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Villa da Feira 12

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Pórtico

Em 2006, 14 de Junho, perfazem-se cem anos sobrea data de nascimento de Dom Sebastião Soares de Resende,ilustre Santamariano natural de Milheirós de Poiares, figuragrande de Portugal e da Igreja, “por mercê de Deus e daSanta Sé Apostólica Bispo da Beira”

Milheirós de Poiares, o Concelho de Santa Maria daFeira, Portugal e a Igreja Católica não deixarão de comemorareste 1º. Centenário, de evocar a sua Obra e a sua Mensagem.

A sua Mensagem é de plena actualidade, a exigir umapausa de reflexão para os povos envolvidos em guerra, castigopara os que a fazem e castigo para os que a suportam.

“Villa da Feira” apresenta estudos de váriasindividualidades que privaram de perto com Dom SebastiãoSoares de Resende ou viveram o excelente da sua Missão:

Dom Jaime Pedro Gonçalves, Arcebispo da Beira;Dom Eurico Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral, em

Moçambique;Dom Carlos Moreira de Azevedo, Bispo Auxiliar de

Lisboa;Professor Doutor Adriano Moreira, Ministro do Ultramar;Dr. António Almeida Santos, Presidente da Assembleia

da República;Padre Manuel Leão, Presidente da Fundação Manuel

Leão;Cónego Sebastião Brás, Director do Colégio de

Ermesinde;

Dr. Soares Martins, ex-Secretário de Dom Sebastião;Dr. David Simões Rodrigues, que investigou na Torre

do Tombo o arquivo político relativo ao ilustre Prelado;Alfredo Luz, Mestre pintor Santamariano, que desenhou

o retrato de Dom Sebastião que constitui o belo motivo decapa;

Dr. Roberto Carlos, que investigou a homenagem quelhe foi prestada pelo Município da Feira quando foi sagradoBispo.

Aos bibliófilos Magalhães de Lima e Ceomar Tranquiloagradecemos alguns livros com dedicatória de Dom Sebastião.

À Revista História (2) e à DIFEL (3) agradecemos acedência de algumas fotografias que ilustram esta Revista.

Esperamos que “Villa da Feira” seja o arauto anunciadordas Comemorações que hão-de culminar no dia 14 de Junhopróximo.

O Director

1 “Por um Moçambique melhor” – Livraria Moraes-Editora, 1963, 252 Número 71, de Novembro de 2004, ano XXVI, III Série, 423 “Profeta em Moçambique”, DIFEL – Difusão Editora, Lisboa.

“A Guerra, em todas as suas múltiplas manifestações, anda sempre vinculadaà ordem moral, porque ela é a consequência resultante dos desatinos moraisdos homens – dos homens que a fazem ou dos homens que a suportam”. (1)

D. Sebastião Soares de Resende.

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Sumário

Pórtico ...................................................................................................................................................... 5

Mensagem José Manuel M. Cardoso da Costa ........................................................................................................................... 7

1º Centenário de D. Sebastião Soares de Resende Alfredo Henriques 9

D. Sebastião Soares de Resende, nosso 1º Bispo D. Jaime Gonçalves .........................................................................11

O carácter do Bispo da Beira através da correspondência com dois padres milheiroensesD. Carlos Azevedo .............................................................................................................. 13

D. Sebastião Resende. Uma evocação, no seu centenário Manuel Leão ........................................................................ 19

Armas Episcopais de D. Sebastião ........................................................................................ 22

Singelo Depoimento sobre o primeiro Bispo da Beira Eurico Dias Nogueira ........................................................ 23

D. Sebastião de Resende. Profeta em Moçambique Adriano Moreira......................................... 27

D. Sebastião Soares de Resende, profeta da minha particular predilecção António Almeida Santos 29

D. Sebastião Soares de Resende. Percurso de uma vida David Simões Rodrigues 31

D. Sebastião Soares de Resende, Feirense com Projecção Universal Sebastião Brás | José Soares Martins ........69

Dom Sebastião Soares de Resende nas páginas do “Correio da Feira” Roberto Carlos 73

Testamento ............................................... 83

Poesia Maria Fernanda Calheiros Lobo .....................................................................................................84

Fernando Pessoa. Poeta do Desassossego Clara Crabbé 85

Poesia Anthero Monteiro 90

Professor Pinho Leão Rogério Pinto Correia 91

Antologia Prática de um Devocionário Tradicional Popular - II Padre Domingos Moreira 93

1º Centenário da morte de José EstevãoDiscurso da Ex.ma Senhora D. Joana Inês de Lemos Coelho de Magalhães 99

Linguagem e Preciosismo Maria da Conceição Vilhena 103

Escadas para o Céu Paulo Neves 111

Poesia João Pedro Mésseder 112

No Tempo e no Espaço. O Vidro (1) Jorge António Marques 113

Nas Cavernas de Waitomo Joaquim Máximo 119

Monumento a Fernando Pessoa - IX (Continuação) Executivo LAF 121

VIII - Assunção Diniz Celestino Portela | Joaquim Carneiro 127

O Castelo da Feira e a Filatelia - VI Celestino Portela | Joaquim Carneiro 129

Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo 131

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07Mensagem

Vem a lume mais um número de VILLA DA FEIRA ea direcção editorial da prestimosa revista pede-me que o abra,escrevendo o seu «pórtico». Faço-o com particular aprazimento.

Em primeiro lugar, porque isso me dá a oportunidadede sublinhar o relevo e a importância da função que cumpreuma revista como esta, tendo como propósito essencial o deregistar, dar a conhecer e divulgar a «memória» feirense – amemória da terra e do município que são os nossos, ao fiodos acontecimentos e dos homens que se inscrevem ou vãoinscrevendo na sua história, e a fazem ou vão fazendo.

Esta memória colectiva é algo de que nenhumacomunidade humana – grande ou pequena – pode prescindir,se não quiser perder a sua individualidade e a sua identidade,e, com isso, o seu próprio futuro. Guardar essa memória é,portanto, um grande serviço, um inestimável serviço. É esseo serviço que à nossa antiga «Vila da Feira», e à Terra daFeira, que é Terra de Santa Maria, vêm prestando esta revistaque leva o seu nome, a «Liga dos Amigos da Feira», que apromoveu e edita, e todos quantos, generosa e tenazmente,número a número, a vêm preparando e publicando.

Mas, se já só pelo que fica dito me seria grato abrireste número de VILLA DA FEIRA, a tanto se junta uma outrae particular razão – qual a de ele ter como tema de destaquea evocação de D. Sebastião Soares de Resende, cujo

centenário do nascimento ocorre neste ano de 2006. Tenhodeste modo o ensejo de associar-me «de viva voz», por assimdizer, a essa evocação – e isso não deixa de ser para mimespecialmente caro.

D. Sebastião Soares de Resende foi uma das maioresfiguras da Igreja portuguesa no século XX. Da sua acção deBispo – de Bispo da Beira, em Moçambique, que o foi até aosofrimento e ao oferecimento da sua morte – e da sua intrepidezevangelizadora ficaram um sulco e um rasto de luz imorredoiros.Foi – assim o qualificou há pouco D. Carlos Azevedo, seuconterrâneo, com rara felicidade e força expressiva, quedispensam mais palavras – um grande Profeta do seu lugare do seu tempo.

É um grande privilégio dos feirenses poder contá-loentre os seus, e ter tão próximo o testemunho exemplar dasua palavra e da sua vida. É um grande privilégio para mimabrir este número de VILLA DA FEIRA em que se faz aevocação da sua notável figura de homem da Igreja, mastambém de português – evocação devida como certamentenenhuma outra.

José Manuel M. Cardoso da CostaPresidente da Assembleia Municipal de Santa Maria da Feira

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D. Sebastião | estudante em Roma

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091º Centenário de Dom Sebastião Soaresde Resende

Para além de um riquíssimo património histórico ecultural, Santa Maria da Feira orgulha-se do espíritoempreendedor e visionário das suas gentes, que se têmdestacado em áreas diversas, dentro e fora de portas, compercursos de vida que, em muitos casos, marcaram o rumoda nossa História.

Numa altura em que se assinala o primeiro centenáriodo nascimento de D. Sebastião Soares de Resende, 1º Bispoda Beira, é meritória a iniciativa da Liga dos Amigos da Feira(LAF) de dar a conhecer às gerações mais novas este filhoda terra, natural de Milheirós de Poiares, que durante décadasdesenvolveu um trabalho notável em Moçambique, numperíodo de grande turbulência política e social.............................

A sua atitude interventiva e de oposição às injustiças,quer políticas, quer sociais, não deixou ninguém indiferente,levando muitos estudiosos a debruçarem-se sobre o importantelegado que esta figura de relevo do clero português nos deixou.De resto, todo o espólio de D. Sebastião Soares de Resendeestá disponível para consulta na Biblioteca do Núcleo deEstudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidadedo Porto e são muitas as publicações dedicadas ao 1º Bispoda Beira, que desde cedo se evidenciou pelo seu sentido de

justiça e de responsabilidade social, assertividade e nobrezade carácter.

Com o lançamento desta publicação, dedicada aD. Sebastião Soares de Resende, a LAF abre mais um capítulona sua importante missão de divulgar, perpetuar e homenagearfiguras ilustres do município de Santa Maria da Feira, estandocerto de que este será um importante contributo para reavivarnos portugueses, particularmente nos feirenses, a memóriae a obra inestimável do 1º Bispo da Beira.

Alfredo Henriques,Presidente da Câmara Municipalde Santa Maria da Feira

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Vista Panorâmica da Beira

Grande Hotel, Beira

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11D. Sebastião Soares de Resende,nosso primeiro Bispo* D. Jaime Pedro Gonçalves

Conheci D. Sebastião Soares de Resende quando mecrismou na Missão das Amatongas a 18 de Dezembro de1950. Tinha eu os meus 14 anos de idade. Nessa altura fazia-nos impressão ver o bispo vestido de muitas coisas(paramentos, mitra e báculo) para celebrar a missa, o que osnossos padres da missão não faziam.

Em 1954 entrei no seminário menor onde fiquei 6 anos.Todos os anos D. Sebastião Soares de Resende visitava-nose era com paciência e humildade de grandes bispos que nosatendia, a nós miúdos, para nos informar como andava anossa missão de origem. Era o tempo em que falava muitodas vocações nas missões. Criou o clero diocesanomoçambicano na Beira.

Já seminarista maior experimentei o seu carinho depastor que o levava a querer saber os pormenores da nossavida intelectual, espiritual e humana. Uma vez escolheu-mepara o acompanhar à Missão de Machanga para traduzir asua homilia para a língua nativa dos fiéis. Foi ocasião de vere admirar mais uma vez a paciência com que ensinava eatendia os problemas das pessoas e das famílias.

Já no meu terceiro ano de Teologia deu-me as então

chamadas ordens menores e a tonsura. Já não deu para meordenar sacerdote, pois faleceu a 25 de Janeiro de 1967enquanto eu terminava a teologia em Junho seguinte.

Temos dele uma memória inapagável. Todos os anosos fiéis se reúnem à volta da sua campa para recordar ecelebrar o nome e as virtudes de D. Sebastião Soares deResende, em cada 25 de Janeiro. Chova, não chova, todosestamos no cemitério para este acto. Durante o ano a campateve sempre flores dos fiéis que a visitam.

Foi um grande pastor que evangelizou uma área quedeu até hoje cinco dioceses (Beira, Quelimane, Chimoio, Tetee Gurué); defensor da justiça em favor dos mais fracos eoprimidos; promoveu a educação da juventude das missõescom milhares de escolas primárias, e das cidades; idealizoupara Moçambique uma sociedade integrada de raças ecidadãos iguais, perante a lei, apesar de diferentes. Toda estaacção mereceu-lhe uma reacção de perseguição por parte doregime político de então.

Era um bispo piedoso. Várias vezes rezei com ele nasua capela privada. Rezava com a diocese. Difundiu a devoçãoa Nossa Senhora do Rosário.

Fundou o semanário a Voz Africana, a RevistaEconomia e o famoso Diário de Moçambique. Acreditava nosmeios de comunicação social para a evangelização e utilizava-os, mormente nas palestras quaresmais.

A censura do Estado maltratou o Diário de Moçambiquee chegou, como punição, a ser proibido durante trinta dias. Apartir dali foi-se tornando extremamente difícil a manutençãofinanceira do Jornal. Até que a Santa Sé autorizou a suavenda. Comprou-o um dos mais renhidos adversários de

* 5º Bispo da Beira, 03/12/19761º Arcebispo da Beira, 04/06/1984

Residência onde viveu e faleceu D. Sebastião

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12 D. Sebastião Soares de Resende, então conhecido por Vaz,detentor do Notícias, de Maputo (Lourenço Marques).

O produto da venda serviu de capital social para aFundação D. Sebastião Soares de Resende, que a RevoluçãoMoçambicana nacionalizou e baralhou.

Guardamos com carinho o seu anel episcopal e obáculo que trouxe do Concílio Vaticano II. Demos o seu nomeao nosso centro sócio-pastoral. A Conferência Episcopal deMoçambique, quase como que resgatando a primeira e parareconhecimento da acção grandiosa do nosso bispo naeducação, criou a Fundação Internacional D. Sebastião Soaresde Resende, que cuida da Universidade Católica deMoçambique, sediada na Beira.

Recordamos com muita gratidão o nosso primeiro bispoque faz cem anos do seu nascimento em 2006.

Beira, 16 de Janeiro de 2006.Jaime Pedro GonçalvesArcebispo da Beira

Campa com flores

1º Bispo da Beira, 17/07/1906 - 25/01/1967

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13O carácter do Bispo da Beiraatravés da correspondência com dois padresmilheiroenses* D. Carlos Azevedo

Não desejando fazer aqui evocação biográfica, játentada noutro lugar1, deitei mão a uma vertente desconhecidado Bispo da Beira. O objectivo deste texto é, através dostraços humanistas da espontaneidade da correspondência,captar a sensibilidade de um homem superior, nascido hácem anos na mesma terra que eu.

Para além dos sentimentos de gratidão e deafectividade demonstrados para com dois padres, tambémnaturais de Milheirós, meus tios José Leite Dias de Pinho (†1960) e Manuel Valente de Pinho Leão, estas cartas denotamuma atenção particular aos acontecimentos da época, referidoscom olhar crítico.

O estudante romano

Ordenado padre a 21 de Outubro de 1928 por D.António Augusto de Castro Meireles, celebra a primeira missaa 28 seguinte e, pouco depois, segue para Roma. É nessaviagem que o surpreendemos na primeira missiva aqui recolhida,enviada de Lourdes. Confessa que atravessou a Espanha

“com espírito de touriste” mas em Lourdes operou-se neleuma “revolução”. Agora está determinado a “tudo fazer comânimo cristão”. A vertente espiritual profunda, reconhecida aofuturo bispo Sebastião, vem ao de cima já no recém padrepela breve mas clara alusão a uma forte experiência interior.Manifesta a alegria que o move na viagem e usa uma expressãomuito significativa e original: “até aqui a vida tem-se passadonuma quasi vertigem de poesia”. O P. Sebastião deseja quea generosidade da natureza continue a perseguir o seu itinerárioe menciona os rios como sintoma dessa companhia poética.

A sedução e contentamento da viagem não o fazemesquecer quem ficou com saudade. Daí o “pedido íntimo” aoP. José Dias de Pinho para que anime a mãe, quando for aMilheirós. Assim confirma a profunda relação materna a queo pai, na visita a Paço de Sousa, acena e o P. Américo registaem O Gaiato.2

Em Março de 1929, faz referência aos acontecimentospolíticos que considera melhor “equilibrados, sobretudo depoisque um dos magnates do partido vigente teve uma audiênciado S. Padre”. Alude a “uma grande reforma de estudosuniversitários segundo a qual serão aumentados os estudose por conseguinte, exigido mais tempo”. E comenta, pondo anu a alma: “Não me aflijo por tal, antes pelo contrário, poisque em tudo sempre fui partidário do superlativismo”.

1 Perfil biográfico de D. Sebastião Soares de Resende. In SEBASTIÃO SOARESDE RESENDE. Profeta em Moçambique. [Lisboa]: Difel, [1994], p.1297-1325.[Bibliografia de D. Sebastião S. Resende a partir da p. 1317]. Também publicadona revista Lusitania Sacra. 6 (1994) 391-415 [Sem a aludida bibliografia].2 Cf. Ibid., p. 1298.*Natural de Milheirós de Poiares. Bispo Auxiliar de Lisboa.

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Em Maio de 1929, a notícia é importante e histórica e por issoos detalhes aumentam, não obstante a brevidade do estiloepistolar: “resolveu-se a questão Romana. Assisti àsmanifestações feitas depois do acordo em S. Pedro e noQuirinal. A sua crónica não cabe numa folha de papel de carta,mesmo que se não entre em considerações mais profundasdos seus vários aspectos. Era interessante passear pelacidade, no dia de Carnaval; de noite sobretudo. Muitas casasiluminadas na fachada principal e em quasi todas se viaarvorada, em lugar de honra, ao lado da Italiana, a bandeirado Papa. Com certeza, o Garibaldi nesse dia chorou maisuma lágrima!” Este final irónico sobre a figura anticlerical deGaribaldi, iniciador do dissídio entre Igreja e Estado italiano,que durou sessenta anos, transmite a simplicidade jubilosado amor à Igreja, alimentado por Sebastião. A 11 de Fevereirotinham sido assinados os Pactos de Latrão entre o CardealGasparri e Benito Mussolini. Apesar do inicial aplauso geral,os pactos foram objecto de algumas críticas. Mas tiveram avantagem de pôr fim à prolongada Questão Romana. A partirdaí, a Igreja Católica e o Estado da Cidade do Vaticano sãosujeitos de direito internacional.

As referências à peregrinação portuguesa de 1929a Roma e a menção aos padres do Porto lá presentes (carta4), denota a sua preocupação pelo êxito da iniciativa e a vivaligação à diocese à qual regressará para servir como professor,desde 1933.

A paixão pela actividade missionária

Sendo nomeado bispo em 21 de Abril de 1943 eordenado a 15 de Agosto, toma posse da diocese a 8 deDezembro, após uma viagem de barco. Apenas dois anosdecorridos, a 28 de Abril de 1945, já D. Sebastião podia narrar,em carta ao conterrâneo P. Leão: “Acabo de fazer uma viagem,quasi de um mês, pela Rodésia do Sul e do Norte e peloCongo Belga em visita de estudo das missões. Fiqueimaravilhado com o que vi no Congo Belga. Encontrei láseminários de indígenas cujos edifícios são superiores ao dafaculdade de Ciências do Porto. Não há nenhum Seminárioem Portugal que se possa comparar. Já lá há padres, irmãose irmãs indígenas a trabalhar muito bem. É uma grandecristandade que nasce para a Igreja. Oxalá se pudesse fazero mesmo entre nós nesta Africa portuguesa que quer despertarpara a civilização. Já fundei 5 novas missões e, ainda esteano, espero fundar mais duas pelo menos. Deus lhes dê oincremento.

Devo começar este ano o edifício para o Semináriomenor que no plano geral será muito superior a qualquer dosdo Porto. A África em tudo é grande e precisa de ser grande”.

As comparações com o Porto são curiosas, já quepretendem dar a quem lê uma ideia objectiva aproximada darealidade. A determinação em criar agentes pastorais indígenasfica patente, bem como a consciência da necessária grandezadas iniciativas adaptadas à realidade da África. O entusiasmoé contagioso e por isso convida, a 19 de Março de 1946, oseu amigo P. Leão, recentemente ordenado, para ir para aBeira porque “isto é um laboratório de problemas novos queentusiasma as inteligências mais vigorosas.”

A 9 de Janeiro de 1947 informa: “Nestes dias andoabsorvido pela compra duma propriedade para um colégioque é uma das maiores necessidades na Beira. Oxalá oSenhor conduza tudo a bom termo”.

É delicioso o recorte desta carta, de Janeiro de 1947,quando, ao comentar a notícia da doença do P. José Dias dePinho, brinca com graça: “Quem é leão não morre pelo peito.Eu tenho-os visto por aqui e o peito é mais largo que as portasfronhas dum grande lavrador! São restos do sabor literário deMilheirós”. A expressão da metáfora rural precisou de a justificarcom a origem.A reflexão sobre as potencialidades do trabalho humanoleva o Bispo a revelar a sua atitude perante a vida, mais doque a estabelecer critérios relativos ao futuro: “Com método,apesar do muito trabalho, há tempo para tudo. A experiênciavai-me dizendo que há virtuosidades latentes no homem queainda hoje lhes ignoramos os limites. Quem sabe se o homemdo século XXI há-de ser de muito maior capacidade de trabalhoe de rendimento sobretudo? Tudo nos vai indicando que avida começa a viver-se em intensidade de preferência àextensão. Se nós pudermos fazer em 10 anos o que em outrascircunstâncias faríamos em 15 é preferível aquele a estemétodo. Graças a Deus tenho tido muita saúde”. Hoje sabemosque essa saúde acabará por ser atingida em virtude do seudar-se intensamente, sem cálculos. Nem aceita o convitepara assistir à canonização do Beato João de Brito, porquenão quer abandonar obras em curso (Carta 8).

Há uma paixão que o liga cada vez mais aMoçambique. Sente-se tão em casa a ponto de abrirsimplesmente o coração nas preferências e manifestar o amorpor uma missão. Revela, em carta de 20 de Maio de 1947, arazão: porque “se trata de uma missão que comecei e quequasi sem querer amo mais que outras – a 13 Km. da cidade”.

O desaparecimento da mãe liberta o bispo aindamais para uma dedicação permanente e a clareza das suaspalavras não deixa lugar a dúvidas. De facto, a 1 de Maio de1947 agradece a presença do P. Manuel Leão no funeral damãe e manifesta a mudança que essa perda opera na relaçãocom a terra natal: “o meu aprêço e reconhecimento por terido ao enterro não obstante a distância e, segundo me dizia,o mau tempo. Por tudo muito obrigado. Vão-se assim

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quebrando as poucas prisões humanas que me prendem àEuropa e a Portugal. E uma vez que vá à nossa terra deMilheirós, tudo me aparecerá de fisionomia diferente, de menosencanto e mais fraco atractivo, por faltarem aqueles a quemdepois de Deus devemos tudo”.

O sabor terno deste maço de correspondênciaamarelecida pelo tempo serve-nos para evocar a memória deum profeta: firme na defesa da justiça, esclarecido na exposiçãoda doutrina, vigoroso na vida espiritual. Conhecer a singelezade sentimentos, não destinados a preservar uma imagem,confirma o carácter deste homem de Deus.

Carlos A. Moreira Azevedo

Apêndice documental

1. Carta ao P. José Leite Dias de Pinho. Lourdes, 19 deNovembro de 1928

Ex.mo e Rev.mo Snr.É das terras de França, dos pés da Virgem, que

lanço mão da pena para lhe escrever. Deixei Portugal,atravessei a Hespanha com espírito de touriste, mas em,Lourdes operou-se uma revolução em mim para tudo fazercom animo cristão, mais, eclesiástico.

Peço a V. Rev.cia desculpa de me não ter despedido;não o fiz por impossibilidade moral, na hipótese de quererpartir no mesmo dia em que sai de casa. Deixei ao P. Castrodo Seminário /1v./ o dinheiro para dar a V. Rev.cia, devê-lo-ia ter feito; a grande bondade de V. Rev.cia saberá perdoar-me estas minhas faltas.

Estou a caminho de Roma e até aqui estou contentee satisfeito. Até aqui a vida tem-se passado numa quasivertigem de poesia; o Douro acompanhou-nos de Portugal,o Gave levou-nos a Virgem de Lourdes, o Tibre nos arrastavaas portas de /2/ Roma; oxalá que esta generosidade danatureza continue a perseguir-nos.

Um dia que for a Milheirós, nunca se esqueça deanimar minha mãe; é este um pedido íntimo que faço a V.Rev.cia. Obrigado por tudo. Sem mais assunto, peço licençade terminar, cumprimentando-o assim como a Snr.aAlbertininha.

Com toda a consideraçãoLourdes 19 / XI / 28P. Sebastião

2. Carta ao P. José Leite Dias de Pinho. Roma, 11 de Marçode 1929

Snr. P. José

Participo-lhe a receção da sua carta quepenhoradamente agradeço.

Falava-me na lembrança que por intermédio dosmeus pais lhe mandei oferecer, só lhe peço desculpa de meter servido duma insignificância para provar a minha gratidãoa quem tantos favores me tem prestado e continua a prestar:o que se não pode retribuir na realidade, lembre-o ao menoso coração como divida insolúvel.

Muito obrigado pelo grande numero /1 v./ de intençõesde missas que me enviou. Quanto às esmolas não se preocupeem as mandar, como dizia, brevemente; pode deixar estar atequando quizer e conforme lhe for conveniente, porque nãopreciso delas antes das ferias grandes.

Por aqui tudo corre com as mesmas cores e nosmesmos tons. As coisas políticas parecem estar melhorequilibradas, sobretudo depois que um dos magnates dopartido vigente teve uma audiência do S. Padre./2/ Faça-se uma grande reforma de estudos universitáriossegundo a qual serão aumentados os estudos e porconseguinte, exigido mais tempo. Não me aflijo por tal, antespelo contrário, pois que em tudo sempre fui partidário dosuperlativismo.

Mais uma vez muito obrigado.Peço que me recomende a sua mana e ao Snr. Abade

de Mafamude e ao P. Ramalho. Ao Snr. P.e José um afectuosoabraço de quem se julga

M.to Obrig.doRoma, 11- 3- 929P. Sebastião

3. Carta ao P. José Leite Dias de Pinho. Roma, 2 de Maiode 1929

Rev.mo Snr. P. José

Não é sem uma certa apreensão que escrevo a V.Rev.cia, pois que já para aí mandei duas cartas e ainda nãoobti[ve] resposta, o que me leva a crer que as não recebeu.Para suprir qualquer estravio do correio, resolvi novamenteescrever-lhe. Já o devia ter feito há mais tempo, porém aesperança bastante prolongada de que me chegasse algumacoisa, impediu-me de o fazer. Dada a hipótese acima, estacarta vem a ser a primeira e portanto, eu quero pedir ao Snr.P.e José desculpa de me não ter despedido de V. Rev. cia, oque não pude fazer devido a escaçês do tempo e à necessidade

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urgente de partir no mesmo dia. A viagem correu muito bem.1 v./

Tenho continuado sempre bem, ao menos porenquanto; apesar do tempo aqui sofrer os dois extremos, dofrio e do calor.

Como V. Rev. cia muito bem sabe dos jornais,resolveu-se a questão Romana. Assisti às manifestações feitasdepois do acordo em S. Pedro e no Quirinal. A sua crónicanão cabe numa folha de papel de carta, mesmo que se nãoentre em considerações mais profundas dos seus váriosaspectos. Era interessante passear pela cidade, no dia deCarnaval; de noite sobretudo. Muitas casas iluminadas nafachada principal e em quasi todas se via arvorada, em lugarde honra, /2/ ao lado da Italiana, a bandeira do Papa. Comcerteza, o Garibaldi nesse dia chorou mais uma lágrima! Searranjar, mandarei a V. Rev. cia uma Revista em que estãoas fotografias das pessoas que assinaram em Latrão o acordo.São factos históricos.

Sem mais delongas, termino pedindo desculpa dasminhas faltas de delicadeza a quem só devo atenções.Peço que me recomende ao Ramalho e a Snr.a Albertininha.

De V. Rev. ciaAt.to V.or e Ob.do

Roma 2/5/929P. Sebastião Soares Rezende

4. Carta ao P. José Leite Dias de Pinho. Roma, 5 deNovembro de 1929

Roma, 5-11-1929Rev.mo Snr. P.e JoséAcuso a recepção da sua tão estimada carta, de 10

de Outubro, que me veio trazer muita alegria e tranquilidadeao espírito.

Tive uma dupla impressão, ao saber que esteve empróxima realização a sua vinda aqui. Seria ocasião de umgrande júbilo para mim o poder abraçá-lo e trocar impressõesamigas.

Em todo o Portugal, mas mais acentuadamente noPorto, a peregrinação despertou pouco entusiasmo; aquantidade das pessoas, em comparação com o número dasde 1925, era uma in /1v/ significância; não procurei colherimpressões acerca da comissão, mas o que é certo é que oserviço talvez pudesse ter tido uma organização mais favorávelaos peregrinos. No entanto, pelo que observei, parece quetudo andava satisfeito. Cumprimentei os Rev.mos Ab.deMafamude, Gaia, S. Jorge, Lobão, etc.

Os P.es Matos Soares e Sanches tinham estado emRoma, antes alguns dias; não falei com eles, porque estava

fora daqui, naquela ocasião. O P. Jacinto Magalhães, depoisde ter /2/ chegado a Portugal, escreveu-me para lhe enviarduma livraria de Roma um caderno (o primeiro dum breviárioque comprou em brochura). Não me mandando o formato domesmo breviário, eu escrevo-lhe pedindo-o para que nãoaconteça que lhe envie folhas maiores ou menores. Até hojeainda não recebi resposta; não sei se receberia a minha carta;vou esperando.

Quanto a intenções de missas, em Roma não searranjando doutro modo, podem-se pedir às Congregações.Por gentileza do Snr. Abade que tem sido neste ponto /2v./ eno resto duma atenção verdadeiramente superior para comigo,não tenho precisado de recorrer a este expediente; e comfranqueza aborrece-me isto.

Como o Senhor P.e José teve a amabilidade deoferecer algumas (mesmo de esmola de 6$oo que julgo otima,eu ate menos) eu aceito-as desde que seja sem sacrifício deV. Rev.cia isto é que é preciso notar. Por enquanto, isto é,para estes dois meses, ou, mais, ainda tenho.Sem mais assunto, subscrevo-me, cumprimentando-oafectuosamente e a sua Mana

Seu amigo obrg.doP. Sebastião Soares de Resende

5. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 28 deAbril de 1945

Beira, 28-4-45

Snr. P. Leão e meu amigoAgradeço a sua carta e mais as notícias que me dá.

Por aqui as coisas vão correndo bem, graças a Deus. Acabode fazer uma viagem, quasi de um mês, pela Rodésia do Sule do Norte e pelo Congo Belga em visita de estudo dasmissões. Fiquei maravilhado com o que vi no Congo Belga.Encontrei lá seminários de indígenas cujos edifícios sãosuperiores ao da faculdade de Ciências do Porto. Não hánenhum Seminário em Portugal que se possa comparar. Já/ 2 / lá há padres, irmãos e irmãs indígenas a trabalhar muitobem. É uma grande cristandade que nasce para a Igreja.Oxalá se pudesse fazer o mesmo entre nós nesta Africaportuguesa que quer despertar para a civilização. Já fundei5 novas missões e ainda este ano espero fundar mais duaspelo menos. Deus lhes dê o incremento.

Devo começar este ano o edifício para o Semináriomenor que no plano geral será muito superior será muitosuperior a qualquer dos do Porto. A Africa em tudo é grandee precisa de ser grande. Cumprimentos a todos os do Seminárioe para seu tio e tias muitas recomendações. Adeus

Sebastião, Bispo da Beira

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6. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 19 deMarço de 1946

Beira, 19-3-946Snr. P. Leão e meu amigo

Recebi hoje a sua carta e há tempos recebi outra. Aambas respondo, agradecendo, primeiramente, oscumprimentos e, secundariamente, as notícias. Pelo teor dacarta notei que o meu amigo ainda tem uma saúde poucorobusta, visto o Snr. Bispo lhe observar que Rossas não erapara a sua saúde. Olhe, quer um conselho que há dias dei aoutro que também se queixava da mesma coisa? Venha paracá e verá que terá saúde. Foi o que aconteceu comigo e é oque acontece com outros. Demais, isto é um laboratório deproblemas novos que entusiasma as inteligências maisvigorosas.

Na primeira carta referia-se o meu amigo à Pastoraldo ano 44. Mando-lhe pelo correio um exemplar. Tenho penade não lhe poder mandar um exemplar da de 45 porque nãotenho muitos e quero dá-los aos leigos para quem foi escrita.Cumprimentos aos seus tios e tias e creia-me amigo in Domino

† Sebastião, Bispo da Beira

7. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 9 deJaneiro de 1947

Meu caro P. Leão

Os meus cumprimentos para si e para os seus tiosa tias: agradeço-lhe a carta e o feixe de notícias que ele trazia.Fiquei admirado com a notícia da doença de seu tio e diga-lhe que lhe desejo sinceramente as melhoras. Quem é leãonão morre pelo peito. Eu tenho-os visto por aqui e o peito émais largo que as portas fronhas dum grande lavrador! São/1 v./ restos do sabor literário de Milheirós. Esse trabalho seutambém não o deve deixar em paz e socêgo. A vida é mesmoassim. Com método, apesar do muito trabalho, há tempo paratudo. A experiência vai-me dizendo que há virtuosidadeslatentes no homem que ainda hoje lhes ignoramos os limites.Quem sabe se o homem do século XXI há-de ser de muitomaior ca /2/ pacidade de trabalho e de rendimento sobretudo?Tudo nos vai indicando que a vida começa a viver-se emintensidade de preferência à extensão. Se nós pudermos fazerem 10 anos o que em outras circunstâncias faríamos em 15é preferível aquele a este método. Graças a Deus tenho tidomuita saúde. Nestes dias ando absorvido pela compra dumapropriedade para um colégio que é uma das maio /2 v./ resnecessidades na Beira. Oxalá o Senhor conduza tudo a bomtermo.

De resto mais nada por hoje. Desejo-lhe muita saúdee sempre óptimo êxito nos seus trabalhos.

Seu amigo em J.C.Beira, 9 -1- 947

† Sebastião, Bispo da Beira

8. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 1 deMaio de 1947

Beira, 1-5-947

Meu caro P. Leão

Recebi a sua carta que muito lhe agradeço não sópor ela senão pelos pêsames que me enviou pela morte deminha mãe. De modo particular o meu aprêço e reconhecimentopor ter ido ao enterro não obstante a distância e, segundo /1v./ me dizia, o mau tempo. Por tudo muito obrigado. Vão-seassim quebrando as poucas prisões humanas que me prendemà Europa e a Portugal. E uma vez que vá à nossa terra deMilheirós, tudo me aparecerá de fisionomia diferente, de menosencanto e mais fraco /2/ atractivo, por faltarem aqueles aquem depois de Deus devemos tudo. Mas... é a inexorável

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lei da vida.Por este mesmo correio escrevi a seu tio mas esqueci-

me de enviar por ele cumprimentos a suas tias. É favor supriresse meu esquecimento.

Continuo com saúde /2 v./ e bem. Quizeram quefosse assistir à canonização do B. J. de Brito. Não fui porqueé preciso merecer as viagens e, sobretudo, tenho obras emcurso que não podia abandonar.

Adeus e creia-me sempre amigo in C.J.

† Sebastião, Bispo da Beira

9. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 20 deMaio de 1947

Beira, 20-5-947

Snr. P. Leão e amigo

Recebi a sua carta que agradeço. Escrevi, há tempos,a responder e a agradecer os pêsames que me deu. Agoravai esta a responder à sua última.

Diga à sua tia, Snr.a Albertininha que já lhe arranjeiuma afilhada que deve /1 v / ser quasi da mesma edade, damesma altura e até conversadeira como ela. Já é mãe dequatro filhos e está junto com um homem cristão. Este homemé o enfermeiro do hospital onde trabalha o médico das missõesdo distrito da Beira. Estão as Religiosas da /2/ Missão a ensinarà mulher a doutrina, porque boa disposição não lhe falta. Hátempos estive lá (vou lá frequentemente porque se trata deuma missão que comecei e que quasi sem querer amo maisque outras – a 13 K da cidade) e ralhei com ela porque senão tenha baptizado e casado e ela, com /2 v./ língua de preta,mistura de maxangam e português, respondeu-me que nãotinha roupa. Agora já a tem porque arranjou boa madrinha.

Os 100$00 poderá entregá-los ao Snr. Dr. Soaresda Rocha com quem tenho conta corrente.

Adeus e deseja-lhe saúde e pede que dê os meuscumprimentos ao tio e à S.ra Albertininha

† Sebastião, BB.

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* Natural de Milheirós de Poiares, concelho de Santa Maria da Feira, fez osseus estudos no Porto, tendo concluído o curso de Teologia e sido ordenadopresbítero, na Sé do Porto, em 1943.Dedicou-se à educação e ensino, dirigindo o Colégio de Gaia, durante décadas.Esteve ligado à Fundação do Instituto Superior Politécnico de Gaia e EscolaProfissional de Gaia, a cujas direcções pertence.Tem publicado numerosos estudos sobre história cultural do Porto e Vila Novade Gaia, com incidência nos domínios da arte, da actividade livreira e do teatroportuense antigo.Tem promovido várias iniciativas de carácter social. Criou, em 1996, a FundaçãoManuel Leão, com fins culturais e sociocaritativos.

D. Sebastião ResendeUma Evocação, no seu centenário* Pe. Manuel Leão

D. Sebastião Soares de Resende, ilustre feirense ebispo da Beira, Moçambique, nasceu em Milheirós de Poiares,em 1906.

Lembro-me da sua figura, ainda estudante de Teologia.A Casa da Herdade, no lugar de Milheirós, ficava perto dacasa paterna de D. Sebastião. Havia mesmo algumaspropriedades rústicas das duas casas que eram confinantes.Em virtude de os médicos aconselharem a minha família adarem-me praia, em Setembro, coincidia as duas famíliasencontrarem-se no Furadouro. Havia um excelenteentendimento de convivência entre as minhas tias e as irmãsde D. Sebastião.

Recordo-me dos diálogos que ele conseguiaestabelecer comigo, não obstante eu ser uma criança poucoamiga de falar. Tinha uma conversa afável, marcada desimpatia, aliás na linha de seu pai, José Soares de Resende.

O segundo acontecimento que despertou a freguesia,segundo padrões da época, foi a sua chegada de Roma, ondetinha ido fazer a sua especialização nas ciências sagradas.Entre a saída na carreira de transportes de passageiros, nolugar da Igreja, e a sua casa paterna, no lugar de Milheirós,foi organizado um cortejo de apoio ao conterrâneo, onde nãofaltaram discursos.

Mais tarde, estando eu na conclusão do Curso filosófico,tive-o como professor e Vice-Reitor. Criou em mim um conceitomarcante sobre o seu trato com os outros, no que me diziarespeito. Tive umas discordâncias com o prefeito da minhasecção ou corredor, que mais tarde entraria na Companhiade Jesus. D. Sebastião manteve-se distante e o prefeito tevede estudar a sério o meu ponto de discórdia, para tudo terminarcomo convinha.

Na filosofia, D. Sebastião era um ferrenho tomista. Afilosofia de Aristóteles passando pelos trabalhos de S. Tomásde Aquino entusiasmou D. Sebastião. Publicou mesmo umpequeno livro, texto duma conferência que tinha proferido nafesta de S. Tomás, no Seminário do Porto. Nas horas deconsulta na biblioteca do Seminário, eu não faltava. Tinhahabitualmente, no meu gabinete de estudante, uma série deobras, geralmente amontoadas no soalho. Num dia, D.Sebastião passou pela biblioteca e deu comigo nas buscasque me interessavam. No dia seguinte, chamou-me a umasessão contraditória, colocando dois colegas arguentes contra

Igreja onde foi baptizado Dom Sebastião Soares de Resende

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mim, sobre a matéria do tomismo conhecida por hilemorfismo, uma interpretaçãomental sobre a realidade dos corpos materiais. Resolvi desbaratar os ataquesdos arguentes, defendendo que tal interpretação cairia pela base sem a hipótesecriacionista. Ficou anulado o debate, para não ser retomado, mas o professornão alterou em nada o seu trato comigo.

Entre os estudantes meus contemporâneos, havia uma nítida tendênciapara as modas literárias. Uns escreviam a Teixeira de Pascoais, mandando-lhe versos que mereciam apreciações sibilinas. Outros, leitores da Presença,

pendiam para José Régio, a figura centraldesse grupo literário. Mas havia um núcleoinfluente que não deixava de ler a Presença.Apesar de essa geração literária ter ficadoa ser conhecida pela inquietação espiritual,a verdade é que não se quadrava com amentalidade reinante no código mental deD. Sebastião. Houve, de facto, situaçõesde certo desequilíbrio na apreciação doscabecilhas desse grupo, circulando a revistaem regime clandestino. Daí vem a simpatiaque esse segundo modernismo literário criouem mim, bem longe eu estava de pensarem vir a ensinar essas matérias, tendomesmo ocasião de conhecer alguns corifeusdesse movimento literário como o próprioRégio e Alberto de Serpa, entre outros.

Situações deste tipo coibiamqualquer estudante de manifestar-se forados muros do Seminário. Era a mentalidadedesse tempo. No entanto, cheguei apertencer a um grupo restrito de Feirensesque teve um projecto de dominar umsemanário que tinha dificuldade nacolaboração. Faziam parte desse grupoManuel Pereira da Costa, de Fornos; ManuelSoares Albergaria, de Riomeão; RodrigoFontes, de Romariz. Todos tínhamosinteresse na escrita. O Pereira da Costatinha mesmo uma secção num outro jornal,mas tudo era feito para que tal actividadenão chegasse ao conhecimento doSeminário. Ainda escrevi um artigo sobreassuntos sociais para o Democrata Feirense,assinando com pseudónimo, que nuncacheguei a ler.

D. Sebastião preparou um trabalhoteológico para o seu doutoramento. Estenunca chegou a realizar-se, porque o bispoentendia que não era necessário. D.Sebastião não pôde deixar os seus trabalhospara ir a Roma terminar a sua preparaçãoacadémica. Esse trabalho estudava aparticipação de D. Frei Gaspar do Casal,no Concílio de Trento. Mais uma vez,aconteceu uma peripécia envolvendo oilustre professor que nunca lhe desvendei.Resolvi escrever um artigo para um jornalfeirense. Julgo que foi a Tradição, em queD. Sebastião tinha colaborado. Um dia

Certidão de nascimento de Dom Sebastião Soares de Resende

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procurou-me dizendo da sua estranheza porque não conheciatal nome. De facto, eu assinei com pseudónimo. Nem o jornaltinha conhecimento do autor, porque ou mandei pelo correioou por qualquer pessoa. O certo é que ficou sem saber.Perguntei-lhe se estava certa a doutrina. Respondeu queestava bem e que o autor sabia o que escrevia. Ele tinhasuspeita de ter sido um antigo seminarista de Lourosa. Ninguémsabia porque tinha sido uma iniciativa minha.

O meu último ano no Seminário Teológico foi tambémo último do Vice-Reitor, que, entretanto, foi nomeado bispoda Beira. Os alunos resolveram homenagear o novo bispo eeu fui eleito para a parte logística. Houve sessão no salão dabiblioteca, onde falei pelos alunos que lhe ofereceram umalavanda e gomil de prata.

Pude acompanhar as iniciativas extraordinárias própriasdum homem de ideias, com uma actividade incansável quemarcou um lugar paradigmático nas missões pastorais, naeducação e na imprensa. O vasto horizonte em que estevesituada a sua vida apostólica fê-lo deixar para trás certasvisões acanhadas que os muros do Seminário continham. Fuiencarregado por ele da parte protocolar da sua ordenaçãoepiscopal. Convenceu-me a deixar a minha família fazer umafesta da minha conclusão do curso e Missa Nova, oferecendo-se para pregador. Continuámos tanto a encontrarmo-nosquando vinha à Metrópole, como a mantermoscorrespondência. Marcou um lugar indiscutível no seu tempo,tornando-se um dos mais autorizados defensores dos direitoshumanos.

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22 Armas Episcopais de D. Sebastião

Escolheu para as armas episcopais a frase « Por Cristo, comCristo e em Cristo ». Encarregou o conhecido heraldistaArmando de Matos de as compor e descrever:«Em campo azul um pelicano alimentando os filhos com oseu próprio sangue, acompanhado à direita por uma cruzsobreposta de um sol, abaixo do cruzamento dos braços, eà esquerda de um bastão alado, enleado de duas serpentescujas cabeças estão apontadas, tudo de oiro, um chefe, umtriângulo do mesmo, tendo no centro um olho, do mesmo,flamejante.Entre chefe de oiro, com uma palma verde passada em aspacom um bastião de negro, acompanhado de três rosas devermelho, de oiro.Bordadura de prata, carregada de cinco escudetes azuis,cada um com cinco besantes de prata.Bordo inteiro da bordadura, um rosário de púrpura.O escudo elipsoidal é rematadao superiormente por uma cruzlatina, acompanhada à direita por uma mitra e à esquerda deum báculo, ambos de oiro.Este conjunto assenta numa tarja azul, forrada de oiro.Sobrepõe-se a tudo um chapéu eclesiástico da categoria debispo que é de negro, forrado de verde e de cordões com seisnós e borlas do mesmo, sendo seis de cada lado.Inferiormente uma filactera de prata com a seguinte legendaa negro; “ PER IPSUM ET CUM IPSO ET IN IPSO”.

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23Singelo depoimento sobre o primeiroBispo da Beira*Eurico Dias Nogueira

1. Conheci muito cedo D. Sebastião Soares deResende. Foi no início da década de 1940, sendo eu alunode Teologia no Seminário de Coimbra e ele professor e vice-Reitor no do Porto. O seu nome e prestígio impunham-se emPortugal, pelas muitas publicações que eu ia lendo, com vivointeresse.

Por isso, a sua eleição para primeiro Bispo da Beira,em Moçambique, em 24 de Abril de 1943, apenas surpreendeupela pouca idade do escolhido: 37 anos incompletos não eravulgar. Fica a impressão de a demora da nomeação – quasetrês anos depois da criação da Diocese – se dever à poucaidade do escolhido pela Santa Sé...

O Acordo Missionário – assinado em 7 de Maio de1940, juntamente com a Concordata – fazia antever umdecisivo impulso evangelizador no então Ultramar português.Mas, para isso, eram precisos agentes capazes, em númeroconveniente.

A cidade da Beira fora escolhida para sede de umadas Dioceses então criadas, juntamente com a de Nampulae a Arquidiocese de Lourenço Marques, actual Maputo (04-09-1940). Até aí toda a Província de Moçambique constituía

*Arcebispo Emérito de Braga, Antigo Bispo de Vila Cabral

uma Administração eclesiástica (1612) e posterior Prelazia(1783), na dependência de Goa que perdurou mais de trêsséculos.

2. Chegado à Diocese, o jovem Prelado impôs-se, deimediato, pelo zelo pastoral e clarividência, dinamismo e arrojo.

Procurou missionários e missionárias, quer portugueses(então muito escassos), quer estrangeiros (mais abundantese bem preparados).

Impulsionou o ensino de base – especialmente paraos autóctones – e abriu escolas para o secundário, quaseinexistente na região. Criou paróquias e missões e fundou oDiário de Moçambique, logo caracterizado pela independênciapolítica e capacidade de intervenção. Publicou duas dezenasde Cartas Pastorais, de índole social, sempre de grandeactualidade e não pouca audácia. Por isso, passou a serolhado com desconfiança e vigiado pelo Poder constituídoque lhe fez uma guerra sem quartel. Consta que este impediua sua promoção a Arcebispo metropolita – quando faleceu oCardeal Arcebispo D. Teodósio de Gouveia (1962), comoparecia ser desejo da Santa Sé – e procurou mesmo afastá-lo de Moçambique.

O seu prestigiado e muito lido jornal – por isso,constantemente vigiado e alvo de frequentes intervenções dacensura política – foi penalizado com pesada suspensão,contra a qual me insurgi publicamente, pois já me encontravaem Moçambique, havia alguns meses. Ocorreu a arbitrária einjusta sanção em 1965, por ocasião das comemorações dos25 anos de vigência do Acordo Missionário.

As suas Pastorais de índole social constituíram panode fundo para alguns diplomas legislativas do Prof. Adriano

Moçambique e a Diocese da Beira

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Moreira, quando Ministro do Ultramar: as conhecidasAdrianadas, na designação depreciativa dos seus críticos,movidos sobretudo por interesses que se julgavam postos emcausa. Este mesmo o afirmou publicamente, além de ser fácilverificar algum paralelismo entre ambos. Isso talvez lhe tenhavalido a perda do cargo governamental, de que infelizmentefoi afastado cedo de mais. Se a legislação atinente prosseguissena linha de pensamento dos dois Homens públicos e fosseaplicada com sinceridade e coragem, talvez a evolução doUltramar, em vista da autonomia progressiva, – com a naturalindependência a seu tempo – se efectuasse noutros termosmenos gravosos e com vantagem para Portugal e as antigasColónias. Todos acabámos por pagar muito caro a demasiadamiopia dos altos responsáveis de então, – políticos, militarese mesmo alguns eclesiásticos – rumo ao inevitável, que eraa mera concretização de um elementar direito da pessoahumana.

3. Não me detenho na análise do seu pontificadomoçambicano, – tarefa já efectuada, embora sempresusceptível de maior aprofundamento – mas limito-me a algunsepisódios do meu relacionamento com ele, no decurso dosdois anos e meio, em que ambos exercemos o múnus pastoralem Moçambique (1964-67).

Nomeado Bispo de Vila Cabral em 10 de Julho de1964, – nova Diocese coincidente com a Província do Niassa– fui de imediato convocado para a terceira sessão do Concílioecuménico do Vaticano II, que se desenvolveu entre Setembroe Novembro desse ano. Fiquei hospedado na Casa Madonnadi Fatima, a cargo de religiosas portuguesas, onde D. Sebastiãojá residira nas duas sessões anteriores (1962 e 63). O factopermitiu-me um muito agradável e proveitoso convívio diáriocom o insigne Prelado missionário. E pude acompanhar deperto muitas das suas intervenções na Aula conciliar: cercade uma dezena, sempre oportunas, arrojadas e atentamente

escutadas. Foi ele, sem dúvida, o Prelado português maisinterveniente no Concílio.

Regressado a Portugal, no termo da sessão, e ordenadobispo em Coimbra, a 6 de Dezembro desse ano de 1964,empreendi a viagem para a minha Diocese, ainda antes doNatal. Na manhã de 23, tocava terra moçambicana no aeroportoda Beira, depois de breves escalas em Angola e Rodésia,agora Zimbabwe. Tinha ali a receber-me e dar as boas vindas,D. Sebastião, acompanhado de um pequeno grupo deconterrâneos e amigos. Foi uma recepção comovente eencorajante para mim.

Ocupei todo o mês seguinte – Janeiro de 1965 – emviagens de prospecção pela Diocese, contactando missionários,cristãos e autoridades. Surgiram inesperadamente dificuldadese atritos com algumas destas, sobretudo com o Governadorda Província do Niassa. Na primeira quinzena de Fevereirodesloquei-me a Lourenço Marques, para a assembleia plenáriada Conferência Episcopal. Referi o meu desentendimentocom aquele, comentando preocupado: "Receio estar a iniciara minha caminhada moçambicana com o pé esquerdo". D.Sebastião ergue-se de súbito e vem até junto de mim, abraça-me e diz: "Parabéns! É mesmo assim que se começa. Continuefirme". Senti-me tranquilo.

4. Em Maio desse ano, o Episcopado de Moçambiquereuniu de novo em Lourenço Marques; desta vez, paracomemorar os 25 anos da assinatura do Acordo Missionário,anexo à Concordata. Além de duas entrevistas no Rádio Clubee uma lição na Universidade, – de que era Reitor o Prof.Doutor José Veiga Simão – coube-me proferir uma conferênciasobre o tema, no salão nobre da Câmara Municipal. Na Sécatedral, houve Missa concelebrada e solene Te Deum, tendofeito um sermão de circunstância o Bispo da Beira. Foi no dia9 de Maio. O Diário de Moçambique, jornal da Diocese daBeira, publicou-a na íntegra, sem a submeter à censura prévia,

Dom Sebastião Soares de Resende, em celebração eucarística, Beira Dom Sebastião Soares de Resende em Mácuti, Beira, C. de 1965

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como garantia a lei concordatária.As Autoridades viram ali um bom pretexto para

retomarem as hostilidades contra D. Sebastião, infligindo aojornal uma pesada suspensão, a 21 desse mês, como jáacentuei. Conhecedor do grave atropelo, enviei a 27 um longoOficio de protesto ao Governador Geral, com cópia a todosos Bispos de Moçambique, Núncio Apostólico e Ministro doUltramar. A este acentuei: "Sou de parecer que quemaconselhou tal medida, além de se situar fora do Direitoconcordado, prestou um mau serviço ao Governo da Nação,concorrendo para um acto de perniciosos efeitos políticos,sobretudo na grave emergência que atravessamos. Pela minhaparte creio que, procedendo assim, além de cumprir um graveimperativo de consciência, estou a agir a bem da Nação". Oincidente trouxe graves dissabores a D. Sebastião – e tambéma mim, por tabela – e andou pelos Tribunais, mas as razõespolíticas sobrepuseram-se às jurídicas (Vide "Episódios daminha Missão em África", Braga 1995, págs. 59-61).

5. Deixando de parte muitos episódios dignos de nota,que poderia recordar, passo ao fim de vida do saudoso Prelado.A doença, de natureza cancerosa, revelada ao longo do anode 1966, não permitia grandes esperanças; sobretudo depoisde observada em clínicas especializadas da Europa.Regressado à Casa episcopal da Beira, – onde desejavaterminar os seus dias – viu-se envolto em cuidados e carinhopelos seus dedicados colaboradores e inúmeros admiradores.

Nos dias 3 e 4 de Dezembro, desloquei-me à Beira,para o visitar e fazer-lhe companhia durante a noite, permitindoaos sacerdotes da Casa que tomassem um pouco de repouso.Num caderno de apontamentos, que conservo religiosamente,deixei escrito em estilo quase telegráfico: "Este causou-meuma extraordinária impressão, pela sua lucidez e conformidade.Que grande Prelado! Foi-o em vida e é-o sobretudo na morte.Uma onda de carinho e simpatia envolve-o inteiramente.Celebrei Missa no seu quarto de holocausto. Foram para mimmomentos inefáveis. Depois despedi-me (talvez até àeternidade) e segui para Nampula". Confidenciou-me quehavia escrito ao Papa a insinuar a minha pessoa para lhesuceder na Diocese da Beira. Mostrei-me sensibilizado, maspedi-lhe que não se preocupasse com isso, pois o queimportava então era a sua saúde e devíamos deixar o futuroaos desígnios de Deus. Constou-me mais tarde que oEpiscopado de Moçambique era da mesma opinião, mas aSanta Sé não achou oportuna a minha saída de Vila Cabral,nessa ocasião, por ter iniciado um processo de aproximaçãocom os cristãos separados – sobretudo os anglicanos, muitonumerosos junto ao Lago Niassa – e os muçulmanos econvinha fomentar esse caminho. Não sei que verdade haveráno caso, pois o Bispo em causa costuma ser o último a tomarconhecimento do que lhe diz respeito, se é que chega a

saber...Na manhã de 25 de Janeiro de 1967, chegou-nos a

notícia do falecimento de D. Sebastião, estando os Bisposreunidos na capital, em assembleia da Conferência. Dois diasdepois, rumámos para a Beira, onde efectuámos a Liturgiafúnebre pelo Extinto. Escrevi, no citado caderno, que após aMissa, "ao meio dia começou o impressionante cortejo quedemorou uma hora até ao cemitério. Nunca supus que atingissetal grandiosidade e emoção: talvez mais de 30.000 pessoas,com predomínio de pretos".

Ainda em Lourenço Marques, no próprio dia dofalecimento, proferi uma alocução no Rádio Clube, a pedidodeste, em que afirmei: (...) "O senhor D. Sebastião Soares deResende, primeiro Bispo da Beira, foi grande na vida e mostrou-se gigante na morte. (...) O Mundo português acompanhouangustiado uma dolorosa agonia que se prolongou por muitassemanas e que serviu para demonstrar à saciedade a sólidavirtude, a inquebrantável fé e a caridade sem limites do Bispoda Beira: o servo da Verdade, o amigo dos humildes, o homemde largos horizontes".

6. Na tarde de um de Fevereiro, celebrei a Liturgiafúnebre de sétimo dia por D. Sebastião, na mini-Catedral deVila Cabral. Anotei: "Pouco antes, esteve na Casa episcopalnumeroso grupo de muçulmanos a apresentar condolências.Falou o Chehe Cássimo e, no final, rezaram cantando efizeram uma colecta para a tradicional Sadaka".

Expliquei que o nosso gesto era "um impulso decaridade (...) Mas é também um sentimento de gratidão:reconhecermos os altos serviços que o senhor D. Sebastiãoprestou à Igreja e Moçambique, no decurso dos 23 anos doseu fecundo Pontificado. Por isso, aqui estamos todos: cleroe fiéis, autoridades e dirigidos, brancos e pretos, católicos,anglicanos e muçulmanos. (...)

Demasiado grande para ser compreendido por homensdemasiado pequenos, não foi isenta de lutas e dores a suavida, que são a inevitável herança dos que não pactuam cominjustiças ou transigem com o mal. Mas nunca aquelas lhetrouxeram o travo da derrota, ou estas lhe quebraram o ânimopaciente, pois tinha consciência de se encontrarconstantemente ao serviço da Verdade e da Justiça, daLiberdade e do Bem. (...)

Porém, nas ocasiões mais delicadas, difíceis ou injustasda sua vida, jamais nele diminuíram a serenidade, a lucidezdo raciocínio, a caridade cristã.

Nisso se revelava a sua invulgar grandeza.Por isso, a sua morte foi tão sentida; e o funeral, que

ele desejou modesto e simples, transformou-se em apoteose:uma apoteose espontânea, não preparada, que irrompeuincontida da alma do Povo anónimo que os antigosinterpretavam como a voz de Deus. Sendo assim, pode dizer-

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se que D. Sebastião foi canonizado no dia do seu funeral. Euvi milhares, dezenas de milhares de pessoas – quem poderiacontá-las? – acompanhar emocionadas o féretro ao cemitério,ou postadas respeitosamente ao longo das ruas do longopercurso. Era gente de todas as categorias e condições, demuitas etnias e línguas, de variadas mentalidades e religiões.(...)

E sobre a humilde campa rasa, agora coalhada deflores por mãos devotas, apenas se vê uma singela legenda,que ele mesmo escolheu, ao redigir o seu testamento que é,com o emocionante diário íntimo, o espelho fiel da sua almacristalina: Sebastião, primeiro Bispo da Beira. " (Vide "Missãoem Moçambique", Vila Cabral, 1970, págs. 250-253).

Seja este mais um preito de homenagem que prestoa "D. Sebastião Soares de Resende, o servo de Deus eservidor dos homens".

Exéquias fúnebres de Dom Sebastião Soares de Resende - 1967

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27D. Sebastião de ResendeProfeta em Moçambique*Adriano Moreira

A intervenção missionária no antigo Império Português temuma história de serviço frequentemente marcado porpersonalidades de excepção.

O século XX também guarda a memória de muitos sacerdotesque se guiaram, no contexto de etnias e culturas diferentes,pela regra de que o Povo de Deus não tem estrangeiros, eque a dignidade humana é um valor igual para todos oshomens, cada homem sendo um fenómeno que não se repetena história da Humanidade.

A relação de soberania colonial foi sempre mais exigente,pelos seus condicionalismos estruturais, em relação ao valorda independência missionária, e na crise aguda dadescolonização, que atingiu todas as soberaniaseuromundistas, e por isso envolveu severamente Portugal, alinha de separação entre a responsabilidade missionária e aresponsabilidade da soberania não podia deixar de serpontuada por desencontros.

Entre os missionários dessa época destacou-se D. Sebastiãode Resende, Bispo da Beira, cuja intervenção, frequentementeapaixonada, em favor da autenticidade das políticas coloniais,o levou a frequentes confrontos, incluindo discussões judiciais,com o poder político. Mas nunca em contradição ou desviocom a missão de Bispo sucessor dos apóstolos, sem beliscara sua condição de português. Pessoalmente prestei atençãodemorada à sua pregação, e algumas das medidas da minharesponsabilidade governativa tiveram apoio nas intervençõescorajosas e lúcidas que lhe ficamos a dever.

No Prefácio que escrevi para o livro que organizei para recolheros seus escritos mais valiosos, descrevi esse trajecto deencontros e a marca que ficou da sua intervenção em todoo povo africano.

Esse livro, intitulado Profeta em Moçambique, foi por mimentregue a João Paulo II em 29 de Março de 1995,acompanhado por Manuel Bulhosa, editor, que muito ajudouD. Sebastião em Moçambique, e pelo Padre Joaquim Antóniode Aguiar, o infatigável director do Colégio Universitário PioXII, que tratara de marcar a audiência. O facto estádocumentado pela Carta recebida do Secretariado de Estadodo Vaticano, que a seguir se transcreve.

«Vaticano 22 de Abril de 1995Ilustre Senhor:No curso da Audiência Geral do Sumo

Pontífice do passado dia 29 de Março, quis, numaatitude de devota homenagem, deixar nas suas mãos

*Ministro do Ultramar - 1961|1963Vice-Presidente da Assembleia da República - 1991|1995

Oferta do Livro “Profeta em Moçambique” a sua Santidadeo Papa João Paulo II.

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28 um exemplar do livro “Profeta em Moçambique”,colectânea de textos de D. Sebastião Soares deResende, Bispo da Beira – fruto de longos anos depesquisa e testemunho de grande admiração poressa benemérita figura eclesial, sem dúvidaprecursora e geradora de novos tempos para a terramoçambicana.

O Santo Padre, que lhe terá jámanifestado o Seu apreço, confiou-me a grataincumbência de vir reiterar o Seu reconhecimentopela deferente homenagem e certificar que implorade Deus sobre o senhor Doutor Adriano Moreira eseus entes queridos, as mais copiosas graçascelestiais. Em penhor destas, e como prova dabenevolência com que aceitou o preito que quisrender-lhe, Sua Santidade concede-lhe, extensiva aquantos colaboraram na obra e respectivas famílias,uma particular Bênção Apostólica.

Aproveito a circunstância para lhe afirmarprotestos da melhor consideração.

† J. B. Re, Subset.»

Por 1967, visitei na Beira o cemitério onde, no caminho, estavaa sepultura de D. Sebastião. Estava vedada aos caminhantespelas flores que ali depositavam os fiéis.

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29D. Sebastião Soares de Resende, profetada minha particular predilecção*António de Almeida Santos

Conheci D. Sebastião Soares de Resende, então Bispoda Diocese da Beira, Moçambique, em circunstâncias muitopeculiares. Em 1949, o Orfeão Académico de Coimbra fezuma memorável digressão cultural a S. Tomé e Príncipe,Angola, Moçambique e África do Sul. Eu integrado nele comocantor, guitarrista e orador oficial.

Foi uma viagem memorável, por barco, que se arrastoupor três longos meses. A vertigem das deslocações viria maistarde.

Foi também, segundo creio, a primeira embaixadacultural que a Metrópole enviou ao Ultramar. Sensacional porisso.

Na Cidade da Beira, o Orfeão foi, naturalmente,cumprimentar o prelado. Todos os orfeonistas lhe beijaram amão menos eu. A minha fé já me tinha abandonado.

Talvez por isso, ou talvez não, D. Sebastião, poucodepois, desafiava-me para almoçar com ele no dia seguinte.É claro que aceitei com alguma curiosidade. Porquê eu? E láfui, para um almoço a dois, que se arrastou até ao meio da

tarde. E aquele almoço foi, em certo sentido, a minha "Estradade Damasco". Não para um regresso à fé religiosa. Para issoera tarde. Mas para uma paixão por África, e pela sua libertação,que viria a preencher duas décadas da minha vida.

Com uma espantosa capacidade de premonição, obom prelado fez passar, diante dos meus olhos, a cinco anosde Bandung, e num momento em que, em Portugal, o regimecolonial era indiscutível e indiscutido, o filme da emancipaçãodos povos africanos secularmente sujeitos à dominaçãocolonial. A África ia acordar e libertar-se. A última guerra haviasido ganha por duas potências anticolonialistas: os E.U.A. ea URSS. A Inglaterra e a França, principais países colonialistas,na prática eram falsos vencedores. A Carta das Nações Unidashavia inscrito no seu texto o direito à descolonização e àindependência dos povos não autónomos. As injustiças daprática colonial, nomeadamente o trabalho forçado, herdeiroda odiosa escravatura, começaram a ser denunciadas pelaconsciência universal. O surto descolonizador do fim daprimeira grande guerra ia repetir-se após a segunda.Movimentos sociais, culturais e artísticos começavam adespertar nesse sentido. O clarividente prelado previu assimo movimento da negritude, o movimento terceiro-mundista, acúpula de Bandung.

Porque me escolheu a mim para lançar essa semente?Mistério que o Império tece!

Não sei se a terra era boa. Sei, sim, que a sementefrutificou. E ali mesmo decidi, possuído de uma estranhadeterminação, que findo o curso de direito regressaria a Áfricapara exercer a minha profissão de advogado. A causa daemancipação da África seria a minha primeira causa.

*Ministro em vários Governos Provisórios e Constitucionais.Presidente da Assembleia da República de Novembro de 1995 a Abril de 2002

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30 Foi delicado ao ponto de dizer que não tinha queridoinfluenciar-me. Mas já tinha. E eu cumpria promessa de mefixar em África e de me bater contra o regime colonial. Malpodia eu imaginar que estava no meu destino vir a participar,como Ministro dos primeiros quatro governos provisórios, apósAbril, no difícil processo de descolonização, ao fim de maisuma década de guerra cruenta pela emancipação da Guiné,de Angola e de Moçambique.

Após o meu regresso a Moçambique, reatei o meucontacto com D. Sebastião. Ele enviava-me as suas pastoraisantes de publicadas – e muitas vezes antes de apreendidaspela censura – e eu enviava-lhe os meus textos de combatepolítico (livros, exposições, abaixo-assinados, protestos) osmais deles também retidos no crivo da censura. E assimprolongámos a recíproca amizade nascida no almoço de 1949.Foi para mim um raro privilégio ter podido conhecer um tãoilustre prelado, e sobretudo ter podido usufruir do privilégioda sua amizade.

Quando, recentemente, foi publicado um volumosolivro em sua memória, intitulado "O Profeta de Moçambique",revi-me no título e no merecido elogio que o livro é. D. SebastiãoSoares de Resende foi um dos mais lúcidos, conscientes eilustre prelados da Igreja Portuguesa. Foi pena, muita pena,e uma grande perda para Portugal, que a sua voz não pudesseter sido ouvida. Se o fora, o desastre que foi o fim da nossasaga colonial, teria sido evitado. Mas Lisboa era impenetrávelpela evidência, e acabámos por ser os últimos, quandopodíamos ter sido os primeiros, a compreender e a aceitar osdeterminismos da história.

Não fora, aliás, a escandalosa expatriação de D.

António, Bispo do Porto, e Salazar teria cedido à repetidatentação de impedir o regresso a Moçambique de D. Sebastião.

Recordo-o como um dos seres humanos mais lúcidos,mais cativantes, e que mais influenciaram o meu destino.

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31«O esforço é grande e o homem é pequeno»F. Pessoa, «Mensagem», II, III

D. Sebastião Soares de ResendePercurso de uma vida entre o berço, Milheirós dePoiares – Feira, 14.6.1906 e para além do túmulo,Beira – Moçambique, 25.1.1967*David Simões Rodrigues

1. Pesquisa e silêncios«Silêncios expressivos. Tanto mais quanto D. Sebastião é daschaves fundamentais para compreender a complexa históriada presença portuguesa e da Igreja Católica em Moçambique.

D. Sebastião Soares de Resende.Três os signos fundamentaismarcantes, para o autor, da sua extraordinária personalidadede Português e de Missionário na África de 1943-1967:a). O doutrinador apostado em extirpar a ignorância em todosos campos humanos, e por isso sempre numa mão oEvangelho e na outra a Cartilha Maternal.b). O libertador tenaz de todas as escravidões, evidente asócio-laboral do Negro, com perigo da sua liberdade.c). O perseguido vítima de interesses que se aproveitavamda ignorância e da fraqueza para escravizar.Três signos firmes sobre sólidas bases que o definem1. O Homem de acção programada.2. O Cristão de vivências divinamente profundas.

Em síntese: Alguém invulgar cuja vida vivida em linha rectafoi traçada de cabeça bem firme no Céu e de pés bem assentesna Terra, isto é, entre Deus e os Homens. Eis o Homem.D. Sebastião Soares de Resende, poderia apresentar-secontroverso. Não discutimos razões. Apresentamos factos.Não passam despercebidos gigantes nas ruas. Há vivasfotografias dos seus funerais. Ali do fundo do silênciosofrido, dezenas de milhar de participantes lentos, fúnebres,a pé, acompanhando o féretro, apinhados nos terraços, nasvarandas, às janelas, sobre muros e árvores, nos passeiosdas ruas, gritaram bem alto as excelsas virtudes do Bispo

* Licenciado em Filosofia e Literatura Grega e Latina, Clássicas, com as variantesde Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa.Diplomado em Histórico-Filosóficas. Curso de Teologia. Dedica-se à InvestigaçãoCientífica.

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que os assistiu desde 1943, até à imolação total da sua vida,“por todos os da minha diocese, por Moçambique, católicos,ortodoxos, protestantes, muçulmanos...”.Que maior forma de consagração e aprovação da sua acçãomissionária se desejava ?Inconscientes das dificuldades, estamos aqui por imperativoda aceitação de um repto.Tão complexo trabalho quanto rica de conteúdo a personagemem foco, necessariamente sofrerá os efeitos. Porém, se dostraços deixados resultar maior e melhor visão do Homem, doPortuguês, do Missionário, do Mártir da política mal formada,do imenso Bem espalhado por simples Amor nas almas àsua volta, sobretudo entre os mais fracos do mundo, daráo autor por muito bem empregue tempo, sacrifícios, no alinhavodestas notas sobre D. Sebastião Soares.Merece a figura singular e a terra-berço.Felizes os vivos que não esquecem seus mortos. Porqueexemplares faróis humanos, há deles cuja memória é forçosomanter-se como guia iluminando caminhos de referência.Se, na verdade, antes de tomar contacto mais próximo edirecto em nós pairava a difusa ideia da sua grandeza, averdade é que leitura, estudo, reflexão foram aproximando asua figura, tornada tanto maior, mais clara, fulgurante quantoa proximidade do horizonte a desenhava. Tanto que se nosimpôs profunda a veneração de quem via tanto branco dealma negra e tanto negro de alma branca.Conhecer identifica e aprofunda e tão fundo quanto a descidapor ele ao fundo das coisas e das pessoas com que seconfunde. No fundo do fundo do ovo de suja casca se encontrao centro da vida que se define e difunde na fecundação quedesencadeia um processo de aquisições adaptadas à suaespecífica estrutura. Assim se compreende o afanoso jeito degente sabedora da realidade no seu inverso, - silenciar.Silenciar, convém a alguns, sempre sub-reptícios, como nãodando conta, para que outros desconheçam.1 O silênciomata, a memória revive. Vamos na memória contra osilêncio......................

2. Os extremos tocam-se ou circularidade e História«...nestes dias, após a vinda de Roma uma dor no braçoesquerdo e ombro tê-me mortificado muito». 29.10.1966.«Três últimas noites de cruz... não durmo... não tenho posiçãopossivel na cama sem dor...» 15.11.1966.«Hoje o médico disse-me o estado de saúde... aceito parasalvar a minha diocese e preparar o Grande Encontro...»22.11.1966.«...Preparei-me para morrer... recebi a extremunção... pediperdão ao Clero, irmãs e irmãos a dor é grande e prolongada.»26.11.1966.

A 25.01.1967, 10 e 3/4 da manhã, aos 60 anos de idade emal contados 24 de trabalho de missionação, a Vida surgidaa Ocidente num berço de beco de Milheirós de Poiares, aldeiarural e que rumara a Oriente aqui se apaga na buliçosa cidadeda Beira, Moçambique.Ao seu porto arribara em 30 de Novembro de 1943, de umaforma tão simples, anotada assim :«1 de Dezembro 1943: Cheguei à Beira na véspera ondeme veio cumprimentar Mons. Santos, o governador e opresidente da Câmara. À tarde fomos respirar um poucode brisa ao farol do Macúti, à granja onde vimos a fábricade tijolos da missão e o internato das Irmãs de Maria.Assim terminou o primeiro dia na diocese da Beira.» Háaqui genesíaco sabor. (Diário)Em 25 de Janeiro de 1967, encontrava-se o autor em missãode assistência aos militares portugueses «em missão desoberania», dizia-se então, mais especificamente na confluênciados rios Cuandu/Cubango, «Terras do Fim do Mundo».Invadiu-se-nos a alma de tristeza ao ouvir a infausta notíciade que da Beira partira rumo à eternidade, num oceano desofrimento.«D. Sebastião Soares de Resende, ilustre Bispo da Beira,acaba de falecer esta manhã, serenamente, vítima dedoença prolongada...»Mal imaginava então encontrarmo-nos hoje e aqui, por razõesdiferentes.

1 Estranho (?) o caso, ao acaso. O «República», tão atento a tanta mesquinhacoisa, nem palavra sequer nesta morte. Também, obediente aos mesmoscódigos, não se estranha que Henrique de Oliveira Marques, deles devotocultor, trilhasse igual caminho. Não regateia, porém, espaços e louvores aosapaniguados republicanos e, obviamente, à sua Maçonaria. Mas o que maisnos intriga e interpela é José Mattoso, pelo menos na sua História de Portugalrecente. Há si lêncios gr i tantes que fazem também histór ia.

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E o nome da criança chegada a este mundo era simplesmenteSebastião, filho caçula de casal de vulgares lavradores. E oque partia deste mundo quis que fosse também e simplesmente«Sebastião, 1º Bispo da Beira». Mas, construtor da «Horadecisiva de Moçambique», oferecido em holocausto a Deuspor todos os Homens e «Por um Moçambique melhor» sobas «Responsabilidades dos Leigos».4

Do caçulito Bastião, D. Sebastião, restam muitascoisas:Flores, muitas flores sobre o túmulo; muitos escritosseus a continuar sua voz; muita gente escrevendo sobre oseu percurso nesta vida toda ela centrada, sobretudo, naintransigente defesa e libertação de escravidões políticas,sociais, morais sempre à divina Luz de Jesus Cristo, conscientede que «O Mundo Moderno, que morreria do que afirma,continua a viver do que nega».5 E de que, se o Homem seinstrui pela palavra, só pela Cruz se salva. Cumpriu, porque«Em África, há muitas palavras e poucas realizações». Em

África, onde «Há homens ... venenosos como víboras, mesmoquerendo ser ou parecer dos nossos....». Em África,notavelmente se lançou na acção e na palavra,6 sobretudoescrita nos sólidos alicerces da Verdade, da Justiça, do Amore da Paz.Exemplo é o historial heróico do «Diário de Moçambique»,das suas maiores glórias, mas também dos mais dolorososmartírios, muda testemunha dessa corajosa luta enfrentandoobscuros poderes locais, estatais, policiais. A este se juntouo do Colégio-Liceu da Beira.Diga-se com o realismo devido. Andou acesa a polémica.Nestes casos e no do algodão se empenhou com denodo.Quanto a nós, à luz da paridade com casos de outros, não foiposto fora da fronteira e não entrou numa prisão, por uma detrês razões ou por todas.a)O Bispo e os casos estavam fora de portas, lá muito longe,a Beira já ia para Oriente.b)O preso seria grande de mais para tão pequena porta. Davademasiado nas vistas.c) Seriam maiores as perdas abrir segundo incidente quetraria terceiro e não se sabe quantos mais. Barulho a mais efrentes a mais. A cena internacional não corria de feição aoregime. Seria perder tudo por agarrar uma parte, além decolocar nas mãos da oposição os trunfos do jogo......................

Não passava de prisioneiro que «andava em liberdade pelacidade... A PIDE seguiu-me do aeroporto desde a chegada,permanecendo aqui à porta, segue-me para toda a parte.Nunca pensei que as coisas chegassem a isto».7

Em 16.6.1965,chegado à Beira, ido de Lisboa, onde veio tratarda suspensão do jornal, regista no «Diário»: «Contaram-meque a PIDE está decepcionada com o meu regresso dametrópole. É sinal de que esperavam que eu não voltasse.Corre aqui (Beira) esta quadra»:

2 Carta Pastoral de D. Sebastião, Natal de 1953.3 Páginas de doutrinação Moçambicana, 5, D. Sebastião, ano de 1963.4 Carta pastoral de D. Sebastião aos seus diocesanos no fim do ano de 1956.5 «A Crise do Mundo Moderno», Leonel Franca. Citação feita de memória.6 «Diário», 11.5.1948, a propósito da ambiguidade da Portaria 12.232 sobremissões e sua capacidade jurídica para a fundação de liceus, em particular doliceu da Beira. Viu-se depois o problema criado pelo ministro R. Ventura.7 Mas chegaram. E o «chefe» a que chama «manhoso e terrível», chegou aameaçar o Papa com sanções à Igreja em Portugal caso fizesse ondas commais este caso. Quem diria? «Diário», em 27.5.1965, quando veio a Lisboatratar da suspensão do «Diário de Moçambique» que publicara uma sua homiliacortada pela Censura no que não convinha ao Governo.Encontra-se com Salazar e Raul Ventura, Ministro das Colónias, sobre quemdeixou amarga crítica.

Aqui nasceu em 14-06-1906 D. Sebastião Soares de Resende, Bispo Missionárioordenado Sacerdote em 21-10-1928, Professor de Seminário do Porto, eleitoBispo da Beira (Moçambique) em 24-04-1943, Sagrado Bispo em 15-08-1943,falecido em 25-01-1967. Homenagem no 25º aniversário do seu falecimento25-01-1992

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«Sebastião e Antónioandam em grande disputa,um é filho da Fé,outro é filho da...!!!!»

«Tem piada.»8 Comenta jocosamente o senhor bispo, no seu«Diário».

3. Milheirós de Poiares – a notoriedade de uma aldeiaentão perdida no mapa

8 Viera à Metrópole debater com os governantes a oposição à vinda deMissionários e a suspensão que do «Diário de Moçambique» fizera o GovernadorGeral mancomunado com Lisboa. Falou com Salazar, o Ministro do Ultramare com o Núncio. Avistou-se com o prof. Dr. Cavaleiro Ferreira a fim de patrocinara defesa do caso que ficou entregue aos tribunais que nada resolveram,arrastando-se para além da morte de D. Sebastião. O advogado António CarlosLima, grande amigo, e não menos admirador, ficou com o caso de que tratougraciosamente. Foi tanta e tal a oposição política que o advogado se viuimpotente apesar de concitar sumidades, como o Cardeal Patriarca, e eminentesprofessores de direito de Coimbra e de Lisboa, Guilherme Braga da Cruz eMarcelo Caetano. Cf. o dito advogado, autor de «Caso do Bispo da Beira» -Documentos, 1990, Civilização Editora.9 AHRCF – Livro de Registo de Baptizados, 1906, fl. 8, nº 16. Foram padrinhoso tio paterno Sebastião Soares de Resende, casado, morador no lugar deSamil, Freg. de Vila Chã de São Roque, Oliveira de Azeméis; madrinha aesposa do padrinho, Maria Rosa da Conceição Dias da Costa. Baptizou o P.eSerafim José dos Reis. A pia baptismal foi substituída em 1950 e dela restama coluna de suporte. Reduzida a pedaços, restam fragmentos desencravadosde um muro para preservar. Reedificada em 1904, benzida em 1907, conservabelíssima talha renascentista datada de 1579, dourado em 1582. ANTT – Porto,Conv. do Salvador, vol. único, 2ª parte, fls. 18 e 105 v.. A primitiva situava-senoutro lugar.

3.1. D. Sebastião Soares de Resende nasce às 12 horasda noite de 14 de Junho de 1906, em Milheirós de Poiaresem cuja paroquial, , é baptizado em 8 de Julho seguinte.9 Éo mais novo de dos seis filhos, três rapazes e três raparigas.

Baptizado pelo abade Serafim José dos Reis, que lheseguiu todo o percurso de seminarista, de ordinando e deMissa Nova. Privado da alegria de ver o pupilo também bispode África, pois o velho abade falece em 4.2.1941. Poucotempo depois, publicamente, 1943, saber-se-ia da suanomeação para bispo da diocese da Beira, criada em 4.9.1940,e já pensado para ela.Do padrinho recebe o nome de Sebastião, a que não seráalheio o culto a este Mártir da Fé cuja imagem se venera naparoquial.

3.2. A Família e Milheirós. As raízes.Sebastião Soares de Resende, filho de José Joaquim Soaresde Resende e de Margarida Rosa dos Santos.10 Criança dealdeia cristã aprende o catecismo com a mãe e com a mestra,e na escola primária as primeiras letras até à 4ª classe.Comunhão solene feita, finda a primária, terá havido, diz a

tradição familiar, indefinição no rumo a dar à vida e aqui segastaram cerca de dois anos. Dividido entre os trabalhos dasterras da casa paterna, a ideia de profissão de harmonia comas tradições locais e as tendências do próprio, ter-se-á colocadoa hipótese de enveredar pela profissão de barbeiro, aindanesses tempos ligada à de agente das medicinas populares,entre as quais avultavam as de sangrador, aplicador desanguessugas, ventosas, alveitar, lancetador de abcessos.O pequeno Sebastião mostrava inteligência e devoção forado comum. Aí decisiva a interferência do abade, Serafim

10 José Joaquim nasce a 24.7.1866, falece a 15.8.1951, em Macieira de Sarnes.Margarida Rosa nasce a 25.12.1862 e falece a 20.2.1947, em Macieira deSarnes, em casa da filha mais velha. Aqui repousava o filho bispo de África...

José, o pai, o filho Sebastião de sete anos, 1913 - a mãeMargarida - as três irmãs, ao centro a mais velha.

A Mãe Margarida O pai José Joaquim

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José dos Reis.11 Para admissão ao Seminário ter-lhe-áministrado conhecimentos. Por apurar, fica o ano de admissãoe o Seminário exacto, por falta de fontes e o autor discordardo encontrado, baseado em argumentos válidos.12

Perante a difícil definição do futuro, surge a situação, fortuita?,providencial? Chame-se-lhe o que se quiser.13 Um dia, peranteo caso, o tio-padrinho diz-lhe: «não tens dificuldades, dou-teà escolha, vens para minha casa e tens lá trabalho e comerou vais, se quiseres, para o Seminário e eu ajudo-te no quefor preciso».

Brilhante no Seminário do Porto, na UniversidadeGregoriana de Roma, no Instituto de Ciências Sociais deBérgamo, seria doutor, professor no Seminário em queestudara, cónego da Sé, bispo dos mais novos, 35, em mente,37 na realidade, excepcionalmente, como excepcional seriaa sua acção pastoral de Missionário em Moçambique, padreconciliar notável no Vaticano II, fez tremer ministros egovernadores gerais, revolucionou, no bom sentido, asmentalidades coloniais, profeta da África Negra a quem osbrancos de lá e o Governo de cá não entenderam, a quemMoçambique prestou impressionantes homenagens de pesar,com dezenas de milhares de participantes nos seus funeraise com sentimento de verdadeiro pesar.O mais impressionante: perante esta figura de Milheirós dePoiares que os poderes tentaram humilhar se inclinaramreverentes todas as classes sociais, todas as religiões eos próprios poderes ontem perseguidores. Todos os credospolíticos falaram bem. Todas as ideologias se inclinaram. Sóo «República», sem de quê aparente, silenciou: doença,morte e funeral. Mas o silêncio vindo donde vem não carecede comentário, pois se comenta a si próprio.

4. Seminários do Porto

O primeiro registo no Seminário da diocese do Porto, Vilar,aponta a entrada no ano lectivo de 1923/24. Ora tem ele 17anos feitos. Ordenado em 1928, tem 5 anos de Seminário. Eos restantes 4 ou 5 anos? Equivalia este !923/24 ao curso deFilosofia também incluído na designação lógica e genérica de«preparatórios», para o curso de «Teologia», centrado estemais na preparação específica e aprofundada para a ordenaçãosacerdotal e seu desempenho.14

11 P.e Serafim José dos Reis, abade de Milheirós, nasce em Escapães a28.12.1871, aí falece a 4.2.1941. A fotografia é de 8.8.1931. Em 1904 é elequem inicia a reedificação da igreja de Miheirós, findada em 1907.12 Segundo o apurado pelo autor, dentro das dificuldades próprias, esta omissãodocumental ter-se-á devido a um incêndio no Seminário de Vilar o qual, em15.01.1948, reduziu a cinzas também documentação de arquivo.13 Informação do sobrinho Eng. Joaquim Soares de Resende, residente emEspinho, recebida da tradição familiar. Agradece o autor a colaboração.14 Para melhor entendimento da situação desta matéria diga-se que o percursodos Seminários, no âmbito cronológico da época e segundo a prática geralestabelecida nos Seminários para a preparação dos candidatos ao sacerdócioe seu desempenho pastoral posterior obedecia, até 1933, a parâmetrosprogramáticos de dez anos de formação repartida pelas etapas seguintes: 1.Estudos Preparatórios propriamente ditos, cinco anos; 2. Curso de Filosofia,dois anos, ela própria sob a mesma designação. Equivaliam aos estudos liceaiscompletos adicionados de disciplinas próprias dirigidas à formação integralcientífica, cultural e cristã do formando. 3. Curso de Teologia: três anos que,em 1933, passam a quatro, autêntica Faculdade equivalente a um cursouniversitário sério, abrangente e aprofundado. Os que davam mostras de

Sentados: Ana, casada com filhos - Aninhas - a mãe Margarida - o Pai JoséJoaquim - Margarida que casou com Crispim LoureiroDe pé - Artur Resende - António Moutinho, tio paterno - Maria, casada comCapela, pais dos padres José Capela e Sebastião Brás - Seminarista Sebastião,1926 - Rosa, casada com o Friinho, Arrifana - José Soares de Resende.

Estudante em Roma São Sebastião - Igreja de Milheirósde Poiares

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intelectualmente mais capacitados seguiam para especializações emUniversidades várias consoante apetências do doutorando e necessidades doSeminário de docentes dessas disciplinas. Dirigia-se, a maior parte, para aPontifícia de Roma, dita Gregoriana, para se especializar em Ciências Filosóficas,Teológicas de vária espécie, Direito Canónico, Bíblia, Sociologia, Música,Línguas Aramaicas, etc. constituindo, ordinariamente, o suporte científico dadocência dos Seminários das respectivas dioceses. Junte-se, em abono daverdade e da justiça históricas, que todos os Seminários, estabelecimentos deensino de público e reconhecido prestígio, prestaram a este País, e gratuitamente,muitos e relevantes serviços científicos, literários e culturais. Efectivamenteneles se cultivaram muitas e brilhantes inteligências que, sem eles, teriamficado para sempre perdidas nas leivas das lavras dos campos dos seusancestrais. É certo que deles «morderam», acto gratuito, a mão da Igreja que,generosa, lhes deu o «pão», fazendo do dia do benefício a véspera da ingratidão.15 «Boletim da Diocese do Porto»: 1924, pg. 423 e 424; - 1925, Novembro,pg. 173; - 1926, Novembro, pg. 293, 294; - 1927, pg. 319, 320; - 1928,Dezembro, pg. 310, 311.16 As testemunhas intervenientes nos processos canónicos de D. Sebastiãopara a recepção de ordens são hoje todas falecidas. Todas da freguesia deMilheirós. Terão descendentes que nelas gostarão de rever-se.

Em 1925,aluno sempre distinto e sempre premiado,matricula-se em Teologia no Seminário de Nossa Senhora da Conceição.Ora, não será preciso grande exercício mental para concluirque a sua matrícula documentada, em 1923, em Vilar, ondeesteve dois anos, que seriam de Filosofia. Historicamentedocumentados estão os últimos 5 anos, 2 de Filosofia e 3 deTeologia. Onde os primeiros 5 anos de Preparatórios,propriamente ditos? O que se terá passado verdadeiramentenesses cinco anos e onde? Em 1923 tem 17 anos, admitindo,em teoria, a entrada no Seminário dois anos após a conclusãoda Primária, aos 13 anos, teríamos 1919. Em que Semináriopassou os 4 anos de hiato documental? As razões paraeste vazio di-las-á a nota acima.

5. A sucessão das ordens

5.1. – Prima Tonsura, Ostiário e Leitor; Exorcista e Acólito.

Nelas são intervenientes a título de testemunhas, paroquianosda freguesia, onde residem: Ordens Menores: Outeiro.Subdiaconado: Seixal. Diaconado: Palhaça. Presbiterado:Igreja e Relvas. Efectivamente:Em 27.6.1926 pede Ordens Menores. Em 14 de Julho é-lhepassado atestado favorável assinado pelo pároco, SerafimJosé dos Reis, ouvidas as testemunhas:Manuel Leite de Pinho Leão, 46 anos, lavrador, casado,natural e residente no Outeiro de Milheirós. - Roberto LeiteDias de Pinho, 36 anos, solteiro, aí residente. - José Diasde Pinho, 57 anos, lavrador, também daí.Em 29 de Agosto, à Estação da Missa Paroquial foi anunciadoo pedido de Prima Tonsura e Ordens Menores intimados osparoquianos a declararem qualquer impedimento canónicoque obstasse. Em 31, é-lhe passada declaração em como

óbice algum consta. Está no 2º ano de Teologia. A 10 deOutubro, o vice-reitor António Ferreira Pinto atesta que exerceuo múnus de turiferário, que está aprovado nos examesprestados e que está em exercícios espirituais desde 10referido a 16 do mesmo Outubro. A 15 recebe Prima Tonsurana capela da Torre da Marca, então paço episcopal, sendoordenante D. António Barbosa Leão. (1860-1929). A 17, éOstiário e Leitor; a 18.12.1926, Exorcista e Acólito, na Sé.

5.2. Ordens Maiores – Subdiácono, Diácono e Presbítero

1. Subdiácono - Em 9 de Maio, 1927, requer o Subdiaconadoe dispensa do interstício.17

A 11 de Junho perante o abade de Milheirós de Poiares,Serafim, comparecem as testemunhas para deporem noprocesso de habilitação.

17 Em conformidade com a doutrina dos cânones 974, # 1, n.º 6 e 978, do CIC(Codex Iuris Canonici): interstício consiste, para que alguém possa licitamenteser ordenado, isto é investido nas ordens sacras, na observância de um intervalode tempo previsto e decorrido entre a recepção de um grau de ordens e oseguinte. Tempo variável segundo o grau a receber e o critério do Bispo, quese regulará pelas provas de idoneidade do ordinando, as necessidades dadiocese e o grau da ordem a receber pelo ordinando das mãos do seu Ordinário.Há circunstâncias em que a competência jurisdicional para a dispensa dependeexclusivamente da Santa Sé. Em D. Sebastião encontramos ambas as situações.

Ordenação

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Bernardo Alves Moreira, 56 anos, solteiro, capitalista, moradorno lugar do Seixal, Milheirós.Manuel Alves Moreira,39 anos, solteiro, proprietário, aíresidente.Rufino de Oliveira Costa, 72 anos, casado, lavrador, residenteno lugar das Relvas, Milheirós.Em 22 de Maio à Estação da Missa o abade faz anúncio dapetição na forma e finalidade acima ditas. A 11 de Junhocertifica a inexistência de qualquer declaração contrária.Em 6 de Julho, em Notário se constitui património ou «títulocanónico de ordenação»18 para a recepção de Ordens Sacras,pelo que apresenta os títulos nº 131:179 e 036:521 da dívidapública portuguesa, fundo interno e consolidado.Em 7 do mesmo mês é isento do serviço militar e passadoatestado de aprovação nos exames prévios, reza do Breviárioe profissão de fé. Faz exercícios espirituais de 24 a 30. Noseguinte, 31, na Sé Catedral, recebe o subdiaconado dasmãos de D. António Barbosa Leão.

2. Diaconado. A 9 de Maio de 1928, requer e segue-se-lheprocesso idêntico aos anteriores.

Em 27 do mesmo mês, o Abade anuncia na igreja a obrigaçãode, quem tiver conhecimento, denunciar qualquer impedimentocanonicamente impeditivo da ordenação.Em 30, o pároco Serafim chama à residência paroquial deMilheirós as testemunhas do estilo, todas naturais de Milheirós,residentes no lugar da Palhaça:Licínio da Costa Braga,38 anos, casado, proprietário.Manuel Caetano da Silva Coelho, 48 anos, casado, pedreiro.António Gomes de Resende Leitão, 41 anos, casado,negociante.Em 8 de Julho, o vice-reitor, na forma costumada, atesta osexames, os exercícios espirituais de 22 a 28, como o doSubdiaconado. No dia seguinte, 29 na Sé Catedral, recebeo Diaconado.

3. Presbiterado. Faz 22 anos em 14 de Junho de 1928.Faltam-lhe 20 meses para a idade canónica para a ordenaçãosacerdotal que deseja receber no próximo Outubro. Tem de

18 Salvo circunstâncias particulares previstas no CIC , o «título canónico deordenação»: 1. Obrigatório para todos os que requerem ordens maiores. 2.Pode ser constituído por bens móveis ou imóveis. 3. Devem constituir paratoda a vida base de segurança de honesta sustentação para o ordinando.

recorrer à Santa Sé pedindo a respectiva dispensa da idade.Fá-lo em requerimento, em Milheirós de Poiares, em 17 deAgosto de 1928. Em 18, dia seguinte, recebe despachofavorável do bispo e repetem-se os rituais do costume paraa recepção das ordens anteriores.A 9 de Setembro os paroquianos são convidados adenunciar o que acharem denunciável que sejaimpedimento canónico à ordenação. Assim:A 20 de Setembro, abade Serafim lavra auto do procedimento,na residência paroquial onde comparecem os seguintesdeponentes, naturais de Milheirós de Poiares, onde residemno lugar da Igreja os dois primeiros, e o terceiro no das Relvas:Manuel José Alves, 47 anos, viúvo, lavrador, residente nolugar da Igreja;Eduardo de Almeida, 29 anos, casado, agricultor, tambémdo lugar da Igreja;Manuel Alves de Sousa, casado, lavrador, residente no lugardas Relvas.Em 14 de Outubro, entra em exercícios espirituais depois deprestar provas científicas em exames em que foi aprovadocom distinção. A 16, o vice-reitor dá a sua aprovação; a 17o Promotor da Justiça Eclesiástica, Theófilo Seabra, atestaque «pode ser havido como habilitado para receber asagrada Ordem de Presbítero.»Em 21 do mesmo mês, na Igreja da Sé Catedral, D. AntónioAugusto de Castro Meireles, Bispo Coadjutor, confere aSagrada Ordem de Presbítero ao Diácono Sebastião Soaresde Resende, certifica o cónego Joaquim Pereira da Rocha.19

Ordenado, é enviado para a Pontifícia Universidade Gregorianade Roma a que junta o Instituto de «Scienze Sociali deBérgamo», Itália.

19 AHPEP - Processos da Ordenação de D. Sebastião.

O pequeno Sebastião e o Abade Serafim Aquilino Ribeiro

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Licenciado em Filosofia, doutorado em Teologia, o Curso deCiências Sociais em Bérgamo, regressa ao Porto, professordo Seminário, desde 1934 vice-reitor do mesmo e cónego dacatedral. As suas qualidades de jornalista e de homem deestudos levaram-no ao confronto saudável com AquilinoRibeiro que por ele ficou admirador e respeitador pela elevaçãode carácter e profundidade dos argumentos em «Letras eArtes», das «Novidades». Grande a veneração de Aquilinopelo seu antagonista intelectual.

6. Episcopado. A criação da diocese da Beira. D. Sebastiãoprimeiro Bispo

6.1. A Beira social e económica

Os territórios do ultramar africano apareciam a Salazar «baldiosda Europa» que na II Grande Guerra Mundial se lhe tornaramrecurso emergente de abastecimento dos géneros essenciaisimpossíveis de importar de uma Europa em guerra total. Denovo a ideia do escoamento do excedente populacional emcolonatos para brancos e aldeamentos para negros quenão passaram para estes de meras prisões sem grades quetornaram os desgraçados mais fácil presa dos neo-negreirosdas explorações agrícolas e industriais de café, algodão, sisal,algumas minerações internas e externas, aqui, África do Sul.Do Continente seguiram uns tantos obrigados pela pobrezapois aqui o rendimento per capita rondava os 250 dólares, omais baixo da Europa de 1964. Grande a retracção doscandidatos a colonos pela distância, pelo desconhecido, peloclima adverso ao europeu, mas sobretudo pelo sentimentogeneralizado de insegurança inflado por ventos anticoloniaisa soprar mais descaradamente desde 1951.Em 1952,Gilberto Freire, ao passar pela Beira, define-a como« um centro estrategicamente económico do mesmo modoque complexamente social. O seu porto serve não só aProvíncia portuguesa de Manica e Sofala como a Rodésia doNorte, a do Sul e Niassalândia os ingleses.... Daí, o seu planode urbanização, prever bairros para diversas populaçõessegundo os «costumes sociais» que preferirem «e não segundoraças – europeus, asiáticos e africanos».20

Na verdade, por esses tempos a Beira, depois de LourençoMarques, constituía-se num dos centros de maior convergênciade população europeia. Porém, só em 1942, a Beira é elevadaa cidade, assumindo o Estado Português a administração daárea de Manica e Sofala, em que a Beira estava inserida comogrande porto de serviço «internacional»21 com o seu pesosócio-económico próprio. Etnicamente, e tomando o portocomo centro, a norte estendiam-se por larga área a etnia

Tonga e a sul a Senga. A esse norte detinha a Companhia doNiassa o monopólio das explorações de todas as matériascomerciáveis e o recrutamento de toda a mão de obra, amaior parte dela escrava. Fica aterrorizado quando «Soubeque o administrador do Búzi transferido de castigo para oZumbo recebeu uma nota dizendo que os menores não deviamser compelidos ao trabalho. O director da empresa Búzi careciade rapazes para a fábrica, veio ter como governador. Estemanda chamar o administrador e ordena-lhe que mande osrapazes. Ele retorquiu que os rapazes só iam de corda aopescoço como se faz em Manica e Sofala e isso estáproibido... O governador insiste para que mande os rapazes.Quando acabará a escravatura nesta colónia?!»22

«De tarde fui a Nhaugau, bairro para indígenas distante daBeira cerca de 30 quilómetros. Num dos esteios da porta deferro escritas as palavras: «Nhaugau – Aldeia modelo...»Entra-se naquela aldeia modelo e o que se vê? Casas depedra cobertas a colmo e tudo bem ajardinado. E os indígenas?Nus, ignorantes da língua portuguesa e do catecismo, semescola, sem capela, e sem enfermaria!!! Queixam-se algunsque há três anos não lhes pagam. De modo que o modeloda aldeia está nas casas e nas flores e nos arbustos, masnão está nos homens. Que flagrante inversão de valores!»...23

«Querem o preto selvagem para continuar animal decarga...Mas as missões hão-de ir quer queiram ou não».Ibidem, Em 12.6.1946.

20 «Aventura e Rotina», p. 412, «Livros do Brasil», 1952, Gilberto de M. Freyre.21 Muito se falava do «corredor da Beira». Por aqui se fazia ao mar o acessodos países africanos do interior sem costa marítima. O que lhe dava um aspectomais cosmopolita e diversificava a fisionomia social e deixava divisas.22 Em 6.12.1944, regista no seu Diário, desta forma crítica e em tom de coraçãoamargurado pelas clamorosas desumanidades, que vai observando.23 Em 2.12.1945, «Diário», citado. O mesmo tom crítico de desgostoso peloque os seus olhos vêem.

«...só presos pelo pescoço.» Por isso quer observar a aldeia negra modelo.

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6.2 Influências britânicas e orientaisPor virtude da sua posição geográfica, da proximidade maisou menos relativa com colónias britânicas,24 de migraçõesde vária ordem, do Ocidente e do Oriente, do porto e dasexplorações circunjacentes, a Beira foi-se tornando umacaldeirada multirracial, multicromática, multi-ideológica e demuita outra coisa menos de princípios humanos e cristãos.Fria, sem fé nem moral, de muita intriga e de maledicênciarasando a calúnia. Brancos, amarelos, indianos, chineses,negros, mistos, cada um concentrado no seu bairro, cada umacomodando-se nos vários espaços. O grosso da populaçãovivia do cais,25 onde, já em seu tempo, se amotinaramtrabalhadores cuja repressão meteu na cova alguns mortose na prisão algumas dezenas de vivos. Amargurado com asinjustiças, mais se sentia a sua voz de bispo dos sem voz.

6.2.1 A diocese da Beira criada em 4.9.1940, por Pio XII,bula «Solemnibus Conventionibus», só quase três anosdecorridos se dá o seu provimento episcopal. Em 21.4.1943,é-lhe dado o primeiro bispo, D. Sebastião Soares de Resende.Tão longa espera ter-se-á devido a estar já na mente da SantaSé D. Sebastião. Mas 34 anos seria idade achada demasiadoprecoce em relação à práxis seguida, não antecipar demasiadoos 40 anos, e os 37 estariam mais próximos.Sagrado na catedral do Porto, a 15.8.1943.

Sagração episcopal com os Bispos consagrantes, Porto, Sé Catedral.D. Sebastião, 3º da 1ª fila26

24 Moçambique estava rodeado de colónias inglesas. Tanzânia, a norte; Malawi,Rodésias a oeste e África do Sul a Sudoeste. A Ocidente, toda a costa é mar.25 Governador Geral, José Tristão de Bettencourt, 1940-46. Segue-se-lheGabriel Maurício Teixeira, 1946-1958; Pedro Correia de Barros, 1958-61;Manuel Maria Sarmento Rodrigues, 1961-64; o general José Augusto daCosta Almeida, nat. de Moçambique. Governador da província da Beira, ocapitão Eng. Ferreira Martins. O general Teófilo Duarte, 1947, chefiava oMinistério, dito então, das Colónias.

26 Os cinco bispos presentes, da esquerda para a direita: D. Rafael da Assunção,D. Sebastião Soares de Resende, D. Agostinho de Jesus e Sousa, bispo doPorto; D. António Antunes, bispo-conde de Coimbra e D. Manuel Ferreira daSilva, bispo titular de Cízico, missionário como D. Rafael.27 «Aventura e Rotina», p. 413., 1952, de Gilberto Freyre, lugar e autor citados.28 Relaciona-se com as celebrações festivas centenárias de S. João de Deus,cujas relíquias neste dia entraram em Portugal, por Montemor-o-Novo.

Acabava de sagrar-se um dos mais ilustres bispos dos nossosdias, uma das maiores glórias da «Terra de Santa Maria daFeira»,justamente considerado um dos grandes construtoresdo mundo contemporâneo.

Nesta Beira, a 30.11.1943, desembarca D. Sebastião. Noprimeiro de Dezembro faz um reconhecimento do terreno, vaiao farol e ao Macúti. No dia 8, Nossa Senhora da Conceição,toma posse solene, mas não deixou nota no seu «Diário».Neste dia publica a sua primeira pastoral. Aqui deixa bemvincados: a sua alma de Missionário, as linhas programáticasdo rumo de apostólica acção, o seu espírito de serviço aoPróximo, sobretudo dos mais deserdados do mundo. GilbertoFreyre retratá-lo-ia em 1952, assim:«Impressiona-me o bispo D. Sebastião. Figura esplêndidade bispo ainda moço... animado por um fervor missionáriode quem se mostra decidido a ser na África tão dinâmicoquanto os mestres maometanos».27

Tal não era a opinião do Bispo sobre Portugal donde fora:«Em Portugal ... não há mentalidade missionária, entreos próprios membros da igreja.»(«Diário» 27.4.1944)

«Não apareci nas festas de São João de Deus,28 porquenós os bispos dos pretos, não temos categoria, aqui emLisboa!!!» (Diário 4.10.1950)

6.3. Data premonitória?Último dia de Novembro, primeiro de Dezembro, possesolene no dia 8. Transpôs-se uma fronteira, (ou muitasfronteiras?) Muita coisa via a restaurar.

Chega. E o D. Sebastião destas terras, no que elas têm dehumano, dá por ali voltas, respira o ar do mar a partir do farolda sua Beira. Era pela marítima tarde africana oriental de umMissionário na hora do desembarque, nesse Dezembroafricano de 1943.. E a alma do Missionário Sebastião sorveutodo aquele misterioso sortilégio de um mar e de uma ÁfricaOriental, e o divino sonho fez-se carne do homem. A almaestá pronta. O futuro é de Deus e com Deus ele está. Viandanteno caminho escabroso, duro, direito, traçado na sua «estradade Damasco». «... a Lei é o que é e não o que certoshomens pretendem que ela seja...» diria sem rebuçosdesafiando a prepotência pesporrente de quem invoca a razãoda força obliterando a força da razão. Mas para todos oshomens, para todas as leis, para todas as circunstâncias. Umhomenzinho da minha terra que ouvisse aquela determinaçãode quem «não corta prego», diria: «Quem fala assim não é

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gago.» Conscientemente determinado segue, aqui, porquemais do que ele, é a vontade de Deus que o ata ao leme. Trêssemanas: «Há muita criança na Beira ignorada pela acção daIgreja.» (Diário, 23.12.1943)29 Há aqui muito de D. AntónioBarroso, também do Porto, também Missionário da ÁfricaPortuguesa, também perseguido e desrespeitado pelos poderessurgidos de Outubro de 1910. Com República, com Salazar,ou com outro qualquer poder, se esse poder sente que lhemexem nas suas sensibilidades não há Democracia que valha.E D. Sebastião foi uma das vítimas do dito regime de Salazar,D. António Barroso foi uma das muitas vítimas, entre algumasdelas mortais, da República. Desta ajuizou Guerra Junqueiro:«A Republica é a Liberdade - e algemaram os crentes!... é aigualdade - e escravizaram a Religião!... é a fraternidade - edecretaram a guerra civil!»

6.3.1. A consciência de quem está na África de 1943.

Logo da primeira pastoral,repositório de lúcida visão dosproblemas sociais, morais e religiosos da África em Geral ede Moçambique em particular, ressurgem o luso-tropicalismo- sem destruir a idiossincrasia de cada povo envolvido - e atrágica profecia de uma África resvalando fatalmente para umcontinente infeliz,30 presa fácil disputada entre duas forçascontraditórias, qual delas a mais perigosa e feroz.Desgraçadamente, comprovaram-no os factos escritos asangue e a morte, nos últimos 50 anos. A história de Áfricaneste espaço tem sido, e continua, escrita a vermelho dosangue dos seus filhos, a maior parte vítima inocente. Estaa maior das tragédias deste maravilhoso continente, apontadoberço da Humanidade.Pressentindo realidades e mistérios que o envolviam distancia-se dos «grandes» deste mundo para ouvir a voz dos«pequeninos», dos «fracos», dos «oprimidos», dos«escravizados». Seriam estes os habitantes mais dentro dassuas pastorais, mais envolvidos nas constantes palavras, aodirigir-se-lhes, «meus caríssimos diocesanos», o mesmoé dizer «queridos moradores na mesma casa paterna».«Homem voltado para a realidade cruel do seu tempo, o Sr.Bispo da Beira foi, sob muitos aspectos, o precursor doavanço social verificado na África Portuguesa, pastoraise pregação constituíram gritos de autêntico profeta...»31

Quando a morte avançava, nada tem a pedir pois tranquila avítima pode confirmar: «Dei tudo do meu pensamento eacção à Diocese»... «para vida e para a morte»...32

Assim falava quem da vida fizera uma luta constante para quese cumprissem desígnios, pois «Para além da problemáticada riqueza, da economia, e do fomento há ... outro problemamais vasto e mais profundo, de repercussões para lá dasfronteiras, que condiciona todos os de mais problemas.

29 Não ouve o leitor aqui ecos do bispo do Porto, D. António Barroso peranteAfonso Costa e o seu governo saído da maçonaria republicana? Pare, memoree verá, melhor ouvirá. É que a História é circular. Não se repete. Apresenta é similaridades por vezes «quase» gémeas. História é, também, aprender ofuturo na experiência do passado. Previne.30 Dr. Franco Nogueira, Min. dos Neg. Estrangeiros, conferência no «NationalPress Club», Washington, 8.11.1967.31 Escrevia-se a 25, dia a seguir à morte, «Diário de Moçambique» que fundara.32 «O Caso do Bispo da Beira», 1990, Documentos, p. 7 a 9, Nota, rodapé.Dr. A . Carlos Lima, Livraria Civilização.33 Estão por descobrir as razões do arcebispo de Braga, D. Francisco Mariada Silva, que via D. Sebastião de pouca inteligência. A insensatez reporta-nosà fábula de Fedro cuja raposa, por mais que saltasse, não consegue chegaràs uvas do alto parreiral. Desdenhosa, desculpa a incapacidade dizendo:«estão verdes.» Na realidade à raposeca faltavam pernas para lhes chegar.34 E tanto assim que, tomando conhecimento da gravidade da doença, ascomunidades de protestantes, muçulmanos, hindus, e outros, se apressarama enviar telegramas para a Beira manifestando preocupação e pesar pelagravidade da doença, e anunciando preces públicas e colectivas a Deus pelassuas melhoras. Depois foi a sua presença nos funerais impressionantedemonstração do carinho de dezenas de milhares de pessoas de todas ascores, etnias e religiões.35 Faço minhas as palavras do Prof. Dr. P.e António da Silva Rego, Prefácioao «Tríptico Moçambicano», de Mons. Manuel Ferreira da Silva, 1967, Ed. sua.

É a convivência em igualdade de direitos e deveres deindígenas e não indígenas, todos cidadãos portugueses.»Aqui deixamos este nosso modesto trabalho sobre a campahumilde do seu eterno repouso:«À saudosa memória de «Sebastião, Primeiro Bispo daBeira». Justa e sentida homenagem a um prelado ultramarino– uma inteligência33 e uma vontade – que tão bem soubealiar o amor da Pátria ao amor da Igreja. Bispo inteiramentededicado aos seus padres e aos seus fiéis, e neste númeroincluíam-se todos os habitantes da sua diocese,34 pois a todospertencia, a todos se tinha dado, a todos tinha sido enviado.».35

Mas que premonitória coincidência terá esta chegada nesteprimeiro de Dezembro de 1943 com o de 1640? Trezentosanos se passaram... A História tem surpresas interpelantes.Mas, unindo as pontas da história que a História nos oferece,sem cair em deletérios sebastianismos, passa-nos pelohorizonte da memória muita coincidência além da qual nãodeve nem conscientemente deseja ir o autor, porque aquiespeculativo despropositado.Inteligente, previdente, terá lido muito, observado e interrogadomuita gente e muita coisa.Os longos 40 dias de caminho todo feito num barco dessestempos, por costa africana, de aportagens com nativosinvadindo o tombadilho, inteligência observadora, armazenainformação, traça planos, acomoda ideias a uma realidadedos anos 40 português colonial, África possessiva, ia invadindoa alma do Homem bem formado e do Missionário Evangélico.

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Crianças, Juventude, Instrução, escravatura, pobrezamaterial, moral e espiritual marcam-lhe a alma e o coraçãode Negritude e Africanidade, no mais profundo e puro sentidodos termos.36

Cria-se o mito e surge o lábaro de uma vida: «LIBERTAR épreciso, urgente, o Libertador que aproa na Beira destaÁfrica é também profeta.

6.4. A chegada do Bispo e a insolência do GovernadorAcabadinho de chegar à Beira, D. Sebastião chega a 30de Novembro de 1943, e o primeiro balde de água fria emterra tropical. A 4 recebe o Governador. Conversamlongamente sobre assuntos de instrução. A 17, vem o mesmoGovernador pedir permissão para a banda de música dasmissões ir tocar à festa das crianças de todas as raças ereligiões. Eram vésperas de Natal. Mas o Sr. Bispo não podiair lá, insinua o administrativo, sem tino. Nas costas registapor escrito a observação sobre a indelicadeza:«Eu disse ao senhor governador simplesmente que não. Se,como ele reconhece, eu (Bispo) não devo comparecer, também não deve a banda que é estritamente católica e não apenasde católicos. Sei que não foi contente, mas, paciência. Estafesta sabe-me a Maçonaria.»37

36 Vale a pena ler de Leopoldo Senghor, «Negritude e Africanidade». Mas,para a compreensão em profundidade desta apaixonante matéria seráindispensável mergulhar presencialmente na cultura dessa África profunda, acontactável nas suas mais recônditas florestas e savanas, como (in)felizmenteaconteceu com o autor destas linhas. Lá e cá na Faculdade de Filosofia deBraga, na cadeira das «Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa».37 «Diário» de D. Sebastião, inserto em «A Igreja Católica e o Estado Novoem Moçambique», p. 215, 216, de Pedro Ramos Brandão, Editorial Notícias,2004. A recusa ao deselegante governador, capitão Eng. Ferreira Martins,demitido em Agosto de 1949, por influência da Companhia da Beira, custou aobispo obstruções à solução de problemas. Mas o distanciamento criado agrava-se com a posição crítica do bispo à conivência deste representante do Governocom a descarada escravatura que tanto feria o coração do prelado. Vejam-seas observações deste: «Querem o preto selvagem para continuar animalde carga... Mas as missões hão-de ir quer queiram ou não.» «O inspector...está dominado pelo ambiente geral antimissionário ... , ataca as missõespelo lado das escolas ... É preciso acabar com a escravatura nesta colónia... Mas comprar pretos para o trabalho que é?»Todos estes anti vinham deinspiração maçónica, que perdera as escolas laicas lançadas pela República,e os restantes traziam a chancela do colonialismo assente unicamente naexploração da força de trabalho humano, como se de animais de carga setratasse. Como as missões travavam este desenfreamento, apanhavam. «Diário»cit., 12.6., 11.7. e 20.9.1946; e 5.8.1949. Eram Governadores Gerais, afectosà Maçonaria: Em 1940-46, José Tristão de Betencourt; 1946 a 1958, outro demá memória, Gabriel Maurício Teixeira.«Gostaria de salientar que a história da presença de Portugal (emMoçambique), ... naquele período a que, com alguma verdade, se podechamar de colonial, só poderá ser escrita se se lhe estudarem, comisenção e rigor, duas histórias: a da sua imprensa e a da sua Maçonaria.» Ilídio Rocha, contracapa, obra citada em nota a baixo.

O incidente ficou-lhe ali na alma, estigma de ambienteestragado a carecer de cirurgia, massa a levedar. O jornalconcebido por esta mente luminosa seria o bisturi ou parte dofermento, e da sua pesada Cruz também, carregada até àmorte, e não só, atravessar-lhe-ia o próprio túmulo conscientedo que disse para o fundar: «Um jornal vale por três ou quatro missões. Tudo estáem ele ser bem feito.»

7. O problema social, a instrução, a Cultura e a moralcatólica – os inimigos

7.1. As escolas e centros de formaçãoBasta percorrer os títulos das suas pastorais, circulares,exortações dirigidas a missionários e a diocesanos. A suaparticipação no Vaticano II e as repercussões nacionais einternacionais da sua doutrina toda centrada nos princípiosmais comezinhos do Evangelho. Ombreando com os maiscredenciados padres conciliares dos outros países do mundo.O ensino secundário na Beira tem-no como seu paladinoao fundar em 1948 o Instituto Liceal D. Gonçalo da Silveiraque entregou aos Irmãos das Escolas Cristãs, vulgo Maristas.Seria um dos «Casos» que tratamos noutro lugar. Fundouainda os colégios de Vila Pery e de Tete; escolas normaispara a formação de professoras e professores nativos, emBoroma, Tete, Dondo e Inhammizura; além de centenas desalas de ensino de adaptação e primário, não poupandoesforços e sacrifícios pessoais como ninguém; o semináriodo Zóbué, integrado na diocese de Tete entretanto criada.O «Diário de Moçambique», fazia parte de um vasto programasocial e cultural. A fundação nos moldes concebidos leva-oa países da América para estender a mão às ajudas generosasde bispos e leigos dessas terras, para mais e melhor servira Deus e os Homens. E assim se fez. O jornal, sem ferir oslegítimos direitos dos fortes defendeu sempre os fracos semvoz, reivindicando para eles a justiça a que exactamente porserem fracos têm direito. Acção Católica, Cursos deCristandade, Catequeses, tudo quanto ao alcance humano oauxiliasse a missionar o «Catecismo» e a «Cartilha Maternal»,valorizando, libertando, humanizando. Em nome destessagrados princípios ergueu a sua voz no Concílio Vaticano II,e de tal sorte que «Produziu uma impressão considerável nosmeios católicos portugueses. Apenas o jornal católico «AsNovidades» reproduziu na íntegra o despacho das agênciassobre as declarações do Bispo, segundo as quais «o esquema13 deveria condenar os regimes que oprimem os cidadãosquando eles se encontram em desacordo com a ordempolítica, económica ou social existente, ou mesmo quando

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eles se recusam a considerar tal ordem a melhor possível.»«A intervenção teve uma larga repercussão entre os jovenspadres católicos de tendência liberal que se esforçam por ummovimento de «democracia cristã» em Portugal.»38

Mas grandes e graves dissabores provaria o bispo justamentea partir da oposição do regime ao jornal e à entrada demissionários na Beira.

7.2. D. Sebastião - o doutrinador e Padre do ConcílioVaticano IIAinda hoje, a 39 anos de distância, a zona centro deMoçambique, é a que se conserva mais consciente dosprincípios cristãos e que ao facto não é alheia a marca indelévelde missionação pessoal que a esta imprimiu desde o início.Também não é por mero acaso que ainda hoje o seu túmulocontinua a ser um lugar de autêntica peregrinação onde osperegrinos de todos os credos deixam uma simples flor.Estudioso, fervilhava-lhe constante e seriamente enraizadana mente lúcida a ideia de que só elucidando, instruindo,comunicando, a sua grei estaria à altura de compreenderJesus Cristo, a mensagem do Seu Evangelho e estar à alturados desafios do mundo contemporâneo. Palpava-se essapreocupação nas pregações, nas mensagens escritas, aosmicrofones das rádios, sobretudo da «Radio Pax», nas«Pastorais», que em cada ano publicava, plenas deactualidade cultural, social e necessariamente política, ali nomelhor dos sentidos. Só não em 1965, por estar muito envolvidono Concílio Vaticano II. Aqui foram dez as suas intervençõesnotáveis: a 12 e 26 de Novembro de 1962. 22 e 30 de Outubroe 14 de Novembro de 1963. A 6 e 20 de Outubro de 1964.A 28 de Setembro e a 12 e 16 de Outubro de 1965. Intervençõescheias de oportunidade social e religiosa, para dentro e parafora da Igreja.

7.2.1. Na imprensa.E aqui a preocupação de um jornal emque dele se pudesse fazer uma tribuna que fizesse chegar avoz de pastor a todos os diocesanos. Quantos sacrifícios lheimpuseram e teve de suportar na fundação, na sustentação,na organização, nas lutas terríveis que as dores de cotovelo

38 ANTT – PIDE – DGS, Proc. nº 3033, CI (2), fl. 138. Lx. 5.10.1965. Tal matériarespeita às actividades no Concílio Vaticano II onde D. Sebastião tomou parteactiva. É dos bispos portugueses que mais intervenções registou como padreconciliar português e sobretudo relacionadas com a dignidade e respeito pelaPessoa Humana a partir da sua experiência de bispo da África OrientalPortuguesa. Tanta coragem e clareza do problema tiveram tal retumbâncianacional e internacional ... que as estruturas do regime entrou em estertor,tornando mais tensa a vigilância.

dos estatais ou no mínimo afectos ao governo de Lisboa, senão hipotecados ao grande capital e outros interesses, muitosdeles muito obscuros,!... O «Diário de Moçambique», a suamaior glória e o maior suplício em que foi crucificado.Mas o Bispo D. Sebastião era homem do seu e para o seutempo e para as suas específicas circunstâncias políticas,económicas, sociais e culturais tudo ali confinado na suadiocese da Beira e para mais ainda na própria cidade. Nãocorriam fáceis e de feição os ventos. Consciente da atmosferaborrascosa em que se vivia com aproveitamentos de ocasiãoentende e enfrenta. Em «nota de bordo» deixa o repto:

«”Senhores” anticlericaisEm livro de actualidades escreve um filósofo italiano: « Só oCatolicismo e a Igreja tem hoje a capacidade e a força(aquela espiritual, que vem da verdade) de fazer frente àlouca ameaça de descristianização radical do mundo mastambém essoutra de anulação de qualquer religião e dosmesmos valores humanos mais elementares. Nessasituação quem hoje, não marxista, ainda que não católico,pretende de veras que a Igreja se alheie da política e queos tão detestados «padres» se ocupem tão-só das práticasreligiosas, ignorando o que sucede ao seu redor? Existemé verdade os laicistas não comunistas que não perdemocasião ... para protestar contra as indevidas ingerênciasdos padres na política, e a «invasão» do Vaticano; massabem perfeitamente que, se os «padres» numa dadomomento de ausência da sua responsabilidade e de faltaao dever da sua missão se retirassem para a sacristia, oseu laicismo palavroso e mexeriqueiro afogaria no sangueas suas cabecinhas.; sabem muito bem (e isto os tornamais petulantes e audazes) que a Igreja nesta como emtodas as circunstâncias, salvo casos pessoais desacerdotes e de católicos, nunca faltou nem nunca faltaráao sentido dos seus deveres e das suas responsabilidades– a Igreja a eterna sentinela dos verdadeiros direitos dapessoa humana- , e por isso se fazem valentes e fortescontra Ela.Cómica a situação hodierna do laicismo não comunista;pode dizer mal da Igreja e permitir-se o luxo de ser anti-católico, porque a Igreja com a sua barreira anticomunista,lhe garante esta liberdade; faz de anti-católico sob aprotecção do catolicismo, pronto, se as coisas seembrulharem uma outra vez pronto a bater às portas dosconventos e dos templos, para se refugiar tremendo demedo sob a sotaina dos padres e dos frades, como jáaconteceu. Esta a velhacaria fundamental dos grandes«heróis», do laicismo não comunista das lojas, doscomícios, dos jornais e doas sessões parlamentares.»(...)Até aqui, citação. Comentário de D. Sebastião de Resende:

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« .... Mas, quando é preciso entrar na luta ... a única forçaque se levanta e a única respeitada, é somente a daIgreja.»39 D. Sebastião ali é Igreja viva.

7.3. Uma sagração compensatóriaEm 26 de Janeiro de 1967, ainda quentes os seus despojosmortais, nas vésperas de descer à terra, o mundo lê no «Diáriode Moçambique»:«...D. Sebastião Soares de Resende... Homem voltado paraa realidade do seu tempo, .... sob muitos aspectos, umprecursor do avanço social verificado na África Portuguesa ...algumas das suas pastorais e muitas peças da sua pregaçãoconstituem gritos de autêntico profeta...»40

E tão assim, que o Código do Trabalho Rural daresponsabilidade do Prof. Dr. Adriano Moreira foi inspirado,diz este, em muita da doutrina do Missionário D. Sebastião.Juntou-se na mesma opinião o Prof. Dr. António da Silva Rego:«quanto à presença missionária no campo social e das relaçõesde trabalho, pode dizer-se que a doutrina (de D. Sebastião)se encontra confirmada amplamente no Código de TrabalhoRural, onde, a presença das missões se não é directa, acoincidência de parecer é muito real.»A própria revogação que o mesmo Prof. Dr. Adriano Moreirafez do Estatuto dos Indígenas, na qualidade de Ministro doUltramar na altura, 1961; a criação dos Estudos UniversitáriosGerais de Moçambique e Angola, integrados na UniversidadePortuguesa, em 21.8.1962, decisões previamente tornadaspúblicas na cidade da Beira em cerimónia em que estevepremeditadamente presente D. Sebastião, porque haviade ser homenagem de que era amplamente credor.41

Ora, tais palavras em tais circunstâncias, por tal pessoa, dizemque todas essas revogações, criações e publicações, emconsiderável percentagem, trazem o selo da experiência,da doutrina, da prática e do magistério de D. SebastiãoSoares de Resende.Aconselhamos o leitor a reler os títulos ao menos dessas suaspastorais que em grande parte o Prof. Dr. Adriano Moreira fezreunir em grosso volume «D. Sebastião Soares de Resende-Profeta em Moçambique.»Não podemos omitir o «Livro do Povo de Deus». À entradada catedral da Beira oferecia-se ao visitante, qualquer quefosse, convidando a lançar nele uma sugestão, uma ideia.

39 ANNTT – PIDE – DGS, Del. de. Lx., Proc. citado, doc. 350, in «Diário deMoçambique, 20.10.1961.40 «A Igreja Católica e o Estado Novo em Moçambique», p. 134, de PedroRamos Brandão, editorial Notícias, 2004. Citado41 Adriano Moreira – Centro de Estudos Orientais, prefácio em «D. SebastiãoSoares de Resende Profeta em Moçambique», DIFEL, 1996, Abertura, p. XIII.

Nele os fiéis escreviam os seus diálogos com Deus sobreproblemas da sua vida «fraquezas e aspirações».O Sr. Prof. Dr. Adriano Moreira, dos Homens públicos maislúcidos e de mais extraordinário bom senso que o autor jáobservou neste País, maravilhado com a surpresa quandopor ali passou, não escondeu o agradável desta novidadeeclesial da Beira. Porque o achou inestimável sob muitosaspectos, até biográficos do espírito peculiar do seu arquitecto.

Prof. Dr. Adriano Moreira

7.4. D. Sebastião e o problema social - as obras.A «Promoção da Mulher Africana», decorrente da doutrinadas suas pastorais, foi uma das suas grandes revoluções.Funda o «Serviço Social dos Pobres», ramificado por todasas paróquias e missões. Graças à sua intervenção milharesde nativos viram esconjurado o perigo da morte à fome causadaora por cheias ora por secas, nomeadamente na zona daZambézia. (Remetemos o leitor para a carta, um dos muitoscasos, do missionário de Chemba).Assistência social e sanitária: postos sanitáriosonde seprestaram 64.500 tratamentos. Tinha ao seu cuidado 620órfãos de ambos os sexos distribuídos por 10 internatos;Assistência cultural: havia duas tipografias; em 150 escolaselementares ensinava 6.870 alunos e alunas; educava 1.250alunos em 10 escolas médias a que se juntavam 17 escolasprofissionais que ministravam ensino a 620 alunos.Podem juntar-se-lhes as obras e associações religiosas como seu contributo formativo e educativo, como: Doutrina Cristã,Ordem Terceira de São Francisco, Juventude Antoniana,Conferências de São Vicente de Paulo, Juventude CatólicaFeminina e Liga da Acção Católica Feminina......................Geografia física e social: A extensão territorial, o aumento

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da população absoluta e a relativa religiosa, a necessidadede assistência mais interventora, exigiam do Bispo da Beiraesforço humano incomportável. Por isso, desmembradas doterritório da diocese da Beira, são criadas as duas dioceses,Quelimane e Tete. Perante a nova realidade os novos dadosestatísticos:

7.5. A Acção apostólica de D. Sebastião

7.5.1. O estado da diocese da Beira na sua criaçãoEm 1941-43. Quando criada, incluídos os distritos de Manicae Sofala, Tete e Zambézia, apresentava o seguinte quadro,avaliativo do inavaliável, a cristianização missionária. Serviráexactamente para daqui se fazer uma ideia do trabalhoevangélico realizado. Assim:Sacerdotes seculares – 9; regulares – 25, entre Franciscanose jesuítas. Destas duas ordens havia, irmãos auxiliaresmissionários – 10; irmãs pertencentes a várias Franciscanas,22. Um seminário com 23 alunos, em Amatongas. Catequistasde ambos os sexos, 20. Professores de ambos os sexos, 155.Numa população de 1.700 mil habitantes, eram 32.780,aproximados, os católicos nativos; 3.600 europeus e outrasetnias; 1.800 de raça mista; 7.110 catecúmenos; 1.650 milpagãos, e o resto era de religiões várias.Assistência religiosa: Abrangendo três distritos, por eles sedisseminavam 14 paróquias, 20 edifícios sagrados, 7 centrosde assistência social e muitas formas de presença religiosa,escolar, social e sanitária, incontabilizáveis nestes ambientese formas de vida africanos, mas actuantes no terreno.

Diocese da Beira, 1960,um terço de 1943

Diocese da Beira, 1943, o triplo

7.5.2. O estado da Diocese da Beira no censo de 1960Em 1960, andava nos 771.070. Em Janeiro de 1967, pelos790.000.Destes: 60.102, são católicos africanos; 31.726, europeus eoutros; 4.4.88 mistos; num total de 129. 188. A populaçãopagã orça as 680.917 pessoas.Padres missionários, 74: 13 seculares, dois deles já africanos;os restantes religiosos das ordens seguintes: Franciscanos,Jesuítas, Padres brancos, do Coração de Jesus e das MissõesEstrangeiras de Burgos. Trabalham ainda 33 irmãos religiososmissionários das referidas ordens a que se juntaram osMaristas, ou Irmãos das Escolas Cristãs. E ainda 163 religiosasdas ordens femininas ditas, as de São José de Cluny e daDivina Pastora.Em 1965, estavam fundadas por ele mais de 50 missõesmuitas delas apetrechadas com o indispensável à assistênciasanitária, escolar e religiosa. Sempre numa mão o Evangelhoe na outra a «Cartilha Maternal». E se menos entraves doregime tivesse encontrado mais teria feito, em todos estescampos contribuindo para a própria valorização da presençaportuguesa nessas terras. Assim não entendia a políticanacional do tempo.

8. O tributo do seu apostolado pelo Homem Escravo

Não há rosas sem espinhos ou os traços duma via dolorosafinda no Calvário do leito de moribundo marcado pelo signoda LIBERTAÇÃO. O libertador e o seu tributo. Voz incómoda,alvo da ira de muitas forças e poderes. Quantas noitesindormidas massacrado pelos entraves à sua nobre acção!Quanto sofrimento não atravessou a nobre alma destemissionário! Quantos suspiros de dor deixou ao longo do seu«Diário»! Quantos não registados! Foi dura a sua vida! Aoseu recto caminho atiraram quase intransponíveis«pedregulhos», vencidos em tenacidade, muita, em muita Fé,dia a dia, anos e anos, até para além da sepultura!

8.1. O insulto e a calúnia«Mesmo quando se via insultado por jornalistas sem dignidade,por oradores que abdicavam das suas responsabilidades epor escrevinhadores de paredes que, por cobardia recorriamà escuridão cúmplice da noite.» (D. Eurico no sétimo dia)Mas não constituía novidade para o atento prelado pois a seismeses da chegada, , está muito seguro de que «Na Áfricahá...muitos cumprimentos, muitas mesuras, muitas véniasque eu chamo curvaturas dorsais e na ausência a má-língua,a murmuração, a calúnia... É África! 7.7.1944, «Diário».Mas as ameaças de arruaceiros profissionais de quadrantes

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socio-ideológicos diversos não agiam só. Com elas a boacompanhia, a seu modo, não menos perigosa, sempre actuantecom a Pide, dos senhores Governadores Gerais42 de 1943a 1968, cujos nomes aqui deixamos para que conste e seestude. Constituíram eles, maçons mais ou menos fiéis aoideário das suas lojas, parte considerável da cruz do Bispo.Como possível? O regime de Salazar teve incongruênciasdestas aparentemente inexplicáveis quando equacionadas àluz de uma série de premissas. Por defeito dele? Ou poresperteza dela por virtude do «complexo de piolho»?43

A ponto de a PIDE, para se descartar de arbitrariedades contramissionários que o bispo conhecia e defendia, insinuarperigosa calúnia:

«Sobre o assunto do Bispo da Beira a que me referi, foi-meconfirmado que eram ao todo 20 volumes, com armamentoligeiro e munições. Espingardas e pistolas metralhadoras eos volumes seguiram para a cidade da Beira, endereçadosao Bispo, como se medicamentos fossem. Dizem que o Bispoveio a Lisboa e tinha de facto conseguido a demissão doGovernador do Distrito.» «Inform. “CAUSA” 12.1.961-Moçambique – 1 Ind.(PIDE, ibidem)

(....)«5.Já não é a primeira vez que o Rev. Bispo da Beira faz porescrito afirmações menos verdadeiras que ... atentando contrao prestígio e a dignidade das funções legalmente cometidasa esta Polícia ... tornam o referido Prelado elementoresponsável como principal instigador de desmandos nasua Diocese quando mais não seja, através da linguagemdesbragada e dissolvente com que ataca as Instituiçõesportuguesas, e nelas, como primeiro alvo, esta Polícia.Lourenço Marques, 6 de Janeiro de 1966. O Subdirector...»44

assin. ilegível.

42 José Tristão de Bettencourt, 1940-46. Gabriel Maurício Teixeira, 1946-58.Pedro Correia de Barros, 1958-61. Já citado.43 Manuel Maria Sarmento Rodrigues, 1961-64. Fora na Guiné, de 1945-49.José Augusto da Costa Almeida, 1964-68. Citados44 É esconder-se em costura para atacar na sombra sobrevivendo desta.ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Proc. dito, fl. 110 e 111.

8.2. As ameaças de colonos exploradores à sombra doexemplo do Estado«Mesmo quando se sentia ameaçado por aqueles em quemabundava o direito da força, na medida em que lhes faleciaa força do direito e da razão. »45

Não constituir alvo a abater, seria de admirar. Qual é o paique não defende os filhos cujo sangue vampiros sugam?Necessariamente se levantam antagonismos que arvoramsuas bandeiras e desenterram machados de guerra. D.Sebastião estava consciente porque sempre acordado paraas realidades que o cercavam. Daí as judiciosas e oportunaspalavras denunciadoras do que muitos teimavam em ocultar. Aos missionários revelava a própria Pide que não era poreles que lhes estava vedada a admissão a convite do Bispo,mas «por causa do Bispo da Beira». E a razão era porque oBispo dizia a «verdade a uma inquérito famoso a trêsmissionários, o qual era um montão de mentiras e de calúnias.Esse inquérito foi feito pela PIDE! E como não desse resultado...porque demonstrei a verdadeira fachada dos factos... a pontode o Inspector confessar ... ter mudado de opinião sobre osditos missionários. »46

Libertação de escravos

45 D. Eurico Dias Nogueira, na altura Bispo de Vila Cabral e hoje muito ilustreArcebispo Primaz Emérito de Braga. Tem nesta Revista trabalho adrede enviadocom aquela grande abertura de espírito próprio de Bispo pouco comum. Em1965 assume frontal posição de defesa de D. Sebastião e do «Diário deMoçambique» na suspensão deste contra o direito nacional e internacional.46 ANTT – Arquivo, PIDE, loc. cit., fl. 109. Doc. recebido em Lisboa a 17.1.1966

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8.3. D. Sebastião, a voz de todos os sem voz.

«É preciso que cesse o abuso de se construir grandesfortunas com sangue de pretos». «Cada vez mais meconvenço de que os indígenas estão, nos arredores da Beira,completamente abandonados.»Diário 27.8.1944 e 10.9.1944.«Notei que há muitas serrações à beira do caminho-de-ferro.Os pretos vestem um saco e vi que alguns trabalhavamnuma propriedade no sábado de tarde! Impera na Beira aescravatura! Não há maneira de se convencerem de que ospretos são pessoas humanas. Espero desembaraçar-mede certos assuntos de organização para me consagrar aver estes acampamentos e verificar o que há de condenávelem tudo isto... hei-de empregar todos os meios para osdebelar ainda que seja a imprensa.» (ibidem 14.10.1944)«Soube também que se revoltaram 400 angones47 quetrabalhavam na serração de Lauane. É claro e muito claro.Há injustiças que bradam aos céus.» (ibidem, 17.11.1944).«...Os rapazes só iam de corda ao pescoço como se fazem Manica e Sofala... Quando acabará a escravatura nestacolónia?» (Ibidem, 6.12.1944)E os negros do porto da Beira que se revoltaram? E os queforam logo ali mortos? E onde estão ou foram parar osprocessos, se os houve?Ora o jornal que o Bispo sonhava seria para si a sua tribunatemida pelos poderes instituídos. E era a única voz de periódicolivre em Moçambique, porque não hipotecada ao Estado nemà Banca. E a custo fundou o temido «Diário de Moçambique»,com o apoio do Prof. Dr. Marcelo Caetano.48 Não era deespinha curva, por isso muito combatido por todos osenfeudados. Noutro momento se fala dos problemas eretaliações.

Mais citações de D. Sebastião, para quê? O bispo, humano,estava estragando os negócios à exploração que engordavanas riquezas rápidas amassadas de sangue do negro. E obispo branco sentia a alma negra de amargura e de vergonhapor tantos e tão grandes desaforos contra a dignidade humana,perpetrados pelos «seus brancos». Em resposta a esta voz,segundo eles, havia que denegrir, manchar, calar, desautorizarbispo e jornal, suspendendo e censurando este, para atingiraquele. Quantos ferem os filhos porque não podem chegaraos pais!...Se não era prática comum de todos os colonos, também nemtodos os colonos eram portugueses. Mas eram portuguesas

as autoridades e estavam ali para fazer cumprir a lei. Mascomo, se delas sendo portuguesas eram por vezes mais queconiventes no processo condenatório, algumas atécolaborantes, delas arranjando grandes fortunas em poucotempo do seu exercício?49 E como? Nas comissões e nasquotas de sociedades de exploração em que, se não directa,pelo menos indirectamente estavam metidas. Ora a mulher,ora o filho, ora um familiar.

É certo, contra a Lei. Mas a Lei? Lá muito quietinha e silenciosano papel, longe a fiscalização, e a Lei não vinha para a praçapública gritar os atropelos de que era vítima. Mas por ela vinhao Bispo D. Sebastião e o seu jornal estragar o negócio. Maspor isso sofreu duro, muito duro, na carne e na alma, pelorepto das denúncias. E tem aqui o leitor um pouco levantadoo véu que se deixou no título acima das «ameaças...» Muitohavia mais nesta matéria, que se deixa aqui por não ser esteo escopo do trabalho porque mero foco, mais um, sobre afigura desta nobre alma feirense.

47 «Diário», citado, 5 de Outubro 1950. Mais uma coincidência «dos diabos»,diria o autor. Mas, não mais que isso.48 Marcelo Caetano, Prof. Dr., que foi Primeiro Ministro. Na altura dos factosera Ministro do Ultramar, de quem D. Sebastião tinha as melhores das impressões.

Negro marcado a ferro em brasa

49 «Recebi o governador, Dr. Gouveia de Melo, que me disse estar cheio dolugar. Deu ordens para se não fazerem atropelos à lei com o algodão. Agorao ministro chamou-lhe à atenção porque estava a fazer uma política hostil aoalgodão. Parece impossível! Um ministro agarrado ao algodão como um toirobravo preso a uma corda!.» «Diário», 20.7.1950. - « Soube que dizem para aíque a Companhia de Moçambique (um dos tubarões) perdeu o pai e a mãe,que eram o ministro das Colónias e dos Estrangeiros, Teófilo Duarte e Caeiroda Mata. Deve ser certo. Qual o pai e qual a mãe não sei, ma o que sei é queos dois constituíam o casal autor e protector!.» Diário, 21.8.1950.Em 27.9.1950, foi para Joanesburgo apanhar avião para Lisboa e aqui tratarde conseguir autorização para a vinda de missionários e missionárias estrangeiros,e de outros assuntos. (Ibidem) Chamamos a atenção do leitor para aquelacarta do missionário de Chemba escrita a D. Sebastião falando-lhe de algodão,de chuvas, de fome e outras coisas.

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8.4. O prisioneiro da vigilância da «secreta portuguesa»

Ora fácil é compreender o que se segue tendo a focalizaçãoda luz que acaba de deixar-se. E aqui mais uma recorrênciada História. «Mal com el-rei por causa dos homens...». Aquinão o resto, que deste se não pode dizer que está de «malcom os homens por causa de el-rei.».Por isso «el-rei» vigiava o bispo.«Mesmo quando lhe parecia estar preso nas ruas das grandescidades porque seguido como perigoso malfeitor, ou verificavaque para a sua correspondência era uma palavra vã a garantiado sigilo epistolar consignada na nossa Lei fundamental... aConstituição Política.»E bem cedo começou. E tão cedo que já em 20.3.1944, apenasa cinco meses de presença de Bispo na Beira, regista no«Diário»:«Recebi uma carta de Portugal pelo correio e passou semcensura. Caso raro e estranho! Está para acontecer algumacoisa de notável!»50

Natural que assim fosse. Suas humanas reacções acicatadasperante desumanidades comentadas aqui e além nãopassariam despercebidas à polícia do Estado que, muito porperto, como sinistra sombra, o espreitava haveria tempos. ED. Sebastião, fosse por que fosse, vivia convicto destarealidade, que não mero pressentimento. Intimidação? Nempor sombra. Prossegue. Quem, que forças, fechariam a umpai ouvidos apurados pelo cristianismo tantas e tão gritantesinjustiças?«Há quem contrate em várias colónias negros para SãoTomé porque é alto negócio. Por cada preto contratadopagam um conto de réis.51 Neste contrato há dolo, engano,ilusão para os pobres desgraçados. Riquezas que seconseguem com sangue, suor e vidas humanas. Pecadoque brada aos céus...»52 E por isso surge-lhe a doutrina socialda Igreja de que é porta-voz.«Precisa-se de aplicar aqui a doutrina das encíclicas sociaisdos papas Leão XIII, Pio XI e Pio XII. A escravatura já passouà história e é preciso que cesse o abuso de se construirgrandes fortunas com sangue de pretos... Cada vez mais

me convenço de que os indígenas estão, nos arredores daBeira, completamente abandonados. Está tudo por fazer.»53

«Notei que há muitas serrações à beira do caminho de ferro.Os pretos vestem um saco... Impera na Beira a escravatura...»Idem, Ibidem.«Fui ao gabinete do governador tratar de assuntos relativosa uma missão. Diz sua exc. que para si o depoimento depreto não vale nada! Que bela fazenda jurídica! Deste modopodem perpetrar-se os maiores crimes contra os pretos, seeles se queixarem, não vale nada o seu depoimento...Desgraçados pretos regidos por homens destes.»17.11.1944. Idem, ibidem.«...a empresa Búzi carecia de rapazes para a fábrica, veio tercom o governador.Este manda chamar o administrador e ordena-lhe que mandeos rapazes. Ele retorquiu que os rapazes só iam de cordaao pescoço como se faz em Manica e Sofala e isso estáproibido na lei. O governador insiste para que mande osrapazes. («Diário», Em 6.12.1944Quando acabará a escravatura nesta colónia?!( idem ibidem,pg. 218) «...ainda agora procura eliminar todos aqueles homensque se opõem a toda a espécie de patifarias.» (Ibidem, pg.222,5.8.1949), comenta a propósito da «Companhia deMoçambique» que nada mais fez que explorar os pretos eos recursos naturais, - pasme-se, a coberto dos governantes-, ministros e governadores... Mas sempre assim foi. Nem aMonarquia, nem a República, nem o Estado Novo, nem, emalguns casos, alguns missionários de todos os credos.

9. Entraves à sua actividade evangelizadora.

«Mesmo quando lhe era coarctada a liberdade de pregar eensinar, criando-lhe entraves a um dever imposto peloEvangelho e que pareciam constituir contravenção a direitoreconhecido em público e solene Pacto, de naturezainternacional ou intersocietário.»54

E surge entre outros o «caso» do Instituto D. Gonçalo daSilveira.Em 5 de Fevereiro de 1950 , anota no Diário:«Recebi carta do ministro das Colónias que me dizia havermostrado a minha carta ao presidente do Conselho, que levouo assunto ao Conselho de Ministros. Prevaleceu, diz ele, oaspecto político e não deixou vir mais missionários alemãese italianos para cá. Onde está a lógica do Governo?»

50 «A Igreja Católica e o Estado Novo em Moçambique», pg. 217, PedroRamos Brandão, editorial Notícias, 2004. Citado.51 Hoje, seriam cinco euros. Uma bagatela. Mas então, 1944, eram raríssimasas notas de um conto de réis. Para ter uma pálida ideia, equivale ao salário de60 dias consecutivos de trabalhador rural. Dois meses completos.52 Regista no dito seu «Diário» na escala em São Tomé a caminho da suadiocese da Beira. Experiências interpelantes da consciência que o preparampara o choque de idênticas realidades que afectam os seus filhos diocesanos.«Diário», 7.11.1943, em «A Igreja Católica e o Estado Novo em Moçambique»,pg. 215, de Pedro Ramos Brandão, 2004. Citado.53 «Diário», 27.8.1944, Ibidem, p. 217.

54 D. Eurico Dias Nogueira, então Bispo de Vila Cabral, na homilia nasexéquias de 7º dia 1.2.1967. Agradece penhoradamente o autor a S. Exc.Rev.ma a gentileza do seu envio, esclarecimentos e achegas.55 «A Igreja Católica e Estado Novo em Moçambique, citado, pg. 222 e 223.

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9.1. O caso «Diário de Moçambique» - Calar o jornal eraamordaçar o BispoFundado por D. Sebastião. Sai o primeiro número em 25 deDezembro de 1950. Acabou definitivamente em 1973. Tevede suportar vicissitudes, vítima da conjuntura política facilmenteadivinhável sendo órgão da diocese e criado pelo perseguidofundador.O «Diário de Moçambique» constituía um dos principais meiosintegrantes de um vasto plano de recuperação de Moçambiquemarcado por centenas de anos de atraso, mercê também dadesastrosa política do Absolutismo, que o Liberalismo agravou,que a República agravou ainda mais e que o salazarismoatamancou quando não obstruiu. Portugal político quase nadafez e ainda impediu a Igreja que fizesse.Lembre-se que nos anos 50, a Lourenço Marques, e outrascidades da África Austral, arriba gente, nomeadamentecomunistas, e similares, funcionários e estudantes, incómodosao regime que os perseguia na Metrópole. Vejam-se osparadigmáticos exemplos de Cansado Gonçalves, Vítor VelezGrilo,56 António de Almeida Santos,57 e tantos outros. Mashavia de tudo.Manuel Ferro, exagerado situacionista, que trabalhou no«Diário de Moçambique», engrossando as calúnias contrao jornal, diria ao sair: «O bispo deve ter sido o primeiro terrorista que apareceuem Moçambique. Defendia uma terra para todos e punhaos Portugueses em xeque, como exploradores dos pretosnomeadamente na questão do algodão.»58........................................

56 Haviam sido dirigentes e secretários gerais do PCP.57 António de Almeida Santos– N. em 1925, no concelho de Seia, filho deprofessora primária, terminado o curso de direito vai para Moçambique, faz oestágio e passa a residir. Foi Presidente da Assembleia da República.58 Manuel do Amaral Ferro, em entrevista concedida a José Freire Antunes.Cf. Livro citado, p. 94. Companheiro de Jorge Jardim, pelo que a situação seexplica por ela própria.

Teria razão, do seu ponto de vista. O diário reflectiadoutrinariamente os princípios Humanistas Cristãos do seufundador. Em conformidade, por uma questão até de puracoerência comum a qualquer homem de carácter bem formado,coerente com os sãos e mais elementares princípios, comoera o caso do bispo, em cuja espinha dorsal nunca se notaramquaisquer curvaturas oportunistas, mesmo quando prensadopelas arbitrariedades do poder político pronto a ceder a levemesura. Mas não. «Fidalgo da Beira não arroja cadeira», nãopor orgulho, mas por fidelidade a princípios. E isto logo noprimeiro da sua entrada na Beira, o que deixa ver a direitalinha de rumo traçada. A título de exemplo do afirmado:

«O Diário de Moçambique» de forma alguma podia calaros atropelos aos mais elementares e sagrados deveresde respeito pela pessoa Humana fosse qual fosse a corda pele, o quadrante geográfico da sua proveniência e areligião professada. Daí, tornara-se assaz incómoda estapoderosa voz celebrizada pelo apostolado de D. SebastiãoSoares de Resende. E por isso, na morte, muçulmanos,hindus, protestantes, Igreja Ortodoxa Grega, Adventistas,e sem religião, lhe prestaram as homenagens queprestaram e sentiram a perda dessa voz que o própriotúmulo não calaria.59

As deslocações do Sr. Bispo obedeciam ao imperativo detratar junto do Governo de Lisboa a ferida aberta pelamachadada que o Governador Geral acabava de dar no bispoacertando na menina dos seus olhos, o «Diário deMoçambique».«Na ausência do senhor Bispo desta diocese (da Beira),julgo-me na obrigação de prestar a V. Ex.cia Rev. umesclarecimento a propósito da suspensão do «Diário deMoçambique» ... Na realidade ... o que está em causa é oprelado da Diocese da Beira.-...»1.Há tempos que o Governador Geral vem insistindo com oDiário ... que mande à censura todos os escritos da autoriado Sr. Bispo da Beira....»O «Diário...» insiste legitimamente que tal exigência vai contrao direito concordatário ao querer intervir no magistério dosbispos, isentos enquanto bispos, segundo esse direito.Sub-reptício, o Governador Geral nunca comunica com o

59 Talvez também por isso o «República» de Raul Rego nunca lhe tivessededicado uma só linha, nem sequer no momento em que todas as normaisdiferenças, para dar passagem ao que houver de bom no fundo do ser humano,se abatem à memória de um desaparecido, e sobretudo da craveira moral ehumana de D. Soares de Resende. Nem o seu aspirante a Grão Mestre,historiador H. de Oliveira Marques, toca no assunto, de leve que fosse.

Colégio Feminino da Beira

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prelado, e sempre exige isso do «Diário»60. Porquê, nuncadeu explicação apesar de instado.Móbil da suspensão,a homilia do bispo entregue para publicarali a 8 de Maio corrente. A 9 pronunciou-a na catedral deLourenço Marques perante os restantes bispos, corpodiplomático e muito público. Celebrava-se o 25º aniversárioda Concordata e do Acordo Missionário entre Portugal ea Santa Sé. Na noite de 9 para 10 é impressa e sai a públicona íntegra.Pretendia o Governador sobrepor-se ao bispo e ao direitoconcordatário. Daí que a 22 do mesmo mês o jornal é suspensopor 10 dias. Havia já experiência de suspensões de três dias.O Jornal apresenta o direito e os pareceres do Procurador daRepública, como segue:«5º.«... o parecer nº 15 da Procuradoria da República deLourenço Marques, em 1962, diz que estão isentos de censuraos escritos dos bispos, desde que enviados pessoalmente edevidamente autent icados», como era o caso.Numa guerra de« lobo e cordeiro», aparece também D. Euricoinvocando o Direito.

D. Eurico Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral

Em 27.5.1965, D. Eurico D. Nogueira, chega de trabalhosa Vila Cabral, sua diocese, toma conhecimento do graveatropelo ao direito individual e internacional, numa clara earrogante violação dos mais elementares princípios dedeontologia jurídica. Exímio jurista civil e canónico, em cartaao Governador Geral, veementemente condena a prepotênciada força fora de razão. Da carta, nos arquivos da PIDE, ospassos mais significativos concernentes ao caso.Nesta altura já D. Sebastião se deslocara a Lisboa a tratar dograve atropelo.«... regressado ontem à sede desta diocese...apresso-mea levar até junto de V. Ex.cia, por imperativo de consciência,a expressão da minha viva estranheza pela suspensão do«Diário de Moçambique», determinada por despacho de 21do mês corrente(Maio 1965). ... tal determinação contrariafrontalmente não só o espírito mas a própria letra do art. II daConcordata vigente» que garante à Santa Sé a «livrecomunicação com o clero e fiéis de Portugal, «sem necessidadede prévia aprovação quaisquer instruções ou determinações...e nos mesmos termos gozam desta faculdade os Ordinários(Bispos), e mais autoridades eclesiásticas relativamente aoseu clero e fiéis».«Por força de tais disposições, as cartas-pastorais, sermões,homilias, decretos, notas oficiosas, comunicados e outrosdocumentos congéneres provindos dos prelados não estãosujeitos à censura estadual... a Concordata..., lei posterior,em qualquer hipótese sempre teria prevalência sobre o merodireito interno por ser um diploma de Direito InternacionalPúblico. Pretender, porventura restringir aquela faculdade aointerior dos templos seria contrariar os mais elementaresprincípios do Direito que estabelecem que «onde a lei nãodistingue também o intérprete não pode distinguir» paraalém de que esvaziaria por completo o preceito legal dequalquer conteúdo útil. Constituiu esse o esforço inglóriodo passado Liberalismo de raiz maçónica,61 tal comoconstitui norma dos regimes comunistas da actualidadeque procuram roubar à Igreja toda a possibilidade de expressãodo seu pensamento e doutrina.»«De resto o jornal católico assume papel de uma extensãode poder do magistério da Igreja e só a essa luz de justificaa sua existência. Impedi-lo de o ser é o mesmo que torná-loinútil e sem razão.... e como Bispo e modesto mas persistentecultor do Direito canónico e civil, não me resigno a queunilateralmente ( para não dizer arbitrariamente) se lhe dêoutra interpretação....Devo acrescentar que o facto parece tanto mais estranho

61 cuja expressão máxima se encontra na República de 1910 ao fechar areligião completamente dentro dos templos

60 Trata-se do general José Augusto da Costa Almeida, colocado à frente deMoçambique, confiante o Governo de Lisboa nas suas qualidades e no factode ser natural dali. Mas revelou-se um desastre ou por excesso de zelo ou porexcessiva subserviência. Na verdade tornou-se em mais um dos coveiros doregime e do «Diário de Moçambique».

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quanto é certo que a Censura se mostra escandalosamentepermissiva quando se trata de enxovalhar publicamente oAutor da homilia em causa e denegrir a actividade missionáriaem geral como sucedeu, muito recentemente, nos números211 e 215 do jornal «Agora»62...

9.2. A Censura nem os mortos respeita. Mesmo no túmuloos teme, tão vivos continuamVeja-se, a Censura chega ao cúmulo de proibir a publicaçãoda oração fúnebre proferida por D. Eurico Dias Nogueira, nasexéquias solenes de 7º dia com que foi sufragada a alma deD. Sebastião. Pois bem, indignado pela afronta a um morto,o Clero da diocese da Beira dirige ao Presidente do Conselho,Oliveira Salazar, «veemente protesto contra o procedimentocontra a memória do santo Bispo, do infatigávelEvangelizador e exemplar Cidadão que foi Dom SebastiãoSoares de Resende. O Clero da Diocese da Beira sentee sabe que se tem feito sentir implacavelmente a forçasilenciadora da Censura, a qual não permite expressõesoriginais de louvor à figura do grande missionário, impedeem Moçambique transcrições do que na Metrópole se consentiuque fosse publicado, e que vai até ao ponto de impedir apublicação da oração fúnebre proferida por um preladode Moçambique... trata-se de um insulto a um Morto que anós é muito querido.. e não nos consente o espírito admitirque possa dar-se à pequenez de alguns vivos o direito deespezinhar a grandeza de alguns mortos. «Os mortosmandam» - Vossa Excelência o lembrou não há muito tempo...A memória do nosso muito querido Bispo... manda-nos queexaltemosa santidade da sua vida cristã;a abnegação da sua vida missionária;a rectidão da forma como serviu a Deus e Moçambique,sem nunca ter permitido que cifrões se interpusessem naprática da sua fé nemna caridade que pôs ao serviço de todos os seus próximos,indistintamente...» Beira, 1 de Março de 1967 Assinam 36sacerdotes.D. Sebastião, como se disse, parte para Lisboa a tratar docaso. Mas que canseiras, que voltas, que tempo, que lutas,

9.3. Sinistra sombra segue e regista seus passos«ONTEM DOM SEBASTIÃO RESENDE PARTIU BEIRAPARA SALISBURY PEDINDO SEGREDO PARTIDA PTSALIRBURY COMPROU BILHETE PARA JOANESBURGOPT HOJE PARTE JOANESBURGO PARA LISBOA AVIÃOQUINZE HORAS E TRINTA MINUTOS PT SEXA GG DESEJASABER CONTACTOS MESMO BISPO TERÁ EM LISBOA ESE PARTE PARA ROMA PT SEXA CONSIDERA SUSPEITOSMOVIMENTOS BISPO PT ROGO INFORMAÇÃO VIA RÁDIOURGENTE. INTERPOL L. MARQUES» - 25.5.1965 – PIDE–– LisboaNota à mão: «Urgente à S. C. Para se vigiar os passos doS. Bispo, sobretudo se tem contacto nação estrangeira.25.5.65»65

«...hoje,(26 de Maio), pelas 3.00 horas, procedente deJohannesburgo, avião da «SABENA» ... D. Sebastião Soaresde Resende.... Aeroporto de Lisboa e posto da PIDE, 26.5.1965.O Chefe do Posto. A) .....» PIDE – Idem, ibidem, f. 208.Deixam-se dispersos estes traços achados suficientes parase constituir imagem do muito que se omite por desnecessárioa um entendimento do problema. (....)

«O purpurado saiu do nº 33 da Rua Bernardo Lima, onde se

62 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fls. 184-18863 ANTT – PIDE/DGS, Del. Lx. Proc. citado, 3033, CI(2), fl. 47. Transcrito pelaPIDE da «Semana Portuguesa» nº 192, de 27/Maio a 2/Junho de 1967. Ossublinhados são da responsabilidade do autor do presente trabalho.64 Não sabemos se tal indignação chegou a ser enviada. Sabemos da suaexistência pelo processo policial da PIDE que fotocopiou a publicação. Mas afotocópia destinava-se a contra-informação minimizadora do caso. Criadora deáguas turvas vem a comunicação policial de Lourenço Marques, em 20 de Abril. 65 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, citado, fl. 207, 208.

que esforços, que verbas, quanto bem deixado de fazer emoutras frentes com todo este manancial gasto por um pigmeudefendendo-se dos ataques de um gigante...

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encontra alojado para dirigir-se à Nunciatura. Durante o tempoque permaneceu na nunciatura entraram nesta indivíduos quese fizeram transportar nos carros: HH-64-83 e HD-41-10,pertencentes respectivamente a António de Albuquerque deSousa Lara, residente na Avenida do Restelo, 38-A, em Lisboae Direcção dos Serviços de Transporte do Ministério doExército. Da Nunciatura o purpurado seguiu para o nº 292 doCampo Grande (Lar das Universitárias do Ultramar, M.N.E.).Daqui saiu para a Rua Bernardo Lima, nº 33. Cerca das 14.00horas entrou nesta última morada o indivíduo que o foraesperar ao Aeroporto, no carro HH-71-92. Depois de ter saídoda Nunciatura, no taxi que utilizou consultava documentosque, ao que se julga, foram-lhe fornecidos na mesma. Lx.,26.5. 1965, O Chefe de Brigada, (assin. ilegível)»66 26.5.1965,

«Senhor Bispo da Beira não saiu ontem da residência depoisdas 20,30 horas. No entanto foram ali várias pessoas dasquais se pôde obter os seguintes elementos: (- 27.5.1965,relata o mesmo chefe de Brigada

1)Solicitador Joaquim Prazeres Lança, residente na Av. D.Carlos I, nº 142 – 1º, Lisboa.2)Miguel Pires Patrício, funcionário do Ministério do Ultramar,residente no lote U, ao Bairro Falcão ou Alameda, nº 5, 2º,D.to. na Pontinha. (Fazia-se acompanhar de uma pasta).3)António Ribeiro Coelho, agente técnico das C.R.G.E.,residente na Rua Vale F Formoso de Baixo, nº 118, em Lisboa.(fazia-se acompanhar de uma pasta).4)Indivíduo residente na Rua Tenente Raul Cascais, nº 4, 3º,Esq.do, em Lisboa. Telef. Nº 661382, em nome de MariaCristina Cortez5)Indivíduo conhecido por furriel Geraldo, residente no anexodo quartel de Artilharia Um, - Rua Artilharia Um, em Lisboa.6)Casal, ele conhecido por João, funcionário dos C.T.T., residena Rua Guilherme Azevedo, nº 6, - 2º Esq., em Lisboa.7)Rapaz de cerca de 17 anos, hóspede na rua António Pedro,nº 123 – 2º, em Lisboa. Lx. 27.5.1965, O Chefe de Brigadaa) D. ...» (ilegível mas o mesmo anterior)67

«... o purpurado foi visitado na sua residência pelo jornalistaManuel Maria da Silva Costa, director do jornal «Diário deMoçambique», que se fazia acompanhar dum padre e doutroindivíduo. Quanto ao padre sabe-se que se chama JoséMartins exerce a sua actividade na Beira – Moçambique,

encontrando-se hospedado no Hotel Borges desta cidade.Quanto ao outro não foi possível identificá-lo.» (Ibidem, fl.195) 29.5.1965 – mesmo chefe de brigada-

Assunto – Bispo da Beira, D. Sebastião Rezende, moradorna Rua Bernardo Lima, nº 33, em Lisboa. ..., cumpre-meinformar ... que o referido senhor deslocou-se ontem, de tarde,à Rua de Santa Marta, nº 48 (União Gráfica – Revista semanalde Actualidades «Flama» - Novidades, Jornal da Manhã.)Daí regressou a casa. 31.5.1965 -À sua residência foram indivíduos que se fizeram transportarnas seguintes viaturas:1.) AH–18-92 – Volkswagen, de José Antunes Pedro, casado,residente na Avenida Nino Álvares Pereira, nº 15 r/c, emAmadora.2.) CE-67-97- Mercedes Benz, de Manuel GonçalvesCavaleiro de Ferreira, casado, residente na Rua AndradeCorvo, nº 32 – 4º, D.to, em Lisboa. Permaneceu com opurpurado cerca de 3 horas, que veio despedir-se à porta.68

3.) CE-49-71- Skoda, de Serafim de Sousa Ferreira da Silva,residente na Rua Doutor Pedro Vitorino, nº2, Porto. Nestecarro vieram 2 padres e um civil.4.) AI-46-99- Renault, de Alberto Jordão da Silva SalgueiroMarques da Costa, reside na rua dos Nobres, nº 23, Évora.»5.) Também entrou na Rua Bernardo Lima, nº 33, um padre,que quando saiu, dirigiu-se à Praça José Fontana, nº 11., 31.5.1965...» (as. ilegível do mesmo chefe de brigada anterior.)

O chefe de brigada, por ordens, informa em 1.6.1965:«Assunto – VIGILÂNCIA AO «BB» - Hoje, pelas 10,35 horasdirigiu-se ao Hospital do Ultramar, onde permaneceu cercade uma hora... utilizou a viatura IG–62–30 , pertencente aÁlvaro Miranda, residente na Avenida Miguel Bombarda, nº132 – 5º, Lisboa.»(Idem, Ibidem)Inácio, PIDE, informa em 22.11.1965, sob a epígrafe «D.Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira – África»,anotada em 2.12.1965:

66 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fl. 198.67 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fl. 197.

68 Sabemos que este eminente professor de direito, autoridade na matéria epessoa de grande nomeada até como homem católico, foi procurado por D.Sebastião para lhe expor o caso da suspensão do Diário de Moçambique nascircunstâncias esclarecidas e quiçá entregar-lhe a resolução jurídica do caso.Informação colhida junto de D. Serafim Ferreira e Silva actual bispo de Leiria-Fátima, natural do Porto, mas então em funções directivas da Acção Católica.Estranha o autor o desaparecimento puro e simples desta personagem doprocesso pois não consta da correspondência do advogado António CarlosLima que, tomando a seu cargo a solução e correspondendo-se com váriospossíveis adjuvantes, não tem uma só linha e nem o nome cita. Que razõespara tão profundo silêncio de quem consta aqui pelas razões claras pelotestemunho de quem estava por dentro do assunto? Foi um dos visitantesnotados pela PIDE, como se vê.

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«De fonte fidedigna, temos conhecimento que o bispo da Beira– D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE, é muito adversoao E.N.(leia-se Estado Novo) e nomeadamente contra SuaEx.cia, o Senhor Presidente do Conselho (Oliveira Salazar).É declaradamente adepto do célebre Bispo do Porto e temosainda conhecimento que é assaz perigosa a sua acção emÁfrica, onde com rara habilidade está praticando uma políticamuito hostil à Situação. Este bispo, dizia-se monárquico equando vem à Metrópole, já tem ido a São Marcos, visitaro Sr. D. Duarte Nuno.69

Os Monárquicos progressistas têm por este indivíduo umagrande admiração, tecendo-lhe os maiores elogios»70 Nemtodos os monárquicos. Deles eram seus opositores.

Portão de entrada para o palácio deS. Marcos, D. Duarte Nuno

69 A passagem de D. Sebastião por São Marcos quando se dirigia ao Norteem visita aos familiares e amigos, só depois de 1958, ano em que o Duquede Bragança, D. Duarte Nuno, se deslocou de Matosinhos para aquele palácio,sito na freguesia de Óis do Bairro, concelho de Anadia, cedido pela Fundaçãoda Casa de Bragança e que pertencera aos «Castelo Branco», cujas armas,o leão, se podem ver no armorial do portão de entrada para o recinto. Aíresidiram até ao 25 de Abril. D. Sebastião tinha razões de cortesia para passarpor ali em visita. É que, o filho, pretendente ao trono de uma hipotéticamonarquia a restaurar em Portugal, titula-se «Príncipe da Beira», de que D.Sebastião era Bispo. Nada mais natural. Este D. Duarte Pio, deve o «Pio» aofacto de ser afilhado de baptismo do SS o Papa Pio XII. Em 1.1. 1956, foiapresentado ao padrinho, em audiência especial, como «5º Príncipe da Beira»,Moçambique. Título criado em 17.12.1734, por D. João V, para ser usado

9.4. A Imprensa Estrangeira e o Caso

O «SUNDAY EXAMINER» noticia: «Moçambique suspendeo Diário Católico» 10 dias. O DIÁRIO, publicado pelo BispoSEBASTIÃO SOARES DE RESENDE, é um dos poucosjornais que não foram nacionalizados neste território da ÁfricaPortuguesa....A tiragem de 10 de Maio trazia uma históriaacerca do discurso proferido pelo Bispo, por ocasião do 25ºaniversário da assinatura da concordata entre Portugal e oVaticano. O Bispo disse que «Moçambique hoje não deviaser território cuja maioria da população é iletrada, mas umaregião com um nível de instrução normal, igual ao de qualqueroutro estado.»71 Em 25.6.1965,«Soube-se hoje que o Governador Geral de Moçambiquesuspendeu o jornal «Diário de Moçambique» durante 10 dias.O jornal dirigido por D. Sebastião Soares de Resende... é oúnico com importância na província de Moçambique que nãofoi apanhado pelo Banco Nacional Ultramarino... A 10 de Maiopublica o texto de sermão dado pelo bispo para comemoraro 25º aniversário do acordo das actividades Missionáriasassinado por Portugal e o Vaticano.» Nele disse que«Moçambique podia e devia ser hoje não um território comuma maioria de analfabetos, mas uma zona geográficaexactamente ao mesmo nível de qualquer outro normal estadoletrado». Termina criticando o subdesenvolvimento deMoçambique. O Bispo chegou hoje (28.5.1965)72 a Lisboapor via aérea... Crê-se que a sua visita tem ligação com asuspensão do jornal. Há alguns meses protestou nele contraa suspensão por três dias.»73 «The Times» - 28.5.1965.

9.5. Um sinal de reconhecida grandeza pela própria políciaMas um dos espinhos que mais agitava a polícia políticaprovinha da geral e reconhecida força moral que refluía dasua estatura, não física, - franzina -, mas da alma, dainteligência, daquele seu coração grande e da Fé, e que seapercebera já do profundo sentido do que verdadeiramenteé a Africanidade e Negritude, vistas à luz do Cristianismo.

pelos filhos primogénitos herdeiros do trono, então titulados Príncipes do Brasil.70 O primeiro e único doc. folha do processo da PIDE/DGS proc.34542, Coimbrae, 3033 – CI(2). D. Duarte Nuno, Duque de Bragança, pai do actual D. DuartePio, então a viver em casa cedida por monárquicos de Anadia. Ficava nocaminho quando D. Sebastião se dirigia ao Porto a visitar a família e amigosda cidade e de Santa Maria da Feira.71 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, f l . 171.72 Parece-nos que «THE TIMES» andará atrasado na data, pois, em 26 domesmo mês, já a sua presença em Lisboa era objecto de seguimento passaa passo pela PIDE/DGS, como é o caso da sua ida à Nunciatura de táxi. Aliforam também indivíduos onde se transportou em viatura73 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fl. 180, Respigado do «TheTimes» da referida data

Dom Duarte Nuno de Bragança

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Reconhece a polícia política, perante personalidade de taldimensão, que o melhor dos dividendos seria para já substituira hostilização frontal pela aproximação. Inequivocamenteconfessa ao medir a estatura do Homem objecto de todas assuas iras e vigilâncias.Reconhece e confessa a PIDE:«Sebastião Soares de Resende – Bispo da Beira, ligado aojornal «Diário de Moçambique», «Voz Africana». Homem muitoculto, influente e de prestígio. Defensor de certas teorias epensamentos filosóficos que brigam com as doutrinas políticas,não aprova certos métodos de Governo e de Regimes Políticos.Desfruta de grande prestígio e influência nas camadas dapopulação negra.74

Muito conhecido no estrangeiro pelas suas ideias político-filosóficas, citado com frequência nos livros que tratamde assuntos ou problemas africanos, mormente quandose referem a questões da evolução do Continente Negroe sua Independência. Tem muito má impressão da PIDEe uma política de aproximação poderá desfazer isto.»

9.6. O próprio Partido Comunista Português, PCP.Por saber das ideias claras e convictas acerca dos«Marxismos» de então, dava, intencionalmente, distorcidasnotícias acerca do seu adversário ideológico. Não seesqueçam os extremos posicionamentos: PCP e o seuateísmo militante marxista de um lado e do outro a FéCatólica nos Valores Eternos de Cristo por parte do BispoD. Sebastião. Vejam-se as suas pastorais sobre Marxismo.

9.7. Quando estrangeiros reconhecem a grandeza doHomem e do BispoNos passos desta vida, há de tudo.

74 ANTT – PIDE/DGS, Deleg. Lx., fl. 377. Quanto ao Governador do Distrito,da Beira, era um major com a prosápia de grande que não passava de menorde espírito, de tal ordem que se arrogava a petulância de, a coberto do seuposto e das costas quentes pelo regime, tratar o Bispo D. Sebastião como sefora um dos vulgares criados negros. Sabemos que foi demitido o administradordo Búzi, mas por obedecer às ordens do Governador, Ferreira Martins, apesarde se mostrar renitente e invocar a proibição da lei a tal procedimento, o qual,apesar de tudo, o obrigou a entregar negros à Companhia do Búzi nem quefossem presos «der cordas ao pescoço».6.12.1944, «Diário», citado.75 ANTT – PIDE- DGS, 3033, Lisboa citado, fl. 82. Consta este também doarquivado no processo de Nuno Fernando Santana Mesquita Adães Bermudes,com a introdução:« Pelo ofício Confidencial n.º 3245/66-SR, de 9 de Setembrode 1966, a Delegação de Lourenço Marques enviou a esta Direcção fotocópiade um relatório referente às actividades de Nuno Fernando Santana... e váriosindivíduos seus amigos, os quais constituem um «grupinho» de oposicionistasda Cidade da Beira. No que respeita ao indivíduo abaixo indicado consta oseguinte: SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE - ...», e que é a transcriçãoacabada de oferecer aos leitores no corpo do texto.

D. Sebastião, enfrenta ventos e marés, continua sereno aoleme da sua diocese da Beira, não que lhe não passem pelacabeça ganas de a colocar nas mãos do Papa e trocá-la pelamissionação no Brasil. Chega a colocar a si próprio esta formade solução, caso não se encontrasse outro caminho para osproblemas diplomáticos surgidos entre a Nunciatura de Lisboa,o Governo Português e a Santa Sé. Sente-se na sua expressãocerto desalento. Aguenta forte. O capitão está no leme.Prossegue os objectivos evangélicos, não desiste por maisque lhe estorcesse de fel a alma de bispo devotado, dispostoa ultrapassar escolhos e seus reflexos, políticos que fossem.Abriam-se várias frentes de ataque e, por vezes, donde menosesperava. Por vezes a cilada vestia-se de amizade. O casodo eng. Jorge Jardim, vestido de pele de católico fiel, fervorosoaté seguidor do bispo, visita frequente, e o sujo papel de duploa que se prestava.76 O Núncio e Arcebispo de LourençoMarques... Mas saiamos destas águas...

«A Beira transpira, numa atmosfera opressiva e lânguida,nestes dias húmidos próprios da época tropical das chuvasna África Oriental... nestas últimas semanas talvez vejamosmaior número de pessoas preocupadas nas provínciasultramarinas que no Portugal metropolitano. A despeito dacalma aparente e da presença tranquilizadora de jovens eatléticos soldados portugueses de boina e farda de caqui ...por toda a parte, até o visitante de passagem sente qualquercoisa da electricidade estática que enche a atmosfera...contudoa impressão dominante na Beira é de confiança no futuro.Ninguém mais neste ponto do que o Bispo da Beira,Sebastião Soares de Resende.»

Mas havia muitos sinais de inquietação em Moçambique. Vê-se do jornalista entrevistador.«O Senhor Bispo, aparentemente jovem aos 55 anos deidade, é um leader destemido, como compete ao portadorde um nome distinto da história portuguesa... alguns dosoutros bispos de Moçambique consideram-no radical e deideias avançadas. Há dois anos (1960), o governo apreendeua sua carta pastoral que criticava abertamente algunsaspectos da política oficial ultramarina. Logo aos primeirosminutos das conversações que tive com ele durante uma visitade dois dias à sua residência, verifiquei como aquelasconversações eram relativas. O senhor Bispo é um anfitriãointeligente e gracioso. » «The Leader» – 9.2.1962. Neil G.Mcluskei, S. J.

76 «Jorge Jardim – Agente Secreto», citado, de José Freire Antunes.

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9.8. Prova do dito: Estado e escolarização africana.Ao regressar de automóvel para Umtali, fronteira da Rodésia,aquele jornalista dá-se conta de que «Nos subúrbios da Beira,passa-se aqui e além por uma escola do governo. As criançasque brincam nas cercas dessas escolas são quase todasbrancas, algumas mulatas e muito poucas negras... Com apossível excepção da Etiópia, as colónias portuguesas têmo record menos animador de instrução do continente...De vez enquando, uma enorme camioneta, cheia detrabalhadores africanos maltrapilhos, aparece na estradafazendo curvas incríveis. Vão trabalhar para uma fazendaeuropeia ou nas estradas. Porque todos os homens adultosafricanos - excepto os assimilados – são obrigados por leiao «trabalho contratado» durante seis meses do ano,emboraeste período» (Ver a este propósito «A Família...») seja paramuitos prorrogado por vários anos ininterruptos... depósitosde escravos. A História reconhece e consagra a valentenaçãozinha cujos bravos marinheiros e padres inscreverampela primeira vez o continente negro no mapa mundial e aliacenderam as lâmpadas da civilização.Mas será apenas a ignorância persistente, a pobreza e aescravatura e ainda outros costumes medievais dopaternalismo português em Angola e Moçambique, aquiloque o mundo terá para recordar um dia do capítulo dePortugal na África?»A resposta a esta interrogação final do jornalista constituiusempre a grande e profética acção do Bispo da Beira. Diantedela o Prof. Dr. Adriano Moreira, homem de superior inteligênciae rara visão do mundo entende essa acção profética do bispoe presta-se a dar-lhe a mão. Porém, os coveiros, «Os Gatos»,77

crucificam o bispo e ao Professor afastam dos cargos políticos.E os abismos em que a Nação se afundava cada vez maisfundos se escavavam ao jeito de sepultura.É D. Sebastião quem profeticamente denuncia o caminhoerrado. Quaresma, Março, 1962.

77 «Tempo de Vésperas»,pg. 183, editora Sociedade de Expansão Cultural,Lx. 1971. Colectânea de magistrais, geniais artigos da sua colaboração no«Diário de Moçambique». O Sr. Prof. terá sido inspirado para escrever o quee como escreveu. Este «Os Gatos» causou mal-estar na inteligentziametropolitana e desde aqui poucos mais se publicaram no dito jornal fundadopor D. Sebastião e que e Governo matou. Dedicado «À memória de D.Sebastião de Resende, Bispo da Beira, missionário, pastor, irmão de todosos seres vivos, é dedicado este livro de crónicas, escritas para o jornalque fundou, e que também morreu.». Permita-me, Sr. Prof. Adriano Moreira,que o emende a meu jeito de entender, talvez mal, as coisas. Não morreu ojornal. Não morreu, não, que o mataram de morte lenta. E com esse assassinatopretenderam atingir de morte o seu venerando progenitor, não lhes permitindoa cegueira política ver que atingiam a cultura em Moçambique e no fundo aPátria. Era o único jornal independente. Toda a restante imprensa estava sobcontrole do grande capital e dos vários interesses económicos em Moçambique.

9.9. A consciência religiosa e política do Missionário. Ecosda sua voz de Padre do Concílio.

«Le Monde» comenta a intervenção de D. Sebastião Soaresde Resende durante a discussão do esquema 13, noConcílio. Versava ela aspectos da administração colonialportuguesa em matéria económica e socialdesignadamente. Tais assuntos, também em Moçambiquee naquele tempo, estavam sempre na sua mira crítica.Tão gritantes e visíveis que a cego e surdo somentepassariam despercebidos, quanto mais a um pastor atentoe vigilante como este bispo. Foi assim que, deCorrespondente Particular, publica este jornal francês degrande tiragem notícia sobre a sensação que nos meioscatólicos portugueses causou a intervenção do «Arcebispoda Beira» na dita sessão do concílio. Não era para menosa clareza e contundência das desassombradas palavrasque tiveram interpretação política da parte da inteliligentziaportuguesa para além da que lhe deu a autor.

Em 26.10.1968, o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa confessa aoDr. Marcelo Caetano que «Só o Diário de Moçambique» (doBispo da Beira) foge à nossa influência indirecta.» Na opiniãodo citado Adrian Hastings, o novo bispo, D. Manuel FerreiraCabral revelara-se autêntico desastre, pois, além de outrosaspectos negativos, «Vendeu o jornal «Diário deMoçambique» aos seus maiores inimigos, um grupo dehomens de negócios branco de extrema-direita comandadospor Jorge Jardim.»Havia que silenciar o grito às injustiças. Jardim é o carrasco.Ligado a Champalimau e seu grupo económico, senhor do«Notícias da Beira», vai concretizar esse velho sonho de modoa juntar ambos nas mãos do grupo. A 25 de Agosto, Jardimcomunica a M. Caetano: «Julgo que chegámos a solução aconcretizar nos primeiros dias de Setembro» de 1969.

78 Baltazar Leite Rebelo de Sousa – N. em Fafe em 1921. Médico pela Univ.de Lisboa. 1968 a 1970 Governador Geral de Moçambique; Ministro dasCorporações, Saúde, Assistência, 1970/ 73; Ministro do Ultramar, de 1973/74.79 Padre Adrian Hastings, S. J., in «Wiriyamu», pgs. 19 e 20, citado.80 «Jorge Jardim - Agente Secreto», citado, pg. 284, 285, 287, 288, de JoséFreire Antunes. Jorge Jardim esteve ligado aos negócios com Augusto de Sá,dono de grande império económico e não menor empório de imobiliário e deimporte de automóveis japoneses e empresário de camionagem. Aqui, «Doisdos seus accionistas: Almeida Santos e o Jorge Jardim que estava ajuntar uma fortuna em Moçambique e a acumular um poder desenfreado.»81 Fundado por D. Sebastião. Primeiro número sai em 24.12.1951. Em Setembrode 1969, deixa de pertencer à Diocese da Beira por compra da CompanhiaEditora de Moçambique, legalizada em 1.1.1970 e organizadas por J.J. Este,para o efeito, recebe do Banco Nacional Ultramarino o montante da compra.Finalmente, 15.3.1971, deixa de se publicar. Perante a precipitação da

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descolonização na sequência do 25 de Abril, JJ destrói quanto era do jornalsalvando-se apenas a colecção encadernada na redacção de Lourenço Marquesque a entregou à biblioteca desta cidade, à revelia da ordem de destruiçãototal. Última publicação, nº 540, 19.10.1974. Conf. «A imprensa deMoçambique», p. 192,193, 283, Ilídio Rocha, Livros do Brasil, Edit. Lx. 2000.82 Não se celebrava aniversário nenhum de «apoio», mas «do acordomissionário». Ora entre apoio e acordo há tanta diferença quanta entre ser enão ser, tanta quanto o infinito. Parece pequena, mas é muito grande. Infinito.83 Luís Vaz de Camões, «Os Lusíadas», Canto I, est. 2, verso 8.

9.10. «Diário de Moçambique» e a frenética agitaçãopsicológica dos agentes policiais

Numa clara desorientação em resultado de obsessivos receiosde perigos mesmo donde eram menos de esperar, minarammais o regime que os agentes externos. Exageros, erradopressentir mal e perigo donde menos poderia vir, suscitavaatitudes, leituras rocambolescas conducentes a ridículasarbitrariedades e a excessos de toda a ordem. Com tudo issoesfregavam as mãos os verdadeiros inimigos que do exteriormostram regozijo com tal espectáculo significativo de que ocolonialismo salazarista se estava decompondo mais poracção dos seus pretensos defensores que dos seus verdadeirosopositores. Anunciava gosozamente a rádio «Portugal Livre»:«...Referimo-nos ao conflito aberto com a proibição, emMoçambique, do «DIÁRIO DE MOÇAMBIQUE», da Beira.Este jornal foi suspenso no dia 21 de Maio (1965) por terpublicado integralmente a pastoral do Bispo da Beira D.Sebastião de Resende, lida em todas as igrejas por ocasiãodo vigésimo quinto aniversário do apoio82 missionário aPortugal pela Santa Sé. O único jornal de Moçambique quenão pertence ao Banco Nacional Ultramarino é propriedadedo bispado.Qual o motivo da suspensão?A pastoral do Bispo da Beiraao mesmo tempo que exalta a actividade dos missionáriosreconhece algumas amargas verdades que o colonialismosalazarista quer esconder a todo o custo. Critica o analfabetismoentre os africanos. Reconhece as desastrosas e irreversíveisconsequências das posições do passado e fala na falta deuma atmosfera psicologicamente receptiva entra as massase na ausência do mínimo indispensável de preparação humana.«Preparação humana»,aliás larga e claramente exposta em1951 na sua obra « O Problema da Educação em África».Problema com denodo lançado em prática num esforçohercúleo de fundar «Missões» após «Missões» dotadas aomesmo tempo do mínimo de infra-estruturas humanas emateriais no firme propósito de levar aos africanos, juntamentecom o catecismo do Evangelho e a «Cartilha Maternal»das letras dos homens e preparações profissionais próprias.Veremos mais em pormenor esta gigantesca empresa levadaa cabo não se sabe como, porque «mais do que prometiaa força humana.»83

9.11. A suspensão do «Diário de Moçambique».

Nos fins de Maio, chegou imprevistamente a Lisboa, o Bispoda Beira, D. Sebastião de Resende, para aí discutir a questãoda suspensão do seu jornal...»84

Repercussões d ip lomát icas in te rnac iona isO que se pode resumir em «pior a emenda que o soneto».Clara era a intenção limitativa do governo. Porém saía deficitárionos créditos internacionais e com menos apoios nacionais. Atroco de quê? E, afinal, por uma banalidade caturra.«Em 5 de Junho de 1965,GEORGES VANDESTRATE, CônsulGeral da Bélgica em Lourenço Marques - ao SENHOR PAUL-HENRI SPAAK, Vice-presidente do Conselho Ministro dosNegócios Estrangeiros – BRUXELAS.Pela segunda vez desde o princípio do ano, a censura exercesevícias sobre um texto episcopal. Refiro-me, com efeito, aomeu relatório de 23 de Março último no qual comunicava ainterdição de publicar o ponto 3 do comunicado final daConferência Episcopal de Moçambique, de 3 a 12 de Fevereiroúltimo, realizada nesta cidade.Tinha-vos feito notar que atribuíam aí, de uma maneira geral,ao Monsenhor Sebastião Soares de Resende, Bispo daBeira, a iniciativa de publicar um comunicado chamando aatenção do facto de que o texto redigido pela Conferênciados Bispos tinha sido truncado. Igualmente se dizia que eleera o autor da alínea censurada.De novo Monsenhor Sebastião acaba de ser visado pelaSr.a ANASTÁSIA.85 Na verdade, o texto da homilia que elepronunciou na celebração solene do 25º aniversário do AcordoMissionário86 entre o Vaticano e Portugal, foi amputado numa

84 ANTT – PIDE/DGS, Proc. de Lisboa, 3033 – CI(2), citado, doc./fl. 177. Anotícia vinha da Argélia, por essa rádi0.85 Para o leitor menos familiarizado com a linguagem críptica de então.«Anastásia», apodo por que irónica e depreciativamente se mencionava apolícia do Estado e a Censura. Por aqui se vê que estes diplomatas estrangeirosdominavam, eles também, a terminologia críptica corrente na época.86 Foram, efectivamente, em 9 de Maio de 1965, efectuadas em LourençoMarques as celebrações comemorativas do 25º aniversário do referido acordomissionário: Missa Solene na catedral por todos os Bispos de Moçambique;- Te Deum presidido por D. Custódio Alvim Pereira, Arcebispo de Moçambique.Assistindo o Governador Geral da «Província»; Sessão solene na Câmarapresidida pelo Governador Geral.. Diga-se que deveria ser o arcebispo deLourenço Marques D. Sebastião Soares de Resende e não por ser personanon grata ao Governo Central que se opôs como punição ao desafecto D.Sebastião e porque honra e lugar, na óptica policial e governativa, poderiamtrazer maiores dificuldades, pelo lugar mais cimeiro e pelo brio pessoal. Mas,por mais baixo que considerassem o cargo deste Bispo, o estatuto quenatural, paulatina e firmemente havia construído com muito sofrimentoe árduo trabalho na sua acção Humana e Evangélica pelo HomemMoçambicano tinha-o já elevado tanto que nada nem ninguém o podiaesconder, arrumar ou tornar ignorado. E, como se vê pelo simples exemplodesta carta do diplomata belga, como de todos os outros ali creditados,torna-se mais claro o nosso dito.

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alínea da conclusão, pela Comissão de Censura. Homiliapronunciada pela manhã, na catedral sob o título «MeditaçãoMissionária»... as palavras sublinhadas são as que foramamputadas...87O jornal diário «Diário de Moçambique»...publicou na suaedição de 10 de Maio o texto completo da homilia o que deuorigem a um despacho do Governador Geral, datado de 21de Maio, suspendendo este jornal durante 10 dias. Estasanção pareceu muito severa. Ela parece colocar mal,voluntariamente, as mais altas Autoridades Eclesiásticasda Província e principalmente para com os diplomatasacreditados em Moçambique.Tinha-se já ficado surpreendido ao constatar que os membrosdo corpo consular não tinham sido convidados a assistir àsmanifestações do acordo missionário, ainda que as Missõescatólicas da Província comportem numerosos padresestrangeiros.Mas dois dos nossos colegas de carreira ficaram entretantomuito admirados ao verem as suas audiências ao Arcebispode Lourenço Marques limitadas a uma duração de três aquatro minutos. Trata-se do Sr. WACNAAR , novo CônsulGeral da Holanda em Salisbúria, que acaba de receber o seu«exequatur» para Moçambique e do Sr. LUECHETTI, CônsulGeral da Itália, vindo de umas férias na Europa.A estranheza do primeiro explica-se porque ele não teve otempo material para falar com o Arcebispo sobre o assassinatode um missionário holandês, há apenas seis meses,enquanto o do meu colega italiano foi motivado pelacomparação que ele fez com as outras audiências que lhetinham sido concedidas anteriormente.Não nos pertence tirar conclusões sobre a inquietação dasAutoridades Episcopais, e basta-me assinalar a sua existênciaa fim de vos permitir fazer uma ideia melhor das condiçõesem que os missionários estrangeiros exercem oapostolado nos territórios do ultramar português.» Lisboa,Gabinete de Estudos, 15 de Junho de 1965.»88................................

87 O Cônsul faz referência ao texto que remeteu ao Governo Belga juntamentecom a sua comunicação.88 ANTT – PIDE- DGS, Proc. 3033, citado, documento 168, 169, 170. Oincómodo resultava das dificuldades em explicar aos diplomatas o assassinatodestes missionários. Corria mais ou menos veladamente que os missionários mais notoriamente activos na defesa dos direitos humanos das populaçõesnegras escravizadas pelos colonos das plantações extensivas estavam na mirade atiradores pró-situacionistas, sob a conivência, passiva pelo menos, dosrespectivos governadores de distrito. As terríveis e dizimadoras fomes, a faltade cumprimento das promessas de assistência alimentar e de outros deveres

prometidos, davam muitas razões aos missionários para ser a voz dessesabandonados. E a primeira linha é a primeira a abater. Temos, de Rio Meão,o exemplo do Padre Sílvio Moreira, S.J.89 Quaresma de 1962, in «A Voz», 23.3.1962. Mas também no citado processo3033, da PIDE-DGS, fl. 24. Refere-se, necessariamente, à invasão de Goapela União Indiana, à eclosão dos movimentos de guerrilha independentistaem Angola e a seguir em Moçambique e Guiné-Bissau; A sessões da ONU, e,quiçá, a atitudes de estrangeiros e até de nacionais cuja sanha foi ao ponto deespezinhar, sem pudor, a bandeira nacional, símbolo da sua Pátria e seu Povo.90 Luís Caldeira Lupi, Dr.,Jornalista notável e homem de letras, possuía váriascondecorações nacionais e estrangeiras. Afecto e altamente comprometidocom o regime de então, veio a falecer em Madrid em 1977, onde se homiziaralogo após o 25 de Abril. Frequentou a Escola de Agrimensura de LourençoMarques, a Universidade de Rand, Joanesburgo, África do Sul. Fundador eDirector da Agência de notícias «Lusitânia», etc.91 Aqui, é por demais clara a intencional confusão entre «interesses da Pátria»e os interesses de patriotas, cuja pátria não ultrapassava as fronteiras do seuestômago, do seu bolso ou do seu cofre.92 ANTT – Arq. da PIDE-DGS, Processo citado, fl. 215, em papel timbrado do«Diário de Moçambique», delegação – rua Rodrigues de Sampaio, 21, 4º, D,Tel. 734671, Lisboa. As citações encontram-se inseridas na carta dirigida a D.

10. D. Sebastião Missionário Civilizador

10.1 Apelo a uma cruzada de todos os portugueses «Nestaquaresma da Nação.» Revolução Cultural.

«Quaresma é tempo cristão de reflexão, de retractação, naesperança de uma Vida Nova Ressuscitada no Homem Novo,Jesus Cristo Ressuscitado. Tem percursos, obedece aprocedimentos. «Esta é a nossa Quaresma e há-de ser tambéma Quaresma da Nação, que começou a subir a encostaíngreme de um calvário doloroso que parece estar aindaem curso... nenhum português ignora hoje que, há poucomais de um ano a esta parte, o nosso País há suportadoem parcelas de seus territórios, na extensão dos mares comunse em regiões estranhas, revezes, deturpações, violências,insultos e morticínios.»«É indubitável que a Nação começou a subir a encostaíngreme de um calvário doloroso que parece estar aindaem curso...De resto, quando observo que se lançam tantasobras para público, que nos seus fins se irão justapor, senãosobrepor ou opor a outras já existentes, receio que sejamobras a mais para se verificarem resultados a menos...» Nocitado «Diário».Iniludível a realidade que o circundava. Impossível calar-seesta voz da verdade duma consciência não hipotecada aqualquer valor fora de Deus e do Homem. Nesta Verdade,levava os comprometidos com as gritantes e despudoradasinjustiças a reconhecer « claramente que era voz quecompromete os interesses da Pátria em Moçambique» e daío desplante de o considerarem «um punhal cravado no coraçãode Moçambique.» Entendia Luís Lupi90 ser « antipatrióticotudo quanto fosse fomentar insatisfação ou reivindicações91

dos pretos.»92

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Sebastião para o informar do que dele pensa e diz Luís Lupi, jornalista ehomem das letras profundamente afecto ao regime de então.93 Silva Cunha, Prof. Dr., Catedrático e político português n. em 1920 emSanto Tirso. Formado em Ciências Jurídicas e Poiítico-Económicas pela Univ.de Lx.. Entre muitos cargos públicos sobraçou a pasta do Ultramar, 1965/73;Defesa Nacional, 1973/74. Prof. e Reitor da Universidade Portucalense, Porto.94 ANTT – PIDE – DGS, Proc. 3033, citado, fl. 215.95 Jorge Jardim – Agente Secreto, de José Freire Antunes, p. 92, citado.96 «Servir Moçambique», pg. 57, de Jorge Jardim. «Para tudo era o Jardim.Ele entrava na PIDE e o inspector punha-se em sentido. Se alguémprecisava de um documento carimbado, ele entrava na PIDE e ia buscaro carimbo.» Manuel do Amaral Ferro. In «JJ - Agente Secreto», p. 102, citado.97 A forma de agir peculiar; .... status quo: as formas primeiras ou primitivas.

E precisamente porque a sua discordância da política seguidistadesta linha era pública e notória, público e notório D. Sebastiãonão apresentar cumprimentos ao Prof. Dr. JoaquimMoreira da Silva Cunha quando nomeado Ministro doUltramar. Tanto mais notória quanto certo ter sido o únicoBispo de Moçambique a não fazê-lo.Mas como e quem podia calar a voz desta «singular figurada Igreja Católica»?Na sua notável acção missionária em Moçambique publicacartas pastorais marcadas pela frontal abordagem dosproblemas políticos e sociais que gravemente afectavam avida do indígena africano. Daí tornar-se Bispo incómodo paraos servidores do Estado Novo que à sua sombra iamacumulando rápidas fortunas à custa da mão de obra escravado negro. Nessa traição à sua consciência de Homem defensordos oprimidos e de libertador de todos os jugos redutores daPessoa Humana à luz da Pessoa de Jesus Cristo, nãoembarcava este Bispo, que lutava em todas as frentes, inclusona do ensino.Em 1955, decidido o Governo criar o Liceu da Beira, JorgeJardim elogiou, na então Assembleia Nacional, o papelenérgico, « a dedicada e persistente acção do Sr. D.Sebastião de Resende, a quem Portugal tanto deve nasua obra civilizadora desta nossa África.»Daí o conflito entre «União Nacional» e «Diário deMoçambique»14.5.1956 gerado por «gente reles».Mas em 1.12.1957:Necessário «outro 1 de Dez., para libertar Moçambique dacanalha do Ministério do Ultramar a começar pelo MinistroVentura. Quem lhe fará como ao Miguel de Vasconcelos!»Mas o modus operandi97 episcopal vinha-se tornando cadavez mais notório e difícil de deglutir pelos devotos do statusquo, para quem, quanto mais primitivismo tanto mais presaspassivas se tornariam os nativos.

Mas nisso não consentia o Pastor atento, em cujo coraçãoque não há enjeitados. E mais uma frente de luta se abria.Por isso se vinha destacando a sua acção pastoral dirigidatoda ela também na defesa da escolaridade sem excepções,na «defesa intransigente dos missionários e das missões,pela promoção das condições sociais das populações», cujaalfabetização lhe era dificultada. Nela estavam todas, semexcepção alguma de cores e de credos, que por isso oveneravam, como ficou provado pela presença deles emmassa na morte.Era urgente libertar e a esse fim se chegaria «pela denúnciadas injustiças e violências perpetradas pelas autoridades epela liberdade da Igreja diante do Estado Novo.»98

Perante tal quadro histórico e de outros muitos mais elementos,explícitos uns, implícitos outros, que neste trabalho o leitorpode encontrar, não poderia durar muito este estado de graçamuito solapado já em 1955. Mas já em 1944 se adivinhava.De facto as coisas azedaram precisamente a propósito destasua batalha educacional centrado o azedume no «caso doLiceu da Beira» a que outros casos graves se adicionaram,donde avulta a suspensão do seu jornal «Diário deMoçambique» por mais de uma vez, uma delas por dez dias,em sua vida, e por um mês logo depois da sua morte. Comtudo isso pretendiam os poderes instituídos atingir o próprioBispo que não consentia calar dezenas de criminososassassinatos e vis explorações humanas.Feria-o no mais fundo até à medula dos seus ossos aquelemacabro conceito, mas corrente, «mais preto menos preto»,cuja morte até a lei permitia fosse compensada pelo culpadoa troco de meia dúzia de vinténs. O Bispo sabia, não calava.

98 Nuno Queirós de Andrade, «Memórias do Arcebispo» D. Eurico D. Nogueira,Luís Rebelo, editorial Notícias, p. 14

D. Gonçalo da Silveira,missionário mártir, patronodo Colégio de D. Sebastião

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10.2 O Caso Colégio «Liceu da Beira»

Tinha o Ministro do Ultramar, Raul Ventura,99 prometido a D.Sebastião construir o Colégio Marista na Beira. Fiado napalavra do Ministro, D. Sebastião envida todos os esforçosde modo a dotar a cidade de um estabelecimento de ensinoliceal de garantida qualidade e nível educacional para ajuventude. Compromete-se com a Congregação e com apreparação de outros meios em que empenha a sua palavra.Com esse e outros objectivos andava o bispo pela Américado Norte, angariando boas vontades. Aí se encontra com oentão senador John Kennedy,100 mais tarde presidente dosEUA assassinado em Dallas.

Nesse périplo encontra-se também com o Cardeal Arcebispode Nova York, Fulton Sheen,101 tendo passado ao Brasilonde galhardamente foi recebido pela Academia Brasileiraque lhe prestou calorosa, fraterna e significativa homenagem.

99 Raul Ventura, nasceu em Lisboa em 1919, em cuja Universidade se formoue foi Professor Catedrático de Direito . Ministro das Colónias desde 1955.100 O primeiro presidente católico dos EUA. De família originária da Irlanda.Assassinado em Dalas em 1963.101 JohnFulton Sheen- Cardeal Arcebispo de Nova York, E UA. Culto einteligente, escritor e pregador. Doutorado em Teologia, Direito Canónico eFilosofia. Autor de obras literárias notáveis. Lutador contra o comunismo ateu.

D. Sebastião e o célebre Cardeal Arcebispo de Nova York, Fulton Sheen

Mas o Ministro e o governo esquecem a promessa e resolvem-se por liceu público. D. Sebastião, na sua pastoral de 1957,acusa o ministro de falta de carácter e recusa-se a recebê-lo na visita do presidente da República, Craveiro Lopes, emvisita oficial a terras de Moçambique. Salazar tenta defendero Governo, o caso assume foros de escândalo, difunde-senos areópagos internacionais e chega ao debate nas própriasNações Unidas. A intranquilidade política instalada emMoçambique entre a população branca agudiza-se com acandidatura de Humberto Delgado. Aí aparece Jorge Jardim,na sua vida de duplo. Antes muito «amigo» do bispo, mas embreve se desmascara, ao arvorar-se «guerrilheiro» contra asestruturas da Igreja Católica mais interessada na sua verdadeiramissão de evangelizadora que agente político chauvinista à

Edifício Marista

D. Sebastião e o Senador John Kennedy.

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maneira deste duplo jardim. E, assim, o principal visado pelaacção deste valdevinos português em Moçambique tinha deser, exactamente, D. Sebastião, a quem move o mais aceradoe sistemático cerco de ataques não olhando a meios nem amétodos. Aliás de harmonia com a sua heterodoxa vida privadaque não lhe permitia outro comportamento.

Mas, tanto D. Sebastião como os seus auxiliares missionáriosnão estavam interessados tanto no domínio português emÁfrica, que não era essa a razão da sua presença ali, quantoem prestar assistência humana e cristã aos seus irmãos emCristo, numa atitude supranacional, ainda que tais sentimentosnão extensíveis a outros bispos de Moçambique.102 Estavaali em nome da «Libertação»de muitas cadeias a que seencontravam acorrentados os indígenas e outros, mesmobrancos. Libertação da ignorância e do paganismo; doesclavagismo e da opressão; do pecado e da morte, em quea maior parte, principalmente o Negro se encontrava. Libertaçãode todas as debilidades que o pudessem tornar presa fácil davil e desenfreada exploração laboral, social e moral.A Igreja Católica,através do Bispo e dos seus missionários,era a voz dos oprimidos que se erguia no meio do ensurdecedorbarulho da ânsia de enriquecimento fácil e sôfrego. A maiorparte dos missionários era estrangeira, sem o travão denacionalismos inconsequentes. Daí agudizar-se a dificuldadeexponencial em o Governo admitir, sobretudo nas missõesda Beira, a entrada de Missionários estrangeiros, principalmentealemães, belgas, espanhóis e italianos cujo afluxo aumentoucom D. Sebastião que não descansava dia e noite em prover

102 «Wiryamu», de Adrian Hastings, Porto, Afrontamento editora, 1974, pg.19. Padre Hastings, crítico da política portuguesa em África, faz rebentar em1973 o escândalo de Wiriyamu.

missões carenciadas e as novas criadas a um impressionanteritmo, só concebível num Homem da sua estatura Missionária.Porém pela frente encontrava um Governo apostado a entravaro sucesso dessa acção que os pobres negros acolhiam comoquem acolhe a Luz que liberta.Daí o Missionário D. Sebastião, aos olhos míopes do Governo,perfilava-se-lhe figura assustadora, naturalmente potenciadapelos olhos da PIDE e dos próprios governadores gerais elocais. E a má consciência gerava fantasmas nessas cabeçaspovoadas de medos infundados.

11. D. Sebastião, a Beira; o algodão e o paradigma daexploração humana

Um dos grandes admiradores do bispo libertador, já desde ostempos de estudantina de Coimbra foi António de AlmeidaSantos, um beirão do conc. de Seia, integrante do OrfeãoAcadémico de Coimbra. Numa passagem pela Beira tornava-se obrigatória uma audiência com o seu bispo tanto mais quechegavam à cidade universitária notícias dos conflitos entregoverno e bispo que o convidou para almoçar com ele. «Falou-me durante horas da emancipação de África. Eu vim delá deslumbrado.»103

A lei subiu depois a multa para cinco contos de réis, até aí2 e meio, por matar um preto e não aumentou mais. Mastudo, por algum exagero que possa conter, não foge muito doque deixou transparecer o jornalista jesuíta que, entrevistadoD. Sebastião, nos deixou a impressiva imagem da camionetade carga aos solavancos naquelas picadas cheia de pretosmaltrapilhas forçados ao trabalho principalmente nas plantaçõesde algodão. E o bispo tinha, - não podia deixar de ter -, o seucoração paterno bem fixo nesta desgraçada carne para canhão.Em 7.11.1943, a caminho da sua diocese da Beira, desembarcaem S. Tomé onde o navio faz escala: «Ouvi dizer que dão aosnativos 3$00 por mês,´104 se não lhes dão mais nada, istoé um roubo que brada ao céu e clama vingança a Deus.»

103 António de Almeida Santos, entrevista, in «Jorge Jardim – AgenteSecreto», p. 95, autor citado. Activo elemento do MUD, na eminência de prisão,para Moçambique se muda, findo o curso de direito, e aqui faz o estágio.104 Era quanto na terra do autor se pagava a uma trabalhadora rural, por umatarde de serviço e a seco.

D. Sebastião à direita e Marcelo Caetano ao centro

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Tráfico de escravos para plantações e outros trabalhos agrícolas e fabris

Na verdade, já dessa primeira passagem por Moçambique asua consciência social ficara aturdida com o que AlmeidaSantos também observa:«Vi pretos a trabalhar com uma bola de ferro ligada aostornozelos, vi pretos ligados por arames de ferro aopescoço para irem para as minas da África do Sul.»Advertido um condutor que ia atropelando um negro narua responde-lhe com a maior das calmas: «Não sabe?A multa para quem mate um preto num acidente de viaçãosão dois contos e quinhentos».105

Se da Beira não ia lá o pastor, vinham à Beira os missionáriose as suas cartas aflitivas, dum realismo aterrador.«Ex.mo Senhor Bispo,a área de Chemba... sabe da fomeque ainda hoje se faz sentir, terrível para toda a gente. Anossa Missão sofre disso e não pouco. A frequência nascatequeses está reduzida ao mínimo. O P.e Fogué foi ontem a uma escola a 12 quilómetros. Andou lá a visitar as povoaçõese depois de 2 horas conseguiu ter 5 crianças presentes.Eu fui a uma outra escola e não chegou ninguém. O catequistatinha andado no dia anterior depois do serviço dominical porquase todas as povoações porque tinham chegado só 6,quando costumam chegar dezenas de pessoas... todosrespondem da mesma maneira: «não temos força parachegar até lá». bastantes cristãos faltam nos Domingos àSanta Missa por causa disso... Há muita gente que comesó folhas e até palha.106 É como dizem, como as cabras.

105 António de Almeida Santos, entrevista inserta na obra citada, p. 96. EmMoçambique advoga até à descolonização.106 Esta «palha» é o capim, gramínea espontânea em África por todo o lado.De espique alto, duro e indigesto, até para os simples animais.

Só uma diferença, estas estão acostumadas, nós não. Quantascrianças têm morrido por causa desta fome. Uma criançanão tem barriga forte como um homem. Quantas apanharamdoenças de barriga e morreram por causa destas doenças...fala-se de uma grande fome desde Abril (de 1964), (agora2.2.1965). ...ninguém tem feito nada só quando já for muitotarde...Ficou determinado que o Instituto do Algodão iria dar milhode empréstimo aos agricultores de algodão. Mas já toda agente é agricultor de algodão? É uma maneira de obrigartoda a gente a cultivar algodão, uma nova edição da antigaprática. Os que não cultivam algodão também têm fome...É certo que depois de muita insistência (dos Missionários) sedistribuiu milho aos outros, mas só nalguns lugares e no fimda primeira distribuição, que devia ser já a quarta... ecomeçar no princípio de Dezembro (tempo das chuvas).Depois estavam previstos 30.000 sacos e só vieram uns10.000. Depois não havia meio de avançar com o mau tempoe a situação das «estradas». Ficou tudo parado...Que misériatudo junto. Se tivessem ouvido as informações recebidas deChemba, podiam ter mandado aquela ajuda em Outubro ouNovembro... Mas quem vive na cidade não sabe o que éestar no mato... Se não tomam providências esta gente daquivai ficar miserável para sempre, material e espiritualmente...Temos ajudado esta gente que está contente porque lhespagamos e já têm para comer. De manhã cedo antes das 6horas já muita gente, mais de 100 homens e mulheres, estavanos nossos campos e ao meio dia estava tudo limpo. Masnos campos deles há ainda muita palha porque não têm forçapara limpar a palha que estraga o milho e a mapira.107

Campos abandonados, fome, pessoas a andar comoesqueletos, capoeiras vazias, cabras todas vendidas a preçoridículo. Galinhas a um escudo, cabras grandes a 10 e 15escudos, e nem sempre conseguem vendê-las....Miséria!!!!Grande!!!!.( ...).Se pudéssemos começar uma cooperativa agrícola, seriaqualquer coisa dentro das nossas possibilidades. No seu lugarmais alto com certeza poderá fazer mais do que nós....Muitos cumprimentos dos seus missionários muito aflitospor serem incapazes de fazer mais para a gente daqui.Padre Walter van der Hout.»108

Mas que «estômago» suportaria, ao ver, ouvir, saber desgraçastão pungentes? Que outro caminho seguir de tranquilaconsciência quando a dor é profunda?

107 Gramínea, espécie de sorgo, robusta e semelhante ao milho, muito cultivadaem África, da qual se obtém farinha, mas também forragens e bebida alcoólica,denominada «macau», por dali ter sido importado o processo de fabrico. EmMoçambique é «mapira». Em Angola é «massambala».108 ANTT – Arquivos da PIDE-DGS, processo citado, fl. 255 e 256

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Mas como poderia calar-se o Bispo, fazendo de conta:

Quando lhe chegavam cartas dos missionários disseminadospelos matos falando de homens acorrentados obrigados acultivar e a trabalhar no algodão pago a preços de misériaimpostos pelos grandes senhores dessa monocultura?Quando as secas «comiam» as pobres culturas menos quede subsistência dos nativos?Quando as crianças e adultos deixavam vazias as escolas eas catequeses porque nem força encontravam para se levantardas esteiras e fazer caminhadas, tanta a fome e a fraqueza,muitas aparentando mais esqueletos de barrigas inchadasque gente?Quando os missionários tinham que inventar trabalhos epagar a estes desgraçados para terem um pouco mais paraadquirir com que vencer o último assalto da morte?Quando, assanhados os colonos tomando à conta deconcorrência desleal da Missão, se vingavam na mais baixae soez calúnia, porque os missionários pagavam trabalhos eprodutos pelo que mandava a lei?Quando o milho prometido não chegava, (denuncia omissionário do mato) e quando chegava vinha reduzido a umterço ou quarto do combinado, escasso este já para asnecessidades, com a agravante de deixarem para as chuvaso envio, agravante que os encharcados e intransitáveis trilhoscom os rios entretanto formados pelas chuvas aumentavamainda mais? Indescritível o quadro da miséria, da fome e dasmortes de crianças e velhos.Quando, diz o missionário, quem está refastelado na poltronada cidade se está marimbando para quem no mato não temnem migalha que mate fome e sofrimento que lentos o matam?Leitor, o autor não está inventando. Diz o que viu na muitadocumentação e alguns testemunhos de quem esteve metidonestes fogos e também se chamuscou. Documentos na PIDE,que responsáveis denunciados não investigava ela.

12. Respigando outros assuntos no processo de D.Sebastião, na PIDE – DGS109

12.1. Acervo de documentos acumulados sem indexação

109 Este processo compõe-se de 4 partes consoante a procedência dasdelegações da PIDE. Assim: 1 – Proc. 3033, CI (2), NT - 7245, com 397documentos não indexados cronológica e alfabeticamente. Serviços Centrais,Lx.. 2 – PI 26074, Cx. 3892, 55 docs., Delegação do Porto. 3. Proc. 34542,NT 4833, Delegação de Coimbra, um doc.. 4. NT 1140, - PR 1273, cx. 1186,Delegação de Angola, um doc.. – Incluímos aqui o que, por conveniência doassunto, não foi integrado em qualquer outro item deste trabalho e para quedo processo tenha o leitor uma visão mais alargada.

cronológica nem de assunto. Folhas atrás de folhas, denatureza e proveniência vária. Cartas do próprio e de outrosobtidas porque interceptadas ou por espias, amigos, duplos.Há cartas oficiais e não oficiais, anónimas algumas, assinadasuma; telegramas entre as delegações da polícia a solicitarurgências de vigia, de informações, a dar ordens de seguimentodos seus passos, identificação das entidades que o visitavam,com quem entrava e saía, visitas a instituições, hospitais,transportes: aviões, carros particulares e de praça e respectivasmatrículas, residências, os proprietários, a entrada e saídadelas, as horas escrupulosamente anotadas acompanhadasde pormenorizadas observações, pastas recebidas, suaconsulta já no carro, se mais ou menos volumosas, se vinhaou não à porta despedir-se das personalidades visitantes comseus nomes e acompanhantes, sua qualidade e estado. Nãoescapam a tão apertada vigilância, a Nunciatura, Bispos epadres, nobres e plebeus, novos e velhos, hospitais, apresidência do Conselho; há artigos seus e alheios em recortesde jornais, nacionais e estrangeiros, agências noticiosas,descrição dos caminhos e ambientes. Tudo, mas tudoimpressionantemente passado a pente fino.Se o leitor já viu um filme policial, não encontrará tanta minúciaquanta se vê das tais folhas.Há aqui e além mudanças de cenário, de personagens, o quefica impressivamente gravado é o obsessivo seguimento,passo a passo, momento a momento, circunstância acircunstância. Claro que está incompleto porque falta o arquivoda Delegação de Moçambique. E quem nos diz que ele nãose encontrará em Moscovo? Se outros da Delegação Centralde Lisboa, depois do 25 de Abril, lá foram parar... é lícitopensar que esses tivessem fugido para Moscovo escondendo-se nos ficheiros secretos do KGB. Se com outros, de fontesegura, aconteceu...

12.2. Uma carta interceptada«Diocese da Beira, 14.11.1958- «Meu Ex.mo Amigo Sr. D.António110

Já há muito que andava para lhe escrever. Mas a vida ocupadae os dias a correrem uns atrás dos outros sem pararemempurraram-me até hoje. » Escreve a mostrar-lhe solidariedade

110 D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, então a braços com o incidentede carta depreciativa da política do Chefe do Governo, a qual esteve na basedo seu exílio forçado. Este foi diplomaticamente conduzido, avisando-o alguém«saia tranquilamente, não volte, serão menores os sarilhos», isto para evitarmaior celeuma entre os do regime. Passa o exílio de 10 anos em Espanha,1959/69, por isso a seguir ao da referida carta, início da chamada «primaveramarcelista» iniciada com a morte de Salazar a quem sucedeu Marcelo Caetano.

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111Leia-se Salazar com o qual se havia encontrado tempos antes para tratarde assuntos de discordância com a política ultramarina em geral e em particularem Moçambique e ainda a suspensão por 10 dias do seu «Diário...».112 O Núncio Apostólico em Lisboa, de 1953/59, Monsenhor Fernando Cento.

porque já fervia a caldeira política, a carta em causa saiu apúblico e não era para sair. Fala-lhe do « descompromissoda Igreja em Portugal para com o regime» e por isso acha acarta de D. António « verdadeira, actual, e necessária eoportuna... conte comigo. É claro que eu cá estou maisamarrado que o meu amigo aí, porque a Diocese recebe ossubsídios do Estado!(...) Bem sei que não precisa dos meus conselhos, como jápassei por um semelhante, tenho alguma experiência. Ochefe111 é manhoso e terrível... A acusação para o Sr. Núncioa meu respeito foi indecente... Depois o Sr. Núncio112 revelou-se para mim o que nunca supus que fosse possível: nem caradireita nem dignidade nem nada. Pôs de lado o objectivo daquestão, que nem sequer entendeu, e pôs-se do lado opostoincondicionalmente. Valeu-me a graça de Deus que com omeu feitio especial me pôs para a frente. Rezei muito e mediteie verifiquei quão diferente é ter propósitos de humildadee ser humilde...Com afectuosos cumprimentos e com umabraço fraternal em Cristo. A) Sebastião Resende».

13. O testamento da sua pobreza material imagem deespírito superior

13.1. O Testamento

Tão simples quanto o seu autor. Testamento espiritual, de Fé,de Missionário, de Apóstolo que parte sem bordão, nem saco,nem sandálias, nem alimento, confiado na providência e àimitação do «Filho do Homem que não tem pedra para reclinara cabeça, menos que as aves que têm árvores onde pousar,e que as feras dos montes que têm cavernas onde se abrigar.»

Pede perdão de várias formas a todos e agradece acolaboração missionária no reino de Deus.

13.2. A pobreza, irmã do Bispo

Bens materiais não tem, e o que tem, vejamos:«Quanto a bens materiais, nada tenho a dispor, porquenada possuo. Os bens de família há muito que me desfizdeles; os bens que, porventura, da Igreja ou por motivoda Igreja haja recebido, são exclusivamente para a Igreja,sem tolerância de outra partilha.Resta-me agora tão somente oferecer a vida a Deus pelasalvação minha e da Diocese... aceitando a SantíssimaVontade de Deus, quanto à minha morte, para aquele diae daquele modo que mais aprouver ao Senhor....»«O meu enterro será ... simplicíssimo. Gostaria que, emalgum trajecto, cristãos africanos pegassem ao meucaixão.... Em simples campa rasa e com uma pequenapedra por cima, em que se inscreva somente:« SEBASTIÃOPRIMEIRO BISPO DA BEIRA» , aí ficarei e aí esperarei aressurreição da carne para o Juízo final. Beira, Festa deNossa Senhora de Lurdes, 11 de Fevereiro de 1966.+SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE, Bispo da Beira.»113

Aquele quarto de moribundo fora sempre o seu quarto.Mesmo oferecido, o ar condicionado estava inutilizado pornão utilizado para não ser o único compartimento da casa ater o que os outros não podiam ter porque não havia dinheiro.E o bispo não queria ser o único, e não se sentiria bem,diferenciado. Entremos nele pela mão do jornalistaimpressionado que o fixou:«Austero, grande, desolado de qualquer peça de comodidade... aquelas mãos brancas emergindo do branco dos lençóisperdidas a encherem aquele quarto enorme... No leito simplesquase pobre, de madeira escura, imóvel, concentrado, osolhos semicerrados. Do corpo magro coberto com simpleslençol, emergiam apenas as mãos segurando um crucifixo eo rosto pálido onde os dois grandes olhos se viraram paranós, faziam um contraste fascinante. O quarto à volta era desimplicidade chocante. Apenas um móvel de madeira lisa,uma mesa e uma cadeira. Orava quando entrámos, orandoficou quando saímos...»114

113 Os excertos do testamento manuscrito pelo sr. Bispo da Beira, testamentoaberto, por indicação do próprio, após o falecimento, estava fechado numenvelope sobre que se via escrito de seu próprio punho a palavra «Testamento»,de que se apresenta fac-símile. Não o transcrevemos na íntegra pelas razõesconstantes do nosso texto.114 «Diário de Moçambique», 26.01.1967. reportagem não assinada.

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Aquele lençol que o cobria tinha uma particularidade maisum dos fios da história que se juntam com seu quê demisterioso, ou talvez não. Aquele lençol apresentava bordadasas letras «BB». Quem as bordara havia sido a mãe, para ofilho «B»ispo da «B»eira. Relata o jornalista que o filho «bispoapalpava as letras que a mãe bordara» com carinho materno.Era o filho acariciando na Terra a face materna antes decom ela se encontrar no Céu. A História apresenta tantosfios entrelaçados na vida que ela tece!E, ali, estava esperando sair do mundo quem sempre fora«Vigoroso como um atleta, simples como uma criança»115

14. Notas Soltas Complementares

14.1. D. António Ribeiro sucessor de D. Sebastião

Após o falecimento de D. Sebastião, a Sé da Beira tinha deser provida de um novo bispo que estivesse à altura dofalecido. Quem esteve indigitado pela Santa Sé para suceder«ao defensor da dignidade e dos direitos dos africanos» foiD. António Ribeiro que veio a ser Cardeal Patriarca de Lisboa.Salazar impediu que se consumasse o projecto.116

14.2. D. Sebastião Arcebispo de Braga117 1963

E não foi nomeado em 1963, para suceder a D. AntónioMartins Júnior, porque Salazar se opôs. Não suportaria oestadista a afronta do prémio a quem ousou enfrentá-lo eafrontá-lo de novo em 14.11.1958, ao escrever a D. Antóniouma carta apreendida pela PIDE onde o incita a prosseguiro caminho que estava trilhando e em que está desembocandoo seu caso. Ali, ao mesmo tempo incondicionalmente sesolidariza predispondo-se para o que precisasse.118 Damesma fonte consta o seu nome censurado para arcebispode Lourenço Marques e por idênticos motivos. Tanto quantonos parece, D. António só começa a ser seguido de formasistemática pela PIDE a partir da célebre carta de 1958 e queo levaria ao exílio.119

Ora, tal situação, a nosso fundamentado parecer, já antes de1944, se verificaria com D. Sebastião o ser alvo de qualquerronda, por qualquer razão que não revela. Efectivamente, em20 de Março de 1944, a quatro meses de bispo efectivo daBeira, regista no citado seu «Diário» : «Recebi uma carta dePortugal, pelo correio, e passou sem censura. Está paraacontecer alguma coisa de notável!!!»

14.3. D. António Discípulo de D. Sebastião?

Ambos nascem no mesmo ano, D. António em 10.5.1906, D.Sebastião em 14.6.1906. Mas em pontos opostos da diocesedo Porto. Um, em Milhundos, Penafiel; o outro, em Milheirósde Poiares, Feira. D. António ingressa no Seminário um anomais cedo que D. Sebastião, determinando a circunstânciaque um andasse atrás do outro em missões e ordenação, idapara Roma, doutoramento, direcção do Seminário, canonicato.Claro, nota não de todo despicienda, o novel presbítero AntónioF. Gomes tinha já apoio no tio reitor do Seminário e cónegoJoaquim Ferreira Gomes, o que facilitava, além de lhe servirde luzes para uma definição mais precoce do seu futuro. D.Sebastião andou um ano buscando essa definição, faltavam-

115 «Diário de Moçambique», 26.01.1967. Mons. Ferreira da Silva.116 «O Bispo Controverso – D. António...», Pacheco de Andrade, cit. p. 24.117 «Profecia e Liberdade em D. António Ferreira Gomes» – José Barreto,Actas do Simpósio em 30.09.1998 e 1 e 2.10.1998 – Fundação CalousteGulbenkiam). In «O Bispo controverso»? citado, pg. 124. 1963, ano da mortede D. António Bento Martins Júnior, arcebispo de Braga, a quem sucedeu D.Francisco Maria da Silva.118 A carta aqui referida faz parte dos documentos do processo da PIDE citadosjá acima directamente do mesmo processo.

119 A carta em causa vinha em gestação desde 1955, a três anos da suamudança de bispo de Portalegre para Porto. Já trazia sementes de Portalegre.Mas a agudização dos graves problemas do que «chamava miséria imerecidado pobre povo das nossas aldeias» forneceram-lhe substância, acordaram asua inteligência, moveram o seu coração para essas realidades gritantes queo autor conheceu de perto quando tratava com hospitais e prisões militares.D. António acabou por se exilar em Espanha em 23.6.1959. A carta, pode o leito encontrá-la na obra citada, pg. 92 e segs.«O Bispo Controverso», dePacheco de Andrade.

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lhe estas referências directas, estava só, depois de definidaa situação, valia por ele próprio. Ninguém na retaguarda, paraalém do seu valor pessoal ido daquele beco de Milheirós edo seu Anjo da Guarda. Não tem o autor qualquer objectivo,por longínquo que seja, minimizar o extraordinário valor deD. António, mas tão somente valorizar o mérito de D. Sebastião,colocando em paralelo visível o historicamente justo, quandojusto é dar o seu a seu dono, isto é, colocar cada coisa nolugar que lhe é dado por direito próprio.Em termos de nomeação para bispo, D. António, de Portalegre,só em 15 de Janeiro de 1948. D. Sebastião, se bementendemos as entrelinhas da sua história, já em 1940, seriabispo «in pectore»120 e viu a sua nomeação protelada portrês anos por ainda «muito novinho». Só em Abril de 1943é nomeado bispo da Beira. Parece-nos não ser apenas aidade a causa do atraso. Talvez não estejamos longe darealidade se pensar se não haveria ali de permeio coisa dePIDE. Considere o leitor o final do 2., junte-o a outros fios etalvez lhe venha no mínimo uma desconfiança. Se de 1958data a história das voltas de D. António com A PIDE, a de D.Sebastião antecede-lhe no mínimo 14 anos, 1944, pelasrazões acima ditas.

14.4. D. António Barroso, D. Sebastião, D. António, trêsbispos, dois regimes.

14.4.1. D. António Barroso visto por D. António GomesD. António Barroso, de Remelhe, Barcelos, na palavra deD. António F. Gomes: «Era grande o sacerdote missionário,oficialmente considerado “digno entre os dignos”; mas foimaior o Bispo do Porto, enxovalhado na Sala dos Capelos,por ter defendido a liberdade de Associação religiosa numamonarquia liberal e fidelíssima, e mais tarde citado acomparecer perante um tribunal constituído na própria casado ministro da Justiça,121 e oferecido antes às vaias dapopulaça convocada e estimulada para o insultar, e istopor motivo do exercício legítimo da sua jurisdição episcopal.Através das ruas de Lisboa, mantendo as cortinas do carrobem descerradas e encarando serenamente a plebe ululante“esse sacerdote vindo do verdadeiro povo, que a escória,na sua pessoa enxovalhava” (como escreveu um jornalistado tempo), a seguir “destituído” por decreto “das suasfunções de bispo e governador da diocese do Porto”, eperegrinando de terra em terra, sob a guarda de um alferes,com a proibição de voltar a qualquer ponto do território dasua diocese, ele entrou de pleno direito na galeria dosCrisóstomos, Tomás Becket e dos Fisher, antes dosMindszenty122 e Stepinac.123 História de ontem, de hoje ede sempre.»124

Júlio Dantas,depois de o ter visitado, impressionado comtanta simplicidade:«como o poder da Igreja seria ainda hojeformidável, medissem-se por esta craveira moral todos osseus ministros!»125 «É talvez mais ainda como Bispo esmoler,Bispo da bondade e da caridade, que a sua memória perdurae é abençoada na diocese do Porto.»126 Acrescenta D. António.D. Sebastião viveu ainda no seu tempo.

120 «in pectore», isto é, em segredo, na mente de alguém que ainda nãorevelou o que lhe vai no pensamento.

121 Tribunal reunido na própria casa de Afonso Costa, então o Ministro daJustiça, republicana. Quem haveria de ser?122 Josph Mindszenty(.1892-1975) opôs-se ao ensino ateu comunista. Presopor eles (1948) condenado a trabalhos forçados perpétuos em Fev de 1949.Libertado 1955, colocado em residência vigiada. Libertado em Outubro de 1956,refugia-se na embaixada dos EUA, que deixa em 1971. Que democratas!...123 D. António Ferreira Gomessofreu na pele o exílio por perseguição políticade Salazar. E apresenta outras figuras paradigmáticas vítimas de outros inimigosda Liberdade: os bárbaros, ontem; o comunismo marxista-leninista, nos temposmodernos, hoje; um, cardeal da Hungria e o outro arcebispo de Zagreb,respectivamente. Mons. Aloysius Stepinac (1898-1960) arcebispo de Zagreb,Jugoslávia, preso pelos comunistas por 16 anos, libertado em Dezembro de1951, cardeal em 1953, o que levou a Jugoslávia Marxista a pôr-se de candeiasàs avessas com o Vaticano.124 «Endireitai as Veredas do Senhor», pgs. 84 e 85, de D. António FerreiraGomes, Livraria Figueirinhas, Porto.125 «Espadas e Rosas», Júlio Dantas, citado por Caetano A . Pacheco deAndrade, in «O Bispo controverso», pg. 48.126 «Endireitai as Veredas do Senhor», citado, p. 85.

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D. Sebastião

14.4.2. Nas horas cruciais

D. Sebastião passara por horas amargas. Tem conhecimentodo transe por que D. António está passando. Mal com El-Reipor causa do Povo.Escreve a este na hora difícil por que passa em consequênciada carta a Salazar a qual denunciava a miséria imerecida dopovo simples das nossas aldeias. Mostra-lhe a sua adminração,encoraja-o e coloca-se à sua inteira disposição para o queentender útil. A carta foi-lhe caçada pela polícia política. Fomosencontrá-la copiada nos referidos documentos. Para nãocomplicar mais a vida ao amigo e a sua própria, não seconhecem contactos abertos e frequentes entre ambos, comoforma de fuga à ronda da polícia. Nem mesmo no decorrerda presença de ambos no concílio, alojados que estavam emcasas diferentes.

14.4.3. D. Sebastião, ele próprio acima, no texto

15. D. Sebastião e as vozes de quadrantes vários.

15.1 – o Dr. Gilberto Freyre, escritor e sociólogo brasileirode renome que visitou a Beira. Falámos de missões e demissionários estrangeiros e do seu papel brilhante em proldas províncias Ultramarinas.» 14.1.1952. «Diário» citado.Daqui:Gilberto Freyre dá-nos em traços rápidos e simples o esboçoliterário da visão do Homem, do Bispo, do Intelectual, doMissionário, do Português - D. Sebastião Soares de Resende.«Manica e Sofala,» (lembra-se o leitor de, tristemente,tocarmos Manica e Sofala?) têm por capital (e diocese) a

127 «Aventura e Rotina», pg. 410, Edição «Livros do Brasil», 1951 e 1952,Gilberto de Melo Freyre. Nasce em 1900, Recife, Brasil. Jornalista, sociólogoe político. Após passar por Portugal esteve em Moçambique em 1951, Guiné,Angola, a convite do Governo Português, pelo Ministro das Colónias de então,Dr. Marcelo Caetano. Tenha-se presente que se tornara hóspede,princepescamente tratado. Conclusão fácil das suas próprias palavras deixadasno dito livro. As citações seguintes são da mesma fonte, pg. 413, 414 e 451,respectivamente. Parênteses são nossos, para melhor compreensão doscontextos do texto e extratexto.128 ANTT - PIDE – DGS, Proc. 3033, CI (2), Cx. 7245, Doc. 81, ANTT, «Diáriode Lisboa», 3.12.1966, notícia de Quelimane.

Beira; e na Beira me espera um dos mais cultos e maisgentis governadores de Província que já encontrei noUltramar Português: o engenheiro militar Ferreira Martins.(lembra-se dele e dos rapazes só presos pelo pescoço?)Recebem-me ele e a esposa com a melhor dashospitalidades lusitanas. Inclusive com uma série dejantares íntimos, além de um banquete com a presençade D. Sebastião, o extraordinário Bispo da Beira.»127

Impressiona-me o bispo D. Sebastião. Figura esplêndidade bispo ainda moço (46 anos), ... é animado por um fervormissionário de quem se mostra decidido a ser na Áfricatão dinâmico quanto os mestres maometanos.»(ibidem)«O Bispo da Beira é um bispo novo, magro, ágil, que nãosabe ser burocrata de batina, que se não deixa arredondarpela dignidade do cargo de bispo caricaturalmente gordo.Está sempre entre os missionários como se fosse umdeles. Preocupa-se em compreender os negros paramelhor servir não só os negros como a Igreja e Portugal.» (ibidem)«O Bispo da Beira, por exemplo – que é uma figuraextraordinária de líder católico, em quem o saber dehomem moderno se junta ao fervor de missionário dosvelhos tempos – vi-o sempre de branco. Moço, ágil e debranco.» (ibidem)

15.2 D. Sebastião e as comunidades não católicas.

Significativo é o facto de a comunidade maometana daZambézia, confrontada com a gravidade da situação doprelado católico que venerava, haver comunicado ao vigáriogeral da diocese, já em 3 de Janeiro desse ano de 1967, quehavia feito e mandado fazer preces pelo prestigioso preladoD. Sebastião Soares de Resende.128

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129 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, acima citado.130 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, só um processo armazena centenas defolhas. E não aparece o de Moçambique. Onde estará? Cinzas ou Moscovo?

Aos Muçulmanos junta-se os hindus, «... a Associação Hinduda Zambézia:129

Este o preciso Homem. Um dia saiu, em boa hora, daqueleescondido beco de Milheirós de Poiares. Brilhante no Semináriodo Porto, Universidade Gregoriana em Roma e Instituto deCiências Sociais de Bérgamo, Itália. Um dia, bispo da recentecriada diocese da Beira, em breve se impôs à profundaveneração dos verdadeiros católicos, admiração de nãocatólicos, pretos e brancos, muçulmanos, hindus,ortodoxos gregos, anglicanos.Em 23 anos, firme, decidido, na vasta e funda obra missionária,cultural, valorativa da Pessoa Humana integral entre todos osdiocesanos, sem excepção, com os seus profundos olhos nasalmas sem cor, de africanos e de outros. Por misologiamisoneista, haveria de pagar pesado tributo, desde a primeirahora, à mira implacável da polícia política, como se de suasinistra sombra se tratasse.130

Cruz. Dezenas de milhar conscientes de que inexoravelmentea morte havia fechado uma voz, clamasse ela, no hostil desertopolítico do tempo, ao longe e ao largo, a Verdade, a Justiça,a Liberdade, o Bem, num Continente já em chamas, «vivendo

as suas horas de decisão definitiva»131 (profeticamente)consciente, e por isso amargurado com a antevisão de que«haverá no futuro muito sangue a correr em África que seráterra de mártires no futuro...» E se outro procedimento se nãoseguir, forçoso é que «... havemos de ser todos chacinadose com razão, porque eu faria o mesmo.»132

Morria por «Moçambique na encruzilhada» de todas essastragédias, uma vez que «A União Nacional» fez «as suascortes gerais com os grandes e nada saiu dali de concreto.»... «para continuar tudo na mesma - envelhecendo,apodrecendo tudo. (Porque) Moçambique continua no baixoimpério, cada um a fazer o que quer... É a desordemorganizada, o desleixo, a ladroeira tolerada, o desinteressepelos deveres.»133

Monte de flores sobre a campa 9037, “Sebastião, 1º Bispo da Beira

131 «Diário», referente ao dia 31 de Janeiro de 1963.132 «Diário», referente ao dia 7 de Julho de 1965133 «Diário» de D. Sebastião, referente ao dia 22 de Junho de 1965

Dezenas de milhar chorando acompanham os restos mortaismirrados por doloroso e prolongado sofrimento suportado namais profunda Fé Cristã, ciente de que o Homem se salva na

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15.3 D. Sebastião e Franco Nogueira.

Em 19.1.1966, Franco Nogueira, após extensa conversacom o Sr. Dom Sebastião, deixa a sua impressão como emlivro de visitas:«Muito doce, suave, tranquilo, inteligente; e não se comprometeem nada. Atirei-lhe os factos da vida internacional, mostreidocumentos, apelei para o seu patriotismo, fiz o seu elogio –e acabei por exprimir curiosidade em saber o que se passarana sua demorada visita...ao embaixador dos E.U. (Já ia umano!) «Riu-se, não se mostrou constrangido e disse que haviaido agradecer umas revistas que Anderson lhe tinha enviadopara a Beira... Despedimo-nos no melhor dos mundos.»134

«Um Político Confessa-se» –1960/68», p. 161............................

16. À maneira de conclusão.«Vamos para a Beira, um bispo morre em sua casa».Na verdade, vem a falecer às 10 h. e 45 m., na casa episcopalda diocese da Beira, Moçambique, em 25 de Janeiro de 1967,assistido e rodeado dos colaboradores mais directos.Regressado de Estocolmo, sua última e desesperada tentativapara encontrar remédio, mais por obediência ao médicoassistente que por vontade própria, desembarca em Lisboa,sempre seguido pela PIDE, e passa pelo hospital do Ultramar.A toda a etapa chama ele a estação última do seu Calvário.Perante a gravidade da situação e na dúvida, ficar ali o restodos poucos dias de vida, replica: «Vamos para a Beira, umbispo morre em sua casa».Cancro no esófago, metástases, apoderado o seu já mirradocorpo, inclusos pulmões. Neste mesmo dia 25, a notícia inundaLisboa, invade a Assembleia da República, atinge deputados.Suspendem os trabalhos e, no meio da maior dasconsternações, prestam merecida homenagem à memória dosaudoso prelado, curvando-se inteira, reverente, solene,perante a figura do Português e Missionário que tomba.

Quando a voz do Povo é Voz de Deus.«A Beira ergueu-se acima de si própria... para prestar ...homenagem ao seu primeiro Bispo. » Logo de manhã cedoa multidão que não coube na catedral se apinhava à sua volta.Consternada, seguia as celebrações em silêncio e oração.Demos a palavra directa à testemunha.«Numa das mais grandiosas cerimónias a que a cidade temassistido... dezenas de milhar de pessoas... de todas as etniase posições sociais incorporaram-se ou apenas assistiram aolongo cortejo» de mais de uma hora. Desde muito cedo grandesgrupos de pessoas se concentraram ao longo de todo opercurso por onde horas depois haveria de passar o préstitofúnebre, principalmente nas imediações do cemitério ondenão há memória de concentração tão grande de autoridades

134 Um político - «confessa-se»Diário, 1960/68, p. 115 e 137, Franco Nogueira,3ª edição, 1968, Civilização Editora.135 «Diário de Moçambique», 26, 27 e 28.1.1967. Reportagem dos funeraisde D. Sebastião Soares de Resende.136 D. António F. Gomes, in «O Bispo controverso», p. 213, citado.

e pessoas.... Todas as janelas e varandas das fachadas dosprédios se apresentavam repletas de pessoas e todos ospontos de onde era possível assistir ao cortejo foram ocupados:telhados, terraços e muros e até nas árvores docaminho....A multidão em massa compassada, solene, tristee orante ao longo do trajecto até ao cemitério de Santa Isabel.Gente galgou os muros na ânsia de acompanhar com umabraço do próprio olhar a urna que descia à campa que ficourasa, singela, idêntica à de vulgar cidadão beirense. »135

A chuva miudinha deste fim de tarde da Beira, terna e comovida,se junta às lágrimas de milhares que ali se despediam do quena lousa ficou gravado, e que era seu, «Sebastião 1º Bispoda Beira». Depois o monte de flores ficou também o primeiro.Aqui deixa o autor aquele que sempre até à morte quis «serapenas o cérebro de Deus único e servidor da Humanidadesofredora e dilacerada sem conhecer frentes nem distinguirbandeiras.»136

O que resta da pia do baptismo de D. Sebastião

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Bibliografia

Além da bibliografia oportunamente citada no decurso do textoindicamos a específica e a mais significativa, a nosso critério.

1-Arquivos

ADA – Livros de Registo Paroquial de Milheirós de PoiaresANTT – Arquivo da PIDE/DGS, D. Sebastião Soares deResende – Proc. nº 3033 – CI, 397 fls, Cx. 7245, Serviços doCentro; Proc. nº 26074, Cx. 3892, 55 fls., Deleg. Do Porto;Proc. nº 34.542, 1 fl., NT 4833, Deleg. de Coimbra; Proc.12731, CX. 1186, 1 fl., Deleg. De Angola.AHPEP – Processos de ordens, Ordenação Presbiteral.

2-Jornais

EMEROTECA da Bibl ioteca Municipal do Porto:- AGORA, ou ÁGORA?137 – 8.3., pag. 3 e 11; e 3.4.1965, pg.6 e 7, «Carta» de Rúben Sottomayor, Sá da Bandeira, Angola.- A VOZ – 8.3.1956- COMÉRCIO DO PORTO – 26 e 27.1 e 3 e 4.2.1967- CORREIO DA FEIRA - muitos- DIÁRIO DE MOÇAMBIQUE - 26, 27, 28, Janeiro de 1926.- JORNAL DE NOTÍCIAS – 26.1.1967; -14.10.1990; - 26.1.e 25.10.1992; 14.6.1993; -3.5.; 10.7; 7 e 14.8 e 18.9.1994.– 2.4 e 24.6.1995.-NOVIDADES – Secção «Letras e Artes» 1941: 16. e 23.2.;pg. 3, «Sebastião Resende e Aquilino Ribeiro», polémicasobre Aristóteles - 2, 9,16.3.1967 ; 26 e 30. 1.1967.- NOTÍCIAS DA BEIRA – 26, 27 e 28 de Janeiro de 1967.- O CORREIO DA FEIRA – 29.7.1994, e outros.- REPÚBLICA – Todo o mês de Dezembro de 1966 e o mêsde Janeiro de 1967.

3- Livros e Autores

A . CARLOS LIMA – «Caso do Bispo da Beira – Documentos»,Livr. Civilização Edit., 1990

ADRIANO MOREIRA -«Tempo de Vésperas», Sociedade deExpansão Cultural Editora, Lisboa, 1971.ADRIANO MOREIRA - «O Novíssimo Príncipe», - Análise daRevolução – Intervenção Editora, 1977.D. EURICO DIAS NOGUEIRA - «Memórias do Arcebispo» -Entrevista de Luís Rebelo, Edit. Notícias, 1ª ed., Maio, 2003.FRANCO NOGUEIRA – «Um Político Confessa-se», (Diário:1960-1968), 3ª edição, 1987, Livraria Civilização Editora.GILBERTO FREYRE – «Aventura e Rotina», 2ª edição, «Livrosdo Brasil», Lisboa, Rio 1953.GRANDE ENCICLOPÉDIA Luso – Brasileira.ILÍDIO ROCHA – «A Imprensa de Moçambique, História ecatálogo», (1854-1975), Edição Livros do Brasil, Lisboa, 2000JOSÉ CAPELA – «Escravatura – a empresa de saque – oabolicionismo» (1810-18759 – Afrontamento / Porto, 1974JOSÉ FREIRE ANTUNES – «Jorge Jardim, Agente Secreto»,3ª ediç., Bertrand Editora, 1996MANUEL FERREIRA DA SILVA, Mons. - «TrípticoMoçambicano, sofala, sabá e ofir», 1967.PACHECO DE ANDRADE – «O Bispo Controverso – D. AntónioFerreira Gomes, palavra e testemunho», Multinova ed., 2002PEDRO RAMOS BRANDÃO - «A Igreja Católica e o EstadoNovo em Moçambique» - Editorial Notícias, 2004

137 Ficámos sem saber qual dos títulos será o correcto. Ambos se coadunamcom um título sugestivo para qualquer periódico. Na verdade «Agora» chamaa atenção, como advérbio de tempo, para os acontecimentos, comentários einformações várias da actualidade com «Ágora», substantivo, a Grécia antigadesignava a praça pública onde se reunia o povo, eclesia, para tratar deassuntos que respeitavam ao bem comum e da obrigação da administraçãopública. Vimos as duas formas. Não achando meio claro de anular a dúvida,ficam as duas: Agora e Ágora.

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D. Sebastião Soares de Resende,Feirense com Projecção Universal*Sebastião Brás**José Soares Martins

D. Sebastião Soares de Resende sendo, certamente,um dos feirenses que pertence à História (no que a perífrasepode representar de mais nobre), é igualmente alguém quenão deixa de exaltar a presença das Terras de Santa Marianessa mesma História. A projecção que a sua actividadepastoral como I Bispo da Beira, em Moçambique, teve portasadentro da Igreja, dos meios políticos nacionais assim comode instituições internacionais, ficou a dever-se a iniciativas esobretudo a afirmações que circunscreviam a dignidade dapessoa humana, incluindo a sua liberdade inalienável. O factode se ter comprometido consigo mesmo à missão de bispomissionário e tendo levado esse compromisso até ao limiteda capacidade física e moral, situou-o em posição deuniversalidade de ideias e nobreza de atitudes para quantoslhe prestaram atenção. Porventura e aparentemente umaimagem de maneiras aristocráticas e de alguma distância,assim como de um discurso adstrito aos cânones aquinenses.É certo que a sua muito parca presença física em sociedadese assinalava por um comedimento de maneiras e de falas

*Director do Colégio de Ermesinde.**Ex-secretário de D. Sebastião Soares de Resende

insusceptíveis de descerem à vulgaridade mesmo quandocultivava o humor cujo jogo não rejeitava. Contava um fidalgode costados que quando o cónego Sebastião se prestava acelebrar na capela do solar e ficava com a família a passaro dia, jamais lhe fora notada a menor gafe. Se assim era,cumprindo os ritos de sociedade talqualmente cumpria e faziacumprir os ritos litúrgicos, paralelamente levou todos ossessenta anos da sua vida na maior modéstia de um quotidianoprivado de comodidades para além da decência elementar.Jamais utilizou o ar condicionado que uma casa comercial daBeira (onde fazia um calor tórrido) graciosamente lhe instalouno apartamento despido que utilizava na casa episcopal.

Pois bem. Tudo isso remetia para a meninice eadolescência em Milheirós de Poiares. Terra, família, educação,rememorava-os com os próximos tão discreta quãoaprazivelmente.

O culto da pátria paroquial a que todos (particularmenteaqueles que nos prevalecemos de pátrias rústicas) nosdevotamos manifestou-o ele em colaboração no jornal«Tradição». Em 5 de Agosto de 1939, por ocasião da instituição,do prémio nacional Dr. Guilherme Moreira, o então Cónegoenaltece a figura dessa personalidade, natural de Milheirósde Poiares que, tendo sido aluno brilhante do Seminário doPorto, de Direito, em Lisboa, onde enobreceu a cátedra, talcomo em Coimbra de cuja Universidade foi Reitor, finalmenteMinistro da Instrução. Esta evocação do eminente jurista seuconterrâneo está datada de Milheirós de Poiares onde a teráescrito.

Outra colaboração no mesmo jornal, nas edições de12 e de 26 de Outubro de 1935, invoca a Santinha de Arrifana,

Igreja de Milheirós de Poiares

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designação popularmente consagrada e vigente na actualidade.Que considera «dum modo especial para o Concelho da Feiraser esta Serva de Deus com o seu rico património espiritualum grande elemento da sua tradição, um futuro acontecimentoda sua história».

Por ocasião das Comemorações Centenárias de 1940são de sua autoria as notas históricas referentes a Milheirósde Poiares no suplemento publicado pelo mesmo jornal.

Os tempos livres das tarefas que a qualidade de vice-reitor e de cónego, assim como a de uma capelania a seucargo lhe impunham, passava-os na casa dos pais, onde foracriado. Além destes escritos terá sido aí que terá gizado atese do doutoramento em teologia que não chegou a defenderpor se ter desencadeado a guerra, em 1939. Publicaria essetrabalho sob o título O Sacrifício da Missa em D. Frei Gaspardo Casal. A caminho do fim, ao partir da Beira, para um últimotratamento que se revelaria ineficaz, era o torrão matricial quese lhe plantava numa evocação derradeira: «ao deslizar naestrada eu olhava para o milho, se estava bom e assimaparecia a influência da minha primeira estrutura cultural: ada terra».

Se bem que fazendo parte do que se chamou«lavradores abastados» (esses cultivadores de terras própriasno noroeste português fazendo uma agricultura de subsistênciaquando não de endividamento até à ruína) seu pai provinhade casa simétrica, talvez um pouco mais abastada, em queo titular fora um dos quarenta maiores da comarca. Se lhesugeriam prosápias genealógicas (na universidade gregoriana,em Roma, os professores de origem germânica rendiam-seà sugestão que era para eles o de Resende) ele recordava,no meio de gargalhadas, os chapéus altos virados para o ar,travestidos de vasilhas de feijões, com que lidara, na suameninice, na casa da eira de Milheirós de Poiares.

Tendo sido nomeado Bispo da Beira com apenas 37anos de idade e tendo exercido esse múnus pastoralmissionário da forma que expressou ao pretender morrer eficar sepultado na terra onde o exerceu talvez como símbolode doação sem limites a uma mátria assumida, terá D.Sebastião, com tal gesto, enobrecido sobremaneira a terraque fora sua pátria.

Milheirós de Poiares, Terras de Santa Maria, abundamem nomes de que se podem orgulhar. D. Sebastião Soaresde Resende é seguramente um deles.

O Bispo e a Missão

A última fase da missão católica em Moçambiqueprocessou-se a partir da Concordata e do Acordo Missionário,celebrados entre o governo português e a Santa Sé, em 1940.

Nomeado como primeiro bispo da Beira, em 1943, D. SebastiãoSoares de Resende foi também o primeiro dos jovens preladosque, de alguma maneira, revolucionaram a missão emMoçambique. Uma das primeiras medidas para tal foi o recursoa missionários de outras nacionalidades para além daportuguesa. Não sem dificuldade em ultrapassar os entravespostos pela autoridade colonial, tal atitude permitiu a ocupaçãomissionária da quase totalidade do território e comprometeugravemente o conúbio da cruz com a espada. Não se tratoude causa e efeito, muito menos de acção deliberada em talsentido, mas de circunstância que o tempo viria a demonstrarcomo propícia à emergência nas populações da consciênciade valores próprios quando não mesmo da assumpção deuma nacionalidade supraétnica. Se desde sempre tinha havidomissionários portugueses estudiosos e cultores das línguase de alguns aspectos das culturas nacionais, só por excepçãoé que não se mantiveram na obediência à imposição de aseliminarem do ensino e da liturgia. Os novos missionários,desvinculados do compromisso afectivo e chauvinista com aacção colonial portuguesa, sentiam-se livres para abrir caminhoà afirmação dos valores culturais tradicionais, indutores daafirmação da identidade própria.

O saldo final desta acção missionária ainda não foicontabilizado. Talvez jamais o venha a ser. Perspectiva a terem conta dado o facto de quem pareceria na obrigação de opromover nada ter feito para isso e porque os plumitivos que,após a independência, à uma, sem conhecimento de causae sem um esforço mínimo de investigação, decidiram atribuirà generalidade de quantos estavam ligados à Igreja Católicao apodo de «reaccionários», logo mancumunados perinde ac

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cadaver com o sistema colonial. Já foi escrito com todo odesplante da ignorância que, de entre os seminaristas a quemo arcebispo de Lourenço Marques, D. Custódio Alvim Pereira,defensor fervoroso da ética colonial, exigia uma fidelidadepolítica ao seu credo se bandearam com esta os que ficarame que se transferiram para a luta de libertação os quediscordavam. Ora o que se passou de facto foi exactamenteo contrário. Permaneceram no seminário, alguns até àordenação, e quase todos, se não todos, arrenegavam dadoutrina abstrusa do prelado, nem sequer subscrita pelosrestantes bispos.

Este resultado, exponencial porque verificado numaelite, só foi possível com a nova atitude na missionação,atitude que ficou a dever-se, em grande parte, a D. Sebastião.

Mais tarde, a corrente que vingou dentro da FRELIMOe que veio a tomar o poder teve ganho de causa sobre a quefora gerada pela acção missionária. Esta, desprovida da culturapolítica – nela incluída o maquiavelismo, pelos vistosindispensável ao triunfo nas grandes causas! foi subalternizadase não mesmo arredada do poder. Se assim foi ao nível doaparelho do estado, o mesmo não aconteceu na sociedadecivil. Às dificuldades de toda a ordem que lhes foram criadasapós a independência as comunidades cristãs católicas nasprovíncias centrais responderam de uma forma organizada eobstinada que permitiu, no final, constatar a sua pujança. Eespecialmente pujante aí onde incidiu a acção de D. Sebastiãoe dos missionários que chegaram a Moçambique, graças àsua iniciativa. Também onde a denúncia das barbaridades daguerra colonial se ficou a dever aos mesmos missionários.

Não se trata aqui de avaliar nem a ética nem a estéticada missionação. Procura-se, tão simplesmente, sugerir umtipo de interpretação para interferências em tempo tão curtoquanto nevrálgico para a vida de Moçambique. Em que D.Sebastião Resende teve um papel decisivo. Talvez não tantopor aquilo que executou e foi muito. Mas mais do que odesenvolvimento do ensino, da implantação de novas missões,deve-se-lhe uma dinâmica que ultrapassou os agentes directosda acção dentro da Igreja a que presidia. Assim como aspastorais publicadas regularmente atingiam um largo público,a audição das palestras radiofónicas ultrapassava o círculorestrito dos fiéis e as publicações periódicas editadas sob seubeneplácito tinham uma difusão nacional, não menos, a suaatitude institucional face aos grandes problemas emergentesnaquela sociedade de sua natureza imersa em situações damais profunda injustiça social projectava uma referência moralmuito acima e muito para além das instâncias perecíveis edesacreditadas a quem competiria a reposição da verdade eda justiça. Talvez aí se situe a razão de ser principal da auracom que as populações moçambicanas cultivam a suamemória.

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Eis, em traços breves e precários, como um feirenseoriundo de meio tão digno quanto rústico terá projectadoreverberação de cariz universal.

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73Dom Sebastião Soares de ResendeNas páginas do “Correio da Feira”*Compilação de Roberto Carlos

Novo Bispo Português1

Está de parabéns a Igreja Católica. E não somente aIgreja Católica. E não somente a Igreja como o país inteiro,e muito particularmente esta Terra de Santa Maria. É queacaba de ser nomeado bispo da Beira, diocese de Moçambiquecriada pelo recente Acordo Missionário entre Portugal e aSanta Sé, um ilustre filho da Feira – o cónego Doutor SebastiãoSoares de Rezende. O acontecimento tão notável para aIgreja como faustoso para o Império português, é bem demolde a despertar franco entusiasmo e perene alegria emtodos os bons portugueses, especialmente naqueles, que emárdua mas bendita tarefa, se empenham em reconduzir anação ao nível, religioso, cultural e social de outras eras, játrabalhando sob a alçada da hierarquia eclesiástica, járealizando com Salazar a Revolução Nacional. Honra, porcerto, a Igreja, dignifica a política que nos governa, engrandecea pátria. Por isso – porque não afirmá-lo, alto e bom som? –enche de legítimo orgulho esta laboriosa, patriótica e crenteterra da Feira, que viu nascer o novo prelado e há muito sehabituou a tributar-lhe a mais viva simpatia e admiração.

*Licenciado em HistóriaInvestigador

Eis porque a notícia da sua nomeação, radiodifundidado Vaticano, no passado dia 24 de Abril corrente e divulgadano dia seguinte, a par dos Aleluias pascais, logo fez vibrar deintenso júbilo todos os feirenses; eis a razão porque muitosdeles, apenas tiveram conhecimento da faustosa notícia, quecélere percorreu o país inteiro, se apressaram a enviar-lhecordiais cartas de parabéns e expressivos telegramas defelicitações. E tudo merece o Sr. D. Sebastião Soares deRezende

E mais ainda. Porque é um sacerdote sobre inteligentee culto, assaz despretensioso e humilde, porque é um valorna perfeita acepção da palavra. Todos os que o conhecem,sabem que não são lisonjeiros e descabidos estes elogios,mas que só (pálida e singelamente, embora) visam e reflectema verdade.

É da mais elementar filosofia os factos prevalecerema todo e qualquer argumento, imporem-se por si mesmos; seincarnam e classificam moralmente as ideias que os causaramou foram motivo ou ocasião também definem os homens,seus portadores.

Ora a vida do novo prelado, toda ela, é um testemunhovivo e eloquente de que sempre encontrou generosa guaridaem seu coração um nobre e fecundo ideal, e também,consequentemente uma prova de que tinha absoluto jus àplenitude do sacerdócio católico, a que agora se vê guindado.

Desde os mais tenros anos até à hora presente, semprese tem imposto e granjeado a estima e admiração dos vizinhos,

1Correio da Feira, 8 de Maio de 1943

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conterrâneos, condiscípulos, mestres e conhecidos. Na escola,ao aprender as primeiras letras, já se revela o estudanteinteligente e aplicado, que no porvir, em mais difíceis e pesadosestudos, havia de marcar brilhantemente a sua passagem,obtendo prémios sobre prémios. No Seminário da Torre daMarca, onde fez o curso de preparação, e no Seminário deNossa Senhora da Conceição do Porto, em que cursou Filosofiae Teologia e se fez padre, é um dos alunos mais altamenteclassificados, tanto literária como moralmente. Não se passaum ano sequer sem que seja largamente premiado. Por estemotivo e para anuir ao parecer dos professores do Seminário,o saudoso prelado D. António Barbosa Leão resolve enviá-lo para Roma, para aí frequentar a Universidade Gregoriana.

Em 1933, ao cabo de 5 anos de exaustivo estudo,depois de se haver doutorado em filosofia e licenciado emteologia, e ter ainda tirado o curso de Ciências Sociais peloInstituto de Ciências Sócias de Bérgamo, regressa a Portugal.

Logo é nomeado professor do Seminário Maior, ondeaté ao presente vem leccionando além de outras cadeiras,teologia sacramental e filosofia.

Em 1934 é-lhe confiada a Vice-Reitoria do mesmoSeminário. No ano seguinte profere na Abertura Solene dasAulas do Seminário, uma notável “Oração de Sapiência sobrea Acção dos teólogos portugueses no Concílio de Trento”,trabalho que o revelou como um grande e profundo Mestreem Dogmática Sacramental e História da Teologia em Portugal.

Em 1936 o Sr. D. António Augusto de Castro Meireles,de veneranda memória, para premiar o seu merecimento evalor, nomeia-o cónego da sua Sé Catedral.

Poucos meses volvidos, apresenta ele no Salão deFestas do Seminário perante as mais altas individualidadescientíficas e sociais do Porto, a notabilíssima conferência“Filosofia Tomista e sua actualidade”, que lhe mereceu osmais rasgados e enaltecedores elogios. Mas não pára aquiainda a actividade do Sr. D. Sebastião Soares de Rezendecomo pensador e escritor. Duas obras o haviam de recomendare consagrar mais perfeitamente perante a Igreja e a opiniãopública. São elas “O Sacrifício da Missa em D. frei Gaspar doCasal”, publicada em 1941, e “Portugal e a Doutrina Dogmáticada Comunhão”, saída dos prelos há poucos meses, mas jádepois do Congresso Luso-Espanhol, realizado no Porto de18 a 24 de Junho, em que colaborou com a tese – “CiênciasFilosóficas e Teológicas”.

A primeira destas obras, “escritas num estilo terso,límpido e afirmativo”, na frase do grande orador portuguêscónego Dr. Correia Pinto, despertou o interesse e conquistoua simpatia e admiração até daqueles que não compulsamnem estudam habitualmente trabalhos de teologia. Prova doque levamos dito é a apreciação do ilustre professor daUniversidade de Coimbra, Dr. António de Carvalho: “… pela

fundamentação, coerência lógica e esmero literário é umadas mais notáveis monografias da nossa história teológica”.

A par desta laboriosa actividade, há ainda que pôr emdestaque o impulso que, com verdadeira paixão, vem dandoaos estudos tomistas, não somente portas adentro doSeminário, como até entre o elemento cultural e científico doPorto. No nobre intuito de ver conhecida e abraçada a filosofiado grande doutor da Igreja Fr. Tomaz de Aquino, sem seesquivar às mais porfiadas e fatigantes canseiras e até asacrifícios financeiros, tem chamado ao Seminário conferentesdo valor e da fama de Cabral Moncada, João Ameal, ArturBívar, Correia de Barros; organizado Academias, SarausLiterários; numa palavra, acarinhado e orientado trabalhosdos seminaristas, publicados por vezes na página literária das“Novidades”.

É este o “curriculum vitae”, do novo prelado. Admirávelsem dúvida, e glorioso, e porque é um sacerdote de uma vidainterior acrisolada e intensa, o Sr. D. Sebastião Soares deRezende estava natural e necessariamente indicado para olugar de responsabilidade e relevo que a Santa Sé lhe acabade confiar no Ultramar Português. Com 37 anos incompletos(pois nasceu a 14 de Junho de 1906) e pouco mais de 14 desacerdote, é mais um novo que enfileira na plêiade gloriosados novos que tão afirmativa e brilhantemente vêm servindoa Pátria e a Igreja.

Dele se pode e deve gloriar a sua terra natal – Milheirósde Poiares. Dele se podem e devem, finalmente, gloriar seusqueridos pais e demais pessoas de família. E até os seusamigos. Por isso, não resistimos à tentação (que, no casopresente, é sinónima de dever) de dar neste importantesemanário, ao faustoso acontecimento a divulgação e relevo,de que o Sr. D. Sebastião Soares de Rezende é lídimo credor.

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Câmara Municipal - 1943.

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A Sua Ex.ª Rev.ma as nossas cordiais felicitações eum feliz e fecundo apostolado. Ad multos annos.

Um Amigo

Dom Sebastião Soares de Resende2

Bispo da nova diocese de Moçambique

É do conhecimento dos nossos leitores a subidadistinção, concedida pela Santa Sé, ao nosso conterrâneo ebondoso sacerdote Dr. Sebastião Soares de Resende.A nomeação para Bispo da nova Diocese de Moçambique,no Império Colonial Português, do novel eclesiástico e distintoprofessor, confundiu a sua humildade, e é motivo de satisfaçãoe orgulho para a terra onde nasceu e para o concelho da Feiraque o tem por filho.

A Diocese do Porto, onde o novo Prelado granjeou asmáximas simpatias pela sua vasta cultura e pela elevaçãoespiritual como sempre soube conduzir-se, vai prestar-lhehomenagem oferecendo-lhe a Mitra e outras insígniasepiscopais, estando para isso aberta uma subscrição entreos amigos e admiradores de Dom Sebastião.

A Vila da Feira não podia alhear-se da manifestação:relegando-a cometeria acto indigno.

Assim, num gesto de dever a cumprir, uma comissãode feirenses vem de fazer distribuir a circular do teor quesegue:

Prezado FeirenseTendo sido criada, em Moçambique, a diocese da

Beira, pelo Acordo Missionário entre a Santa Sé e a NaçãoPortuguesa, Sua Santidade Pio XII houve por bem nomearbispo da referida diocese o Sr. Doutor Sebastião Soares deResende, cónego da Sé do Porto e nosso ilustre conterrâneo.O Novo Prelado, que exerce, presentemente, o múnus deVice-Reitor e Professor no Seminário do Porto onde vai ficarbem vincada a sua passagem, foi sempre um aluno altamenteclassificado neste Seminário e na Universidade Gregorianade Roma, onde se formou e é dotado dum espírito deverasordenado e profundo, onde abundam ideias sadias e claras.

A sua vasta cultura e sólida piedade aliadas a umabondade e modéstia insuperáveis fizeram-no surgir, bem cedo,no cenário das actividades eclesiásticas do País, de maneiraque não é para estranhar que a Sé Apostólica tenha volvidoos seus olhares para ele, arremessando-o ainda muito novo,para as pesadas honras do episcopado e carreando para aFeira, terra de bastas tradições missionárias e religiosas, mais

2 Correio da Feira, 24 de Julho de 1943

uma distinção e uma glória.Não podíamos, pois, cruzar os braços como sói dizer-

se, perante este tão grato acontecimento e assim constituímo-nos em comissão para, enquadrados na Comissão Diocesana,angariarmos donativos, não só adentro do Concelho da Feira,mas por toda a parte onde palpitar o coração dum feirenseou dum amigo das Terras da Feira, e com a soma dessesdonativos adquirirmos e ofertarmos ao novo Bispo a mitra eoutras insígnias episcopais, prestando-lhe, assim, a nossamelhor homenagem de muita consideração e particular apreço.

Confiados na vossa nunca desmentida generosidade,ousamos apelar para a mesma e, esperando que este nossoapelo, a transbordar gratidão e bairrismo, seja atendido, nãoserá em vão que trupamos à vossa porta, embora a ocasiãopresente não seja das mais asadas para digressões destanatureza.Qualquer donativo, grande ou pequeno, mas sempre demistura com a melhor boa-vontade, deve ser enviado, comum pouco de brevidade, a algum dos membros destaComissão, que fica a pedir perdão e a agradecer.Feira, 15 de Junho de 1943.

Roberto Vaz de Oliveira, Advogado, Notário e Presidenteda Câmara Municipal............................................................Serafim Pinto Guimarães, Médico e Vice-Presidente da CâmaraMunicipal.............................................................................Albano de Paiva Alferes, Pároco e condiscípulo do NovoPrelado. José Valente de Pinho Leão, Professor oficial eVereador da Câmara Municipal. Augusto Gomes da Silva,funcionário público. José Francisco dos Santos, Comerciantee tio do Novo Prelado.

Dom Sebastião Soares de Resende3

Bispo da Nova Diocese da Beira

Fora previamente anunciado para o domingo 15 deAgosto, a sagração do novo Bispo da Beira (Moçambique)Senhor D. Sebastião Soares de Rezende, ultimamentenomeado pela Santa Sé.

Nascido na freguesia de Milheirós de Poiares, desteconcelho da Feira, com pais e irmãos ali e família próxima emArrifana e nesta vila, o gesto de Roma veio encher de orgulhoa Terra da Feira, que já conta outro Bispo entre os seusnaturais, o Senhor D. Moisés Alves de Pinho, Bispo de Angola,e um elevado número de altos Ministros da Igreja em lugaresde destaque, que muito a prestigiam.

3 Correio da Feira, 21 de Agosto de 1943

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À sagração de D. Sebastião assistiu toda a sua famíliae a câmara municipal deste concelho, além de muitasnotabilidades eclesiásticas e civis.

O solene acto realizou-se na Sé do Porto, tendo inícioàs 10 horas e prolongando-se até à tarde, revestido da maiselevada unção mística.

O Senhor D. Sebastião Soares de Rezende, com assuas vestes corais de Bispo, mas sem a cruz peitoral nem oanel, entrou no vetusto templo, acompanhado do Preladosagrante, D. Agostinho de Jesus e Sousa, Bispo do Porto edos Prelados assistentes senhores D. António Antunes, Bispode Coimbra e D. Rafael da Assunção, Bispo de Limira.

O Sagrante reveste-se com os paramentos pontificais,os Assistentes tomam as estolas e os pluviais e o Eleito aestola cruzada e o pluvial.

O Sagrante senta-se no faldistório e na sua frente ficao Eleito acompanhado dos assistentes. Destes o mais antigo,voltado para o Sagrante, diz: Reverendíssimo Pai: A SantaMãe Igreja Católica pede que eleveis à dignidade Episcopaleste Presbítero presente.

O Sagrante respondeu: Tendes mandato (nomeação)Apostólico? Temos, respondeu o Assistente. O Sagrantemanda o notário ler a Bula ou documento da nomeação. Élido.

O Eleito lê o juramento de obediência ao Papa actual,aos seus legítimos sucessores, defesa, honra e privilégiosdos mesmos; assistência ao sínodo, se for chamado, visita aRoma, com obrigação de dar conta da administração da Igrejaparticular que vai governar e outros assuntos indispensáveisao ofício pastoral. É demorado o juramento.

Ao juramento segue-se um interrogatório (ao todo são18 perguntas) a que o Eleito responde.

Promete estudar e cultivar a ciência sagrada para aensinar com a palavra e com o exemplo; guardar a tradiçãoe constituições da Sé Apostólica, obediência ao papa actuale futuro; fugir do mal, guardar a castidade e sobriedade,ocupar-se dos trabalhos espirituais e abster-se dos materiais;a humildade, a paciência, o cuidado com os pobres, peregrinose indigentes, e ser afável e misericordioso com todos. Perguntase promessas sobre artigos do símbolo, pessoas da Trindadee outros assuntos relacionados com o ministério episcopal.

Terminado o interrogatório o Sagrante pede a Deuspara o Eleito a abundância da graça, o aumento da fé e dá-lhe a mão a beijar.

Começa a missa; o Sagrante no altar-mor e o Eleitono lateral, sem se voltar para dizer Dominus vobiscum.Suspendem a missa no último verso do tracto e o sagrantesenta-se. Os Assistentes acompanham o Eleito, todos saúdamo Sagrante e sentam-se. Este lembra as atribuições e ospoderes dos bispos, que se resumem nestas palavras: julgar,

interpretar, consagrar, ordenar, oferecer, baptizar e confirmar.Levantam-se todos e pede aos presentes:

Oremos, irmãos caríssimos, para que, em proveito daIgreja, Deus omnipotente conceda a este Eleito a abundânciada sua graça.

Prostra-se o Eleito, ajoelham todos e recitam-se asladainhas de todos os Santos. No fim, o Sagrante levanta-see abençoa, por 3 vezes, o Eleito e continuam as ladainhas.

Em seguida é colocado o livro dos Evangelhos sobreo pescoço e ombros do Eleito, o que deve guardar e pregarao povo e o Sagrante com os Assistentes dizem: AccipeSpiritum Sanctum: recebe o Espírito Santo e o Sagrante diza seguinte oração: “Senhor, sede propício às nossas súplicase, fazendo descer sobre este vosso servo a abundância dasgraças sacerdotais, derramai sobre ele a virtude da vossabênção”.

Segue-se o Prefácio, lembrando a instituição dosacerdócio no antigo e novo Testamento. No meio do Prefácio,é entoado, o Veni Creator, que o coro continua.

Enquanto o coro continua, o Sagrante com óleo doSanto Crisma unge a cabeça do Eleito com a forma própriae continua o Prefácio. No fim é entoado o Salmo 132, lembrandoa unção de Aarão seguindo-se:

a) Unção das mãos para se tornarem mais dignas desustentar o báculo.

b) Bênção e entrega do báculo, para corrigir o mal,defender o bem e praticar a justiça. O báculo simboliza omunus pastoral que vai exercer.

c) Bênção e entrega do anel que é o símbolo da uniãodo bispo com a sua Igreja, que ele deve de amar, defendere sacrificar-se por ela.

d) Entrega do Evangelho, que deve estudar, guardar,conhecer e pregar ao povo.

e) Finalmente recebe a paz dos seus colegas, porqueestá consagrado.

Continua a missa. O Sagrante, no altar-mor e o Sagradono seu, até lerem o ofertório.

Suspendem a missa e o Consagrado acompanhadodos Assistentes, oferece ao Sagrante, duas velas, dois pães,e dois pequenos barris com vinho. Estas ofertas lembram ocostume dos primeiros séculos da Igreja, em que os cristãospresentes e participantes do Sacrifício, depunham nas mãosdo celebrante o pão e o vinho para a consagração A missaprossegue. Há uma só hóstia e um só cálix que o Sagrantee Sagrado oferecem e consagram.

Aquele comunga metade da hóstia e do cálix, e ministraao Sagrado as outras metades. Continuam simultaneamentea missa, e a bênção é dada pelo Sagrante.

Senta-se o Sagrante e segue-se: Bênção e imposição

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da mitra, que simboliza o capacete de defesa da fé e de lutadorcontra os inimigos.

Bênção e entrega das luvas, que indicam e simbolizama pureza das mãos, a humildade na prática do bem e recordama bênção recebida por Jacó de seu pai Isaque.

Com todas as insígnias da dignidade episcopal, oSagrado é acompanhado ao Sólio pelo Sagrante e primeiroAssistente e ali o entronizam. O Sagrante levanta o Te Deum,o coro continua o canto e o Sagrado percorre a Igreja,abençoando o povo e recebendo as suas homenagens.Chegado ao altar e concluindo o Te Deum, dá a bênçãopontifical aos fiéis.

Dada a bênção e colocados nos seus lugares oSagrante e os Assistentes, o Sagrado ajoelha voltado para oSagrante e canta por três vezes: Ad multos annos (por muitosanos). Longos anos, longos anos, longos anos. Dão a paz econcluem a missa.

E assim tem a Igreja um novo bispo, um soberanosacerdote, elevado pela sua dignidade e pelo seu ofício, acimade todos os sacerdotes.

Pelo mandato Apostólico e pela Sagração vai reger aIgreja que lhe foi confiada e podemos todos aplicar as palavrasde S. Paulo: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre queo Espírito Santo vos constituiu bispo para governardes a Igrejade Deus que Ele adquiriu pelo seu próprio Sangue”.

As cerimónias foram dirigidas pelo Rev. Américo Alves,mestre-de-cerimónias da mitra.

A parte musical esteve a cargo da “Schola Cantorum”do Seminário de Teologia sobre a regência do Rev. LuísRodrigues.

Após a cerimónia da sagração, realizou-se no Paçoepiscopal da Torre da Marca, um almoço, a que assistiram osprelados que estiveram na Sé Catedral, os membros doCabido, os reitores dos Seminários diocesanos e o Rev. CostaMaia, em nome dos condiscípulos do novo Bispo.

Aos brindes usaram da palavra os Srs. Bispo do Portoe cónego, Dr. Correia Pinto e o novo Prelado....................

No Seminário de Teologia, onde o Sr. D. SebastiãoSoares de Rezende ocupou o cargo de vice-reitor, foramrecebidas dezenas de telegramas de felicitações pela suaelevação ao Episcopado.

Bispo da Beira4

Transcrevemos das Novidades, o apreciado artigopublicado no dia da sagração do novo Bispo da Beira, daautoria do Rev. Pároco da Feira, Sr. Pe. Pinho Nunes, artigoque também mereceu a transcrição do Diário da Manhã, deLisboa.

D. Sebastião Soares de Rezende, na intimidade

Não pretendemos filmar a personalidade tão complexado novo Prelado, senhor D. Sebastião Soares de Resende,mas somente focar alguns dos seus aspectos. É natural quea sua modéstia se julgue ferida com o que vamos escrever;se nem os Santos conhecem as virtudes de que são modelo….Ditadas, porém, pela sinceridade, não correm o perigo daadulação.

Justificam o nosso júbilo, a alta distinção que lhe foiconferida e a certeza de que hão-de cair do seu báculoepiscopal os frutos de tantas virtudes que exornam o seucoração, e projectar-se no seu rebanho confiado aos seuscuidados pastoris.

Quem, como nós, o conhece de perto, pode assegurarpleno êxito à sua actividade.

Toda a virtude sólida é decalcada na humidade – pedrade toque dos melhores instrumentos que Deus escolhe paraa execução dos Seus desígnios, e razão de ser dos grandesempreendimentos. Dela dimana toda a grandeza moral dohomem, como das nascentes quasi imperceptíveis nascemos grandes rios. O novo prelado é a personificação dahumildade. Sempre e em tudo inimigo de exibicionismos eostentações a muitos tem edificado.

A notícia da sua elevação ao Episcopado nãosurpreendeu os que lhe reconheciam dignidade emerecimentos; mas foi para ele grande surpresa, apesar dosprémios de mérito moral e literário com que foi agraciadopublicamente, em todos os anos do curso. Momentos depoisde a ler no jornal, alguém o foi encontrar na capela doSeminário, junto ao sacrário, a rezar e chorar. Com certeza,juntavam-se no seu espírito – como em Cristo, no dia daTransfiguração – o Tabor e o Olivete….

“É a simplicidade em pessoa” – disse-nos há dias oreitor do Seminário das Missões, onde o Senhor D. Sebastiãofazia Exercícios Espirituais.

A tão preclaros dotes de coração, correspondem osfulgores de uma inteligência perspicaz e bem ordenada, servida

4 Correio da Feira, 28 de Agosto de 1943

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por excepcional poder de visão psicológica.Sempre tem revelado apaixonado amor ao trabalho e

aquela tenacidade forte que são garantia de triunfo em qualqueriniciativa. Ninguém se retira da sua presença sem aprenderalguma coisa: a tudo sabe dar explicação, desfaz qualquerdúvida, a todos sabe dar conselho prudente e amigo.

Na espinhosa e nobre missão a que a Providência ochama vai, com certeza tornar-se rendoso o grande potencialde inteligência e cultura, que até agora acumulou. De mestrede muitos alunos, vai ser, por mandato divino, o Apóstolo danumerosa grei beirense. De reger aulas de filosofia e deteologia, passa à Cátedra de Pastor. Missão sublime!...Altadistinção!...

Nesta hora de júbilo, vão para S. Ex.ª Rev.ma a nossabem fundada esperança e o melhor desejo de que seja longoe fecundo, como é bendito e nobre o seu apostolado parabem da Igreja e prestígio de Portugal.

Bispo da BeiraA sua terra prestou-lhe justa homenagem5

A tarde do passado sábado foi de júbilo para a Vila daFeira: é que entre os seus muros esteve o Senhor D. Sebastiãode Resende, ultimamente sagrado Bispo da Beira, sendoportanto a visita primeira que S. Rev.ma quis fazer à sua terradepois de elevado ao sólio episcopal de uma das

5 Correio da Feira, 11 Setembro de 1943

mais importantes dioceses do nosso vasto Império Ultramarino.A sua biografia com os elevados dotes de inteligência

que lhe exornam o carácter, foram já postos em foco nascoluna deste jornal.

A tarde de 4 de Agosto foi, portanto, de festa nestaVila. Festa modesta mas muito sincera, pela qual o novelantéstite pôde conhecer da estima e admiração que lheconsagram os seus conterrâneos.

O Sr. D. Sebastião deu entrada nos Paços do concelhopelas 17 horas, sendo aguardado pela câmara municipal,muitas senhoras, eclesiásticos, entidades e colectividades davila e do concelho, e bastante povo, que lhe prodigalizaramrecepção imponente.

Realizou-se em seguida uma sessão solene presididapelo Sr. Dr. Roberto Vaz de Oliveira ladeado pelos rev.mospárocos das Feira, Souto e outras freguesias, delegado doconcelho e membros da Câmara.

O salão nobre da câmara estava repleto de senhorase convidados, vendo-se, desfraldadas as bandeiras dosbombeiros da Feira e de Arrifana e de outras corporações davila e do concelho.

Usaram da palavra o Rev. Pe. Albano de Paiva Alferese o Sr. Presidente da Câmara, que, em quentes e veementespalavras, enalteceram as primorosas virtudes do homenageado,focando a elevada missão do novo Bispo da Beira e o altovalor religioso e patriótico das missões católicas no ultramar.Respondeu o Sr. D. Sebastião em comovida oratória,principiando por agradecer a todos os presentes e ausentesque concorreram para a homenagem a que estava assistindoe para aquela que já lhe havia sido prestada em valiosospresentes.Em elevados conceitos e recortes literários, o orador empolgoua assistência durante mais de meia hora, sendo no final cobertode aplausos e muito cumprimentado.

Seguidamente o Sr. D. Sebastião procedeu à cerimónialitúrgica da bênção da bandeira municipal, que foi hasteadano frontispício do edifício por entre vivas e palmas.Depois das 18 horas e em casa do Sr. José Francisco dosSantos e esposa Sr. D. Beatriz Santos tios do Sr. D. SebastiãoSoares de Rezende, foi servido um delicado chá a queassistiram o novo Prelado da Beira e muitos convidados,senhoras e cavalheiros.

Este acto deu lugar a que fossem feitos muitos brindesao Sr. D. Sebastião, a sua família e a outras pessoas.Ao resto da tarde o Sr. D. Sebastião Soares de Rezenderegressou à sua casa de Milheirós de Poiares, sendoacompanhado pe la comissão da homenagem.

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Homenagem ao Sr. D. Sebastião Soares de Resende6

Mais uma vez foi homenageado o Senhor DomSebastião Soares de Resende, venerando Bispo da Beira. Aquem quer que venha lendo com relativo interesse as notíciasdeste periódico e de outros mais a respeito de Sua Ex.ª Rev.manão terá certamente passado despercebido o elevado númerode manifestações de simpatia, admiração e saudade de quetem sido objecto. Agora foi a sua terra natal – Milheirós dePoiares, uma das freguesias da Feira de tradições maisprofundamente cristãs – que quis exaltar e despedir-se de tãoilustre e prestigioso filho.

Num rasgado gesto de estima e de dedicação, reservaraela para si, logo após a sua nomeação de Sua Ex.ª Rev.ma,não obstante as pretensões, aliás legítimas, da beneméritaOrdem Franciscana, o grato e dispendioso encargo da ofertada Cruz Peitoral. Destarte (porque a Cruz sempre pende dopeito de um pontífice da Igreja) acompanhá-lo-ia sempre e atoda a parte, assim, como que beneficiaria dos êxitos e méritosde todos os seus múltiplos e árduos labores de bispomissionário.

Compreendeu bem, em todo o seu alcance, o Sr. DomSebastião Soares de Resende a nobre atitude dos seusconterrâneos. Pelo que cedo resolveu oferecer o santo sacrifícioda missa por todos aqueles que se haviam subscrito para talfim, e por suas famílias.

Realizou tão generosa e simpática ideia no domingopassado, 19 de Setembro.

Às 10 horas e meia começara S. Ex.ª Rev.ma a SantaMissa. Ao mesmo tempo os alunos do Seminário das Missõesde Cucujães davam início no Coro da Igreja, aos kyries dumalinda missa de 2 vozes. A Igreja estava repleta de fiéis, detodas as camadas sociais, mesmo das freguesiascircunvizinhas. Milheirós encontrava-se representada portodos os seus mais ilustres filhos. Ao Evangelho o Sr. D.Sebastião Soares de Rezende proferiu uma calorosa e tocantealocução, agradecendo aos seus conterrâneos a Oferta daCruz Peitoral, obra artística e rica – pois custara 7000$00 –,que honrava não tão somente a ourivesaria nacional, masainda as pessoas que para ela haviam concorrido, todas comgenerosidade e algumas com sacrifício.

Finda a missa, Sua Ex.ª Rev.ma deu o anel a beijar atodos os assistentes, enquanto o grupo coral ia cantando orao “Ecce Sacerdos Magnus” ora “Tu es Sacerdos”.

Em seguida dirigiu-se de automóvel para a casa doSr. Dr. Crispim Borges de Castro, seu grande amigo.

Aí lhe foi oferecido um lauto e magnífico almoço, parao qual tiveram a honra e o prazer de ser convidados os Srs.

6 Correio da Feira, 1 de Outubro de 1943

Dr. António Luiz Gomes, Provedor da Santa Casa daMisericórdia do Porto, Dr. António Luiz Gomes Filho, Directorda Fazenda Nacional, Dr. Valdimiro Lopes e sua esposa, Dr.Domingos de Sousa e esposa, pároco da freguesia, párocode Oliveira do Douro e Correia de Sá, presidente da Junta.

Às 6 horas da tarde teve lugar num dos salões daEscola Primária, rica e primorosamente engalanado, umaíntima e enternecedora sessão solene. Foi uma verdadeiraapoteose a entrada do Sr. D. Sebastião Soares de Rezendeno Salão de Festas, pois foi precedido das crianças do CECe da Escola, e acompanhado de uma grande multidão deconterrâneos e admiradores, bem como da Banda de Músicade Arrifana, que conjuntamente com o estralejar de foguetes,muito abrilhantou a festa. Presidiu o Sr. Dr. Crispim T.B. deCastro. À sua direita sentaram-se os Srs. D. Sebastião Soaresde Rezende, Dr. António L. Gomes, Dr. Valdemiro Lopes, Rev.Dr. José Soares da Rocha, pároco da freguesia, D. EditeMoreira e D. Georgina L. Lopes e à esquerda os Srs. Dr. LuizGomes Filho, dr. Eugénio Moreira, Dr. Domingos Sousa,Pároco de Oliveira do Douro, Prof. Manuel Amorim e Dr.António Martins.

Foi o presidente que abriu a sessão. Começando porpatentear o imenso júbilo que lhe inundava o coração, bemcomo o de todos os Milheiroenses por ver Sua Ex.ª Rev.maguindada a tamanha dignidade, o Sr. Dr. Crispim Borges deCastro discorreu sobre as suas altas qualidades de inteligênciae coração. Acabou por lhe oferecer, em nome da freguesia,uma rica pasta com uma mensagem escrita em pergamóide,de que fazem parte estas palavras: “A carreira científica deV. Ex.ª, percorrida com brilho e distinção e o desempenhodas missões nobres do ensino e direcção eclesiástica coroamainda de altos méritos a personalidade austera que V. Ex.ªassim firmou. Por isso grandes missões se avistam no preclarodestino de V. Ex.ª Rev.ma, de quem a Pátria e a Cristandadeesperam tanto. Agora, príncipe da Igreja, mais um brasão sejunta à História de honra e nobreza dos filhos da nossa terra.Milheirós desvanecida glorifica e bendiz o seu tão ilustre filho”.Falou em seguida o pároco da freguesia, Pe. José BernardesPereira. Começando por recordar uma afirmação feita naquelemesmo lugar que não viria longe o dia em que Milheirós teriaum bispo, traço em seguida o perfil de Sua Ex.ª Rev.ma. Comosacerdote, fora um modelo de todas a as virtudes – humilde,modesto, apaixonado pela virtude e pelo saber. Como professor,sempre se impusera pela competência, clareza e método.Tanto em Filosofia como em Dogmática Sacramental tinhaafirmado brilhantemente o seu valor. A sua obra de escritordenunciava claramente. Quem não conhecia e admirava já a“Filosofia Tomista e a sua actualidade”, “O Sacrifício da Missaem fr. Gaspar do Casal”, “Portugal e Doutrina Dogmática daEucaristia”? Por fim formulou a Sua Ex.ª Rev.ma. ardentes

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votos de boa viagem e fecundo apostolado para a glória deDeus, honra da Igreja, exaltação da Pátria e prestígio deMilheirós.

Por último levantou-se o Sr. D. Sebastião Soares deRezende. Visivelmente comovido e quase confundido com ahomenagem que a sua humildade tanto recusara, declarou-se refractário, mas não insensível a homenagens e apoteoses;aceitava todas as manifestações de carinho e estima,lembrando de que atrás dele estava Deus. Concluiu pedindoas orações e esmolas dos seus conterrâneos e amigos, para,assim bem poder desempenhar o alto cargo que Deus e a

Igreja haviam depositado em suas mãos, salvando as almasdos dois milhões de infiéis da Beira e tornando maior, maisbelo e melhor Portugal.

Em seguida o Presidente encerrou a sessão. Assimterminou a festa de homenagem e despedida de Milheirós dePoiares ao seu ilustre filho, Sr. D. Sebastião Soares de Rezende

Morte do Bispo da Beira7

Iminente figura de Missionário e Ilustre FeirenseEmbora gravemente enfermo com uma doença que nãoperdoa, faleceu na manhã do dia 25 do corrente, o Sr. DSebastião Soares de Rezende, Bispo da Beira.

A morte do insigne prelado produziu profunda e geralconsternação não só na metrópole, como em toda a provínciada Beira, onde o venerando prelado era muito respeitado eadmirado pelas suas excelsas qualidades de missionário,sendo considerado em toda a Africa, um pioneiro do espíritoecuménico, que caracterizava a acção pastoral contemporânea.

O Sr. D. Sebastião Soares de Rezende, era natural dafreguesia de Milheirós de Poiares, deste concelho, onde temfamília, honrava o «Correio da Feira» com a sua amizade.

Não sendo possível hoje darmos uma notíciadesenvolvida, da figura e obra do saudoso Morto, fazemo-lono próximo número.

A família em luto, especialmente seu irmão Sr. JoséSoares de Rezende, sua tia Sr.ª.’ D. Beatriz Santos, destaVila, seus sobrinhos Rev. Monsenhor José Soares Martins,se. Dr. António Luís Martins Braz e Manuel Rezende,apresentamos o nosso sentido pesar.MISSA

Pelas 17 horas na próxima terça-feira, dia 31, o Rev.Vigário Manuel Soares dos Reis, celebra na Igreja Matriz umamissa sufragando a alma do Sr. D. Sebastião Soares deRezende.

A morte de S. Sebastião Soares de Resende, Bispo daBeira e o seu funeral8

Por ter chegado tarde a esta Redacção a infausta notícia dofalecimento ocorrido em 25 do mês findo do venerando Bispoda Beira, D. Sebastião de Resende, não nos foi possível darno último número do Correio, uma notícia desenvolvida, peloque o fazemos hoje. Como dissemos a morte do Sr. D. Sebastião Soares de

7 Correio da Feira, 28 de Janeiro de 19678 Correio da feira, 4 de Fevereiro de 1967

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Resende produziu em todos os meios sentimento de muitopesar, atendendo às altas qualidades morais e intelectuaisque o distinguiam. A Igreja Ortodoxa e várias confrariasmuçulmanas manifestaram o seu pesar pela morte de D.Sebastião, lembrando que ele era uma prestigiosa figura daIgreja em toda a África.

D. Sebastião Soares de Resende, nasceu em 14 deJunho de 1906 na freguesia de Milheirós de Poiares do nossoconcelho, e era filho de José Joaquim Soares de Resende ede D. Margarida Rosa dos Santos e sobrinho do saudosofeirense José Francisco dos Santos, que foi conceituadocomerciante desta Vila.

Fez os seus estudos preparatórios no Seminário deVilar, cursando depois Filosofia e Teologia no Seminário daSé do Porto. Recebeu a ordenação de presbítero em 21 deOutubro de 1928. Matriculou-se, em seguida, na UniversidadeGregoriana de Roma, onde se doutorou em Filosofia e licenciouem Teologia.

Frequentou além disso, o Curso de Ciências Sociaisdo Instituto de Bérgamo, na Itália.

Regressando a Portugal, foi nomeado professor deTeologia e vice-reitor do Seminário do Porto. Em 1939, passoua cónego da Sé do Porto, ao mesmo tempo que publicavavárias obras doutrinais.

Em 21 de Abril de 1943, Pio XII designou-o bispo daBeira, tendo sido sagrado a 15 de Agosto do mesmo ano edando entrada nesta diocese em 1 de Dezembro.

D. Sebastião Soares de Resende foi o primeiro bispoda Beira e a diocese, inicialmente, abrangia os distritos deManica e Sofala, Zambézia e Tete.

Estes dois últimos constituem, agora, as dioceses deQuelimane e de Tete, respectivamente.

Durante os vinte e quatro anos da sua actividadeepiscopal, o senhor D. Sebastião Soares de Resende afirmou-se, tanto em Portugal e na Santa Sé, como em círculoscatólicos de todo o mundo, um dos prelados de maior acçãoapostólica do último quarto de século, salientando-se,simultaneamente, nos trabalhos missionários e no campo dadoutrinação.

Os Srs. Presidentes da República e do Conselho aoterem conhecimento da morte do insigne Prelado, enviaramlogo mensagens de condolência, o mesmo fazendo o Sr.ministro do Ultramar, Governador de Moçambique e outrasaltas individualidades da vida Nacional.

Na sessão do dia 25 da Assembleia Nacional foiprestada homenagem à memória do saudoso Prelado.

O funeral de D. Sebastião, a que assistiram mais detrinta mil pessoas, foi a maior manifestação de pesar realizadana província da Beira.

Nela tomaram parte todos os prelados e clero de Moçambiquee de outras terras africanas.

O Rádio Club de Moçambique dedicou a D. Sebastiãovários programas. Falando ao microfone daquela estaçãoemissora o bispo de Vila Cabral. Toda a província deMoçambique esteve de luto. Não foi apenas a Igreja queperdeu um invulgar apóstolo, mas a Pátria também.

O comércio da cidade da Beira encerrou as suas portaspara que a sua população tomasse parte nas cerimóniasfúnebres do seu prelado, que por vontade expressa foisepultado em campa rasa num dos cemitérios da Beira.

O Sr. D. Sebastião, conhecido e admirado pelos seussentimentos de bondade e ideias liberais, recebia no Paçotodas as pessoas sem definição de raças ou posição socialcom iguais atenções.

As suas notáveis pastorais que publicava anualmenteeram sempre recebidas com anseio pela maneira comoapresentava os problemas religiosos e sociais.

O eminente Prelado que desde tempo recuadoconsagrava ao nosso jornal certa estima e no qual colaboroubrilhantemente, ao recebê-lo nas longínquas terras da Beira,fazia por vezes o seguinte comentário que bem dizia da suasimpatia pelo «Correio» e vem a propósito recordar nestemomento: “Vou ler o grande Times da Vila da Feira, para ondeescrevi os meus primeiros artigos como estudante e aos quaisdei o título – “Um estudante em férias”.

Correio da Feira curva-se ante a memória do ilustremorto e saudoso Feirense, e renova os seus cumprimentosde muito pesar à família em luto.

Na passada 3.ª feira, às 21 horas, o Rev. Vigário P.eManuel Soares dos Reis, pároco da nossa vila, rezou missade sufrágio pela alma de D. Sebastião Soares de Resende,na Igreja Matriz, com bastante afluência de fiéis.

Exéquias Solenes por alma D. Sebastião Soares deResende, Bispo da Beira9

Vão celebrar-se no próximo sábado, dia 25 do corrente,na Igreja Matriz, desta Vila, Solenes Exéquias por alma de D.Sebastião Soares de Resende, ilustre feirense e Bispo daBeira, pela passagem do 30.º dia do seu falecimento.

Proferirá a oração fúnebre, o Rev. Padre Albano Alferes,pároco de Souto e condiscípulo do falecido Prelado.

O Senhor Administrador Apostólico da Diocese, D.Florentino de Andrade e Silva, foi convidado a presidir a esteacto de sufrágio.

9 Correio da Feira, 18 de Fevereiro de 1967

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Exéquias Solenes por Alma do Senhor Bispo da Beira10

Revestiram-se de grande solenidade as exéquiascelebradas na igreja Matriz desta Vila, no sábado passado,por alma do Senhor Dom Sebastião Soares de Resende,ilustre Bispo da Beira e filho insigne do nosso concelho, no30.° dia do seu falecimento.

Presidiu Sua Ex.ª Rev.ma o Sr. D. Florentino de Andradee Silva, Administrador Apostólico do Porto. O Cabido da SéCatedral do Porto estava representado pelo Sr. Cónego Dr.Santos, Reitor da igreja dos Congregados. Presentes muitossacerdotes, entre os quais o Rev. P. Sebastião Soares MartinsBrás, director do Colégio de Ermesinde e sobrinho do Sr. D.Sebastião e alguns condiscípulos do saudoso prelado.

Assistiram ao piedoso acto, nos cadeirais da Capela-Mor, o Sr. Dr. Henrique Veiga de Macedo, Presidente daFederação das Caixas de Previdência; Sr. Dr. Domingos daSilva Coelho, Presidente da Câmara; os Srs. Conde eCondessa de Fijô; o Sr. Dr. Roberto Vaz de Oliveira e Esposa;o Sr. Dr. Domingos Caetano de Sousa e Esposa; o Sr. Dr.Belchior Cardoso da Costa e Esposa; o Sr. Dr. Castro Chaves,Conservador do Registo Predial e Esposa; o Sr. António NevesFerreira Brandão, Comandante dos B. V. da Vila; o Sr. JoãoCorreia de Sá e muitas outras individualidades. O «Correioda Feira» esteve representado pela sua Directora.

Ao centro do transepto erguia-se a essa simbólica,junto da qual estava postado um pelotão dos B. V. da Feira.

Entre as pessoas de família do querido finado estavamseu irmão, o Sr. José Soares de Resende e esposa e filhose suas irmãs Maria, Rosa e Ana; sua tia D. Beatriz Santos,seu primo Sr. José Santos e esposa, desta Vila; vários sobrinhose primos de M. de Poiares, Macieira de Sarnes e Arrifana.

Da sua terra natal (M. de Poiares), além de pessoasde família, muitas pessoas vieram tomar parte, juntando-seà numerosa assistência desta Vila.

Foi cantado o Ofício de Matinas e Laudes por todosos Sacerdotes e em seguida houve Missa Solene, sendocelebrante o Rev. P. Manuel Francisco de Oliveira, condiscípuloe conterrâneo do Sr. D. Sebastião, sendo acolitado de Diáconopelo Rev. P.e Francisco Marques Couto, também condiscípuloe de Subdiácono pelo Rev. P.e Alberto de Assunção Tavares,colaborador do Sr. D. Sebastião na Beira.

Serviu de Mestre-de-cerimónias o Rev. P. Joaquim dosSantos Cunha, pároco de Cortegaça. Os cânticos litúrgicosforam executados pelos sacerdotes presentes sob a direcçãodo Rev. P.e António Moura de Aguiar, pároco de S. João daMadeira.

À comunhão numerosas pessoas abeiraram-se damesa eucarística.........................................................

Terminado o Santo Sacrifício, o Rev. P.e Albano dePaiva Alferes, pároco de Souto e condiscípulo do saudosoBispo, proferiu com proficiência o elogio fúnebre do queridoprelado. Numa visão retrospectiva descreveu passos da vidade estudante, de padre, de professor e vice-reitor do Seminário,de cónego da Sé Catedral do Porto e finalmente de Bispo,primeiro Bispo da Diocese da Beira, seu primeiro e único amorda sua grande alma de Bispo. Focou as virtudes que sempreadornaram o coração do ilustre prelado. Recordou ashomenagens que o Concelho da Feira prestou a Sua Ex.ªRev.ma após a sua sagração episcopal em memorável sessãosolene no Salão Nobre dos Paços do Concelho, tendo sidoentão benzidas pelo Sr. D. Sebastião, a bandeira e o estandarteda Câmara. Por isso essa mesma bandeira, agora envoltaem crepes, ali estava presente a estas exéquias. Disse queesperava que a Feira um dia pelos seus dirigentes viesse aperpetuar a memória deste seu glorioso filho que tanto honroua Igreja e a Pátria e que coroou a sua vida rica de méritoscom o martírio, autêntico martírio da sua doença que aceitoue sofreu com a maior resignação e esperança cristã naEternidade.

A brilhante oração fúnebre empolgou a numerosaassistência e foi ouvida no mais respeitoso silêncio. Por fim,o Sr. D. Florentino de Andrade e Silva iniciou os responsosfúnebres e lançou a Absolvição.

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10 Correio da Feira, 4 de Março de 1967

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83Testamento

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ámen.Nesta disposição testamentária, eu quero, em primeiro

lugar, agradecer a Deus Pai haver-me criado, a Deus Filho ohaver-me remido e salvado, fazendo-me cristão, tornando-me Seu sacerdote e dispensando-me a plenitude sacerdotal,consagrando-me bispo da Sua Igreja, Una, Santa, Católica eApostólica; a Deus Espírito Santo o haver-me conferido oAmor da Caridade divina.

Em segundo lugar, rogo humildemente ao SenhorJesus perdão dos pecados de toda a minha vida, de minhasimperfeições; e de, na linha humana, sacerdotal e episcopal,antes de entrar nesta Diocese e depois de nela estar, nãohaver talvez trabalhado mais e melhor.

Aos meus irmãos, em Cristo, da Diocese da Beira, aoclero, aos religiosos e aos fiéis, eu agradeço a convivênciaamiga de sempre e a colaboração apostólica que me deramem ordem à implantação da Igreja nos sucessivos territóriosque constituíram variadamente esta Diocese; eu peço-lhesperdão de alguma falta que, porventura, haja cometido paracom eles; e espero que, após a minha morte, sufraguem, juntodo Senhor, com as suas orações, a minha alma.

Aos meus irmãos cristãos separados, não cristãos ea todos que habitam o território da minha Diocese, eu queroanunciar que sempre por eles orei, no altar do Senhor,esperando que, um dia, a Caridade de Cristo nos unirá atodos, tornando-nos Um, como Deus é Um.

A quantos à Diocese não pertencem, eu tenho umapalavra a dizer: se para com alguém haja cometido falta ou

negligência, de tudo a esses peço igualmente perdão.Aos meus íntimos colaboradores, quer da Cúria

Diocesana quer de outras sectores de trabalho, os quais vivemcomunitariamente comigo nesta mesma residência, aos deontem, aos de hoje e aos de amanhã, eu expresso o meusentido reconhecimento pela fidelidade, dedicação e carinhoque sempre houveram para comigo.

Quanto a bens materiais, nada tenho a dispor, porquenada possuo. Os bens de família, há muito que me desfizdeles; os bens que, por ventura, da igreja ou por motivo daIgreja haja recebido são exclusivamente para a Igreja, semtolerância de outra partilha.

Resta-me agora tão-somente oferecer a vida a Deuspela salvação minha e da Diocese, aceitando desde já, aSantíssima Vontade de Deus, quanto à minha morte, paraaquele dia e daquele modo que mais aprouver ao Senhor.Espero sempre em Jesus que não me fal tarámisericordiosamente com a Sua graça; sempre, mas emespecial na hora decisiva do trânsito definitivo desta vida paraa outra.

O meu enterro será feito segundo as normas litúrgicase, quanto ao resto, simplicíssimo. Gostaria que, em algumtrajecto, cristãos africanos pegassem ao meu caixão. Desejariatambém que fosse sepultado na principal via interna docemitério que fosse mais calcada pelos visitantes do mesmocemitério. Em simples campa rasa e com uma pequena pedrapor cima, em que se inscreva somente «Sebastião, primeiroBispo da Beira», aí ficarei e aí esperarei a ressurreição dacarne para o Juízo final.

Beira, Festa de Nossa Senhora de Lurdes, 11 deFevereiro de 1966.

Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira

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84 Poesia

Auto-retrato

«Para cá, para lá…Para cá, para lá…Um novelinho de linhaPara cá, para lá…Oscila no ar.»

Manuel Bandeira

O novelinho,

Oscila no ar…Dá voltasE voltas…Enrola-se…E enrola…Até se formar.Faz curvas…Requebros…Dá círculos no ar,Não chegaUma mãoPara o agarrar.Aprende

O saberDesfia…Confia…Que o há-de merecer.Mas…O fio partiu,E o novelinho tontoDe tonto, mais tontoQuase desistiu

Maria Fernanda Calheiros Lobo

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85Fernando PessoaPoeta do Desassossego* Clara Crabbé Rocha

Exmo. Senhor Presidente da República, Exmo. SenhorMinistro da Educação, Exmo. Senhor Secretário do GovernadorCivil de Aveiro, Presidente da Assembleia Municipal, Presidenteda Câmara, Liga dos Amigos da Feira, Escultor AurelianoLima, Comissão de Vigilância do Castelo, minhas Senhorase meus Senhores.

Fernando Pessoa é o poeta do desassossego. Estapalavra docemente sibilante que deu o título ao livro do seusemi-heterónimo Bernardo Soares, ajudante de guarda-livrosna cidade de Lisboa, traduz um dos sentimentos porventuramais marcantes da contemporaneidade: uma inquietação que,literariamente, se enraíza no "spleen" decadentista, emparticular baudelairiano, no começo do século se mascara deexcitação com o futurismo de Marinetti, se consubstanciadepois com a náusea no existencialismo de Camus e Sartre,e encontra múltiplas derivações nos nossos dias.

Saudamos hoje Fernando Pessoa como uma dasgrandes vozes portuguesas dessa inquietação moderna, quenão encontra paz em nenhum paralelo.

*Professora Catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa

O poeta renunciou ao contentamento, como sedepreende do poema "O Quinto Império":

"Triste de quem é feliz!Vive porque a vida dura.Nada na alma lhe dizMais que a lição da raiz -Ter por vida a sepultura."

Escolheu pois a via da inteligência lúcida, que conduznecessariamente à inquietude. "Ser lúcido é estar indispostoconsigo próprio", escreve Bernardo Soares. E é descontenteconsigo mesmo e em desassossego permanente que o poetada Mensagem vai realizar a experiência fundamental da suavida: "ser tudo de todas as maneiras". O último verso da "OdeTriunfal" exprime esse desejo tão caracteristicamentesensacionista:

"Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!".

Experimentar tudo de todas as maneiras – eis umaaventura do Prometeu contemporâneo, a que Pessoa dáexpressão na sua obra. Nada detém o homem dos nossosdias: drogas, velocidades, novas técnicas científicas e artísticas,armas cada vez mais sofisticadas, viagens interplanetárias,sensações inusitadas. A euforia da descoberta anda de mãosdadas com a insatisfação. Com Pessoa passa-se o mesmo:o seu febril desassossego fá-lo dispersar-se numa série deficções, desde a pessoal até à estética e à política, já que oseu fôlego criador e a versatilidade do seu pensamento não

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cabem nos estreitos varais da pessoa individual, duma correnteliterária única ou dum regime polít ico exclusivo.

Não nos alongaremos na ficção pessoal, ou seja nodesdobramento heteronímico, tão estudado já. "Inferno de serEu, a Limitação Absoluta" – exclama nas Páginas Intimas ede Auto-Interpretação o "fabbro" que se "outrou" em váriaspessoas com nome, profissão, alma e corpo próprios. Masexistem ainda outros sistemas literários do seu "mal-estar".Como se não lhe bastasse a heteronímia, Pessoa vai eleger,complementarmente, uma série de metáforas da dispersão.

A que melhor traduz a estrutura dialógica do "dramaem gente" que o poeta viveu é, como bem viu José AugustoSeabra, estudioso do poetodrama pessoano, a da galáxia,que aparece no poema dramático Primeiro Fausto. Mas,para além da imagem da nebulosa, outras surgem na suaobra que sugerem igualmente a atomização da personalidade.É o caso da rosa-dos-ventos, na belíssima ode "Vem, Noiteantiquíssima e idêntica":

"Vem, dolorosa,(...) Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,Folha a folha lê em mim não sei que sinaE desfolha-me para teu agrado,Para teu agrado silencioso e fresco.Uma folha de mim lança para o Norte,Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;Outra folha de mim lança para o Sul,Onde estão os mares que os navegadores abriram;Outra folha minha atira ao Ocidente,Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,Que eu sem conhecer adoro;E a outra, as outras, o resto de mimAtira ao Oriente,Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé, (...)."

E, claro está, assume ainda especial relevância napoesia de Pessoa uma outra imagem da dispersão: a damáscara, exemplificada neste trecho do seu heterónimoengenheiro:

"Depus a máscara e vi-me ao espelho. -Era a criança de há quantos anos.Não tinha mudado nada...É essa a vantagem de saber tirar a máscara.É-se sempre a criança,O passado que foiA criança.Depus a máscara, e tornei a pô-la.Assim é melhor,Assim sem a máscara.E volto à personalidade como a um términus de linha."

Uma tal dramatização do eu – que vai procurar raízesà formulação shakespeariana "all the world's a stage" – deve-se em parte a um contexto cultural que passa pelo Cubismoe pelas teorias relativistas. A pintura cubista atomizava oobjecto retratado: desintegrava-o nas suas partes constituintes,de modo a superar a bidimensionalidade da tela com umapluridimensionalidade de ângulos de visão. Lembremos obrasde Picasso que se enquadram nessa atitude estética, como"As raparigas de Avignon" ou "Rapariga ao Espelho". Asdoutrinas relativistas, por seu lado, ensinavam que a nossapercepção dum objecto nunca é total e englobante: assim,não podemos ver uma laranja toda duma só vez. O ser existeem situação, a soma das várias perspectivas que dele temosé que nos dá o seu total conhecimento.

Voz portuguesa desse novo confronto europeu com avida, Fernando Pessoa colocou-se a si mesmo em váriassituações: ora engenheiro, ora médico, ora seduzido pelopassado greco-romano, ora fascinado pelo futuro, pelacivilização e pelo progresso, ora criança brincando com umabola num jardim que é afinal o Paraíso perdido, ora adultonostálgico desse Paraíso de infância. E assim deu expressãoestética a uma realidade que todos nós experienciamos acada momento: a de que somos múltiplos, ora alegres, oratristes, ora esperançados, ora em desespero, ora maus, orabons. A grande descoberta do Modernismo é a de que o sujeitonão é uno, é vários. Se o Classicismo procurou compreendero Homem (com h grande) na sua essência, e depois oRomantismo se interessou pelo homem (com h pequeno) nasua diversidade rácica, geográfica, histórica e sobretudoindividual, o Modernismo veio dizer-nos que em cada indivíduoparticular há vários eus particulares; diversos masinterdependentes.

É, de resto, esta ideia que explicita Hermann Hesse,escritor alemão nascido em 1877, no seu romance O Lobodas Estepes. Trata-se dum livro publicado doze anos depoisdo primeiro número da revista Orpheu, e revelador dummomento histórico-cultural surgido entre as duas guerras,assinalado por uma aguda consciência da dispersão do eu,da multiplicidade de facetas que se entrecruzam na mesmapessoa. O Lobo das Estepes é um romance de carácterautobiográfico, mas dum modo geral de exploração do sujeitona sua duplicidade de ser divino e animal, de homem e lobo:

"Era uma vez um tal Harry, mais conhecido por "OLobo das Estepes". Andava sobre duas pernas, vestia roupae era homem, mas no fundo o que realmente era, era um lobodas estepes. (...)

“O Lobo das Estepes tinha, portanto, duas naturezas,uma natureza humana e uma natureza lupina, era esse o seudestino, e nada nos diz que esse destino fosse assim tãosingular; tão raro (...)".

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Não era, de facto. E aí temos nós Fernando Pessoaa criar os heterónimos, ou Sá-Carneiro, seu amigo ecompanheiro de geração, a dizer: "Eu não sou eu nem sou ooutro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte detédio. / Que vai de mim para o Outro". Como Hermann Hessedesdobrou a sua personagem em homem e lobo, explorandoaté aos últimos limites a dupla faceta demoníaca e divina quehá em todos nós, também o poeta da Mensagem se interrogoude todas as maneiras, angustiadamente, servindo-se dos maisvariados registos literários.

Para além da dispersão pessoal, ele "explode" tambémnum fogo de artifício de correntes estéticas por ele inventadasou assimiladas, e de que às vezes se enfastia depois, comouma criança se cansa dum brinquedo.

Essas correntes vão desde o Decadentismo e oSimbolismo até ao Futurismo, passando pelo Paulismo, peloInterseccionismo e pelo Sensacionismo.

O poeta desassossegado revolucionou românticos efinisseculares padrões artísticos, declarando alto e bom somque "o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo",e cantando a civilização moderna, as fábricas, as máquinas,a beleza ruidosa da cidade, na esteira imediata do belgaVerháeren com o seu poema "Les Villes Tentaculaires". Maistarde, reencontraremos o mesmo tema da poesia da cidade,com outras conotações, na "Arte Poética" do neo-realistaMário Dionísio:

"A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia [nem no jardim dos lilases.A poesia está na vida,nas artérias imensas cheias de gente em todos ossentidos,nos ascensores constantes,na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios [e de todas as cores,nas máquinas da fábrica e nos operários da fábricae no fumo da fábrica".

Mas essa revolução estética tinha necessariamentede passar pela linguagem, reduzida por vezes à palavra crua,à construção insólita ou à violência do grito, como o domarinheiro da "Ode Marítima" ou os do final apoteótico da"Ode Triunfal":

"Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a [trabalhar, eia!Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!Hé-há! He-hô! Ho-o-o-o-ol"

Chega mesmo a propor-nos uma revolucionária efuturista "estética não aristotélica", que Álvaro de Camposviria a definir em texto publicado nos n.os 3 e 4 da revistaAtena. Pode ler-se nessas páginas de doutrinação, que fazemtábua rasa das concepções herdadas da Poética de Aristóteles:

"Creio poder formular uma estética baseada, não naideia de beleza, mas na de força (...).

A arte, para mim, é, como toda a actividade, um indíciode força, ou energia."

Assim se identifica energia e beleza, e por isso seexplica que, para Álvaro de Campos, o binómio de Newtonseja tão belo como a Vénus de Milo.

Daí poder Georg Rudolf Lind, um arguto estudioso daobra pessoana, concluir que:

"Brincar com as ideias" está na base do que podemoschamar o relativismo criador de Pessoa; ele examina todasas possibilidades espirituais da época para extrair delas oselementos para uma nova arte universal (...). Pessoa é, semdúvida, um dos expoentes máximos da polivalência intelectualdo nosso tempo, um Fausto moderno (...)".

Mas o relativismo de Pessoa é também ideológico.Esse "cidadão do imaginário", como lhe chama Joel Serrão,não deixou de criar as suas ficções políticas. Também nesseplano se dividiu entre a realidade e a profecia, entre o presentevivido e o futuro sonhado. No que toca ao primeiro, a opçãoentre Monarquia e República não lhe é fácil. Numa notaautobiográfica, escreve de si mesmo na 3ª pessoa:

"Considera que o sistema monárquico seria o maispróprio para uma nação organicamente imperialcomo é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, aMonarquia completamente inviável em Portugal.Por isso, a haver um plebiscito entre regimes,votaria, embora com pena, pela República."

No que diz respeito à profecia, movido pela "saudadeimensa dum futuro melhor", Pessoa constrói, com base nummito tão caro ao nosso insconsciente colectivo – o do Encoberto–, a ficção política do Quinto Império, já anunciado pelastrovas do Bandarra, pelas quadras de Nostradamus e pelaHistória do Futuro do Padre António Vieira. Hoje, da tãocontroversa visão do Quinto Império talvez possa ficar a finainterpretação de Joel Serrão:

"O Quinto Império pessoano funcionou como umprojecto nacional-universalista de natureza ea m b i ç ã o m a i ê u t i c a s ? V i s o u e l e ,fundamentalmente, como que uma pedagogiaorientada para a atitude mental de descobrir,condição de abertura ao futuro em termos espirituais

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e civilizacionais? O Quinto Império teria sido, emúltima instância, o mais complexo heterónimoafeiçoado por Pessoa, porque, conscientemente,assumido como heterónimo da Pátria Portuguesanas suas virtualidades (pressupostas) deuniversalidade cultural?"

Assim, julgando embora que "a política é o maisperigoso dos divertimentos inúteis", o poeta de Orpheupretendeu também "ser tudo de todas as maneiras",politicamente:

"Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdadenão pode estar em faltar ainda alguma cousa! (...)Na eterna mentira de todos os deuses, só os deusestodos são verdade", declara em 1923, quando lheperguntam ''O que calcula que seja o futuro daRaça Portuguesa?".

Quisemos evidenciar, aos níveis pessoal, estético epolítico, essa "prestidigitação mental" de que FernandoPessoa é useiro e vezeiro, e pela qual procura alcançara Totalidade. Para ele, como é sabido, fingir é a própriaessência da arte:

"O poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente."

Não se procure, pois, a verdade, a sinceridade ou acoerência num poeta versátil como a folha do olmo, já que,segundo a teoria estética pessoana,

"A sinceridade é o grande obstáculo que o artistatem de vencer. Só uma longa disciplina, umaaprendizagem de não sentir senão literariamenteas cousas, podem levar o espírito a estaculminância."

E, no entanto, não se pense que Fernando Pessoanão tem a nostalgia da felicidade, da sinceridade, dum tempoanterior às máscaras e à dor. Essa nostalgia dirige-se quasesempre para o paraíso perdido da infância, de que são imagenspreferenciais o jardim, os jogos infantis ou o "lar que nuncaterei". Diz Álvaro de Campos num poema intitulado "Dobradaà moda do Porto", onde se contrapõem as imagens poéticasda carência, relativas ao estado adulto, e as da plenitudeafectiva, relativas à infância:

"Um dia, num restaurante, fora do espaço e do [tempo,Serviram-me o amor como dobrada fria.Disse delicadamente ao missionário da cozinhaQue a preferia quente,Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se [come fria.Impacientaram-se comigo.Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,E vim passear para toda a rua.Quem sabe o que isto quer dizer?Eu não sei, e foi comigo...(Sei muito bem que na infância de toda a gente [houve um jardim,Particular ou público, ou do vizinho.Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.E que a tristeza é de hoje)."

Assim evoca a infância perdida o poetadesassossegado, que oscila entre a depressão e a euforia,o sono e o sonho, o fumo do cigarro e a chávena de café.

O desejo do sono – que Eduardo Lourenço interpretacomo obsessão regressiva, maternal, como protecção contraum mundo de violência viril (as fábricas, os automóveis, oavião) – prolonga o ideal nirvânico de Camilo Pessanha, opoeta da Clepsidra:

"Eu vi a luz em um país perdido.A minha alma é lânguida e inerme.Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!No chão sumir-se, como faz um verme..."

Também Álvaro de Campos se define a si mesmo, na"Saudação a Walt Whitman":

"Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de [tédio."

As imagens do mal-estar, das incomodidades físicas,da náusea aparecem a todo o momento na obra de FernandoPessoa e dum modo geral dos modernistas, prenunciando osentimento de náusea existencialista.

Aliás, curiosamente numa das novelas de Mário deSá-Carneiro, há uma personagem que projecta escrever umaobra chamada "A Náusea".

O contraponto da depressão é a euforia, que nos versosde Pessoa encontra expressão acabada nas imagens doarlequim, do palhaço, do clown. Também delas lança mãoMário de Sá-Carneiro, no seu conhecido poema "Fim":

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"Quando eu morrer batam em latas,Rompam aos saltos e aos pinotes,Façam estalar no ar chicotes,Chamem palhaços e acrobatas! (...)"

A presença tão frequente da imagem do palhaço e dosaltimbanco nesta geração tem decerto uma explicaçãohistórico-cultural. Por um lado, exprime uma atitudefunambulesca de reacção contra o trágico (a Guerra,sobretudo): as "poses" arlequinescas, que tanto chocaram os"lepidópteros" burgueses do tempo, não são senão formasde defesa, de disfarce, de mascarada. Por outro lado, aimagem do palhaço manifesta a sugestão do universo pictóricode Picasso, tão marcado desde os primeiros anos do séculopelas figurações de arlequins e saltimbancos, e que irá reflectir-se noutros artistas, desde Chagall até ao nosso AlmadaNegreiros.

Assim se desdobram os poetas do Modernismo entreo entusiasmo e a náusea, reflectindo uma das contradiçõesfundamentais do contexto epocal em que evoluem: o progresso,a agitação, a vida febril, a velocidade e até a guerra entramde rompante num "mundo onde se dormia". Como não haviade sentir Pessoa o fascínio pela bela brutalidade da vidamoderna, do admirável mundo novo? Mas, ao mesmo tempo,sente-se nele constrangido e angustiado. A projecção regressivana infância ou o desejo de dormir são duas variantes dumafundamental atitude de evasão na sua obra. Mas é ainda umoutro modo de evasão aquilo que já alguém chamou uma"poesia da beira do cais".

"Ah! todo o cais é uma saudade de pedra",

exclama Álvaro de Campos, que tal como Pessoa ortónimose debate entre o sonho e o medo da viagem, enquanto ficano cais a ver partir e chegar os grandes navios, ou na garea ver partir e chegar os comboios. Lembremos que tambémSá-Carneiro procurou, a seu modo, evadir-se em espaçoscada vez mais alargados: primeiro Lisboa, depois Paris,finalmente a morte.

A viagem de Pessoa é, pois, uma viagem imaginária,até porque, como diz noutro verso lapidar,

"Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir".

E assim o poeta passeia à roda do quarto da suaintimidade, assim se fecha no labirinto da sua interioridade.

Como Jorge Luís Borges, outro escritor contemporâneo,Pessoa gosta de labirintos. Houve mesmo quem dissesse queele poderia ser uma personagem do grande argentino...

Desassossegado e labiríntico, Pessoa viajou de todas

as maneiras possíveis: no ser, na arte, na política, no tempo,no espaço. "Sê plural como o universo", exortava assim osseus leitores. Só que, como bem concluiu Yvette Centeno,não conseguiu nunca alcançar a Totalidade.

A sua obra, no dizer de Joel Serrão, é como as capelasimperfeitas:

"Capelas susceptíveis de abóbadas várias, mas daexclusiva responsabilidade de quem se atreva, agora, a lançá-las... Quanto a Pessoa, ele jamais a construiu [a abóbada].Não porque o não quisesse ou o não tivesse tentado ou nãotivesse sabido a falta que fazia, mas, simplesmente, porquenão pôde."

E a sua memória permanecerá na literatura portuguesacomo um marco miliário singular de suprema lucidez e desuprema impotência. O que não é desdourar-lhe a glória. É,muito pelo contrário, admirar nela a inteligência que em todosos passos a nimba e a angústia dos limites humanos, que Sá-Carneiro tão magistralmente plasmou num verso:

"Ai a dor de ser quase, dor sem fim!"

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90 Poesia

Poema ou Rosa?

Não terá sido um poemao que te pus nas mãospara depois me dizeresque o não entendes.Não foi um poema.Foi uma rosa.

E não é uma rosaum poema ininteligível?E não é a belezao maior dos enigmastão grande pelo menosquanto a morte?

É verdade que se não compreendesa rosatambém não foi uma rosao que te dei.Mas repara:não será que no mínimotens agora as mãos perfumadas?

Anthero Monteiro

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91Professor Pinho Leão* Rogério Pinto Moreira

No 1º. Aniversário da Morte do Professor Pinho Leão

No dia 23 de Maio, no Salão Nobre dos Paços doConcelho da Feira, houve, uma Sessão Solene seguida deuma Romagem de Saudade, para comemorar o 1º. Aniversárioda Morte desse Meu Amigo. Assisti, como se me impunha avelha Amizade que a ele sempre me ligou, desde os temposem que trabalhamos juntos nas Escolas do Conde de Ferreira,a norte da hoje chamada cidade de Santa Maria da Feira.

Fiquei com a sensação de que, apesar de tudo o quefoi dito de justo e muito bem pelos seus Colegas e Discípulos,em palavras de muito apreço, pelo seu Labor e pela eficiênciado seu Ensino, e, no que dizia respeito à sua Personalidade,algo ficava por dizer.

Perdoem-me os seus Amigos, se a mim também mecompetia fazê-lo. Agora a mim próprio me condeno, por não

* Nasceu em S. Paio de Oleiros em 1914 e aí faleceu, em 25 de Agosto de2001.Instrução primária em Mozelos, estudos secundários no Colégio dos PadresMissionários do Espírito Santo em Braga e curso do Magistério Primário noPorto.Professor, viajante, comerciante e industrial de papel.Publicou dois livros de poesia: “Sol de Inverno” – 1986 e “Suave entardecer”– 1990.

ter expresso, em sentidas palavras, o que a minha timidez,no momento, não me deixou e inibiu de dizer.

Faço-o agora para ressalvar aquilo a que eu, se o nãofizesse, alcunharia de traição à sua Memória, de Amigo eColega e, por vezes, de Conselheiro. Conselhos que melevaram a alterar certos aspectos da minha vida particular,um tanto atrabiliária, e que ele bem conhecia pelas minhaspróprias confissões de Amigo...

Por vezes em Lisboa, quando casualmente nosencontrávamos, nas suas idas à Federação de Futebol, eoutras, aí, no Rossio, sob as copas frondosas daqueles velhosplátanos... e ao lado da velha catedral onde me casei.

Conversámos longamente.. . Havia na suaPersonalidade qualquer coisa de indefinível, quer pelaafabilidade com que me tratava, quer por aquele sorriso afávelque acompanhava sempre os seus gestos e as suas palavras.

E essa indefinível particularidade, encontrei-a eu naexpressão de um Filósofo, também meu Amigo, como sendoo Justo Equilíbrio que punha em todas as atitudes que tomava...

Esse Equilíbrio Certo, penso agora, estava nas palavrassempre adequadas ao assunto versado; por isso, era o Homemdo qual emanava sempre a decisão exacta.

Havia nele Equilíbrio e Disciplina, pois não se escondia,pelo Bem que fazia, mas também não exibia estas e outrasvirtudes.

Actuava sem alarde, como Bom Samaritano que semprefoi.

Quero dar o meu testemunho, pois neste Justo Equilíbrioestava a forma como sempre evitou os extremos.

Trabalhou pelo Próximo, não para ser visto, mas sempre

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quando e onde era preciso.Nele tudo isto era simples e natural. Ele era a Disciplina.Homem discreto, pelo que deu sempre transparência à sua vida.Cumpriu deveres de Estado, Profissionais, Deveres Sociais com a

verticalidade do Fio-de-prumo.Na vida familiar demonstrou aquele Equilíbrio de Quem não é rigoroso,

nem permissivo, em demasia. Educador, exemplificou-o na Família que seconhece. Vede...

Na sua vida profissional, em décadas, foi Homem de trabalho.Na vida sócio-política teve participação activa: presença em reuniões,

em Assembleias, em cargos de Direcção, em Associações Humanitárias, etc.Participou. Não foi fanático, nem radical, nem intransigente...O Equilíbrio Justo e a disciplina a que se obrigava foram sempre, sempre,

as suas Maiores Virtudes.Eis o que Eu poderia ter dito e não disse.É o meu Desagravo. É a minha Angustiada Desculpa, que hoje peço

Àquele que em vida foi um dos meus Maiores Amigos.Vou transcrever aqui uma pequena composição poética, semelhante

àquelas que Ele tanto apreciava.Dizia Ele que eu tinha sensibilidade poética, e é dela que vou lançar mão

para o recordar:

Lutou com Dignidade. A sua mãoBrindou à Raça Humana. ArdentementeLutou por Vida Nova a toda a genteE Direito a dizer se “Sim ou Não”...

Combateu o preconceito. E entãoOlhou o Sol que aquece e, ao longe, brilha.E como Homem Livre, ó maravilha,Abraçou todo o Povo como a irmão.

Proclamo, agora, embora seja tarde:Foi um Homem de Fé e de Renome...E se hoje em Liberdade o Mundo arde

A terra com amor seu corpo tome;Que Deus Bondoso em suas mãos O guarde.Lutou contra a Ignorância, irmã da Fome.

S. Paio de Oleiros, 28/05/1989

Original do soneto

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991º Centenário da morte de José EstevãoDiscurso da Ex.ª Senhora D. Joana Inês deLemos Coelho de Magalhães

Moreira da Maia, 9 de Setembro de 2005

Ao arrumar umas gavetas com correspondência, cartas antigasda família e de amigos, encontrei este discurso que a minhatia Joana escreveu e disse no centenário da morte do meubisavô José Estêvão, em Aveiro, em 1962, se não me engano.Embora tivessem passado 100 anos, a figura e personalidadedesse meu bisavô estava tão presente na tradição da famíliaque parecia que a minha mãe e as minhas tias o tinhamconhecido pessoalmente, o que de facto não aconteceu. Éque a minha bisavó Rita Miranda, viúva de José Estêvão,mantinha viva a lembrança do marido e transmitiu ao filho eàs netas esse culto de personalidade, sem dúvida simpáticopara a família do brilhante orador.Tendo mostrado o manuscrito ao meu amigo Dr. FernandoSampaio Maia e tendo ele achado interessante publicá-lo naRevista da Liga dos Amigos da Feira, que já tem publicadomais referências a José Estêvão, agradeço a simpática ideia.

D. Maria da Conceição de LemosMagalhães da Motta de Sottomayor

«Sinto-me aqui numa situação muito difícil. Já por duasvezes me coube a grata incumbência de agradecer, em nomeda nossa família, homenagens muito honrosas e comovedoras,prestadas, em Lisboa e na minha terra da Maia, à memóriado nosso Pai, por ocasião do centenário do seu nascimento.

Nessa altura eu era simplesmente uma filha, a exprimir,por mim e pelos meus, a gratidão natural que sentimos aover enaltecer e fazer justiça a um Pai, cuja existênciapartilhámos, cujos talentos de perto apreciámos, cujas virtudes,nobreza de carácter, delicadeza de sentimentos e afectos,criaram, com a cooperação da nossa Mãe, o ambiente dealegre e feliz união familiar em que nascemos, nos formámos,e que hoje recordamos com grande saudade e enternecidoorgulho. - Era simples e natural.

Mas agora eu venho substituir alguém, - venho substituiresse mesmo querido e saudoso Pai, que, neste mesmo local,em homenagens idênticas, abriu a sua alma e o seu coraçãoem expansões comovidas a que o seu talento de orador deraça, a sensibilidade do seu insaciado amor filial, ajudadospelo fogo da mocidade e a força da maturação dos anos,davam acentos de eloquência e beleza que nunca foramesquecidos.

Amor filial insaciado, sim. - Tinha apenas três anos,quando a orfandade o feriu; e em toda a sua vida essa ferida se fez sentir. Compensou pelo estudo constante dasua personalidade e por um amor imenso, a presença desseidolatrado Pai, de quem apenas conservava uma tenuíssimarecordação. - No primeiro aniversário da sua morte, minhaAvó escrevia a um amigo: - «O Luís acordou hoje a chorarcom saudades do Pai, com exclamações de dor e

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de recordações que parece incrível numa criança tão pequena».Essa dor infantil, essa saudade perduraram no culto

da memória paterna, que dominou toda a sua existência.Aos 19 anos, ainda estudante de Direito, escreve:

Ninguém tem mais a peito o não deixar deslustrar o nomeimaculado e impoluto que ele me deixou».

E nos diversos passos da sua carreira política esseculto é sempre reafirmado e reivindicado o direito de definirquais as suas imposições morais e políticas. Ele assim odisse:

«Eu tenho em mim mesmo, numa tradição que reputosagrada, o meu partido, o meu credo político (…). Não precisoque ninguém me defina quais os meus deveres, nem meinterprete o sentido e o exemplo de uma vida pública que,mais do que ninguém, eu tenho estudado, meditado, reflectido».

Não só na vida pública, mas também no seu laborliterário, com frequência transparece esse grande amor filial.Dedica ao Pai, em palavras simples, mas repassadas detocante veneração, o livro que considera a obra principal dasua carreira de escritor e de poeta. - O poema D. Sebastião.

Na «Frota de Sonhos», compêndio de sonetos em quese espelham tantas facetas do seu delicado espírito, não falta,- não podia faltar, - a grande figura de José Estêvão.

E lá a vemos aparecer no soneto “A Voz do Espectro”,quando os reveses da política o lançam na cadeia por maisde dois longos anos.

É uma «figura varonil» que surge, de repente, «naescuridão do cárcere» e lhe diz «com a sua voz gloriosa»:

«Fizeste bem, meu filho, era o dever!».Noutro soneto, «Evocação», é na paz e beleza luminosa

da Costa Nova, entre a calma risonha da Ria e a grandezarevolta do mar, que o «ressuscita em si» ao «remorder acerboda saudade». E os laços profundos e sensíveis, formados poressa evocação constante, exprime-os neste verso:

«Por isso o coração aqui me prende assim!»Temos ainda esse bonito e valioso estudo, - «Meu

Pai», - que principiou para prefaciar a edição dos Discursos,do centenário de 1909, - e que agora a Comissão dascelebrações centenárias incluiu, mesmo inacabado (apenascompletado com as notas que lhe estavam juntas), nainteressantíssima Colectânea que acaba de publicar.

Era tenção de meu Pai refundir esse trabalho noutromais largo e desenvolvido, em que escreveu: - «Sintointeiramente livres, em face da sua nobre e querida figura, aminha admiração de homem e o meu piedoso amor de filho».

Infelizmente, não chegou a cumprir esse intento…Nessas páginas, quantas vezes, ao retratar o Pai, o filho quese retrata a si próprio. - Deviam ser muito semelhantes assuas almas, como, pelos retratos, podemos verificar que muitose pareciam fisicamente.

Sempre, em tudo, na vida pública, literária, privada,Luís de Magalhães foi o «Filho de José Estêvão» - Assim oapelidavam nas críticas dos primeiros livros que publicou,assim o saudavam no seu aparecimento em diversas situaçõespolíticas, assim o consideravam os velhos amigos de família,assim lhe chamavam nas ruas de Aveiro, na Costa Nova:«Aquele, é o filho de José Estêvão…» - assim lhe chamaramna hora da morte: «morreu o filho de José Estêvão» -escreveram os jornais.

Foi esse filho que, com o coração a transbordar deamor filial e de comovidíssimo, profundíssimo reconhecimento,aqui, entre estas paredes, exprimiu esses nobres sentimentosem termos elevados, eloquentes.

E é ele que eu - com a minha fraca voz de mulher, ede mulher sem predicados de oradora e de já bem avançadaidade, venho substituir…

Mas tem sido a nossa preocupação - nossa, da famíliaque ele criou, - mantê-lo sempre vivo entre nós, não deixarvazio o seu lugar, esforçando-nos, nas nossas atitudes, emtoda e qualquer circunstância, por fazer o que ele faria ouquereria que se fizesse.

E, por isso, e devia relembrá-lo nesta hora em quevenho, em nome de todos nós, agradecer, a esta linda e muitoquerida terra de Aveiro, mais uma prova da sua gratidão àmemória daquele que foi, - ainda hoje se diz, - o maior dosseus filhos, o que melhor e mais devotadamente amou eserviu.

Mas seja-me permitido evocar, também, a figura desseAvô, tão distante no tempo, mas que, pelo ambiente de família,as tradições de amizade, a gratidão popular, foi sempre umapresença moral no meio de nós.

Em casa, era a saudade da minha Avó, transparecendonas frequentes conversas em que nos falava dele; - aveneração terníssima votada por meu pai à sua memória; -os móveis e objectos que foram de seu uso; - o pequenomuseu, em que meu pai reuniu, mais tarde, as suasrecordações mais íntimas, (que, em grande parte, figuram naexposição hoje inaugurada).

E, também, a Costa Nova, o Palheiro - que a gente daterra baptizou com o nome de - José Estêvão, - a Ria, o mar,o areal, onde, em tudo que vemos e ouvimos a sua imagemnos aparece viva…

Poderíamos julgar que o conhecemos, tão familiar nosé a sua nobre e insinuante figura, representada em tantos evariados retratos. Tanto ouvimos falar na rectidão do seucarácter, no brilho da sua palavra, no poder dominador doseu talento, na bondade do seu coração, no encanto do seuconvívio, na vivacidade espontânea e espirituosa da suaconversa…

E o culto que, em Aveiro, pelo decorrer dos anos,

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sentimos em constantes manifestações de simpatia, às vezesenternecedoras!

Guardamos da nossa primeira infância, - quando meupai era Governador Civil deste distrito, - a recordação da velhavendedeira de fruta, - a Água a Ferver, - com o seu pronunciadobigode e a barbicha grisalha, sentada junto das Pontes, aoabrigo do grande guarda-sol azul, que nos chamava, com vozrouca, para nos encher as mãos de frutos perfumados. Éramosas Jé Estevinhas e não conseguíamos iludir a sua vigilância.

E aquela mulher da Gafanha da Encarnação que acudiuem defesa do ranchinho de crianças que formávamos, todasqueimadas, - bronzeadas como hoje se diz - pelo sol forte eo ar iodado da Costa Nova, quando um transeunte nos chamou«feias cachopas»,

- «Ó homem, cale-se! Olhe que são as netas do Snr.José Estêvão!».

E outra mulher, já de muita idade, também da Gafanhada Encarnação, que, ao sair da missa, tendo-se certificadode que éramos «as netas do Snr. José Estêvão» e de que eraseu filho «o senhor de barbas» que tinha visto na capela daCosta Nova, me diz, em tom de enternecida gratidão esaudade:«Ó minha senhora, eu conheci o seu Avô! Ele passavapor aqui a cavalo e salvava sempre; não esperava que osalvassem primeiro. Eu era pequenina, tive as bexigas, e elevinha ver-me ao meu leito de doente e trazia-me geleia!».

Ficaram-me gravadas na memória estas palavras e otom em que foram proferidas. Repeti-as ao meu Pai, e világrimas de comoção correrem-lhe pelas faces.

E ainda outra mulher, - esta da Gafanha da Nazaré, -a quem o marido explicava a uma minha irmã, com quemfalava, que era neta «do Snr. José Estêvão». A mulher fita-apor um instante silenciosa, e depois diz-lhe: «A gente foihabituada a ouvir falar desse senhor como uma pessoa aquem todos devemos muito. Mas tinha morrido há muitotempo, estava já muito longe. Mas agora, ver de repente diantede si uma pessoa da família, dá choque»…

Amizades aveirenses, profundas, dedicadas,acompanharam-nos pela vida fora, e são hoje saudades quevivem nos nossos corações.

E quando a morte nos tem batido à porta, e vimostrazer os queridos membros da família que Deus vai chamandoa si, e se vêm juntar àqueles que aqui nos esperam, - nuncanos achamos sós na sua dor e no nosso luto, nunca nosfaltaram simpatias; sempre nos rodearam presençassignificativas de todas as classes; e sempre, entre elas, vimosa cidade de Aveiro, - representada pela sua Câmara Municipal,na pessoa do seu Presidente - É que o prestígio de JoséEstêvão não se apagou com o tempo. E porque a família semostra fiel à sua grande memória, ainda se vê envolvida no

reflexo do brilho do seu nome.E tudo isto nos liga com laços tão sensíveis, que bem

podemos afirmar que também somos aveirenses.E há também esse jazigo, que de modo essencialíssimo

nos prende a esta terra, pelas tradições e saudades que nelese encerram.

Ainda ontem vimos lá desfilar, respeitosa epiedosamente, muitas centenas de aveirenses, depois determos ouvido, junto à estátua, o discurso vibrante em que osr. Dr. FRANCISCO DO VALE GUIMARÃES nos mostrou,sempre vivo, actual na sua concepção prática, e muitas vezesprofética, das coisas públicas, o grande patrono cívico deAveiro!

Ao ler agora, em numerosos jornais da época, osrelatos sentidos das circunstâncias dramáticas em que se deua morte de meu Avô, a imponência do seu funeral, asmanifestações de intenso sentimento de todas as classessociais, desde os Reis à gente do povo, noto repetidasreferências à viúva. - «A infeliz senhora» - por cuja dor sesente simpatia e cujo estado de saúde inspira «sérioscuidados». E vê-se a impressão que causou o facto de minhaAvó ter querido guardar o coração do marido para «o conservarjunto de si e o levar consigo para a sepultura».

Na verdade, durante a sua longa viuvez, conservouminha Avó esse coração no oratório, que, para o guardar,arranjara na sua casa da rua de Cedofeita. E não poucocontribuiu para criar viva, em nós, a ideia do nosso Avô, esseCoração morto, tão religiosamente venerado na sua urna demármore preto, colocada no altar que o crucifixo encimava,e sobre o qual ardia sempre a lâmpada de vidros de cor, quealumiava com certo mistério o pequeno aposento, silenciosoe recolhido…

Passados perto de 42 anos, minha Avó entra por suavez no jazigo, que acabara de construir depois de viúva,trazendo consigo o coração do marido, que só então ficainteiramente sepultado em Aveiro. Recolhida no gavetão quereservara para si, ali repousou por mais de 50 anos.

Hoje, porém, realizando uma velha ideia de nosso Pai,pudemos finalmente, nós, as suas netas, reunir no mesmotúmulo, posto em evidência no centro da Capela, os doisesposos que a morte, há cem anos, subitamente separou. -Ali dormem o sono eterno, agora lado a lado, José Estêvãoe Dona Rita Miranda. E ela guarda-lhe o coração, com o qualquis descer à sepultura.

Receio que tenha sido muito longa esta enumeraçãode sentimentos e recordações. Mas, ao evocar o passado,quando tantas sombras queridas ressurgem no meupensamento, pediu-me o coração que não falasse apenas emnome dos que vivemos, mas que juntasse à expressão muitosincera do nosso reconhecimento, a lembrança daqueles que,

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em análogas comemorações, o sentiram também, e que agora,aqui bem perto, repousam para sempre.

É a V. Ex.ª, Senhor Presidente, que em primeiro lugardevemos agradecer, pela iniciativa que tomou de promovera celebração deste centenário, e à Ex.ma Câmara Municipal,que unanimemente a aprovou.

Porque se tratava de Alguém que de tão perto nostoca, foi grande o nosso contentamento quando vimosanunciada essa resolução, e logo o manifestámos a V. Ex.ª,oferecendo-lhe a nossa modesta colaboração. Receba hojeV. Ex.ª e a Ex.ª Câmara o protesto da nossa muito sinceragratidão.

Queremos também manifestar o nosso reconhecimentoà ilustre Comissão do Centenário, que vemos aqui representadapelo seu presidente, Ex.mo Sr. Dr. Orlando de Oliveira. Comgrande competência soube desempenhar-se do encargo,cheio de responsabilidades, que lhe foi cometido, comodemonstram as cerimónias a que temos assistido, e que sãoconstantes do programa por ela elaborado.

Romagem de saudade ao cemitério, Missa de sufrágio,exposição em que talentos, feitos, glórias, - toda a vida - e ador da inesperada morte, estão representados; lápidecomemorativa, publicações, e esta solene sessão; e, arelembrar tudo isto, a iluminação contínua da estátua, - todoeste conjunto fez reviver aquele que, nos cem anos decorridossobre a sua morte, não foi esquecido, e nunca deixou de sero ídolo desta terra, em que nasceu.

Quero ainda referir-me a Monsenhor Aníbal Ramos,que tem mantido aceso, nas suas mãos, o facho da amizadeaveirense para com a nossa família. Muitas atenções lhedevemos, e grande consolação nos tem dado vê-lo em Moreira,intimamente associado às nossas festas de família,abençoando os casamentos das bisnetas de José Estêvão ebaptizando as suas pequenitas trinetas. É-nos, por isso,especialmente grata a sua presença na comissão do centenáriodo nosso Avô.

O Senhor Embaixador Dr. Augusto de Castro, ilustrefilho destas terras, veio aqui falar-nos do homem cujainesperada morte, há cem anos, comoveu não só Aveiro, mastoda a Pátria Portuguesa. Estudou essa grande figura, eressuscitou-a no quadro feliz que nos apresentou. Receba V.Ex.ª com as minhas sinceras felicitações, os grandesagradecimentos das netas de José Estêvão.

Nesta glorificação centenária, sentimos a nossa famíliafundida na grande família aveirense.

Com muita consolação o verificamos. E com um grandee profundo amor por esta terra, amor herdado das geraçõesque nos precederam e já transmitindo às gerações que seseguem, cheios de reconhecimento, - a todos -AGRADECEMOS.»

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103Linguagem e Preciosismo*Maria da Conceição Vilhena

A linguagem é um produto contínuo de signos e designificações, que preenchem uma função real na comunicaçãohumana. A linguagem pode, pois, ser definida como umpensamento falado: o homem fala como pensa e pensa comofala. E a experiência social, fixada pela linguagem, domina ofuncionamento do pensamento no espírito dos membros detoda uma comunidade.

A palavra teria sido dada ao homem para revelar o seupensamento; ou, então, como queria Maquiavel, a palavrater-lhe-ia antes sido dada como meio de disfarçar e encobriraquilo que pensa.

De qualquer maneira o homem fala, porque vive emsociedade.

A linguagem é, assim, um facto social, comum aosmembros dum mesmo agregado, embora cada indivíduo tenhao seu acento particular e o seu estilo próprio. Além disso,como corpo vivo, a linguagem está em constante transformação

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965.Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; ProfessoraCatedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; naUniversidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidadeda Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos(livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografia e história.Actualmente é aposentada e Presidente da Associação de Solidariedade dosProfessores (4º mandato).

e evolui cada dia, embora de forma quase imperceptível. Daío pluralismo linguístico, manifestado em vários tipos dediscurso, segundo o nível cultural de cada grupo que o produz,a ideologia, o meio e a época.

Esta constante mutação é devida à capacidade inventivae criadora do homem, à sua força imaginativa e à suaoriginalidade. Capacidade transformadora que recebe o seuimpulso não só da individualidade própria do falante, mastambém da orientação das estruturas comunitárias de naturezasócio-cultural, e que, agindo sobre a norma, vão dar origema vários tipos de desvios.

O estilo de um indivíduo, de uma época ou de umgrupo é assim definido por um vocabulário e uma sintaxeparticulares, condicionados por uma determinada imagem dohomem e do mundo.

Ora nós propomo-nos vir aqui falar de um tipo delinguagem muito especial, que ficou nos anais da históriacomo uma das criações mais requintadas no domínio dacomunicação. Referimo-nos à linguagem preciosa. Mas o queé o preciosismo?

No seu sentido mais lato, o preciosismo é amanifestação, em França, de um fenómeno literário e socialque se verificou na Europa, no séc. XVII, e que esteve naorigem do marinismo na Itália, do gongorismo em Espanhae do eufuísmo na Inglaterra.

Diga-se, no entanto, que o literário não é suficientepara explicar as origens do movimento precioso. Fenómenoessencialmente parisiense na sua origem, situado num dadomomento da evolução da sociedade francesa, ele vai-sealargando até atingir as cidades da província, durante a

Aquilino Ribeiro Capa do romance “O Arcanjo Negro”

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primeira metade do séc. XVII. Movimento de imitação dasboas maneiras e da fina galanteria da capital, seguidoprimeiramente pelos elementos da aristocracia, esse fenómenoatinge em seguida a burguesia mais abastada, que, ávida deascensão social, deseja entrar na vida intelectual mundanae refinada, da nobreza e da corte. As qualidades mundanasfazem o “honnête homme”; e os talentos intelectuais produzemo “bel esprit”. Estes dois traços resumem o ideal dumacivilização apaixonada de distinção e de requinte, de literaturae de análise da alma humana.

Num tal ambiente, faz-se sentir a necessidade de umalinguagem nova, que exprima requintadamente os váriosmatizes do sentimento. Uma linguagem inacessível ao vulgo,impermeável ao banal e ao prosaico, adversa ao pedantismo,indiferente ao utilitário, capaz de ser compreendida apenaspelos espíritos mais sagazes e subtis.

A preciosidade nasce da extensão da vida elegante efácil, dum desejo profundo de cultura, de ideal e de distinçãoque, reservado até então à aristocracia, se estende agora àclasse social favorecida pela fortuna.

O que é o precioso?O precioso é um artista da palavra, um cultor da arte

pela arte, que negligencia a ideia e se preocupa ferozmentecom o estilo. Todo o seu esforço consiste na procura daspalavras, na pureza da frase e na surpresa dos efeitos aalcançar. O precioso cultiva os géneros menores, que cizelacuidadosamente, usando e abusando dos recursos da retórica.O amor e a galanteria são os seus únicos temas. Mais quepoetas, poder-se-á chamar-lhes antes “fazedores de versos”.A obra que produziram é uma literatura de salão, destinadaa agradar e a seduzir, que testemunha de uma predilecçãoespecial pelas subtilezas da casuística amorosa.

A arte de agradar compreende o dom de saberconversar; é por este dom que é julgado o homem de salão,uma vez que a conversação constitui um dos prazeres maisapreciados da vida em sociedade. Saber dirigir louvores àsdamas, contar historietas cómicas, troçar com mesura e comespírito é um dos processos de se impor na sociedade preciosa,cujos valores são a eloquência, a graça, a distinção e adelicadeza. O homem galante, que quer falar de amor, deveconhecer máximas e sentenças morais com ele relacionadas,as quais se encontram em obras da época, como sejam osmanuais de conversação galante.

Nesta nova linguagem, o eufemismo e a litote são derigor. Com eles se ajustam a substantivação do adjectivo, afrequência do substantivo e do plural, como forma hiperbólica.

Das figuras de retórica, o precioso dá a sua preferênciaà antítese, à perífrase e à metáfora, por meio das quais poderáevocar as coisas consideradas como impróprias dopreciosismo, sem atentar contra a pureza da sua linguagem.

Um verdadeiro jogo de sociedade, através do qual sechegou à formação de imagens que hoje nos fazem sorrir.Por exemplo, para dizer ao criado que traga cadeiras, oprecioso dirá que “acarrete as comodidades da conversação”.Num desdém por tudo o que é material, o escritor fugirá aexprimir directamente certas funções, actos, órgãos ou até aspartes do corpo menos delicadas. Para referir o facto de umamulher ter dado à luz uma criança, o escritor preciosista diráque ela sofreu as contrapartidas do amor permitido (sentir lescontre-coups de l’amour permis). O precioso é aquele queama o pormenor, o inédito e a excepção. É um liliputiano, umadorador do Kitch. E um inimigo feroz do útil. A criação preciosaé uma criação de luxo, que se opõe à utilidade. Produzir, parao precioso, é um jogo inútil que põe em acção o espírito ágile a imaginação fecunda.

Precioso é sinónimo de mundano e de sofisticado; ea preciosidade que pratica uma retórica da galanteria.

A designação de “precioso” surge em 1654, na obraRelation du Royaume de Coquetterie, do Abade D’Aubignac.Segue-se cronologicamente uma carta de Ménage, sobre onovo tipo de ideal considerado como feminino. Esta carta foireproduzida em 1656, pelo Abade de Pure, autor de LaPrécieuse.

E, decorridos apenas três anos, já Molière, ao chegara Paris, satiriza este novo ideal, na sua comédia Les PrécieusesRidicules (1659). Note-se todavia que Molière também é umdiscípulo do preciosismo. Aquilo que ele ataca na sua comédianão é propriamente o preciosismo, mas sim o ridículo a quechegaram algumas preciosas.

Referimo-nos à linguagem do precioso. Mas serápreferível talvez falarmos antes da linguagem da preciosa. Écerto que todos, homens e mulheres, comungavam de ummesmo ideal de preciosidade. No entanto a preciosa épreferentemente citada, pelo papel importante que a mulherteve na sociedade preciosista. O que é afinal uma “preciosa”?É o próprio Abade de Pure, a que já nos referimos, que nosdá a definição: “A preciosa não é a filha do seu pai nem dasua mãe, nem obra da natureza sensível e material. A preciosaé um extracto do espírito e um condensado da razão. Elaforma-se pelo cultivo dos dons supremos que o céu vazou nasua alma”.

“A preciosa não é uma simples obra da Natureza ouda Arte, mas um esforço de uma e de outra. É um compêndiodo espírito e um extracto da inteligência humana. Ela é o astroque brilha nos salões, e nada é obscuro à sua inteligência eaos seus olhos”. E o escritor conclui que não há palavrascapazes para definir e exprimir uma coisa tão espiritual.

O preciosismo compreende vários aspectos: literário,social, moral e religioso. Para dele termos uma visão exacta,será necessário abordá-lo sobre todos estes aspectos.

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105No entanto, neste trabalho, dada a limitação do tempo,

vamos observá-lo somente no seu aspecto linguístico, comorefinamento de convívio social, segundo as regras da galanteriade salão. Vamos, pois, dar do preciosismo apenas umarepresentação parcial.

Embora o preciosismo tenha aspectos positivos, sempreque se toma atitudes preciosas, corre-se o risco de cair noburlesco. E corre-se esse risco porque o burlesco é o preciosotransformado por um certo sentimento do ridículo e por umcerto receio de nele cair. Deste modo, a retórica do preciosotorna em paródia toda a retórica do burlesco; e assim sedesacredita a literatura preciosa.

Molière parodiou o preciosismo. De Pure, ao pretenderteorizá-lo, parodiou-o igualmente. Quanto a Somaize, aoelaborar os seus dois dicionários do preciosismo, toma atitudesconfusas e contraditórias. Pretendendo estabelecer umadistinção entre as falsas preciosas e as verdadeiras, ora louvaora ridiculariza a sua linguagem. É que a arte de viver no séc.XVII testemunha de um desejo de traduzir a grandeza deespírito através da fala e do gesto. Cria-se então uma éticade exteriorização da virtude dos extremos, em que se procuraconfundir e conciliar o exagero com o grandioso e o belo.

Não é a harmonia e o equilíbrio que se procura, comono Renascimento, mas o excesso em tudo, o apogeu, oculminar das capacidades humanas.

A ética do séc. XVII francês, no meio letrado, insiste,antes de mais, na arte de bem parecer pela forma de dizer.A vida mundana, habitualmente tão brilhante em Paris, tinha-se obscurecido por causa das guerras de religião e devido aotemperamento de Henri IV, que preferia a caça à convivênciados salões.

Após a sua morte, em 1610, a sociedade parisienseprocura uma compensação, e é então que se dá às reuniõesde salão um incremento tal que elas se tornam o centro detoda a vida social da época.

Destes salões, o mais célebre foi sem dúvida o doHotel de Rambouillet, frequentado por grandes personalidades,tais como Richelieu. Entre os muitos nomes do mundo dasletras, que aí reuniam, citaremos Malherbe, Vaugelas, Corneille,M.me de Sévigné et M.me de La Fayette, esta última citadano Dictionnaire des Précieuses.

Nessas reuniões, a principal intenção era divertir-see passar o tempo de forma agradável. O jogo ocupava umlugar importante, mas também se discutia literatura, se poetavae, sobretudo, conversava-se. A conversação era, para oprecioso, o seu passatempo privilegiado.

Outro salão, que teve também um papel importantíssimona formação do espírito precioso, foi o de Madeleine deScudéry. Enquanto que no hotel de Rambouillet se reuniamos membros da aristocracia, neste se encontram, ao sábado,todos os burgueses ávidos de literatura, de poesia e degalanteria.

Madeleine de Scudéry coligiu cuidadosamente aliteratura que aí se produzia e com ela formou alguns volumesque publicou. É através dessa literatura que hoje podemosconhecer os seus gostos, bem como os princípios e leis queregiam o comportamento dos preciosos. Nas suas análisesminuciosas do sentimento, a preciosa distingue doze categoriasde suspiros; e, nas suas relações sociais, ela descobre novetipos de estima. Segundo De Pure, a preciosa deve conhecerao menos 12 maneiras de dizer que é bela.

No seu romance Clélie, Madeleine de Scudéry traçao Mapa do Terno (la Carte de Tendre), onde são indicados oscaminhos que levam à ternura e os riscos que se corremquando se toma a estrada errada. Vemos, pois, como tudo éprogramado e controlado.

Os salões representam, dentro da cultura preciosa, oque representavam as cortes de amor, na sociedade cortêsda Idade Média trovadoresca. Há muitas semelhanças entreestas duas sociedades, apesar dos quatro a cinco séculosque as separam.

No romance Astrée, de Honoré d'Urfé, publicado em1610, estão incluídas as famosas Tábuas das Leis de Amor(Tables des Lois d'Amour) que comportam doze mandamentos.Ora também o amor cortês medieval obedecia a regras, numtotal de 31, segundo André le Chapelain, que as compendiouna sua obra Arte de Amar.

Nas cortes de amor medievais, as senhoras da altanobreza ocupavam a sua vida discutindo sobre a observânciadessas leis e pronunciando julgamentos.

Nos salões parisienses do séc. XVII, a conversação,

Moliére

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elevada à altura de uma arte delicada e requintada degalanteria, incidia sobre assuntos idênticos: o amor, como aarte do sentimento controlado e orientado, segundo as leisestabelecidas. Relacionado com ele se desenrolam os debatesde tipo psicológico e social, sobre as relações entre a belezae o amor, compatibilidade entre o dever e a paixão relativamenteao matrimónio, possibilidade de conciliar o coração e a razão,e outros temas do mesmo género.

Aliás já eram neste género os problemas debatidosnas cortes de amor medievais: poderá alguém amar duaspessoas ao mesmo tempo? Será possível o amor nomatrimónio? A mulher que se casou terá o direito de abandonaraquele a quem já amava?

Na poesia provençal, as mulheres, e algumas vezestambém os homens, não eram designados pelo seu nomepróprio, mas por um termo convencional, que era o segnal.Na literatura preciosa também homens e mulheres seescondem por detrás de pseudónimos, na maioriaantropónimos de origem grego-latina. Tanto nos salões doséc. XVII como nas cortes de amor medievais, a mulher eraa diva que ditava a lei, como o suserano a seus vassalos.

Neste ambiente se impunham aos apaixonados durasprovas de perseverança, fazendo-os esperar durante anos acorrespondência ao seu amor. Saber esperar era, tanto parao trovador provençal, como para o precioso, a grande virtudedos amantes. Quatro etapas se impunham ao desenrolar doprocesso amoroso provençal: fenhedor, precador, entendedore drut. Primeiro, o apaixonado devia dissimular o seu amor.Era a fase do fenhedor ou fingidor, a que se seguia a dasúplica (precador). Quando a dama achava que já era suficienteo tempo de espera, passava-se à fase do entendedor, ou seja,a da reciprocidade de sentimentos. Finalmente, e só quandoa constância do amante, posta à prova, tinha dado garantiasde autenticidade, entrava-se então na fase do drut, que eraa da entrega plena.

Da duração de cada uma destas etapas, nada sabemos.Conhecemos, todavia, alguns casos concretos, relativos aopreciosismo. Por exemplo, o da filha mais velha da marquesade Rambouillet, que impôs ao seu futuro marido uma esperade quase 14 anos. Foi este o caso mais célebre na históriado preciosismo.

Apesar de, nas suas leis do amor, não estaremexplicitadas as quatro etapas dos provençais, forçoso nos éconcluir pela semelhança de rigor preciosista nas duas épocas.Para uns, como para os outros, o amor é uma recompensaque deve ser merecida por longas provas. O preciosismopode, pois, ser considerado como uma das tendências doespírito francês, que aparece já na literatura medieval, emespecial na lírica cortês provençal, como ética e como estética.

Dos trovadores provençais passa a Petrarca e, com a

obra deste, se espalha pela Europa.

Segundo a actual teoria da comunicação, o preciosismode linguagem poderá ser considerado como um ruído, pois otermo ruído se aplica a tudo aquilo que se opõe a umapercepção clara da mensagem. Afluxo vocabular,superabundância de informações secundárias, técnica docontorno através da perífrase, são de certo modo "ruídos",por se oporem à apreensão clara e directa da informaçãotransmitida, isto é, estão a contrariar a função denotativa oucognitiva da linguagem.

A linguagem do preciosismo representa a fuga aoprosaico, ao corriqueiro, ao banal, ao habitual, pelasingularização das formas do dizer. E esta singularização vemde uma organização complexa e complicada dos elementosfrásicos.

Na linguagem do preciosismo, a informaçãocomunicada é constituída pela informação transmitida pelafunção cognitiva, a que se adicionou uma certa percentagemde informação, vinda da função emotiva e, em especial, aquelaoutra que provém de factores relativos à função poética. Afunção poética ou estética da linguagem é realizada por meioda selecção e da combinação dos elementos necessários àfunção denotativa ou cognitiva.

A escolha dos vocábulos semanticamente aparentados,com base na equivalência ou na sinonimia, e o seuagenciamento segundo certas formas de construção querepousam na contiguidade, na similaridade ou dissimilaridade,simetria, antonímia, etc., fazem surgir uma gama de imagensde efeitos variados, pela riqueza das conotações.

A forma do dizer preciosista caracteriza-se, como aliteratura barroca, pela fuga à expressão singela e imediata,procurando uma polivalência significativa oposta a estruturasformais simples e claras. Por isso, o precioso não dirá "umcarregador", mas sim “um mulo baptizado”.

Falar não é comunicar por forma directa, massurpreender pelo inédito e complexo das estruturas utilizadas.Falar bem consiste em banir tudo o que é simples e linear,substituindo-o por algo de multivalente e exuberante. O preciosonão diz "sente-se, faz favor"; mas, em seu lugar, "satisfaça odesejo que esse assento tem de o abraçar" (Contentez, s'ilvous plaît, l'envie que ce siège a de vous embrasser).

O significado directo e linear deu lugar a uma expressãocomplexa, possuidora de multivalência significativa.

Urna bengala é uma “filha da moda e da galanteria";um chapéu, o “afrontador do tempo”; um leque, “um zéfiro”.

É um comportamento que busca suscitar a surpresae o maravilhamento, rasgo que caracteriza lapidarmente obarroco e a que podemos chamar ludismo luxuriante e oco.

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O comportamento preciosista traduz uma aspiração de novoe de superior, através de uma linguagem fulgurante. Não é alógica e a razão que está em causa, mas o desejo de plasmarum mundo novo, de esplendor e maravilha, capaz de despertara maior admiração. A expressão tende para o misterioso,procurando transfigurar fantasticamente o prosaico e o banalna vida do dia a dia. Falar é dar provas de agudeza deengenho, e a palavra é o fruto de um espírito rebuscadamentesublime. Não se trata propriamente da construção de metáforasconceituosas, como as da poesia barroca, mas antes deencontrar uma linguagem artificiosa e deslumbrante.

Também a propósito de hermetismo de linguagempoderemos estabelecer uma relação com a poesia medievalda Provença.

No apogeu da lírica provençal, os trovadores procurama originalidade em formas de trovar que ficaram conhecidaspelas designações de trobar ric e trobar clus.

O trobar ric opõe-se ao trobar plan e diz respeito àforma de expressão que se caracteriza pelo virtuosismo daversificação, num requinte de rimas variadas e raras. A suainvenção deve-se a Raimbaut de Orange, para quem o maiscomplicado é o que mais vale; e o que mais esforço exige éo mais perfeito. Trovar bem é, antes de mais, encontrarpalavras raras, rimas difíceis e estranhas sonoridades.

Para os adeptos do trobar ric, fazer poesia não consisteem trazer ideias novas, mas sim em dar às antigas uma formainédita ou rara. O trovador é o artesão que talha, cisela, limae entrelaça palavras.

Quanto ao trobar clus, ele responde igualmente a umaprocura do complicado. Não relativamente à estética, mas àmensagem; isto é, o sentido da canção deve ser hermético,opaco, de difícil compreensão.

O trobar clus opõe-se ao trobar leu (leve, ligeiro),aquele que é claro e transparente, que não exige o esforçode atenção do ouvinte, nem excita a sua sagacidade.

Raimbaud de Orange foi não só um corifeu do trobarric como também o de maior reputação na arte do trobar clus,destinada a uma pequena elite de espíritos argutos. O trobarric está para o trobar clus como o culteranismo para oconceptismo.

Enquanto que o trobar ric se preocupa com requintesformais, na busca de refinamentos estilísticos, o trobar clus,interessado em complexidades e subtilezas de pensamentos,manifesta predilecção pelo equívoco. Também na frasepreciosa, a forma recusa abolir-se na significação; nela oagenciamento da mensagem é feito segundo um modo deinvenção linguística que põe à prova as potencialidades dalíngua e a sagacidade do receptor. Por exemplo:

Ter muito espírito: o precioso dirá ter 10.000 libras derenda em fundos de espírito de que nenhum credor

poderá apoderar-se.Corresponder a um cumprimento: dar da sua seriedade

na doçura de elogio do outro.Soprar o fogo: excitar o elemento combustível.Cheirar: prender um pouco a reflexão do odorato.É uma arte de complicação, que prefere a perífrase

ao vocábulo e o vago ao preciso.Conversar era, pois, exercitar o espírito em complicados

malabarismos verbais e em acrobacias semânticas.A fim de estabelecer a compreensão entre emissor e

receptor, publicou Baudeau de Somaize, em 1660, oDictionnaire des Précieuses, ou la clef de la langue des ruelles;e, um ano mais tarde, o Grand Dictionnaire Historique desPrécieuses (historique, poétique, géographique, chronologiqueet armoirique).

Trata-se de uma obra indispensável à compreensãodo movimento preciosista, sobretudo no que diz respeito àlinguagem, no que ela tem de novo e original. É que o estiloprecioso corresponde a um esforço incessante do emissorem busca de originalidade, não para traduzir de formaadequada os seus pensamentos, mas para alcançar o diferente.Pela recusa do banal usual e realizando uma selecçãominuciosa e cuidada dos signos expressivos, ele chega àforma rara, capaz de surpreender. Da norma, ele respeitaráapenas o plano sonoro, realizando as suas inovações nosplanos lexical e sintáctico.

Rejeita vocábulos, rejeita expressões, para, em seulugar, colocar outras mais ricas em valor expressivo e conteúdoemocional, convencido de que, por meio destes artifícios, oseu discurso se valoriza estilisticamente. Vejamos algumasdessas expressões, registadas no Dictionnaire des Précieuses:

Espelho: o conselheiro das graçasCopo de água: um banho interiorEco: invisível solitárioJanela: a porta do diaCiúme: mar de desconfiançasCama: o império de MorfeuMúsica: o paraíso dos ouvidos

Ao contrário dos oradores clássicos, que procuravam,através de uma eloquência vibrante, persuadir e convencero auditório, o precioso procura, com o seu estilo floreado, ea sua maneira de dar forma a um enunciado, que foge aoautomático da linguagem, provocar uma impressão dedeslumbramento no ouvinte.

Vejamos agora o que se passou no nosso país. Em Portugal não tivemos uma época preciosista no

género da de França. No entanto, na Fenix Renascida,encontra-se uma linguagem que é profundamente preciosa.

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Segismundo Spina, na sua obra sobre a poesia barroca emPortugal, fez o levantamento de expressões muito do tipodaquelas criadas pelo preciosismo francês. Os poetasseiscentistas portugueses, de tendência aristocrática, têm opropósito de surpreender o leitor pelo imprevisto. E procuramseduzir pelo dinamismo e conotação sensorial que imprimemas metáforas do tipo de:

calçar o vento, vestir luz, pascer estrelas, pisarcrepúsculos, pentear o cristal, beber luzes.

O conteúdo espiritual das palavras, transferido paraoutro reino da natureza que não o seu próprio, conseguedeliciar os sentidos, pelos sons, formas e movimento quepoderá sugerir. Neste processo de transferência, o poetaportuguês cria expressões arrojadas, tais como ceroulasespirituais, que correm mesmo o risco de provocar o riso peloque têm de chocante.

Relativamente a neologismos, manifestam umapredilecção muito acentuada pela criação vocabular, do mesmomodo que os preciosos. Se o francês se revela artificioso aocriar o verbo "deslabirintizar", com o significado de pentear,não menos o é o poeta português, ao criar "epistolizar" parasignificar escrever em forma de epístola.

Também os poetas da Fénix Renascida nos fazemlembrar o trobar clus dos provençais, ao produzirem abusossemânticos que conduzem frequentemente à obscuridade,como por exemplo, “amoroso medo convocado”.

A metáfora era a figura predilecta dos poetasseiscentistas portugueses, que as construíam com ousadia,pela descoberta de analogias inesperadas e associaçõesmentais quase impossíveis.

Por exemplo: "músicos volantes" para significar“pássaros cantores", ou ainda:

jardim de plumas -- uma esquadracristal desatado -- as lágrimaspés de lenho -- os remoscometa emplumado -- o cavalo

A agilidade de imaginação desses poetas leva-os acomparações arrojadas e a metáforas de uma ousadia inaudita.

No que diz respeito ao corpo humano, o preciosofrancês recusava-se a empregar o termo próprio, substituindo-o por expressões às vezes cómicas ou ridículas:

Dentes: o mobiliário da boca (l' ameublement de labouche).

Faces: os tronos do pudor (les trônes de la pudeur).Unha: o prazer inocente da carne (le plaisir innocent

de la chair).Seios: as almofadinhas de amor (les coussinets

d'amour).

pés: os queridos sofredores (les chers souffrants).Mãos: as belas moventes (les belles mouvantes).Nariz: a porta do cérebro (la porte du cerveau).Orelhas: as portas do entendimento (les portes de l'

entendement).

Não lhe são, porém, inferiores os poetas portugueses,ao designarem o nariz por "península de marfim" e as orelhaspor “rosquilhas de alfenim".

O cultismo é um preciosismo linguístico, cuja técnicaconsiste na utilização de frases retorcidas, complicadas, ricasde erudição e surpreendentes pelo recurso ao neologismo.Um verso como "Cobre suas flores condensada neve" exigeum certo esforço para se chegar à conclusão de que o queo poeta quer dizer é que "correm-lhe pelas faces lágrimascopiosas".

Como o precioso, o poeta cultista e conceptista evitanomear a realidade, preferindo apenas sugeri-la, através deuma série de imagens dinâmicas, sonoras ou cromáticas,capazes de embalarem os sentidos.

O leitor quase se perde numa floresta de jogossemânticos, que põem à prova a sua capacidade de decifraçãolinguística, tal como sucede ao ler-se alguns textos preciosistas.

Do ponto de vista tanto cronológico como estilístico,o preciosismo situa-se entre o maneirismo e o barroco.

Após o Renascimento, o universo deixou de serconcebido como harmonia e ordem, uma vez que a razãohumana já não era uma participação na Razão Eterna. Omundo tornou-se então caótico, labiríntico e desprovido decoerência, e é assim que o exprimem poetas, dramaturgos epintores maneiristas.

Na vida social domina a ambição e o desconcerto. Háuma crise espiritual, religiosa e ética, cujo sintoma é amelancolia exasperada, a instabilidade afectiva, o que leva areacções de desespero e revolta, misturadas de sarcasmo.Daí um certo gosto pela excentricidade, pelo monstruoso epelo grotesco. Do mesmo modo que o maneirismo representauma profunda reacção anticlássica (contra os ideais deharmonia e ordem, serenidade e gravidade, gosto da belezaregular e da sobriedade nos meios de expressão), opreciosismo representa uma reacção contra a normatividade,o equilíbrio, o sentido de proporção e a sobriedade formal.

Um estilo epocal não desaparece subitamente, talcomo não surgiu também sem uma relação com aquele queo precedeu; nele fez a sua gestação e nele permanece poralgum tempo imbricado, até que uma situação favorável lhetenha permitido tornar-se predominante.

Daqui o aceitarmos que o preciosismo, na sua época,seja uma forma francesa do maneirismo que vinhapredominando na Itália, na Espanha e em Portugal. E que

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possa ser considerado como um aspecto particular dobarroquismo.

O preciosismo não irrompe, pois, inopinadamente enão se caracteriza pelo domínio absoluto, exclusivista, dogosto pelo surpreendente, no âmbito cronológico que lhe épróprio. A Europa, no séc. XVII, não apresenta unidadeintelectual, moral ou social, e é difícil traçar limites cronológicosrelativamente ao maneirismo e ao barroco. Sobretudo no quediz respeito à França, onde o preciosismo e o barroco coexistemcom o classicismo.

Parece-nos oportuno referir aqui o debate entre o sere o parecer, que se situa precisamente no coração do séc.XVII e que tem um elo de ligação com o comportamentopreciosista.

Segundo La Rochefoucauld, frequentador assíduo doHotel de Rambouillet, todo o homem traz dentro de si, invisívelaos seus próprios olhos, um comediante em perpétuomovimento, um Proteu com quem se confunde: "Chacunaffecte une mine et un extérieur pour paraître ce qu'il veutqu'on le croit. Ainsi on peut dire que le monde n'est composéque de mines".

Daí um outro problema: Se o homem vive mascarado,se ele é sucessividade, como pode conhecer-se? Como poderádistinguir entre ser e parecer? É uma questão que fascina osdramaturgos e oprime os moralistas.

La Rochefoucauld afirma que a honestidade é apenasa arte de parecer honesto.

A 1ª metade do séc. XVII é, no teatro, uma época deportadores de máscaras, de heróis de ostentação, a váriosníveis, atingindo a grandeza com Corneille.

E, com Molière, passa-se ao desmascarar da hipocrisiado impostor. Molière manifesta a sua hostilidade contra estaforma de ostentação e de moral decorativa, confundindo ahipocrisia e pondo a nu o fundo autêntico do ser humano.Duas leis imperam na obra de Corneille, o grande dramaturgoda época preciosista: a lei da ostentação e a lei da dissimulação,que marcam a oposição entre o ser e o parecer, entre umdentro e um fora. É a apologia do exterior, pela ostentaçãodos sentimentos, verdadeiros ou falsos: um eu de exibição,uma alma espectacular.

As personagens de Corneille gostam de projectar-sepela sua linguagem exaltada, exibindo os seus sentimentoscomo se se tratasse de um estandarte agitado aos ventos.

Personagem de ostentação, o herói corneliano estimaacima de tudo as aparências, como forma de exprimir agrandeza. Há nele uma preferência muito marcada pelodecorativo; e as virtudes aparentes são mais exaltadas queas virtudes interiores. O parecer.

Nos nossos dias podemos mesmo aperceber-nos daintrusão do preciosismo num certo tipo de discurso crítico, e

até na linguagem técnica e científica. Há uns 15 anos, um jornal brasileiro publicava um

artigo, parodiando este tipo de linguagem empolada e vazia,destinada a encantar auditórios. E escrevia: "A utilização deuma linguagem complicada facilita o respeito pelo orador econfere, também, fama de cultura ao que a utiliza. Para facilitara tarefa aos que desejem seguir tal caminho, o Instituto deAnálise Económica e Social adaptou um curioso sistemainventado há anos pelo norte-americano Ph. Broughton."

Seguem-se três colunas, cada uma com 10 palavrascapazes de produzir um forte impacto. Na 1ª coluna só hásubstantivos, tais como Programação, Dinâmica, Estratégia,Planificação, Instrumentalidade, etc. A 2ª e 3ª colunas sãoformadas só por adjectivos: Operacional, Dimensional,Estrutural, Sistemática, Balanceada, etc.

O método de utilização consiste em escolher umsubstantivo e fazê-lo seguir de dois adjectivos. Assim se obtêmsequências como "Planificação Operacional Coordenada" ou"Instrumentalidade Funcional Equilibrada".

E o articulista conclui: "Qualquer destas expressõesse pode incluir em qualquer informação e será consideradacomo indiscutível prova de "autoridade". Segundo o inventordo sistema, ninguém compreenderá o que o orador disse,mas – e isto é o verdadeiramente importante – ninguém estarádisposto a confessá-lo".

Trata-se de uma reactualização da linguagem preciosa,no campo científico, para-científico ou pseudo-científico. Oque nos mostra que a linguagem preciosista é não só de todasas épocas, como também se pode encontrar em todos osdomínios do saber humano. Os estilos, como os períodosliterários, não surgem independentes das características dasépocas que os precederam. Aquilo que os caracteriza podiavir já a manifestar-se anteriormente, de modo disperso, talcomo podem vir a manifestar-se posteriormente à dissoluçãodaquela constelação de valores que os havia distinguido. Sobforma de resíduo, todo o estilo ultrapassado pode reintegrar-se e revivescer num novo estilo, de forma diferente na medidaem que, sendo condicionado por factores socioculturais,também estes são então diferentes.

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Resumindo e concluindo:

A linguagem preciosa repousa, em suma, sobre aproblemática do ser e do parecer. É o admirável que se procuraalcançar e, para o atingir, lança-se mão da aparência socialsignificante. Mais que ser, interessa parecer superior, nobreno gesto, distinto na palavra, edificante pela exteriorizaçãode um espírito fino e raro.

A superioridade social traduz-se pela originalidade dodiscurso. A palavra é campo de competição, porque nopreciosismo tudo passa pela linguagem.

Podemos concluir também que o estilo preciosista semanifesta em vários graus e níveis, e em várias épocas,diferenciando-se pela origem sociocultural daqueles que outilizam, sua educação e formação estética, seu maior oumenor desejo de deslumbrar o ouvinte. E em épocas históricasde crise, marcadas por céleres transformações ideológicas,políticas, sociais ou económicas, que assustam o indivíduopela instabilidade em que se sente, este procura a suaidentificação pelo uso de um estilo pessoal rebuscado, capazde o evidenciar. A linguagem preciosista é afinal amaterialização de uma ideologia no significante, ou seja aconstituição do sujeito na e pela linguagem.

O precioso projecta o seu inconsciente e inscreve asua ideologia na forma como constrói o seu discurso.

Vou terminar a minha exposição. Segundo um estilopreciosista, competir-me-ia fazer agora um apelo àqueles quetêm estado a escutar-me, aos quais me dirigiria com expressõesno género de “dilectos ouvintes” ou “eminentíssimo emeritíssimo auditório”. Na procura do diáfano e do patéticosurpreendente, deveria tentar empregar vocábulos comoetéreo ou pétreo, gázeo ou áureo, a que associaria algumasfiguras de retórica, com sobrecarga de ornamentos, capazesde deslumbrar.

No entanto, optando por um estilo directo e claro, eudirei muito simplesmente: Terminei. Muito obrigada pela vossaatenção.

Corneille

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111Escadas para o Céu*Paulo Neves

Um dia, ao percorrer uma floresta, reparei que a maiorparte das árvores eram aprumadas. No meio delas, porém,observei árvores tortas, árvores com vida difícil. No entanto,senti que todas aquelas árvores tortas lutavam e estavamvivas, para tentarem chegar ao mesmo a que as outraschegavam. Excepto uma, essa estava tombada no chão.

Relacionei a floresta com os homens e senti que, paraalguns, era dificil alcançar o céu. Foi quando pensei usar aárvore caída para fazer uma escada, para tentar também eualcançar o céu.

A escultura intitulada “Escadas para o Céu" é executadaem bronze e tem como medidas aproximadas 360 x 60 x 50.

*Escultor

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112 Poesia

All Blues (Miles Davies)

Correm as águas dos rios,corre lume nas pontes da América.Sem mesmo dizer adeus,a mulher em cuja peleas estrelas se reflectemzarpou, levando com elao meu carro cor de pérola.E às mãos do vento, não às minhas,oferece a negra carapinha.Correm as águas dos rios,corre lume nas pontes da América.E o vento a eleva do asfaltoe a conduz pela noite atónita,no meu carro cor de pérola,no meu carro cor de pérola…

* João Pedro Mésseder

* João Mésseder nasceu em 1957, no Porto, onde completou os seus estudosuniversitários e exerce a docência. Publicou seis livros de poesia (os últimosintitulam-se Abrasivas e Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética),catorze títulos na área da literatura para a infância e uma antologia da poesiade Carlos de Oliveira. Três dos seus livros foram premiados.......................................

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113No Tempo e no Espaço | O Vidro (1)*Jorge António Marques

Já em miúdo me perdia pelas piscícolas ou agras dapraia, onde a fábrica Campos se instalara e onde, também,cinco barracões, destinados ao pano e papel velho e aosarmazéns do rei da lenha, eram referenciados como tendosido, ali, a fábrica de vidro, em Aveiro.

E abordavam – os entendidos, claro é – o fabrico dovidro e até certas peripécias com a citada fábrica. Feitiços,mau-olhado, tudo nos reflexos da produção!

Mas o vidro tem a sua bela história, motivou lendas eé, indubitavelmente, motivo de apreço, e a bruxaria faz partedo sortilégio do próprio vidro.

A lenda, contada por Plínio, o Moço, o qual atribui adescoberta do produto pelos fenícios, poderá não ser somentelenda.

Damour, o vulto da “verrerie”, comunga com opensamento de Plínio, o Moço, e vai mesmo àquela convicçãode que o tubo da sopragem do vidro se deve aos fenícios,exímios em tudo ou quase tudo.

2000 A.C., a arte de sopro seria uso corrente.A capacidade pulmonar do vidreiro permitia, pelo sopro,

figuras e efeitos.

E uma opinião tem companhias.Kisa – mas, este, entre os anos 200 ou 300 A.C. – dá

como certa a arte da sopragem.Seguro se torna, porém, que é pelos anos de 1551 e

1527 A.C. que se encontrou, no Egipto místico, uma peça emvidro.

O Egipto deve a arte do vidro – segundo os remotosespecialistas – a Hamurabi que, na sua peregrinação porterras, na recolha de hábitos, ele, um semita, pelos anos de2117 a 2094, e no comando, a seu tempo, da invasão aoterreno faraónico, consegue a fixação semítica, naqueleterritório.

Jovini – in “Il Vetro” – coloca Plínio, o Moço, na suarazão, quando o imberbe moço escreveu – “Fama est...”.

Mas creia-se no rigor das contradições.O vidro tornou-se dinástico.Segundo C. J. Philips há um primeiro período; que vai

até à XVIII dinastia egípcia.Aqui, tem o vidro inúmeras utilizações e funções.O segundo período, surge, no começo da era e, então,

o vidro toma o aspecto incolor e transparente.O império romano, na sua decadência, tem, no entanto,

os dois pólos bem assentes no prodígio e anseio pela artevidreira que são Roma e Veneza.

E se Alexandre Severo – o apelido o qualifica – tornoua indústria do vidro, em Roma, uma fonte de receita abusiva,outros souberam, pelo tacto político, na obediência deprincípios, altamente recomendáveis, captar mercados,suprimindo impostos.

Terá, de certos procedimentos, surgido o chamado*Historiador - Investigador

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porto franco, tão em voga, nos dias actuais.E Constantino, o imenso, deu à indústria do vidro o

lugar de realce a que teve jus.Soube, este Constantino, encarar o luxo e a utilidade

do vidro.Os vidros ou vidraça, talhada para as janelas, tem o

seu aparecimento, nos fins do primeiro século da era cristã.A incineração dos cadáveres – carne imprópria – passa

a ter o recipiente, em vidro, já que, as famílias, pelo incolordo produto, podiam admirar o que fora um elemento válido,bom ou mau, no seu comportamento, em sociedade.

Oh! Os vidreiros do início da era cristã foram as almasgratas aos antepassados e pouco lhes importou que oaparecimento do vidro tivesse sido fruto do acaso.

As gerações actuais devem, a Fleming, a casualidadeda penicilina. E porque um fungo, em determinada janela,surge morto, por um mero bolor.

Mas, cuidado!Há muito que os antigos, pelo apodrecimento dos

limões ou tudo o que motivasse bolor, dele faziam aplicaçõesmilagrosamente curadoras!

Plínio, o Moço, – um investigador da sua época –encontra, em teatro e seu anfiteatro, os indícios da vaidade,pelo luxo, de resquícios do vidro.

Damour, outro calcorreador dos trajectos do vidro, citaPompeia, após a desgraça da lava, da lama, encontra, tambémvestígios que, anos mais tarde, foram notados em Saint-Gobain.

A queda do império romano traz – inevitavelmente –o florescer da arte vidreira, pelo império bizantino.

A arte atraiu, a arte chamou, mais pelo coração do quepela necessidade económica, os homens que se inspiraram,no vidro, para os célebres vitrais – caso concreto dos vitraisde Santa Sofia, bem acolitados pelo imperador Justiniano.

A catedral de Reims, de igual forma, leva os homensdestinados aos vitrais e é a França quem – de alguma forma– faz expandir esta arte tão maravilhosa.

Ocorre-me, em viagem a França, ter feito uma pausapara apreciar, no país basco, os célebres vitrais das suasmaravilhosas igrejas.

Não esqueço Toledo, na sua fantástica catedral, dosmagníficos vitrais que, ali, se fixam, a quem Blasco Ibañez,de forma ímpar, se refere – ele, Blasco, que não foi só ocorrespondente de guerra, no primeiro conflito mundial, aoserviço da “Reuter”.

Assim, pois, a primeira idade áurea do vidro, sediadaem Roma, veio a ter Venécia – a Veneza dos Dodges – comoa capital do segundo período cristão, da mesma idade áurea.

Há quem afirme – pelo menos deixou escrito – que

Venécia teve a supremacia da arte vidreira, durante a IdadeMédia.

Devo, aqui, referir que a decadência de Roma permitiuo enriquecimento dos mestres vidreiros, que se fixaram emVenécia.

A arte do vidro tem muitos e seguros segredos.Os malabaristas predestinados tiram da cartola os

truques e são mestres na arte, bela, mas não fácil.As exigências, através dos tempos, pelo consumo do

vidro, motivam novos processos de fabrico e é, por via dofacto, que o primeiro invento mecânico, destinado a garrafas,em 1880, permite ao inglês Ashley a tentativa do êxito quefoi, afinal, um fracasso.

Boucher – este, francês – e, na pegada do inglês,constrói uma máquina semi-automática, para idêntico efeito.

O norte-americano Owens, em 1890 e ainda comdestino à garrafa, obtém sucesso, com máquina, por aspiração,para a massa vítrea.

E o automatismo das máquinas haveria de surgir parao fabrico, em série, das garrafas, pelo génio de Lynch.

Entra-se, de forma muito aberta, na produção da chapade vidro – vidro plano – na aliança aos métodos e conceitosde Libley e Owens.

O português – muito conceituado, no ramo – CarlosHorácio dos Santos Gallo, estabelece elementos subsidiáriosao aperfeiçoamento dos mecanismos que haveriam de permitircomo que uma perfeição, no fabrico da mencionada chapade vidro.

Os americanos – faltos de inteligência e tino, para estapesquisa, possuíam o dinheiro, que compraria o valor doindígena estranho.

Damour – sempre aquele Damour, acólito, apologistados americanos – escreveu: “Os Estados Unidos da Américado Norte, após terem sido tributários da Europa, passam aser o país mais avançado no sistema do fabrico mecânicodas espécies vidreiras”.

Mas este Damour não contemplou o génio criador ecriativo de outras mentalidades, de outras inteligências!

Portugal e a arte vidreira

São contraditórias as datas do conhecimento do vidro,em Portugal.

Sabe-se que o Distrito de Aveiro tem pioneiros e, noseu território, se implantaram os primeiros fornos do vidro.

É certo, seguríssimo mesmo, que os vestígios

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encontrados, em necrópoles, – romanas ou luso-romanas –não habilitam à concretização de épocas.

A ocupação foi um facto e, desde sempre, o preço dadúvida não seria benéfico.

Santo Isidoro, nas “Etimologias” que escreveu, abordao fabrico do vidro, na Ibéria, já pelos anos do século VI.

Vasco Valente – um temático e arguto homem sobreo vidro – pode ser contestado.

E não é, ainda, o momento de analisar contradiçõessobre épocas do vidro, em Portugal.

Deslumbraram-se espíritos que vagueiam, pelo espaço,na mera convicção de que são os senhores conhecedores doassunto – únicos – e, como a capital lisboeta teve uma certaera –, logo, ali, no litoral, esse pobre e triste depenado litoral,sem o fulcro das matas, foi o berço do nascimento do vidroneste território lusitano.

Mas ignoram – poucos mentores, é certo – é que Aveiropossuiu o maior campo da erva ou soda selvagem – a maçacote– e, para além dela, a areia ou caulium, como um imperativo.

Vasco Martins – homem da época de D. Afonso V,vidreiro consagrado – teve a coragem de solicitar ao monarcaa proibição de estrangeiros aportarem a Portugal para acolheita da “maçacote”.

E, aqui, se encontram as tais contradições a que mereferi.

Portugal possuía, muito antes dos anos 1500,consagrados nomes e mestres na arte do vidro.

Afonso V – nas poucas ideias aceitáveis do seumedíocre espírito – e ele, pobre de Cristo, mais não foi queo autor da assinatura de decretos, deu total valimento aopedido de Vasco Martins e é, por isto mesmo, que se podeconsiderar, como certa, uma data quanto à existência do vidrono nosso reino.

Importa, porém, referir que não é bem assim, comodirei.

Mas já que abordei nomes mui consagrados, na artedo vidro, em Portugal, refiro: João Rodrigues Vadilho, JoãoAfonso, Afonso Anes, Ambrósio, Afonso Fernandes, um talMafamude, de origem moirama e que se fixara na entãofreguesia de Gaia – que, hoje, mantém, como freguesia urbana– aquele étimo; o tal Vasco Martins, Diogo Dias, Afonso Pires,e Fernando Anes.

Diogo Fernandes

Este homem foi o homem compreendido por D. JoãoIII e o certo é que, por sua provisão régia de 1484, fixa umprivilégio de excepção a favor daquele vidreiro, o homem,

considerado o génio do vidro, na então terra do Covo – (VilaChã de São Roque) Oliveira de Azeméis.

Um Prólogo

Não me debruço no contexto económico da indústriado vidro, mormente no Covo.

Reporto-me à sua fabricação, enfim, como tudo seprocessa.

Planos económicos e resultados demográficos, nabase do próprio fabrico do vidro.

Diz-se que o vidro é um líquido solidificado, face aviscosidade, durante o seu arrefecimento.

Na obediência química, o vidro é um composto deóxidos orgânicos, não voláteis, isto é, que não se espraiampelo espaço aéreo, quando levados à sua fusão, pelas altastemperaturas.

E da mistura da sua massa constam, rigorosamente,três óxidos ácidos, quais sejam: SiO

2 – NO

3 – P

2O

5, a quem

chamam formadores ou vitrificantes.Facilmente se apresentam no estado vitroso, como

sofrem, por vezes, a adição de elementos que lhe permitemnão só a resistência como a definida qualidade..........................

O Covo

Abordo o Covo como elemento importante para odesenvolvimento da indústria vidreira, no reino de Portugal eno norte deste mesmo reino.

É ele – o Covo – o berço da indústria vidreira emPortugal e o primeiro a sediar-se ao norte do nosso rio Tejo.

Oliveira de Azeméis

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Esse belo rio não é, infelizmente, inteiramente portuguêse não sei o destino que o futuro lhe reserva.

Não há elementos, do tempo muito coevo, que permitamfazer a verdadeira história da forma como tudo isto começou.

Acontece, porém, que o padre Pereira da Costa, aindahoje muito lembrado por terras de Oliveira de Azeméis – antesse dizia – Azemil – e que era o abade de S. Roque (maistarde Vila Chã de São Roque), deixou escrito que teve, porfelicidade e mera casualidade, o feliz momento de encontrarvasta documentação, muito interessante, sobre a fábrica devidro do Covo – prosseguimento da indústria vidreira no país,mormente, em Oliveira de Azeméis.

Falo e escrevo, sobre Oliveira de Azeméis, com carinhomuito natural que senti por ali, nos meus verdes anos e quelimitei ao sonho lindo.

Mas isto são contos do próprio destino e o vidro nadatem a ver com tal.

O Covo não foi, rigorosamente, parte parcelar deOliveira de Azeméis.

Em época remota, era pertença do Condado da Feira,onde pontificava o senhorio mandão D. Manuel Pereira.

Eu conheço muito bem o Covo e estudei a sua lindahistória.

Lamento, eu, é que a ignorância crassa dos ditostitulares de qualquer coisa – tenham queimado documentosimportantíssimos, autênticos autos de fé – que permitiriam oestudo, profundo, de uma indústria como foi, no arrojo ecapacidade de uma época, de uma família que, de formafidalga, ali prosperou.

O Covo foi um sítio ermo, inculto, tendo como mantoa vegetação, farta e verdejante, tal qual outros coutos, noexemplo das Ribas Altas da Ermida, onde se refugiou o bispocapicua – Manuel Mora Manuel.

O Covo, tendo como berço um longo e muito cingidovale, é o píncaro de um outeiro.

Fala a lenda que um tal galego – Pedro FernandesMoreno – que terá falecido pelo ano de 1545 – era mestrevidreiro e que ingressara em Portugal, onde casa, em primeirasnúpcias, com Dona Baralides, irmã do pregador régio e deBaltazar Olmedo, capelão-mor do rei.

Deste matrimónio houve geração: – Dona Ignez Olmedo– Dona Catherina Olmedo – Anna de Olmedo – Tareja deOlmedo e Jerónima de Olmedo.

Dada a morte de Baralides – natural de Almeirim –facto que terá ocorrido pelos anos de 1520, o Moreno desloca-se, para o norte do reino de Portugal.

Homem hábil, dinâmico – timbre dos galegos – cedose apercebe que as imensas matas que formam o couto do

Covo – território, ao tempo, dos condes da Feira – mormentede D. Manuel Pereira – lhe seriam muito proveitosas para oalimento de um seu sonho.

O Moreno não ignorava que entre a Galiza e o Nortedo rio Tejo era consabida a inexistência de qualquer fábricaou fabriqueta de vidro. E é, desta forma, na certeza da ausênciade instalações do género, tão perto do Porto, com barra e rio,com intenso movimento, ponto comercial, por excelência, queo “mago” iria construir e no Covo fixar-se, com os seus fornosdo vidro.

Consta, da tal lenda, que, viúvo, não passava semmulher.

Conhece, pois, prendada dama – Dona ViolanteFernandes – irmã de Gaspar Fernandes, este, cavaleiro deel-rei e, já então, mãe de Estevão de Sousa, a qual, vivendono Porto, do Moreno se enamora e casa.

Pelo segundo matrimónio, nas relações com a régiapessoa, não foi difícil, ao Moreno, conseguir os seus fins.

A lenda, essa, com laivos de verdade ou merasuspeição, foi dizendo que este Moreno era um foragido àJustiça de Castela e se chamava Pero de Almeida.

Colocada ao rei a questão dos seus desígnios, recebeda pessoa régia permissão e assim inicia as suas viagens jácom autorização de usar mula ou faca “de sella e freo” aindaque “nam seja de marca e não tenha” – ele, o Moreno –“cavalo”.

D. João III, a 28 de Abril de 1533, dá-lhe plenos poderespara se tornar um homem célebre.

Foragido ou não, importava era dar ao reino um grandeimpulso, no ramo do vidro.

O Moreno, bem fornecido de segunda mulher, compitoresco local, na abundância de lenha e água, jamais pensouem prosseguir para além do Covo.

Mas não descura, aquele Moreno, a forte necessidadede se amparar aos donos do Covo – o tal D. Manuel Pereira,conde da Feira e de sua mulher, Dona Francisca Henriques.

Toma, porém, aquele Moreno, o encargo de “não poderdar, doar, vender, trocar, escambar nem alhear a mata ouqualquer outro uso dela fazer, ou parte dela, sem darconhecimento aos directos senhorios e deles obter licença,cumprindo sempre, neste caso, o costumado domínio oulaudémio.”

De resto, a mata tem a aplicação, na finalidadeacordada, como fateusim perpétuo.

Foi importante para o Covo esta decisão.Terra inculta, abandonada – e, por isso, local de focos

mortos – passa à extraordinária utilidade que se lhe veio areconhecer.

Aquele Moreno, já então, com toda a prosápia ecircunstância – senhor cavaleiro de el-rei – é tido como o

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verdadeiro cavalheiro do Covo.É imperativo que se transcreva, na obediência ao

completo texto e à própria ortografia, a carta de D. Afonso III,como privilégio ao Moreno:

– Torre do Tombo – Chancelaria de D. João III– Livro XIV – Folhas 107 v.º – in Sousa Viterbo:– Artes industriais e indústria portuguesa –Lisboa 1903 – in Vasco Valente: – O vidro emPortugal – Porto 1950 – pag. 110.

“Dom Joham &. A quantos esta minha carta virem façosaber que Pero Moreno castelhano me apresentou húu meualvará de que ho trelado hé o seguinte: – Eu el-rey faço sabera quantos este meu alvará virem que a my enviou dizer PeroMoreno castelhano que ele tem asemtado neste Reyno alémda cidade de Coimbra húu forno de vidro e que ele se queriavir asemtar neste Reyno para mylhor me poder servir e queper quanto o nom podia fazer sem muita despesa a qual sepoderia perder se outra pessoa asemtase o forno que perase vir asemtar e estar seguro de se nam poder perder mepedia mandase que des a vila de Coruche até ao reyno daGaliza nam podesse aver nem asemtar outro forno de vidro.

E visto seu requerimento, avendo respeito ao sobredito e asy aos serviços que tem feito e fará em estar dasemtocom o dito forno nestes meus reynos e estamdo dasemtoneles nenhuma pesoa de qual quer comdiçam e calidade queseja nam asemte nem tenha nenhu forno de vidro des a ditavila de Coruche até o estremo de Galiza nem ao traves perahua parte e outra em quanto o dito Pedro Moreno tever o ditoforno e lavrar com ele como dito hé. E posto que o dito fornonam lavre húu anno ate dous se ele dito Pero Moreno tevervidros pera vemder em abastamça que tenha feitos no ditoforno e nam em outro todavia se cumprira este alvara e seguardara soo penna de qual quer que ho comtrai o fizer pagarpera o dito Pedro Moreno duzentos cruzados. Porem mando

a todas as minhas justiças hofficiaes pessoas outras a queeste for mostrado e o conhecimento dele pertemcer que semdorequeridos por o dito Pero Moreno ho mamdem noteficar ese despois de notificado se algua pesoa asemtar alguu fornodo dito vidro façam emxucaçam per a dita penna e em tudolhe cumpra este meu alvara como se nele contem por que eupelos ditos respeitos e outros justos ho ey bem e meu serviço.– Fernam da Costa o fez em Almeirim a XXXI dias do mes deMarço de J de XXbiij. E esto me praz asy nam perjudicandoalguu concelhos em suas lenhas ou outra cousa que recebamdano.../...”.

Pedro Moreno faleceu, em Almeirim, no ano de 1545,ignorando, eu, o dia e mês.

Mas, pelo documento de partilhas – longo documento– sabe-se que a morte terá ocorrido entre Outubro e Dezembrodaquele ano.

Estabelecidas essas partilhas e outras formalidades,no Covo se fixou a única filha do matrimónio de Pero Morenocom Dona Violante – de seu nome Dona Antónia Fernandesde Almeida.

Os livros paroquiais de Vila Chã de S. Roque – ondeo Covo se inseria – não referem a data do nascimento daDona Antónia.

Sabe-se, porém, que ali faleceu, aos 13 dias de Outubrode 1599.

Dona Antónia havia casado com Fernão de MagalhãesTeixeira de Meneses, filho de António Magalhães de Menesese de sua mulher – Dona Genoveva Teixeira – senhores daQuinta de Subdevezas, no concelho de Ponte da Barca.

Fernão de Magalhães faleceu, na sua Quinta do Covo,no dia 6 de Abril de 1592, deixando geração.

Fernão de Magalhães, do seu matrimónio com DonaAntónia, deixou geração da qual destaco, tão somente, aDona Antónia de Menezes, nascida em 1578, e que teve doismatrimónios.

O seu primeiro casamento ocorreu, em Vila Chã deSão Roque, no dia 8 de Novembro de 1633, como sedemonstra, pela seguinte transcrição, que obtive do própriolivro paroquial:

Arquivo Distrital de AveiroLivro de Recebimentos de Vila Chã de S. RoqueNumero 1 – A Folhas 163

À margem: – Ano de 1633“Aos outo dias do mês de Novembro do anno 1633

recebi publicamente a Luiz Pantoia Freire, filho do doutor LopoDias Gois, desembargador da Casa do Porto e de donna Luizade Almeida, sua mulher – com – Donna Antónia de Menezes

Côvo

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filha de Fernão de Magalhães Teixeira e de donna Antonia deAlmeida, sua mulher, moradores que foram no Covo. – Foramtestemunhas: – Domingos João e Gonçalo Manuel e mais dezou doze pessoas, outras mesmas – certidão do abade daVitoria do Porto, como corre o banho e não corre impedimentoalgum.”.

Dona Antónia de Menezes enviuvou, por morte de seumarido, assassinado pelos escravos.

Dona Antónia veio a contrair novo casamento comDiogo Leite de Vasconcelos.

Houve geração.Dona Antónia faleceu – segundo o livro de óbitos do

Covo – número 1 – a folhas 208, no dia 1 de Janeiro de 1656,tendo sido seu principal herdeiro Gaspar Meneses.

António Magalhães e Menezes

Ignoro-lhe, também, a data de nascimento, sabendoter falecido aos três dias de Janeiro de 1717.

Era o segundo filho de Fernão de Magalhães e deDona Antónia de Almeida.

Casou, aquele António de Menezes, na Quinta daTorre, em Felgueiras, com Dona Jerónima de Alvim, ela, afilha herdeira de Gonçalo Vaz Peixoto e de sua mulher – DonaLeonor Alvim.

Deste matrimónio houve geração: – Gaspar – Antóniae Serafina.

Nota

Luiz Pantoia faleceu, na sua Quinta do Covo, no dia26 de Junho de 1640, como me é referido pelo livro paroquialde Vila Chã de S. Roque, número 1 – a folhas 235.

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119Nas Cavernas de Waitomo*Joaquim Máximo

Na Ilha Norte da Nova Zelândia existem umasinteressantes cavernas subterrâneas conhecidas pelo nomede Waitomo Glowworm Caves, ou sejam, as Cavernas dosVermes Incandescentes de Waitomo. O interessante destascavernas resulta do facto dos tectos de algumas delas seencontrarem pejados de larvas, de um certo tipo de insectos,que emitem uma brilhante luz azulada. Essa luz atrai ospequenos insectos de que se alimentam, depois de os teremaprisionado nas suas teias, com a configuração de farrapitosdelas pendentes.

Um viajante que visite as cavernas, ao olhar para ostectos das que têm larvas, fica com a ilusão de se encontrarsob um céu pejado de estrelas muito mais brilhantes e em

* Joaquim Máximo de Melo e Albuquerque de Moura Relvas, nasceu em Coimbrae reside em Vila Nova de Gaia.Tem o curso de Engenharia Electrónica da Universidade do Porto. Exerceu aactividade profissional na Administração Geral dos CTT e obteve a especialidadede Instalações Exteriores de Transmissão; União Eléctrica Portuguesa, integradadepois na EDP; Professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidadede Coimbra, como Professor Associado; Colégio de Gaia onde leccionoudisciplinas relacionadas com a Electrónica Digital, actualmente rege disciplinasde Sistemas Digitais e Microcomputadores no ISPGAYA. Faz parte da Direcçãoda revista Politécnica. É membro da Ordem dos Engenheiros da “AmericanAssociation for the Advancement of Science”, da “New Iork Academy of Sciences"e da “Planetary Society".

muito maior quantidade do que a das estrelas que vê à noitenum céu limpo sem nuvens. É um espectáculo maravilhoso,único e inesquecível. Não é pois de admirar que as cavernassejam visitadas por uma média anual de cerca de meio milhãode turistas curiosos.

Numa quinta-feira de Agosto, um grupo de viajantesportugueses, entre os quais me encontrava, visitava ascavernas de Waitomo. A boa disposição era quase geral. Eera apenas quase geral, porque uma simpática viajanteseptuagenária se encontrava com grandes dificuldades devisão devido à penumbra existente nas cavernas do caminhoque conduzia às das larvas incandescentes. Mas quaseninguém deu por isso. Estava quase tudo demasiadamentepreocupado consigo próprio para dar conta das dificuldadesem que se encontrava a companheira de viagem. E digoquase tudo, porque houve alguém que deu por ela e que apassou a ajudar com extremo carinho. Foi uma jovem senhora,companheira de viagem, da qual aliás já sabia da suapreocupação e bondade para com todos os que precisassemde ajuda. Eu, que me tinha apercebido das dificuldades dasenhora idosa, nada fiz.

O que é imperdoável. Senti-me envergonhado. Masresta-me o consolo de sentir que o procedimento da jovemsenhora me vai servir de exemplo a seguir para o futuro.

Tempo depois, ao ver as fotografias da viagem, noteique entre elas se encontrava uma da jovem senhora. Estavaa sorrir em frente a uma grande janela, através da qual se

Grutas de Waitomo

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podiam admirar os cumes nevados das montanhas que, naIlha Sul, existem ao longo do caminho que vai de Christchurchpara Queenstown. Lembrei-me então de lha mandar,colocando-lhe atrás qualquer coisa que traduzisse a minhaadmiração pelo seu comportamento e que reproduzo, à guisade fecho deste pequeno episódio.

Sorriso

Montanha longínqua, coberta de neve.Vê-se através duma ampla janela.Sentada na frente, vê-se uma donzela.Com um sorriso que jamais alguém teve.

Mas não é de Gioconda esse sorriso,Pois nele não se vê qualquer ar de troça.Também o sorriso nem sequer esboçaPertencer a alguém que não tenha siso.

Não é de alegria, não é de tristeza.De amargura não é, tenho a certeza.De que é o sorriso? Qual a sua razão?

Também não é sorriso de mulher fatal.Mas donde lhe vem o sorriso afinal?Vem da extrema bondade do seu coração!

Grutas de Waitomo

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121Monumento a Fernando Pessoa – IX (Continuação)

Sessão Solene na Escola Preparatória*Executivo LAF

A professora Doutora Clara Rocha concedeu-nos ahonra de ser a oradora oficial na Sessão Solene.

Em carta de 21 de Julho de 1983 informava-nos:

“Fiquei muito sensibilizada pelo modo pronto ebenevolente com que tomaram em consideração a minhaproposta, e fico honradíssima com o vosso convite, que maisuma vez agradeço. Sugiro, como tema da minha palestra, oseguinte: «Fernando Pessoa, poeta do desassossego». Umaduração de vinte minutos/meia hora seria conveniente? Omeu Amigo dirá. Tenciono preparar a conferência durante omês de Setembro”.

O nosso agradecimento, o nosso entusiasmo, e oconvite que dirigimos aos Pais da ilustre conferencista, tambémpelo conhecimento que tínhamos da amizade entre Torga eEanes, foram compensados.

De Coimbra, datada de 13 de Outubro, recebemos acarta de que transcrevemos:

* Liga dos Amigos da Feira

“Estimei muito receber o programa que fizeram o favorde me enviar. Em princípio deslocar-me-ei de automóvel àVila da Feira, onde chegarei depois de almoço. Quanto aosmeus Pais não tencionam, em princípio, participar no Jantarno Castelo da Feira, e ainda não decidiram se irão ou nãoassistir à inauguração do Monumento a Fernando Pessoa.

Resta-me apoiar o entusiasmo com que seempenharam nesta iniciativa de homenagem ao poeta deOrpheu, e enviar-lhes os melhores e mais cordiaiscumprimentos.

Clara Rocha”

E foi com ansiedade que vimos a ilustre investigadoralevantar-se e dirigir-se ao micro onde dissertou sobre “FernandoPessoa – poeta do desassossego” que transcrevemos a partirda página 85.

Usou da palavra o Padre Albano Alferes que fez aapresentação da i lust re Professora, refer indo:

“Irá, de seguida proferir uma conferência, a Sr.ª.Professora Doutora Clara Crabbé Rocha, filha do insigneescritor Miguel Torga, que nos deu a gentileza de estarconnosco nestas horas, de guiar-nos para a Vila da Feira.Pedia-vos, pois, uma salva de palmas.

E como diz o nosso povo, na sua linguagem simplese singela, mas sempre expressiva, “Filho de peixe sabe nadar”.Vamos, pois, ouvir a Sr.ª Professora.”

A palestrante, que a todos encantou, foi vibrantemente

O Ministro da Educação José Augusto Seabra O Senhor Presidente da República General Ramalho Eanes

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122

aplaudida.O Associado Padre Albano Alferes, mestre do protocolo

nesta cerimónia, entusiasmado e feliz, leu o telegrama querecebemos da irmã de Fernando Pessoa, Henriqueta MadalenaRosa Dias:

«Estou presente em espírito convosco hojehomenagem a meu irmão Fernando Pessoa saudações

Henriqueta Madalena Rosa Dias»

Havíamos convidado a Exma. Senhora para ascerimónias da Homenagem a seu irmão.

Por carta de 21 de Novembro de 1983 deu-nosconhecimento da sua impossibilidade de comparecer.

«Tendo recebido honroso convite para assistir àinauguração do 1º. Monumento Nacional de Homenagem ameu irmão Fernado Pessoa na Vila da Feira, agradeço muitosensibilizada mas lamento profundamente ser-me impossívelestar presente nessa ocasião.

A Homenagem ao Fernando foi programada com muitaminúcia e interesse. Espero, contudo, ter o prazer de um diavisitar essa linda terra e o monumento em homenagem a meuirmão.

Renovando os meus agradecimentos:Atenciosamente,

Henriqueta Madalena Nogueira Rosa Dias»

De seguida fez a apresentação do Sr. Ministro daEducação.

«Senhor Ministro da Educação, Senhor ProfessorDoutor José Augusto Seabra, que pronunciou, no passadoDomingo, uma brilhante conferência no salão dos Bombeirosde Arrifana, vai agora dirigir-nos algumas palavras de estimae simpatia.»

O Senhor Ministro da Educação, José AugustoSeabra , teve uma intervenção que registamos:

“Senhor Presidente da Repúbl ica, SenhorRepresentante do Senhor Governador Civil, Senhor Presidenteda Assembleia Municipal, Senhor Presidente da Câmara,digníssimas autoridades civis, religiosas e militares, escultor,poeta e querido amigo Aureliano Lima, queridos amigosescritores presentes, Srs. alunos e professores feirenses,minhas senhoras e meus senhores,

Que dizer de um acto destes, em que temos o SenhorPresidente da República connosco, a homenagear um poeta.Isso significa, antes de mais, que o mais alto representante

Carta de Clara Crabbé Rocha

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do povo português sabe compreender que, numa pátria, apoesia é o valor essencial.

E quem diz a poesia, diz a língua, porque Pessoa éessencialmente o poeta da língua portuguesa e, só por isso,o poeta da pátria. Um poeta que, como aqui foi bem dito pelaprofessora Clara Crabbé Rocha, se multiplicou em linguagens,assumindo da língua aquilo que é essencial, que é o ela poderacolher o ser em todas as suas formas.

Assim, poeta da língua, poeta da pátria, Pessoa étambém o poeta da universalidade, não só porque da línguaportuguesa soube fazer várias linguagens, mas também porquesoube até incorporar as línguas estrangeiras, escrevendo eminglês, em francês, mas sobretudo assumindo o que nasoutras línguas é para ler, porque as linguagens, quer sejamarticuladas no som, quer sejam articuladas na pedra ou nobronze, são a forma que o homem tem de procurar um regressoa uma origem perdida, que é também não apenas a saudadedo passado, mas a saudade do futuro, de que falava Pascoaes.

Por isso, nós devemos assumir essa saudade imensade um futuro melhor, que Pessoa, glosando Pascoaes, nosdeu como mensagem, essa saudade imensa de um futuromelhor, pela qual, diversamente, todos nós, aqui, lutamos.

Mas nesta oportunidade, eu queria, sobretudo, se mepermitem, amigos feirenses, fazer desta comunidade localum símbolo do que pode ser o Portugal do futuro, porque,aqui, na vila da Feira, um punhado de homens, de homenscidadãos, de homens intelectuais, de homens na simplesacepção da palavra, soube mostrar que não é necessárioviver nas grandes capitais, nas grandes metrópoles, paraassumir a universalidade pessoana.

É possível, de facto, que, em cada comunidadeenraizada na terra, surja sempre aquilo que fecunda Portugale a humanidade: a poesia. E, por isso, eu queria dizer quePortugal ficará grato à Vila da Feira por este acto de civilização,por este acto de cultura, por este acto de cidadania, que é omonumento a Fernando Pessoa.

Poderia invocar, para justificar que este monumentose tenha erigido no Norte, o facto de que foi no Porto, narevista Águia, que Fernando Pessoa se estreou literariamente.Foi no Porto, portanto, que ele fez a profecia de um SuperCamões, que seria o poeta de uma nova Renascença. NoPorto, também, ele fez nascer o seu heterónimo Ricardo Reis,que, depois, partiu para o Brasil.

A esse respeito, penso que a professora Clara CrabbéRocha fez muito bem em ter tomado a Rosa-dos-ventos comoparadigma da obra pessoana. É que, de facto, se há um Norte,há um Sul e se há um Ocidente, há um Oriente. Os váriosheterónimos de Fernando Pessoa assumiram essa Rosa-dos-ventos. Assim, se Ricardo Reis nasceu no Porto, no Norte,ele foi para o Sul, foi para o Brasil e para o Ocidente; se Álvaro

Carta de Clara Crabbé Rocha

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de Campos nasceu no Algarve, ele foi para a Escócia e daEscócia para o Oriente.

O que significa, minhas senhoras e meus senhores,que a dispersão dos heterónimos era, de facto, a dispersãoa toda a Rosa-dos-ventos e, nisso, ainda, Fernando Pessoainterpreta a pátria língua, porque também a língua portuguesase disseminou do Brasil à África, ao Oriente, e, ainda hoje,as nossas comunidades migratórias, ao falarem portuguêsem contacto com outras línguas, assumem, de facto, o quehá de essencial na aventura pessoana, e eu penso que Pessoapoderia ser considerado o símbolo do nosso emigrante, semter necessidade de viajar, senão sentindo ou imaginando, massentindo e imaginando aquilo que historicamente foi toda aaventura das descobertas e toda a aventura da tributação.

Fernando Pessoa – também foi aqui dito – assumiuainda algo de outro, que, Senhor Presidente da República,eu gostaria de tomar como um símbolo da nossa democraciaque encanta ao mais alto nível: é que não há democracia sempluralidade, sem diversidade, sem contrários, sem opostos,sem aquilo que faz que, para lá do que nos opõe, há aquilotambém que nos liga, que é a relação, justamente, entre oque é oposto, entre o que é contraditório. E se nós soubermosassumir a democracia a partir deste paradigma pessoano,nós seremos capazes, de facto, de a conservar, de a preservar,incluindo aqueles que, eventualmente, se lhe opõem, porqueé isso, essa tolerância para com o adversário, aquele que nãoé propriamente um inimigo porque é também um amigo, queconstitui a essência da democracia. E Pessoa multiplicou-seem heterónimos políticos, ele também, o que implica trabalho,o que implica esforço, o que implica rigor, aquele trabalho,aquele esforço, aquele rigor que é próprio dos poetas, dosque trabalham a língua.

E não podia deixar de invocar o facto de que FernandoPessoa, preocupado com Portugal, não deixou de,antecipadamente, assumir, ele próprio, aquilo que erafundamental numa época de crise e que foi essencialmenteo trabalho; o trabalho poético, sim, mas o trabalho, também,do empregado de escritório, do tradutor de línguas estrangeiras,que abandonou o Curso Superior de Letras para se consagrarhumildemente àquilo que era fundamental para ele – a poesia–, vivendo do seu trabalho diário e defendendo, aliás, comuma premonição que eu não posso deixar de acentuar, aimportância que tinha o ensino técnico, o ensino profissional;ele que, na África do Sul, também tinha passado por escolasonde, na realidade, se aprendia a trabalhar.

Essa lição nós devemos colhê-la de Fernando Pessoa,neste momento, mas, essa lição, seria o Eduardo Lourençoque no-la poderia dar, como, talvez ainda melhor, MiguelTorga, porque, ensaísta e poeta. Pessoa assumiu aquilo queera fundamental na criação, que era o desdobramento entre Carta da irmã de Fernando Pessoa

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o imaginário e o pensamento. Também queria tomar a nossa Agustina, aqui doNorte, como exemplo para nós, porque ela sabe aliar esse imaginário e essepensamento que é, queridos amigos, o que há de fundamental para nós; sequeremos preservar o nosso futuro, temos de imaginar o quanto escreveu enos deu ali.

Muito obrigado.”

Encerrou a Sessão Solene o SenhorPresidente da República, GeneralRamalho Eanes, que, em improvisoatentamente escutado, disse:

“Queria simplesmente dar parabénsaos feirenses pela iniciativa que levaramrapidamente a bom termo e gostaria de lhesdar os parabéns, não apenas porquehomenagearam Pessoa, mas tambémporque, através dele, homenagearam o povoque somos, homenagearam a nação quesomos.

Disse a professora Crabbé Rochaque Pessoa foi desassossego. Eu diria quesim, que Pessoa foi desassossego, porquedesassossego é a fase que antecede, é afase que determina a criação, mas que, nacriação, não se esgota, porque a ela sesegue.

E se há traço geneticamentecarregado na história portuguesa, esse éefectivamente o desassossego. Foi ele quefez com que um Infante sonhasse, um Gamapercorresse os mares, um Albuquerqueconstruísse a Índia. Foi o desassossego quefez com que o nosso povo tivesse escritoesta história maravilhosa, esta históriasingular, que, muitas vezes, esquecemos,que, muitas vezes, não conseguimos olharcomo devíamos para podermos continuar.

Foi este desassossego que fez comque homens presentes entre nós tivessemganho a dimensão que têm: um EduardoLourenço, uma Agustina Bessa-Luís, umTo r g a , s ã o t a m b é m h o m e n sd e s a s s o s s e g a d o s . S ã o ta m b é mdesassossegados porque são homens quecriam, são homens que fazem.

Precisamente por isto, repito, estavossa homenagem é uma homenagem aoPessoa, mas não apenas a ele, é umahomenagem também a todos os nossosantepassados, é uma homenagem ao povoque somos e é a esta homenagem tambémque eu me associo enquanto representanteeleito do povo português

Muito obrigado.”

Telegrama enviado no dia da Homenagem

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Postais do Concelho da FeiraA - Postais Ilustrados*Ceomar Tranquilo

*Caminheiro por feiras, lojas e mercados

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28 – A mesma fotografia, com os dizeres:Emilio Biel e C. Porto. Villa da Feira.

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28-A – Reverso deste postal. Com os dizeres– Union postale Universelle Portugal-Carte Postale. Bilhete Postal. Espaçosreservados para a correspondência e paraa direcção.

29 – (47). Emilio Biel e C. – Porto – Villa daFeira. Duas fotografias. Castelo e vistapanorâmica.

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29-A – Reverso do mesmo postal. Comornamentos coloridos à esquerda e partesuperior. Os dizeres: Bilhete Postal. Espaçoem forma quadrangular para o selo.

30 – 47, Emilio Biel e Cº. Porto – As mesmasfotografias do Postal nº. 29.

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30-A – Reverso deste postal. Ornamentodiferente do Postal 29-A Espaço em losangopara o selo.Postal circulado para a Ericeira, pelo Correiode Mafra, onde chegou no dia 10. Set. 1901,tendo como porte o selo de 10 Reis, verde,com a efígie de D. Carlos.

31 – (47). Emilio Biel e C. – Porto – asmesmas fotografias dos postais nºs 29 e 30.

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31-A –Reverso do mesmo postal –Ornamento diferente dos postais nº.29-A e

32 – Datado de Arrifana (Feira) 21-6-901“Meu caro Adão – Projectam-se pompososfestejos ao S. João, em S. João da Madeira”.

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32-A – Reverso do mesmo postal. Bilhetepostal em diagonal. Ornamentos vistosos ecoloridos.

Circulado com o selo de 10 Reis, verde, D.Carlos.

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Lugar do CavacoSanta Maria da Feira

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