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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X NARRATIVAS ENTRECRUZADAS DE PROFESSORAS NEGRAS NO EXTREMO SUL: (RE)INVENÇÕES (IM)POSSÍVEIS Treyce Ellen Silva Goulart 1 Mary Rangel 2 Resumo: este trabalho apresenta os caminhos investigativos percorridos a partir de narrativas autobiográficas de três professoras negras no município de Rio Grande/RS. A produção dos dados foi inspirada na metodologia de ateliês biográficos de projeto e deu-se por meio de encontros coletivos e individuais. As narrativas autobiográficas foram problematizadas a partir de um viés interseccional interpelado pelas perspectivas teórico-políticas dos Estudos Feministas Decoloniais e Negros. As aproximações com as falas das docentes possibilitaram a compreensão dos diversos atravessamentos e imbricação entre as questões de raça/racismo, gênero/sexismo e classe/classismo de modo a percebermos estes elementos não enquanto estruturas sólidas, atômicas ou imutáveis, mas como um amálgama que é interpretado/interpelado e interpreta/interpela as docentes em seus cotidianos. As táticas criadas por cada uma e o investimento sobre si na construção de suas narrativas autobiográficas foram peculiares, delineadas/o pelas suas experiências singulares, sublinhando que as performatividades das mulheres negras, dentro deste microcosmo, não são categorias atômicas, uníssonas ou uniformes. E, por outro lado, que frente às objetividades culturais e econômicas do racismo, as especificidades do sexismo, que também reiteram suas subalternidades, são diluídas. Palavras-chave: Feminismos. Narrativa autobiográfica. Decolonialidade. Este artigo apresenta as reflexões possibilitadas a partir das narrativas autobiográficas de três docentes atuantes na educação básica que reconheço e se auto reconhecem enquanto negras. As professoras lecionam no extremo sul do Brasil e se reuniram de 2006 a 2013 em torno de uma prática político-pedagógica direcionada à efetivação da Lei Federal 10.639/2003. Com o estudo, pretendo investigar como se constituem/são constituídas as mulheres negras enquanto sujeitas e interpelações do racismo, sexismo e classismo. Deste decorrem os seguintes objetivos específicos da pesquisa: a) interrogar nas narrativas, as diversas configurações assumidas pela colonialidade de gênero e como essa produziu efeitos na forma com que essas sujeitas ocupam os espaços sociais; b) questionar os discursos que buscam hierarquizar as opressões vivenciadas por mulheres negras; e c) problematizar a relevância das narrativas autobiográficas e de auto representação para o protagonismo de mulheres negras. 1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil. 2 Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil.

NARRATIVAS ENTRECRUZADAS DE PROFESSORAS … · 2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),

Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X

NARRATIVAS ENTRECRUZADAS DE PROFESSORAS NEGRAS NO EXTREMO SUL:

(RE)INVENES (IM)POSSVEIS

Treyce Ellen Silva Goulart1

Mary Rangel2

Resumo: este trabalho apresenta os caminhos investigativos percorridos a partir de narrativas

autobiogrficas de trs professoras negras no municpio de Rio Grande/RS. A produo dos dados

foi inspirada na metodologia de atelis biogrficos de projeto e deu-se por meio de encontros

coletivos e individuais. As narrativas autobiogrficas foram problematizadas a partir de um vis

interseccional interpelado pelas perspectivas terico-polticas dos Estudos Feministas Decoloniais e

Negros. As aproximaes com as falas das docentes possibilitaram a compreenso dos diversos

atravessamentos e imbricao entre as questes de raa/racismo, gnero/sexismo e classe/classismo

de modo a percebermos estes elementos no enquanto estruturas slidas, atmicas ou imutveis,

mas como um amlgama que interpretado/interpelado e interpreta/interpela as docentes em seus

cotidianos. As tticas criadas por cada uma e o investimento sobre si na construo de suas

narrativas autobiogrficas foram peculiares, delineadas/o pelas suas experincias singulares,

sublinhando que as performatividades das mulheres negras, dentro deste microcosmo, no so

categorias atmicas, unssonas ou uniformes. E, por outro lado, que frente s objetividades culturais

e econmicas do racismo, as especificidades do sexismo, que tambm reiteram suas

subalternidades, so diludas.

Palavras-chave: Feminismos. Narrativa autobiogrfica. Decolonialidade.

Este artigo apresenta as reflexes possibilitadas a partir das narrativas autobiogrficas de trs

docentes atuantes na educao bsica que reconheo e se auto reconhecem enquanto negras. As

professoras lecionam no extremo sul do Brasil e se reuniram de 2006 a 2013 em torno de uma

prtica poltico-pedaggica direcionada efetivao da Lei Federal 10.639/2003. Com o estudo,

pretendo investigar como se constituem/so constitudas as mulheres negras enquanto sujeitas e

interpelaes do racismo, sexismo e classismo. Deste decorrem os seguintes objetivos especficos

da pesquisa: a) interrogar nas narrativas, as diversas configuraes assumidas pela colonialidade de

gnero e como essa produziu efeitos na forma com que essas sujeitas ocupam os espaos sociais; b)

questionar os discursos que buscam hierarquizar as opresses vivenciadas por mulheres negras; e c)

problematizar a relevncia das narrativas autobiogrficas e de auto representao para o

protagonismo de mulheres negras.

1 Doutoranda no Programa de Ps-Graduao em educao da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro,

Brasil. 2 Centro Universitrio La Salle do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil.

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Durante a pesquisa, sobretudo a partir das teorizaes sobre as narrativas autobiogrficas e

formao, promovidas por Marie-Christine Josso (2004) e Christine Delory-Momberger (2008),

decidi inspirar-me na metodologia dos atelis biogrficos de projeto, criados por essa ltima. Este

procedimento foi adotado como inspirao por apoiar-se sobre duas prticas complementares: a da

autobiografia, ou seja, do trabalho realizado sobre si mesma a partir da fala que, dita ou escrita,

sempre um ato de escrita de si; e a da heterobiografia, isto , o trabalho de escuta/leitura e

compreenso da narrativa autobiogrfica feita pela outra. Estas duas prticas, possibilitadas pelo

espao construdo, objetivaram, tambm, a compreenso da fala autobiogrfica da outra, sobretudo,

a partir das construes de relaes de sentido da ouvinte ou da leitora consigo mesma e com sua

prpria construo biogrfica.

Cada uma das etapas3 foi repensada e adaptada s vicissitudes da investigao desenvolvida.

Aps o incio das atividades de campo efetivamente, realizamos trs encontros coletivos e seis

encontros individuais. Todos os encontros foram gravados, com a autorizao das professoras.

Dessa forma, o primeiro, segundo e terceiro encontro coletivo duraram, respectivamente, 30

minutos, 1 hora e 16 minutos, 2 horas e 06 minutos. Quanto aos encontros individuais, os de Lusa4,

Tereza5 e Aqualtune6, duraram, respectivamente, 1 hora e 54 minutos/1 hora e 58 minutos, 1 hora

40 minutos/ 40 minutos e 1 hora e 09 minutos/30 minutos.

O mtodo biogrfico escolhido foi ancorado em uma perspectiva dos estudos no/do/com os

cotidianos. Tal escolha apresentou-se enquanto poltica, terica e metodolgica uma vez que se

alinhava a uma postura de desconstruo crtica da colonialidade, s suas generalizaes e

universalismos que banalizam o vivido no/com o cotidiano (Oliveira, 2007, p. 61). Ao mesmo

tempo, este aporte terico metodolgico reconhece, conforme sublinha Oliveira (2007), que cada

um/a de ns sofre de uma cegueira epistemolgica, ou seja, nossa viso parcial e somos

cegos/as para uma srie de elementos que nosso olhar no consegue captar. Para a autora, esta

inabilidade relaciona-se ao carter notadamente conotativo de nossa linguagem. Dessa forma, a

3 A partir do que Delory-Momberger propunha, os atelis seriam compostos por seis etapas: a) Primeira etapa:

informao sobre o procedimento, objetivos do ateli e os dispositivos adotados. E estabelecimento de um pacto de

discrio e reserva sobre o narrado no ateli; b) Segunda etapa: elaborao, negociao e ratificao coletiva do

contrato biogrfico; c) Terceira etapa e quarta etapa: dois dias destinados escrita da primeira narrativa autobiogrfica e

a sua socializao; d) Quinta etapa: socializao da narrativa autobiogrfica; e) Sexta etapa: duas semanas depois, seria

um momento de sntese. Em reunio coletiva, cada participante apresentaria e argumentaria sobre seu projeto. Em um

ltimo encontro, que aconteceria um ms depois dessa sesso, faria se o balano da incidncia dos encontros para a

formao do projeto profissional/pessoal de cada uma. 4 Nome fictcio. 5 Nome fictcio. 6 Nome fictcio.

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leitura do/no/com o cotidiano d-se dinamicamente a partir da negociao dos diversos sentidos

instalados nas relaes entre as pessoas e dessas com o mundo.

Dessa forma, se compreendo que os discursos tm sido espaos de (im)possibilidades para

ns mulheres negras, reivindico as narrativas, localizadas e no generalizantes, de mulheres negras

enquanto bases relevantes para uma anlise mais aprofundada das condies de subalternidade e

resistncia dentro de uma sociedade racializada e generificada, como a nossa. Conforme nos

sublinha Delory-Momberger:

[...] a narrativa no apenas o meio, mas o lugar: a histria da vida acontece na narrativa. O

que d forma ao vivido e experincia dos homens [e das mulheres] so as narrativas que

eles[elas] fazem de si. Portanto, a narrao no apenas o instrumento da formao, a

linguagem na qual se expressaria: a narrao o lugar no qual o indivduo toma forma, no

qual ele/a elabora e experimenta a histria de sua vida. (2008, p. 56)

A narrativa autobiogrfica instala um sistema de interpretao e construo que situa, une e

faz significar os acontecimentos da vida como elementos organizados dentro de um todo. Ao

mesmo tempo implica, por um lado, em um projeto de si (projeo e em um projetar-se enquanto

possibilidade), dentro de uma construo biogrfica cujos acontecimentos organizados puxam este/a

sujeito/a para o futuro, o/a justificando retrospectivamente. Por outro lado, implica tambm na

reflexividade biogrfica em que o/a autobigrafo/a representa sua vida enquanto um todo unitrio e

estruturado, articulando e atribuindo sentidos a cada experincia dentro do curso de sua vida. Neste

caso, compreendo as narrativas enquanto construo de si a partir do revisitar, reorganizar e

remexer com as experincias.

Reflexes decoloniais

Quando reflito sobre a historicidade das relaes de poder que atravessam todas as relaes

estabelecidas no mbito da colonialidade7, encontro em Quijano (2005) algumas provocaes a

partir do conceito de raa nos territrios invadidos durante a colonizao. O autor, em um exerccio

de anlise sobre as relaes sociais pautadas na explorao com fins de acmulo de renda por um

grupo restrito, discorre sobre como estas estabeleceram a dinmica relacional entre colonizadores e

7 A colonialidade constitutiva da modernidade e envolve as relaes de poder emergidas do contexto da colonizao

europeia com relao Amrica Latina, frica e sia. Esse legado tem associado dominao/subordinao, bem

como colonizador/colonizado e atinge praticamente todos os aspectos das vidas das pessoas, permanecendo presente

nos modos como projetado e concebido o ser, o conhecimento e as relaes de poder.

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colonizados/as. Da depreende-se e relacionam-se ideais eurocntricos de modernidade8 para a

concepo do mundo em que, em primeiro plano, a histria da civilizao humana retratada como

uma trajetria que parte de um estado de natureza e culmina na Europa; e, em segundo plano, so

outorgadas enquanto diferenas de natureza (racial) e no de histria do poder, as diferenas entre

europeus e no europeus. o que Santos (2007, p. 27) afirma enquanto simetria dicotmica, que,

ainda que parea simtrica, esconde uma hierarquia e busca manter a racionalidade refm da ideia

de totalidade e complementaridade. Deste modo, no possvel pensar o sul sem o norte, a mulher

sem o homem, o escravo sem o amo. E dessa forma, gerada a invisibilizao, a produo ativa da

no-existncia daqueles/as que se encontram em posio inferior nesta hierarquizao naturalizada.

Tais reflexes so alargadas por Mara Lugones quando a pesquisadora discorre sobre a

colonialidade de gnero9. As discusses propostas pela autora no artigo Rumo a um feminismo

decolonial apresentam uma leitura bastante interessante das abordagens trazidas por Quijano

(2005), entre outros/as autores/as. A dinmica estabelecida com o discurso Aint I a Woman? (E no

sou eu uma mulher?) - proferido por Sojouner Truth em 1851, na Womens Rights Convention em

Akron, Ohio, Estados Unidos - causa certo desconforto quando lida distraidamente. Lugones inicia

suas problematizaes respondendo pergunta cerne da fala de Sojourner Truth e informa que a

resposta colonial seria No. No texto em questo, a autora estabelece, a partir de um ponto de

vista decolonial das relaes de gnero, apontamentos que buscam negritar que:

Comeando com a colonizao das Amricas e do Caribe, uma distino dicotmica,

hierrquica entre humano e no humano foi imposta sobre os/as colonizados/as a servio do

homem ocidental. Ela veio acompanhada por outras distines hierrquicas dicotmicas,

incluindo aquela entre homens e mulheres. Essa distino tornou-se a marca do humano e a

marca da civilizao. S os civilizados so homens ou mulheres. Os povos indgenas das

Amricas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espcies no

humanas como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. [...] A imposio dessas

categorias dicotmicas ficou entretecida com a historicidade das relaes, incluindo as

relaes ntimas. (Lugones, 2014, p. 936)

8 A utilizao do termo em caixa baixa busca, a partir de um vis decolonial (Mignolo, 2008; Quijano, 2005) e de

desobedincia epistmica (Mignolo, 2008), denotar a viso de modernidade no enquanto um perodo histrico (da

viso heroica e triunfante), mas sim como fenmeno cultural e histrico especfico, uma narrativa (por exemplo, a

cosmologia) do capitalismo imperial (havia outros imprios que no eram capitalistas) e da modernidade/ colonialidade

(que a cosmologia do moderno, imperial e dos imprios capitalistas da Espanha Inglaterra e dos Estados Unidos).

Dessa forma, nega-se aqui essa narrativa hierarquizante e seu evolucionismo unilinear que passou a organizar e

classificar o mundo a partir de valores eurocntricos que se afirmavam universais. 9 Sobre o conceito de colonialidade do gnero, Lugones explica Ao usar o termo colonialidade, minha inteno

nomear no somente uma classificao de povos em termos de colonialidade de poder e de gnero, mas tambm o

processo de reduo ativa das pessoas, a desumanizao que as torna aptas para a classificao, o processo de

sujeitificao e a investida de tornar o/a colonizado/a menos que seres humanos.[...] a colonialidade do gnero ainda

est conosco; o que permanece na interseco de gnero/classe/raa como construtos centrais do sistema de poder

capitalista mundial. Lugones, Maria. Rumo a um feminismo decolonial. In: Estudos Feministas. Florianpolis, 22(3):

320, setembro-dezembro, 2014, p. 939.

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Nestes termos, a brutalidade do sistema colonial produzia ativamente por meio de seus

discursos e prticas a no existncia e a desumanizao das populaes escravizadas. Para a autora,

assim como para Quijano (2005), a hierarquia dicotmica entre o humano e o no humano a

dicotomia central da modernidade. A essas discusses somam-se as desenvolvidas no mbito do

feminismo interseccional.

Em decorrncia destas relaes, a pesquisadora afirma que a interseco entre o homem

negro e a mulher branca expe a ausncia da mulher negra, no sua presena. Sendo assim, a

colonialidade presente na linguagem atomizada nos apresenta uma lgica dicotmica em que

conseguimos considerar apenas o ente dominante quando nomeamos algo. Portanto, quando nos

referimos a negro, logo pensamos em homens negros, e, quando mencionada a figura da

mulher, esta branca10. Assim, nesta interseco as mulheres negras no teriam vez, nem voz,

como diria Lusa. Nestes termos, a interseccionalidade importante quando mostra a falha das

instituies em incluir discriminao ou opresso (Lugones, 2014, p. 942 - nota de rodap) contra

mulheres negras.

(Re) Invenes (im)possveis

Quanto s sujeitas desta investigao, o que os dados fornecidos pelo Estado11 permitem

vislumbrar a localizao distinta em que essas se encontram. Dentre outros marcadores

financeiros sobre os quais poderia apenas conjecturar, mas que sinalizam uma situao econmica

de estabilidade, as trs concluram a graduao e engajaram-se na ps-graduao/especializao ou

tem planos de retornar universidade para o mestrado. Isto j as inclui em um estrato muito restrito,

de 7,9% daquelas mulheres negras que estudaram mais de 12 anos. Este dado, conforme Mrcia

Lima, Flavia Rios e Danilo Frana (2013), as localiza, por exemplo, no grupo de sujeitas com

menor teor de desemprego, entre as mulheres negras12. Quando reencontro as falas das sujeitas, a

forma como as trs tm logrado alcanar determinados cargos ou espaos parece que sua incluso

10 Aqui no podemos perder de vista que tampouco esta mulher ou este negro sero membros da populao de

Lsbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis e que este marcador tambm gerador de desigualdades e

opresses. 11 O Retrato das desigualdades de gnero e raa um compilado de informaes a respeito da situao de mulheres,

homens, negros e brancos em nosso pas. Para tanto, apresenta indicadores oriundos da Pesquisa Nacional por Amostra

de Domiclios (PNAD), do IBGE, para o perodo de 1995 a 2012, sobre diferentes campos da vida social, de forma a

disponibilizar para pesquisadores/as, estudantes, ativistas dos movimentos sociais e gestores/as pblicos um panorama

atual das desigualdades de gnero e de raa no Brasil, bem como de suas interseccionalidades. 12 Segundo, as autoras e o autor, nas extremidades do extrato, ou seja, no grupo de mulheres negras com menor e maior

nmero de anos de estudo se localizam as menores taxas de desemprego.

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neste cenrio se d de modo a modific-lo por meio da afirmao/valorizao/socializao de uma

outra cultura, sem que, necessariamente estes movimentos se oponham/ameacem a existncia

desta estrutura social complexa. Nestes termos, suas falas as localizam ao lado de outras/os sujeitas

excntricas/os que vm pautando sua excluso dentro da democracia. Nesse sentido, a produo dos

dados e respectiva anlise permitem perceber que as professoras se apoiaram em diferentes

marcadores para a sua construo pessoal enquanto sujeitas, conforme podemos vislumbrar a partir

de suas autobiografias:

Tereza: Sou casada, tenho uma filha de 6 anos e uma vida bastante corrida, dividindo-me

nas funes domsticas, familiares e profissional. A minha permanncia no magistrio

em funo de minha irm e minha prima. Em nenhum momento eu tive professores que me

incentivaram a isso, muito pelo contrrio. Temos que tomar muito cuidado com relao ao

que dizemos na escola. Tinham muitas professoras/es que me diziam que era muito quieta,

que no falava nada. Como se eu estivesse fadada ao fracasso, pelo fato de ser quieta, por

isso temos que ter muito cuidado com o que falamos para os alunos, pois no sabemos o

que vai ser no futuro, o que aquela criana vai ser. Aquelas professoras que diziam aquilo

de mim talvez nunca imaginaram que eu iria me tornar uma professora. De aluna, virei

colega

Tivemos uma infncia tranquila em termos econmicos, de acesso cultura e a lazer. A

gente percebia isso muito cedo porque principalmente essa diferenciao que as pessoas

faziam porque como eu te falei... eu no vim de uma famlia que passou dificuldade, claro

no ramos da alta sociedade. Nos foram ofertadas coisas que para a maioria das pessoas

negras, no foi. Onde a gente ia, os lugares que a gente frequentava, acabam sendo

frequentados por uma minoria negra que participava. Fui estudante de escola pblica no

ensino fundamental e mdio, na graduao e na ps-graduao tambm. Me orgulho disso,

pois grande parte da sociedade acredita que quem estuda em escola pblica est

predestinada ao fracasso. Quando prestei vestibular, no fiz curso preparatrio e obtive

xito na primeira tentativa, o mesmo acontecendo com a minha irm. Escolhi a carreira do

Magistrio por influncia de minha irm e por ter afinidade com a carreira. Tenho quinze

anos dedicados educao e fui me qualificando para atualizar-me e ter novas

oportunidades de trabalho. J fui Supervisora Pedaggica dos Anos Iniciais, Anos Finais e

atualmente estou na funo de Vice-diretora de uma escola de Ensino Fundamental.

Assim, na narrativa de Tereza, desde os primeiros encontros, houve referncias forma

como o estrato social ocupado por ela e sua famlia conformou-se enquanto um marcador relevante

para sua construo enquanto pessoa negra. Saliento esse ponto, sobretudo porque, me parece, esta

tem sido a tnica de seu discurso, aquilo que mais instantaneamente a sujeita relaciona s

discusses propostas em nossos encontros coletivos e individuais. Neste sentido, parece-me que o

recorte de classe, para ela, tem sido a lente atravs da qual ela organiza e projeta a narrativa de sua

vida, assim como informa suas percepes sobre o enfrentamento ao racismo para a populao

negra gacha. Superar a pobreza seria, para ela, etapa crucial no enfrentamento ao racismo.

A cada exemplo trazido de pessoas que venceram na vida, a cada demonstrao de

orgulho por sua trajetria, ali estavam presentes sobretudo noes de empoderamento econmico e

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ocupao de cargos enquanto sinnimo de enfrentamento estrutura racista gacha e, mais

amplamente, a brasileira. Da mesma forma, ocupar determinados espaos sociais mediados pelo

capital, tais como bares, restaurantes, bal de sua filha, e mesmo as viagens relatadas eram

evocaes daquilo que compreendo como seu projeto de transformao social e de enfrentamento

ao racismo. Por outro lado, tambm suas prprias narrativas apresentam, para mim, os limites desta

projeo.

Lusa, por sua vez, apresenta-se como uma mulher solteira, de 54 anos, filha, irm,

professora, especialista, militante. Tem sua narrativa marcada fortemente por uma trajetria de

ascenso e acesso a bens de consumo. A sujeita migra, como sua autobiografia nos conta, de um

contexto de extrema explorao da fora de trabalho de sua me, ocupando na infncia uma posio

enquanto filha da empregada e atravessada de afetividades dentro da casa dos patres dessa assim

como apresenta os primeiros momentos em que identifica o racismo atravessado de questes de

classe e gnero, na escola. A quase totalidade de sua fala busca afirmar um exacerbado orgulho de

suas conquistas, a partir do acesso Educao Superior, prtica poltica e pedaggica que tem

garantido a ela a ampliao de suas redes, o que a sujeita interpreta enquanto um avano quando

contrape essa abertura ao passado (e aqui houve vrias referncias ditadura militar) j que

agora possvel a ela falar de sua/nossa cultura e, sobretudo, ser ouvida. Lusa afirma e reafirma a

necessidade de a escola preparar cidads/os negras e negros que para estar l, l em cima na

pirmide.

Luza: Sou a mais velha de duas filhas. Estudei sempre no Instituto de Educao Juvenal

Miller, vaga que foi difcil de conseguir, pois na poca de sessenta, ou melhor, na dcada,

para ingressar nessa escola, tinha que morar perto da mesma. Morvamos em um bairro

perifrico e foi colocado o endereo da casa de famlia, onde minha me trabalhava. Casa

esta que minha av j havia trabalhado... Fui criada junto com essa famlia. Fazia as

refeies junto com eles. Fato que para a poca era impossvel acontecer. Com eles,

aprendi muitas e muitas coisas, me preparando para a vida. Eles fizeram de tudo para que

no (trabalhasse tambm como domstica l). Eles nos ofereceram, nos deram

oportunidades para virar. A me tambm. A me no queria isso para ns, queria que a

gente estudasse. Que eu estudasse, que a minha irm estudasse. Tinha que estudar, tinha

que estudar. Inclusive a questo do magistrio. Teve uma poca em que eu no queria

magistrio, eu queria jornalismo. Mas fazer jornalismo de que maneira? No tinha como.

Mas... mesmo que tu no v dar aula, eu quero o diploma. E, graas a ela, ao esforo da

me, ao esforo do pai e dessa famlia que deu um suporte muito grande. Nos ensinaram,

me ensinaram muita coisa, coisas muito prticas sabe? E que hoje eu penso assim Que

coisa boa que eu sei. Que bom que eles me ensinaram. Se eu estivesse em outro lugar, eu

no saberia essas coisas que eu sei. Boas maneiras, como me comportar nos lugares,

apesar de eu ser muito esparrenta. Mas como me comportar... como sentar mesa. Me

ensinaram valores, cidadania, me ensinaram muitas coisas. Se esforaram muito, nos

deram muita cobertura.

Mas, voltando ao lugar em que fui alfabetizada e conclu o ento 2 grau: a discriminao

e o preconceito era uma constante. Sempre fui muito alta e usava culos fundo de

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garrafa. Deveria us-los para com quinze anos no precisar mais dele. Porm, mexiam

muito comigo, me chamavam de negra macaca, temporal, quatro olhos etc, etc,

etc. para ser aceita pelos colegas, acredito que foi isso... parei de usar os culos e

enxergava muito pouco e sentada sempre atrs, por ser como j falei muito alta!! O tempo

passou e somente por volta dos quinze ou dezoito anos, no recordo bem, voltei a usar os

culos e at hoje fao uso deles, pois os problemas iniciais aumentaram. Minha famlia

fazia sacrifcio para comprar os mesmos que eram feios uma vez que tinham muito grau.

Mas nunca me deixaram ficar sem, por falta de dinheiro. Hoje, consigo mandar faz-los da

maneira que fique bem com o meu formato de rosto, cor de pele, etc. Quando conclu a

Universidade, fui a primeira da famlia a ter um curso superior e....olha a ironia do

destino: a formatura seria em um clube de uma Sociedade que antes era s da raa

branca e de quem tinha muitas condies. Primeira vez que entrava l. Entrei de cabea

erguida, emocionada para receber o meu to esperado diploma. A emoo foi enorme...eu

cheguei l.

Tendo em vista as perspectivas que sua narrativa sugere, parece-me que sua militncia se

organiza, sobremaneira, em torno de um modelo de cidadania mediado pelo acesso aos bens de

consumo. Entretanto, esse no pode ser alcanado sem a valorizao/afirmao de uma identidade

cultural negra. Em seu caso, a corporalidade tambm acionada enquanto elemento que apoia sua

performatividade de mulher negra. A sujeita reivindica para si, por exemplo, o uso de roupas

(muitas vezes customizadas) e acessrios que, para ela, referenciam essa cultura negra. So

estampas, turbantes, colares, bolsas que ornam seu corpo e, intencionalmente, quebram as

expectativas sociais em torno da esttica das mulheres gachas. Lusa denuncia a todo tempo, com

sua risada cheia, sempre alta, com suas roupas e irreverncia a sua inteno de no passar

desapercebida, dentro e fora da escola. Aproxima-se, ento, de uma esttica que, ao mesmo tempo

em que pode denotar um vis de nosso agenciamento, tambm, cada vez mais, tem se configurado

enquanto uma exigncia e atestado que confere legitimidade essa performatividade

principalmente, para mulheres negras.

Aqualtune narra-se como mulher, negra, solteira, filha, irm, professora, militante. Quando

penso em sua figura, quase impossvel deixar de evocar as caractersticas citadas por sua ex-

colega durante o embate narrado pela sujeita. A sujeita, com pouqussimas excees, usa

maquiagem, utiliza roupas que denotam elegncia, apresenta seus cabelos alisados/relaxados, loiros

e curtos. altiva e suas colocaes so feitas com seriedade. Em nossas conversas,

recorrentemente, houve uma narrativa e projeo de si que se organizava em torno de um discurso

vitorioso. De fato, Aqualtune, quando possvel, salientava sua no concordncia com aquelas

militncias que apenas debruam-se e produzem sobre a camada populacional negra que est em

uma situao socioeconmica desfavorvel. Assim, advoga a reforo de elementos culturais

africanos e afro-brasileiros enquanto forma de enfrentamento ao racismo e possibilidade de

ascenso econmica.

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Aqualtune: Eu sou a mais nova de cinco filhos, n o que se diz a raspa do tacho. Filha

de professora, de mulher, mulher negra obviamente, que, numa poca em que mulher no

se divorciava, no se desquitava, numa cidade de interior como Rio Grande

preconceituosa. Havia preconceito em relao minha me: mulher, j se torna uma

dificuldade. Tu sabe que a nossa sociedade, o simples fato de nascer mulher j uma

culpa, um erro, n. Embora ela que d a vida, que faa tudo, j um erro ter uma filha

mulher. Depois, negra mais um pecado, alm de nascer mulher tu negra. Terceiro

pecado, pobre. Alm de ser mulher negra, tu pobre. E o quarto pecado, tu desquitada

aquilo que, na poca, a mulher sozinha j no era boa coisa, uma mulher com filho

desquitada no era bem vista. Ento, so preconceitos que vm todos eles juntos de uma

vez s por voc ter todas essas condies. E as pessoas sempre olhavam de uma forma

diferente da situao. Embora minha me trabalhava, era professora, era respeitada,

sempre tinha um olhar equivocado dos demais. Conseguiu criar cinco filhos, dar educao

pra todos com um curso de f, sem muita frescura tudo simples. Conseguiu arrecadar

bens... conseguiu construir bens pros filhos. Ento, uma mulher de fibra que serve de

exemplo para muitas outras mulheres que ficam se lamentando s vezes por nada.

Ns vivemos em uma sociedade em que o fato de ser mulher j algo muito pesado, onde a

mulher no pode isso, no pode aquilo. Mulher chamada de vrias determinaes

pejorativas em determinado momento... ento isso incomoda. Porque mesmo ns estando

em uma sociedade onde se tem maior abertura para as mulheres, onde as mulheres esto

atuando em vrios segmentos, ainda existe esse rano que vrias pessoas ainda carregam

consigo... essa ideia que foi colocada alguns anos atrs que mulher no podia fazer quase

nada. Isso incomoda bastante, atrapalha bastante, mas no me impede de seguir adiante.

Bem pelo contrrio. Me d mais vontade de mostrar que por ser mulher eu posso fazer a

mesma coisa, com a mesma capacidade, com a mesma desenvoltura, ou talvez at mais.

No quero ser radical e dizer que a mulher melhor. No. A mulher pode e deve fazer tudo

aquilo que ela quiser fazer, ela no pode se colocar abaixo em uma situao. Ento, dentro

da nossa sociedade ainda tem muito para ser vencido. Eu creio que eu venci bastante essa

funo de ser mulher em uma sociedade machista e isso a algo que d fora. Para mim,

Aqualtune, isso me d fora. Eu vou adiante. Isso uma histria pessoal minha. Em

relao a ser negra, no tive grandes dificuldades. Creio eu, outras mulheres negras

teriam ou tenham. Mas eu no tive grandes dificuldades por ser negra. Isso eu no tive,

dizer que eu no venci, que no fiz isso ou aquilo porque era negra. Muito pelo contrrio.

Eu fiz, fao e vou continuar fazendo. Independentemente de ser mulher, negra, pobre ou

qualquer tipo de identificao. Isso no impeditivo para algum crescer e evoluir ao

longo da vida. Ser mulher e ser mulher negra no contraria muito a minha forma de viver.

Eu vivo, vivo muito bem, independentemente de ser negra, loira, ou magra, gorda, alta,

baixa. Ento, a questo que deve ser trabalhada a questo da negritude, da identidade da

mulher negra, para valorizar. Mas a mim a questo de ser negra no me bateu, no me

entristeceu e nem foi impeditivo para chegar onde eu cheguei. [...]

Dentre as trs discentes, Aqualtune talvez seja, ao menos a interpretao que tenho das

narrativas sugere, a que mais esteve imersa, durante toda sua vida, em espaos de sociabilidade

negra, tais como os clubes sociais negros, os nichos dentro da militncia poltica ou do movimento

social. Ao mesmo tempo, interessante notar como, em sua narrativa, ela foi a nica dentre as

sujeitas que negou a relao direta entre sua corporalidade generificada e racializada e as

dificuldades encontradas durante sua vida. Acredito que esta posio denuncie no a desvinculao

entre gnero/sexismo e raa/racismo, mas sim possa sinalizar que, para ela, ser mulher negra no

tenha se configurado enquanto uma questo porque seus referenciais eram negros quando se referia

aos possveis entraves ao seu avano por ser mulher negra. Ou seja, quando ela nos sublinha o

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sexismo em primeiro lugar, no estaria essa sujeita denunciando as interaes sexistas dentro do

prprio movimento negro ou espaos de sociabilidade negra em que esteve inserida? No seriam

ento os homens negros, nessas relaes de poder e opresso, seus principais interlocutores?

Acredito que as falas de Aqualtune apontem para a complexidade das redes de significados

que vamos construindo e que nos interpelam. Em geral, nossa percepo sobre nossas vidas regida

por uma viso de ambiguidades, dicotomias, elementos que no se comunicam, mas se opem.

um aspecto da colonialidade. Sendo assim, quase automaticamente, aplicamos esta lgica de

oposio e complementariedade anlise de nossa conjuntura social. Neste sentido, quando nos

debruamos sobre as relaes estruturais de opresso de gnero, classe e raa, novamente aquelas

estruturas de opressor/a-oprimido/a teimam em vir tona. Com a fala de Aqualtune, entendo que

ela esteja sublinhando a incompletude de um olhar que apenas considere sua conformao enquanto

corpo generificado e racializado em oposio a esse outro, branco. Por outro lado, leva-me a

questionar, junto a outras feministas, o lugar de outro do outro, de subalternidade que se busca

relegar s mulheres negras, dentro da populao negra. Ou seja, denuncia que, em uma sociedade

racializada, generificada e atravessada pelas relaes de classe, pertencer a esses grupos

subalternizados no nos priva da reproduo e retroalimentao desta estrutura.

Concluses

As narrativas das trs sujeitas nos sublinham que cada uma tem se movimentado entre as

interseccionalidades projetadas sobre seus corpos de formas diversas. Entretanto, seus diferentes

modos de estar sendo mulher negra parecem atravessados de um interesse de incluso dentro de

valores de cidadania e democracia mediados pela valorizao daquilo que elas entendem como

cultura africana e ao poder aquisitivo. Ainda que polmico, o estatuto de opressor e oprimido parece

encarnar e se estabilizar nas marcas raciais, no entendimento dessas professoras. Entretanto, essas

caractersticas trazem mais que fentipos. Elas evidenciam o mapa do poder econmico.

Com suas narrativas percebo que o fentipo europeu branco sinnimo de proprietrio dos

meios de produo e consumidor das condies estabelecidas cidadania, ao passo que o fentipo

negro traduzido como o oprimido, a fora de trabalho e o sujeito a conquistar a cidadania negada

pela sua condio econmica. Em outras palavras, as posies de negra e mulher negra so

atravessadas pela dicotomia direta ao sujeito/a branco/a, proprietrio e judaico-cristo. Ainda que o

fato de serem mulheres lhes posicionem diferentemente quando comparadas aos homens na

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estrutura objetiva do racismo no mundo capitalista, essa marca, em geral, se dissolve em sua

militncia antirracista. A luta se estabelece no fora, com aquele que o adversrio direto: as

posies do/a branco/a europeu/ia. Com isso, as redes de opresso contra as negras constitudas nas

relaes entre mulheres e homens negros so relegadas em funo do racismo que, mesmo vivido

diferentemente, so reivindicados como iguais, como aparenta ser o caso das falas de Tereza e

Lusa.

Por esta razo, confidencio minhas dvidas sobre o que a subalternidade pode ter imposto

enquanto limite para a matriz desestabilizadora do contar de si. Minha compreenso aproxima-se

fortemente quela provocao trazida por Jurema Werneck (2013) sobre invisibilidade enquanto

produo ativa da no existncia. Entretanto, parece-me que os limites a que me refiro aqui tm

uma relao mais estreita com o que a subalternidade outorga em forma de invisibilizao de/sobre

ns mesmas. Ou seja, quando narramo-nos, esses limites nos acompanham, tornando este espao de

falar de si um lugar, tambm, da rara possibilidade de experimentao de si, j que para responder

pergunta como chego a ser aquilo que sou, seria preciso considerar O que sou, afinal?.

O contar de si exige que nos movimentemos a partir destas projees sobre nossos corpos,

generificados e racializados, mesmo naqueles espaos que compreendemos e criamos como

eu/ns/dentro. O movimento de ratificao ou refutao dessas projees parece-me atravessado

pela subalternidade que suportamos carregar sobre nossos corpos. Contudo, acredito que essa

escrita, com todas as suas limitaes, se apresente para o grupo de sujeitas como um exerccio de

debater-se contra a subalternidade, ousar tocar em seus limites, ou mesmo subvert-los.

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Intercrossing narratives of black teachers in the far south: (im)possible (re)inventions

Abstract: this work presents the investigative paths covered by autobiographical narratives of three

black female teachers on Rio Grande city, Rio Grande do Sul. The datas production was inspired

by the methodology of biographical project ateliers and occurred through collective and individual

meetings. The autobiographical narratives were problematized from an intersectional bias called by

the theoretical-political perspectives of Decolonial and Black Feminist Studies. The approximations

with the teachers' statements made it possible to understand the various crossings and imbrications

between the issues of race / racism, gender / sexism and class / classism in order to perceive these

elements not as solid, atomic or immutable structures, but as an amalgam Is interpreted /

interpellated and interprets / challenges teachers in their daily lives. The tactics created by each one

and the investment on them in the construction of their autobiographical narratives were peculiar,

outlined by their unique experiences, emphasizing that also the performativities of black women,

within this microcosm, are not atomic, unison or uniforms categories. Beside, in the face of the

cultural and economic objectivities of racism, the specificities of sexism, which also reiterate their

subalternities are diluted.

Keywords: Feminisms. Autobiographical narrative. Decoloniality.