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hoangdieu
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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
XAMANISMO FEMININO YAWANAWA: TRANSFORMAO DE UM CORPO
FEMININO EM CORPO DE PAJ
Cynthia Ins Carrillo Senz1
Resumo: O exerccio da prtica xamnica , entre os Yawanawa, tradicionalmente, uma atividade exclusivamente
relacionada ao mbito masculino, onde os processos de iniciao e aprendizagem abrangem aspectos muito amplos, tais
como a aquisio de capacidades especficas no corpo e transformao corporal atravs de dietas, restries e consumo
de substncias especficas que dizem respeito de um vir a ser numa pessoa habilitada para desempenhar uma funo
especfica dentro da sociedade, a saber, o xam. Neste trabalho, baseado em pesquisa de campo junto ao povo
Yawanawa, o processo de aprendizagem ritual abordado como uma transformao, onde a corporalidade tem um
papel fundamental. Com a insero, h pouco menos de duas dcadas, de Hushahu e Putanny, duas mulheres a serem as
primeiras iniciadas na pajelana Yawanawa, foi aberto o caminho do xamanismo feminino, onde as especificidades do
corpo feminino e seus atributos culturais do lugar a novas relaes, significados e especificidades no exerccio da
prtica xamnica Yawanawa, tais como o fortalecimento da cultura atravs do canto feminino nos rituais de pajelana,
das pinturas corporais e produo de artefatos.
Palavras-chave: Xamanismo feminino Yawanawa, transformao corporal
Os Yawanawa so um grupo tnico pertencente ao tronco lingustico Pano, grupo ao qual
pertencem tambm os Huni Kuin (ou Kaxinawa), Yaminawa, Shanenawa, Kuntanawa, Katukina,
Shipibo-Conibo, Matss, dentre outros. Yawanawa, literalmente, significa o povo da queixada,
onde yawa = queixada e nawa = povo2 (Lagrou, 1991; Prez Gil, 1999; Carid Naveira, 1999;
Calvia Saz, 2002).
Os Yawanawa habitam a Terra Indgena do Rio Gregrio, no municpio de Tarauac, no
Acre, distribudos em diversas aldeias margem do mesmo, e contam com uma populao de
aproximadamente 650 pessoas (Oliveira, 2012).
Dentre os Yawanawa, assim como nas sociedades amerndias, de modo geral, a noo de
pessoa, assim como o corpo, como local de perspectivas, ocupa um lugar central na cosmologia
(Seeger et all., 1979), de modo que, compreendermos o que ser uma pessoa Yawanawa, ou, para
o foco especfico deste trabalho, a compreenso do que seja ser uma mulher Yawanawa ou ser
uma paj Yawanawa, passa necessariamente pela compreenso do que seja ter (ser) um corpo de
mulher Yawanawa ou ter (ser) um corpo de paj Yawanawa.
1 Mestranda em Educao pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. 2 A palavra nawa tambm usada para designar o estrangeiro, ou branco.
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Para tal efeito necessrio fazermos umas consideraes iniciais. Baseado no estudo de
diversas etnografias amaznicas, o perspectivismo, noo elaborada por Viveiros de Castro, prope
que, diferentemente da cosmoviso evolucionista ocidental, onde haveria uma origem animal
comum e uma humanidade cultural diferencial, isto , uma natureza comum e diversas culturas; a
cosmoviso amerndia, em oposio, consideraria uma humanidade original e uma animalidade
diferencial, ou seja, uma humanidade comum e diversas naturezas, onde o corpo (os diferentes
corpos, sejam humano, de ona, de macaco, de jibia, etc.) seria o ponto a partir do qual o mundo se
organiza de formas (perspectivas) diferentes. Assim, os corpos animais seriam uma espcie de
roupa ou envelope que esconderia uma essncia espiritual humana, num mundo altamente
transformacional. (Viveiros de Castro, 1996)
Nesta abordagem, o xam ou paj, uma espcie de mediador e tradutor entre os diversos
mundos ou perspectivas (Carneiro da Cunha, 1998; Viveiros de Castro, 1996), pela sua capacidade
de assumir diversos pontos de vista e de estabelecer relaes com os seres de outros mundos no-
humanos.
preciso, tambm, compreender aqui o corpo a partir da viso amerndia, onde o mesmo,
para alm de ser considerado apenas como um organismo biolgico, est dotado de um princpio
espiritual, pois est constitudo de substncias portadoras de yuxin3, como a sede das capacidades e
do conhecimento da pessoa. Dado que toda matria est permeada de yuxin, corpo material e
esprito esto longe de serem dois aspectos separados. Nesse sentido, o corpo considerado como
locus of the construction of sociality (McCallum, 1996: 350), onde a trama das relaes sociais
incluem humanos e no-humanos.
O corpo Yawanawa
Antes de abordarmos propriamente a noo de corpo, necessrio compreendermos os
significados de yuxin. Yuxin, conforme usado acima, entende-se como um princpio vital que
permeia toda a realidade, e do qual participam todos os seres, animados e inanimados (pedras,
gua...) que povoam o universo (Peres Gil, 1999: 53). Contudo, esta noo no dever ser mal
interpretada, pois, segundo Lagrou, devemos entende-la a partir de uma viso que no considera o
espiritual (yuxin) como algo sobrenatural e sobre-humano, localizado fora da natureza e fora do
humano (Lagrou, 1998; 28), mas a partir de uma viso em que existe um universo de mltiplos
3 Neste contexto; fora vital que permeia todos os seres e os dota de caractersticas prprias (Peres-Gil,2001). O termo
ser explicitado no prximo subttulo.
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nveis, onde a realidade visvel supe sempre outra invisvel (Langdon, 1996: 27). Ainda, o
trnsito entre estes diversos nveis ou perspectivas frequente nas narrativas mticas Yawanawa,
geralmente a partir do uso de algum tipo de substncia de origem vegetal ou animal.
Para Townsley, yuxin no apenas a fora que anima os seres vivos, mas tambm aquilo
que define suas caractersticas particulares (Townsley, 1988; 65). Assim, yuxin tambm usado
para designar os diversos seres personificados que habitam o universo. Alguns so nomeados como
conjunto4, outros como seres personificados que aparecem nas narrativas mticas, e outros so
associados a elementos da natureza5. Existem, ainda, os yuxin das doenas6.
Tendo em vista isso, vejamos agora os componentes do corpo Yawanawa. Segundo Peres
Gil, o corpo Yawanawa est composto por um corpo material (yura) e vrias essncias de carter
espiritual, sendo estas: o huru yuxin, ou esprito dos olhos, que se desprende temporariamente da
pessoa durante o sono para perambular no mundo dos yuxin, desprendendo-se definitivamente no
momento da morte; o nia vaka, ou sombra; e o isun yuxin, ou esprito da urina. As relaes entre
todos esses componentes do corpo so muito estreitas e o que acontece com um deles afeta os
outros (Peres Gil, 2001).
nessa perspectiva de interao com os yuxin que podemos compreender melhor os
processos tradicionais Yawanawa, e dos grupos Pano, de modo geral, de formao do corpo, tais
como os resguardos e dietas que evitam certos alimentos em momentos especficos da vida. Por
exemplo, durante a gravidez, as mulheres evitam consumir alimentos cujo yuxin, possa ser
incorporado pela me e/ou pela criana. Assim, a me evitar o consumo de carne de jabuti7, pois
um animal que fica dentro do casco e ao ser caado sangra muito, para evitar que a criana se
esconda na hora de nascer e para evitar o risco de sangramento excessivo no parto; evitar tambm
a carne de macaco para que a criana no adquira a caracterstica fsica da cabea mida do animal,
ou a carne de veado para evitar que a criana tenha pescoo longo como o animal8. (Lagrou, 1998;
McCallum, 2001; Haibara, 2016; Peres Gil, 2001)
4 Como os huru yuxinhu e os nai yuxinhu, que ocupam diferentes camadas do cu (Peres Gil, 2001: 54) 5 Como por exemplo, os nii yuxinhu, waka yuxinhu, meshkiti yuxinhu, kapa yuxinhu, tua yuxinhu, suya yuxinhu, yawixi
yuxinhu, respectivamente, esprito(s) da mata, da gua, da pedra, do quatipuru, da jia, do rato, e do tatu. 6 Yuxin de conotao ambivalente, que podem provocar doenas por vingana pela quebra de algum resguardo ou norma de conduta esperada dos humanos. 7 Neste mesmo grupo se encontram a carne de tatu, jacar e porco da mata, por causarem um parto demorado e doloroso. 8 Para mais restries alimentares e sistema de sade Yawanawa consultar Peres Gil (2001).
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Como vimos aqui, os processos de formao do corpo, assim como os resguardos e
restries alimentares tem como pano de fundo a interao com os yuxin e a cosmoviso
Yawanawa, formando parte do modo de ser e da constituio da pessoa Yawanawa.
Ser Mulher Yawanawa
McCallum (1999), em seu estudo junto aos Kaxinawa, retoma a hiptese de Gow (1991)9,
desenvolvida em seu trabalho no Baixo Urubamba, no Peru, de que a organizao social est
atrelada aos processos 'generizados' (gendered) envolvidos na produo, na reproduo, na
distribuio e na troca. As mulheres colhem e cozinham a mandioca, fazem a caiuma10 e a
distribuem, assim como so responsveis pelo cozimento dos vegetais e carne crus e sua
transformao em alimentos cozidos; enquanto os homens trabalham a terra, caam e pescam,
sendo responsveis por fornecerem os alimentos crus que as mulheres transformaro em alimentos
cozidos. A relao homem-mulher central no processo social, tendo como base as capacidades dos
homens e das mulheres para produzirem e reproduzirem sua 'agncia' (agency). Para a autora, o
fundamento do mundo social est na relao entre as agncias masculina e feminina, intimamente
ligadas entre si, junto aos processos de produo, distribuio e consumo; e o de sexo, procriao e
reproduo, ambos baseados no corpo humano. Assim, a construo do corpo e a construo das
pessoas adultas constituem o fundamento da organizao social Kaxinaw, onde construir o corpo
envolve inscrever diferenas em forma de gnero. (McCallum, 1999; 2001)
Aqui as agncias masculina e feminina so entendidas como dois tipos de agncia humana,
onde os homens e mulheres constituem dois tipos diferentes de seres humanos. Um corpo de
mulher, que formado desde a infncia e, principalmente, a partir da menarca, atravs de um tipo
de socialidade especfica para o gnero feminino, junto sua av materna, torna-se apto a
manifestar sua agncia feminina, isto , desempenhar as atividades que as mulheres realizam. O
processo de formao da agencia feminina passa pelo aprendizado das atividades relacionadas
alimentao, transformao dos alimentos crus em cozidos, transformao do sangue cru
(menstruao) em crianas (cozidas em seus teros), produo de fios e posteriormente tecelagem
com desenhos (kenes11). O processo de aprendizagem feminino se d dentro da comunidade, em
estado de ateno consciente. Por sua parte, os homens, aprendem a agncia masculina, isto , a
9 GOW, Peter. Of mixed blood: Kinship and history in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon. 1991. 10 Bebida feita a partir da mandioca mastigada pelas mulheres (mais comum entre os Yawanawa), ou a partir do milho
e/ou amendoim (mais comum entre os Kaxinawa). 11 Os kenes so considerados pelas mulheres Kaxinawa como a escrita verdadeira (McCallum, 1999)
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realizar atividades de caa, pesca e trabalho na roa, no somente em estados conscientes, mas
tambm em estados de conscincia alterados atravs do uso de substncias amargas e/ou
alucingenas como o nixi pe12, kapum13, tabaco e atravs de viagens pela floresta ou viagens
proporcionadas pelo uso de tais substncias. O corpo masculino distancia-se, assim, estabelecendo
relaes com o mundo exterior aldeia (rio, floresta, contato com o mundo dos yuxin
proporcionado pelo uso de substncias alucingenas), enquanto o corpo feminino tem seu campo de
agncia nas atividades de produo no interior da aldeia, as quais aprende com relativa imobilidade
junto av materna. (McCallum, 1999; 2001)
Esta noo, aplicada ao caso Yawanawa explicaria a diferena nominal entre o termo que
define a tsauihu, esposa principal14, que atua como uma espcie de lder feminino. Tsauihu significa
dona do assento, em contraposio e complementariedade ao nome usado para designar lder
masculino que niaihu, o que fica em p (Peres Gil, 2001).
Ambas, a agncia feminina e a masculina, se complementam. Os homens precisam da
agncia feminina para consumirem o produto de sua caa e pesca, assim como as mulheres
precisam da agncia masculina para produzirem uma refeio completa (McCallum, 1999).
Como vimos, ser mulher, ou homem Pano, significa exercer uma agncia feminina ou
masculina, respectivamente. Ser mulher Yawanawa, significa ter um corpo de mulher com agncia
feminina e realizar as atividades consideradas do domnio feminino.
Contudo, essa agncia, que impressa no corpo a partir de longos e especficos processos de
formao, seria plausvel de transformao, como veremos na histria a seguir, que segundo meus
informantes, trata-se de um fato real que aconteceu no passado.
A Histria do homem que se transformou em mulher15
Antigamente o machado era de pedra e era muito difcil cortar com ele. Tinha um
homem que era muito devagar. Um dia foram todos os homens cortar um toco muito
grande. Ele ia atrs de todos os homens, bem devagarinho e no conseguia cortar
nada de lenha. Ento ele falou: Essa no vida para mim, e foi para casa e se
12 Ayahuasca, bebida alucingena de uso tradicional dos povos Pano, inclusive os Yawanawa, que a conhecem como
uni. 13 Resina extrada da r com o mesmo nome, que tem um efeito vomitivo purgante. 14 A poligamia foi, no passado, uma prtica comum entre os grupos pano, sendo que ainda existem alguns casos de
homens, principalmente lderes, casados com mais de uma esposa. A poligamia feminina aparece somente em algumas
narrativas mticas Yawanawa. 15 Contada por Ina Yawanawa e recolhida em meu caderno de campo durante imerso realizada na Aldeia Mutum em
fevereiro de 2016.
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vestiu de mulher e comeou a fazer coisas de mulher, fazia comida e era muito gil,
mastigava caiuma, fazia beiju, fazia artesanato. Antigamente moravam todos num
shuhu16 grande e quando era a hora do caf, enquanto muitas mulheres ainda
estavam meio devagar, ele chegava e j oferecia comida e caiuma para os maridos.
At teve alguns homens que deixaram suas mulheres por ele. (INA YAWANAWA
em comunicao oral em campo em fevereiro de 2016)
Na histria do homem que se transformou em mulher existem dois aspectos cruciais para
entendermos o lugar da mulher na cosmoviso Yawanawa17. O primeiro aspecto , como vimos
anteriormente, a relao intrnseca que existe entre gnero feminino e agncia feminina, e gnero
masculino e agncia masculina. Isto , se (ou se torna) mulher Yawanawa quando se desempenha
as funes consideradas do domnio feminino. O mesmo se aplicaria ao caso masculino, a pesar de
no existirem registros de uma histria ou narrativa Yawanawa em que uma mulher se transforme
em homem. O segundo aspecto , considerando o exposto anteriormente, o corpo e sua agncia,
caractersticas particulares, e yuxin considerado uma roupa que abrigaria uma essncia
espiritual, dentro de um mundo altamente transformacional. Assim, as transformaes ocorreriam
quando, por meio de transformaes no corpo, entenda-se, na sua agncia, caractersticas
particulares e yuxin, esse corpo passaria a adquirir capacidade para exercer outra agncia,
caractersticas particulares e yuxin.
nesse sentido que consideramos a aprendizagem xamnica como uma transformao, que
transforma um corpo feminino, ou masculino, cada um com sua agncia, caractersticas particulares
e yuxin, em um corpo de paj, um corpo que exerce outro tipo de agncia. Neste trabalho
analisaremos apenas o caso especfico das mulheres aprendizes de paj Yawanawa.
Xamanismo amaznico Yawanawa
O xam, ou paj, entendido como "mediador entre os domnios humano e extra-humano"
(Langdon, 1996; 29).
Segundo Perez-Gil (2001), existem, entre os Yawanawa, vrias classificaes de xams,
dependendo dos conhecimentos que os mesmos adquirem atravs de dietas e iniciaes. Os
16 Edificao de madeira com telhado de palha, geralmente localizada num ponto central da comunidade e onde
acontecem eventos comunitrios. 17 No ser possvel abordar aqui todos os aspectos relacionados ao gnero entre os Yawanawa. Maiores referncias sobre gnero entre os Kaxinawa encontram-se em McCallum (1999; 2001).
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niipuya18 so sabedores do uso das plantas da mata (rau19); os xinaya, literalmente aquele que tem
pensamento, se refere, em geral, s pessoas que praticam a tcnica da reza (shuka); e os tsimuya,
que literalmente significa aquele que tem o amargo, faz referncia a esta categoria gustativa to
importante no xamanismo Pano. Entre vrios grupos dessa famlia lingustica, como os Kaxinawa
(Lagrou, 1998) o poder xamnico est associado ao amargo, de forma que, a introduo de
substncias classificadas sob esta categoria imprescindvel para que o xam adquira e desenvolva
seu poder.
Dentre os Yawanawa, alguns processos esto presentes (no necessariamente na mesma
ordem ou intensidade) em todos os relatos de iniciao xamnica, e inclusive em vrias narrativas
mticas: a memorizao de boa quantidade dos saberes (rezas, cantos de cura e uso de plantas); a
ingesto de substncias alucingenas; a realizao de resguardos rigorosos; e, por fim, a superao
de certas provas. O aprendiz deve cumprir uma dieta, a qual reduz drasticamente a quantidade de
alimentos que podem ser ingeridos, elimina o consumo de alimentos doces e permite apenas beber
bebidas azedas, como a caiuma20 (bebida fermentada de mandioca), e substncias amargas como
uni (ayahuasca21), rar (muk22), rume23 (tabaco), yutxi (pimenta) e xupa24 (datura). Como vimos
anteriormente, o mundo humano Yawanawa constantemente afetado pela ao dos yuxin,
pertencentes ao mundo no-humano. Assim, o xam aquele que acentua sua natureza yuxin
atravs da transformao de seu yura (corpo), permitindo-lhe transitar entre os diferentes domnios
do cosmos. Segundo Peres Gil (2001), se o que tm em comum os diferentes seres que o habitam
precisamente a possesso de yuxin, o que permitiria a aproximao do paj a estes outros seres seria
esta transformao do corpo.
Dessa forma, a ligao que estabelece o iniciando durante o perodo de aprendizado com o
mundo dos yuxin e dos antepassados atravs dos sonhos e das vises de grande importncia se
consideramos que uma das fontes de poder do paj sua capacidade para lidar com esse mundo. Da
mesma forma, o paj transita entre o domnio humano e aquele dos yuxin realizando a
18 Nii = mato, floresta; niipu = plantas do mato 19 Termo comumente traduzido pelos Yawanawa como remdios da mata. 20 A caiuma preparada exclusivamente pelas mulheres, e faz parte do conjunto de aes da agncia feminina Pano. 21 Bebida entegena composta pela fervura de duas plantas: o cip Banisteriopsis caapi, conhecido tambm como jagube ou ayahuasca, e a folha Psychotroia viridis, conhecida tambm como chacrona ou rainha, usada
tradicionalmente pelos grupos Pano. 22 Raz amarga consumida pelos aspirantes a paj durante sua iniciao xamnica. 23 Rume significa tabaco, contudo neste contexto o termo se refere forma como o mesmo consumido ritualmente
pelos Yawanawa: p de tabaco misturado com a cinza de uma rvore amaznica conhecida como tsunu. A mistura
comumente chamada de rap. 24 Planta usada ritualmente pelos antigos iniciados do xamanismo Yawanawa, sendo seu uso desconhecido hoje em dia. Peres Gil identificou a planta como uma espcie de datura. (Peres Gil, 2001)
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intermediao necessria entre um e outro. Conforme relatado em diversos mitos Yawanawa,
alguns dos protagonistas dos mesmos se vem envolvidos num processo que os leva a mudar sua
pessoa, atravs da ingesto de certas substncias (uni, yutxi, rume, xupa) e da abstinncia de outras
(alimentos pesados, doce e gua), e assim a aproximar sua natureza dos yuxin.
A iniciao est ligada ao sofrimento (resguardos rigorosos, esforo para memorizar longas
rezas, superar o cansao e limitaes fsicas), ingesto de substncias tsimu (amargas), memria,
e familiarizao com o mundo dos yuxin, com o qual se estabelecem contatos contnuos. Tudo isto
desemboca na transformao do corpo de quem se inicia nas prticas xamnicas. Este corpo
incorpora25 (torna corpo ou faz corpo) uma srie de caractersticas fsicas associadas ao poder,
eliminando o doce e ingerindo substncias amargas e azedas. Para Lagrou, esta mutao do corpo
possvel precisamente se consideramos que as substncias amargas so meios de ao do yuxin
(Lagrou, 1998: 146).
Da mesma forma Townsley considera que se converter em xam "is a question of being
transformed in a substantive way[...] The common feature of all the iniciations procedures is the
taking into the body of substances of other creatures or plants. With the substance, something of
their essence, or yoshi, is ingested and it is this essences which becomes part of the initiate
(Townsley, 1988: 133).
Portanto, o poder do xam est intimamente ligado sua capacidade de transformar sua
pessoa-corpo e nela incorporar caractersticas que o aproximem dos yuxin com quem deseja adquirir
conhecimento e/ou poder, assim como de estabelecer relaes com o mundo dos yuxin. Tal
transformao implica na modificao da relao entre o corpo e a essncia espiritual da pessoa,
sendo que o corpo parece ser negligenciado, atravs de restries alimentares e comportamentais
(abstinncia sexual e social); em favor do esprito, atravs da ingesto constante de substncias que
colocam o xam em relao com o domnio dos yuxin. (Peres Gil, 2001:43-44).
Isto dito, analisaremos agora o xamanismo feminino. Como vimos acima, o que define 'ser
mulher Yawanawa' est relacionado sua capacidade de agncia, realizando atividades produtivas e
sociais dentro da cosmoviso da complementariedade feminino-masculina. Assim, esperado que
as mulheres realizem atividades consideradas parte do mbito da agncia feminina, como dito
acima, transformao de alimentos crus em cozidos, gestao, produo de tecelagem e desenhos
kene. O mbito de agncia feminina , por excelncia, dentro da comunidade, no cotidiano, e no
nas relaes inter-mundos, pois, como vimos, seu corpo no teria sido preparado para desempenhar
25 Esta abordagem tem relao com o conceito de enskilment de Tim Ingold (2001) e da aprendizagem como gnese de
Carlos Sautchuk (2015).
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as funes xamnicas que implicam nessas capacidades. De fato, tanto nas etnografias dos grupos
Pano, como nos relatos nativos, so raros os exemplos de mulheres xams. Entre os Yawanawa, o
xamanismo era uma atividade do domnio exclusivamente masculino, at a iniciao de Hushahu e
Putany, inaugurando, assim, a possibilidade da iniciao xamnica feminina Yawanawa. Mesmo
no havendo exemplos anteriores de mulheres iniciadas, as concepes de corpo, agncia e
transformao mostradas acima, nos do indcios de que o exerccio da prtica xamnica por parte
das mulheres, se bem, no seria esperado ou bvio, no seria tampouco impossvel, desde que a
mulher adquirisse as capacidades de agncia xamnica e neutralizasse a agncia feminina
incorporada no seu corpo; ou, dito de outra forma, a mulher poderia exercer a funo de xam desde
que ela transformasse seu corpo feminino em um corpo de paj.
Sobre xamanismo feminino, o trabalho desenvolvido por Colpron (2005) demonstra como as
mulheres Shipibo-Conibo, grupo amaznico pertencente ao tronco lingustico Pano, podem adquirir
poderes xamnicos considerveis quando se iniciam junto a certos vegetais ou animais poderosos, e
como podem intervir em domnios correntemente considerados masculinos, na rea amaznica, e
que frequentemente so tambm associados ao exerccio xamnico: a seduo, a caa e a agresso.
As relaes estabelecidas com os seres extra-humanos seriam possibilitadas por um trabalho
corporal constante, onde o ambiente modela o corpo humano a ponto de torn-lo similar quele dos
seres da floresta. Assim, o xamanismo Shipibo-Conibo no ope homem e mulher de maneira
dicotmica, oposio que recorrente nas etnografias amaznicas. Ainda mais importante que as
diferenas biolgicas a ao sobre o corpo, a sua possibilidade de transformao ou manejo, que
permitem uma identificao com os seres da floresta independentemente do sexo do iniciado.
Dessas transformaes deriva a possibilidade de praticantes femininas (Colpron, 2005).
A transformao
Eu no sou mais mulher... quer dizer... sou, mas no sou. (Hushahu Yawanawa em comunicao oral em 2014).
Hushahu, hoje com 38 anos, iniciou sua formao para se tornar paj h pouco menos de
duas dcadas. Desde a adolescncia manifestou interesse por acessar os conhecimentos relacionados
s prticas xamnicas do seu povo, conhecimentos que, por ser mulher lhe eram vetados por
tradio. Segundo Hushahu, nunca antes mulher alguma tinha passado pelo ritual de iniciao
xamnico, e muitos acreditavam que ela morreria se o fizesse, por assumir que o corpo feminino
no preparado para esse tipo de iniciao, que, como vimos acima, alm do risco que implicam os
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processos de isolamento, dietas e o consumo de substncias alucingenas; a iniciao xamnica
distoava do que dentro da viso de mundo Yawanawa faz parte da agncia feminina, do ser
mulher. Aps ter passado por inmeras provas, que totalizaram 5 anos, os ancies permitiram a
iniciao de Hushahu, e sua irm Putanny, quem, a duas semanas da iniciao da Hushahu, resolveu
acompanh-la e passar junto a ela por todo o processo. Ambas passaram pelas dietas iniciticas,
restries e tratamentos com plantas medicinais e alucingenas rar, uni, rume, yutxi, com o
objetivo de se prepararem e adquirirem poder e capacidades xamnicas. Assim, as irms
inauguraram uma quebra na tradio que at ento vetava a iniciao xamnica s mulheres.
Durante o resguardo, Hushahu, nas suas viagens pelo mundo dos yuxin e contato com esses seres da
floresta, desenvolveu grandes habilidades relacionadas ao xamanismo, adaptando os saitis ou cantos
rituais voz feminina, dando aos rituais Yawanawa a configurao que eles tm hoje, onde se
destaca a potncia da voz feminina e sua melodia nos cantos. Hushahu, ainda, desenvolveu
capacidades artsticas de pintura onde plasma suas experincias de contato com os yuxin, assim
como inaugurou um forte momento de revitalizao cultural atravs da confeco de artesanatos em
mianga e pinturas corporais com os kenes que ela recebe dos yuxin em vises durante sua
iniciao.
A transformao de Hushahu em paj, inaugura um campo de agncia para alm do campo
exclusivamente feminino, e para alm do campo exclusivamente xamnico. A agncia feminina,
neste caso, atravs da produo de artefatos e pinturas corporais ampliada e modificada. Os
processos de aprendizagem generizados, como vimos acima, onde as mulheres aprendem as
pinturas e artesanatos, predominantemente em estado de viglia consciente. A agncia feminina se
v ampliada a partir da iniciao xamnica de Hushahu, que traz o elemento do estado alterado de
conscincia para a aprendizagem e realizao das pinturas e artesanatos. Por outro lado, tambm os
processos de aprendizagem xamnicos se transformam com a iniciao de Hushahu, inaugurando a
participao do canto feminino, trazendo melodia e harmonia ao ritual, permeando de aspectos
femininos o que at ento constitua um mbito da relao pajs-yuxin apenas acessado pelos
homens. Ambos processos de aprendizagem e agncias se misturam e se confundem, ampliando-se
mutuamente.
nesse sentido que entendemos as palavras de Hushahu citadas no incio deste subttulo,
quando ela afirma no ser mais mulher, sendo mulher, sou mas no sou. Um corpo de mulher
que se transformou em corpo de paj com caractersticas particulares diferenciadas dos iniciados
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masculinos. Um corpo de paj que se permeou de caractersticas femininas, inaugurando uma nova
forma de agir no mundo xamnico.
Referncias bibliogrficas
CALAVIA SAEZ, Oscar. "A variao mtica como reflexo". Revista de Antropologia, 45(1):7-36.
CARID NAVEIRA, Miguel. Yawanawa: da guerra festa. Dissertao de Mestrado. Florianpolis:
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Feminine Yawanawa xamanism: Transformation of a female body into a paje body
Astract: The exercise of the practice of xamanism is, tradicionally, among the Yawanawa people,
an activity which is exclusively related to the masculine ambit, where the apprenticeship and
iniciation processes comprehend very wide aspects, such as the acquisition of specific habilities in
the body and corporal transformation through diets, restrictions and the ingestion of specific
substances which tell about becoming an able person to perform a specific function in society, that
is, a xaman. In this work, based on field research among the Yawanawa people, the ritual
apprenticeship process is approached as a transformation, where corporality plays an important role.
With the insertion, a little shorter than two decades ago, of Hushahu and Putanny, the two first
women who were iniciated in Yawanawa xamanism, the path to feminine xamanism was opened,
where the specifities of the feminine body and its cultural meanings give place to new relations,
significances and specifities in the exercise of the Yawanawa xamanism practice, such as the
strengthening of the culture though the feminine chanting in the rituals of pajelana, of corporal
paintings and of handcraft production.
Keywords: Feminine Yawanawa xamanism, corporal transformation