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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
VIOLNCIA DE GNERO1 E PATRIARCADO: A MARCHA DAS
DESTINADAS NO CONTEXTO DA GUERRA DO PARAGUAI2
Amanda Pavan3
Resumo: O ano de 1868 representou para inmeras paraguaias o incio de uma marcha penosa que se estenderia at o
final de 1869. J passado trs anos de guerra, entremeio s condies nefastas que ela pode apresentar, no Paraguai, um
fenmeno manifestado pela migrao de vrias mulheres de elite para os desertos do Igatemi, foi expressivo da
violncia de gnero e tambm do poder simblico patriarcal. Na guerra do Paraguai (1864-1870) as mulheres destinadas
so aquelas consideradas traidoras do governo, ou por serem esposas de homens que o prprio governo julgava
traidores, ou por terem enfrentado Francisco Solano Lpez -ditador da poca- e suas decises de alguma forma. Em
ambos os casos, as mulheres foram destinadas ao degredo, por isso tal denominao. Realo neste trabalho como se deu
a intensificao da violncia contra a mulher paraguaia no aspecto fsico, moral e, sobretudo, sexual, no palco desta
guerra. Este estudo est amparado pelas memrias de Dorotha Duprat de Lasserre, uma destinada que sobreviveu e
pde resgatar, atravs das palavras, vidas que foram perdidas, no s pelas condies a que foram expostas mas,
sobretudo, pelo mpeto masculino. Desta ltima condio, ressalto a figura de Pancha Garmendia, outra destinada, que
foi condicionada ao desterro pela sua recusa em se submeter aos desgnios de Lpez. No obstante, me ocupo das
memrias a fim de estabelecer um parmetro mais conciso sobre as violncias perpetradas contra a mulher nesta guerra.
Palavras-chave: Destinadas, Guerra do Paraguai, Gnero, Violncia
Introduo
Este artigo tem o propsito de apresentar, quem o l, um pouco da Histria das mulheres
durante o conflito conhecido como Guerra do Paraguai4. Especificamente, trato do fnomeno
conhecido pelos/las autores/as como a marcha das destinadas, ocorrido nos ltimos anos da
contenda, trazendo tona a trajetria de duas protagonistas que so, seno, a expresso mais ntida
da violncia de gnero durante uma guerra de grandes propores. Desta forma, visualizando o
cotidiano destes sujeitos histricos, elucidamos, tambm, o tratamento despendido s mulheres
durante os conflitos blicos, de forma geral.
Antes de iniciarmos o desenvolvimento da temtica, importante fazermos uma ressalva:
devemos rejeitar qualquer carter de fixidez ou de normalidade, por muitas vezes apresentada e
1 Entendo como violncia de gnero uma relao social ou sexual hostil respaldada em diferenas percebidas entre os sexos. Desta forma, a violncia entre gnero ocorre puramente pela construo de uma perspectiva essencialista que foi
assimilada social e culturalmente. (SCOTT, 1995) 2 Utilizo aqui a denominao popularmente conhecida/aceita entre historiadores/as: Guerra do Paraguai. Entretanto,
considero importante ao leitor estar par das outras maneiras de se referir ao conflito. Deve-se levar em conta que cada
denominao congrega uma determinada abordagem em relao s origens da contenda. So, portanto, Guerra da
Trplice Aliana, Guerra da Trplice Aliana contra o Paraguai, Guerra Total e Guerra Grande, as comumente
encontradas na historiografia. 3 Ps-graduanda em Histria e Cultura no Brasil, pela Universidade Municipal de So Caetano do Sul/SP; graduada em
Histria pela Universidade Paranaense/PR. E-mail: [email protected]
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reforada em trabalhos acadmicos. Dito isto, na pesquisa histrica, conveniente adotarmos uma
postura crtica no af de melhor colocarmos em prtica o conceito proposto por Jacques Derrida da
desconstruo (apud Scott, 1995, p. 84). Isto significa que ao tratarmos sobretudo do gnero,
devemos levar em conta o significado que atribudo este, o contexto em que este foi produzido
e a forma como ele operado, de forma a efetivar as proposies de Derrida. acatando estas trs
premissas, portanto, que este artigo foi articulado.
Mas o que o gnero, afinal? O gnero , acima de tudo, uma construo, e do processo de
assimilao das constantes ocultas que ocorre sua reproduo. Para compreendermos sua dinmica,
Joan Scott (1995) sugere, tal como Derrida, uma anlise do processo de significao empreendido
em cada contexto na tentativa de elucidar muitos aspectos que, de outra forma, seriam obscurecidos.
Nisso, ao tratar do processo de reproduo da oposio binria e desigual de gnero, ela
problematiza:
Como podemos explicar a forma pela qual as crianas parecem aprender essas associaes
e avaliaes mesmo quando elas vivem fora de lares nucleares, ou no interior de lares onde
o marido e a mulher dividem as tarefas familiares? Penso que no podemos fazer isso sem
conceder uma certa ateno aos sistemas de significado, quer dizer, aos modos pelos quais
as sociedades representam o gnero, servem-se dele para articular as regras de relaes
sociais ou para construir o significado da experincia. Sem significado, no h
experincia; sem processo de significao, no h significado. (SCOTT, 1995, p. 82, grifos
meus).
Servindo-se desta mxima, no poderamos entender a dinmica de gnero na Guerra sem
antes problematizarmos os sistemas de significado produzidos no seio do conflito. O que quero
dizer que, se de um lado, h sujeitos engajados no processo de produo de significado, de outro,
h aqueles responsveis por tornar sua significao efetiva. Em outras palavras, as representaes
de gnero, na medida em que so assimiladas, determinam uma tomada de atitude. Segundo o
historiador Luc Capdevila, as guerras vm, de fato, influenciando na organizao das diferenas
sexuais desde a Pr-Histria. (Capdevila, 2007, p. 10). Mas como isso ocorre? Ora, atravs da
produo de significados! E , sobretudo, atravs daquilo que constitui os arquivos de guerra que
esse processo adquire relevncia.
As fronteiras de gnero nas representaes femininas da imprensa
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Todo fenmeno histrico deixa sua memria, podendo ela ser oral ou escrita. No caso da
Guerra, ela foi substancialmente escrita, e, mais precisamente, iconogrfica. Pinturas, fotografias e
gravuras divulgadas pela imprensa paraguaia, tinham como objetivo no apenas a manuteno de
uma identidade nacional, mas sobretudo, de gnero. Para uma populao onde a educao era
limitada, o usufruto das imagens para melhor abstrao significativo e permitiu expandir o raio de
alcance dos peridicos5. No obstante, estas imagens compunham mensagens de mobilizao moral,
veiculando representaes sexuadas da nao, as quais estruturavam o imaginrio da populao
mestia. importante ressaltar que as representaes que retratavam a mulher foram bastante
escassas. No geral, a imprensa de guerra centrou as atenes na ofensa ao inimigo e no
enaltecimento do exrcito paraguaio. No entanto, numa anlise meticulosa, foi possvel encontrar
valiosas referncias de gnero, que sero abordadas no desenrolar deste texto.
Segundo Luc Capdevila, as representaes femininas agrupam-se em trs grandes tipos: os
travestismos do inimigo os ridiculariza em suas funes de autoridade (poltica e militar), as
alegorias femininas que representam as instituies (a Repblica, a Justia etc.) e, ainda, as
paraguaias na guerra. (2007, p. 18). Para a primeira categoria, o historiador elucida os jogos de
gnero que formavam parte de um mecanismo de difamao do inimigo. Segundo ele, no a
feminilidade que ridcula [], e sim as diferenas sexuais. O travestismo particularmente
empregado para ridicularizar o adversrio. No entanto, o autor comenta que com o passar do
tempo alguns personagens da guerra foram feminilizados, tais como o presidente Mitre e o
ministro da guerra Juan Gelly y Obes, refletindo claramente uma viso misgina que entende as
caractersticas femininas como o signo da inferioridade e da desordem. (2007, p. 14-15).
A segunda categoria, traz a mulher sob forma alegrica, mas que congrega uma inegvel
distino de gnero, como bem explica Capdevila:
Em contrapartida, as verdadeiras mulheres vm equilibrar o quadro do eu coletivo
paraguaio. A Repblica, as instituies oriundas do direito so geralmente representadas
sob as formas de uma estatutria feminina neoclssica, ao passo que o povo em armas e o
Estado so simbolizados pelas figuras masculinas do leo e do marechal Lpez. Essa
presena feminina na construo simblica obedece a cdigos estticos, mas corresponde
tambm a um imaginrio da diviso dos valores polticos: o feminino est associado ao
direito, encarna a nao cvica, enquanto o masculino representa a fora, a violncia
legtima e o poder. (CAPDEVILA, 2007, p. 18).
5 Segundo Luc Capdevila, a taxa de alfabetizao no Paraguai pr-guerra havia crescido muito, podendo ser comparado
pases como Prssia e Frana, mas esta levava em conta uma educao que era restrita apenas homens. As mulheres,
neste contexto, eram majoritariamente analfabetas. (CAPDEVILA, 2007, p. 13).
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curioso, todavia, a forma como a paraguaia foi incorporada nas imagens. Enquanto
gnero, ela no foi sistematicamente excluda das gravuras em que o povo paraguaio retratado.
Pelo contrrio, atos de bravura foram narrados, sobretudo, o momento da guerra o qual nos
interessa: a marcha das destinadas.
Na Guerra do Paraguai a expresso mais ntida da violncia de gnero se deu nos dois
ltimos anos de guerra, mais precisamente, a partir do momento em que se iniciou a evacuao de
Assuno. A presena feminina nesta etapa do conflito foi to marcante que inclusive a imprensa
empenhou-se em registrar fenmeno das destinadas. Constituindo ambies estratgicas, as
representaes femininas da mulher paraguaia introduziram-se no imaginrio popular. Todavia, o
que nos convm agora, entender como ocorreu o exlio das paraguaias e de que forma a violncia
se manifestou, para somente aps, compreendermos de fato como as representaes de gnero
estiveram articuladas para alm da imprensa na nsia de reforar as fronteiras de gnero,
significando assim o fortalecimento dos enquadramentos morais j estabelecidos.
A marcha das destinadas e a violncia de gnero
Ao se falar de marcha das destinadas, as/os autoras/es frequentemente apontam dois grupos
que compem a marcha: o das residentas e o das traidoras. Genericamente, a composio de cada
grupo no determinava que, por exemplo, as residentas vivenciassem condies distintas ou at
mesmo privilegiadas em detrimento das traidoras. Mas o que as/os autoras/es tm consentido que
a razo pela qual elas foram condenadas ao exlio so opostas. Vejamos o que o historiador Alberto
Moby Ribeiro da Silva diz a respeito:
importante dizer que mesmo no havendo uma rgida barreira entre a origem de classe
dessas mulheres e sua designao como residentas ou destinadas, no ps-guerra, a posio
ocupada pelas mulheres segundo essa classificao ser fundamental para situ-las
socialmente. verdade que existiam, de fato, relacionamentos familiares e afetivos
interclasses e que, por outro lado, nem todos os membros da burguesia foram considerados
traidores o que seria extremamente absurdo e nem todos os homens do povo estiveram
isentos, a priori, de qualquer culpa. Por isso, tambm, era no pouco comum encontrar
mulheres em cujas famlias pudessem ser identificados igualmente bravos patriotas e vis
traidores. Mas essas excees apenas nos mostram o caos da guerra e, de certa maneira, o
grau de isolamento em que Lpez posto, em consequncia de sucessivas derrotas
militares, escondendo-se, atrs de uma aparente convico da vitria e da violncia em
consequncia dessa certeza, sua absoluta fragilidade. (SILVA, 1998, p. 52, grifos do
autor).
O autor, no trecho acima, questiona-se sobre as fronteiras social-econmicas inexorveis que
as classificaes deixam entrever, a priori. No havia distino social to clara assim, naquele
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contexto. Todavia, ttulo de compreenso, essas classificaes/categorias denotam uma tomada de
atitude diferenciada por parte de Lpez e da imprensa, para com as mulheres de grupos sociais
distintos.
Sobre o termo residenta, o historiador Guido Rodrguez Alcal expe o seguinte: Compe
parte do folclore local sobre a idealizao da guerra e, dentro desta idealizao, o culto romntico
residenta, herona do Paraguai, que acompanhou, pacientemente, o homem em todos os
infortnios da guerra. (Alcal, 1991)6. Este significado proposto por Alcal do que seriam as
residentas sustenta um tom bastante romntico e idealista, e a imprensa de guerra tem um papel
sumrio na produo deste arqutipo. Segundo Luc Capdevila, ao celebrar o patriotismo, exaltando
os sentimentos de coragem e bravura das paraguaias, as gravuras lembravam aos combatentes seu
dever de proteger suas companheiras, deixando entender que elas, voluntrias e corajosas, estariam
em condies de substitu-los, caso no fossem dignos das exigncias que acompanhavam sua
virilidade. (Capdevila, 2007, p. 20). Portanto, o patriotismo das paraguaias que doaram suas jias
em prol do conflito motivo pelo qual so conhecidas est bem longe de ser aquilo que elas
teriam sentido, de fato. A descrio de Beatriz Rodrguez Alcal confirma isso:
[] o vocbulo Residenta possui uma alta significao e sinnimo de dor, abnegao e
sacrifcio, porque utilizamos-o para denominar o pattico xodo empreendido em posse da
bandeira, pelas mulheres, pelos idosos e pelas crianas, ante a iminncia da chegada do
invasor. [] Porque se muitas naes da Terra podem gabar-se do herosmo de suas
mulheres, somente o Paraguai pode gloriar-se de dever sua existncia exclusivamente s
mulheres.
J que foi Ela quem teve de remover os escombros e as cinzas para reanimar a vida ptria
covardemente assassinada. Foi Ela quem se multiplicou em mil partes para ser me e pai;
mestre e educadora; foi Ela quem empunhou o arado e fundou escolas e asilos para acolher
s crianas na total orfandade; foi artes e assentou as destroadas bases da economia
nacional. (ALCAL, 2003 apud BENTEZ, 2011, p. 14).
Esta descrio parece ser uma das que mais se aproxima do relato produzido por Madame
Dorotha Duprat de Lasserre, uma tambm destinada que viu e viveu situaes deplorveis no
curso da guerra. Mas, antes de tratarmos de Duprat, resta-nos conhecer a outra categoria de
destinadas, esta mais numerosa, que determinou a tecitura da Histria das mulheres na guerra: as
traidoras. Como o prprio nome j denuncia, as traidoras so aquelas que, pelo seu grau de
parentesco com rus polticos, traram a ptria. No contexto da guerra, os rus polticos poderiam
ser simples opositores ideolgicos do governo, no tendo ocorrido uma resistncia ativa, na
6 O trecho encontra-se disponvel na verso online do livro, que est parcialmente disponvel em:
. Acesso em: Junho de 2017. Procedi a livre traduo das citaes do espanhol
para o portugus.
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definio do terico portugus Joo Bernardo (1998). Portanto, a mera ameaa de contradio aos
interesses do governo, j era indicativo de conspirao contra os objetivos da nao.
As duas categorias, como foi mencionado, se formaram somente aps a evacuao de
Assuno. As traidoras, ou melhor dizendo, a grande parte das destinadas, s se transformaram
propriamente em destinadas quando foram enviadas para a localidade de Yh e, posteriormente,
para Espadn, onde se configurou um campo de concentrao apenas de mulheres.
Embora a marcha tenha iniciado-se em fins do ano de 1868, desde o incio do conflito as
mulheres, de forma geral, sofreram com os processos migratrios. Guido Rodrguez Alcal (1991)
relata um episdio ocorrido em 1866, onde j possvel visualizar o tratamento distinto que era
despendido s mulheres: ao iniciar o processo de evacuao do Sul do Paraguai, logo no incio do
conflito, as tropas paraguaias percebem que a comida escasseava. A deciso tomada pelo chefe para
resolver o problema da escassez foi destinar as 900 mulheres que se encontravam na regio da villa
del Pilar, para a regio do Chaco. Desta marcha, o autor descreve o sofrimento sentido:
Estas mulheres, com seus filhos e muitos idosos e idosas, seguiram a mesma trajetria do
marechal Lpez at San Fernando, de onde foram internadas ao norte do arroio Pykysyry.
A metade de toda essa gente morreu nessa va crucis de fome, penrias e privaes de todo
o gnero desde o momento em que no tinham como alimentar-se, nem adquirir roupas,
pois apenas puderam levar de suas casas aquilo que lhes puseram. (ALCAL, 1991, p. 41).
comum verificarmos nas narrativas masculinas uma certa inclinao a vangloriar ou
enaltecer determinadas atitudes tomadas por mulheres. Nas obras memorialsticas, os raros
momentos em que as mulheres saram do anonimato, o foram porque demonstraram alguma atitude
herica. No obstante, a prpria imprensa reforava o arqutipo da herona, exaltando os casos em
que as mulheres demonstraram coragem. Podemos conferir isto neste trecho:
Dotada do mais rico caudal de sentimento que o que foi outorgado ao homem, toda mulher
acha naturalmente maior encanto no cumprimento do dever por amor; mas a mulher
paraguaia tem se distinguido de uma maneira excepcional em relao s demais de seu
sexo []. Ento, a mulher paraguaia, sem deixar o fuso e a agulha, foi substituir os
homens no cultivo da terra. Ela escutou em seu corao a sagrada voz do dever, que a
chamava a esse trabalho por amor e por gratido. (CABICHU, 1867 apud SILVA, 1998, p.
124-125, grifos do autor).
As impresses publicadas pelo peridico Cabichu no poderiam ser tidas de outra forma.
Parafraseando Pierre Bourdieu (2014), a sociedade paraguaia cuja estrutura social compunha
instituies solidamente estabelecidas possua terreno frtil para a reproduo de uma viso
androcntrica. Expresso disso a noo de que as mulheres substituiriam os homens nos
trabalhos tidos como masculinos, tal como exposto no trecho acima. Ora, o esforo fsico (do
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cultivo da terra), a brutalidade (das torturas e mortes) e a coragem (da disposio guerra) so
aptides que no se permitem, na lgica androcntrica, como femininas. E o herosmo, podemos
constatar, s vangloriado pois culturalmente ele percebido como masculino, cabendo s
mulheres, nesse contexto, o apoio ao heri, a discrio e o sentimento de que, ao lado deste, estar
protegida. Ou seja, ela deve trabalhar na manuteno de sua prpria vulnerabilidade. Todavia,
quando a mulher assume essa posio, ela elevada ao escalo da perfeio masculina.
No decorrer da pesquisa, foram muito escassos as referncias violncia sexual. No entanto,
encontramos indcios bastante valiosos que nos permitem visualizar a experincia vivida pelas
mulheres no final da guerra em que, constituindo maioria da populao, viram-se presas fceis
dos inimigos que ocupavam Asuncin. O cronista Richard Burton relata um episdio que vivenciou
ao visitar uma Catedral de Asuncin: surpreso com o atrevimento de um francs Frre
ignorantin que, ao ser perturbado em seu sexo arrebatado com uma jovem paraguaia bonita, olhou-
me furioso l do seu canto, como se fosse eu que estivesse desrespeitando o lugar. (Burton apud
Cawthorne, 2015, p. 206).
Alm de Richard Burton, o escritor e tambm militar Arturo Bray captou momentos em que
nos possvel denotar a violncia sexual: O amor livre reinava nas ruas e nas plazas, sendo as
300 mulheres paraguaias que caram em mos do inimigo aps [a batalha de] It-Ybat vtimas
desse vandalismo. (Bray, 1983 apud Silva, 1998, p. 82).
Todavia, o relato mais surpreendente e minucioso encontrado foi este:
Nas praas, ruas e centros de reunio, o amor era livre para os componentes das foras
invasoras, onipotentes sobre os que caam sob sua dominao. As 300 mulheres que foram
sequestradas em Abay [Ava?], as que caram em Angostura e outras mais foram vtimas de
seus instintos sensuais.
O general Garmendia resume em poucas palavras a primeira imolao daquelas 300
desgraadas mulheres dizendo: que como as heronas Galas, tinham presenciado o
combate (de Abay), caram tambm no botim da vitria; a soldadesca desenfreada abriu as
vlvulas sua feroz lascvia e estas infelizes que tinham visto seus esposos, filhos e
namorados perecerem, sofreram ainda os ultrajes da luxria na noite mais negra de suas
vidas. No sei como no morreram! (DECOUD apud SILVA, 1998, p. 82).
Tambm possvel verificar indcios da violncia masculina relatados atravs de metforas,
tal como o de Dionsio Cerqueira:
Ao passar por baixo de um laranjal, vi mulheres escondidas na ramalhada, transidas de
pavor, algumas com os filhos nos braos. Embaixo, soldados convidavam-nas a descer, e
elas, como o galo da fbula, desconfiavam das lbias das velhas raposas, que alis, de
crer, no tinham desejos sanguinrios. (CERQUEIRA apud SILVA, 1998, p. 83).
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Mme Dorotha Duprat de Lasserre e Pancha Garmendia: as duas faces do desterro
com muita dificuldade que podemos encontrar menes sobre a experincia feminina na
guerra nos relatos de memorialistas. No foi sem sorte que sobreviveu ao tempo um dos relatos
mais ricos em detalhes e, o mais importante, escrito por uma mulher que vivenciou todo o suplcio
da marcha das destinadas.
De origem francesa, Madame Dorotha Duprat de Lasserre integrava a alta elite do
Paraguai. Foi condicionada ao exlio em virtude da suposta traio de seu marido, e apenas
escreveu suas memrias na ocasio do resgate, pelas tropas Aliadas, das famlias remanescentes da
marcha. Nisto, o coronel Dr. Pinheiro Guimares havia questionado-a sobre a escrita e publicao
de suas memrias, visando legitimar os crimes cometidos por Francisco Solano Lpez, e defender a
ideia de que Lpez foi um tirano que sacrificou todo seu povo por causa de seu egosmo em
prosseguir com o conflito, mesmo quando os Aliados j haviam avanado consideravelmente.
No devemos deixar de considerar, a despeito disso, que as memrias de Duprat, mesmo que
valiosas para uma abordagem de gnero, constituem-se claramente na listagem de obras
pertencentes disputa historiogrfica caracterizada por lopiztas e antilopiztas. Tal que, logo no
incio da obra, Jos Montenegro escreve o seguinte prefcio: No fra de proposito lanar
publicidade mais uma pagina interessante sobre a historia da ominosa dictadura do marechal Solano
Lopez, cujo desfecho repercutio to dolorosamene na Amrica do Sul e mui particularmente no
Brazil. (Lasserre, 1893, p. V).
Outra questo a ser apontada que, mesmo nos valendo de um discurso feminino, no
podemos deixar de considerar a obra como marcada pela fronteira entre os sexos. Em vrios
momentos podemos perceber uma ntida inclinao aos valores de um quadro moral patriarcal.
Vejamos este trecho:
No dia seguinte se apresentaram dois sargentos querendo nos obrigar a ir pessoalmente
cortar pus na matta para fazer hastes de lanas de cavallaria: usei de mil subterfugios para
esquivar-me a esse trabalho pesado a que no estava acostumada; alm disso o estado de
fraqueza e abatimento em que estava, depois de uma molestia debilitante e uma marcha
atravez do deserto em um percurso de mais de duzentos kilometros, tornava imposvel
qualquer esforo physico.
Senhoras delicadas, acostumadas a viver commodamente, eramos tratadas como escravas
pelos que tinham ordem de nos fazer soffrer! (LASSERRE, 1893, p. 53, grifos meus).
Esta revelao demonstra, portanto, um sintoma da aprendizagem dos valores tidos como
femininos, que so a da resignao, do silncio e da abnegao. Todavia, seus relatos no deixam de
ser valiosos para a compreenso da realidade da guerra e da violncia de gnero.
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Ao amanhecer cahia uma chuva finissima e continua, extremamente incommodativa.
Ordenou-se a marcha: apertadas umas contra as outras para no molhar os vestidos,
partimos recebendo pela frente o aoite do vento e do graniso. As ameaas, os gritos da
soldadesca da escolta choviam de traz, de momento a momento ouvia-se tambem o grito de
dor soltado por alguma desgraada que era alcanada pelo chicote dos guardas ou pela
lana que lhe rasgava as carnes; no se sahia, porm, com facilidade daquella lama infecta
e visguenta. (LASSERRE, 1893, p. 64).
Considerando que a violncia no se dava apenas nos aspectos fsicos e morais, temos em
Pancha Garmendia outra expresso da incidncia do Patriarcado sob a vida das mulheres
paraguaias. Pancha doi adotada por Jos de Barrios e Manuela Daz de Bedoya, uma famlia da elite
assuncena, que participava de todos os eventos sociais da poca. A famlia Barrios Bedoya, segundo
Mary Monte, era parente prxima dos Lpez, e por isso compareciam as mesmas reunies e
eventos. (Moreira, 2013). Foi na ocasio dos vrios eventos que Pancha teria conhecido o ditador
Lpez.
Segundo uma carta endereada Juan Crisstomo Centurion do General Aveiro, Pancha
Garmendia deu claros sinas de conspirao, atitude esta que era facilmente percebida e comentada
pela elite asuncena, e que, no entanto, Lpez sempre a livrou de ser presa ou mandada para o
desterro:
[Pancha] era por repetidas vezes e por distintas pessoas importantes, acusada de
cumplicidade na conspirao ou seja, revoluo que se perseguia. O Marechal sempre
apagava o mesmo tal nome da lista que se apresentava sem dizer uma palavra, no obstante
as acusaes e a seriedade das pessoas de elevada posio social que em suas declaraes a
incluam. (AVEIRO apud CENTURIN, 1894, p. 225).
Alm do mais, Pereira afirma que Pancha era bem quista por vrios homens, inclusive, pelo
general Lpez.
Era o carinho, a jia, o orgulho de Assumpo, que nella via o esplendor da sua raa e
talvez a imagem da sua belleza moral. Appareceram-lhe pretendentes mo de esposa
como era natural. No contavam, porm com o Generalito, que a destinava ara si, como
tinha feito com tantas outras. O primeiro dos seus admiradores, D. Pedro Egusquiza, foi
recrutado para o exercito e mandado para o deserto. Os outros retrahiram-se. O bravo
Generalito, que, para o Sr. O Leary, o typo das perfeies, redobrou de insistncia.
Panchita nunca lhe de:u uma esperana. No era da massa de que se fazem as barregs,
mesmo de dspotas. A sua resistncia cresceu proporo da audcia do monstro, que s
recuou ao v-la prestes a despenhar-se no tumulo para fugir-lhe. (PEREIRA apud
DOURADO, 2005, p.23)
Segundo os relatos, Pancha teria sido condenada marcha pela sua recusa em submeter-se
aos desgnios de Lpez. No entanto, na carta de Aveiro no consta que ambos teriam tido um
relacionamento mais ntimo, apenas infere sobre as conspiraes das quais ela era acusada. De
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qualquer forma, as duas atitudes refletem naquilo que, j percebemos, ocorreu com inmeras
paraguais: foram condicionadas um fim trgico pelo mpeto masculino.
Consideraes Finais
Partindo do pressuposto de que o acontecimento histrico contnuo, no podemos cair na
iluso de que somos capazes de recortar, grosso modo, os fatos, e preench-los de teoria no
sentido e torn-lo inteligvel, tal qual ele foi. O acontecimento histrico no pura abstrao.
Pode sim, partir das estruturas subjetivas da conscincia humana no momento em que a Histria
construda, mas a partir do momento em que ela (no sentido de existir), os indivduos histricos
passam a existir tambm. E, para no incorrermos no risco de, como diz Febvre, agarrar o indivduo
por este ou aquele membro, pela perna ou pelo brao, em vez de pela cabea, resultando,
fatalmente, na prpria mutilao do sujeito histrico (1985, p. 30), devemos sempre levar em conta
as variadas dimenses pelas quais o acontecimento real constitudo. Foi pensando em uma dessas
dimenses que utilizei o gnero enquanto categoria de anlise. Somente assim, pude responder
algumas daquelas provocaes feitas no incio do artigo, e, consequentemente, elucidar as relaes
de poder que embrenham-se nas determinaes objetivas e subjetivas da vida humana.
Dito isto, o estudo do fenmeno das destinadas pde revelar a dinmica das relaes de
gnero nesse contexto da guerra. A forma desigual com que o gnero operado foi expresso de
muitas formas. Mas foi na violncia contra as paraguaias que ela mais se manifestou. Seja de forma
simblica, sexual ou moral, elas sempre tiveram como pressuposto as diferenas percebidas entre os
gneros, como pudemos perceber na anlise das representaes e na teoria social e de gnero
empreendida por autores como Joan Scott e Pierre Bourdieu. No entanto, foi na recusa intransigente
de Lpez em armar as mulheres para que estas defendessem a ptria ativamente que percebemos a
evidncia do Patriarcado. Lpez preferiu, por outro lado, distribuir lanas crianas, a se arriscar a
deixar mulheres no front de batalha. Este esforo pode ser compreendido na maneira em que,
mesmo na guerra, e na viso de Lpez, principalmente, devia-se eliminar, todo custo, os riscos de
embaralhamento na dinmica de gnero. A marcha das destinadas enquanto um fenmeno de
mulheres representa, seno, a manuteno da invisibilidade feminina, no af de impedi-las de serem
aladas ao patamar da excelncia masculina, lanando, desta forma as bases para a perpetuao
do patriarcado.
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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
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Gender violence and patriarchy: the destined womens march among the context of the
Paraguayan War
Astract: The year 1868 represented for countless Paraguayans the beginning of a painful march that
would extend until the end of 1869. After three years of war, among the nefarious conditions that
which can present, in Paraguay, a phenomenon manifested by the migration of several women of a
high class to the deserts of Igatemi, was expressive of the violence of gender and also of the
patriarchal symbolic power. In the Paraguayan War (1864-1870) the destined women are those who
were considered betrayers of the government, or because they were the wives of men whom the
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government judged to be betrayers, or because they confronted Francisco Solano Lpez the
president - and their decisions in some way . In both cases, women were sentenced to deportation
and, therefore, the denomination. I emphasize how the violence against the Paraguayan woman
intensified in the physical, moral and, above all, sexual aspect, in the scene of this war. This study is
supported by the memories of Dorotha Duprat de Lasserre, a destined woman who survived and
was able to rescue through the words, lives that were lost not only by the conditions to which they
were exposed but, mainly, by the masculine impetus. In the latter case, I emphasize the figure of
Pancha Garmendia, another destined woman, who was conditioned to exile by his refusal to submit
to the Lopez designs. Nevertheless, I deal with the memoirs in order to establish a more concise
parameter on the violence perpetrated against women in this war.
Keywords: Destined women. Paraguayan war. Gender. Violence.