Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    1/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    343

    UM ESCRITOR SEMPRE FALA DE SI MESMOUMA JUVENTUDE VIENENSE E A AUTOBIOGRAFIA DE ARTHUR SCHNITZLER

    UN ESCRITOR SIEMPRE HABLA DE SI MISMOJUVENTUD EN VIENA Y LA AUTOBIOGRAFIA DE ARTHUR SCHNITZLER

    A WRITER ALWAYS SPEAKS FROM PERSONAL EXPERIENCEA VIENNESE YOUTH AND ARTHUR SCHNITZLERS AUTOBIOGRAPHY

    UN AUTEUR PARLE TOUJOURS DE LUI-MMEUNE JEUNESSE VIENNOISE ET LAUTOBIOGRAPHIE DARTHUR SCHNITZLER

    DOI:10.5533/1984-2503-20113301

    Marcelo Backes

    RESUMOO presente texto, em forma um pouco alterada, constitui o posfcio indito deUma

    juventude vienense , obra autobiogrfica do escritor vienense Arthur Schnitzler, a serpublicada em janeiro de 2011 na coleoAs Grandes Obras de Arthur Schnitzler .Marcando as datas no calendrio, Schnitzler escreveuUma juventude vienense entre1915 e 1920, num tempo em que o gnero estava longe de alcanar a divulgao que temhoje em dia. Assim,Uma juventude vienense um documento central no sentido decompreender tanto uma poca decisiva da histria da humanidade, quanto a vida e a obrade um dos maiores autores da lngua alem. A obra tambm assinala a relevncia quetodo um gnero literrio a autobiografia viria a adquirir apenas vrias dcadas depois.A partir da fala do autor presente no texto autobiogrfico, destacam-se algumas dasvrias questes discutidas por ele, como por exemplo sua relao com a capital doImprio Austro-Hngaro, Viena, a sociedade da poca, o judasmo e, especialmente, suasrelaes amorosas. Como nas obras literrias de Schnitzler, esta tambm est marcadapelo profundo mergulho na alma humana e, ao mesmo tempo, pela abordagem do mundol fora. A autobiografia de Schnitzler mostra enfaticamente porque o historiador Peter Gayfez do autor vienense o personagem central e mais representativo de toda uma pocanuma obra j clssica,O sculo de Schnitzler. Por fim, reala-se ainda as relaes entre

    os personagens reais da vida do autor e os personagens de seus romances, da o moteum escritor sempre fala de si mesmo.

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    2/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    344

    Palavras-chave: Arthur Schnitzler, Literatura, Autobiografia, Viena, Histria.

    RESUMENEl presente texto, en una forma un poco alterada, constituye el postfacio indito deJuventud en Viena , obra autobiogrfica del escritor viens Arthur Schnitzler, a serpublicada en enero de 2011 en la coleccinLas Grandes Obras de Arthur Schnitzler .Marcando las fechas en el calendario, Schnitzler escribiJuventud en Viena entre 1915 y1920, en un tiempo en el cual el gnero estaba lejos de alcanzar la divulgacin que tienehoy da. As queJuventud en Viena es un documento central para comprender tanto unapoca decisiva de la historia de la humanidad, como la vida y la obra de uno de los msgrandes autores de la lengua alemana. La obra tambin seala la relevancia que un

    gnero literario la autobiografa adquirira solamente varias dcadas despus. A partirdel habla del autor presente en el texto autobiogrfico, se destacan algunas de las variascuestiones discutidas por l, como por ejemplo su relacin con la capital del ImperioAustro-Hngaro, Viena, la sociedad de la poca, el judasmo y, sobre todo, sus relacionesamorosas. Como en las obras literarias de Schnitzler, esta tambin est marcada por laprofunda zambullida en el alma humana y, al mismo tiempo, por el abordaje del mundoque est fuera. La autobiografa de Schnitzler muestra enfticamente porque el historiador

    Peter Gay hizo del autor viens el personaje central y ms representativo de toda unapoca en una obra clsica, Schnitzler y su tiempo . Por fin, se destaca las relaciones entrelos personajes reales de la vida del autor y los personajes de sus novelas, de dondeproviene el mote un escritor siempre habla de si mismo.Palabras-clave: Arthur Schnitzler, literatura, autobiografa, Viena, historia.

    ABSTRACTThe present text, partially-modified, is an inedited postface toUma juventude vienense (AViennese Youth) , the autobiography of the Viennese writer Arthur Schnitzler to bepublished in January 2011 in the collection entitledAs Grandes Obras de ArthurSchnitzler . Schnitzler wroteA Viennese Youth between 1915 and 1920 when the genre didnot enjoy the popularity that it does today.A Viennese Youth is therefore a significant workfor its understanding of an era which was so definitive in the story of humanity and for

    being the life story of one of the most important authors in the German language. The workalso highlights the relevance that literary genres, and in particular autobiographies, come

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    3/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    345

    to acquire just decades after publication. Reading the authors words in thisautobiographical text brings to life the various questions discussed, such as those relatedto the capital of the Austro-Hungarian empire Vienna, the society of the era, Judaism, andin particular, his love life. Just as in Schnitzlers literary works, his autobiography is markedby his plunging into the workings of the human soul and, at the same time, by the outsideworlds approach. Schnitzlers autobiography makes it abundantly clear why historianPeter Gay made the Viennese author the main and most representative character of anentire era in his now classic work,Schnitzlers Century . Finally, this autobiography alsohighlights the relationships between the real characters in the authors life and thecharacters in his novels, affirming the belief that an author always speaks from personalexperience.

    Keywords: Arthur Schnitzler, Literature, Autobiography, Vienna, History.

    RSUMLe prsent texte, lgrement modifi, est une postface indite deUma juventudevienense , luvre autobiographique de lcrivain viennois Arthur Schnitzler, qui serapublie en janvier 2011 dans la collectionAs Grandes Obras de Arthur Schnitzler .Schnitzler a critUne jeunesse viennoise entre 1915 et 1920, une poque o le genre

    tait loin de jouir du mme prestige quaujourdhui. De cette manire, cet ouvrageconstitue un document central pour la comprhension aussi bien dune poque dcisivede lhistoire de lhumanit que de la vie et de luvre de lun des plus grands auteurs delangue allemande. Ce livre montre galement la pertinence dun genre littraire, celui delautobiographie, que consacreront les dcennies suivantes. partir du rcit de lauteurdans ce texte autobiographique, nous nous intresserons plus particulirement certainsdes thmes abords, comme par exemple ses rapports avec la capitale de lEmpire

    austro-hongrois, Vienne, et avec le judasme, ou encore ses relations amoureuses. Cetexte, comme toute luvre littraire de Schnitzler, est galement marqu par une plongeprofonde dans les mandres de lme humaine et une confrontation simultane au mondeextrieur. Lautobiographie de Schnitzler dvoile trs clairement les raisons qui ont pousslhistorien Peter Gay faire de lauteur viennois le personnage central le plus reprsentatifde toute une poque dans son ouvrage Le sicle de Schnitzler. Nous mettrons enfin enlumire les rapports entre les personnages rels de la vie de lauteur et les

    personnages de ses romans, do le titre un auteur parle toujours de lui-mme .Mots-cls : Arthur Schnitzler ; littrature ; autobiographie ; Vienne ; histoire.

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    4/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    346

    Num tempo em que o gnero estava longe de alcanar a divulgao que tem hojeem dia, Arthur Schnitzler escreveu uma autobiografia de suma importncia.Uma

    juventude vienense um documento central no sentido de compreender tanto uma pocadecisiva da histria da humanidade, quanto a vida e a obra de um dos maiores autores dalngua alem. De quebra, ainda assinala a relevncia que todo um gnero literrio aautobiografia viria a adquirir apenas vrias dcadas depois.

    Schnitzler j se encontra s voltas com a ideia de escrever uma autobiografia em1901. Em suas anotaes, aponta sempre para a necessidade profunda de ser

    verdadeiro, de registrar suas recordaes de modo completamente fiel verdade. Masao sentir as dificuldades do retorno ao passado, as falhas na memria, os enganos darecordao, j questiona em que medida a verdade possvel, apesar da inclinaoreafirmada de ser verdadeiro, inclusive contra si mesmo.1

    Desde o princpio, Schnitzler reconhece que no necessria nenhuma coragemde carter especial para registrar todas as piores oscilaes nem as aes mais srdidasdas quais algum se sabe culpado quando esse mesmo algum est convencido de que

    antes de sua morte ningum tomar conhecimento do que foi dito. Ele tambm logo sepergunta autocrtico se sua necessidade de verdade no viria, em parte, de umacaracterstica radicada no sentimento patolgico da ideia obsessiva, na tendncia a umcerto pedantismo exterior que no decorrer dos anos se desenvolveu de forma cada vezmais decidida como um corretivo ao desleixo interior.

    Quando fala do antissemitismo um dos assuntos essenciais deUma juventudevienense nas mesmas anotaes, Schnitzler diz ter sentido a necessidade de reagir,

    pois manifestar impassibilidade diante do assunto seria mais ou menos como ficarindiferente depois de mandar anestesiar a pele, mesmo vendo, de olhos arregalados,como facas sujas nos rasgam a carne at fazer o sangue jorrar.

    O mergulho na alma aqui dentro e a abordagem do mundo l fora chegam aprofundidades raramente alcanadas. A autobiografia de Schnitzler mostra enfaticamenteporque o historiador Peter Gay fez do autor vienense o personagem central e mais

    1 Ver SCHNITZLER, Arthur (1985). Autobiographische Notizen. InJugend in Wien. Herausgegeben vonTherese Nickl und Heinrich Schnitzler , Frankfurt a. M.

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    5/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    347

    representativo de toda uma poca numa obra j clssica, ainda que lanada em 2002,Osculo de Schnitzler.

    Uma capital, um autorSchnitzler compartilha seu destino com Viena, a capital em que nasceu, viveu e

    morreu.Seu mundo um dos maiores centros da arte, do pensamento e at mesmo do

    poder na poca. A capital do imprio austro-hngaro o universo de Robert Musil e KarlKraus na literatura, de Gustav Mahler e Arnold Schnberg na msica, de OskarKokoschka e Gustav Klimt na pintura o mundo de Sigmund Freud na psicologia e o deTheodor Meynert na psiquiatria.

    E no h escritor que melhor caracterize esse universo do que Arthur Schnitzler.Ele foi chamado de Maupassant austraco por Alfred Kerr (o maior crtico alemo dapoca) e de Tchekhov vienense por Friedrich Torberg (um dos grandes autoresaustracos do sculo XX). Torberg diz ainda que Schnitzler antecipou James Joyce com anovela genialO tenente Gustl , e que a pea A cacatua verde j contm Pirandello inteiro.

    Que Arthur Schnitzler capaz de mergulhos profundos na alma humana em sualiteratura fica claro tambm em sua autobiografia. Na obra quando a literatura ainda

    nem era de fato, j que Schnitzler conclui o relato de sua vida no momento em quecomea a gozar os louros de sua escrita, mas a escreve bem mais tarde o elementoertico j mostra ser muito mais do que um passatempo social e Eros j evidencia querermuito antes expulsar a morte do que passar o tempo; exatamente como na fico. Se aconscincia da morte onipresente ainda que latente , o autor mostra um sentimentoquase amistoso em relao a ela, um ceticismo ameno que o leva a se entender com ofim definitivo. Nas memrias de Schnitzler fica claro mais uma vez que s podia ser ele o

    autor que veio a anotar j em uma de suas primeiras peas: A alma uma terra vasta,referendando seu tantas vezes repisado parentesco com o j citado Freud. Mas Schnitzlervai ainda mais longe, por exemplo quando antecipa Fernando Pessoa, ao dizer, na peaParacelso : No existe segurana em lugar nenhum. No sabemos nada dos outros, nadade ns. Estamos sempre fingindo; quem sabe disso, sbio. Que isso se no o poetafingidor do poeta portugus?

    A autobiografia de Schnitzler se caracteriza pela humildade sbria, pela ausncia

    daquela arrogncia que finge inocncia e caracteriza tantos autores quando se ocupamde si mesmos. preciso lembrar queUma juventude vienense obra de um autor

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    6/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    348

    cinquentenrio, nos pncaros da fama, que j sabia que o jovem inseguro de dcadasantes que ele se ocupa em caracterizar nem de longe preponderaria. Schnitzler nocontempla a juventude com a ironia distante da velhice, e sim com uma espcie decarinho crtico e analtico, como se o homem de 25 anos inclusive se mostrasse irnicoem relao ao de 50, querendo dizer que a maturidade no deixa de ser pelo menos emparte o resultado daquela crueza.

    Marcando as datas no calendrio, Schnitzler escreveuUma juventude vienenseentre 1915 e 1920. Planejava levar a histria de sua vida at 1900 que foi quando afama o bafejou de vez comO tenente Gustl , mas acabou por conclu-la em 1889, aoiniciar de fato sua atividade artstica, ao se tornar definitivamente mais escritor do quemdico. Coincidentemente, tambm o momento em que conhece Olga Gussmann,

    aquela que viria a se tornar sua esposa.E assim, lembrando uma grande autobiografia contempornea Nas peles da

    cebola , de um Gnter Grass alis nem de longe to humilde , Schnitzler termina seurelato praticamente antes do incio de sua verdadeira carreira a de escritor, a de mdicono era mais que um preparativo para ela , como se quisesse deixar claro que o poetacomea a se desenvolver quando o desenvolvimento do homem chegou ao fim. Umhomem que poca ainda nem entrara em contato com Freud, que ainda no trocara

    suas inmeras cartas com o crtico e filsofo noruegus Georg Brandes, que ainda nodialogara com Rainer Maria Rilke e Thomas Mann em suas correspondncias.

    Algumas questes fundamentaisSchnitzler um mestre no aproveitamento universal de manifestaes perifricas.

    Elas sempre lhe proporcionam a possibilidade de grandes concluses. o que aconteceinclusive em relao ao antissemitismo, cujo horror o autor no chegou a vivenciar em

    sua pior feio.Desde o princpio deUma juventude vienense , Schnitzler j sinaliza para a

    questo judaica, debatendo-a com autocrtica, ao se perguntar se algum que nasceu emdeterminado lugar, nele cresceu e nele continua trabalhando, deve contemplar outro pas no aquele no qual h dcadas vivem seus pais e seus avs, e sim aquele no qual seusancestrais estiveram em casa h milnios , e no apenas por motivos polticos, sociais eeconmicos (que de todo modo podem ser discutidos), mas tambmsentimentalmente ,

    como sua verdadeira terra natal.

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    7/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    349

    Diante dos ritos religiosos do judasmo, Schnitzler manifesta a mesma indiferena quando no resistncia, ou inclusive sarcasmo que caracterizava por exemplo apostura de Freud. Theodor Herzl, que veio a ser conhecido como o pai do sionismo, referido inclusive por ter militado em organizaes estudantis de ndole antissemita;Schnitzler diz t-lo encontrado num passeio usando o bon azul daqueles que eram entoos seus irmos reacionrios de crena e de partido. E Schnitzler arremata, mais uma vezum tanto crtico:

    O fato de estes o rechaarem, ou, como dizia o verbo ofensivo dos

    estudantes, o repelirem de seu meio como judeu, sem dvida

    alguma foi o primeiro motivo que transformou o estudante e orador

    alemo-nacionalista dos pdios acadmicos (onde nos olhamos com

    troa, ainda sem nos conhecer pessoalmente, em uma noite de

    reunio) no sionista talvez mais entusiasmado do que convicto que

    ficou sendo para a posteridade.

    Quando fala do duelo, e dos judeus que se tornaram esgrimistas habilidosssimose agressivos para melhor encarar as ofensas dos antissemitas, Schnitzler chega a citar a

    macabra Resoluo de Waidhofen, que declarava os judeus incapazes de tomarsatisfaes, e ao mesmo tempo deixava claro que o vu do holocausto que encobriria aEuropa j comeava a ser estendido:

    Todo o filho de me judia, todo ser humano por cujas veias corre

    sangue judeu desprovido de honra desde o nascimento, incapaz

    de qualquer sentimento mais sutil. Ele no consegue distinguir entre

    o que sujo e o que limpo. Eticamente, um sujeito bem maisbaixo. A relao com um judeu por isso desonrosa; preciso evitar

    qualquer espcie de comunho com os judeus. No se pode ofender

    um judeu, e por isso um judeu no pode exigir satisfao sobre uma

    ofensa sofrida.

    A marca amarela que identificava racialmente os judeus desde a Idade Mdia e

    que, alis, referida por Schnitzler comeava a se mostrar cada vez mais excludente eperigosa.

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    8/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    350

    Num mbito bem mais individual, o medo das doenas venricas outraconstante que sinaliza um dos grandes problemas da poca (e do sujeito). E Schnitzlermergulha em sua ciranda juvenil, buscando no sexo seu caminho pessoal para aliberdade. A leveza e o vazio a leviandade de seus anos jovens, cheios depossibilidades de duelos (outra questo debatida que se tornaria foco da narrativa emOtenente Gustl ) e apostas em cavalos (a descrio do apostador envolvido no auge dacorrida maravilhosa), quando o dinheiro significava havanas e jantares no restauranteda moda, mais um camarote no teatro, destrinada de cabo a rabo. Schnitzler inclusivereconhece que at uma determinada poca de sua vida muitas vezes se esforou em seestilizar; e que, se chegou a ser esnobe e o confessa , diz que seu esnobismo foicurado completamente pelo contato com os esnobes que veio a conhecer.

    Ele tambm relata uma dzia de casos amorosos. De algumas dessas mulheres,Schnitzler que chama a si mesmo de gal de cinco florins se lembra apenas porqueesto registradas em seu dirio, de outras nem recorda mais do nome, sequer. Chegou aterminar o caso que tinha com uma delas anotando os seguintes versos: Tambm estacinta-liga eu te mando de volta, encontrei-a hoje pela manh em minha cama. O amor jse mostrava lquido e o torpedo do celular comunicando o fim da relao parece no tersido usado to-somente porque ainda no existia...

    Ainda assim muitas de suas relaes como por exemplo a que teve com OlgaWaissnix, a primeira grande mulher de sua vida se alongam por meses em sua vida edezenas de pginas em sua autobiografia. Outras precisam apenas de algumas linhassintticas e vertiginosas:

    Uma jovem americana, Cora Cahn, de apenas dezesseis anos, que

    se encontrava em Ischl com seus parentes, me atraiu vivamente por

    causa de seu sotaque, de seus caprichos e de sua coqueteria. Emum tnel entre Gmunden e Ebensee as coisas se tornaram quase

    preocupantes, mas tneis so curtos e uma passagem por Ischl no

    chega a ser bem mais longa, sobretudo quando se tem de lidar com

    uma srie demasiado grande de variveis; e assim tambm essa

    aventura acabou dando em nada.

    A doce mocinha do subrbio, uma criao do autor, que caracterizaria tantas desuas personagens, definida tambm emUma juventude vienense , a partir de uma das

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    9/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    351

    mulheres que cruzou sua vida. Schnitzler diz que ela o prottipo de uma vienense,figura encantadora, feita para danar (...), feita para beijar um par de olhos brilhantes evivazes. Suas roupas so de gosto simples e com uma certa feio degrisette . Seuandar cheio de rebolado... lpido e natural... E as qualidades no param por a:

    A voz clara... A lngua vibrando em dialeto original. O que ela diz,

    apenas assim, como ela consegue diz-lo, como obrigada a faz-

    lo, quer dizer, cheia de vontade de viver, com um leve toque de

    precipitao. A gente jovem, que fazer, ela considera com um dar

    de ombros meio indiferente... No h nada a perder nisso, o que

    ela pensa consigo... E isso a razo mergulhada nas cores

    luminosas do sul.

    Impossvel no mergulhar no poo da aventura!

    A oficina literria do autorOs personagens ingleses de O caminho para a liberdade parecem ter sado todos

    eles da realidade deUma juventude vienense , que alis deixa claro porque uma certa

    Claire se torna to importante no romance... No momento em que o autor leviano comoa juventude ameaa se matar com um tiro porque seu dirio foi descoberto, manifestatambm um pouco daquela altivez melindrosa e problemtica que caracterizaria o jcitado tenente Gustl2.

    Quando conta sobre as dificuldades que teve em escrever a peaAegidius ecritica sua concepo, somos levados mais uma vez diretamente aO caminho para aliberdade e s dificuldades de Georg von Wergenthin s voltas com gidius, o grande

    personagem da pera que no consegue levar a cabo. Ao ler a autobiografia, confirma-seque o personagem central do romance tem muito a ver com o autor, inclusive na relaocom seu irmo. Arthur est para seu irmo Julius exatamente como Georg est paraFelician. A certa altura deUma juventude vienense Schnitzler chega a dizer:

    Meu irmo passou do piano ao violino, e tambm na msica, assim

    como em todas as questes escolares e mais tarde na medicina,

    2 Tanto O tenente Gustl quanto O caminho para a liberdade foram publicados na coleoAs Grandes Obrasde Arthur Schnitzler , Editora Record, organizao e traduo de Marcelo Backes.

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    10/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    352

    acabou me superando com sua persistncia e sua

    conscienciosidade, mas tambm por sua viso e seu talento.

    Felician tambm era muito mais hbil, muito mais gil e mais objetivo do queGeorg.

    O livro como um todo propicia uma bela olhada na oficina literria do autor.Descobrimos, por exemplo, que seus amigos pronunciaram algumas das frases que maistarde seus personagens diriam. Tambm ficamos sabendo que Gustav Pick se tornaria omodelo do velho Eissler deO caminho para a liberdade , assim como seu filho, Rudi Pick,se tornaria o modelo de Willy. E Schnitzler ainda arremata dizendo que os conhecedoresdo romance por certo havero de ter percebido as coincidncias, arrematando que o

    velho Pick se mostrou mais compreensivo e bem humorado com sua ousadia do quemuitos outros que compartilharam de seu destino e mostrando mais uma vez como a obra ainda que ficcional se encontra fortemente vinculada vida vienense de sua poca.Muitas outras peas e contos so referidos de passagem, bem como os motivos que osinspiraram. A passagem em que comenta a suposta origem da peaO vu de Beatrice maravilhosa, e diretamente vinculada a seu grande, ainda que platnico, amor por OlgaWaissnix. As pginas em que conta as venturas e desventuras desse amor, alis, esto

    entre as mais interessantes da autobiografia.Schnitzler tambm fala das estratgias lcitas e ilcitas de autores no sentido

    de se tornarem conhecidos em uma poca em que o mercado editorial estava longe de tero vulto que alcanou hoje em dia. Em muitos momentos, o autor adquire fumos de homemfrio, que pensa que so necessrias razes cadastrveis para retribuir a simpatia quealgum tem por ele, e no entende quando isso acontece sem as mesmas razes. Omesmo homem, no entanto, capaz de ridicularizar a si mesmo citando longos versos

    ingnuos e pueris para arrematar em seguida que havia provado ser um poeta talentoso.Ao longo da autobiografia h conceitos maravilhosos, como por exemplo o do

    apoio dialtico que Schnitzler dava para um amigo entediado terminar o namoro. Esentenas precisas como: Nos lbios de uma mulher o sorriso da recordao jamais seapaga completamente. Elas so mais vingativas, mas tambm mais agradecidas do queos homens costumam ser. Avanado, e pedagogicamente ctico, o autor declara a certaaltura: E, nesse sentido, quando se conheceu e se experimentou diante de que material

    pronto, apesar de toda a falta de maturidade, se encontram pais e professores, que sesente por inteiro que problema em certo sentido insolvel a educao representa. Em

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    11/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    353

    dado momento, chega a levantar a hiptese de que o alcoolismo provavelmente sejahereditrio. Sua sabedoria de ndole aforstica fica clara em sentenas como: Sempretemos de ver um punhal brilhando para compreender que um assassinato aconteceu. ESchnitzler que est falando de uma relao amorosa ainda complementa dizendo que

    (...) muitas vezes o vemos brilhar, e em vez de arranc-lo mo do

    assassino, nos contentamos em fazer admoestaes de leve,

    dizendo que ele no deveria fazer uma coisa dessas, se que no

    nos mostramos indiferentes e acomodados demais at mesmo para

    uma admoestao assim.

    Schnitzler tambm fala talvez pela primeira vez na histria da literatura,sobretudo se levarmos em conta que est falando de uma mulher e suas reaes porvolta de 1880 de uma personagem deprimida (gemtskrank ). Uma moa, namorada deum amigo, que parece ter protagonizado algo como uma fotonovela ertica j que fotografada nua ao lado de um tenente, e a fotografia era coisa nova na poca outraque d as caras em determinado trecho. Tambm a primeira manequim modelo(Probiermamsell ) da literatura universal parece ter sido registrada por Schnitzler. No

    apenas registrada, alis. O mundo incipiente da moda j visitava a cama da arte bemcedo...

    Muitas das grandes figuras cientficas do final do sculo so apresentadas naautobiografia de Schnitzler. Assim, por exemplo, o neurologista francs Jean-MartinCharcot em sua lida com a hipnose, e os trabalhos do psiquiatra Hyppolyte Bernheim,tambm francs. Moritz Kaposi, fundador da dermatologia moderna, outro dos citados.Schnitzler ainda caracteriza com detalhes o psiquiatra e neuroanatomista vienense

    Theodor Meynert, com quem trabalhou, e que alis tambm foi professor de Freud.Ao mesmo tempo percebe-se, em vrios momentos, como a cincia da medicina

    ainda estava longe de ter sido dessacralizada poca, mesmo que o mundo esteja emvertiginosa transformao, o que registrado por exemplo quando o autor conta,entusiasmado, sobre a primeira vez em que ficou em um quarto com iluminao eltrica.Ciente do carter ainda pouco cientfico da medicina, Schnitzler chega a contar de ummdico que acreditava ter descoberto no hbito enfadonho de lavar as costas o

    verdadeiro motivo do catarro bronquial. Schnitzler diz ainda que o referido mdico

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    12/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    354

    (...) foi to longe a ponto de afirmar com toda a seriedade que o lado

    direito adoecia menos vezes porque a mo esquerda, mais fraca e

    mais lerda, no costumava tratar o lado direito das costas com tanta

    crueldade quanto acontecia com o lado esquerdo, que era lavado

    pela mo direita, muito mais forte.

    E, assim, Uma juventude vienense tambm , em vrios momentos, uma histriasubjetiva da medicina em um dos perodos em que mais evoluiu: o final do sculo XIX.

    O mundo literrio e artstico da poca e mesmo anterior tambm comparece emmassa. Goethe multicitado, mas tambm os conterrneos e coetneos do autor, porexemplo Alfred Polgar e Peter Altenberg, do as caras. O dramaturgo noruegus Henrik

    Ibsen citado quando Schnitzler refere indiretamente o sentido que este d ao dia do juzo, e somos obrigados a investigar para descobrir que Ibsen disse num de seuspoemas, intitulado Um verso: Viver significa lutar contra o fantasma das forasestranhas dentro de si. Escrever fazer o dia do juzo contra seu prprio eu. A citao demasiado importante, e Ibsen conhecido demais poca, para que Schnitzler a repitaem sua autobiografia tal qual o dramaturgo noruegus a registrou. Afinal de contas, issoque ele faz ao longo de toda a obra.

    Em vrios momentos,Uma juventude vienense assume uma construo quaseromanesca, antecipando a confuso entre os gneros que se tornaria evidente sdcadas mais tarde. Quando Schnitzler diz que em Salzburgo, no inverno de 1891 para1892, as relaes teatrais na cidade invocavam seu interesse de modo bem especial epor um motivo bem pessoal insinua tangencialmente seu caso longo e ardente com aatriz Marie Glmer, que trabalhou vrios anos em Salzburgo. Quando fala do suicdio,especula sobre a carga ancestral inerente descendncia dos seus, j que vrios de

    seus parentes se suicidaram. Na poca, o autor sequer imaginava que sua filha Lilitambm acabaria se suicidando, e que praticamente morreria de desgosto por causadisso trs anos depois.

    Perto do final deUma juventude vienense , ademais, o autor comea a manifestardvidas de que as pginas autobiogrficas tero um prosseguimento. E, de fato, cinco ouseis pginas depois elas chegam ao fim, compondo apenas o painel de uma juventudevienense, o caminho de um homem antes de se tornar artista, o devir de um escritor at o

    instante em que comea a bafejar a fama...

  • 8/13/2019 Viena e Biografia de Aarthur Schnitzler

    13/13

    Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica,Rio de Janeiro: vol. 3, n o.3, setembro-dezembro 2011, p. 343-355.

    355

    Bibliografia

    SCHNITZLER, Arthur (1985). Autobiographische Notizen. InJugend in Wien.Herausgegeben von Therese Nickl und Heinrich Schnitzler, Frankfurt a. M.: Fischer.

    __________ (2011).O Caminho para a Liberdade . Col. As grandes obras de ArthurSchnitzler. Org. e traduo de Marcelo Backes. Rio de Janeiro: Record.

    __________ (no prelo).Uma juventude em Viena . Col. As grandes obras de ArthurSchnitzler. Org. e traduo de Marcelo Backes. Rio de Janeiro: Record.

    Recebido para publicao em agosto de 2011.