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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: O LEGADO DE ZAHIDÉ MUZART Risolete Maria Hellmann 1 Resumo: Este artigo pretende apontar os rumos do legado deixado por Zahidé Muzart (1939-2015). Ela foi uma pesquisadora incansável, uma crítica feminista atuante politicamente, uma editora voraz, bem como criou e atuou em muitos grupos de trabalho em prol do desenvolvimento da crítica literária e história da literatura feministas no Brasil. Palavras-chave: Crítica literária. Crítica feminista. Zahidé Muzart. Descrever o legado que Zahidé Lupinacci Muzart nos deixou em poucas páginas é uma tarefa quase impossível, considerando a profissional de renome internacional, a pesquisadora incansável, a crítica feminista atuante politicamente, a editora voraz, os muitos grupos de trabalho que criou e/ou em que atuou por quase cinco décadas, enfim a feminista que ela foi, e continua sendo pelo que nos deixou. Por isso, começo justificando que meu texto apenas vai apontar os rumos do muito que pode ser estudado do legado de Zahidé Muzart, principalmente para a história e crítica literária feminista brasileira. Quem foi Zahidé Lupinacci Muzart? Nascida em Cruz Alta, RS, Zahidé Lupinacci Muzart (1939-2015) dedicou grande parte da sua vida acadêmica aos livros e às mulheres das mais diversas formas. Nessa trajetória, graduou-se em Letras Neolatinas pela PUC do Rio Grande do Sul, em 1961, assim como, em Música pela Escola de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1966. Em 1962, fez uma especialização em Literatura Francesa no Centre D’etudes Supérieures de Français, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Entre 1967 e 1968 fez uma nova especialização em Língua Francesa, pela Université de Toulouse. E também, entre 1967 e 1970, doutorou-se em Letras pela Université de Toulouse Le Miral, ambas como bolsista do governo francês, e defendeu a tese Etude Comparative du style: Jubiabá et O Moleque Ricardo, orientada por Jean Roche. É preciso lembrar que, desde o final da década de 1950, até meados da década de 1960, escassearam os recursos dos principais órgãos de fomento à pesquisa no Brasil (CAPES e CNPq 2 ) e 1 Professora do Instituto Federal de Santa Catarina, Campus Florianópolis-Continente, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: [email protected]

CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: O LEGADO DE ZAHIDÉ MUZART · 2018-01-17 · 2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: O LEGADO DE ZAHIDÉ MUZART

Risolete Maria Hellmann1

Resumo: Este artigo pretende apontar os rumos do legado deixado por Zahidé Muzart (1939-2015).

Ela foi uma pesquisadora incansável, uma crítica feminista atuante politicamente, uma editora

voraz, bem como criou e atuou em muitos grupos de trabalho em prol do desenvolvimento da crítica

literária e história da literatura feministas no Brasil.

Palavras-chave: Crítica literária. Crítica feminista. Zahidé Muzart.

Descrever o legado que Zahidé Lupinacci Muzart nos deixou em poucas páginas é uma

tarefa quase impossível, considerando a profissional de renome internacional, a pesquisadora

incansável, a crítica feminista atuante politicamente, a editora voraz, os muitos grupos de trabalho

que criou e/ou em que atuou por quase cinco décadas, enfim a feminista que ela foi, e continua

sendo pelo que nos deixou. Por isso, começo justificando que meu texto apenas vai apontar os

rumos do muito que pode ser estudado do legado de Zahidé Muzart, principalmente para a história e

crítica literária feminista brasileira.

Quem foi Zahidé Lupinacci Muzart?

Nascida em Cruz Alta, RS, Zahidé Lupinacci Muzart (1939-2015) dedicou grande parte da

sua vida acadêmica aos livros e às mulheres das mais diversas formas. Nessa trajetória, graduou-se

em Letras Neolatinas pela PUC do Rio Grande do Sul, em 1961, assim como, em Música pela

Escola de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1966. Em 1962, fez uma

especialização em Literatura Francesa no Centre D’etudes Supérieures de Français, como bolsista

da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Entre 1967 e 1968 fez

uma nova especialização em Língua Francesa, pela Université de Toulouse. E também, entre 1967 e

1970, doutorou-se em Letras pela Université de Toulouse – Le Miral, ambas como bolsista do

governo francês, e defendeu a tese Etude Comparative du style: Jubiabá et O Moleque Ricardo,

orientada por Jean Roche.

É preciso lembrar que, desde o final da década de 1950, até meados da década de 1960,

escassearam os recursos dos principais órgãos de fomento à pesquisa no Brasil (CAPES e CNPq2) e

1 Professora do Instituto Federal de Santa Catarina, Campus Florianópolis-Continente, Florianópolis, Santa Catarina,

Brasil. E-mail: [email protected]

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o ritmo de investimento na pesquisa desacelerou, segundo (LIMA, 1998, p.98), mas Zahidé Muzart

conseguiu uma bolsa da CAPES para a especialização em Literatura na França. No entanto, para o

doutorado, valeu-se de uma bolsa do governo francês, pois, conforme Lima (1998, p.98) a crise

perdurou até que “[...]o governo militar, estrategicamente, incorporou o planejamento das atividades

de pesquisa ao seu projeto de modernização”, implementando o Programa Integrado de Capacitação

Docente (PICD), entre outras ações, que possibilitaram “[...]o deslocamento remunerado de

professores para ao exterior e para os centros que já possuíam um sistema de pós-graduação

estruturado[...]”. Quando Zahidé Muzart entrou na UFSC, em 1976, o Brasil vivia esse período de

reestruturação universitária e novo momento de investimento em pesquisa, até chegar o

agravamento da crise no país, no início da década de 1980.

Apesar de ter iniciado a docência como professora de francês, entre 1971 e 1974, na

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em São Paulo, logo enveredou pela docência na

área de Literatura Brasileira e Teoria Literária, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Iniciou como professora visitante em 1976 e tornou-se professora efetiva em 1979. Desde esse final

da década de 1970 até 1993, quando se aposentou, atuou tanto no ensino da graduação, quanto da

Pós-graduação em Literatura, além das inúmeras outras funções que desempenhou junto à UFSC.

Foi durante essa época de atuação na UFSC, intercalando os dois períodos em que atuou na função

de coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Literatura (1981 a 1983 e 1986 a 1987), que

ela concluiu o Pós-doutorado na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França (1983-

1984), novamente como bolsista da CAPES.

Zahidé Muzart também foi bolsista do CNPq (1A), desde 1991, com o projeto de resgate das

escritoras brasileiras do século XIX. O último projeto foi enviado em julho de 2015, três meses

antes de falecer.

Quando me aposentei, tinha oito orientandas e um projeto de resgate de escritoras do século

XIX, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq). Continuei, por isso, muito ligada à pós-graduação da UFSC. No início de minha

pesquisa, era voz corrente que aquelas mulheres do século XIX nada tinham escrito e, por

conseguinte, menos ainda publicado enquanto viveram. No entanto, logo ficou claro que, na

verdade, não só escreveram e publicaram uma grande quantidade de textos, mas, bem mais

que isso, que esses textos constituíam um legado de boa qualidade literária e de valor

histórico inquestionável. Tudo ficou ainda mais evidente quando descobrimos que de nada

adiantaria apenas revelar os nomes dessas escritoras, os pormenores de suas vidas,

relacionar o que escreveram. Era fundamental republicá-las hoje. E a partir dos primeiros

resultados do projeto é que surgiu a ideia de criar uma editora cuja finalidade fosse realizar

2 O surto desenvolvimentista do Brasil nos anos de 1950 trouxeram à cena o interesse do governo em incentivar a

pesquisa científica, tendo sido criadas as duas principais agências de fomento: CAPES e CNPq. O objetivo era preparar

professores e pesquisadores em centros de pesquisa estrangeiros como apoio à formação de uma estrutura de ensino e

pesquisa indispensáveis ao atendimento da demanda por profissionais qualificados. (LIMA, 1998, p.98)

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um projeto de resgate, isto é, reeditar livros das escritoras do passado, fossem elas

brasileiras ou não. (MUZART, 2014, p. 431)

As muitas bolsas de estudo, conquistadas pela sua competência, nos remetem aos períodos

de investimento (ou não) do governo brasileiro em pesquisa científica, descritos por Raquel Lima

(1998, p. 98-99).

Nesse sentido, Zahidé Muzart, muito além de ter sido atenta às oportunidades que a vida

oferecia, investiu na construção de seu próprio conhecimento científico, literário, histórico, social,

cultural, predominantemente com o foco sobre a Mulher e a Literatura. A professora pesquisadora

também foi uma das principais responsáveis pela implementação do curso de Pós-Graduação em

Literatura da UFSC a nível de Mestrado, assim como na criação do doutorado no mesmo programa,

em 1997. Da mesma forma como fizeram outros grupos de professores, que retornaram do exterior

com doutorado, a partir da década de 1980, fazendo com que os cursos de Pós-gradução, aqui no

Brasil, fossem capazes de garantir “a sua reprodução interna, sem maiores dificuldades,

viabilizando, de certa forma, a tão almejada união entre ensino e pesquisa”, conforme explica Lima

(1998, p.99). Mais do que isso, Zahidé Muzart contribuiu decisivamente para a definição do status

da crítica literária enquanto uma disciplina de caráter científico3, assim como para a consolidação

de uma crítica literária feminista no Brasil a partir de meados da década de 1980. A multifacetada

intelectual foi pioneira nos estudos sobre Mulher e Literatura no nosso país e trabalhou nessa

missão até os seus últimos dias, sem demonstrar cansaço ou desânimo diante das muitas

dificuldades encontradas. Pelo contrário, cada adversidade era respondida com uma nova ação.

Como professora pesquisadora e orientadora, em seu currículo lattes, ela deixou registradas

duas linhas de pesquisa principais, desenvolvidas enquanto docente e orientadora de mestrandos e

doutorandos da UFSC: a) Literatura, História e Memória (1979-1994), na qual trabalhou e orientou

trabalhos de resgate e análise de textos esparsos e inéditos de autores catarinenses, entre eles: Cruz

e Souza, Duarte Schütel e Ana Luíza de Azevedo e Castro. b) Literatura e Mulher (1994-2015), na

qual desenvolveu (e orientou) pesquisa de resgate de escritoras brasileiras do século XIX.

Considerando que, nos diversos cursos de pós-graduação em Literatura Brasileira, Teoria

Literária e Literatura Comparada no Brasil, a forma de abordagem do texto literário é bastante

3 De acordo com Santos (1992), a crítica literária no Brasil iniciou nos rodapés de jornais, a qual era caracterizada pelo

autodidatismo e amadorismo dos intelectuais que a assinavam. E a sistematização da crítica literária nas universidades

corresponde ao “ fortalecimento de uma ciência da literatura, concebida, enfim, entre nós, como um saber que se pensa

epistologicamente, que se volta para o exame de um objeto específico, que formula e emprega métodos, técnicas e

processos, que carece de elaborar categorias, noções e princípios sólidos, que procura articular-se de algum modo, a um

campo maior, ao das Ciências Sociais e Humanas.” SANTOS, Roberto C. dos. A crítica literária no Brasil (últimos

quinze anos) Ensaios de Semiótica, Belo Horizonte, v.26, 1992-1993. p.85-97)

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diferenciada, havendo uma polarização de posturas teóricas assumidas pelos professores

orientadores (às vezes, dentro de um mesmo curso), nas pesquisas de Zahidé Muzart, predominaram

as abordagens de cunho sociológico e cultural, visando articular texto literário com o contexto de

produção, assim como com a vinculação de toda e qualquer produção cultural a determinada

posição ideológica. A maioria dos seus projetos de pesquisa, quando não tem como foco a literatura

catarinense, estão inseridos

[...]na tendência de uma crítica feminista interessada no estabelecimento de uma tradição

literária escrita por mulheres: uma literatura própria. Porém, vai mais além desse propósito,

pois, ao mesmo tempo que contribui para a história da escritura de mulheres no Brasil,

participa da (re) escritura de sua história cultural e contribui não só para escrever a história

da mulher de letras, em nosso país, mas também para trazer subsídios para a nossa história

cultural, discutindo o lugar das escritoras na História da Literatura.” (MUZART, 2014,

p.430-431)

Não caberia nas linhas deste artigo, a análise de todas as orientações e produções intelectuais

de Zahidé Muzart, mas, entre as teses mais recentes orientadas por ela, que tem relevância para a

crítica literária feminista, e ilustram o pensamento crítico da orientadora Zahidé Lupinacci Muzart,

estão: “Resgates e ressonâncias: Mariana Coelho” (2004) de Rosana Cássia Kamita; ”Processos de

subjetivação na prosa ficcional de Hilda Hilst: uma escrita de nós” (2008) de Ana Cláudia

Gualberto; “Nos passos de Antonieta: escrever uma vida” (2010) de Luciene Fontão; “Dicionário

literário de escritoras catarinenses” (2011) de Claudia Silveira; “Retalhos, vivências: um ensaio

sobre a crônica de Rachel de Queiroz nas páginas de O Cruzeiro” (2011) de Cecília Cunha; “Helena

Kolody, carbono e diamante - uma biografia ilustrada” (2012) de Luísa C. dos Santos Fontes;

“Escrínio, Andradina de Oliveira e sociedade(s): entrelaços de um legado feminista” (2015) de Rosa

Cristina Hood Gautério; e, modéstia à parte, a minha que foi literalmente a última banca da qual ela

participou em 2015: “Carmen Dolores, escritora e cronista: Uma intelectual feminista da Belle

Époque”.

Sua presença e publicação de suas ideias feministas e literárias nos eventos acadêmicos não

foi menor, destacando-se pelo exercício de uma característica marcante: não media as palavras para

defender a importância das escritoras do século XIX, tendo sido convidada para e ter organizado

várias vezes mesas redondas e palestras de abertura de eventos nacionais e internacionais, além de

ter recebido homenagens de instituições diversas. Publicou 40 livros, 82 capítulos de livros, um

número relevante de artigos em periódicos científicos, além de ter organizado várias publicações em

parceria com especialistas das suas áreas de pesquisa. Por muitos anos foi colaboradora do

periódico O Catarina, tendo ali 46 matérias publicadas.

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Zahidé Muzart foi criadora da Revista Travessia da UFSC em 1980 e sua editora por 13

anos. Foi parecerista das revistas Brasil/Brazil (PUC/RS); Signótica (UFG); Travessia (UFSC);

Verbo de Minas (UFJF); Plural/Pluriel (Univ. Nanterre, França); Anuário (UFSC); Estudos

feministas (UFSC) e foi editora de artigos e resenhas da Revista Estudos Feministas (REF) da

UFSC; assim como Coordenadora do IEG - Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal

de Santa Catarina por vários anos.

Mara Lago (2014, p.401), ao falar sobre “A maioridade da Revista Estudos Feministas:

entrelaçando experiências”, dá destaque ao o índice de citações alcançado pela REF na SciELO:

[...]foi uma notícia muito gratificante para todas as editoras envolvidas com sua publicação:

a Revista Estudos Feministas é um periódico acadêmico da área de Ciências Sociais

Humanas, é feminista, dedica-se aos estudos de gênero, sempre procurou estar envolvida

com os movimentos que lutam por igualdades, pela defesa das diferenças e contra todas as

formas de discriminações, é uma publicação interdisciplinar, é fruto do trabalho coletivo

desde sua concepção.

Apesar de seus muitos trabalhos individuais, Zahidé Muzart prezava muito os trabalhos

coletivos, não só como participante, mas como líder que ela efetivamente foi, principalmente nas

instituições que ela fundou, como o GT Mulher na Literatura (1986); Fazendo Gênero nos anos de

1990; no projeto de resgate de 160 escritoras brasileiras do século XIX, que resultou na antologia

em três volumes; e na criação da Editora Mulheres (1995). Todas instituições muito importantes

para a constituição de uma crítica literária feminista no Brasil.

Além de ter participado da fundação do GT Mulher e Literatura, foi Coordenadora Nacional

entre 2001 e 2002 e muito trabalhou nesse coletivo. Como escreve Suzana Funk (2010, p.13) na

apresentação do livro comemorativo dos 25 anos do GT:

Os Boletins do GT e os livros e anais organizados a partir das apresentações de resultados

de pesquisa nos encontros da ANPOLL e nos seminários bi-anuais têm impulsionado a

divulgação científica da área, embora a inserção em periódicos interdisciplinares ou não

especificamente feministas ainda precise ser ampliada, para que o impacto dos estudos

realizados no contexto da Associação Nacional possa ecoar mais fortemente no cenário

geral da cultura brasileira.

Quanto a sua atuação no Seminário Fazendo Gênero, posso afirmar que, se estamos aqui

hoje, Zahidé Muzart tem uma participação essencial nisso. Foi ela quem organizou e coordenou o 1º

Encontro Fazendo Gênero, em 1994. Um evento modesto realizado no CCE e que hoje tem esse

reconhecimento internacional. Zahidé Muzart faz parte da história deste evento, pois participou ao

longo de 20 anos na sua organização.

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Os principais resultados do projeto arqueológico de resgate das escritoras brasileiras do

século XIX, liderado por Zahidé Muzart, foram publicados em três momentos. Como afirmam

Tania Ramos e Simone Schmidt (2005, p.219) sobre o Volume I e II:

Em 1999, mil páginas chegaram literalmente pelas mãos de Zahidé Muzart às nossas mãos,

no volume Escritoras Brasileiras do Século XIX, uma belíssima e primorosa edição da

Editora Universidade de Santa Cruz do Sul e da Editora Mulheres, de Florianópolis

(www.editoramulheres.com.br). Nele, a força de trabalho, manual e intelectual de algumas

pesquisadoras contemporâneas, somando a essa empreitada, as escritoras (re)descobertas, a

planejadora, a organizadora, as editoras, a prefaciadora: mulheres amarrando as pontas de

dois séculos, integrando norte, sul, leste, oeste, as Américas. [...]

Em 2004, cinco anos depois, mais mil cento e oitenta páginas compõem o volume II.

Nestes 5 anos, vinte pesquisadoras estudam mais cinquenta e três mulheres do século XIX.

Em outras palavras, esta é uma cruzada, comandada pela professora, pesquisadora e editora

Zahidé Lupinacci Muzart, para dar a ler a sua história da literatura, aquela que ainda não foi

contada.

Em 2005, o livro Escritoras Brasileiras do Século XIX, Vol. II, foi indicado ao 47 Prêmio

Jabuti, assim como todos os volumes foram muito bem aceitos pela crítica. Nas palavras de

Ramos e Schmidt (2005, p.219):

Escritoras Brasileiras do Século XIX é, em síntese, não somente o resultado de uma

pesquisa integrada, mas uma demonstração de um trabalho de equipe e de uma sinfonia

ou sintonia de múltiplas vozes em um tempo datado: escritoras brasileiras do século

XIX, pesquisadoras brasileiras do século XX, literatura brasileira para o século XXI, que

possibilitam reavaliar nossa história cultural.

Em 2009, Zahidé Muzart nos presenteou com a organização do terceiro volume da antologia

Escritoras Brasileiras do Século XIX. São mais 1144 páginas, que revelam a biografia e a análise de

excertos das obras de mais 55 escritoras que, em sua maioria, escreveram e publicaram suas obras

nas primeiras décadas do século XX. No prefácio Simone Schmidt (2009, p.13-15) ressalta que a

crítica feminista no Brasil, há cerca de vinte anos na academia, pode se considerar extremamente

bem-sucedida, apesar das muitas resistências encontradas. Considerando que, até a década de 1980,

pouco existia sobre literatura produzida por mulheres, o trabalho de resgate, coordenado por Zahidé

Muzart, num país culturalmente conhecido como “sem memória”, se mostra multiplamente

transgressor: “em relação ao cânone literário vigente nas estruturas de poder-saber em nossa

sociedade, em relação à própria ideia de cânone, com seus mecanismos de valoração e exclusão[...]”

e, ainda, propõe a construção de uma outra história da literatura brasileira: aquela que não foi

contada e agora pode ser.

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A Editora Mulheres, um capítulo à parte

Zahidé Muzart cultivou a habilidade de editar na veia, desde jovem. Como ela mesma

afirmou:

Nas andanças de editora, observo que meu aprendizado esteve muito mesclado a leituras,

mas, igualmente, a ensino, a vivências e a política. É uma história de erros e de acertos.

Comecei mais ou menos aos 16 anos. Nos anos 50, no ginásio de freiras, em Cruz Alta, fui

presidente do Grêmio Literário e editamos um jornalzinho, chamado O Sino da Serra. Era

impresso, e tínhamos pouca ingerência na sua feitura, já que as freiras a tudo governavam e

censuravam. Só discutíamos as matérias e catávamos artigos entre as colegas, coisa que

continuei fazendo trinta anos depois, na revista Travessia, de 1980 a 1993, na Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC). (MUZART, 2014, p.429-430

Em 1995, já aposentada da UFSC, sente o desejo de continuar a trabalhar com edição de

livros e, inicialmente em sociedade com Susana Funk (uma ferrenha feminista segundo

Zahidé), fundou a Editora Mulheres, especializada em resgate de textos de escritoras do século

XIX. “Ao fundarmos essa editora, a inspiração nos veio das várias editoras feministas já

existentes, desde muito tempo[...]” na Europa, mas também no Chile, principalmente a francesa

Des Femmes. “Assim como as editoras feministas que nos precederam, também desejávamos

tirar da marginalização os livros de mulheres do passado.” Elas inauguraram a Editora com a

edição de Mulheres Illustres do Brazil de Ignez Sabino, como uma homenagem a uma

extraordinária mulher que reuniu as várias escritoras de seu tempo e publicou em livro com

fotos e biografia. (MUZART, 2014, p.427-432)

Ainda de acordo com Muzart (2014, p. 437):

Como qualquer outra editora, a Mulheres tem algumas séries básicas, que são: a série

Romance; a série Ensaios, que edita estudos de gênero; a série Poesia; a série Viagem; a

série Cartas e Memórias, a série Feministas; e a série Gênero e Violência (coordenada

por Miriam Grossi). Dessas séries, é a de Ensaios a que tem maior número de

publicações e em que se situam os estudos de gênero oriundos dos encontros do Fazendo

Gênero.

Ao longo de 18 anos, a Editora publicou coletâneas com artigos de teoria e crítica

feminista, obras inéditas de pesquisadoras brasileiras sobre temas diversos relacionados ao

feminismo e a história das mulheres, traduções relevantes para a história do feminismo, obras

de ficção de escritoras brasileiras contemporâneas, assim como obras de ficção de escritoras do

século XIX, organizadas por ela ou por outras pesquisadoras. Reeditar e ressuscitar escritoras

do passado, recuperar parte da produção da mulher brasileira no século XIX foi uma grande

contribuição para a história da literatura brasileira, movida pelo amor ao livro e à cultura. A

editora ainda lista “estudos críticos sobre escritoras, índices bibliográficos e outras obras de

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consulta, ou seja, instrumentos de pesquisa sobre a literatura feita por mulheres e sobre os

estudos de gênero numa dimensão interdisciplinar.” (MUZART, 2014, p.432)

Mesmo com todas as dificuldades encontradas, Zahidé Muzart dizia com orgulho:

São mais de cem títulos publicados, e saliento as coletâneas ligadas à linha de pesquisa

Literatura e Mulher, originadas diretamente dos encontros do GT, editadas e organizadas

por Izabel Brandão e por mim, Refazendo nós, em 2003, e os dois livros resultantes do

Seminário Mulher e Literatura, no Rio de Janeiro, em 2005, Entre o estético e o político,

organizados por Maria Conceição Monteiro e Tereza Marques de Oliveira Lima. Os

demais da mesma linha de pesquisa são resultados de teses ou de pesquisa com o apoio

do CNPq, como os três volumes do Escritoras do século XIX, uma série que projetou

bastante o nome da Editora, pois teve uma enorme aceitação da mídia.” (MUZART,

2014, p.439)

Priscila Pasko (2017), ao falar sobre a importância e o papel da Editora Mulheres, nos

lembra que não são apenas os números que importam, mas principalmente a contribuição

teórica, intelectual e histórica que ela presta.

Em 2014, Zahidé Muzart ainda falou de desejos e projetos de tradução e edição, dificultados

pela falta de financiamentos, assim como pelos muitos gastos suplementares de uma edição e

indagava: “Como levar adiante um projeto de ressurgimento de escritoras silenciadas pelo cânone?

Como se dedicar a editar livros que só interessam a poucos pesquisadores? É essa a principal

questão da Editora Mulheres, desde sua criação.” (MUZART, 2014, p.438). Comentava ainda as

grandes dificuldades com distribuidores e de sobrevivência das pequenas editoras no mercado

editorial, deixando bem claro, com uma citação final, que mantinha a Mulheres por amor à arte: “a

paixão do editor não é o resultado financeiro, mas a aventura, cujo resultado é uma espécie de júbilo

diante de cada livro bem-sucedido” (EPSTEIN, 2002, apud MUZART, 2014, p.441). Contudo,

Zahidé Muzart partiu em 2015 e com ela a Editora foi vendida pelos herdeiros e já não cumpre o

objetivo para o qual foi criada e mantida.

A crítica literária feminista no Brasil: a perspectiva de Zahidé Muzart

Em 1995, cursando a disciplina de Teorias Críticas Feministas no Mestrado em Literatura

Comparada na UFRN, com a professora pesquisadora cubana Nara Araújo, ela, depois de uma

rápida introdução sobre as correntes teóricas francesa, inglesa e norte-americana, nos fez ler e

debater todos os artigos publicados nos anais do Seminário Nacional Mulher & Literatura I, II, III,

IV e V, além de nos indicar livros como: Trocando Ideias sobre a Mulher e a Literatura de 1994

(organizado por Susana Funk) e Rompendo o Silêncio: Gênero e Literatura na América Latina de

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1995 (organizado por Márcia Hoppe Navarro). Quando a questionei por que não estávamos lendo

Kate Millet (A política sexual, 1970), Patricia Meyer Spacks (The Female Imagination, 1975) Ellen

Moers (Literary Women, 1976) ou as publicações de Sandra Gilbert e Susan Gubar, ou ainda Elaine

Showalter, entre tantas obras clássicas, Nara Araújo indagou: ¿Quieres leer los clásicos? Então me

atribuiu a tarefa de apresentar uma resenha do livro Um Teto todo seu de Virgínia Wolf e fez a

turma toda ler os dois volumes de O segundo Sexo de Simone de Beauvoir. Para encerrar a resposta

a minha indagação ela completou:

O país que tem um grupo de trabalho como este GT Mulher e Literatura, que nasceu em

Santa Catarina e, em menos de 10 anos foi capaz de produzir tanto e com tanta qualidade,

não precisa ficar aqui repetindo pressupostos teóricos que não cabem em sua realidade.

Precisa, antes de mais nada, aprender a valorizar o que é seu. (NARA ARAÚJO, setembro

de 1995, anotações de sala de aula)

Nara Araújo prefaciou o primeiro volume da antologia Escritoras Brasileiras do Século

XIX, organizado por Zahidé Muzart e publicado em 1999. Para Araújo (1999, p.14),

[...] a obra se inscreve no trabalho de arqueologia literária, tão própria da crítica feminista.

Porém, não se limita à acumulação cronológica e numérica dos textos de 52 autoras,

olvidados ou mal lidos, mas chega à etapa superior, a da multiplicação e frutificação, na

qual o documento perde a pátina se livra da poeira e se vivifica ao ser situado e

contextualizado. A obra pertence igualmente à tendência de uma crítica feminista

interessada no estabelecimento de uma tradição literária escrita por mulheres: uma literatura

própria. Porém vai mais além desse propósito, pois, ao mesmo tempo em que contribui para

a história da escritura feminina no Brasil, participa da (re)escritura de sua história cultural.

Em 2013, quando fui procurar Zahidé Muzart para orientar minha tese de doutoramento, os

três volumes de Escritoras Brasileiras do século XIX já estavam publicados, além da reedição de

várias obras de algumas das 160 escritoras brasileiras nascidas entre os séculos XVIII e XIX,

resgatadas pelo grupo que ela convocou para essa expedição. Ao me sugerir estudar Carmen

Dolores, enfatizou: “Não basta resgatar as escritoras e obras do século XIX, republicá-las, colocar

em circulação esses livros, é preciso estudá-las à fundo para consolidar uma tradição literária de

autoria feminina no Brasil e revelar o valor literário de toda essa produção. E essa produção literária

de mulheres não pode ser avaliada usando os mesmos critérios usados pela crítica canônica. É

preciso considerar suas condições de produção e publicação da literatura que escreveram.” Aliás,

ela escreveu esse posicionamento particular quanto a investir suas horas de trabalho em um esforço

de atualização teórica do feminismo: “O feminismo gerou, tem gerado uma infinidade de livros, de

textos, de periódicos, de teorias que se contradizem, se atacam, se apoiam, se contra-atacam.

Acompanhar tudo isso requer uma vida que não tenho mais.” (MUZART, 2003, p. 261). Essa tarefa

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ela deixou para as novas gerações de pesquisadoras, como nós, mas para isso é preciso conhecer

tudo o que ela nos deixou, porque muito já foi feito.

Cabe ainda lembrar que, para Muzart (1997, p.85), inserir as escritoras oitocentistas no

cânone não significa a exclusão das poucas que alcançaram a visibilidade a partir de Cecília

Meireles e Raquel de Queiroz, mas sim de acrescentar essas que ficaram politicamente excluídas.

Complementando esse ponto de vista sobre valor estético da literatura de autoria feminina,

resgatada dos escombros pelo grupo de trabalho liderado por Zahidé Muzart, Célia Ferreira (2003,

p. 73) afirma que essa linha de pesquisa coloca em debate os discursos transmitidos pelas histórias

da literatura que insistem em manter os nomes de autoras no esquecimento, principalmente quando

uma nova publicação dá visibilidade a tais escritoras raramente conhecidas do público leitor

contemporâneo.

Zahidé Muzart (2003, p.273) explica que a discussão em torno da questão do valor estético

ainda precisa ser atualizada dentro da crítica feminista. Tomando por base um artigo de Mary Pratt,

a ensaísta comentou que os critérios utilizados para determinar o valor literário de uma obra,

quando o cânone é o parâmetro, refletem estruturas hegemônicas (de poder) de uma sociedade e

legitimam as exclusões ou inclusões: “Aqueles textos escritos por representantes de grupos sociais

subalternos ou marginalizados sempre serão vistos com insuficientes.[...] Os leitores treinados

dentro dessas práticas de leitura canônicas estarão [...] mal equipados para avaliar os textos de

grupos subordinados ou excluídos.” E termina sua fala afirmando que é preciso ler as obras das

escritoras do século XIX analisando o contexto histórico, social, cultural em que foram produzidas,

incluindo-se a condição feminina.

Como já presumiu Rita Schmidt (1995, p. 185), "hoje, não há mais como sustentar os

pressupostos pretensamente neutros e a-históricos dos métodos da crítica literária". Ao usar esses

novos critérios avaliativos, criados a partir da teoria crítica feminista, estamos reescrevendo, ou

escrevendo múltiplas histórias da literatura brasileira.

Obviamente, a crítica feminista no Brasil não se resume a esse trabalho múltiplo “[...] de

análise e de arquivo, de reflexão e investigação, de história da literatura e de história da crítica.

Labor que preenche o vazio e elimina o silêncio”, como descreve Nara Araújo (1999, p.14).

Trabalho exaustivo realizado por escritoras do final do século XX, também “[...] de uma perspectiva

múltipla: do gênero, da história das mentalidades e da história cultural”, evidenciando no

empreendimento arqueológico o sujeito da enunciação e seu lugar bi(bli)ográfico, o caráter

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dialógico do texto, sua convenção, ou sua coragem e ousadia de transgredir, sua ironia e até mesmo

o sarcasmo de algumas.

Como bem coloca Eurídice Figueiredo (2014, p.28):

Além do trabalho de resgate, resta ainda a questão de como se posicionar em relação aos

escritores do passado que criaram personagens femininas tão fascinantes. E, sobretudo,

como compará-las com as personagens criadas por escritoras nos últimos 50 ou 70 anos;

como estabelecer categorias críticas válidas que não coloquem cada vez mais a crítica

feminista no gueto.

Com a explosão de escritoras brasileiras contemporâneas, podemos ainda citar os

empreendimentos de pesquisa que vem sendo executados sobre essas obras, já com outro olhar. Se

me detive, aqui, mais na linha de pesquisa de resgate das escritoras e obras invisibilizadas, isso se

deve ao objetivo deste artigo.

Contudo, devo lembrar que ainda há muito por fazer em termos de crítica literária feminista,

apesar dos passos gigantes dados pelas pioneiras como Zahidé Muzart. Concordo com Maria da

Conceição Araújo (2017, p.5) quando afirma que “o tema feminismo e literatura continua

marginalizado”, dado o espanto de Zahidé Muzart quando foi convidada para participar do livro

Histórias da Literatura4, organizado por Maria Eunice Moreira. Nesse sentido, o convite feito à

Zahidé Muzart se justifica, pois sua prática de resgate da literatura de autoria feminina, organização

e reedição de obras, assim como sua postura crítica diante do vasto material encontrado ao longo

dos anos, sempre foi pautada nessa dialética entre passado e presente, consciente da condição de seu

discurso fundamentado nas teorias feministas, proporcionando a ampliação da visão historiográfica

tradicional.

Encerro meu artigo, fazendo minhas as palavras de um comovente texto de Gerusa Bondan,

ex-orientanda e membro da família de Zahidé, que ela publica no último catálogo da Editora

Mulheres em nome d’A Família, no vazio de novembro de 2015:

Um suspiro imperceptível e um pulsar a menos foram suficientes para esmaecer uma colcha

de retalhos tecida no decorrer de 76 anos. A colcha de Zahidé; Zahidé, a colcha, feita, em

boa parte, de incontáveis arremates, pontos e marcas da Editora Mulheres. Em comovente

e-mail enviado para a família, Tânia Ramos escreve que a Editora Mulheres é Zahidé.

Enquanto a dor não nos permite uma reflexão menos esmaecida sobre a Editora Zahidé (ou)

4 Histórias da literatura: teorias, temas e autores, publicado em 2003, foi organizado por Maria Eunice Moreira e teve a

participação de Eduardo Coutinho, Antônio Dimas, Luiz Roberto Velloso Cairo, Ívia Alves, Tânia de Oliveira Ramos,

Regina Zilbermann, Roberto Acízelo de Souza, Nadia Gotlib, entre outros renomados historiadores e críticos da

literatura brasileira.

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a Zahidé Editora, ajudem-nos a perpetuá-la. Sim, a perpetuar a Zahidé Editora e a Editora

Zahidé que, juntas, juntas, formam a Editora Editora Mulheres Mulheres. Tenham uma

Zahidé em seu criado mudo. Tenham uma Zahidé em sua estante. Deem uma Zahidé de

presente a uma pessoa querida. Carreguem Zahidé não apenas em suas lembranças, mas,

também, em suas pastas, em suas bolsas, em suas mochilas. Deixem suas vidas repletas de

Zahidé. [...]

Vazio de novembro de 2015 A Família

Acrescento a esse poético apelo, não permitam nunca que, ironicamente, se produza um

novo silenciamento político sobre o legado que Zahidé Lupinacci Muzart deixou para a crítica

feminista e para a história da literatura brasileiras. Mantenham a Zahidé Editora, Pesquisadora,

Professora Orientadora, Crítica e Historiadora Literária Feminista Brasileira viva nos estudos

acadêmicos em torno da Mulher e Literatura.

Referências

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Sherazades, do século XIX. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/

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http://www.nonada.com.br/wp-content/uploads/2015/11/Cat%C3%A1logo-novembro-2015.pdf>.

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CNPq, 2004, 1184p.

Feminist Literary Criticism: the legacy of Zahidé Muzart

Abstract: Over the last decades, the field of feminist literary criticism in Brazil has sought for

affirmation policies that go beyond the epistemological importance of the academic research carried

out in the area and its own pluralism of tendencies. Such policies embrace the performance of

female researcher who work in the edition and publication of female authorship works; the rescue

of female authors and their works from the historical silencing to which they have been relegated,

or the discovery of contemporary ones. Moreover, they include editing and publishing of

specialized journals; organization of academic events, opening room for dialogue; coordination of

Gender, Women and Literature Study Centers; orientation of dissertations and theses, among others.

Zahidé Muzart was one of the founding scholars of feminist academic criticism in Brazil, whose

legacy was a valuable heritage, along with the mission of continuing the studies of Women and

Literature. Therefore, it is necessary to know her and acknowledge her work. Despite the results

achieved by her and her followers being very significant for the feminist literary criticism, there is

still a lot to study about the works written by women from past centuries compiled in Brazilian

female writers’ anthologies.

Keywords: Feminist criticism; literature criticism; Zahidé Muzart