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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
QUIZILA DE YEMANJ E A CONSTRUO DE NARRATIVAS DURANTE UM
PROCESSO RITUAL NUMA CASA DE CANDOMBL EM SERGIPE
Djna Andrade Torres1
Resumo: No Candombl, os processos rituais exigem dxs participantes uma sociabilidade e interao intensa, visto que
todo o processo um processo coletivo, em que cada integrante realiza uma funo importante ao longo das etapas.
Portanto, todxs se comunicam, contam e ouvem histrias, elaboram discursos e constroem suas experincias e
narrativas, e logo, as informaes passam a circular ao longo dos dias em que os rituais ocorrem e todo esse processo
comunicativo tambm um ato performativo. As mulheres ocupam seus espaos em papis eminentemente
importantes, especialmente em relao s religies afro-brasileiras, cujas representaes femininas dos orixs so
personagens fortes, imponentes e poderosas. O que pretendo apresentar neste breve artigo, um esboo das narrativas
que ditam a personalidade e temperamento das filhas de Yemanj como quizilentas, complicadas e problemticas,
especificamente no processo ritual referente feitura ou feitoril do santo, e a construo desse discurso atravs das
narrativas apresentadas. No quero aqui, neste curto espao, problematizar a atuao das narrativas nas Cincias Sociais
ou confrontar autorxs sobre o que seriam as narrativas e como elas devem ser feitas, visto que a bibliografia utilizada
me d abertura para uma discusso mais ampla e em que o sujeito no aparece como engessado, uma forma de buscar
na multiplicidade das experincias e discursos como essas narrativas so construdas nesta casa de santo.
Palavras-chave: Candombl. Narrativas. Gnero.
Minha Yemanj quizilenta, disse Me Cristina h alguns anos, antes que eu fizesse o
feitoril2 no Il As Omin Maf. Na poca, relacionei a afirmao com a personalidade
questionadora e inquieta de Me Cristina, sempre muito intensa e buscando explicaes para o que
ela via de incoerente. Ao me preparar para o processo, no final de 2012, algumas filhas e filhos de
santxs me alertavam sobre as possveis quizilas que eu poderia enfrentar aps o processo de feitoril.
O santo joga para voc aquilo que voc precisa aprender a lidar, e so as lies mais duras,
afirmou uma filha de santo da casa.
At ento, estava muito tranquila, pois meu relacionamento com minhas mes de santo era
pacfico, bem como com xs outrxs integrantes da casa, e sempre que ouvia um boato ou fofoca,
procurava silenciar e no levar adiante as informaes que me eram passadas, mesmo tendo em
conta que para muitas pessoas, a fofoca um critrio de sociabilidade, e de acordo com Braga
(1988) os fuxicos ou fofocas
representam a fora institucionalizada da mudana numa ordem que no quer
transformaes. Mas eles existem e para no se constiturem em ameaa,
impedimentos e formas de reparaes devem estar sempre presentes (BRAGA,
1988: 14)
1 Doutoranda em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, Brasil. 2 Processo de iniciao no Candombl, que inclui alguns rituais e durao de aproximadamente 30 dias de processo ritualstico, a depender da casa.
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A fofoca ou fuxico, ento, considerada uma forma de quizila, seja de quem cria ou quem
atingido por ela. Ao contrrio de outros tipos de religies, cujo encontro e sociabilidade com vrios
integrantes so peridicos e com tempo determinado, a exemplo de missas e palestras, alm da
transitoriedade de participantes, que possuem um papel de ouvinte/passivo, o Candombl tem
integrantes ativos em todo o processo ritual, com tarefas especficas e gerais para quem participa do
processo, e mesmo para quem visitante e est somente ali para observar ou para consultar-se com
alguma entidade, em casos de festas para Exu, Caboclos e Ers3. Os processos rituais exigem dxs
participantes uma sociabilidade e interao intensa, visto que todo o processo um processo
coletivo, em que cada integrante realiza uma funo importante ao longo das etapas. Portanto,
todoxs se comunicam, contam e ouvem histrias, elaboram discursos e constroem suas experincias
e narrativas, e logo, as informaes passam a circular ao longo dos dias em que os rituais ocorrem e
todo esse processo comunicativo tambm um ato performativo.
De acordo com Bauman (1975), a performance oferece um enquadre que convida reflexo
crtica sobre os processo comunicativos. Uma dada performance est ligada a vrios eventos de fala
que a procedem e sucedem (performances passadas, leituras de textos, negociaes, ensaios, fofoca,
relatos, crticas, desafios, performances subseqentes, e similares). Uma anlise adequada de uma
nica performance requer ento estudos etnogrficos sensveis a como sua forma e significado so
ndices de uma gama mais ampla de tipos de discurso, alguns dos quais no so enquadrados como
performance. A pesquisa centrada na performance pode gerar uma maior compreenso de diversas
facetas do uso da linguagem e suas inter-relaes, j que as contrastantes teorias da fala, e suas
preposies metafsicas correlatas, abarcam mais do que apenas o evento de discurso em si, os
estudos de performance podem abrir um campo mais amplo de perspectivas sobre como a
linguagem pode ser estruturada e quais papeis pode exercer na vida social.
Por ser uma religio de tradio oral, e em se tratando desta casa de santo especificamente,
os ensinamentos passados so feitos, atravs do discurso, e tambm por meio de observao. De
acordo com Malinowski (1978), o discurso significa nada sem o contexto da atividade a qual ele
est inserido, e para pensar no significado, em como reconstru-lo, precisamos pensar no propsito
da ao. Ou seja, inserindo esse comentrio dentro da realidade desta casa de santo da qual fao
parte, o processo de comunicao, o falar e o silenciar dependem muito do contexto no qual eles
3 Exu tipo de orix, mas nesse caso nos referimos a entidades que chamamos de povo de rua, a exemplo de pombas
gira, tranca ruas, etc. Caboclos so as entidades indgenas, e Ers so as entidades crianas. Diversas entidades so
cultuadas nas casas de Candombl, a depender da nao ou linhagem que o terreiro segue. Em se tratando desta casa de
santo, alm desses trs tipos de entidades, h tambm o culto Marujo, fora isso, somente aos Orixs do panteo Ketu.
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sero produzidos e introduzidos, o discurso deve ser utilizado com bastante cautela, e a depender do
contexto, a fala pode operar como uma quizila, algo que crie um grande problema para aquela
pessoa que discursou ou para quem recebeu o discurso.
De acordo com Motta (2000), a estrutura bsica do candombl se d atravs de um
contrato entre o homem e deus o qual se manifesta atravs do transe e da dana, o qual ele
denomina como contrato didico. Essa relao estabelecida atravs de comprometimentos de
um com o outro atravs de ofertas, que o autor caracteriza como o dar de comer ao santo, em
troca da manifestao deste ltimo nos corpos de seus filhos.
Pensando a partir da afirmao de White (1987), de que a narrativa surge a partir de nossa
experincia e o esforo de passar linguisticamente essa experincia, e neste caso, eu, como autora
da histria, busco trazer essas narrativas vividas e contadas a partir do meu olhar e da minha
experincia dentro de parte desse processo, que aconteceu entre novembro de 2012 e fevereiro de
2013.
Presente e passado a experincia no vista e a experincia compartilhada
Desenvolver um trabalho de campo acerca de questes sobrenaturais sempre desafiador
por diversos motivos, um deles a dubiedade de suas narrativas, uma vez que muito do que
contado e acreditado proveniente de um passado somente registrado oralmente, como experincias
passadas de mes e pais para suas filhas e filhos. Alm disso, como acreditar em seres invisveis aos
olhos de muitos? Como transformar em dados cientficos o que um Orix comunica num jogo de
bzios, ou uma entidade nos fala em determinada consulta?
No caso do candombl, vimos que os milagres ou as revelaes no so percebidos como
inovaes, mas como redescobertas de algo esquecido ou no reconhecido. Revelaes que
permitem entender o passado noutros termos mais profundos, talvez mais autnticos.
Talvez isto se deva ideologia das trocas mediadas, do dom, que predomina em instituies
como o candombl e que prefere ver a inovao como reproduo. Neste caso, a funo dos
antroplogos seria reconhecer a historicidade dessas revelaes, ver como so,
efectivamente, objectivaes de categorias sem precedentes: ver como, ao querer reproduzir
os valores tradicionais do candombl, este se transforma, incorporando a histria do seu
pas e da sua gente (Sansi, 2009, p. 155, apud GOLDMAN, 2009:131, grifos do autor).
Segundo Steedley (1993), a constituio das relaes entre narrativa e experincia considera
questes de subjetividade. Em se tratando de religies afro-brasileiras, as histrias so entrelaadas,
e muitas vezes indivduo e entidade se misturam, experincias se entrelaam, h a multiplicidade de
histrias, que ainda de acordo com a autora previamente citada, essas experincias no tentam
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apagar a representao ritual ou vice-versa e sim, uma est imbricada na outra, e que no devemos
pensar em modelos fixos e padronizados para definir e dar continuidade ao que seriam essas
experincias dentro de um universo de multiplicidades o qual o candombl e suas inmeras
narrativas esto inseridas.
Cardoso (2007) afirma que mais do que narrar uma "realidade" supostamente exterior a
essas experincias, as estrias tornam-se parte inextricvel da "realidade" que narram.
Envoltas pela tenso do imprevisvel e do incontrolvel, as narrativas evocam a dimenso
inesperada dessas presenas mesmo quando desejadas ou bem-vindas a qualidade
irrestrita dos seus movimentos e a sua natureza transgressora...Contadas no s por clientes
e filhos-de-santo, mas tambm pelos prprios espritos, sujeitos e objetos confundem-se em
um narrar ao mesmo tempo disperso e coletivo do deslocamento voluntarioso do "povo da
rua" atravs de fronteiras sociais. (CARDOSO, 2007:318).
No h como padronizar o que no fixo, o que no dado de forma convencional,
especialmente em se tratando de presente e passado neste contexto, em que nem mesmo a
temporalidade fixa. Alm disso, a multiplicidade de sujeitos no Candombl produzida e
dispersada na experincia, pois a gerao dessas experincias distribuda na prtica social,
fazendo com que esses sujeitos se engendrem nas narrativas, pois h um papel a ser representado e
distribudo dentro desse escopo vivenciado, ao mesmo tempo que sujeitos, entidades e experincias
se misturam a ponto de no sabermos mais quem quem dentro de todo o processo, por muitas
vezes. E as idas e vindas entre o presente e passado ocupam um papel fundamental para se pensar
sobre essas narrativas.
O tempo, neste caso, atua como marcador de determinadas experincias, mas a ambiguidade
das experincias tambm ir distorcer a temporalidade dos eventos. Apesar de o respeito ao passado
e ao que foi passado do pai de santo de Me Bequinha, Tonho Mutalamb, para ela e suas filhas e
filhos, h uma nebulosidade em se tratando do que seria a tradio, do que se pode mudar,
questionar e fazer diferente no tempo presente. Muito do que dito num passado, especialmente
recente, modificado a depender do contexto ou da manipulao de ideias e direcionamento, ou
seja, quem vai receber essa informao? E qual a finalidade desta informao naquele momento?
Algumas dessas situaes, da mudana de discurso do passado para o presente, j causou
desconforto entre xs integrantes da casa, ocasionando a sada de algumas pessoas que eram filhxs de
santo, por no compreender que no h uma linearidade dos fatos, que presente e passado se
entrelaam e que a intencionalidade do discurso est implcita em muitas, se no em todas dessas
aes.
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Discurso e narrativa sobre e para as filhas de Yemanj
Assim como Steedley apresentou exemplos de conversas entrelaadas sobre as mulheres na
Sumatra que se comunicavam com espritos, dentro do contexto que trago e da multiplicidade de
minhas experincias ao longo do perodo que apresentei, pensei nos papeis ocupados pelas filhas de
Yemanj em questo e nas diversas narrativas e suas ambiguidades em se tratando de lidar com
tudo que envolve essas experincias, desde as relaes pessoais, at a relao com orixs e
entidades. O povo de Yemanj quizilento, porque ela dona das cabeas, mexe com o juzo de
qualquer um, um povo que gosta de falar, e mais ainda de ser ouvido, disse Me Bequinha,
yalorix do Il As Omin Maf, e uma das minhas mes de santo4.
De acordo com Maluf (1999),
Cada percurso individual por essas experincias confunde-se com a histria de vida,
modificando-a e dando-lhe novos sentidos. preciso levar em conta a experincia singular
(ligada a uma dimenso coletiva e social) e significado dado a essa experincia por sujeitos
singulares. (MALUF, 1999: 03).
Pela tradio oral do Il, as filhas de Yemanj geralmente tem o costume de observar muito
o contexto, e de pensar antes de falar. No meu caso, posso afirmar que a minha identidade e o papel
que desenvolvo enquanto filha de santo muito diferente do papel que desenvolvo dentro de minha
famlia biolgica, como esposa, filha, neta, sobrinha e prima.
No terreiro, o pensar antes de falar, o observar e calar pr-requisito para uma boa forma de
comunicao e fundamental para a demonstrao de respeito aos mais velhos, que consiste em saber
ouvir, ver, mas, sobretudo obedecer ao que xs mais sbixs tem para te ensinar. Assim como a
narrativa e o discurso, Kirshenblatt-Gimblett (1989) afirma que o texto tambm tem a potncia de
carregar coisas que escapam o nosso controle, e da mesma forma que xs antroplogxs carregam a
incerteza de fala daquelas pessoas as quais entrevistam ao longo da pesquisa de campo, o texto
produz efeitos a partir de sua prpria estruturao. Assim como o discurso, o texto tambm possui
um projeto poltico, buscando preencher um compartimento que j est dado pelo contexto
escolhido, bem como o tipo de discurso que se emprega e o posicionamento do sujeito em cada
contexto em que est inserido, constituindo um processo de escolhas, seja na produo de um texto
etnogrfico ou na construo de um discurso.
4 Quando me refiro a duas mes de santo porque sou a primeira filha feita de uma me de santo da casa, que filha de santo de Me Bequinha, e de acordo com o processo ritual, a primeira filha de uma me de santo deve ser feita por ela e
pela me dela, como forma de concretizar esta primeira feitura, por isso, sou feita pelas mos de Me Bequinha e de
Me Martha.
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...a maior parte dos estudos de narrativa tem tratado os textos como fixos, ignorando a
contextualizao de sua produo, ou seja, ignorando que a narrativa o resultado do
evento de sua narrao num contexto cultural particular e as implicaes deste evento para
o texto. (LANGDON, 1999:15).
E a partir dessa construo oral, impregnada de ambiguidades e temporalidades
entrelaadas, como trazer para o texto as narrativas orais e discursos? E como pensar na
temporalidade do passado e da histria para a construo da experincia e das narrativas? Scott
(1999) aponta a importncia da histria para a construo da experincia, visto que os sujeitos so
constitudos atravs da experincia, e que a historicizao aponta para vrias possibilidades de
interpretao para que possamos compreender as experincias. Ou seja, a experincia uma histria
dx sujeitx e a linguagem, ou nesse caso especfico de uma casa de Candombl, o discurso/narrativa,
o local onde a histria encenada. Essa assertiva retoma a premissa de que o contexto o palco e
xs sujeitxs so atores, cuja representao ir depender deste contexto o qual elxs sero inseridxs.
Para Scott, retomar a experincia possibilita trabalhar a subjetividade, e neste sentido, o
deslocamento que Steedley prope fundamental para buscar entender como funcionam a
construo desses discursos atravs das experincias.
Voltando ao Il e ao processo ritual, nas casas de Candombl que pude conhecer e em se
tratando da casa que frequento, um dos pr-requisitos para se acreditar ou no num discurso a
credibilidade de quem conta, ou seja, se uma pessoa que est sempre envolvida com fofocas e
com o hbito de falar demais, outrxs integrantes alertam para no dar ouvidos a essas pessoas.
No Candombl, ouvir e observar sempre mais coerente do que falar.
O que xs mais velhxs da casa falarem, tido como certeiro, e no se deve questionar as
aes ou o discurso da me de santo e das autoridades, no somente por uma questo hierrquica,
mas porque a hierarquia no Candombl implica mais experincia, conhecimento e tempo de
religio, o que faz com que algumas pessoas saibam mais do que outras. O estgio inicial, ao qual
me submeti, faz com que eu tenha que ouvir e calar muito mais, obedecer sem questionar, mesmo
que eu discorde, porque aquelas pessoas sabem mais ou se as coisas acontecem de determinada
forma, o Orix que quer te mostrar alguma coisa, e se tiver pacincia, saber compreender, assim
foi explicado a mim.
A construo da narrativa e a quizila de Yemanj
Por ser a dona das cabeas, de acordo com a mitologia dos Orixs e histria oral passada nos
terreiros, Yemanj muito associada proteo, cuidado, pacincia e racionalidade na hora de
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tomar suas decises, no deixando de lado tambm o senso de justia e o instinto vingativo, caso
seja contrariada. Muito do que se passa para xs filhxs de santxs no Candombl, a relao entre as
caractersticas dos orixs, sejam elas fsicas ou psicolgicas, e esta relao entre mito, arqutipo e
sujeitx na maioria das vezes se confunde. Por exemplo, muitas vezes algumas atitudes ou
caractersticas fsicas so atribudas por causa do Orix, como afirmar que quem de Yemanj
geralmente tem vontade de ser me, filhas de Ians devem casar-se com filhos de Xang, Filhas de
Yemanj se relacionam melhor com pessoas de Oxal, e tudo isso baseando-se nos mitos, como se a
histria dos Orixs fossem entrelaadas de alguma forma com a nossa, e nisso entram tambm as
caractersticas fsicas, como as mulheres de Yemanj, a depender da qualidade da Orix, podem ter
seios fartos e quadris largos, gostam de ter cabelos longos, ou se curtos, com estilo diferente do
casual.
Se so filhas das Yemanjs mais guerreiras, como o caso de Yemanj Ogunt ou Fecum
(qualidades de Yemanjs mais jovens), o arqutipo de mulheres altas, magras e esbeltas, e com
personalidade mais introspectiva. No meu caso, de Yemanj Sob, antes mesmo da confirmao no
jogo de bzios, muitas pessoas mais velhas no santo5 afirmavam que eu era filha de Yemanj Sob
com Xang por causa de caractersticas fsicas como a baixa estatura, coluna mais curvada, cabelos
longos, falante e transparente como as guas (um pai de santo disse-me uma vez).
Alm dessas caractersticas, algumas pessoas afirmam que uma das quizilas de Yemanj a
fofoca ou fuxico. Ou seja, geralmente so pessoas que no gostam, mas acabam sendo vtimas de
falatrios por conta de sua trajetria ou personalidade inquieta.
Muito do que dito e construdo depende da autoria do discurso e da intencionalidade do
mesmo, mas nunca h um discurso sem inteno, sem propsito e sem um jogo poltico por trs
dele. A autoria do discurso e para quem ele dito e feito, depende de quem tambm ir receber, a
pessoa que ir acreditar no que se conta e que ir reproduzir o que foi contado, dessa forma, a
fofoca ou fuxico torna-se uma quizila dentro da casa de santo, por disseminar segredos, e neste
contexto religioso, o segredo, o mistrio e o no dito tem um poder e importncia extrema para a
continuidade e legitimidade das aes e rituais que l acontecem.
Os rudos na comunicao, a fofoca e o silncio operam como categorias primordiais dentro
desta esfera, e esses rudos expem a fragilidade dos sujeitos, uma vez que a palavra tem uma
agncia em relao vida das pessoas (DAS, 2007) e o silncio que visvel, no reconhecido
5 Pessoas velhas no santo so aquelas que esto no candombl a mais tempo ou que fizeram boa parte das obrigaes que filhxs de santo fazem durante os 21 anos de trajetria.
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dentro deste contexto como a negao do discurso ou a ausncia do que o que se quer dizer de fato.
No Candombl no h o momento de defesa de uma acusao, pois geralmente as acusaes so
feitas por quem pode acusar, ou seja, por quem tem respaldo seja hierrquico da religio ou ligado
famlia biolgica, e quem recebe a acusao quem no ir confrontar o acusador, uma vez que h
o respeito pela hierarquia ou h a forma de evitar as coisas que no vo e no podem ser mudadas
atravs do silncio.
E o silncio opera de diversas maneiras, no somente em resposta aos conflitos, como
tambm em resposta s diversas questes feitas em relao a como so mutveis as leis, regras ou
andamento dos rituais a depender de quem esteja frente dele, ou quem esteja recebendo o ritual.
No Candombl, tudo muito relativo, nada igual ou impassvel de mudanas, a individualidade e
a transformao operam constantemente e de maneira relacional, muitas vezes esto to imbricadas
que se confundem, e por isso, h vrias formas de interpretao e de utilizao do silncio dentro
deste contexto.
The response to some of my questions was silence. Sometimes the silence indicated a
simple refusal to answer the question. It often signaled danger. At other times, according to
the context, it indicated an affirmative or a negative response to my question. I neither case
I would change the subject. I didnt push because I recognized the danger or knew the
answer. Often my question was answered, by in direction, in the conversation that
followed. (CRAPANZANO, 2008, p.35)
O discurso, nesse sentido, est carregado de relaes de poder, de submisso,
pressuposies, competio, persuaso convencimento ou objetiva fazer isso. H ainda o discurso
carregado de contradies quando as explicaes generalizadas so confrontadas por
acontecimentos diversos que no h como premeditar ou evitar, ou, pelo contraste entre o geral e o
individual, a exemplo da premissa de que cada Orix nico como cada indivduo nico, cada
Orix lida com cada filho ou filha de santo de maneira diferente, nica e singular, cada Orix cobra
e d de acordo com a individualidade e merecimento de cada um, segundo o que aprendi e ouvi na
casa.
Essas indagaes constam aqui no mais como indagaes de uma filha de santo, no que
eu, a filha de santo, no as tenha, mas como antroploga que posso express-las, mesmo correndo
o risco de ser julgada por no estar exercendo o meu papel de Yaw, que o de calar e observar,
afinal, no se questiona, se segue e aprende. A ambiguidade dos discursos tambm passada para
as narrativas, a exemplo das obras de Pierre Verger e Reginaldo Prandi sobre a mitologia dos
Orixs e como os mitos diferem, contrastam e convergem em diversas ocasies, a depender de
quem conte e da forma como so contados.
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A diversidade do outro, pela diferena que ele se faz o outro, e isso caracterstico de
todas as comunicaes, que em todas h relaes assimtricas entre os comunicantes. melhor
pensar em situaes no comunicativas, do que utpicas, porque a utopia ideal e a j h a
assimetria no pensamento. De acordo com Pereira (2009), os atos de fala dependem de f6rmulas
convencionais e de outros usos da linguagem como entonao, oposio nas trocas convencionais,
relaes sociais. Ou seja, nesse caso, as narrativas constroem-se a partir das experincias e eventos,
mas tambm trazem a ambiguidade do discurso e toda a subjetividade das relaes as quais esto
imbricadas nessas experincias e na construo dessas narrativas.
A construo dessas narrativas e a mutabilidade das mesmas em relao s filhas de
Yemanj, depende tambm do contexto em que essas pessoas esto inseridas. Para tudo h uma
explicao, para todo questionamento uma resposta, pois at o silncio uma resposta, e dentro do
Candombl, pode ser das mais assertivas. O silncio fala, s vezes ele at grita.
Ha tambm que se levar em considerao os atores envolvidos, bem como o sistema de
valores e regras mais amplas que guiam as relaes sociais. Como parnteses, importante
salientar que a definio de contexto e as varias interfaces deste foram posteriormente
discutidas por inmeros autores preocupados com a linguagem, bem como por alguns
estudiosos da teoria da performance e da prxis. Entre estes, cabe salientar o livro
organizado por Duranti e Goodwin (1992), onde os autores realizam uma tomada hist6rica
dos usos do "paradigma" da contextualizao das analises da linguagem, bem como
apontam alguns dficits nas definies dadas por Hymes na primeira onda da etnografia da
fala. Bauman e Briggs (1990) apresentam os conceitos de contextualizao, entextualizacao
e descontextualizaro para dar cabo ao processo de transposio de realidades dentro do
percurso da interao, levando em considerao o carter social e historicamente construdo
desses movimentos. (PEREIRA, 2009: 308 - 309).
Neste sentido, importante pensar na transitoriedade do tempo, atores envolvidos no
processo, mas principalmente, pensar nas formas de linguagem e no contexto em que essas
narrativas surgem e para quem. No h como engessar ou delimitar as narrativas dentro de um
universo como o das religies afro-brasileiras. Especialmente porque cada casa de ax ou de santo
nica no sentido em que cada uma delas possui suas regras, sua forma de conduo e personagens
diferentes, com histrias diferentes e maneiras de relacionar-se diferentes tambm. Podemos pensar
nessas narrativas como mutveis, bem como as regras de cada casa, contextos e situaes, alm
disso, mesmo a universalizao de mitos e histrias passvel de mudanas, passvel de erros e de
transformaes ao longo dos processos rituais em que a casa est sempre submetida. Portanto, tratar
dessas narrativas como assertivas e histrias prontas e fixas, tentar engessar um universo em
constante transmutao.
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Consideraes finais
Esse breve trabalho buscou muito mais o questionamento do que as explicaes ou certezas
que muitas vezes tentamos conseguir atravs do trabalho de campo. Tratar sobre as questes dentro
do universo religioso afro-brasileiro um desafio constante, seja para os que, assim como eu, fazem
parte de uma dessas religies, seja para curiosxs ou estudiosxs do tema.
Busquei trazer um pouco da minha experincia como filha de santo do Il Ax Omin Maf
para problematizar uma questo central sobre as filhas de Yemanj nesta casa, que a fama de
que so cheias de quizilas, ou problemticas e inconstantes. Toda essa premissa, ao que pude
constar e perceber ao longo de minhas observaes e conversas com integrantxs da casa, a de que
est fundada no s nas experincias vividas e contadas de mes e pais para filhxs de santo, como
tambm no mito narrado e contado sobre a histria da Orix Yemanj, que carrega consigo um
temperamento inconstante como o mar, e que mitologicamente conhecida pela personalidade forte
e outras caractersticas previamente citadas.
A bibliografia escolhida ampla, no sentido de trazer a voz e a importncia do Outro para a
construo do discurso e das etnografias, pontuando e problematizando questes importantes, que
apesar de trazer campos e contextos diferentes, se encaixam e podem ser relacionais com o que
busco para tentar compreender melhor os processos os quais a casa que frequento passa. Alm
disso, tentei mostrar como todo discurso poltico, e mutvel a depender de quem o faa e para
quem o faa, e acredito que essa formao e construo dependa de inmeros fatores, a comear
pelo contexto e relaes imbricadas entre xs atores envolvidos nos processos de comunicao o qual
o discurso ser elaborado.
Sendo assim, deixo em aberto alguns questionamentos para que possam ser melhores
desenvolvidos e elaborados com mais reviso bibliogrfica e tempo de pesquisa, que envolvem a
questo da formao da quizila e o contraste entre santos e indivduos. Pensando em tentar
problematizar ainda mais essas relaes, mitos e discursos que perpassam a questo religiosa,
envolvendo relaes interpessoais entre a famlia de santo e seres sobrenaturais.
Referncias
BAUMAN, Richard. Verbal art as performance. In: American Anthropologist. New Series,
vol.77, n.2 (jun), 1975: 290-311.
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CARDOSO, Vnia Zikan. Narrar o mundo: Estrias do povo da rua e a narrao do
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CRAPANZANO, Vincent. Sundered Subjects and Opaque Others. In: Anthropology and
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Yemanj's quizila and the construction of narratives during a ritual process in a Candombl
house in Sergipe
Abstract: In Candombl, ritual processes require intense sociability and interaction from its adepts,
since the whole process is a collective process, in which each member performs an important
function throughout the stages. Therefore, everyone communicates, tells and listens to stories,
elaborates speeches and builds their experiences and narratives, and then, information circulates
throughout the days in which rituals occur and this whole communicative process is also a
performative act. Women occupy their space in eminently important roles, especially in relation to
the Afro-Brazilian religions, whose female representations of the orixs are strong, imposing and
powerful characters. What I intend to present in this brief article is an outline of the narratives that
dictate the personality and temperament of Yemanj's daughters as quizilenta, complicated and
problematic, specifically in the ritual process regarding the feitoril of the saint, and the construction
of this discourse through narratives Presented. I do not want here, in this short space, to
problematize the performance of narratives in the Social Sciences or to confront authors about what
the narratives would be and how they should be done, since the bibliography used opens the door to
a wider discussion and in which the subject does not appear as plastered, a way of searching in the
multiplicity of experiences and discourses as these narratives are built in this house of saint.
Keywords: Candombl. Narratives. Gender.