos brasileiros e as primeiras Faculdades de Filosofia, Ciência e Letras, que teriam influência decisiva na formação dos quadros intelectuais. O movimento editorial se firma e se amplia, em escala nunca vista, terminando a dependência das firmas estrangeiras. A vida artística assume importância antes desconhecida, na pintura, na arquitetura, na música, na renovação teatral. (Candido & Castello: 2006, 32).

Literariamente, Candido & Castello (2006) apontam que a primeira fase modernista viu

uma primazia da poesia, enquanto a segunda fase, nos anos 30, foi caracterizada pela

força do romance, e a terceira, nos decênios de 40 e 50, viu a consolidação do teatro. No

campo poético, vale ressaltar que é nesse período que Mário de Andrade publica

Paulicea Desvairada (1929), Losango Cáqui (1926), Clã do Jabuti (1927) e Remate de

Males (1930), além da epopeia Macunaíma – o herói sem nenhum caráter (1928). Outro

marco importante desse período é a publicação do manifesto Poesia Pau-Brasil (1924)

e, mais tarde, do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade. Antagonizando

essa corrente, Plínio Salgado cria o Movimento Verde-Amarelo, por identificar a

corrente do Pau Brasil como inspirada na França. E ele exigia uma posição mais

nacionalista. Em 1926, desdobra-se no Movimento da Anta, de viés político mais

conservador que, a partir de 1930, flertaria com o fascismo, através do Integralismo

(Ação Integralista Brasileira), igualmente liderado por Plínio Salgado.

Paes & Moisés (1964), por sua vez, apresentam outra periodização, não muito diferente

desta, as “três décadas literárias” (p.164). A primeira, de 1922 a 1928, caracterizada

pela criação poética. A segunda, entre 1928 e 1939, dedicada à ficção, com ênfase no

romance nordestino. O último período, entre 1939 e 1945, marcada pela forte presença

da crítica literária. Para estes autores:

A primeira década pode ser considerada como a única eminentemente revolucionária, as outras duas distinguindo-se por suas sensíveis tendências de consolidação. Por isso mesmo, é entre 1922 e 1928 que se multiplicam os grupos rivais, cada um deles reivindicando, através de retumbantes manifestos, posições mais extremadas que os anteriores (Paes & Moisés: 1964, 164).

59

Jardim de Moraes (1978) trabalha com uma cronologia diferente. Ao contrário das

anteriores, faz uma periodização mais “econômica” (cronologicamente falando). Para

ele, a primeira fase vai de 1917 (anterior ao surgimento oficial do modernismo) até

1924. A segunda inicia-se em 1924 e perdura até 1929. A primeira, caracterizada pelos

polos modernismo x passadismo, teve como embate mais importante o gerado pela

exposição de Anita Malfati, e pela absorção das vanguardas europeias, bem

representado pelo contato dos modernistas brasileiros com Blaise Cendrars. Para Jardim

de Moraes (1978) “é que neste período o engajamento de Mário no processo de

renovação era sobretudo de demolição dos ídolos do passado” (p.70). A segunda fase

tem como característica principal a “questão da elaboração de uma cultura nacional”

(p.49). Na perspectiva desse autor, portanto, o ano de 1924 constitui o ponto crucial

para o modernismo brasileiro.

Esta mudança de rumos, generalizada em todas as orientações modernistas que já começaram a se esboçar indistintamente, indica que a problemática da renovação estética, presente nos anos anteriores, cedia lugar, a partir de 24, a uma preocupação que, acirrando-se até 1930, se dirigia no sentido de, em primeiro lugar, elaborar uma literatura de caráter nacional, e num segundo momento, de ampliação e radicalização do primeiro, de elaborar um projeto de cultura nacional em sentido amplo (Moraes: 1978, 73).

Na elaboração dessa cultura nacional há uma divisão sensível dentro do grupo

modernista. Observam-se tomadas de posições ideológicas, culminando em adesões

partidárias, definidas principalmente entre as correntes defendidas por Oswald de

Andrade, à esquerda, e por Plínio Salgado, à direita. Mário de Andrade, nesse período,

empreende seus projetos de cultura nacional, no Departamento de Cultura, afastado das

polarizações ideológicas. Tanto no Brasil como no restante do mundo, sobretudo na

Europa, há um recrudescimento ideológico de posições antagônicas: de um lado o

comunismo e, do outro lado, o fascismo.

João Luiz Lafetá (2001) propõe uma periodização mais ampla, que não se fundamenta

na cronologia dos anos, e sim das décadas. A primeira década, a de 20, caracterizada

pela existência de um projeto estético; e a década seguinte veria a transformação desse

primeiro projeto no que ele denomina de projeto ideológico.

Distinguimos o ‘projeto estético’ do Modernismo (renovação dos meios, ruptura da linguagem tradicional) do seu ‘projeto ideológico’ (consciência do país, desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter de classe de suas atitudes e produções (Lafetá: 2001, 21).

60

Entretanto, salienta-se que o projeto estético já carrega em si o projeto ideológico.

Afinal, a crítica à velha linguagem, que se confronta com a nova traz, em seu bojo, o

caráter ideológico, já que reflete outra visão de mundo, que quer externar e explicitar.

Lafetá (2001) avança em sua análise e concorda com Paes & Moisés (1964) quando

afirma que a primeira fase do modernismo é revolucionária.

A experimentação estética é revolucionária e caracteriza fortemente os primeiros anos do movimento: propondo uma radical mudança na concepção da obra de arte, vista não mais como mimese (no sentido em que o Naturalismo marcou de forma exacerbada esse termo) ou representação direta da natureza, mas como um objeto de qualidade adversa e de relativa autonomia, subverteu assim os princípios da expressão literária. Por outro lado, inserindo-se dentro de um processo de conhecimento e interpretação da realidade nacional – característica de nossa literatura – não ficou apenas no desmascaramento da estética passadista, mas procurou abalar toda uma visão do país que subjazia à produção cultural anterior à sua atividade (Lafetá: 2001, 21).

Para Coutinho (1988), o período modernista compreende três momentos diferentes. A

primeira fase abrange o período entre 1922 e 1930, a seguinte corresponde aos anos

entre 1930 a 1945. A última, pós-45, é por ele denomina neomodernismo. Nessas

diferentes periodizações, observa-se, para alguns, a ênfase no teatro; para outros, na

crítica literária. Mas todos os enfoques conferem ao movimento modernista a

importância combativa, durante os primeiros anos de sua formulação.

Em linhas gerais, apesar das diferentes posições quanto às questões cronológicas, os

autores estudados concordam que os primeiros anos do modernismo foram cruciais,

pela radicalização de suas propostas estéticas. É nesse momento que as grandes

personalidades do movimento enfatizam o rompimento com as práticas artísticas,

culturais e políticas anteriores, ou passadistas.

Reafirmamos que, pela visão dos estudiosos citados, num primeiro momento, pós

Semana de 22, havia uma busca pelo moderno e também pelo polêmico, o que realçava

uma postura combativa ou revolucionária que repercutiram também no campo político

partidário. Mário de Andrade escreve no seu Prefácio Interessantíssimo: O passado é

lição para se meditar, não para reproduzir (p. 35)24. Também reafirmamos como

extremamente importante nesse período inicial do modernismo, a busca pela

brasilidade, em nacionalismos por vezes antagônicos, expressos nas divisões internas do

24 O Prefácio Interessantíssimo é o texto de apresentação do livro Paulicea Desvairada, publicado originalmente em 1924, e que contém alguns dos elementos estéticos que inspiravam seu autor.

61

modernismo, representadas pelas diversas colorações ideológicas das suas correntes

literárias e artísticas.

Os modernistas procuraram a brasilidade, por exemplo, na figura do nativo (indígena,

mulato, sertanejo) e também numa língua mais próxima da falada pelo brasileiro

comum. Mário de Andrade buscou constantemente essa língua brasileira longe dos

centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, cidades mais cosmopolitas e

influenciadas pelas normas da linguagem culta ou mais definida pelo português de

Portugal. E era necessário revelar o português brasileiro.

Mario de Andrade, novamente em seu Prefácio Interessantíssimo afirma: “escrevo

brasileiro” (p.33). Ilustramos essa questão citando as muitas vezes em que escrevia si

ao invés de se, sinão ao invés de senão, formas mais assemelhadas com a língua falada

pelo brasileiro comum. Também interessa observar, em sua escrita, a criação de

neologismos: fotar (ato de fotografar, tão utilizado nas viagens etnográficas) ou

pensamentear. Também usa neologismos para reforçar alguma ideia, como

nadanadando (referindo-se ao peixe-boi, que, conhece e observa na região amazônica).

Esses neologismos, marcados pela repetição e insistência, também estão presentes em

Macunaíma, e reforçam a ideia descrita em seus textos.

Lafetá (2001) coloca como primordial a busca modernista por uma nova linguagem.

Contra tudo isso combatia o Modernismo, à procura de procedimentos literários novos, capazes de revitalizar o estilo morto. Mas estava também bastante consciente de que esses recursos expressivos eram herança de uma sensibilidade estrangeira, educada servilmente pela cultura europeia e, portanto, distanciada da realidade nacional. Quando uma vanguarda se volta contra uma linguagem ela investe ao encontro de todo o sistema, de todas as séries paralelas à série literária. Inversamente, quando adotamos uma linguagem, adotamos com ela toda a visão de mundo que ela implica (Lafetá: 2001, 64-5).

Por esse viés, a busca de Mário de Andrade por uma linguagem mais brasileira traz, em

sua própria gênese, os fundamentos ideológicos e políticos de uma nova visão de

mundo que ele abraça. Mais uma vez: novas linguagens também expressam novas

formas de visão de mundo. Ou, como prefere Lafetá (2001):

O projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com um nova linguagem, já contém em si o seu projeto ideológico. O ataque às maneiras de dizer se identifica às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão de mundo (justificando, explicitando, desvelando,

62

simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade) investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo (Lafetá: 2001, 21)25.

A busca por uma nova linguagem refletia um “caráter de exploração e revelação do

Brasil aos brasileiros”, como afirma Candido (2000). Essa era a proposta modernista e

também a de outras correntes anteriores. Enio Passiani, em sua obra Na Trilha do Jeca –

Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil (2003), defende que houve

uma disputa entre Monteiro Lobato e os modernistas pela formação do campo literário

no Brasil, o que impediu uma maior aproximação entre eles, principalmente após as

críticas de Lobato à exposição de Anita Malfatti, em 1917. Para esse autor, Monteiro

Lobato foi um dos precursores do movimento modernista, também quanto à adoção de

uma linguagem nacional.

Lobato mostrava-se extremamente preocupado em relação a nossa língua, nossa ‘autenticidade nacional’. Segundo o próprio Lobato, havia uma dificuldade entre a língua do povo e a língua escrita. Para ele, tal contraste era responsável, pelo menos em parte, pelo fato de os livros brasileiros não serem lidos. A partir dessa ideia, Monteiro Lobato fundou uma concepção estética de nossa literatura: ela seria mais autêntica quanto mais fosse feita uma língua ‘brasileira’, rejeitando a norma ‘culta’. (...) Em relação ao conteúdo observamos que Lobato abordava temas sempre muito próximos da vida das pessoas, tratava de problemas do cenário nacional em relação aos quais o público se identificava”. (Passiani:2003, 28-29).

Além da preocupação estilística, Lobato queria narrar a realidade e a cultura brasileira.

Por isso estimulou a realização do inquérito sobre a figura do Sacy-Pererê. E também

por esse motivo narra, em Cidades Mortas, a crise das cidades paulistas do Vale do

Paraíba, provocadas pela saturação do uso das terras e das más condições dos

trabalhadores rurais, personificados na figura do Jeca Tatu. A temática social também

estava presente em Graça Aranha, um dos inspiradores dos modernistas, como estudado

por Jardim de Moraes (1978). Ou seja, há no modernismo, em geral, a busca por um

mundo brasileiro mais real, menos formal, menos culto.

Em sua narrativa sobre as viagens etnográficas, Mário de Andrade insiste na repetição

de determinadas palavras para reforçar uma ideia. Assim, o mugunzá, que experimenta

em Belém no princípio da primeira viagem etnográfica, é “branco branco” e a mulher

que o serve é “preta preta”, realçando as características daquilo que vivenciava. No

livro O Turista Aprendiz (2002) há uma reflexão sobre as diferentes aplicações dos

adjetivos na língua falada em Portugal e na falada no Brasil, como no poema de Oswald

25 Os grifos são do próprio autor.

63

de Andrade26. Assim, nota-se a constante preocupação de Mário de Andrade com a

língua nacional.

Observamos, aqui, que Machado de Assis já brincava com a ideia de que existiam dois

Brasis: o Brasil oficial, que se contrapunha ao Brasil real. O primeiro das elites oficiais,

o segundo, do povo. Notamos, também, a busca pela oralidade da fala como forma de

expressão mais próxima do primitivismo estético pretendido pelos modernistas. Ainda

sobre a questão da linguagem, Candido & Castello (2006) escrevem:

Do ponto de vista estilístico, pregaram a rejeição dos padrões portugueses, buscando uma expressão mais coloquial, próxima do modo de falar brasileiro. Um renovador como Mário de Andrade começava os períodos pelo pronome oblíquo, adotava a função subjetiva do pronome se, abandonava inteiramente a segunda pessoa do singular, acolhia expressões e palavras da língua corrente, procurava incorporar à escrita o ritmo da fala e consagrar literariamente o vocabulário usual. Em certos casos, chegou a imitar a sintaxe das línguas indígenas, com um sentido experimental que depois abandonou (Candido & Castello: 2006, 12).

A questão da linguagem indígena aparece em sua rapsódia27 Macunaíma e também em

alguns trechos de O Turista Aprendiz (como abordado no capítulo 2). Reafirmamos a

preocupação dos modernistas com a dualidade – moderno x tradicional/arcaico – o que

permeia o debate do pensamento social brasileiro, mesmo antes de ser denominado

como tal e presente já nos movimentos literários anteriores. Isso reverbera nos ensaios

interpretativos do Brasil que despontam a partir da década de 30. Essa perspectiva dual,

presente no debate estético e ideológico do modernismo brasileiro, pretendia divulgar o

discurso e a prática da modernidade ao Brasil e, como consequência, entender e

transformar o Brasil a partir de suas próprias características sociais, dialogando com o

que havia de mais contemporâneo no mundo daquele momento. Esse papel de

transformação pautou a atuação de Mário de Andrade no Departamento de Cultura.

As tentativas de revelação do Brasil aos brasileiros nem sempre contaram com respaldo

governamental (ou oficial). Com frequência, as políticas oficiais “olhavam para fora”

ao invés de “olhar para dentro”. Ou seja, o Brasil governamental e suas elites, que

26 Oswald de Andrade também embarca nessa questão da língua. Em um de seus poemas do Pau Brasil (1925), afirma: “Dê-me um cigarro/Diz a gramática/Do professor e do alumno/E do mulato sabido/Mas o bom negro e o bom branco/Da Nação Brasileira/Dizem todos os dias/Deixa disso camarada/ Me dá um cigarro. (p.77-8). 27 A rapsódia é o termo que o próprio autor, após certa hesitação, decide batizar o seu livro. A referência são os rapsodos gregos, cuja história de seu povo era, brevemente, transmitida oralmente com apoio de instrumentos musicais. Assim Macunaíma, está na origem ligado às tradições orais.

64

Machado de Assis chamou de Brasil oficial, optava em importar ideias e costumes em

detrimento do que é próprio do Brasil e dos brasileiros, o Brasil real. Diversos autores

defendem a ideia de que o Brasil tinha Estado, mas não tinha Nação; tinha governo, mas

não tinha povo. Desde os tempos coloniais as ordens, mandos e desmandos ocorriam de

fora para dentro. Posteriormente, no Império e no início da República, ocorriam de cima

para baixo, não importando anseios, desejos e reivindicações das camadas mais baixas

da população. Sempre tutelando de cima para baixo as relações sociais, políticas e

culturais no Brasil.

Citamos, como ilustração do acima descrito, os massacres de Canudos e da Revolta do

Contestado, as mudanças urbanas promovidas pelo governo do Rio de Janeiro no início

do séc. XX e a ideologia de expulsão para as periferias e morros, da população

subalterna urbana, também conhecida como “classes perigosas’. É nítido, aqui, um

projeto de contorno higienista. Esse processo deu início à favelização da então Capital

Federal e de outras cidades, assim como gerou o menosprezo pela população negra,

libertada da escravidão. Não houve qualquer política de inserção e trabalho do grupo

negro recém-libertado por parte das autoridades, que preferiram incentivar a vinda de

imigrantes europeus e asiáticos para o trabalho rural, em detrimento da população negra

e mestiça, já parte do Brasil real.

Sob essa ótica, de tensões e paradoxos, Marilena Chauí afirma em Brasil: mito

fundador e sociedade autoritária:

A divisão natural do Brasil em litoral e sertão dá origem a uma tese de longa persistência, a dos ‘dois Brasis’, reafirmada com intensidade pelos integralistas dos anos 20 e 30, quando opõe o Brasil litorâneo, formal, caricatura letrada e burguesa da Europa liberal, e o Brasil sertanejo real, pobre, analfabeto e inculto (Chauí: 2000, 67).

De maneira geral, a busca modernista pela brasilidade resultou em duas grandes

vertentes políticas e ideológicas: uma mais crítica e outra, mais ufanista, ambas

nacionalistas. A primeira, crítica, mais vinculada a Oswald de Andrade e Tarsila do

Amaral, esteve alinhada com uma visão esquerdista, e procurava denunciar criticamente

a realidade brasileira. Ressaltamos que Mário de Andrade desenvolveu suas ações

estéticas próximas desta perspectiva28 . A segunda vertente, nacionalista e ufanista,

28 Lembramos que o Partido Comunista é fundado no Brasil em 1922 e Oswald de Andrade se filiaria a ele em 1930, tendo militado durante muito tempo em suas fileiras, inclusive, em companhia da jornalista

65

alinhava-se com a direita, chegando a flertar com movimentos nazi-fascistas da Europa.

Culminou com a fundação, em 1932, da Aliança Integralista Brasileira, baseada nas

ideias de Plínio Salgado e contou com apoio de vários modernistas, Menotti del Picchia

e Cassiano Ricardo entre eles. Essa cisão política no interior do modernismo apenas

clareou divergências internas, que desde o início do movimento mostrou antagonismos

entre essas correntes ideológicas29.

Em outro contexto, analisando o século XIX, Roberto Schwarz em Ao vencedor as

batatas (2003), classificou o pensamento, no Brasil, como “ideias fora do lugar”.

Descreve o anacronismo de algumas ideias e novamente das contradições que o Brasil

vivenciava: alguns intelectuais, por exemplo, com posturas claramente liberais e/ou

igualitárias que eram, ao mesmo tempo, escravocratas. Por isso, Schwarz (2003)

escreve: “Partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as

ideias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu” (p.30). Para Schwarz,

havia um desacordo entre representação das ideias e seus contextos de origem. Ele

afirma:

Enfim, nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a mesma composição ‘arlequinal’, para falar como Mário de Andrade: o desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser o seu contexto (Schwarz: 2003, 25).

Bem antes do modernismo, o movimento indianista, representado sobretudo por José de

Alencar e pela Escola do Recife (1870), já defendia uma postura equivalente, nessa

vertente nacionalista, de procura pelas brasilidades. Na passagem do Dezenove ao Vinte

também surge a representação do sertanejo. A principal obra desse período é Os

Sertões, de Euclydes da Cunha, publicada após o autor acompanhar de perto a Guerra

de Canudos, ocorrida no sertão baiano no final do século XIX. No seu retorno ao

Sudeste, mostra a mudança de sua percepção sobre a figura do sertanejo, reivindica a

necessidade de olhar para o interior do Brasil, demarcando claramente a dualidade do

Brasil da época: litoral x sertão. Ainda na questão sertaneja, outro autor importante é

Coelho Neto, como observa Antonio Candido (2000).

Pagu. Por sua vez, Mário de Andrade sempre manteve mais distância destes partidarismos, sua presença foi mais próxima do Partido Democrático. 29 Essas duas correntes não são unanimidades, uma vez que outros autores discordam delas. Por exemplo, Coutinho (1988) divide o modernismo em cinco categorias diferentes.

66

Também nas primeiras décadas do séc. XX, como já abordado, Monteiro Lobato militou

tanto em prol da preservação do modo de ser brasileiros como na busca de uma língua

mais popular, falada pelas pessoas do povo. Exemplo importante de criação literária do

autor é o personagem Jeca Tatu. Também se nota, no escritor, a mudança de olhar a

partir do contato com a realidade observada, como em Euclydes da Cunha. O

interiorano deixa de ser preguiçoso e indolente, em sua essência, e passa a ser visto

como consequência do descaso das estruturas sociais e políticas.

Lobato adota, então, um texto mais crítico, que denuncia a realidade social e política

brasileira, como em seu livro Cidades Mortas. Graça Aranha também fez denúncias das

mazelas sociais, por exemplo, em seu livro Canaã, de 1902, e mostrou suas

preocupações nacionalistas, presentes em A estética da vida, publicado originalmente

em 1921. Esses são exemplos que corroboram o entendimento da literatura brasileira

como responsável por uma conscientização do Brasil de então, muito mais do que o

conhecimento científico (sociologia, antropologia...), ainda incipiente na época.

Daí a afirmação de Antonio Candido em Literatura e Sociedade (2000), sobre a

importância da literatura como forma de compreensão e retrato do país, tanto dos

modernistas como de seus predecessores.

A literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar a consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel importantíssimo do romance oitocentista como exploração e revelação do Brasil aos brasileiros. (Cândido: 2000, 121).

Ele continua:

Na literatura brasileira, há dois momentos decisivos que mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência: o Romantismo, no século XIX (1836-1870) e o ainda chamado Modernismo, no presente século (1922-1945). Ambos representam fases culminantes de particularismo literário na dialética do local e do cosmopolita; ambos se inspiram, não obstante, no exemplo europeu. Mas, enquanto o primeiro procura superar a influência portuguesa e afirmar contra ela a peculiaridade literária do Brasil, o segundo já desconhece Portugal, pura e simplesmente: o diálogo perdera o mordente e não ia além de conversas de salão. Um fato capital se torna deste modo claro na história da nossa cultura; a velha mãe pátria deixara de existir para nós como termo a ser enfrentado e superado (p.101).

Paulo Prado, em sua apresentação do Manifesto Pau Brasil de 1925, refere-se a essa

busca do Brasil real e à postura nacionalista dos modernistas, mais ainda na perspectiva

de Oswald de Andrade. Candido & Castello (2006) falam da importância de Paulo

67

Prado, quando afirmam que esse intelectual exerceu uma espécie de patronato amistoso

sobre os jovens de São Paulo (p.15). Ciceroneou modernistas brasileiros em suas

passagens por Paris, principalmente Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, e foi o

responsável por apresentá-los a Blaise Cendrars, além de incentivar a vinda do poeta ao

Brasil. Como Yan de Almeida Prado, manteve contato com o francês quando, anos mais

tarde, ele se distancia dos modernistas. Na introdução ao Manifesto Pau Brasil, escreve:

A mais bela inspiração e a mais fecunda encontra a poesia “pau-brasil” na afirmação desse nacionalismo que deve romper os laços que nos amarram desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada (p.9).

Uma outra discussão se faz necessária, por tratar de tema importante na construção e

argumentação dos dados desta tese: a figura de quem conta a história. Em O Turista

Aprendiz, objeto deste estudo, há um diálogo com Walter Benjamin, especificamente

com seu trabalho O Narrador (2008). A narração é inerente ao livro de viagens de

Mário de Andrade e também a Macunaíma, onde está ainda mais presente. N’O Turista

Aprendiz a narração fica circunscrita aos episódios em que o autor descreve as histórias

de terceiros.

A aproximação narrativa em Macunaíma se coloca no fim da rapsódia, descobre-se que

a história descrita é narrada por um papagaio, repetindo assim o processo da narrativa

benjaminiana. Aliás, o próprio herói, no decorrer da sua história também reconta as

histórias que aconteceram com terceiros, observadas ou escutadas pelo próprio

personagem, reproduzindo o estilo da narração. Em Macunaíma a narrativa é a

retransmissão da experiência de terceiros.

No livro O Turista Aprendiz é o próprio narrador que conta uma história, real ou

ficcional vivenciadas no decorrer das viagens, cuja experiência é contada pela escrita.

O narrador benjaminiano pode ser o que retransmite histórias alheias, ouvidas e

coletadas ao longo da vida. Ou, como definiria o autor, em O Narrador (2008): a

experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os

narradores (p.198). O próprio Benjamin aponta a relação entre a experiência narrativa e

a literatura de viagens:

Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras

68

distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário (Benjamin: 2008, 199).

São os marujos aqueles que narram hábitos, coisas e paisagens de terras distantes, com

que normalmente travam contato em suas viagens. Não por acaso a literatura de

viagens cresce como gênero na medida em que as Grandes Descobertas eram realizadas

no renascimento europeu.

Narradores, então, constroem narrativas a partir de histórias contadas por terceiros, às

quais adicionam experiências vividas por eles próprios. No mesmo texto, Benjamin fala

da importância dos comerciantes para as narrativas de As mil e uma noites. Também vai

tratar da crise vivida pela narração no início do séc. XX (momento em que escreve o

texto), pelo desenvolvimento do romance como opção literária. Coloca o romance como

intimamente ligado ao desenvolvimento da imprensa, ao passo que a narrativa está

atrelada ao oral. E, num mundo onde as relações se tornam cada vez mais

individualizadas, diminuem momentos e espaços para o compartilhamento de

experiências com a coletividade, consequentemente o romance emerge como nova

possibilidade literária de contar histórias. Não mais pela oralidade e sim, pela escrita.

Ele afirma:

Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance se apodera ciosamente da matéria da sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo (Benjamin: 2008, 213).

Assim, um romance é uma experiência individual, tanto no exercício de escritura ou

composição como na sua fruição, uma vez que a leitura é também uma experiência

individual. Benjamin deixa claro que a redução da narrativa é “concomitantemente com

toda a evolução secular das forças produtivas” (Benjamin: 2008, 201).

Mas a narração resiste e persiste, mesmo com o avanço do romance. E se faz presente

nessas duas obras de Mário de Andrade, pois, como escreve Benjamin (2008): O grande

narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais (pg.

214). E foi para encontrar o povo que o Mário de Andrade parte para suas viagens

etnográficas30. Por esse aporte benjaminiano, as viagens também resgatam a linguagem

30 É com interesse semelhante que Béla Bartok também parte para contato com os povos magiares, como veremos no próximo capítulo.

69

da oralidade, matéria-prima da própria narração que estava se perdendo com a evolução

das forças produtivas que o Brasil passava, levando-o a desenvolver as ações políticas

do Departamento.

Para Benjamin (2008): O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria

experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência

dos seus ouvintes (p.201). Notamos, assim, diversos mosaicos literários nessas obras de

Mário de Andrade, sejam as narrativas ficcionais – Macunaíma – ou reais – O Turista

Aprendiz. E em ambas vemos a figura do narrador de Benjamin, que escreve:

Podemos dizer que os prédios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento, como a hera abraça um muro. Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é conta-la inteira. (...) O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo (Benjamin: 2008, 221).

Nessas obras de Mário de Andrade, o narrador fixa presença justamente pela

transmissão das experiências ouvidas e vividas por ele próprio e além da experiência

alheia. Adiante veremos como, além da narrativa literária, Mário de Andrade utilizava o

acervo de experiências que fala Benjamin, para entender melhor sua cultura e colocá-la

à disposição do seu povo através da prática de ações políticas, como explicaremos

adiante.

A contextualização a respeito das influências e desenvolvimento do modernismo

brasileiro, assim como a análise feita sobre projetos estéticos e ideológicos ligados a

este movimento, situam os próximos passos que faremos ao analisar e discutir sobre O

Turista Aprendiz.

70

CAPÍTULO 2 – O Turista Aprendiz, discussão teórica

Foto do Autor. Manaus, abril/2009

Acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938. Centro Cultural São Paulo

71

O presente capítulo trata da importância das viagens etnográficas para parte da obra e

para a trajetória política de Mário de Andrade. Ou seja, como impactaram seus textos

literários e sua vida de “homem público” (que analisaremos no capítulo 5).

Para isso, discutimos aqui o gênero literário literatura de viagens, no qual se insere o

livro O Turista Aprendiz (2002). Também tratamos de observar atentamente os

diferentes textos literários das duas viagens etnográficas como, a criação ficcional,

sobretudo nas crônicas escritas nesse momento. Apontamos também as reverberações

dessas viagens em outras obras literárias, como nas poesias e romances não concluídos,

discutimos, ainda, a imagem fotográfica como exercício estético e fonte de registro e

pesquisa para as Ciências Sociais.

Para dirimir confusões, lembramos que o título O Turista Aprendiz abarca,

simultaneamente, as duas viagens etnográficas de Mário de Andrade nos anos 1927 e

1928-29 (e por ele assim denominadas) e, ao mesmo tempo, os arquivos de esboços e

projetos em que trabalhava para a publicação definitiva de suas obras. O Turista

Aprendiz, portanto, é, ao mesmo tempo, livro e viagem.

Quando nos referimos ao livro O Turista Aprendiz, utilizamos a edição organizada e

editada por Telê Porto Ancona Lopez, uma das principais estudiosas da vida e da obra

de Mário de Andrade, publicada em 2002. A mesma edição também conta com o

estabelecimento de texto, introdução e notas da mesma pesquisadora.

Também definimos que, quando tratamos das viagens, utilizamos as denominações:

primeira viagem etnográfica (1927) e segunda viagem etnográfica (1928-29). Sabemos

da postura repetitiva, mas a assumimos para evitar confusão com o livro, que

igualmente refere-se a esses dois momentos e também intitula-se O Turista Aprendiz.

O título referente à primeira viagem etnográfica é mais longo, irreverente e poético: O

Turista Aprendiz (Viagem pelo Amazonas até o Perú, pelo Madeira até a Bolívia e por

Marajó até dizer chega). O segundo é mais sucinto: O Turista Aprendiz – Viagem

Etnográfica. Deixaremos claro sobre qual tratamos, no decorrer do trabalho. Sobre os

dois livros, Telê Lopez (2002) afirma:

72

Pelo que expusemos até agora, pode-se entender que o livro, O Turista Aprendiz, constituído por duas partes, estava apenas com sua primeira parte resolvida, enquanto que a segunda não saíra ainda do estágio de reunião dos materiais para uma elaboração futura que Mário de Andrade não pôde cumprir (Lopez: 2002, 33).

Já mencionamos que a primeira parte do livro havia recebido uma redação mais

definitiva, ou para-definitiva, em 1943, com intuito de publicação. A segunda parte não

recebeu tratamento de reelaboração de texto. Todos os textos referentes a essa segunda

viagem foram publicados como crônicas pelo Diário Nacional, onde o poeta assinava

uma coluna e para onde remetia o material para publicação. Escrever sobre o que via e

assistia, e formatar a experiência em crônicas, ajudou-o na realização da viagem e na

formação de uma visão geral, menos paulistana, sobre o país pela observação in loco

das regiões visitadas.

Outra informação importante diz respeito à época de realização das viagens, definidas

para presenciar festejos populares, que interessavam o “turista aprendiz”. A primeira

ocorre entre 07/05/1927 e 15/08/1927, período ideal para ver as festas juninas e de boi.

A segunda viagem etnográfica, ocorrida entre 28/11/1928 e 24/02/1929, permitia a

observação de reisados, por exemplo, e Carnaval.

Assim, na primeira viagem Mário de Andrade pôde observar festas, músicas e danças

das festas juninas e festas do boi, e na segunda viagem observou festas, danças e

músicas referentes aos reisados e ao Carnaval. Nessa segunda viagem também

pesquisou danças dramáticas e manifestações artísticas e culturais que não viu na

primeira, como o maracatu. Ele, de fato, pesquisou mais nessa última viagem.

Retornando à análise do livro O Turista Aprendiz (2002), classificado como literatura

de viagens, sob a perspectiva das teorias literárias, conceituamos este gênero como

importante e tradicional na cultura lusófona, colaborando no processo de formação do

imaginário das pessoas e das identidades nacionais. Como a tradição lusófona é também

formadora da cultura brasileira, não retiramos dela sua importância para este estudo.

Desde o final do Renascimento, passando pelo período das Grandes Descobertas

Portuguesas, até os dias atuais, a literatura de viagens coloca-se como tema importante

de nossa literatura e também do universo histórico, antropológico e sociológico.

73

Num breve panorama, esse gênero literário se faz presente na literatura ocidental desde

os gregos, com os clássicos de Homero, Ilíada e Odisseia, dois marcos fundantes da

literatura ocidental. Também apontamos a publicação de As Viagens de Marco Polo,

sobre a viagem do italiano Marco Polo à China, no século XIII, passando pelo Oriente

Médio e Índia, e que foi, durante muito tempo, um dos poucos relatos razoavelmente

fidedignos sobre a China. São livros baseados em acontecimentos e experiências reais,

ao contrário de obras também concernentes ao gênero literatura de viagens que são

ficcionais.

A Divina Comédia, de Dante Alighieri ou, mais recentemente, as obras de Júlio Verne

(próximas da ficção científica) contém elementos do universo ficcional, irreais,

inspirados pela imaginação. Dentro de uma percepção ficcional filosófica, são

igualmente conhecidas e importantes A Cidade do Sol, de Tommaso Campanella, e

ainda A Utopia, de Thomas Morus. Se não tratam, estritamente, de viagens, revelam

lugares fictícios e idealizados, com a finalidade de apontar exemplos para o mundo

ocidental.

A relação entre o real e o ficcional está sempre presente na literatura de viagens, e

assim ocorre com os textos de Mário de Andrade. É possível observar, em O Turista

Aprendiz, momentos reais que se tornam ficção no espaço criativo do autor. Do contato

com as pessoas extraia personagens de crônicas e histórias.

Para Fernando Cristóvão, em Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens

(1999), a literatura de viagens sempre se colocou como um gênero interdisciplinar

composto “de textos cruzados pelas Literatura, História e Antropologia” (Cristóvão:

1999, 16)31. Esse sentido antropológico presente nos relatos e narrativas dos viajantes e

exploradores leva à descrição dos lugares exóticos visitados e a relatos de usos e

costumes da população local, em geral povos não-europeus. Contém, portanto, muita

informação que pode ser considerada técnica, composta por diários de bordo, roteiros de

navegação e guias náuticos. Além, claro, de crônicas informativas e descrições técnicas

de terras, faunas e floras jamais vistas ou imaginadas. Entretanto, por vezes

31 Aqui, assumimos que a Antropologia ainda não havia conquistado seu estatuto de disciplina científica (desenvolvido séculos mais tarde, quando aprimorou sua metodologia e base teórica). Mas, mesmo sem escopo teórico e metodológico, “Antropologia” é o termo utilizado por esse e outros autores ao tratarem de observações mais sistematizadas sobre o Novo Mundo e as terras já conhecidas.

74

encontramos crônicas ficcionais ou relatos fantasiosos, que entram no domínio da

criação literária.

A relação entre as grandes navegações europeias e a literatura de viagens nos deram

conhecimento e compreensão do passado português e, consequentemente, do brasileiro.

Os descobrimentos portugueses, iniciados com a exploração da costa atlântica africana e

seu contorno, propiciaram a chegada à América, Índia e ao Extremo Oriente.

Documentos oficiais e obras desse gênero literário comprovam que foram também os

portugueses os primeiros europeus a chegar ao Japão, em 1543, onde permaneceram até

o séc. XVII, deixando incorporadas na língua japonesa, como herança, algumas palavras

portuguesas. Citamos o agradecimento arigatô, derivado da palavra obrigado32. Na

Índia fundam a cidade de Goa, que chegou a ser considerada a segunda cidade

portuguesa em número de habitantes. Na China fundam a cidade de Macau, que

prosperou devido ao comércio entre Japão e China. Chegam à Indonésia e fundam

Timor, atual Timor-Leste.

Ressaltamos que o desenvolvimento da navegação ibérica, especialmente a portuguesa,

foi extraordinário para toda a Europa, tendo por consequência o intenso intercâmbio

entre aquele continente e o restante do mundo, até então limitado ao norte da África e ao

Oriente Médio, em viagens terrestres e via Mediterrâneo. A população europeia, após a

Idade Média, quase não tinha informações e contatos com a África Subsaariana ou com

o Extremo Oriente. Foram essas grandes viagens que forneceram relevantes

instrumentos e informações para o desenvolvimento da literatura de viagens, sobretudo

na literatura lusófona.

No caso específico da literatura lusófona, podemos citar como momento fundante, O

clássico português Os Lusíadas, de Luís de Camões, que consiste na descrição épica

das viagens de descobertas de Portugal. Camões foi integrante de algumas dessas

expedições. Também exemplo dessa literatura é a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei

de Portugal, narrando a descoberta do Brasil. Pode ser definida como um documento

híbrido, uma vez que consiste num misto de diário das atividades portuguesas em terras

brasileiras e, ao mesmo tempo, um relatório com informações condensadas de interesse

32 Para mais informações sobre o contato de Portugal com o Japão, ver a obra do padre e cronista português Luis Fróes.

75

do rei de Portugal. Tem um caráter informativo sobre a viagem e a descoberta, com

diversas descrições sobre as diferenças culturais entre os dois povos: branco/europeu e

índio. Já mostra, também, algo de ufanismo e espanto com o maravilhoso Novo Mundo,

quando afirma que “em se plantando tudo dá”33. Alguns autores consideram essa carta

como uma espécie de “Auto” do descobrimento do Brasil, ou ainda sua certidão de

nascimento.

No contato com o Brasil, Portugal encontra um mundo diferente e ao mesmo tempo,

próximo ao que teria sido Portugal anteriormente, se comparado com a África, já

intensamente contatada pelo mundo europeu. A viagem à América é quase uma viagem

ao Éden, ao passado, ao que Portugal e Europa teriam sido em época distante. O fato de

os índios não serem circuncidados (afanados), por exemplo, já os afastava dos judeus e

os aproximava, em alguma medida, do português (o europeu), como observa Pero Vaz

de Caminha na carta. Essa característica física remetia a uma origem comum entre

portugueses e indígenas, e ajudaria, posteriormente, a justificar a catequese dos índios.

A partir do século XVI, com as expansões marítimas realizadas por quase todos os

países europeus ocidentais e ainda graças aos avanços técnicos e à invenção da

impressão, permitindo maior circulação de conhecimento e trocas de documentos sobre

navegações, surge um mercado ligado às viagens expansionistas europeias, a literatura

de viagens. Fruto do Renascimento europeu e do surgimento do sistema capitalista, um

novo apelo mercadológico abarca a literatura, com a disseminação de diversos tipos de

obras. Assim, os livros com relatos de viajantes aguçam a imaginação das pessoas com

ricas e maravilhadas narrativas sobre outros mundos e, pouco a pouco, passam a ser

acompanhados de mapas cartográficos e conteúdos visuais outros, que estimulavam seu

consumo.

Cristóvão (1999), afirma: “A fim de melhor agradarem aos leitores, as edições

passaram a ser acompanhadas de muitas ilustrações, gravuras, desenhos e mapas”

(p.26). Embora naquele momento não fosse possível falar da segmentação de mercado

(ainda incipiente), percebe-se editores atentos a esse tipo de literatura, com espaço

33 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2003 Acesso em: 15/07/2011.

76

propício ao seu desenvolvimento. Não por acaso cresce naquele período o número de

publicações do gênero, que inclui a tradução de obras publicadas em outras línguas.

Ainda de acordo com esse autor, a literatura de viagens preocupava-se com dados e

informações mais científicas até o século XVIII, com textos repletos de informações

técnicas referentes às ciências da navegação – cartografias, rotas de navegação (cartas

náuticas), astronomia e outros manuais. A partir do século XVIII, contudo, percebe-se

uma abordagem que pode ser classificada como mais humanística, causada pelo

movimento enciclopedista, que também busca abranger os novos mundos, descobertos

após o isolamento da Idade Média. Cristóvão descreve:

Tornou-se tão generalizado e exigente o consumo desse tipo de leituras que para corresponder à insaciável procura dos leitores, a Literatura de Viagens absorveu e incorporou nos seus textos outras tradições culturais, sobretudo as afins, tais como as da Historiografia, Astronomia, Geografia, Cartografia, bem como as diversas artes com relevância para a Arquitectura, a Medalhística e a Museologia (Cristóvão: 1999, 32).

Esse autor propõe uma tipologia temática para a análise das literaturas de viagens no

universo lusófono, divididas em 5 categorias principais: a) viagens de peregrinação; b)

viagens de comércio; c) viagens de expansão (expansão política, religiosa ou

científica); d) viagens de erudição, formação e de serviços; e) viagens imaginárias.

Sucintamente, expomos essa tipologia e tratamos de sua importância para subsidiar a

análise das viagens etnográficas de Mário de Andrade, assim como a literatura que

produziu a partir destas expedições.

Viagens de Peregrinação

Para Fernando Cristóvão (1999), são as viagens projetadas no Ocidente a partir do

século XIII, também como incentivo à mobilidade europeia, impulsionada por um

Renascimento comercial, que passa a estabelecer mais estradas interligando a Europa.

Normalmente, eram e são viagens ligadas, ainda, a lugares religiosos como a Terra

Santa ou Meca (para os muçulmanos). As peregrinações são comuns a diversas religiões

e culturas e, no mundo ocidental, já eram incentivadas desde o início do cristianismo, na

visitação a lugares por onde teriam passado os apóstolos bíblicos ou a Roma.

Cristóvão (1999) cita a cidade de Jerusalém:

77

Jerusalém, que se haveria de transformar num ponto de referência sagrado e mítico, ao ponto de influenciar a própria cartografia que da Cidade Santa fazia o centro do mundo e a referência fundamental para todos os estudos (Cristóvão: 1999, 40).

De acordo com esse autor, havia vasta literatura sobre esses e outros percursos, na

tentativa de auxiliar pessoas que se propunham a realiza-los. Ainda são considerados

lugares de peregrinação o caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, ou Saint

Denis, na região parisiense. Ainda na França há o Santuário de Lourdes, além do

Santuário de Nossa Senhora de Fátima, em Portugal. O México conta também com seu

local de peregrinação, o Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe. No Brasil

contemporâneo há santuários religiosos, como o de Aparecida do Norte, em São Paulo,

ou o de Juazeiro, no Ceará, que recebem milhares de visitantes e romarias em dias

santos. Muçulmanos, por sua vez, devem realizar, ao menos uma vez na vida, a viagem

a Meca, cidade sagrada dessa religião. Para Cristóvão (1999), as viagens de

peregrinação existem desde a Antiguidade, vem do fundo dos tempos, e é comum a

todas as religiões (p. 38).

Viagens de comércio

A segunda categoria é definida como viagens de comércio, e também teriam se iniciado

no séc. XIII, tratando, sobretudo, do comércio na região de Flandres e Itália, que

marcam o lugar do Renascimento comercial europeu, justamente pela maior

proximidade com o Oriente. A experiência de Marco Polo é um exemplo das viagens de

comércio. Aquelas empreendidas por Portugal e Espanha, que procuraram contornar a

costa africana, assim o faziam exatamente na tentativa de encontrar um outro caminho,

não terrestre, para o Oriente e para a Índia. Por terra, a passagem italiana era

obrigatória, com o consequente encarecimento dos produtos transportados e

comercializados. Para Fernando Cristóvão, esses textos narrativos tratam de dois tipos

de obras:

aquelas que quase exclusivamente só informam sobre itinerários, formas de transação, mercado, produtos a comerciar, valor de pesos, medidas e moedas, obtenção de salvo-condutos, passaportes, etc.; e por aquelas em que estas informações se integram num contexto mais amplo de descrições das regiões, usos, costumes, religião, língua, etc (Cristóvão: 1999, 41).

As primeiras têm, portanto, um caráter mais documental e as segundas incluíam

aspectos culturais e literários, com informações abrangentes sobre gastronomia,

hospedagem, passeios, etc. Essas narrativas podem nos remeter aos antigos almanaques

78

utilizados pelos nordestinos brasileiros, conhecidos como lunários - por se basearem no

calendário lunar – que também forneciam dados técnicos sobre agricultura, marés e

festividades. Cristóvão lembra ainda que os relatos ficcionais tornavam-se ainda mais

fantasiosos quanto maior a distância da Europa.

Viagens de Expansão (expansão política, expansão da fé e expansão científica)

Esse terceiro tipo se subdivide em três: expansão política, expansão da fé e expansão

científica. As viagens de expansão política são as empreendidas pelos países europeus,

sobretudo os ibéricos, e levaram a Novas Descobertas marítimas34. A essa categoria

pertencem os relatos sobre as viagens de Colombo, Vasco da Gama, Pizarro, a carta de

Pero Vaz de Caminha falando da descoberta do Brasil e ainda os textos de Pe. Antônio

Vieira sobre o Brasil. Também se inserem aí os textos narrativos das epopeias e

conquistas portuguesas no contorno à África e demais desbravamentos no Oriente,

incluindo relatos sobre Índia, China e Japão.

As viagens de expansão da fé, diferente das viagens de peregrinação, caracterizam-se

pelo desejo de conquistar o vazio espiritual do Novo Mundo (Cristóvão: 1999, 45),

buscam ocupar outros territórios e consciências e não são um reforço da fé, como as

viagens de peregrinação. Também não objetivavam combater o inimigo, como nas

campanhas das Cruzadas da Idade Média, pois a ideia de Éden permeava o Novo

Mundo.

Finalmente, as viagens de expansão científica seguem-se às anteriores, quando pessoas

com maior formação intelectual produzem informações e conhecimentos com um

mínimo de exigência científica, sobretudo em áreas como botânica, zoologia e

antropologia. A Origem das Espécies, de Charles Darwin, é a grande obra que

exemplifica tais viagens. Escrita e publicada, altera definitivamente todo o

entendimento da evolução biológica dos seres vivos.

Paes & Moisés, em Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira (1969), mesmo

atribuindo um valor menor à literatura de viagens, lembram que: No século XIX, a

literatura de viagens ganha feição científica, sobretudo com a vinda de estudiosos

34 Inclusive, há documentos como bulas papais que podem ser encontradas nas universidades de Coimbra e Salamanca que incentivavam a busca por novas terras (Cristóvão: 1999, 43).

79

europeus, Saint Hilaire à frente (Idem, p. 260). Refere-se a Auguste de Saint Hilaire,

botânico e naturalista francês, que entre 1816 e 1822 percorreu o Brasil, em diversas

expedições, buscando subsídios para seus estudos botânicos, com propósitos

eminentemente científicos.

Viagens de erudição, formação e de serviços

O quarto modelo, da tipologia proposta por Cristóvão (1999), é a viagem erudita, de

formação e de serviço, caracterizada como “a partilha do saber e da solidariedade

social” (p. 48). Para Cristóvão:

São viagens em que a aquisição de conhecimentos é a preocupação maior, quer se trate de conhecimentos científicos, ou de cultura geral, capazes de provocarem novas ideias e hipóteses. E quanto aos viajantes, são diferentes dos outros. Não têm, em geral, espírito de aventura, nem realizam actos de coragem dignos de serem recordados. São príncipes, preceptores, artistas, eclesiásticos, bolseiros de diversos tipos, intelectuais críticos que não se acomodam à estreiteza política, cultural, religiosa dos seus países, desejosos de encontrar fora de fronteiras o que lhes falta dentro. Por meio de escritos irão contribuir para a renovação cultural dos seus concidadãos (Cristóvão: 1999, 49).

E aqui encontramos ressonâncias com o trabalho realizado por Mário de Andrade em

suas viagens etnográficas, uma vez que incorporaram a busca pelo saber (homem

pesquisador) e seu compartilhamento, sobretudo quando pensamos no homem público.

Inegavelmente, essas viagens do modernista tinham a preocupação científica de

observar e coletar informações (danças e músicas – notas, melodia e letra) e, portanto,

ampliar o conhecimento a respeito de seu próprio país. Nesta tese, a hipótese principal

coloca as viagens etnográficas como fundamentais na formação do escritor modernista,

e possibilitam observar claramente o homem pesquisador, que subsidiaria parte de sua

obra literária e sua ação política.

Vale apontar, no caso, o cuidado de Mario de Andrade com a descrição e coleta de

objetos e materiais, muitos para sua coleção particular - hoje disponíveis para visitação

e consulta no acervo do IEB-USP. Anos depois, coordena a Missão de Pesquisas

Folclóricas, com pesquisadores treinados em cursos de etnologia e folclore, ministrados

pela Sociedade de Etnologia e Folclore, desenvolvidos pelo Departamento de Cultura.

Nesse momento intenta criar uma colação pública de objetos materiais sobre a cultura

brasileira.

80

Mário de Andrade, artista e intelectual sempre se definiu como “antiviajante”, e

afirmava detestar viagens. Com exceção do período em que viveu no Rio de Janeiro

após sua saída no Departamento de Cultura, nunca ficou muito distante da cidade de

São Paulo. Mesmo as viagens ao interior do estado não eram longas. O que o

estimulava era o desejo de conhecer o Brasil e seu povo, indo além dos elementos

culturais de sua realidade imediata. E, inegavelmente, contribuiu para a ampliação do

universo cultural de seu país, como observamos ao longo desta tese.

Viagens Imaginárias

Por fim, as viagens imaginárias. Elas acontecem no plano ficcional, por terra, mar ou

ar, avançando ou recuando no tempo, e por vezes, se aproximando da ficção científica

(como H.G. Wells ou o já citado Julio Verne). Também estão presente nas narrativas

bíblicas, com o Éden de Adão e Eva. Igualmente, A Utopia e A Divina Comédia, já

citadas, são outros exemplos. A obra literária de Mário de Andrade tangencia esse

gênero, pelo realismo mágico presente em seus livros, sobretudo em Macunaíma, e em

passagens do próprio O Turista Aprendiz. Em Macunaíma, a epopeia do anti-herói é

permeada por diversas viagens, além de conter elementos das experiências vividas pelo

autor. Na verdade, em Macunaíma Mário de Andrade constrói um outro país, totalmente

diferente da realidade territorial brasileira, reordenada geograficamente através dos

percursos feitos pelo herói. Faz a desterritorialização do Brasil, com a construção de

novos espaços a partir dos espaços reais existentes.

Octavio Ianni (1998) trata do diálogo entre narrativa e literatura de viagens com as

Ciência Sociais, defende que processos analíticos (científicos) e estéticos (literários) por

vezes se confundem, simultaneamente, ajudam a entender melhor o mundo, com a

produção de discursos e saberes que se complementam:

É verdade que o sociólogo procura estar próximo da “realidade”, dos dados ou do universo empírico delimitado por suas interrogações ou hipóteses. Neste sentido, busca a fundamentação “objetiva do conceito”, categoria, lei compreensão ou explicação. Lida com os dados, evidências ou significados, de modo a apreender o singular e o universal, bem como as mediações. O escritor, por seu lado, cria situações, incidentes, personagens, figuras e figurações imaginárias. Ainda que se situe a sua estória em algum lugar e em dado momento, o referencial histórico ou empírico pode tornar-se secundário ou mesmo diluir-se. Trata de surpreender o singular episódico, incidental e fugaz; ou o que estaria na sombra e esquecido. Em geral, a narrativa literária desvenda ressonâncias mais gerais, ou propriamente universais, escondidas no singular (Ianni: 1998, 39).

81

Neste trabalho, partilhamos a visão de Ianni, e postulamos que documentos definidos

aqui como literatura de viagens podem fornecer referenciais históricos ou empíricos

que tiveram usos diversos não apenas na literatura, mas também em áreas como história,

botânica e sociologia. Isso leva Ianni a concluir: “Nesse sentido é que algumas obras de

literatura, assim como de sociologia, podem ser e têm sido tomadas como sínteses de

visões do mundo prevalecentes na época” (Ianni: 1998, 41).

Mário de Andrade pretendia escrever um livro em que aliaria arte, com a criação

literária, e os elementos que se dispunha a estudar e pesquisar, adicionando à sua

atividade literária o senso observador e científico: em resumo, realiza uma junção entre

literatura e ciência – característica da literatura de viagens desde o século XVIII. Mais

uma vez apontamos o homem pesquisador dando suporte ao homem literato. A

pesquisadora Telê Lopez (2002) nos diz:

Desde as primeiras declarações do escritor, ficam claras suas intenções quanto ao gênero do livro: um diário, cuja abertura para a narrativa de viagem visava não deixar escapar o peso de uma ótica impressionista, capaz de unir a referencialidade à poeticidade, transformando a experiência vivida (o sentido, o pensado, o biográfico – o real, enfim), em um texto com finalidade artística que é burilado em termos de distanciamento no arte-fazer. O confessional do diário e o referencial pertencente ao dado de viagem, embora filtrados pela arte, ainda permanecem com elementos do real, dado o hibridismo do gênero mas a seu lado, firme, intromete-se a ficção (Lopez: 2002, 31).

É na primeira parte do livro O Turista Aprendiz (2002) que a ficção intromete-se com

mais força. Citando Ianni (1998), nesse momento, provavelmente, houve mais tempo

para a criação de “situações, incidentes, personagens, figuras e figurações

imaginárias”. Já a segunda parte do livro, sobre a segunda viagem etnográfica, fica

mais restrita ao observado e descrito, e menos ficcional, como se o “referencial teórico

e empírico”, do qual fala Ianni, estivesse mais presente e forte.

Toda essa digressão e descrição tipológica tenta auxiliar o entendimento do ambiente

literário de origem d’O Turista Aprendiz, a literatura de viagens. Todas as obras citadas

são frutos de um mesmo modelo narrativo, que engloba diversas particularidades e que

podemos definir como polissêmico. Tratam de momentos históricos do Ocidente, onde

se situam Portugal e, consequentemente, o Brasil. A busca pela brasilidade, em Mário

de Andrade, incluía os elementos portugueses, além das heranças indígena e africana.

A própria concepção de modernismo em Mário de Andrade traz essas características.

82

Ele procurou expressões culturais, étnicas e raciais que criavam e formavam as

identidades do povo brasileiro (como abordado no 1º capítulo).

As obras discutidas acima, classificadas como literatura de viagens, ainda que

inspiradas em fatos reais, não tem, eventualmente, o sentido literal, por conta da

diluição e exageros, mas auxiliam como metáforas e alegorias das epopeias e narrativas,

esclarecendo e auxiliando na compreensão de determinados momentos históricos,

sociais e políticos na formação da cultura brasileira.

Optamos pela análise d’O Turista Aprendiz porque o vemos como um mosaico literário:

descrições reais, observadas empiricamente, poesia, e também narrativas ficcionais e

imaginárias, além das crônicas de conteúdo político. Durante a segunda viagem

etnográfica, por exemplo, crítica o governo de Washington Luís, que constrói rodovia

ligando Petrópolis ao Rio de Janeiro, quando não havia qualquer estrada ligando as

capitais nordestinas. Para Mário de Andrade, era nítido o privilégio dispensado pelo

governos federal aos estados do Sudeste.

Telê Lopez em Um projeto de livro (2002) 35 comenta o hibridismo presente na

literatura de viagens, como também o comentou Fernando Cristóvão (1999), no início

deste capítulo. Telê Lopez aponta:

Entendendo o diário como gênero híbrido (e neste caso, de hibridismo ainda mais complexo) em que o real tem preponderância sobre o ficcional, interessou-nos conhecer a história dum livro segundo quem o escreveu, já que o desaparecimento das anotações de 1927 deixando-nos sem recurso do confronto para perceber a luta entre o verídico e o verossímil. Assim, pelo registro do dia 21, podemos saber que o “turista aprendiz” não só relatava fatos e sentimentos de seu cotidiano, como também não interrompia sua atividade de criador, sua “literatices” (os índios de do-mi-sol, os Pacáas Novos), exercitando-se ludicamente e pensando num possível público (Lopez: 2002, 30).

Para Telê Lopez (2002), Mário de Andrade estava:

empenhado em entender a realidade brasileira dentro de um quadro latino-americano e em traçar, na medida de suas possibilidades, as coordenadas de uma cultura nacional, tomando o folclore e a cultura popular como instrumentação para seu conhecimento do povo brasileiro, foi muito importante unir a pesquisa de gabinete e a vivência de vanguardista metropolitano ao encontro direto com o primitivo, o rústico e o arcaico, que, em seu enfoque

35 Para verificar Um projeto de livro, ver: Lopez, Telê Porto Ancona. Estabelecimento do texto, introdução e notas, in: ANDRADE, Mário de. O turista Aprendiz. Belo Horizonte, 2002.

83

dialeticamente dinâmico, puderam lhe valer como indícios de autenticidade cultural (Lopez 2002, 15).

O autor brinca com diferenças estéticas dentro da própria obra, como é o caso do

capítulo IX, Carta pras Icamiabas, cuja escrita se assemelha ao de um escritor

parnasiano, fazendo uma alusão ao passadismo tanto criticado como elemento estético

moderno e, ao mesmo tempo, tão procurado pelo autor nas viagens etnográficas.

Em diversos momentos das viagens, o autor conta que caminha até a terceira classe do

barco para participar das festas e cantorias promovidas pelas pessoas que viajam lá,

dormindo em redes em níveis abaixo das cabines. No diário do dia 9 de junho de 1927

anota: Noite, bailarico a bordo: clarineta, dois violões, cavaquinho e ganzá. Tudo ia na

terceira classe (Andrade: 2002, 87). Dias mais tarde, no retorno do Peru, escreve mais

uma vez na caderneta: Baileco a bordo (Idem: p.115). São inúmeros os exemplos de

observação que o escritor modernista realizou na primeira viagem etnográfica. Durante

as paradas, para abastecer, carregar/descarregar mantimentos e pessoas, sempre que

possível assistia aos espetáculos de Boi-Bumbá e Bumba-meu-boi, entre outras

manifestações culturais e artísticas posteriormente incluídas nos estudos que formariam

o Na Pancada do Ganzá, em crônicas, ou no próprio livro O Turista Aprendiz.

Em 12 de junho de 1927, Mário de Andrade registra que foram a um lugar denominado:

Caiçara, onde tinha festa. Fomos lá e encontrei o bailado da “Ciranda”, que vi quase

inteiro, registrei duas músicas numa caixa de cigarro, e tomei umas notas como pude.

Tinha esquecido o livro de notas (Andrade: 2002, 90). No mesmo dia, consta em seu

diário a observação da constelação Ursa Maior, cujo papel na história de Macunaíma é

importantíssimo.

A segunda viagem etnográfica, feita explicitamente com finalidade de pesquisa, teve

uma preocupação maior com a observação e registro de festas e manifestações da

cultura popular. Também nessa segunda viagem, a função social do artista fica mais

manifesta. Seus textos, nas crônicas publicadas no Diário Nacional, além de mostrarem

a inquietude da criação artística, revelam o escritor engajado com as questões sociais

dos lugares que visita.

84

O primeiro diário traz um lirismo maior, possivelmente pelo impacto da exuberância

natural da região amazônica, sem o compromisso das crônicas jornalísticas. Aqui se

nota, que na primeira viagem há maior espaço para trabalhar de maneira inteligível. Na

segunda viagem, pela pressão colocada na “obrigação” de enviar os textos ao jornal, vê-

se que há uma apreciação mais sensível, ou seja, menos afeita a reflexão intelectual,

mais imediata. Mesmo, por exemplo, quando o autor faz críticas políticas que poderiam

estar melhor embasadas de dados informativos.

Antonio Candido, em A vida ao rés-do-chão (1992), fala da crônica como um gênero

eminentemente brasileiro, que procura descrever as coisas “perto do dia-a-dia” (p.14) e

aponta que, aqui, o gênero se desenvolveu graças ao jornal e à sua popularização. No

mesmo artigo, classifica Mário de Andrade como um dos primeiros cronistas

brasileiros, apontando a aproximação de seu texto com a oralidade. Fala da linguagem

de Mario de Andrade como “lírica-humorística” (p.17) (embora algumas crônicas

tenham sido extremamente críticas, como veremos adiante). Mário de Andrade, no

prefácio da primeira parte do livro O Turista Aprendiz, afirma:

Agora reúno aqui tudo, como estava nos cadernos e papéis soltos, ora mais, ora menos escrito. Fiz apenas alguma correção que se impôs, na cópia. O conjunto cheira a modernismo e envelheceu bem. Mas pro antiviajante que sou, viajando sempre machucado, alarmado, incompleto, sempre se inventando malquisto do ambiente estranho que percorre, a releitura destas notas abre sensações tão próximas e intensas que não consigo destruir o que preservo aqui. Paciência... São Paulo, 30-XII-1943 (Andrade: 2002, 49)

Esse trecho mostra a data da última redação do livro O Turista Aprendiz, referente à

primeira viagem etnográfica, reforça sua característica de “antiviajante” e revela a

reescritura da obra, ainda que a pesquisadora Telê Lopez (2002) trate esse texto como

uma versão paradefinitiva.

Também reafirmamos a posterior repercussão de temas presentes em O Turista

Aprendiz em outras obras literárias e ensaísticas de Mário de Andrade. Assim,

apontamos a importância do “arte-fazer”, misturando ficção e realidade, observados por

Davi Arrigucci Jr (1994) e Telê Lopez (2002). Nessa prática suas ideias seriam

constantemente buriladas, dando origem a novos textos, recortes e formas. Um

exemplo: o projeto de livro (inacabado) Café, inicialmente um romance de denúncia

social (causado pela crise de 1929), que se torna um ensaio sobre a música de Chico

Antônio, além de pré-concepção de uma futura opereta, com o cantador de cocos

85

potiguar inspirando o protagonista. Não recebeu redação definitiva pelo falecimento do

autor.

Em 25 de maio de 1927, o autor observa uma brincadeira no Pará, que reaparece em

Macunaíma: “quero que vá e me traga...” (Lopez: 2002, 67). Em 27 de junho, o diário

começa com a seguinte descrição: “Não vê que lá não sei onde...” (Andrade: 2002,

114) que remetem aos versos da poesia Descobrimento: Não vê que me lembrei lá no

norte... (Andrade: 2005, 203), de Dois Poemas Acreanos, publicados no Clã do Jabuti

no mesmo ano da realização da viagem. Na segunda parte da mesma poesia – Acalanto

do Seringueiro – Mário de Andrade cita o mato-virgem do Acre (Idem, 204), que

também nos remete ao do fundo do mato-virgem, onde nascera Macunaíma.

Anteriormente às duas viagens etnográficas, a “viagem da descoberta do Brasil”, a

Minas Gerais, já dera ao autor novas percepções do Brasil e da sua cultura popular.

Consequentemente, também influenciara outras obras, como o livro de poemas Clã do

Jabuti. Esse livro, considerado por Marta Rossetti Batista, em Coleção Mário de

Andrade: religião e magia/música e dança/cotidiano (2004), como uma “tese de Brasil”

resulta da busca de Mário de Andrade pelo primitivismo, presente no modernismo

brasileiro, e fundamenta parte de sua produção literária e ação política. Macunaíma,

publicado originalmente em 1928, contém ecos originados da primeira viagem

etnográfica, conforme redação de O Turista Aprendiz. Uma primeira redação do livro

Macunaíma foi realizada antes da viagem à Amazônia, em Araraquara, na “chacra”

Sapucaia, de seu amigo Pio Lourenço Correa, o Tio Pio. Mas a viagem, sabe-se, o fez

incorporar elementos à rapsódia.

Para Telê Lopez (2002) com a primeira viagem etnográfica, o modernista tinha uma

ideia de “talvez realizar o que chama de ‘trabalho etnográfico’, ou seja, coleta de

informações” (p.16). No mesmo ano já confessara, em cartas a Manuel Bandeira, seu

desejo de realizar viagem e pesquisa no Norte do país, também com a intenção de

encontrar-se pessoalmente com Luís da Câmara Cascudo, que conhecia somente pela

troca de correspondência. Apenas a partir do convite e organização de D. Olívia Guedes

Penteado a viagem realmente acontece.

86

Marco Antônio de Moraes (2001), no livro que organizou sobre a correspondência entre

Mário de Andrade e Manuel Bandeira, registra a carta de 6 de abril de 1927, assinada

pelo primeiro, que relatava a viagem e o percurso da comitiva no nordeste e na região

amazônica. A mesma carta menciona outros modernistas que também participariam da

expedição:

Vamos pelo Lóide Brasileiro parando de porto em porto até Manaus. De lá subimos o Amazonas já com tudo determinado pelo Geraldo Rocha para pararmos em todas as partes interessantes continuamos pelo Madeira e vamos para na Bolívia. Depois não sei como é a volta, sei que tomamos a Madeira-Maimoré até parece que Guajará-Mirim e depois não sei mais nada. Vamos Dona Olívia, Paulo Prado, o Afonso de Taunay e parece que mais uma pessoa (Moraes: 2001, 341).

Mário de Andrade decepciona-se, ao embarcar no Rio de Janeiro na companhia de

apenas três mulheres da elite paulistana. Tal fato – um homem viajar sozinho em

companhia de mulheres – era incomum para a época. De acordo com Lopez (2002):

“Considerando-se as convicções da época a respeito de homem e mulher e a formação

de Mário de Andrade, a situação não era, sem dúvida, muito invejável” (p. 18). Assim,

o poeta modernista parte incomodado com a situação, e reclamaria da mesma em

algumas passagens de O Turista Aprendiz:

(...) com essa história não me despedi de ninguém direito, nem percebi certo quantos companheiros de viagem iam no bando. Já de São Paulo sabia que eram uma porção e dente de circo, disposta e bem divertida. Pois quando dou tento mesmo definitivo no caso, toda a gente roera a corda! Estamos apenas dona Olívia, e as duas moças, Dolur e Mag.(...) – Se soubesse que era assim, não vinha, dona Olívia (Andrade: 2002, 54-55).

Outro fator que perturbou Mário de Andrade na viagem foram os enormes protocolos e

compromissos oficiais a cumprir, por ser parte da comitiva da dama paulistana, D.

Olívia Penteado, apresentada costumeiramente como a Rainha do Café. Grande parte

desses compromissos oficiais resultava dos telegramas que o paulista Washington Luís,

naquele momento presidente do Brasil, havia enviado a todos os presidentes de estado

(atuais governadores) e ao Peru, solicitando apoio e cuidados com a viagem dos amigos

pela região amazônica. Isso denota a oficialidade e notoriedade que a primeira viagem

etnográfica de Mário de Andrade adquiriu, graças à D. Olívia Guedes Penteado. Telê

Lopez (1994) descreve a situação:

Não nega as desvantagens de “viagens com mulher” (...) Cansa-se, por vezes, de tanta “pajeação” e dos compromissos decorrentes da passagem dos vaticanos pelas capitais e povoações ribeirinhas no Amazonas e Pará, e por Iquitos, no Peru, conduzindo gente importante – eles quatro! – recomenda a presidente de estados e a prefeitos. Haja discurso!

87

E recepções em que se destaca, por certo, a situação peculiar, naquele tempo, de um homem viajando com três mulheres, “por conta própria” (Lopez: 1994, 62).

No livro O Turista Aprendiz (2002), em diversas passagens o autor se mostra avesso aos

compromissos oficiais e obrigações. Na verdade, não apenas a Rainha do Café visitava

as regiões amazônica e nordestina; também o grande poeta modernista, autor de

Pauliceia Desvairada (1922) e um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna, o

que tornava a notoriedade dos viajantes ainda maior. Telê Lopez (2005) lembra que,

nessa época, Mário de Andrade já gozava de certa projeção nacional (p.136). O próprio

escritor descreve episódios e encontros com outros poetas, além de políticos, alguns dos

quais manteve laços de amizade. Um contato estabelecido durante a primeira viagem

etnográfica e mantido posteriormente ocorreu com o prefeito Sérgio Olindense, da

cidade de Humaitá (AM), que se revelou um verdadeiro entusiasta do modernismo e

profundo admirador de Mario de Andrade e que, mais tarde, enviaria documentos

relativos à cultura popular da Amazônia para o poeta, como relata o escritor Castello

Branco (1971). Já na segunda viagem etnográfica, que realiza só, o poeta modernista e

pesquisador da cultura brasileira, livra-se das “visitas oficiais” e tem mais tempo para

dedicar às suas pesquisas, como desejava.

Telê Lopez, na introdução da edição crítica de Macunaíma, assinada como Nos

Caminhos do Texto (1997), ainda afirma sobre a primeira viagem etnográfica:

Férias, para Mário de Andrade, significam sempre ocasiões privilegiadas sobre o trabalho. Assim, não escreve apenas o diário. Dá início ao “idílio” Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma, recolhe folclore musical e estuda manifestações da cultura popular da região; desenvolve sua experiência de fotografo moderno que documenta e cria, desenha e comporta-se como o autor de Macunaíma fundindo a experiência existencial do viajante à criação, à pesquisa para a obra (Lopez: 1996, XXI).

É exatamente a experiência existencial vivida nas duas viagens que constituem

balizadores para a literatura de Mário de Andrade. Nelas, ele tinha a oportunidade de

pesquisar objetos e manifestações que mais tarde incorporaria à sua escrita.

Já no início da viagem Mário de Andrade se define como antiviajante, como já

salientado, assim como outros viajantes e exploradores, a exemplo de Claude Lévi-

Strauss. De acordo com Cristóvão (1999), o perfil de antiviajante é característico de

artistas, intelectuais, pessoas que realizam viagem de erudição ou formação para

aprimorar seu universo cultural e conhecimento intelectual. Reiteramos terem sido essas

88

as propostas de Mário de Andrade, nas duas viagens etnográficas que fez. O título do

livro – O Turista Aprendiz – indica: que está partindo para aprender, estudar, descobrir,

formar e ampliar sua erudição e cultura.

Na primeira viagem etnográfica, durante grande parte dos deslocamentos pelos rios

amazônicos, o poeta trabalha dentro de sua cabine, buscando “matrizes para a criação

onde trabalha o delírio e o sonho” (Lopez: 1994, 61). Lopez (1994) esclarece:

Margarida Guedes Nogueira relembrava, com muito gosto, as travessuras de Mag e Dolur na viagem de 1927, principalmente a que deixou Mário furioso com elas. Cabines vizinhas, ampliaram, no madeiramento da que ocupava o companheiro, um buraquinho para espiá-lo, verificando, então que ali, durante a lerda navegação, ele vivia escrevendo (Lopez: 1994, 61).

O lirismo no Mário de Andrade é mais acentuado na primeira viagem etnográfica. Essa

característica, de criação essencialmente lírica, se faz presente também na obra do

poeta francês Blaise Cendrars, que muitas vezes não permitia ao leitor enxergar com

exatidão o real ou o ficcional em sua obra. Blaise Cendrars aproxima-se, mesmo, do

dadaísmo e do surrealismo. No que tange a intenções, propostas e planejamentos de

Mário de Andrade para as viagens etnográficas, Telê Lopez (2002) é contundente:

A viagem à Amazônia, a julgar-se pelos textos de 1927 e 1928 que dela resultaram, foi claramente marcada pela preocupação etnográfica, com Mário de Andrade procurando entender uma particularidade do Brasil através da observação da vida do povo. Ela teria também lhe mostrado a necessidade de pôr logo em prática seu velho projeto de visita ao Nordeste, desejando agora, realizar uma pesquisa mais sistemática em uma região que se oferecia tão rica em tradição musical popular (Lopez: 2002, 19).

A primeira viagem etnográfica tem início em 7 de maio de 1927, quando parte de São

Paulo sozinho rumo a Santos, onde embarca num navio que o levaria ao Rio de Janeiro

para encontro com amigos e companheiros de viagem. O retorno ocorre em 15 de

agosto do mesmo ano. Nesse momento, o antiviajante escreve e brinca com Bastiana,

empregada da família, pedindo que o trancasse em casa e assim o deixasse, preso, sem

mais viagens:

Enfim, pelas quatorze horas, são exatamente quatorze horas e onze minutos e doze segundos, na “minha” casa, com os “meus”, com a “minha” gente. Fecha bem a porta, Bastiana! Fecha a porta com chave. Bastiana! atira a chave na rua (Andrade: 2002, 177).

Ainda assim, um ponto importante a ser observado neste trabalho, reside nas próprias

atividades de escritura, e importa salientar uma diferença entre os registros da primeira

89

e da segunda viagens etnográficas. No primeiro caso houve uma redação final sobre a

experiência vivida, enquanto que, para a segunda viagem etnográfica, não houve tempo

para a escrita definitiva, para publicação em livro. Algumas crônicas sobre o catimbó,

observado na sua segunda estadia em Natal (1928-29), foram publicados no livro de

ensaio Música de Feitiçaria. Outras, publicadas em Os filhos da Candinha, como

lembra Lopez (2002, p 28).

Observamos que os textos da última viagem foram escritos para sua coluna do Diário

Nacional e continham preocupação de uma redação voltada para o público leitor que

acompanhava suas crônicas pelo periódico. Por sua vez, o texto sobre a primeira

expedição recebeu do próprio autor o título de “redação definitiva”, embora sempre

redigisse “notas avulsas”:

Pondo esse material em contato com os lembretes e as observações marginais do diário percebemos que esta primeira parte do livro O turista aprendiz não recebera o arremate final e que a versão, chamada por Mário de Andrade de “definitiva”, é, na realidade, para-definitiva (Lopez: 2002, 26).

É sempre presente seu cuidado constante com o que seria publicado. E, nesse cuidado,

não preservava rascunhos, jogando fora os esboços anteriores e impossibilitando o

acompanhar de seu processo criativo. Quanto ao processo de escrita, ou redação, em

Mário de Andrade, Lopez continua:

Neste ponto, é preciso que se faça um esclarecimento. As mudanças e transformações a que Mário submete seus projetos de obras são uma constante ao longo de sua produção. Algumas vezes reúne material, arrola fontes, traça esboços ou escreve rascunhos, anunciando então um livro que acaba transformado em artigo ou conferência, ou mesmo não dando prosseguimento (Lopez: 2002, 27).

Em outras palavras: “Mário de Andrade não tira férias de escrever” (Lopez: 1994, 60).

Telê Lopez, ainda, em Um projeto de livro (2002), afirma:

Outras vezes transforma um romance em conto ou peça ou termina por colocar um mesmo texto em duas obras projetadas. Essa movimentação, decorrente do entrelaçamento dos projetos, é que nos faz entender que textos retirados de um conjunto poderão mais tarde ser ali reclamados (“faltam”) (Lopez: 2002, 27).

A obra intitulada Café (publicada dentro de Poesias Completas) seria, originalmente,

um romance que trata do ciclo da economia cafeeira paulista. O texto traz a figura de

Chico Antônio, cantador de cocos, e seu inseparável instrumento – o ganzá –, que Mário

de Andrade conheceu em sua segunda viagem etnográfica, no Rio Grande do Norte, por

90

intermédio de Câmara Cascudo. Chico Antônio foi fonte de inspiração para Mário de

Andrade em muitos cocos que recitou e também inspirou obra posterior. O ensaio Vida

do Cantador é um exemplo. Café não foi concluída devido ao falecimento do autor e,

portanto, igualmente inconclusa a opereta em que Mario de Andrade a transformou.

Para Telê Lopez (1994), uma primeira redação ocorreu em 1929, posterior ao retorno do

poeta da segunda viagem etnográfica, ano da crise econômica mundial, também sentida

no Brasil, em especial na economia cafeeira paulista. De acordo com a mesma autora, o

projeto foi retomado em 1942, e se desdobrou, de modo independente, no livro Vida do

Cantador, publicado com edição crítica de Raimunda de Brito Batista (1993). Essa obra

exemplifica a hipótese desta: o modernista é inspirado pelo contato com um homem-do-

povo a escrever um romance, que transforma num ensaio sobre a música popular

brasileira e depois, ainda, num projeto de opereta. Telê Lopez observa:

A redação de um primeiro Café, romance, data de 1929; relegada à gaveta do autor, desdobra-se, em 1942, na série jornalística da narrativa/lições, Vida de Cantador. Entretanto, em 1933, depois em 1939 e, por fim, em 1942, a parcela da fazenda de café ganha autonomia na ‘concepção melodramática’, poesia buscando a ópera (Lopez: 1994, 69).36

Igualmente, Os filhos da Candinha (2006), livro de crônicas publicado originalmente

em 1943, tem personagens, histórias e reflexões de Mário de Andrade que também

trazem esses “momentos de descobrimento do Brasil”. Das 43 crônicas publicadas em

Os Filhos da Candinha (2006), 12 possuem alguma ligação com as viagens

etnográficas. E 5 dessas crônicas haviam sidos publicadas na série O Turista Aprendiz,

da coluna no Diário Nacional, segundo Lopez (2002, 27-8). Para a autora, os textos

publicados no livro foram “transformados em variantes” das crônicas publicadas pelo

jornal, comprovando o trabalho constante de reelaboração da escrita e recriação

literária.

A característica de reescrever obras e o processo contínuo de elaboração, dentro da

perspectiva que propomos discutir, ou seja, o impacto das viagens etnográficas em

algumas obras e na trajetória política de Mário de Andrade, importa por demonstrar dois

aspectos que se complementam. O primeiro é o da viagem em si, em que o viajante

narra o que vê para informar outros; há uma questão de verossimilhança com o fato

36 Grifados no original.

91

observado (sobretudo durante a segunda viagem etnográfica, enquanto escreve as

crônicas para o Diário Nacional e também em cartas aos amigos). Outro aspecto, que se

faz mais presente, é a possibilidade de refletir e criar a partir do vivido nas viagens

etnográficas.

Talvez possamos separar esses aspectos em duas percepções diferentes. De um lado, a

percepção mais sensível, fruída no momento em que vivencia experiências, e que

origina um texto mais lírico. De outro, a percepção mais inteligível, posteriormente

retrabalhada intelectualmente, que embasaram análises e pontos de vista: o intelectual

se fazia mais necessário que o escritor. Nas viagens etnográficas, o sensível e o

inteligível se manifestam. De um lado o artista, de outro o intelectual, por vezes se

amalgamando: não são exclusivos, um do outro.

Para Antonio Candido e outros pesquisadores, Mario de Andrade tem o ineditismo de

aprofundar-se no universo da cultura popular brasileira, sobretudo em seus aspectos

rurais – em detrimento da cultura popular urbana. Afirmamos, então, que as viagens

etnográficas também se constituem em momentos fundadores para Mário de Andrade.

A partir destes momentos, se reforça o sentido da necessidade de mais estudos sobre o

Brasil para poder compreendê-lo melhor. Após seu entendimento, sensível e inteligível,

é possível atuar nele.

Marta Rossetti Batista (2004) relata que, ao final de sua estadia no Nordeste, durante a

segunda viagem etnográfica (1928-29), Mário de Andrade recolheu cerca de 5000

músicas, de estilos e ritmos diversos. Esse dado deve ser considerado como um esforço

monumental do escritor – aqui externando o “homem pesquisador” – , uma vez que a

coleta foi realizada sem nenhum apoio técnico, apenas com ouvido, lápis, mãos e

cadernetas. O modernista não dispunha de gravadores ou quaisquer outros

equipamentos que pudessem auxiliá-lo nas pesquisas.

Nessa segunda expedição, a viagem restringiu-se a apenas três estados da região

nordeste do Brasil: Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, diminuindo o tempo

gasto com deslocamentos, constantes na viagem amazônica. Assim, o escritor pôde

estabelecer contatos mais intensos, observando com cuidado e atenção as manifestações

da cultura popular nordestina. E, por estar menos atrelado a compromissos oficiais,

92

viajou “livre de protocolos e dono de seu tempo”, como definiu Telê Lopez (2002, p

20).

Também por estar livre de compromissos protocolares, Mário de Andrade organizou-a

e planejou-a. Ampliou, por exemplo, os contatos com Câmara Cascudo, que ocorriam

desde pelo menos 1924, quando escreve ao escritor potiguar em agradecimento às

críticas sobre o livro Pauliceia Desvairada. A amizade perdurou até o fim da vida do

escritor, como atesta a correspondência entre eles. Na segunda viagem etnográfica, no

período em que pesquisou no estado do Rio Grande do Norte, Câmara Cascudo lhe

serviu de anfitrião. Hospedou-o em sua casa, colaborando com contatos e

conhecimentos, sendo quem o apresentou a Chico Antônio, entre outros tantos que o

auxiliaram em suas pesquisas in loco. Pôde, assim, recolher e registrar músicas e danças

populares brasileiras através do contato direto com seus produtores.

Importa ressaltar, aqui, a importância do contato com o escritor e folclorista potiguar,

Câmara Cascudo. Até a chegada do escritor paulista a Natal, em 14 de dezembro de

1929, os amigos que não se conheciam pessoalmente fizeram desse encontro um contato

intenso e profícuo. O escritor modernista passou praticamente metade do tempo da

segunda viagem no estado do Rio Grande do Norte, em companhia de Câmara Cascudo.

Em um trabalho exaustivo tanto para o pesquisador como para os artistas, sem

equipamentos para registros fonográficos, os cantores e passistas repetiam as músicas e

danças inúmeras vezes, para que Mário de Andrade fizesse todos os registros que

julgava necessários. Esse trabalho, por vezes, entrava pela madrugada; e havia ainda um

problema adicional: pelos improvisos, era difícil buscar a exatidão dos versos recitados

pelos cantadores e emboladores. No dia 30 de dezembro de 1928, por exemplo, na praia

da Redinha, litoral norte de Natal, observa um grupo de choro que também toca maxixe

e sambas.. No dia seguinte, termina a crônica assim:

Pra acabar dou o canto Nanã-Giê, mestra que trabalha no fundo do mar e protetora das mulheres. É curandeira. Identificável com uma das Mães-d’água. “Nanã-giê, ôh Nanã-giá!/ Nanã brecô já vem do má!/Nanã mi conhece, menina do má!/Valei-me Nanã, pra nóis milhorá!...” (Andrade: 2002, 231).

Em seguida começa a cantoria de coco, transcrita na coluna publicada no Diário

Nacional do dia 27 de janeiro de 1929. Na viagem à região amazônica, o escritor

93

observava também as músicas e danças ocorridas durante a navegação, à noite. Mas

apenas na segunda viagem etnográfica o trabalho de estudo, observação e pesquisa é

feito de maneira constante e metódica.

Como cronista do Diário Nacional, pautou seu trabalho por análises realistas,

preocupando-se em descrever as condições sociais dos brasileiros, sobretudo daqueles

envolvidos com as tradições culturais e artísticas, mas quando necessário abrangendo

outras situações políticas. Com isso, a organização discursiva da segunda viagem

etnográfica fica mais distante dos textos literários produzidos por ocasião da viagem de

1927, onde a criação artístico-literária se fez mais presente.

Chico Antônio e Mário de Andrade se conheceram no Engenho Bom Jardim, onde o

escritor paulista recebeu inúmeros intérpretes de música popular (nem todos de grande

valia) e também grupos que realizaram apresentações de danças dramáticas

especialmente preparadas para ele. Nesse local é apresentado ao “cantador” de cocos,

que ele dizia valer “mais que dez carusos”. O contato entre artista popular e (artista)

intelectual se estreita e o cantador passa a ser um dos grandes fornecedores de cocos e

emboladas para Mário de Andrade. O escritor encanta-se com as qualidades musicais e

disposição que o cantador demonstrava, às vezes cantando a troco de nada, só pela

cachaça e prazer de cantar (Andrade: 2002, 260).

Outra observação importante, na segunda viagem etnográfica, diz respeito à

religiosidade popular. Mário de Andrade registra, principalmente, o Catimbó. São

estudos depois incorporados ao projeto inacabado Na Pancada do Ganzá, e no livro daí

resultante Música de Feitiçaria no Brasil. Publicado originalmente como uma

conferência, realizada em 1943, para a Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro,

foi depois transformada em livro por sua colaboradora Oneyda Alvarenga. Em 28 de

dezembro de 1928, última sexta-feira do ano, Mário de Andrade participa de um ritual

de catimbó com o intuito de “fechar seu corpo”. Essa experiência é narrada numa longa

crônica publicada no Diário Nacional, em que descreve com detalhes a cerimônia,

comparando-a também com a cena da macumba, em Macunaíma. Relata ter sido

recebido pelas entidades de Mestre Carlos, que já havia inspirado crônica publicada

anteriormente, e também pela bonita Nanã-Giê (Andrade: 2002, 227). Telê Lopez

(2002) comenta outros interesses despertados pela viagem:

94

Durante a viagem ao Nordeste escreve também seu diário, onde, além da pesquisa musical, registra seu interesse pela arquitetura e pela imaginária sacra e sua preocupação com as condições de vida e trabalho do povo (Lopez: 2002, 20).

A autora anota, ainda, que a segunda viagem etnográfica “marcam também as ligações

com os projetos de estudo do Folclore e da cultura popular do escritor” (Lopez: 2002,

36). Objetos de religião e magia interessavam muito ao escritor modernista, que os

colecionava - os mesmos estão hoje disponíveis no IEB-USP. Anos depois, através do

Departamento de Cultura, solicitará a guarda do material religioso apreendido pela

política persecutória do Estado Novo em terreiros de candomblé e outras religiões afro-

brasileiras. Para evitar a perda desse material, e pelo seu valor histórico, artístico e

religioso, guardado sem condições mínimas de cuidado, pede que sejam doados ao

Departamento de Cultura do Município de São Paulo, para inclusão no patrimônio

público, ficando o órgão responsável por sua guarda e manutenção. São preocupações

advindas de visões de mundo já presente no projeto Na Pancada do Ganzá. O homem

pesquisador e o homem público se mostram, nessa circunstância (que analisaremos com

atenção nos capítulos 4 e 5).

O fotógrafo Mário de Andrade merece, igualmente, menção neste trabalho. A fotografia

era ainda uma arte pouco desenvolvida e praticada no Brasil, mas já encantava o poeta,

da mesma forma que o cinema. Em 1923 adquire uma Kodak norte-americana, e inicia

seus estudos e práticas de “estética fotográfica”. Também passa a assinar as revistas

L’Esprit Nouveau (de origem francesa) e Der Querschnitt (O Corte Vermelho, de

origem alemã). Com esse material estudava enquadramentos, opções de corte,

geometrização, ou seja, as opções estéticas da fotografia.

Encontra fotógrafos como o norte americano Man Ray, além de Galloway, Neofot,

Schneider, Riebicke, Steinert, conforme aponta Telê Lopez (1993) em As viagens e o

fotógrafo. Nesse período põe-se a escrever o livro Amar, verbo intransitivo, publicado

em 1927 e considerado por muitos seu livro mais cinematográfico, justamente pelos

cortes, ritmo e ângulos de sua personagem principal, Fraülein. Para Telê Lopez, na

mesma obra:

Der Querschnitt abre, para o sôfrego autodidata, a capacidade da câmera expressar o lirismo, a poesia visual; de reter a alegria, a espontaneidade no cotidiano; do retrato com o instante iluminado que recolhe a alma de cada personagem; de ampliar o alcance do real,

95

enfim. Ensina-lhe, principalmente, que a máquina é companheira inseparável do viajante e de todos aqueles que desejam enriquecer pesquisas de cunho antropológico, geográfico, etc. (Lopez: 1993, 110).

A revista alemã, assim, inspira também a pesquisa antropológica, constantemente

utilizada durante as duas viagens etnográficas, pois objetiva a função documentadora

da fotografia (Lopez: 1993, 114). Esse interesse pelas possibilidades fotográficas, tanto

artísticas como de registro e estudo, fizeram com que o escritor partisse para as viagens

com a máquina “codaque” na bagagem. E assim grafa a marca da câmera,

abrasileirando a palavra e criando mais um neologismo. Coloca em prática a busca por

uma linguagem mais brasileira e popular, que defendia dentro do projeto estético

modernista.

Telê Lopez, em outro estudo37 sobre a fotografia do Turista Aprendiz (termo usado aqui

para referir-se ao escritor modernista) afirma que a obra do alemão Theodor Koch-

Grümberg Von Roraima zum Orinoco, tão usada por Mário de Andrade no processo de

escrita de Macunaíma, era acompanhada por:

Um longo e rigoroso ensaio fotográfico que documenta, no correr dos volumes, o tipo físico, costumes e elementos da cultura material dos diferentes povos indígenas estudados, bem como o espaço geográfico e o próprio etnólogo em atividade (Andrade: 2005, 138).

Assim, a bibliografia estrangeira estimulava, em Mário de Andrade, a documentação

fotográfica e sua própria prática em um sentido estético, o contato com fotógrafos

estrangeiros orientou fotografias realizadas nas viagens etnográficas. Os arquivos de

Mário de Andrade mostram essas aproximações. Por exemplo: em uma fotografia de

Man Ray, intitulada Uma Americaninha, observa-se a parte de trás das pernas de uma

mulher. A fotografada é retratada de costas, desde um pouco acima do joelho até o

instante em que os sapatos tocam o chão. Outras fotografias de costas também aparecem

nas revistas e Mário de Andrade fotografa, na região do rio Madeira, um mateiro de

costas, como se fosse um seringueiro. Uma fotografia de Ernest Schneider, intitulada

Flamingos no Zoológico de Stellinger e publicada em fevereiro de 1927, na revista

alemã Der Querschnitt, é a provável inspiradora para a foto com as garças do Museu

Emílio Goeldi, em Belém do Pará, “fotada” pelo escritor modernista. Galloway, com

seus barcos de pesca no Golfo de Corinto, também inspirou a foto dos mastros de

37 Para mais detalhes, ver: Telê Lopez em O Turista Aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na imagem (2005).

96

veleiros em Areia Branca, próximo ao porto de Mossoró (RN), na mesma viagem à

região amazônica. Outra foto de cunho poético é realizada na passagem por Fortaleza, e

ficou conhecida como Roupas freudianas, penduradas num varal, balançando ao

vento38.

As fotografias não eram apenas inspiradas e copiadas por Mário de Andrade. Há

criação estética quando fotografa uma série composta por um pescador lançando suas

tarrafas, nos arredores de Manaus. Também usa a fotografia como registro do cotidiano.

Há vários registros da vida que os viajantes desfrutavam na viagem à região amazônica,

com brincadeiras e poses. Duas dessas fotos mostram os viajantes que “brincam de

ridículo”, e posam com roupas e acessórios extravagantes. Ou então Mag e Dolur, as

jovens acompanhantes da viagem, posam como a escultura de Alberto Canova, Amor e

Psiquê, e que Mário de Andrade intitulou Amor e Psiquê no Solimões.

Ana Maria Paulino, em seu artigo Fotografia: uma arte para Mário (1993), compara as

fotografias de Mário de Andrade com alguns quadros e séries pintadas por Claude

Monet, pelos sinais de encantamento pela água (p.122). Os movimentos da natureza

são fixados pelos dois artistas. Para Paulino:

Monet fixou nas telas o movimento da natureza (...) Reteve com maestria a mobilidade do vento e, seduzido pela água, figurou em nuances o Mediterrâneo, o Sena, o Tâmisa, o Epte, os Canais da Holanda e da Mancha, o lago artificial da casa de Giverny onde viveu (p. 122).

Mário de Andrade poetizou os rios em sua obra literária. Em Costela do Grão Cão39

(publicada postumamente), ele escreve: “Eu sou aquele que veio do imenso rio”.

Paulino aprofunda ainda mais essa questão:

O poeta cantou a água como metáfora. Na palavra moveu-se entre charcos, corredeiras, lama, riacho, lagoão, dilúvios, pororocas, maremotos. Mesclou na língua poética Capiberibe e Tejo. Sena, Tietê. Madeira e Potenji (...) Ao se acompanhar da Kodak retrilhou a alegoria. Furos, igarapés, lagoas, águas do Atlântico, Madeira, Amazonas traduzem essa renitência. Rios Moji e Piracicaba perfazem, nas fotos, o itinerário do simbólico (Paulino: 1993, 122).

Além da documentação “poética-visual” e registro do cotidiano, as fotografias, em

Mario de Andrade, mantém a dimensão documental, que retratava a geografia local em

seus múltiplos aspectos: a paisagem, a população, e aspectos da cultura material do

38 Para mais detalhes da relação entre fotografia e Mário de Andrade, ver: Lopez 1993 e 2005. 39 Para mais detalhes, ver poema Brasão, publicado em Costela do Grão Cão (Andrade: 2005, 319).

97

brasileiro do norte e nordeste. Para Telê Lopez (2005): Deste modo, a paisagem – a

terra, os rios, a vegetação –, a população de brancos, mestiços e indígenas, homens,

mulheres, curumins, os meios de transporte, trabalho, usos e costumes são fixados

(p.143). O documental se reflete também no cuidado de Mário de Andrade com a

técnica: era extremamente zeloso com as fotos que realizava, atento a abertura de

diafragma, exposição à luminosidade e enquadramentos. Também incluía legendas, com

as intenções que tivera ao “fotar”, com datas e locais. Durante as duas viagens

etnográficas tirou cerca de 500 fotos (Lopez: 2002, 22), mesmo sem a possibilidade

técnica de fotos noturnas. Telê Lopez (2002) ressalta a dificuldade:

“apresentações das danças dramáticas, dos maracatus ou dos cordões carnavalescos [que] realizavam-se à noite, sob iluminação muito precária. Essa dificuldade técnica da época permitiu que fotografasse apenas a construção de barcaça para a ‘Chegança’ (Alagoas) e um ensaio de ‘Pastoril’ (Rio Grande do Norte), este, visto quase na penumbra (Lopez: 2002, 22).

Às vezes, sobretudo durante a viagem etnográfica à região amazônica, faz comentários

poéticos. Para Telê Lopez, entre a primeira e a segunda viagem etnográfica há uma

perda do entusiasmo no cuidado com fotos e legendas, possivelmente por preocupações

com outras formas de documentação. Mas ressalta que essa diferença ocorre apenas nas

questões de legendas dos documentos fotográficos. A preocupação com a estética

fotográfica persiste. Telê Lopez (1993) conta, também, que a experiência do fotógrafo

Mário de Andrade vai de 1923, quando adquire a Kodak, até 1931.

O interesse de Mário de Andrade pela fotografia já existia desde 1910, quando começou

a colecionar fotos e cartões postais com imagens do Brasil, “no intento de conhecer sua

terra e de constituir um conjunto documental para seu uso”, nos dizeres de Telê Lopez

(1993, p.137). O mesmo cuidado orientará outros momentos da trajetória artística e

política de Mário de Andrade quando, por exemplo, desenvolve a Missão de Pesquisas

Folclóricas, composto também de material fotográfico das suas andanças pelo Brasil

(como veremos no capítulo 5).

Uma vez que já apresentamos algumas discussões teóricas que fundamentam O Turista

Aprendiz, passemos agora à suas análises internas.

98

Capítulo 3 – O Turista Aprendiz, análise interna

Foto do autor: Belém, maio/2009

Foto de Mario de Andrade. Acervo IEB-USP

99

Passamos agora para outra metodologia de análise interna de alguns temas que

aparecem n’O Turista Aprendiz. Como já mencionado, há diferenças marcantes na

redação de cada uma das viagens etnográficas de Mário de Andrade. Assim separamos

os dois textos de forma a manter as respectivas peculiaridades. A primeira viagem

etnográfica teve uma redação para-definitiva de seu próprio autor, e sua criação literária

traz elementos líricos e poéticos.

Mas o autor não menosprezou as observações e registros dos lugares, usos e costumes.

Esse material apareceria mais tarde em livros, poesias, crônicas e trabalhos inacabados,

também burilados pelo escritor modernista que reconstitui a viagem revisando

anotações, fotografias, inspirações e memórias em outros momentos.

Entre os diversos temas abordados por Mário de Andrade nessa primeira viagem

etnográfica, destacam-se: o espaço amazônico; o estrangeiro; a criação literária; os

compromissos oficiais; a culinária e alimentação; o homem-do-povo e a civilização

brasileira, vistos como temas internos que, mesmo independentes, interligam-se.

Iniciamos com aspectos da criação literária que ilustram as reverberações das viagens

etnográficas em posteriores obras de Mário de Andrade. Procuramos confrontar os

polos da sensibilidade e da intelectualidade na criação de Mário de Andrade. Tratamos,

assim, das seguintes obras literárias: “Clã do Jabuti” (1927), “Macunaíma – O herói

sem nenhum caráter” (1928), “Remate de Males” (1930), “Os filhos da Candinha”

(1943), “Vida de Cantador” (1993), “Café” (publicado dentro da edição das Poesias

Completas) e “Balança, Trombeta e Battleship – ou o descobrimento da alma” (1994),

sempre na tentativa de compreender a relação entre as viagens etnográficas e essas

obras.

Já mencionamos que Remate de Males (1930), além de nomear o livro de poesia, é

também o nome de uma cidade amazônica visitada pelo autor em sua primeira viagem

etnográfica. Nesse livro está registrado o conhecido poema Eu sou trezentos..., datado

em 07/06/1929, pouco depois do retorno de sua segunda viagem etnográfica. É

considerado uma das auto-definições de Mário de Andrade, pelos múltiplos interesses

presentes em sua obra e vida.

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Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh Pirineus! Ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! Abraço no meu leito as milhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios; Eu piso a terra como quem descobre a furto Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos! Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo..., Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo.40

Essa poesia exprime a gama de interesses do universo mariodeandradiano que são

abordadas no decorrer desta tese, tanto na obra literária quanto em seu papel de “homem

público”, ainda que esses trezentos ou trezentos e cincoenta personagens denotem

alguma arrogância, como definiu Gilda de Mello e Souza (1984, pg. XV). Essas

palavras remetem às de Roger Bastide quando, escrevendo sobre André Gide, afirma:

Eu sou mil possíveis em mim; e não posso me resignar a querer apenas um deles41.

Na poesia ainda, fala da segunda viagem etnográfica e do ritual de fechamento de

corpo, ao cantar seu “grande sinal”: Mestre Carlos42, publicado no livro Costela do

Grão Cão. O próprio Mestre Carlos, por exemplo, já havia aparecido em outro poema

do livro Remate de Males.

Os críticos Antonio Candido e José Aderaldo Castello, em Presença da Literatura

Brasileira: Modernismo (2006) afirmam ser, em Mário de Andrade: visível a passagem

(...) de uma poesia ‘de guerra’ e de descoberta para uma pesquisa de moral e

refinamento estilístico, a partir de 1924 e 1925 (p. 25). Ao comentarem a mudança de

perspectiva na poesia modernista do escritor, na passagem do vinte ao trinta, reafirmam:

Na poesia o ano de 1930 é impressionante. Nele aparecem: Remate de Males, o livro em que Mário de Andrade reúne os versos escritos depois de 1924, superando a fase anterior pela pesquisa lírica em profundidade (Cândido & Castello: 2006, 26).

40 Mário de Andrade, Poesias Completas, 2005, p 211. 41 Cabe lembrar que Mário de Andrade e Roger Bastide mantiveram intenso contato quando do estabelecimento de Bastide no Brasil. Aliás, a relação entre os dois foi muito bem descrita e analisada por Fernanda Peixoto em Diálogos Brasileiros (2000). 42 Para mais detalhes, poema do Brasão, ver: (Andrade: 2005, p.319).

101

Em Remate de Males (1934), portanto, a viagem se faz presente na abertura com o

poema Eu sou trezentos..., e passa para a poesia Danças, onde os versos livres dançam

de fato nas páginas do livro, com seus diferentes ritmos. Referimos, igualmente, Tempo

da Maria, com o conhecido poema Louvação da Tarde, onde a ideia de perfil duro,

presente em Macunaíma, também aparece. Tratando do estilo literário, Candido e

Castello (2006) dizem que o poeta brinca com o formalismo, ao escrever a poesia em

sentido quase humorístico (...) composta em decassílabos brancos de grande beleza,

ordenados numa meditação de nítido corte pré-romântico transposta para o sentido

coloquial (p.22). No poema evidencia-se a ideia de desterritorialização (ou

desgeograficação) do Brasil:

Livre dos piuns das doenças amolantes, Com dinheiro sobrando, organizava As poucas viagens que desejo... Iria Viajar todo esse Mato Grosso grosso, Danado guardador da indiada feia, E o paraná verdinho... Ara, si acaso Tivesse imaginando no que dava A Isidora, não vê que ficaria Na expectativa pança em que fiquei! Revoltoso banzado em viagens tontas, Ao menos meu sul conheceria, Pampas forraginosos do Rio Grande E praias ondejantes do Iguaçu... Tarde, com os cobres feitos com teu ouro, Paguei subir pelo Amazonas... Mundos Desbarrancando, chão desbarrancados, Aonde no quiriri do mato brabo A terra em formação devora os homens... Este refrão dos meus sentidos... Nada Matutarei mais sem medida, ôh tarde, Do que esta pátria tão despatriada! (Andrade: 2005, 239)

Na mesma série, ainda dentro de Louvação da Tarde, há outro poema, menos

conhecido, mas que julgamos importante para este trabalho, pois dialoga com

Macunaíma, numa intertextualidade dentro de sua obra. O poema é Lenda das mulheres

de peito chato:

Macunaíma, Maria, Viajando por essas terras Com os dois manos, encontrou Uma cunhã tão formosa Que era um pedaço de dia Na noite do mato-virgem. Macunaíma, Maria, Gostou da moça bonita. Porém ela era casada,

E jamais não procedia Que nem as donas de agora, Que vivem mais pelas ruas Do que na casa onde moram: Vivia só pro marido E os filhos do seu amor, Fiava, tecia o fio, Pescava, e março chegado, Mexendo o corpo gostoso,

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Ela fazia a colheita Do milho de beira-rio. Que bonita que ela é!... Bom. Macunaíma, Maria Não pode seguir, ficou. Que havia de fazer! Amar não é desrespeito. Falou pra ela e ela se riu. Então lhe subiu do peito A escureza da paixão, E o apaixonado cegou. Pegou nela mas a moça Possuía essa grande força Que é a força de querer bem: Forceja, que mais forceja, Até deu neles! Não doeu. Macunaíma, Maria, Largou da moça. Ôh, meu Deus! Como estava contrariado! Pois um moço que ama então Não tem direito de amar! Tem, Maria, tem direito! Te juro que tem direito! Macunaíma fez bem! O amor dele era tão nobre Ver o do outro que casou. Casar é uma circunstância Que se dá, que não se dá, Porém amar é a constância, Porta num, se abanca, e o pobre Tem que lhe matar a fome, Dar cama para ele dormir. Macunaíma, Maria, Era como eu brasileiro, E em todas as moradias Que se erguem no chão quentinho Do nosso imenso Brasil, Não tem uma que não tenha Um quarto-de-hóspede pronto! Pobre do Macunaíma Não tem culpa de penar! Foi brasileiro, amor veio, Ele teve que hospedar!

- Eu te amo, (que ele falava) Moça linda! Você tem Esse risco de urucum Na beira do olhar somente Pra não ver quem te quer bem! Olhos de jabuticaba! Colinho de cujubim... Te adoro como se adora Com doçura e com paixão! Maria... Vamos embora! (que ele falava pra moça) Eu quero você pra mim! Bom. O coitado, Maria, De tanta contrariedade, Pôs no reparo que é impossível Se ser feliz neste mundo, Em plena infelicidade... Se vingou. Tinha ali perto Dois cachos de bananeira. Cortou deles... você sabe, Os mangarás pendurados, Que de tão arroxeados Têm mesmo a cor da paixão, Lá no Norte chamam isso De “filhotes da banana”, E a bananeira dá fruta Uma vez, não dá mais não... Macunaíma, Maria, Pegou a moça, arrancou Os peitinhos emproados Do colo de cujubim, Pendurou no lugar deles Os filhotes da paixào. Por isso, essa moça dura, De quem nós todos nascemos, Tem o colo quem nem de homem De achatado que ficou, E hoje as donas são assim... Adianta a lenda que a moça Ficou feia...Não sei não... (Andrade: 2005, 233 e ss)

Como se observa, o poema remete ao personagem e livro Macunaíma, recriando em

versos o comportamento típico do herói sem nenhum caráter, a inesgotável insistência

em fazer de tudo para realizar seus desejos, mesmo prejudicando outros, próximos ou

não do herói, como é o caso dos seus próprios irmãos. Na rapsódia, são bem

conhecidas suas artimanhas para, por exemplo, “brincar” com as cunhadas. Ainda no

mesmo livro, a série Poemas da Negra remete a questões modernistas advindas do

contato com Blaise Cendrars e mostram a busca pelo primitivismo que pautou

projetos estéticos do modernismo brasileiro.

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O lirismo, em Mario de Andrade, acentua-se a partir do contato com Blaise Cendrars

reconhecido pelo poeta brasileiro na obra O Losango Cáqui (1924)43. Na Advertência,

Mário de Andrade afirma: “Eis o que é, o que imagino será toda a minha obra: uma

curiosidade em vias de satisfação”. Mas o lirismo não reflete apenas a influência de

Cendrars (mais tarde se afastariam). Também há ressonâncias nas percepções

estéticas das viagens. Por exemplo, o por do sol amazônico, a cidade de Belém (que o

encanta especialmente) e a relação com a natureza são temas abordados. O diário é

permeado de lirismo, revelando sentimentos e estado de espírito.

Outro livro, que também não foi finalizado, Balança, Trombeta e Battleship – ou o

descobrimento da alma (1994), merece notação, pois também tem como mote a

primeira viagem etnográfica. Balança e Trombeta são as duas jovens companheiras da

viagem à região amazônica, respectivamente Dulce do Amaral Pinto e Margarida

Guedes Nogueira, as personagens principais, junto com o vaticano (tipo de barco

utilizado na viagem). De acordo com Lopez (1994), esse livro começou como um

conto, cuja primeira redação é de 1927, logo após o término da viagem ao Amazonas,

portanto. Anos mais tarde, em 1942, um fragmento desse material foi publicado na

revista portuguesa Presença, ligado ao movimento modernista daquele país, e é

publicado no Brasil junto com as outras versões da mesma obra.

A ideia do livro surge de uma brincadeira entre os viajantes paulistas no convés do

barco, ao conhecerem um menino chamado Josafá, incorporado à brincadeira e que,

pelo nome, provoca a memória bíblica do Apocalipse e o julgamento no Vale do

Josafá, conforme lembra a mesma pesquisadora. D. Olívia Guedes Penteado também

entra na brincadeira e recebe a nomeação de Juízo Final (Lopez: 1993). Esse apelido

não aparece em O Turista Aprendiz. Ali ela é chamada de Manacá e Nossa Senhora

do Brasil, e mostra a ironia do poeta, que brinca com a importância da mecenas

paulista.

Em seguida, ainda baseado na pesquisa de Telê Lopez (1994), há sete textos que não

resultam em nada. Segundo ela, Mário de Andrade teria oscilado entre escrever um

43 Publicado dentro da obra Poesias Completas de Mário de Andrade, organizada por Diléa Zanotto Manfio (2005), citação da pg.121.

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idílio (inspirado no barroco) ou um romance, mas o resultado publicado seria mais

próximo de um conto (Lopez: 1994, 7). Essa ausência de resultado final, nomeada

por Telê Lopez (1994) como redação para-definitiva, é vista por Arrigucci Jr (1994)

como um gosto dos modernistas, em especial de Mário de Andrade, pelo inacabado:

Tem que ver com isso, certamente, o gosto tão expandido entre os modernos pelo inacabado, conceito essencial às ideias estéticas de Mário, como se vê naquele diálogo, mas também questão central para sua obra, cuja realização condicionada à combatividade e aos compromissos sociais de uma determinada poética com o momento histórico, é, ao mesmo tempo, impulsionada pela reflexão permanente sobre a natureza da arte e as exigências da intemporalidade (Arrigucci Jr: 1994, 181-2).

As próprias crônicas e a segunda parte do livro, referente à segunda viagem de O

Turista Aprendiz, refletem esse “gosto”. A última crônica é de 5 de fevereiro de 1929,

que trata d’ Os cabocolinhos, uma dança dramática brasileira. A viagem ainda duraria

até quase o fim de fevereiro, mais precisamente, dia 24. Entre esses dias, permanece

em Pernambuco, com amigos, brincando o Carnaval.

São crônicas importantes porque, para além do universo ficcional, criado a partir do

contato real com a cultura indígena do norte do Brasil, há outro sentido, muito

significativo para a antropologia – o contato e estranhamento com o outro. Quando

fala dos índios, Mário de Andrade é perspicaz para mostrar, mesmo pelo fantasioso,

as diferenças culturais observadas dentro de um mesmo país. Talvez seja uma chave

para compreender porque Mário de Andrade não está atrás de uma identidade

brasileira, já que um universo social tão diversificado supõe suas diversas culturas,

sem reduzi-las à uma unidade. É possível falar em diversas identidades brasileiras.

Anos mais tarde, Mário de Andrade efetivamente se aproxima da antropologia, com o

interesse em estudar, pesquisar, obter métodos de coleta e análise de materiais,

objetivando compreender a cultura brasileira. Estabeleceu contatos com os

antropólogos Claude e Dina Lévi-Strauss, principalmente com Dina, e também com

Roger Bastide. O trabalho realizado em conjunto foi efetuado enquanto dirigiu o

Departamento de Cultura, e será analisado no capítulo 5 da presente tese.

Nas crônicas sobre a cultura indígena o autor, muitas vezes, recorre ao literário – à

hipérbole, ao mágico, ao metafórico, ao maravilhoso – para lidar com as diferenças

culturais entre dois grupos distintos: as tribos indígenas amazônicas e o homem

105

branco, urbano, brasileiro. Em A tribo dos Pacáas Novos, Mário de Andrade trata

diretamente desse estranhamento do outro; narra o encontro com essa tribo indígena

“bastante curiosa pelos seus usos e costumes” (Andrade: 2002, 84). Discorre sobre

particularidades, como as atividades ligadas à boca, a fala e a alimentação (dois temas

importantes na antropologia, sobretudo no estudo da relação entre natureza e cultura),

tão íntimas nesse grupo cultural. As conversas entre os membros da comunidade só

ocorriam em lugares privados, ao contrário de nossa sociedade, onde as pessoas são

convidadas a falar na ágora, em público. Do mesmo modo, a alimentação também

ocorre em ambiente privado, de preferência em isolamento, por ser um ato

extremamente íntimo.

Para Telê Lopez, essas crônicas relatam as “interdições relativas ao corpo” (Lopez:

1994, 63), específicas para cada cultura. Ou seja, usa da alegoria literária para

explicar manifestações concretas da sociedade. A crônica, sobre os Pacaás Novos, foi

publicada em duas revistas, mais uma vez mostrando as reescrituras de Mário de

Andrade. Esses índios são descritos em uma única crônica, enquanto que a outra tribo,

dos Índios Do-Mi-Sol, aparecem em pelo menos outras cinco. A crônica sobre os

Pacaás Novos também contempla costumes referentes à comunicação, exercida com

movimentos dos membros e não com o aparelho fonador, constituindo-se em uma

espécie de linguagem corporal, como observamos na passagem abaixo:

É que os Pacaás Novos diferem bastante de nós. Para eles o som e o dom da fala são imoralíssimos e da mais formidável sensualidade. As vergonhas e as partes não mostráveis dos corpos não são as que a gente consideramos assim. Quando sentem necessidade de fazer necessidade, fazem em toda a parte e na frente de quem quer que seja, até nos pés e pernas dos outros, sem a mínima hesitação, com a mesma naturalidade com que o nosso caipira solta a gusparada. Porém espirro, por exemplo, ou qualquer som de boca ou do nariz, isso é barulho que a gente solta só consigo, eles consideram. (...) Consideram o nariz e as orelhas, as partes mais vergonhosas do corpo, que não se deve mostrar a ninguém, nem pros pais, só marido e mulher na mais rigorosa intimidade. Escutar, pra eles, é o que nós chamamos pecado mortal. Falar para eles é o máximo gesto sexual (Andrade: 2002, 85-6).

Na primeira crônica sobre os Índios Do-mi-sol, escrita em 28 de junho de 1927,

enquanto navegava por terras peruanas, o autor diz que a localização da tribo ficava

na subida do rio Madeira. Assim define a tribo:

Em vez de falarem com os pés e as pernas, como os que vi, no período pré-histórico da separação do som, em som verbal com palavras compreensíveis e som musical inarticulado e sem sentido intelectual, fizeram o contrário: deram sentido intelectual aos

106

sons musicais e valor meramente estéticos aos sons articulados e palavras (Andrade: 2002, 115).

É mais uma brincadeira de Mario de Andrade, que retoma o tema da forma de

expressão, diferente da língua falada pela boca. Nos índios Do-Mi-Sol, a comunicação

era em escala musical – tema caro ao também musicólogo e professor de piano. No

outro grupo indígena ocorria com a linguagem corporal de pés e pernas:

Aliás, força a notar que o número de sons que eles possuíam era muito maior que a nossa pobre escala cromática. Era frequente o quarto-de-tom, não raros os quintos-de-tons. Um dos paredros mais apontados da tribo Do-Mi-Sol (e se eu a chamasse Mi-Mi?...) falava constantemente palavras em que entravam sextos-de-tom e outras miudezas sonoras que ainda me pareceram mais sutis (Andrade: 2002, 117).

Dias depois, retoma a narrativa sobre essa tribo e fala de sua organização social e

política, baseado em “uma espécie de matercracia comunista, com distribuição

coletiva das ocupações, tendo por base a injustiça. Assim, ninguém se queixava. A

mãe dominava tudo” (Andrade: 2002, 126). Em outra crônica, aborda a inversão de

nossos valores morais em relação à mesma tribo com uma curiosidade, sua concepção

eram de “deuses do mal” além disso, nutriam uma visão de mundo com percepção

negativa na própria linguagem, que o autor explica:

Tinham várias frases, com modificações musicais sutis pra designar qualquer noção maléfica, mas pra designar a noção benéfica contrária, quando possuíam, apenas uma frase única, genérica e geral. Assim, por exemplo, contei até quarenta maneiras diferentes de dizer “tenho fome”, porém não tinham nenhuma expressão para indicar o “estou satisfeito” ou “já não tenho fome” (Andrade: 2002, 141).

Também não possuíam palavras para descrever amigo, companheiro, chefe ou

qualquer inter-relação familiar, apenas para pessoas do mesmo sexo, tratadas com

uma palavra traduzida por inimigo. Conforme o tom indicaria o grau de proximidade

e amizade:

A mim, logo de início, desque botei atenção naquela semântica ativa, notei que todos em tratavam num mezzoforte que ia em decrescendo, o que significava mais ou menos “inimigo curioso, desprezível por ser de raça inferior”. Mas no fim das nossas relações já quase todos, com exceção de uns quatro ou cinco, me tratavam em pianíssimo com tendência crescente, o que não me deixou de sensibilizar (Andrade: 2002, 142).

Para essa tribo, um animal muito importante era a preguiça. O animal fazia parte do

seu mito de criação do mundo e, ao contrário do olhar ocidental, não era preguiçoso.

Alguns, inclusive, eram “apressadíssimos”. Também brinca com a ideia da

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“preguiça das preguiças”: Tinham adquirido aquele andar da sabedoria em que o

pensamento reconhece que o que faz a felicidade não é o gozo dos prazeres do

mundo, porém a consciência plena e integral do movimento (Andrade: 2002, 144-45).

No animal preguiça, a consciência do movimento e a felicidade seriam fruídos

continuamente. Observamos, aqui, a intertextualidade, pois a preguiça é figura central

na obra mariodeandradiana. Uma das frases mais repetidas por Macunaíma é o

célebre bordão: Ai, que preguiça! Note-se, portanto, a valorização da preguiça (e da

contemplação) celebrada em Macunaíma, reafirmada constantemente pelo

personagem44. Telê Lopez (1994) afirma:

Mário aprendera a valorizar essa alta indiferença que consolida, em sua obra, a defesa da contemplação, da paciência e da preguiça diversa da inação, ofertando ao homem o mito, a entrada no cosmos e a esperança de vencer a fragmentação (Lopez:1994, 64).

Na verdade, Mário de Andrade, já em 1918, escrevera um artigo intitulado “A divina

preguiça”, publicado no jornal Gazeta45. Preguiça, para ele, deve ser entendida como

possibilidade de exercício criador. Como opções narrativas, Macunaíma e O Turista

Aprendiz se entrecruzam diversas vezes, sobretudo nos relatos que operam no

fantasioso (e que se aproximam do realismo mágico).

No livro de viagens, o poeta modernista descreve, como fenômenos amazônicos, as

mariposas gigantes, com asas superiores a dois metros de largura. Ou o boto como

meio de transporte feminino nos rios, igarapés e igapós (os homens seriam

transportados em peixes-boi). E ainda o porco-do-mato andando em correntinha,

como um cachorro de estimação. O caso das borboletas gigantes pode ter sido

inspirado num dado específico: no dia 11 de julho, em um passeio por Porto Velho,

Mário de Andrade é “fotado” em trilhos de trem, cercado por centenas de borboletas,

com a legenda era para fotar as borboletas (Andrade: 2002, 291). Essa foto faz parte

da memória imagética da viagem.

Em outro momento, faz anedotas sobre a quantidade de mosquitos: por vezes, a massa

de mosquitos é tão compacta que Mag e Dolur, esportistas, conseguiam se sustentar,

44 Para mais detalhes sobre a preguiça em Mário de Andrade, ver: Vânia de Oliveira 2011. 45 Para mais detalhes sobre esta problemática ver Telê Lopez (1972): Mário de Andrade – Ramais e Caminhos.

108

um minuto não digo, mas uns quarenta segundos no ar, nadando na mosquitada

(Andrade: 2002, 68). Assim, mais uma vez enfatizamos as viagens etnográficas como

instrumentos de criação estética em Mário do Andrade, também nesse gênero tão

brasileiro, a crônica literária. E novamente se observa o embate entre o sensível e o

inteligível, uma vez que o objeto inspirador é reelaborado artisticamente e ganha uma

narrativa própria.

Por fim, julgamos definido que Macunaíma, o herói sem nenhum caráter carrega em

sua essência elementos da visita à região amazônica, ainda que uma primeira versão

tenha sido escrita pouco antes dessa primeira viagem etnográfica.

Outro exemplo de criação literária nos diários da primeira viagem etnográfica é o

personagem suíço Schaeffer, que aparece em diversas crônicas como companheiro de

viagem, encontrado ao acaso no vaticano. Parece ser um amálgama entre ficção e

realidade, pois em algumas outras crônicas fala de pessoas reais, como o menino

Josafá, já citado, do alemão Klein e do francês Musset. O suíço Schaeffer, entretanto,

e de acordo com relatos disponíveis, nunca existiu realmente (Andrade: 2002, 55),

sendo fruto da imaginação criadora de Mário de Andrade, que o coloca em cena em

diversas passagens d’O Turista Aprendiz. Como exemplo ilustrativo: no dia 10 de

junho, Mário de Andrade conta ter saído em companhia do amigo suíço – Schaeffer –

para procurar um empalhador de aves. Quatro dias mais tarde, novamente sai em sua

companhia do suíço para um encontro com índios. No dia seguinte, 15 de junho,

escreveu: “de uns dias pra cá , maio suicizado depois de várias conversas com o

Schaeffer, estou me acostumando vir na tolda do vaticano ver, me deixar sublimizado

com o nascimento do dia” (Andrade: 2002, 92). A observação da natureza, como

mencionado, será constantemente fruída e narrada pelo escritor modernista.

Mário de Andrade não deixa de observar, ressaltar e reverenciar a grandeza

amazônica. Ele afirma, em O Turista Aprendiz (2002): A foz do Amazonas é tão

ingente que blefa a grandeza (p.60). Ou ainda: A foz do Amazonas só é grandiosa no

mapa; vendo, tudo é tamanho que não se pode ver (p.61). Nos momentos de

navegação pelo rio nota-se, pelo diário, o desenvolvimento de ideias da sua

“civilização tropical”. Também parece assimilar a fecundidade do ócio criativo, ou

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da preguiça. No livro, Mário de Andrade afirma: O Amazonas prova decisivamente

que a monotonia é um dos elementos mais grandiosos do sublime (p. 60).

Voltamos à suposição de que elementos da redação final de Macunaíma foram

concebidos no contato amazônico. E que a primeira viagem etnográfica inspirou

algumas passagens, incluídas no livro publicado em 1928. A constelação de Ursa

Maior, tão significativa no fim do livro e na vida do herói Macunaíma, também é

mencionada em passagens d’O Turista Aprendiz. Ao saírem para assistir a espetáculos

de ciranda, Mário de Andrade escreve: Bailamos com os caboclos, e viemos vindo,

sem pressa, na noite da Ursa Maior (Andrade: 2002, 90). Telê Lopez (2002), em nota

de rodapé, esclarece sobre essa estrela:

Aqui está uma das chaves de Macunaíma: a Ursa Maior, estrela que a tradição consagra como guia dos navegantes e que é visível apenas do Equador para o Norte, está na obra de Mário indicando a necessidade de uma civilização tropical, adequada à realidade sul-americana, por ela própria maravilhosa, onde deveria ser fruído o ócio criador, a Preguiça (Lopez: 2002, 91).

Ou seja, parece inegável a importância da primeira viagem etnográfica para a

elaboração de Macunaíma. No dia 30 de junho Mário de Andrade fala da Iara, figura

folclórica que aparece no livro com a mesma caracterização da Uiara de Macunaíma.

Ele escreve:

Consegui avistar a Iara. Surgiu de sopetão das águas, luminosa, meio corpo fora, tomando bem cuidado em não mostrar pra mim a parte peixe do corpo. É realmente muito bonita, meio parecida com uma certa malvada que andou, faz pouco, enchendo os meus descansos em São Paulo. Tem o perfil um pouco duro, cabelo preto e bem aparadinho. O carmim da boca é nitidamente recortado. O canto dela é efetivamente mavioso, num ritmo balanceado mas sem síncopas (Andrade: 2002, 116).

O perfil duro, que aparece nesta descrição do encontro de Mário de Andrade com a

Iara, repete-se em algumas poesias, principalmente em Tempo de Maria, publicado

em Remate de Males. Novamente observam-se reverberações das viagens

etnográficas.

São diversos os relatos enquadrados no domínio da ficção. A partir da experiência

real, vivenciadas por eles (o poeta e suas companheiras), ampliam o universo de

imaginação, ao nível do maravilhoso, criando personagens e situações às vezes

narradas por outras pessoas (ainda na aproximação com o Narrador de Walter

110

Benjamin). De acordo com Telê Lopez (2002), apoiado na realidade brasileira (e

dentro da viagem, sul-americana), pensa criticamente o tecnicismo do mundo racional

da cultura europeia, em contraposição à cultura brasileira onde “nossa realidade seria

o maravilhoso instaurado em sua peculiaridade, sensível a uma abordagem

surrealista” (Lopez: 2002, 40). Na viagem amazônica, é a “natureza que o arrebata

na contemplação” (Lopez: 1994, 64). Em O Turista Aprendiz (2002) a pesquisadora

assim define o trabalho do poeta, durante a primeira viagem etnográfica:

Mário, modernista e também nacionalista fará ficção a partir da própria realidade experimentada ou observada, fazendo questão de explorá-la em dois aspectos: o real, e o ficcional, partindo desse mesmo real (Lopez: 2002, 40).

Uma pequena observação: Mário de Andrade classificava seus escritos, que ainda

seriam revistos, como “cadernos de trabalho”. Há inúmeras anotações sobre projetos,

ideias e personagens, prática muito comum no universo literário. Nas duas viagens

etnográficas levava sempre um caderninho de folhas quadriculadas, onde escreve,

desenha, e cria textos. Especialmente na segunda viagem etnográfica, carregava

também um caderno com pentagramas, para fazer os registros musicais, uma de suas

finalidades naquele momento. E reiteramos a fotografia, outra ferramenta importante

na pesquisa etnográfica mariodeandradiana, nas duas viagens etnográficas.

Outra temática, desenvolvida para análise interna, diz respeito ao que denominamos

de espaço amazônico. O contato com a região amazônica é importante não só por

reverberar posteriormente em poesias, crônicas e livros, mas também porque o

escritor comove-se com a região norte do Brasil, desde a chegada à foz do rio

Amazonas. Ele escreve:

Estávamos todos trêmulos contemplando a torre-de-comando o monumento mais famanado da natureza. E vos juro que não tem nada no mundo mais sublime. Sete quilômetros antes da entrada já o mar estava barreado de pardo por causa do avanço das águas fluviais. Era uma largueza imensa gigantesca rendilhada por anfiteatro de ilhas florestais tão grandes que a menorzinha era maior que Portugal. O avanço do rio e o embate das águas formavam rebojos e repiquetas tremendos cujas ondas rebentavam na altura de sete metros chovendo espumas espumas espumas roseadas pela manhã do Sol. Por isso o Pedro I avançava numa chuva em flor. Avançava difícil, corcoveando aos saltos, rolando pelo costado dos baleotes e das sucurujis do mato amazônico aventuradas até ali pela miragem da água doce. À medida que a gente se aproximava as ilhas catalogavam sob as cortinas de garças e mauaris que o vento repuxava, todas as espécies vegetais na barafunda fantástica dos jequitibás perobas pinheiros plátanos assoberbada pelo vulto enorme do baobá a gente enxergava dominando a ramada as seringueiras sonhadas em cujas pontas mais audazes os colonos suspensos em cordas de couro cru apanhavam as frutinhas de borracha. O aroma do pau rosa e da macacaporanga desprendido da resina de todos os troncos era tão inebriante que a gente oscilava com

111

perigo de cair naquele mundo de águas brabas. Que eloquência! Os pássaros cantavam no voo e as bulhas do iererês dos flamingos das araras das aves-do-paraíso nem me deixou escutar a sineta de bordo chamando pro jantar. A Senhora me tocou no braço e assustei. Fui com os outros, deixando o pensamento chorado na magnificência daquela paisagem feita às pressas em cujo centro relumeava talqualmente olho de vidro a rodela guaçu de Marajó inundada (Andrade: 2002, 59).

A citação acima, longa, merece a transcrição por mostrar o assombro de Mário de

Andrade na foz do Amazonas, em 18 de maio de 1927. No diário de anotações ele já

manifestara o desejo de logo chegar à região. Há exageros na narrativa, novamente, e

o recurso à hipérbole, aqui observados quando fala das ilhas, a menorzinha era maior

que Portugal, ou então das ondas que rebentavam na altura de sete metros. Outra

marca da primeira viagem d’O Turista Aprendiz, é o uso de repetição de palavras para

reforçar ideias, também característica da própria oralidade. Reitera traços para dar ao

leitor a experiência dos excessos vividos. Aliás, o excesso e o exagero são duas

chaves de entendimento das narrativas de Mário de Andrade sobre a Amazônia.

O texto, por vezes, é impregnado de lirismo e poesia, ao narrar o olhar que percebe a

natureza e a cultura de outro Brasil, o do espaço amazônico. Ainda impressionado

com a foz do rio, num exercício de reelaboração (temática) do observado, Mário de

Andrade escreve:

Que posso falar dessa foz tão literária e que comove tanto quanto assuntada no mapa?... A imensidão das águas é tão vasta, as ilhas imensas por demais ficam no longe fraco que a gente não encontra nada que encante. A foz do Amazonas é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem. Nós só podemos monumentalizá-las na inteligência. O que a retina bota na consciência é apenas um mundo de águas sujas e um matinho sempre igual no longe mal percebido das ilhas. O Amazonas prova decisivamente que a monotonia é um dos elementos mais grandiosos do sublime. É incontestável que Dante e o Amazonas são igualmente monótonos. Pra gente gozar um bocado e perceber a variedade que tem nessas monotonias do sublime carece limitar em molduras mirins a sensação. Então acha uma lindeza os barcos veleiros coloridos e acha cotuba a morte dos pretendentes, se prende ao horizonte plantado de árvores que a refração apara do firme das ilhas e ao livro de Jó. A foz do Amazonas é tão ingente que blefa a grandeza (Andrade: 2002, 60).

O trecho deixa nítido o encantamento com a grandeza e exuberância amazônica, e a

ele só resta monumentalizá-las na inteligência, como escreveu. O fascínio pela

grandeza amazônica aparece outras tantas vezes na narrativa, mas deve ser descrito

um pôr do sol que o grupo observou, quando aportaram em Manaus no retorno do

Peru, descrito assim:

112

E principiou um dos crepúsculos mais imensos do mundo, é impossível descrever. Fez crepúsculo em toda a abóboda celeste, norte, sul, leste, oeste. Não se sabia pra que lado o sol deitava, um céu todinho em rosa e ouro, depois lilá e azul, depois negro e encarnado se definindo com furor. Manaus a estibordo. As águas negras por baixo. Dava vontade de gritar, de morrer de amor, de esquecer tudo. Quando a intensidade do prazer foi tanta que não me permitiu mais gozar, fiquei com os olhos cheios de lágrimas (Andrade: 2002, 118).

Nesse espaço amazônico, a cidade de Belém o encanta de maneira peculiar. Aproveita

suas particularidades para exercer sua verve literária, como no trecho abaixo:

Belém é a cidade principal da Polinésia. Mandaram vir u’a imigração de malaios e no vão das mangueiras nasceu Belém do Pará. Engraçado é que a gente a todo momento imagina que vive no Brasil mas é fantástica a sensação de estar no Cairo que se tem. Não posso atinar porque... Mangueiras, o Cairo não possui mangueiras evaporando nas ruas... Não possui o sujeito passeando com um porco do mato na correntinha... E nem aquele indivíduo que logo de-manhã pisou nos meus olhos, puxa comoção! inda com rabo de sobrecasaca abanando... (Andrade: 2002, 62).

Mais adiante, três dias após essa descrição, aprofunda seu entusiasmo com a capital

paraense. A cidade de Belém o encanta também pela arquitetura, pela culinária e pelas

pessoas. Mário de Andrade escreve:

Belém me entusiasma cada vez mais. O mercado hoje esteve fantástico de tão acolhedor. Só aquela sensação do munguzá!... Sentada no chão, era uma blusa branca branca, numa preta preta que levantando pra nós os dentes os olhos e as angélicas da trunfa, tudo branco, oferecia com o braço estendido preto uma cuia envernizada preta donde saía a fumaça branquinha do mungunzá branco branco... Tenho gozado por demais. Belém foi feita pra mim e caibo nela que nem mão dentro de luva [...]Em Belém o calorão dilata o esqueletos e meu corpo ficou exatamente do tamanho de minha alma (Andrade: 2002, 63-4).

Novamente observamos a repetição de palavras na tentativa de reforçar a ideia e o

ritmo daquilo que experimentava. A passagem também aponta outra temática muito

presente nas viagens etnográficas: a culinária e alimentação. Mário de Andrade

anota, na ida e na volta do passeio amazônico, visitas ao Museu Goeldi, como

experiência fotográfica, tanto da perspectiva estética como da documental da viagem.

As fotos também fazem parte da documentação imagética da viagem.

Navegando pela região amazônica chega até o município de Santarém, próximo ao rio

Tapajós. Essa cidade é comparada com Veneza, na Itália, tanto por suas ruas alagadas

(já que a comitiva viajava no período das cheias do rio Amazonas) como também

pelos detalhes arquitetônicos das janelas, em formato de ogivas, também fotados por

Mário de Andrade como registro documental. O escritor modernista usa a navegação

113

como oportunidade para escrever, refletir ou filosofar, exercer o ócio criador, como

observa:

Eu gosto desta solidão abundante do rio. Nada me agrada mais do que, sozinho, olhar o rio no pleno dia deserto. É extraordinário como tudo se enche de entes, de deuses, de seres indescritíveis por detrás, sobretudo se tenho no longe em frente uma volta do rio. Isto não apenas neste Amazonas, mas sobretudo em rios menores, como no Tietê, no Moji. É fulminante. O rio vira de caminho no fim do estirão, a massa indiferente dos verdes barra o horizonte, e tudo se enche de mistérios vivos que se escondem lá detrás. A cada instante sinto que a revelação vai se dar, grandiosa, terrável, lá da volta do rio. Eu fico assim como que cheio de companhia, companhia minha, mais perigosa que boa, dolorida de receios que eu sei infundados, mas que são reais, vagos, e por isso mesmo completos e indiscutíveis, legítimos, deste perigo brutal de viver (de existir) (Andrade: 2002, 73-4).

Belém acaba por servir de inspiração poética a Mário de Andrade. Em Clã do Jabuti,

publica um poema chamado – Moda cadeia de Porto Alegre – e quando está em

Belém percebe que alegre porto seria Belém e não Porto Alegre e sai cantarolando e

rememorando as lembranças do Alegre Porto – Belém. O inteligível, mais uma vez,

dialoga e produz a partir do sensível. A consequência é outro poema, que brinca com

o título do anterior – Moda da Cadeia do Alegre Porto46.

(...) nasceu a resposta dentro de mim: “Alegre Porto” não é Porto Alegre, é Belém... E saí pela rua impressionado, “alegre porto” é Belém... revivendo as lembranças próximas, andando maquinalmente, sorrindo, em felicidade, caminhando, nasciam ritmos dentro de mim, nasciam frases inteiras... Nem bem, cheguei em casa, quase sem correção, as estrofes na ordem, o refrão no lugar certo, me nasceu esta cantiga (Andrade: 2002, 166).

Esse poema contém algumas das categorias que analisamos no capítulo. Estão

presentes a ideia de fruição do dia e também da preguiça: “No Pará se pára, nada

mais se quer!”. Alimentação e culinária também se mostram: mugunzá, açaizeiro,

tucupi, tacacá, beber guaraná. Trata de aspectos climáticos, como o “calorão

batendo”, “a chuva para-já”, e da vegetação, como a “frondosa mangueira”. E

anota a miscigenação cultural e racial: “Só cada olhar roxo de cada morena/ de tipo

mexido, cocktail brasileiro”.

A viagem prossegue e leva a comitiva paulista até Itacoatiara, cidade já no interior do

Estado do Amazonas, onde Mário de Andrade desenvolve um pouco mais as criações

literárias próximas do realismo mágico, como observado anteriormente. Ele descreve

a cidade:

46 Para mais detalhes deste poema, ver anexo 1.

114

Vista em sonhos. É a cidade mais linda do mundo, só vendo. Tem setecentos palácios triangulares feitos com um granito muito macio e felpudo, com uma porta só de mármore vermelho. As ruas são todas líquidas, e o modo de condução habitual é o peixe-boi e, pras mulheres, o boto. Enxerguei logo um bando de moças lindíssimas, de encarnado, montadas em botos que as conduziam rapidamente para os palácios, onde elas me convidavam para entrar em salas frias, com redes de ouro e prata pra descansar ondulando (Andrade: 2002, 76).

Durante a viagem de retorno, quase dois meses depois de adentrar a região

amazônica, Mário de Andrade novamente mostra o impacto experimentado pela

cidade de Belém:

Último dia de Belém, me sinto comovido, palavra. Nunca na minha vida encontrei uma cidade que me agradasse tanto, com que eu simpatizasse tanto. Como enchimento de gostosura, passei em Belém os melhores dias de minha vida, inesquecíveis (Andrade: 2002, 164).

Outra vez mostra-se impressionado com a flora local, faz comentários e “fota” a

samaúma, árvore gigantesca da floresta amazônica, cujo tronco é enorme. Também

fotografa e escreve sobre a vitória-régia, que conhecera nessa região, e que,

posteriormente, será tema de uma crônica para o Diário Nacional. Visitando a lagoa

do Amanium, próxima a Manaus, ele vai “fotar” sua obra-prima, como definida por

ele. Segue uma pequena descrição da planta que encantou Mário de Andrade:

[...] Já então a vitória-régia principia roseando toda. Roseia, roseia, fica toda cor-de-rosa, chamando de longe com o aroma gostoso, bonita cada vez mais. É assim. Vive um dia inteiro e sempre mudando de cor. De rósea vira encarnada e ali pela boca-da-noite, ela amolece avelhentada os colares de pétalas roxas. Em todas essas cores a vitória-régia, a grande flor, é a flor mais perfeita do mundo, mais bonita e mais nobre, é sublime. É bem a forma suprema dentro da imagem da flor [...] (Andrade: 2002, 83).

Na viagem também tem contato com índios que o deixam decepcionado, por já

estarem aculturados pela presença do branco. Em suas palavras, “índios mansos, já

completamente brasileiros, que vivem por aí falando a nossa língua, sem memória

talvez de suas tribos” p.91-2). Também os fotografa para registro etnográfico. Talvez

caiba especular se essa frustração despertou em Mário de Andrade a criação de tantas

histórias com índios Pacáas Novos e Do-Mi-Sol.

Mário de Andrade também registra no diário o desejo de conhecer outras pessoas da

população amazônica, além dos índios. O seringueiro, por exemplo. Por isso,

aproveita a ocasião da viagem para se embrenhar no interior amazônico e parte até

Guajará Mirim, cidade no atual estado de Rondônia, onde manteve contato com os

115

empregados da mítica ferrovia Madeira-Maimoré. Também conheceu Porto Velho e

finalmente, em 15 de julho de 1927, conhece um seringal. Ele descreve o percurso:

Vamos seguindo o caminho de um seringueiro, ziguezagueando pelo mato, de uma seringueira pra outra. Torneamos também castanheiras gigantescas, enfim, verdadeira floresta “civilizada” amazônica. O trilho do seringueiro está desimpedido do cipoal e da serapilheira intransponíveis para nós. Acabamos nos encontrando com o homem cuja viagem diária estávamos seguindo. O observamos na sua faina, fazendo os lapos na árvore, botando as tigelinhas, partindo em busca da seringueira de em seguida. Feito o caminho todo, ele voltará no mesmo ziguezague, recolhendo as tigelinhas cheias. Ninguém não pode imaginar a sensação de paz, de silêncio quase absurdo que se tem nesses lagos pequenos cercados de árvores colossais (Andrade: 2002, 143).

O homem amazônico, ou o homem brasileiro, é uma questão constante nas duas

viagens etnográficas. O seringueiro chama sua atenção e posteriormente seria

personagem principal do poema Dois poemas acreanos, publicados em Clã do Jabuti.

Tratemos um pouco de outra temática importante da primeira viagem etnográfica:

alimentação e culinária. O escritor modernista faz questão de provar e descrever

todas as novidades alimentícias à sua disposição. Experimenta desde frutas típicas da

região norte, dificilmente encontradas em São Paulo, a pratos e temperos habituais –

sejam doces ou salgados – daquela região, e igualmente difíceis de encontrar no

sudeste. Desfruta ao máximo essas oportunidades e sempre as descreve aos possíveis

leitores interessados. Por exemplo, no dia 22 de maio de 1927, em Belém, diz ter

comido pato no tucupi, farinha d’água, compota de bacuri, e “o sorvete de murici que

tem gosto de queijo parmesão ralado com açúcar. E frutas, frutas” (Andrade: 2002,

63).

Mais adiante, em almoço oficial no palácio do presidente do estado (antiga

nomenclatura para o cargo de governador), em Belém do Pará, no dia 24 de maio,

Mário de Andrade descreve o cardápio oferecido à comitiva. A refeição era composta

por:

camorim com molho de tucupi a carne de tracajá dissolve os protocolos e quando a sapotilha engrossa na língua da gente o seu gosto abaritonado a gente chega a esquecer as mil virtudes da saudade e não deseja mais nada: fica vesgo pra dobrar a felicidade e cai nos braços do prefeito mais simpático do mundo, sujeito que fala tanto como uísque com água-de-coco (Andrade: 2002, 64).

Depois experimenta o peixe pirarucu (que acha muito bom) e licor de taperebá, que

define como delicioso. Em Manaus, no dia 5 de junho, degusta a graviola:

116

Nesta noite provei sorvete de graviola. Esquisito... a graviola tem gosto de graviola mesmo, isso é incontestável, mas não é um sabor perfeitamente independente. É antes uma imagem, uma metáfora uma síntese apressada. É a imagem de todas essas ervas, frutas condimentares, que, insistindo são profundamente enjoativas. Não chega a ser ruim mas irrita. Aliás, o guaraná daqui, pelo menos o que provei, tem um gosto vazio, fica-se na mesma (Andrade: 2002, 79).

As descobertas culinárias continuam em Manaus, e experimenta o coco tucumã, de

que não gosta, e o matrinxã, que considera um dos melhores peixes da Amazônia.

Julga que o mercado de Manaus não pode ser comparado ao de Belém, muito mais

rico, com maior diversidade de produtos. Prova também sapotilha, beribá, abricó

nacional (que define como outra coisa, relativamente ao que encontra em São Paulo) e

suco de cupuaçu (p.87). Mais adiante afirma: “Experimentei doce de cúbio, um

acidozinho gostoso, polpa delicada, bem macia. Mas se sente a selva, porque fere um

bocado a língua. Não se come cru” (Andrade: 2002, 91).

Fala da diferença entre comer ovos de tartaruga misturados com farinha e sal ou

açúcar. O prato salgado chama-se mujanguê e o doce, arabu (p.93). No retorno, em

Manaus, em mais um jantar oficial, come filés de tartaruga e afirma que sentirá

saudades deles (p.146). A caminho de Porto Velho, também anota no diário costumes

alimentares mais populares, como o “chibé”, que informa alimentar canoeiros e

seringueiros, e que define como “espécie de pirão feito com farinha d’água e água

fria. Comida quase líquida, diz-que muito alimentar” (p.132).

Encerrarmos as observações relativas à temática alimentação e culinária registrando

as impressões de Mário de Andrade sobre o açaí, fruto hoje encontrado em qualquer

lugar do Brasil. Ele escreve:

É dessas comidas “locais” que, mesmo quando não são gostosas, participam de tal forma da entidade local, que fica um muro na frente a gente não usar. E é indelicadeza não gostar. O açaí não chega a ser ruim... Pousa macio na boca da gente, é um gosto de mato pisado, não gosto de fruta, de folha. E logo vira moleza, quentinha na boca, levemente saudoso, um amarguinho longínquo que não chega a ser amado e agrada.. Bebida encorpada que, por mais gelo que se ponha, é de um quentezinho amável, humilde, prestimoso. É um encanto bem curioso o do açaí... A gente principia gostando por amabilidade e depois continua gostando porque tem dó dele. Isso, falo de nós, gente que não precisa se alimentar com açaí, leite dos pobres, e o bebe pra encher tempo nos passeios por aí. O açaí não chega a ser ruim, longe disso, mas está longe de ser bom, como é bom um pato com tucupi, um casquinho de caranguejo e quartoze outros comes e bebes destas amazonas (Andrade: 2002, 164).

117

A viagem também teve seus percalços. E a maior parte se deu por conta dos

compromissos oficiais, outra temática interna. Eram, para o escritor, compromissos

enfadonhos. Em diferentes passagens d’O Turista Aprendiz, percebe-se o contraste

entre esses compromissos oficiais e encontros com populares em geral, que

agradavam e interessavam ao escritor.

Tais compromissos oficiais incomodaram Mário de Andrade desde o início, também

porque ficou incumbido, por D. Olívia Guedes Penteado, dos discursos de

agradecimentos em nome do grupo, nas recepções e demais compromissos. A

comitiva da viagem, como já mencionado, partira com recomendações de Washington

Luiz e, quando chegaram à região norte do Brasil, passaram a ser cada vez mais

aguardados. O grupo, portanto, era recebido por políticos locais e outros notáveis das

comunidades. Em Belém, dias após a chegada, em 20 de maio, são convidados para

um almoço. Mário de Andrade descreve:

Visita oficial e almoço íntimo com o presidente. Íntimo? Depois do sal, o prefeito se ergueu com champanha na taça, taça! fazia já bem tempo que com meus amigos ricos paulistas eu não bebia champanha em taça... Pois é: ergueu a taça e fez um discurso de saudação a dona Olívia. Aí é que foi a história. Aliás desde que o homenzinho se levantou fiquei em brasas, era fatal, eu teria que responder! Pois foi mesmo: nem bem o prefeito terminou que dona Olívia me espiou sorrindinho e com um leve, mas levíssimo sinal de espera me fez compreender que a resposta me cabia, nunca no mundo improvisei! Veio uma nuvem que escureceu minha vista, fui me levantando fatalizado, e veio uma ideia. Ou coisa parecida. Falei que tudo era muito lindo, que estávamos maravilhados, e idênticas besteiras verdadeiríssimas, e soltei a ideia: nos sentíamos tão em casa (que mentira!) que nos parecia que tinham se eliminado os limites estaduais! Sentei como quem tinha levado uma surra de pau. Mas a ideia tinha... tinham gostado. Mas isso não impediu que a champanha estivesse estragada, uma porcaria (Andrade: 2002, 61-2).

A dificuldade de orador oficial do grupo se repetiria em praticamente todas as cidades

pelas quais passaram. Também em Iquitos, no Peru, como o escritor narra:

Em palácio, recepção alinhada, tudo de branco. Tive que fazer de novo o improviso que fizera pela primeira vez em Belém e repetira já várias vezes, sempre que encontrava discurso pra dona Olívia pela frente. Só que desta vez, quando chegou o momento de dizer que não sentíamos “limites estaduais”, mudei pra “limites nacionais”, e a coisa foi aceita da mesma maneira (Andrade: 2002, 103).

Os compromissos oficiais, igualmente, exigiam muito tempo dos viajantes, como

deduz-se da leitura do diário, no dia 5 de junho. Chegam a Manaus e são recebidos no

mesmo dia para uma “recepção oficial”.

118

Apresentação a setecentas e setenta e sete pessoas, cortejo (como é engraçado a gente ser figura importante num cortejo oficial) e toca pro Palácio Rio Negro, onde imediatamente se dá uma recepção oficial, pelo presidente em exercício, um número de simpatia. Depois toca para a chacra Hermosina onde tivemos um almoço colossal, mas colossal. Depois da volta, aproveito o veículo pra visitar a zona estragada. Depois com o coronel, comandante da polícia, vamos ao bairro de Cachoeirinha, visitar o arraial da igreja do Pobre Diabo, onde tinha festa, como as nossas mesmo, pau-de-sebo, leilão, dou-lhe uma, dou-lhe duas... (Andrade: 2002, 79).

Esse relato mostra que os compromissos também propiciam o conhecimento de

inúmeros lugares, ainda que preferisse dispor de mais tempo para visitar livremente os

lugares em que aportavam. Entretanto, ao menos uma vez foi surpreendido em uma

dessas recepções, oferecida pelo prefeito Sérgio Olindense, da cidadezinha amazônica

Humaitá:

Nos levaram até a “biblioteca” e Sérgio Olindense fez um discurso. Bom, já estamos acostumados a discursos, rainha do café, ilustre dama paulista etc., nem prestávamos atenção. Mas nem bem se dirigiu um minuto pra dona Olívia, eis que o Sérgio: – “E vós, Mário de Andrade...” etc. tomei um susto. E o Sérgio a deslindar minhas qualidades, meus modernismos e literaturas, com firmeza. Não é humildade não, mas fiquei meio besta, aquele discurso virado pra mim... Tinha a impressão de um bruto desrespeito ao protocolo, ao ramerrão da nossa vida amazônica, nem sei, estava muito incomodado. E pela primeira vez não repeti meu improviso de Belém. Depois do discurso fui abraçar o Sérgio, e como via mesmo que estava entre gente cômoda, natural, gostosíssima, que não ia reparar, não fiz discurso nenhum (Andrade: 2002, 128-9).

A passagem marca o contato estabelecido entre Sérgio Olindense e Mário de Andrade

(o escritor guardou consigo o discurso proferido pelo prefeito), que se prolongou após

a viagem. O escritor paulista também recebeu dele documentos da cultura popular da

Amazônia, como também solicitava de outros colaboradores47.

A temática seguinte, nesta análise interna, é a que denominamos de Estrangeiro, pois

foi essa a única vez em que Mário de Andrade saiu do Brasil, embora muitos afirmem

que ele nunca deixou o país. Documentos e diários da primeira viagem etnográfica

mostram que o escritor aproveitou a expedição amazônica para conhecer o Peru, onde

chegou até Iquitos, importante cidade da Amazônia peruana. Também esteve na

fronteira com a Bolívia48, rapidamente visitada. Como foram os únicos momentos de

Mario de Andrade em terras estrangeiras, salientamos argutas observações nos

47 Para saber mais da correspondência entre Sérgio Olindense e Mário de Andrade, ver: Castello Branco (1970). 48 Mário de Andrade chega na fronteira com a Bolívia no dia 12 de julho, na cidade de Vila Bela, posto aduaneiro na fronteira entre os dois países. Para mais detlahes, ver: O Turista Aprendiz (2002), pg. 135 e seguintes.

119

contatos in loco, além da já citada passagem do discurso proferido em Iquitos, quando

troca “limites estaduais” por “limites nacionais”.

Mário de Andrade fala dos peruanos com exaltação. Próximo do retorno ao Brasil

afirma que “O Peru é o melhor país do mundo” (pg. 111). Acha-os mais bonitos que

os brasileiros da Amazônia e também sem complexos, o que “dá inveja”. Louva o

orgulho de suas origens incaicas e afirma que são os melhores desenhistas do mundo.

De fato, Mário de Andrade traz uma caricatura sua feita por Victor Moretz (ou Victor

Morel, já que existem as duas grafias), atualmente parte do Acervo Mário de Andrade

do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, como outro documento imagético da

viagem.

A observação que Mário de Andrade faz do orgulho peruano de suas origens deve ser

sublinhada. Ao contrário do brasileiro, que pouco valoriza uma de suas origens, a

indígena, no Peru, é motivo de exaltação. Isso chama a atenção do escritor

modernista, que observa: “Os peruanos, descendentes de espanhóis, falam com

orgulho patriótico dos Incas, na civilização incaica, na música incaica” (Andrade:

2002, 105). Esse apreço pela valorização das origens nacionais está no projeto

estético modernista e é um dos motivos que o leva a viajar pelo Brasil. Em seu

próprio país ele não encontra quem compartilhe do mesmo sentimento, embora afirme

que já ouvira, no Norte, pessoas falando com orgulho da herança marajoara. Mário de

Andrade também reproduz o diálogo ocorrido com um índio peruano, quando tenta e

não consegue comprar “coca”. O embate em busca da “coca” e o contato com o

indígena peruano dura alguns dias.

Numa conversa sobre as diferenças entre as ideias e concepções de civilização Mário

de Andrade, por exemplo, discorre sobre as vantagens das leis que existem nas

sociedades ditas mais civilizadas e que o índio desconhece na sua cultura. Este

“selvagem” acaba problematizando criticamente a noção de lei e pergunta para que

esta serve e então, Mário de Andrade transcreve o seguinte diálogo:

- Que que é “leis”? - São ordens que os chefes que mandam que a gente cumpra, e a gente é obrigado a

cumprir senão toma castigo. A gente é obrigado a cumprir essas ordens porque elas fazem bem pra todos.

- Será?

120

- Será o quê? - Será que fazem mesmo bem para todos... (Andrade: 2002, 106).

O índio com um questionamento simples coloca em dúvida os supostos avanços das

sociedades ditas civilizadas. O tema da leis e o embate entre sociedades “simples” e

“civilização”, assim como a alimentação e culinária, constituem abordagens

importante para as Ciências Sociais, principalmente para a Antropologia. Na verdade,

julgamos perceber, aqui, um indício da busca de Mário de Andrade pela sabedoria

popular e, consequentemente, por seu reconhecimento cultural como ideal

civilizatório. Essas buscas foram realizadas sistematicamente nas duas viagens

etnográficas, mesmo que as ideias de civilização estejam mais presentes na segunda

expedição. Mário de Andrade observa criticamente que na sociedade brasileira, há

maior preponderância de um pequeno grupo ou elite impondo seus valores culturais

como superiores aos das camadas populares.

Outra classificação temática interna da primeira parte do livro O Turista Aprendiz,

também vista na segunda viagem etnográfica, é a das manifestações culturais. Em

diversos momentos d’O Turista Aprendiz, Mário de Andrade estabelece contatos com

pessoas das camadas mais populares para observar manifestações culturais e artísticas

que seriam genuinamente brasileiras. Os contatos ocorrem tanto em terra firme como

também nos barcos em que navega. Mário de Andrade e as damas paulistas viajaram

em cabines ou camarotes dentro dos navios, acomodações das pessoas mais abastadas.

Mas ele transitava constantemente na terceira classe, onde a maior parte das pessoas

viajava dormindo em redes, armadas na parte mais baixa do barco.

Nesses locais ocorriam as maiores festas durante a navegação, como deduzível da

observação: “E a noite cai. Tenho nesta viagem pelo Madeira, tomado muito o

costume de, após a janta, descer na terceira, conversar” (Andrade: 2002, 145). Antes

disso, no dia 6 de julho, escreve no diário: “Acabo o meu dia, escutando as cantigas

na terceira classe, entre tapúios simpáticos e pacientes” (op. cit, 125). Antes ainda,

no dia 29 de junho, anotara que houvera um “baileco a bordo” (op. cit, 115). Na

cidade de Remate de Males, no dia 18 de junho, ele descreve a epopeia para participar

de um evento:

121

Soubemos de um bailarico ali perto, celebrando um casamento e fomos até lá, dançar, o fiscal da alfândega de Manaus, as duas moças e eu. Íamos num casquinho absurdo de pequeno, em que mal cabíamos os quatro, rebordo do barco à flor d’água. E cai uma tempestade, mas famosa. Fomos obrigados a abicar de qualquer jeito e flechar na disparada pelo trilho até a casa que já se enxergava uns cincoenta metros acima. Chegamos lá encharcados e a festa parou por nossa causa, esta hospitalidade servil (...) Fizemos a saúde dos noivos e o baile recomeçou, ao som duma flauta, inimiga do violão gordo que todo se esbofava pra acompanhar as corridinhas dela. O noivo se levantou, foi buscar a noiva pela mão, e trouxe ela, me ofereceu, pra ela dançar comigo, não é maravilhoso! E foi dançar com Trombeta. Depois dançou com Balança. E por ali ficamos nós dançando, ao som dos dois instrumentos e de um soldado que cantava de olhos baixos. (op.cit, 98-100).

Observamos neste trecho, os apelidos dados às duas companheiras mais jovens, que

virariam título do livro inacabado citado anteriormente. No dia 6 de junho, próximo a

Manaus, recolhe algumas chulas, que define como: uma cantiga, em geral cômica e

de andamento quase rápido, um “allegro” cômodo (op.ci, 80). Em outra cidade,

Humaitá, o escritor modernista observa uma dança dramática brasileira: o Boi-Bumbá.

Ao entardecer Humaitá simpática, ainda sem luz. Fomos à casa da família do fundador, na frente da rua de grandes árvores assistir ao Boi-Bumbá. Este, suas notas, estão em meus papéis referentes ao Bumba-meu-boi. Noitada estupenda, ao luar e à luz dos lampiões. Partimos pela meia-noite (op. cit, 140).

O trecho importa por definir que, naquele momento, Mário de Andrade já acumulava

anotações e arquivos sobre as danças dramáticas brasileiras, tema de um dos livros

inacabados no projeto Na Pancada do Ganzá. O contato com as manifestações

culturais nortistas e nordestinas remetem a outra classificação temática utilizada na

análise interna, a que trata do homem-do-povo.

A classificação proposta – homem-do-povo - tenta discriminar observações e análise

da viagem amazônica de Mário de Andrade. Híbrida, suas fronteiras tocam outros

temas, fazemos um pequeno esclarecimento. Tem o propósito de identificar

momentos de contato com pessoas das classes mais populares, formadora daquilo que

podemos chamar de “Brasil real”, que mostra as condições de vida e trabalho dessas

populações. Seus textos trazem reflexões sobre o preço das toras de madeira,

combustível dos barcos ao longo dos rios amazônicos, e sobre os salários recebidos.

Essa temática também abarca passagens que tratam da malária - ou maleita, termo

mais utilizado pelo escritor modernista, e que ele faz questão de registrar passagens

na Amazônia onde tem contato com esta doença, revelando-o como problema

122

presente no dia-a-dia do Brasil. Descreve, por exemplo, o encontro, no barco, com um

homem bonito, “mas inteiramente devorado pela maleita” (Andrade: 2002, 98). O

homem entra, chama a atenção de todos pela beleza, mas se comporta como se nada

de interessante houvesse ao redor. Em seguida, sai como se não tivesse passado por

lá, e Mario de Andrade reflete: “Então desejei ser maleteiro, assim, nada mais me

interessa neste mundo em que tudo me interessa por demais”. (idem, idem, 98).

Ainda sobre a malária, é de um maleteiro dessa região amazônica a descrição, análoga

à de um acreano seringueiro, do poema Descobrimentos (Andrade: 2002, 142).

No mesmo dia confessa: a imagem do moço me persegue. Ter uma maleita assim, que

me deixasse indiferente... (Andrade: 2002, 142). As referências à malária são várias e

dizem do impacto causado no observador. Não apenas a malária chama a atenção do

escritor paulista. Reproduzimos Mário de Andrade, em 31 de maio, sobre as

condições de existência do homem amazônico, próximo a Santarém: “Cumplicidade

da pobreza... Na entrada do Tapajós vi barcas com umas velas esquisitas, eram as

redes de dormir dos pescadores, servindo de vela. De-noite, rede; de dia, vela”

(idem, idem, 70).

Enfim, ressaltamos o contato de Mário de Andrade – homem-do-povo - com a

população local. A mesma temática trata dos objetos, artísticos ou folclóricos, que o

escritor modernista se dispõe a conhecer e, eventualmente, a adquirir. Esse trabalho

foi, posteriormente, desenvolvido na Missão de Pesquisas Folclóricas (a ser analisado

no capítulo 5). A classificação, assim, aproxima-se das manifestações culturais, uma

vez que foi o contato desse homem-do-povo com o povo, que permitiu ao escritor

estudar e pesquisar os cantos e danças populares do Brasil.

Telê Lopez em “Viagens etnográficas” de Mário de Andrade (2002)49, analisa alguns

significados das duas viagens etnográficas. Para ela, antes mesmo da efetiva

realização das viagens, o poeta já se interessava pela cultura popular (compreendida

aqui, como aquela realizada pelo povo). Como já mencionado, em cartas a amigos e

conhecidos, Mario de Andrade solicita envio de material sobre a cultura brasileira. A

49 Para mais detalhes sobre “Viagens etnográficas” de Mário de Andrade, ver: Lopez, Telê Porto Ancona. Estabelecimento do texto, introdução e notas, in: ANDRADE, Mário de. O turista Aprendiz. Belo Horizonte, 2002.

123

viagem a Minas Gerais em 1924, também o estimulou a desvendar a potencial riqueza

da cultura popular, no interior brasileiro. Para Telê Lopez, então:

Ao longo de suas leituras de obras de Folclore, Mário irá entendendo o Norte e o Nordeste como ricos depositórios de tradição e cultura popular, que anseia conhecer diretamente. Em 1926, projeta uma viagem para o Nordeste, pensando talvez realizar o que chama “trabalho etnográfico”, ou seja, coleta de documentação. Nessa época, é necessário que se ressalte, nosso escritor, que estuda o Folclore e recolhe documentos, já não considera o Folclore como uma disciplina isolada, autônoma, colocando-o muito lucidamente enquanto ciência social, como Etnografia, pois não dispunha de meios para diferenciar as atribuições da Antropologia cultural, da Etnografia e da Etnologia. Assim fazendo, está se insurgindo contra uma posição elitista de seu tempo que congelava o Folclore, dissociando-os dos demais fenômenos da sociedade e reduzindo-o à valorização do pitoresco (Lopez: 2002, 16).

A passagem dos anos 20 aos 30 do século passado define transformações acentuadas

na sociedade brasileira, que se industrializa e se torna mais urbana. Mário de

Andrade, já então, preocupava-se com os riscos que, naquele período, corriam as

manifestações tradicionais da cultura popular brasileira. Consequentemente,

empreendeu esforços para pesquisar, estudar e preservar essa cultura.

Mário de Andrade também desenvolve a ideia de civilização tropical, que aparecerá

em algumas passagens d’O Turista Aprendiz. São ideias já manifestas em alguns

outros textos e também em Macunaíma. Navegando na região amazônica, o autor

reflete:

Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castro-alves. E esta pré-noção invencível, mas invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes... E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. Não nos orgulhamos de ser o único grande (grande?) país civilizado tropical... Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, Java.... Talvez não pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos, seríamos mais nós, tenho certeza (Andrade: 2002, 60).

Depreende-se que, nas viagens etnográficas, Mário de Andrade pensa em uma

civilização brasileira, uma civilização tropical e americana. O “mais brasileiro”,

menos macaqueado da Europa, fazia parte de seu projeto estético, que já estava

presente quando faz as viagens etnográficas, em nossa opinião. No início da segunda

viagem, enquanto passa alguns dias no Rio de Janeiro, antes de zarpar rumo ao

nordeste, Mário de Andrade reflete:

124

E toda essa maravilha semostradeira que é a mulher carioca que reflete um país novo da América, uma civilização que andam chamando de bárbara porque contrasta com a civilização europeia. Mas isso que chamam de barbárie os deserdados da nossa terra, não passa duma reeducação. Sintoma capitoso de Brasil (Andrade: 2002, 186).

E, no intermezzo das duas viagens etnográficas, publica os livros Macunaíma e

Ensaio sobre a música brasileira, no mesmo ano (1928). É um tempo de reflexão,

pensamos, que aprofunda seu desejo de conhecer a cultura brasileira.

Já apontamos que a primeira parte do livro O Turista Aprendiz (2002), vinculada à

primeira viagem etnográfica, tem um caráter mais literário. A segunda, descritiva e

analítica, refere-se à segunda viagem etnográfica, e é dela que trataremos agora, com

uma classificação temática própria para a análise.

Metodologicamente, adotamos uma classificação que difere em alguns temas e

coincide em outros. Assim, temos: as manifestações culturais; as ideias de civilização

brasileira; as crônica críticas; os contatos; os aspectos religiosos; a arquitetura; a

criação literária e, finalmente, o homem-do-povo.

Nessa viagem, Mario de Andrade procura manifestações artísticas e populares da

cultura brasileira, e o faz com objetividade, para pesquisa e estudo. Passou a maior

parte do tempo em terra, buscando e coletando material. Batizou essa viagem de O

Turista Aprendiz: viagem etnográfica, e o título define seu intuito. Outra

característica marcante são os contatos com artistas e intelectuais que, como ele,

preocupavam-se em discutir e entender o Brasil: Luciano Gallet, Manuel Bandeira,

Cícero Dias, Ascenso Ferreira, Joaquim Inojosa, Sergio Buarque de Holanda, Rodrigo

Melo Franco de Andrade, Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, entre outros.

Para a análise interna, começamos com a classificação temática dos Contatos. Ao

partir de São Paulo, Mário de Andrade passa alguns dias no Rio de Janeiro, então

capital federal. Chega no dia 28 de novembro de 1928 e encontra os músicos Luciano

Gallet e Julieta Telles de Menezes. Janta, nesses dias, na casa de Rodrigo Melo

Franco de Andrade, em companhia de Sérgio Buarque. Parte em 3 de dezembro, após

encontrar e usufruir do Rio de Janeiro com amigos. Em Alagoas encontra o poeta

Jorge de Lima e José Lins do Rego. Noutra oportunidade, encontraria o poeta Jorge

125

Fernandes em Natal e escreveria uma crônica sobre o encontro. Nesta, reproduziria

dois poemas do Livro de Poemas, de Jorge Fernandes, lançado no ano anterior que

Mário de Andrade reclama de ter sido pouco lido e discutido no Brasil. Mostrando

que o Brasil do sul ignorava as pessoas, manifestações e produções oriundas de outras

partes do país.

No Recife mantém contato com os amigos Manuel Bandeira, Joaquim Inojosa e

Ascenso Ferreira. No dia 11 de dezembro, na companhia de Manuel Bandeira, faz um

passeio de lancha com Gilberto Freyre pelo rio Capibaribe. Entre Mário de Andrade e

Gilberto Freyre não há muita empatia e o diálogo não se prolonga, embora estivessem

interessados, ambos, na cultura brasileira. Na mesma noite é levado para Olinda, em

companhia de Ascenso Ferreira, para escutar Maria Joana “cantar esplendidamente

emboladas, sambas, marchinhas de carnaval” (Andrade: 2002, 303).

Uma classificação temática muito presente nesta viagem diz respeito às manifestações

culturais, o próprio intuito da viagem, uma vez que Mário de Andrade parte com este

firme propósito. No dia 8 de dezembro, ainda a bordo, conversa com um italiano que

mora em Belém, que lhe relata o costume, em Maceió, de pessoas cantarem enquanto

carregam piano, para não desafiná-lo. Esse italiano mostra uma canção à Mário de

Andrade, que inicia sua coleta de músicas brasileiras. Em Maceió, no dia de sua

chegada, observa algumas cheganças e a Nau Catarineta, que descreve:

E está chegando o tempo de festar. Junto de árvores negras de sol, com paus e barro esculpindo uma barcaça de alto-mar. Aí dançarão cantando o fado eterno da Nau Catarineta, é a chegança... – Sobe, sobre meu gajeiro... E a caboclada brasileira como alagoana, aqueles portugas do fastígio que pra voltar das aventuras passava ano e mais ano buscando terra de Espanha, areias de Portugal... Tudo isso enche meu peito que nem posso respirar (Andrade: 2002, 196).

Cheganças são danças dramáticas de origem portuguesa, que falam das viagens de

descobertas e entoadas para as chegadas festivas (ou retorno à terra de partida). O

escritor, em 18 de dezembro, definiria assim a dança:

Todas essas danças-dramáticas inda permanecidas tão vivas na parte norte e nordeste do país, andam muito misturadas, umas trazem elementos de outras, influências novas penetram nelas; junto duma lição camoniana brota um brasileirismo danado, contando fatos de agora, tão impossíveis que a Turquia chega a conhecer a força do “braço brasileiro” na presença do imperador Guilherme II. Chegança afinal descreve os fatos quotidiano da “Nau Fragata”, navio de guerra. O episódio principal é ainda a luta da maruja cristã dela com os turcos. Isso entremeiado de episódios diários, baldeação de

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bordo, uma revolta contrabando, de dois guarda-marinhas, trabalhos dos médicos e do capelão. A luta ente cristãos e mouros é simplesmente prodigiosa. Dança dura. Os dois dançarinos da nossa frente são formidáveis como ritmo, as espadas se chocam de com força, até quando as meninotas é que combatem; o rei mouro, uma figura de opereta formidavelmente cômica, vai minando a fraqueza gradativa com expressão forte. E a dança violenta segue mais de 30 minutos, saltada, cantada aos berros, numa resistência de nordestino, sem que ninguém não arreie. E a Chegança inda continua depois quase uma hora! Alguns dos cantos são lindos. Surgem quadras tão puras, dum sentimento ingênuo digno de alemão... Meu prazer está compacto como o vento... Os paulistas não conhecem nada disso... (Andrade: 2000, 210-211).

Em 20 de dezembro escreve, em crônica, uma crítica musical em que tenta entender a

maneira nordestina de cantar (trabalho que remete à brincadeira de cantar em tons

diferentes, como os índios Do-mi-sol). Ao descrever os cantos de um coqueiro

chamado José, Mário de Andrade afirma:

Que voz!... Não é boa não, é ruim. Mas é curiosíssima e a do companheiro dele é inda mais. Em que tonalidade estão cantando? Às vezes, é absolutamente impossível a gente saber. Um dos fen6omenos mais interrogativos da humanidade, é justamente a fixação dos sons da escala cromática. A humanidade toda fixou 12 sons principais e que são sempre os mesmos do mundo inteiro. O curioso é que chins, gregos e troianos, todas as nacionalidades empregam o mesmo número de vibrações e possuam o mesmo dó e o mesmo dó sustenido. Ora está me parecendo que os coqueiros nordestinos usam também entoar com um número de vibrações que afastam o som emitido dos 12 sons da escala geral. O quarto-de-tom de que a música erudita não se utilizou na civilização europeia, esse estou mesmo convencido que os nordestinos dão. Já topei com ele três feitas nessa viagem, entoado pela preta Maria Joana, cantadeira famanada de Olinda, e por um catimbozeiro natalense. (...) Não é cantar desafinado não. Cantam positivamente “fora de tom” e este fora de tom está sistematizado neles e é de todos. Se fixo uma tonalidade aproximada no piano e incito os meus dois coqueiros, cantando com eles, se... amansam, caem no ré bemol maior, por exemplo. Se paro de cantar, voltam gradativamente pro “fora de tom” em que estavam antes. E é um encanto (Andrade: 2002, 213-4).

Na mesma crônica afirma já ter ouvido coqueiros em São Paulo, mas ansiava por

ouvir os verdadeiros, do Nordeste. O diário mostra que passa os dias 19, 20 e 21 de

dezembro recolhendo temas de cocos, cabocolinhos, chegança e catimbó, anotando

suas letras e melodias. Trabalha muito, e em 22 de dezembro anota que esteve com

catimbozeiros a noite e assistiu um ensaio de Boi Calemba, no bairro do Alecrim

(Andrade: 2002, 308).

Na noite de Natal assiste a um pastoril e uma chegança, que duram cerca de 4 horas.

Quando não trabalha, diz-se insatisfeito, no diário. Após o Natal, recolhe congos e,

antes do fim do ano, assiste ao Boi de S. Gonçalo (cidade próxima a Natal). Principia

1929 com a mesma rotina de trabalho: observação, coleta e escritura. Como anota no

diário, no dia 4 de janeiro trabalha com o fandango pela manhã, à tarde recolhe

congos e de noite anota cocos.

127

O dia 6 de janeiro, dia “dos Santos Reis”, como ele mesmo observa, é excelente

oportunidade, pois é o:

segundo dia grande pras danças dramáticas nordestinas. Pelo Natal saíram a Chegança e o Pastoril. Pelos Reis sai o Bumba-meu-boi. No Norte, o Boi tem como data pra sair o dia de São João. No nordeste sai pelos reis e se no dia 30 de dezembro passado pude assistir ao Boi do município de São Gonçalo, isso foi exceção, honraria pra quem vos escreve estas notas de turista aprendiz. Também já estou popular por aqui. Vivo dum lado pra outro em busca de quanta festa, quanta Chegança, quanto Boi se ensaia, quanto coco se dança, levando pra casa quanto cantador encontro... (Andrade: 2002, 238).

O relato acima mostra que a pesquisa e recolhimento de manifestações culturais

brasileiras seguem céleres, nas andanças de Mário de Andrade pelo Rio Grande do

Norte. Anota, brincando, que ficou conhecido pelas pessoas como o “dotô de São

Paulo que veio studá Boi”. No dia seguinte viaja ao engenho Bom Jardim, onde

ficaria boa parte da viagem e se encontraria com o cantador Chico Antônio, que

conhece em 10 de janeiro. A intenção da ida ao engenho era recolher Cocos e Bois, de

pessoas chamadas pelo amigo Antônio Bento. Quando conhece Chico Antônio,

escreve sobre ele, na crônica enviada ao Diário Nacional:

Que artista a voz dele é quente e duma simpatia incomparável. A respiração é tão longa que mesmo depois da embolada inda Chico Antônio sustenta a nota final enquanto o coro entra no refrão. O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, sem movem interminavelmente no compasso unário, na “pancada do ganzá”. Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte se é heroísmo. Não se perde uma palavra que nem faz pouco, ajoelhado pro “Boi Tungão”, ganzá parado, gesticulando com as mãos doiradas, bem magras, contando a briga que teve com o diabo do inferno, numa embolada sem refrão, durada por 10 minutos sem parar. Sem parar. Olhos lindos, relumeando numa luz que não era do mundo mais. Não era desse mundo mais (Andrade: 2002, 246).

Chico Antônio encanta o escritor e o inspiraria em algumas obras, como já

mencionado. Dele o escritor paulista recolherá inúmeros cocos, no decorrer da estadia

no nordeste. No dia 11 de janeiro, dia seguinte ao que se conhecem, passam o tempo

todo juntos. O cantador, cantando; o homem pesquisador, anotando. E a observação

maravilhada:

Porque Chico Antônio não é só voz maravilhosa e a arte esplêndida de cantar: é um coqueiro muito original na gesticulação e no processo de tirar um coco. Não canta nunca sentado e não gosta de cantar parado. Forma os respondedores, dois, três em fila, se coloca em último lugar e uma ronda principia entontecedora, apertada sempre a mesma. Além dessa ronda, inda Chico Antônio vai girando sobre si mesmo. Ele procura de fato ficar tonto porque, quanto mais gira e mais tonto, mais o verso da embolada fica

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sobrerrealista, um sonho luminoso de frases, de palavras soltas, em dicção magnífica. Poemas que nenhum Aragon já fez tão vivo, tão convincente e maluco. É prodigioso. (...) Mas Chico Antônio ultrapassa de muito os que tenho escutado, pela força viva do que inventa e a perfeição com que embola (Andrade: 2002, 247).

Depois de trabalhar mais um dia inteiro com Chico Antônio, despede-se e Mário de

Andrade anota, na mesma noite, já sentir falta do cantador. Transpõe o sentimento

para a crônica jornalística.

O contato com as manifestações culturais brasileiras gera uma crônica, do dia 26 de

janeiro, em que explica ao seu público leitor no que consistem as danças dramáticas.

Brevemente, conta que as congadas, o Boi e o Pastoril são autos de origem

portuguesa. Já as congadas e cabocolinhos mostram colaboração ou inspiração do

africano e do índio (Andrade: 2002, 271). Porém todas são classificadas por ele como

danças dramáticas do Brasil, sem negar o componente de miscigenação das três

matrizes brasileiras existentes nelas.

A respeito dos Congos, se é certo que personagens (rei do Congo, rainha Ginga), muitas palavras e muitos dos cantos e danças são visivelmente africanos, o reinado na sua expressão mais completa do texto e drama, recebeu versão e versificação eruditas de incontestável origem luso-brasileira (Andrade: 2002, 271).

Sai do Rio Grande do Norte, entra na Paraíba e continua trabalhando na coleta de

cantigas e danças. Em 5 de fevereiro data sua última crônica publicada no Diário

Nacional, embora a viagem ainda prossiga até quase o final do mês, prolongando sua

estadia e trabalho em Pernambuco, onde continua trabalhando com apoio de amigos.

Na última crônica publicada no periódico, volta a falar da dança cabocolinhos, mais

uma vez manifestando o apreço pelas manifestações culturais. Mas também fala da

dificuldade de estudar a cultura brasileira. Ele afirma:

Uma das nossas danças dramáticas de que menos se tem falado são os “Cabocolinhos”. A culpa dessa ausência de documentação vem dos nossos folcloristas, quase todos exclusivamente literários. O que se tem registrado nos nossos livros de folclore é quase que unicamente a manifestação intelectual do povo, rezas e romances, poesias líricas, desafios, parlendas. O resto, moita. Ora os Cabocolinhos são caracterizadamente um bailado. Se dança. Não tem cantigas e só de longe em longe uma fala, tão esquematizada, tão pura que atinge o cúmulo de força emotiva. Imaginem só: fazia já mais de uma hora que o pessoal estava dançando, dançando sem parada, com fúria (Andrade: 2002, 284).

A crônica termina com uma crítica e quase premonição sobre as transformações

culturais que o Brasil sofreria a partir dos anos 30. Importa observar que as crônicas

com conteúdo político são constantes nessa segunda viagem etnográfica, e foram

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classificadas tematicamente na análise interna como crônicas políticas. Na última

crônica publicada sobre a viagem, Mário de Andrade encerra assim o comentário

sobre os cabocolinhos:

Os Cabocolinhos saem pelo Carnaval. Saem quando podem porque em nome dum conceito como idiotissimamente nacional de Civilização, as Prefeituras e Chefaturas de Polícia fazem o impossível para eles não saírem, cobrando diz-que até duzentos mil-réis a licença. Será possível!... Já os cabocolinhos saem raramente. Até para ensaiar dentro de casa, pagam treze paus à Polícia!... Os grupos e as formas de bailado são diversos. Além dos Cabocolinhos, tem os “Índios Africanos”, tem os “Canindés”, os “Caramurus”, etc. Mas tudo vai se acabando agora que o Brasil principia... (Andrade: 2002, 285).

Esse último texto é relevante também por colocar em xeque o próprio conceito de

civilização. Entretanto, antes de tratar das ideias de civilização, avançamos um pouco

mais nas observações políticas do escritor. Na crônica escrita em 6 de janeiro, Mário

de Andrade reflete sobre as relações entre política e cultura:

Hoje o Boi do Alecrim, saiu pra rua e está dançando pros natalenses. Os coitados estão inteiramente às nossas ordens só porque Luís da Câmara Cascudo, e eu de embrulho, conseguimos que pudessem dançar na rua sem pagar licença na Polícia. Infelizmente é assim, sim. Civilização brasileira consiste em impecilhar as tradições vivas que possuímos de mais nossas. Que a Polícia obrigue os blocos a tirarem licença muito que bem, pra controlar as bagunças e os chinfrins, mas que faça essa gente pobríssima, além dos sacrifícios que já faz pra encenar a dança, pagar licença, não entendo. Seria justo mas é que protegessem os blocos, Prefeitura, Estado: construíssem palanques especiais nas praças públicas centrais, instituíssem prêmios em dinheiro dados em concurso. Duzentos mil-réis é nada pra Prefeitura. Pra essa gente seria, além do gozo da vitória, uma fortuna. O Boi de S. Gonçalo outro dia marchou a pé no areão várias horas de Sol pra chegar na Redinha e ganhar quarenta paus! é horroroso (Andrade: 2002, 238).

A preocupação com a perseguição da elite política será constante em toda a vida do

escritor Mário de Andrade. Exacerba-se mais ainda após a estadia no nordeste ao

constatar o tratamento dispensado aos que procuram manter viva determinadas

tradições culturais brasileiras. Em seu trabalho no Departamento de Cultura,

desenvolverá projetos de preservação deste patrimônio cultural brasileiro, tanto

material como imaterial. Dias mais tarde, entre 18 e 22 de janeiro, e já conhecedor da

região litorânea, o escritor modernista tem a oportunidade de viajar de carro pelo

interior do Rio Grande do Norte, para conhecer um pouco mais a região produtora de

sal e algodão. A crônica do dia 7 de janeiro de 1929 diz:

Vou-me viver vida de engenhos por uns dias, a oldsmobile rola por estas estradas. Às vezes dança umas valsas desengonçadas. Todo o Nordeste, devido às condições do terreno, com trabalho fácil já está percorrido pelo automóvel. Mesmo, devido à elevação quase proibitiva das tarifas ferroviárias, muito transporte de carga é feito em caminhões. As estradas, no geral, são muito boas, um bocado estreitas. Nesta zona de Natal, a Goianinha, estreitíssimas. Dois automóveis que se encontrem, é uma encrenca sérias em

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alguns pontos. Marcha à ré trezentos metros! É zona litorânea. O coqueiro é que brinca na paisagem. O resto são taboleiros, mais taboleiros, que nem o nosso cerrado monótono, acachapado por um verdecinza estudoricando a alma da gente (Andrade: 2002, 239).

Mário de Andrade vai, então, para o interior, região da seca. Essa viagem dentro da

viagem começa em direção ao norte do estado, com parada em Macau, para visitar

algumas salinas. Já observara, na caatinga que atravessara pouco antes, a pobreza do

povo e as difíceis condições sociais. Ele escreve:

Foi bom mesmo chegar nas salinas bonitas porque atravessar assim no solão sincero, léguas e léguas de caatinga, um naco de sertão e mais caatinga em plena seca, palavra: quebra a alma da gente, vista de cinza malvada! Em Epitácio Pessoa foi difícil resistir a um desses assombros sentimentais que diz-que arrancam lágrimas. Miséria semostradeira de vilareco, sem ninguém mais quase, morto de todo nas 13 horas do dia, onde os corajosos que moram ali estão comprando a cruzado, a 500 réis a lata d’água, vindas de léguas longe (Andrade: 2002, 255).

Descreve ainda as qualidades do sal do Rio Grande do Norte e da usina que visitou e

“fotou”, além das condições de trabalho dos funcionários. Reclama das dificuldades

de desenvolvimento das indústrias. No dia seguinte continua seu périplo pelo interior

em direção a Caicó (RN) e Catolé do Rocha (PB), “capital do cangaço paraibano”,

como escreveu o escritor em sua crônica do dia 20 de janeiro. Retornam a Caicó no

dia seguinte, onde o escritor esperava coletar músicas. Mais uma vez escreve a

crônica com críticas à política brasileira.

A estrada de rodagem de Caicó pra Catolé do Rocha, ligando o Rio Grande do Norte com a Paraíba, empregando 400 trabalhadores – o que quer dizer 400 famílias alimentadas- com o jornal ridículo de 2$500, o Governo Federal suspendeu de sopetão. Esse povaréu todo ficou na miséria completa em plena seca, morrendo de fome. Serviço não há nenhum. Segundo informações dum técnico da Inspetoria de Estradas, só os direitos alfandegários da gasolina importada pelo Estado, só esses direitos dão pra pagar o serviço. O governo Federal gasta 5 contos semanais com ele. E tem verba destinada a ele só que inda não foi distribuída! E o serviço é parado derrepentemente: a seca se tornou palpável, a fome, a morte ou a deserção... Mas o Governo Federal faz uma estrada de luxo Rio-Petrópolis... A reverendíssima Excia. Do dr. Washington Luís passa pelo Nordeste em discurso, não tirando luva da mão, sem experimentar o tapa-mão de couro do vaqueiro, bem hospedado, comendo e muito as comidas morenas de por aqui (Andrade: 2002, 263).

Na mesma crônica questiona o retorno pós-migratório do nordestino ao Nordeste:

A história da volta sempre do nordestino é uma blague sentimentalmente ridícula. Voltam um ou outro apenas. E voltavam principalmente do Acre onde a situação aquática é tão mortífera quanto a seca nordestina. Os que vão pro sul não voltam não (Andrade: 2002, 264).

131

Continua a crítica sobre o processo migratório para o sul do Brasil, e retoma as

críticas ao Governo Federal (que poderiam ter sido escritas hoje, em 2012):

Não tenho dúvida que o problema do sertão e da caatinga em seca há-de se resolver. Não entendo dessas coisas e temo dizer bobagem. O que sei é que por enquanto tudo está errado e ao proletário rural não beneficiaram quase nada as medidas existentes que o governo Federal tomou. Os açudes grandes não passam de um paliativo e os retirantes que se arrancham na praia deles, são duma arribação dolorosa... (Andrade: 2002, 265).

E conclui com outra crítica ao próprio Washington Luís: “por isso é que careciam de

fazer com o dr. Washington Luís, deixar ele a 12 léguas da recepção, comendo

miséria medonha desta seca. Miséria medonha” (Andrade: 2002, 265). Como se vê,

Mário de Andrade, através do contato com a dura realidade do nordestino, explicita

sua indignação pelo tratamento dispensado ao homem-do-povo pelos governos em

geral, e especificamente pelo Governo Federal. Na crônica escrita no dia 22 de janeiro

chega a fazer uma espécie de ode ao cangaço, afirmando:

Não é possível se pregar a revolução nesse país. Na certa que haverá traidores. O que nós carecemos é dum cangaço secreto, matando friamente fulano que é gatuno, fulano que é burro, fulano que é abúlico, assim. Matar. Matar friamente. Então o açude de Gargalheiras juro que já estava acabado, beneficiando a uma região produtora, prendendo gente no solo nordestino, enriquecendo o país (Andrade: 2002, 267).

Conclui, então, a última crônica da viagem ao interior do Nordeste:

Mil cento e cinco quilômetros devorados. E uma indigestão formidável de amarguras, de sensações desencontradas, de perplexidade, de ódios. Um ódio surdo... Quase uma vontade de chorar... Uma admiração que me irrita. Não estou fazendo literatura não. Eu tenho a coragem de confessar que gosto de literatura. Aqui não. Repugna minha sinceridade de homem fazer literatura diante desta monstruosidade de grandezas que é a seca do Nordeste. Que miséria e quanta gente sofrendo... É melhor parar. Meu coração está penando demais... (Andrade: 2002, 267).

A realidade nordestina, portanto, é criticamente descrita por Mário de Andrade. E o

contato com o sertão origina críticas ao clássico Os Sertões, de Euclydes da Cunha:

Pois eu garanto que Os Sertões são um livro falso. A desgraça climática do Nordeste não se descreve. Carece ver o que ela é. É medonha. O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial porém uma falsificação hedionda. Repugnante. Mas parece que nós brasileiros preferimos nos orgulhar duma literatura linda a largar da literatura de uma vez pra encetarmos o nosso trabalho de homens. Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão, transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopéia... Não se trata de heroísmo não. Se trata da miséria, de miséria mesquinha, insuportável, medonha. Deus me livre de negar a resistência a este nordestino resistente. Mas chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação. Os mais fortes vão-se embora (Andrade: 2002, 264).

132

Voltando ao cangaço, não foi somente ode o que o escritor modernista fez. Também

analisou o fenômeno criticamente, como se observa na crônica escrita em 23 de

janeiro, quando retorna da viagem ao interior. Comparando o cangaço daquele

momento com o de momentos anteriores, Mário de Andrade anota:

Dantes o cangaceiro não era assim não. No geral cavalheiresco, protegendo as mulheres, não roubando propriamente, apenas se apropriando de posses alheias nas vinganças. E a riqueza apropriada assim, era de todos, acaba servindo aos pobres. Ninguém não se fazia cangaceiro não. Era feito por essa incompatibilidade em que se botou a pseudo-civilização social em que vivemos com a justiça verdadeira. O indivíduo sofria uma desgraça sem cura, tiravam o sítio dele, estragavam a mana, etc. então virava cangaceiro pra justificar. Justificava, o que quer dizer que ficava fora da Justiça... Era o cangaço. Cangaceiros tanto de ontem como de agora são uma prova admirável de resistência, de saúde, de força e de coragem física. Isso não tem dúvida. Vida com olho direito sempre acordado, com atividade sem parada, abstração de clima, de dengue, de malinconia... Mas os de dantes possuíam afinal das contas u’a moral lá deles, não matavam, não atacavam sem razão, respeitavam, protegiam, coisas que o temor do ridículo faz a gente chamar de “românticas”. (...) Mas parece que Lampeão tinha no grupo dele uns malandros cheios de curso escolar... De primeiro ele não era o que é, não. Os tais é que, cangacismo praticado, voltavam pra roubar, estuprar, o Cão! Lampeão... Lampeão era brasileiro da República (não sou monarquista) e se acostumou. O certo é que cangaceiro é sinônimo agora de tudo quanto é desagradável e incerto. Decadência... Resistência... Mas resistência não basta pra nada... (Andrade: 2002, 268).

À parte as críticas ao cangaço, Mário de Andrade continua a exaltar a figura do

homem-do-povo, que seria, ao menos parcialmente, vítima das circunstâncias políticas

e sociais que dominavam o País. Ou seja, grande parte da miséria nordestina teriam

causas associadas a escolhas e decisões políticas tomadas longe do Nordeste, na

capital federal, como vimos na crítica que faz ao presidente Washington Luís.

O homem-do-povo, que intitula também uma classificação temática interna na análise

da obra, chama muito a atenção de Mário de Andrade e se coloca ao lado do homem

amazônico, presente na análise referente à primeira viagem etnográfica. Não apenas

nos aspectos políticos, sociais, físicos; também a linguagem chama a atenção do

escritor paulista. Logo no início da viagem, quando parte de trem do Recife para

Guarabira (interior da Paraíba), elogia a pontualidade da companhia ferroviária. O

transporte dura “11 horas quentes”, como define o autor do diário. Nas diversas

paragens observa a constituição da fauna, sobretudo da caatinga, e também as

características dos nordestinos em geral. E conclui: “Nordestino, em geral, não só

fala cantando como dá concerto” (Andrade: 2002, 202). Afirma gostar da fadiga

rodoviária, já que reclamara da vagarosidade e monotonia do trajeto de navegação,

nessa viagem. Ele descreve com arguta observação:

133

Aliás o pitoresco, o bem-falante da conversa do nordestino geral, é extraordinário. Sem esforço, falam quase como os índios de José de Alencar. Com mais realismo, está claro. Gostam de apalpar o assunto em imagens quotidianas dum inesperado de susto, é admirável (Andrade: 2002, 203).

Ainda sobre a musicalidade na linguagem do nordestino, dias depois, em Natal, ele

observa:

Me estiro na cama e o vento vem, bate em mim cantando feito coqueiro. Por aqui chamam de “coqueiro” o cantador de “cocos”. Não se trata do vegetal, não, se trata do homem mais cantador desse mundo: nordestino. O vento de Natal é mano dele. Moro no bairro do Tirol, ruas largas, abertas... A erudição me lembra as praças da primeira Florença renascente, destinada aos “cantastorie”, onde eles dedilhavam o alaúde, a trompa marinha cantando sem mais fim. O vento canta, os passarinho, a gente do povo passando. O homem que leva e traz as vacas daqui de perto, não trabalha sem aboiar... Aqui em casa também. Todos cantamos, cocos, embolados, sambas, dobrados, modinhas... (Andrade: 2002, 204).

Conclui a crônica do mesmo dia com a expressão: “Natal gostoso que amo com a

minha mão direita...”. Fica encantado com a cidade e com a possibilidade de

vivenciá-la de verdade, sem obrigações de ver coisas exóticas. Ainda pensando no

homem-do-povo, Mário de Andrade escreve, em 1º de janeiro de 1929:

Se saúde, facilidade, bem-estar fosse deduzível da alegria, o proletário nordestino vivia no paraíso. A gente daqui é alegre e cantar tanto como ela não sei que se cante. E não deduzo isso da época de festa em que estou não. O pessoal amanhece já na cantoria. E tudo é pretexto pra cantar. Pra conduzir umas vacas, um percurso urbano curto, o vaqueiro de perto de casa, não desleixa o aboio. Os trabalhos pesados não se faz sem cantiga, nem os leves!... As praias ressoam noitemente na toada aberta dos coros. Eu, já estou familiar em Natal porque sou “o dotô que veio de S. Paulo studá ‘Boi’”, me falaram outro dia eu passando. Recife, desde novembro que o pessoal, carnavalizado totalmente, caiu no “frevo”, e não tem sábado sem cordão mexe-mexendo no “chá de barriguinha”. Natal está dançando Pastoris, Cheganças, Congos e preparando o “Boi” de Reis... Alegria existe muita (Andrade: 2002, 232).

Nota, assim, que, apesar de todas as agruras, o nordestino é festeiro, com inúmeras

expressões culturais e artísticas. E portador de uma felicidade quase inerente à sua

existência, que o autor reflete em crônica escrita em 12 de janeiro, quando se

encontrava no Engenho Bom Jardim:

Aliás desde minha viagem pelo Amazonas já reparei uma coisa curiosa: as tardes aqui jamais são tristes. Uma diferença enorme das paulistas. Boca-da-noite, mesmo na fazenda de café mais agradável de paisagem, sempre é tristonho. Por aqui não. As mais largas, o sentimento que despertam é duma calma guaçu, do tamanho da morte, perfeitamente sossegada. Mas no geral são alegres, bem visíveis, um certo quê de espetacular muito refletido na psicologia do nordestino (Andrade: 2002, 247-8).

134

Tratando sobre as diferenças entre as duas viagens, e também entre Norte e Nordeste,

observa no dia 15 de janeiro:

Nós aí no sul por essa esquematização precipitada em que o espírito vive pra pensar prático, costumamos imaginar que da Bahia pro Equador está “o Norte”. Ora não tem nada mais afastado que o Norte do Nordeste. O Norte vive estigmatizado por aquela umidade fabulosa que chega a embolorar objeto de uso quotidiano. E a assombração deste nordeste é a seca. Se um tempo inda o nordestino atraído pela borracha, nem bem seca chegava, tornava-se, paroara no Acre, no Amazonas, isso está passando já. Agora são as fazendas e cidades do sul, principalmente paulistas que atraem o nordestino (Andrade: 2002, 252).

Mário de Andrade fala também da migração, cujo alvo principal era São Paulo.

Quando no Departamento de Cultura, elaboraria plano de coleta de manifestações

populares, uma das intenções seria disponibilizar para a população os registros de

suas origens culturais, como veremos no capítulo 5. Observando as festas do homem-

do-povo, no diário do dia 13 de janeiro, Mário de Andrade registra:

De longe se escuta um zambê noutra casa de empregados. O som do bumbo zambê se escuta longe. Vamos lá. O pessoal dança passos dificílimos. O também (sic) bate soturno em ritmo estupendo. Estou no meu quarto e indo o zambê rufa no longe. Adormecerei e ele ficará rufando. Pleno séc. XIX. Plena escravidão. Minha comoção é dramática e forte (Andrade: 2002, 312).

As festas, além de momentos observações e desfrute, também eram oportunidades

para coleta de músicas e danças dramáticas. Outra característica dessas manifestações

era o cunho religioso. Mário de Andrade mostrava-se curioso pelas festas e

manifestações religiosas que não as do catolicismo, além do que denominou de

músicas de feitiçaria. Essa segunda viagem etnográfica, então, mostra-se excelente

oportunidade para descrever rituais religiosos, que acompanha e dos quais participa.

Não por acaso um dos volumes da série Na Pancada do Ganzá é nomeado Música de

Feitiçaria no Brasil.

Como mencionado, Mário de Andrade sempre se interessou pelas questões religiosas,

desde sua primeira viagem a Minas Gerais, em 1919, quando se sentiu impactado

pelas obras do escultor mineiro Aleijadinho. Na segunda viagem etnográfica, dedica

muito tempo a manifestações do gênero, tanto observando aspectos imateriais, como

rituais e danças, ou materiais, como arquitetura e objetos sagrados. Na classificação

temática da análise interna da segunda parte do livro O Turista Aprendiz, portanto,

lidamos com dois temas próximos: o primeiro trata dos “aspectos religiosos”,

135

propriamente ditos; o segundo, da “arquitetura”. É relevante comentar a descrição do

Convento de S. Francisco, em Igaraçu, região ao norte de Recife e próxima da Ilha de

Itamaracá, feita por Mário de Andrade:

Visita muda, quase trágica: uma felicidade de arte boa, arruada entre assombrações de gente antiga, as festas que houve aqui, música religiosa, pensamentos dispersivos... O claustro é um carinho, a estante e os próprios móveis do coro, com o jacarandá pretejado são coisas sem preço. Os azulejos da igreja contam em bom estado os milagres de São Francisco. Aliás, tenho uma incapacidade vasta de observar o trabalho propriamente artístico no azulejo. O desenho, o caso que ele conta, careço de fazer esforço para observá-lo. O que vejo mesmo é o valor decorativo da matéria: uma coisa refletidamente festiva, rica, sóbria, solene. A gente enxerga mas é o azulejo, o conjunto e isso é um encanto (...) Duma pra outra igreja não sei contar qual o artisticamente melhor. Mas a principal riqueza do convento são as pinturas, das melhores que conheço da Colônia. Aliás, estou notando isso: já ontem na Ordem Terceira de São Francisco, em Recife, as pinturas me entusiasmaram. E agora me entusiasmam as de Igaraçu... Os pintores que andaram por aqui eram bons... Com exceção do Velasco e do Teófilo de Jesus baianos, talvez os melhores da Colônia... Saio do convento abatido de prazeres (...) Saio como brasileiro que pode falar pros manos que já visitou Igaraçu (Andrade: 2002, 200).

Mas é na Paraíba que mais concentrariam suas observações arquitetônicas. A visita ao

Convento São Francisco, na capital paraibana, em 30 de janeiro de 1929, encantaria o

escritor nordestino:

Do Nordeste à Bahia não existe exterior de igreja mais bonito nem mais original que este. E mesmo creio que é a igreja mais graciosa do Brasil – uma gostosura que nem mesmo as sublimes mineirices do Aleijadinho vencem em grandiosidade. Não tem dúvida que as obras de Aleijadinho são de muito maior importância estética, histórica, nacional e mesmo as duas S. Francisco de Ouro Preto e S. João del Rei serão mais belas, porém esta de Paraíba é graça pura, é moça bonita, é periquito, é uma bonina. Sorri (Andrade: 2002, 276).

O espanto de Mário de Andrade abrange o interior da Igreja e seu entorno. Na crônica

ele continua:

O interior é irregular e já está bem estragado por consertos e substituições. Assim mesmo possui um púlpito, jóia de proporção e desenho. As pinturas também são excelentes um dos altares laterais completado no tempo, mostra também pinturas dum primitivismo inconscientemente plástico bem forte e bem cômico. Os azulejos são dos mais ricos que já vi, suntuosos. O pátio exterior é murado por eles também e mostra nichos com cenas da Paixão ainda em azulejos magnificamente desenhados e que assim, emoldurados pelo nicho e distantes uns dos outros, a gente pode isolar contemplar e gozar bem. Na frente de tudo o cruzeiro é um monolito formidável. Estou assombrado. Paraíba possui um dos monumentos arquitetônicos mais perfeitos do Brasil. Eu não sabia... Poucos sabem... (Andrade: 2002, 278).

Dias depois, ainda na Paraíba, volta a analisar a arquitetura da cidade e o encanto com

o convento: “Paraíba tem antiguidades arquitetônicas esplendidas. Algumas como

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boniteza, outras só como antiguidade. E já falei que o convento de S. Francisco é a

coisa mais graciosa da arquitetura brasileira” (Andrade: 2002, 279). Ainda:

Paraíba tem edifícios novos excelentes. Os Correios e Telégrafos são os melhores que conheço. Mas Paraíba tem muito mocambos e bairros operários mal amanhados, desruados. A pobreza e o sofrimento tratados assim ficam semostradeiros em casinhas cujos tope, de muitas, minha altura paulista atinge com a mão erguida (Andrade: 2002, 280).

Para além destes aspectos, que podem ser classificados como materiais, Mário de

Andrade estudava e escrevia sobre o que pode ser denominado de aspectos religiosos,

na análise interna. Ainda no início das pesquisas realizadas em Natal, ele escreve na

crônica do dia 22 de dezembro:

Agora vou fazendo algumas comunicações sobre a feitiçaria daqui. (...) A feitiçaria brasileira não é uniforme não. Até o nome das manifestações dela muda bem dum lugar pra outro. Do Rio de Janeiro pra Bahia impera a designação “macumba”. As sessões são chamadas de macumba e os feiticeiros e demais assistentes, às vezes, são os macumbeiros. Os feiticeiros, “pais-de-terreiro”, realizam as macumbas e invocam os santos, etc. Já no norte as sessões são “pajelanças” e é frequentíssima a palavra “pajé” designando o pai-de-terreiro, assim como o canto invocado. Se vê logo as zonas onde atuaram as influências dominantes dos africanos e ameríndios. Do Rio até a Bahia, negros; no norte os ameríndios. Os deuses, os santos das macumbas são todos quase de proveniência africana. No Pará quase todos saídos da religiosidade ameríndia. O nordeste, de Pernambuco ao Rio Grande do Norte pelo menos, é a zona em que essas influências raciais misturam. Palavras, deuses, práticas se trançam. Em Pernambuco inda a influência negra é fortíssima. Aqui no Rio Grande do Norte quase nula (Andrade: 2002, 216).

Nessa crônica, ele se aproxima do sincretismo religioso, traço marcante do brasileiro.

Nos dias seguintes aprofundaria essa visão nas crônicas jornalísticas publicadas no

Diário Nacional:

Era muito curioso estudar as maneiras com que a religião católica se misturou a essas manifestações. E eu não posso porque não sei bem do assunto. Principalmente a feitiçaria, nortista, Pará, Amazonas, inda é muito ignorada. A feitiçaria brasileira anda completamente impregnada de catolicismo pelo menos do Rio até aqui. Nas macumbas os santos católicos chegam a tomar nomes de deuses africanos. Já falei nisso, numa nota apensa ao canto de Xangô que dei no meu Ensaio sobre a Música brasileira (ed. Chiarato, S. Paulo). Xangô é o deus do trovão entre negros Jorubas e (não tenho minhas notas à mão) creio que é S. Jorge nas macumbas. No Rio de Janeiro, me informou Pixinguinha, Oxum, uma das três Mães-d’água, é Nossa senhora da Conceição. Aqui no Rio Grande do Norte essas identificações rebarbativas desaparecem. Nem os santos católicos, nem o próprio Diabo (Exu) aparecem sob outros nomes “desmaterializados”. O catimbó não os invoca e apenas reconhece o poder deles (Andrade: 2002, 221).

Um momento significativo dessa viagem etnográfica é o ritual de “fechamento de

corpo”, que Mário de Andrade faz pouco antes da virada do ano. Essa descrição vale

uma crônica inteira, publicada no jornal. Também outra crônica relevante, nesta

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questão, trata da entidade catimbozeira de Mestre Carlos, denominação comum para

os chefes de catimbó. Mestre Carlos foi o mestre que “aprendeu sem se ensinar”,

como diz o autor. De acordo com a crônica, Carlos era um menino de 12 anos, filho

do feiticeiro Inácio de Oliveira, catimbozeiro, que resolve se iniciar nas feitiçarias:

Porém Carlos “aprendeu sem se ensinar”. Um dia o pai saiu de casa, Carlos com 12 anos apenas, penetrou no “Estado”(sala onde realizam as sessões), tirou os objetos imprescindíveis de invocação e saiu com eles. Foi num mato de juremeiras e iluminado por uma presciência maravilhosa, conseguiu abrir uma sessão sozinho e invocar um mestre. Logo “caiu no santo”, quem sabe o que fez com o santo no corpo e no fim, como em geral sucede, quando o mestre invocado se “desmaterializou” outra vez, caiu desacordado. O pai chegou em casa, Carlinhos nada de voltar. No dia seguinte a inquietação principiou. Andaram campeando o menino por toda parte e no outro dia seguinte, Inácio de Oliveira desesperado, reuniu gente e fez uma sessão. Quando caiu em transe, que Mestre entrara no corpo dele? Nada menos que Mestres Carlos, o menino mestre, tirando um canto novo, cuja melodia já possuo (...) Campearam o corpo dele e acharam logo o mortinho na raiz do juremal50 (Andrade: 2002, 223).

Na continuação da mesma crônica reproduz a citada letra da canção dada por Mestre

Carlos. Mário de Andrade trabalha aqui com a jurema, que aparecerá também em

alguns poemas, o que mostra semelhança com a primeira viagem etnográfica, quando

o escritor modernista usava o real para transpô-lo em crônicas e poemas, ou seja,

criação literariamente, como já observamos. No dia seguinte, 28 de dezembro,

“última sexta-feira do ano, apesar do dia ser par, era muito propício pra coisas de

feitiçaria”, resolve participar de um ritual de “fechamento de corpo”, em um

Catimbó em Natal. Ele narra a experiência:

Agora a cerimônia acabou. (...) Não tem mais malefício nem da terra nem das águas que meus pés pisaram. Não tem mais malefício nem da terra nem das águas, nem de por baixo da terra nem dos ares que me venham atentar, estou de corpo fechado. Mestre Xaramundi desceu pela rama da jurema, limpador de matéria (corpo) e me alimpou. Mestre Felipe Camarão, heróico, Camarão “combatedor”, “vingador”, “sanguinador” e graças a Deus! “vencedor” e brasileiríssimo, me tomou sobre proteção dele. E a bonita Nanã-Giê, curandeira, que trabalha no fundo do mar me... veronafizou pra todas as gripes e mais doencinhas da garoa paulista. E Mestre Carlos, o “flor da noite”, rei Iaiá e rei Nanã, o “que aprendeu sem se ensinar”, esse, com 12 anos desmaterializados, pernambucano filho de amazonense, esse safadinho e brincador, único mestre que é permitido rir nas sessões, Mestre Carlos é que protege pra todas as horas de todos os dias o brasileiro que vos escreve agora (Andrade: 2002, 224).

Em seguida, justifica:

Não sei... É impossível descrever tudo o que se passou nessa sessão disparatada, mescla de sinceridade e de charlatanismo, ridícula, dramática, cômica, religiosa, enervante,

50 A jurema (Pithecolobium torti) é uma planta típica das regiões agreste e caatinga do Nordeste brasileiro, utilizadas em rituais religiosos. Algumas descrições apontam que a planta possui poderes alucinógenos. Para mais detalhes, ver: Prandi, 2001.

138

repugnante, comovente, tudo misturado. E poética. Sou obrigado a confessar que agora, passados os ridículos a que me sujeitei por mera curiosidade, estou tomado de lirismo, vou me deitar matutando com Nanã-Giê, marvada! Ficou um momentinho só na minha frente e foi-se embora, sarará, corada, boca de amor, corpo de bronze novo... Foi-se embora bem depressa talqualmente uma mulher (Andrade: 2002, 224).

Logo depois discorre sobre a cerimônia, revelando temor por uma possível

descriminação e perseguição policial. Narra o processo do cerimonial e chama a

atenção para aspectos do sincretismo religioso, como “na pessoa de Jesuis, Santa

Luzia” (p. 225). Fala ainda de aspectos ligados à música, como ritmo, instrumentos,

refrãos cantados, charutos e fumos, velas, e do comportamento dos Mestres. Narra a

tentativa de abrir a sessão com Agissé, irmão de Manicoré, que invocavam. E fala de

cada uma das entidades que apareceram para fechar o seu corpo. Faz alusão à

Macunaíma: “como mostrei na cena da macumba do Macunaíma, felizmente todos os

sacrifícios impostos pelo santo que chega, são executados... sobre o próprio corpo

que o santo entrou” (p. 226).

Finalmente, conclui o relato e a crônica:

Foram-se embora e veio afinal o complacente Mestre Carlos que já contei, e o fechamento do meu corpo se acabou por ele e pela bonita Nanã-Giê que ele chamou por não ter império sobre os malefícios da Aua. Foram bonitezas e ridículos, cantos e rezas e quase duas horas imperceptíveis de sensações e divertimentos pra mim. Preço: 30 mil-réis (Andrade: 2002, 27).

Talvez seja essa a crônica mais longa dessa viagem etnográfica; é documento rico em

detalhes da experiência religiosa pelo qual passou o escritor modernista, possuidor de

uma “consciência convictamente católica”, como ele assinalou no início da crônica.

O Catimbó continuaria presente em suas crônicas. Cerca de um mês depois, retoma a

temática, ao contar histórias de outros “santos do catimbó”:

Caruará é um pajé do Amazonas benfazejo. Antônio Caboquinho da Jurema, feiticeiro e pagão. Não foi batizado, e quando vivo era absolutamente incréu. Especialista em questões e até brigas corporais. Tanto as resolve como fomenta. É bugre de Mato Grosso. Certas feitas se enraivece tanto nas sessões que o pessoal todo foge, com medo dele. Se enraivece porque é desconfiado que nem mineiro e briguento que nem brasileiro na pinga. Já tem se batido com outros espíritos, com o Príncipe da Jurema, com Mestre Carlos e com a Tapuia Caipora. Às vezes vence. Uma feita massacrou um mestre em sessão (Andrade: 2002, 269-270).

Em seguida, continua a descrição de outras entidades religiosas. Através de outros

exemplos, reforça a importância do contato, observação participante e análise, que

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realizou nessa viagem. A questão religiosa será desenvolvida posteriormente em Na

Pancada do Ganzá, no livro Música de Feitiçaria no Brasil.

Outra classificação temática da segunda parte do livro diz respeito à criação literária,

bem menos presente nessa segunda viagem. As crônicas são descritivas de suas

atividades cotidianas de observação e pesquisa da cultura brasileira, e tem menos da

escrita literária. Entretanto, merece menção o relato de Mario de Andrade do encontro

com uma mariposa, tema semelhante ao da borboleta, narrado na primeira viagem:

Facilitou enormemente a conversa futura o aparecimento duma grande mariposa. Era um exemplar lindíssimo, por sinal, toda em pelúcia parda com aplicações de renda de Veneza. Dessas eu já conhecia, aliás, porque uma senhora, vizinha nossa na rua Lopes Chaves, possui um casal no jardim. E nas correrias pra pegar a mariposa ela nos apresentou uns aos outros e depois da janta nos ofereceu uma reunião ao ar livre (Andrade: 2002,188).

Embora breve, não é possível negar a repetição de um tema, tudo indica, caro ao

escritor, que em momentos distintos faz narrativas mágicas desses insetos. Mais tarde,

próximo ao fim da viagem, Mário de Andrade escreve, em estilo semelhante, sobre

uma situação envolvendo uma aranha:

E fiquei em presença da aranha outra feita. Olhei pro lugar dela, não a vi. Foi-se embora, imaginei. De-repente via a aranha mais adiante. Está claro que a inquietação redobrou. De primeiro ela ficara enormemente imóvel, sempre no mesmo lugar. Agora estava noutro, provando a possibilidade de chegar até meu sono sem defesa. Pensei nos jeitos de mata-la. Onde ela estava era impossível, quarto alto, cheio de frinchas e de badulaques, incomodar os outros hóspedes, fazer bulha. A aranha deu de passear, eu olhando. Se ela chegar mais perto, mato mesmo. Não chegou. Fez um reconhecimentozinho e se escondeu. Deitei, interrompi a luz e meu cansaço adormeceu, organizado pela razão. Faz pouco abri os olhos. A aranha estava sobre mim, enorme, lindos olhos, medonha, temível, eu nem podia respirar, preso de medo. A aranha falou: - Je t’aime (Andrade: 2002, 274).

Dentro da criação literária, por vezes escreve crônicas que se aproximam do papel

clássico de narrador. Um exemplo ocorre no dia 24 de janeiro de 1929, em Natal, por

influência do amigo Câmara Cascudo:

Luís da Câmara Cascudo, além do mais, é uma crônica viva das tradições norte-riograndenses. Me falou hoje sobre uma que vai se perdendo, a dos curadores de cobra. Verdade por mentira o certo é que faziam proezas incríveis. Um desses curadores, popular no Estado foi o negro Gambeu, indivíduo troncudo, varapau, sempre se rindo. Muita gente saiu da morte com os sortilégios dele. Como todos os curadores, jamais matava cobra por matar. Até fazia criação delas e não viajava sem carregar num cabaça em elenco de cascavéis e jararacas. As de mais estimação traziam enfeites, campainhas feitas com dedal e cabeças de alfinete e mesmo às vezes um laço de fita (Andrade: 2002, 269).

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E emenda narrando outro causo, do paraibano Bento, que se recusava a matar cobras,

afirmando:

– Curador que vive de cobra não deve fazer mal a elas... Pau se vinga quanto mais os bichos! (...) Ficou célebre dele acura dum cavalo. O animal já estava estrebuchando, mordido por jararaca. Bento chegou maneiro, cuspiu na boca do cavalo e berrou: – Levanta, preguiçoso! Não sei... o cavalo parou de estrebuchar, fincou as patas no chão, fez esforço... Daí a pouco estava andando com os outros (Idem).

Observamos os reflexos do narrador benjaminiano, já discutidos, quando narra as

histórias recebidas de terceiros. Nessa mesma perspectiva, alguns dias depois conta

uma história envolvendo um milagre de “nosso padrinho padre Cícero de Joazeiro”.

Certa vez, ajudara a carregar uma árvore pesada para uma prensa de algodão. De

primeira, trinta homens não conseguiram carregar a árvore, mas com a presença e

ordens de padre Cícero, apenas vinte conseguiram realizar o feito. Conclui a

narrativa: “Aquela gente e quem me contou o caso falam que foi milagre de nosso

padrinho” (Andrade: 2002, 278).

Pelo viés de narrativas literárias, mais no início da viagem há histórias recontadas por

Mário de Andrade, que as transmitia conforme ouvia. Exemplificamos com história

ouvida no Rio Grande do Norte e transcrita em 17 de dezembro de 1928, sobre um

casal que ficara nove anos separado, por birra envolvendo uma ida da esposa ao

Pastoril. Ela foi sozinha, e o marido, que não quis acompanhá-la e tampouco buscá-la,

separa-se dela por 9 anos, pois ela se recusa em retornar à casa. Durante esse tempo

todo, o marido tocou a vida no engenho, sem nada alterar no local, nem mesmo os

sapatos e vestido abandonados pela esposa, que ali permaneceram tal qual ela os

havia deixado. Quando a esposa retorna, e pede licença para entrar, o marido

responde: “A senhora não carece de pedir licença nesta casa”. E Mário de Andrade

conclui assim a narrativa:

Não houve uma explicação, uma recriminação, nada. Dona Clotildes entrou meio ressabiada. Foi até o quarto. O vestido caseiro dela, aquele, meu Deus! Faziam nove anos, estava até jogado com raiva de atravessado na cama. Os sapatos, mesma coisa, no chão, sem alinhamento. Quarto o mesmo. Ar, o mesmo. E nove anos passados. Dona Clotildes trocou de roupa, eram momento de comer, mando agora a moça-feita da negrinha botar tudo na mesa. Ceiaram. Trocaram as palavras quotidianas, quer isto? Quer aquilo?, quero, não quero não, dormiram, se levantaram, etc (Andrade; 2002, 209).

Além desses momentos, mais próximos da narração propriamente dita, a viagem

também serve, em menor grau, para o exercício da poesia. No dia 10 de dezembro,

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quando navegava pelo Atlântico, mantém contato com outra passageira, Laura Moura,

e publica um poema na sua crônica diária no jornal. O poema é significativo por ser o

único publicado no livro referente à segunda viagem etnográfica. Dentro ainda do

espectro da criação literária, pouco antes desse episódio, registra outra crônica, em

homenagem à Delmiro Gouveia, o grande cearense, em que retrata passagens de sua

vida e ações no Nordeste. Cearense, funda uma fábrica e uma cidade no interior de

Alagoas.

Estes foram alguns aspectos, dentre outros tantos não explorados, que foram

retratados aqui com a intenção de mostrar o que Mário de Andrade olhava, vivenciava

e narrava nas suas viagens etnográficas e como reverberaram posteriormente em suas

vertentes de homem pesquisador e homem público.

Agora que já observamos O Turista Aprendiz, podemos passar para a análise do

projeto Na Pancada do Ganzá que refletirá muito do que já foi exposto por aqui.

Sobretudo porque institucionalizaria uma preocupação que, antes era do indivíduo e

cidadão Mário de Andrade, mas que a partir do Departamento de Cultura passa a ser

do Estado brasileiro.

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Capítulo 4 – Na Pancada do Ganzá

Acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938. Centro Cultural São Paulo

Acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938. Centro Cultural São Paulo

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A proposta fundamental deste capítulo é aprofundar a análise dos livros escritos a

partir das duas viagens etnográficas. Tenta, portanto, ser uma síntese da visão que o

autor construiu da cultura brasileira. São quatro livros, publicados postumamente:

Música de Feitiçaria no Brasil, Os Cocos, As melodias do boi e outras peças e

Danças dramáticas do Brasil. Tais livros constituem o projeto Na Pancada do Ganzá,

batizado pelo próprio autor com esse nome.

Os livros foram organizados por Oneyda Alvarenga a partir de instruções e pastas

montadas pelo escritor. A organizadora esclarece que as obras têm diferentes níveis

de preparação. O mais avançado, para publicação em livro, ou “o único em forma

positivamente definitiva” era Danças Dramáticas do Brasil (Alvarenga: 2002b, 28).

Foram publicados paulatinamente conforme avançavam os trabalhos da organizadora,

no projeto de publicação das Obras Completas de Mário de Andrade.

Alguns dos estudos que formam essa obra já haviam sido publicados pelo escritor em

crônicas jornalísticas, artigos e ensaios em revistas especializadas, além de proferidos

em conferências. Exemplificamos com a conferência Música de Feitiçaria no Brasil,

realizada em 1933 para a Associação Brasileira de Música, que possui o mesmo título

do livro. Também com A calunga dos maracatus, escrita para um congresso

organizado por Gilberto Freyre, intitulado 1º Congresso Afro-Brasileiro e incluída

nos estudos das Danças Dramáticas do Brasil.

São trabalhos elaborados com material recolhido diretamente por Mário de Andrade

em suas andanças pelo Brasil (não só nas viagens etnográficas, mas sobretudo nelas) e

também obtido nas trocas mantidas (por correspondência ou não) com outros

intelectuais e pesquisadores da cultura brasileira. O que registramos é a contribuição

do escritor modernista para o pensamento social brasileiro, a partir do campo da

cultura e suas manifestações artísticas. Em outras palavras, sua faceta de intérprete do

Brasil.

O material desenvolvido nesse projeto faz parte do trabalho mais inteligível do autor,

aprimorado e burilado por ele, a partir de seus estudos e escritos. Pretende-se

compreender melhor o papel do escritor modernista como homem pesquisador.

Subsidiam essa proposta alguns estudiosos da vida e da obra do modernista, como

144

Antonio Candido (em entrevista já citada), que aponta essa importante vertente em

Mário de Andrade.

Há espaço de pesquisa, por esse viés: observar como o autor modernista se empenhou

para compreender a cultura do povo, transformando-a em bem coletivo, pertencente a

todos os brasileiros. Tal transformação tem início com esse projeto de estudos das

manifestações culturais e artísticas brasileiras, ocorrida como desdobramento das

viagens etnográficas. Também culmina em sua ação política, nos projetos

desenvolvidos posteriormente no Departamento de Cultura, na vertente de homem

público.

De acordo com Oneyda Alvarenga, em Os Cocos (2002a), o próprio Mário de

Andrade pretendia transformar o projeto em livro, ou melhor, em 3 livros distintos,

assim subdivididos: Língua e poesia, no primeiro volume, Música, no segundo, e o

terceiro e último dividido em Documentação/ I Os Cocos/ II As Danças Dramática/

III Melodias do Boi/ IV Catimbó/ Melodias de Vária Espécie. Como sabemos, as duas

primeiras partes não foram publicadas. Apenas o último volume foi publicado, em

quatro livros diferentes e independentes entre si. Mas a introdução ao livro Na

Pancada do Ganzá foi escrita pelo autor, que nela defende a ideia de estudos sobre o

Brasil, quase como um projeto amoroso:

É certo que, depois de realizada a colheita, ela dirigiu em grande parte o caminho das minhas leituras. E destas, surgiram as notas que guarnecem o livro. Mas porém com essas críticas, exemplos, variantes, ligações, não pretendi fazer obra de etnógrafo, nem mesmo de folclorista, que isso não sou: pretendi foi assuntar, atocaiar com mais garantias a namorada chegando. Se acaso algumas constâncias me interessaram mais, se alguma nova eu terei fixado, foi sempre por essa precisão que tem o amante verdadeiro, de conhecer a quem ama. Não tanto para compreender o objeto amado em si mesmo, como pra se identificar com ele e milhormente poder servi-lo e gozar. Eu digo que, apesar de todas as notas ajuntadas pra esclarecer ou facilitar o caminho dos estudiosos, este livro não chega a ser uma obra de estudioso, porque é por demais obra de amor (Andrade: 2002a, 388).

Para isso, Mário de Andrade firmou contato com a cultura do povo e trabalhou muito,

conforme escreve:

Recolhendo e recordando estes cantos, muitos deles tosquíssimos, precário às vezes, não raro vulgares, não sei o que eles me segredam que me encho todo de comoções essenciais, e vibro com uma excelência tão profundamente humana, como raro a obra-de-arte erudita pode me dar. Não sei que apelo tradicional me leva, que coincidência de afeto, de corpo, de esquecimento de mim; sei mas é que em vão reconheço este e outro defeito nos cantos. Eles me comovem mais que nada e eu me identifico com eles numa

145

Einfuehlung perfeitíssima. Necessária. Como devem ser necessários todos os gestos humanos (Andrade: 2002a, 388).

A duas citações são necessárias, porque deixam claro que o intuito de Mário de

Andrade com Na Pancada do Ganzá é, antes de tudo, uma expressão de empatia com

seu país, especificamente nas manifestações populares, culturais e artísticas. Ainda

que não tenha finalizado seus estudos, eles fazem parte de uma das tentativas mais

originais de entender o Brasil.

Isso posto, uma das teses deste trabalho consiste em perceber Mário de Andrade como

um dos fundadores do pensamento social brasileiro, depois desenvolvido, a partir da

década de 30, por pensadores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e

Caio Prado Jr., entre outros. É a partir dos anos 30, com esses nomes, que o Brasil

produz efetivamente, ancorado em critérios razoavelmente sistematizados e

científicos, estudos sociais. Mário de Andrade manteve contatos com Gilberto Freyre

e Sérgio Buarque de Holanda, ainda que tenha divergido e se distanciado de Freyre.

O modernista já ensaiava trabalhar em projetos sobre a cultura brasileira desde as

viagens etnográficas. Em 1933, em carta a Manuel Bandeira, comenta sobre o

trabalho que estava realizando com o material coletado nas viagens. Abandona esse

trabalho pelos compromissos assumidos com o Departamento de Cultura. Também

reduz sua produção literária, com exceção da obra poética.

Oneyda Alvarenga conta que, em 1935, o escritor lhe diz que está trabalhando em

“bailados nordestinos” embora, logo após, postergue a execução desse trabalho para

assumir o cargo institucional. Assim, sabe-se que, entre os anos 1933-35, trabalhou

em Na Pancada do Ganzá, escrevendo uma introdução e armazenando os rascunhos,

para retomada posterior, como também fizera com os esboços d’O Turista Aprendiz.

Durante a estadia no Rio de Janeiro, após deixar o cargo público, em várias

oportunidades comentou com amigos a impossibilidade de ali trabalhar, sem sua

biblioteca - livros, fichários e documentos – o que o obrigava a parar a pesquisa sobre

a cultura brasileira. Quando assumiu o cargo institucional (1935), portanto, deixou o

projeto e não mais voltou aos estudos do material coletado nas viagens etnográficas.

146

Oneyda Alvarenga, na Explicações, do livro Os Cocos, explica o processo de trabalho

do homem pesquisador:

...da época da colheita nordestina até 1933, Mário de Andrade se ocupou em passar a limpo e ordenar os resultados das pesquisas; e em munir-se de muita leitura sistemática para estudá-los, registrada numa “Bibliografia” de trabalho iniciada em 23 de agosto de 1929, já descrita em minha introdução às “Danças Dramáticas do Brasil”. O exame do material também me demonstrara que os escritos para o “Na Pancada do Ganzá” só começaram em 1934, data que as “Cartas” a Manuel Bandeira garantem (p.317), que é a primeira inscrita na introdução às Danças Dramáticas, é a dos “Congos” e da comunicação sobre “A Calunga dos Maracatus” enviada ao 1º Congresso Afro-brasileiro reunido no Recife nesse ano. Na verdade, todos os estudos existentes devem ter sido elaborados em 1934-1935. A data mais avançada encontrável nas “Cheganças”, 1939, representa talvez a da sua revisão final. Entretanto, houve um princípio de trabalho escrito em 1930, pois nesse ano Mário publicou um artigo sobre Pastoris, equivalente a um trecho do estudo inacabado que sobre eles deixou (Alvarenga: 2002a, 11-12).

A citação importa por mostrar datas significativas no processo de trabalho de Mário

de Andrade no projeto Na Pancada do Ganzá. O congresso a que Oneyda Alvarenga

se refere foi organizado por Gilberto Freyre em Recife, no ano de 1934, entre os dias

11 e 15 de novembro, para o qual o escritor modernista colaborou com um artigo, A

calunga dos maracatus. Enviou o trabalho para publicação, mas não participou das

sessões. O estudo foi incluído em Danças Dramáticas do Brasil.

Alvarenga, em outra passagem da mesma “Explicações”, também comenta o porquê

do ganzá no título do projeto de Mário de Andrade:

Eis aí como o instrumento tão difundido no Nordeste, passou de símbolo verbal do conteúdo do livro. Na escolha de ambos, ganzá desenhado e ganzá título, suponho que esteja implícita a admiração pelos cantadores de Cocos e em especial uma homenagem, consciente ou não, ao coqueiro potiguar Chico Antônio, alvo da mais calorosa admiração de Mário de Andrade (Alvarenga: 2002a, 9).

Ganzá é o instrumento básico para os cocos nordestinos, responsável principal pelo

acompanhamento da música e pela marcação de seu ritmo. Mário de Andrade recebeu

esse instrumento musical do cantador que tanto admirava, Chico Antônio, quando ele

se despede do poeta modernista que partia do Rio Grande do Norte. É, possivelmente,

o mesmo objeto que se encontra no acervo de Mário de Andrade no IEB-USP.

Também já citamos as crônicas dedicadas ao coqueiro, publicadas no Diário

Nacional, além de outro artigo publicado no periódico de Natal, A República. Ainda

de acordo com Alvarenga (2002a), em 1944, o escritor, quando assina a coluna

147

Mundo Musical na Folha da Manhã, publica 12 notas sobre o coqueiro. Tais fatos

mostram as reverberações das viagens etnográficas em outras produções do escritor

modernista, em trabalhos mais racionalizados e sistemáticos.

Com esse trabalho mais inteligível (no sentido de estudo sistemático), Mário de

Andrade quase se estabelece como folclorista, pela preocupação com os registros das

práticas populares tradicionais, embora nunca se tenha colocado como tal. Em O

Turista Aprendiz (2002) ele é taxativo:

Já afirmei que não sou folclorista. O folclore é hoje uma ciência, dizem... Me interesso pela ciência porém não tenho capacidade pra ser cientista. Minha intenção é fornecer documentação pra músico e não, passar vinte anos escrevendo três volumes sobre a expressão fisionômica do lagarto... (Andrade: 2002, 206).

Oneyda Alvarenga (2002a) ressalta que Mário de Andrade defendia a precisão de

conhecer para amar melhor (p.17), aproximando-se da figura do cientista (pensado

aqui como aquele que desenvolve método e sistematização de análise de seu objeto de

estudo). Ela desenvolve sua argumentação:

Pelo que se sabe de Mário de Andrade na época de sua maior atividade como pesquisador de folclore, seu interesse residia então, antes de mais nada, em obter documentos musicais populares que ajudassem os compositores brasileiros a fixarem as bases nacionais da nossa música artística. Suas pesquisas começaram como um trabalho fundamentalmente de músico que não pretendia considerar-se folclorista (Alvarenga: 2002a, 16).

O cuidado com a sistematização de dados é muito presente nos livros publicados em

Na Pancada do Ganzá, preocupação ainda mais definida a partir do contato com o

casal Lévi-Strauss, e que resultariam na criação da Sociedade e Etnologia e Folclore.

Na Introdução ao livro Os Cocos, Mário de Andrade volta à questão do amor ao

Brasil e à sua cultura:

Este não é um livro de ciência, evidentemente, é um livro de amor. Estarão sempre muito enganados os que vieram buscar nele a sistemática dos fatos musicais e poéticos do Nordeste. Eu não tive nunca, nem poderia ter pela falta de estudos organizados, a pretensão de ir no rasto dos fenômenos humanos, até aquele fundo profundo que retrata os homens do nosso tempo dentro do esquema das coletividades quase imemoriais. Deus me livre de negar que a ciência seja por sua vez fenômeno de amor, mas “conhecer” no sentido de decidir da Verdade, é um verbo que me assusta um bocado (Andrade: 2002a, 387).

Se o autor negava a intenção de escrever um livro de cunho científico, não é possível

ignorar suas preocupações metodológicas com o registro e coleta de material nas

148

viagens etnográficas, sobretudo na segunda. Alvarenga aponta a precisão de Mário de

Andrade nos dados que registrava:

[Mário de Andrade] anotou lugares, datas circunstâncias de pesquisas, observações sobre os informantes e a qualidade de colaboração deles; grafou melodias e textos com honestidade paciente, controlando seu trabalho por diverso meios e obtendo assim a maior exatidão atingível fora do registro fonográfico, que aliás, nos idos de 1928, não era recurso ao alcance dos nossos estudiosos e nem mesmo dos de outros países (Alvarenga: 2002a, 17-18).

A mesma preocupação o norteava quando “fotava”, durante as viagens etnográficas.

É inquestionável o valor documental e de registro desse material. Como afirma

Alvarenga (2002a), se existem lacunas informativas, elas não comprometem a

“rigorosa validade e importância dos documentos” (p.17). Ela reafirma a

importância da pesquisa:

Realmente, o fruto das pesquisas de Mário de Andrade constitui até hoje o maior e melhor acervo de música folclórica brasileira registrado por um pesquisador sozinho51 e por grafia musical direta. É mesmo possível ir além, dizendo apenas: o único grande acervo, porque se outros houver de tão largo vulto, não abrangerão todo o país e a enorme variedade de seus aspectos musicais (Alvarenga: 2002a, 18).

A pesquisa é realmente pretensiosa. Marta Batista (2004) informa que foram

catalogadas mais de 5000 músicas durante sua estadia pelo nordeste, durante a

segunda viagem etnográfica. Essa pesquisadora lembra que o escritor modernista

sempre mostrou interesse pela criação artística popular (p.25). Elizabeth Travassos

(1997) compara e aproxima o trabalho do escritor modernista ao do compositor Béla

Bartok, que recolheu os cantos populares magiares da Hungria do início do século

XX, com intuito de estabelecer as bases populares da cultura erudita húngara.

Na Introdução ao projeto Na Pancada do Ganzá, Mário de Andrade lembra sua

passagem pela zona da mata pernambucana, quando recolhia uma peça de Bumba-

meu-Boi, e escreve sobre a importância de pesquisar o Brasil e a cultura de seu povo:

Está claro que a peça era horrível de pobreza, má execução, ingenuidade. Mas assim mesmo tinha frases aproveitáveis e invenções descritivas engenhosas. E principalmente comovia. Quando se tem um coração bem nascido, capaz de encarar com seriedade os abusos52 do povo, uma coisa dessas comove muito e a gente não esquece mais. Do fundo das imperfeições de tudo quanto o povo faz, vem uma força, uma necessidade que, em arte, equivale ao que é a fé em religião. Isso é que pode mudar o pouso das montanhas. É mesmo uma pena, nossos compositores não viajarem o Brasil. Vão na Europa,

51 Destacado no original. 52 Destacado no original.

149

enlambusam-se de pretensões e enganos de outro mundo, para amargarem depois toda a vida numa volta injustificável. Antes fizessem o que eu fiz, conhecessem o que eu amei, cantando por terras áridas, por terras pobres, por zonas ricas, paisagens maravilhosas, essa única espécie de realidade que persisto através de todas as teorias estéticas, e que é a própria razão primeira da Arte: a alma coletiva do povo. Teriam muito mais coisa a contar (Andrade: 2002, 388-9).

É clara a intenção de Mário de Andrade ao realizar as viagens etnográficas: deparar-se

com a alma coletiva do povo, através da arte. O escritor não perde a veia crítica,

quando comenta a música ruim, mas exalta a força comovente dessas mesmas

imperfeições. Trata da importância das viagens dentro do Brasil e justifica não tê-las

feito ao exterior, costume usual entre seus colegas modernistas. Como consequência,

ele tem muito mais coisa a contar. Sobre a viagem etnográfica em si, Mário de

Andrade revela na mesma Introdução:

Quando parti para o Nordeste em dezembro de 1928, não tinha a mínima intenção de construir uma viagem etnográfica. Pretendia, sim, recolher cantos populares, e quantos pudesse, porém sem a mais mínima organização. Recolheria os que topasse em meu caminho. Mas realmente o que fazia esse caminho era a ventura de gozar o que já amava de longe, em apoiando nos amigos. E foi de fato a moradia dos amigos que me deu itinerário. Se fui ao Rio Grande do Norte é porque estavam lá Antônio Bento de Araujo Lima e Luiz da Câmara Cascudo. A Paraíba me chamava por causa de Adhemar Vidal e José Américo de Almeida e finalmente iria acabar no frevo carnavalesco de Pernambuco por causa de Ascenso Ferreira e Cícero Dias (Andrade: 2002a, 389).

Destacam-se o papel e a importância dos amigos para a realização da sua viagem.

Mário de Andrade realmente estabelecia uma rede de relações em que a colaboração

dos pares significava muito. Se a intenção de pesquisa não era clara, como afirma

nessa Introdução, ela termina acontecendo sistematicamente. Como relatado por ele,

foram tempos da “semana solteira”, referindo-se a semanas em que apenas

trabalhava, sem tempo para mais nada, nem para o dia santo.

Marta Batista (2004) reitera o intenso período de pesquisa para Na Pancada do Ganzá

entre a volta da viagem ao Nordeste e o início da gestão no Departamento de Cultura,

mais especificamente entre 1929-34. E continuaria posteriormente, quando aprofunda

os estudos teóricos sobre o tema, até 1944.

Entretanto, a partir do rico e extenso material recolhido na viagem sobre as danças populares, sua intenção ultrapassou o fim exclusivo de “fornecer documentação pra músico”, ou para utilizar elementos em sua própria criação pessoal. (...) declarando não ser folclorista, já se mostrava insatisfeito com “viver ao léu das informações”, “querendo ser útil, dando por paus e por pedras e a vaidade”. Assim, para sistematizar o material, que pretendia divulgar em livro com o título imaginado de Na Pancada do Ganzá, mergulha fundo nos estudos do folclore. Amplia e diversifica as leituras

150

anteriores, incluindo novos campos do conhecimento, que lhe possibilitem a compreensão do fenômeno folclórico. Suas leituras sistemáticas abrangem antropólogos, teóricos do folclore, estudos sobre o folclore de outros povos, e aprofundamento de leituras sobre o Brasil. A riqueza de sua pesquisa fica expressa na bibliografia lida, que inicia em 23 de agosto de 1929 e prossegue até o final de sua vida (837 itens, os últimos de 1944) (Batista: 2004, 38).

O homem pesquisador aparece na dedicação aos estudos sobre cultura popular,

antropologia e folclore. A mesma autora informa que Tylor, Frazer e Lévy-Bruhl,

entre outros intelectuais estrangeiros e brasileiros, foram utilizados pelo modernista

para embasar as pesquisas sobre o folclore brasileiro.

As manifestações retratam rituais e práticas mágicas primitivas. O Bumba-meu-boi,

por exemplo, com sua morte e renascimento, representaria a morte e a ressurreição da

vegetação (Batista, 2004). Daí sua posição de manifestação cultural tão significativa

no norte e nordeste do Brasil.

A questão da influência negra na cultura brasileira aparece em observações dos

estudos de Sylvio Romero, Nina Rodrigues e Arthur Ramos (com este manteve

correspondência e discussões sobre trabalhos folclóricos em geral), além de Câmara

Cascudo. Na conferência Música de Feitiçaria no Brasil, Mário de Andrade ressalta

que o povo brasileiro é dado a práticas feiticeiras, de Norte a Sul, ainda que com as

especificidades que caracterizam cada região do país. Além desses autores,

pensadores da cultura brasileira, alguns músicos colaboraram com Mário de Andrade,

no trato da relação entre música e religião. Exemplificamos com Camargo Guarnieri,

Donga e Pixinguinha. O primeiro anotou algumas músicas de candomblé, e Donga

incorporou a macumba em alguns maxixes que compôs e apontou a palavra saravá

(muito usada nos cultos afro-brasileiros) como uma corruptela da palavra “salvar”.

Pixinguinha, “um macumbeiro carioca contumaz” – nas palavras de Mário de

Andrade – compôs o choro Urubatã, com influência do catimbó nordestino (Andrade:

1983, 189).

Nos estudos sobre a religiosidade brasileira, Mário de Andrade descreve a macumba

como fenômeno tipicamente carioca e o candomblé vinculado à Bahia, ambos de

origem negra. E anota que, na região amazônica, esses cultos, com a influência

151

ameríndia, recebem o nome de pajelança: o pajé faz as vezes de pai-de-santo

(Andrade: 1983, 26). Ele comenta:

Seria talvez interessante determinar se a parte africana da pajelança nortista é uma ramificação do candomblé baiano ou antes uma influência da feitiçaria antilhana. Minha opinião é precária, mas é certo que propendo para a segunda hipótese. Cuba influenciou grandemente toda a costa Atlântica da América do Sul, no século dezenove principalmente, tendo como causa principal dessa influência as navegações intercontinentais. Luís da Câmara Cascudo nas suas pesquisas folclóricas escutou a palavras “cuba” empregada como sinônimo de “feiticeiro” (Andrade: 1983, 28).

Nessa breve passagem da conferência, Mário de Andrade usa seus estudos e pesquisas

para discutir as diversas influências culturais formadoras das manifestações artísticas

brasileiras. Sua análise, numa perspectiva inteligível, reforça a vertente do homem

pesquisador da cultura brasileira. Ele também aponta uma possível relação entre as

figuras de Iemanjá (muito importante nas religiões afro-brasileiras) e da cobra-deusa

do Vodu, especialmente na região amazônica. Pensa ainda a possibilidade de

intercâmbio cultural e religioso entre norte e nordeste brasileiro e, assim, o vínculo

entre a pajelança nortista e o catimbó nordestino, oriundo dos fluxos migratórios de

paraenses ao nordeste.

Conclui ser incontestável a influência ameríndia nos dois cultos, e também nos

caboclos baianos, na macumba carioca e no catimbó (onde o papel da jurema é

importantíssimo, e de origem indígena). “Mas o que unifica mais a pajelança, a linha

de mesa, o candomblé de caboclo, e o catimbó, são as práticas de baixo espiritismo,

usadas por todas as feitiçarias” (Andrade: 1983, 31). Para Mário de Andrade, as

feitiçarias nacionais teriam origem africana ou ameríndia, com o sincretismo. E

distribuir-se-iam geograficamente pelo Brasil: Macumba ou Linha-de-mesa (RJ),

Religião de Caboclo ou Candomblé (BA), Xangô (PE e PB), Catimbó (todo o

nordeste), Pajelança (PI e todo o norte), Tambor-de-Mina e Tambor-de-Crioulo (MA)

e Babassuê (PA) (Andrade: 1983, 64). Todas teriam a música como fator essencial

nos seus rituais.

No mesmo ensaio/conferência – Música de Feitiçaria no Brasil – Mário de Andrade

aponta o uso de determinados instrumentos musicais, importantes nos rituais

religiosos de feitiçaria:

152

(...) Daí se infere que a macumba foi primitivamente um instrumento negro de percussão de princípio idêntico ao do reco-reco. Já vimos que a pajelança emprega dois tambores de mina e um ganzá. No catimbó, Câmara Cascudo concorda com o que observei quando escreve que “nalguns o tabaque é ignorado. Cantam cadencialmente com um pequenino maracá”. Entre os índios o maracá é empregado sistematicamente como instrumento de exorcismo pelos caraíbas nas suas cerimônias de cura, pois que consideram a doença um espírito mau que entrou no enfermo, e que carece expulsar. Nos candomblés tanto profanos como religiosos o instrumento específico é um tambor, quer seja batuque, batucajé ou zabumba (Andrade: 1983, 35).

Associa, assim, o uso da percussão ao exorcismo, e os instrumentos de sopro à

invocação, lembrando das barcaças do rio São Francisco e do poder da gaita para os

encantadores de cobras, que usam também instrumentos musicais nos seus rituais. Em

Danças Dramáticas do Brasil (2002b), Mário de Andrade retoma a discussão sobre

instrumentos de sopro e percussão, e esclarece:

O princípio da música nesses cortejos europeus, é nitidamente de encantação atrativa, pois os instrumentos de sopro são mais comumentes empregados como chamamento mágico dum qualquer benefício. Até hoje no Brasil a buzina é empregada por fluviais e marítimos para chamar vento nas calmarias. Já a “música-de-pancadaria”, a percussão, é pra exorcismo dos espíritos maus, do malefício. As batidas, palmas, chicotadas da Klopnacht e outras ocasiões, são práticas claramente exorcisadoras (Andrade: 2002b, 62).

Mais adiante aprofunda a análise sobre o uso do apito nas manifestações artísticas,

para ele uma herança ameríndia:

Já entre os ameríndios o emprego das diferenças espécies de apitos que eles usam, é muito comum nas danças rituais. (...) Buzina ou propriamente apito, está se vendo dum som só pra aviso indicador dos movimentos coletivos de festança. Tudo isso me parece bastante significativo já, embora eu não conheça referencia especial ao uso do apito entre os Brasis, como ritual de início e finalização de danças. Mas na América do Norte, onde o apito está generalizado entre os indígenas, em danças, guerras, feitiçarias, sempre com significação ritual (...). Na África sei apenas que os apitos são usados também durante as danças, que nem entre os Brasis (Andrade: 2002b, 67-8).

Mário de Andrade relembra, ainda, a viagem à região amazônica, em 1927, e fala do

assovio (associado ao apito):

“No Alto Solimões, já entrado no Peru, escutei várias vezes um assovio nascendo do mato denso, enquanto o vaticano vencia a torrente das águas. Era, me falaram, algum índio avisando pra diante que o navio passava” (Andrade: 2002b, 84).

Vale lembrar que, atualmente, na exibição de músicas e danças das escolas de samba

do Rio de Janeiro e de São Paulo, toda a harmonia do conjunto conta com o auxílio do

apito. Mário de Andrade observa o uso desses instrumentos em Congos e Maracatus:

153

O que importa principalmente é notar nos Maracatus a persistência do instrumento de sopro com som forte, buzina ou corneta. Isso é tradicional nos cortejos reais congueses, como indiquei nos Congos. Alguns maracatus tem o costume de acrescentar um zabumba na orquestra cada ano a mais que vive (Andrade: 2002b, 492).

Também disserta sobre o poder curativo da música:

Outro poder mágico da música é o de curar. É mesmo este um dos seus destinos mais generalizados na feitiçaria e não de todo inexato. (...) Os malaios rufam tambores pra curar varíola. Numa cantoria de cordel da nossa gente, o Romance do Cavalo53, esses valores mágicos de cura pela música está (sic) admiravelmente aproveitado e caçoado (sic) com o pobretão esperto que tem uma rabeca que chega a erguer os lázaros da tumba (16,II,109). Combarieu ajunta dezenas de provas desse poder terapêutico da música entre primitivos e Antigos, e mesmo a civilização cristã, tão naturalista e materialista está longe de isentar-se dessa tradição (Andrade: 1983, 48-9).

O escritor analisa a estreita relação entre música e religiosidade, em Música de

Feitiçaria no Brasil (1983), independente de suas origens, seja católica, ameríndia,

africana ou mesmo oriental. Afirma que:

Os primeiros chefes da Igreja cristão ainda legislaram sobre a qualidade moral do cromatismo, dos instrumentos, da enarmonia, e ainda na bula de 1322 o papa João XXII se insurgia contra a rapidez modernista dos cantores de igreja, afirmando com hábil análise, que isso “embriagava os sentidos” (Andrade: 1983, 48).

Associa a lira e as trombetas à(s) divindade(s):

A lira fora descoberta por Hermes com a carapaça duma tartaruga, enquanto Pan, filho dele, inventava com os gomos da cana em que se transformara Sirinx, a flauta de vários tubos, nas margens do Ladão. A mágica música das esferas, que já tamanho lirismo dera aos egípcios, preocupa os próprios hebreus como se infere no livro de Jó e se no Gênese se menciona como distinção especialíssima de Jubal, chefe da raça, ter inventado o quinór e o ugab (Gênese, IV, 21), nos Números é o próprio Deus de Israel que manda Moisés construir trombetas de prata, e lhes atribui função litúrgica, quando sopradas pelos padres, filhos de Aarão (Andrade: 1983, 46).

Genericamente, para Mário de Andrade, todas as culturas e religiões relacionam a

música ao divino. Homero também se refere ao poder encantatório da música quando

narra o retorno de Ulysses à Grécia, e sua astúcia em desviar-se dos cantos sedutores

das sereias. Da mesma forma, a figura da Iara pertence ao mítico estereótipo da

“mulher-peixe”, também presente nas culturas ameríndias.

53 O Romance do Cavalo a que o escritor modernista se refere é um folheto de cordel de Leandro Gomes de Barros, e remete à história fantástica de um cavalo que defeca dinheiro. Foi reapropriada por outros autores, como Ariano Suassuna.

154

O escritor fala de instrumentos mágicos, como os sinos, em culturas como a

dinamarquesa, francesa, inglesa, celta e irlandesa, entre outras. Em outras culturas é a

flauta – mágica – que por vezes seria capaz de ressuscitar mortos, como na Europa e

na Antiguidade Oriental. O caráter divino da música também é apreciado naquelas

culturas de origens indígenas, no Brasil:

Já entre os índios do Brasil, se não existe uma indicação firme de que a música seja de invenção divina, sempre é fácil de verificar que ela faz parte constantemente das forças sobrenaturais. Nas lendas amazônicas se observa que especialmente a flauta membi é tida por salutar e alegradora. O pajé ameríndio, seguindo uma tradição absolutamente universal, não age sem cantoria. Entre os processos de que a Iara se utiliza para matar os índios, o mais visivelmente mágico é o de aparecer cantando. Nas lendas é bastante frequente os bichos ou ente sobrenatural aparecer cantando que nem aquela cotia que cantava “Acuti pitá canhém” – que ninguém sabe o que significa (Andrade: 1983, 46-7).

Além das observações sobre música e religiosidade, o homem pesquisador aborda o

sincretismo religioso do Brasil, principalmente no catimbó, sobre o qual observa:

A sincronização do amerindismo e africanismo religioso que criou os “candomblés de caboclo” tem uma manifestação colhida por [Correa Magalhães], em que Xangô é interpretado como Tupã, ambos deuses do raio, do trovão, o Xangô joruba e o Tupã guarani (Andrade: 1983, 186).

Ainda sobre a religiosidade do brasileiro, aponta que há “sincretismo ameríndio-afro-

católico dos candomblés e dos catimbós e pajelanças” (Andrade: 1983,165). E

pesquisa sobre algumas possíveis origens do catimbó.

Pelo exame dos textos, a procedência amazônica dos Catimbós me parece indiscutível. Houve contato com a macumba não tem dúvida, porém o forte da mitologia catimboseira, é amazônica, a liturgia tem bastante de ameríndia e a música dum no geral dum (sic) lusitanismo, esvaziado de Portugal, quase nada ou nada duma vez respirando da África (a não ser em produtos francamente africanos, dedicados a Mestres afro-brasileiros), tem uma molenguice que evoca uma existência tapuia, uma fusão de portuga e ameríndios (...) Se não é ainda uma completa organização religiosa que nem a Macumba, se o seu rito e seus deuses diferem ainda um tanto, de zona pra zona, é porém o que de mais intimamente nacional deu a nossa religiosidade (Andrade: 1983, 258).

Para ele, então, o catimbó seria a melhor expressão do sincretismo religioso brasileiro.

E estabelece uma relação entre este e o massacre da Pedra Bonita, ocorrida em 1836

no município de São José do Belmonte, interior de Pernambuco.

Também os acontecimentos da Pedra Bonita (1836) têm muita relação com a catimbosice contemporânea. O lugar era chamado “Reino Encantado”, quando nos catimbós os lugares dos Mestres são também reinos, “reino do Juremal”, do “Bom Floral” etc. Também o chefe da sociedade, era chamado de “rei João”. E ainda os fanáticos bebiam uma zurrapa inebriante feita de jurema e manacá, com ela se

155

encorajando pro sacrifício da vida em honra de el-rei Dão Sebastião (Andrade: 1983, 223).

O escritor refere-se ao evento de 1836, no interior pernambucano: quando um grupo

de pessoas se reuniu para promover o retorno do rei português D. Sebastião. O

episódio culmina com a morte de quase todo o grupo e daria origem ao Romance d’A

Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. O ineditismo da análise de Mário de Andrade é

a associação do massacre com o catimbó e com o uso de plantas de poder. Além da

forte relação entre música, feitiçaria e eventos históricos que também é anotada pelo

escritor modernista. Assim descreve a relação entre música e feitiçaria:

E esse é justamente o destino principal da música que a torna companheira inseparável da feitiçaria: sua força hipnótica. Ela, principalmente pela sua forma de manifestar-se pondo em excesso de evidência o ritmo, atua poderosamente sobre o físico, entorpecendo, dionisiando, tanto conseguindo nos colocar em estados largados de corpo fraco e espírito cismaramento, como nos violentos estados de fúria. Santo Agostinho explicava as vocalizações aleluiáticas do Gregoriano, como momentos em que a alma, liberta das suas prisões terrestres, se botava cantando sem palavras, sem consciência, boba, tonta de júbilo ao contato do Senhor. O elemento principal desse poder da música não é propriamente sonoro, é rítmico (Andrade: 1983, 37).

Novamente, relaciona elementos comuns nas músicas de feitiçaria brasileiras e na

música europeia e católica. São essas as três principais matrizes culturais brasileiras.

Destaca o ritmo como fundamental nos rituais.

Nas feitiçarias de origem imediatamente africana, o que predomina é a violência do ritmo rebatido. Um pequeno movimento rítmico é repetido centenas de vezes, de forma a provocar a obsessão. Tornam-se assim as peças de eminente caráter coreográfico. E geralmente são acompanhadas de dança. Ora a dança ainda entontece mais e por isso também é utilizada universalmente por todas as religiões Nem a própria elevadíssima religião católica escapou disso... A chamada Dança Macabra, de que Liszt e Saint Saëns nos deixaram tão fáceis exemplos, hoje ligada à superstição e à magia, no princípio foi uma dança religiosa que se dançou nos templos católicos até o século XV. (...) A coreografia imitativa persiste principalmente em cerimônias propiciatórias. Imita-se a vida do deus, como no primitivo ditirambo grego, ou imita-se o animal de que a tribo imagina. O Canidê-Iune, canto da arara canindé, foi provavelmente um canto coreográfico totêmico. (...) Também se poderá talvez aventar a subsistência dum tal ou qual totemismo nos filhos-de-santo das macumbas e candomblés, por exemplo, nos filhos de Xangô, isto é, filhos-do-trovão (Andrade: 1983, 37-8).

Aponta que as músicas de feitiçaria ultrapassam o espaço religioso, integrando-se à

sociabilidade. Considera que as festas do candomblé têm danças profanas, “simples

sambas dançados à sombras das árvores” (Andrade: 1983, 43) e danças religiosas,

“que se dança dentro de casa” (Andrade: 1983, 43). A dança e a música saem do

religioso e entram no cultural. Analisa o maracatu a partir de sua experiência pessoal

156

e, dialogando com uma descrição de Nina Rodrigues, observa a aproximação entre

essa manifestação profana e a religiosidade:

Quem quer que já tenha assistido a algum maracatu, terá verificado que é exata a observação de Nina Rodrigues sobre a transposição dessa coreografia cerimonial mesmo nas danças profanas. Um maracatu que vi no carnaval pernambucano repetia exatamente essa coreografia descrita por Nina Rodrigues. E aliás, os maracatus nordestinos trazem sempre consigo um feitiço carregado por uma das figuras importantes do grupo. Esse feitiço consiste numa boneca ricamente vestida, e que tem mesmo o nome de “boneca”. Nina Rodrigues não menciona a existência da boneca no candomblé baiano mas Fernando Ortiz dá notícia dela nas feitiçarias de Cuba (Andrade: 1983, 39).

Mário de Andrade, enfim, define como significativo o papel da música nas

religiosidades, quaisquer sejam suas origens.

E é mesmo o seu formidável valor hipnótico que junge a música, desde o mais longínquo passado onde possa penetrar o nosso conhecimento, aos processos de invocação, propiciação e exorcismo das forças sobrenaturais. A música nas feitiçarias e atos mágicos não é apenas empregada como processo de agradar a divindade: é usada como elemento do homem entrar em contato com a divindade, exerce quase o papel do médium espiritista. E mais do que isso, é considerada como uma entidade generosa, litúrgica, que tem a função eucarística de pôr o indivíduo em êxtasis [sic], comungando com deus (Andrade: 1983, 44).

E ainda:

A música é uma força oculta, incompreensível por si mesma. Ela não toca de forma alguma a nossa compreensão intelectual, como fazem o gesto, a linha, a palavra e o volume das outras artes. Por outro lado é a mais socializadora e dinâmica, a mais dionisíaca e hipnótica, especialmente nas suas forças primárias em que o ritmo predomina. Assim, a música é terrível, é fortíssima e misteriosíssima. Mais ainda, ela é divina e não humana, é daimoníaca, e mesmo demoníaca no sentido em que os deuses criados pelos primitivos são mais ruins que bons. E por isso ela se identifica com os demônios; não é uma arte, não é um elemento de prazer, não é uma função imediatamente desnecessária pois que é difícil de se provar que o primitivo (como até o homem do povo muitas vezes) tenha já concebido a beleza do som, como claramente concebeu a beleza da cor e da forma. Por tudo isso, ninguém considera a música como criação humana. Há quase unanimidade entre primitivos e Antigos no atribuir aos deuses a invenção da arte musical (Andrade: 1983, 44).

Na mesma conferência, corroborando sua fundamentação, relaciona música e

divindades em culturas completamente diferentes entre si, como a dos Astecas, da

Índia, Síria, Pérsia, Egito e Grécia. Cita o antropólogo Lévy-Bruhl, sobre o catimbó:

“Também Lévy-Bruhl reconhece que pros Primitivos um som não é jamais um

simples fenômeno natural, mas tem uma potência mística. Pro ‘primitivo não existe

um fato que seja propriamente físico’” (Andrade: 1983, 231).

157

Em Música de Feitiçaria no Brasil (1983), Mário de Andrade também retoma o ritual

de “fechamento do seu corpo”. Aprofunda a descrição ritualística, com detalhes que

não aparecem na crônica publicada à época no Diário Nacional, e tampouco em O

Turista Aprendiz. Ele narra:

O ritmo desse refrão, a monotonia das cantigas molengas, o chique-chique suave do maracá, já principiavam a me embalar, a música me extasiava. Aos poucos meu corpo se aquecia numa entorpecedora musicalidade ao mesmo tempo que gradativamente me abandonavam as forças de reação intelectual (...) Mas o que eu tomava por desânimo do feiticeiro-mor, era antes um já quase estado de hipnose, o que se devia talvez em máxima parte, ao excesso de música entorpecente, e à monotonia dos ritmos batidos e repetidos com insistência maníaca (Andrade: 1983, 37).

Além da intensa proximidade da música com a feitiçaria, apontamos as relações entre

esta e a dança. Mas Mário de Andrade não percebia esse entrelaçamento no catimbó.

Ele continua:

Como eu ia dizendo, as músicas da feitiçaria afro-brasileira não são apenas fortemente ritmadas, como possuem um decisivo caráter coreográfico. Isso já é uma das suas qualidades distintivas. No catimbó as melodias, chamadas de “linha” e não de “pontos” como na macumba, raramente apresentam esse ar de dança. E com efeito, a dança é rara nas sessões de catimbó, nenhuma houve na cerimônia a que estava me sujeitando e os meus colaboradores só mencionara o mestre Pai Joaquim que aparece dançando (Andrade: 1983, 39)

Pai Joaquim é o mesmo do ritual de fechamento de corpo a que se submeteu no Rio

Grande do Norte. Em seguida faz comentários sobre os pontos de macumba

populares, como o de Ogum e o canto de Xangô, explorados por Villa-Lobos (outra

personalidade com quem dialogava) e, posteriormente, na obra de Baden Powell e

Vinícius de Moraes, Os Afrosambas. Avança em sua análise:

A força hipnótica da música é mesmo apreciadíssima do nosso povo, e constantemente ele usa dum processo curiosíssimo, verdadeiro compromisso rítmico-tonal, que consiste em fazer que o ritmo não acabe ao mesmo tempo que a evolução tonal da melodia, o que leva a gente a recomeçar a peça pra que a melodia acabe tonalmente. Em música, se pode dizer que o povo brasileiro já inventou o moto contínuo... explico bem; sobre um texto dado, se fixou um ritmo de ordem exclusivamente musical, que consiste na repetição geralmente de um, ou mais motivos rítmicos. Esta repetição agrupada pelos acentos fixa a binaridade e a quadratura estrófica da melodia. Assim, quando o texto chega ao seu ponto final, o ritmo da melodia também chegou ao seu ponto final. (...) Mas o que a psique nacional deseja é mesmo a repetição, a repetição inumerável que hipnotiza ou embebeda (Andrade: 1983, 41).

A religiosidade, em sua expressão artística, influenciaria a cantoria nacional. Mário de

Andrade relata que o ponto de Ogum e seus princípios de variação seriam usados

158

pelos cantadores do Brasil inteiro, “principalmente os coqueiros de embolada do

nordeste” (p.42). Termina exaltando o ponto de Ogum:

É possível que num disco mal gravado e com maus cantores esta peça não pareça bonita no sentido e-lucevan-le-stelle da boniteza musical, mas este ponto de Ogum é realmente um documento precioso, uma obra-prima como originalidade, caráter afro-brasileiro e ainda como protótipo da música de magia (Andrade: 1983, 43).

Conclui, sobre a relação entre música, dança, religiosidade e povo brasileiro:

Ora eu insisto sobre essa qualidade hipnótica procurada pela nossa música popular. Nossa gente em numerosos gêneros e formas de sua música principalmente rural, cocos, sambas, modas, cururus, etc., busca a embriaguez sonora. A música é utilizada numerosas vezes pelo nosso povo, não apenas na feitiçaria mas nas suas cantigas profanas, especialmente coreográficas, como um legítimo estupefaciente. Da mesma forma que o Huitota ou o neto do Inca decaído traz sempre na boca as folhas de coca, o homem brasileiro traz na boca a melodia dançada que lhe entorpece e insensibiliza todo o ser. Ela não é apenas uma evasão sexual do indivíduo ou uma expressão os interesses sociais do grupo. É um estupefaciente, em elemento de insensibilização e bebedice que provoca, além da fadiga, uma consunção temporânea, e talvez da vida inteira, ai que preguiça!... (Andrade: 1983, 43).

Em resumo, Mário de Andrade aproxima características da música e danças

religiosas, e mostra o ultrapassar dessas fronteiras divinizantes, com a consequente

absorção pela cultura brasileira em geral. Assim, a musicalidade é característica

marcante da cultura brasileira. E, como possivelmente percebido, o fim da citação

retoma a tão cara preguiça de Macunaíma.

O livro analisado, com o mesmo título da conferência, Música de Feitiçaria no Brasil

(1983), continua com a transcrição de músicas – letras e melodias – recolhidas por

ele. São 45 melodias de catimbó, 30 colhidas no Rio Grande do Norte e as outras 15

entre Paraíba e Pernambuco. Outras quatro orações de catimbó foram registradas em

Ubatuba, litoral de São Paulo, e fornecidas por amigos colaboradores. Há ainda cinco

melodias sobre Mestre Carlos, já referidas no capítulo anterior. Apenas uma foi

recolhida no Rio Grande do Norte, o que atesta a abrangência e importância dessa

figura, no Nordeste. Há também melodias sobre Nãnã-Giê, igualmente narrada em O

Turista Aprendiz. E registra 5 melodias de pajelança e macumba.

Na sequência, descreve histórias recolhidas sobre as origens de alguns mestres,

presentes em melodias transcritas no livro. Fornece, dessa maneira, referência para

outros estudos que envolvam música e religiosidade. Aborda mestras como Caapora,

159

Iracema, Rainha da Jurema, Sereia do Mar e Nãnã-Giê, entre outras. E os mestres

Antônio Caboclinho, Mestre Carlos, Felipe Camarão, Manicoré, Gòdique e

Gògideque (irmãos gêmeos indígenas), Príncipe da Jurema, Tabatinga, Tupã. Dá

informações gerais sobre catimbó, como os reinos, as linhas e orações existentes em

cada ritual.

O livro, organizado por Oneyda Alvarenga, traz ainda notas e referências utilizadas

pelo escritor modernista na composição de seus estudos, com esclarecimentos sobre

métodos e sistematizações, o que remete ao trabalho de homem pesquisador.

Essa vertente também se mostra no estudo das Danças Dramáticas do Brasil (2002b),

uma análise da cultura brasileira baseada nessas danças, ou seja, danças que, além de

acompanhadas por músicas, baile e cantorias, trazem na estrutura trechos de dramas

históricos vividos pelo povo. Algumas cheganças, encenadas aqui no Brasil como

parte da herança cultural portuguesa, que tratam das guerras entre cristãos e mouros,

são exemplos dessas danças.

O livro organizado por Oneyda Alvarenga traz o mesmo rigor e seriedade usados nas

outras obras de Na Pancada do Ganzá. Ela esclarece, na sua Explicação do livro de

Mário de Andrade, que as análises realizadas por ele estavam quase prontas para

publicação definitiva, e que 4 versões haviam sido trabalhadas, a última delas

publicada no nº VI do Boletim Latino-Americano de Música, datado como 1934-44.

Ainda de acordo com Alvarenga:

Dos trabalhos de Mário de Andrade sobre os nossos bailados populares, “As Danças Dramáticas do Brasil” é o único em forma positivamente definitiva. Enquanto os originais dos outros estudos que compõem este livro estão acompanhados de várias fichas destinadas ao seu complemento, Mário de Andrade não deixou quaisquer dados novos para inclusão em “As Danças Dramáticas do Brasil” (Alvarenga: 2002b, 28).

Feito o comentário sobre a redação do material publicado no livro Danças

Dramáticas do Brasil (2002b), passamos para a análise do mesmo. Esclarecemos,

inicialmente, o que Mário de Andrade compreende por danças dramáticas e sua

importância para a cultura brasileira.

Reúno sob o nome genérico de “danças dramáticas” não só os bailados que desenvolveram uma ação dramática propriamente dita , como também todos os bailados coletivos que, junto com obedeceram a um tema dado tradicional e caracterizador,

160

respeitam o princípio formal da Suíte, isto é, obra musical constituída pela seriação de várias peças coreográficas (Andrade: 2002b, 71).

Diferente da obra anteriormente analisada, esta se volta para observações a respeito

das danças e para aspectos históricos e sociais representados pelos bailados.

Uma das manifestações mais características da música popular brasileira são as nossas danças dramáticas. Nisso o povo brasileiro evolucionou bem sobre as raças que nos originaram e as outras formações nacionais da América. Possuímos um grupo numeroso de bailados, todos eles providos de maior ou menor entrecho dramático, textos, músicas e danças próprias. E se me fatiga bastante, pela precariedade contemporânea, afirmar que o povo brasileiro é formado das três correntes: portuguesa, africana e ameríndia, sempre é comovente verificar que apenas essas três bases étnicas o povo celebra secularmente em suas danças dramáticas. É curioso constatar que jamais o brasileiro não tivesse a ideia de inventar pelo menos um bailado, se referindo historicamente a ele, aos seus fastos, glórias e tradições. Nem as tragédias da colonização que durou quase dois séculos, nem os dramas da catequese, nem a própria volúpia aventureira do bandeirismo (...), nem mesmo a guerra do Paraguai que vincou fundo a memória coletiva e até agora frequenta o nosso verso cantado: nenhuma dança dramática celebra esses feitos (Andrade: 2002b, 31).

Ou seja, as 3 matrizes culturais são as responsáveis por fornecer bailados e danças

tradicionais do Brasil, com menos mistura/sincretismo que na música. Outro ponto

destacado pelo escritor é o fato desses bailados pouco se referirem à história

brasileira. Remetem mais às culturas que nos formaram e menos, especificamente, à

cultura brasileira.

Também não descarta a relação existente entre os componentes religiosos e místicos

das danças dramáticas, mesmo quando seus enredos não versam sobre o tema. As

datas em que, costumeiramente, são realizadas já trazem essa característica. Mário de

Andrade anota:

A minha convicção é que pelos fins do século XVIII todas essas danças características tiveram uma floração extraordinária no seio do povo e se normalizaram em suas datas festivas, sobretudo Natal a Carnaval, e com os santos populares de junho – tempo aliás já multisseculares e pagãos de festas, com os solstícios de verão e inverno (Andrade: 2002b, 72-3).

Como em todo o mundo, independente da cultura, são essas as datas em que se

realizam as festas. Exatamente por isso Mário de Andrade realizou as viagens

etnográficas nessas épocas. Ele complementa:

As Maias, as Janeiras, o São João, o Dia de Todos os Santos, apesar de toda a luta que o Cristianismo empenhou contra isso na Europa, continuam profundamente paganizados até agora. O meio mais hábil de que a Igreja se serviu pra destruir os cortejos e

161

cerimônias pagãs destas datas, foi convertê-los a elementos do próprio Cristianismo, o que é sabido (Andrade: 2002, 38).

A cristianização das festas pagãs também foi obras dos jesuítas, que substituíram as

comemorações por procissões religiosas. Interessados na conversão religiosa dos

nativos, autorizam-nos a participar das cerimônias religiosas europeias e católicas.

Caminha, na carta ao Rei de Portugal, comenta a participação dos índios na primeira

missa realizada em solo brasileiro.

Quanto às origens das danças dramáticas, Mário de Andrade aponta para o teatro

ibérico, onde também está presente a relação entre o sagrado e o profano.

Não será talvez difícil compreender essas origens religiosas primitivas das nossas danças dramáticas, mas será sempre bastante complicado determinar as influências técnicas diversas que a constituíram. Está certamente as primeiras destas influências aquele teatro religioso semipopular ibérico, de que se destacou depois o teatro profano da península. (...) Esse teatro, popularesco, adaptado às exigências psíquicas do povo, não porém diretamente popular, se especializou em Portugal (Andrade: 2002b, 36).

O escritor refere-se a importância dos autos, onde a representação é maior do que no

bailado, para o estabelecimento das danças dramáticas brasileiras. Foi parte da

estratégia dos padres jesuítas na catequese dos índios, repletos que eram de “dramas

religiosos mesclados de canto e dança”. Em síntese, Mário de Andrade aponta três

tradições básicas do qual derivaram as danças dramáticas brasileiras:

1) o costume do cortejo mais ou menos coreográfico e cantado, em que coincidiam as tradições pagãs de Janeiras e Maias, as tradições profanas cristãs das corporações proletárias e outras, os cortejos reais africanos e as procissões católicas com folias de índios, pretos e brancos. 2) Os Vilhancicos54 religiosos, que nossos Pastoris, bem como as Reisadas portugas, são ainda hoje formas desniveladas popularescas. 3) Finalmente os brinquedos populares ibéricos, celebrando as lutas de cristãos e mouros (Andrade: 2002b, 39).

E continua a análise: “Quanto à inspiração fundamental delas, é de fonte mágica e

religiosa, tanto pagã como cristã em seguida, baseada principalmente no pensamento

elementar de Morte e Ressureição dum qualquer benefício” (Andrade: 2002b, 39).

Como já citado, a relação entre morte e ressurreição está presente na importante dança

dramática Bumba-meu-Boi. Simultaneamente, representam os ciclos de fertilidade e

germinação da natureza, celebrados nas festas pagãs.

54 Mário de Andrade esclarece que essas danças são de origem espanhola, compostas por cantigas solos e refrão coral, “cantadas provavelmente por populares encarnando pastores, nas representações da Natividade” (Andrade: 2002b, 321).

162

As danças dramáticas são classificadas pelo homem pesquisador com nomes

genéricos: Cheganças, Pastoris, Congos, Maracatus, Cabocolinhos, Bumba-meu-Boi

e Congadas (Estado de São Paulo), entre outros. Inicia a análise pelas Cheganças, que

se dividem em duas danças: chegança de marujos e chegança de mouros. E justifica a

importância de estudar esses bailados.

Um dos problemas curiosos no estudo da sociedade brasileira, é a intensa e pouco justificável, em nossos costumes, de celebração europeia marítima portuguesa e das lutas ibéricas entre cristãos e mouros. As duas memórias se entrelaçam intimamente em nós, chegando mesmo a se confundir em certas manifestações características e muito importantes. Mas o que mais admira é terem elas se encontrado no Brasil, em duas danças dramáticas, enormes como tamanho e complicadas no entrecho, que, muito embora tragam quase todos os seus elementos importados de consumo ibérico, são entidades próprias, aqui organizadas e de indiscutível formação brasileira em seu conjunto. Chego mesmo a afirmar que é justamente nestas duas danças dramáticas brasileiras, intituladas por Sílvio Romero “Chegança de Mouros” e “Chegança de Marujos” que os trabalhos do mar português e as lutas contra o Infiel tiveram a sua mais notável, mais bela e profunda celebração popular. Foi a gente brasileira que, reunindo e amalgamando um mundo de tradições diversas aqui chegadas, faz nestes dois bailados a rapsódia mais admirável que jamais cantou o ódio ao infiel e aos trabalhos do mar (Andrade: 2002b, 93).

As cheganças são, então, consideradas como recriações brasileiras de origem ibérica.

Nas viagens etnográficas, Mário de Andrade recolheu “farta documentação” e

registrou os diversos nomes desse bailado nos diferentes estados do Norte e do

Nordeste. Esses “brinquedos” também foram batizados como Fandango (RN) e

Barca (PB).

Mário de Andrade aponta que a denominação “chegança de marujos” é recente.

Historicamente conhecida como “fandango”, dança típica de origem espanhola que

aporta em Portugal e ali se populariza, chega ao Brasil no processo de colonização.

Hoje o termo é usado para referir uma dança típica do sul, caracterizada pela violência

da movimentação e do sapateado. Não deve ser confundida com o Fandango do Rio

Grande do Norte.

As cheganças representam o embate histórico entre católicos e mouros – ou infiéis –

pelo controle da península Ibérica. Por esse motivo, em diversos desses bailados

aparece o nome da Turquia, referência à população moura. O modernista aponta a

origem religiosa dos bailados:

163

Os trabalhos no mar, que foram a admirável justificação humana da nação portuguesa por três séculos, se imiscuíram nos vilhancicos religiosos, nos autos portugueses e nas usanças acarnavaladas das procissões quinhentistas do Brasil. Mas, pela importância popular que tinham numa terra de marujos, principiaram alongando de tal forma cortejos e melodramas religiosos que se destacaram destes. E assim acabou se constituindo a Chegança de Marujos, já inteiramente profana como assunto fundamental, mas que também não possui a unidade fundamental de outros bailados (...) De fato, a Chegança de Marujos é uma verdadeira colcha de retalhos, cujos episódios não apenas são desligados uns dos outros, como não apresentam nenhum que os unifique e centralize (Andrade: 2002b, 34-5).

No enredo da chegança de marujos consta o romance da Nau Catarineta. Tradicional

nas danças dramáticas brasileiras, o romance foi estudado pelo escritor. Desenvolveu-

se, supostamente, a partir de fatos reais, com o naufrágio de Jorge de Albuquerque

Coelho. Canta o retorno da nau portuguesa após temporada nas colônias.

Surpreendida por uma tempestade, navega desorientada, com fome a bordo e

antropofagia; aporta em terra, por fim, e os sobreviventes são resgatados. O homem

pesquisador relata:

Minha opinião de observador de estudos alheios é que o romance rapsodiado atual da Nau Catarineta é obra anônima, relativamente moderna, provavelmente completada, na sua integridade contemporânea, durante o séc. XVIII. Deriva de um romance velho, do séc. XVI, que foi a grande época de constituição dos romances tradicionais (...) Esse romance velho foi, provavelmente de uma vez só, e por um novo refazedor da história tradicional, recomposto, ou melhor continuado rapsodicamente, por associações de situações dramáticas, com outros tema também tradicional, o do marinheiro se afogando, a quem o diabo se propõe a salvar e pede a alma em paga do salvamento (Andrade: 2202b, 313).

Mário de Andrade registra as origens híbridas, a colcha de retalho nessa chegança e

em outras danças dramáticas. Fala da provável ligação com histórias contadas desde

os gregos, igualmente fontes de inspiração para o romanceiro ibérico. O caráter de

rapsódia das danças dramáticas brasileiras também se faz presente em Macunaíma.

Outra dança analisada por Mário de Andrade é o Pastoril. Sobre ela publicou

trabalhos em três artigos de jornal, com a mesma estrutura dos outros estudos:

“ensaio histórico, exposição de materiais e notas sobre estes”, como definiu Oneyda

Alvarenga (2002b, p.315). Descreve o Pastoril como festa representada no Natal,

abrindo as festividades brasileiras que durariam até o fim do Carnaval. São também

conhecidas como pastorinhas ou presépio, com os elementos religiosos nas

demonstrações.

164

Dividem-se em três cenas principais: a anunciação do nascimento de Jesus Cristo aos

pastores; a adoração dos três “reis do oriente” e o massacre dos Inocentes, que remete

à passagem bíblica da matança de meninos promovida por Herodes (Andrade: 2002b,

319). Essa última cena desapareceu da tradição brasileira, mas pode ser encontrada

nas danças europeias como os Vilhancicos espanhóis e o Noël francês. São comuns

no Nordeste, mas não no Centro nem no Sul do Brasil.

Outro aspecto a ressaltar em danças dramáticas brasileiras, como na Nau Catarineta e

também no Pastoril, é a origem no teatro e na religião, que se profanaram até

constituírem as danças tal como existem hoje. Mário de Andrade analisa essa

aproximação:

O teatro nasce da religião. Mas os elementos sociais profanos implicados nele e que nada têm a ver com aquela duplicidade primitiva pela qual Dionísio como o boi são conjuntamente um interesse econômico... econômico e místico, terrestre e divino – vão pouco a pouco tomando importância desmesurada, que destrói a finalidade primitiva do teatro. E esses elementos profanos acabam imperando sozinhos. Foi o que sucedeu com a tragédia grega. Foi o que sucedeu com o teatro Nô japonês, ou tanto na Índia como nos Ludi da Europa pagã. Foi o que sucedeu com os Mistérios medievais, de que as Farsas se destacaram. E foi o que sucedeu aqui também. A Chegança de Marujos, bem como Reisados e Pastoris, são já teatro profano, evolucionando dum teatro primitivo de função essencialmente religiosa (Andrade: 2002b, 35).

Inicialmente religiosas, essas danças tornam-se manifestações culturais do povo

brasileiro. Tratamos agora d’os Congos que, diferentemente das outras danças,

originou-se dos povos africanos.

Os Congos são uma dança dramática, de origem africana, rememorando costumes e fatos da vida tribal. Na sua manifestação mais primitiva e generalizada, não passam dum simples cortejo real, desfilando com danças cantadas. Ainda hoje certos Congados primários ou muito decadentes, do centro do Brasil, nada mais são do que isso. E no Nordeste, onde os Congos se desenvolveram muito e adquiriram entrecho dramático, os Maracatus atuais parecem representar o que foram lá os Congos primitivos. Porém, mesmo nas manifestações mais primária de simples cortejo dum rei negro, os textos das danças, e em parte mais vaga as coreografias, sempre aludem a práticas religiosas, trabalhos, guerras e festas da coletividade (Andrade: 2002b, 365).

O baile, assim, celebra a entronização do novo rei. O escritor, citando o antropólogo

Frazer, afirma: “a entronização e celebração do rei está ligada intimamente às

comemorações mágicas dos mitos vegetais”, ou seja, ao ressurgimento da vegetação

com a chegada da primavera. A alusão à natureza repete-se em outras danças.

165

De acordo com a pesquisa do escritor, era possível encontrar representações na

Amazônia, em todo o Nordeste, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Mato

Grosso e Goiás. Também são observados em Cuba, Antilhas, em outras colônias

portuguesas e em Lisboa, corroborando a origem africana que agrega elementos

portugueses. Ele aponta:

a música dos Congos nada apresenta que permita garantir nela tradições imediatamente africanas. Pelo contrário, manifesta a mais extrema variedade de influência; e se são frequente nelas os documentos especificamente afro-brasileiros, chega mesmo a conter peças da mais íntegra tradição europeia, e especialmente latina (Andrade: 2002b, 375).

Mário de Andrade lembra que a palavra conguesa “nkungoc”, cuja derivação chega à

Conga cubana e aos Congos e Congadas brasileiros, significa, etimologicamente,

“canto, música cantada e dança de caráter guerreiro” (Andrade: 2002b, 384).

Religião e profanação também se fazem presentes na dança. Ao estudar uma louvação

comenta:

Além de peças de inspiração católica, outras ‘cantigas’ parecem de inspiração feiticista. Entre essas se distinguem as de inspiração totêmica, em que a coreografia busca reproduzir o passo ou cacoetes do animal que vem citado no texto. No Congo o totem, ou coisa semelhante, era coisa exclusivamente animal, especialmente uma ave, e nunca vegetal ou coisa inanimada (...) ora, é sintomático que nenhuma das ‘cantigas’ se refira a coisas ou plantas, com algum traço de religiosidade. O mesmo não se dá quando citam as aves (Ibidem, ibidem, pg. 375).

O instrumental usado nos bailados tem base percussionista, divergindo conforme a

região. No centro sul do país são incorporados violões e violas; no Ceará, ganzás,

maracas, sanfonas e bumbos; e no Rio de Janeiro chocalhos, tamborins, marimbas,

agogôs, entre outros.

Outra dança estudada por Mário de Andrade é o maracatu. Ele a classifica como a

representação de um cortejo real, da mesma forma que as congadas. A aproximação

também se mostra pelo contexto guerreiro do maracatu, em que alguns trechos falam

de guerras. Novamente apontamos a importância das viagens etnográficas para esse

estudo, uma vez que as primeiras observações sobre a dança foram realizadas nas suas

passagens por Pernambuco. Ele arrisca uma interpretação etimológica para a origem

da palavra:

Não sube (sic) encontrar a palavras Maracatu em documentos anteriores ao séc. XIX. Também não conheço quase nada das falas africanas, e no pouco que li delas, não me lembro de ter visto a palavra. Será africana? A gente é antes levado a interpretá-la

166

como voz americana, porque ela se assimila facilmente a fonemas guaranis. Maracá é o instrumento ameríndio, de percussão conhecidíssimo. Catu, em tupi, quer dizer bonito (Andrade: 2002b, 479).

Também diz que a palavra Marã significa guerra, desordem, confusão, o que

resultaria numa possível interpretação da palavra maracatu como briga bonita ou

guerra de enfeite. As vestimentas do maracatu são bastante ornamentadas. O grande

estudo sobre essa dança está presente no texto que Mário de Andrade enviou para o 1º

Congresso Afro-Brasileiro, organizado por Gilberto Freyre.

O último livro do projeto Na Pancada do Ganzá é As melodias do boi e outras peças

(1987), o menos elaborado quanto ao preparo para publicação. Na Introdução,

Oneyda Alvarenga comenta a diferença entre esse e os outros livros por ela

organizados: “me encontrei não diante de obra realizada, mas diante do que era

essencialmente apenas material de trabalho” (p.14). O material não continha apenas

músicas sobre o Boi; refere-se também à outras expressões artísticas, como lundus,

modinhas, aboios, modas-de-viola, toadas, cantos infantis e música religiosa.

As fontes foram as mesmas dos demais livros: as andanças pelo Norte e Nordeste e

trabalhos colhidos por amigos como Antonio Bento de Araújo Lima e Ascenso

Ferreira. Apesar das poucas análises e considerações do escritor, o material ressalta a

importância dos aboios, cantados pelos vaqueiros que marcham com as boiadas. Por

ser um canto que varia de acordo com o cantador, por vezes sem palavras, seu

recolhimento era dificultado. Com frequência eram apenas variações de sílabas,

como: Ôh, ah, êh, seguidas de algumas poucas frases muito particularizadas. Serviam

para os boiadeiros tocarem os bois.

Nesse livro constam também canções coletadas que não foram registradas nos demais

livros do projeto, como algumas cantigas de roda infantis, com versões ainda muito

conhecidas:

O Castelo pegou fogo S. Francisco deu sinal Acuda acuda acuda A bandeira nacional Um dois três Quatro cinco seis Sete oito nove Para doze faltam trêis

167

(Andrade: 1987, 392).

Sobre a ciranda, o autor afirma:

A roda da Ciranda que parece estar ligada a um instrumento antigo de trabalho no campo é conhecidíssima em Portugal e se espalhou pelo Brasil todo. Mas como em geral sucedeu com tudo que nos veio de Portugal aqui anda precária, desprovida de suas estrofes que são numerosas além-mar. Aqui é uma roda exclusivamente infantil e quando muito cantada com uma estrofe só e refrão como está (Andrade: 1987, 395).

Mário de Andrade analisa a palavra tango que, segundo suas pesquisas, “foi formada

onomatopaicamente por africanos para designar certos instrumentos de percussão

deles” (Andrade: 1987, 387), e teria se espalhado por toda a costa da América Latina.

Ele aprofunda a análise sobre o tango:

No Brasil a palavra se generalizou muito e as primeiras polcas habaneradas tomavam o nome de tango muitas vezes. Isto não se deu apenas no Brasil. Vicente Rossi (...) nota que em Buenos Aires se publicaram habaneras com o subtítulo de “tangos”. Da fusão de elementos rítmicos e melóáriodicos díspares, europeus e africanos e já autóctones, saiu o maxixe que de primeiro se chamou tango. E é mesmo com o subtítulo de “tango” que Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá – os dois maiores compositores de danças populares impressas – denominaram a maior parte dos maxixes deles. Atualmente, depois que a palavra passou a designar especificamente a dança platense universalmente conhecida, “tango” vai sendo abandonada no Brasil pra designar coisas nossas. Mas no séc. XIX ela valeu tanto aqui como em Montevideo ou Buenos Aires (Andrade: 1987, 387).

A música caipira também é discutida brevemente por Mário de Andrade, que na

região de Carapicuíba recolhe um documento importante, a Dança de Santa Cruz.

Essa música, de cunho religioso, era dançada em frente à cruz, com versos

profundamente confessionais: Do céu cahiu um cravo,/ Nos braços de Santa Cruz,/

Do cravo nasceu a Virgem,/ Da Virgem nasceu Jesus (Andrade: 1987, 277)55.

Sobre as origens da música caipira, o escritor registra:

Os caipiras paulistas, mineiros e goianos são gente de tipo bem carijó (mescla de branco com índio). Eles possuem um tipo melódico de toadas, muitas vezes cantadas em terças, toadas que ninguém não se lembrou de caracterizar como de criação afro-brasileira. E de fato parecem já produto étnico do caipira brasileiro. Ora nelas a gente via encontrar como um dos elementos mais comuns, os torneios melódicos afro-norte-americanos (Andrade: 1987, 405).

55 Este verso remete a canção folclórica Cálix Bento recolhida por Tavinho Moura (com diversas variações) e regravada por diversos cantores como Milton Nascimento, Pena Branca e Xavantinho entre outros.

168

A tentativa de entender e classificar as origens das músicas e danças brasileiras

norteou o desenvolvimento do Na Pancada do Ganzá. Como vimos, são

manifestações culturais provenientes das três matrizes culturais do povo brasileiro.

Ele afirma:

Assim, a entidade da música popular brasileira teve a sua base direta no canto e na dança portuguesa. Se em nossas manifestações musicais populares é incontestável que a cooperação africana foi importante e talvez decisiva mesmo sob o ponto de vista rítmico; se é possível distinguir em nosso folclore musical um ou outro raro elemento ameríndio; e se principalmente em nossa terá todos esses elementos díspares se amalgamaram e, transformados pelos imperativos da fisio-psicologia brasileira, deram origem a ua [sic] música popular já por muitas partes inconfundivelmente original, não é menos certo que vamos encontrar nos portugueses quase tudo aquilo que em nossa música se baseia. Por isso mesmo empreguei no princípio deste parágrafo a palavra “entidade”, insistido sobre o que, junto com a morfologia, é o caráter, a psicologia da música nacional (Ibidem: ibidem, 373-4).

No final do livro, tratando das origens da música popular brasileira, o homem

pesquisador reflete:

No estado atual da musicologia a respeito desta questão, se nos faltam dados históricos positivos sobre essas fórmulas rítmico-melódicas, como estabelecer a prioridade de criação e imposição na América e no Brasil de certas manifestações musicais já gora etnicamente nossas? Quem foi o influenciador? Quem o influenciado? Ou se deu apenas coincidência de elementos brancos, negros e vermelhos que contaminaram-se, fortaleceram-se e deram origem a manifestações novas que por nascerem sob os auspícios da América, a gente pode chamar de americanas? Esta última hipótese nem o é propriamente. Se deu claramente contaminação e por ela se criou muitas manifestações musicais especificamente americanas e brasileiras. Porém verificar isso não basta. O problema das origens, permanece obscuro e sem bases atuais sobre o que possa ser resolvido (Ibidem; ibidem, 415-6).

Infelizmente, a morte precoce de Mário de Andrade não permitiu que suas

investigações sobre a musicologia brasileira fossem adiante. Mas deixou, como

legado para musicólogos, etnomusicólogos e demais estudiosos, material suficiente

para que as pesquisas avançassem, como o trabalho realizado por Oneyda Alvarenga e

por outros pesquisadores, que continuam a se debruçar sobre as pistas apontadas

Mário de Andrade.

E, se não aprofundou (ainda mais) suas análises sobre as manifestações culturais

brasileiras, Mário de Andrade deixou outro legado importantíssimo, que

desenvolveremos no próximo capítulo. Uma longa citação nos situa, no final da

análise do escritor modernista sobre as danças dramáticas como expressões culturais

brasileiras e sobre o risco que corriam na passagem dos anos 30 aos 40.

169

As danças dramáticas estão em plena, muito rápida decadência. Os reisados de muitas partes já desapareceram. Desapareceram as Taieiras, os Quicumbres, os Meninos Índios. Nas regiões centrais do país, sobretudo nas mais devastadas pelo progresso, o que existe é desoladamente pobre, muitas vezes reduzido a simples cortejo ambulatório, que quando pára só pode ainda dançar coreografias puras e alguma rara configuração de guerra, perdida a parte dramática. No Norte e no Nordeste é que as danças dramáticas persistem bastante frequentes ainda, mais fixas como dramaticidade e em suas datas anuais. Mas lutam furiosamente com a... civilização. Ou melhor: esta é que luta com elas e as domina. Engraçada a civilização... Eu que amo irrefletidamente, absurdamente a vida, e que por isso não sou também contra a civilização, não consigo imaginá-la mais do que uma criadora de conceitos. De preconceitos. Civilizar-se seria distinguir e fixar em conceitos formas de vida. As formas da vida toda elas já existem entre os chamados selvagens. Mas desde que a uma delas se dá um preconceito que a define e delimita, está iniciada uma via de civilização. A civilização cria um conceito de conforto, mas não o próprio conforto que já existia antes dela. A civilização cria um conceito de higiene, mas não a própria higiene. A civilização cria um conceito de cidade moderna e progressista com boa-educação civil. E como em Paris, Nova York e São Paulo não se usa danças dramáticas, o Recife, João Pessoa e Natal perseguem os Maracatus, Cabocolinhos e Bois, na esperança de se dizerem policiadas, bem-educadinhas e atuais. São tudo isto, com Cheganças ou sem elas. Mas quem que pode com o delírio de mando dum chefe de polícia ou dum prefeito, ou com vergonha dum cidadão enricado que viajou na avenida Rio Branco! Cocos viram besteira, Candomblé é crime, Pastoril ou Boi dá em briga mas ninguém não lembra de proibir escravizações ditatoriais, perseguições políticas, e ordenados misérrimos provocadores de greves, que de tudo isso nasce crime também... Mas talvez as civilizações evitem com cuidado criar o conceito de briga, de crime também... Mas talvez as civilizações evitem com cuidado criar o conceito da felicidade, que desse lado é que estão Cabocolinhos e Congados... A decadência das danças dramáticas é “estimulada” pelos chefes, o seu empobrecimento é “protegido” pelos ricos (...) Da maneira como as coisas vão indo, a sentença é de morte (Andrade: 2002b, 69-70).

É razoável supor que Mário de Andrade aceita participar da criação e

desenvolvimento de ações culturais e políticas, no Departamento de Cultura, na

tentativa de evitar o desaparecimento dessas manifestações. Essa é a última vertente

que analisamos nesta tese: o homem público.

170

Capítulo 5 – Departamento de Cultura

Acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938. Centro Cultural São Paulo

Foto do Autor. Igreja e Convento São Francisco. João Pessoa, maio/2009

171

A vertente do homem público, ora analisada, é o ato final de Mário de Andrade no

projeto de entendimento, interpretação e preservação da cultura brasileira. Ato do

escritor, intelectual, pensador e, essencialmente, do homem apaixonado pela cultura

brasileira, que usou suas manifestações para a elaboração de obras literárias e de

ensaios e estudos sobre o Brasil.

Neste capítulo buscamos demonstrar a atuação política de Mário de Andrade em

instituição governamental. O homem público é pensado a partir de projetos e atuações

dentro do órgão que dirigiu entre (1935-1938), o Departamento de Cultura do

Município de São Paulo. Mário de Andrade, observando o popular como fonte de

“sabença” sobre o Brasil, diagnostica o risco que as manifestações culturais corriam,

num momento de grandes mudanças sociais, econômicas e políticas, os anos de 20-

30. Convidado para pensar e gerir esse Departamento, desenvolveu dois projetos que

analisamos aqui – a Sociedade de Etnologia e Folclore (SEF) e a Missão de

Pesquisas Folclóricas (MPF) – concebidos com o objetivo de resguardar a cultura

brasileira.

A hipótese deste capítulo defende que as duas ações políticas, realizadas no

Departamento de Cultura, tiveram como base a experiência obtida com as viagens

etnográficas e os estudos sobre a cultura brasileira, reunidos em Na Pancada do

Ganzá. O que se analisa é a relação entre cultura e política estabelecida a partir da

perspectiva de Mário de Andrade. Iniciamos contextualizando brevemente o

Departamento e o ambiente político que permitiu seu aparecimento institucional. Em

seguida analisamos os dois projetos, MPF e SEF.

O Departamento de Cultura foi pensado durante a gestão de Fábio Prado na prefeitura

de São Paulo (1934-1938), com o apoio do então interventor, e mais tarde governador

de São Paulo, Armando Salles de Oliveira. Anotamos que a criação desse

departamento envolveu um grupo político que desde a década de 20 militava em

projetos de vanguarda na educação, nas artes e na cultura em São Paulo. Sua prática,

semelhante à dos mecenas aristocráticos, ajudou a fomentar o próprio modernismo,

anos antes. Armando Salles de Oliveira, cunhado de Júlio de Mesquita Filho,

proprietário do jornal O Estado de São Paulo, sempre se envolveu em campanhas

políticas que buscavam mais autonomia para São Paulo. Ao lado de outros atores

172

sociais e políticos, lutou pelo estabelecimento da universidade pública no Brasil,

tendo papel fundamental, em 1934, na criação da USP, que também manteve contato

com o Departamento de Cultura.

A ideia inicial da criação do Departamento de Cultura foi de Paulo Duarte, e contou

com a aprovação do governador e do prefeito de São Paulo. O projeto, ligado aos

planos de Armando Salles de Oliveira de disputar a presidência da República em

1938, seria a base, ou “projeto-piloto”, de outros que seriam implantados nos mesmos

moldes em âmbito nacional – o Instituto Brasileiro da Cultura, encerrado pelo Estado

Novo.

O Departamento de Cultura foi gestado por intelectuais do Partido Democrático, ao

qual alguns modernistas estavam ligados, inclusive Mário de Andrade, colaborador do

Diário Nacional, jornal porta-voz desse partido. Sobre o elo entre o escritor

modernista e o partido político, Lafetá (2001) lembra:

Sabemos que Mário não teve jamais uma militância aberta (...) sua participação no Partido Democrático, desde a fundação, pautou-se sempre pela presença discreta e (...) por uma relutância íntima de quem é “infenso a quaisquer políticas, sejam elas religiosas ou profanas” [palavras de Mário de Andrade]. Resistência à política enquanto ação, bem entendido, enquanto militância direta dentro de um partido, porque como escritor fez sempre obra política. Mas o cidadão Mário de Andrade, pequeno-burguês brasileiro dos anos 30, evitou habilidoso o contato com as manobras partidárias (Lafetá: 2001, 189).

Talvez a falta de participação ativa nas querelas partidárias tenha permitido a Mário

de Andrade manter-se autônomo no campo político, dialogando com interlocutores de

diversos espectros ideológicos.

Outros intelectuais e políticos também discutiram as propostas de criação e áreas de

atuação do Departamento, como o escritor Antônio de Alcântara Machado, o

educador Fernando de Azevedo e o ex-prefeito de São Paulo Luís Inácio de Anhaia

Mello. Os dois últimos estavam ligados à criação dos Parques Infantis em São Paulo,

que ficaram sob a responsabilidade da Divisão de Turismo e Divertimentos Públicos.

Chama a atenção o comprometimento de intelectuais e políticos com a construção de

173

um projeto institucional com o peso e a envergadura que o Departamento de Cultura

teve no campo político e cultural do Brasil56.

O organograma do Departamento de Cultura estabeleceu 5 divisões internas. Da

Divisão de Documentação Histórica e Social ficou incumbido Sérgio Milliet, e

Rubens Borba de Moraes da Divisão de Bibliotecas. A Divisão de Educação e

Recreio foi dirigida por Nicanor Miranda e a Divisão de Turismo e Divertimentos

Públicos, por Nino Gallo. A Mário de Andrade coube chefiar a Divisão de Expansão

Cultural, além da direção geral do Departamento de Cultura57.

Neide de Moraes Mello, na sua tese Intelectuais na vida pública: Mário de Andrade e

Monteiro Lobato (2006), analisando a criação do Departamento de Cultura, afirma:

Imediatamente constituído, o DC partiu para a ação. Suas atividades poderiam ser agrupadas em três grandes conjuntos: de diagnóstico, de intervenção e de pesquisa para educação; em cada uma delas a componente ideológica se manifesta em diferentes graus revelando os propósitos políticos subjacentes a sua atuação. As atividades de diagnóstico constituíram todo um esforço de investigação da população da cidade, sua composição e de suas condições de vida para que o DC encaminhasse as ações pautado em seus resultados. Neste aspecto, o DC inovou notavelmente. Enquanto durou o DC empreendeu uma série de pesquisas sociais e etnográficas que resultaram em dados estatísticos e mapas demonstrativos das condições de desenvolvimento da cidade (Mello: 2006, 73).

Observa-se a busca por uma nova racionalidade na administração pública, baseada em

pesquisas de cunho científico que dialogavam com a institucionalização da própria

universidade pública – a USP. Essa base de pesquisa científica fundamentou-se na

parceria entre os políticos e intelectuais, e contou com a presença de professores

estrangeiros, participantes da Missão Universitária Francesa, integrada pelo casal

Levi-Strauss. Criaram, conjuntamente, a Sociedade de Etnologia e Folclore.

A Divisão de Bibliotecas desenvolveu diversos projetos, como a reformulação da

Biblioteca Municipal (posteriormente batizada com o nome de Mário de Andrade), já

fundada anteriormente. Outros projetos envolveram bibliotecas infantis, circulantes e

populares. São projetos de nítido cunho político e que persistem na atualidade, como

56 Para mais detalhes da relação entre Intelectuais e Estado, ver: Bastos (2003), Ridenti (2006) e Miceli (2001). 57 Para mais informações ver: Paulo Duarte (1985) e Neide Moraes de Mello (2006).

174

as bibliotecas infantis, que pretendem estimular o hábito da leitura em crianças58. A

biblioteca circulante (ônibus-biblioteca) tinha como objetivo levar livros a populações

sem acesso a esse material, em lugares remotos da cidade. Mello (2006) lembra que

esse modelo itinerante inspirou-se em experiências francesas e norte-americanas, e

contou com um automóvel doado pela Ford (embora o projeto não tenha tido longa

duração). Também pretendia oferecer através das bibliotecas populares, em bairros de

baixa renda, livros, cursos e palestras. Esse projeto não chegou a ser implementado.

Entretanto, ressalte-se o caráter político da tentativa de ampliar a oferta de cultura e

erudição das populações menos abastadas. Elizabeth Travassos (1997) lembra:

Mário e [Bela] Bártok não eram antropólogos nem cientistas políticos tratando de relações interétnicas, formas de organização dos estados, disputas de fronteira e lutas por soberania. Seria inútil ler estudos de música como se fossem trabalhos de ciência social ou programas de governo, mas sua dimensão política é clara: os estudos tanto visavam ao progresso do conhecimento e busca da verdade quanto integravam projetos de modernização artística que pretendiam ter eficácia transformadora (Travassos: 1997, 118).

Outra iniciativa importante do Departamento de Cultura, logo em seu início, em 31

de maio de 1935, foi a criação da Discoteca Pública Municipal,59 em agosto do

mesmo ano, sob a direção de Oneyda Alvarenga (ex-aluna e discípula de Mário de

Andrade)60. Visava tanto obter e conservar os registros sonoros do folclore musical

brasileiro como gravar músicas eruditas de compositores paulistas ou habitantes da

região. Foram incentivados registros sonoros de personalidades importantes, projeto

batizado como Arquivo da Palavra, com depoimentos de Lasar Segall e Camargo

Guarnieri, por exemplo61. Também compreendia um museu de documentos musicais,

coleção de discos, filmes, partituras e livros técnicos. Por fim, também um museu

etnográfico folclórico, destinado a instrumentos musicais brasileiros, tal qual, existe

hoje, de modo semelhante no Musée Quai Branly, em Paris.

O Departamento de Cultura também elaborou o ante-projeto do Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que originou o atual IPHAN,

desenvolvido por Mário de Andrade em 1936 a pedido do Ministro da Educação e

58 Mello (2006) ainda lembra que ironicamente parte do sucesso das bibliotecas infantis se deve às obras infantis de Monteiro Lobato. 59 Hoje batizada com o nome de Oneyda Alvarenga e pertencente ao Centro Cultural São Paulo. 60 A mesma pessoa que organizou os escritos de Na Pancada do Ganzá. 61 Este trabalho repercute no acervo de depoimentos do Museu da Imagem e do Som (existente em São Paulo e em outros municípios).

175

Saúde de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, preocupado com a preservação do

patrimônio cultural brasileiro. O projeto, promulgado em 1937, ficou sob cuidados de

Rodrigo Melo Franco de Andrade.

Relacionar esses projetos do Departamento de Cultura é deixar palpável a intenção de

colocar na pauta política e institucional do governo a democratização e o acesso à

cultura como formas de pertencimento à brasilidade. Esse era um dos objetivos

primeiros de Mário de Andrade na institucionalização da cultura no Brasil, que passa

a ser gerida como política oficial de Estado. Sirlei Silveira (1993)62 afirma:

Não sendo possível a difusão da universidade a todos os lugares e segmentos sociais, competia ao Departamento de Cultura e Recreação [sic] assistir com frequência às grandes cidades através de concertos, conferências, teatros, cursos e outras modalidades de extensão artística e educacional, complementando portanto, o trabalho de elevação do nível cultural das massas. Suas atividades básicas consistiam no desenvolvimento de sistemas pedagógicos e culturais livres, destinados principalmente ao atendimento de jovens e crianças (Silveira: 1993, 48).

O trabalho no Departamento de Cultura permitiu que o escritor modernista exercesse

a política institucional, notadamente no campo cultural, através da faceta do homem

público. Importa referir que não só nesse momento Mário de Andrade faz política: sua

escrita literária e seu projeto estético continham elementos políticos e ideológicos,

como observado anteriormente. Mas é com a atuação no Departamento que

incentivou, institucionalmente, práticas e realização extremamente significativas até a

atualidade, como os parques infantis, o SPHAN e a Discoteca Pública.

Antonio Candido, no Prefácio ao livro de Paulo Duarte (1985), observa que o

Departamento de Cultura:

[pretendia] não apenas a rotinização da cultura, mas a tentativa consciente de arrancá-la dos grupos privilegiados para transformá-la em fator de humanização da maioria, através de instituições planejadas (...) para fazer da arte e do saber um bem comum; para incorporar as conquistas do Modernismo à tradição que ele veio atualizar e fecundar; para extrair dos grandes ideais do decênio de 1920 as consequências no terreno da educação e da pesquisa (Candido: 1985, XIV-XV).

Mário de Andrade, agindo como homem público, ampliou o que já fizera

anteriormente em esfera reduzida e individualizada, com a possibilidade de revelar o

Brasil para os brasileiros. Não mais apenas para si mesmo ou para o leitor de suas

62 Para mais detalhes, ver: Sirlei Aparecida Silveria (1993).

176

crônicas, ensaios e livros. Suas ações políticas propiciaram o que Antonio Candido

chamou de transformação da cultura em bem coletivo.

Sirlei Silveira (1993) salienta:

À frente do Departamento de Cultura, no período de 1935 a 1938, Mário procura colocar em prática a sua orientação nacional, estimulando a realização de estudos sobre o povo brasileiro, voltados ao descobrimento de um outro Brasil, através da investigação e análise das manifestações culturais populares, simbolizadas na música e folclore, por entender que nestas manifestações, residia a essencialidade da raça brasileira63, ainda macunaímica e, portanto, necessitando de tradicionalização (Silveira: 1993: 66).

Nessa perspectiva, Miguel Chaia, em Arte e Política: situações (2007), realiza debate

sobre as relações estabelecidas entre arte e política, pertinentes para pensar as

propostas formuladas por Mário de Andrade em projetos do Departamento de

Cultura. Ele afirma:

Pode-se pensar em dois contextos políticos nos quais a arte pode ser produzida com significado social: a política de participação no espaço público; e a política gerada no círculo de poder. De um lado, tem-se a política como práticas sociais, privilegiando-se a ação dos sujeitos; do outro, existe a política centrada no funcionamento das instituições (Chaia: 2007, 21).

Mário de Andrade soube usufruir, no decorrer da vida, das duas possibilidades para

estabelecer relação entre arte e política. Primeiramente participou do debate político

com o Modernismo. Mesmo antes da Semana de Arte Moderna colocava-se como

participante de debates estéticos e ideológicos nos espaços públicos, acentuados após

a Semana de 22. Exemplar é a discussão com Monteiro Lobato, defendendo a pintura

modernista de Anita Malfatti. Tais discussões envolviam projetos estéticos e

ideológicos, que repercutiram também em disputas partidárias.

Outra forma de fazer política, de acordo com Chaia (2007), é participando do

funcionamento das instituições, papel que Mário de Andrade desenvolveu ao assumir

o trabalho no Departamento de Cultura. As intenções eram claras: ampliar as

possibilidades culturais da população em geral com o oferecimento de atividades

artísticas e educacionais, estimulando a transformação social pela arte. Um exemplo é

a Discoteca Pública, com o projeto de ampliação de gravações da música erudita feita

em São Paulo, e também de gravações de músicas folclóricas. Essas manifestações 63 Destacados no original.

177

passam a obter maior valorização, na cultura da época. Naquele momento, músicas e

danças de cunho popular eram inibidas, perseguidas ou mesmo proibidas pelas forças

políticas.

Elizabeth Travassos (1997) aprofunda essa análise e aponta outras obras (inacabadas)

de Mário de Andrade, em que há uma radicalização da relação entre arte e política:

Mário de Andrade encaminhou-se para a politização da arte, proposta n’O banquete e representada em sua própria obra pelo libreto Café, por exemplo, destinado a Francisco Mignone. A música e as artes seriam instrumentais, imperfeitas e transitórias porém eficazes na construção de novas formas sociais e políticas (Travassos: 1997, 217).

Miguel Chaia (2007), analisando a atuação de artistas e intelectuais no cenário

político, afirma:

Delimitando um leque de atuações que vai da atuação política do artista agindo de forma independente no espaço público, de acordo com os ditames de sua consciência e de sua vontade, até a presença de práticas de artistas que se desenrolam em torno do poder, orientados por valores externos a eles quando compartilham projetos ou programas coletivos (Chaia: 2007, 21-22).

Observa-se que Mário de Andrade exerce a primeira opção nas escolhas estéticas que

fez e na participação no Movimento Modernista. E, na segunda possibilidade, quando

se envolve com o compartilhamento de projetos e programas coletivos nas ações do

Departamento de Cultura. Julgamos pertinente, portanto, afirmar que as ações como

homem público ajudaram a ver a cultura popular brasileira como um legado, um

patrimônio, que deveria ser estudado e preservado. Essa ideia permanece viva nos

dias atuais.

Carlos Augusto Calil, em Mário da Cultura Andrade (2010), salienta:

Mário padecia da urgência de seu contemporâneo Adorno. O vertiginoso progresso científico e a avassaladora chegada da indústria cultural ameaçavam o remanescente das atitudes de resistência espontânea de humildes e marginalizados, habitantes da periferia urbanas e do rural. Mário moveu mundos e fundos para levantar sua bandeira e convencer a incipiente administração pública de seu intento (Calil: 2010, 4).

Nesse âmbito de urgência surgem dois grandes projetos do Departamento de Cultura:

a Missão de Pesquisas Folclóricas (MPF) e a Sociedade de Etnologia e Folclore

(SEF), analisados em seguida.

178

Quando assume o Departamento de Cultura, Mário de Andrade percebe e reconhece

as transformações sociais, urbanas, políticas e econômicas que São Paulo e o Brasil

vivem, entre fins dos anos 20 e início dos anos 30 do século XX. A cidade de São

Paulo recebia cada vez mais fluxos migratórios vindos de todas as regiões do Brasil,

ajudando no desenvolvimento industrial que perpassava o município, e alterando

profundamente algumas de suas características culturais. São transformações

migratórias analisadas por Elizabeth Travassos (1997):

Mário manifestou tantas vezes o impacto da presença de migrantes recentes e outras dimensões da diversidade étnico-cultural que (...) têm implicação direta sobre os estudos de música popular e o projeto de uma arte culta nacional. Em primeiro lugar, regionalismo e bairrismo são forças contrárias à formação do povo brasileiro, caso queiram ser mais do que partes subordinadas da nação. Paulistas, nordestinos e potiguaras são realidades palpáveis, que não devem pretender à individuação sob pena de verem anulado seu interesse como manifestações brasileiras. Podem ser tão exóticos quanto bororos e bantus se escaparem ao núcleo da identidade brasileira que de alguma forma articula as partes da nação. Ao mesmo tempo em que projetava uma entidade nacional capaz de abrigar componentes internos subordinados, nada tinha a dizer sobre o mapa territorial estabelecido (...) Mário atacava regionalismos que tencionavam a unidade do mapa, mas não eram separatistas nem insurretos. Para explicar a rejeição das particularidades regionais, estabeleceu uma correlação entre indivíduos e regiões (Travassos: 1997, 145).

Mário de Andrade tinha uma concepção mais ampla de cultura nacional, ou melhor,

de culturas nacionais. Por isso, ao mesmo tempo em que se debruça sobre a cultura

brasileira, afasta-se da ideia de uma única identidade nacional. Essa identidade, em

profundas transformações pelas novas possibilidades políticas, econômicas e sociais

do início do século XX, não seria única, e sim múltipla.

Como consequência, e na tentativa de preservar as manifestações artísticas mais

tradicionais concebe, em conjunto com Oneyda Alvarenga (da Discoteca Pública), o

projeto da Missão de Pesquisas Folclóricas. Coordena uma equipe que partiria em

viagem pelo Brasil com a tarefa de recolher e documentar manifestações culturais e

artísticas brasileiras, com apoio institucional e utilizando técnicas de pesquisas

desenvolvidas pelos cursos ofertados na Sociedade de Etnologia e Folclore.

Nesse aspecto particular, observamos que a Missão de Pesquisas Folclóricas repete,

em parte, a busca pelo Brasil que Mário de Andrade havia procurado nas viagens

etnográficas, de maneira solitária e sem qualquer apoio de órgão governamental. A

Missão, assim, também pode ser considerada importante para a etnografia e,

179

principalmente, para a etnomusicologia brasileira. A esse respeito, Flavia Camargo

Toni, no catálogo da exposição Contos Populares do Brasil: a Missão de Mário de

Andrade (2004), afirma:

A Missão de Pesquisas Folclóricas, projeto ambicioso que naquele momento só poderia ter sido idealizado por Mário de Andrade, bem como a criação da primeira coleção científica de registros sonoros do país, situam-no, sem dúvida, como figura de proa na Etnomusicologia brasileira (Toni: 2004, 9).

As ações coordenadas pelo Departamento de Cultura, sobretudo a Missão,

produziram grande movimentação de recursos pessoais, materiais e institucionais no

desenvolvimento de projetos que procuraram ir até os centros geradores de

manifestações culturais e artísticas brasileiras do interior do País. A intenção era

coletar e catalogar esses elementos, para torná-los públicos e acessíveis a um número

cada vez maior de brasileiros.

Atualmente, é possível encontrar e pesquisar o material coletado pela Missão no

Centro Cultural São Paulo. Em 2010 o CCSP digitalizou e tornou público o conteúdo

das cadernetas de campo que acompanharam os quatro pesquisadores no decorrer da

MPF, tornando ainda mais ampla a divulgação da cultura brasileira, objetivo sonhado

por Mário de Andrade64.

Elizabeth Travassos (1997) obssrva que Mario de Andrade realizou no Brasil trabalho

similar ao do músico húngaro Béla Bartok que, aproximadamente nos mesmos anos, e

também preocupado com a cultura popular húngara, vai em busca dos registros

sonoros de cantos e cantores magiares, dos povos ciganos da Hungria. E, como Mario

de Andrade, tentava torná-los elementos mais ativos na cultura musical húngara.

Flávia Toni (2004) aponta que as pesquisas musicais de Mário de Andrade se

inspiraram em modelo italiano criado em 1927, por iniciativa do Conselho de

Ministros:

uma Discoteca do Estado para registrar as músicas que os italianos cantava em suas diversas regiões e vinha sendo esquecidas ou substituídas pela memória coletiva. No Brasil ele só tinha conhecimento do trabalho de Roquete Pinto, que gravara cantos indígenas em Rondônia (Toni: 2004, 6).

64 Para mais detalhes, ver: Vera Lúcia Cardim de Cerqueira & Aurélio Eduardo Nascimento (2010).

180

Por essa perspectiva, Mário de Andrade desenvolve o interesse na preservação da

memória musical brasileira centrado na política de funcionamento das instituições,

como lembrou Chaia (2007). Flavia Toni (2004) concorda quanto à importância das

viagens etnográficas na constituição da Missão de Pesquisa Folclóricas.

Durante os sete anos [retorno da segunda viagem etnográfica e início das atividades do Departamento] dedicados à pesquisa amadurecem o musicólogo e conhecedor do cantar popular do Brasil e a crença na necessidade do registro em discos, fotos e filmes, das manifestações que o progresso colocava em risco de desaparecimento. Assim, uma vez à frente do Departamento de Cultura, Mário planejará ações que enfoquem o mapeamento musical sob a mira da preservação de um patrimônio cambiante, a ser radiografado periodicamente para que se acompanhe suas mudanças (Toni: 2004, 7).

Ainda segundo Toni, a segunda viagem etnográfica do escritor também teria sido

inspirada pela experiência italiana em registrar músicas regionais. Supomos que os

anos de 1928 a 1935 foram um período de estudos e amadurecimento do musicólogo,

e que culminaram na criação desta missão. A realização das viagens etnográficas e o

início dos estudos de interpretação do Brasil ecoaram nas ações políticas culturais. O

que se observa é a reverberação das atividades do homem pesquisador no homem

público.

Analisamos primeiramente a MPF, organizada e constituída por Mário de Andrade e

que consistiu no envio de quatro pesquisadores às regiões Norte e Nordeste do Brasil.

A equipe da Missão foi chefiada por Luís Saia, estudante de engenharia e arquitetura,

amigo de Mário de Andrade e aluno de Dina Lévi-Strauss na Sociedade de Etnologia

e Folclore. Foi também Martin Braunwieser, músico e maestro-assistente do Coral

Paulistano, recém-criado pelo Departamento. Ainda Benedito Pacheco, técnico de

som e, por fim, Antônio Ladeira, assistente técnico de gravação e auxiliar geral.

Foram incumbidos de anotar, coletar, catalogar, fotografar, gravar e filmar inúmeras

manifestações da cultura popular brasileira, sobretudo as ligadas a músicas, festas e

danças dramáticas.

Nas palavras de Flavia Toni (2004), os pesquisadores “partem de São Paulo no início

de 1938 preparados para gravar, filmar e fotografar as manifestações musicais com

as quais ‘topassem pelo caminho’” (Toni: 2004, 7). Além disso, ainda deveriam

tomar nota de detalhes do patrimônio arquitetônico brasileiro através de desenhos e

registros fotográficos. A saída da equipe ocorreu em janeiro de 1938; ficaram alguns

181

dias em Santos, para embalagem e embarque de material de coletas e registros. A

partida rumo a Pernambuco acontece em 6 de fevereiro de 1939; chegam em Recife

uma semana depois. O grupo fica na região até o dia 23 de março. De acordo com

Flavia Toni (2004), trabalharam nos municípios de Rio Branco, Tacaratu, Brejo dos

Padres, Folha Branca e Paulista, nos arredores de Recife.

Em seguida partem rumo à Paraíba, e lá permanecem até 30 de maio, sendo esse o

estado em que passam a maior parte do tempo da Missão (superior a dois meses).

Visitam diversas cidades, tanto no litoral como no interior: Itabaiana, Campina

Grande, Areia, Patos, Pombal, Mamanguape e Baía da Traição, entre outras. De 30 de

maio a 15 de junho percorrem por terra os estados do Ceará e Piauí, até chegarem ao

Maranhão. Flavia Toni (2010) diz que um dos motivos de tamanha demora deveu-se a

pane no caminhão que transportava equipe e equipamentos.

Entre os dias 15 e 21 de junho realizaram trabalhos em São Luís do Maranhão. Em

seguida partem para Belém-PA, por terra, onde permaneceriam até 7 de julho. No

meio desse itinerário Mário de Andrade é demitido do Departamento de Cultura,

pela emergência do Estado Novo. Mas a equipe continua viajando para desenvolver os

trabalhos, como se estivesse incomunicável e não soubesse do ocorrido, expandindo

um pouco mais a Missão, encerrada logo depois. Em Belém a MPF é informada

oficialmente das mudanças políticas e do fim do projeto. Sem alternativa, a equipe

retorna no mesmo mês ao Rio de Janeiro (19 de julho). São recebidos por Mário de

Andrade, já fora do Departamento de Cultura (Toni: 2004).

Além dos equipamentos para registros sonoros, fílmicos e fotográficos, os quatro

responsáveis pela Missão também levaram inúmeras cadernetas, de ampla utilização

quando o uso de equipamentos mais modernos não era possível. Os cadernos

permitiam que os pesquisadores anotassem informações, músicas – letras e melodias

– em cadernetas com pentagramas, além de desenhos arquitetônicos e demais objetos

artísticos e culturais de interesse. Luís Saia, estudante de arquitetura, trouxe muita

informação com seus desenhos. A utilização de cadernetas como método de trabalho

remete diretamente às pesquisas de Mário de Andrade, que sempre carregava uma

delas para anotações necessárias. Elas estão presentes nos diários das viagens

etnográficas.

182

Desde o início da Missão, em Pernambuco, a equipe coletou dados sobre os

Carregadores de piano, toadas de boi, cabocolinhos, congos, frevos, Naus Catarinetas,

Boi bumbás, maracatus e outras manifestações. No aspecto religioso observaram

cultos de Xangô e Catimbó. Essa última observação foi possível porque a polícia de

Recife disponibilizou aos pesquisadores o material apreendido nos cultos. Esse dado

sugere o caráter higienista e preconceituoso das elites relativo às manifestações

populares, como já abordado65. Esses atos dos poderes públicos levaram Mário de

Andrade a solicitar a doação dos objetos apreendidos para o Departamento de

Cultura, na tentativa de preservá-los.

No estado do Maranhão observaram as manifestações de Tambor de Crioula e

Tambor de Mina, talvez as únicas danças registradas pela Missão que Mário de

Andrade não havia observado. Ambas têm origem africana. O Tambor de Crioula é

muito frequente no Maranhão e dançado em louvor a São Benedito, um dos santos

católicos mais populares entre a população negra. A dança não possui dramaticidade e

é encenada em qualquer época do ano, principalmente no Carnaval e em festas

juninas. Em 2007 foi incluída na lista de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. O

Tambor de Mina chegou ao Brasil por influência de escravos oriundos da região de

Gana, na África, e possui forte componente religioso. O tambor é essencial em seus

ritos. Sua manifestação expande-se para outros estados amazônicos e para o Piauí.

Durante os deslocamentos por terra, os pesquisadores faziam desenhos e anotações

sobre as manifestações. Também recolheram material de ex-votos, cerâmicas

decorativas e utilitárias. José Saia Neto (2010) reflete, sobre esse material:

Essas anotações de caráter mais abrangente, que vinham sendo produzidas de maneira regular, intensificam-se durante a viagem ao Brejo Paraibano e adquirem um caráter quase sistemático durante o deslocamento de João Pessoa a Teresina (...) Luiz Saia se dedica a registrar a arquitetura existente ao longo das estradas percorridas, o que resultou num extenso documentário das construções rurais, e seus elementos mais característicos, como a utilização da palha como elemento de vedação de telhados e paredes ou varandas cobertas por chapas metálicas, chamadas de latadas, constituindo um dos mais antigos levantamentos sistemáticos de arquitetura vernacular realizado no Brasil (Saia Neto: 2010, 76-77).

65 Para mais informações, ver: Flavia Toni (2010).

183

Carlos Sandroni, em Mário contra Macunaíma (1988), analisando a atuação política

de Mário de Andrade à frente do Departamento, e mais especificamente a Missão,

caracteriza a experiência como portadora de “finalidade nacional”, e plena de caráter

“altruísta da expedição”. Ele afirma:

O que queremos ressaltar é que é justamente devido a essa “finalidade nacional” da Missão que ela era importante também para São Paulo, pois assim o estado assumia tarefas nacionais, exercitando um papel de hegemonia cultural. Esse papel implicava numa mudança de atitude da cultura letrada, dos intelectuais, em relação à cultura popular (Sandroni: 1988, 124).

Mesmo com a Missão interrompida por problemas políticos, o objetivo de recolher e

registrar elementos da cultura brasileira foi concretizado por seus integrantes. E por

vezes produzindo material excedente, como quando recolhem desenhos e informações

arquitetônicos das cidades e caminhos percorridos pelo projeto. Ainda hoje, todo esse

material configura importante fonte de pesquisa sobre as manifestações culturais e

artísticas brasileiras.

Não se pode falar, entretanto, do papel da Missão de Pesquisas Folclóricas sem

entender igualmente o que a Sociedade de Etnologia e Folclore significou no

Departamento de Cultura, mais especificamente fornecendo bases metodológicas e

teóricas para coleta e inventário do material observado e recolhido no decorrer da

Missão. A Sociedade, assim, organiza-se antes mesmo da viagem pelo Brasil.

A Sociedade de Etnologia e Folclore contou com a colaboração da grande discípula e

amiga de Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga, de Paulo Duarte (seu amigo e

responsável por sua ida ao Departamento de Cultura) e também da etnóloga francesa

Dina Lévi-Strauss, que acompanhava seu marido, o antropólogo Claude Lévi-Strauss,

na Missão Universitária Francesa, composta por professores franceses (e também

italianos) contratados para iniciar as atividades da USP, então recém-criada.

O trabalho com Dina Lévi-Strauss esteve mais vinculado ao desenvolvimento da

Sociedade de Etnologia e Folclore, mas também foi importante nas atividades da

MPF. A SEF tinha como princípio a formação de pesquisadores e técnicos capazes de

reconhecer e coletar dados e materiais cultural e artístico de populações tradicionais

brasileiras. Inspirou-se em trabalhos que ocorriam em outros lugares do mundo,

184

conhecidos por Mário de Andrade a partir de revistas e livros. O Departamento,

então, desenvolveu cursos de formação, coordenados pela etnóloga Dina Lévi-Strauss

após convite do escritor modernista. Sobre o curso, Marta Batista (2004) comenta:

Em correspondência com o escritor, Dina (Dreyfus) Lévi Strauss – apresentada como “professora da Universidade de Paris e egressa dos quadros do Museu do Homem”, “ex-assistente do professor Dumas no Museu do Trocadero em Paris” – elaborava o programa das aulas no início de 1936, foi um curso de extensão universitária, dado no Departamento, com feição eminentemente práticas, visando o preparo dos alunos para pesquisa de campo. Metodologicamente importante, chamando a atenção para as exigências de uma colheita para pesquisas e análises posteriores (o local, a função e descrição do documento, dados sobre o informante etc.). O Curso de Etnografia e Folclores, ministrado em 21 aulas, definia áreas do conhecimento, grupos de objetos e documentos, sua classificação, análise e documentos. Enfocou desde contos e lendas, o folclore musical, até a cultura material (definições, classificação de objetos, habitação, instrumentos, tecelagem e cerâmica). As aulas de Dina, ao lado de pesquisas que coordenou, aconteceram entre abril e outubro de 1936 (Batista: 2004, 47).

Estabelece-se assim a ligação de Mário de Andrade com universidades, no exercício

do “homem público” para a criação e desenvolvimentos de cursos sobre etnologia e

folclore. O ensino dessas disciplinas foram, posteriormente, aplicáveis às coletas e

análises desenvolvidas pela Missão de Pesquisas Folclóricas.

A SEF surge após esse primeiro curso e pouco antes do retorno do casal Lévi-Strauss

a Paris, em período de férias após o primeiro ano de Brasil. A proposta da criação da

Sociedade é feita por Mário de Andrade em fins de 1936, em almoço de homenagem

a Dina Lévi-Strauss pelo sucesso do curso. A intenção inicial era um “clube” mas, por

influência da etnóloga francesa, surge a “sociedade”. A Sociedade de Etnologia e

Folclore é constituída no retorno do casal ao Brasil. De acordo com Batista (2004):

Seus estatutos foram discutidos e aprovados em 2 de abril de 1937, quando se elegeu a primeira diretoria: Mário de Andrade, presidente; Dina Lévi-Strauss, 1ª secretária; Lavínia da Costa Vilella, 2ª secretária e Mário Wagner, tesoureiro. Entre os 64 sócio fundadores, encontravam-se integrantes do Departamento, já participando da Sociedade de Sociologia, e alunos do curso. Além da diretoria citada, havia outros como: Bruno Rodolfer, Claude Lévi-Strauss, Edmundo Krug, Emílio Willens, Ernani Silva Bruno, Fábio Prado, José Bento Faria Ferraz, Luiz Saia, Paulo Duarte, Camargo Guarnieri, Oneyda Alvarenga, Pierre Monbeig, Plínio Ayrosa, Samuel W. Lowrie, Rubens Borba de Morais e Sérgio Milliet (Batista: 2004, 48).

Como vemos, a SEF tem em seus quadros representantes do próprio Departamento e

também intelectuais e artistas que desempenhariam papel significativo no campo das

artes e da cultura brasileira. Também se observa a relação entre cultura, política e

universidades, uma vez que alguns nomes pertenciam aos quadros universitários da

185

época. Outros nomes podem ser acrescentados, como Helbert Baldus, Paul Arbousse-

Bastide, Roger Bastide e Fernand Braudel.

O contato com a universidade não seu deu apenas com a USP. Mas também com a

Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, a qual Mário de Andrade manteve

contato através de Samuel H. Lowrie, vinculado a ela. Vera Cerqueira (2010) analisa,

em seu mestrado, as contribuições das correntes europeias e norte-americanas às

ciências sociais no Brasil, descrevendo o papel que Dina Lévi-Strauss e Samuel

Lowrie, respectivamente, tiveram no Departamento de Cultura66.

As pesquisas sistematizadas por Mário de Andrade em Na Pancada do Ganzá e, nesse

momento, na utilização de conhecimento científico para amparar observações e

coletas materiais da Missão de Pesquisas Folclóricas demonstram a importância de

teorias e metodologias, o que reforça a relação entre ciência (universidade), política e

cultura. Nessa circunstância, o contato com a universidade ganha contornos nítidos na

vida de Mário de Andrade. Em seu livro Lira Paulistana, um poema bastante

conhecido, e já citado, determina que: quando eu morrer quero ficar/ (...) Os olhos lá

no Jaraguá/ Assistirão ao que há-de vir,/ O joelho na Universidade,/Saudade...

(Andrade: 2005, 381).

Outro passo importante dado pelo Departamento, nessa mesma relação, ocorre com o

aparecimento da Revista do Arquivo Municipal, vinculada ao órgão e responsável pela

publicação de artigos sociológicos, antropológicos, etnológicos e folclóricos,

ampliando processos e esforços colaborativos entre poder público municipal,

universidade, artistas e intelectuais. Cabe notar que as revistas se fizeram presentes

nos diversos grupos modernistas. Serviam como porta-vozes dos variados projetos

estéticos e ideológicos que representavam.

Carlos Sandroni (1988), ao analisar o Departamento de Cultura, reflete:

Por que a Etnografia “se impôs” como tema do primeiro curso livre do DC? Porque este é presa da “pretensão ambiciosa de tudo saber sobre o Brasil, como disse MA no outro discurso que citamos, o de 25 de janeiro. E essa pretensão esbarra na “ausência

66 Samuel Lowrie veio ao Brasil em 1933 para ensinar sociologia na Escola Livre de Sociologia e Política e também integrou a Sub-divisão de Estatística do Departamento de Cultura onde trabalhou nos censos e estudos demográficos, publicando materiais importantes sobre São Paulo.

186

de orientação científica que domina a pseudo-etnografia brasileira” (...) Essa ausência consiste principalmente no caráter “falso” da “colheita” de documentação popular”. O momento é eminentemente empírico: trata-se de “colher, colher cientificamente”. O curso propiciará, pois, a orientação capaz de apreender de maneira fidedigna nossos “caracteres radicais”, contribuindo assim para pintar o mapa da brasilidade (Sandroni: 1988, 122-3).

Na relação com a universidade, importa ressaltar que foi o Departamento de Cultura

que apoiou a primeira viagem de Lévi-Strauss ao interior do Brasil, para realização de

pesquisas etnográficas posteriormente retratadas em livros como: Tristes Trópicos,

Saudades de São Paulo e Saudades do Brasil. Dorothea Passetti, em “Lévi-Strauss,

antropologia e arte” (2008) afirma:

(...) virá a primeira expedição etnográfica propriamente dia, entre os Kadiwéu e os Bororo, financiada pelo Museu do Homem e pela municipalidade de São Paulo, que é realizada durante as férias de final de ano, de novembro de 1935 a março de 1936, com Dina (...) Escolhe visitar os Kadiwéu, por serem mal estudados e quase desaparecidos, e os Bororo, por serem já mais conhecidos, “mas ainda cheios de promessas” (Passetti: 2008, 59).

Ainda sobre a primeira expedição de Lévi-Strauss ao interior do Brasil (ricamente

detalhada em Tristes Trópicos), Vincent Debaene e Frédéric Keck em Claude Lévi-

Strauss: L’homme au regard éloigné (2009) afirmam:

Quanto ao Departamento de Cultura, reúne intelectuais a partir do modernismo brasileiro dos anos 1920; seu diretor, o poeta Mário de Andrade, e o ensaísta Paulo Duarte iniciaram Levi-Strauss às realidades da sociedade brasileira. Na companhia deles, ele explora São Paulo e seus arredores – onde quase não há mais índios, contrariamente às promessas de Bouglé, mas uma sociedade em plena mutação. Envolvido em uma onda de modernização (afirma-se naquele momento que em São Paulo, se constrói uma casa por hora...), persistem os usos antigos e um rico folclore característico da história mestiça do Brasil. Os índios estão portanto em outro local, mais para o interior, e é com a ajuda de Andrade e Duarte que Lévi-Strauss prepara sua primeira expedição (Debaene e Keck: 2009, 34)67.

Importa anotar o apoio inicial de Mário de Andrade, ainda que por vias institucionais,

a Lévi-Strauss em seu início de carreira como etnólogo, colaborando com as

expedições realizadas. Passetti (2008) também refere-se a importância das revistas

editadas pelo Departamento, que publicavam ensaios sobre o Brasil e a cultura

brasileira. Algumas das pesquisas etnológicas de Lévi-Strauss no Brasil foram

publicadas pela Revista do Arquivo Municipal:

67 Tradução do autor.

187

Lévi-Strauss circulava bastante entre as vanguardas e foi na ‘Revista do Arquivo Municipal’, dirigida por Mário de Andrade e secretariada por Sérgio Millet, que publicou seus primeiros artigos brasileiros, já em 1935 (Passetti: 2008, 53).

A mesma pesquisadora aponta que Lévi-Strauss também publicava artigos em O

Estado de São Paulo. Em um deles defendeu a criação de um laboratório de

antropologia na USP. De acordo com Passetti (2008), no dia 17 de outubro Lévi-

Strauss escreve um artigo em que:

Apresenta uma proposta que deveria ser realizada na USP, e que se aproxima de modelos utilizados por institutos e museus etnológicos europeus e norte-americanos, como o Bureau of American Etnology e o Smithsonian Institute nos Estados Unidos, o Royal Anthropological Institute de Londres, o Museu de Etnografia do Trocadero, o Laboratório de Antropologia do Museu de História Natural e o Instituto de Etnografia da Sorbonne, em Paris (Passetti: 2008, 57).

Observam-se semelhanças entre essa proposta e a articulação para a criação da

Sociedade de Etnologia e Folclore. E novamente se evidenciam as ligações entre

instituições políticas e universidade brasileira. De acordo com Vera Cerqueira (2010),

o trabalho desenvolvido por essas parcerias fez com que o Departamento se

apresentasse “como um órgão capaz de instrumentalizar com métodos e práticas

científicas a ação pública do Estado no campo da cultura” (Cerqueira: 2010, 41).

Dois momentos institucionais do Departamento – Missão de Pesquisas Folclóricas e

Sociedade de Etnologia e Folclore – são muito representativos daquilo que Mário de

Andrade entendia por pesquisas sobre cultura popular brasileira. Enquanto dirigiu o

órgão governamental, estimulou a concretização de pesquisas sobre a cultura

brasileira com apoio institucional e aporte financeiro da instituição que representava.

Demonstram assim a visão de mundo complexa que tinha sobre a cultura brasileira.

De acordo com Antonio Candido (2011), Mário de Andrade, no grupo modernista, era

quem tinha a preocupação maior com pensar em profundidade a realidade brasileira,

como já afirmamos. Consideramos, assim, que esses dois projetos institucionais, tão

caros a Mário de Andrade, ecoaram caminhos já delineados por ele quando realizou

as viagens etnográficas, em fins da década de 20.

Miguel Chaia (2007) ao analisar as possibilidades de relação entre arte e política,

ressalta uma delas: a arte crítica, que seria desenvolvida:

188

a partir de uma aguçada consciência crítica do artista, propiciando a um indivíduo ou a um pequeno grupo criar obras baseadas na sensibilidade social, no gozo da liberdade e nos esforços e pesquisas para o avanço ou revolução da linguagem. Estão unidos, neste caso, aspectos formais e questões sociais. Nesta situação a arte aparece como forma de conhecimento e investigação, constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a realidade (Chaia: 2007, 22).

Nessa perspectiva é possível sintetizar afirmando que o artista é um estudioso da

sociedade. E, com base nesses estudos, estabelece os fundamentos para novas

possibilidades estéticas e políticas. Por outro lado, também exerce a cidadania através

de uma atuação política participante.

A arte crítica deixa transparecer os caracteres filosófico, intelectual e analítico da arte e deve ser remetida diretamente à pessoa do artista, exercendo um papel que o aproxima do estudioso social e, não raras vezes, do cidadão combativo. Poder-se-ia dizer que o produto arte não carrega a intenção política, mas sim a ação do artista produtor é que se aproxima da política. De tais condições nascem obras de reflexão que carregam o desejo de intervir na sociedade – sendo que estas obras, nas formas tradicionais, conceituais ou tornadas ações, deixam transparecer ideias articuladas e concepções de mundo dissonantes com a ordem estabelecida. Assim, esse tipo de arte traz em si o potencial da radicalidade, por oferecer as condições para a emergência da transgressão e resistência (Chaia: 2007, 23).

Mário de Andrade almejou construir um projeto social baseado numa arte crítica

através das ações políticas desenvolvidas no seio do Departamento de Cultura.

Possivelmente a intenção era repetir a experiência anterior, de tempos mais informais,

quando fez as viagens etnográficas e se colocou como intérprete da cultura brasileira.

189

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como último passo nesta tese, cabe agora, retomarmos algumas etapas do que foi

desenvolvido neste percurso. Ao longo deste trabalho procuramos apontar

determinadas características que tangenciaram parte da obra e trajetória política de

Mário de Andrade.

A ideia inicial foi dar um aporte para as relações tão importantes entre arte e ciência,

mais especificamente, Literatura e Ciências Sociais. Como discutido, vimos a

importância que diversos autores atribuíram à literatura no Brasil como forma de

representação da realidade brasileira, desde o século XIX. Antonio Candido coloca a

literatura como importante ferramenta de descoberta do Brasil aos brasileiros numa

época em que o fazer científico não era significativo no Brasil. Por isso o papel

importante que a literatura tem como fonte de saber sobre o Brasil.

Mário de Andrade que em um primeiro momento pode ser pensado eminentemente

como um escritor literário, ao tomar contato com o Brasil profundo, se transforma e

adquire importância como ator político e intérprete da cultura brasileira. Nessa

perspectiva, tenta compreender o Brasil a partir do campo da cultura. Seja através dos

usos da literatura para melhor entender o país. Ou ainda, ao estudar o país,

contribuindo para uma maior compreensão acerca de suas manifestações artísticas e

culturais próprias. Outra possibilidade consistiu em atuar no Brasil, que sempre se

interessou, através da ação política.

A primeira abordagem foca no homem literato. Aqui, entende-se a obra literária como

algo que possui fim em si mesmo, com uma proposta estética que carrega significado

em si própria. Mas, ao mesmo tempo, a obra de Mário de Andrade também guarda

uma preocupação com a pesquisa e, por isso, faz da literatura uma forma de entender

o Brasil. Como demonstramos essas pesquisas estiveram bastante presente em suas

poesias, crônicas e naquela que é considerada sua obra máxima, Macunaíma.

Elementos do visto, ouvido e “experenciado” durante suas viagens foram

incorporados em sua obra literária. Aqui se observa um pouco do arte-fazer de Mário

de Andrade uma vez que essas experiências sensíveis são retrabalhadas

190

racionalmente, resultando novas abordagens e criações literárias mais próximas do

inteligível. Pensando na dicotomia que tratamos no decorrer deste trabalho entre

inteligível e sensível.

A mesma linha de pesquisa que ele incorporou ao fazer suas viagens etnográficas é a

base do procedimento que usou para entender o Brasil, denominado como homem

pesquisador. Nesta perspectiva, Mário de Andrade usou parte de sua experiência

literária para expor em congressos, crônicas e ensaios seus estudos e pesquisas sobre a

cultura brasileira. Ensaiou uma obra monumental de interpretação da cultura brasileira

– Na Pancada do Ganzá. Embora, não concluída pôde ser organizada por Oneyda

Alvarenga, a partir das próprias orientações do seu autor, e se coloca de maneira

original na análise das manifestações culturais e artísticas brasileiras. Utiliza para isso

teorias e métodos antropológicos, etnológicos e o folclore para analisar tais

manifestações. Também procura entender as origens destas tendo por base as três

matrizes culturais que formam a brasilidade e o sincretismo cultural aqui

estabelecidos.

A última abordagem, analisada nesta tese, trata da contribuição de Mário de Andrade

para a cultura brasileira, em sua vertente de homem público. Cabem duas distinções já

citadas: a) na política de participação no espaço público e b) no funcionamento das

instituições, como lembra Chaia (2007). O escritor participa do primeiro quando se

envolve com o Movimento Modernista, ao fazer determinadas propostas estéticas que

alteram os sentidos e percepções do fazer artístico brasileiro. Estas repercutem

igualmente em novas formas de olhar o Brasil que se expandem para outros universos

sociais e políticos. Observa-se a relação estabelecida entre projeto estético e projeto

ideológico. Mas sua participação na cultura brasileira ganha mais um capítulo quando

assume o Departamento de Cultura, onde atua como ator político institucional. Nesse

momento, o escritor modernista passa a agir no funcionamento das instituições.

Desenvolve dois projetos que repercutem até hoje quando se pensa a

institucionalização da cultura brasileira: a Missão de Pesquisas Folclóricas e a

Sociedade de Etnologia e Folclore.

A primeira consistiu em enviar às regiões norte e nordeste do Brasil, uma equipe para

recolher material e objetos de cultura popular como: instrumentos musicais, objetos

191

de uso religiosos e cotidianos, entre outras coisas. Além disso, também coletarem

através de registros sonoros e visuais, entre outros suportes, as manifestações culturais

e artísticas brasileiras.

Essa busca foi inspirada nas viagens etnográficas que Mário de Andrade havia

realizado anos antes, onde já se preocupava com as transformações da sociedade

brasileira e pensava em maneiras de preservá-las. Esta forma de preservação

culminaria anos mais tarde na ideia de patrimônio histórico material, levando ao

desenvolvimento do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)

fornecedor das bases do atual IPHAN. Nesse sentido, Cerqueira & Nascimento (2010)

lembram a importância deste papel de homem público que ainda hoje tem

repercussão. Eles recordam que o próprio projeto organizado por Mário de Andrade

hoje é um bem tombado da cultura brasileira:

Apesar de moroso, em alguns momentos, o processo de preservação gerou o reconhecimento público do conjunto de registros da Missão. Em 2005 o Conselho Consultivo do IPHAN reconhece o Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga, no qual está integrada a coleção da Missão, como Patrimônio Cultural brasileiro e, em 2009, a coleção teve sua candidatura aprovada como Patrimônio Documental pelo Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da UNESCO (Cerqueira & Nascimento: 2010, 8-9).

Revela-se, dessa maneira, o alcance do trabalho de Mário de Andrade como homem

público e gestor da cultura. Outra forma de atuação política foi através da constituição

da Sociedade de Etnologia e Folclore. Observa-se, nesse momento, uma aproximação

ainda mais significativa de Mário de Andrade com a academia e o fazer científico. O

contato com o casal Lévi-Strauss, sobretudo Dina, adicionado à preocupação que o

escritor tinha com a coleta de material e informações resultou na criação de cursos

sobre etnologia e folclore que colaborariam mais tarde com os trabalhos da Missão.

Estabelece-se portanto uma forte relação entre cultura e política que ainda merece

novos desdobramentos de pesquisas. Através do Departamento de Cultura, Mário de

Andrade se coloca como articulador de cursos fornecidos pela parceria estabelecida

entre poder público e universidade. Cumpre-se portanto mais uma das vertentes

mariodeandradianas ao disponibilizar as ferramentas institucionais para agir

politicamente em prol da preservação e manutenção da cultura brasileira.

192

Para chegar até aqui foi necessário a realização de um percurso que necessitou

mergulhar nas diversas faces de Mário de Andrade, ou no seu multiverso: “trezentos,

trezentos-e-cincoenta”, como ele mesmo dizia.

A ideia inicial era apontar a importância das viagens etnográficas de Mário de

Andrade para pensar novas possibilidades interpretativas do Brasil. Pelo percurso

desenvolvido esperamos que fique claro, que as regiões visitadas nestes caminhos

foram importantes por mostrar ao escritor modernista outros Brasis que foram

incorporados em sua obra sejam: poesias, crônicas, contos, romances e também em

seu papel político.

As preocupações que guardou enquanto abordagens metodológicas ajudaram a

desenvolver perspectivas científicas no folclore e antropologia brasileiros. Além de

fornecer a base para inúmeros projetos que vigoram ainda hoje nas instituições

políticas brasileiras como é o caso do IPHAN, Discoteca Pública e o próprio MinC,

cujas bases foram fornecidas pelo Departamento de Cultura.

Mas a importância e o significado de Mário de Andrade não se resumem ao que foi

discutido aqui. Outras abordagens podem ser desenvolvidas. Entre elas, por exemplo,

as repercussões que o próprio modernismo gerou no debate político-cultural que se

seguiu nos anos seguinte. O Tropicalismo e o Movimento Armorial liderados

respectivamente por Caetano Veloso e Gilberto Gil e Ariano Suassuna, por exemplo,

baseiam-se em caminhos e possibilidades geradas pelos modernistas.

Outra possibilidade é aprofundar as relações entre intelectuais e Estado que se

constituem em práticas políticas muito comuns no Brasil. Vale lembrar que os

escritores Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos e o

próprio Ariano Suassuna, entre muitos outros, também tiveram aproximações com as

políticas de Estado, das mais diferentes colorações. Passamos por algumas delas aqui,

mas ainda há muito o que ser pesquisado sobre estes vínculos, por vezes, tão

intrínsecos.

Outro caminho possível e aparentemente muito profícuo é a rede de relações sociais

estabelecidas por Mário de Andrade. Aqui, abrem-se várias possibilidades de debate

193

entre as inúmeras pessoas que ele manteve contato ao longo de sua vida, cujas

correspondências são fartamente ilustrativas deste aspecto.

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ANEXO 1

Moda da Cadeia do Alegre Porto

Velas encarnadas de pescadores, Velas coloridas de todas as cores, Águas barrosas de rios-mares, Mangueiras, mangueiras, palmares, palmares, E a barbadianinha que ficou por lá!... Que alegre porto, Belém do Pará! Que porto alegre, Belém do Pará! Vamos no mercado, tem munguzá! Vamos na baía, tem barco veleiro! Vamos nas estradas que tem mangueiras! Vamos ao terraço beber guaraná! Oh alegre porto, Belém do Pará! O sol molengo no pouco ameno, Calorão batendo que nem um remo, Que gostosura de dormir de dia! Que luz! que alegria! que malinconia! E a barbadianinha que ficou por lá! Que alegre porto, Belém do Pará! A barbadianinha que ficou por lá Relando no branco dos moços de linho Passeando no Souza, que lindo caminho! À sombra de enorme frondosa mangueira, Depois que choveu a chuva para-já!... Oh barbadianinha, Belém do Pará! Lá se goza mais que em New York ou Viena! Só cada olhar roxo de cada morena De tipo mexido, cocktail brasileiro, Alimenta mais que um açaizeiro, Nosso gosto doce de homem com mulher! No Pará se pára, nada mais se quer! Prova tucupi! Prova tacacá!

Que alegre porto, Belém do Pará!68

68 Para mais detalhes ver Mário de Andrade (2002, pgs. 166-7).

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