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VIDAS TRANSFORMADAS E MEMÓRIAS NA RECICLAGEM André Gross

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VIDAS TRANSFORMADAS E MEMÓRIAS NA RECICLAGEM

André Gross

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VIDAS TRANSFORMADAS E MEMÓRIAS NA RECICLAGEM

Produto final do Mestrado Memória Social e Bens Culturais

Centro Universitário La Salle/Canoas

Autor: André Gross

Orientadora: Dra. Maria de Lourdes Borges

Coorientadora: Dra. Cleusa Maria Gomes Graebin

Agradecimentos

Inicialmente quero agradecer a Deus pela oportunidade de poder chegar ao final desta mais uma etapa na caminhada acadêmica, que se concretiza com a produção deste livro. Agradeço a minha esposa Rosilnei, e os meus filhos Esther e Paulo, por terem sido o suporte necessário para vencer os obstáculos que sur-giam no meu caminho. Aos meus familiares e amigos, que incentivaram, apoiaram e contribuíram com o meu sonho. Também a orientação recebida durante toda a produção deste material, disponibilizado na forma de um livro. As cooperativas que abriram as portas, acreditando na proposta deste trabalho, representado nas seguintes pessoas: Sônia, Jéssica e Daniela da cooperativa Renascer e Márcia, Vânia, Elenir e Rita da cooperativa Cootre.

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VIDAS TRANSFORMADAS E MEMÓRIAS NA RECICLAGEM

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ..................................................................................... 04

PARTE 1

ENTREVISTAS TRANSCRIADAS – COOPERADAS DA RENASCER:

2. SÔNIA ................................................................................................... 07

3. DANIELA ............................................................................................... 09

4. JÉSSICA ................................................................................................ 11

PARTE 2

ENTREVISTAS TRANSCRIADAS – COOPERADAS DA COOTRE

5. RITA ...................................................................................................... 13

6. VÂNIA ................................................................................................... 19

7. ELENIR ................................................................................................. 21

8. MÁRCIA ............................................................................................... 22

PARTE 3

9. VIDAS TRANSFORMADAS NA RECICLAGEM .................................. 25

PARTE 4

10. MEMÓRIAS NA RECICLAGEM ........................................................... 28

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1. INTRODUÇÃO

Este livro representa o Produto Final do Mestrado Memória Social e Bens Culturais do Centro Universitário La Salle/Canoas. Ele é derivado da pesquisa que resultou na dissertação intitulada Memórias Institucionais da Reciclagem de Resíduos Pós-Consumo em duas Cooperativas da Economia Solidária. Durante a pesquisa daquela dissertação, entrevistamos sete cooperadas de duas coope-rativas de reciclagem de Canoas/RS. Elas se dispuseram a dar o seu depoimento a respeito da cooperativa e contar um pouco da trajetória das cooperativas em que trabalham. Nos reservamos a ouvir aquilo que elas conhecem a partir do tem-po que estão participando e também do que ouviram os outros contarem. Tais entrevistas forneceram subsídios para que elas pudessem contar a sua visão de como percebem o crescimento e desenvolvimento da sua cooperativa. Algumas cooperadas estavam trabalhando na respectiva cooperativa desde o período de recessão de 1986, enquanto outras estavam trabalhando pouco tempo, mas todas elas estavam tinham conhecimento do sistema de funcionamento da sua coopera-tiva. Ressaltamos que algumas dessas entrevistadas possuem cargos de gestão dentro do grupo de trabalho o que nos ajuda a entender diferentes posições em suas falas.

Foram estudadas duas cooperativas de reciclagem de resíduos pós-consu-mo: Renascer da cidade de Canoas e a Cootre, da cidade de Esteio. A Coopera-tiva Renascer é o mais antigo grupo de reciclagem do município de Canoas e a dona Sônia é a mais antiga cooperada que foi entrevistada para a pesquisa. Ela pertence ao grupo da Renascer desde o ano de 1986 (ano de grande recessão econômica). Apesar de ser uma senhora de idade, lembra muito bem de aconteci-mentos, desde o período em que o grupo trabalhava no aterro sanitário, descreve com propriedade todas as fases que o grupo passou. Descreve o trabalho em um antigo galpão que era aberto dos lados, quando ainda eram uma associação até que se tornaram uma cooperativa. Já a entrevistada Jéssica, em contraste, é a mais nova cooperada que foi entrevistada. Ela trabalha como coordenadora suplente de administração da cooperativa e participou de três etapas de desenvol-vimento da Renascer que são, o tempo do Galpão coberto, a Associação e a Coo-perativa atual, mesmo assim é pródiga em lembranças. A última entrevistada desta cooperativa foi a Daniela, que entre idas e vindas, participou de todas as etapas

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que o grupo passou, mas mesmo não tendo cargo de gestão, sabe trabalhar em todas as funções na cooperativa e com todos os tipos de materiais.

A Cooperativa Cootre comparada com a Renascer é um grupo mais recente, mas conseguiu um avanço considerável desde que se tornou cooperativa em 2012. Também passou por processos turbulentos desde a sua origem, mas hoje tem se mostrado um grupo homogêneo. Nesta cooperativa, entrevistamos a Vânia que é a tesoureira da cooperativa. Ela trabalha na Cootre desde 2006 permanecendo até hoje. A segunda entrevistada da Cootre é a Márcia. Ela trabalha em todas as funções da produção. Possui um jeito comunicativo e trabalha administração da cooperativa. Deixou clara sua preocupação com a questão da comunicação inter-na. A terceira entrevistada foi a Elenir, que é coordenadora de produção da Cootre. Possui experiência em diversas áreas profissionais, mas que diz ter encontrado na cooperativa o seu lugar no trabalho, relatando ainda que este emprego fez com que ela ficasse livre de um problema de depressão que ela estava tratando a um bom tempo. Ela diz que no convívio com os colegas, se sente realizada profissio-nalmente. Apesar de ter pouco tempo de cooperativa, demonstrou entrosamento com todos os colegas. Finalmente foi entrevistada a Rita, que é a atual presidente da Cootre. Ela pode ser considerada uma importante mola propulsora dos movi-mentos que transformaram e contagiaram as pessoas na cooperativa. Aparenta ter um espírito de guerreira, enfrentou diversas dificuldades, motivando e fortale-cendo o grupo, bem como parece ter um espírito empreendedor que acredita nas pessoas. Acredita naquelas pessoas renegadas pela sociedade. No final deste livro são apresentados dois relatos de vidas que foram transformadas, as quais ela acreditou que eles poderiam mudar e pagou um preço para que essa mudança acontecesse de verdade.

Por isso este trabalho traz o relato de vida destas sete mulheres guerreiras, onde elas contam a sua trajetória dentro da cooperativas, expectativas e dificulda-des. Todas as cooperadas em que aparece suas fotografias, autorizaram por es-crito a divulgação das imagens (fotografias tiradas pelo autor do livro) e/ou dados.

Todo o material que constitui esse trabalho, foi originário das entrevistas temá-ticas realizadas na pesquisa de campo nas duas cooperativas de reciclagem objeto desta pesquisa, as cooperativas Renascer e Cootre. De posse desse material grava-do, procedeu-se inicialmente à transcrição do áudio. De acordo com o entendimento de Meihy e Ribeiro1 (2011) a transcrição é uma etapa importante do processo de com-

1 MEIHY, Jose Carlos Sebe B.; RIBEIRO, Suzana L. Salgado; Guia prático de história oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. Contexto, São Paulo, p. 198, 2011

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preender uma história oral. “Visto com olhos no receptor, a transcrição destina-se, na moderna história oral, a dar visibilidade ao caso ou a história narrada” (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 108). Posteriormente, as entrevistas inicialmente transcritas foram transcriadas, entendendo-se por transcriação “a elaboração de um texto re-criado em sua plenitude” (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 110). O texto foi reorganiza-do de forma cronológica remontando às experiências vividas pelas entrevistadas dentro das cooperativas.

Esperamos que esta publicação possa dar visibilidade às histórias destas trabalhadoras que batalham dia a dia para uma vida melhor para si e para a sua família.

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Sônia, fotografia realizada na área de descanso da cooperativa Renascer.

2. ENTREVISTA TRANSCRIADA DA SÔNIA – RENASCER

Meu nome é Sônia, trabalho como coordenadora de produção, não lembro exatamente dia e mês em que comecei a trabalhar com a reciclagem, mas lem-bro que foi no ano de 1986, devido a uma grave recessão econômica. Muitos dos primeiros integrantes da coleta individual, entraram para esse ramo de trabalho, devido a recessão do mercado de trabalho. No início existia um aterro sanitário, também conhecido como lixão de Canoas. Essa fase do aterro sanitário foi bem complicada para os trabalhadores, pois não existia nenhum tipo de estrutura física para que eles pudessem trabalhar de maneira adequada. Iniciei trabalhando no aterro sanitário, criei meus oito filhos trabalhando neste local, a céu aberto, traba-lho ao ar livre, por isso eram fustigados pelo sol, outras vezes pela chuva, barro, sujeira, animais, quando chovia, os pés afundavam no lodo e nas poças de água. Muitos anos se seguiram nessas condições. A coleta se dava diretamente nos montes de lixo, disputando local com máquinas, arriscando sofrer alguma forma de acidente, pois no intervalo entre uma movimentação e outra das máquinas eles se lançavam à cata de algum material que fosse reaproveitável. Os caminhões lar-gavam tudo misturado, lixo orgânico, lixo seco, animais mortos, material elétrico e eletrônico, etc. A cooperativa foi formada muitos anos depois. Já havia trabalhado em outras funções como limpeza em hotel, casas de família, mas essa recessão fechou portas de emprego em todos os setores da economia, por isso comecei

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catando material no aterro e vendendo para os “atravessadores” que vinham com-prar aqui no aterro para revender para as empresas recicladoras propriamente dita. Esse era um trabalho individual, embora houvesse muitas pessoas trabalhan-do, cada um negociava o material que conseguia com esses atravessadores. Usá-vamos luvas e botas, pegava o material que achava e vendia para os caminhões que apareciam aqui em busca de produtos que pudessem ser recicláveis. Desse período que se refere ao aterro sanitário, apenas duas pessoas permanecem até hoje, eu e mais dois, todos os demais acabaram saindo em algum momento.

O primeiro galpão que nós tivemos, era dentro da área do aterro sanitário. Era um galpão apenas com uma cobertura, mas nas laterais não tinha nenhuma proteção. Com a construção deste galpão, já não podíamos mais subir nos montes de lixo do aterro sanitário, contávamos agora com o material que era trazido pela Prefeitura. A Prefeitura pegava material dos containers que ficavam na rua, dos catadores individuais e trazia para nós classificarmos.

Buscando uma nova forma de organização, foi fundada a Associação no aterro sanitário. Durante esse período, não existia maquinário como esteira, o tra-balho era agachado no chão, enchendo do “bag’s” que eram grandes embalagens para armazenamento de materiais para reciclagem. A Associação foi fundada com vinte seis pessoas. É que nesse período tinha dois grupos de trabalho, um grupo formado por trabalhadores que vinham do bairro Matias Velho que ficaram com o turno do dia, e o nosso grupo que trabalhava no turno da noite. Mas com a forma-ção da Associação, o grupo que vinha da Matias Velho acabou desistindo.

A cooperativa surgiu em função de um projeto da prefeitura que destinava caminhões para a coleta seletiva de resíduos sólidos de Canoas, além de uma verba também da prefeitura. Mas para receber esses benefícios era necessário estarmos organizados em forma de cooperativa, não podia ser associação. Depois que nos tornamos cooperativa, melhorou bastante pois começamos a adquirir ma-quinário para auxiliar no trabalho.

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Daniela, fotografia realizada na área dos fundos da cooperativa Renascer.

3. ENTREVISTA TRANSCRIADA DA DANIELA – RENASCER

Me chamo Daniela, tenho quarenta anos e executo diversas frentes de tra-balho como: prensa, triagem, coletas, reuniões externas. Meu primeiro contato com reciclagem é do tempo que funcionava aqui o aterro sanitário, ou seja, desde a época em que cada um catava sozinho. Atualmente retornei a cooperativa fazem sete meses, mas já tive outras idas e vindas, ao longo desses anos, aproximada-mente vinte dois anos. Quando comecei estava grávida da minha filha, era mãe solteira e essa era uma fonte de renda familiar. Fiquei sabendo que o pessoal do ferro velho vinha comprar material no aterro. Escondíamos o material no mato até que o comprador viesse. Naquela época não tinha mulheres trabalhando junto com os homens, a Dona Sema e a Dona Cooperada Sônia, foram pioneiras. A Cooperada Sônia teve abertura porque tinha muitos filhos, era jovem, conseguia correr, subir nos montes de lixo. Mas logo no início, quando fui pedir para trabalhar no aterro, a resposta foi negativa. Até hoje tem alguns homens daquele período que não concordam com o trabalho feminino, mas temos uma predominância fe-minina na cooperativa hoje.

Entre os intervalos que eu saia da cooperativa, trabalhei como diarista, ser-viços gerais, cozinheira, participei também de uma outra cooperativa em Canoas.

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Como eu tinha filhos pequenos, não era fácil ter um emprego, pois eu precisava cuidar deles. Aqui na Renascer, eu tenho uma certa liberdade para resolver al-guns problemas familiares, que em outros lugares eu não tinha. E outra coisa a Cooperativa desde o tempo de associação, é para nós mulheres, que temos filhos pequenos uma boa, porque quando precisamos ir na escola, se ligarem agora, tu tens que vir aqui na escola buscar o teu filho, tu tens esse livre acesso de sair atender teus filhos.

Quando a Renascer passou a ser associação, eu estava em outra coope-rativa, mas o material saia daqui para ser prensado nessa outra cooperativa, que havia emprestado um espaço lá para facilitar o trabalho. Indiretamente eu estava participando dessas mudanças, embora em outro lugar. Quando efetivamente re-tornei a cooperativa já estava formada.

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Jéssica, fotografia realizada na área dos fundos da cooperativa Renascer.

4. ENTREVISTA TRANSCRIADA DA JÉSSICA - RENASCER

Meu nome é Jessica, tenho 21 anos, trabalho como coordenadora suplente de administração. Entrei para a cooperativa em 20 de maio de 2011, como eu era menor de idade e não podia trabalhar em emprego formal, iniciei na reciclagem, então aqui foi o meu primeiro trabalho. Eu tinha vários conhecidos que já traba-lhavam com reciclagem e influenciada por eles vim parar aqui. Apesar de que não temos muitas das vantagens trabalhistas de um emprego com carteira assinada, mas pagamos o nosso INSS, é próximo de casa, o tipo de trabalho é bom e ajuda o meio ambiente, por isso gosto daqui.

Em 2011 trabalhávamos no primeiro galpão que foi construído ainda na área do aterro sanitário, que estava situado num buraco, ele era apenas coberto, mas nas laterais era aberto, quando chovia, molhava tudo. Por estar situado numa es-pécie de buraco, acumulava água da chuva e do chorume, que muitas vezes che-gava a altura do joelho, precisávamos chamar os operadores de retroescavadeiras para abrir valetas de forma que a água pudesse escorrer. Era horrível de trabalho, pois era um amontoado de lixo, muitas vezes nem dava para trabalhar dentro do galpão em função do acúmulo de lixo, por isso íamos para a área descoberta, fustigados pelo sol, chuva. A seleção precisava ser executada agachada no chão.

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Não tinha um banheiro decente para poder ser utilizado. Trabalhei por três anos nessas condições.

Esse período éramos associação, já no período final, pois eu entrei em maio e no mês de agosto passamos a ser cooperativa. Foi quando se iniciou o contrato com a Prefeitura para coleta seletiva. A incubadora do Tecno Social do La Salle que nos davam assistência nessa fase de transição entre associação e coopera-tiva. Até uma linha de ônibus nos atende agora nos horários de entrada e saída.

Construímos esse novo galpão, onde estamos trabalhando agora, monta-mos também uma cozinha, através de um projeto que ganhamos. As condições melhoraram muito com relação ao galpão antigo, pois este galpão é coberto e fechado dos lados, ou seja, independente da chuva, trabalhamos sempre no seco, não precisamos nos molhar mais. As madeiras foram doadas pela Prefeitura, um pouco do material nós compramos, outra parte veio do projeto e conseguimos ter um local bom agora para exercermos nossas atividades e também para fazermos nossas refeições. No período do galpão antigo, cada um pegava o seu prato e ia para meio do mato fazer a sua refeição. Eu fico pensando “a Dona Cooperada Sônia e Sr Adair, olha quanto tempo eles passaram em sol e chuva, eu estou che-gando agora, mas bah, fico olhando para a história deles, são uns guerreiros”.

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Rita, fotografia realizada na área lateral da cooperativa Cootre.

5. ENTREVISTA TRANSCRIADA RITA - COOTRE

Meu nome é Rita, a Cootre começou da seguinte maneira. No ano de 2003 surgiu a Associação de Recicladores e Catadores Autônomos (ARCA) da cida-de de Esteio, localizada no bairro Votorantin, que na época contava com apenas oito associados. A Prefeitura de Esteio cedeu um espaço no centro de triagem da Secretaria de Meio Ambiente no ano de 2005, quando firmou com a ARCA um contrato para trabalhos com reciclagem. Existia um local chamado de aterro de Sapucaia, onde eram depositadas todo o lixão da cidade, onde tudo era triado, e todo o restante do rejeito ficava jogado pelo pátio, mas o cheiro era muito forte e não deu. Neste período surgiu a coleta seletiva de Esteio, juntamente com o trans-bordo. Deste período resta apenas uma cooperada hoje. Tudo passou a funcionar nessa área, com a coleta seletiva, a Secretaria de Meio Ambiente, tudo aqui em baixo, onde ficavam o secretário, os diretores ambientais, tudo junto com a gente.

Em 2010, o Conselho de Meio Ambiente, destinava uma verba de seis mil reais por mês, uma ajuda de trezentos reais na renda, durante o contrato de um ano. O Conselho de Meio Ambiente, continuaria ajudando com essa verba, desde que a associação se organizassem em forma de cooperativa, pois tinham o desejo de que todos se profissionalizassem. Aceitamos esse desafio, e começamos a ca-

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minhar na direção desse projeto de ser uma cooperativa. Duas instituições foram importantes nesse processo o Camp que é uma organização não governamental e o Centro Universitário La Salle, que auxiliaram na elaboração dos estatutos.

A situação era precária, pois tudo era muito sujo, pois tinha desde traves-seiros, pontas de cigarros, louça suja e panelas encardidas, onde pessoas que vinham de fora não tinham coragem de se alimentar ali, mas todos nós trabalhá-vamos nessa situação. Não utilizávamos os EPI’s necessários, pois andávamos de chinelo, usávamos luvas de procedimentos cirúrgicos, trabalhava com qualquer roupa, segundo a apalavra da presidente, eles andavam completamente sem no-ção. Nisto a cooperativa trouxe um grande benefício, pois para eles hoje a apa-rência é fundamental, juntamente com a organização e limpeza do ambiente de trabalho. Nesse período de associação eram funcionários da Prefeitura que faziam o trabalho de triagem e o que eles conseguiam reciclar ficava para eles.

Um grande parceiro da cooperativa foi o Centro Universitário La Salle, que diariamente tentava colocar na nossa mente que precisávamos formar uma coope-rativa, ter uma organização que auxiliaria para receber verbas de projetos. Como cooperativa a possibilidade de ter projetos aprovados era maior do que trabalhan-do como associação. Além de que como Associação não se tem muitos direitos, mas mesmo assim existia um medo de mudar, pois era sabido que muitas coisas precisavam mudar, principalmente pela organização. Trabalhar com livros de ma-trículas, livros ata, planilhas, gerava uma certa dose de medo, em função do des-conhecido. A simples ideia que seria necessário trabalhar com equipamentos de informática, mexia com o psicológico a ponto de causar dores de barriga só pelo fato de pensar em utilizar um computador.

Entendo que eu era uma das lideranças nesse período de transição, por isso fui confrontada pela equipe do La Salle a fazer um curso de informática, pois consideravam que esse era um passo essencial para dar prosseguimento ao so-nhado projeto de se tornar uma cooperativa. Uma pergunta mexeu comigo, com relação ao trabalho, dizia o seguinte: tu queres trabalhar aqui, tu gostas deste lugar aqui? Como minha resposta foi afirmativa, eles disseram: então faça um curso de informática para se aperfeiçoar e desta forma poder ajudar o restante do pessoal. Graças a esse incentivo e força de vontade minha, a inscrição no curso de informática foi realizada, e finalmente consegui concluir o curso.

O meu ingresso na cooperativa aconteceu no ano de 2008. O meu marido

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estava viajando para Santa Catarina, e eu emprestei o carro dele para um casal de amigos, resultado disso, eles se envolveram em um acidente com o carro. Eu precisava resolver esse problema: que era de consertar o carro do meu marido, mas como? Onde eu iria conseguir um emprego para obter o dinheiro necessário para pagar o conserto do carro? Depois de dez anos como dona do lar, como con-seguir uma colocação no mercado de trabalho não seria nada fácil, considerando ainda que eu não tinha concluído o ensino regular, na realidade tinha somente até a quinta série. Trabalhar em obra eu não queria e a opção que surgiu para mim, foi a reciclagem, que eu tinha escutado falar que eles pagavam bem.

Tinha uma família que cuidava da Associação, em que a presidente era cunhada do meu tio, embora eu nunca tivesse trabalhado com reciclagem e nem gostava muito de mexer com lixo, mas essa era a melhor opção naquele momento. Por isso eu pedi para essa mulher uma oportunidade de trabalho, pois o meu único e exclusivo interesse era conseguir o dinheiro suficiente para o conserto do carro do meu marido. Por isso procurei deixar claro logo na chegada a minha intenção: “eu preciso pagar o carro e já vou sair”, ou seja, segundo a ideia que eu tinha, seria por pouco tempo. Quando comecei, trouxe comigo três vizinhas, uma delas está aqui até hoje. Embora eu sempre trabalhasse bastante, no final recebia em torno de cento e cinquenta reais. Quando eu vim para cá, pensei que aquelas pessoas que eram parentes do meu tio, fossem da família, mas descobri de uma forma não muito boa, que não eram minha família, pois tinham o pensamento de ganhar dinheiro em cima do nosso trabalho. Esse período foi bem complicado, pois ela (presidente) dava ordens e só retornava no outro dia para verificar o que foi rea-lizado e como estava a situação. A filha, o filho e o genro não queriam trabalhar no pesado, buscavam somente serviços burocráticos. Na distribuição do serviço, existia o problema de que fulano não pode fazer isto e outro não podia fazer aquilo e na realidade nós estávamos sempre indo nas tarefas mais ruins. Nós trabalhá-vamos e eles ficavam sentados.

O nosso pensamento era de que eles mandavam no pessoal, que eles eram nossos patrões. Por isso todos nós nos empenhávamos, porque tínhamos medo de sermos demitidos e mandados embora. Quando parávamos para conversar, descobríamos que cada um tinha um problema, e eu pensava: “meu Deus, tem uma coisa errada”. Foi quando eu resolvi procurar o secretário para entender a relação de emprego na qual eu estava metida, pois a dúvida geral era sobre quem tinha o poder de mandar. Resumindo, a dúvida afinal era: quem manda é o se-cretário ou essa senhora que estava como presidente? O entrave foi solucionado

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quando ele explicou que ela como presidente tinha autonomia para falar com o grupo, mas o grupo tem uma autonomia maior de responder. Como ninguém tinha entendimento sobre o funcionamento da associação, acreditávamos que ela tinha o poder de mandar e que todos nós éramos obrigados a obedecer.

Naquela época ninguém tinha a menor noção do que significava a pala-vra autonomia, nem sequer se interessavam em descobrir o que significaria isso. Como o secretário havia deixado na minha mente essa interrogação e como todos os demais colegas estavam morosos nessa época, o próprio secretário entrou em contato com o La Salle, sobre essa demanda. Foi quando apareceu a professora Lurdinha numa tarde aqui na Associação. Como ainda existia o poder dominador da tia (antiga presidente), que cuidava da Associação, ela tentou impedir a entrada do La Salle para conversar com os associados. Foi preciso uma manobra logísti-ca para despistar a tia e permitir a entrada, quando ela percebeu a Lurdinha e o secretário já estavam sentados para falar com o pessoal. A partir desse momento os associados começaram a contestar as ações praticadas até aquele momento, como enfrentar a situação de que aquela senhora estava na posição de presidente naquele momento, mas que não era a dona do negócio. O grupo de associados estava disposto a ouvir a explanação da professora Lurdinha, do Secretário de Meio Ambiente e a Beatriz da cooperativa Coarlas de Canoas, que veio junto para auxiliar nessa conversa.

Antes da reunião houve uma tentativa de desmotivação da equipe para que não dessem ouvidos ao que seria falado naquela reunião. Uma das tentativas foi a de colocar a ideia de que o Secretario, o La Salle, estavam interessados em ganhar dinheiro com o trabalho dos associados. Ainda bem que essa tentativa fra-cassou, e a equipe participou da reunião, onde foi desmistificado o significado dos termos associação e cooperativa. Nessa reunião foram debatidos tópicos como o que é associação, o que é cooperativa, qual o papel do presidente, quem decide, o que deve ser feito, qual a importância do conjunto que forma a maioria do grupo na associação. Informações como compra, venda e despesa precisam ser de conhe-cimento geral dos associados, ou seja, nada disso acontecia aqui. Nessa reunião surgiu a proposta de que eles fizessem um curso nas dependências do La Salle, como o professor Robinson sobre Associativismo e Cooperativismo, foi quando eu tomei a frente e decidi que iria participar, porque todos os demais ainda tinham a mentalidade de que poderiam ser demitidos se participassem desse curso. Os próprios associados por falta de conhecimento davam muito mais poder para essa

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presidente do que realmente ela tinha, o que fazia com que eles se sentissem oprimidos e com medo. Como novamente ouve uma tentativa por parte da presi-dente de impedir que eu participasse desse curso, o secretário tomou a palavra e reforçou que as decisões são tomadas em grupo e não de forma unilateral, que ela tinha consciência disso e que não podia impedi-los de participar desse curso. Esse curso trouxe mais motivação e confiança dentro do grupo.

Algumas atitudes que eram tomadas anteriormente, como privilegiar os pa-rentes, foram modificadas, pois todos começaram a entender que as decisões eram tomadas em conjunto, eles foram se sentindo mais fortes e começaram a lutar pelos seus direitos. Esse período ainda foi conturbado, pois apesar desse novo entendimento, ainda pairava no ambiente o medo de que pudessem fazer algo ruim contra eles, como demiti-los. A mudança foi lenta, pois em alguns mo-mentos eles aceitavam a opressão, trabalhando jornadas longas e algumas vezes sofrendo humilhação e em outros momentos resistiam. Depois de várias atitudes, o grupo decidiu que ela não permaneceria mais como presidente. Precisavam dela ainda para assinar a documentação do banco, mas que a gestão estava passando para o grupo agora. Aconteceu que toda aquela família saiu da associação e a presidência ficou compartilhada entre mim e a Ângela. Muitas mudanças come-çaram porque precisamos buscar a melhoria, mais informações, capacitações. O grande diferencial da Cootre hoje é fazer com que as pessoas tenham o desejo de estudar, temos pequenos conflitos? Sim, mas logo nos acertamos e estamos tudo bem, como uma grande família.

Fazendo uma comparação entre o antes e o agora, muitos teriam um cho-que ou ficariam apavorados, que nas palavras da antiga presidente seria: “toca esse grupo fora e atira lá no lixo, porque são muito sem vergonha, tudo preguiço-so, tudo vagabundo. Mas hoje nós temos orgulho, que pena que não tiramos fotos, não registramos nada, sabe”.

No início não tínhamos consciência do uso de EPI’s, como luvas. O Campi executou um projeto junto com a Gerdau de capacitação e formação, mas como não dávamos atenção para isso, quase perdemos o projeto, pois a Gerdau veio sem avisar e tirou fotos nossas sem a utilização dos EPI’s, apenas de chinelos, luvas cirúrgicas e sem nada dos materiais que eles doaram. Não foi por falta de aviso, porque o La Salle sempre dizia: vocês devem utilizar os EPI’s. Quando o La Salle ficou sabendo e veio até aqui, já questionando: cadê os EPI’s de vocês? E nisso já entrou outros assuntos que também não estavam regularizados como:

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livro de matrícula, livro de controle de fardos, livros de entrada e saídas, naquela hora eu já estava “tonta” de tantos livros solicitados, mas eu disse que só tinha um que era o de vendas e acabou. Quando ele pediu para ver o livro e fomos até o escritório, não tinha nada certo. Quando ele abriu a gaveta, tinha de tudo um pou-co (meia, luva, escova, pente, etc.), ele ficou horrorizado pois era uma bagunça tremenda, e disse: “isso aqui não é um escritório, aqui não serve, vocês tem que limpar esse negócio”. Essa atitude drástica fez com que tomássemos vergonha e nos comprometemos a resolver. Daquela visita em diante fizemos uma reviravolta na organização e limpeza da cooperativa, tudo foi limpo com lava jato, foi compra-do cadernos e EPI’s, por fim criamos um hábito que mantemos até hoje. Um dia depois de tudo limpo, o Secretário do Meio Ambiente, sentou na mesa conosco e tomou um café. Nos sentimos orgulhosos pela mudança.

No ano de 2013 a Associação passou a ser uma Cooperativa (Cootre – Cooperativa de Trabalho de Recicladores de Esteio).

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Vânia, fotografia realizada na área lateral da cooperativa Cootre.

6. ENTREVISTA TRANSCRIADA VÂNIA - COOTRE

Eu sou a Vânia. Trabalho na arte da triagem na esteira, e na área da gestão, sou tesoureira. Estou na cooperativa desde 2006, sendo este o meu primeiro em-prego. Um primo meu, disse que estavam precisando de pessoas para trabalhar numa cooperativa, com reciclagem durante a Expointer, uma equipe trabalhava aqui dentro e outra na área da exposição, eu acabei ficando aqui dentro. Esse foi meu primeiro contato com a cooperativa. Inicialmente tínhamos um contrato de trinta dias, que era referente ao período de funcionamento da Expointer. Termina-do esse tempo, eu havia gostado do serviço, porque anteriormente eu nem queria saber de reciclar material.

Algumas mudanças aconteceram, pois eu morava com meus pais e não tinha renda nenhuma. Meu pai que mantinha a casa e essa oportunidade de tra-balho, permitiu para que eu contribuísse com a renda familiar. Hoje já sou casada, mas continuo ajudando meu marido no complemento da renda familiar.

Em 2006 quando eu entrei ainda era Associação, hoje já somos cooperativa, pagamos o nosso próprio INSS, melhoramos a estrutura da nossa secretaria, não precisamos mais trazer comida de casa, pois hoje tem alguém responsável por

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preparar as nossas refeições. Possuímos refeitório e escritório organizado, tudo com apoio do La Salle e do Campi, hoje todos utilizam uniforme da cooperativa. Quando cheguei tinha apenas um caminhão de coleta, hoje já tem três caminhões.

Hoje nós temos um fluxo de trabalho bem esquematizado, iniciando pelos três caminhões composto de motorista e ajudante, que executam a coleta pela cidade, descarregando o material lá em cima, onde ocorre a pré-triagem, ou des-manche da coleta que normalmente tem três pessoas. Essa equipe desmancha ali e coloca para dentro do funil que desemboca na esteira que trabalham em média oito pessoas triando o material, como: plástico, vários tipos de papel, entre outros. Tem uma pessoa só organizando os Bag’s trocando os que estão cheios, pelos va-zios, além dos três prenseiros, cada um trabalhando numa prensa. Aqui em baixo ficam mais três desmanchando materiais, eletroeletrônicos, aparelhos, separando alumínio e outros metais.

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7 ENTREVISTA TRANSCRIADA ELENIR – COOTRE

Meu nome é Elenir, eu entrei na cooperativa em primeiro de julho de 2014. Sempre trabalhei em empresas privadas com carteira de trabalho assinada e to-das as garantias trabalhistas. Meu primeiro contato com a cooperativa foi através da minha sobrinha a Rita, que é a atual presidente aqui. Permaneci por cinco anos no último emprego até que a Rita fez o convite, mas eu pense lá no lixo, mas não falei nada, apenas pensei. Mas resolvi conhecer a tal cooperativa que ela falou, levei comigo meus dois filhos, que permaneceram até que conseguiram um em-prego de carteira assinada, mas eu estou até hoje. Eu disse: “trabalhei em tantos lugares, mas aqui foi o lugar que eu me identifiquei comigo mesma, com o pessoal daqui”. Logo que eu vim para cá, o La Salle deu um curso e como nenhum dos mais antigos quiseram participar, eu fui fazer esse curso, que me capacitou a ser coordenadora.

No início havia um problema de relacionamento muito intenso, pois ninguém se entendia direito, brigavam por qualquer motivo fútil, tanto que eu falei para a Rita que eu não iria permanecer, que eu não iria me adaptar a maneira como eles se tratavam. Hoje é diferente, o clima de trabalho mudou, pessoas que saíram por problemas de relacionamento, retornaram e estão satisfeitos com o ambiente que existe agora. O ambiente está tão bom agora que antigamente eu me tratava com uma psicóloga, já tinha um bom tempo, depois que eu comecei a trabalhar aqui, até a minha saúde melhorou. Na última consulta médica, eu fui com o meu marido e ela me disse: “olha, não precisa vir mais, tu estás curada, tu te encontraste onde querias estar”, eu me encontrei mesmo.

Quanto a trajetória da cooperativa, sei pouco, pois estou a apenas um ano e dois meses. O que sei é um pouco da história que o pessoal conta, que o salá-rio era baixo, as condições não eram boas como sujeira, desorganização, entre outros. Mas eu cheguei num período de transição, algumas mudanças já tinham acontecido ou estavam acontecendo, conforme já relatei. A minha contribuição é recente.

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8. ENTREVISTA TRANSCRIADA MÁRCIA - COOTRE

Meu nome é Márcia Oliveira, trabalho na Cooperativa Cootre a um ano e quatro meses, principalmente na triagem da esteira, embora ninguém tenha uma atividade fixa além dos motoristas e os ajudantes do caminhão, todos os demais aprendem a trabalhar em todas as áreas. Já exerci funções de secretaria, traba-lhando com a parte burocrática, pois quando entrei aqui, a cooperativa me pagou um curso de administração, ainda ajudo a nossa presidente Rita, quando ela sai para reuniões e projetos, no momento estamos participando do projeto cataforte.

Meu primeiro contato com trabalho cooperativado foi através da cooperati-va Cooarlas (Cooperativa de Reciclagem de Lixo Amigas Solidárias) de Canoas, onde também participei de algumas capacitações no Centro Universitário La Salle, com o professor Robinson. Após essas capacitações, me senti um pouco frus-trada, pois em nenhum momento conseguia aplicar os ensinamentos aprendidos onde eu estava. Nesse período conheci a Rita, através de uma apresentação que ela fez lá na Assembleia Legislativa em Porto Alegre, onde ela estava prestando contas de um projeto que eles participaram. Ela estava apresentando resultados desse projeto o que me deixou encantada, pois ela relatou como que eles eram antes e como eles estão agora. Nessa reunião ela contou um pouco da trajetória da cooperativa, seus momentos de dificuldades, a precariedade das coisas, a for-ma e o local onde eles faziam as refeições, ou seja, ela contou toda a trajetória deles. Após esse encontro eu retornei para a Cooarlas, onde passou mais um tem-po até que tivemos um novo encontro onde ela fez o convite para que eu viesse trabalhar aqui com eles.

Então o convite foi da Rita, o qual eu aceitei, trocando a Cooarlas de Canoas pela Cootre de Esteio. Eu passei por um conflito interno “porque quando eu passei pelas formações lá no La Salle em Canoas, na verdade eu não, não me encontra-va mais dentro daquela Cooperativa, eu já me sentia assim, meio, sei lá! Não me encontrava lá. Daí quando eu vim para Cootre, que eu pude ver que tudo o que eu tinha aprendido com o professor Robinson, era verdade, existia entendeu, tinha cooperativismo, tinha economia solidária, tinha um novo mudo mesmo, né, e foi aqui que eu encontrei! Aqui”. A minha trajetória com a Cootre começou no final de 2012, e permaneci até dezembro de 2013, durante o ano de 2014 eu não estava

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trabalhando aqui com o pessoal, retornei novamente em 2015. Mesmo trabalhando na cidade de Esteio, permaneci morando na cidade de Canoas. Não tem nenhum ônibus que faça o trajeto do local onde um moro até aqui, por isso eu caminhava uma hora e quarenta e cinco minutos a pé para chegar até aqui, isso na parte da manhã para vir, quanto na parte da tarde para ir embora. Depois eu descobri uma linha de ônibus que vinha até a metade do caminho, o que me facilitou muito, pois reduziu o tempo de caminhada para meia hora. A Rita começou a me levar algu-mas vezes, e em cada ida, ela levava um outro cooperado para ver a dificuldade que eu encontrava para vir trabalhar, para que eles aprendessem a dar valor. Para conseguir chegar no horário é preciso acordar as seis horas da manhã. A Rita me questionou: o que te motiva a acordar nesse horário todos os dias? “Daí eu falei, Rita, é o meu serviço que eu faço, porque tem que acredita, porque hoje em dia não é só o serviço mais, já é uma causa, já é uma vida! É uma razão, né, então não é só uma questão de serviço e ganhar dinheiro, é uma questão já de luta mesmo”.

Eu saí em dezembro de 2013, trabalhei de janeiro a maio de 2015, numa cooperativa, das quatro que tem em Canoas, pois já fazia um bom tempo que eles estavam me sondando para trabalhar com eles, mas no mês de maio eu resolvi sair, pois não gostei da maneira como eles separavam o material, não era uma separação de qualidade como a que é executada aqui. Não concordava com o desperdício de material que tinha, por isso não consegui me adaptar. Quando me chamaram de volta para a Cootre, não pensei duas vezes para tomar a minha de-cisão. Aqui o material é bem separado, somos valorizados, existe um sentimento de trabalho com as gurias, com a Cooperativa mesmo, pela própria trajetória, não tem palavras, “sei que é muito bom, muito bom estar de volta”.

Agora quando eu voltei em 2015, trouxe a minha colega novamente, e fa-zemos o trajeto juntas. Essas coisas motivam, porque nós passamos por várias formações, mas nós estamos num lugar que não aplica aquilo que foi aprendido e tu pensas: onde é que eu vou colocar em práticas tudo isso que eu aprendi? De repente, eu me encontro dentro de uma cooperativa que eu consigo colocar em prática como temos a oportunidade aqui, é algo que te motiva, “daí eu me apaixo-nei” por esse lugar. Quando eu vim para cá, tinha um grupo de pessoas “rebeldes”, que eram “brabas”, que assustavam novos cooperados, mas que com o tempo mudaram e eu penso que: “se tu consegues mudar uma pessoa só ao teu redor, tu já conseguiste bastante coisa”. Eu pude perceber mudanças no comportamento e atitudes dos cooperados.

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A minha reflexão é a seguinte: mas como é que eu cheguei aqui? O começo foram as formações do La Salle, o professor Robinson, das gurias do Tecnosocial, nós vamos aprendendo e conseguimos colocar em prática, e consegue mudar a vida das pessoas que estão na volta da gente é muito bom.

Existia um problema no quesito comunicação, que as vezes era bem com-plicado. Não tinha uma pessoa responsável por manter os contatos atualizados. Na minha primeira passagem, fiquei responsável pelos contatos internos dos coo-perados, fornecedores clientes, todos falavam comigo, pois a Rita não gostava de atender telefone. Com a minha ideia de sair, criei um facebook e cadastrei os con-tatos de WhatsApp para a Rita poder assumir essa responsabilidade de comunica-ção. Mesmo longe da cooperativa os clientes entravam em contato comigo: olha o caminhão não passou, hospital aguardando coleta, precisamos resolver isso, etc. Agora ela está mais habituada com as novas tecnologias, o que tem melhorado a comunicação.

Antigamente no horário do almoço, cada um pegava o seu prato, servia e saia para algum canto, ou árvore. Mas agora estamos conseguindo fazer a refeição juntos no mesmo local, isso tem fortalecido o grupo. Depois do almoço, podemos aproveitar o tempo, já que estamos juntos para resolver assuntos pendentes, fazer alguma reunião, tomar algumas decisões, ou até mesmo “jogar conversa fora”.

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9. DEPOIMENTO SOBRE VIDAS TRANSFORMADAS2

Somente após tu conhecer aquela pessoa e o porquê que ela tem determi-nado tipo de vida. Se teve uma chance, se não teve, ah se teve uma chance e não quis é sinal que não presta mesmo, é da índole dele, não presta. Mais tem gente que está hoje no mundo do tráfico, está sofrendo porque não tem oportunidade, né? E que nós fazemos aqui na Cooperativa, eu como presidente, eu comecei a abrir portas para eles, né, que nem o Tiago que não é alfabetizado, ficou quatro anos com nós. Ele vendia, fumava pedra, ele tremia assim, estava perdendo todos os dentes da boca, tinha o filho dele morrendo de fome, pedindo leite do lado dele, e ele compro a pedra e não comprou o leite. E a mulher dele disse assim para mim, tu arrumar um serviço para o Tiago lá na reciclagem de vocês? Nós ganhávamos seiscentos reais, não quatrocentos e setenta. Ele entrou em 2009 aqui. Daí nós peguemos, não eu vou arrumar, daí cheguei aqui, ah tem um Tiago pedreiro ali da vila, não sei o que, quer trabalhar para gente. As gurias diziam: não, não, não, vai nos roubar, é bandido. Eu falei oh, gente eu moro ali, eu vejo, não é bandido, ele apenas fuma uma pedra, mas não rouba, se ele roubar eu dou meu celular para vocês, para vocês dividirem. Daí as gurias, então está bom, se tu assumes, vai dar tua partilha por ele então, nós botamos ele. E botamos ele, todos os dias nós buscávamos ele para trabalhar, daí um ano, um ano nós sofremos com ele, ele fumando pedra e nós buscando ele. No próximo ano ele largou as pedras, daí comprou, fez rancho, comprou roupa que não tinha, comprou cama no brick, daí no outro ano ele fez uma casinha de meia água, daí no outro ano ele compro uma geladeira nova na loja, sabe! A evolução dele foi indo ano em ano. Aí quando fez quatro anos que ele estava aqui, ele comprou uma casinha por sete mil reais e um Chevette, ele junto o dinheiro e conseguiu comprar, né? Hoje não fuma pedra, não usa droga, e mesmo não alfabetizado, o policial ainda deixa ele dirigir o carro dele, viu que ele evoluiu. Eu acreditei nele, acreditei nas pessoas. Onde eu mo-rava, é que em bairro tu não vê, tu olhas assim, tu tens que morrer, tu tens que morrer! Quando tu moras assim ali no meio deles, ali fica conhecendo cada um, um por um., né, chegar, acreditar, dar uma chance. Tem uns aí que demos chance e não deu certo! Mas tem uns cinco, seis que tu consegues tirar. Consegue mes-mo, esse guri esse moreninho que estava aqui agora mesmo, ele foi criado na 2 Esses depoimentos foram fornecidos na Cooperativa Cootre pela entrevistada Rita.

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rua, ele era pedreiro, daí ele chegou da FASE, não tinha onde mora, nós arruma- mos vaga para ele, eu garanti meu salário para elas de novo, botei esse Igor aqui dentro, é um grande trabalhador, mais grande trabalhador. Ele roubou um celular quan-do era criança, daí a polícia bateu a ficha dele e ele estava devendo, daí levaram. Com um mês de trabalho aqui levaram ele lá na vila preso. E nisso ele fico três meses na área lá, ele começou a gritar lá dentro chama a dona Rita, chama a dona Rita. Não tem mãe Igor, não mãe eu não tenho, tenho a dona Rita que me ajudo trabalhar um mês na Cooperativa, que acredito em mim. E aí eu estava dormindo e a FASE me ligou, eu disse meu Deus do céu polícia me ligando não devo nada para polícia, né? Bah Jesus que será que é? Olha a senhora é Rita Presidente da Cooperativa? Res-pondi, sou. O Igor está falando muito seu nome aqui ele gostaria que a senhora viesse na audiência que nós temos e se responsabiliza por ele perante o Juiz. Eu falei não, eu não vou falar com juiz nenhum, eu vou matar esse guri quando che-gar perto dele. Daí ela disse: não a senhora vem aqui primeiro conversar com nós, ele está chorando, ela botou ele no telefone, ele desesperado chorando, eu disse está bem Igor, eu vou aí, se eu for presa, eu vou te matar, mais eu vou aí. Daí eu cheguei lá no Juiz, e o Juiz falou, olha ele fez essa pena com doze anos, só que ele não saiu do sistema, ele tem que cumprir os três meses só para terminar, mais ele está dizendo que ele vai trabalhar com vocês na Cooperativa é verdade? Eu disse olha senhor é verdade, o nome dele está no Ministério do Trabalho, o Mi-nistério acho a queixa ele era de menor. Agora ele tem vinte anos. A gente vamos leva sim, o grupo aceita ele, se ele roubar eu vou matar ele senhor, eu vou matar ele, olha eu vou dá-lhe uma tunda de ferro nele. O Juiz mais caga ele a pau, mata ele a pau. Mas vamos dar liberdade para ele e vocês se responsabilizam por ele. Mais porque nós se responsabilizamos por ele, porque é um grande trabalhador. Não usa droga, trabalha direitinho, tudo o que tu mandar ele faz sabe, é gente boa, modificou a vida dele. Isso dá satisfação de tu pode ajudar, ver que a pessoa saiu daquela miséria ali. E tem uma vida digna, é isso que todo dia da coragem de levantar, né, vim lutar por eles, é muito bom, esse guri foi muito bom e o grupo todo aceitou sem medo, né, de ser roubado, é muito bom. E lá onde eu moro assim oh, é muito coisa ruim, é muito tráfico, é crianças vendendo droga com dez anos de idade é, sabe, e crianças assim oh modo de dizer, porque eu não tenho pena deles, porque eles machucam para assaltar, eles machucaram uma senhora de sessenta anos na parada para pegar um telefone. Daí eu falei para eles assim, vocês têm oportunidade de ficar numa creche, num colégio o dia inteiro, vocês são ruins, porque vocês nasceram ruim, eu digo para eles sabe. Não tem a necessida-

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de de estar na rua, tem uns que querem estar e tem uns que não querem estar. É que ali a gente consegue salva, e olha agradeço a DEUS pelo traficante nunca se encarnar em nós, isso que eu digo, durmo todo dia e pergunto a DEUS como tu protege Pai! Porque na televisão diz que o traficante se mete, né, a gente vê nos filmes, né? No Rio de Janeiro e, não deixam tirar da sociedade, não ali, não ali se quiser mudar, eles deixam sair. Sabe, então é muito bom mesmo. E respeitam nós aqui eles mesmo falam olha se um dia alguém roubar vocês lá, vocês gritam, com nós lá que a gente vai procurar quem roubou vocês, sabe, porque a senhora está ajudando pessoas, né.

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10. MEMÓRIAS NA RECICLAGEM

1. Trajetória das cooperativas

1.1 Trajetória da Renascer

A Cooperativa Renascer cresceu a partir da coleta de resíduos sólidos den-tro do aterro sanitário da cidade de Canoas desde o ano de 1976. O avanço co-meçou a partir de um galpão que tinha apenas um telhado, sem paredes. Esse galpão minimizou o problema oriundo desse trabalho realizado a céu aberto, sob influência do forte sol, outras vezes da chuva e frio. Como o local tinha apenas uma cobertura, muitas vezes eles permaneciam expostos aos mesmos fenôme-nos da natureza que anteriormente, agora numa escala um pouco menor. Uma nova fase da Renascer foi a constituição da associação dos catadores e reciclado-res no ano de 2009, para finalmente chegarem ao estágio atual, que foi o de em 2011, se tornarem uma cooperativa. Uma das entrevistadas, a dona Sônia, é uma das mais antigas trabalhadoras da área da coleta de resíduos sólidos da Renascer e que já está atuando nesta atividade desde o ano de 1986 na cidade de Canoas, tendo presenciado todas essas fases de crescimento desse grupo de reciclagem.

1.2 Trajetória da Cootre

A trajetória da Cooperativa Cootre é diferente, como seria de se esperar. É um grupo mais novo, mas que já passou por etapas de crescimento e desen-volvimento. Inicialmente existia um grupo de coleta que trabalhava no terminal de transbordo da cidade de Esteio, por meio da ARCA – Associação de Recicla-dores e Catadores de Esteio. Esse grupo não tinha muito conhecimento sobre o funcionamento de uma cooperativa, o que fez com que eles tivessem vários con-flitos iniciais. Durante a sua trajetória, transferiram-se para um local pertencente à Prefeitura de Esteio/RS, onde ainda se localiza. Houve uma fase de transição entre a associação e a cooperativa (formalizada em 2012), momento em que o Tecnosocial do Unilasalle foi muito importante, pois treinou, capacitou e auxiliou nas questões práticas e técnicas que impulsionaram e desenvolveram esse grupo.

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Um dos elementos que emergiu das análises do material coletado nas duas coo-perativas trata da comunicação. A partir desse elemento emergiram as categorias: informação e comunicação. Sempre que se torna necessário tomar uma decisão importante, é realizado uma reunião na qual participam todos os cooperados tem o direito ao voto.

1.3 Síntese da Memória Institucional das duas cooperativas: uma comparação

Quando comparados elementos da Memória Institucional das duas coo-perativas, observa-se que embora a cooperativa Renascer seja o empreendimen-to de economia solidária que está atuando há mais tempo na região metropolitana de Porto Alegre, percebe-se que a memória institucional da Cootre é mais solidifi-cada. Ambas têm uma trajetória de lutas e conquistas bem considerável. Enquanto a comunicação na Renascer enfrenta alguns percalços, na Cootre ela flui melhor. A marca de vidas que foram transformadas é mais saliente na Cootre, que conse-guiu trazer novamente para o convívio da sociedade, pessoas com trajetórias de exclusão social. Existe uma diferenciação entre elas, até com relação ao motivo que levou a entrada dos cooperados na cooperativa, pois as evidências mostram que na Renascer os motivos demonstram maior exclusão social do que na Cootre. Também com relação à permanecia na cooperativa, percebe-se que a rotatividade na Renascer é menor do que na Cootre, tanto que nesse período, não houve afas-tamento na Renascer, mas na Cootre, duas das entrevistadas não permaneceram trabalhando, configurando-se como uma contradição. A questão da solidariedade, como fator importante no âmbito da economia solidária, não tem uma aceitação plena na Renascer, pois existem pessoas mais antigas na cooperativa (época com mais individualismo), por isso se demonstra um pouco mais fechadas para este tipo de ação social. Já na Cooperativa Cootre a solidariedade tem uma aceitação e engajamento geral, pois eles demonstram sentir prazer em colaborar e atender a necessidade dos seus pares.

Em ambas as cooperativas seus integrantes residem próximos aos estabe-lecimentos onde trabalham, mas na Cootre sobressai a questão do parentesco entre os cooperados, aspecto que na Renascer não apareceu. Além disso, nas duas cooperativas, a indicação tem sido uma porta considerável de acesso a este ramo de atividade. A análise da trajetória mostra que a Renascer iniciou com o

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predomínio de homens, mas hoje em ambas cooperativas existe um predomínio do trabalho feminino. Não foi verificada a existência de eventos sociais significati-vos na Renascer. Na Cootre, as comemorações de aniversários, são verdadeiras ações coletivas, que caso sejam esquecidas geram aborrecimentos entre os coo-perados, ou seja todos se movimentam para organizar uma festa de aniversário mensal contemplando os aniversariantes daquele mês.

A resolução de conflitos e relacionamentos mostra-se como uma construção coletiva nas cooperativas, sendo que a Renascer prioriza o estabelecimento de regras de convivência para minimizar problemas de relacionamento, enquanto que na Cootre prioriza-se o diálogo. O sentimento pertinente as duas cooperativas é de que constituem uma grande família, o que demonstra o grau de comprometimento e pertencimento que os membros têm, com relação a cooperativa. Portanto, po-de-se entender que a Memória Institucional da Cootre é embasada na confiança, enquanto a da Renascer é calcada em regras.