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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
COM-PARTILHA-ANDO AGÊNCIAS COM E DE ALGUNS JOVENS
KAIOWÁ DE PANAMBIZINHO/MS
Simone Becker1
Esmael Alves de Oliveira2
Resumo: O presente ensaio intenta disparar reflexões sobre o modo como discursos e práticas de
assujeitamentos são constituídos, reiterados e transgredidos em torno de e por grupos minoritários, no caso
específico por agentes Kaiowá de Panambi/Mato Grosso do Sul. Ao enunciarmos de que se trata de um
“ensaio”, o que se busca é com-partilhar no sentido mais foucaultiano atribuído ao “ensaiar-se”, algumas das
impressões mais plurais e críticas possíveis dos resultados até então “pinçados” dos projetos de pesquisa e
extensão desenvolvidos junto aos Kaiowá da TI de Panambizinho/MS. Mais especificamente, nossos
dados/enunciados emergem de nossas imersões junto à escola indígena – Pa´i Chiquito, Dourados/MS e de
nossas múltiplas interlocuções lá estabelecidas. Para além do flanar de maneira mais rizomática possível pelo
espaço, buscamos há alguns meses interagir especialmente com os jovens (em detrimento das categorias
“criança e/ou adolescente”) Kaiowá de duas "turmas regulares" – 8º e 9º anos. A escolha pelas interlocuções
com os jovens se deu estrategicamente, face ao fato de sobre eles repousarem o peso, por vezes,
estigmatizante das faltas, dos excessos, isto é, da transgressão ao estabelecido, porque outsiders. Aliás, se
educar vem de educere e esse se liga ao “conduzir para fora”, Foucault já nos inspira há tempos a perceber o
quanto ela, a Escola, caminha de mãos dadas com as grades prisionais de outras instituições, incluindo a
Prisão. Ao invés de colocar para fora, ela aprisiona os sentidos que podem e devem ser plurais no processo
educacional que alia sabor a saber – sapere e sapore. Com os indígenas Kaiowá percepções outras na relação
com os Karaí (os não indígenas) nos permitem perceber sentidos mais plurais quanto à maneira como eles
produzem o espaço da escola e vice-versa, ressignificando, e por vezes, subvertendo a lógica normalizadora
que a constitui.
Palavras-chaves: educação – jovens – Kaiowá.
As inquietações aqui apresentadas foram suscitadas a partir do diálogo dos a(u)tores3 com os
jovens indígenas Kaiowá, da Terra Indígena (TI) de Panambizinho - localizada a
aproximadamente 20km de Dourados-MS, no distrito de Panambi. Esse é um dos poucos lugares
legitimados pelo papel da lei brasileira como sendo dos indígenas no estado de Mato Grosso do Sul
(ANDRADE e BECKER, 2013), em meio a um contexto onde prevalece a soja e o capital do
agronegócio (BECKER, OLIVEIRA, MARTINS, 2016; BECKER, OLIVEIRA, CAMPOS, 2016).
Dualidade – capital e agronegócio - que faz sentido para os sentidos ríspidos do des-respeito,
em relação a sujeitos que não vivem suas experimentações do que é o viver sob os mesmos
reg®amentos. Eis as ameaças de entrar no tato do contato com outros possíveis, e onde as reações
violentas são (re)produzidas com rispidez. Aliás, por mais que os verbos sejam em si mesmos
agentes e então sujeitos/performativos (inspirados tanto em Zélia Duncan quanto em Judith Butler),
1 Docente associada da UFGD (FADIR), bolsista de produtividade Pq junto ao CNPq, mestre, doutora e pós-doutora em
antropologia social. Caso xs leitores desejem trocar comigo, basta escrever para: [email protected]. 2 Docente adjunto da UFGD (FCH), mestre e doutor em antropologia social. Caso xs leitores desejem trocar comigo,
basta escrever para: [email protected]. 3 Inspiradxs pela leitura da obra “Palavras para nascer” (SZEJER, 1999).
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trazendo em si fluxos de contradições. Eis o verbo-ação-movimento “reg®ar”. Quais são os
múltiplos sentidos que tal palavra oferta aos nossos sentidos?
Ao anunciarmos que regaremos algo, a vida que aguamos florescendo à nossa mente
fantasiosa são as das flores e afins, com o “r” cravado no meio de regar, tão arranhado nos
exercícios de experimentação das falações de letras, sílabas e palavras, sinalizando para a existência
de regras misturadas aos regares, nem sempre áridas e/ou impostas. O desafio parece-nos morar na
capacidade de potencializarmos as interações entre os agentes da gente, em detrimento da
reprodução de representações. Como bem coloca Viveiros de Castro, em Metafísicas canibais
(2015, p.111-112):
o conhecer não é mais um modo de representar o desconhecido, mas
de interagir com ele, isto é, um modo de criar antes que um modo de contemplar ,
de refletir ou de comunicar (D&G, 1991). A tarefa do conhecimento deixa de ser
a de unificar o diverso sob a representação, passando a ser a de “multiplicar o
número de agências que povoam o mundo (Latour 1996a). Os harmônicos
deleuzianos são audíveis. Uma nova imagem do pensamento. Nomadologia.
Multiculturalismo.
Nossas interações em du(et)o pelo enlace entre nós com os jovens de Panambizinho foram
disparadas, com o projeto de extensão coordenado por uma das pessoas a(u)toras –
MAPEAMENTO DE DEMANDAS DE MULHERES E VIOLÊNCIAS DE GÊNERO EM ÁREAS
INDÍGENAS NA REGIÃO DA GRANDE DOURADOS, MS. Os contrapelos em forma de
chamamentos por parte da comunidade de Panambizinho para que lá estejamos-sendo nos (en)levou
para o espaço da escola, Pa’i Chiquito.
Desde o primeiro dia de trabalho de campo conjunto (com-junto), uma das inquietações
suscitada e com-partilhada por Esmael foi o quanto a estrutura da escola, apesar de se localizar
dentro de uma comunidade indígena e ter como perspectiva pedagógica uma prática “intercultural”,
pouco se coadunava com o contexto de onde estava situada e também em relação ao público
atendido: crianças e jovens indígenas. Aos seus olhos saltaram tanto a estrutura da escola com
mensagens fixadas em algumas salas, como a própria organização dessas e das formas de relações
estabelecidas entre professores e alunos/as. Nesse quadro-cena, como não ser afetado pelo
enozamento produzido por meio de um modelo normativo de educação que engessa a potência da
vida que flui no ser-aí dos jovens Kaiowá? De um lado, há livros que (re)produzem o pensamento
eurocêntrico, com imagens, sentidos e lógicas que pouco ou nada dizem sobre o jeito de ser
indígena Guarani e Kaiowá, de outro lado, jovens que pulsam para a vida e que por meio das
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constantes brincadeiras feitas em língua guarani4, ou daquelas em que em disparada para fora das
cercanias da escola, apontam para a incomensurabilidade de mundos, de lógicas, de construção de
si.
Imagem-em-ação 1
Livros vs brincadeiras, carteiras vs corridas, calendário escolar vs temporalidade Kaiowá, ou
seja, imagens que imprimem também os agenciamentos desses a-gentes5 sobre o famigerado
modelo prisional da escola não indígena, considerando as regências do maestro Michel Foucault.
Orquestrações tecidas especialmente em Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1983), Em Defesa da
Sociedade (FOUCAULT, 2010) e em a Microfísica do Poder (FOUCAULT, 2001). A partir das três
obras, observamos o modo como o Estado (re)produz dispositivos que atravessam a vida no que há
de mais biológico na e da sua construção para potencializar separações assimétricas de corpos
merecedores de dignidade. As vidas dos indígenas tendem a ser mais precarizadas em termos, por
exemplo, de acesso a direitos e a espaços por parte do Estado (BUTLER, 2015) do que outras6.
Como nos co-move Butler em “quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”, em um dos
4 Deste modo resistindo à compreensão disciplinar dos professores não-indígenas. 5 Usamos a escansão da palavra agente/a-gente para sublinhar a concomitância de multiplicidade de sentidos dessa
combinação. “Gente” referencia pessoas (nos incluindo) que fazem parte de um mesmo grupo relacional, com modos de
ser-estar-fazer similares. Ao mesmo tempo, “agente” é o sujeito-verbo que dá vida à ação e à reiteração, que no coletivo
da gente capilariza rizomaticamente os movimentos de propagação dos ditos e dos feitos. Algo que tende a ofertar ao
termo sujeito e assujeitamento maior pluralização dos sentidos para além das relações de dominação, onde a re-elação
se faz a partir do reencontro com o sublime do agente no e como coletivo (ver VIVEIROS DE CASTRO, 2016 para os
sentidos potencializados nos sentidos dos direitos coletivos envolvendo indígenas). 6 Se todas as vidas vivas padecem de precariedade porque morrerão, há aquelas que são mais desimportantes do que
outras para o Estado. Assim, serão sobre essas que recairão engrenagens que as farão ainda mais precárias até que no
limite a morte social coincida com a física. Algo que Butler articulará com sua discussão de abjeção e imunidade
(BUTLER, 2003; 2005).
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itens nomeado como “apreender a vida”, a despensadora das ontologias principiológicas, para re-
pensarmo-nos na interação com esses jovens indígenas:
Se queremos ampliar as reivindicações sociais e políticas sobre os direitos à
proteção e o exercício do direito à sobrevivência e à prosperidade, temos antes que
nos apoiar em uma nova ontologia corporal que implique repensar a precariedade,
a vulnerabilidade, a dor, a interdependência, a exposição, a subsistência corporal, o
desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a linguagem e o pertencimento social
(BUTLER, 2015, p.15).
No abre alas, a imagem-movimento-da-pintura na parede da escola Pa´i Chiquito nos remete
a como os saberes dos meses que encadeiam e enlaçam a passagem do ano-calendário-judaico-
cristão para os Kaiowá se de-cantam, em meio aos sabores-sentidos das cores, engendrando novas
tessituras significativas que subvertem a lógica eurocêntrica. Isso porque, apontam para a quebra da
hegemonia do discurso logocêntrico homogeneizador e/ou historicamente constituído. Ali os meses
não apenas passam a ser enunciados a partir da língua nativa guarani, mas principalmente evocam
ciclos da vida que permitem uma compreensão de sentidos outros que não aqueles da temporalidade
ocidental (FABIAN, 2013). Tempos e cores que se replicam nas frutas ainda por eles comidas-
colhidas e no círculo virtuoso nietzschiano de como dentro da prisão-escola eles se reinventam e a
reinventam. Acompanhemos alguns desses sentidos por eles atribuídos aos seus sentidos
propulsores de ações e agenciamentos no espaço em tela.
Com relação às mensagens afixadas nas paredes havia muitas com conteúdos enunciando
interdições: “não se pode usar o computador da secretaria para trabalhos pessoais”, “não se pode
colocar os capacetes de motocicletas em cima dos assentos existentes na secretaria”, “não se pode
isso”, “não se pode aquilo”, muitos “não pode” com tons de reforço da negatividade da ação,
próprios de exercícios discursivos que marcam a produção de exclusão, rechaço e marginalização.
Muitas palavras interditas, mal-ditas. Se levarmos em conta como afirma Myriam Szejer
(1999) que o sujeito da psicanálise é o sujeito da linguagem, fica7 a pergunta: mas quem tem o
direito de ser sujeito? Se a linguagem nos torna sujeitos, não existem processos político-sociais, e
não apenas psíquicos, que negam o acesso à linguagem? Num contexto do “não pode”, “não faça”,
“não é permitido”, de uma permanente interdição, negação do outro, não há espaço para a
existência, ou pelo menos não a existência autônoma. Eis o regime de verdade ou a vontade de
7 De tudo como escreve de-clamando Carlos Drummond de Andrade, em Resíduo, “fica sempre um pouco de tudo”.
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verdade que produz quiçá um su-jeito sem palavras (...). Haveria um sujeito sem palavras, já que
nos instituímos e somos instituídos pelas palavras8?
Cena-evento I
Durante o trabalho de campo, acima relatado ou atado em relatos, ocorreram duas situações
que consideramos paradigmáticas: uma delas referente a uma fala feita pelas crianças indígenas
durante uma atividade de desenho que realizávamos e outra diretamente relacionada ao
comportamento delas durante o intervalo para o lanche – sob os disparos indeléveis da sineta do
“recreio” (re-creio onde eles não só creem como operam uma forma lúdica de circular correndo e
muito pelo espaço de fora da escola). Logo que começamos o trabalho, em um clima bem
descontraído, as crianças e jovens estavam bem à vontade com nossa presença.
Imagem-em-ação 2
As crianças brincavam o tempo inteiro e, nesse aspecto, é possível observar a jocosidade
como um elemento constantemente presente no processo de interação. (Diríamos na (re)produção
da pessoa Kaiowá). Tal comportamento não está livre de tensionamentos, principalmente com
relação aos professores não indígenas. Há certa exigência de que as crianças e jovens mantenham
8 Vem à mente a instigante fala de Joziléia Jagso Inácio Jacodsen em duas mesas-redondas na semana de antropologia
da UFPR, ocorrida em setembro de 2016. Ao tocar na questão da permanência e ingresso dos indígenas nas pós-
graduações stricto sensu Brasil, ainda não afora, ela mencionou o quanto o aparelho do Estado brasileiro é perverso. Isto
porque exigiu do índio ao longo do processo de integração – ou genocídio escancarado como projeto político –
apre(e)nder e manejar o idioma português e não falando sua língua nativa. A antropologia explorará o quanto falar de
etnicidade é falar de linguagem (CUNHA, 2009), e então das fronteiras sempre fluidas entre o “eu” e o “outro” que nas
sociedades indígenas em regra se dá condicionado à relação. Mas mais do que isto, o quanto quem detém o poder pode
re-produzir vida mais precária (BUTLER, 2003) ainda a partir da negação de uso da linguagem falada, como no caso
dos indígenas. Afinal como nos acalenta Walter Benjamin, não há produção do humano se não há (re)produção de
memória (1987). Em última obra traduzida para o português, Butler enfim trará o diálogo com Benjamin e Primo Levi
(BUTLER, 2017).
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uma seriedade. Como esquecer o formalismo cartesiano que se apresenta em nossas escolas, (e
quiçá a indígena não esteja ilesa)?
Certamente uma transposição de um modelo que se não impede de todo a fala, a engessa, a
normatiza e, então a medicaliza à medida que a normaliza – evocamos Georges Canguilhem (2009),
um dos mestres de Foucault e outros dos rebeldes franceses, que em O Normal e o Patológico
sinaliza para o normal como aquele capaz de produzir norma, algo que num dado contexto o
patológico não o é (ainda). Em relação a esse ponto, alguns comentários chamaram muito a nossa
atenção: quando os indígenas eram interpelados pela professora a se “com-portarem” e prestarem
atenção no que estávamos falando, eles, em tom de “brincadeira” começaram a acusar uns aos
outros de não ter tomado o medicamento. Isso não passou despercebido por nós. Naquele mesmo
momento tentamos instigá-los a falar mais e, no entanto, não entraram em mais detalhes. A
mensagem que, em meio às associações livres, ficou foi a de que para a subversão há (sempre) a
medicação.
Na semana seguinte durante outra atividade, voltaram a mencionar a tal falta de “tomar o
comprimido” para aqueles que estavam na agitação. A agitação era dar vida à sala de aula tão
prisional em suas carteiras que lá não são do modelo militar da continência. Se não, vejamos, dois
modelos bem distintos em proposta que recheiam salas escolares e universitárias. Em comum,
ambas tornam des-confortável a presença e a permanência no contexto que produz com texto entre
os diálogos permeados por silenciamentos entre as gentes-agentes que lá disparam agenciamentos.
Imagem-em-ação 3
Fizemos uma nova tentativa para estimulá-los a falar mais sobre isso. Afinal o que era o
comprimido? Quem precisava tomar o comprimido? Por que tinham que tomar? Quem orientava tal
procedimento? A resposta foi imediata: era preciso tomar o medicamento para se controlar. Há
muitos relatos de medicalização dos indígenas na cidade de Dourados - embora até o momento não
haja nenhuma pesquisa a esse respeito de maneira mais detalhada e contextualizada possível. Em
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todos eles, a noção de que os indígenas precisam ser contidos, estão desequilibrados, doentes, etc.
Em todas essas representações uma noção de patologização do sujeito que está à margem, com
vidas precarizadas pelo Estado e que trans-bordam as contenções das estruturas estatais. Cabe
compartilhar que há algumas pesquisas que suscitam justamente o crescente ato de medicalização
dos detentos do sistema carcerária brasileiro. O movimento talvez seja potencializar os múltiplos
sentidos dos agitos, dos gritos, do convite à decantação da expressão LOU-CURA-ME,
dessencializando a pulsão de morte contida nas seringas que contêm os contidos remédios.
Cena-evento II
A segunda situação que muito nos chamou a atenção foi no momento do recreio (intervalo
para o lanche das crianças). Ao toque da sineta, as crianças e jovens saíram em disparada para o
pátio. Ali se mantiveram apenas até o momento em que comiam o lanche que era distribuído para
eles. Comendo muito apressadamente, o ato seguinte foi o de sair dos limites do espaço da escola,
na literalidade da fronteira que se resume à separação de um lado do outro, (im)posta pela
cerca/muro. A criançada parecia outra fora dos “muros” - contenções da escola. Nada se comparava
ao comportamento reprimido visto em sala de aula. Um imenso contraste entre uma vida que pulsa
(fora) e uma “morte” que tenta se estabelecer nos corpos docilizados pelo sistema de ensino
(dentro).
Quando as palavras “sabor e saber” deixam-se rimar. Certamente não podemos ignorar as
resistências (re-existências) que se operam no interior do sistema (as brincadeiras jocosas, a fala em
guarani, a corrida para fora do espaço escolar, o adormecer em meio às falações disciplinadoras nas
aulas), mas é visível que é fora da estrutura institucional que a “fala” emerge transbordante. As
palavras se tornam bem-ditas, o corpo se rizomatiza e o amor fati se estabelece. O amor fati à la
Nietzsche acaba por ser a capacidade de nós, animais humanos, nos deixarmos impactar (pacto
interno) pelos sentidos dos acontecimentos cotidianos que nos afetam nos sentires.
Palavras que também se costuram tecendo tessituras imagéticas. Se o simbólico nos institui
na condição humana de nossa animalidade, em especial, para interagirmos nos enlaçando ao outro
que de nós diverge, por mais projeções que produzamos; esse simbólico não se faz apenas pela
falação atada aos signos grafados ou gravados das letras – do alfabeto. Faz-se por silêncios (“repare
bem no que não digo” leminskiando), por imagens, por gestos, enfim, por colocar nas relações
estabelecidas a expressão de nossas posições de sujeitos no mundo. E então, des-pensemos para
(re)pensarmos o processo de educação, porque algumas de nossas tantas trocas-prosas tão prenhes
de significados se deram quando em roda estávamos em meio às contações de Hestórias. Numa
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delas, um dos jovens nos alertou que as estórias sobre o lobisomen – (identificado como o cunhado-
estrangeiro-aliado9), eram lendas e não histórias. Afinal, era assim que a professora tinha
“ensinado”. Num contexto que e onde se tende a cons(ti)t®uir corpos docilizados, a passagem da
negação da palavra à “fabulação” do imaginário e práticas sociais remete(-nos) à produção e
naturalização de um sujeito assujeitado. Em cena, na escola estão formas sutis de violência que
negam a alteridade ao Outro.
Educar advém do latim educare, por sua vez ligado a educere, verbo composto do prefixo ex
(fora) + ducere (conduzir, levar), significando 'conduzir para fora', ou seja, preparar o indivíduo10
para o mundo. Um indivíduo relacional, produzido na unicidade da troca entre dois diferentes,
correspondendo à fórmula n-1 deleuze-guattariana. O que seria essa fórmula?
O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade
não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma
habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir.
É preciso fazer o múltiplo não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas,
ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das
dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do
múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser
constituída: escrever a n-1 (FOUCAULT, 2013, s/p).
A proposta da multiplicidade faz enlace como se rizoma11 fosse com as noções de Nietzsche
ligadas ao colocar em perspectiva, pluralizando os sentidos experimentados na interação dos
contatos com os agentes e os seus agenciamentos espraiados no papel (adentro e afora). Nesse
sentido, como se Gregório de Matos fossem, os jovens da Pa´i Chiquito subvertem o modelo
domesticador de corpos e dilacerador de sabores nos saberes que é o panóptico escolar. Subversão
que se dá com eles não escondendo quando dormem, dis-persam, riem, sorriem, falam em guarani...
9 Claude Lévi-Strauss considerado por muitos como o antropólogo do século, a partir da teoria da aliança, inspirado no
dom maussiano, sugere que as sociedades são instituídas pela troca de mulheres, não significada como objeto-coisa,
mas agente que é tanto agenciada quanto se agencia no flanar por entre diferentes famílias, tendo o casamento selado
uma outra família-instituição em comum. Ao invés de guerrear, estabelece-se a paz por intermédio do casamento. 10 Aqui propositadamente utilizamos o indivíduo nos sentidos inspirados em O Gênero da Dádiva de Marilyn Strathern
(2006), para quem na melanésia a pessoa dá sentido à vivência a partir das relações – dos divíduos. 11 Como raiz de bulbos que não detém apenas uma entrada e uma saída, posto que se impõem como agenciamentos que
se espraiem solo adentro-afora-transbordando sua própria estrutura-forma.
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Imagem-em-ação 4
Descolada da estrutura física, prédio da Escola, há um espaço outro ao seu lado que imprime
à roda, sob as coberturas de palhas, uma dinâmica outra da tentativa de resgatar o sabor do saber.
Isto porque mescla tipos de mesas-cadeiras menos ofensivos e impostores de imposições próprias
do modelo militar. No círculo a palavra tende a circular e enfim, possibilidades de expressões e
interações menos corriqueiras na cadência da constância da disciplina ditando os exames escolares.
Imagem-em-ação 5
Rememoremos num movimento de amenizar a pobreza de nossos replicares de
experimentações da vida vivida vívida, que a palavra saber rima etimologicamente com o sabor.
Dito de maneira menos hermética e mais poética, ambas in-corporam origens de sentidos similares.
Segundo o "Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa" de José Pedro Machado, a
palavra saber vem do latim 'sapere', que significa «ter gosto; exalar um cheiro, um odor; perceber
pelo sentido do gosto; fig., ter inteligência, juízo; conhecer alguma coisa, conhecer, compreender,
saber". A palavra sabor, segundo o mesmo dicionário, deriva do latim 'sapore-', que quer dizer
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"gosto, o sabor característico de uma coisa, em sentidos próprios e figurado; no pl., coisas de bom
gosto; odor, perfume; gosto, acção de provar; (...)."
Grand finale(!?)
Esse cenário acima narrado, nos ajuda a pensar em que medida há um contexto de
medicalização do corpo, do sujeito cada vez mais acentuado pelo Estado estruturalmente Racista.
Medicalização essa entendida no sentido amplo. Pensada a partir da perspectiva foucaultiana;
poderíamos até dizer que há uma tentativa de docilização dos corpos constituída a partir de um
aparato biopolítico. Saber-poder, que opera endógena e exogenamente, ou seja, no interior dos
corpos e consciências, por meio da medicalização em si, mas também nos comportamentos e
subjetividades, através de um aparato institucionalizante (escola, hospital/posto de saúde, etc).
Para Eduardo Sá (2008) a escola não tem sido uma amiga para as crianças. Além disso,
segundo ele, na sociedade contemporânea o trabalho tem assumido o protagonismo e os, vínculos se
precarizado cada vez mais. Não poderíamos dizer, a partir disso, que numa sociedade
marcadamente virtualizada, individualista e medicalizante como a atual, há uma intensa criação e
proliferação de subjetividades assujeitadas? Mecanismos mais sutis e eficazes, sobretudo por seu
caráter de dissimulação ao apontar para práticas ditas “inclusivas”, mas que no fim (do afinal de
contas) geram exclusão. Se em algum momento de nossa história a criança já foi um adulto em
miniatura (ARIÈS, 1981), hoje ela é um objeto manipulável aos desejos de adultos, desejos que as
tornam praticamente um robô-autômato. E isso vem atrelado não apenas à criação de novos
comportamentos, desejos, expectativas, enfim, subjetividades, mas também da produção de novas
patologias: Transtorno do Déficit de Atenção (TDA), Transtorno do déficit de Atenção com
Hiperatividade (TDAH), Anorexia, Bulimia, Stress, dentre outras. Mas afinal, são “crianças
doentes” ou adultos adoecedores? Qual tem sido o papel da escola nesse processo? Há um
protagonismo da autonomia ou da medicalização-docilização do sujeito?
Enfim, esses e outros di-lemas nos apontam para a necessidade de uma reflexão sobre o
lugar da infância – sem infantes no sentido literal, e da juventude no mundo contemporâneo no
campo das ciências humanas e da saúde. Esses também nos interpelam a pensarmos nos desafios de
um fazer antro-poético (e não lógico) diante dessas novas subjetividades que tem engendrado
formas perversas de assujeitamentos desses sujeitos. Quais estratégias de resistência (re)produzimos
para o enfrentamento dos dispositivos que buscam negar a fala, o direito ao tornar-se sujeito?
Afinal, são sujeitos adoecidos ou práticas-relações adoecedoras? Como não pensar que tanto a
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taxonomia dos DSMs12 quanto a lógica disciplinadora da escola (calendários, normas, regras,
punições-advertências, re-provações) implicam em dispositivos-engrenagens de produção de corpo-
sujeitos assujeitados que apenas reitera exclusões, precarizações, marginalizações? Nesse cenário,
os indígenas têm muito a nos ensinar sobre o bem viver, sobre o Teko Porã. Mas estamos dispostos
a dar-lhes a fala? Ou mesmo a escutá-lxs? Como diria Spivak (2010), pode o subalterno falar? Eis o
desafio...
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,
1981.
BECKER, Simone; OLIVEIRA, Esmael Alves de; CAMPOS, Marcelo da Silveira. “Onde fala a
bala, cala a fala”. Disponível em: http://brasildebate.com.br/guarani-kaiowa-onde-fala-a-bala-cala-
a-fala/. Acesso em:jul2016.
BECKER, Simone; OLIVEIRA, Esmael Alves de; MARTINS, Cátia Paranhos. “Onde fala a bala,
cala a fala”: resistências às políticas da bancada da bala, do Boi e da Bíblia em MS. Disponível em:
http://encenasaudemental.net/post-destaque/onde-fala-a-bala-cala-a-fala-resistencias-as-politicas-
da-bancada-da-bala-do-boi-e-da-biblia-em-ms/. Acesso em:jul2016.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas, volume 1. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 1ª Edição. Rio de
Janeiro: Civilização, 2003.
BUTLER, Judith. Humain, Inhumain. Le travail critique des normes. Entretiens. Paris: Éditions
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BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”. RJ: Civilização Brasileira,
2015.
BUTLER, Judith. Caminhos divergentes. Judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo: Boitempo,
2017.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Universitária,
2009.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac& Naify, 2009.
FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis:
Vozes, 2013.
12 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (não por acaso já em sua quinta versão – DSM V).
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
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<https://www.academia.edu/25782893/Sobre_a_no%C3%A7%C3%A3o_de_etnoc%C3%ADdio_c
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Sharing agencies with and of some young Kaiowá of Panambizinho/MS
Abstract: The present essay tries to trigger reflections on the way in which discourses and practices of
settlements are constituted, reiterated and transgressed around and by minority groups, in the specific case of
Kaiowá agents of Panambi / Mato Grosso do Sul. An "essay", which is sought to share in the Foucauldian
way that is possible to attribute to the rehearsing act itself, some of the most pluralistic and critical
impressions of the results "pinched" until now of the research and extension projects developed with Kaiowá
of the Panambizinho IT / MS. More specifically, our data/statements emerge from our immersions into an
indigenous middle school – Pa'i Chiquito, Dourados / MS and from our multiple interlocutions established
there. Besides flanking in the best possible rhizomatic way through space, we have been trying for some
months to interact, especially with young people (to the detriment of the "child and/or adolescent"
categories) Kaiowá of two "regular classes" - 8th and 9th grades. The choice through dialogue with young
people was strategically given, face to the fact that they are subjects that have above them the weight,
sometimes stigmatizing, of the faults, the excesses, in other words, the transgression to the established,
because they are outsiders. In fact, if education comes from educere, that is linked to "driving for", Foucault
has already inspired us for some time to realize how much the school goes hand in hand with like prison
notes from other institutions, including the prison itself. Instead of putting out, it imprisons the senses that
can be provided by a group of flavors - sapere and sapore. With the Kaiowá natives, other perceptions in
relation to the Karaí (non-indigenous) allow us to perceive more plural meanings to the way they produce
the school space and vice versa, resignifying and sometimes subverting the normalizing logic that constitutes
it.
Keywords: Education; Young people; Kaiowá.