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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ÂNGELA MARIA NOGUEIRA VILLA X INTRAMURANI: A ATIVIDADE PRODUTIVA NO MUNDO ANTIGO NA PERSPECTIVA DE COLUMELA CURITIBA 2006

VILLA X INTRAMURANI: A ATIVIDADE PRODUTIVA NO … · Gummerus vincula sem ressalvas escravidão e capitalismo 6, para Max Weber, o uso capitalista do trabalho escravo difere substancialmente

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ÂNGELA MARIA NOGUEIRA

VILLA X INTRAMURANI: A ATIVIDADE PRODUTIVA NO MUNDO ANTIGO NA

PERSPECTIVA DE COLUMELA

CURITIBA 2006

ÂNGELA MARIA NOGUEIRA

VILLA X INTRAMURANI: A ATIVIDADE PRODUTIVA NO MUNDO ANTIGO NA

PERSPECTIVA DE COLUMELA

Monografia apresentada a Universidade Federal do Paraná, como um dos pré-requisitos para a obtenção do grau de bacharel em História.

Professor orientador Dr. Renan Frighetto

CURITIBA

2006

Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe

para onde ir.

Sêneca

RESUMO

Esse estudo analisa os elementos de ordem extra-econômica que orientaram Columela

a escrever seu tratado, De Re Rustica, tendo por hipótese que Columela não o fez apenas sob

bases econômicas, mas norteando-se também sob prerrogativas políticas e morais, uma vez

que no século I d.C. Roma presencia uma alteração no plano político, haja vista que este

século vive os efeitos da transição da República para o Principado, implicando, de forma

geral, num reposicionamento da aristocracia. Através do De Re Rustica, Columela nos

permite observar como a aristocracia romana, ou parte dela, se posicionou ante as

transformações que se iniciaram durante a República, com a expansão e fortalecimento do

poderio romano no Mediterrâneo, e se consolidaram com o advento do Principado, quando os

poderes políticos se centralizaram na figura do imperador, dessa forma, Columela estaria

buscando através da exaltação do conhecimento e aplicação do cultivo da terra, ou seja, das

tradições republicanas e consequentemente do ideal de cidadania vinculado ao cidadão-

camponês, um diferencial e legitimação ante essas transformações.

PALAVRAS-CHAVE: Roma, Tradição, Columela.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇAO......................................................................................................................1

2 CONTEXTO...........................................................................................................................6

3 O LEGADO DE COLUMELA...........................................................................................16

4 A EXPLORAÇAO AGRÍCOLA E A DECADÊNCIA DOS COSTUMES MORAIS...19

5 CONCLUSÃO......................................................................................................................26

6 REFERÊNCIAS...................................................................................................................30

1 INTRODUÇÃO

As idéias de Columela assim como dos demais agrônomos latinos, Catão e Varrão,

vêm sendo bastante discutidas pela bibliografia moderna que, entretanto, a circunscreve ao

plano econômico. Herman Gummerus1 os introduziu no debate sobre a economia antiga em

curso a partir da segunda metade do século XIX na Alemanha2. Gummerus, escrevendo no

início do século XX, contrapõe-se à tese de Bücher, de que na Antigüidade teria predominado

uma "economia doméstica fechada"3, cuja mão-de-obra utilizada era exclusivamente servil4.

Segundo Gummerus, os dados fornecidos pelos agrônomos latinos permitiam refutar essa

imagem, pois em suas obras, além da escravidão, mencionam outras formas de exploração do

trabalho e não apresentam a propriedade agrícola como um espaço fechado em si mesmo, mas

em íntima conexão com centros urbanos de produção que comerciavam produtos que essas

propriedades não podiam fabricar. Atualmente, apesar desses pontos estarem bastante

evidentes, ainda permanece a controvérsia sobre o modo como se configura a racionalidade

econômica nos escritos dos agrônomos latinos, no sentido de sua maior ou menor

aproximação com uma racionalidade capitalista5. Um exemplo disso é que enquanto

Gummerus vincula sem ressalvas escravidão e capitalismo6, para Max Weber, o uso

capitalista do trabalho escravo difere substancialmente do emprego do trabalho livre por

1 GUMMERUS, Herman. Der römische Gutsbetrieb als wirtschaftlicher Organismus nach den Werken des

Cato, Varro und Columella. Aalen: Scientia Verlag, 1979 (Klio — Beiträge zur Alten Geschichte, Beiheft 5). Inicialmente publicado em 1906. 2 Seus principais representantes foram Karl Bücher, Eduard Meyer e Max Weber. JOLY, Fábio Duarte. Espaço, poder e escravidão no De Re Rustica de Columela. Revista Brasileira de História, v. 23, 2003. 3 Geschlossene Hauswirtschaft. 4 Esta tese, segundo Fábio Duarte Joly, retomava o conceito de "economia do oikos" proposto por Rodbertus, que caracterizava a Antigüidade como um período no qual predominava a economia de unidades domésticas autônomas, sendo o comércio apenas eventual e esporádico. JOLY, Fábio Duarte. Op. Cit. 5 JOLY, Fábio Duarte. Op. Cit. 6 GUMMERUS, Herman. “Der römische Gutsbetrieb als wirtschaftlicher Organismus nach den Werken des

Cato, Varro und Columella…”. pp. 94-95.

necessitar de maior disponibilidade de capital, para a compra de escravos, por estar à mercê

da mortalidade dos cativos e da oscilação dos preços, o que impede um cálculo seguro da

empresa escravista, e, por depender de um mercado de escravos continuamente reabastecido

por guerras7.

Tal perspectiva de análise que julga a racionalidade econômica antiga em comparação

com o que seria uma racionalidade capitalista desdobrou-se posteriormente na historiografia

sobre a economia romana, que muitas vezes toma Weber como referência8. Dessa forma, para

a denominada Escola de Cambridge, inaugurada por M. I. Finley e continuada por seus

discípulos, como Richard Saller e Peter Garnsey, não houve propriamente uma racionalidade

econômica nos moldes daquela presente no mundo contemporâneo devido a fatores estruturais

e mentais9. Desse modo, qualquer possibilidade de mudança é descartada e a economia

romana aparece como estática ou mesmo como "subdesenvolvida", nos termos de Saller e

Garnsey10.

Porém, a historiografia marxista italiana contesta essa posição. De acordo com

Norberto Guarinello, para essa corrente, em que se destaca Andrea Carandini, “a 'villa

escravista', teria sido [...] o verdadeiro motor da economia romana entre os séculos II a.C. e II

d.C., introduzindo novas formas de cooperação e especialização do trabalho escravo e

voltando-se para a produção mercantil"11 [...]. Quanto ao caso de Columela, Carandini

combate a interpretação de Finley, interpretando-a como resultado de uma apologia do mundo

moderno e contrapondo-lhe uma interpretação fundada na idéia de bissetorialidade12 da villa:

um natural, voltado para a subsistência da própria propriedade, e outro mercantil, direcionado

7 WEBER, Max. Storia economica e sociale dell'Antichità: i rapporti agrari. Roma: Editori Riuniti, 1992, pp. 22-23, 310. 8 JOLY, Fábio Duarte. “Espaço, poder e escravidão no De Re Rustica de Columela...”. 9 Como a ausência de uma "ética capitalista". 10 GARNSEY, Peter e SALLER, Richard. The Roman empire: economy, society and culture. Londres: Duckworth, 1987. 11 GUARINELLO, Norberto L. A economia antiga e a arqueologia rural: algumas reflexões. Clássica. São Paulo, 7/8, 1994/1995, p. 273. 12 Tomada das reflexões de Witold Kula sobre as propriedades agrícolas na Polônia medieval. JOLY, Fábio Duarte. “Espaço, poder e escravidão no De Re Rústica de Columela...”.

para o mercado13. Para Carandini, nesse último sentido, a villa columeliana torna-se o tipo

ideal da propriedade vinícola da Itália do século I d.C., momento em que se teria tornado

necessário a remodelação da produção para enfrentar a concorrência das províncias14.

Quanto ao tema da organização do trabalho escravo, abordado por Columela, a

historiografia acima citada também o entende por moldes econômicos, assim, diretamente

vinculado à questão da produtividade da villa. Embora o próprio Columela deixe claro que

seu tratado tem por objetivo instruir aqueles que desejam obter uma renda de suas

propriedades agrícolas (I, Praef., 7) e que o primeiro passo para tal é cuidar da escolha da

escravaria, sua obra também deixa entrever uma leitura política dessa questão.15

Segundo Fabio Duarte Joly16, alguns estudiosos já observaram que a obra de Columela

poderia ter originalmente um viés político, como, por exemplo, René Martin, segundo o qual,

Columela, representando uma "burguesia italiana" e também provincial, era o porta-voz de

um grupo de proprietários de terras, que no período júlio-cláudio buscava afirmar-se

economicamente diante de categorias sociais que então ascendiam, como os libertos e

comerciantes. Assim, opunha-se ao modelo propugnado pelo grupo dos proprietários

latifundiários17 que praticava a criação extensiva e cuja fortuna, mesmo se alocada para as

propriedades fundiárias, era de origem não agrícola, defendendo uma agricultura intensiva,

especializada na viticultura. Por sua vez, a esses modelos econômicos distintos correspondiam

diferentes formas de se pensar no emprego do trabalho escravo18.

Dessa forma, embora alguns estudiosos venham abordando a questão por um viés que

enfatiza a escravidão como uma instituição social e política, este é um caminho ainda pouco

13 CARANDINI, Andrea. Columella's vineyard and the rationality of Roman economy. Opus, 2, 1, 1983, p. 192. 14 CARANDINI, Andrea. L'economia italica fra tarda Reppublica e Medio Impero considerata dal punto di vista di una merce: il vino. In: AA. VV., Amphores romaines et histoire économique: dix ans de recherche. Roma: École Française de Rome, 1989, pp. 514-516. 15 Sobre tal enfoque, ver JOLY, Fabio Duarte. “Espaço, poder e escravidão no De Re Rustica de Columela...”. 16 JOLY, Fábio Duarte. Op. Cit. 17 A aristocracia senatorial romana de velha estirpe. JOLY, Fábio Duarte. Op. Cit. 18 Quanto a questão do trabalho, ver JOLY, Fábio Duarte. Terra e trabalho na Itália do Alto Império. In: SILVA, Gilvan Ventura da & MENDES, Norma Musco (Orgs.). Repensando o Império romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória, ES: EDUFES, 2006. pp. 65-83.

trilhado, mas que vem se desenvolvendo, inclusive no Brasil, tendo como exemplo a pesquisa

de doutorado de Fábio Duarte Joly, do qual resultou na publicação de um artigo, Espaço,

poder e escravidão no De Re Rustica de Columela19, onde analisa a configuração do espaço e

a organização do trabalho escravo na villa descrita por Columela, valendo-se para tanto de

fatores sócio-políticos.

Será esse o enfoque a ser seguido por esse estudo, que se dedicará à análise das

reflexões produzidas por Columela no De Re Rustica. Este, consiste num tratado agrícola

escrito no século I d.C., onde Columela versa sobre a média propriedade agrícola suburbana,

explorada com objetivos mercantis e sobre a utilização do trabalho escravo nas mesmas.

Desconheço alguma tradução para o português assim, para esse estudo vou me valer da

tradução espanhola feita por Carlos J. Castro20.

A hipótese que servirá de base para o desenvolvimento desse trabalho é a de que

Columela ao escrever o De Re Rustica, não o fez apenas sob bases econômicas, mas

norteando-se também de prerrogativas políticas e morais, uma vez que no século I d.C. Roma

presencia uma alteração no plano político, haja vista que este século vive os efeitos da

transição da República para o Principado. Essa alteração política, de forma geral, implicou um

reposicionamento da aristocracia.

Mediante esse pano de fundo coloca-se a intenção desse estudo, que é analisar os

elementos de ordem extra-econômica que orientaram Columela a escrever um tratado sobre

agricultura – De Re Rustica. Sabe-se de sua condição de membro da aristocracia romana e

proprietário de herdades rurais e por isso pode-se pressupor que o autor conhecia a variedade

de formas de exploração agrária coexistente no interior do Império romano.

19 JOLY, Fábio Duarte. “Espaço, poder e escravidão no De Re Rústica de Columela...”. 20 COLUMELA, L.J. Moderato. Los doce libros de agricultura . Carlos J. Castro (Trad. e notas). Barcelona : Editorial Iberia, 1959.

Portanto, o presente trabalho tem por objetivos identificar os fundamentos das idéias

de Columela a respeito das relações entre o proprietário e seus escravos; perceber se fatores

políticos implicados no processo de transição da República para o Principado aí também se

refletem; bem como relacionar sua posição aristocrática e o contexto de transição política face

aos escravos. Nessa linha, interessa a esse estudo particularmente analisar sua explanação

acerca da utilização de mão-de-obra escrava no mundo rural, bem como sua idealização do

contexto produtivo em unidades de médio porte.

Dentro desse propósito, a exposição será dividida em três partes. A primeira,

abordando o período que antecede a produção columeliana até seu período correspondente,

visto ser esta uma fase que se sucede uma série de transformações políticas e socioculturais.

Em seguida, será feita uma breve apresentação de Columela, bem como de sua obra. E por

fim, passaremos a análise da fonte propriamente dita, a fim de identificar as inter-relações

entre fatores político-sociais, assim como prerrogativas de ordem moral que possam ter

influenciado na concepção de sua obra.

2 CONTEXTO

Em 40 a.C. Otávio recebeu do exército o título de Imperador, que transformou em seu

prenome21. Nos anos que se seguiram à sua vitória contra Marco Antônio, através de títulos e

mudanças no próprio nome, foi cumulado de honrarias pelo Senado.

Depois de ter exercido o governo com poderes excepcionais22 desde a guerra contra

Marco Antônio, Otávio executou em 27 a.C. uma manobra política bem-sucedida: renunciou

aos seus poderes numa sessão do Senado e declarou restaurada a República. Nessa mesma

reunião, o Senado não apenas reafirmou seus poderes, como concedeu-lhe novos títulos, como

princeps23, que significava “primeiro cidadão romano”. Além disso, conferiu-lhe o título

Augusto. Otávio, daí por diante Augusto, saiu, portanto, mais fortalecido desse episódio. Para

ressaltar a sua relação de parentesco com César, divinizado após a morte, relação esta

reforçada pelo seu reconhecimento como filho adotivo24 no testamento deste, e para significar

que dele havia adquirido o direito de comando do exército, Otávio conservou para si a

denominação César. O nome que adotou foi Imperator Caesar Augustus.

21 Durante a República, o título era concedido ao comandante de um exército vitorioso, agora assumia um novo sentido, o de titular do comando supremo. 22 De 31 a 27 a.C. ele acrescentou os poderes do consulado, que ocupou continuamente, dispondo do controle político, das províncias e do exército. 23 Segundo a Tradição republicana, o título de princeps era dado a um cidadão que ocupasse uma posição de liderança e destaque na cidade, obtida pela consagração de sua popularidade, dignitas e auctoritas. Entretanto, a posição de Otávio como príncipe do Senado difere imensamente da posição dos príncipes republicanos. Durante a República, a preeminência do príncipe não era permanente, sendo revestida de notações de paridade e equidade, enquanto a posição de Otávio foi permanente, afastando a noção estóica de “primeiro entre iguais”. 24 A adoção podia ser um meio de impedir a extinção de uma estirpe bem como de adquirir a condição de pai de família exigida por lei aos candidatos a honras públicas e aos governos das províncias, assim, através da adoção, elegia-se um sucessor digno de si. A prática da adoção se tornou corrente na transmissão do poder durante o Principado, o que lhe conferiu um aspecto político. VEYNE, P. (Org.). O Império Romano. In: ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges (Dir.). História da vida privada. I. Do Império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 30.

A nova forma de governo da res publica implantada por Augusto é representada pela

concentração pelo princeps da tribunicia potestas25, do pontificatus maximus

26 e do imperium

majus27. Assim, o princeps assumiu uma posição retora para consolidar e integrar o

Imperium28. Roma passou a ser representada pelo princeps, na condição de agregador do

sistema de valores e peculiaridades culturais29. Dessa forma, o Principado implicou em

mudanças profundas nas relações políticas e sociais30.

O Senado foi renovado por Augusto, que reduziu para seiscentos o total de seus

membros, que durante as guerras civis havia subido para mais de mil. O Senado passou então

a ser composto por ex-magistrados que possuíssem o censo mínimo de 1.000.000 sestércios, e

também por cavaleiros que tivessem censo mínimo de 400.000 sestércios. Senadores e

cavaleiros passaram a formar a aristocracia, de onde se recrutaram os altos funcionários do

Estado. Entretanto, ao reconstituir o Senado através de ordens jurídicas precisas e criar

condições, através de empréstimos financeiros em benefício daqueles que não possuíam o

censo, Augusto transformou os senadores em clientes do príncipe31.

Em 18 a.C., Augusto foi investido pelo Senado da atribuição de velar pelos costumes e

pela lei, o que lhe possibilitou fazer uma segunda revisão no Senado, controlar os ingressos

nas ordens senatorial e eqüestre e emitir a nota censoria, ou seja, banir aqueles julgados

transgressores da ordem e da moral romanas. Devido ao poder tribunício, podia vetar qualquer

resolução do Senado, além disso, depois de 23 a.C. recebeu o direito de reunir o Senado e a

25 A tribunicia potestas significava o controle da iniciativa legislativa e o amparo dispensado ao povo romano. 26 Como pontifex maximus, garantia a pax deorum, exercendo a posição de mediador entre os homens e os deuses. 27 O imperium majus significava que seu comando militar englobava toda a extensão do mundo romano, sendo superior ao de seus colegas. 28 De acordo com a noção republicana, imperium é vinculado ao sentido de concentração de poderes nas mãos de um único indivíduo, o qual passava a ter controle sobre todo o corpo imperial, em nome do povo romano. MENDES, Norma Musco. O sistema político do Principado. In: SILVA, Gilvan Ventura da & MENDES, Norma Musco (Orgs.). Repensando o Império romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória, ES: EDUFES, 2006. pp. 21-51. 29 MENDES, Norma Musco. Op. Cit. p. 27. 30 Ver GIARDINA, Andréa (Org.). O homem romano. Lisboa: Editorial Presença, 1991. 31 MENDES, Norma Musco. “O sistema político do Principado...”. p. 28.

primazia na apresentação dos projetos de lei. Assim sendo, o Senado perde sua soberania,

passando a ser apenas um órgão que anunciava ou confirmava as decisões do príncipe, e

quanto às magistraturas, embora respeitada sua forma tradicional, foram convertidas em

estágios qualificadores na hierarquia administrativa32.

Dessa forma, o Senado perdeu o tradicional controle de decisão sobre a política

externa e sobre as finanças. Apesar de conservar algumas prerrogativas, como investir o novo

príncipe e julgar crimes de alta traição, não tinha mais o poder de decisão, pois ainda que as

instituições republicanas persistam, todas elas estavam sob o controle do princeps; era ele

quem tinha a primeira palavra no Senado, ocupava os principais cargos, indicava os senadores

e outros magistrados, era chefe militar, decidia sobre todos os assuntos importantes e era a

autoridade religiosa.

Assim, o poder pessoal obtido por Augusto levou a criação de um regime político

ambíguo, em que as instituições republicanas foram conservadas sob direção de um princeps,

vindo daí o nome que designa o período, Principado. Essa ambigüidade se deve ao cuidado

tido por Augusto em respeitar a libertas republicana, ainda que essa liberdade fosse apenas a

lembrança de um passado no qual a aristocracia era a detentora do poder de fato33.

Os Senadores permitiram essa concentração de poderes nas mãos de Augusto, uma vez

que muitos deles foram nomeados pelo próprio príncipe, o que veio a enfraquecer a oposição.

Como acima citado, Augusto vinculou a posição social do indivíduo à renda, além de

restringir a competência do Senado e das magistraturas aos assuntos civis relativos a Roma e à

Itália. Assim, destaca-se no universo sócio-político o grupo dos eqüestres, que passou a

compor a magistratura, função anteriormente reservada aos aristocratas, dando apoio às

decisões tomadas pelo governo.

32 MENDES, Norma Musco. Op. Cit. pp. 35-36. 33 CORASSIN, Maria Luiza. Sociedade e política na Roma antiga. São Paulo: Atual, 2001.

Dentre as mudanças implantadas desde 27 a.C. por Augusto está a divisão das

províncias entre o Senado e o príncipe. As províncias imperiais, recentemente conquistadas

ou mal pacificadas, que requeriam a presença de fortes contingentes militares foram confiadas

à administração do príncipe. As demais foram entregues à administração do Senado.

Entretanto, em virtude de seu imperium, Augusto podia intervir em todas. O Egito constituía

um caso a parte, pois sendo uma área estratégica – era o principal fornecedor de trigo para a

cidade de Roma – era governado por um prefeito da ordem eqüestre que dependia diretamente

do imperador. Além disso, as províncias deixaram de ser consideradas terras de conquistas a

serem exploradas ao máximo, e foram progressivamente romanizadas34.

Augusto também promoveu uma política de fortalecimento do limes. Uma vez que os

recursos humanos e financeiros do Império não eram inesgotáveis, tal fator levou-o a

considerar a questão da política externa de modo defensivo, estratégico e econômico em

detrimento da até então adotada política de expansão. As prioridades passaram a ser a garantia

de comunicações seguras, a proteção da Itália, das regiões latinizadas e helenizadas, assim

como das províncias necessárias ao abastecimento de Roma35. Desse modo, Augusto buscou o

estabelecimento do limes da Britânia, dos rios Reno e Danúbio, do Oriente e do norte da

África.

No início do Principado Augusto reduziu o número de legiões, que haviam aumentado

muito durante as guerras civis, e reorganizou o exército tornando-o profissional e permanente.

Também criou um grupo militar especial, com a função de protegê-lo, a Guarda Pretoriana,

além de colocar nos comandos das tropas apenas pessoas de sua confiança. Em posse do

comando militar superior, Augusto tinha o poder de justiça sobre os exércitos e os provinciais

que eram exercidos por seus legados. Tal prerrogativa também passou a vigorar para os

34 CORASSIN, Maria Luiza. Op. Cit. p. 71. 35 ENGEL, Jean-Marie & PALANQUE, Jean-Rêmy. O Império romano. ZUZEK, Niko (Trad.). São Paulo: Atlas, 1978. p. 17.

cidadãos romanos, vindo a substituir gradativamente seu direito de apelação ao povo romano,

antes de ser executado, pela apelação ao Imperador36.

Quanto ao Direito, os senado consultas continuavam sendo as fontes essenciais, porém

era decisiva a intervenção imperial. Contudo, na medida em que o poder imperial se

fortalecia, a fonte primordial de direito passou a ser representada pelo príncipe37.

O Principado pôs fim ao pouco que havia da participação popular, uma vez que a

liberdade eleitoral foi quebrada pela prática de recomendação de candidatos aos Comícios,

visto que assim ninguém se apresentava ao consulado se não fosse candidato do príncipe, o

mesmo ocorrendo para a pretura, o edilato e para a questura. Durante a República, as grandes

questões políticas eram debatidas em público, ao passo que no Principado esse processo foi

feito por poucos homens, através de comitês compostos pelos cônsules38, cuja duração era de

seis meses. Tais comitês constituíam órgãos administrativos, e não de autoridade, sendo

utilizados pelo príncipe como um conselho. As principais questões de governo eram debatidas

em outra instância, formada pelos amigos de Augusto, o Conselho do Príncipe.

Entretanto, se o poder passava por uma centralização nas mãos do príncipe, e entre as

conseqüências o Senado perdia importância como instituição política, os senadores ganhavam

individualmente, pois passavam a ocupar a maioria dos cargos criados no Principado. Além

de lhes oferecer uma posição social elevada, o regime lhes garantia a vida e a prosperidade,

algo fortemente abalado durante as guerras civis.

No governo de Augusto iniciou-se um longo período de calma e prosperidade,

conhecido como a Pax Romana, iniciada em 29 d.C., quando Augusto declarou o fim das

Guerras Civis, até a morte de Marco Aurélio em 180. Houve um grande avanço econômico,

principalmente no comércio, que era realizado entre todas as Províncias. São projetados

grandes trabalhos urbanísticos em Roma e nas Províncias: foros, templos, aquedutos e vias,

36 MENDES, Norma Musco. “O sistema político do Principado...”. p. 30. 37 MENDES, Norma Musco. Op. Cit. p. 35. 38 Um titular de cada magistratura e quinze senadores escolhidos por sorteio.

assim como fundação de colônias e civitates39

, embora tal prática já fosse existente durante a

República, constitui um sintoma evidente do processo de romanização no Ocidente.

Entretanto, durante a "paz romana"40, que significava um momento de calmaria, foram

enviados exércitos para as províncias, de modo a impedirem os focos de rebelião. Por sua vez,

nos grandes centros urbanos a população continuava vivendo em condições precárias. De

modo geral, a plebe urbana vivia melhor que a rústica, pois Augusto e seus sucessores

procuraram manter satisfeita a plebe da cidade de Roma através de distribuição de trigo,

donativos em dinheiro em ocasiões festivas, e oferecendo espetáculos no circo, anfiteatro e

teatro41. Era a política do "pão e circo”, que visava diminuir as tensões sociais. Todavia,

apenas os cidadãos tinham direito a essas cotas mensais de cereais, que, no entanto não

bastavam para manter uma família.

O status social e jurídico da plebe urbana era variado. Havia homens nascidos livres

(ingenui), que podiam ser cidadãos romanos ou não cidadãos; escravos e libertos. Entretanto,

ser um homem livre ou um cidadão não significava necessariamente ser mais rico que um

liberto, uma vez que a familia Caesaris42, ou seja, os escravos e libertos do imperador podiam

ser incluídos entre os grupos superiores da sociedade, pois estar a serviço do soberano na

administração podia lhes proporcionar prestígio e a possibilidade de acumular riqueza43.

A composição social da plebe rustica também era variada nas diferentes partes do

Império. Um homem livre, por exemplo, podia ser um pequeno proprietário ou depender do

trabalho que realizava na terra de outrem. Apesar da pequena e média propriedade cultivada

por camponeses livres não ter desaparecido, principalmente na península Itálica, a média

39 Como Braccara Augusta, Lucus Augusti e Emérita Augusta. 40 Ver BAUZÁ, Hugo F. El otro rostro de la paz augustal. Semanas de Estúdios Romanos. Universidad Católica de Valparaiso, v. IX, 1998. pp. 69-79. 41 Ver GARRAFFONI, Renata. Bandidos e salteadores na Roma antiga. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002. 42 Para maiores informações, JOLY, Fábio Duarte. A escravidão na Roma antiga: política, economia e cultura. São Paulo: Alameda, 2005. 43 CORASSIN, Maria Luiza. “Sociedade e política na Roma antiga...”. p. 70.

propriedade trabalhada por escravos44 e pertencente a membros das elites locais era bastante

difundida no século I d.C.. Na península Itálica o número de escravos continuou elevado,

enquanto em certas províncias, o cultivo da terra era feito por trabalhadores não escravos.

Com a pax romana o número de homens escravizados pelas derrotas nas guerras começou a

diminuir, assim, o preço dos escravos tendia a subir e o tratamento a eles dispensado começou

lentamente a mudar em relação à época republicana.

O governo de Augusto estendeu-se de 31 a.C. a 14 d.C. e uma vez que o sistema de

governo não era uma monarquia declarada, não havia uma regra definida para a sucessão

imperial. Desejando indicar um sucessor, Augusto já vinha preparando o caminho através da

adoção. Depois de uma série de infortúnios, Tibério, seu enteado, foi associado ao poder e

adotado como filho. Essa estratégia familiar de adoções, casamentos e associação ao poder

foram meios empregados para transmitir o poder dentro da dinastia que se fundava45.

Entretanto, novas forças passaram a atuar na escolha do novo príncipe: o exército nas

províncias, as classes dirigentes locais, os funcionários da ordem eqüestre, os libertos.

Tibério Cláudio Nero, após a adoção por Augusto passou a chamar-se Tibério Julio

César. Foi encarregado do comando militar superior e dos poderes tribunos, uma vez que era

necessário demonstrar sua importância para o bem do Estado. Assim, quando Augusto morreu

em 14 d.C., Tibério praticamente já estava investido do poder imperial, ao qual estava

associado havia dez anos, bastando para tanto a confirmação do Senado e do povo,

observando assim a tradição republicana46.

Tibério se dispusera a observar os princípios políticos de Augusto, entretanto, tal

observância prevaleceu durante os dez primeiros anos de seu governo. Nesse período,

pretendeu governar com o Senado, recusou as honras exageradas, os títulos de intrínsecas

44 Eram as chamadas villas. A villa era uma pequena ou média propriedade na qual realizava-se uma atividade econômica primária. 45 CORASSIN, Maria Luiza. “Sociedade e política na Roma antiga...”. p. 72. 46 MENDES, Norma Musco. “O sistema político do Principado...”. p. 43.

características reais, assim como a deificação. Foi um administrador escrupuloso e

extremamente minucioso, fiscalizava a justiça, a religião em Roma e nas províncias,

entretanto, não tinha o prestígio de Augusto. Quanto à política externa, preferiu a diplomacia

à guerra47.

Embora visto com desconfiança pelo Senado, Tibério atribuiu-lhe a escolha dos

magistrados. Entretanto, atormentado pelo temor de conspirações por parte dos senadores para

tomar seu lugar, tornou-se cada vez mais desconfiado e multiplicou os processos políticos

contra estes. Dessa forma, o relacionamento entre o Senado e Tibério rompeu-se diante desse

clima de intrigas e ameaças de conspiração, terminando seu governo com caráter despótico

em 37 d.C48.

Com a morte de Tibério a sucessão passou para seu sobrinho, Caio César, chamado

Calígula. Aclamado pelo exército, Calígula teve confirmada sua designação pelo Senado e

pelo povo, chegando ao poder em 37 d.C. aos 25 anos.

Calígula procurou a princípio ganhar prestígio entre o povo. Mandou distribuir

dinheiro e organizou festas, prometeu também abolir os processos de lesa-majestade,

implantado por Tibério, assim como repatriar os banidos e publicar regularmente as medidas

concernentes à gestão do Estado. Entretanto, logo mostrou uma concepção helenística do

poder que queria que fosse absoluto e sagrado. Assim sendo, seu reinado foi curto; sua

personalidade caprichosa, seu desejo de luxo, sua tendência tirânica e desmedida provocaram

reações49. O bom relacionamento com o Senado tornou-se impossível, sendo assassinado em

janeiro de 41 d.C. por oficiais da guarda pretoriana. Com sua morte desaparecia a família dos

Júlios, restando apenas Cláudio, tio de Calígula, a quem os pretorianos apressaram-se em

aclamar, sendo posteriormente investido pelo Senado. Constituía-se então a dinastia Julio-

Claudia.

47 ENGEL, Jean-Marie & PALANQUE, Jean-Rêmy. “O Império romano...”. p.43. 48 Ver SUETÔNIO. A vida dos doze Césares. GARIBALDI, Sady (Trad.). São Paulo: Ediouro. pp. 99-131. 49 SUETÔNIO. Op. Cit. pp. 132-159.

Cláudio até então não havia tomado parte na política50, e embora carente de tato e

demasiadamente influenciado por sua esposa e homens libertos, revelou-se um governante

empenhado em suas atribuições. Após a desordem que imperou durante o governo de

Calígula, o novo príncipe procurou promover a restauração do Estado através do

desenvolvimento de uma política centralizadora, cujo conjunto atingia o Senado, na medida

em que fortalecia a atuação dos libertos imperiais51 na administração central e inscrevia

famílias plebéias entre as famílias patrícias52. Augusto e Tibério empregaram seus próprios

escravos e libertos no serviço de sua correspondência e na contabilidade, tanto de suas

fortunas particulares como do dinheiro público. Sob o governo de Cláudio, surgiram vários

departamentos chefiados por libertos, encarregados das finanças, da correspondência e das

petições. Esses libertos imperiais ganharam poder e honrarias públicas, sendo detestados pelos

senadores, que tinham que cair em suas boas graças. Tudo isso levou Cláudio a uma grande

impopularidade.

Para ganhar prestígio militar, empreendeu em 43 d.C. a conquista da Britânia, como

uma forma de complementar a conquista da Gália, tarefa que exigiu a colaboração de várias

gerações para ser acabada. Quanto à concessão da cidadania romana às províncias foi bastante

transigente, concedendo-a as cidades do Oriente e principalmente às províncias ocidentais da

Bética e da Narbonense. Preocupado com o abastecimento de Roma, Cláudio ampliou as

instalações do porto de Óstia e construiu o grande aqueduto que leva seu nome.

Cláudio governou até 54 d.C.53, quando foi envenenado por sua quarta esposa,

Agripina, para que seu filho, Nero, que havia sido adotado logo em seguida a seu casamento

assumisse o poder54.

50 GRAMMATICO, Giuseppina. Silencio y furor en la Apokolokynthosis de Séneca. Semanas de Estúdios

Romanos. Universidad Católica de Valparaiso, v. IX, 1998. pp. 93-108. 51 A denominada familia Caesaris, ver, JOLY, Fábio Duarte. “A escravidão na Roma antiga...”. pp. 52-54. 52 MENDES, Norma Musco. “O sistema político do Principado...”. p. 44. 53 GRAMMATICO, Giuseppina. “Silencio y furor en la Apokolokynthosis de Sêneca...”. p. 97. 54 SUETÔNIO. “A vida dos doze Césares...”. pp. 160-183.

Lúcio Domicio Aenobarbo, mais tarde Nero Cláudio César Druso Germânico tinha

apenas 16 anos quando foi aclamado pelos pretorianos em 54 d.C. Nos cinco primeiros anos

governou em harmonia com o Senado, sob a orientação de sua mãe e de seu preceptor, o

filósofo e senador Sêneca55. Posteriormente liberou-se do controle de Agripina, ordenando seu

assassinato. Esse fato e a morte de vários senadores o indispuseram com o Senado.

Nero começou então um governo tirânico. Seus únicos interesses eram a música e a

literatura, negligenciando abertamente a coisa pública. Nessa nova política pessoal,

multiplicou os espetáculos e as festas. Afastou-se das doutrinas de Sêneca56, o qual conduziu

ao suicídio; iniciou-se no culto do Rei-Sol, concebendo o poder imperial como uma

monarquia à moda faraônica, encarando o soberano como a encarnação do deus Sol.

Em 61 d.C. restabeleceu a lei de lesa-majestade. Foi acusado do grande incêndio que

assolou Roma em 64 d.C.. Assim, devido aos escritos de autores senatoriais como Suetônio57

e Tácito, passou para a história como um tirano cruel e depravado, embora, ao contrário de

Suetônio, Tácito58 não o tenha culpado de todo pelo incêndio.

Em 66 d.C. partiu para a Grécia para exibir-se nos jogos. Em 67 d.C. regressou a

Roma e teve que fazer frente a várias rebeliões: Vindex na Gália, Galba na Tarraconense,

Oton em Lusitânia. Em 68 d.C. Nero suicidou-se ao ser abandonado pelos exércitos, pela

guarda pretoriana e por ter sido declarado inimigo público pelo Senado. Dessa forma encerra-

se a dinastia Julio-Claudia, visto não haver mais nenhum representante em condições de

receber a magistratura imperial59.

55 EHRHARDT, Marcos Luís. Vir Virtutis: a construção do príncipe perfeito nos escritos de Lucius Seneca. Tese. (Mestrado em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001. 56 GUARINELLO, Norberto L. Nero, o estoicismo e a historiografia romana. Boletim do CPA. Campinas, n. 1, jan/jun, 1996. 57 SUETÔNIO. “A vida dos doze Césares...”. p. 202. 58 TÁCITO, C. Cornélio. Anais. PEREIRA, Leopoldo (Trad.). Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1964. p. 374. 58 SUETÔNIO. “A vida dos doze Césares...”. pp. 132-159. 59 MENDES, Norma Musco. “O sistema político do Principado...”. p. 44.

3 O LEGADO DE COLUMELA

No Mundo Antigo, a prosperidade baseou-se nas atividades da vida rural, a agricultura

e a pecuária; no Império Romano não foi diferente. Catão, Varrão, Columela, Virgílio e

Plínio, o Jovem, entre outros escritores, fornecem-nos dados preciosos para acompanharmos o

desenvolvimento da vida rural desde os fins da República até o início do século II d. C., uma

vez que abordam, por exemplo, a estrutura geográfica que deve constar numa propriedade

rural, o que aí era produzido, qual o tipo de mão de obra utilizada, assim como conselhos para

a escolha desta e das próprias terras.

Embora tenham escrito em diferentes épocas, as obras de Catão, Varrão e Columela,

no século XIX, foram geralmente publicadas em conjunto. Nesse século, começou a ganhar

corpo a historiografia sobre a economia romana, para a qual contribuiu a leitura

predominantemente econômica desse corpus documental, que ainda hoje é utilizada para

discutir a produtividade do trabalho escravo, a organização do trabalho na villa e o destino da

produção. Essas questões, em última instância, desembocam no tema mais amplo da

racionalidade econômica na Antigüidade e seus respectivos limites diante da economia

capitalista moderna60.

Devido a essa ótica que vê na villa uma organização essencialmente econômica, outras

possibilidades de leitura dos agrônomos latinos foram deixadas em segundo plano pela

historiografia61. Embora a produção agrícola e pastoril seja o pressuposto da composição

60 JOLY, Fábio Duarte. “Espaço, poder e escravidão no De Re Rustica de Columela...”. 61 Constituem alguns exemplos: GUMMERUS, Herman. Der römische Gutsbetrieb als wirtschaftlicher

Organismus nach den Werken des Cato, Varro und Columella. Aalen: Scientia Verlag, 1979 (Klio — Beiträge zur Alten Geschichte, Beiheft 5). Inicialmente publicado em 1906.; FINLEY, Moses. I. A economia antiga. Porto: Afrontamento, 1986; GARNSEY, Peter e SALLER, Richard. The Roman empire: economy, society and

culture. Londres: Duckworth, 1987. DUARTE, Joly. Op. Cit.

dessas obras, isso não exclui a priori que critérios extra-econômicos tenham marcado o

andamento das concepções de organização do espaço e da mão-de-obra no interior da

propriedade. Nesse sentido, centrando-nos na obra de Columela, De Re Rustica, para a

elaboração deste estudo, será apresentada uma análise sobre o livro I da referida obra, no qual

Columela apresenta uma introdução geral e discorre sobre o problema da gestão da

propriedade, e também sobre o livro XI, onde Columela se detém nas funções do capataz na

villa e no tema da horticultura.

Sobre Columela (Lucius Moderatus Columella) pouco se sabe. Não se conhece ao

certo a data de seu nascimento, mas que viveu sob o principado de Nero (54-68 d.C.). Quanto

a sua origem, consta como sendo da província da Bética, mais precisamente de Gades, onde

se crê, adquiriu seus conhecimentos sobre agricultura62. Essa datação provém das menções

que faz ao filósofo e senador Sêneca e às propriedades deste na região de Nomento (De R. R.,

III, 3, 2), bem como a outros personagens do círculo de amizades de Sêneca, como Júnio

Gálio e M. Trebélio Máximo (De R. R., V, 1, 2; IX, 16, 2). Este último pode ser o legado sob

o qual Columela serviu, em 36 d.C., como tribuno militar na legião VI Ferrata, estacionada na

Síria. Depois, transladou-se para Roma, onde se dedicou a agricultura, como proprietário de

várias herdades rurais, onde pôs em prática seus conhecimentos a respeito. Em Roma fez

parte dos círculos sociais mais elevados. Columela representava uma aristocracia provincial

que ganhava espaço em Roma e que tinha seguramente em suas propriedades fundiárias uma

fonte de renda63. Na Itália, Columela possuía terras em pelo menos quatro regiões: perto de

Caeres na Toscana, nas proximidades de Carsioli no Lácio, na região de Alba e uma última

nos arredores de Ardea.

Quanto à sua produção intelectual, não compôs sobre os mais diversos campos da

cultura, embora demonstre conhecimento de poesia, sobretudo Virgílio, e de filosofia,

62 Foi educado por seu tio, Marco Columela, um dos fazendeiros mais ricos da antiga Bética. 63 JOLY, Fábio Duarte. “Espaço, poder e escravidão no De Re Rustica de Columela...”.

particularmente na sua vertente estóica. Além de um escrito sobre astronomia, que não se

conservou, sua obra resume-se ao já citado tratado agronômico, escrito em doze livros, De Re

Rustica.

Escrito no século I d.C., no De Re Rustica, Columela versa sobre a média propriedade

agrícola suburbana, explorada com objetivos mercantis e sobre a utilização do trabalho

escravo nas mesmas. Discorre sobre os trabalhos do campo no mais amplo sentido da palavra,

desde a prática da agricultura e apicultura, até a cura de animais, passando pela elaboração de

diversos produtos e conservas. Sua obra é considerada o repertório mais amplo e

documentado sobre a agricultura romana.

Os livros de seu tratado, com exceção do livro XI, endereçado a Cláudio Augustal64,

têm por destinatário P. Silvino65, mas de ambos não temos informações. O livro I começa com

um extenso prefácio no qual o autor expõe suas idéias econômicas, sociais e morais; além

disso, enumera os conhecimentos que um agricultor deve dominar. No livro I, além dessa

introdução geral, disserta sobre o problema da gestão da propriedade. O livro II versa sobre o

plantio de cereais e leguminosas. Os livros III, IV e o início do V tratam da viticultura, e, ao

final do V, Columela volta-se para a arboricultura. Os livros VI a IX tecem considerações

sobre a criação de animais. O livro X é escrito em versos, um poema sobre jardins. No livro

XI Columela detém-se nas funções do capataz da villa, o vilicus, e no tema da horticultura,

enquanto no livro XII considera as atribuições da vilica, esposa do capataz, e traz algumas

receitas diversas.

A propriedade-tipo de Columela trabalhava essencialmente com mão-de-obra escrava.

Os escravos deviam trabalhar em grupo, controlados por um feitor (procurator). O vilicus

(capataz), que geralmente era um escravo, era o responsável geral pela exploração. O senhor

64 Sugerimos que Columela estivesse referindo-se ao princeps Cláudio. 65 Possivelmente tal destinatário seja Plautio Silvano, contemporâneo ao governo de Nero, lutou na campanha contra os Sármatas em 63 d.C.

devia, porém, visitar com freqüência a propriedade. Os escravos deste tipo de propriedade

eram comprados no mercado.

4 A EXPLORAÇAO AGRÍCOLA E A DECADENCIA DOS

COSTUMES MORAIS

A expansão romana dos primeiros séculos da República assentou as bases para as

grandes transformações sociais e econômicas que observamos a partir de fins do século III a.C

e principalmente durante o século seguinte. A conquista da Itália propiciou a Roma

abundantes recursos materiais e humanos, colocando-a em contato com os grandes reinos

helenísticos do Oriente e com as rotas comerciais que cruzavam o Mediterrâneo. O afluxo de

riquezas e sua concentração nas mãos da aristocracia romana foi um fator fundamental para a

superação da antiga economia camponesa de auto-subsistência e sua substituição pelo modelo

da grande propriedade rural – a villa66 – com suas unidades produtivas voltadas para a venda

ao mercado, e que se instaurou nas propriedades da aristocracia romana espalhadas pelo

território itálico67.

A produção agropastoril foi a base da atividade produtiva no Mundo Antigo.

Entretanto, coexistiram diversos tipos de empresas agrícolas, que se diferem quanto ao

tamanho, mão-de-obra utilizada e objetivos econômicos. Ao lado de empresas agrícolas

voltadas para a mercantilização subsistiram pequenas e médias unidades rústicas voltadas para

a produção de subsistência. Entretanto, a concentração fundiária e o emprego crescente de

escravos foram tendências próprias do mundo agrário nos dois últimos séculos da República e

nos três primeiros séculos do Império. A unidade familiar, geralmente dedicada à produção

cerealífera, deu lugar, nos arredores dos núcleos urbanos, a explorações agrícolas intensivas,

assentadas sobre o trabalho escravo e produzindo para o mercado.

66 ARIÑO GIL, Enrique & DÍAZ MARTINEZ, Pablo C. La economía de la Hispania romana: colonización y territorio. Slvdia Historica, Historia antigua. Ediciones Universidad Salamanca, 17, 1999, pp. 153-192. 67 GUARINELLO, Norberto Luiz . Imperialismo Greco-Romano. São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 61.

Já no fim da República, a dimensão média da villa parece crescer, e os senhores –

devido, parcialmente, ao peso dos gastos com diversas residências rurais e ao tempo perdido

com visitas a explorações dispersas – passam a concentrar suas propriedades, que mantêm,

entretanto, a autonomia produtiva.

A exploração agrícola ideal descrita por Columela produzia para o mercado urbano e

supria as necessidades de todos os membros, urbanos e rurais da “família”, que era integrada

por trabalhadores escravizados ocupados em tarefas de supervisão-administração (procurator

e vilicus), trabalhos especializados (utilizados nas vinhas) ou em operações rotineiras e

cansativas. A viticultura e a oleicultura eram, nesta ordem, as atividades de base

recomendadas pelo autor, embora a propriedade também devesse contar com bosque de lenha,

pastos, pedreira68, pomar e horta69.

No prólogo da obra, Columela indaga os motivos da decadência da agricultura70. O

autor lastima e critica que se tenha abandonado o cultivo da terra a escravos, enquanto que as

melhores inteligências se dedicam a ensinar outras matérias, como retórica, música, e

culinária71. Dessa forma, a agricultura, ciência vital para a Humanidade, carecia tanto de

alunos como de mestres. Columela critica seus contemporâneos que viviam entre quatro

paredes nas cidades (intramurani), entregues ao ócio nas casas de banho e às bebedeiras, sem

nunca apreciarem o nascer e o pôr do sol72.

Na ideologia tradicional romana a ocupação do cavaleiro foi a agricultura, e desde que

se desenvolveu a urbanitas, a moral tradicional se assentava nos valores campesinos frente

aos vícios da cidade. Dessa forma, pode-se dizer que o bom romano era o camponês

transladado para a cidade. Logo, o ofício do agricultor sempre será mais digno que os ofícios

desenvolvidos no meio urbano, os quais dificilmente se associam com a dignidade do homem

68 COLUMELA, Lucio J. Moderato. “Los doce libros de agricultura...”. p. 14. 69 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. p.25. 70 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. p. 3. 71 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. pp. 3-4. 72 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. p. 6.

livre73. Muito provavelmente provém dessa ideologia as críticas de Columela logo no prólogo

de sua obra, claramente dirigidas a seus parias, visto que os acusa de passar os dias em um

ócio desregrado e licencioso74. Columela estabelece um paralelo entre status político e o

emprego do trabalho escravo, no qual, segundo ele, quanto maior o status, maior o desprezo

às atividades agrícolas, e consequentemente, maior o uso indiscriminado de escravos:

Freqüentemente ouço os que são proeminentes em nossa cidade ora condenando a infecundidade dos campos, ora a intempérie do céu há tempos prejudicial às colheitas; outros ainda, como que com razão, abrandando essas queixas, crêem que o solo cansou-se e exauriu-se com a pujança dos tempos passados, a ponto de não mais poder oferecer alimentos aos mortais com a bondade de outrora. (I, Praef., 1).

Segundo Columela, tal situação é causada pela decadência dos costumes morais.

Diante desse quadro, contrapõe uma idealização do passado republicano, quando os homens

públicos alternavam o exercício da guerra e da política com o cultivo de suas terras75.

Outra crítica dirigida à aristocracia de sua época diz respeito à dignidade que a

atividade agrícola proporciona, referência esta que serve de contraponto às redes de clientela

desenvolvidas com indivíduos que concentram maiores poderes, objetivando conseguir

vantagens, seja na aquisição de cargos ou mesmo de ordem material:

Devo julgar mais honrada a falsa perseguição daquele que presta saudação por dinheiro, rodeando as casas dos poderosos e auscultando os ruídos do sono de seu rei? Pois nem se perguntados, os escravos dignam-se a responder-lhe o que se passa dentro. Ou devo julgar mais afortunado aquele que toda a noite, repelido por um escravo acorrentado à entrada, atira-se a portas ingratas, e pelo mais miserável servilismo, à custa de sua honra, negocia a honra e o poder dos fasces, também despendendo seu patrimônio? Pois não é com uma escravidão voluntária, mas com bens que a honra é comprada. Se de tais coisas e similares os homens bons devem fugir, resta, como disse, um modo liberal e digno de um homem livre de aumentar as posses familiares, e este reside na agricultura. (I, Praef., 9-10)

Segundo Columela, além de possibilitar uma fonte de renda, a agricultura também

seria o meio pelo qual se alcançaria uma vida digna, própria do homem livre, correlacionando

73 DÍAZ MARTINEZ, Pablo C. Urbes in rure: los placeres del campo y de la naturaleza. In: Hispania romana. Desde tierra de conquista a provincia del Imperio. Madrid: Electa, 1997, p. 283. 74 COLUMELA, Lucio J. Moderato. “Los doce libros de agricultura...”. p. 6. 75 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. pp. 6-7.

ao conceito estóico de liberdade, onde esta não é coagida pela constante busca de bens

materiais.

Segundo denota Columela, o modo ideal de gestão da villa seria aquele no qual o

proprietário tomasse conta pessoalmente da administração e residisse no local, entretanto,

como não via perspectiva de que tal procedimento fosse adotado, recomenda que a gestão da

propriedade seja feita através de um vilicus, mas sob a supervisão do proprietário.

Deste modo, a escravidão constituía uma das modalidades de mão-de-obra na

propriedade agrícola descrita por Columela, sendo o capataz, o vilicus, uma peça chave para a

organização e controle dessa mão-de-obra. Assim como Varrão, Columela descreve a relação

entre o senhor e os escravos diretamente empregados na produção de maneira indireta, ou

seja, as ordens quanto a realização dos trabalhos sendo mediadas através da figura do vilicus,

que geralmente também era um escravo. O vilicus não apenas intermediava a relação senhor

escravo quanto às ordens a serem seguidas, como em relação aos castigos a serem aplicados.

O senhor envolvia-se diretamente com a escravaria por meio de recompensas e de concessões,

ou seja, o vilicus atuava de modo a amortecer os laços de exploração76.

Columela recomendava especial atenção quanto ao tratamento dispensado aos

escravos. O proprietário e o vilicus deviam elogiar os mais aplicados, consultá-los sobre os

trabalhos, sobre os escravos acorrentados, assim como a respeito dos punidos, que deviam

dormir na prisão, ergastulum77, e recomendar que nunca lhes faltasse comida. Sua atenção

também recai quanto à forma com que o vilicus exerce sua autoridade, aconselhando que esta

não seja exercida de maneira intransigente e arbitrária:

[O capataz] deverá considerar o que é difícil de se observar mesmo no tocante aos maiores poderes, isto é, não agir de forma muito cruel ou indolente com os subordinados; é preciso sempre incentivar os bons e empenhados, poupar os menos aptos, e agir moderadamente para que eles mais respeitem sua severidade do que odeiem sua crueldade. E poderá obter isso se

76 JOLY, Fábio Duarte. “A escravidão na Roma antiga...” p. 66. 77 Mais informações em ÉTIENNE, R. Recherches sur l’ergastule. In: LEVI, M. A. e outros. Actes du collague

1972 sus l’esclavage. Centre de Recherches d’Histoire Arcienne vol. 11. Besançon/Paris Annales Littéraires de l’Université de Besançon, 163 – Les Belles Lettres, 1974.

preferir cuidar para que um trabalhador não erre do que, se errar, puni-lo. Pois não há nada mais eficaz para controlar o pior dos homens do que retirar-lhe dia a dia suas tarefas. (XI, 1, 25)

Columela aborda enfaticamente as funções do vilicus, dando ampla importância à

hierarquização dentro da propriedade por ele descrita78. Uma clara evidência dessa

hierarquização estabelecida entre a escravaria está na forma com que Columela concebe a

organização do espaço físico da propriedade. O autor do De Re Rustica divide a villa em três

partes: a urbana (pars urbana), rústica (pars rustica) e a parte relativa à produção agrícola

(pars fructuaria)79. Quanto a parte urbana, segundo Columela:

A parte urbana, por sua vez, divide-se em aposentos de inverno e de verão, de modo que os quartos de inverno voltem-se ao oriente no solstício de inverno e as salas de refeições ao ocidente no equinócio. Por outro lado, os aposentos de verão voltam-se para o sol de meio-dia no equinócio, mas as salas de refeição desse tempo voltam-se para o oriente no inverno. Os banhos devem orientar-se para o ocidente no verão, a fim de que sejam iluminados após o meio-dia até a tarde. Os passeios devem estar expostos ao sol de meio-dia o equinócio, para no inverno receber o máximo de sol e no verão o mínimo. (I, 6, 1-2)

Pela descrição, nota-se que Columela não utiliza de critérios hierárquicos para

estabelecer a distribuição dos aposentos, norteando-o apenas os de ordem climática,

diferentemente do que estabelece ao tratar a parte rústica:

Na parte rústica há que se ter uma grande e alta cozinha, para que as vigas de madeira estejam livres do perigo de incêndio, e para que nela os escravos possam comodamente ficar durante todas as épocas do ano. É melhor que os quartos para os escravos soltos sejam feitos voltados para o sol de meio-dia no equinócio; para os acorrentados deve-se ter um ergástulo o mais saudável possível, com muitas e estreitas janelas para iluminar, mas distantes do solo para não serem alcançadas pela mão. (I, 6, 3)

Logo, nota-se a existência de dois tipos de escravos, os que não ficam acorrentados

nas horas vagas, e os acorrentados. Os do primeiro grupo, estabelecidos nas cellae80, enquanto

o segundo grupo permanece no ergastulum. Da mesma forma, estabelece distinção quanto às

acomodações do procurator e do vilicus (capataz):

78 Quanto à hierarquização presente na obra columeliana, ver JOLY, Fabio Duarte. “Espaço, poder e escravidão no De Re Rustica de Columela...”. 79 COLUMELA, Lucio J. Moderato. “Los doce libros de agricultura...”. p. 22. 80 Provavelmente pequenos quartos construídos no interior de um edifício maior.

Para o capataz a habitação deve ser feita próxima da porta para que possa observar quem entra ou sai. Para o procurador deve ser feita acima da porta pelos mesmos motivos e para que observe de perto o capataz. Perto de ambos há o celeiro, onde se guardam todos os instrumentos agrícolas; e dentro dele há um local fechado para reunir as ferramentas. Os quartos dos pastores devem estar ao lado de seus rebanhos para que possam cuidar deles quando seja preciso. E todos devem morar o mais próximo possível entre si, para que o empenho do capataz não se desdobre para circular por diversos lugares e para que entre eles a diligência e a negligência de cada um esteja aparente. (I, 6, 7-8)

A citação mostra claramente que a distribuição espacial desses aposentos é ordenada

hierarquicamente. A necessidade do vilicus localizar-se perto da entrada da villa é justificada

para que possa observar a movimentação de pessoas na propriedade. Já a habitação do

procurator — em posição hierárquica superior à do vilicus — situa-se conseqüentemente

acima daquela do vilicus, para supervisioná-lo e ao restante da propriedade. Da mesma forma,

os escravos responsáveis pelo cuidado dos animais devem residir adjacentes aos estábulos

para facilitar o controle exercido pelo vilicus. De acordo com essa distribuição espacial, não

apenas fica facilitada a realização das tarefas desempenhadas pelos escravos, como a função

dos encarregados da supervisão destes.

Por fim, a pars rustica engloba ainda os estábulos (de verão e de inverno) e um

armazém para guardar os instrumentos agrícolas81. A pars fructuaria compreende as

construções destinadas à produção de vinho e azeite e ao armazenamento de trigo. Nela

também está incluída uma área de banho para os escravos82.

Logo, a organização do espaço na villa columeliana é um claro reflexo da forma como

está distribuído o poder entre a mão-de-obra aí utilizada, uma vez que na pars rustica os

espaços são atribuídos de acordo com o grau de subordinação dos trabalhadores.

Através da análise dessa estrutura fica evidente a importância imputada à figura do

vilicus, visto que este é quem exercerá a fiscalização que o proprietário se vê impossibilitado

de fazer sob a escravaria, daí decorre a ênfase quanto às qualidades que este componente da

villa columeliana deve apresentar. Segundo Columela, o vilicus jamais deve abandonar os

81 COLUMELA, Lucio J. Moderato. “Los doce libros de agricultura...”. pp. 22-23. 82 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. pp. 23-25.

limites da villa83 nem fazer qualquer negócio por conta própria84. Sua função constitui

estritamente em zelar pelos interesses do senhor, cuidando dos equipamentos da villa85 e

principalmente da escravaria86. Ainda segundo Columela, embora seja um escravo, está acima

dos demais escravos uma vez que sua posição é de comando, seja na atribuição de tarefas87,

ou ao servir como exemplo de trabalhador:

Convém que o capataz cuide para que os escravos saiam logo ao raiar do dia não de uma forma vagarosa e preguiçosa, mas, como numa batalha, com vigor e disposição de ânimo, seguindo-o diligentemente como a um comandante, e ele deve exortá-los enquanto trabalham e, de quando em quando, para ajudar alguém extenuado, deve ele mesmo pegar o instrumento e realizar o serviço lembrando-lhe que deve ser feito do modo vigoroso como ele está realizando. (XI, 1, 17)

83 COLUMELA, Lucio J. Moderato. “Los doce libros de agricultura...”. p. 28. 84 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. p. 29. 85 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. p. 28. 86 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. p. 30. 87 COLUMELA, Lucio J. Moderato. Op. Cit. p. 116.

5 CONCLUSÃO

Através do De Re Rustica, Columela nos permite observar como a aristocracia

romana, ou parte dela, se posicionou ante as transformações que se iniciaram durante a

República, com a expansão e fortalecimento do poderio romano no Mediterrâneo, e se

consolidaram com o advento do Principado.

Podemos partir de tal pressuposto visto que, através da conquista de territórios,

grande quantidade de produtos de pilhagens e escravos afluíram a península Itálica,

principalmente a Roma, desencadeando o empobrecimento dos camponeses da península

Itálica através da expulsão de suas propriedades, de seu recrutamento para o exército ou sua

migração para Roma. Todo esse processo contribuiu para a eclosão das guerras civis que

marcaram o final da República. Quando da instauração do Principado por Augusto em 31

a.C., a deterioração do estado do campesinato italiano foi agravada ainda mais pela

concentração de terras e escravos pela aristocracia. Logo, através dessa situação a qual os

camponeses estavam submetidos, exauriu-se a própria cidadania, uma vez que esta se baseava

na figura do camponês-soldado.

Desde a fundação de Roma, a figura do agricultor foi representada como membro

imprescindível da comunidade política, simbolizando tanto a perpetuação de velhos ideais,

como a necessidade de mudanças, como exemplifica os projetos de luta pela reforma agrária

desencadeadas no período republicano. A partir do século I a.C., quando a estrutura dos

camponeses já estava em crise, a República passou a ser apresentada como um período em

que as virtudes cívicas e militares preponderaram, enfoque que foi intensificado durante o

Principado. A figura do cidadão-camponês, também soldado-proprietário, tornou-se marco

distintivo da República, sendo a ênfase em tal escolha o produto de uma tradição

moralizadora.

Tal vertente é evidenciada no prefácio do De Re Rustica, onde Columela, ao criticar

seus contemporâneos quanto a condução que dão aos trabalhos em suas propriedades rurais,

não o faz preocupando-se em demonstrar que a agricultura pode gerar mais lucros que outras

atividades, como a guerra ou o comércio, mas os critica por terem deixado o cultivo da terra

aos cuidados de escravos. Daí sua preocupação quanto a escolha da escravaria, e todas as

instruções para a escolha desta e em especial à figura do vilicus, uma vez que será este o

substituto do senhor na propriedade rural, diante da impossibilidade de que o próprio senhor

a conduza diretamente.

Diante dessa situação, Columela aponta como causa a decadência dos costumes

morais, uma vez que traça um paralelo onde conclui que quanto maior o status político, maior

o desprezo pelas atividades agrícolas e o conseqüente uso indiscriminado de escravos.

Contrapõe então uma idealização do passado republicano, segundo a qual nesse período os

homens públicos alternavam o exercício da guerra e da política com o cultivo de suas terras.

Outra crítica dirigida à aristocracia de sua época refere-se à dignidade propiciada pela

atividade agrícola, em oposição às redes de amizade e patronato desenvolvido com indivíduos

que concentram maiores poderes, objetivando conseguir vantagens, seja de ordem material ou

mesmo na aquisição de cargos. Segundo Columela, a agricultura possibilita não apenas uma

fonte de renda, mas uma vida digna, própria do homem livre, numa correlação com o conceito

estóico de liberdade, onde esta não é coagida pela constante busca de bens materiais.

Constitui um bom exemplo o fato de que durante o Principado tornou-se comum a prática de

recomendação de candidatos aos Comícios, fazendo com que ninguém se apresentasse ao

consulado se não fosse candidato do príncipe, o mesmo ocorrendo para a pretura, o edilato e

para a questura.

Dessa forma, Columela apresenta a agricultura como uma atividade libertadora, visto

que oferece a quem a ela se dedica a liberdade ante o poder coercivo exercido pelas redes de

poder no ciclo político da Roma imperial, onde a aristocracia, diferentemente do peso que seu

papel detinha na República, sofreu um deslocamento, perdendo grande parte de sua

importância política e econômica, ante o monopólio do poder do imperador.

Quanto à ênfase dada à figura do vilicus, assim como a do próprio senhor e à

importância que Columela imputa à hierarquização dentro da propriedade, podemos pressupor

que além de se justificar pelo fato do vilicus substituir a figura do senhor, como acima citado,

está correlacionada ao próprio deslocamento hierárquico desenvolvido durante o principado,

quando a aristocracia não apenas viu decaída sua posição político-social frente ao poder do

imperador, mas também devido à ascensão de uma nova aristocracia, composta pelos

eqüestres, bem como pelo fortalecimento da atuação de libertos. Dessa forma, Columela

estaria buscando através dessa exaltação do conhecimento e aplicação do cultivo da terra, ou

seja, das tradições republicanas e consequentemente do ideal de cidadania vinculado ao

cidadão-camponês, um diferencial ante esse novo grupo que passou a compor a aristocracia.

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