12
1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL DE GÊNERO E ETNIA SOBRE AS LIMITAÇÕES NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER (CEDAW) NO BRASIL Gabriela M. Kyrillos 1 Resumo: Desde a ratificação da CEDAW pelo Brasil em 1984, diversas ações estatais demonstram a busca por cumprir os preceitos da Convenção, tais como a igualdade de gênero na vida pessoal/profissional e o fim da violência contra a mulher. Estatisticamente, sabe-se que estes preceitos não foram concretizados e isso ocorre por muitas razões. Nessa pesquisa, toma-se como hipótese que uma delas é a ausência de uma perspectiva interseccional. Considerando que o Brasil é majoritariamente composto por pessoas negras e pardas e que possui uma significativa diversidade de povos indígenas, a ausência de uma perspectiva interseccional que inclua a categoria raça no texto da CEDAW tem consequência direta na inivisibilidade das especificidades que afetam a vida das mulheres não-brancas. Assim sendo, toma-se como ferramenta analítica a interseccionalidade, cunhada primeiramente por Kimberlé Crenshaw (1989). Tal conceito reconhece que existe na atualidade um complexo de estruturas de opressão (múltiplas e simultâneas), que precisam ser analisadas como um sistema de desempoderamento. Desse modo, a pesquisa busca por meio da análise do texto da CEDAW e dos relatórios que o Estado brasileiro produziu (de 1984 a 2014), averiguar como a precária articulação de gênero e raça prejudica a construção das estratégias para o fim da discriminação contra as mulheres, com o intuito de avançar na construção de uma perspectiva interseccional que possa contribuir para tornar mais eficaz a CEDAW no país. Palavras-Chave: Gênero. Etnia. Interseccionalidade. CEDAW. Direitos Humanos. Introdução O Brasil ratificou a Conveção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW, sigla em inglês) em 1984. Desde então, o país assumiu o compromisso com com as recomendações contidas no texto da Convenção, inclusive aquelas contidas no Protocolo Adicional de 1999, no qual se compromete a enviar periodicamente relatórios acerca da implementação de medidas que busquem atingir o próposito da CEDAW no país, em especial, promover condições igualitárias para homens e mulheres e combater as diversas formas de violência por elas sofrida. Apesar da CEDAW ser parte do ordenamento jurídico brasileiro há mais de três décadas, ainda é possível identificar diversos aspectos nos quais as brasileiras continuam sofrendo discriminações na esfera pública e privada. É provável que a não concretização do escopo da CEDAW no Brasil se dê por diversos motivos. Na presente pesquisa, parte-se da hipótese de que 1 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina Bolsista CAPES. Florianópolis, Brasil. Mestra em Política Social na linha de Direitos Humanos e Acesso à Justiça pela Universidade Católica de Pelotas tendo sido Bolsista FAPERGS. Especialista em Direitos Humanos pelo Centro Universitário CLARETIANO. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: [email protected]

NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

1

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL DE GÊNERO E ETNIA SOBRE AS LIMITAÇÕES

NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE

DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER (CEDAW) NO BRASIL

Gabriela M. Kyrillos1

Resumo: Desde a ratificação da CEDAW pelo Brasil em 1984, diversas ações estatais demonstram

a busca por cumprir os preceitos da Convenção, tais como a igualdade de gênero na vida

pessoal/profissional e o fim da violência contra a mulher. Estatisticamente, sabe-se que estes

preceitos não foram concretizados e isso ocorre por muitas razões. Nessa pesquisa, toma-se como

hipótese que uma delas é a ausência de uma perspectiva interseccional. Considerando que o Brasil é

majoritariamente composto por pessoas negras e pardas e que possui uma significativa diversidade

de povos indígenas, a ausência de uma perspectiva interseccional que inclua a categoria raça no

texto da CEDAW tem consequência direta na inivisibilidade das especificidades que afetam a vida

das mulheres não-brancas. Assim sendo, toma-se como ferramenta analítica a interseccionalidade,

cunhada primeiramente por Kimberlé Crenshaw (1989). Tal conceito reconhece que existe na

atualidade um complexo de estruturas de opressão (múltiplas e simultâneas), que precisam ser

analisadas como um sistema de desempoderamento. Desse modo, a pesquisa busca por meio da

análise do texto da CEDAW e dos relatórios que o Estado brasileiro produziu (de 1984 a 2014),

averiguar como a precária articulação de gênero e raça prejudica a construção das estratégias para o

fim da discriminação contra as mulheres, com o intuito de avançar na construção de uma

perspectiva interseccional que possa contribuir para tornar mais eficaz a CEDAW no país.

Palavras-Chave: Gênero. Etnia. Interseccionalidade. CEDAW. Direitos Humanos.

Introdução

O Brasil ratificou a Conveção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra

a Mulher (CEDAW, sigla em inglês) em 1984. Desde então, o país assumiu o compromisso com

com as recomendações contidas no texto da Convenção, inclusive aquelas contidas no Protocolo

Adicional de 1999, no qual se compromete a enviar periodicamente relatórios acerca da

implementação de medidas que busquem atingir o próposito da CEDAW no país, em especial,

promover condições igualitárias para homens e mulheres e combater as diversas formas de

violência por elas sofrida.

Apesar da CEDAW ser parte do ordenamento jurídico brasileiro há mais de três décadas,

ainda é possível identificar diversos aspectos nos quais as brasileiras continuam sofrendo

discriminações na esfera pública e privada. É provável que a não concretização do escopo da

CEDAW no Brasil se dê por diversos motivos. Na presente pesquisa, parte-se da hipótese de que

1 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina –

Bolsista CAPES. Florianópolis, Brasil. Mestra em Política Social na linha de Direitos Humanos e Acesso à Justiça pela

Universidade Católica de Pelotas – tendo sido Bolsista FAPERGS. Especialista em Direitos Humanos pelo Centro

Universitário CLARETIANO. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande. E-mail:

[email protected]

Page 2: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

2

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

um deles é a ausência de uma postura interseccional de gênero e raça quando se trata de buscar

implementar a CEDAW no Brasil. Considerando que o Brasil é majoritariamente composto por

pessoas negras e pardas e que possui uma significativa diversidade de povos indígenas, a ausência

de uma perspectiva interseccional que inclua a categoria raça no texto da CEDAW tem

consequência direta na inivisibilidade das especificidades que afetam a vida das mulheres não-

brancas.

Desse modo, toma-se como ferramenta analítica a interseccionalidade, cunhada

primeiramente por Kimberlé Crenshaw (1989). Tal conceito reconhece que existe na atualidade um

complexo de estruturas de opressão (múltiplas e simultâneas), que precisam ser analisadas como um

sistema de desempoderamento. Desse modo, a pesquisa busca por meio da análise do texto da

CEDAW e dos relatórios que o Estado brasileiro produziu (de 1984 a 2014), averiguar como se dá a

articulação de gênero e raça na busca pela implementação da CEDAW no Brasil. Após a análise dos

documentos, é possível perceber que apesar do Estado brasileiro reconhecer que raça e gênero

interagem de modo que os índices mostram que as mulheres não-brancas são as mais prejudicadas

pelas estruturas de discriminação existentes na sociedade brasileira, não há abordagem e propostas

de criação de estratégias a partir da perspectiva interseccional. A mera presença da categoria raça ou

etnia não garante que de fato estejam sendo construídas estratégias e diagnósticos interseccionais. É

possível identificar a busca pela transversalidade de gênero, em especial nos relatórios mais

recentes, que foram criados após o surgimento da já extinta Secretaria de Políticas para as Mulheres

(SPM) que tem como um de seus propósitos contribuir para que se incluam discussões de gênero de

forma transversal em outras instâncias e órgãos do Governo Federal. Essa pesquisa constatou que

não há uma abordagem interseccional de gênero e raça da CEDAW pelo Estado brasileiro. Espera-

se com isso, que esse seja apenas um primeiro diagnóstico que ainda poderá ser revisitado após a

análise de outros documentos e que dessa forma seja possível contribuir para a construção de

melhores estretégias para tornar mais eficaz a CEDAW no país.

Interseccionalidade

Para abordar a história da interseccionalidade é preciso iniciar antes mesmo do conceito ser

nomeado por Kimberlé Crenshaw em 1989. Esse é o entendimento de Patricia Hill Collins e Sirma

Bilge (2016), bem como de Anna Carastathis (2016, p. 34) para quem a interseccionalidade deve

ser entendida como representando uma síntese entre os movimentos sociais e o conhecimento

acadêmico crítico. É comum, no entanto, que os históricos sobre a interseccionalidade ignorem que

Page 3: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

3

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

tal conceito surgiu nos Estados Unidos a partir da luta dos Movimentos Sociais, em especial,

daqueles que tinham como protagonistas mulheres negras. Minimizar tal origem tende a diminuir o

potencial transformador e crítico da própria interseccionalidade2. Mesmo no campo acadêmico é

preciso destacar que discussões que articulavam gênero3 e raça4 foram predecessoras fundamentais

para a construção do próprio conceito de interseccionalidade. Importante destacar que tais debates

levado a cabo por militantes do feminismo negro também se fez presente no Brasil, como é possível

identificar, por exemplo, nos textos de Sueli Carneiro (1995; 2003) e de Lélia Gonzalez (1984).

O primeiro texto no qual foi cunhado o termo interseccionalidade, Kimberlé Crenshaw

(1989) buscou examinar o modo pelo qual a tendência de tratar raça e gênero como categorias de

análises e de experiências concretas como sendo mutuamente exclusivas, se perpetua devido a

forma de eixo-único que domina a produção das leis contra a discriminação racial e as teorias

feministas e antirracistas. A autora compreende análises que se baseiam em um eixo-único

invisibilizam as mulheres negras na conceitualização, identificação e na remediação quanto a

discriminação de raça e gênero, sendo limitadas pelas experiências dos outros membros do grupo,

mais privilegiados – no caso do movimento antirracista os privilegiados são os homens negros, e no

caso da discriminação de gênero as privilegiadas são as mulheres brancas – criando análises

distorcidas sobre racismo e discriminação de gênero (CRENSHAW, 1989, p.140). Tal distorção

ocorre por que “[...] as concepções operativas de raça e sexo se tornam ancoradas em experiências

2 No livro intitulado ‘Intersectionality’ (2016) de autoria das sociólogas Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (ainda sem

tradução para o português), as autoras demonstram como a ausência sobre os movimentos sociais nos históricos sobre

interseccionalidade não é apenas uma falha na contextualização do conceito mas, sobretudo, um equivoco ao assumir

que a interseccionalidade se resume a mais um campo acadêmico (COLLINS; BILGE, 2016, p. 64), ignorando que a

interseccionalidade parte da sinergia entre a pesquisa crítica (critical inquiry) e a práxis crítica (critical praxis).

Enquanto o primeiro diz respeito ao desenvolvimento da interseccionalidade na academia, como ferramenta analítica

para a construção de pesquisas e análises críticas; o segundo refere-se a forma como as pessoas, seja individualmente,

seja enquanto coletivos, produzem e usam a estrutura da interseccionalidade no seu dia a dia (COLLINS; BILGE, 2016,

p. 32). Um exemplo válido de como as discussões que articulam raça e gênero são muito anteriores ao surgimento do

conceito da interseccionalidade e se desenvolveu fora do campo acadêmico é o discurso de Sojourner Truth ‘Não sou

uma mulher?’. 3 Gênero, de acordo com a historiadora Joan Scott “É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das

identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta

sobre um corpo sexuado. […] O uso do ‘gênero’ coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o

sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade.” (SCOTT, 1995, p.7) 4 O conceito de raça não deve ser entendido como foi utilizado do século XVI ao XIX, para reproduzir ideias da

colonialidade moderna que compreendia a existência de uma hierarquia racial. Nessa pesquisa, assim como ocorre

quando o conceito raça é utilizado no Movimento Negro e por algumas e alguns intelectuais das Ciências Sociais na

atualidade, está se partindo de uma nova interpretação, tal qual apresentado por Nilma Lino Gomes (2005, p. 45), que

se baseia na dimensão social e política do conceito de raça. A utilização do termo raça é uma escolha política adequada

para o Brasil posto que a forma como se dá a discriminação racial no país, desenvolve-se não apenas a partir de

elementos da identidade étnica de determinado grupo, mas também em razão dos aspectos físicos possíveis de ser

observados na estética corporal dos membros desse grupo (GOMES, 2005, p. 45). Ou seja, “raça ainda é o termo que

consegue dar a dimensão mais próxima da verdadeira discriminação contra os negros, ou melhor, do que é o racismo

que afeta as pessoas negras da nossa sociedade.” (GOMES, 2005, p. 45).

Page 4: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

4

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

que, na realidade, representam apenas um subconjunto de um fenômeno muito mais complexo”

(CRENSHAW, 1989, p.140) 5 . É fundamental compreender que, de acordo com Crenshaw (1989, p.

140) para resolver o problema da invisibilidade da mulher negra quanto aos processos de exclusão e

marginalização, não basta incluí-las em uma já estabelecida estrutura de análise. Isso se dá por que

a experiência interseccional é maior do que o racismo e o sexismo pensados separadamente,

consequentemente, uma análise que não tome em consideração a interseccionalidade não será capaz

de lidar com a situação particular de subordinação que é imposta às mulheres negras.

No texto intitulado “Demarginzing the Intersection of Race and Sex: a Black Femininst

Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics” (1989), quando

Crenshaw apresenta a interseccionalidade pela primeira vez ela o faz utilizando o conceito como

uma metáfora, a autora apresenta o cruzamento das ruas de trânsito como analogia para pensar

sobre a forma como diferentes categorias de discriminação se entrecruzam. Nessa metáfora,

Crenshaw (1989, p. 149) apresenta a interseccionalidade como uma forma de compreender melhor a

situação das pessoas que se encontram no meio desse cruzamento, onde há tráfego indo e vindo de

todas as direções. No texto posterior, intitulado “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity

Politics, and Violence Against Women of Color” (1991), Crenshaw já apresenta a

interseccionalidade como uma ferramenta analítica capaz de contribuir para a solução de problemas

muitas vezes invisibilizados. Conforme Kimberlé Crenshaw (2002, p.177): “A interseccionalidade é

uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da

interação entre dois ou mais eixos da subordinação”. A autora traça algumas distinções conceituais

fundamentais, além de relacionar sua teoria com situações concretas nas quais as mulheres negras

estão mais propensas à violências, estupros e desigualdades, e, principalmente, o modo como essas

experiências possuem características e consequências específicas.

Já em um texto de 1997 Crenshaw afirma que a “Interseccionalidade é ao mesmo tempo um

conceito fundamentalmente provisório e ilustrativo.” (CRENSHAW, 1997, p. 248) . Ou seja, depois

de seus primeiros textos sobre interseccionalidade, Crenshaw concilia o caráter de metáfora com a

ideia de um conceito analítico provisório. Interseccionalidade é, portanto, “[...] uma categoria

transitória que liga os conceitos correntes com suas consequências políticas [...]” (CRENSHAW,

1997, p. 248).

Apesar do esforço de Crenshaw de incorporar o fato de que a interseccionalidade deve ser

um processo de conhecimento construído de baixo para cima, como por exemplo, a partir da

5 Essa, assim como as demais citações ereferentes aos textos da Crenshaw de 1989, 1991 e 1997, são traduções nossa.

Page 5: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

5

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

realidade cotidiana das mulheres negras; a incorporação do termo no universo acadêmico foi sendo

majoritariamente transformada em “[...] projetos de conhecimento de cima para baixo cujos

contornos estruturais foram cada vez mais moldados pelas práticas normativas da academia.”

(COLLINS; BILGE, 2016, p. 84)6. Essa apropriação do termo pela academia pode justificar, em

parte, o fato de que ele tem se espalhado de modo bastante rápido no campo das pesquisas sobre

gênero. Nessa percepção, como Collins e Bilge (2016, p. 85) observam, é como se o termo não

existisse até ser nomeado e legitimado pela academia, por meio do que elas denominam como uma

aminésia institucional que fez com que grupos de pessoas que eram centrais para o conceito, fossem

totalmente apagadas do canône da interseccionalidade.

A concepção de interseccionalidade considerada apropriada na presente pesquisa é aquela

sintetizada por Carastathis (2016, p. 62): “Adequadamente recontextualizada, a interseccionalidade

representa a condensação do movimento social e dos conhecimentos acadêmicos críticos, motivados

por intenções insurrecionais, visões transformadoras e lutas coletivas.”. Dessa forma, pensar no

acesso das mulheres aos direitos humanos via interseccionalidade é buscar construir uma análise a

partir de um conceito provisório, que até o momento é o que melhor expressa a importância de se

abandonar as visões conceituais monolíticas que acabam perpetuando a exclusão de uma

significativa parcela de mulheres, tornando frustradas as estratégias e propostas como as contidas na

CEDAW.

Análise da CEDAW e dos Relatórios Que o Brasil Enviou ao Comitê CEDAW

A CEDAW é tida como um marco na história dos direitos humanos pois, até o presente

momento, é o mais importante texto internacional que versa sobre os direitos humanos das

mulheres. A Convenção surgiu em 1979, adotada pela Assembleia Geral da ONU. Pela doutrina é

considerada como “[...] a Declaração Universal dos Direitos da mulher” (TOMAZONI; GOMES,

2015, p. 51). Essa compreensão sobre a Convenção decorre do fato de que há nela um agrupamento

de diversos princípios que já tinham se tornado aceitos no cenário internacional acerca dos direitos

humanos das mulheres, além do fato de que o texto inclui temas concernentes a diferentes áreas da

vida como saúde, família, trabalho e educação (TOMAZONI; GOMES, 2015, p. 51). Em outras

palavras, um dos grandes motivos que faz da CEDAW a principal carta de direito internacional

sobre os direitos das mulheres é sua capacidade de abarcar e compilar em um só texto questões

concernentes a diversas esferas da vida das mulheres.

6 Todas as traduções dos livros de Collins e Bilge (2016), bem como o de Carastathis (2016), são traduções nossas.

Page 6: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

6

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O Brasil ratificou a CEDAW em 1984, naquele momento, o país formulou reservas a alguns

artigos da Convenção7. A Convenção é dividida em seis partes e um preâmbulo. O Brasil também

ratificou em 2002 o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher conhecido como Protocolo Adicional. Tal texto versa sobre o

Comitê CEDAW e a sua competência para receber relatórios dos Estados-Partes.

Uma relevante limitação da Convenção conforme destacado pela jurista Meghan Campbell,

no texto da Convenção

Não há referências às experiências das mulheres com discriminação

baseadas na raça, religião, etnia, nacionalidade, identitdade sexual,

orientação sexual, deficiência, idade ou status socio-econômico ou em

situação de violência, conflito armado ou no sistema de justiça. O preâmbulo

faz referência à pobreza, discriminação racial, colonialismo e

neocolonialismo; contudo, não há previsões substanciais sobre essas

questões na Convenção. (CAMPBELL, 2015, p. 486)8

Os caminhos encontrados para lidar com as lacunas existentes no texto original da

Convenção são a partir das ações do Comitê CEDAW. A criação do Comitê CEDAW está prevista

no texto original da Convenção. A Parte V, que inclui do artigo 17 ao 22, é integralmente dedicada à

criação e às especificidades do Comitê CEDAW. Consta no artigo 17 o propósito de tal Comitê,

definido como: “[...] examinar os progressos alcançados na aplicação desta Convenção [...]”.

O artigo 18 da CEDAW apresenta o compromisso dos Estados-Partes de remeteram ao

Secretário-Geral das Nações Unidas “[...] um relatório sobre as medidas legislativas, judiciárias,

administrativas ou outras que adotarem para tornarem efetivas as disposições desta Convenção e

sobre os progressos alcançados a esse respeito.” (Art. 18 CEDAW). Tal relatório deve ser analisado

pelo Comitê CEDAW e remetido ao mesmo um ano após a entrada em vigor da Convenção para o

Estado e, depois disso, periodicamente pelo menos a cada quatro anos e também quando o Comitê

solicitar.

7 As reservas realizadas pelo Brasil no momento de ratificação da CEDAW dizem respeito aos artigos 15 e 16, e ao

artigo 29. Os artigos 15 e 16 falam especialmente dos direitos civis e da igualdade de direito nas relações matrimoniais.

O artigo 16 pode ser um dos elementos que fez com que a CEDAW tenha recebido tantas resalvas de distintos Estados,

pois busca assegurar, dentre outras coisas, o direito de escolha livre do conjugê, mesmos direitos e responsabilidades de

mulheres e homens sobre os filhos e nos casos de divórcio, direito de escolha do sobrenome e ocupação e afirma ainda

que “[...] o casamento de uma criança não terão efeito legal e todas as medidas necessárias, inclusive as de caráter

legislativo, serão adotadas para estabelecer uma idade mínima para o casamento [...]” (Art. 16, 2 - CEDAW). Como a

legislação brasileira na década de 1980 não assegurava direitos iguais entre mulheres e homens quando de relações

matrimoniais, o país realizou a reserva, tendo sido retirada em em 1994. A reserva ao artigo 29 permanece, nele está

previsto que em caso de controvérsia entre Estados sobre a aplicação ou a interpretação da Convenção, não havendo

acordo por meio de negociações, quaisquer das partes pode pedir que a controvérsia seja submetida à arbitragem. 8 Tradução nossa.

Page 7: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

7

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Na presente pesquisa, analisou-se, além do texto da Convenção, todos os sete Relatórios

apresentados pelo Estado brasileiro ao Comitê CEDAW até o momento. De acordo com as análises

do texto da CEDAW e dos Relatórios produzidos pelo Estado brasileiro para o Comitê CEDAW, é

possível identificar a presença de termos como raça, etnia, cor e até mesmo interseccionalidade e

intersecção. Há diferenças importantes entre esses documentos que precisam ser destacadas.

A CEDAW, como já dito anteriormente, só cita a categoria raça no seu preâmbulo. Não há

na Convenção menção a termos como interseccionalidade ou intersecção. Ao longo do seu texto o

que se pode identificar como mais próximo de considerar outras categorias para além do gênero são

expressões como “Os Estados-Partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas

formas.” (Artigo 2). Elementos como esse fazem com que Campbell (2015) compreenda que o

escopo da CEDAW de eliminar todas as formas de discriminação contra as mulheres e promover a

igualdade de gênero necessariamente inclui o compromisso de considerar a discriminação

interseccional9 – já que sem isso, seria impossível fazer com que todas as mulheres fossem incluídas

dentro desses princípios norteadores da CEDAW. A própria Crenshaw compreende que no geral as

Convenções de direitos humanos são interpretadas a partir da lógica de eixo-único de análise, mas

que nelas há o potencial para que se alargue essa interpretação, de modo que não se trata

necessariamente de produzir novas declarações de direitos, mas sim de promover “protocolos

interpretativos a fim de romper com os limites das interpretações e práticas existentes, os quais

reduzem os direitos das vítimas de subordinação interseccional. (CRENSHAW, 2002, p. 182).

Tomando em consideração tal aspecto apresentado por Crenshaw, é válido considerar como

o Estado brasileiro tem lidado com as demandas da CEDAW. Para isso, os relatórios analisados são

uma fonta altamente relevante. O primeiro relatório apresentado pelo Estado brasileiro ao Comitê

CEDAW se deu apenas em 2002. Nesse documento, o Brasil afirmou estar apresentando os cinco

relatórios que deveriam ter sido entregues nos anos de 1985, 1989, 1993, 1997 e 2001. Tal relatório

foi produzido por um consórcio de organizações e pessoas10 sob a coordenação do Estado brasileiro,

por meio do Ministério das Relações Exteriores – vale observar que os demais Relatórios

9 Tal conceito utilizado por Campbell foi criado por Crenshaw, para quem: “A discriminação interseccional é

particularmente difícil de ser identificada em contextos onde formas econômicas, culturais e sociais silenciosamente

moldam o pano de fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas por outros

sistemas de subordinação. Por ser tão comum, a ponto de parecer um fato da vida, natural ou pelo menos imutável, esse

pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível. O efeito disso é que somente o aspecto mais imediato da

discriminação é percebido, enquanto que a estrutura que coloca as mulheres na posição de receber tal subordinação

permanece obscurecida. Como resultado, a discriminação em questão poderia ser vista simplesmente como sexista (se

existir uma estrutura racial como pano de fundo) ou racista (se existir uma estrutura de gênero como pano de fundo).”

(CRENSHAW, 2002, p. 176). 10 Composto por: ADVOCACI, AGENDE, CEPIA, CFEMEA, CLADEM, GELEDES, NEV, THEMIS.

Page 8: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

8

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

(referentes a 2001-2005 e 2006-2009) foram produzidos sem a participação direta de organizações

não-governamentais, razão pela qual, existem os denominados Relatórios Sombras ou Contra-

Informes da Sociedad Civil que não serão analisados na presente pesquisa.

No grande relatório de 2002 é possível identificar a presença da palavra interseccionalidade:

Conforme os dados apresentados, referentes às desigualdades econômicas e sociais,

o acesso à igualdade está muito marcado pela inter-seccionalidade entre as condições

de classe, etnia, idade, escolaridade, enfim, pelas diferenças existentes entre as

próprias mulheres. A vulnerabilidade às violações dos direitos humanos das mulheres

atinge especialmente as mais pobres, criando distintos obstáculos que devem ser

superados para a realização do proposto pela CEDAW. (2002, p. 83)

Apesar dessa ser a única menção ao termo interseccionalidade, já pode ser considerado um

ponto positivo a preocupação com a forma como outras categorias interagem com o gênero, além de

reconhecer a importância desse elemento para a concretização da CEDAW. Infelizmente, é possível

interpretar esse reconhecimento como sendo pontual. Nas 275 páginas de tal relatório, a presença

da categoria raça/etnia, em regra, surge de modo aditivo, como sendo apenas mais uma categoria

dentre outras que são apresentadas por que devem ser consideradas para a superação das

discriminações, sem de fato interconectá-las. Além disso, raça/etnia surge quando se apresentam

dados relevantes que demonstram como a desigualdade de gênero e raça deixam as mulheres

brasileiras não-brancas em situações materiais de desigualdade piores que as mulheres brancas ou

que os homens negros. Não se menciona ação já realizada pelo Governo Federal na busca pela

implementação da CEDAW que tenha tomado em consideração as intersecções entre as categorias

de raça e gênero.

O VI e o VII Relatório têm em comum a total ausência de termos como interseccionalidade

ou intersecção. Ambos apresentam como ponto positivo a presença aparente da articulação da

categoria raça e gênero em estratégias especialmente na área da educação, com a disponibilização

de cursos de capacitação que abordam as temáticas de gênero e raça e suas implicações nas salas de

aula. Contudo, não fica claro até que ponto essas categorias são apresentadas de modo articulado ou

são tidas como categorias de análise excludentes. O que se observa é que no geral em tais relatórios

predomina uma perspectiva de transversalização do gênero e, com menor visibilidade, também da

raça. Vale destacar que a interseccionalidade não se confunde com o princípio da transversalidade

que foi introduzido a partir de 1995 pela Conferência de Beijing e posteriormente incluído nas

propostas da União Europeia, a transversalidade

Parte da consideração de que as ações, as políticas e os programas têm

Page 9: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

9

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

resultados diferentes para homens e mulheres. Por esse motivo, a perspectiva

das mulheres deve ser considerada no desenho, na implementação, no

surgimento e na avaliação das políticas e dos programas em todos os

âmbitos, com o objetivo de que homens e mulheres sejam beneficiados

igualmente e que a desigualdade não se perpetue. Incluindo atividades

específicas e ações positivas por que as posições de largada para homens e

mulheres não são iguais. (MOLINA, 2012, p. 205)

A transversalidade, portanto, é um princípio extremamente relevante no campo do direito

internacional pois contribuiu para se pensar além do discurso pretensamente universalizante que

acabava por excluir as mulheres. Porém, a transversalidade não se confunde com a

interseccionalidade pois essa remete a qualquer processo de marginalização que interage com outras

categorias excludentes, criando uma situação específica de vulnerabilidade. Como muito bem

destacado pela professora espanhola Carmen Molina (2012, p.205), os dois conceitos são

ferramentas complementares na busca pela superação das desigualdades de gênero, na medida em

que a interseccionalidade contribui para tornar visível as diferentes realidades nas quais se

encontram as mulheres, podendo assim, melhorar a própria estratégia política.

Na pesquisa de Marília Ortiz (2013) é possível perceber de que modo a interseccionalidade

tem se aproximado do campo das políticas públicas no Brasil, em especial a partir das Secretarias

que lidavam com conceitos como raça e gênero de modo transversal – sendo uma delas a já extinta

SPM responsável por coordenar os últimos dois relatórios do Brasil à CEDAW. A conclusão

apresentada pela autora é de que predomina no Brasil apenas uma superinclusão de termos e a

permanência de uma estrutura pensada para lidar com categorias monolíticas de discriminação. Tal

constatação é semelhante à concluão do estudo de Emanuela Lombardo e Mieke Verloo (2009)

sobre a possível institucionalização da interseccionalidade na União Européia. Nessa pesquisa, as

autoras concluíram que os marcos legais da União Europeia não estão de fato usando a

interseccionalidade em sua complexa e transformadora concepção, mas sim, justapondo categorias

de desigualdades sem, de fato, intersecta-las. Tais diagnósticos parecem ser semelhantes com o aqui

apresentado acerca da postura do Estado brasileiro quanto a implementação da CEDAW. É

coerente, portanto, a preocupação de Crenshaw de que não se confunda interseccionalidade com a

mera adição de conceitos (CRENSHAW, 2002, p. 175). E é esse entendimento limitado que parece

estar presente nas estratégias de gestoras(es) que buscam efetivar os direitos humanos das mulheres.

Por essa razão, vale retomar a crítica apresentada por Collins e Bilge (2016, p. 86) segundo a

qual as interpretações existentes na academia sobre interseccionalidade após sua institucionalização

minou parte do potencial crítico do conceito. Anna Carastathis também identifica esse mesmo

Page 10: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

10

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

problema na forma como a interseccioalidade foi incorporada pela academia e no campo político:

Inicialmente, a interseccionalidade objetivava explicitamente contestar essas

dinâmicas representativas, discursivas e intersubjetivas dentro dos

movimentos antirracistas e feministas que buscavam transformar as relações

sociais. No entanto, muito do que a análise de Crenshaw revelou sobre

identidades, opressões e luta política foi esquecida – alguns dizem

sistematicamente (Bilge 2013) – à medida que a interseção tornou-se

integrada como um projeto intelectual institucionalizado. Embora a

interseccionalidade tenha se tornado um axioma da teoria e da pesquisa

feministas e tenha sido "institucionalizada" (Nash 2008) em discursos

acadêmicos e, cada vez mais, em discursos sobre direitos humanos e na

estrutura política, abundantes ou vagas referências à "interseccionalidade" se

proliferaram e podem obscurecer uma crítica sólida dos hábitos cognitivos

profundamente enraizados que informam o pensamento feminista e

antiracista sobre opressão e privilégio. Em outras palavras, paradoxalmente,

o sucesso da interseccionalidade pode marcar seu fracasso, a ampla viagem

do conceito se dá por sua apreensão superficial. (CARASTATHIS, 2016, p.

42)

Desse modo, é preciso que se construam análises críticas sobre a ampliação do uso da

interseccionalidade na academia, no campo das políticas públicas e do acesso aos direitos humanos.

O uso de termos como interseccionalidade ou de outras categorias para além do gênero em

documentos sobre os direitos humanos das mulheres não caracteriza, por si só, a presença de uma

visão interseccional.

Conclusão

A presente pesquisa analisou a CEDAW e os sete relatórios produzidos pelo Brasil para o

Comitê CEDAW acerca do acesso de todas as mulheres aos direitos contidos na Convenção. Tal

análise se deu com o próposito de averiguar se há a inclusão de uma perspectiva interseccional de

gênero e raça por parte do Estado brasileiro na busca por tornar eficaz o disposto na CEDAW.

A interseccionalidade foi cunhada em 1989 por Kimberlé Crenshaw, mas sua história

inciou-se nas décadas anteriores, em especial dentro do feminismo negro, a partir do

reconhecimento pelas mulheres negras das limitações do discurso do feminismo e do movimento

antirracista que repetidamente ignorava as necessidades e demandas das mulheres negras. No caso

do Estado brasileiro e a CEDAW, os dados demonstram que as propostas de igualdade e de uma

vida livre de violência para as mulheres ainda não é uma realidade, sendo ainda mais crítico quando

se trata de mulheres não-brancas. Ainda assim, não foi possível identificar uma abordagem

interseccional por parte do Estado brasileiro.

Considerou-se as críticas sobre o modo como a institucionalização da interseccionalidade

Page 11: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

11

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

tem recorrentemente minado seu potencial crítico, bem como, o fato de que têm sido limitadas ou

inexistentes as estratégias que buscam abandonar a compreensão monolítica de conceitos como

gênero e raça. Dessa forma, reconhece-se como indispensável a ampliação acerca da complexidade

da interseccionalidade, bem como, a importância da construção de estratégias que leve seriamente

em consideração as interseccionalidades existentes no cotidiano da maior parte da população. É

possível identificar na interseccionalidade os elementos necessário para a construção de pesquisas

críticas e estratégias mais eficazes para o acesso das mulheres aos direitos humanos, mas isso só

será possível se estiver sempre presente o fato de que no âmago da interseccionalidade está a busca

por justiça social.

Referências

CAMPBELL, Meghan. CEDAW and Women’s Intersecting Identities: a Pioneering New Approach

to Intersectional Discrimination. Revista Direito GV. n. 11 [2], jul-dez, 2015. p. 479-504

CARASTATHIS, Anna. Intersectionality – Origins, Contestations, Horizons. Nebraska:

University of Nebraska Press, 2016.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir

de uma perspectiva de gênero. In: Racismos contemporâneos.Ashoka Empreendimentos Sociais e

Takano Cidadania (Orgs.). Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58.

_____. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados. v. 17, nº 49, 1995, p. 117-132.

COLLINS, Patricia Hill. BILGE, Sirma Bilge. Intersectionality. Cambridge: Polity Press, 2016.

CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist

Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. The University of

Chicago Legal Forum. n. 140 p.139-167, 1989.

_____. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of

Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299

_____. Beyond Racism and Misogyny: Black Feminism and 2 Livre Crew. In: Feminist Social

Thought: A Reader. Diana Tietjens Meyers (org). New York and London: Routledge, 1997. p.

246-263

_____. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial

Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no

Brasil: uma breve discussão. In: Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal nº

Page 12: NA EFICÁCIA DA CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS … · Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e diversidade, 2005. p.

39-62

GONZALES, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje,

Anpocs, 1984. p. 223-244.

LOMBARDO, Emanuela. VERLO, Mieke. Institutionalizing Intersectionality in the European

Union? International Feminist Journal of Politics n. 11 v. 4 dez, 2009. p. 478-495

MOLINA, Carmen Expositó. ¿Qué es eso de la interseccionalidade? Aproximación al tratamiento

de la diversidad desde la perspectiva de género em España. Investigaciones Feministas. vol. 3,

2012. p. 203-222

ORTIZ, Marilia. Desvendando Sentidos e Usos para a Perspectiva de Interseccionalidade nas

Políticas Públicas Brasileiras. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2013. p. 1-15

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade. Porto

Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995. p. 71-99

TOMAZONI, Larissa. GOMES, Eduardo B. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos das

Mulheres no Âmbito das Nações Unidas. Cadernos da Escola de Direito UNIBRASIL. vol. 2, nº

23, jul/dez, 2015, p. 44-59

An intersectional gender/ethnicity analysis about the limits in the effectiveness of the

convention on the elimination of all forms of discrimination against women (cedaw) in brazil

Since CEDAW's ratification in Brazil in 1984, several government actions have shown the intent to

follow the precepts of the Convention, such as gender equality in personal and professional life, as

well as the ending of violence against women. Statistically, this precepts have not been fulfilled, for

many different reasons. In this paper, we hipothesize that one of this reasons is the absence of an

intersecctional perspective. Considering that Brazil is mostly composed of black and brown people

and that the country has a large diversity of native people, the absence of an intersecctional

perspective that includes race as a category in CEDAW's text has a direct impact on the

invisibilization of the issues that affect the life of non-white women. We employ the concept of

intersectionality, first created by Kimberlé Crenshaw (1989) as an analytical tool. The concept

recognizes that there is a complex of oppresion structures that are multiple and simultaneous and

need to be analized as a system of disempowerment. Through the analysis of CEDAW's original

text and the reports made by the brazilian government (from 1984 to 2014) this research seeks to

assess how the precarious link between gender and race hurts the development of strategies towards

the ending of discrimination against women, with the aim of contributing towards an intersectional

perspective that can increase CEDAW's eficiency in Brazil.

Keywords: Gender. Ethnicity. Intersectionality. CEDAW. Human Rights.