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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X NARRATIVAS DE UMA MIGRAÇÃO ESQUECIDA: A "PEQUENA" HISTÓRIA DE UMA MULHER FRONTEIRIÇA. LOSANDRO ANTONIO TEDESCHI. 1 Resumo: As histórias narradas pelas mulheres, sobretudo, quando relembram minuciosamente os deslocamentos migratórios, desde o momento em que tomaram conhecimento das terras além-fronteiras, os arranjos familiares, as relações de gênero revelam uma outra história sobre migrações. Assim, migrar é sair do seu lugar, envolvendo processos de desterritorialização e reterritorialização, que não são necessariamente sucessivos nem ordenados. Tem um significado importante para as identidades de gênero, pois modificam em alguns casos, os tradicionais papéis femininos, e em outros, pereniza as continuidades das representações de gênero. Este texto filia-se a corrente historiográfica conhecida como História das Mulheres, que nos desafia a pensar o papel feminino nas várias perspectivas de abordagem na história, nesse caso, o das migrações femininas contemporâneas. Distante de toda pretensão de “representar”, as demais narrativas femininas nesse processo, minha análise ainda arbitraria e limitada, é produto desse cruzamento de leituras, entrevistas, visitas, conversações, encontros pontuais, resultados de anos de pesquisa em comunidades de assentamentos rurais na fronteira brasileira. A análise dessa narrativa migratória transpõe os espaços e tempos cronológicos e revelam uma realidade multifacetada de trajetórias que se diversificam, abrindo espaços para experiências de re-existencias e de posicionamentos individuais e coletivos. Palavras- chave: Migrações, Gênero, Fronteira, História das Mulheres INTRODUÇÃO Esse texto é resultado de um estudo que se dirige aos grupos de mulheres camponesas situadas em ambiente fronteiriço no Brasil e no Paraguai. Este trabalho está centrado nas histórias de mulheres migrantes camponesas brasiguaias, particularmente na narrativa de deslocamento de uma personagem que vivenciou esse processo, que ao narrar pelas suas palavras esse acontecimento, define suas posições de deslocamento, recriando sua vida familiar e social pelo ato de contar. Ao ouvi-las 2 pretendia observar os vários enredos usados na elaboração de um discurso sobre a experiência passada e presente. Mais do que indagar sobre a memória, me interessava o “esquecido”, o “silencio”, aquele trajeto, fato, ação performativa, capaz de formar e subverter o relato, de parecer sem ser chamado em uma simples conversa, numa realidade que convive com o cotidiano, ainda assim emergir, sem mostrar-se, formado parte da história comum e cada biografia, história de vida. Essa “conversa livre” permitiu uma maior intimidade – construída ao longo do processo de intercomunicação de uma rede dialógica que foi sendo construída por uma lógica 1 Doutor em História, professor da UFGD/MS, pesquisador produtividade em Pesquisa no CNPq e coordenador da Cátedra UNESCO “Gênero e Fronteiras”. 2 Escrevo no plural, porque são várias entrevistas que realizei com mais de uma dezena de mulheres, totalizando aproximadamente 65 horas de gravações, registrando seus relatos, suas narrativas. Nesse texto especificamente, reflito e analiso o relato de uma migrante camponesa brasiguaia, sua história é referencial sobre essa temática.

NARRATIVAS DE UMA MIGRAÇÃO ESQUECIDA: A PEQUENA … · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017,

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    Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),

    Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X

    NARRATIVAS DE UMA MIGRAO ESQUECIDA: A "PEQUENA"

    HISTRIA DE UMA MULHER FRONTEIRIA.

    LOSANDRO ANTONIO TEDESCHI.1

    Resumo: As histrias narradas pelas mulheres, sobretudo, quando relembram minuciosamente os deslocamentos

    migratrios, desde o momento em que tomaram conhecimento das terras alm-fronteiras, os arranjos familiares, as

    relaes de gnero revelam uma outra histria sobre migraes. Assim, migrar sair do seu lugar, envolvendo

    processos de desterritorializao e reterritorializao, que no so necessariamente sucessivos nem ordenados. Tem

    um significado importante para as identidades de gnero, pois modificam em alguns casos, os tradicionais papis

    femininos, e em outros, pereniza as continuidades das representaes de gnero. Este texto filia-se a corrente

    historiogrfica conhecida como Histria das Mulheres, que nos desafia a pensar o papel feminino nas vrias

    perspectivas de abordagem na histria, nesse caso, o das migraes femininas contemporneas. Distante de toda

    pretenso de representar, as demais narrativas femininas nesse processo, minha anlise ainda arbitraria e limitada,

    produto desse cruzamento de leituras, entrevistas, visitas, conversaes, encontros pontuais, resultados de anos de

    pesquisa em comunidades de assentamentos rurais na fronteira brasileira. A anlise dessa narrativa migratria transpe

    os espaos e tempos cronolgicos e revelam uma realidade multifacetada de trajetrias que se diversificam, abrindo

    espaos para experincias de re-existencias e de posicionamentos individuais e coletivos.

    Palavras- chave: Migraes, Gnero, Fronteira, Histria das Mulheres

    INTRODUO

    Esse texto resultado de um estudo que se dirige aos grupos de mulheres camponesas

    situadas em ambiente fronteirio no Brasil e no Paraguai. Este trabalho est centrado nas histrias

    de mulheres migrantes camponesas brasiguaias, particularmente na narrativa de deslocamento de

    uma personagem que vivenciou esse processo, que ao narrar pelas suas palavras esse

    acontecimento, define suas posies de deslocamento, recriando sua vida familiar e social pelo ato

    de contar.

    Ao ouvi-las2 pretendia observar os vrios enredos usados na elaborao de um discurso

    sobre a experincia passada e presente. Mais do que indagar sobre a memria, me interessava o

    esquecido, o silencio, aquele trajeto, fato, ao performativa, capaz de formar e subverter o

    relato, de parecer sem ser chamado em uma simples conversa, numa realidade que convive com o

    cotidiano, ainda assim emergir, sem mostrar-se, formado parte da histria comum e cada biografia,

    histria de vida. Essa conversa livre permitiu uma maior intimidade construda ao longo do

    processo de intercomunicao de uma rede dialgica que foi sendo construda por uma lgica

    1 Doutor em Histria, professor da UFGD/MS, pesquisador produtividade em Pesquisa no CNPq e coordenador da Ctedra UNESCO Gnero e Fronteiras. 2 Escrevo no plural, porque so vrias entrevistas que realizei com mais de uma dezena de mulheres, totalizando aproximadamente 65 horas de gravaes, registrando seus relatos, suas narrativas. Nesse texto especificamente, reflito e analiso o relato de uma migrante camponesa brasiguaia, sua histria referencial sobre essa temtica.

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    individual, como um fio condutor, relatos que se abriam e fechavam logos, como um relmpago,

    numa rotina de vozes e gestos, tomando emprestadas as palavras de Leonor ARFUCH (2013.

    P.15).

    2 - UMA HISTRIA DE DESLOCAMENTO.

    (...) Fazem 15 anos que ando pelo mundo... a lona no

    mata o peo, mas encolhe .(D. Maria.)

    Com delicadeza e um dedo de ironia, dona Maria3, com seus 54 anos, nos recebe em seu lote

    no assentamento Santo Antnio no Municpio de Navira no MS. Um dia quente do ms de

    novembro, chegamos em sua casa por volta das 9 horas da manh. Panelas no fogo a lenha, roupas

    no varral, animais a solta no ptio da casa, msica na cozinha, provavelmente de uma rdio local,

    ela nos aguardava com um ar de satisfao, como quem recebesse um familiar, um amigo distante.

    J havamos feito um contato anteriormente, via um aluno bolsista do projeto projovem

    campo Saberes da terra, e nossa inteno era ouvir sua histria de descolamento4, de migrao para

    o Paraguai em anos anteriores. Ouvi-la sobre esses deslocamentos sobre os lugares chegados, e

    outros lugares deixados5 no sul. Agora j em seu lote, nos recebe e tranquilamente como uma

    sulista, nos oferece um chimarro, marca registrada dos migrantes gachos, smbolo da

    hospitalidade e acolhida.

    Minha inteno era ouvir e registrar essa memria feminina6 esquecida, apagada, uma

    lembrana no registrada nas pginas da histria regional brasileira. Suely Koffes7 nos alertava que

    3 D Maria uma camponesa assentada migrante brasiguaia, 56 anos, que reside no assentamento Santo Antnio no municpio de Navira no MS. Me de 03 filhas, mora sozinha no lote, lder comunitria. Essa entrevista foi feita no dia 14/15 de novembro de 2013 e 04/05 de maro de 2014. ENTREVISTA: Maria A. Neto Neves. (udio-mp3). Produo: Losandro Antonio Tedeschi. Dourados: UFGD, 2013/2014. 230 min. (aprox.), son. 4 Como afirma Marcia Anita Sprandel (2005, p.26): A travessia de fronteiras poltico-administrativas internacionais detentora de uma srie de circunstncias para o sujeito em deslocamento, especialmente em funo do controle dos Estados nacionais, gerador de tipologias, identidades e, muitas vezes, criminalizaes. Da a importncia de etnografias que apreendam como grupos sociais narram a sua histria e a histria de vida de seus membros, a partir de categorias prprias. Pensar esses grupos sociais com a categoria migrantes e seus deslocamentos como migrao tem, historicamente e politicamente, obscurecido situaes e trajetrias de vida diversas, negando o papel fundamental das estratgias de reproduo social na tomada de deciso para mudanas espaciais e adaptaes a novos cenrios. SPRANDEL, Marcia Anita. Algumas observaes sobre fronteiras e migraes. Fronteiras/ Artigos, 2005. 5 Uso esse termo lugares chegados, lugares deixados a partir da concepo de GOUTERTD, Jones Dari na obra O espao e o vento: olhares da migrao gacha para Mato Grosso de quem partiu e de quem ficou. Editora UFGD, Dourados, 2006. 6 Na acepo de Michelle Perrot.

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    a memria, matria prima da histria construda nesse jogo do esquecimento e da lembrana,

    nesses conflitos entre os agentes que permitem lembrar ou probem esquecer. Entre o narrvel e o

    inarrvel.

    Sa de minha casa em Corblia no Paran SC, tinha 09 anos e trabalhava na roa, morava

    num vilarejo, catava n de pinho em cascavel em certos perodos. Era to triste que no podia

    pegar muito na mo devido a ter muitos espinhos, e ai aos 15 anos eu fugi (risos) em maro

    num domingo de pascoa, no aguentava aquela vida e fui para cascavel, morei na cidade,

    trabalhava de tudo um pouco, era bem novinha e ai um dia decidi casar e que iriamos para o

    Paraguai. Em 1974 fui ao Paraguai, e s sai de l definitivamente com 45 anos (...) um tempo

    que ficamos no barraco meio c e meio l, sem destino. Foi em 1974 que mudamos para

    santa helena no Paraguai. Fomos para Puerto Adlia, peguei as roupinhas coloquei dentro de

    um saco eu e meu marido. Apenas ns dois, e fomos embora, porque a vida no era boa aqui

    no Brasil, no havia terra, emprego a situao era muito difcil.

    Ao expressar a sua sada do Brasil, eu fugi, D Maria nos remete ao entendimento de uma

    experincia marcada desde cedo pelo sofrimento e trabalho duro na roa. Entre viver e resistir no

    local, preferiu fugir. Ir-se para o outro lado. Quem sabe esse fugir tenha a haver como uma

    possvel perspectiva de progredir, fugir do problema de no ter terra possivelmente. As condies

    materiais nesse perodo, falta de terra, problemas com a famlia, poca da ditadura militar, censura

    etc.

    Ao abordar as migraes femininas a partir da tica dos estudos de gnero, tem-se

    evidenciado que para muitas mulheres que saem em busca de novas condies de vida, representam

    tambm um desejo de fugir de um modelo de sociedade sexualmente opressora, hierarquizada,

    onde a famlia um dos espaos que recriam e reproduzem a desigualdade de gnero e papis

    sociais.

    Fomos de Cascavel PR para Puerto Adlia, Paraguai moramos 05 anos. Trabalhvamos na

    lavoura, morvamos num stio de um brasileiro, fomos para uma posse, onde o sujeito

    comprava o direito do outro, moramos numa posse de um compadre, e foi l onde nasceu as

    filhas (silencio) eu j tinha as 3 filhas quando sai de Puerto Adlia. Fiquei 30 anos no

    Paraguai, a terra se vendia o direito e se comprava, plantvamos milho, algodo, feijo,

    somente ns dois, vida muito difcil, sem segurana, com medo.

    O momento da mudana e da adaptao para D Maria no outro espao dava-se pela ligao

    com outras famlias brasileiras no Paraguai. Lugares novos, pessoas diferentes, ajustes que

    precisavam ser feitos, sejam de adaptao de papis atribudos a cada um no processo migratrio

    para o Paraguai, D Maria passa a se constituir como sujeito, ao ter que enfrentar um outro espao,

    um outro lugar e ter que conviver ativamente nesse espao, atravs de seu trabalho.

    Ao ouvi-la narrar, vamos lentamente entendendo o cruzamento das esferas pblica e privada,

    sem dvida, agora como sujeito de um mundo rural, alm fronteira, fazendo parte de um novo

    7 KOFFES, Suely. Uma trajetria, em narrativas. Campinas-SP, Mercado das Letras, 2001.

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    microcosmo social que afeta a maneira como viam as dimenses do pblico e do privado do

    masculino/feminino com significativas relaes com o cotidiano no Brasil.

    3 - No tive ningum que me ajudasse.

    Ao chegar l foi muito sofrido, tudo diferente, desconhecido, para ir a igreja tudo era a p. O

    momento mais difcil era quando era para ter os filhos, no tinha condies nenhuma, sem

    hospital, tudo por parteira, eu ficava com medo da parteira, eu no conhecia ela e no tinha

    segurana. A gente sofreu muito, e a Luzia (filha) ganhei sem parteira, sem remdio, sem

    acompanhamento mdico, nada. Ganhei a filha sozinha!!! No tinha dinheiro para nada

    naquele lugar.

    Ao dizer que era tudo sofrido l, a narrativa de vida de Maria apresenta uma espcie de

    cartografia, como se a memria de si mesma se vinculasse estreitamente aos lugares em que

    residiram s muitas viagens e mudanas domiciliares ao longo da sua histria. A atribuio de

    sentido ao curso de suas vidas (e a avaliao moral que a companha a construo dos enredos) est

    intimamente articulada aos espaos percorridos e aos sentidos que atribuem a tais espaos, de modo

    que a seleo dos episdios para a narrao autobiogrfica privilegia situaes ou aes que

    envolvem o abandono, procura e ocupao de lugares e moradias.

    Quanto segunda condio (gnero), as histrias autobiogrficas das narradoras constroem

    sentidos importantes sobre o feminino naquele contexto sociocultural, enfatizando, mais

    particularmente, o empoderamento feminino em relao a estar sozinha e cuidando dos filhos. De

    fato, em sua prpria histria, as mulheres inserem as trajetrias de seus familiares e percebe-se que

    sua histria se mescla com a famlia, os deslocamentos, casamentos, dificuldades, violncias.

    A metfora desse processo tecida a cada dificuldade vencida, articulando sua vida aos

    novos desafios que esto porvir. Esses transcendem a vida pessoal, o vivido avaliado como

    sofrimento, uma experincia que ao memorizada atravessar geraes e que d sentido ao conjunto

    de episdios em que foram protagonistas e observadoras. Elas reconstituem assim sua memria

    pessoal no cruzamento com a memria coletiva, fazendo uso criativo da forma como contam sobre

    o passado, religando a sua existncia de uma coletividade passada e presente.

    A histria de vida de D Maria e de tantas outras mulheres brasiguaias nos apresenta uma

    espcie de hibridizao sobre o lugar chegado e a nova identidade de gnero assumida,

    J estava sem marido porque me separei(...) a coisa estava difcil, tive que me adaptar aquele

    lugar, no tinha quase o que comer(...) e um dia eu coloquei uma galinha em baixo do brao e

    sair a vender em Puerto Adlia. Andei o dia inteiro com a galinha embaixo do brao e no

    consegui vender, encontrava os coitados dos brasileiros com as galinhas embaixo do brao

    (rsrsr) era uma vila paraguaia...mas ela tinha cartrio de registros essas coisas, mas no tinha

    hospital, quem tinha condies de vir para o Brasil, vinha, mas a grande maioria no tinha(...)

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    A idia do retorno era algo que no abandonava D Maria, quem tinha condies de vir ao

    Brasil, vinha, uma espcie de ferida que no se curava. O retorno sempre presente no dia-a-dia nas

    dificuldades do cotidiano, confrontando uma adaptao forada pela circunstancias da vida, uma

    tentativa de adaptao de enraizamento8 no novo lugar.

    D Maria sabe que no pode retornar, mas, tem que enfrentar o presente, mesmo que a luta

    cotidiana da resistncia e da construo requer um olhar para frente, olha-se para o futuro, mas o

    passado tem seu lugar na memria. Jones Dari (2008: p.135) nos diz que a migrao uma estrada

    com placas de sinalizao indicando para frente, atrs delas apenas os rabiscos das lembranas e

    raras setas de retorno. O sentimento de ir para um lugar para uma vida melhor requer o

    entendimento que o lugar deixado, o lugar de origem se esgotou ou no oferece mais a

    possibilidade de vida.

    (...) No tinha como retornar mais ao Brasil (...) de Puerto Adelia continuamos

    seguindo dentro do Paraguai. Vou para outra fronteira (Cerro Fortuna) isso foi em

    1980. Dava uns 30 km da cidade de sete quedas, era um mato, o primeiro socorro

    era um tal de doutor dos ndios, um alemo que dava remdio para os ndios.

    Fomos para Cerro Fortuna para ficar perto das parentes. Fazia 9 anos que estvamos

    rodando com a mala sem se aproximar da famlia, era um monte de sitio, fazenda,

    perto de uma aldeia os ndios olhavam para ns com desconfiana, o lugar era

    conhecido como o fundo do saco, no tinha estrada para frente, nada mais, tinha que

    voltar, era o fim de tudo... sem hospital, sem escola, sem nada, lugar de ningum (...)

    o fim da rosca (risos).

    Sayad (1998) e Gotterd (2008) nos apontam que os deslocamentos migratrios so

    mobilidades de pessoas entre espaos fsicos e simblicos, deslocamentos que muitas vezes no so

    uniformes, reconfigurando-se novas realidades e espaos sociais. Ao afirmar que era o fim, D

    Maria esta colocando-se um limite, no apenas de um espao geogrfico do lugar em si, mas

    tambm toda a representao que esse espao coloca a sua frente, os valores, a famlia, o grupo

    social que ficou etc....Um lugar sem nada uma expresso de no pertencimento, de lugar

    nenhum, e nesse sentido ser ningum, estrangeira, num no-lugar.

    Marc Aug (2015) ao falar dos no-lugares como um espao de passagem incapaz de dar

    forma a qualquer tipo de identidade, nos aponta que esses espaos de fronteira so permeados de

    pessoas em trnsito. So espaos de ningum, no geradores de identidade, de pertencimento.

    8 Segundo WELL, 0 seres humano tem uma raiz por sua participao real, ativa e natural na existncia de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participao natural, isto , que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profisso, do ambiente. Cada ser humano precisa ter mltiplas razes. Precisa receber quase que a totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermdio dos meios de que faz parte naturalmente WELL, Simone. O Enraizamento. Bauru: EDUSC, 2001, pg.8

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    Mesmo que perto da aldeia dos ndios, e perto dos parentes, D Maria se coloca fora de seu

    lugar (o seu de origem) estando ao mesmo tempo num lugar que no prprio, distinto, diferente,

    o fim. No notei uma conotao negativa ao relatar esse espao, mas sua caracterstica de

    instabilidade, transitoriedade de no-lugar.

    No h como passar despercebida a angustia na narrativa, num lugar estranho, insalubre,

    sem condies de cuidado ao corpo, as filhas, a sua condio como ela mesma diz de mulher

    sozinha. O lugar de ningum que D Maria expressa, um lugar diferente, um lugar

    estranho, e por ser em outro pas, em regio de fronteira tambm um entre-lugar.

    Homi Bhabha (1998) ao abordar sobre as territorialidades transitrias em experincias

    fronteirias, nos coloca a experincia de sujeitos entre-lugares, como espaos de reflexo,

    renovao e de novas formas de arranjos sociais. Uma espcie de temporalidade em construo e

    contradio social que interativa e intersticial, uma intersubjetividade insurgente que

    interdisciplinar (idem, p.315), espaos de fronteira, de contatos com o outro, produo de novas

    subjetividades que so resultadas do cruzamento de novas representaes e estratgias de

    sobrevivncia. H um estranhamento entre mundos, o de l e o de c, que vo aos poucos criando

    micros realidades e pontos de contato com aquilo que considerado uma experincia ou histria

    marginal.9

    (....) fim de tudo, de tanto sofrer a gente acaba lembrando, hoje com alegria esse sofrimento;

    naquele lugar nasceu a minha filha mais nova...e com 03 meses deu pneumonia...no tinha

    nenhum recurso, eu tinha que inventar coisas para sobreviver. Coloquei umas bolsas de arroz

    em cima de um caminho para vender e embarcamos. O caminho s tinha uma luz...e chovia

    muito, atolando.... e pegamos a estrada e chegamos em sete queda. O doutor examinou e

    falou que a percentagem de vida dela era muito pouca... se morrer voc no fica triste

    porque voc demorou muito a traze-la e ela escapou por um fio de linha, a minha filha (

    lgrimas). Desse lado da fronteira os remdios do doutor dos ndios no resolviam esses

    problemas (...)

    interessante observar que Maria interpreta as dificuldades que vivenciou como uma

    espcie de estratgia de resistncia, uma engenhosidade e arte do cotidiano, coloquei umas

    bolsas de arroz no caminho para vender. Essas estratgias do cotidiano so marcadas por uma

    multiplicidade de acontecimentos que aos olhos das pessoas, no passam de continuidades de um

    contexto maior. aquilo que Michel de Certeau (1994: p.79) nos fala das micro resistncias, das

    9 Ressalto que a expresso histria marginal aqui entendida como aquela histria do sujeito que esta as margens de qualquer meio social, poltico, econmico, indo ao encontro do que Michelle Perrot nos fala da Histria dos Excludos das mulheres, negros etc.. que no existiram para a histria, e integraram a desigualdade sexual, a marginalizao, a desvalorizao das atividades femininas, corroborada pelo silncio historiogrfico. A respeito das mulheres, essas possuem uma histria e que perfeitamente possvel escrever outras histrias atravs dos vestgios deixados por elas.

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    criaes annimas, das prticas que o autor denomina de forma peculiar, como artes de resistir,

    comer, falar, morar, cuidar, maneiras de utilizar sistemas impostos.

    Essa narrativa se passa nas margens em desdobramentos surpreendentes de condies

    annimas, em artes cotidianas, que alteram o que lhe dado, refazendo o que est posto. Em

    nome da sobrevivncia de sua filha, D Maria cria tticas e astcias em prol de uma outra

    sobre/vivencia. So esses detalhes narrados que passam a ter uma grande importncia ao interesse

    da coletividade que migra em seu contexto, nas dinmicas internas dos grupos migrantes, na

    micropoltica, nos micros poderes, nesses espaos fronteirios que se articulam as diferenas e em

    que se lutam por particularidades para uma vida melhor.

    4 - Fiquei sozinha e quase abracei o co.

    A migrao feminina para o Paraguai, desde os anos 7010 no foi em muitos casos um

    processo linear, mas feita de desvios, de trnsitos de l e de c11 retornos, idas e vindas. A

    multiplicao dos lugares chegados e dos lugares deixados nos deslocamentos fronteirios no

    aleatria, constitui ou acaba formando uma estratgia, na qual os espaos vo se tornando

    experincias do vivido e so considerados como recursos, num processo cumulativo de experincias

    outras de terra pior e terra melhor. Ou seja, independente das expectativas construdas no lugar

    de destino, as trajetrias migratrias so dependentes do ciclo de vida das mulheres migrantes. Um

    fator importante sem dvida o casamento, ou a crise da reproduo da pequena propriedade

    familiar no Brasil devido a falta de terra. Mas o planejamento do ciclo de vida, tanto individual

    quanto familiar a questo central que define as trajetrias migratrias. Os usos dos espaos, da

    reproduo dos mesmos de acordo com esse planejamento orientam a mobilidade e autonomia das

    mulheres migrantes.

    Ao migrar para o outro lado, o outro territrio D. Maria vai lentamente ao encontro de

    prticas de desestabilizao de representaes calcadas em figuras classificatrias dos gneros,

    sejam eles sexuais, raciais, tnicos ou outros quaisquer. Ao dizer que o doutor dos indios no

    resolvia o problema de sua filha, e tudo era no meio do mato, ela est num movimento de

    10 Dentre os motivos apontados para a grande leva de imigrantes brasiguaios foram a construo da usina de Itaipu, a modernizao da agricultura no Brasil e incentivos do governo Paraguaio da poca militar, a crise com a escassez de terra no Brasil, alm da imposio de dificuldades para a permanncia destes sujeitos no Paraguai pela modernizao do campo, avano do agronegcio e instabilidade jurdica dos ttulos das terras em lado paraguaio. Ver: BALLER, Leandro. FRONTEIRA E FRONTEIRIOS: A construo das relaes sociais e culturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014). Tese de doutorado: UFGD, 2014 11 GOETTERD P.110

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    foras/fluxos desenhando certas composies e desfazendo outras; que poderiam ser possibilidades

    de mudanas, ou de justificativa por estarem naquele lugar, aglutinaes de novas realidades e

    lugares, produzindo diferentes leituras sobre o seu estado naquele momento. Suely Rolnik12 aponta

    que :

    notrio o mal-estar que tal disparidade mobiliza: h sempre um ou mais personagens

    tomados por um estranho estado de desterritorializao, como que perdidos numa terra

    desconhecida sem, no entanto, sequer ter sado do lugar. So os momentos em que os

    personagens mais se apegam ao gnero, como numa espcie de tbua de salvao; passam a

    reivindic-lo em altos brados e, raivosamente, atribuem ao gnero oposto a origem de seu

    desassossego. Este estado por vezes os leva a agrupar-se e o tumulto ento se avoluma.

    A desterritorializao o movimento pelo qual se abandona o territrio, a operao da

    linha de fuga e a reterritorializao o movimento de construo do territrio (DELEUZE e

    GUATTARI, 1997: p.224); abandonar o territrio, ir ao encontro do inesperado, do novo. Esse

    processo de desterritorializao visto como ruptura das estruturas que h muito tempo foram

    estabelecidas e que assusta, principalmente, por mudar o cotidiano, as relaes, o espao e

    percebido e valorizado quando se tem a certeza de que este ser transformado, vindo a gerar,

    posteriormente, angstia e insegurana populao alocada em outra localidade.

    De l, do fim do saco, samos e fomos para Catuete e nesse momento eu me separei, no

    aguentava mais, pois era muito sofrido tudo isso (...)e o medo de vir embora para o Brasil

    passar fome? Deus me livre. Ai eu trabalhei de ajudante de cozinheira, trabalhei de tudo um

    pouco, carreguei carreta de madeira, trabalhei na serraria s faltou dar um abrao no co(...)

    de to difcil(...) a gente no aguentava, la na cidade tinha que trabalhar pagar aluguel com 04

    filhas, tava lascada (silencio). Com as 4 filhas, o (ex) marido tinha sumido e fiquei sozinha

    com as 4 meninas. Pensei em voltar para o Brasil, mas a vida estava muito difcil no Brasil,

    eu fiquei no Paraguai, a mais nova tinha 03 anos e mais a velha 10 anos, fomos morar no

    sitio. L a cobra fumou! Roei mato, etc. l era um lugar s de origem, at os paraguaios

    falavam alemo, s gringo e alemo. La geralmente as mulheres casadas s com brasileiros

    etc. Roamos o mato, derrubamos o mato... a gente fez uma lavoura muito grande de soja.

    Tiramos a madeira carregada em carroa e lavamos para a serraria .... Cortvamos aquelas

    carroadas de cana. Fazamos melado. Tinha vaca tirvamos leite. l era mais fcil de

    vender as coisa.. eu fazia queijo.. Vendia miudezas, eu tinha que tirar dinheiro de qualquer

    lado.

    A vontade de falar de D Maria tamanha que ao narrar sobre si mesma, a partir das

    questes de dificuldades apontadas acima, do casamento, da separao, do trabalho pesado, nota-se

    que nessa narrativa a presena do cuidado sobre a famlia o epilogo fundamental, casava-se s

    com brasileiros. Ao no fazer referncia a sua vida presente, e ao dizer que aquilo tudo j

    passou, h uma caracterstica marcante no relato. Ela apresenta-se como uma trabalhadora,

    descreve-se essencialmente como algum que faz de tudo e enquanto fala de si mesma, reflete o

    espelho de sua vida pretrita. H nas entrelinhas, nesse entre-lugar um silencio prprio que

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    testemunho de uma verdade que precisa ser calada, no dita. A questo da violncia de gnero me

    separei e no aguentava mais...tudo muito sofrido.13

    O tom que ela narra sua vida, demonstra aquilo que considerado o universo principal das

    mulheres que migram e que podem perfeitamente se perceber nas entrelinhas do discurso o

    confronto com o mundo masculino: uma mulher sempre tem o que fazer e nunca para em funo

    do marido. Nota-se que os relatos so marcados por grandes desgastes fsicos e emocionais, no

    aguentava mais e me separei, de acumulo de problemas de gnero e de carncia material.

    Certamente so cicatrizes de um perodo que ainda no se fechou, e que ao ser

    rememoradas trazem a luz essa dor. Mas, particularmente penso que vai alm disso, por mais duras

    as condies de vida na fronteira as longas jornadas, o mato, os mosquitos, a fome, o outro, a

    cerca, a polcia, a m nutrio, era o fim, no tinha nada para comer as narrativas no terminam

    como se fosse uma denncia, um arrependimento, mas sim um desabafo pela dificuldade

    encontrada.

    Em Catuete depois de 03 anos conheci um homem, pensei: vou me encostar nessa arvore que tem

    folha (risos). Por um acaso pousei num hotel e apareceu um casamento para mim e conheci o danado

    do camarada. Quem sabe dessa vez eu acertei? (Risos) se aceitar minhas filhas eu caso com o senhor,

    disse a ele! e ai ajuntamos os panos. A vida foi mais tranquila por um certo tempo. Moramos l uns

    trs anos, e ai voltamos para Paloma, porque as coisas comearam a ficar pior. L em Paloma que eu

    fui trabalhar de coveira. Fui para Paloma porque os filhos dele quiseram tomar conta do sitio, e como

    eu no era dona de nada tivemos que sair. Trabalhei um ano e seis meses de coveira... catava algodo,

    morvamos provisria num terreno, para voc ver como a vida era difcil, tinha agua encanada mas

    no tinha chuveiro, que sofrimento quando me lembro (...) o banheiro era la pro lado de fora, no

    havia privacidade nenhuma. a gente tinha que se esconder para tomar banho, era muito difcil tudo

    oque voc fazia no revertia em nada.. a vida era muito difcil(...) era muito difcil... tudo na vida fui

    sozinha. Tinha minhas 04 filhas pra cuidar(...) no conta ter marido nessas horas, mas eu sempre

    sozinha, em nenhum momento poderia pensar de deixar de trabalhar, pensar na comida, comprar um

    short de xita (risos) para as gurias(...) A gente precisava ganhar onde a gente aparecia dinheiro a gente

    fazia... depois que a gente faz esse tipo de servio no deixa de fazer. Abrindo a cova para enterrar do

    lado do outro caixo, ai me bateu algo em mim e pensei: porque eu estou nessa vida? Ai lembrava

    dos filhos e acabava a tristeza, estava gravida do meu filho quando fui enterrar uma criana que

    morreu, e eu pensei: Que estou fazendo? (Silncio e lagrimas) foi muito difcil.

    Uma anlise mais detalhada permite verificarmos que nem as circunstancias que motivaram

    tal acontecimento casei de novo, nem o acontecimento em si, constituem o dado mais relevante

    na vida dessa camponesa migrante. O que parece realmente importante no relato de D Maria sua

    atuao enquanto narradora. "O narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria

    experincia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas experincia dos seus

    ouvintes, (BENJAMIN, 1994, p.201).

    13 No significa que esse assunto fluiu sem nenhum tipo de censura, de espaos no percebidos de fala e do dilogo, h momentos de silenciamento sobre fatos do passado, percebidos nas entre-linhas de nossa conversa.

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    Assim, os relatos de vida e de vidas configuram a reflexo do presente entre as suposies e

    saberes que organizam um mapa contendo os caminhos e os desvios, entre as informaes que

    marcaram essa trajetria. Algo que, dependendo da escala, visualiza uma representao mais

    prxima possvel da realidade do espao vivido, a forma como reagiu a situao, como encara o

    novo casamento, seu prprio comportamento e aes diante do cotidiano na fronteira. As desgraas,

    o trabalho sem valor, os perigos, o sofrimento, servem para evidenciar sua coragem, trabalhei de

    coveira, abria a cova para enterrar, que tristeza(...) Sua resistncia, determinao, sua

    capacidade de suportar a situao, de tentar sair dela: marido no conta nessas horas, tudo

    muito difcil.

    Na vida sempre fiz tudo sozinha, tem como componente principal o esboo de sua

    topografia, uma paisagem onde se produz uma verdadeira etnografia na reconstruo de um

    cotidiano, de modos de vida e prticas culturais e sociais. Esse lugar das mulheres, que apenas

    um sinal, como diz Michelle Perrrot (2005) narra-se o vivido atravs das palavras, imagens,

    discursos e situaes que caracterizam o dia-a-dia no outro lugar: doenas, violncia, morte,

    poltica local, assassinatos, trabalho, festas, esperana. Confere-se a D Maria o poder de dizer,

    dizer-se, dizer-nos, o poder de narrar com sua singularidade um mundo onde tudo e no , um

    lugar em trnsito: entre campo e cidade, entre atraso e progresso, entre o fim e o inicio.

    H uma polissemia de sentidos na narrativa de D Maria, ao ouvi-la narrar a no privacidade

    sobre o seu corpo, eu observava sua expresso facial, seu timbre de voz, suas risadas. Esboando

    questes de sua mobilidade e existncia e consequentemente um substrato da cena de seu fio de

    Ariadne narrativo tentando se aceitar/adaptar no novo lugar.

    Esse novo lugar, de jeitos e sujeitos diferentes, tendo na voz das mulheres o protagonismo

    da narrativa, nos leva a lembrar uma pergunta de Paul Ricoeur (Apud Koffes, 2001, p. 123): Como

    poderamos falar de histria de vida, histria de uma vida, se esta no estivesse reunida e como

    estaria reunida seno na forma narrativa? Suely Kofes (2001) ao analisar as tramas e enredos de

    personagens, nos aponta que indissocivel a histria de vida com a narrao, uma histria

    marcada pelas experincias, uma narrativa de vida como a vida vivida.

    Ao ouvir as histrias de mulheres migrantes brasiguaias, especialmente de D Maria,

    revelou-se a mim como historiador e feminista outros mundos, outros sonhos, outros olhares, outras

    gentes, esquecidas, apagadas, silenciadas. Estimulou a minha vontade de cruzar fronteiras, dentro

    de mim mesmo ou aquelas que nos separam dos outros, de outras culturas, estilos de vida, papis de

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    gnero etc. Fronteiras excluem, definem e subjugam o outro sexo, como diferente, estranho,

    perigoso, inferior mantendo-o parte14.

    As narrativas faladas, memorizadas, gesticuladas, sentidas ou contadas pelas mulheres,

    dissolvem esses limites arbitrrios imposto pelas fronteiras da histria universal masculina.

    Cruzamos constantemente fronteiras culturais, de gnero, sociais, polticas muitas vezes sem nos

    darmos conta. A histria descrita e analisada acima, apenas um ponto pequeno dentro do mosaico

    de outras histrias que constri a narrativa coletiva desses grupos de mulheres migrantes, que ao

    serem visibilizadas, possibilitam que todas atravessem essas fronteiras.

    A reflexo e a traduo de uma histria de vida em um pequeno texto sempre um

    exerccio hermenutico, que desestabiliza, desterritorializa ao relatar as histrias que ouviu. Este

    trabalho a traduo de uma histria menor15 desse processo de deslocamento, disperso,

    resistncia e luta de uma histria narrada compartilhada de deslocamentos, disperses, dor e alegria.

    Foi pensado a partir do desejo de ouvir uma outra voz, uma outra histria, num outro espao, uma

    histria de vida dessas mulheres ditas invisveis.

    Referncias

    ARFUCH, Leonor. Identidades, sujetos y subjetividades. 2 edicion, Prometeo, Buenos Aires, 2005.

    _____________Memria y autobiografia: Exploraciones en los limites.1 ed., Buenos Aires, 2013.

    ARENDT, Silvia; PEDRO, Joana (org.) Disporas, mobilidades e migraes. Florianpolis: ed.

    Mulheres, 2011.

    ASSIS, Glaucia de O. De Cricima para o mundo rearranjos familiares dos novos migrantes

    brasileiros. Florianpolis: editora mulheres, 2011.

    _____________. Estar aqui, estar l... o retorno dos emigrantes valadarenses ou a construo de

    uma identidade transnacional? In Caderno de Cincias Sociais, vol.4, n.7, dez.1996, p.36-47

    14 A fronteira como um espao de desterritorializao, onde o sujeito se defronta com os ns e com o eles, esse espao de um territrio significado, pre-visto, de contgio e estranhamento pode ser visto na obra de ANZALDA, Gloria. Borderlands/La frontera: la nueva mestiza. UNAM: PUEG, Mxico, 2014. 15 Coloco o termo histria menor em comparao ao termo literatura menor, na dimenso que lhe foi atribuda por Gilles Deleuze e Flix Guattari (1975), baseada na noo de desterritorializao. A ao de desterritorializar associa-se problemtica da literatura menor, implica um deslocamento provocado por uma descaracterizao cultural, em funo do espao e da lngua, operada por grupos ou subgrupos tnicos, raciais ou culturais que, em dado momento histrico, acham-se submetidos a um processo de marginalizao. Construir a histria, a narrativa, a conscincia de minoria desviar do padro, extrapolar o critrio de medida j conhecido, o menor na histria das mulheres representa a variao, a diferena, a contestao.

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    Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),

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    BOURDIEU, Pierre. Observaes sobre a histria das mulheres. In: DUBY, Georges; PERROT,

    Michelle. As Mulheres e a Histria. Publicaes Dom Quixote: Lisboa, 1995.

    BENJAMIN, Walter. Magia e Tcnica, Arte e Poltica - Obras Escolhidas - Vol. I - 8 Ed.

    Brasiliense: So Paulo, 2012.

    DELEUSE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats. Vol 5. Trad. Peter Perbart e Janice Caiafa. So

    Paulo, editora 34. 4 edio 2012.

    __________________.Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte, Ed. Autentica, 2014.

    BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 19

    FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:

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    GOUTERTD, Jones Dari na obra O espao e o vento: olhares da migrao gacha para Mato

    Grosso de quem partiu e de quem ficou. Editora UFGD, Dourados, 2006.

    KOFFES, Suely. Uma trajetria, em narrativas. Campinas-SP, Mercado das Letras, 2001.

    RAGO, Margareth. A AVENTURA DE CONTAR-SE: feminismos, escrita de si e invenes da

    subjetividade. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. 341 p.

    PERROT, Michelle. A histria dos quartos. So Paulo: Ed. Paz e Terra, 2011 p.16

    _______________. As mulheres ou os silncios da histria. Traduo de Viviane Arajo. So Paulo: Edusc, 2005.

    ROLNIK, Suely. Guerra dos gneros. Revista ESTUDOS FEMINISTAS, 123 N 1/96 p.119

    NARRATIVES OF A FORGOTTEN MIGRATION: THE LITTLE STORY OF A

    FRONTIER WOMAN.

    Abstract: The stories narrated by women, especially when they thoroughly recall the migratory

    displacements, since the moment they became aware of cross-border lands, family arrangements

    and gender relations review another story about migrations. Therefore, migrating is exiting your

    own place involving deterritorialization and reterritorialization processes, which are not necessarily

    consecutives nor ordered. There is an important meaning for gender identities, because in some

    circumstances they modify traditional female roles and in other circumstances, they perpetuate the

    continuity of gender representations. This text signs up to the historiographic current known as

    History of Women, which challenges us to think the female role in a variety of perspectives in

    history approaches; in this case, the contemporary female migrations. Detached from every

    pretension to represent other female narratives in this process, my arbitrary and limited analysis is

    a result of this crossing of readings, interviews, visits, conversations, occasional meetings,

    outcomes of years of research in rural community settlements in the Brazilian border. The analysis

    of this migratory narration transposes spaces and chronological times and reviews a multifaceted

    reality of paths that diversify themselves, opening gaps to re-existences experiences and individual

    and collaborative positions.

    Key words: MIGRATION, GENDER, FRONTIER, WOMEN'S HISTORY.