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BARRANCO DE CEGOS Alves Redol Barranco de Cegos Editorial Avante Lisboa 1982 PREFÁCIO Confessarei mais uma vez que quando leio ou ouço ou eu mesmo escrevo Homem, não consigo nunca libertar-me da velha necessidade de corrigir: os homens. Um vício de pensamento, se quiserem, uma maneira comezinha de considerar o mundo, uma banalidade. Mas devo-lhe a vantagem de não enxergar aquilo a que se chama "a literatura de hoje", com exclusão do que, não sei bem porquê, o não seria. Há, sem dúvida, movimentos que criaram e continuam a criar situações novas, os pontos mais evoluidos duma busca, conquistas de expressão, que quase sempre tendemos a considerar a vanguarda da literatura. Mas cada fase das literaturas de certos países, em pleno desenvolvimento económico e cultural, constituirá a fase a atingir e ultrapassar por todas as literaturas duma mesma época? Se não esquecermos que há países desenvolvidos, países em vias de desenvolvimento e países subdesenvolvidos, que os homens neles conhecem experiências assaz diferentes,

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BARRANCO DE CEGOS

Alves Redol

Barranco de Cegos

Editorial Avante

Lisboa 1982

PREFCIO

Confessarei mais uma vez que quando leio ou ouo ou eu mesmo escrevo Homem, no consigo nunca libertar-me da velha necessidade de corrigir: os homens. Um vcio de

pensamento, se quiserem, uma maneira comezinha de considerar o mundo, uma banalidade. Mas devo-lhe a vantagem de no enxergar aquilo a que se chama "a literatura

de hoje", com excluso do que, no sei bem porqu, o no seria. H, sem dvida, movimentos que criaram e continuam a criar situaes novas, os pontos mais evoluidos

duma busca, conquistas de expresso, que quase sempre tendemos a considerar a vanguarda da literatura. Mas cada fase das literaturas de certos pases, em pleno desenvolvimento

econmico e cultural, constituir a fase a atingir e ultrapassar por todas as literaturas duma mesma poca?

Se no esquecermos que h pases desenvolvidos, pases em vias de desenvolvimento e pases subdesenvolvidos, que os homens neles conhecem experincias assaz diferentes,

que neles criam realidades sociais e culturais muito diversas, que as suas lutas, o seu desespero ou o seu espanto, as suas esperanas, no so as mesmas em Espanha

ou na Noruega, no Brasil ou em Frana, na China ou em Itlia, que em cada pas os homens se dividem por prticas e ideais, e formao, e temperamento, e que a literatura

com tudo isso intimamente se mistura, de tudo isso depende, de tudo isso se faz, apesar da sua fora de recusa que a liberta, sem nunca a deixar afastar-se por completo

daquilo mesmo de que se liberta, teremos de admitir, no s a existncia de literaturas diferentes e igualmente vli-

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das de pas para pas, como de correntes distintas, e igualmente vlidas, dentro de cada pas. E que, por isso mesmo, nem todas as literaturas forosamente passaro

pelas mesmas fases, sendo bastante prudente admitir que algumas seguiro caminhos bem diversos daquilo a que chamamos vanguarda, sem que tal as diminua, ou se tornaro

vanguardas literrias por caminhos bem diversos dos que se abrem, por exemplo, em Frana ou na Itlia. O critrio da ltima palavra no parece de admitir no julgamento

literrio.

Que um criador, como criador, afirme apenas genuno o rumo que escolheu - eu prprio tenho dito e aqui repito que, depois de Robbe-Grillet, de Claude Simon ou de

Nathalie Sarraute, se no pode voltar a escrever como antes deles -, est isso certo, corresponde a uma convico e autenticidade, sem as quais aquilo que se prope

e tenta impor seria falho da fora interior indispensvel. E da cegueira fecunda de quem deve reconstruir o mundo de certa maneira e s dessa maneira.

Mas o crtico tem outras obrigaes. Tem de saber compreender as limitaes naturais e certamente indispensveis dos criadores, sejam eles tradicionais ou de vanguarda.

Tem de saber que, em arte, nada est nunca definitivamente morto nem nada existe integralmente novo. Que, num mesmo momento, podem ser, por exemplo, igualmente vlidos

um romance tecnicamente tradicional e um romance de vanguarda, por mais que o nosso gosto pessoal penda para um deles. Que o nosso gosto pessoal no tudo e mesmo,

s vezes, muito pouco.

To pouco que foi possvel publicar-se em Portugal um romance excepcional, tradicional e, no entanto, novo - este Barranco de Cegos -, sem que a crtica se debruasse

muito sobre ele.

Mas com Redol talvez haja outros aspectos a considerar, que s o futuro poder avaliar com iseno.

No se gostava de Redol e passou-se por cima deste grande romance por razes exclusivamente literrias, como s vezes se diz ou insinua? possvel que sim. Mas

raro quem ataca de frente certos interesses e conceitos criados obter a aceitao daqueles mesmos que aparentemente esto abertos a todas as inovaes - desde

que estas no ponham afinal em perigo as razes da rvore, cujas folhas barulhentamente sacodem (que

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ousadias!, que ruidosas revolues gramaticais e, sobretudo grficas!), bem instalados, contudo, sombra que ela d. Conformistas ou inconformistas, os homens instalados

so implacveis para quem esboa tocar nos alicerces da sua instalao.

No foi bem, talvez, pela qualidade literria do que escreveu, nem sequer pelos seus amores ou mesmo pelo grande escndalo de vestir calas, que George Sand - essa

"pobre mulher", como Delacroix sempre lhe chamava - conheceu uma to grande averso da burguesia do seu tempo e do nosso mas, muito provavelmente, por ter tomado

parte - e disso nunca se fala- na revoluo de 1848, redigindo o Boletim da Repblica do Ministrio do Interior de ento. particularmente interessante, sob este

aspecto, que s em 1954 o Germinal, de Zola, tenha encontrado, na actualidade, um escritor capaz de desfazer a carapaa de referncias desdenhosas, de bocejos e

reticncias, duma averso consolidada por anos e anos de ouvir dizer que impedia de ver nele "primeiro que tudo, um poema pico", a sua "poesia negra e ardente"

to rica de aspectos que interessaria vivamente, segundo Claude Roy, se o tivessem lido, o escritor e o crtico apaixonado pelos pequenos factos verdadeiros, o surrealista,

o amador de romances romnticos, de mitos, o psicanalista, o crtico de esquerda e o crtico de direita. Mas o autor tinha ido longe de mais: Germinal (eis uma das

suas leituras possiveis) " o primeiro romance vlido sobre a classe operria, a anlise grandiosa do conflito entre o Capital e o Proletariado". E isso no se perdoa.

Como a Zola, a Redol nunca faltou, nem falta, a multido de leitores, um pblico muito vasto que, como diz ainda Claude Roy, no fala. Mas, apesar disso ou por isso

mesmo, o seu destino imediato no foi ser entendido, mas desvirtuado: pelo incensar superficial de uns e pelo ataque constante e impiedoso (ou pelo silncio, que

ataque tambm e o mais poderoso dos ataques) de muitos outros.

Que presa fcil! No trouxe ele para o nosso romance (e para o nosso remorso) personagens, situaes, problemas nunca antes tratados, at ento tranquilamente ignorados

pela literatura, com uma clareza e um esprito de luta que teriam de entusiasmar aqueles que de arte curam pouco, mas apenas de ideologias e incentivos de aco

que nela possam ver? No

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mostravam os seus primeiros livros esquematismos de concepo e de anlise, tibiezas de linguagem e de construo, ingenuidades, que permitiam aos defensores da

arte (e s da arte...) uma reprovao sistemtica, facilmente estribada em declaraes do prprio autor, segundo as quais s o documentrio lhe interessaria?

Mas Redol nunca disse nem pensou o que lhe faziam dizer. Na portada do seu primeiro romance, Gaibus, escrevera, com efeito: "Este romance no pretende ficar na

literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentrio humano fixado no Ribatejo. Depois disso, ser o que os outros entenderem." Mas que vontade

de barrar a entrada dos recatados domnios da literatura ao novo escritor era preciso ter para se no ver em tais palavras uma simples prova de autntica modstia,

sob a qual, alis, ardia bem visvel o desejo de que o seu livro fosse (mas os outros que o dissessem...) obra de arte! o que o prprio Redol explicar, vinte

e cinco anos depois, no prefcio 6 edio da mesma obra: "O que a portada deste primeiro livro no exprime, contudo, uma tomada de posio contra a literatura,

mas antes a confisso plena de que o autor no se sentia capaz de criar, ento, uma autntica obra de arte literria." A essa distncia, o autor no se ilude, alis,

sobre a sua estreia: "H em todo o romance a impetuosidade desregrada, o arrebatamento impulsivo de um jovem que anseia por libertar o homem de tais grilhetas, desejando

que a sua pena se torne ferramenta de progresso." E aqui que estava o crime: "que a sua pena se torne ferramenta de progresso".

Impetuosidade desregrada, arrebatamento impulsivo. Dir-se-ia melhor? Ao domnio desta impetuosidade e deste arrebatamento se dedicou Redol, pacientemente e em silncio

a vida inteira, com o zelo e a probidade do operrio que cuida da sua ferramenta e pouco a pouco se esmera no ofcio, com a conscincia crescente de que a nobreza

da obra no est nos efeitos fceis e vistosos que qualquer aprendiz rapidamente obtm, mas na simplicidade limpa e, enfim, verdadeiramente rica, que s os mestres

alcanam. Conscincia demoradamente adquirida, assimilada, construida.

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Quando do aparecimento de Avieiros, em 1942, publiquei um longo artigo (era este o elogio mtuo, o esprito de capela a que os neo-realistas, segundo alguns historiadores

que estudam muito pouco aquilo que historiam, se teriam entregado), em que a admirao pelo autor me obrigou a uma anlise extremamente severa do que na sua escrta

e mesmo na sua concepo de romance me parecia pr em perigo uma obra que j se entremostrava importante. Nada havia em Avieiros do que Turgueniev ambicionava para

o estilo: ser como a sade, que s boa quando se no d por ela, no atrair os olhares como as botas novas nos ps dum noivo de aldeia. Redol no o esqueceu.

A ltima edio desse romance mostra bem o que desde ento andou e como. No citado prefcio 6 edio de Gaibus (muito significativamente intitulado "breve memria

para os que tm menos de 40 anos, ou para quantos j esqueceram o que aconteceu em 1939",) deixou bem clara a linha que o seu trabalho seguiu desde os primeiros

escritos, nos quais viria a reconhecer que neles confundia "rebuscamento com estilo, num amlgama de poesia romntica e de Fialho, de barroquismo e de certo tom

melodramtico, que correspondiam, por um lado, falsa ideia de que 'escrever difcil' seria o objectivo supremo de um verdadeiro escritor e, por outro, exaltao

com que sentia os problemas das personagens a que aderira por origem familiar e por deciso de conscincia premeditada".

A sua batalha contra o "escrever difcil", no foi, como nunca o , empresa fcil. As "indigncias de estilo", que, segundo as suas prprias palavras, "comprometiam

a interior unidade necessria", no se limitaram, na verdade, aos primeiros escritos, continuaram, embora a "impetuosidade desregrada" zzz fosse sem -precedendo,

com progressos e regressos, pois era Redol daqueles autores que, publicando muito, bem se pode dizer que trabalham vista do pblico e lhe permitem avaliar todos

os momentos, felizes e infelizes, da luta do escritor com o seu material.

Um momento veio, porm, de completo triunfo, um momento em que toda a obra de Redol culmina, os seus temas fundamentais se reelaboram, o escritor atinge a plena

posse de si mesmo, e se chama Barranco de Cegos: a sua obra-prima

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sem dvida, sem dvida um dos romances portugueses mais completos dos nossos dias, sem dvida tambm um dos grandes romances de toda a nossa histria literria.

O que mais, ou primeiro, nele impressiona a densidade e a variedade dos materiais e a unidade que interiormente os faz viver no universo fechado de toda a obra

acabada. E essa decerto a nota maior que define um romancista. Mas o que neste romance poderia ser pesado de imobilidade ou de andamento menos gil anima-se, pelo

contrrio, de surpresas narrativas ou descritivas que no comprometeram nunca a gravidade do contexto.

Mais uma vez Redol despista os seus crticos malvolos ou apenas apressados com um prefcio, enganosamente intitulado "breve nota de culpa". A, num tom de modstia

(agora forjada, evidente) e afinal com inteno polmica, insiste no seu papel de testemunho e na sua incapacidade de bem ordenar os materiais de que dispe...

Mas no nos deixemos enganar pelas manhas do artista, pois est ele bem longe de s querer testemunhar ("no s o que soube e vi, mas tambm o que inventei") ou

de descurar a construo ou de escrever com "indigncias", de que ento se libertara. E, ao procurar o exemplo de algum que o desculpe de pecados que afinal (j)

no tem, recorre a um escritor de frescura de lingua e beleza de estilo exemplares, mestre de compor, embora diga que no, nada menos que Ferno Lopes!

Romance tradicional pela composio (e s at certo ponto) , romance moderno pelo tema (ou temas) e pela maneira de sugerir, Barranco de Cegos ilumina enfim o sentido

mais oculto da busca do autor e esclarece definitivamente que, se Redol no fazia ou fazia mal o que toda a gente dele esperava, no era porque no pudesse faz-lo

como toda a gente mais ou menos faz, mas por ser outro o seu alvo.

Romance do Ribatejo, sim, e o mais completo livro que se escreveu sobre uma regio que j entusiasmara Garrett (um dos mestres de Redol) e interessara Ramalho. Romance

duma famlia poderosa e dum mundo que em torno dela e sob ela gravita, de campinos, varinos, valadores. Mas romance tambm duma poca e dum pas. Fundamentalmente,

de cegos que conduzem cegos para o barranco, na imagem de S. Mateus, e do

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esforo mais ou menos cego, denodado e violento, para evit-lo - em vo.

Quem so os cegos? Os polticos dum governo que cede perante zzz a desordenz dos tempos (indstria, caminhos-de-ferro, liberalismo) em vez de reagir-lhes com dureza,

como pensa Diogo Relvas? O prprio Diogo Relvas, tratando com severidade igual quem pe a sua ordem em perigo, sejam criados ou os prprios filhos? Tudo e todos,

enquanto o caruncho ri e ri a velha mesa da Torre dos Quatro Ventos?

H aqui, sem dvida, um esquema subjacente, uma "tese" que encantar os que nos romances s procuram elementos comprovativos de doutrinas sociolgicas. O rigor com

que a poca histrica reconstituida, a mincia com que o latifndio se descreve, sobretudo atravs das relaes entre senhor e servos, a mentalidade excelentemente

observada do senhor agrrio que joga tudo por tudo contra a invaso progressiva da indstria, a anlise da situao dos servos, dos que logo se descobrem mal ouvem

ao longe os passos do cavalo do seu senhor (mesmo os mais asperamente tratados pensaro: "Malandro como quem diz, porque nunca arranjei casa como aquela") e dos

que comeam a resistir-lhe, criando associaes de classe e voltando a cara ao amo pela primeira vez na histria do seu condado, so elementos de importncia capital.

Mas Barranco de Cegos forosamente muito mais e, por isso mesmo, no s um grande livro, mas um grande romance., acima de tudo, antes de tudo, uma histria de

pessoas. De pessoas extremamente diferenciadas, vivas, bem humanas. Como o caso, entre todos notvel, de Diogo Relvas. E o de Emlia Adelaide. E o de Maria do

Pilar. E o de Miguel Joo. E o de Antnio Seis-Dedos. E o de Z Segeiro. E o de Joaquim Taranta. E o de tantas outras personagens, centrais ou de passagem, ricas

do que as prende classe a que pertencem e, ainda mais, do que as faz exced-la. Pois se este um livro de lcida compreenso duma situao social e da sua surda

transformao, o no menos de compreenso pessoal e simpatia por tudo quanto humano, onde quer que se encontre.

Essa mesma compreenso, que muitas vezes adeso, ter ditado porventura a Redol a variedade de processos por que optou, transpondo por vezes a narrao para lendas

contadas

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pelo povo annimo, de gerao em gerao - a partida de Maria do Pilar para o desterro em Monte Pragal -, para relatos das prprias personagens - "Olhem, agora me

lembro, se me do licena: foi um toiro desses, o Passarinheiro, que matou o Joo Pedro Borda d'gua", ou "Agora conto eu, com sua licena... Quem sou?! Ora essa!

Antnio Seis-Dedos, um criado para o servir, como servi durante dezasseis anos o patro Diogo" -, o ter feito intrometer na aco vises e transfiguraes e ele

prprio se dirigir directamente ao leitor em tom de narrativa oral, como se uma nova personagem ali surgisse: "Antnio Lcio agarrou essa tosse seca que ainda lhe

ouvimos h bocado", ou "Acho que no ser bonito contar tudo dum homem como Diogo Relvas. Mas, se prometerem guardar segredo, poderei acrescentar..."

Adeso interior a um mundo prprio com os seus grandes e pequenos problemas, com os seus mitos, os seus encantos, os seus amores, os seus dios, a sua moral, as

suas razes de viver e de morrer. S isso explica a propriedade de linguagem, em que avulta a assimilao lexical da regio e dos misteres, a explorao espontnea,

perfeitamente integrada na aco, de tudo o que se refere a homens e animais, beleza selvagem dos cavalos, sempre tratados com o conhecimento e o apreo dos que

lidam com eles, fora negra dos touros, e essas pginas exemplares, isolveis mas no isoladas, "episdios" conviria chamar-lhes, no sentido que se lhes d nos

poemas picos, como aquelas em que se descreve a luta do campino com o touro Passarinheiro, a matana dos liberais nas guerras miguelistas, a parada agrcola, a

morte do Quintas s mos do Chico Bem-Fadado, o fandango danado por Antnio Seis-Dedos, a ida de Diogo Relvas a cavalo numa madrugada fria com os restos do criado

que mandara matar e capar, as eleies, as cheias do Tejo, causadoras da fome e da morte de camponeses que arriscam a vida para salvar o gado que lhes no pertence

sem nada quererem em paga, e o filho do patro que arrisca tambm tudo, galopando em plena avalanche para salvar a vida de homens sem rosto e sem nome, que nunca

viu e que odeia, ou essa corrida s lebres, verdadeiro "embarque para Ctera" em pleno Ribatejo, a que nem falta uma pincelada de Watteau na nota airosa,

ftil e provocante de Julinha Quintela.

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Chocar o leitor decerto - primeira leitura - a ltima parte do livro, voluntariamente absurda (ou no tanto como isso), que precisamente se chama "O livro das

horas absurdas". O salto brusco - propositadamente - da realidade verosmil de todo o romance para o ambiente fabuloso, quase picaro, de fantasia desencadeada

dessa parte e indiscutivelmente quebra a lgica externa da narrao. Mas a externa. Porque esse salto brusco e surpreendente em Redol que assegura a sua lgica

interna, e, se dum capricho se trata, teremos de tom-lo no sentido que a palavra tem nas famosas gravuras de Goya. S ele nos mostra, na verdade, que a histria

dum homem sempre a histria de qualquer homem e que este sculo, comeado em 1891 e cujo fim no se distingue ainda muito bem, se parece inquietantemente com o

nosso prprio retrato de cegos caminhando beira dum barranco.

Da 1 para a 2 edio, alterou o autor o ltimo captulo deste estranho, proftico "livro das horas absurdas". O ttulo passou, de "A luta final", para "Paz, doce

paz". Mas, ao contrrio do que tal alterao de ttulos faria supor, no se trata de substituio duma situao clara de luta por uma aluso distante ao conflito

social: o devaneio, cheio de intenes embora da 1 edio que deu lugar, sob a ironia do ttulo, referncia precisa nova fase histrica para que o romance

se abre quando fecha.

E, ento, j no se trata de Diogo Relvas, desaparecido para sempre na sua Torre dos Quatro Ventos, nem das variadas gentes do seu intenso domnio, mas de todo o

Pas, do mundo e de cada um de ns.

Se absurdo h - mas no ter sido mais do que uma imagem -, ele nosso tambm.

1964

Mrio Dionsio

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Ao assinalar que a aco deste romance se inicia numa semana de Maio de 1891, poderia levar algum e supor que houve inteno de arremedar a histria, dando a factos

e personagens justo equilbrio de luz e de sombra que sempre se projectam na arena de cada poca.

Esclarea-se desde j o possvel equvoco.

Certos acontecimentos, decisivos na vida dos homens de ento, s aqui aparecem na medida em que a trama romanesca deles precisa para envolver os homens imaginrios

que vivem e morrem nesta histria sem ecos prolongados.

Prolongue-os somente a imaginao do leitor para esta vida efmera de algumas horas de convvio.

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Deixai-os; cegos so e condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vm a cair no barranco.

S. MATEUS

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BREVE NOTA DE CULPA

Conheci Diogo Relvas.

Julgo que me lembro de t-lo visto passear por Aldebar a cavalo, numa das vezes, no sei se a ltima, em que estive em casa do meu av. J l vo quase cinquenta

anos, tempo suficiente para que um lago se torne num pntano ou uma estrela distante e misteriosa se transforme num mundo corriqueiro, ambos possveis por obra dos

homens.

(Eu e Diogo Relvas preferimos as guas apauladas. E c estamos.)

Contaram-me que numa tarde de domingo, daquelas em que meu av, seu criado e maioral das guas, vinha aviar o alforge para quinze dias de Lezria, o patro Diogo

nos viu juntos e se dignou, sem nojo, concretizar uma caricia nos cabelos encaracolados da minha cabea de menino pobre. Toda a minha famlia falou nesse facto histrico

durante mais de uma dcada julgando-me talvez predestinado para agradar aos amos, espcie de deuses agrrios no meu pas de desventura e de sonho. (Aqui lhe agradeo

o prestgio que esse gesto de ternura me fez conquistar na aldeia.)

Ouvi chamarem-lhe santo homem, com uno e humildade; mas ouvi tambm minha av, de lgrimas nos olhos e dio na boca, amaldio-lo por mais de uma vez, como se

dum tirano falasse. Dum tirano irremedivel que nada, nem ningum, pudesse apear do mesmo trono onde morava Deus. volta dele criou-se assim uma espcie de mitologia

que julgo digna de crnica, embora queira penitenciar-me de ser eu a escrev-la, pois a um neto de campino nunca deveria ser permitido o acesso a certos meios de

expresso que o progresso, sorrateiramente, enfiou pelas nossas fronteiras.

Acuso-me deste ultraje.

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Acuso-me tambm de ter rompido, com muitos outros, os nevoeiros premeditados, os abismos reais e os abismos ilusrios, que so ainda mais perigosos, as cadeias,

as ameaas e os sortilgios do cercado em que conviria permanecermos por mais uns sculos, para glria e proveito dos nossos amos, que dispuseram de poderes suficientes

para mandarem decapitar todos os seus servos, sem qualquer coima ou embargo, e no o ordenaram pelo simples facto de no poderem passar sem eles.

Incapaz de compreender, inteiramente, a graa de usar da vida que os Relvas me permitiram, tentarei, contudo, no cair no mal da ingratido, que moeda corrente

nestes tempos desvairados. Entre a fbula e a realidade, procurarei relatar o que foi passado minha beira, no s o que soube e vi, mas tambm o que inventei na

interpretao imaginosa da histria desse homem, meio Deus meio lavrador, cuja sombra ainda hoje se projecta na pausa absurda dos netos, que teimam em prolong-lo.

E que o conseguem, o que mais absurdo, como se o patro Diogo continuasse vivo.

Pobre de engenho e de arte, aqui me tm como testemunha sem perjrio, embora admita tambm para mim o papel de ru. Como testemunha, juro dizer a verdade e s a

verdade. Na humilde condio de ru, peo para acrescentarem aos papis do meu julgamento esta breve nota de culpa, forosamente incompleta, a que ajuntarei o testemunho

de Ferno Lopes no que respeita a dificuldades do ofcio de escritor:

Certo que quaisquer histrias muito melhor se entendem e lembram se so perfeitamente e bem ordenadas do que de outra maneira. E posto que nossa teno seja de

estas que queremos escrever o serem em bom e claro estilo, porm, to grande multido de histrias nos so prestes, mormente neste lugar, que desviam muito de tal

ordenana nosso desejo e vontade.

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LIVRO PRIMEIRO

O LIVRO DAS HORAS PLENAS

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Captulo I

A "semana negra"

No era por seu gosto que o funeral se encaminhava para o cemitrio de Aldebar. Nem todos os mortos merecem a mesma sepultura, essa que a verdade, por muito

que doa aos vivos. Na morte no somos no, no somos todos iguais. Nem sequer perante Deus, tinha a certeza. Se Deus no dorme...

A terra daquele cemitrio era sua, como a aldeia e tudo o que lhe ficava volta. E ali era ele quem mandava, no precisara de o lembrar filha. J marcara o lugar

para o genro - seria metido num dos jazigos da famlia, no dos aparentados ao p das mulheres, das crianas e dos homens; de certos homens que disso pouco mais tinham

do que o corpo. De cova aberta no cho, bem funda, s os que davam terra o que ela merecia. Tradio herdada do av, no seria ele quem iria tra-la, porque ali

estava, sozinho podia diz-lo, desde os quinze anos, de dentes cerrados e corpo jogado para diante na mesma luta sem quartel.

Sabia que lhe cumpria vencer; no desconhecia os inimigos, mas sentia os ps firmes no cho que pisava. Tinha de os pr firmes, bem assentes: Ah! sim, abdicara de

muita coisa que um jovem pode desejar quando lhe levam o po boca! Arcara com horas terrveis e amargas, bebera muitas lgrimas, sem deixar verter uma s, desde

o dia em que o pai entrara ao porto da quinta, pronto a morrer, s costas do Manel Fandango, sem queixa que se lhe ouvisse do corpo esfrangalhado.

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Matara-o uma gua de plo-rato, desenfreada, ao atirar com ele de encontro a uma oliveira, na fria dum galope. Exactamente em Janeiro, a 13 de Janeiro, s cinco

e vinte e cinco da tarde.

H vinte e nove anos que era ele, pois, o chefe da casa. E, enquanto assim fosse, naquele talho mais alto do cemitrio, donde se viam chs aleziriadas e a veia

do Tejo, s entrariam patres e criados, sem distino de coval, quando o quinho oferecido por eles terra merecesse que esta os guardasse. Esses, sim, ficariam

todos iguais na morte, quase de ombro com ombro no sossego eterno, em campa rasa. Menos de um palmo de terra a marcar, em lomba, a linha do esquife, uma cruz de

madeira, uma legenda simples, mais aprimorada para o servo afeioado do que para o senhor. E os vivos que lhe dessem amns no corao.

"Essa a nica e boa maneira de o homem se alongar para alm da morte", conclua Diogo Relvas, sempre que algum lhe falava do panteo da casa.

Agora caminhava logo atrs da urna com o corpo de Rui Portela Arajo, seu genro. Seguia-a de cabea erguida, quase arrogante, como se buscasse no cu, l longe,

algum sinal desejado para adivinhar o que se seguiria quela semana trgica.

A corrida ao dinheiro prosseguia, alucinada. Lutava-se, a murro, por moedas de oiro porta dos banqueiros ou por um lugar nas bichas das tesourarias. Todos queriam

receber e ningum pensava em pagar. Num golpe de melodrama, o Freitas dos Cereais - quem no conhecia o Freitinhas? - metera uma bala na cabea, porta do gabinete

do director de certo banco que lhe recusara o pagamento dum cheque, por falta de numerrio na caixa despejada. Fraco de sangue, embora at ali sobranceiro por causa

dos seus interesses nos caminhos-de-ferro e na finana, o genro viera morrer-lhe a casa, numa fuga espantada, quando os depositantes fizeram a primeira corrida

caixa do banco de que era director e accionista. Graas a Deus, duas vezes graas, por ter exigido separao de bens em troca do consentimento para que a Emlia

Adelaide casasse aos dezassete anos. E agora aos vinte era viva, uma menina ainda. Que mais lhe estaria guardado com dois filhos nascidos e outro no ventre? Poderia

ele proteg-los?! No diria dos azares da

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fortuna, mas das baldas de sangue dos Arajos, valdevinos e soberbos.

Era nisso que pensava agora.

Acompanhava-o a restolhada dos passos, lenta e pesada, um soluo ou outro, irreprimido pelos familiares do defunto, e a nuvem de poeira que o cortejo deixava na

estrada, encontrando-se ainda com a que fora levantada pelas carruagens postas disposio da gente da cidade, incapaz de dar mais de dois passos pelo seu prprio

p.

E depois queixam-se do destino, deduzia Diogo Relvas, quando eles prprios o talham com a preguia, o aborrecimento e a poltranice que lhes amerdalha o sangue. Onde

lera ele, sim, j lera em qualquer stio, que em certa poca at os jovens fidalgos precisavam do encosto dos pajens para andarem duma casa para a outra. Era o mal

ruim da ndia, do Brasil e das outras terras descobertas, todas a porem a teta na boca de quem se habituara a luxar, sem suor que lho merecesse. Um dia, sem perceberem

como, to dados eram boa paz e ao improviso, faltava-lhes a mama e saltavam, de rompo, para a violncia, como lobos acossados. E logo se punham em plena secura

de vingana, capazes de tudo, dementes, dementes e medrosos, com medo de olharem a vida nos olhos... Impondo o terror, assustados da prpria voz e da prpria sombra,

como se o mundo tivesse de mover-se ao sabor da sua inpcia e da sua modorra. Que poderia esperar-se duma raa de sonmbulos ?

Alguns desses ali estavam, escaveirados e inquietos como se lhes doesse o passamento do amigo e do rival. No fundo, receavam a mesma sorte - o rebentar do corao

ou o envenenamento sbito da alma com o suicdio por nica sada. Falavam baixo, moviam-se quase sem gestos, apresentavam psames, num mover de lbios, como se fossem

eles a receb-los, e ensimesmavam-se na tristeza dolorosa e um pouco teatral de quem espera dos outros um gesto de piedade. O alarme agarrara-se-lhes ao sangue.

Esperavam que algum inventasse culpados para a crise. Os republicanos, por exemplo, serviam bem para o efeito. Ento, cevariam nesses os dios da sua impotncia,

enchendo de crimes o vazio da alma cncava.

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O Governo procurava um travo para o descalabro, mas estava tambm a contas com credores que lhe impunham liquidaes j vencidas. A falncia do Baring, em Inglaterra,

prestamista do Estado, fora um dos sinais da crise. Dera-se a inflao, aumentara a circulao fiduciria. Subiam os preos. E a instabilidade, o receio do pior

pegara-se aos espritos quando, depois da implantao da repblica no Brasil, surgira o ultimato ingls, em Janeiro de 90, por causa de frica. Um ano depois, a

revolta republicana no Porto apressara o pavor, num sinal de que tudo se poderia perder s mos da canalha carbonria. A partir da o Governo reparara no exrcito.

E dava-se ao luxo, por motivos eleitorais, de cobrir os destemperos dos banqueiros nortenhos, metidos at aos cabelos nas negociatas dos caminhos-de-ferro, nas salamancadas.

Tentara faz-lo com o emprstimo dos Tabacos, mas a manobra redundara num fracasso para o Estado, ficando ainda em grande parte, setenta por cento, nas mos de franceses

e alemes.

O Banco Lusitano j rachara pelo meio. E nos descalabros das finanas entrelaavam-se as concesses dos caminhos-de-ferro de Loureno Marques, o escndalo da Companhia

do Niassa e as consequncias do novo tratado com a Inglaterra. Caminhava-se para a bancarrota.

Sacudia-se a Europa em mais outra crise. De superproduo. Enquanto a nossa era financeira, de especulao pura.

Os cmbios baixos do Brasil foravam a emigrar os que viviam desses rendimentos em Lisboa e no Porto; e eram muitos. Fechavam-se fbricas e ficavam mais operrios

sem trabalho. Entre o protesto de letras e o desespero de muitos crditos volatilizados, encerravam-se lojas e muitos comerciantes buscavam no suicdio a sada vlida

para a desonra. Usava-se a corda, o tiro no cu-da-boca e o rodado do comboio para resolver alguns problemas.

O Fontes quisera uma lei para obrigar os Portugueses a andarem trs meses de comboio. Assim salvaria o Pas da runa, pensava o idiota. E os homens de negcios,

que tinham dado o dinheiro para as aventuras do Salamanca, metiam-se agora debaixo da locomotiva que eles prprios haviam comprado. Salvava-se o Pas na mesma, por

obra e graa do caminho-de-ferro, ficando vazio se a moda pegasse.

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- Uns emigram, outros pedem esmola, outros rebocam cegos por feiras e estradas - dizia Diogo Relvas, porta do cemitrio, para o grupo que o rodeara. - No fundo

esto cegos todos, e, mais ainda, os que vo adiante; esses acabam por atirar com os outros para o barranco, como disse S. Mateus.

Como lhe dissera, para contar a verdade, o padre Alvim, j trpego, que seguia frente da urna e marcava o passo sorna do acompanhamento.

O sino da igreja dobrava a finados. Ainda no parara de tanger, havia mais de meia hora. Era o luxo do sineiro, aquele badalar doloroso que fazia chorar, asseveravam

as velhas de Aldebar, deitadas por terra e a rojarem-se de joelhos, ao lado do carro funerrio, para que o patro as visse bem. Ningum lhes encomendara a carpideira;

faziam-na por iniciativa prpria, julgando assim conquistar favores do amo. Pareciam ciganas na violncia teatral da dor alheia.

Mal a urna passara do carro para as mos dos amigos do defunto, Diogo Relvas seguiu-a com o mesmo ar distante, mas j ordenara ao abego da casa, por intermdio

de um dos filhos, o Antnio Lcio, para que "calasse o mulherio, nem que fosse a chicote". Da a instantes, sumia-se o coro da tragdia barata e s ficava o arrastar

dos ps. Espavoridas, algumas mulheres abalaram, arrastando os filhos fraldiqueiros, e foram meter-se em casa, sem perceberem a ingratido do amo.

Altivo, sem ponta de emoo, o lavrador consentira que os dois filhos vares se pusessem a seu lado; ele mesmo os chamara com um aceno de cabea. Cofiava a barba

farta e o bigode, deixando escapar para os rapazes, num sussurro, o que pensava de tudo aquilo:

- Era um fraco... O vosso cunhado foi sempre um fraco. Que a terra lhe seja leve...

Quando o padre bichanou as ltimas rezas, preparou-se o Dr. Barradas, deputado regenerador pelo crculo, para largar o voo dum discurso que se suporia sair de dentro

do chapu alto, de tal modo o orador o olhava e revirava na mo canhota. Encarou o sogro do morto, compondo uma expresso dorida, mas aquele teve um gesto de enfado

e o Barradas percebeu-o. O Relvas valia quase quinhentos votos. Ento, cortou todas as asas ao discurso, ali mesmo, e s disse:

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- Morreu um homem. Neste momento de tragdia desabou um dos pilares mais fortes desta construo esplendorosa que a Ptria. Inspiremo-nos no exemplo do amigo morto,

confiemos na gente do seu sangue que o continuar, e honrar, saibamos todos estar altura da herana que os nossos avoengos nos legaram, preparando-nos, mais uma

vez, para dizermos, e ensinarmos ao mundo, como se constri um destino nacional. Temos no mundo uma misso a cumprir...

Diogo Relvas j no o escutava. Ps-se a falar com o filho mais velho, indicando-lhe o nome de alguns lavradores com quem queria falar. Sim, agora mesmo, logo que

acabasse o enterro. Era inadivel.

Calou-se bruscamente a voz ribombada do deputado e logo a urna foi metida, pressa, dentro do jazigo destinado pelo lavrador. Este tomou a chave do monumento aos

aparentados da famlia, cumprimentou o irmo do defunto, o Arajo da Mala Real Portuguesa, e dirigiu-se sozinho para o alto do cemitrio, onde ficava o talho dos

seus mortos. Dobrou o joelho junto da campa do av e do pai, rezou um padre-nosso para ambos, e j lhe sorriam os olhos quando os volveu para as terras baixas, l

longe, onde se divisavam as manchas dos gados manadios com o ferro da famlia. Fez tudo aquilo num ritual simples e solene. Sabia que todos os acompanhantes lhe

seguiam os gestos, embora estivesse de costas. Talvez por isso lhe pareceu absurdo o choro convulsivo de algum. Absurdo e inquietante. Ele estava vivo e continuaria

vivo por muito tempo, assim o esperava de Deus.

Pediu flores ao guarda-livros, que as levava num ramo, e desfolhou-as entre os dedos, por cima das covas dos criados. Parou um instante junto de cada uma, como se

os lembrasse.

S via, porm, o genro sentado sua frente, esfregando e dominando as mos, a contar-lhe tudo o que o trouxera at quinta. Precisava de um conselho. Que deveria

fazer realmente? O Banco do Povo fechara com o Lusitano. O Ministrio cara. A Companhia dos Caminhos de Ferro estava mais uma vez beira da falncia. Poderia Diogo

Relvas dar-lhe uma carta, um bilhete; qualquer coisa, para um dos directores do Banco de Portugal?!...

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Quase no mesmo instante, ouvira-se o galopar de um cavalo na estrada, a sua paragem dentro do porto da quinta, e, da por momentos a ltima notcia que chegara

de Lisboa entrava absurda e terrvel dentro do escritrio do lavrador:

- Comeou a corrida ao Montepio, patro Relvas! A polcia j no segura as pessoas que querem o seu dinheiro.

- Obrigado, Joaquim! - respondera-lhe de voz apagada, voltando-se no cadeiro.

Quando olhara para o genro, vira-o derribado sobre o apoio do sof, com a mo crispada e aberta em cima do peito, ali mesmo, onde lhe doa. Apagara-se num sopro.

Era um fraco.

Talvez por essa lembrana, o lavrador de Aldebar jogou, de arremesso, uma rosa amarela para a sepultura do pai. A flor rolou um pouco sobre a terra seca e ficou

voltada para ele.

Estava-se em Maio. A "semana negra", surgira entrada de Maio, em plena Primavera. No faltavam flores para os mortos. Mesmo para os mortos de medo.

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Captulo II

Que cartas temos na mo?

- Que pensam os senhores fazer ?!...

Deixou abrir-se uma pausa, como se pretendesse ouvir os outros, mas no a prolongou demasiado, preferindo insistir nas interrogaes para os estimular.

- Pensam alguma coisa, com certeza. Tenho a certeza...

Ergueu a cabea e olhou volta.

- Ou esperam que tudo acontea ?!... Tudo pode acontecer de um momento para o outro e muito para alm do que suspeitamos agora. O qu?!... Os vossos olhos perguntam-me:

o qu?!

Um sorriso triste esboou-se-lhe no rosto grave.

- E eu responderei: a roda comeou a desandar e no sabemos nem como nem quando ir deter-se. Vai acontecer alguma coisa mais, tenho a certeza. No me sinto capaz

de fazer previses. Julgo, porm, que deveremos desde j tomar uma atitude: unirmo-nos. Embora tenhamos de escolher a unio que nos convm. S a unio no basta.

Uma associao na descrena conduz morte e no foi para morrermos juntos que lhes pedi para virem aqui.

Passeava sem um estremecimento; s ele poderia apontar onde morava a sua angstia. Talvez na nvoa do olhar. Uma leve cortina nos olhos castanho-claros.

- Qual dos senhores deseja falar?... No acredito que nada tenham para dizer...

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Metera-os na sala grande do rs-do-cho, mesmo por baixo do gabinete onde o genro tombara fulminado pela sncope, como se quisesse defrontar-se com os gritos da

filha, vivos ainda, e com a sentena implacvel do mdico da casa, o Dr. Bernardino Gonalves:

"- A cincia aqui j nada pode fazer... Esgotaram-se os recursos da medicina."

Lembrava as palavras e dava-lhe resposta interrogando os outros.

- No poderemos tambm ns fazer qualquer coisa?!...

De costas voltadas para os convidados, abriu a janela que dava para o grande terreiro da entrada, e dali via o porto de ferro, as grades envolvidas em trepadeiras

com campainhas violetas e a mancha que se movia l fora, quase parada, como se mal lhe tocasse a aragem da tarde. Em dia de nojo vinham sempre mais, calculando que

no testamento dos mortos havia lugar para esmola grada. Conheciam os hbitos dos lavradores.

L estavam, pois, espreitando s grades, os pobres da aldeia, e tambm os da vila, que vinham buscar sopa para a ceia. Mas naquela tarde o nmero aumentara. Pensou

ainda chamar o feitor ou o abego e dizer-lhes para mandarem embora os que no viessem todos os dias.

Ele prprio designara os mendigos a proteger pelo palcio. A seleco era um dos seus mitos. Um pouco por gracejo, repetia muitas vezes essa exigncia, no intuito

de sublinhar bem a importncia que lhe concedia: "- Devemos escolher at os pobres que ajudamos."

- Ou n-no ?!...

Arrastava a palavra, era hbito seu, quase sempre acompanhado dum movimento brusco de cabea, que aproveitava tambm para meditar melhor no que deveria acrescentar

de seguida.

Agora raciocinava na companhia dos lavradores designados por ele sada do cemitrio, "precisamos de trocar impresses", e fazia-o na sala que destinava sempre

para tais encontros. Entendia que cada conversa demandava cenrio adequado. E era ali que se comprazia em mover a sua figura poderosa, alta e entroncada, e, mais

ainda, a voz grave e cheia, modulada e cheia, estudada de pausas, mas cortante sem arestas. Distri-

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bua os assistentes pelas cadeiras, tomava o cadeiro de braos, sabiamente colocado ao topo da mesa longa, de mogno encerado, de maneira que a luz do janelo o

deixasse na penumbra, e levantava-se logo depois. Ficava pronto a dominar os outros.

Tudo ali era sobriedade.

Na parede mais comprida, onde se abriam trs janelas pequenas, de peito, tinham pendurado os retratos do av e do pai, em molduras escuras e largas; l estava tambm,

mesmo por cima de pequena escrivaninha mais adocicada de formas o lugar que lhe caberia quando morresse. Exactamente entre ambos, j o explicara aos filhos. Na parede

fronteira, sem mais nada, duas cabeas de cavalo; a do baio, em que montara D. Pedro durante as lutas liberais, ofertado em pblico por adeso de ideias, e a do

cavalo branco, branco-porcelana, que pertencera a D. Miguel, o Arcanjo Miguel, durante os dias da Vila-Francada. Este sara em segredo das cavalarias, numa das

noites em que o rei absoluto dormira perto da quinta dos Relvas, e o pai de Diogo, humilde, mas a ferver de raiva, o fora levar mo, em jornada de penitncia,

a um acampamento de caceteiros miguelistas que na vspera lhe rondaram o palcio com ameaas veladas.

Desde tal vexame, Joo de Meneses Relvas resolveu nunca mais se meter a fundo em coisas de poltica. E as duas cabeas de cavalo, mandadas embalsamar por ele, tornaram-se

smbolos presentes das palavras com que avisou o filho: "- Nesta casa no se pode fazer poltica... A no ser em momentos extremos de vida ou de morte. A poltica

s para os homens pblicos... Tu sabes bem o que significa mulher pblica. Nisso so os homens iguais s mulheres. Percebes?!" E acrescentou ainda: "- Mas isto

no quer dizer que no devamos ter amigos entre eles... Ficam mais caros, mas vale a pena. Percebes bem a diferena?!..."

Sim, Diogo Relvas entendera a lio; por isso mesmo ali estava agora com aqueles lavradores ribatejanos, a quem certas tentaes mesquinhas poderiam perturbar numa

hora to grave.

As duas cabeas significavam, pois, que nas manadas da casa haveria sempre cavalos e guas dignos de reis, mas tambm que ali se serviria a quem viesse em nome da

Coroa, sem se perguntar que partido dava os bons-dias no Poder. claro

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que, sem grandes alardes, cabia aos Relvas escolher agora entre progressistas e regeneradores, pressionando ambos ao mesmo tempo, para que a "nobre instituio

da Lavoura" no fosse vtima de perseguies ou vinganas.

Os senhores de Aldebar confiavam nos quatro ventos que faziam soprar em terras suas - dali e do Alentejo, onde em montados (Ponte de Sor), terras de semeadura

(Estremoz e Cuba) e vinhedos (Borba), possuam a maior parte da fortuna da casa.

Fortuna que dentro daquela mesma casa se vangloriava de braso ibrico. L ao fundo, arrogante e bravia, a cabea dum toiro negro lembrava violncias. Dominadora

nas fogueiras do sangue, de cornadura aberta e bem agulhada, como dois punhais na mo de argelino, via-se o toiro Terramoto, que honrara o nome e o ferro do dono

ao receber doze varas na praa de Sevilha, matando cinco cavalos, depois de atirar com dois espadas e trs bandarilheiros para a enfermaria.

O espada que o matara, a ele, ao romper praa, e aos outros irmos de curro, vira a vida mal acabada nessa tarde de Semana Santa. E tanto, tanto medo passara, que

a si mesmo prometera cortar a coleta, ainda que a Virgen de los Reys lhe pedisse, de mos postas, para voltar a vestir o traje de luzes. Diogo Relvas gostava de

contar a histria: "- Quando lhe perguntaram donde vinha to plido e taciturno, o matador, que era sempre um homem de bromas, e alegre, caramba!, como o foram sempre

os Sevilhanos, respondera aos aficionados: Vengo de la guerra, hombre! E que guerra!...

E naquela semana a tinha ele tambm a sua guerra, qual no poderia voltar costas, sem que cortasse tambm a coleta de lavrador e de homem. De homem que os tinha

no seu lugar. Confiava na sua serenidade. Mas na dos outros?!... O receio no lhe vinha do Alentejo, onde no chegaram, nem chegariam - tinha a certeza! -, as solicitaes

da indstria.

- Conhecem bem as notcias? - perguntou com voz firme.

Ficaram os quatro espera que ele prosseguisse. Mas o senhor de Aldebar pensava agora na filha viva. Sabia que Emlia Adelaide o esperava. Exactamente por isso,

para lhe demonstrar que nem a morte deveria imobilizar os Relvas, quisera provocar aquela troca de opinies. Passeava por baixo da

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cabea do toiro Terramoto, de mos atrs das costas, aguardando que algum comeasse a falar.

- Ento, meus senhores! - gritou, j prximo do cadeiro.

E dando uma pancada com a mo aberta sobre o tampo da mesa:

- Conhecem as notcias... Espero que sim... Ou n-no?

Todos os presentes se entreolharam. Diogo percebeu que aquele silncio era sinal de hostilidade entre eles. Deveriam estar a culpar-se uns aos outros do que se passava.

Uma voz sumida comeou em lamento; logo outra pediu que falasse de maneira que pudessem ouvir. E o silncio cerziu os golpes das palavras.

- Peo-lhe, Z Botto, que volte ao princpio. Estamos aqui para nos ajudarmos uns aos outros - acentuou o Relvas, por fim, com dramatismo na voz. Tenho de meter

um cagao a estes safardanas. - Seremos i-r-r-emediavelmente esmagados se no soubermos agir. E sem piedade. Vivemos um momento grave... sim, de guerra, de uma autntica

guerra que poder levar perda da independncia.

"Bem t'importas tu com isso", pensou Z Botto.

O dono da casa aproximara-se do outro lavrador e tocara-o no ombro para lhe dar alento.

- Pouco sei... Sim. O que sei, afinal?!... O que todos sabem, uma vez que no estou no segredo dos deuses da poltica e da finana.

- Mas diga... - teimou o de Aldebar.

- Sim, que houve corrida aos bancos e ao Montepio, que todos os que puderam, trataram de arrecadar o oiro e a prata - respondeu um homem de suas mal semeadas,

olhos pequenos e inquietos, correndo o rosto dos outros por cada slaba que a voz quebrada deixava coar pelos beios grossos, bem vivos de sangue. Abria as mos

espalmadas, como se quisesse travar a marcha do destino, e depois movia-as, lentamente, numa rotao, voltando-as para cima, em concha, no jeito de quem segura qualquer

coisa. O corpo rotundo mal cabia no cadeiro onde se sentara e a que parecia amarrado. Os breves movimentos, feitos com os ombros, eram de quem se queria soltar

de uma fora que o subjugava.

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- Mas diga o que pensa de tudo isso, diga, Z Botto! - insistiu o Relvas, enquanto comeava a acender as velas dos castiais postos sobre a mesa, pensando consigo:

"Deixa-me ver bem a cara destes gajos."

O outro ficara-se a seguir-lhe os movimentos, cerrando os olhitos, como se a luz Ihos ferisse; mas reparava, de soslaio, na expresso preocupada dos trs companheiros

escolhidos pelo lavrador de Aldebar. Ora! que pensava ele, que pensavam todos dum desastre daqueles!... Que estavam lixados, mais do que lixados. Fornicados! Fornicados

e mal pagos.

- Olhe, Diogo! Eu no sou homem pra me matar, como muitos j fizeram, porque acho que a nossa vida pertence a Deus...

- A gente no veio aqui pra falar na morte, Z Botto - interveio Fortunato Rolin com uma punhada na mesa. - Deixe Deus em paz e jogue aqui as cartas que tiver na

mo. Jogue-as, homem!

O outro sacudiu os ombros num arremesso, mas no gostou do olhar que o Rolin lhe deitou, e sabendo-o capaz duma desfeita de palavras, ali mesmo, nas barbas de todos,

emendou o gesto de enfado:

- Vamos l com pacincia!... No com gritaria que a gente se entende.

Diogo Relvas parecia agora s interessado com as velas acesas; olhava a janela aberta, da qual vinha uma aragem que dobrava as chamas, espalhando na sala um vago

cheiro a cera.

Z Botto mastigava as palavras:

- Tu falaste de jogo... E disso sabes tu.

- E ainda bem: tenho os meus vcios. bom que os tenha. At na Corte j sabem que gosto de mulheres, de toiros... e de jogo. Se fosse noutro stio, mandava-te uma

parelha de coices. So vcios meus e sou eu que os pago, Z Botto! No devo nada a ningum. Ou devo?!...

- Deixem-se disso! - interveio o Pereira Saldanha, franzino e nervoso, que at ali s premira a testa com dois dedos, sempre de cabea baixa, o raio duma dor meteu-se-me

c dentro, parece que vai estoirar comigo, a maldita!

- Para mim um jogo de vida ou de morte, este em que estamos metidos agora. Se no se importar, Z Botto, fale-me

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em termos de jogo para o entender melhor - retorquiu Fortunato.

Dos altos do palcio, chegava um choro reprimido. S de vez em quando, por entre passos cautelosos, certamente das criadas, como se o fio dessa dor viesse lembrar

aos cinco as razes verdadeiras daquele encontro.

- Fao-lhe a vontade, meu caro Rolin...

- Trata-me por tu, como costume - observou o outro, menos agressivo. - Somos velhos amigos... apesar de tudo. (Queria lembrar certa manobra do Botto numa compra

de aces da Companhia das Lezrias.)

Z Botto acenou a cabea com um sorriso misterioso, cujo significado s ele poderia denunciar. Mas era reservado para toda a gente e mais ainda para o Rolin, que

blasonava fidalguia por causa do nome - "escreva com ene e no com eme e escreve muito bem; o nome francs e l-se rol", acentuara malcriadamente numa escritura

feita entre os dois, frente de advogados e mais gentalha do foro. Tambm eu sou Botto, sempre com dois ts, e no chocalho para a a ascendncia da famlia.

Relvas metera os polegares nas cavas do colete e tamborilava o peito poderoso com os dedos da mo grossa. Esperava que passasse aquela conversa de arame farpado,

sempre fatal quando estavam os dois; e no intervinha, um pouco brinco, apesar das circunstncias trgicas do momento e dos sinais que lhe fazia o Joo Vitorino,

taciturno e calado, avaro de palavras, embora fosse homem de ideias claras.

- Fao-te a vontade mais uma vez, meu caro Rolin. Passo a vida a fazer-te vontades - insinuou o Botto em voz mais baixa. - E j que queres que fale de jogo e de

cartas, serve-me exactamente para o que te queria dizer. Estamos aqui os cinco e h ainda outro parceiro a jogar com a gente. Pediste-me para que fizesse o meu jogo.

E eu pergunto-te: que cartas temos na mo? Tu e eu... todos ns. Tens alguma?!...

- H sempre cartas para jogar - afirmou o Rolin. - Menos a da morte... Percebes?!

Pusera-se de p. Passara para o outro lado da mesa e fitava o Botto com o olhar espantado.

- J temos mortes a mais... Infelizmente. - E emendou:

- Ou graas a Deus! Quem mandar, realmente, em tudo isto?

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No podemos fugir perante o perigo... Nunca gostei de lhe voltar a cara.

- isso mesmo, Fortunato! - exclamou Diogo Relvas, atirando com o brao direito num golpe de guilhotina. E pediu-lhe que continuasse, num gesto sacudido de mo.

- Devemos perguntar a ns prprios se, porventura, temos culpas no que se passa. Eu gosto de fazer essa pergunta a mim mesmo. (Erguera a cabea de cabelos revoltos

para imprimir fora ao que queria sublinhar.) Fortunato Rolin!... Diz l, meu velho! No sers ru tambm nesta altura?...

- Todos somos rus - comentou o Pereira Saldanha, ao introduzir um pedao de rap nas ventas.

- No estou de acordo! - gritou Z Botto, tentando desembaraar o corpo pesado dos braos do cadeiro. - Rus como?!... Para mim, e h muito boa gente da mesma opinio,

todo o mal comeou com a revolta do Porto. A revolta republicana meteu medo s pessoas de bem. Eu sei de alguns que puseram o seu dinheiro l fora... Em Paris e

em Londres. Devem ter desaparecido fortunas nessa altura. E ainda esto a escapar-se...

- Esses so os cobardes de sempre! - observou Joo Vitorino. - So os mesmos que pem o dinheiro a salvo e encetam conversas, s escondidas, com os maes e os carbonrios.

- Mas ser tudo?! - perguntou Diogo Relvas do fundo da sala. O cheiro da cera incomodava-o; recordava-lhe a cada instante a figura esguia do genro dentro do esquife.

Adivinhava o choro da filha por entre o alarido das palavras jogadas agora com raiva. Teria escolhido bem esta altura para conversarmos em tal assunto? Receei o

pnico; mas talvez me precipitasse... - Ao que julgo, h uma soma de acontecimentos. A independncia do Brasil...

- As lutas liberais - objectou algum.

- Eu insisto: a independncia do Brasil, as aventuras coloniais, agora a implantao da Repblica Brasileira, o ultimato, a revoluo do Porto... e a falncia do

Baring Brothers, ou l o que .

- Exactamente - sublinhou Joo Vitorino, enxugando no leno o suor das mos.

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- Exactamente, sim, senhor, mas convm talvez pr a um grozinho de pimenta - interrompeu Fortunato Rolin. Depois moderou a voz, olhando sua volta, como se receasse

que mais algum o ouvisse: -A falncia dos banqueiros do Governo no ser tambm, eu fao a pergunta, no ser tambm uma manobra dos ingleses por causa de Angola

e Moambique? No insinuo, pergunto.

Os outros respondiam em meneios lentos de cabea.

- Uma falncia poltica, digamos, para lembrar que um pas sem dinheiro, nem crdito...

- Temos vergonha! - observou Pereira Saldanha num grunhido.

- J a viu por a?! - interrogou, chocarreiro, o Botto.

Fortunato Rolin olhou o dono da casa, como a pedir-lhe ajuda, se estivssemos noutro stio, outro galo lhes cantaria, e aquele deu-lha, rogando aos demais que o

deixassem falar, que deveriam habituar-se em reunies daquelas a escutar e a intervir, sim, sem dvida, todos tinham direito de dar opinies, mas s na altura prpria,

seno embrulhavam-se e perdia-se muito tempo sem chegarem a concluir qualquer coisa que valesse a pena.

Foi janela e gritou para os lados do porto:

- Despachem essa gente e faam pouco barulho!

Depois avanou para junto da mesa e pediu ao Rolin para continuar. Este esperou o fim de um ataque de tosse do Saldanha. Era a asma. Sempre que se enervava, vinha-lhe

a tosse asmtica.

- Dizia eu que os ingleses cortaram-me o fio meada e agora apagou-se-me o fogacho, que os ingleses quiseram lembrar-nos que somos um pas de pilhas e que no podemos,

portanto, ter a presuno de dispor de pases africanos, maiores... (buscava a comparao e no se sentia capaz de a encontrar) muito maiores do que tudo isto.

E abria os braos enormes, como se ali mesmo procurasse medida para o confronto.

- Os ingleses no sero bem o que dizes, Rolin - opinou Z Botto. - Temos de acabar com essa mania de que os ingleses que fazem todo o mal ao continente. Isso

calo republicano, desculpa que te diga. Sei bem as tuas ideias... Mas os

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republicanos que culpam os bifes de toda a peonha desta terra. E isso no justo! H crises! A que est o buslis: h crise?!

- Comea a a ferida - acrescentou Diogo Relvas. - A mesmo. Ou n-no?!

No se dirigia a ningum e falava para todos; e talvez mais ainda para os outros que tinham chegado de Lisboa hora do funeral e j haviam partido, apressados,

como se o susto os matasse punhada, assaltando-os por aqueles caminhos sem polcia nem exrcito.

- As nossas crises comearam exactamente a crescer de intensidade... (Fez pausa, entrelaou os dedos e descansou as mos em cima do peito.) Digo bem: os males a

esto com o dinheiro arrancado ao Pas em investimentos suprfluos. No perceberam ainda onde quero chegar. Chamo suprfluos, e acho que muito bem, n-no?, ao dinheiro

posto nos caminhos-de-ferro, por exemplo, em negociatas do Ultramar, em algumas indstrias de que no temos matrias-primas, em tudo aquilo, enfim, donde no tiramos

rendimentos lquidos. Para os meter na agiotagem, como muitos fazem? N-no! Como esses tambm no! Esses tambm so os culpados da crise.

O Botto movia-se agora no cadeiro; parecia que o corpo lhe mingara com as palavras iradas do Relvas. Fortunato Rolin sorria por baixo do bigode farto - toma l

que j apanhaste para o almoo de amanh, meu malandreco!

- Para ocuparmos verdadeiramente esta terra... digo esta terra (e batia com o indicador esquerdo no tampo da mesa), que a nossa, que Deus nos entregou para glria

Sua, e que bem pouca tem sido... E por culpa nossa. Somos uns tontos uns galdrios. Queremos mudar de stio. Queremos guitarra e cantoria. Temos alma de cego.

Navegaes por esse mundo fora, sim, senhor, muito bem. E gente?!... E dinheiro?!... E a vamos, esquecendo que "o primeiro passo de uma nao para aproveitar as

suas vantagens conhecer perfeitamente...". Isto no meu - explicou -, mas como se o fosse: "Conhecer perfeitamente as terras que habita, o que em si encerram,

o que de si produzem, o de que so capazes." S os lavradores, e alguns, tm obedecido a este preceito!

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- assim mesmo, Diogo Relvas! - assentiu Joo Vitorino.

- Temos a esse Alentejo todo... A mngua e rico. A lei que acabou com os bens de mo morta...

- Isso liberalismo - interveio, agastado, o Pereira Saldanha.

- Pois que o seja?! Eu sou liberal... Devem acabar-se com todos os bens de mo morta. A lei das terras das congregaes foi um passo; o arredar dos morgadios, mais

outro. Mas no tudo! A terra deve ser dada a quem a pode e sabe trabalhar. No com a enxada, porque isso a anarquia, e o regresso aos poisios, por causa da mndria

do povo, mas com iniciativa confiana na terra...

- Como todos ns fazemos - asseverou o Relvas, um tanto irritado com a interveno afogueada do Vitorino. Estranhava-o. Nunca o vira to impulsivo e falador. - Se

me do licena... ( Puxou do relgio, envolvendo a grilheta de oiro no dedo.) Est a fazer-se tarde. No os quero pr na rua, mas parece-me pouco conveniente, nestes

tempos agitados, andarem c por fora at muito tarde. A malandragem vai pr-se solta. Vm a os roubos e os assaltos. Se os prenderem, iro desculpar-se com a

fome, e a canalha republicana bater-se- por eles nos tribunais. E faro a mesmo comcios nossa custa e contra ns. Noutra altura, e noutro dia, compreendem,

no assim? teria muito gosto em convid-los para jantar...

medida que falava, Diogo Relvas sentia-se desumano para com a filha e os dois netos, embora no lhes faltasse a companhia da restante famlia. Quisera aquela reunio

para significar Emlia Adelaide que nem a morte deveria travar o caminho dos vivos, daqueles que querem realmente viver e prolongar-se, mas agora reflectia, talvez

comeasse a ficar cansado e preocupava-o acabar depressa com aquilo, como se os quatro filhos e os netos lhe abalassem, de repente, deixando-o s naquele palcio

enorme. A conversa, em parte, fora s de palha, quase s de palha; e interrogava-se se a culpa no teria sido sua, e s sua, com todas as perguntas que pusera no

comeo. Era outro mal da raa - falar muito e realizar o mnimo. Ou nada. O gosto do eco das palavras.

Os outros escutavam-no, sei l em que estaro a pensar?, acenando a cabea com gravidade. E ele prosseguia:

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- Devemos mobilizar imediatamente a Lavoura, todos os que tm peso, e irmos ao Governo lembrar-lhe que no deve deixar a anarquia vir at ao campo... A Companhia

do Crdito Predial dever emprestar-nos todo o dinheiro de que precisamos...

- Eu tenho o que preciso, Diogo Relvas - esclareceu, ufano, o Z Botto.

- Todos temos, meu velho! - gritou o lavrador de Aldebar. - Mas se o comrcio e a indstria vo pedinchar, se vo cair em cima do Governo, teremos de nos precaver

j, retendo tudo o que pudermos. Percebes agora?!... Ou n-no?

Fulminava o outro com os olhos cor de oiro velho.

- Todo o dinheiro, todo o crdito... Tudo! E sem demoras. Amanh mesmo. Eu por mim estou pronto a deitar a Lisboa. Levo comigo a Cmara do concelho e bato-me no

gabinete do ministro, batemo-nos todos ali, para lhe dizermos da agitao que lavra entre o povo... - Percebeu o gesto evasivo do Rolin e encolheu os ombros, numa

desculpa; e dirigiu-se-lhe: - Nada se passou ainda, claro! Mas garantes tu, ou eu, ou todos ns, que o povo dos campos, o daqui e o do Alentejo, pelo menos, no

comece a ajuntar-se e a fazer distrbios? Pois antes que tal suceda, precisamos de denunciar-lhe o perigo. Precisamos de dinheiro. O Pas depende da agricultura

em setenta por cento dos seus rendimentos. Setenta por cento do dinheiro deve vir para ns. Estamos de acordo?

- Perfeitamente! - concluiu o Pereira Saldanha ao erguer-se, com um impulso de quem vai sair.

- Um momento mais, tenham pacincia. Lembram-se dum pacto que fizemos h dois anos?

- Um pacto? - perguntou Z Botto, franzindo o rosto e coando as suas.

- Sim, amigo Z, um pacto sem assinaturas, mas um pacto de honra. O que mais ainda do que as escrituras. Para mim, pelo menos...

- Para todos - increpou o Rolin.

- Que assim seja, e ainda bem. O perigo agora aumentou. possvel que alguns industriais, ligados a certos banqueiros da estranja e de c tambm, venham tentar

mais uma vez meter certas indstrias no nosso concelho. Bastam-nos as que j te-

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mos. Vocs sabem que no sou contra a indstria, longe disso. Mas entendo, como sabem, e vocs tambm o entendem - emendou para os ligar melhor ao compromisso -,

que deve haver reas perfeitamente demarcadas para uma actividade e para a outra. Doutra maneira poderemos ter a fuga do pessoal do campo; j so muitos que se escapam

para as fbricas, ao que sei doutras regies. Quando entrarmos em competio de salrios com a indstria, estaremos perdidos. Por eles e por ns. O equilbrio de

tudo est no campo. No lavrador e no seu servo. Eu fao por mim o que posso... Percebem o perigo?! Tu, Z Botto, vs bem o nosso risco?

- Ainda no disse menos. Mas quero fazer uma pergunta: eu sei que ests ligado Companhia dos Tabacos...

- Toda a gente o sabe... Ah, malandro?! que se pudesse... Um dia talvez possa! No fao segredo disso. O que queres perguntar, afinal?

- Se te pedirem para cederes terreno nas tuas propriedades...

- Digo que no. s isso que desejavas saber?

O outro aparafusava. Irritado, o Fortunato Rolin puxara Joo Vitorino para o fundo da sala e garantia-lhe que o Botto andava feito com os ingleses. Tinha a certeza.

No era de Londres a companhia seguradora dos seus haveres?

- Mais outra coisa ainda, Diogo Relvas - insistia o Botto.- Se te derem uma boa posio numa fbrica qualquer com a condio de deixares instal-la aqui, continuas

na mesma atitude?

- Exactamente na mesma.

Varava o outro com o olhar.

- Sou homem de uma s f e de uma s palavra. Mquinas para mim s as que servem a lavoura. E dessas mesmo nem todas. Algumas s so boas para nos levarem o dinheiro

e deixarem-nos o ferro-velho.

- E as que preparam tabaco - objectou o outro com maldade. Toma l para a tua vaidade!

- Sim, tambm essas. Gosto de me interessar pelos vcios dos criados e dos amigos. Quando tu quiseres, cedo-te algumas aces. Meti-me l, fica sabendo, para que

os estrangeiros no arrebanhassem tudo.

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- Estou satisfeito. Obrigado, Diogo Relvas, pelas tuas explicaes. Gostei da tua franqueza e no me esquecerei da oferta que me fizeste. Das aces...

Todos estavam de p, conversando em pequenos grupos. O dono da casa fora at janela para a fechar, mas reflectia na interveno final do Botto, no tom de provocao

com que lha fizera, naqueles olhitos de rato, perfurantes e malandrecos, cnicos e falsrios. No gostavam um do outro. Quem gostava desse tipo que quisera opor-se

a que a Companhia das Lezrias lhe vendesse um dos mouches do Tejo? A propsito da lei que concedera a venda pela Fazenda Nacional dos bens da Casa do Infantado,

quisera barrar-lhe o negcio. Sabia que ele estava feito com os dos caminhos-de-ferro e que eram estes os mais interessados na instalao de indstrias junto das

suas linhas, para que assim contassem com mais fretes.

Regressou depois ao convvio dos outros e perguntou:

- Amanh a caminho de Lisboa, no assim? Serve o comboio das dez?

Todos concordaram.

O Pereira Saldanha aproximou-se e pediu-lhe "uma palavrinha parte". Queria um favor, um favorzinho: se ele seria capaz de lhe arranjar uns centos de libras de

cavalinho l no banco. Qual banco?, perguntara o Relvas. No , com certeza, o do meu genro.

- O teu, homem, o teu. Toda a gente sabe que tens lmpada acesa no de Portugal...

- Eu?!... Essa agora!

Mandou-os levar no breque, indo acompanh-lo at sada do porto, mas ruminava na maneira como soubera o Saldanha, o miguelista do Saldanha, do seu poder junto

do banco. Deixou-se ficar por ali a meditar em tudo o que dissera e ouvira, enquanto o ano das cavalarias lhe seguia o vulto, convencido de que o patro Diogo

chorava sozinho as lgrimas da sua dor, longe da filha e dos netos. Depois viu o vulto aproximar-se e ergueu-se do banco onde se entretinha, todas as noites, quando

acabava as obrigaes, a ver as estrelas e a pensar se as pessoas iriam na verdade para o cu, se aquelas seriam as luzes do Senhor e das almas. Os campinos riam-se

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dele por causa disso e do seu defeito, mas gostavam de lhe pedir versos para cantarem ao desafio.

O ano era poeta. O patro sabia-o; e j uma vez, depois da ferra do gado bravo, lhe pedira a ele, Joaquim Taranta, um seu criado, se seria capaz de lhe cantar versos

da sua lavra. "Cantar, no, no senhor; os meus versos no so da voz, saiba Vossa Senhoria; so da cabea", respondera o cocheiro.

Via agora o patro caminhar para ele, e interrogava-se: deveria dar-lhe os sentimentos ou seria atrevimento falar-lhe nisso?

Diogo Relvas queria ver a gua que escolhera para o neto. Naquele dia em que o genro se enterrava, apeteceu-lhe aproximar-se do animal e acarici-lo, num impulso

de que no compreendia o significado. Talvez para meditar ainda no que deveria dizer filha ou nos ecos de certas palavras pronunciadas durante a entrevista com

os outros lavradores.

A lei teria de continuar a vir deles. Cada um, isolado, seria pouco mais do que uma bateira arrombada - isso mesmo, uma bateira arrombada posta merc da cheia

que tudo arrasta para o mar.

A lembrana dessa bateira abandonada, vista numa tarde da sua infncia, na margem norte do Tejo, e impelida pela braveza das guas, negra e quase desfeita, ficara-lhe

desde ento como a imagem acabada duma derrota irremedivel. Sim, agora compreendia o desejo de ver a montada destinada ao Rui Diogo. Um animal daqueles, decidido

e dcil, temperava-lhe a confiana; nada havia no mundo que mais o empolgasse.

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Captulo III

A Torre dos Quatro Ventos

Trocara breves palavras com a filha viva. Fora encontr-la, plida e distante, junto de Maria Teresa, a quem embalava ainda, sem perceber que j adormecera, como

se quisesse acalentar a prpria dor no movimento cansado que imprimia ao bero. Volvera a cabea, bruscamente, quando ouvira o rudo da porta, sublinhara o gesto

com um olhar de estranheza, talvez de dio, por no cumprirem as suas ordens, mas logo se recolhera ao descobrir que era ele o intruso. Estava seca de lgrimas;

nunca gostara que a vissem chorar. Era do seu temperamento altivo. Nisso nada tinha da famlia da me, os Villaverdes, que teatralizavam prantos. Conhecia-os demasiado.

Caminhara at ela, sentindo embora que havia no ambiente uma muralha densa de hostilidade, atravs da qual passara quase fora de poder fsico. Rompera-a com os

ombros, no, no a posso deixar entregue sua dor, mas ficara tolhido perante o silncio de Emlia, ausente e estranha, como se quisesse desfeite-lo tambm.

"- Essa menina est insuportvel!", contara-lhe Antnio Lcio, o varo mais velho, ao ouvir-lhe os passos na escada de mrmore. "- Queria que o senhor viesse para

junto dela, mal o funeral terminou. Acha tambm que fomos deselegantes com a famlia do marido. Eu ainda insisti..."

Precisava de lhe dizer qualquer coisa que ela pudesse entender naquela hora amarga, sim, o qu, realmente o qu?!

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esboou ainda uma carcia nos seus cabelos negros, um pouco desalinhados contra o seu hbito, mas ela adivinhou-lhe o gesto e sentiu-a mirrar-se, numa contraco

sbita, como se quisesse impedir-lhe o contacto da mo. Tocado por esse movimento, Diogo Relvas julgou-se molesto ali dentro e pensou em deix-la s, ficaremos todos

ss e neste momento no possvel, teremos de nos acompanhar, sermos solidrios na dor e na procura duma sada, ainda se voltou para a porta num mpeto mal-humorado.

Reagiu, porm, e debruou-se sobre a neta; comps-lhe a dobra da renda do lenol, sorriu-se quando a viu sorrir, num sonho bom que a devia acompanhar, e afagou a

cabea da filha quase com rudeza, querendo apagar os ressentimentos absurdos que pareciam crescer entre eles. Viu-a indiferente, para no dizer magoada com o seu

contacto. Era natural, era natural que ela estivesse assim, reflectiu, mas precisava de lhe fazer compreender a necessidade de reagirem todos contra a fatalidade

que se queria impor-lhes, e no podiam consentir, ele no podia consentir que a onda de descrena os submergisse tambm, ento seria o fim, e nada estava no fim,

antes pelo contrrio, seria at possvel aproveitar da situao se ele mantivesse a serenidade, e os filhos tinham que o ajudar a mant-la, era a compensao dos

fortes, dos homens vlidos perante a perturbao dos cobardes que fugiam dos acontecimentos em lugar de os defrontarem.

"- Precisamos todos de ser fortes, Milai!" - Empregara o tratamento ntimo que lhe dava quando estavam ss; ela precisava de perceber a verdadeira ternura que lhe

dispensava, no, no era mais amigo da Maria do Pilar, ambas eram suas filhas, uma parvoce pensar tambm ela que a outra irm tinha a sua preferncia. E que a tenha!

No se percebe, fao tudo para que se no perceba.

"- Venha da comigo, Milai! Precisa de descansar.... insistiu em voz surda, puxando-lhe a cabea para si.

"- Deixe-me ficar sozinha.

"- Porqu ?!...

"- Porque estou realmente s. Gosto de situaes claras; j sabe que sempre fui assim...

"- Est a dizer asneiras, Milai. Martiriza-se sem necessidade."

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Emlia Adelaide levantara-se, ento; e vira-lhe os olhos turvos de lgrimas, gostaria que ela lhas deixasse apagar, e a filha fitara-o com hostilidade.

"- O senhor nunca gostou dele...

"- E a menina ?

"- Era o meu marido.

"- No foi isso que lhe perguntei.

"- Eu pedi-lhe, Pai, eu pedi-lhe quando chegmos que o ajudasse, que lhe desse o seu nimo; eu adivinhava, eu sabia que o corao dele estava fraco, no devamos

atorment-lo e o senhor deixou que lhe viessem trazer a notcia...

"- No podia supor, Milai!

"- Eu que sabia das noites e dos dias que ele passara, atormentado, cada rudo o sobressaltava, movia-se aos saces tudo nele era brusco... Vivia apavorado. S

o preocupava o meu futuro e o dos filhos...

"- Para isso preciso encarar bem os acontecimentos.

" - Mas ele era um fraco...

"-Disse tudo, Milai. Com essa palavra disse tudo. Ele era um fraco! Qualquer coisa o faria desabar.

"- Mas o senhor ajudou... "

Ainda no sabia como pudera conter-se, como evitara espanc-la, talvez a presena da neta, talvez a culpa, mas culpa de qu?!... como podia evitar que ele soubesse

o que se passava?!..., ou o amor por ela, por todos os seus, afinal, que no lhe perdoariam uma cena violenta naquela hora.

Sara do quarto, algum batia porta, e deu com a criada a Iria, tentando segurar o neto mais velho, um menino de trs anos, plido como o pai, de grandes olhos

azuis - os olhos tristes e frios dos Arajos. A criada explicou-lhe que o menino Rui Diogo no queria dormir enquanto o pai no voltasse, ainda pensou dizer-lhe

qualquer coisa para o enganar, mas acabara por quase fugir da presena de toda a gente, vindo meter-se ali dentro, na torre do mirante do palcio, onde gostava de

passar as horas extremas da sua vida - as amargas e felizes. Chamava-lhe as horas extremas. Que tinham agora de ser lcidas, amargas e lcidas, vividas com paixo

e com serenidade, de cabea fria sem que o corao arrefecesse, antes pelo contrrio, com o corao apaixonado, mas sem que essa

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paixo, por sua vez, chegasse nunca a tocar-lhe o crebro. Esse tinha de ver tudo o que o rodeava, claramente tudo o que o envolvia, e mais ainda o que ficava para

alm, o oculto e o subterrneo, as foras misteriosas daquela vida de interesses, desencadeadas agora num apocalipse. Adivinh-las, pressenti-las e aparar-lhes

os golpes. E domin-las, sim, acima de tudo domin-las.

Amanh deveria falar ao ministro. L iria com os outros, mas seria ele a conduzir a conversa, sbrio, talvez cordato e quase humilde, para melhor poder reagir com

brutalidade, se o outro se mostrasse incompreensivo para a situao da Lavoura. E agora a discusso com a Emlia Adelaide desviara-o da tarefa. A certeza de que

ela se melindrara por no ter vindo ampar-la, era uma ciumenta, sempre assim fora desde criana, preocupava-o naquele dia mais do que habitualmente; embora confiasse

na capacidade de a demover, sentia-se magoado com o tom spero, desrespeitoso at, com que ela se lhe dirigira. Importavam menos as palavras, essas talvez pudessem

esquecer-se, porque outras se lhe viriam sobrepor e cobri-las, e assimil-las, como aos sedimentos da terra, embora voltem a descobrir se o ferro vivo de um acontecimento

as revolver.

Subia as escadas que levavam torre do palcio, meditando em tudo isto. Fazia-o pausadamente, como de costume, no porque os quarenta e quatro anos lhe pesassem,

sentia-se ainda com todo o poder, mas para preparar o encontro com as recordaes que ali se guardavam. Chamava-lhe a Torre dos Quatro Ventos.

...Que queria dizer com isso?

Diogo Relvas responderia, simplesmente, com um sorriso misterioso nos olhos, que era fcil de adivinhar, claro como gua; cada janela deita para um ponto cardeal

e h quatro pontos cardeais donde o vento sopra. Simples, nada mais simples.

O sorriso misterioso nos olhos significaria, porm, que naquela torre-mirante mandada construir pelo av, e onde s entrava o chefe da casa, se confrontavam, em

lembranas vivas, os quatro segredos do poderio dos Relvas: a objectividade, a coragem no essencial, o amor pela perfeio e a pertincia. Nesta rosa de quatro ventos

que se harmonizavam, quase sem-

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pre, arrecadava-se o mistrio, podia-se chamar-lhe mistrio, da histria dos ltimos cem anos da famlia.

Antes de subir, recomendara tambm Brgida, a governanta, que no o chamasse para o jantar, mas que o desse aos meninos exactamente hora habitual; nada de procur-los

por salas e quartos; tocaria como sempre a sineta do corredor, mandando-os servir cinco minutos depois. Nem um segundo de tolerncia. Decorrido esse tempo, ningum

mais se poderia sentar mesa. S ele resolveria acerca das razes invocadas pelo retardatrio; simplesmente, no desejava que o incomodassem naquela noite, sob

qualquer pretexto ftil. Queria trabalhar em sossego.

Levava consigo a candeia de azeite de trs bicos com que l dentro se alumiava, quando no entendia apag-la e ficar s com a luz do luar. Foi o que fez, embora

a Lua mal se definisse ainda, embrulhada em nuvens que a tapavam e descobriam, num jogo de penumbras.

Despiu o casaco, tirou o plastro do luto e disse a mesma frase sacramental, sempre que ali entrava:

- C estamos! - Era uma espcie de palavra de passe dirigida ao pai e ao av, com quem vinha confrontar-se.

Branda claridade penetrava pelas quatro janelas. L se viam a cama de ferro com colcho de palha-milha, a mesa vulgar pintada de castanho-escura onde o caruncho

roa, roa, tanto nela como no banco e nas duas cadeiras, ou talvez ainda na moldura velha que sublinhava um cromo da Virgem Maria, pintalgado pelas moscas; a um

dos lados, entre a janela do norte e a do nascente, o lavatrio de ferro com bacia, balde e jarro. Tudo pobre, como em qualquer dos casebres dos campinos de Aldebar.

"Foi o meu primeiro quarto", contava o av, de quem Diogo Relvas era o retrato chapado. Achara-se com poder para abalar por a adiante nos caminhos da fortuna, e

conservara sempre aquela moblia tosca por padro comparativo do que fora e do que era. De esprito aventuroso e destemido, dizia-se que nada devia violncia de

um bandoleiro e manha de um cnego, o que, por certo, no passavam de aleivosias de gente despeitada e de fraca madeira, incapaz, acrescente-se, de amarinhar to

depressa e to alto como Bernardo Santa-Br-

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bara Relvas, o Chicote, assim alcunhado por amigos e servos, pois tudo se propunha resolver com a ajuda daquele. No era que o usasse com frequncia, mas tomara-o

como smbolo de que na vida muito se poderia resolver pela fora, quando outro jeito se no achasse para almejar o que se queria. Ele dera-se bem com o processo.

As provas viam-se. E nada as encarecia mais do que a presena daquele quarto miservel no enquadramento faustoso do palcio Me-do-Sol, adquirido no esplio de um

dos companheiros do general Gomes Freire, cado com ele em desonra pblica. A torre-mirante fora acrescentada pelo Chicote, no s para enxergar dali algumas terras

do seu domnio, como o Tejo, de quem o lavrador era apaixonado; e tanto, que se lhe metera nos projectos criar uma companhia para o navegar at Madrid, se o Governo

resolvesse alguma vez levar por diante o projecto do italiano Antonelli, esquecido desde os tempos dos Filipes.

Mobilada com a indigncia dos haveres de um pobre, a torre passara a ser o refgio do chefe da famlia, a que ele prprio deveria garantir a limpeza, em sinal de

humildade e orgulho tambm. Nunca ali entrara outra pessoa, salvo seja, alm dos trs vares - o Chicote, o filho Joo, pai de Diogo Relvas, e este. E certa marquesa,

cujo ttulo no vem para a histria, teimosa e bizarra, que porfiara em s aceder corte do ltimo senhor de Aldebar, se ele a despisse dentro da torre. Fiado

num dito do av - "o que necessrio conseguir as coisas" -, o rapaz quebrara o compromisso tomado perante o pai para no atraioar o lema do Chicote, que lhe

parecia mais digno de obedincia. No veio da mal casa, nem ao prestgio da famlia, porque a marquesa achou a cama dura e no insistiu no local. A partir, porm,

desse encontro fugaz, a torre passou a dispor de binculo, com que a fidalga a dotou, em louvor dessa paixo exaltada que deu escndalo em Lisboa e acompanhou a

senhora at morte, garantindo aos Relvas bons negcios em gado cavalar, pois o marido da mesma era oficial mando na remonta do exrcito.

Diogo recordou-a naquela noite quando se estendeu sobre a cama de palha dura. O binculo l estava sobre a mesa. Que mulher!... Tinha quase mais vinte anos do que

ele; mas na idade em que a conhecera, aos dezassete, no poderia apa-

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recer-lhe amor mais didctico e exaltado. Amara-a tambm com orgulho; ficara a dever-lhe o gosto inestimvel de saber descobrir no corpo da mulher alguma coisa mais

do que "o curral do porco", como ela prpria chamava ao amor abrutalhado de certos homens.

Comeara por pensar na filha, no que lhe dissera, e ali estava ao seu lado a primeira amante que conhecera realmente, e talvez a nica, confundidas ambas na sua

lembrana. Rolou a cabea na travesseira, procura do perfume que ali ficara durante meses. Conhecia-o entre todos. Mandava-o agora vir de Paris para a amante que

recatava em Lisboa depois que enviuvara. Um pouco antes, para dizer a verdade pois j a tinha quando a mulher morrera, ia agora para onze anos. Maria Joana Rolin

Villaverde, segunda prima de Fortunato Rolin, que com ele estivera reunido naquela tarde, finara-se numa manh de Dezembro de 1880, esgotada por dar ao mundo mais

uma filha, a sua Maria do Pilar. Morriam cedo os Villaverdes. No soubera escolher mulher! Ele que se esmerava em seleccionar tudo o que as suas terras e gados produziam,

o melhor da Pennsula, sim, o melhor, enfeitiara-se por aquela rapariguinha airosa e dbil, de pele branca e transparente, talvez por contraste com os Relvas, poderosos

e morenos; mas a verdade que os filhos haviam herdado muito da fraqueza do corpo materno.

"Que vou dizer amanh ao ministro?" interrogava-se com ansiedade, querendo cobrir certas lembranas que lhe chegavam de roldo. No acendera a candeia de trs bicos

para se sentir mais s e, afinal, enleava-se em pensamentos, no podia dizer estranhos, mas talvez clandestinos e indesejveis para a lucidez que necessitava de

chamar a si naquele momento. Mandara um recado ao presidente da Cmara Municipal, precisava dele no comboio da manh, e antes de procurar o ministro queria deitar

a mo ao deputado a quem dera os votos de Aldebar, inteirinhos, sem uma falha - ali at votavam os mortos e os entrevados, e muitos e muitos de todo o concelho

onde manobrava amizades e benfeitorias. Iria exigir-lhe que o acompanhasse tambm; no era s pavonear-se nos corredores das Cortes, sua custa, e fazer discursos

fnebres. J agora

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sempre queria ver os talentos do homem! Depois... Ah! Depois no lhe faltariam passos para dar!... Nem queria pensar em tudo isso, embora se lhe impusesse imediatamente

uma visita ao banco do genro, para saber com exactido em que situao estavam, e quais as perspectivas para o inventrio a efectuar por causa dos netos. Teria de

se avistar tambm com o malandrete do Manuel Arajo, o irmo do genro, capaz de assaltar um clrigo Sexta-Feira Santa, se o soubesse portador de coisa que lhe

desse jeito.

- C estamos! - repetiu a frase para o silncio passivo da torre.

Dirigia-se aos dois a quem devia dar contas, ao pai e ao av, sem desalento na voz, como se ambos estivessem vivos sua frente. Queria significar-lhes, assim, a

maneira como empregava a fora herdada perante um conjunto de acontecimentos trgicos.

Ah! no, no exagerava, chamando-lhes trgicos, no era homem para isso. Queria v-los nesta emergncia, tendo volta rebanhos e rebanhos de carneiros, capazes

uns de se suicidarem em grupo, como sucedia, outros j prontos a entregarem-se aos financeiros da indstria e aos pistoleiros do caminho-de-ferro - nunca mais se

esqueceria da indemnizao de borra que lhe pagaram pelas terras cortadas pela via -, outros ainda assarapantados de medo e a fraquejarem das pernas e do corao,

piores do que codornizes espavoridas em dia de batida. Homens para rebanho no faltavam; mas pastores capazes de os conduzirem a salvo, isso que no havia, disso

no se encontrava muito. Sabia l se felizmente para si!...

Acabou por se levantar da cama, indo espreitar a cada uma das janelas da torre. Os ventos pareciam quietos naquela noite. Deteve-se mais na do lado sul, donde soprava

o ciclone da "semana negra". Precisava de lhe resistir. Seria capaz?!... Acreditava que sim, seno seria o cabo dos trabalhos, o termo de tudo o que durante cem

anos fora acumulado pela famlia. Poderia a vida obrig-los a regressar quele quarto miservel, sem mais nada?!... Sabia que no e, s por isso, gostava de admitir

a hiptese. Foi, ento, que se resolveu a acender os trs bicos da candeia.

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O quarto ficou cheio de sombras negras e desdobradas enquanto do silncio rompia, angustiado, o silvo estridente de um comboio. Naquela noite era bem o grito de

terror de algum que fugia de Lisboa, de algum que vinha buscar refgio no sossego dos seus braos.

E Diogo Relvas abriu-os sem reflectir

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Captulo IV

Retrato de famlia em ponto grande

O fotgrafo estava na moda, depois que a famlia real lhe dera a honra de se sentar frente da objectiva. Melhor no se fazia em Londres e Paris, l isso no, e

toda a aristocracia de primeira e segunda gua, bem como os burgueses de cabedais grossos, comearam a disput-lo.

Cabotina, Emlia Adelaide, que tinha quanto queria do pai, viera com aquela ideia aferrada na sua bonita cabea de andaluza, ao regressar das frias de Sintra, exactamente

quando conhecera o marido, Rui Portela Arajo, numa burricada feita Vrzea de Colares.

Diogo Relvas fora buscar os filhos no feton novo que mandara construir ao segeiro da casa, ao Z Segeiro, servindo-se duma revista inglesa para modelo, e esmerara-se

na equipagem, regalo seu e de quantos a viam passar, pois atrelara-lhe cinco cavalos; poderosos na batedura e impecveis de formas. Quatro deles, a parelha que ia

ao tronco e a que levava em potncia, eram de cor rucilho flor de alecrim, famoso apuro do ferro da casa - nunca se conseguira daquela mistura de plos, brancos,

pretos e vermelhos, fuso to graciosa, quase lils em certos reflexos, ainda sublinhados pelo contraste das crinas e cabos pretos; o cavalo solto, o que ia isolado

frente, era um animal branco de leite, prateado, mais vaidoso do que o dono, sempre de cabea erguida na conta justa, alegre e, ao mesmo tempo, sbrio, atirando

as mos sem harpejar ou arregaar. Era ele que marcava o ritmo do andamento dos

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outros, bem conduzidos os cinco pela sbia mo de rdeas do lavrador de Aldebar.

Se cavalos e dono iam orgulhosos uns dos outros, no se pode descrever a euforia dos filhos. Basta dizer que levaram o pai a dispensar a criada de os acompanhar,

pondo-a no carro alentejano da bagagem, ao lado do Joaquim Taranta, o ano, e tendo ainda Diogo Relvas de se opor quanto dispensa do cocheiro, pois os meninos

teimavam em ir ss com ele, tamanha bazfia se Ihes metera no sangue com o espectculo da equipagem nova.

Emlia Adelaide subira para a boleia com o pai. Os dois vares e Maria do Pilar iam nos assentos de trs, na companhia do cocheiro, o Z Bonito, ufano tambm na

farda nova de botes prateados e no bon de pala de polimento. Falaram da burricada, o Antnio Lcio gracejou dos galanteios do Arajo irm, esta motejou por seu

lado do namoro dele com a Lusinha - sim, a Maria Lusa Sampaio Quintela -, enquanto o Miguel Joo e a Pilar pareciam ausentes da conversa, debruando-se no feton

para admirarem o andamento dos cinco cavalos, e o Relvas pensava "que j a morte tem vcios" referindo-se idade dos enamorados. Depois da sada vitoriosa de Sintra,

num meio-galope, aplaudidos at por alguns amigos de frias, que se juntaram, como de costume, para o bota-fora, o pai metera os animais a trote, numa guizalhada

que fez adormecer as conversas. S quando pararam numa fonte, para o Z Bonito dar de beber ao gado, que a filha lhe fez o pedido:

- H-de tirar o retrato connosco, pap! Os cinco!...

Numa ampliao grande, como vi no chteau dos Quintelas."

Diogo Relvas acendera charuto, embora ainda fosse pouco dado ao fumo, e prometera que sim, chamava-se o Teixeira, de Vila Franca, era bom fotgrafo, e Emlia Adelaide

insistira no de Lisboa, no Benoliel, era outra coisa, s faltava as pessoas falarem.

Foi o que a Brgida e as outras criadas disseram, quando viram o retrato ampliado. S ento o lavrador deu por bem empregado o trabalho, e ainda o dinheiro, que

dispensara em convencer o fotgrafo para vir quinta fazer o servio. Sim, senhor, uma bonita coisa, quase to janota como o retrato da

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tia, Rita Constana, pintado por um artista qualquer, e de que resultara a vinda do ano para a casa deles. Rita Constana vira a reproduo de certo quadro de um

pintor espanhol, gostara do ano na tela, e exi