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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
A DIVISO SEXUAL DO TRABALHO NO CAPITALISMO GLOBALIZADO:
REFLEXES SOBRE AS RELAES DE GNERO NO PROGRAMA DE ENSINO
INTEGRAL EM SO PAULO/SP
Caroline Gorski Marques Arajo1
Resumo: O mundo do trabalho se encontra em processo de transformao diante das novas formas
de acumulao de capital, no capitalismo contemporneo globalizado. Precisamos considerar neste
contexto a diviso sexual do trabalho e as transformaes no trabalho e emprego das mulheres, pois
como um dos efeitos deste processo de transformaes vivenciamos o aumento do emprego e
trabalho remunerado das mulheres, que impactam de forma enftica nas mudanas do mercado e
nas relaes de trabalho. Com a ampliao do nmero de postos de trabalho, temos uma maior
flexibilizao e vulnerabilidade das condies de trabalho para as mulheres. Os conceitos de
flexibilidade, precariedade e desigualdade permanecem no cerne do debate sobre trabalho e relaes
de gnero. Uma vez que, mesmo diante da maior participao das mulheres no mercado de trabalho
e da sua maior escolarizao nas ltimas dcadas, temos em contrapartida a diviso sexual do
trabalho e as recorrentes assimetrias de gnero que intensificam as relaes de opresso e
explorao. No bojo dessas transformaes proponho uma reflexo sobre o Programa de Ensino
IntegralEM, na cidade de So Paulo e seus impactos na vida laboral de docentes e gestores, que
me levam a indagar em que medida o programa contribui para a manuteno da diviso sexual do
trabalho e das assimetrias de gnero na escola? J que a escola tem incorporado o iderio
neoliberal, contribuindo para o processo de flexibilizao das relaes de trabalho.
Palavras-chave: Diviso sexual do trabalho. Relaes de gnero. Flexibilidade. Trabalho docente.
Introduo
Neste artigo abordo a contextualizao macrossocial das transformaes econmicas,
polticas e sociais (Castel, 1998; Belluzzo, 1999; Comparato, 2013) que vivenciamos com as
reformas neoliberais implementadas a partir dos anos de1970 e seus desdobramentos que
culminaram com a mundializao do capital2 (Chesnais, 2001). Transformaes estas que
impulsionaram os processos de reestruturao produtiva3, de flexibilizao das relaes de trabalho
no Brasil (Leite, 2009; Arajo, 2012; Druck, 2013) e possibilitam que as analisemos atravs da
1 Mestranda do Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas/SP/Brasil, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). 2 A homogeneizao, da qual a mundializao do capital portadora no plano de certos objetos de consumo e de modos de dominao ideolgicos por meio das tecnologias e da mdia, permite a completa heterogeneidade e a desigualdade das economias
(Chesnais, 2001, p.13). 3 Segundo Mello e Silva (2005): A reestruturao produtiva em geral entendida por uma gama ampla de fenmenos que, na verdade, no se referem apenas execuo do trabalho direto, mas que est relacionada tambm com outros aspectos, tais como: a
modalidade de relacionamento entre as firmas (cliente fornecedor); a organizao logstica e econmica da prpria empresa
(desverticalizao, supresso e fuso de linhas, desaparecimento de funes produtivas), e o impacto da introduo de inovaes
tecnolgicas no processo produtivo (o papel das inovaes radicais por oposio s inovaes incrementais) e suas consequncias em
termos de racionalizao do trabalho. (p. 141).
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diviso sexual do trabalho (Hirata, 2001, 2002 e 2007; Hirata e Kergoat, 2007; Arajo, 2012)
determinante para a compreenso da diviso social do trabalho na atualidade. Estas transformaes
incidem diretamente no espao microssocial da escola pblica atravs dos novos projetos
educacionais, como o Programa de Ensino Integral (PEI) para o Ensino Mdio, ressignificando o
espao escolar e as relaes de trabalho. Para tanto, a pergunta basilar deste artigo indagar se o
PEI tem aspectos que podem contribuir para a manuteno da diviso sexual do trabalho e das
assimetrias de gnero nas relaes de trabalho do espao escolar.
As novas configuraes do trabalho no capitalismo contemporneo globalizado
Uma das possibilidades de compreender o processo de transformao no mundo do trabalho
atravs dos ciclos de expanso do capitalismo. Nota-se que as crises de forma geral so
fundamentais para nos defrontarmos com as novas possibilidades de (re)configurao do sistema
capitalista, frente as tenses e exigncias dos centros dinmicos de poder. As crises envolvem a
reorganizao da produo, do trabalho e das relaes sociais, tendo em vista que o capitalismo tem
por princpio o interesse material em detrimento ao bem comum e aos preceitos ticos (Comparato,
2013, p.48).
Nos ltimos 40 anos tivemos uma srie de transformaes no cenrio global, tanto em
relao s prticas econmicas, como em relao s ideologias em disputa. Nos anos de 1970
tivemos um esgotamento dos pactos sociais e das polticas de proteo social acordadas no ps-
guerra. A isso se somou crise do petrleo, da reserva de ouro, o avano do desenvolvimento
tecnolgico de outras naes afetando os Estados Unidos e gerando a desvalorizao do dlar. O
mundo estava bipolarizado e em disputa pelos ideais de novos horizontes polticos, entre outros
fatores que favoreceram para a reorganizao mundial do capitalismo. Foi central para esta
reorganizao, na perspectiva econmica, as polticas fiscais implementadas pelos Estados Unidos,
que afetaram diretamente os pases latino-americanos, como o Brasil, em meados dos anos de 1980.
Para Belluzzo (1999), a economia mundial foi profundamente afetada pela flutuao das taxas de
cmbio do dlar levando novas formas de intermediao financeira, atingindo o que o autor
identificou como a segunda etapa da globalizao em que o capitalismo assumiu uma nova
forma de acumulao atravs dos mercados de capitais (Belluzzo, 1999, p.104).
Essas novas formas predatrias de acumulao de capital, impactaram diretamente nas
transformaes do mundo do trabalho e nas sociedades. Deste modo, os centros de poder
econmico mundiais atuaram e atuam de maneira a impor suas exigncias a governos nacionais ou
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Estados-Nao considerados, pela perspectiva econmica, como dependentes e/ou subdesenvolvidos
e, segundo Pochmann (2013), entende-se por subdesenvolvimento:
O processo pelo qual a economia convive com enorme diversidade nos nveis de produtividade
do trabalho. Isso ocasiona a manuteno de grandes segmentos ocupacionais alocados em
atividades arcaicas de mera subsistncia humana, enquanto outra parte menor exerce atividades
laborais com elevada produtividade em segmentos econmicos modernos [...] caracteriza-se
pela estrutura produtiva muito heterognea que resulta da interpenetrao difuso tardia e
desigual da inovao tecnolgica na economia e sociedade. (POCHMANN, 2013, p.13-15).
Algumas consequncias desse novo quadro estrutural para os pases dependentes e/ou
subdesenvolvidos foram: o cerceamento e perda de direitos sociais; as privatizaes dos servios de
massa como a educao, a sade, o transporte, as telecomunicaes; a falta de incentivos s
empresas nacionais de modo a lev-las a falncia e/ou serem compradas a baixo custo pelas
corporaes transnacionais e o enfraquecimento das organizaes de trabalhadores.
Cabe salientar que em cada pas a aplicao deste novo quadro estrutural ocorreu de
maneiras distintas. No caso do Brasil, estas novas formas de trabalho e a ideologia neoliberal
imposta pelos acordos econmicos internacionais conviveram duramente com um cenrio de
reconstituio da democracia e dos preceitos de cidadania expressos no processo da criao e
implementao da Constituio Federal de 1988. Assim, o que destaco, que os processos
histricos e sociais dos Estados-Nao so importantes tambm para compreender as
transformaes no mundo do trabalho, visto que no Brasil, ocorreram diversos focos de resistncia a
essas imposies internacionais, como o caso do surgimento dos novos movimentos sociais4, que
foram fundamentais para a contestao e as reflexes sobre estas novas formas exploratrias do
trabalho e da vida social cotidiana. Junto aos movimentos sociais insurgentes, podemos destacar
ainda os movimentos feministas que contriburam para pensarmos a estrutura social e suas
desigualdades, a insero distinta de mulheres e homens no mercado de trabalho e a contestao
sobre as formas diferenciadas de explorao e opresso dos sexos sociais.
Assim, as novas configuraes do capitalismo contemporneo e suas imposies para o
mundo do trabalho brasileiro, segundo Leite (2009), podem ser melhor compreendidas atravs do
conceito de precariedade, em que identificamos um mercado instvel, com falta e/ou insegurana
da proteo social do trabalhador e com alta vulnerabilidade econmica e social. Logo, um trabalho
precrio implica em contratos flexibilizados, baixos salrios e baixa proteo social. E somados aos
movimentos de resistncia s transformaes, faz-se necessrio considerar esses processos sob o
4 Sobre este debate, ver mais em: SADER, Eder. Quando Novos personagens entram em cena: experincias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande So Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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prisma da diviso sexual do trabalho, para melhor aclarar os distintos impactos destas mudanas
nas relaes de gnero.
Diviso Sexual do Trabalho e as assimetrias de gnero
Helena Hirata (2001), em Globalizao e diviso sexual do trabalho, ressalta que devemos
considerar como consequncia do capitalismo globalizado, a diviso sexual do trabalho e as
transformaes no trabalho e emprego das mulheres. Pois, com os efeitos da globalizao e a
mundializao do capital vivenciamos o aumento do emprego e do trabalho remunerado das
mulheres, que impactaram de forma enftica nas transformaes do mercado e das relaes de
trabalho. Acompanhado da ampliao do nmero de postos de trabalho, temos paralelamente uma
maior flexibilizao e vulnerabilidade das condies de trabalho para as mulheres (Hirata, 2001,
p.144), traduzindo-se, portanto, numa transformao paradoxal do trabalho (Hirata, 2001, p.145)
ou ainda no paradoxo das relaes sociais de sexo, visto que a diviso sexual permanece, mesmo
com as mudanas na participao das mulheres no mercado de trabalho, ou seja, tudo muda, mas
tudo permanece igual (Kergoat, 2010, p.94).
A diviso sexual do trabalho enquanto conceito sociolgico permite compreender a
passagem do primado econmico e das relaes de explorao para a afirmativa de uma ligao
indissocivel entre opresso sexual (e de classe) e explorao econmica (e de sexo) (Hirata, 2002,
p.277), que resulta na reconceitualizao do trabalho, que passa a ter novas dimenses de anlise.
Logo, a diviso sexual do trabalho passa a ser entendida como uma forma de diviso social do
trabalho decorrente das relaes sociais de sexo em que estas so: relaes desiguais,
hierarquizadas, assimtricas ou antagnicas de explorao e opresso entre duas categorias de sexo
construdas socialmente (Hirata, 2002, p.276).
Em A classe operria tem dois sexos, Hirata e Kergoat (1994), ressaltam a importncia da
compreenso das relaes sociais de sexo e sobre o conceito de gnero como fundamentais para
refletirmos sobre a heterogeneidade da constituio das classes sociais e os impactos distintos das
condies do trabalho realizado por mulheres e homens. Em que fundamental enxergarmos os
distintos lugares das mulheres na produo capitalista, pois para as autoras as relaes de classe e
relaes de sexo so de fato coextensivas (isto , elas se superpem em parte) tanto para as
mulheres como para os homens s podem ser analisadas conjuntamente. [...] so, portanto, relaes
estruturantes (Hirata e Kergoat, 1994, p. 93-94), e isso nos possibilita visualizar as assimetrias nas
condies de trabalho entre mulheres e homens. Cabe ressaltar ainda que as autoras, ao se referirem
sobre o processo histrico de elaborao dos conceitos de gnero e da categoria sexo, destacam a
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importncia de questionar as ideias vigentes inclusive no interior do marxismo dos anos de 1970,
pois o que distinguia e ainda permanece distinguindo a insero de mulheres e homens em
determinadas ocupaes no a sua essncia biolgica, mas sim a construo histrica, social e
cultural que impe exploraes e opresses distintas aos sexos sociais.
Hirata e Kergoat (2007), em Flexibilidade, trabalho e gnero, reforam que para
compreendermos melhor esta diviso devemos atentar para dois princpios: o princpio da
separao e o princpio hierrquico, em que o primeiro aponta a existncia de trabalhos de/para
homens e trabalhos de/para mulheres, e o segundo refora que o trabalho de/para homens tem
maior valor em detrimento do trabalho de/para mulheres, contudo reforam a plasticidade do
conceito frente aos avanos/retrocessos de cada sociedade (Hirata e Kergoat, 2007, p.599-560) e
permitindo olharmos mais atentamente para os meandros das relaes de trabalho pelo vis das
relaes de sexo.
Ao abordar o conceito de flexibilidade, Hirata, refora que a diviso sexual do trabalho a
precondio para realizao da flexibilidade do trabalho (Hirata, 2007, p.93), todavia, como
podemos perceber ao observar o volume e o tempo de trabalho exercido pelas mulheres, quando
olhamos para as duas dimenses do trabalho produtivo e reprodutivo que aloca as mulheres,
muitas vezes, no mercado de trabalho de tempo parcial, uma vez que estas j exercem o trabalho
reprodutivo no remunerado. De tal modo, pode-se dizer que a flexibilidade sexuada, em que a
flexibilidade interna a polivalncia e rotatividade funcional, integrao e trabalho em equipe
caberia socialmente mo-de-obra masculina, e a flexibilidade externa empregos precrios,
trabalho de tempo parcial, horrios flexveis e a anualizao do tempo de trabalho estaria
socialmente reservada mo-de-obra feminina (Hirata, 2007, p.104-105). Que corrobora com o que
mencionou Castel (1998), cuja a flexibilidade externa seria determinante em relao a flexibilidade
interna, pois cria um contingente/reserva de trabalhadores/as desempregados/as a espera de um
trabalho, o que d condies ao mercado de impor contratos mais flexveis e temporrios,
intensificando a reorganizao da empresa capitalista, que passa a terceirizar ainda mais os
processos de trabalho. Esta flexibilidade externa fica ainda mais evidente quando se tratam de
mulheres negras super exploradas, visto que o emprego domstico, a prestao de servios pessoais,
o care5, o comrcio informal e o trabalho no remunerado configuram a continuidade das
relaes sociais de raa ainda mais precrias.
5 O care pode ser definido como trabalho domstico e a formao de uma nova classe servil encontra-se no cruzamento das relaes de classe, sexo e raa. (Kergoat, 2010, p.102).
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Os conceitos definidos por Kergoat e Hirata permanecem no cerne do debate sobre trabalho
e relaes de gnero, classe e raa, uma vez que mesmo diante de maior participao das mulheres
no mercado de trabalho e da sua maior escolarizao nas ltimas dcadas, a diviso sexual do
trabalho e as recorrentes assimetrias de gnero, engendram as relaes sociais, e nesta abordagem,
a anlise indissocivel das relaes de classe e de sexo que operam de forma transversal no
conjunto da sociedade (Hirata e Kergoat, 1994, p.96). A exemplo das desigualdades de gnero, que
ainda permanecem, podemos olhar para os tipos de ocupao socialmente tidas como femininas:
magistrio, atividades sociais e de cuidado, enfermagem, assistncia social, secretariado, etc., e
ainda as ocupaes de menor prestgio e com baixa ou nenhuma proteo social, tais como:
emprego domstico, prestao de servios pessoais, comrcio informal e o trabalho no remunerado
(Arajo, 2012, p.137). Somadas ainda a um movimento crescente da migrao forosa de mulheres
de empresas formais para atividades informais, como forma de atender ao processo de
descentralizao da produo, decorrente da intensificao da terceirizao alargando ainda mais as
assimetrias de gnero no mundo do trabalho (Arajo, 2012, p.139).
A premissa de que a classe operria tem dois sexos, nos possibilita olhar para o trabalho
docente e compreender como esta categoria est composta. Souza (2007), ao analisar o mercado de
trabalho no campo do ensino, sinaliza uma srie de medidas que restringiram o emprego no setor
pblico como: a Lei de Diretrizes e Base da Educao de 1996; o Programa Nacional de
Desestatizao do governo Collor entre 1991 e 1999; a Emenda Constitucional n 19/1999 que
dispe sobre a administrao pblica; a reformulao da Classificao Brasileira de Ocupaes
(CBO) em 2002 e os Planos de Demisso Voluntria (PDV), que reorganizaram a rede pblica de
educao bsica, reconfigurando o mercado de trabalho para os professores da rede pblica. Tendo
em vista que mesmo se tratando majoritariamente de emprego formal, o que se observa segundo a
autora, o processo de flexibilizao das formas de contratao (Souza, 2007, p.52). A dimenso de
gnero aparece como uma perspectiva importante para anlise do trabalho e emprego de
professores, visto que as mulheres tm tido grande participao neste mercado e mesmo assim
identificam-se relaes distintas no mercado de trabalho entre mulheres e homens, conforme
sinalizado por Hirata e Kergoat com o paradoxo das relaes sociais de sexo e tambm apontado
por Souza (2007).
Segundo o censo de 2016, em um universo de 2,1 milhes de professores ativos na funo
da Educao Bsica no Brasil, as mulheres correspondem a 80,08% e os homens a 19,92% (Fonte:
MEC/INEP/DEED). Dado este que salienta a importncia de compreendermos o conjunto de
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contradies que se expressam para as trabalhadoras da educao. Uma vez que os dados de 2016
reforam o que Souza (2007) j observava com os dados de 2004, em que as mulheres j
representavam 78,2% do total de professores ativos, indicando um processo de feminizao6 da
profisso e a consequente desvalorizao, tanto do prestgio profissional, quanto da remunerao,
que nos permite tambm pensar a problemtica da diviso sexual do trabalho.
Essas reflexes auxiliam na tentativa de compreender se os recentes programas
educacionais, em especfico o Programa de Ensino Integral (PEI) tm elementos que contribuem
para a manuteno da diviso sexual do trabalho e das assimetrias de gnero no espao escolar.
O programa de Ensino Integral7: a educao em disputa
A compreenso do que se entende por educao e o seu papel na sociedade brasileira ao
longo da metade do sculo XX at os dias atuais, tem se desdobrado na tentativa de acompanhar as
constantes mudanas econmicas, polticas e sociais em curso no pas e no mundo. Os projetos
educacionais esto em permanente disputa de interesses entre o estado, o mercado e a sociedade
civil. Para Saviani (1994) a educao, a partir dos anos de 1960, passa a ser entendida como
fundamental para o desenvolvimento econmico, j que a educao, atravs da instituio escolar,
tem sua funo voltada ao mercado na preparao de jovens para o trabalho (Saviani, 1994, p.151).
Frente a este paradigma entre mercado e educao, o que vemos hoje uma escola multifuncional,
com contedos especializados que dialogam com as necessidades de um Estado gestor dos negcios
da burguesia, que busca trabalhadores modernos e flexveis para novos contratos de trabalho a curto
prazo (Druck, 2013, p.374-375).
No bojo destas transformaes temos o insurgir do Programa de Ensino Integral (PEI), que
teve incio em 2012, como parte do Programa Educao Compromisso de So Paulo. O PEI foi
criado com base no modelo de Escolas de Ensino Mdio em Tempo Integral de Pernambuco,
concebido pelo Instituto de Corresponsabilidade pela Educao8, e implantado nas escolas estaduais
da rede pernambucana desde 2004, sendo posteriormente expandido para outros estados.
6 Entende-se por feminizao, a exacerbao dos atributos tidos como femininos e construdos socialmente. Neste caso, o trabalho
das mulheres como professoras estaria associado ao cuidado e a maternidade, logo a funes reprodutivas e produtivas, contribuindo
para a desvalorizao destas profissionais. 7 Esse Programa foi iniciado em 2012, no Estado de So Paulo, em 16 Escolas de Ensino Mdio, e a partir de 2013 expandido para
29 escolas de Ensino Mdio e 2 escolas de Ensino Fundamental e Mdio. Em 2015 o programa foi ampliado para os Anos Iniciais do
Ensino Fundamental. Atualmente est em 544 escolas da rede bsica de ensino paulista. 8 O Instituto de Corresponsabilidade pela Educao (ICE) uma entidade privada, que trabalha pela promoo da melhoria da qualidade da educao pblica brasileira. Ver mais em: http://www.icebrasil.org.br/wordpress/
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De acordo com as diretrizes do PEI9, que hoje se encontra na segunda fase de expanso, a
meta alcanar 1000 escolas at 2018 de ensino fundamental e ensino mdio no estado. Pautado no
iderio de uma educao universal e de qualidade, o PEI defende mudanas tanto na abordagem
pedaggica e na organizao dos contedos, quanto na ampliao do tempo de permanncia dos
alunos na escola e na dedicao integral de docentes no processo de ensino-aprendizagem. Mas, o
que presenciei em uma das escolas de ensino integral que estive, foi a sobrecarga de tarefas de
alunos e docentes, a falta de recursos materiais para as atividades pedaggicas; a ausncia de
formao para os docentes cumprirem as novas atribuies; alimentao de baixa qualidade para os
jovens que ali permanecem 9 horas, alm de um espao que aparentava refletir uma tenso
constante entre os docentes e a gesto escolar, possivelmente gerada pelas cobranas frente as metas
a serem alcanadas no PEI. Com as metas, a inteno melhorar os ndices e os sistemas de
avaliaes como o SARESP (Sistema de Avaliao de Rendimento Escolar do Estado de So
Paulo)10, que utilizado para o clculo do IDESP (ndice de Desenvolvimento da Educao do
Estado de So Paulo)11, sendo este um dos principais indicadores da qualidade do ensino paulista.
De acordo com as diretrizes do PEI para os docentes12 e gestores do programa, se
estabeleceu um Regime de Dedicao Plena e Integral, que se caracteriza pela atuao numa nica
escola com prestao de 40 (quarenta) horas semanais de trabalho, em perodo integral, com carga
horria multidisciplinar (do docente) ou de gesto especializada (do diretor, do vice-diretor de
escola e do professor coordenador). Alm das horas de atividades em sala de aula, todas as horas do
trabalho pedaggico (coletivo e livre) de todos devem ser exercidas na unidade escolar.
Encontramos ainda, no modelo de gesto do PEI a criao de uma nova funo que
incorpora o docente a gesto escolar como professor coordenador por rea de conhecimento.
Todas as disciplinas curriculares previstas na LDB esto dispostas em trs grandes reas de
conhecimento, que compreendem: Linguagens e Cdigos, Cincias Humanas e Matemtica e
Cincias da Natureza. Para estes professores, o regime de dedicao exclusiva cumprido de forma
diferenciada, com dedicao docncia de 20 horas semanais e as 20 horas restantes so destinadas
orientao, realizar reunies semanais e garantir o cumprimento das atribuies dos demais
professores da respectiva rea que coordena. Cabe destacar que o incentivo do Estado para adeso 9 Disponvel em: http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/342.pdf 10 Sobre ver: . 11 O IDESP foi criado em 2007 e estabelece metas que as escolas devem alcanar ano a ano. Ver mais em: . 12 A esse profissional vedado o desempenho de qualquer outra atividade remunerada durante o horrio de funcionamento a escola
(artigo 1 da LC n 1.164/2012). Desta forma, permite-se o acmulo legal, desde que seja no perodo noturno e com carga horria
limitada a 25 horas respeitando o limite legal de 65 horas semanais prevista no Plano de Carreira do Magistrio (LC n 1.207,
05/07/2013).
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dos profissionais ao PEI a Gratificao de Dedicao Plena e Integral (GDPI), que corresponde a
75% do respectivo salrio-base. Esta gratificao dever ser computada nos clculos do dcimo
terceiro salrio, do acrscimo de um tero de frias, incidindo os descontos previdencirios e de
assistncia mdica. Porm, o salrio lquido diferente para cada professor, j que a composio
salarial vai depender do seu tipo de vnculo ingresso por concurso pblico ou contratao
temporria, alm de outras variveis como tempo de servio e o acmulo de outras
complementaes de carreira, o que gera certo confronto entre os que acabaram de chegar e os que
ali esto a mais tempo, pois ambos devem cumprir a mesma funo, mas com ganhos salariais
distintos.
Diante desta breve apresentao do PEI e das reflexes anteriores, podemos observar que as
diretrizes do programa apontam para uma possvel intensificao do trabalho docente, diretamente
relacionadas s mximas neoliberais do capitalismo contemporneo, que nos permite aproxim-lo
com o modelo de sociedade da gesto ou de ideologia gerencialista identificado por Gaulejac. Para
o autor, esta ideologia surge na esfera privada da empresa, mas se espraia e contamina os setores
pblicos e a sociedade como um todo (Gaulejac, 2007, p.28). Esta organizao do poder, para o
autor, est sob uma aparncia objetiva, operatria e pragmtica. A gesto gerencialista uma
ideologia que traduz s atividades humanas em indicadores de desempenhos, esses desempenhos
em custos ou em benefcios (Gaulejac, 2007, p.36). O humano se torna um capital um recurso a
servio da empresa. Esta racionalizao fortalece a lgica financeira da adequao s exigncias do
mercado, com uma maior flexibilidade, adaptabilidade; simultaneidade e rentabilidade das relaes
de produo (Gaulejac, 2007, p.41).
Identificamos esta ideologia gerencialista no PEI quando vemos que diversos componentes
do programa visam atingir metas de desempenho, com a intensificao da jornada de trabalho e as
presses para que os docentes tenham polivalncia funcional, ou seja, podemos identificar no
espao escolar onde o PEI est vigente a incorporao de novas formas de controle e vigilncia,
tanto da dinmica escolar como do trabalho docente. Somadas a isso, observa-se uma deteriorao
real das condies de trabalho, em que o docente ao incorporar a lgica deste modelo, se torna um
vigilante de si mesmo e de seus colegas, atravs de um sistema de avaliaes peridicas
denominada de Avaliao 360 em que os docentes avaliam seus colegas e so avaliados pelos
alunos e pela gesto da escola, que pode alterar as notas da avaliao de um professor atravs da
calibragem, afim de atender as necessidades da gesto, o que contribui para o aprofundamento da
intensificao e auto intensificao do trabalho (Hirata, 2001, p. 146).
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Esta intensificao e auto intensificao do trabalho refora a importncia da resistncia e
da luta13 dos docentes da rede bsica para que seus direitos sejam garantidos, frente a um programa,
que enquanto uma poltica educacional, em implementao, pode ser entendida como um modelo
top-down de cima para baixo (Passone, E., 2013, p.599-600), ou seja, trata-se de uma poltica que
no considera os efeitos na sua efetivao, dada sua verticalidade da ao unilateral das autoridades
polticas no estado de So Paulo. Produzindo um tipo de poltica simblica cuja a implementao
no pode ser plenamente garantida frente a ausncia de recursos e investimentos, o que temos a
publicizao de uma poltica que no possui a clareza entre a formulao e a implementao
(Passone, 2013, p.602-603) e acaba por deixar deriva os trabalhadores que a aderem.
Assim, diante do atual quadro social brasileiro de incertezas e reformas, o PEI encontra-se
no cerne das mudanas educacionais e tambm das novas exigncias para o trabalho docente. Nesse
sentido, podemos observar que o PEI pode aprofundar a precariedade do trabalho docente e tambm
dar continuidade s assimetrias de gnero, pois os professores, enquanto classe e sujeitos de ao,
esto cada vez mais de mos atadas e em luta para resistir essas transformaes voltadas para o
mercado e no para a formao humana de seus alunos.
Referncias
ARAJO, A. M. C. Informalidade e Relaes de Gnero. In: Isabel P. H. Georges e Marcia de
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Fapesp, 2012, pp. 135-172.
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The sexual division of labor in globalized capitalism: reflections on gender relations in the
Integral Education Program in So Paulo/SP
Abstract: The world of labor is in the process of transformation given the new forms of capital
accumulation in globalized capitalism. We need to consider in this context the sexual division of
labor and the transformations in women's work and employment, because as an effect of globalized
capitalism we experience the increase in the employment and paid work of women, which influence
emphatically on market transformations and labor relations. With the increase in the number of
jobs, we have a greater flexibility and vulnerability of working conditions for women. The concepts
of flexibility, precariousness and inequality remain at the heart of the debate on labor and gender
relations. Since even, in view of the greater participation of women in the labor market and their
greater schooling in recent decades, we have in contrast the sexual division of labor and the
recurrent gender asymmetries that intensify the relations of oppression and exploitation. In the
context of these transformations, I propose a reflection on the Integral Education Program (High
School), in the city of So Paulo and its impacts on the working life of teachers and managers,
which lead me to ask how the program contributes to the maintenance of the sexual division of
labor and gender asymmetries in school? Since the school has incorporated the capitalist ideology,
contributing to the process of flexibility of labor relations.
Keywords: Sexual division of labor. Gender relations. Flexibility. Teacher's work.
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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X