24
1 COLEÇÃO VIAGENS NA FICÇÃO Chiado Editora

VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

1

COLEÇÃO

VIAGENS NA FICÇÃO

Chiado Editora

Page 2: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

2

Ana Cláudia Dâmaso

Koldbrann

(Parte I)

Rebeldes

Chiado Editora

Page 3: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

3

À minha Rainha.

Got it?

Page 4: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

4

“É uma doença natural do homem acreditar que possui a verdade”

– Blaise Pascal

Page 5: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

5

PRÓLOGO

Ajeitei a mochila que trazia às costas e saí do elevador para uma sala de pequenas dimensões com pare-

des de pedra, cuja única janela ficava perto da porta. Abri a boca num longo bocejo enquanto me dirigia para a

porta e a abria, levando com a ventania gelada das madrugadas na cara, o que foi suficiente para acordar a parte

em mim que ainda queria estar na cama.

Saí para a escuridão de uma noite sem lua e virei à esquerda, sem necessitar de pedir direcções ao guarda

que vigiava a porta que acabara de utilizar. Apesar de já estar familiarizada com estas ruas, decidi retirar a lanterna

do bolso presa ao cinto das calças e ligá-la, só por prevenção, sem esquecer de apontá-la sempre para o chão.

Passei por mais um guarda que escoltava dois técnicos de rega do primeiro bosque para o segundo e virei

à direita, mesmo depois do curral de ovelhas. Avistei o Sargento Nansen mais à frente, perto do pombal, com a

lanterna presa entre o ombro e o maxilar, apontada para um pombo que tinha entre mãos.

- Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era.

O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar da sua perspicácia e autoridade serem muito respei-

tadas, ele não gostava muito das formalidades militares que agora se faziam sentir, graças à sua recente promoção.

Formalidades essas, que ele tentava evitar, sempre que possível.

- Bom dia, Nansen.

Olhei para as mãos de Nansen que seguravam o pombo enquanto tentavam prender uma mensagem à

pata do animal.

- Que horas são, Cláudia? – perguntou-me, sem desviar a atenção do trabalho que estava a fazer.

Olhei para o meu relógio de pulso e apertei o botão que fazia com que os números ficassem visíveis na

escuridão.

- São três e meia. – respondi, largando o botão para que os números deixassem de brilhar. - Em que posso

ser útil?

- Hum… Vai para a cocheira e ajuda o Bacco a levar os nossos cavalos para a garagem. Ele foi para lá há

poucos minutos. A Nicoleta já deve estar a acabar de conferir a mercadoria, por isso ela depois ajuda-vos a empare-

lhar os cavalos. Eu vou ter convosco assim que acabar isto.

- Sim, senhor! – disse, afastando-me dele e continuando a andar em frente, em direcção à cocheira, ou-

vindo um pequeno resmungo vindo do Nansen, por causa de eu ter utilizado a palavra «senhor» para me dirigir a

ele. Eu não fazia de propósito, só que já estava tão habituada a essas formalidades que, nem mesmo o facto de o

Nansen ser meu superior há tão pouco tempo, fazia com que eu largasse o hábito de as cumprir perante ele. Mas

andava a tentar!

Quando comecei a ouvir o resfolegar dos cavalos, rodei o foco da lanterna para baixo, ficando em «L»,

para que pudesse colocá-la na alça do casaco, mesmo acima da etiqueta cosida com o meu nome, tendo a luz a

apontar para a minha frente. Respirei fundo e entrei pelas portas abertas da cocheira, dirigindo-me ao local onde se

encontravam os quatro cavalos da nossa brigada. Ao fundo, consegui distinguir a silhueta baixa mas forte de Bacco

a andar na minha direcção, com dois cavalos a seu lado, acompanhando a sua passada. Cerrei bem os dentes e

continuei a andar, enquanto via os seus olhos castanhos escuros e rasgados fixados em mim.

- Cabo Almeida. – disse ele, fazendo-me sentir vazia por dentro. – Vieste ajudar?

Engoli em seco e respondi:

- Bom dia, Cabo Mao. Sim, vim.

Page 6: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

6

- Óptimo. Assim não preciso de vir cá outra vez e vou já emparelhando aqui o Coronel à parte de trás da

carroça. – sorriu enquanto dava uma palmadinhas no pescoço do cavalo preto. - Sabes onde estão os outros dois

cavalos?

- Sim, sei.

- Óptimo! Até já, então.

Afastei-me deles e dirigi-me para a baia da Conquista, uma égua cinzenta com a crina da mesma cor.

Entrei dentro da baia, escovei-a e coloquei-lhe as rédeas. Depois levei-a até à baia do extrovertido El Diablo, pren-

dendo as suas rédeas à pega da porta da baia do lado. Afaguei o pelo dela e o El Diablo resfolegou.

- Então, El Diablo? – perguntei, entrando dentro da baia dele e começando a escovar o seu pelo cor de

chocolate. Suspirei. – Também não gostas quando te ignoram, não é?

Tratei dele e depois encaminhei ambos para a garagem, onde encontrei Nicoleta e Bacco. Bacco via se o

Coronel estava bem emparelhado à parte de trás da carroça enquanto Nicoleta começava a tratar já do jovem Hero,

na parte da frente. Cumprimentei a Nicoleta e comecei a preparar os dois cavalos que trouxe para a viagem.

- Alguém sabe do Patrick? – perguntou a Nicoleta, olhando para o portão da garagem, procurando um

feixe de luz ao longe. – Espero que ele não se atrase outra vez!

- Ele estava a arrumar a mala quando eu saí. – respondeu Bacco, chegando-se perto do Hero para lhe

ajustar as rédeas.

- A arrumar a mala?! – disse ela num resmungo. – Só cá estivemos uma noite! O que é que ele desarru-

mou para além da escova de dentes?

- Oh, sabes como é o Patrick! - Bacco tentou acalmá-la, e ela bufou mostrando o seu desagrado.

- Pois, pois sei! Esse é o problema! Se ele não chega aqui a tempo, nem sei o que lhe faço!

- Não fazes nada. – aquela voz vinda de repente fez-nos olhar para a porta em estado de alerta, como

tínhamos sido ensinados. O Bacco até tinha sido capaz de desligar a luz da sua lanterna recarregável e colocar a mão

na bainha da espada, de tão rápidos que eram os seus reflexos. O corpo a quem pertencia a voz levou a mão ao

peito e acendeu a sua lanterna. Era Nansen. Ele, às vezes, fazia estes pequenos testes, só para pôr à prova as nossas

reacções. Bacco e eu relaxámos e continuámos o trabalho mas Nicoleta deu dois passos em frente. – Tens de te

lembrar quem é que manda aqui, Nita! Belos reflexos, Bacco!

Bacco aceitou o elogio com um abanar de cabeça. Já Nicoleta, cruzou os braços à frente do peito, passou o

peso para uma só perna e meteu-se com o seu superior:

- Podes até mandar, mas eu sou a mais velha desta brigada, Sargento Nansen.

- Podes até ser mais velha, Cabo Lobo, mas eu é que levo estas divisas aos ombros. – Nansen também

cruzou os braços e encolheu os ombros para as divisas brilharem à luz da lanterna de Nicoleta.

Ela resmungou baixinho e ele conteve um sorriso.

- Chega de namoricos e vamos trabalhar, okay? Podes vir comigo à frente? – perguntou ele para ela, dan-

do-lhe uma palmadinha no braço e dirigindo-se para a Conquista.

- Ai, Al! – lamuriou Nicoleta, descruzando os braços e seguindo atrás dele, também na minha direcção, pa-

ra montar o El Diablo. – Qual é a vantagem de ser tua namorada se não puder provocar-te um bocadinho?

Nansen sorriu mas não lhe respondeu. Eles eram namorados há muito pouco tempo, daquele tipo de ca-

sais que todos nós sabíamos que iam acabar juntos, menos eles. Anteriormente, andavam sempre a discutir, mas

agora aproveitavam todos os momentos mais descontraídos para se provocarem e namoriscarem um pouco. Se

fosse pela Nicoleta, eles até andavam por aí abraçados e aos beijos, mesmo até durante as missões, mas Nansen

Page 7: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

7

não gostava de misturar as coisas, e com razão! Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque. Até porque o nosso

trabalho não permitia constantes distracções.

- Que horas são, Cláudia? – perguntou-me, de novo, o Nansen, enquanto arrumava alguns utensílios de

primeira necessidade nos alforges instalados na égua.

- Faltam cinco para as quatro. – respondi, dando uma olhadela rápida ao relógio com a ajuda da lanterna

que tinha ao peito, enquanto tirava uma barra de cereais da mala, abrindo-a num instante. Coloquei mais duas num

dos bolsos do casaco para comer mais tarde.

- Raios! Onde anda o Cabo Dias?! – resmungou a Nicoleta, calçando umas luvas de cabedal preto. – Mais

um minuto e vou-me embora!

- Não, não vais. – ordenou Nansen. – Acalma-te, se faz favor!

Mesmo assim, Nansen bufou e tirou o gravador do bolso do casaco.

- Dia catorze de Abril de 2082, fala o Sargento Alrid Nansen da Brigada de Missões número três… - repor-

tou ele para o gravador. – Faltam cinco minutos para a hora da nossa partida e o Cabo Patrick Dias ainda não apare-

ceu. Como não compareceu no local e horas combinadas, pela segunda vez, irei penalizá-lo com trabalhos extra

assim que chegarmos à nossa fortaleza. – continuou pensativo mesmo depois de soltar o botão de gravação e

quando estava quase a arrumar o gravador hesita, suspira e volta a carregar no gravador para falar. – Partiremos de

Mérida às quatro horas da manhã… Com ou sem ele.

Bacco olhou para o Nansen de olhos arregalados. Nansen baixou os olhos e arrumou o gravador.

- É isso mesmo! Ele tem de aprender que não se pode atrasar desta maneira! – exclama Nicoleta para o

Bacco. – Não é assim que os guerreiros escalabitanos se comportam! Nem sei como ele sobreviveu à Escola Militar!!

Bacco arregalou ainda mais os olhos, desta vez para Nicoleta. Depois olhou para Nansen:

- Não lhe vais dizer nada?!

Nansen olhou para ambos enquanto respirava fundo:

- Embora não goste da forma como a Nita o diz, tenho de admitir que, desta vez, ela tem razão. Um guer-

reiro tem de saber cumprir as suas funções e deveres.

Enquanto eles falavam, ouvi uns passos apressados vindos do exterior, ainda muito distantes. Espreitei pe-

lo portão da garagem e consegui ver uma luz ao fundo.

- Acho que ele vem aí. – disse para o resto da brigada.

Nansen e Bacco suspiraram, relaxando um pouco, mas Nicoleta resmungou baixinho:

- Também já não era sem tempo…

Patrick chegou à garagem a correr. Tinha a cara muito vermelha, com pequenas gotas de suor na testa e o

cabelo louro todo desalinhado. Já tinha calçado uma luva de cabedal na mão esquerda e a outra luva pendia no

bolso detrás das calças, quase a cair. Patrick parou em frente do Nansen e fez-lhe a continência:

- Cabo Patrick Dias ao seu serviço, senhor! – parou um segundo para respirar. – Desculpe o atraso, senhor!

- Deixa-te disso, Patrick! – exclamou ele. Ele parecia calmo, mas nos seus olhos conseguia-se ver que esta-

va desapontado com ele. – Ainda bem que chegaste a tempo.

Nicoleta bufou irritada, e abanou a cabeça, fazendo as suas madeixas escuras e curtas descaírem até

meio da sua testa cor de chocolate. Nansen lançou-lhe um olhar reprovador mas ela olhou-o nos olhos em tom de

desafio.

Nicoleta nunca tinha ultrapassado o facto de não ter sido ela a nomeada para Sargento de Brigada de Mis-

são, mas quando nomearam Nansen para esse posto, ela ficou possessa! Ela achava que ele era demasiado bom e

Page 8: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

8

que não era rígido o suficiente. A meu ver, Nansen sempre me pareceu um bom líder. Era cauteloso e perspicaz,

enquanto que Nicoleta era impulsiva e um pouco rabugenta demais.

Nansen suspirou, quebrou o contacto visual e olhou para Patrick:

- Diz-me lá, porque é que chegaste atrasado desta vez?

- Bom… Eu… - disse, ainda ofegante. – Desculpa, Nansen… Não vai… voltar a acontecer.

Nansen olhou-o de alto a baixo, avaliando o seu estado. Nansen e Patrick eram amigos e ele sabia que Pa-

trick andava com alguns problemas pessoais, mas Patrick também sabia que nada deveria interferir com o seu

trabalho de guerreiro.

- Espero bem que não! Mais uns minutos e partíamos sem ti. – Nansen agarrou o ombro do seu amigo e

acrescentou. – Concentra-te! Calça a outra luva e vamos ao trabalho!

Nicoleta fez um trejeito com a boca mostrando o seu desagrado:

- Se fosse eu, isto não tinha ficado assim!

Nansen fingiu que não ouviu e virou-lhes costas, ficando de frente para a Conquista e para a sua mochila.

Tirou o relógio da mochila e colocou-o no pulso, aproveitando para ver as horas. Pôs as mãos na sela, um pé na

estribo e montou na égua.

- Alright guys1, vamos a isso! Bacco! – Bacco levantou a cabeça e olhou para ele, atento e pronto para

qualquer tarefa. – Tu vais a guiar a carroça. Cláudia! – eu, que olhava para Bacco, virei a cabeça de repente, para

Nansen e repreendi-me por estar desatenta. – Tu vais atrás, dentro da carroça a vigiar a carga. Patrick! – Patrick,

engoliu o último pedaço da sua barra de cereais à pressa e ouviu atentamente. – Vais fazer companhia à Cláudia,

dentro da carroça. Nita, já sabes que vens à frente comigo. – eles fizeram uma troca de olhares. Tudo indicava que

Nicoleta teria mais uma reprimenda. – Mais uma coisa! Não quero nenhuma lanterna acesa! Eu sei que não temos

lua hoje, mas azar! Não vamos querer atrair as atenções daqueles kolds idiotas. Ouvi dizer que a fortaleza de Zara-

goza e Aljafería têm armazenados alguns óculos antigos de ver à noite e que andam a testar uns novos que eles

criaram mas não sei se é verdade. Enquanto isso, teremos de andar às cegas, a menos que “tropecemos” num

desses raros óculos antigos… Bacco, mantém a espada junto a ti! Cláudia, o mesmo. Patrick, o teu trabalho é estares

atento ao que se passa no exterior. Mantém o teu arco e aljava contigo, porque o som dos cavalos poderá dificultar-

nos a vida. Se quiserem falar, falem baixo ou não falem de todo! Os horários são os mesmos que à vinda para cá, o

que quer dizer que iremos continuar a fazer paragens de cinco em cinco horas, com uma hora de descanso pelo

meio. Só vamos dormir perto das sete horas da noite e é claro que vai haver sempre alguém de vigia! Depois esco-

lhemos os turnos… Mas, ah, Patrick, ficas já avisado que és o primeiro a fazer vigia! A alvorada é às três da manhã e

temos uma hora para nos pormos a andar!

Ele parou de falar por uns instantes, olhando para a sua brigada atenta.

- Allons-y, allons-y2! Todos para os seus postos!

Assim o fizemos.

Bacco, Patrick e eu dirigimo-nos para a carroça, enquanto Nicoleta montava El Diablo. Como Bacco ia à

minha frente, pude admirar o seu rabo de cavalo louro que brilhava à luz da minha lanterna.

De repente, ele vira a cabeça e os seus olhos cruzam com os meus, apanhando-me desprevenida.

Olho para o chão, mas oiço uns cascos de cavalo atrás de mim. Olho para trás e vejo a Conquista a caval-

gar com Nansen montado em cima dela, falando com Patrick.

Nem tinha percebido que Patrick ficara para trás!

1 Tradução do inglês: Tudo bem, pessoal 2 Tradução do francês: Vamos, vamos

Page 9: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

9

Queria ficar e saber o que se passava, mas estava em missão e já me tinham dado uma ordem para ir para

o meu posto, por isso, assim o fiz.

Continuei a andar para perto do Coronel, emparelhado na parte de trás da carroça para que fosse trocan-

do de lugar com o Hero, cada vez que parássemos para descansar.

Tirei a mochila das costas e a espada da bainha e coloquei-as dentro da carroça, depois apoiei o pé e agar-

rei-me ao chão da carroça para conseguir dar um impulso e subir lá para cima. Agarrei a mochila e gatinhei para a

esquerda. Sentei-me, encostando as costas a um aro que suportava a lona da carroça e retirei o meu escudo ogival

da parte da frente da mochila, colocando-o no braço esquerdo. Depois agarrei na espada e puxei-a mais para mim,

caso necessitasse dela, desligando a luz da lanterna logo de seguida.

Agora era só esperar.

Senti a carroça a abanar e o peso do corpo musculado de Bacco a subir e a ajeitar-se no banco do cochei-

ro. Graças à luz da lanterna de Nansen e ao pequeno quadrado de papel transparente que havia na parte da frente

da lona, consegui ver Bacco a desfazer o rabo de cavalo, penteando o seu cabelo liso e a voltar a fazê-lo para que

todas as madeixas ficassem bem presas.

Depois, apercebi-me que estava a espiá-lo de novo e baixei o olhar para as caixas de medicamentos e fo-

lhas electrónicas que transportávamos. Tudo material novo. Nem sequer fazia ideia do que eram folhas electróni-

cas. O Nansen só disse que eram um pedaço do passado com uma pitada de futuro, prontas para melhorar a nossa

vida.

Olhei para a crina preta do Coronel, que estava a um metro de mim, enquanto respirava fundo. Decidi

olhar em redor, para os meus outros companheiros.

Nansen já acabara de falar com Patrick e ambos se dirigiam a nós. Patrick desligou a sua luz mal chegou

perto do Coronel e preparou-se para subir. Nicoleta vinha em cima de El Diablo, já com a luz apagada, mesmo atrás

de Nansen.

Patrick subiu para a carroça, fazendo-a abanar mais uma vez, e encostou-se à direita, tirando rapidamente

a aljava da mala e colocando-a às costas. Apanhou o arco do chão da carroça e ajeitou o seu cinto e bainha, onde

tinha alguns punhais. Depois, ele e eu puxámos a tábua de madeira pesada para cima e trancámos as dobradiças

para que, tanto a mercadoria como nós, ficássemos mais seguros dentro da carroça.

A garagem ficou quase silenciosa, só se ouvindo o respirar dos cavalos. Lá fora ouviam-se alguns guardas a

trocar de turnos e o vento a passar nas árvores do primeiro bosque, cujos ramos batiam suavemente nas paredes

da garagem.

- Prontos? – perguntou Nansen.

- Almeida, pronta.

- Dias, pronto.

- Mao, pronto.

- Lobo, mais que pronta!

- Então, vamos! – afirmou Nansen, por último.

Ouviram-se cascos de cavalo e, segundos depois, Patrick e eu sentimos um pequeno solavanco que mar-

cava o início da nossa marcha para casa. Mal saímos da garagem levámos com o ar frio na cara. Não se via quase

nada porque ainda estava muito escuro, por isso, nas próximas horas teríamos de nos guiar pelos outros sentidos, o

que apesar de já estarmos habituados, era basicamente uma porcaria!

Page 10: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

10

O caminho até aos portões da fortaleza eram fáceis, visto que era só seguir em frente, mas a viagem pro-

priamente dita, mal saíssemos da fortaleza de Mérida para o exterior, podia ser mais complicada. Os kolds eram

meio toscos na maior parte do tempo e, bem, horríveis, mas no resto do tempo tinham os sentidos bem apurados.

Senti a carroça a parar outra vez. Por uns segundos não se ouviu nada a não ser o vento a bater na lona.

Depois, começaram as conversas:

- Quién es3? – perguntou uma voz grossa.

- Sergeant Nansen. This is the Scallabis fortress mission squad number three4. O Coronel Gomez autorizou

a nossa saída para hoje.

- Okay, Sargento. Deixe-me só ver os papéis.

Ouvi um fecho a ser aberto e um desdobrar de papéis.

- Aqui tem.

- Gracias. Sólo un momento5. – ouviu-se uns pés a afastarem-se e, passado uns minutos, voltaram. – Des-

culpa a demora! Temos ali uma das nossas brigadas com um cientista e… Bueno6, não interessa! Os seus papéis

estão todos em ordem. – ouviram-se as folhas de papel e o fecho outra vez. – Tenham um bom regresso a casa.

- Obrigado!

Fez-se um pequeno silêncio, seguido de uns passos a afastarem-se da frente da carroça.

- Levanten la puerta7! – ordenou a mesma voz grossa.

Ouviram-se mais passos e depois um roçar de correntes muito suave.

Esperámos uns minutos até a porta subir e, quando o barulho parou, Nansen disse baixinho:

- Vamos, pessoal.

O som dos cascos recomeçou e arrancámos.

– Keep the blood red8! – afirmou a voz grossa, com um sotaque espanhol, muito perto de nós. Já devíamos

estar a passar pela porta.

- Gracias9. I wish you the same10. – respondeu Alrid Nansen.

Agora conseguia ver a porta de madeira grossa elevada em cima de mim e de Patrick, enquanto nos afas-

távamos lentamente dela. Olhei uma última vez para a entrada da fortaleza e vi um vulto no escuro enquanto a

porta começava a descer. Ainda consegui ouvir uns pequenos resmungos vindos desse vulto:

- Estos científicos y sus horários de locos11!

Estávamos já do lado de fora.

Respirei devagar e ajeitei-me no meu lugar, olhando em volta. Olhei para o Coronel e mordi o lábio ten-

tando resistir à minha curiosidade. Olhei de soslaio para Patrick e não aguentei:

- Então, o que é que o Nansen te queria há pouco? – perguntei-lhe, baixinho.

Patrick riu-se baixinho.

- Estava a perguntar-me quanto tempo conseguirias aguentar sem me perguntar!

3 Traduzido do espanhol: Quem é? 4 Traduzido do inglês: Sargento Nansen. Esta é a brigada de missões número três da fortaleza de Scalla-bis 5 Traduzido do espanhol: Obrigado. Só um momento. 6 Traduzido do espanhol: Bom 7 Traduzido do espanhol: Levantem a porta 8 Traduzido do inglês: Mantenham o sangue vermelho 9 Traduzido do espanhol: Obrigado 10 Traduzido do inglês: Desejo-te o mesmo 11 Traduzido do espanhol: Estes cientistas e os seus horários de loucos

Page 11: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

11

Sorri:

- Oh, cala-te! Tu ias contar-me na mesma!

Patrick pousou o arco ao seu lado e encolheu os ombros:

- Estava só a dizer-me que, quando chegássemos a Scallabis, ele teria de reportar os meus atrasos e avi-

sou-me que… - ele desviou o olhar para o vulto do Coronel. - …muito provavelmente, vão-me repreender… ou casti-

gar… - levantou o olhar na minha direcção. – Provavelmente ambos!

Fez-se silêncio e ele suspirou, voltando a olhar para o Coronel.

Patrick e eu éramos os melhores amigos. Conhecíamo-nos há sete anos, desde que entrámos na mesma

turma da escola intermédia. Desde então que somos inseparáveis!

- Porque andas a atrasar-te tanto? Podes ser um bocado distraído mas nunca tinhas chegado atrasado... e

nesta missão isso já aconteceu duas vezes! Os outros já se andam a perguntar… como andam as coisas… entre ti e a

minha irmã?

Ele suspirou outra vez.

- Andamos a tentar passar mais tempo juntos, sem as crianças por perto… - ele continuava a evitar olhar-

me nos olhos. – na semana passada fomos…

- Patrick?! – interrompi-o porque sabia que ele me escondia alguma coisa. – Que se passa? O que é que

não queres contar?

Vi a cabeça dele a virar-se para a escuridão, para lá do Coronel, para a rua. Os únicos sons que se ouviam

eram os sussurros na parte da frente da carroça, talvez de Nansen e Nicoleta, abafados pelos cascos dos cavalos.

- Ando a pensar muito nas crianças… - disse Patrick muito baixinho. – Elas são tão pequenas ainda…

Ouvia-o atentamente, quase petrificada, a olhar para ele.

Finalmente, Patrick olhou para mim. Conseguia ver o brilho nos seus olhos cinzentos.

Estaria a chorar?

- Eu amo-as, Cláudia. – declarou, fazendo uma pausa, logo a seguir. – Às duas. Mas…

Suspirou de novo.

Eu já tinha percebido o que ele me estava a dizer e, sinceramente, não era nada que eu já não soubesse. A

minha irmã, Sofia, já me tinha dito o mesmo. Ao menos, o sentimento era mútuo. Ou a falta dele.

- Já disseste à minha irmã o que me…?

Ele fungou, interrompendo-me:

- Eu e ela… - sentia a sua voz trémula. - N-nós…falámos antes da nossa partida para Mérida.

Não disse nada para que Patrick continuasse a falar. Ele passou a mão pela sua crista preta e continuou:

- Quando chegarmos a Scallabis, vamos explicar o que se passa à Vanessa e à Mariana… - senti-o a arrepi-

ar-se. – Ao início, vai-lhes custar a assimilar a ideia… Mas ainda são muito pequenas… Eu estarei lá para elas, sem-

pre que possa… - suspirou outra vez. – Falar com elas vai ser o mais difícil… Ver a reacção delas… São tão pequenas,

as minhas meninas…!

Anui com a cabeça e deixei-o continuar:

- Depois, eu e a Sofia vamos à Sede, tratar dos papéis do divórcio… e pedirei, também um lugar num dos

beliches da Caserna Militar…

Fez-se silêncio e ele baixou a cabeça para olhar para as suas mãos pousadas sobre o colo.

Continuei a olhar para ele e quis perguntar-lhe como estava, mas a resposta era óbvia, por isso, deixei-o

acalmar-se um pouco. Pus a minha mão direita sobre a bota dele e abanei-a lentamente, fazendo-o olhar para mim

outra vez:

Page 12: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

12

- Ei… Estou aqui sempre que precisares…

Ele esboçou um pequeno sorriso.

- Thank you12…

Tirei a minha mão da sua bota e concentrei-me nos barulhos do exterior. Por uns instantes, não ouvi nada

mais para além dos cascos, mas depois ouvi duas vozes masculinas a falarem baixinho e, sem pensar, olhei para o

pequeno quadrado transparente da parte da frente da lona, tentando ver Bacco. Depois afastei o olhar e suspirei.

Estava demasiado escuro.

- Digo-te o mesmo.

- Hum? – respondi, olhando para Patrick confusa.

- Também estou aqui se precisares.

Olhei para os olhos dele, que eram o único ponto da cara dele que realmente conseguia distinguir.

Fiquei a olhar para ele durante alguns segundos até ele levantar um dos braços e apontar para o lugar on-

de o quadrado transparente estaria se conseguíssemos ver alguma coisa para além da escuridão.

- Vocês andam a evitar-se. Que aconteceu?

- Nada.

- Cláudia…

- Não. Não aconteceu nada. In fact13, ele anda a ignorar-me, para que não possa mesmo acontecer mais

nada! – murmurei, frustrada. – E eu tento ignorá-lo porque ele não merece mais do que isso.

- Porquê? – foi a primeira questão dele, mas depois, soltou uma exclamação. – Espera! Mais nada?! Então

sempre aconteceu alguma coisa…

- Ah, sim, sim! - esclareci, tentando cruzar os braços à frente do peito, mas lembrando-me que tinha o es-

cudo colocado no braço esquerdo. – Beijámo-nos ontem. Várias vezes, até!

- Eia! Então e…?

- Sim, quase que também fizemos isso! – bufei, desconcertada. – Mas depois ele afastou-se e disse que

não conseguia…

Olhei para Patrick, que parecia confuso. Acho que o vi a piscar os olhos duas vezes, muito depressa.

- Hum? – disse ele, passados alguns segundos.

Continuei a olhar para ele, tentando ser forte. Era forte em tudo, menos nisto! Não acredito que era esta a

minha fraqueza: homens! Pff! Que estupidez… Mas a verdade é que estava quase a chorar.

- Ele v-vai casar-se com a Emília Strauss daqui a duas semanas!

- Ah! – exclamou Patrick baixinho. – Eu tinha ouvido esses rumores a correr mas… Eu pensava que ele gos-

tasse mesmo de ti… - ele abanou a cabeça ligeiramente. – Eu sempre pensei que fossem mentira! Quer dizer, sabes

como são as debutantes, não é? Sempre em pulgas para casar!

Calou-se, de repente, pensando no seu próprio casamento. Já nos conhecíamos há um ano, quando apre-

sentei o Patrick à minha irmã, um ano mais velha que nós, que andava no último ano da Escola de Princesas. Ele

tinha ficado apanhadinho por ela e, desde então, não pensava em mais ninguém senão nela, de tal forma que,

sempre que saíamos da Escola Militar, ele acompanhava-me até casa, só para poder ver a minha irmã a chegar da

escola dela. Ela não lhe deu muita atenção durante alguns tempos, mas depois começou a dar e passado um ano

começaram a namorar. Nessa altura, a minha irmã já tinha acabado os seus estudos na Escola de Princesas e, como

era debutante, tinha de ir a todos os bailes debutantes mensais. Apesar de ela ter tentado levá-lo para os bailes

12 Traduzido do inglês: Obrigado 13 Traduzido do inglês: De facto

Page 13: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

13

com ela, ele ainda não tinha idade suficiente, por isso a minha irmã deixou de ir e começaram a ter mais tempo

livre. O Patrick estava felicíssimo. Nos finais desse ano, a minha irmã descobriu que estava grávida dele. Todos

ficámos muito contentes com a notícia. Acho que nunca tinha visto o Patrick tão feliz. Eles começaram logo a tratar

do casamento. Como Patrick ainda tinha dezassete anos e estava no último ano da escola, marcaram casamento

para o início do ano seguinte. Casaram-se e, passados uns meses, nasceu a Vanessa. Entretanto tiveram alguns

desentendimentos feios, que passaram assim que souberam que a minha irmã estava grávida outra vez. A Vanessa

já tinha dois anos quando a sua irmã Mariana nasceu. Mas os problemas conjugais voltaram, meses depois e, apesar

de terem tentado conciliar-se durante cerca de um ano e meio, nunca mais se conseguiram entender.

Patrick fungou e disse, muito lentamente:

- Não precisas de f-fingir… que está tudo bem. – tive a noção de que ele disse isto, não só para que eu pu-

desse descontrair e chorar as lágrimas que tentava reter, mas para também ele chorar as suas.

Pousei, de novo, a minha mão na bota dele e apertei-a.

Deixámos as lágrimas cair em silêncio, enquanto ouvíamos os cascos a baterem no alcatrão rachado e o

vento a bater com cada vez com menos força na lona da carroça.

Passados uns minutos, as minhas lágrimas secaram e funguei. O Patrick continuava a chorar mas, ao sen-

tir-me parar, tentou fazer o mesmo.

Olhei para a escuridão atrás do Coronel.

Devíamos estar em andamento há uns vinte minutos, desde que saímos da fortaleza de Mérida. Daqui a

pouco tempo estaríamos a passar uma rotunda, que seguiríamos em frente, pela Carretera Madrid. Eu e Patrick

mantínhamo-nos em silêncio, a escutar os barulhos da rua. Patrick agarrou no arco e manteve-o no colo.

De repente, um som estridente alcançou-nos com a rapidez de uma flecha e o meu peito foi inundado por

uma dor insuportável, que me fazia querer gritar. O choro da criança continuou por mais alguns segundos, sendo

depois abafado por gritos raivosos de vozes mais graves e pequenos gorgolejos agudos.

- Kolds! – disse Nansen, com uma voz dura. – Parem todos!

A carroça parou violentamente e o Hero resfolegou.

- Nita, Cláudia, vamos! – ordenou Nansen.

Olhei para Patrick, que estava tão aturdido quanto eu. Ele encolheu as pernas para eu poder passar e des-

ci da carroça num ápice, agarrando na minha espada e apertando com força o escudo que tinha no braço esquerdo.

- Mas…

- Não há tempo para discussões, Bacco! Há, pelo menos, uma vida em perigo.

Dirigi-me rapidamente até à frente da carroça, sem olhar para Bacco, tentando fixar o meu olhar em Nan-

sen.

- O som veio dali, Nansen. – esclareci, apontando para um edifício à minha direita, não muito longe de on-

de estávamos.

- Concordo contigo! – olhou-me de alto a baixo, verificando rapidamente que estava pronta e depois fez o

mesmo ao olhar para Nicoleta. – Vamos! Não devemos estar longe… Talvez a dois ou três minutos dali…

Corremos pela avenida e virámos à direita, na Calle del Foro, até chegarmos às ruínas de um edifício com a

forma de um meio círculo, com quase todos os vidros partidos e coberto de bolor. Na parte de cima, conseguia-se

ler “OTE TRYP ME”, mas eu não fazia ideia do que isso significava. Os gritos e gargalhadas dos kolds eram quase

insuportáveis àquela distância, apesar da maior parte deles estar, obviamente, do lado de dentro do edifício. Ou-

vimos a criança a gritar outra vez e arrepiei-me.

Page 14: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

14

Noutras situações, teríamos tentado esconder-nos atrás de algum carro vandalizado, ou qualquer coisa

assim, para pensar numa maneira eficaz e silenciosa de entrar lá dentro, mas hoje não podíamos perder tempo.

Tirei a lanterna do cinto, coloquei-a ao peito e fui à frente, meio agachada. Atrás de mim vinha Nansen,

com um machado numa mão e uma espada na outra. Em último vinha Nicoleta, com uma besta nas mãos e um

sabre ainda preso ao cinto.

- Não acendam já as lanternas! – ordenou Nansen baixinho.

Quando estávamos a poucos metros das escadas do edifício, reparei num Kold sentado, encostado ao va-

rão das escadas, a alucinar, e apertei o cabo da minha espada, pronta para o atacar, mas Nicoleta foi mais rápida e

já havia lançado um flecha contra o peito dele.

Subimos as escadas e, por cima das portas duplas, lia-se: “HOTEL TR M DEA”.

As portas do antigo hotel estavam entreabertas.

Nicoleta segurou a porta e, um a um entrámos lá para dentro.

No chão estavam dois corpos mortos, todos eles precariamente vestidos, com os braços, pernas, peito, e

até mesmo a cara, cheios de pus amarelo e necrose, com os músculos abertos, alguns até ao osso, com a carne

meio desfeita. Os seus cabelos repletos de sujidade, ensopavam o sangue de cor arroxeada que escorria do peito de

cada um deles. Estes dois kolds tinham sido mortos recentemente, penetrados por um qualquer tipo de espada ou

objecto afiado, mas não tive tempo de pensar muito sobre o assunto porque um kold notou a nossa presença e

lançou-se na minha direcção.

Protegi-me com a espada, e impulsionei-me para a frente para poder dar-lhe uma joelhada no estômago,

fazendo-o cambalear para trás e tropeçar num dos kolds mortos no chão e cair, deixando o peito aberto para a

minha espada o perfurar.

Tive tempo para levantar a cabeça e olhar em volta, para a sala onde estávamos, impregnada com o chei-

ro a mofo, suor e podridão. Havia uma luz amarelada, algures, a mexer-se com rapidez na escuridão. Apercebi-me

de que era uma lanterna parecida às nossas.

Só depois reparei na mulher, alta, de cabelos ruivos mal presos a um pente francês, que soluçava sempre

que batia num dos sete kolds que tinha à sua volta com o que parecia ser uma perna de cadeira partida que servia

de estaca.

Avançámos, agachados, para chegar mais perto do grupo de kolds sem que eles se apercebessem. Fazer

barulho não era um problema, porque a mulher estava aos gritos desde que tínhamos entrado, e estes kolds nojen-

tos não paravam de rir e gritar.

- THERE ARE MORE!!! THERE ARE MORE!! HIDE THEM, VASCO! NOW14! ORA15! – ela estava cansada, solu-

çava bastante e gritava tão alto que me fazia doer a cabeça, mas era boa lutadora. Estava a conseguir aguentar com

sete kolds sozinha!

Na verdade, quem aí vinha éramos nós, mas ela estava demasiado ocupada com o grupo que a rodeava

para se virar para nós e descobrir que vínhamos em seu auxílio.

Nansen estava ao meu lado e deu-me uma ligeira cotovelada, apontando para outros três vultos à nossa

esquerda, que pareciam lutar entre eles. Gritavam e berravam e, um deles, tinha qualquer coisa nas mãos. Pelo

vulto, percebi que era uma criança, e depois ouviu-se um grito chorado e excruciante que o confirmou. A criança

gritava pelo pai em italiano, que o agarrava no seu colo, tentando puxá-lo mais para si, enquanto os outros dois

vultos tentavam chegar perto e tocar com o pus na pele da criança, para a infectarem.

14 Traduzido do inglês: Há mais! Há mais! Esconde-os, Vasco. Agora! 15 Traduzido do italiano: Agora!

Page 15: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

15

Ouviu-se um estalido da besta de Nicoleta e uma flecha penetrou o ombro esquerdo do kold à minha di-

reita, enfurecendo-o.

Tudo aconteceu muito depressa.

Eu perfurei as costas da kold que tinha à minha frente com a espada, enterrando-a durante mais um se-

gundo, antes de a retirar e rodar sobre o meu pé esquerdo, bloqueando com o escudo o kold à minha direita, enfu-

recido por ter levado com a flecha de Nicoleta. Ele tinha as mãos cheias com o seu sangue e tentava chegar à minha

cara, mas Nicoleta apontou a sua lanterna à cara dele, cegando-o e fazendo-o cair no chão com uma flecha espeta-

da na testa.

Acendi a minha lanterna e olhei de relance para a mulher de tez muito clara e sardas no nariz que baixara

a guarda, enquanto olhava para mim com os olhos verdes arregalados. Vi uma kold a lançar as mãos ao pescoço

dela e gritei:

- GET DOWN16!

Ela hesitou e a kold prendeu-a pelo pescoço, rindo-se, tentando encostar a sua bochecha estraçalhada,

com gotas de pus a descer lentamente pela pele descaída do rosto, a qualquer parte do corpo da mulher. Avancei,

tentando atrair a sua atenção para mim, enquanto a mulher lutava por se afastar.

- PISA-O! – ordenei, mas não sei se ela percebeu.

A kold ria-se ainda mais alto, apertando a mulher contra o seu corpo decrépito, fazendo-a largar a estaca

que tinha na mão. Avancei ainda mais, apontando a espada à cara da kold e enfiei a espada pela sua goela abaixo. A

mulher libertou-se do corpo da kold que caiu no tapete que estava no chão, ensopado de sangue roxo.

- HELP ME17! – gritou uma voz masculina.

- VASCO! – gritou a mulher à minha frente, baixando-se para apanhar a estaca cheia de sangue kold, com

as mãos nuas!

- NÃO! – gritei eu, avisando-a do perigo de contágio.

Mas ela agarrou na estaca e olhou para mim, dizendo com urgência:

- No, it’s okay18…

Mas não estava tudo bem. Enquanto olhava para ela, vi a íris dos seus olhos a ganhar uma cor arroxeada,

perdendo rapidamente todo o verde que havia neles.

Ouvi a respiração de um kold atrás de mim e o som das armas de Nansen que atiraram o kold ao chão,

mas eu não tirei os olhos daquela mulher.

Abri a boca de espanto, sem entender nada daquilo, sentindo que algo não batia certo…

Ouvi uma seta a sair da besta da Nicoleta, um baque e a criança a chorar.

Ela olhou-me nos olhos e eu apertei a minha espada, pronta a avançar, quando ela disse:

- Wait19! – e eu parei a minha investida. – Look20… - disse-me, com a voz trémula, apontando para os olhos

dela e eu olhei.

Havia qualquer coisa no seu olhar… E, de repente, arregalou os olhos e… nada.

Ela olhou para baixo, com dificuldade em respirar, tocando no peito, onde estava cravado o machado de

Nansen. Ele retirou-o, fazendo-a cair de joelhos.

- VAMOS! – ordenou Nansen. – CONCENTRA-TE, ELA ESTAVA A TRANSFORMAR-SE!

16 Traduzido do inglês: Baixa-te! 17 Traduzido do inglês: Ajudem-me! 18 Traduzido do inglês: Não, está tudo bem… 19 Traduzido do inglês: Espera! 20 Traduzido do inglês: Olha…

Page 16: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

16

Olhei para o corpo dela, caído no chão, durante mais um segundo, confusa. Do peito escorria-lhe sangue

de um vermelho-arroxeado esquisito. Os seus olhos estavam abertos e inanimados, com aquela cor roxa horrível

instalada na sua íris.

- NOOOOO21! – exaltei-me, virando para a fonte daquele grito doloroso, carregado de terror e desespero.

O homem de cabelo castanho corria e gritava, saltando por cima de um kold morto por uma flecha, ten-

tando agarrar um kold com gangrena no pescoço, onde estava apoiada a cabeça de um rapaz ruivo, de três ou

quatro anos, que já não gritava, nem chorava e parecia, até, rir-se baixinho.

Nicoleta disparou três vezes, mas só conseguiu acertar-lhe uma vez, no lombar direito, antes deste fugir

por uma janela de correr danificada.

O homem parou de correr e olhou em volta a chorar, vendo finalmente, o corpo da mulher no chão, gri-

tando outra vez, correndo para ela.

Eu tinha parado de lutar, paralisada com a dor insuportável daquele homem. Ao que parecia, ele acabara

de perder toda a sua família.

- CLÁUDIA! – gritou Nansen, fazendo-me reagir, olhando em volta.

Nansen lutava contra uma kold, esquivando-se dos seus braços abertos e danificados até ao osso. Come-

cei a andar na sua direcção para o ajudar, ainda meio aturdida, quando Nicoleta gritou:

- À TUA ESQUERDA! – defendi-me automaticamente com o escudo e senti o peso do kold a rebolar por

cima deste. Investi com a minha espada mas esta só apunhalou o ar. O kold já se tinha levantado e começava a

correr em direcção ao homem cabisbaixo, que estava mais à frente, meio agachado perto da mulher, chorando

compulsivamente.

Comecei a correr. Nicoleta disparou a sua última flecha, não acertando e começou também a correr.

O homem, finalmente, apercebe-se de algo e olha para trás, por cima do ombro e tenta levantar-se, mas o

monstro já está demasiado perto.

A Nicoleta chega primeiro, atirando o seu sabre às costas do kold que caiu de frente, mesmo em cima do

homem.

- NÃO! – gritei eu, correndo para perto do homem, ainda mais desesperada, com a cara quente.

Não conseguira salvar ninguém. Ninguém… Todos tinham morrido!

- WAIT! LISTEN TO ME22! – gritou o homem, com sangue roxo por cima dele que lhe começava a criar

queimaduras no pescoço, peito e pernas. – SAVE HER23!

Cheguei perto dele, a uma distância de segurança.

- Save her? – perguntou-lhe Nansen, que se aproximava do homem, no meio do incomodante silêncio do

hotel. – Save who24?

- Our daughter25… - o homem chorava, enquanto os seus olhos castanhos brilhantes se tornavam roxos.

Eu sentia os meus olhos a arder, mas fazia-me de forte. - …Diana Salvatore.- nome inglês e apelido italiano. - She is…

hidden26.

- Where27? – pergunto eu, ganhando uma nova chama de esperança.

21 Traduzido do inglês: NÃAAAAO! 22 Traduzido do inglês: Esperem! Oiçam-me! 23 Traduzido do inglês: Salvem-na! 24 Traduzido do inglês: Salvar quem? 25 Traduzido do inglês: A nossa filha 26 Traduzido do inglês: Ela está… escondida. 27 Traduzido do inglês: Onde?

Page 17: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

17

- Under… the counter28. - diz ele com o seu sotaque italiano, enquanto tenta agarrar a perna de Nicoleta

mas esta afasta-se. Ele olha-a nos olhos. – Please29!. – depois encontra os meus olhos lacrimejantes e diz-me, quase

num murmúrio. – Tomorrow is… her… - ele solta uma lágrima. - …fourth birthday30. – Ele levanta a mão para pegar

na minha bota e eu deixo. Não há mal nenhum nisso. Todo o nosso fato é impermeável. Não vou ficar infectada por

causa deste toque e até me sinto melhor por deixá-lo tocar-me. Quero fazer-lhe todas as vontades. É o mínimo que

posso fazer… Depois do que aconteceu à sua família. – Please… Per favore31! Take her32!

Nicoleta olha para Nansen, mas Nansen não tira os olhos do homem.

- We will33. – digo eu, olhando este homem nos olhos. Depois olho para Nansen, que continua a olhar para

o homem com um olhar triste e impotente, e para Nicoleta, que olha para mim surpresa e acrescento – I will take

care of her. Personally34.

Nicoleta engole em seco e olha para baixo, para o homem, e eu faço o mesmo.

Ele olha algures para o tecto e um pequeno sorrisinho surge nos seus lábios, começando a rir-se baixinho,

tal como o rapazinho raptado pelo kold tinha feito. Era exactamente o mesmo sorriso.

Nicoleta retirou o sabre do corpo morto do kold que estava por cima do homem… quer dizer, do kold re-

cém-transformado… E empurrou-o para o lado, deixando todo aquele corpo à vista de todos. Depois cravou o sabre

no peito (já cheio de bolhas) deste monstro.

- Salvatore… - começou Nansen. – Alguém conseguiu perceber qual era o nome deste homem?

- Vasco. – respondi, lembrando-me dos gritos da mulher ruiva.

Vasco Salvatore, que agora inclinava a sua cabeça inanimada sobre os cabelos ruivos ensanguentados da

mulher recém-transformada.

Nansen suspirou.

Eu guardei a minha espada e virei-lhes as costas, dirigindo-me ao balcão do hotel.

- Diana? – perguntei baixinho, enquanto contornava o balcão, procurando uma criança. Ouvi um fungar e

um choro baixinho vindo de dentro de um armário.

O meu lábio inferior tremeu, mas esta não era a melhor altura para chorar. Tinha que ser forte.

Abri a pequena porta do armário e agachei-me para espreitar lá para dentro, onde estava uma raparigui-

nha sentada, com as mãos nos ouvidos e o corpo encharcado em suor. Fazia força para fechar os olhos, mas quando

eu olhei para ela, ela abriu os olhos e perguntou:

- Papà35? – depois, ao perceber que eu não era quem ela procurava, arregalou os olhos e encostou as cos-

tas à parede do armário.

- I’m sorry sweetie36… - disse calmamente, tentando sorrir-lhe. – They had to go… but they asked me to ta-

ke care of you37…

Fez-se um pequeno silêncio, e tive quase a impressão de estar a ser revistada de cima a baixo pelos olhos

daquela criança.

28 Traduzido do inglês: Debaixo… do balcão. 29 Traduzido do inglês: Por favor! 30 Traduzido do inglês: Amanhã é… o seu… quarto aniversário. 31 Traduzido do italiano: Por favor! 32 Traduzido do inglês: Levem-na! 33 Traduzido do inglês: Nós iremos. 34 Traduzido do inglês: Eu irei tomar conta dela. Pessoalmente. 35 Traduzido do italiano: papá 36 Traduzido do inglês: Desculpa, querida 37 Traduzido do inglês: Eles tiveram de ir embora… Mas pediram-me para tomar conta de ti…

Page 18: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

18

- They are dead, aren’t they38? – perguntou ela, muito baixinho.

Senti um pequeno calafrio a subir-me pelas costas acima quando lhe respondi.

- I’m so sorry my dear39... – os olhos dela não se desviaram dos meus, à espera da resposta. – Yes… They

are40.

Ela soluçou, mas não chorou. Deixei escapar uma lágrima, mas limpei-a rapidamente, para que ela não a

visse.

Como conseguia esta criança ser tão forte?

De repente, senti-me patética.

- Don’t cry41. – disse-me ela, dirigindo-me um pequeno sorriso. Ela saiu do armário e olhou para mim com

os olhos muito brilhantes. Não conseguia parar de olhar para ela, admirada com a sua força. - Everything will be

alright42. – disse-me aquela pequena grande criança, envolvendo-me nos seus braços.

38 Traduzido do inglês: Eles estão mortos, não estão? 39 Traduzido do inglês: Peço imensas desculpas, minha querida 40 Traduzido do inglês: Sim… Estão. 41 Traduzido do inglês: Não chores. 42 Traduzido do inglês: Tudo vai ficar bem.

Page 19: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

19

Capítulo 1

- O GATILHO –

Ajeito o meu rabo de cavalo e confiro a minha folha electrónica, para ver se tenho todos os documentos

necessários para a reunião.

Não consigo deixar de tremer com a perna.

Olho à minha volta, para a sala de espera cheia de raparigas sentadas em cadeiras encostadas à parede

azul-claro.

Algumas delas vestem um uniforme onde predomina a cor azul-cobalto, o que quer dizer que são debu-

tantes da escola de princesas, ou princesas. Outras estão vestidas como eu: de preto, ou cinzento, o que significa

que são aprendizes do ano intermédio. Mas todas têm uma coisa em comum: todas são princesas, ou estão para

ser… Porque todas nós somos férteis.

Suspiro e olho para a secretária, que olha para a sua folha electrónica, muito atentamente. Depois, olho

para o relógio da sala, que marca as quatro horas da tarde.

Mordo o lábio e volto a olhar para a secretária loura, que se sente observada e olha para mim. Esboça-me

um pequeno sorriso e eu baixo o olhar.

Reparo, mais uma vez, na minha indumentária: uns sapatos rasos, calças de ganga elástica e um pólo de

manga curta, tudo em preto.

- Menina Diana Salvatore? - olho para cima, para a secretária sorridente, que se levanta da cadeira e me

faz sinal para a seguir. – A conselheira irá vê-la agora.

Levanto-me e vou atrás dela, engolindo em seco.

Seguimos por um pequeno corredor e chegamos a uma porta antiga, de madeira. A jovem mulher loura

bate à porta e abre-a devagarinho.

- Com licença… - começa ela.

- Sim, sim. – diz uma voz suave. – Podem entrar.

A secretária deixa-me passar para dentro de uma sala pequena de paredes e chão brancos e quadros

digitais que mostram fotografias (tiradas há dezenas de anos atrás) de castelos, florestas, rios e cidades, alternadas

com umas outras fotografias (mais actuais) das nossas ruas e praças e de princesas usando o seu uniforme azul,

mostrando, com orgulho, o seu brasão tatuado no antebraço direito.

Um calafrio desce pelas minhas costas abaixo e comprimo os lábios.

Estou tão nervosa que nem oiço a porta a fechar-se atrás de mim.

- Boa tarde, minha querida. – olho para baixo, para a mulher de rabo de cavalo preto e com os seus cin-

quenta e pouco anos reflectidos só pelas rugas que aparecem com o seu sorriso jovial.

- Boa tarde. – digo, hesitante.

- O meu nome é Tricia Telles e sou a conselheira destacada para a acompanhar psicologicamente nesta

nova fase da sua vida. – faz uma pausa, para sorrir para mim, avaliando a minha reacção. – Sente-se. Esteja à vonta-

de.

Assim o faço, enquanto ela acede aos meus dados, através da sua folha electrónica.

- Diana Salvatore…

- Sim?! – sai-me assim do nada, como se estivesse à espera que ela tivesse encontrado algum pormenor

que me impossibilitasse de tatuar o brasão no antebraço.

Page 20: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

20

- Hum… Oh! Parabéns. – diz, sorridente. – Vejo que o seu exame de fertilidade veio positivo. – os meus

ombros caiem num ápice. – Só por curiosidade… Tem algum namorado, ou alguém especial na sua vida?

- Não. – respondo apressadamente, acrescentando depois um – Não dessa maneira.

- Hum, estou a ver. – esboça outro sorriso. – Não se preocupe, minha querida, vai ter muito tempo para

isso!

Se não estivesse tão nervosa, até me teria rido desa piada de mau gosto.

- Eu sei que, na vossa idade, cinco anos passam num instante… - continua a conselheira. - … mas, a partir

de agora, será considerada uma debutante, poderá ir aos bailes mensais para que possa conhecer pessoas novas e

vai ver que, em pouco tempo, encontrará a sua alma gémea. Ele anda algures, por aí!

Eu olho para baixo, para as minhas mãos, agarrando a mala que tenho ao colo.

- Oh, não esteja nervosa! – diz ela. – Muitas raparigas não se sentem preparadas para serem princesas,

mas é por isso mesmo que vocês passam por esta fase. Ser debutante é, acima de tudo, aprender a ser uma boa

princesa e, no fim de contas, ser uma boa princesa, é ser-se uma boa mãe! – o meu estômago parece dar uma volta.

– Vejo que a sua média de notas escolares é óptima! Se continuar com as boas notas, para o ano que vem entrará

numa nova escola, onde encontrará, de certo, todas as disciplinas que precisa para se tornar numa óptima mãe e

esclarecer-lhe todas as dúvidas sobre o assunto, talvez até abrir-lhe portas para uma profissão de que goste e…

- Desculpe... – interrompo, continuando a olhar para as minhas mãos, sem coragem suficiente para olhá-la

nos olhos. - …Mas eu quero algo… - engulo em seco. - …diferente.

- Oh!? – diz a conselheira, passados uns segundos. – Hum. Qual foi o resultado do seu teste de especiali-

dade?

- Defesa e Educação, mas…

- Hum! – interrompe ela, escrevinhando na sua folha electrónica. – Mas sente-se apta para outro ramo?

- Sim! – olho para ela, tentando ir de encontro com os seus olhos, mas ela continua a escrever. – Quer

dizer, não propriamente. – respiro fundo, tentando acalmar-me. – Sinto que essa é a minha verdadeira especialida-

de, mas não no que toca à educação.

A conselheira levanta os olhos da folha e olha para mim com um misto de preocupação e confusão, dei-

xando-me desconfortável.

- Desculpe, mas não estou a compreender.

É este o momento da verdade!

Respiro fundo e deito tudo cá para fora.

- Toda a minha vida quis ser uma guerreira. – vejo as rugas da testa da conselheira a intensificarem-se.- E,

quando me disseram os resultados do teste de especialidade, indicaram-me o ramo de Defesa. – retiro a minha

folha electrónica da mala e mostro-lhe o documento. – Veja, está tudo aí escrito…

- Hum. – murmura, meio relutante, agarrando na minha folha para examinar o resultado do meu teste.

Depois olha para mim, querendo dizer-me que, como sou fértil não poderei ser guerreira, mas eu não a

deixo e continuo a falar.

- E veja as minhas notas do primeiro semestre! – olho-a nos olhos e passo com um dedo pelo ecrã da

minha folha, mostrando-lhe um outro documento, com as minhas notas escolares do ano intermédio. - Tive nota

máxima a Armas e Escudos 1, dezoito a Sobrevivência 1 e dezassete a Equitação 1! – digo, orgulhosa.

- Sim… São notas excelentes. Parabéns. – diz, meio triste. – Mas veja que as suas notas de Enfermagem 1

e Culinária 1 também são muito boas.

Page 21: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

21

- Sim… Mas eu sempre fui uma boa aluna... – justifico. – E tem de concordar comigo quando digo que,

mesmo antes de saber o resultado do meu exame de fertilidade, as minhas notas já demonstravam a minha aptidão

para o ramo de Defesa.

- Sim, é verdade. – afirma. – Mas isso pode-se justificar pelo facto dos testes de especialidade serem reali-

zados entre o primeiro e o segundo semestre do nono ano, antes de entrar para o ano intermédio e, visto que o seu

resultado foi mais inclinado para o ramo de Defesa e, como já me disse, você própria gostar mais desse ramo, é

natural que se esforce mais para obter bons resultados nas disciplinas que são mais viradas para esse ramo. O pro-

blema aqui, é que você se apoiou no resultado do seu teste de especialidade, criando espectativas demasiado ele-

vadas sobre o seu futuro, sem saber primeiro qual seria o resultado do exame de fertilidade.

Dói ouvir isto e recuso-me imediatamente a aceitar isto como sendo verdade.

- Veja então as minhas notas escolares do nono ano… - prossigo, clicando na minha folha electrónica para

apresentar-lhe a pauta do primeiro e, depois, do segundo semestre. – No primeiro semestre, ainda não tinha feito o

teste e olhe para as minhas notas!

E ela olha, franzindo a testa, cheia de preocupação.

- Vê? – pergunto, apontando para a pauta. – Tive nota cinco a Ciências Naturais… e a História também!

E veja Físico-química! Tive quatro!

- Bem como a Português e Francês… - nota ela. – E também teve cinco a Inglês.

- Sim, mas a Música e a Artes Manuais tirei um três… E foi à rasca!

Ela afasta os olhos das minhas pautas escolares, para me olhar com compaixão:

- Oh,… Minha querida… - começa ela, agarrando as mãos. – Não se preocupe. Ser mãe… é muito mais do

que estas notas! Claro que a educação é muito importante, mas não é tudo! O mais importante está dentro de si…

Afasto as mãos dela das minhas.

- Não, não está! – digo, determinada e desesperada. – Não percebe? Eu não quero ser princesa! Eu não

quero ter de decidir com quem vou casar! Eu não quero isso! Não é só não me sentir preparada, é não querer esse

tipo de vida para mim! Eu não quero casar, nem agora, nem nunca! O que eu quero mesmo, mesmo, é ser uma

guerreira!

Apetece-me falar mais e retirar todo o peso que sinto nos meus ombros, mas sinto as lágrimas a quererem

fugir dos meus olhos e, por isso, cerro os dentes e olho para a conselheira, enquanto espero por respostas a per-

guntas que ainda não coloquei.

Ela entrelaça os dedos e coloca-os em cima da sua folha electrónica. Consigo perceber que está a tentar

encontrar as palavras certas antes de falar.

- Menina Salvatore… Acho admirável a sua coragem e persistência em relação ao que sonha fazer no

futuro… Mas receio que… Não há nada que eu possa fazer a esse respeito.

- Como assim?! – pergunto, com a voz a fraquejar.

- Menina Salvatore… - volta a dizer. Parece estar calma, mas vejo nos olhos toda a sua inquietação. - Dia-

na… Minha querida, você é fértil. E segundo a alínea catorze do artigo quatro do Tratado de Mónaco de 2037, «to-

das as raparigas consideradas férteis, pelo exame de fertilidade realizado no mês de Julho do ano em que fizerem

quinze anos, passarão a chamar-se de debutantes e terão como objectivo prioritário tornar-se princesas, para assim

poderem garantir a continuidade da nossa espécie. O seu estatuto terá, por isso, uma conotação diferente do grupo

de raparigas inférteis e ser-lhes-á proporcionado todo o auxílio necessário e possível para que cumpram esse objec-

tivo».

Page 22: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

22

Ela deita cá para fora uma alínea inteira, de uma só vez, de forma tão maquinalmente bem decorada que

me irrita profundamente.

Respiro fundo, tentando acalmar o fogo que sinto a borbulhar por baixo da minha pele e pergunto-lhe:

- E não há nenhuma forma de eu ser fértil e ir para a Escola Militar?

Ela engole em seco.

- Hum… Não… Não me parece, menina. – cerro os dentes. – O Tratado é muito claro e…

- Acha?! – digo, levantando a voz. – Eu não acho. Vê lá alguma alínea para as raparigas férteis que queiram

lutar junto aos outros guerreiros? Eu não. E de certeza que não sou a única debutante a questionar-me o que fazer

para conseguir ter o futuro com que sempre sonhei!

- Diana, acalme-se! – apazigua, com um pequeno sorriso tímido nos lábios, pousando os seus dedos em

cima da minha mão.

- ACALMAR-ME? – grito, afastando os seus dedos e levantando-me da cadeira. – Como posso acalmar-

me?! Vim aqui falar consigo para encontrar uma solução para o meu problema, só para chegar aqui e você dizer-me

de que não há NADA que possa fazer! Não pode? Ou não quer?! – estou completamente encolerizada e os meus

pensamentos parecem estar mesmo debaixo da língua. – Quantas raparigas passaram por aqui com o mesmo pro-

blema que eu?! Quantas vezes teve de citar essa estúpida alínea?! Quantas vezes lhes disse que não podia fazer

nada, sem primeiro tentar, de facto, fazer alguma coisa?! EHN?! QUANTAS?! Porque tenho a certeza de que não sou

a primeira pessoa, nem a última, a vir aqui por causa desta injustiça!!

Olho para ela, com os olhos vidrados nos dela, calando-me por uns segundos, deixando reinar um silêncio

incomodativo e tenso na sala.

- Menina Salvatore. Sente-se, por favor... Vamos falar com calma!

Consigo sentir o meu coração a bombear o fogo que passa nas minhas veias e tenho a certeza de que a

única coisa que quero fazer é ficar ali, a menos que arranjem uma solução para o meu problema… Ou que tentem,

pelo menos!

- Vai ajudar-me?

- Por favor, sente-se primeiro, para podermos falar com mais calma…

- VAI!? – grito, mas depois tento controlar-me e baixo o tom de voz. – Ajudar-me?

Os lábios dela tremem ligeiramente e ela tenta sorrir.

- Minha querida… Tens de aceitar o facto de…

- PARE! – grito, cheia de raiva. – PARE DE ME DIZER O QUE FAZER!

- Diana… - diz ela, levantando-se finalmente da cadeira e vindo a meu encontro, tentando tocar-me nos

ombros para me ajudar a relaxar. - …você está em negação. É normal nestas situaç…

- NÃO! LARGA-ME! – afasto-me dela e das suas mãos, sempre a quererem agarrar-me os ombros. – EU

NÃO VOU FICAR AQUI FECHADA ATÉ QUE VOCÊ ME FAÇA QUERER SER UMA PRINCESA! – sinto picadas nos meus

olhos, de lágrimas que querem escorrer pelas minhas bochechas abaixo. - EU NÃO VOU DESISTIR ASSIM TÃO FA-

CILMENTE DOS MEUS SONHOS! EU NUNCA VOU DESISTIR!

Agarro na minha folha electrónica e enfio-a dentro da mala que está caída no chão. Coloco a mala ao

ombro e bato com a porta ao sair.

Dou passadas largas pelo pequeno corredor e saio da sala de espera, onde todas olham para mim, curio-

sas e confusas.

Ando pelos corredores, furiosa, querendo sair dali o quanto antes.

Sinto a minha folha electrónica vibrar e olho para o ecrã.

Page 23: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

23

Recebi uma mensagem do Centro de Tatuagens:

«Cara Diana Salvatore, esta é uma mensagem automática de confirmação de sessão para tatuagem de

Brasão de Princesas e Debutantes Scallabitanas para amanhã, dia vinte e um de Julho, às nove horas da noite, no

Centro de Tatuagens, piso -6. A sua comparência é obrigatória e prioritária. Se, por motivos de força maior, não

possa aparecer no dia e horas marcados, deve entrar em contacto connosco para que se possa remarcar…»

Não quero ler o resto. Volto a guardar a folha electrónica na mala e começo a correr.

«Obrigatória e prioritária»!

Penso nestas palavras, enquanto saio porta fora, correndo pela rua acima.

Começo a chorar e a minha visão fica entorpecida pelas lágrimas.

Quero gritar, quero esconder-me de tudo isto. Quero fingir que não existo por um bocado. Quero ir para o

Centro de Treino, praticar com a minha espada. Quero esmurrar um saco de areia com força, até aos meus punhos

doerem tanto como a minha cabeça dói neste preciso momento. Quero poder ser livre de escolher o meu futuro,

independentemente de ser fértil ou não… Quero fugir!

Dou por mim no piso térreo.

Nem me apercebi de que tinha corrido tanto.

Sinto o pulsar do meu coração demasiado forte, deixando-me tão quente quanto o ar que respiro.

Por um momento, não sinto nada a não ser calor e olho para o azul do céu, sem qualquer nuvem à vista.

Nesse momento, sinto-me leve, ali, a olhar para a natureza.

Mas depois, baixo o olhar e vejo a muralha com o seu enorme portão, que raramente se abre para pesso-

as como eu. Volto a sentir-me presa, fértil e inútil.

E depois, só quero é fugir.

Uma lágrima escorre pela minha cara abaixo e um grito de desespero sai, sem querer, pela minha gargan-

ta fora.

- Hey, tu! Está tudo bem? – grita alguém, de longe.

Recomeço a correr, de encontro ao portão, para tentar escapar daquele sítio, para fugir dali e fazer o que

eu mais quero: lutar contra os kolds e tornar o mundo em que vivemos num sítio melhor e desinfectado!

Corro e corro e não reparo que está alguém a correr atrás de mim até este me agarrar pela cintura.

- Que se passa, rapariga? – pergunta preocupado, cobrindo-me com o cheiro a suor e gel para cabelo que

eu tão bem conheço, enquanto me debato para que ele me solte.

- Larga-me, Josh! – imploro, com a voz a fraquejar.

Ele tira as suas mãos da minha cintura e faz-me ficar de frente para ele, agarrando-me firmemente pelo

braço.

Olho para o meu amigo, que de certeza que tinha vindo a correr do Centro de Treino até mim, porque

trazia a sua espada à cintura… E depois reparo no Brasão da Tropa Scallabitana tatuada no seu antebraço direito.

Dou um safanão com a minha mão para me soltar dele e tiro-lhe a espada.

- Hey, what are you doing43? – diz, cauteloso.

Recomeço a correr até ao portão.

Mas ele agarra-me pelas costas outra vez e eu grito:

- NÃO! LARGA-ME! – tento defender-me e afastá-lo com a espada. – NÃO! NÃO, EU… - ele é rápido e

consegue tirar-ma e eu começo a soluçar. – N-NÃO, EU PRECISO DE.. SAIR D-DAQUI! – e a chorar compulsivamente.

43 Traduzido do inglês: Ei, que estás a fazer?

Page 24: VIAGENS NA FICÇÃO - s3.amazonaws.com · - Bom dia, Cláudia. – disse ele, sem precisar de olhar para mim para saber quem eu era. O Sargento Alrid Nansen era mesmo assim e, apesar

24

– T-TU N-NÃO P-PERCEBES! – e ele atira a espada para longe, onde já algumas sombras curiosas espreitam para ver

o que se passa e abraça-me, segurando o meu corpo bem contra o seu.

Sinto o meu corpo a fraquejar e o Josh deixa-nos cair suavemente, sentados no chão.

Agarro o ombro da sua t-shirt cinzenta e escondo a cara entre o seu pescoço e o seu peito.

Um calafrio percorre-me o corpo enquanto tento parar de chorar, enxugando a cara na sua t-shirt im-

pregnada de suor.

- Shh… - diz ele, tentando acalmar-me. – You’ll be alright… I’m here. I’ll help you, ok44?

- How45?! – murmuro, levantando a cara para olhar para os seus olhos cor de esperança.

- I don’t know yet46. – diz-me com sinceridade, colocando a mão na minha nuca, puxando-me para junto

do seu peito. – But we will find a way47.

- Do you promise48?

Oiço-o a sorrir.

- Sim. – faz-me uma festa no meu rabo de cavalo. – But only if you promise me that you’ll not try to run

away again49.

Coloca as mãos no meu maxilar e levanta-me a cara para que eu olhe para ele.

- Do you promise? – ele está a falar mesmo a sério.

- Sì50. I promise51. – digo.

Ele sorri, aliviado e deposita-me um beijo na testa.

44 Traduzido do inglês: Tu vais ficar bem… Eu estou aqui. Eu vou-te ajudar, ok? 45 Traduzido do inglês: Como?! 46 Traduzido do inglês: Ainda não sei. 47 Traduzido do inglês: Mas nós vamos arranjar uma forma. 48 Traduzido do inglês: Prometes? 49 Traduzido do inglês: Mas só se me prometeres que não vais tentar fugir outra vez. 50 Traduzido do italiano: Sim. 51 Traduzido do inglês: Eu prometo.