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Expediente

EdiçãoSérgio de Carvalho (Mtb. 23161/SP)

Assistência editorialLia Urbini

Projeto gráfico e diagramaçãoPedro Penafiel

ProduçãoJoão Pissarra

Foto da capaBrecht e sua mulher, Helene Weigel, em Santa Mônica,1945-6. Extraído de LYON, James K., Bertolt Brecht inAmerica, New Jersey, Princeton University Press, 1980

FotosAs imagens utilizadas para ilustrar esta Vintém foramextraídas de sites dos filmes citados e dos livros IHERING,Hebert, Bertolt Brecht und das Theater, Berlin,Rembrandt-Verlag, 1959; WILLETT, John, Brecht onTheatre, London, Shenval Press, 1964; LYON, James K.,Bertolt Brecht in America, New Jersey, PrincetonUniversity Press, 1980 e ROCHA, Glauber, O Século doCinema: Glauber Rocha, prefácio de Ismail Xavier, SãoPaulo, Cosac Naify, 2006.

Colaboraram nesta ediçãoCaetano Gotardo, Cláudia Mesquita, Diogo Noventa,Graciela Rodriguez, João Carlos Guedes da Fonseca,Márcio Marciano, Marco Dutra, Martin Eikmeier,Thiago Mori

ImpressãoProvo Gráfica

Tiragem1200

PatrocínioPrograma Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidadede São Paulo – Projeto Companhia do Latão 10 anos

Contatos da publicaçãoCompanhia do Latão(11) [email protected]@uol.com.brwww.companhiadolatao.com.br

EDITORIAL

Quase dois anos depois, a Vintém volta a ser

editada, como espaço fundamental de divulgação

dos estudos sobre teatro dialético que definem a

Companhia do Latão desde sua origem. Os

materiais aqui reunidos traduzem diversos aspectos

de uma prática artística que se alimenta da reflexão

sobre a história produzida dentro do Projeto

Companhia do Latão 10 anos e também de

outras frentes de trabalho: a pesquisa de formas

cinematográficas e videográficas de representação

épica, o intercâmbio com outros grupos interessados

na obra de Brecht como modelo crítico (o que

ocorreu na montagem de O Círculo de Giz

Caucasiano) e com intelectuais interessados no

marxismo como método de ação e pensamento.

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2 EDITORIAL

IMPULSOS CRÍTICOS DO CINEMA MODERNO

4 Entrevista com Ismail Xavier

FORMAS DA CRISE CAPITALISTA

16 Entrevista com Jorge Grespan

O TEATRO FORA DO CENTRO

24 Por Marília Carbonari

DOSSIÊ: BRECHT ENCENADOR

30 Particularidades do Berliner Ensemble, Bertolt Brecht

31 A atitude do diretor, Bertolt Brecht

33 A direção de Brecht, colaboradores do Berliner Ensemble

36 Notas de ensaio no Berliner Ensemble, Hans Bunge

37 Discussão com Brecht sobre O Círculo de Giz Caucasiano

41 O trabalho de Peter Palitzsch com a Companhia do Latão

COMPANHIA DO LATÃO

44 Visões Siamesas: uma dramaturgia do limite,por Márcio Marciano

47 Companhia do Latão ganha ao unir Machado e Brecht,por Mariângela Alves de Lima

50 O projeto Companhia do Latão 10 anos

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COMPANHIA DO LATÃOFiliada à Cooperativa Paulista de Teatro

DIREÇÃO: Sérgio de Carvalho • NÚCLEO DE ATUAÇÃO: Helena Albergaria e Ney Piacentini • NÚCLEO DE DRAMATURGIA:

Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano • NÚCLEO DE PESQUISA MUSICAL: Martin Eikmeier • NÚCLEO DE CINEMA: CaetanoGotardo, Diogo Noventa e Marco Dutra • NÚCLEO DE PESQUISA: Lia Urbini • NÚCLEO DE PRODUÇÃO: João Pissarra •CONTATOS: (11) 3814.1905, (11) 8516.4325, [email protected], [email protected], www.companhiadolatao.com.br.

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Impulsoscríticos do

cinemamoderno

ENTREVISTA COM ISMAIL XAVIER

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foi depois se desdobrando em diferentes países ecom diferentes leituras. A Nouvelle Vague france-sa, especialmente Godard, radicaliza a forma coma câmera na mão. Faz uso do improviso na buscade uma nova relação com a experiência socialcontemporânea. Isso trouxe uma espécie de are-jamento, seguindo o preceito de Jean Renoir, des-de os anos 30: “mesmo tendo de filmar em estú-dio, deixo a porta aberta para o ar entrar”.

VINTÉM – E como foi a entrada desse projetono Brasil?

ISMAIL – Deu-se num momento histórico emque havia uma espécie de ajuste entre a demandalocal e esse debate internacional. A idéia de queera preciso um outro critério de olhar, outro esti-lo de história, de filmagem, de luz e de atuação secombinou à necessidade de uma produção de bai-xo orçamento. Foi isso que viabilizou a recusa a um padrãoindustrial simbolizado pela Vera Cruz e a escolha de heróisque eram justamente os porta-vozes do Neo-Realismo noBrasil, não por acaso excluídos do projeto Vera Cruz: Nel-son Pereira dos Santos e Alex Viany. O ideário do CinemaNovo nasceu da convicção de que o melhor cinema dopaís seria de autor, com o controle da filmagem e da mon-tagem na mão dos diretores. Surge uma série de imperati-vos estéticos, como a busca por uma luz brasileira, a filma-gem na localidade, temas ligados à pobreza, à desigualda-de, a personagens que os cineastas considerassem tipica-mente representativos da inadequação das estruturas so-ciais do país à demanda da superação do subdesenvolvi-mento – tema fundamental da época.

VINTÉM – Esse projeto ligado à idéia de uma cultura na-cional-popular oscilou, no teatro, entre várias tendências: umasmais naturalistas e dramatizantes, de início, logo confrontadasa experiências épicas; e depois do golpe houve um retorno apadrões mais estabilizados nos extremos do naturalismo ou daalegoria. De um modo geral, no caso do teatro, a atitude foimais experimental no pré-64 e depois ela começa a ser um pou-co mais integradora, generalista, menos crítica em relação aosmateriais. Isso ocorreu no cinema?

cinem

aIsmail Xavier é ensaísta, crítico e professor no curso deCinema da USP. Graduado em Cinema, fez mestrado e dou-torado em Letras na USP, sendo orientado respectivamen-te por Paulo Emilio Salles Gomes e Antonio Candido. Seupós-doutorado realizou-se na New York University. É au-tor de Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome (Bra-siliense, 83), D. W. Griffith: o nascimento de um cinema. (Bra-siliense, 84), Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo,Tropicalismo, Cinema Marginal (Brasiliense, 93), O olhar ea cena: Hollywood, melodrama, cinema novo, Nelson Rodri-gues (Cosac & Naify, 2003) e O discurso cinematográfico: aopacidade e a transparência (Paz e Terra, 2005),

VINTÉM – Você já disse em outra ocasião que o projetomodernista do cinema se liga à “idéia da promoção de um cine-ma de autor pautado por uma postura de reflexão sobre a expe-riência, de crítica diante do presente, procura de formas gera-doras de uma desautomação da percepção”. Você parece conti-nuar a dialogar criticamente com essa tradição, mesmo verifi-cando seu esgotamento e dificuldade de reposição. O que maissignificou o projeto modernista do cinema, tanto em sua reto-mada da tradição literária de 1922 como na perspectiva de suainserção no movimento internacional de cinema autoral, tãoforte entre o fim da Guerra e os anos 70?

ISMAIL – Nos anos 50 houve um impacto do Neo-Realismo em que a tônica foi a busca de um cinema maisinvestigativo, de contato com o mundo, capaz de incorpo-rar em sua prática aquilo que não costumava ocorrer naficção, mas apenas no documentário. A base da antiga in-dústria cinematográfica de ficção era o controle técnicodo resultado: você filma em estúdio para não ter imprevis-tos de espaço e luz, você controla os atores e a câmera,com uma acentuada divisão do trabalho, tudo a partir deum roteiro prévio bem definido segundo um tipo modelarde dramaturgia. A alternativa existente era a do documen-tário: equipamento mais leve e uma postura de olhar parao mundo, de atenção a suas diferentes situações. O cine-asta Neo-Realista priorizaria o corpo a corpo com o mun-do, sem delimitações nítidas entre ficção e documentário,filmando, por exemplo, em locação real, com a incorpora-ção de pessoas – atores amadores – que pertenciam a de-terminado contexto social onde a história se passava. Isso

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ISMAIL – No cinema é diferente: a maioria dos cine-astas do primeiro momento do Cinema Novo, anteriorao golpe, tinha uma tendência a fazer documentários den-tro do padrão da época ou um cinema narrativo dramáti-co que pudesse dialogar com uma literatura realista (Gra-ciliano Ramos, José Lins do Rego), ou com autores comoo Nelson Rodrigues. Boca de Ouro, do Nelson Pereira dosSantos, é de 1962, e Leon Hirszman fez A Falecida em1964, ainda que tenha ficado pronto depois do golpe. Aquestão experimental no pré-64 se concentra em Glau-ber Rocha. O Pátio (1959) é um filme de 16 minutos,totalmente experimental, que dialoga com o neoconcre-tismo, com tradições da vanguarda européia, não temnada a ver com o cinema narrativo dramático. Quandoele migra para este terreno nos longas, ele o faz como umimperativo de caráter político social. Então faz Barraven-to e Deus e o Diabo. O próprio Glauber, quando fez essestrabalhos se conectou com o Euclides da Cunha, com oJosé Lins, com a produção sociológica em torno do can-gaço, do messianismo, com a tradição do romance de 30.

Mas seus resultados têm mais conexão com escritores maisexperimentais no uso da linguagem, como GuimarãesRosa, o que foi apontado na época. O projeto de outroscineastas do Cinema Novo também vai ficando estetica-mente mais ousado e inventivo depois do golpe de 64.Você tem o caso do Joaquim Pedro, que faz o Padre e aMoça, depois faz o Macunaíma e Os Inconfidentes, filmeem que usa algumas estratégias do Brecht, sem que sejauma obra propriamente brechtiana. Mas ali existem ce-nas bloqueadas, falas do ator ao público, um caráter épi-co que se espalha pela forma. O Leon Hirszman se inspi-ra nisso somente em 1972, quando faz São Bernardo.

VINTÉM – E o Sérgio Person, do São Paulo S.A.?ISMAIL – Está mais próximo de um realismo crítico

semelhante ao do cinema italiano.

VINTÉM – Mas São Paulo S.A. é um filme que assumeuma condução épica.

ISMAIL – A incorporação que ele faz do narrador oralme parece vir mais da tradição que inclui o filme noir nor-te-americano e certo cinema italiano do que diretamentede Brecht. Ela aparece num conjunto de filmes policiaisque tem o narrador em primeira pessoa. A fala da persona-gem de Walmor Chagas não chega a estabelecer um pro-cesso de descontinuidade, de bloqueio, esse jogo de con-trastes que distingue um trabalho épico.

VINTÉM – Tenho minhas dúvidas: ele é um narrador quese torna suspeito para o público na medida em que sofre umprocesso de aburguesamento análogo ao da cidade que se in-dustrializa com o capital estrangeiro. Seu comportamento éabsurdo, estranhável, um procedimento épico sofisticado...

ISMAIL – Talvez, mas a estrutura em flashback se dádentro da tradição realista e tem algo do drama de fa-mília; Carlos tem a feição do herói problemático queoscila entre dois pólos, dentro de uma concepção dogrande realismo que vem mais de Lukács do que Bre-cht. Não estou retirando o interesse formal do filme,que é enorme, mas não vejo a incorporação mais radicalda descontinuidade e do estranhamento, como em Glau-ber, por exemplo.Ladrões de Bicicleta, Vittorio De Sica, 1948

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VINTÉM – A atitude experimental do Glauber tambémnão é exatamente épica, ela parece estar mais próxima de umaexperimentação alegórica, em que a reflexão histórica aparecede modo abstrato.

ISMAIL – Quando o Glauber fez Deus e o Diabo em 64– o filme ficou pronto 20 dias antes do golpe – houve umarecepção muito positiva porque cada grupo conseguiu en-xergar ali a esperança de uma revolução que estava na or-dem do dia. Essa marca alegórica tinha relação com essavisão profética da histórica. Deus e o Diabo é um filme to-talmente bíblico. Sua estrutura temporal é baseada na idéiade esperança, de um mundo que vai se transformar dentrodo esquema figural cristão. Havia naquele momento, deum modo geral, o que eu chamaria hoje de uma ingenui-dade com relação ao processo histórico. Havia a idéia deque as transformações esperadas, desejadas, fossem algoque pudesse acontecer com certa velocidade. E havia umaprojeção muito rápida sobre o que tinha acontecido naArgélia, do que tinha acontecido em Cuba, para o mundointeiro. E particularmente para o Brasil, que é um país muitomais complexo do que a própria esquerda conseguia vernas suas várias e diversas tendências. A maioria dos espec-tadores de esquerda fez a hipótese de que se tratava de umfilme marxista de crítica da alienação religiosa, mas não é.Na minha leitura, existe, sim, o movimento de associar asexperiências rebeldes à religião, mas, ao mesmo tempo,

existe uma postura cristã da representação: elenão faz uma análise do presente para deduzir ahistoricidade do presente, que seria uma aborda-gem marxista. A posição política vem de um re-trospecto “etapista” da evolução histórica da hu-manidade. Glauber não está preocupado em mos-trar que dentro da estrutura social do presenteexiste uma historicidade que é interna a essa or-dem para daí trabalhar com a questão da histó-ria. Deus e o Diabo não tem presente: ele tem opassado e tem o futuro. O curioso é que essa afir-mação da esperança revolucionária feita assim seajustou a diferentes leituras, bem ao feitio do ca-ráter messiânico da esquerda brasileira de então.

VINTÉM – Você acha então que foi essa ambi-güidade, parte da qual revela um caráter ideologica-mente regressivo, que deu ao cinema do Glauber umagrande circulação?

ISMAIL – Eu não chamaria de regressivo. É um caráterque faz com que a pauta seja trabalhada no plano simbóli-co e não se traduza numa especificação analítica ou pro-positiva que torne o filme datado de maneira mais decisi-va. Por exemplo, se Deus e o Diabo tivesse uma terceiraparte – isso até chegou a fazer parte de uma das versões doargumento – poderia chegar às ligas camponesas, a algosituado historicamente. Qual era o risco que ele correria?Era de ter uma especificação muito particular que ganha-ria um aspecto de análise de conjuntura e dificultaria otipo de recepção que o filme teve na época e continua ten-do. Eu não vejo como regressão essa escolha formal.

VINTÉM – Você não acha que isso está na base do pro-cedimento alegórico: esse descolamento da história põe a for-ma numa zona de indefinição trans-histórica, que pode en-dossar uma imagem de imutabilidade das condições, gerarfatalismo melancólico?

ISMAIL – O que é importante no Glauber é a recusa apensar em termos naturalistas e psicológicos. Faz parte des-sa negação do que ele chama de teatro burguês a experi-mentação de caminhos que podem, inclusive, incorporar pa-drões míticos, pois para ele a revolução passa pela cultura (e

cinem

a“No Glauber a

resistência à ordemburguesa passa pelo

mito, não pelapedagogia

iluminista.”

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religião) popular, pois esta é uma resposta à opressão feitaem nome da razão e da ordem republicana. Nessa incorpo-ração do mito você cai num plano mais abstrato, mas eleconsegue inventar um estilo que confere uma dimensão deritual que é de estranhamento no contexto naturalista doespetáculo cinematográfico, e isso tem perspectiva críticaradical. O Glauber faz tudo aquilo que o cinema europeumodernista fez com câmera e montagem, só que ele filmaações que considera paradigmáticas no plano dos atores so-ciais, não cotidianas. A experiência messiânica e o Cangaçosão grandes rituais. O Othon Bastos está o tempo todo numregistro de fala e de gesto que é totalmente antinaturalista eé esta maneira de compor o ritual que lhe permite tornarcoerente – e concreta – a exposição de um modo de pensara revolta e oposição aos valores dominantes, não para en-dossá-la de todo, mas para entendê-la. Em Terra em Transe,por exemplo, ele discute o golpe de 64 dois anos depois deocorrido. Está falando, assim, de uma realidade muito pró-

xima, que leva os espectadores a ter muito presente qual é oconcreto a partir do qual aquilo se constitui. Glauber estáfazendo um filme de crítica ao populismo no mesmo mo-mento em que os sociólogos estão escrevendo sobre o popu-lismo na América latina. O que ocorre em Terra em Transetalvez se ajuste mais à teoria do drama barroco tal comofeita por Walter Benjamin: a redução da política ao esque-ma palaciano, a idéia do enredo como intriga e traição, aexpulsão do povo, que só entra no teatro da política quandoele é convocado pelos próprios líderes para executar um ro-teiro prévio. A teatralização da política no filme é pensadaem parâmetros barrocos, é uma critica ao caráter ilusóriodaquela maneira de inclusão. Assim, quando ele faz aquelafiguração do séc XVII projetada nos personagens, ele cotejaduas épocas históricas, a da formação do Brasil colônia e ada vitória conservadora que, no século XX, evidencia a fra-gilidade da esquerda. Vê o golpe recente como reposição daordem patriarcal excludente, daí a cena de Dias e Vieira

Vidas Secas,Nelson Pereira dos

Santos, 1963

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trazer o desfile de figuras grotescas que definem o teatro kitschda política que é repetição do ritual do poder na tradiçãoautoritária da elite brasileira. Não é a toa que, de 67 emdiante, o cinema brasileiro passou a trabalhar muito com oconceito de patriarcalismo, mesmo o cinema de esquerda, ocinema político. E que o Tropicalismo fez o inventário dokitsch patriarcal já com uma ironia distinta da exasperaçãosério-dramática de Glauber.

VINTÉM – Em Deus e o Diabo ele dialoga com a tradiçãomítica, mas o filme não extrai sua força de um realismo muitocandente?

ISMAIL – Existe uma consciência muito forte no Ci-nema Novo de que a representação de certos problemassociais já tratados pela literatura ganha um impacto dife-rente pelo próprio fato de surgir na imagem cinematográfi-ca. O cinema seria um fator diferencial no que se refere aosignificado político imediato, criando a possibilidade, ain-da que assumida então de forma ingênua, de atingir os es-pectadores a quem aquele debate dizia respeito. A convic-ção de que se conseguiria alguma coisa de efeitos políticosimediatos animou Deus e o Diabo. Já em Terra em Transe,Glauber não tem mais a mesma ilusão: é um filme feitopara um público específico do Cinema Novo, estudantesuniversitários, professores, público urbano, e aí ele prefereadensar a violência simbólica do filme dirigida a uma pla-téia de esquerda – um convite à autocrítica.

VINTÉM – O que você avalia como legado importantedessas diversas experiências formais?

ISMAIL – Isso varia conforme os estilos adotados. Umfilme como Vidas Secas, feito a partir do romance do Gracilia-no, tem, entre outras contribuições, a virtude de inauguraruma relação com o espaço sócio-geográfico do sertão que deixade ser puramente literária ou uma série de dados numéricos.Ele faz uma fenomenologia e produz uma compreensão novado sertão, a casa, a roça, a sucessão das gerações, os instru-mentos de trabalho. Num artigo do Roberto Schwarz sobreOs Fuzis um ponto central observado é a diferença de fisiono-mia entre os soldados que são urbanos e, portanto, como nós,e a fisionomia dos retirantes que permanece opaca, enigmáti-ca. Glauber pictorializa o sertão, transforma a relação com

aquelas fisionomias encontradas no local pela suainscrição numa iconografia relacionada aos temasbíblicos e barrocos. Para ele, o que vale é a formacapaz de expressar a vivência dessas populações, nãoapenas as suas condições materiais. O aspecto míti-co em todos os filmes do Glauber está calcado naidéia de que há nas vivências populares uma ener-gia e um impulso vital de renovação que é impor-tante. E não é simples alienação. É uma experiênciaque tem claros limites, mas é essencial. Até o fim,em Idade da Terra, você tem a idéia de que o artistatem que trabalhar com esse lastro, nunca recusá-lo.Daí porque sem o lado mítico você dissolve o proje-to. Porque ele não é um projeto de uma esquerdaque herda o iluminismo do século XVIII, como vocêtem na tradição marxista. Ele trabalha com a idéiada liderança, a idéia de uma salvação gerada porum projeto de organização política que passa pelocarisma. Isso está presente no Glauber o tempo todo: a idéiade que a resistência à ordem burguesa é lastreada por um im-pulso que passa pelo mito, não pela pedagogia iluminista.

VINTÉM – Não existe nessa escolha o risco de a formatambém se tornar carismática e incorporar alguns dos proble-mas do seu objeto? Seria possível dizer que a forma do cinemade Glauber também é algo populista e carismática na sua ten-tativa de lamber o coração do mito?

ISMAIL – O cinema moderno, não só o brasileiro, estápermeado de cineastas que, na sua oposição à mercadoria,na sua oposição ao cinema industrial clássico, incorpora-ram um estilo de trabalho e uma maneira de entender aimagem que é fundada na reflexão sobre o mito e a ima-gem. Bresson, Rosselini... O próprio Pasolini tem uma fra-se que eu cito no prefácio ao livro de Glauber: “Enquantomarxista, eu vejo o mundo de um ponto de vista sagrado”.É Glauber. Ambos têm como fundamental a crítica da cul-tura burguesa, a crítica do capitalismo mercantil, mas nãofeita a partir de pressupostos de uma superação dentro deuma cultura laica; se há luta de classes, esta se apóia tam-bém em parâmetros culturais em que tem toda a força noplano simbólico. É curiosíssimo isso: estão juntas a políticacomo um jogo de forças onde o carisma é fundamental e a

cinem

a

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política como expressão da luta de classes. Dos modernos,os mais laicos, de um marxismo sistemático, é a duplaStraub-Huillet, e também o Godard de 1967 a 1970, poismais tarde o próprio se voltou para uma reflexão sobre arelação entre cinema e o mito, em sua encarnação femini-na: Je vous salue Marie, Passion, sem abandonar sua críticairônica ao mundo da fábrica e da exploração do trabalho

VINTÉM – A questão do mito é forte no Terra em Transe...ISMAIL – Está na metáfora do transe. O golpe é o transe,

é o carisma, o transe de todas as forças, da esquerda e dadireita. É o momento mítico da ruptura. E no transe, Diasainda é a força maior. A batalha final é de transes, não é umabatalha militar, é o confronto dos dois discursos. O Dias cadavez mais vital, poderoso, eloqüente, subindo sozinho, e o po-pulismo se enfraquecendo, até o Vieira acabar – na sua impo-tência – falando no povo. Para o Glauber o problema é que anação não existe. É um projeto que, para se constituir, precisapassar por uma grande crise. Daí porque a luta armada é umgrande tema para ele. Mas a luta armada vem como momen-to simbólico de expressão de uma crise em que há a possibili-dade de você dar o grande salto. E este salto será a constitui-ção da nação. É o contrario da lógica do western americano.No western você tem uma nação pronta, que celebra a suaformação através de seus heróis civilizatórios. O Glauber, noDeus e o Diabo, tem muita coisa a ver com o western, mas,para ele a ordem vigente no mundo não é civilização, e oBrasil está num momento de formação sempre adiado. Daí aexasperação em relação ao movimento da história em seusanos de vida, que vê confinando suas esperanças: na pequenacidade do sertão, Jardim das Piranhas, no filme Dragão da

Maldade (1969), tudo o que lá acontece é uma espécie desobrevivência de uma tradição heróica já sem a potência an-terior; é lá que se busca a reserva moral do impulso para arevolução, mas a temporalidade da tecnologia e do capitalis-mo já corroeu tudo. O filme é o reconhecimento dessa corro-são trazida pelos traços de modernidade. A reação de Glau-ber é diferente da que ocorre hoje, com o sertão dos filmespernambucanos. Em O Baile Perfumado ou Árido Movie existeum diálogo com o Glauber, mas eles têm uma postura de pa-ródia, constroem um sertão pop, estão num momento em queo passado é um grande repertório de imagens, sem conflitostão definidos, um prolongamento da cidade. O Lampião, noBaile Perfumado, é um ícone pop, uma capa de long-play... Elesestão refazendo a imagem daquele universo mítico e retiran-do dele a sua condição de cosmo coerente capaz de servir delastro para uma alegoria nacional, de uma ordem coesa e to-talizante capaz de representar o Brasil.

VINTÉM – Você está dizendo que o cinema nacional dehoje tem um espírito mais integrador em relação ao mundo dacultura industrial?

ISMAIL – Não é uma euforia em relação a esse mundo,não é uma adesão simples, mas parte do cinema brasileirocontemporâneo se sente à vontade com a construção irô-nica, na chave pop. É uma coisa que apareceu na época daTropicália e vem sendo retomada: um diálogo com essesinfluxos todos da contemporaneidade que vêm através domercado e da relação com o cinema mundial.

VINTÉM – Um diálogo que, radicalizado, se converte naadesão plena à forma-mercadoria.

ISMAIL – Quando há um imperativo de estabilizaçãode uma cinematografia, este tem sido o caminho, que re-conheço problemático; mesmo assim, no cinema brasileiroé excepcional acontecer um filme em total conjunção como grande público de mercado. Na quase totalidade do tem-po, o cineasta se vê como um sujeito que está fora da festada integração do imaginário nacional via mercado, que sóocorreu, de fato, na televisão. São os deslocados da festa,os que ficam na antecâmara do grande jogo, tal como me-taforizou Ugo Georgetti em Festa. A produção militantede esquerda dos anos 60 e 70 estava também do lado de

“Cidade de Deuscorresponde àideologia das ONGs:ou Arte ou Barbárie.”

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fora. Entretanto, ela se considerava portadora de uma le-gitimidade que a autorizava a falar em nome da nação aconstruir. Hoje ninguém se considera mais porta-voz denada e a idéia de nação está em crise.

VINTÉM – Não é por que a maioria pouco se esforça paracompreender as novas forças populares em movimento?

ISMAIL – É que o sentimento de um mandato popularconferido ao artista desapareceu. A postura mais críticahoje é de negação do mercado; assumir o pequeno públi-co, o confinamento. Em Júlio Bressane e em outros experi-mentalistas, a questão é assumir a subjetividade, explorarseus caminhos, sem calcar o projeto em nenhuma idéia devínculo com forças sociais. Ou, por outro lado, existe umatendência a dialogar com aquela constelação modernistado Cinema Novo, só que numa versão mais ajustada aomercado em sua dramaturgia, como no caso do WalterSalles. E uma terceira postura é a dos irreverentes céticos,

semelhantes a uma certa iconoclastia corrosivados anos 70. Eles consideram que o mais legítimona atual conjuntura é fazer o inventário das ini-qüidades. Um exemplo é Cronicamente Inviável,do Sérgio Bianchi. A grande maioria dos cineas-tas, porém, se insere no imperativo do entreteni-mento e da conquista de uma fatia maior do mer-cado, em parte como resposta à situação margi-nal do filme brasileiro na percepção do público.

VINTÉM – Mesmo que a crença no “mandatopopular” possa ter algo de falso, essa ideologia pareceter gerado no passado uma arte cinematográfica me-lhor do que a atual. Você concorda?

ISMAIL – Concordo e isso se deve a uma per-cepção aguda do momento histórico. Já tive discus-sões com pessoas que trabalham com a idéia de quetudo aquilo foi um grande fracasso. Para quem diz

que “o Cinema Novo fracassou” eu res-ponderia: produziu uma cinematografiade grande densidade, de grande interes-se, e vai continuar sendo motivo de aten-ção, debate, como a maior referência paraquem quer fazer filmes hoje no país. Sepoliticamente aqueles filmes não tinhamum grande público, tinham uma lingua-gem muito complexa decorrente de duasdemandas nem sempre fáceis de compa-tibilizar: a demanda da militância imedi-ata e a da inserção na tradição culturaldo modernismo. Essas demandas estabe-lecem uma tensão interna extraordiná-ria nos projetos, tensão responsável pelagrande qualidade do que de melhor sefez. Os valores e conceitos utilizados na-quele momento correspondiam a uma

cinem

a

São Paulo S/A, Luis Sergio Person,1965

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movimentação histórica e houve a percepção de que se vivianuma encruzilhada de mundos.

VINTÉM – Sem essa dimensão histórica, as forças em tensãose tornaram cascas sem conteúdo, esvaziadas até como modelos...

ISMAIL – É curioso que a idéia do nacional-populartenha sido incorporada pela televisão. Dias Gomes, LauroCésar, Ferreira Gullar contribuíram para isso. Isso chegaaos mais novos, como Guel Arraes, que dá continuidadeao projeto através do diálogo com a obra do Suassuna, agoraem uma virada francamente mercadológica.

VINTÉM – Não é a versão cordial do projeto nacional-popular... que já devia ter algo disso na origem?

ISMAIL – É a versão pragmática do projeto, voltada paraum cinema de resultados. A cultura popular passa a ser umreferente para um cineasta que assume o gosto médio e acre-dita que dentro do gosto médio ele pode trabalhar numa cha-ve de qualidade pelo conteúdo que dramatiza. Ele estrutura aobra como um melodrama e ao mesmo tempo tem a convic-ção de que está dando continuidade à defesa de um Brasilpossível, como no caso dos filmes do Walter Salles que reto-ma o princípio da esperança em termos de um senso comuni-tário cristão e constrói parábolas bíblicas, como a historia doJosué que volta para a família fugido do inferno da cidade, olugar da violência, da exploração, da tristeza, da alienação. Avolta ao sertão aqui tem também uma dimensão pop, pelolado clean quase hiperrealista nas cores, mas numa acepçãodistinta da que vemos nos pernambucanos

VINTÉM – Você não acha que muito disso se deve a umaincompreensão dramatúrgica elementar: eles insistem em mos-trar a dimensão histórica como secundária em relação aos dra-mas subjetivos, como pano de fundo dos conflitos individuais?Um entendimento dualístico das relações entre indivíduo e his-tória, sem relação dialética? Diante disso, a postura mais radi-cal não seria a do Bianchi, cujo negativismo demonstra, pelomenos, apesar do equívoco de achar que destruição é revolu-ção, a vontade de incorporar a história na forma?

ISMAIL – Sem dúvida. Por isso é que o CronicamenteInviável teve impacto singular, pela diferença. E os cineas-tas que estão conseguindo ser mais inventivos na forma

são aqueles que tentam novas recusas do padrão hegemô-nico de dramaturgia, procurando vincular forma e situa-ção histórica, como o faz Andrea Tonacci em Serras da de-sordem, extraordinário exemplo de interação entre os esti-los, ficção e documentário, que trabalha a tragédia do ex-termínio da população indígena a partir de um caso singu-lar, mas faz o percurso do índio protagonista adquirir umadimensão alegórica pelo modo como o filme dá forma àinvasão da técnica e da potência armada dos brancos, in-cluído aí o cinema como instrumento de inscrição do Ou-tro em minha perspectiva. O regime alegórico de reflexãopermanece e tem exemplos variados, alguns em diálogocom Glauber e o Cinema Novo, mas que pensa hoje o so-cial numa chave tendencialmente ética – é o caso do Cláu-dio Torres no Redentor que traz as indagações religiosas apartir do drama de família que mistura Oduvaldo VianaFilho (a força corrosiva do dinheiro no drama) e NelsonRodrigues (o ressentimento e o fracasso da figura do pai).

VINTÉM – Uma abordagem destoricizada, privatista?ISMAIL – Ou historicizada pela via do que hoje é o

senso comum, ao fazer da corrupção o grande problema.Neste filme, volta de forma indireta a questão do popu-lismo e da religião, esta degradada como item de um su-permercado teológico que se configura também como umteatro populista, nisto lembrando a reflexão de Glaubersobre a continuidade do populismo, tema que a situaçãopolítica atual mostra ser de fato importante. Na política

“O cinema ‘deresultado’ imediato écontemporâneo, noespírito, aopragmatismo doLula.”

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brasileira de hoje, o Socialismo é pura retórica, está forada vista. Os nomes não correspondem mais às coisas. E aforça determinante se mostra na vitória de um economi-cismo tecnocrático que descarta a política, que se reves-te da máscara populista. É importante discutir o motivode essa postura pragmática estar tendo êxito. O que sus-tenta Lula é o seu pragmatismo.

VINTÉM – É possível relacionar esse estilo pragmáticodo PT do Lula a uma certa produção de filmes?

ISMAIL – Se existe uma ala do cinema brasileiro que temuma postura identificada com o PT é a do Rio Grande do Sul:Jorge Furtado, Giba Assis Brasil, Gerbase, Ana Azevedo. Aaposta deste grupo é a fatura de um cinema político de resul-tados, dentro de um diálogo com a televisão, em particularcom a Rede Globo. O Homem que Copiava do Jorge Furtado éa expressão desse pragmatismo, misto de entretenimento econvite à reflexão pelo que diz a voz over. As personagens sãopragmáticas, trazem a lei da vantagem para o terreno do po-bre, e o filme faz a ironia do gênero popular que garante a suainserção no espectro visível. A primazia do resultado imedia-to é contemporânea, no espírito, ao pragmatismo do Lula.Não tem nada de romantismo nesse projeto, e não há aí apresença da tradição do Cinema Novo. Se existe um lugar

aonde o Glauber não chega é no Rio Grande do Sul. O JorgeFurtado disse uma vez: o melhor filme brasileiro dos anos 60 éTodas as Mulheres do Mundo, do Domingos de Oliveira. OHomem que Copiava se vincula a um desejo de juntar a comé-dia romântica comme il faut a aulas sobre o dinheiro, sobre amercadoria, sobre o capitalismo.

VINTÉM – Aulas da boca para fora porque tudo se resol-ve com um bilhete premiado.

ISMAIL – Mas ironicamente...

VINTÉM – A ironia como último véu do vale tudo.ISMAIL – Claro. Os cineastas estão nos dizendo isso:

vivemos entre o pragmatismo do pobre e o ressentimentoda classe média. Esses filmes em que aparecem pobresmostrados como pragmáticos bem sucedidos nos confron-tam com a ambigüidade, e não se trata de esperar umacrítica mais funda. Em Cidade de Deus: Buscapé se salvaporque é pragmático. Não tem nada que o Buscapé digaque represente algum valor que se oponha aos valores da-quele inferno no qual ele vive. Vale o filme-de-ação.

VINTÉM – Por que Cidade de Deus foi um filme tão cele-brado no nosso meio intelectual de esquerda se é um filme com

Cidade de Deus, Fernando Meirelles, 2002

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tantos elementos conservadores na forma e tão equivocado naavaliação das causas sociais da miséria?

ISMAIL – Bem...para mim esse filme é a máxima ex-pressão do cinema brasileiro de resultados. Tem o pragma-tismo dos cineastas da nova geração. Toma uma questãosocial contundente e trabalha para criar, no plano formal,uma representação enxuta da guerra. O fato de ter traba-lhado com o grupo de teatro Nós do Morro gerou um cur-to-circuito interessante (o corpo e a fala dos meninos),mas a carpintaria dramática do Bráulio Mantovani é maisclássica e ajusta o livro do Paulo Lins à receita: protagonis-ta, antagonista, ressentimento, a cadeia da vingança. Bus-capé não entra na cadeia da vingança porque ele tem medo,tem um recuo que o faz encontrar a saída da fotografia – oque corresponde à ideologia das ONGs, ou Arte ou Barbá-rie. Agora, o impacto do filme se liga a sua capacidade degerar um sentimento de verossimilhança junto a um gran-de público, por trazer ao primeiro plano esses meninos dacomunidade. E é um gesto, curiosamente, afinado ao Neo-Realismo. Olha o paradoxo de um filme que não faz a re-cusa da violência sair de uma opção ética, mas que conec-ta essa recusa a uma auto-afirmação do talento, no melhorespírito ONG.

VINTÉM – E por que predomina essa tendência a domes-ticar a imagem – mesmo no caso de um material rico como olivro de Paulo Lins?

ISMAIL – Há uma dificuldade cada vez maior de viveraquelas tensões que produziram o grande cinema moder-no, agora resolvidas em favor da busca da comunicaçãoque acaba por gerar uma rendição aos padrões estéticosdominantes.

VINTÉM – Você é um crítico muito cuidadoso na análiseformal do objeto e, ao mesmo tempo, procura dialogar com osgêneros tradicionais. Em que medida uma análise pautada porgêneros não acaba por endossar uma certa tolerância com umpadrão formal surgido num contexto histórico específico? Sen-do mais direto, a análise de um filme à luz do conceito de melo-drama não pode, às vezes, endossar a prática melodramáticaem geral, que sabemos ser um dos pilares da representação naindústria cultural?

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ISMAIL – Em primeiro lugar, eu diria que algumascategorias não me parecem ser problemáticas per se. Nãotenho, por exemplo, problema com o conceito de alego-ria, nem quero julgar o melodrama em abstrato. Nãoaceito a dicotomia realismo versus alegoria. A coisa émais complicada, como evidenciou Walter Benjamin. Aalegoria é uma forma, um trabalho de figuração que per-mite fazer correlações com a conjuntura histórica, in-clusive a atual. Quanto ao melodrama, o gênero apare-ce nas minhas análises sem nenhuma positivação. Quan-do eu falo da tradição hollywoodiana, sempre essa ques-tão do melodrama está presente como um problema. Eexistem muitos casos nos quais reconhecer a potênciado gênero é fundamental, mesmo num processo de re-cusa. Não dá pra analisar o Visconti sem pensar que eleé alguém que está o tempo todo na fronteira, incorpo-rando a ópera, seja no Rocco ou no Leopardo. A verdadeatual, porém, é que são poucos os casos em que um ci-neasta vai contra a tendência melodramática, procuran-do uma inserção histórica diferente. Na situação brasi-leira de hoje, a pesquisa crítica de alternativas ocorremais no documentário que na ficção.

VINTÉM – É por que a tradição do documentário foi me-nos interrompida pela ditadura?

ISMAIL – Com uma diferença importante: quando umdocumentarista dos anos 60 fazia seu filme, ele considera-va as pessoas com quem conversava nos filmes como re-presentantes de alguma força social, de alguma classe oude algum grupo. Hoje em dia, ninguém toma ninguém comorepresentante de nada. Predomina a singularidade do in-divíduo. O próprio Coutinho assume isso. Naquela cons-telação de pessoas que prestam depoimento, o que inte-ressa a ele é o que elas têm de singular, não o que elas têmde representativo. Ele busca o sujeito. E o documentárioestá vivo porque oferece ao espectador, pelo menos, umsujeito que surpreende. É por isso que Coutinho evita onarrativo. Ele evita ao máximo qualquer coisa que a pes-soa diga que a insira num clichê ao qual ela está habitua-da. Então, com isso, joga esse sujeito fora do espaço reifi-cado. Mas numa situação ficcional, na qual você tem deconstruir a personagem, como fazer? Veja... é preciso ex-

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plicar o funcionamento dessas obras, eeu não queria que isso desse a sensaçãode uma conciliação com esses objetos.

VINTÉM – Você é, hoje, o nossogrande crítico de cinema. E, talvez porisso, por ter uma capacidade rara de pen-sar a forma artística e suas implicaçõeshistóricas, o leitor de esquerda deseja quevocê influencie ainda mais o debate. Vocêacha que isso é possível na situação atualdo cinema brasileiro?

ISMAIL – É o que eu tenho tenta-do. E se às vezes não aparece uma con-tundência que seria esperada em re-lação a determinados filmes é tambémporque só agora estou em condiçõesde armar um quadro teórico compa-rativo entre aquele momento dos anos60 e 70 e o atual. Por outro lado euevito repetir o mote de que o cinemado passado é melhor do que o de hoje.Isso só vai entrar no meu discurso nomomento em que eu sentir que essaquestão pode ser produtiva. É por issoque até aqui preferi ser descritivo, em-bora tenha me posicionado com mui-ta clareza com relação ao que eu gos-to e o que eu não gosto. Mas vocêsacham que o que eu observo vai teralguma incidência no que o Meirelles pensa ou vai fazerda vida?

VINTÉM – Acho que vai.ISMAIL – Você está preocupado com o problema de

posicionamento, não é?

VINTÉM – Num caso como o teu, de um crítico fora docomum.

ISMAIL – A tradição dentro da qual estou inserido,que é a tradição da Cinemateca, que vem do Paulo Emíliotalvez crie uma dificuldade. Ela lida com um paradoxo que

atormentou até um cineasta como o Glauber: não se podeignorar que a viabilização de tudo aquilo que você valori-za, em grande parte, depende da existência desta versãolocal daquilo que você desvaloriza, que é a indústria decinema. Mas é preciso repensar essas questões. É bom teruma conversa como essa fora do ambiente do cinema. Apolítica, no teatro, está sendo pensada de forma mais inci-siva; esta inquietação nos desafia. ■

Entrevista realizada por Sérgio de Carvalho, João CarlosGuedes da Fonseca, Cláudia Mesquita, Lia Urbini, Martin

Eikmeier, Marco Dutra, Caetano Gotardo

Jean Renoir e Glauber Rocha

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ENTREVISTA DE JORGE GRESPAN

Jorge Grespan é professor no Departamento de Histó-ria da USP. É graduado em História e Economia pelaUSP, doutor em Filosofia pela Unicamp, pós-doutoradoem Filosofia na Freie Universitat de Berlim. É autor deO Negativo do Capital (Hucitec, 1998) e Revolução Fran-cesa e Iluminismo (Contexto, 2003).

VINTÉM – No seu livro O Negativo do Capital vocêrelativiza – a partir de um estudo da obra de Marx – a idéiade que o capitalismo está num processo de autonegação rumoa um colapso. Para isso você reconceitua termos como “cri-se” e “necessidade”. Diante disso, ainda é possível dizer queo modo de produção capitalista cava sua própria cova, ou,ao contrário, o sistema tem se mostrado renovador no quese refere a sua capacidade de manter a expansão da riquezae de converter suas crises num modo de permanência?

GRESPAN – A esquerda tem um fascínio pela idéiade que o capitalismo vai acabar. Ainda nos anos 90,quando Robert Kurz renova uma certa leitura marxistado capitalismo atual, ele usa o conceito de colapso. Esua teoria, no fundo, é a mesma de Rosa Luxemburgo.Sem dúvida, uma das coisas importantes demonstradaspor Marx é que todos os sistemas sociais são historica-mente finitos. Nunca houve uma organização social eter-na, bem como não costumam acabar de uma maneirabrutal, e sim a partir de sucessivas crises e modificaçõesdas condições sociais e econômicas. O capitalismo atu-al não é o mesmo do tempo de Marx. Ele, em sua época,já sabia que, em suas regenerações, o capitalismo semodifica, e é se modificando que consegue se conservar.E nessas mudanças aponta para a sua própria superaçãohistórica, acaba criando forças sociais que são contradi-tórias com a própria base das relações sociais. Quer di-zer, as forças de acumulação e expansão arrebentam abase estreita da propriedade privada em cima da qual o

capitalismo se arma. Entretanto, ao fazer isso,o capitalismo vem encontrando, o tempo intei-ro, possíveis soluções, que passam inclusive pornegar a si mesmo. Por isso, Marx diz uma coisainteressante: o capitalismo não encontra limi-tes fora dele, os limites que ele encontra sãosempre dentro de si. Ele é quem põe e repõeconstantemente seus limites. E é tamanho opoder de destruição e corrupção dessa forçaexpansiva – que invade todas as formas sociaisde existência – que ele não consegue resolveros problemas criados. Por outro lado, é um erroachar que essa crise vai ter a forma de um co-lapso inevitável, como num juízo final.

VINTÉM – A explicação técnica da crise capitalista se ligaà impossibilidade de se manter a expansão da taxa de lucro, àtendência geral de que o capital, ao poupar trabalho, diminuaa capacidade de gerar riqueza?

GRESPAN – O ponto é esse: Marx foi quem previu,no final das contas, que a sociedade do capital é cadavez mais uma sociedade que dispensa o trabalho e queassim comprime sua taxa de lucro. Houve épocas degrande mudança tecnológica em que muitos trabalha-dores demitidos foram reempregados em outros setores.Surgiram novos setores de serviços. Mas a questão hojeem dia é: será que isso vai acontecer de novo? As gran-des demissões que ocorreram entre os anos de 80 e 90vão ser compensadas ou o processo é irreversível? Ocapital tenta resolver isso de várias maneiras: uma de-las, durante os anos 90, foram as privatizações, o avan-ço sobre a propriedade estatal e a incorporação de umaprodução muito maior, o que permitiu, em parte, recom-por a taxa de lucro. É uma das estratégias. Mas a estra-tégia principal é o capital financeiro. Se a produção nãoestá dando muito dinheiro, seu lucro é desviado para osbancos e grandes instituições financeiras, fundos de pen-

histó

riaFormas da crise capitalista

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são etc. Mas o ponto é que esse dinheiro agora gira emfalso, é uma riqueza fictícia criada em cima de uma ri-queza que cresce relativamente pouco, em termos reais.

VINTÉM – Nas famosas crises das bolsas do século 20como se deu o processo de regeneração capitalista?

GRESPAN – Por destruição. Como o capitalismo éum sistema fragmentado, ele opera na fragmentação. Par-te dos capitais individuais teve que ser destruída paraque os sobreviventes conseguissem recompor a taxa delucro e fazer com que o sistema mudasse de patamar. Oque aconteceu em 29 e nos anos 80 foi isso. Há pouco,no ano 2000, antes do ataque às torres gêmeas, houveuma violenta queda da bolsa eletrônica dos Estados

Unidos, a Nasdaq. Nessa queda foi queimado algo emtorno de 10 trilhões de dólares no mundo. Era um di-nheiro contábil, uma medida de valor sem realidade, masgrande parte do suposto dinheiro estava nas mãos dospequenos investidores, dos velhinhos com as poupanci-nhas deles nos Estados Unidos. Foi esse pessoal que que-brou porque as grandes empresas já estavam perceben-do o estouro e passaram o mico para frente. Claro quealgumas não conseguiram e caíram também. Nos mo-mentos de quebra, o mercado é obrigado a cair na real,literalmente: a comparar o valor fictício com o real. E aíé preciso uma reestruturação, algum novo patamar tec-nológico, alguma nova forma de organização do traba-lho ou do comércio. Em 30 houve o Welfare State, o es-

Ilustraçãoda Bolsade Valoresde NovaYork,publicadano jornalHarper´sWeekly em1864

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tado de bem estar social, e do outro lado uma generali-zação do fordismo, inovações que sustentaram o capita-lismo até os anos 70. Já na crise de 80 o fôlego não foitão grande. Teve gente que acreditou, nos anos 90, queos computadores, a robótica e os novos padrões de pro-dução, como o toyotismo, iam dar uma nova base técni-ca e organizacional para um novo surto de crescimentode longo prazo. Só que com a queda no ano 2000, sefrustrou. E agora o capitalismo mundial está patinando.Só não está no buraco completo porque a China seguraos mercados mundiais. Ela que não é um país estrita-mente capitalista está comprando tudo, vendendo tudo,a ponto de as taxas de crescimento nos Estados Unidosdependerem da China. Enquanto isso, a maioria vai pa-decendo. E o ponto engraçado é que justamente no mo-mento em que se podia estar buscando alternativas, é omomento em que aparece esse pessimismo, esse confor-mismo: “Ah, as utopias acabaram, não acredito mais emnada, não existe verdade, tudo é igual a tudo”.

VINTÉM – Por que você acha que acontece isso?GRESPAN – São mecanismos de defesa que o capi-

talismo tem para impedir que haja revoluções e um mo-vimento efetivo de superação.

VINTÉM – Mas pela análise clássica, a tendência é queo capital engendre o seu contrário. Num momento de capi-talismo avançado como o nosso surgiriam os contrários docapital. O que o capitalismo pode estar engendrando noavesso? Ou a paralisia é o avesso?

GRESPAN – Não, a paralisia tem a ver com a inte-gração dos trabalhadores. Eles foram integrados no sis-tema, estão dentro e fora ao mesmo tempo. O capitalis-mo integrou o trabalho, através de um mundo do traba-lho integrado em que os sindicatos tendem a fazer umdiscurso pró-capital...

VINTÉM – Essa integração se deu pela precarizaçãodas relações de emprego, pelo fato de mudarem as relaçõespatronais clássicas?

GRESPAN – Começou com a Social-Democracia,quando os trabalhadores começaram a ganhar uma fa-

tia razoavelmente boa do bolo. Claro que issofoi mais a realidade da Europa e depois daAmérica do Norte, do que a nossa. Mas mesmoaqui teve um pouco disso no crédito facilitadopela ditadura militar que facilitou a aposta nodesenvolvimento capitalista e a crença de quesó resta o capital, e que ele será capaz de in-cluir setores amplos da população etc. Nesseprocesso, o principal avesso, o outro que talvezesteja sendo produzido é o excluído, o desem-pregado, o sujeito “inimpregável”, como disseuma vez o cínico do Fernando Henrique. É umagrande maioria que não percebe (porque é le-vada a não perceber) que ela não tem lugardentro do sistema.

VINTÉM – Brecht dizia que tão notável quantoa capacidade do capitalismo em evitar as suas crises,em se reorganizar, é a capacidade dele em desorganizar a con-testação. Mas isso passa, principalmente, pelas relações de tra-balho, não é? As pessoas internalizam a demanda capitalistaporque precisam sobreviver como agentes individuais...

GRESPAN – A fronteira entre o capital e o trabalhonão está tão nitidamente estabelecida na sociedade. Daío crescimento desse discurso do trabalhador como umamicroempresa. Eles tentam ensinar que “se você perdeuo seu emprego, não se preocupe, compre uma carroci-nha de cachorro-quente e saia pela Vila Madalena nasexta-feira à noite”. Só que o ponto todo é o seguinte: ofato de o mesmo cidadão ser numa hora assalariado ena outra um pequeno empresário não faz com que a di-ferença entre capital e trabalho tenha desaparecido. Ofato de eu ter mudado só comprova que os dois ladoscontinuam existindo. Mas na cabeça das pessoas, a pos-sibilidade remota de virar um capitalista faz com que afronteira pareça tênue. Na consciência, a diferença seapaga. Outro fenômeno mais moderno é o seguinte: éque a forma social muitas vezes se torna independentedo conteúdo das relações sociais. O grande caso é o daforma-mercadoria. É uma forma que escapa, que se au-tonomiza em relação ao conteúdo do trabalho em si, masadquire a mesma forma que tem o trabalho de qualquer

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outro trabalhador. Então todos os trabalhos do mundocapitalista adquirem sua forma. Assim, a forma “salá-rio” – que a remuneração do trabalho adquire – apaga adiferença entre os vários tipos de trabalho, e nesse apa-gamento de fronteiras as pessoas se sentem todas passí-veis de serem incluídas num grande sistema onde nãoexiste de um lado capital e de um outro trabalho, ondenão existem capitalistas de um lado e trabalhadores deoutro. Um pouco antes de Marx morrer, ele já estavavendo o surgimento das empresas de sociedade anôni-ma, em que o trabalhador pode comprar ações da em-presa e virar um capitalista também. Com isso deixamde existir os malvados capitalistas e as vítimas trabalha-doras. Mas capital e trabalho seguem como formas soci-ais, sem que essas formas sociais estejam aderidas demodo nítido a agentes sociais específicos.

VINTÉM – Mas a quebra de fronteira é simbólica. Oagente individual que tem duas ações da empresa é bem di-ferente do que tem um milhão de ações.

GRESPAN – Claro, mas parece que é só uma dife-rença de grau, quantitativa. E se as qualidades são iguais,somos todos iguais. Só que uns têm mais dinheiro e ou-tros têm menos, mas todos nós somos iguais.

VINTÉM – Esquecem que quantidade é qualidade numcerto nível.

GRESPAN – A nossa sociedade é um mundo onde,de alguma forma, todos somos assalariados. Mesmo osriquíssimos podem ser assalariados e os muito pobres po-dem ser proprietários.

VINTÉM – Na época do jovem Marx, quando se falavado processo de totalização do capital, o debate sobre a ex-ploração se conjugava ao debate sobre a alienação. Porqueessa categoria parece estar em desuso?

GRESPAN – É que Marx, na obra mais madura dele,desenvolveu o tema da alienação através da categoria dofetichismo. E o fetichismo é o fetichismo da mercadoria.Se o jovem Marx falava muito da alienação do trabalha-dor, já o conceito de fetichismo descreve uma alienaçãogeral da sociedade. É claro que alguns são alienados e

mantêm um padrão de vida altíssimo e outros são aliena-dos e miseráveis, mas de modo geral todo mundo é alie-nado quando é obrigado a cumprir as leis do mercado. Eisso é um processo real, não é um processo imaginário:todos são escravos do mercado, também eles.

VINTÉM – A ênfase no tema do fetichismo, tal comofeita por parte da escola de Frankfurt, quando diz que so-mos todos funcionários do capital e que “o sujeito está es-magado” não pode levar, no limite, a uma neonaturalizaçãodo capital, àquela perspectiva fatalista de que nada se podefazer em relação aos processos capitalistas?

GRESPAN – Concordo, o risco é grande. Se de umlado existe a tendência que o capital tem de se expandiraparentemente sem limites e “colonizar o mundo da vida”(idéia da fenomenologia que os frankfurtianos incorpo-raram), o capital também tem limites, que ele mesmo põepara si. Nos momentos de crise ele tenta desesperada-mente apagar as contradições, mas elas emergem. Depoisda queda do muro, muita gente saiu por aí falando “nãoexiste mais luta de classes e talvez nunca tenha existido”.É claro que existe luta de classes, lutas políticas pela re-distribuição dos recursos e da propriedade. O ponto a sepensar é que a luta de classes não está apontando maisuma solução. Ela não se traduz agora, como ocorreu nopassado, em uma força transformadora da sociedade. Elatem conseguido, parece, desgastar o capital, mas não cri-ar mecanismos sociais diferentes. O que não dá para sa-ber é se, desse movimento, não pode surgir uma capaci-dade propositiva por parte dos excluídos em geral, advin-da da crítica deles ao capital.

“Todo mundo éalienado quando éobrigado a cumpriras leis do mercado.”

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VINTÉM – São poucos os teóricos que pensam paravaler no papel contemporâneo da luta de classes.

GRESPAN – A luta de classes está sendo feita tododia, só que a burguesia vem ganhando. Existe uma perso-nagem de um filme italiano, um jornalista consciente desua posição burguesa que diz: “A luta de classes fazemosnós também”. Perfeito. E ganham, geralmente ganham.Como escreveu Benjamin, “o inimigo não tem cessadode vencer”. Diz-se que houve uma neutralização, mas nãohouve. Faz parte da luta de classes. Como na frase dateologia medieval: “uma das maiores artimanhas do dia-bo é fazer as pessoas acreditarem que ele não existe”.Então, uma grande artimanha da vitória atual da direitana luta de classes é dizer: “não há mais luta de classes”.

VINTÉM – Você acha que a história recente do PT (Par-tido dos Trabalhadores) tem sido uma história de integraçãodo trabalho ao capital? É um partido que se tornou porta-voz da integração?

GRESPAN – Eu acho que sim. Os sindicatos, histori-camente, sempre fizeram essa mediação. Na RevoluçãoRussa já existia essa tensão do partido contra o potencialreacionário do sindicalismo. No Brasil, houve no século20 uma enorme repressão à organização espontânea dostrabalhadores. E finalmente quando surgem os sindica-tos independentes, isso se deu no tempo em que essa in-dependência não era mais tão terrível assim. Lula, no fun-do, foi sempre um grande negociador. Ele sempre fez issono sindicato: tinha que convencer o patrão a abrir umpouco os bolso e também convencer as bases, depois queo acordo estava feito. É por isso que ele não gerou ummedo real, apesar da Regina Duarte ter dito o contrário.Eles sabiam que ele não romperia contratos, no máximorenegociaria. Dito e feito. Houve uma expectativa muitoexagerada para um partido de sindicato.

VINTÉM – Você não acha que a situação no Brasil étão absurda do ponto de vista do mandonismo das elites quemesmo essa simples negociação tem acirrado as contradi-ções? Principalmente no terreno simbólico. A violência dareação conservadora no segundo turno da eleição mostrouque alguma coisa aconteceu, que era preciso repudiar com

histó

riaforça qualquer aglutinação de esperanças popula-res, mesmo que ilusória.

GRESPAN – Parece mesmo, mas essa di-mensão simbólica talvez esteja descolada doconteúdo. Desde os anos 70 até hoje os ban-queiros mandam no país, e o Lula continuoucom o Império dos banqueiros. Então ele feztudo certo. Ainda assim temos que nos pergun-tar por que ele, tão regressivo para o trabalhona disputa com o capital, por que ele catalizoutanto investimento de energia mental, de ex-pectativa, de esperança? Talvez por sua histó-ria pessoal e pela inexistência de uma alterna-tiva capaz de agregar forças de avanço.

VINTÉM – Por que a produção teórica de es-querda – em tese menos presa às determinaçõescapitalistas – parece sofrer da mesma dificuldadepara propor coisas? Mesmo aqueles que mantém algumacapacidade crítica parecem estar paralisados, distantes dequalquer esforço de agregação política.

GRESPAN – É um problema real. Mas a prática inte-lectual por definição é a crítica. A formulação de propos-tas tem que vir de algum movimento social real. Na faltadele, os intelectuais só podem usar a arma da crítica, por-que não tem a crítica das armas, pensando na velha brin-cadeira do Marx. O próprio Marx viu um sujeito socialreal que estava se mexendo, os operários. Só que no sé-culo XX as coisas começaram a mudar de figura. Aquelequadro da revolução do século XIX já não tinha mais es-paço... então, teria que ser com sindicatos ou outros pro-cessos... o ponto é que foi sempre necessário ter um sujei-to social, uma força social real propositiva.

VINTÉM – Mas faz falta o intelectual capaz de sair decasa e de trabalhar para uma construção coletiva, capaz deatuar como Marx no Manifesto Comunista, com aquele graude síntese teórica e capacidade de comunicação ativadora.

GRESPAN – É que existia muito dinamismo socialnaquele momento. Hoje em dia não é só a produção te-órica que tende à fragmentação: tudo está muito frag-mentado. E os movimentos combativos, quando não

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encontram formas próprias de articulação com outrossetores da sociedade, acabam sendo integrados pelo ca-pital. É complicado tudo isso. É o contrário do que eranos anos 70, quando a esquerda se sentava no boteco,tomava uma cerveja e todo mundo tinha tantas certe-zas. Hoje em dia ninguém tem. Conversamos horas ehoras não saímos com nenhuma proposta da conversa.É triste, mas talvez possa ser mais produtivo. Existia umaforça de enganação muito grande nas certezas da es-querda de antigamente...

VINTÉM – Como existe na proclamação da impossibi-lidade.

GRESPAN – Sem dúvida.

VINTÉM – Por que tantos intelectuais – mesmo de esquer-da – parecem apostar na fragmentação como método crítico, serecusando a uma perspectiva de diálogo com totalizações?

GRESPAN – Existe um lado do problema que é o se-guinte: as maneiras tradicionais de pensar não funcionammais. As respostas para questões clássicas do tipo “quais oslimites da relação entre liberdade e igualdade” parecemsempre velhas respostas. E de fato não dá mesmo para de-finir o que é bom e o que é mau em geral, a partir de umsentido religioso ou metafísico. O marxismo, especialmen-te da maneira como foi decodificado numa doutrina uni-tária, lá no final do século 19 por Engels e depois, no sécu-lo XX, adquiriu um sentido unitário recusado pelo próprioMarx. Na Ideologia Alemã ele esboça uma teoria social his-tórica mais unitária. Mas não é à toa que ele não publica olivro que escreveu com o Engels, autor que era mais hege-

liano do que ele e tinha a ambição de um sistema teóricototalizante. O que a teoria dos anos 60, 70 e 80 pode tertido de positivo foi refutar essa permeabilidade do marxis-mo ao cientificismo. Foi dizer: “calma lá, vamos pensar commais sofisticação a questão da verdade”, que é preciso pro-curar uma articulação mais complexa, mais contraditóriasobre as várias definições e determinações para mostrarque as coisas são mais complexas. O problema é que, den-tre esses homens de esquerda do pós-guerra, muitos se de-sencantam e buscam a formulação de padrões de esquerdanão-marxistas. E aí a coisa acaba na atuação micro, frag-mentada, relativística.

VINTÉM – Enquanto o capitalismo atua no todo...GRESPAN – Esse pós-modernismo relativista acabou

jogando o conceito de verdade fora com sua crítica anti-iluminista. É curioso como era citada abundantemente umafrase do Nietzsche, que teria dito: “Não existem fatos, sóuma interpretação dos fatos”. Mas Nietzsche disse: “Nãoexistem fatos morais, só uma interpretação moral dos fatos”.Ele combatia os resquícios do cristianismo e de uma metafí-sica. De fato não dá para manter o iluminismo nos mesmostermos, mas também não dá pra cair no oba-oba do relati-vismo total e dizer que não existe história, só diferentes in-terpretações da história, que tudo é literatura, e que o fato ea ficção não têm fronteiras definidas, tudo é igual a tudo.

VINTÉM – É um pensamento que interessa às forçassociais dominantes.

GRESPAN – Não que essas pessoas estivessem a sol-do do capital, é claro que não, mas o capital deitou erolou em cima disso. Essa fragmentação crítica criou umacerta atitude conformista, que legitima a idéia de que “ascoisas são assim, o mundo é assim, as utopias acabaram,portanto vamos tentar – dentro desse que existe – criarum espaço melhor. Porque”, dizem eles, “não há critérioracional para saber o que é melhor e pior na sociedade”.Então, deixemos os africanos morrerem de fome e deAIDS aos milhões todo ano, “é a cultura deles.”

VINTÉM – É um cinismo intelectual que se liga a umaperspectiva de classe.

“Superar adespolitização é verque o capital ainda éo inimigo.”

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GRESPAN – Quando não é cínica, é uma teoriaque se encaminha para uma espécie de aceitação dotodo e se conforma em atuar nas partes. Mas se essaparte não é estratégica, onde as coisas estão mais oumenos apoiadas, não adianta nada. Ao contrário. Oque a gente tem é a situação que a Rosa Luxemburgodescreveu tão bem, de socialismo ou barbárie. Se nãofizermos nada, estamos cada vez mais entrando nabarbárie total.

VINTÉM – Para o gosto de tantos que gostam de diag-nosticar o problema como se não fizessem parte dele, comose a arte ou a crítica estivesse com o nariz para fora da

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barbárie capitalista.GRESPAN – Superar a despolitização é ver que o

capital ainda é o inimigo.

VINTÉM – O que é difícil porque está evidente demaispara ser visto.

GRESPAN – Com tudo misturado, o capital está emtoda parte e ninguém vê que se trata, de fato, do capi-tal. Assim ele sobrevive e se utiliza até de sua contesta-ção crítica para continuar sobrevivendo. ■

Entrevista realizada por Sérgio de Carvalho,Lia Urbini e Marco Dutra

HonoréDaumier,

Au BalMasqué,

1868.

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Por Marília Carbonari

Nascidos em contextos históricos diversos, os grupos Tea-tro União e Olho Vivo (TUOV) e o Engenho Teatral en-frentaram um desafio comum em sua história: fazer teatrode criação coletiva nas regiões distantes do centro da cida-de, na “dita” periferia paulistana, para platéias de traba-lhadores e comunidades sem acesso aos chamados bensculturais. Sem abrir mão das funções artísticas dentro doexercício teatral, cada um desses grupos desenvolveu ummodo de trabalho e uma estética engajada no meio e no

tempo que atuavam. São experiências na contramão dopensamento de que se deve “levar cultura à periferia” emais próximas de um verdadeiro trabalho artístico frater-no, exemplos de como o teatro pode (e deve) ser feito emtodos os lugares, por todas as pessoas e não ser um apazi-guador social.

O Teatro União e Olho Vivo, dirigido por César Viera,é o grupo de teatro mais antigo que atua na periferia pau-listana, com um trabalho que completou 40 anos em 2006.Originário de uma fusão do grupo XI de agosto da Facul-dade São Francisco de Direito, formado por 20 alunos que

O teatro fora do centro

Cena do espetáculo Us Juãos ios Magalis, TUOV, 1996

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montaram a peça O evangelho segundo Zebedeu de César Vi-eira; e do grupo Casarão, formado por trabalhadores de di-versos ramos que atuavam no porão de um casarão na ruaBrigadeiro Luís Antônio. Em 1966, os grupos discutem seusobjetivos e decidem se unir buscando um teatro voltado aum público “não-convencional”. Neste momento, o recém-nascido TUOV monta a peça Rei Momo e se apresenta du-rante dois anos nos bairros de São Paulo. Essa experiênciarevelou a necessidade de pensar uma estética voltada paraum público que nunca tinha visto teatro. O resultado ime-diato foi a busca de uma musicalidade presente e perma-nente, uma nova relação com o público, mais direta e parti-cipativa e um aprofundamento nas relações dramatúrgicasda tragédia e da comédia. Essa foi a primeira forma encon-trada na busca do que chamavam “teatro popular”.

Outro importante grupo de teatro que atua na periferiade São Paulo, o Engenho Teatral, iniciou suas empreitadasem 1979, praticando o que o diretor Luís Carlos Moreiradefinia na época como o “modo de produção do Bixiga”,isto é, um modo de produção teatral convencional, em quese busca a mídia para fazer o lançamento, espera-se a críti-ca, e inclui-se o trabalho no roteiro teatral de São Paulo.Apresentavam-se para um público, em sua maioria, de clas-se média, os amigos da famosa “classe teatral”, ou seja, nãomuito mais que 40 pessoas por espetáculo. No início o gru-po levou seu trabalho a quatro teatros municipais e tam-bém ao Teatro de Arena, TBC, Augusta, sindicatos e bair-ros. Suas primeiras peças já eram politizadas: Mãos sujas deterra, que discutia a expulsão do homem do campo, umespetáculo musical e narrativo que utilizava o recurso docoringa, e A ferro e fogo, sobre o movimento operário bra-sileiro na virada dos anos 70/80.

Com base nesses primeiros contatos entre espetáculose platéia, o grupo passa a discutir as premissas de suas ex-periências teatrais e observa o seguinte: 1- o objeto não sedefine em si, se define na relação. 2- a estética não se sepa-ra das condições concretas de sua produção.

Ora, se a relação define o objeto e se esse objeto estáligado a sua forma de produção, por que não buscar umarelação direta com a classe trabalhadora que é quem produza riqueza e que pode atuar para uma modificação históricadas relações sociais? Esse foi o questionamento que direcio-

nou o Engenho Teatral para fazer teatro na “dita”periferia, para eles o lugar de um trabalho opostoao da forma “Bixiga” de produção. Entretanto, seiam se relacionar com outra circunstância, outropúblico, necessitavam de outro tipo de inserçãoprodutiva, divulgação etc. Necessitavam, prova-velmente, de uma mudança estética.

OUTRO PÚBLICO, OUTRA POÉTICA?Em que medida a reflexão sobre a relação com

um novo público transforma o processo de cria-ção das peças produzidas?

No caso do TUOV, as temporadas nos bairrospopulares trouxeram novos integrantes para o gru-po. Junto com eles veio uma base cultural que sechamou depois de “elemento popular”, visível tantono interesse por linguagens e manifestações comoBumba-meu-boi, capoeira, maculêle e circo, comonas formas cotidianas de pensar a representação, decorren-te da origem sócio-econômica desses novos atores.

A dramaturgia também se alterou. O processo desen-volvido para a criação dessa nova dramaturgia consistiaem 6 etapas: 1- discussão coletiva do tema e escolha daestética; 2- pesquisa sobre o tema durante meses; 3- elabo-ração coletiva de uma ficha dramática da história a sercontada, o que incluía personagens, conflito, local, açãoetc; 4- elaboração do quadro dramático central e do rotei-ro da peça; 5- escrita do texto a partir do material elabora-do pela comissão de dramaturgia; 6- encenação por apro-ximadamente 4 ou 5 anos da peça.

Todas essas formas de criação e referências adotadas con-figuram o que o grupo chama de “teatro popular”. Mas porque “popular”? Porque é feito e dirigido para um públicodiferente do pagante convencional, um público oriundo debairros pobres, com outras formas de relação comunitária.O TUOV considera que o “popular” está ligado no Brasil agrupos em sua maioria negros, mestiços e nordestinos quemoram em bairros periféricos e tem a referência culturalpopular nordestina como base, pessoas que não tiveram aces-so a uma cultura “formal”, ao trabalho, à saúde, enfim, pos-tas à margem da sociedade. Porém, como ressalta César Vi-eira, “isso não quer dizer que eles não tenham cultura, ou

teatro

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O Teatro Núcleo Independente dirigido por CelsoFrateschi, no bairro da Penha (Estrada de São Miguel),a partir de 1975, teve um impulso muito particular noseu deslocamento para a periferia. O núcleo desse tea-tro surgiu no Teatro de Arena na década de 60 e foidirigido por Augusto Boal, que desenvolvia então aprática do chamado “teatro-jornal”. Após o AI-5 e oexílio de Boal o grupo foi para o Teatro São Pedro, natentativa de preservar um teatro de esquerda. Lá tra-balharam com o núcleo do Teatro Oficina e montaramOs Tambores da Noite, de Brecht, com direção de Fer-nando Peixoto. Com o recrudescimento da censura daditadura, o grupo se dividiu. Uma parte formou o Tea-tro Núcleo e decidiu por uma nova experiência do pon-to de vista estético: checar quais eram as categorias doteatro popular na sua forma mais pura, feitas para e

com o povo. Nessa época foi feito o teatro-jornal AEpidemia, a partir de jornais de 1918 sobre o episódioda febre espanhola, numa analogia direta com a reali-dade da ditadura. Essa peça fez temporada nos bairrosde São Paulo, onde o grupo se apresentou e ministroucursos durante um ano, até se instalar na Zona Leste,em 76, onde estabeleceu uma sede por aproximada-mente 6 anos. Essa sede funcionou como um centrocultural: produzia música, artes plásticas e até um jor-nal. A experiência também requisitou do grupo umnovo olhar sobre o público e suas referências ficcio-nais. Esse desafio foi o ponto de partida para o traba-lho no bairro da Penha.

A relação entre um novo público e uma nova esté-tica no Teatro Núcleo Independente se deu de umaforma profunda. Ocorreu mais na desconstrução de

UM MODELO HISTÓRICO: O TEATRO NÚCLEO INDEPENDENTE

que não tenham sensibilidade artística; pelo con-trário, eles têm uma sensibilidade às vezes superi-or à convencional, uma capacidade impressionan-te de identificação do conflito central ou um sen-so raro do tempo da piada”.

De um modo geral, a cultura de elite que che-ga na periferia através dos meios de comunica-ção de massa, especialmente da novela, entraem conflito com a realidade desses bairros. Elatende a alimentar o sonho da ascensão socialfácil, adotando a perspectiva individualista comocentral. Na contramão disso, a prática com oteatro popular do TUOV fez o grupo procurarformas menos apassivadoras de relação com aplatéia: não é rara, depois das apresentações, aocorrência de debates em que o público podeopinar sobre a peça. Muitas vezes, quando o gru-po se apresenta nos bairros, a peça termina elogo começa uma assembléia de discussão dosmais diversos problemas enfrentados pela comu-Cena do espetáculo Nós os Avessos, Engenho Teatral, 1990

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teatronidade. Nesses casos o grupo abre o espaço para a discus-são que estiver na pauta. A relação com o público mudouao longo desses 40 anos. Hoje em dia, a crise enfrentadana organização dos trabalhadores e das comunidades debairro é visível na falta de politização do público. Há, po-rém, sempre uma “vanguarda” em cada local, o que acabapolitizando um pouco o debate final.

No caso do Engenho Teatral, a idéia de deixar o centrode São Paulo colocou a necessidade de uma estrutura tea-tral móvel, com condições para uma montagem profissio-nal, que pudesse de fato percorrer e conhecer a periferia.Desde o começo, o projeto optou por não cobrar ingressose por priorizar como platéia os coletivos enviados pelas or-ganizações locais (associações de bairro, escolas, igrejas).A gratuidade do ingresso permite não só uma relação não-mercantil com o público mas também o próprio acesso aoespetáculo, pois qualquer cobrança seria restritiva quandose avalia a condição econômica dos espectadores. O Enge-nho acredita que, como regra geral, uma produção teatralalternativa não se paga com bilheteria, sendo sempre ne-

cessário buscar recursos em outras fontes que nãoo espectador. O fato de estar no bairro e ter umteatro com identidade própria, num trabalho gra-tuito voltado para organizações locais, só radica-liza essa exigência de viabilização autônoma.

Em 1993, quando o grupo lançou o novo pro-jeto do Engenho Teatral, suspeitava que seus es-petáculos não eram adequados para o público po-pular. Caberia à nova vivência gerar outra estéti-ca. Foi só em 1996, na Zona Leste e depois emPirituba, que o projeto pôde realmente desenvol-ver seu trabalho com um volume mais significati-vo, graças ao patrocínio do CMDCA1 que, inclu-sive, forneceu o transporte que permitiu pegar opúblico das escolas e entidades para levar ao tea-tro. Em 10 meses do ano de 1996 foram 301 apre-sentações com duas montagens (uma infantil eoutra adulta). A partir de 1998, mergulhado noteatro infantil, o grupo se percebe numa “crise” de criaçãopara adultos por dois motivos: primeiro, a falta de tempo

alguns modelos de “teatro socialista” do que na constru-ção de uma estética popular. O contexto político era deuma mudança da vanguarda da organização social que, coma pressão da ditadura, migrou do centro para o bairro etambém o teatro mais politizado seguiu o mesmo cami-nho, deslocando-se para a periferia.

No início do trabalho na Penha, os exercícios cênicosforam em cima do modelo do realismo socialista e do na-cional-popular difundido pela esquerda da época, o quefoi recebido com frieza. Para tentar entender o porquê daindiferença de recepção, o Teatro Núcleo Independentedecidiu saber qual era a ficção produzida pela comunida-de, para o quê ministraram oficinas para a população lo-cal. Aí surgiram campos de interesse novos: histórias commuitos componentes fantásticos, uma ficção rica em deta-lhes e fora dos padrões. Essa experiência foi definitiva paraa mudança formal das peças criadas pelo grupo. Emboranão tenha assumido o fantástico como linguagem, as ques-

tões levantadas por esse material que propunha novasrelações entre forma e comportamento social, estimu-lou um processo de abandono do modelo do realismosocialista. Esse caminho trouxe uma estética dialéticaque não mostrava o trabalhador como um herói ideali-zado. A força da influência do processo de criação co-letiva de Enrique Buenaventura também foi marcanteno trabalho do grupo, pois a teoria de Buenaventuraoferecia ao grupo a ponte entre o trabalho do ator deStanislavski e a construção dramatúrgica de Brecht,além de estimular a importância das discussões com aplatéia após cada apresentação. Não era raro que, aoabrir o microfone, alguma liderança do bairro come-çasse a falar dos problemas locais e abandonasse total-mente a discussão sobre a peça que acabava de ver. Dequalquer forma, o nível de politização dos bairros, naépoca, era muito alto, principalmente pela atuação dasalas progressistas da Igreja.

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para criar novas obras, em virtude do número excessivo de apre-sentações; depois, o crescente desmantelamento e as dificulda-des de organização na periferia. Isso ocorreu no período de cres-cimento das ONGs como “empreendedores sociais” e de simultâ-nea perda de força da ala progressista da Igreja, decorrentes deuma mudança maior na forma de organização dos trabalhadores.Somente em 2002, já em Campo Limpo, Zona Sul, com a con-quista do patrocínio da Lei de Fomento e com a retomada deações pelo CMDCA (depois de amargar 3 anos sem qualquerapoio financeiro e quase se dissolver) o Engenho voltou a produ-zir. Nesse local, o esforço foi de um trabalho junto ao hip-hop,único foco de resistência cultural efetiva na periferia. Atualmen-te, com a experiência acumulada e com as mudanças históricas,o Engenho tem se preocupado com o conceito de massa criadopelo mercado e refletido sobre o sentido da indústria cultural narelação com o trabalho informal e provisório, notando o surgi-mento de uma nova espécie de lumpen que não é mais exceçãonem exército de reserva. Assim, numa metrópole como São Pau-lo, uma cultura “popular” legítima, por exemplo, seria, no máxi-mo, algo residual. O que reina em todos os lugares é a cultura demassa que se apropria de qualquer produção artística e reproduzdentro dela as leis do mercado cultural.

Hoje em dia, instalado nas proximidades do metrô Carrão, ogrupo continua seu trabalho de criação cada vez mais conscientede sua situação contraditória. Esse caminho é complicado na me-dida em que as pesquisas formais e temáticas não prescindem deum constante questionamento. O que se tem claro é que existeum fosso entre a classe média e essa “massa” sub(des)empregada.E que esse fosso precisa ser transposto.

Essas experiências colocam questões fundamentais para todo oteatro que se pretende crítico e que busque um diálogo com o con-junto dos trabalhadores cuja esmagadora maioria vive nas periferi-as: quem “são” esses trabalhadores? O que temos em comum? Oque temos para dizer sobre os tempos atuais? Como comunicar?

Nessa perspectiva, o teatro além de ser uma forma de expres-são artística revê seu sentido como forma de comunicação, bus-cando interlocutores para achar as respostas. A necessidade deabrir diálogo pressupõe postura de igualdade entre interlocuto-res, pressupõe falar e ouvir, exercícios cada vez mais difíceis nomundo de hoje. ■

Marília Carbonari é atriz e pesquisadora de teatro

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Os textos que integram esse dossiê em memória dos 50 anos demorte de Bertolt Brecht (1898-1956) são fragmentos do autor

que discutem sua prática de direção. O material, inédito noBrasil, completa-se com a transcrição de um debate entre PeterPalitzsch, um dos mais importantes colaboradores de Brecht, e

integrantes da Companhia do Latão.

Brecht encenador

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Por Bertolt Brecht

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1. representar a sociedade como capaz de sofrer mudanças;2. representar a natureza humana como capaz de sofrer

mudanças;3. apresentar a natureza humana em função das classes sociais;4. representar os conflitos como conflitos sociais;5. representar as personagens com características

legitimamente contraditórias;6. representar as personagens, situações e acontecimentos

como descontínuos (transformação aos saltos);7. converter a abordagem dialética num prazer;8. “conservar”, num sentido dialético, as conquistas do

classicismo;9. reunir poesia e realismo numa unidade.

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Particularidades do Berliner Ensemble

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Por Bertolt Brecht

Entre nós, o diretor não chega ao teatro com sua “idéia”ou sua “visão”, um “plano de marcações” e “cenáriosacabados”. Seu desejo não é o de “realizar” uma idéia.Sua tarefa consiste em despertar e organizar a atividadeprodutiva dos atores (músicos, pintores, etc.). Para ele,ensaiar não significa fazer prevalecer à força alguma con-cepção firmada a priori na sua cabeça, mas pôr à prova.Ele deve insistir para que sempre se vislumbre várias pos-sibilidades. É perigoso para ele deixar-se encurralar atéter que fornecer o mais rápido possível a “única” solu-ção “correta”. Na medida em que exista, esta não podeser, em realidade, senão uma das soluções possíveis, apartir do interesse de se tentar outras, nem que sejaporque somente assim se enriquece aquela finalmenteadotada: ela tirará sua força das eliminações operadas.Por outro lado, a atividade produtiva de cada um dosparticipantes não é regular; por produzirem em ritmosdiferentes, eles necessitam ser diferentemente estimu-lados. Eles possuem, além do mais, interesses diferentesque devem ser plenamente desenvolvidos para enrique-cer a solução global. Desmascarar as soluções esquemá-ticas, rotineiras, convencionais trazidas às dificuldadesé uma tarefa importante do diretor. É preciso que eledesencadeie crises. Ele não temerá, obviamente, admi-tir que não conhece sempre “a” solução e que ele não atem à mão. A confiança que lhe depositam os partici-pantes deve decorrer principalmente da sua capacidadede descobrir o que não constitui uma solução. Ele devefornecer as questões, suscitar a dúvida, multiplicar ospontos de vistas possíveis, oferecer comparações, lem-branças, lições de experiência. Geralmente, ele terá pro-blemas em impedir que se construam rápido demais assituações e os papéis, pois é precisamente isso que per-mite aos atores mais rotineiros ou mais fortes (os mais

famosos) paralisar a atividade produtiva dos outros,e até mesmo impor-lhes soluções convencionais.Quando, estando os papéis distribuídos, procede-sea uma leitura à italiana, ele deve organizar entre osatores a atitude do espanto. Ele deve conseguir queeles perguntem: “Por que eu digo isto?” e “Por queele diz isso?”. Ele deve até mesmo conseguir levá-losa dizer: “Seria melhor se eu dissesse (ou ele dissesse)isto ou aquilo”. Uma vez que uma resposta precisatenha sido encontrada, ele cuidará para que, quan-do dos ensaios posteriores, a surpresa inicial e a von-tade de contradizer não desapareçam completamen-te da composição. Deve-se ainda sentir na composi-ção final da personagem a singularidade de cada umadas coisas que ele diz ou faz. O espectador deve ter,ele também, a ocasião de experimentar essa surpresae essa vontade de contradizer. Não se deve atraves-sar de uma vez o caminho que separa a mesa de lei-tura do palco. É melhor que as cenas sejam transpos-tas ao palco por fragmentos. A leitura à italiana deveantecipar de maneira “aproximativa”, “indicativa”,os detalhes da atuação. A composição definitiva de-verá conservar viva alguma coisa dessa maneira pro-visória, aproximativa, indicativa. É preciso que o es-pectador perceba que a “solução” é específica, masque ela contém ainda certos traços de acaso que fa-zem realmente parte dela. Da mesma forma, é me-lhor que a linha geral não surja de uma fusão dosdetalhes desprovida do menor arremate, mas que elaapareça como uma cadeia lógica na qual cada deta-lhe conserve seu aspecto de detalhe. Assim será va-lorizada a lógica da sua sucessão e da passagem deum a outro. Não basta que durante a leitura à italia-na cada pensamento expressado, cada gesto, etc., sejaconfrontado em palavras a outros pensamentos, ou-tros gestos igualmente possíveis: é preciso represen-

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Atitude do diretor(DENTRO DO MÉTODO INDUTIVO)

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tar também essas outras pos-sibilidades. A surpresa pressu-põe uma espera que não recu-pera sempre todas as eventu-alidades. Pois bem, o elemen-to de surpresa é um elementoessencial do efeito. O ator ten-de ao efeito; sua ambição é sa-dia, ele visa a surpreender. Elenão obterá, contudo, senão oefeito “teatral”, “ilícito”, se en-tre todas as eventualidades elenão escolher aquela que for ló-gica. A surpresa é boa quandoé a solução lógica que surpre-ende. Conforme ensaiamos osdetalhes, deveríamos começarpor não prestar atenção ne-nhuma à disposição da sala.Conseguimos assim, numa se-gunda fase, cujo objetivo éproporcionar ao espectador amelhor visão dos processos re-presentados, uma reestrutura-ção dos agrupamentos, visan-do tornar tudo mais claro. Paracada processo que se desenvol-ve no palco, o diretor deveriaencontrar uma situação davida comum na qual se pode-ria fazer a demonstração deum processo análogo. Poderí-amos imaginar, por exemplo, adivisão do reino, na cena 1 doRei Lear, sob a forma de uma demonstração feita diante de uma comissão de juristas, de médicos, de mestres decerimônia, de membros de uma família, de historiadores, de homens políticos etc. Os detalhes deveriam, então,responder às exigências dessas pessoas que têm interesses tão diferentes. ■

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Extraído de Ecrits sur le théâtre, de Bertolt Brecht, tradução para o francês de Jean Tailleur, Guy Delfel, Béatrice Perregaux e JeanJourdheuil. Paris: L’Arche Editeur, 1972, págs. 405-407. Ecrits sur le théâtre é a tradução francesa do Schriften zum Theater, selecionado por

Werner Hecht, 1967, Suhrkamp Verlag, Francfort-sur-le-Main. Tradução para o português de Thiago Mori.

A Alma Boa de Setsuan, Berliner Ensemble, 1953

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Por colaboradores do Berliner Ensemble

A direção de B. passava muito mais despercebida quea de muitos diretores de fama mundial. Quem o obser-vava, não tinha a impressão de que ele buscava plasmarcom seus atores algo que havia imaginado. Os atoresnão eram “seus instrumentos”. Junto com eles procura-va desentranhar a história narrada pela peça e os ajuda-va a tirar o melhor partido de suas próprias condições.Sua intervenção se ajustava “à direção dos ventos”, epor isso, era geralmente imperceptível. Não era dessetipo de gente que se põe a perturbar o trabalho, até comseus bons conselhos. Seu empenho com os atores se as-semelhava ao de uma criança que, com uma varinha,vai conduzindo os ramos que flutuam na água empoça-da à beira de um riacho até incorporá-los à correnteza,o que lhes imprimirá um vivaz movimento.

B. recorria com freqüência à demonstração prática;contudo, sempre representava fragmentos muito brevese se interrompia bruscamente, para não oferecer nadapronto. Nessas demonstrações práticas, sempre imitavao estilo do ator em questão, ainda que sem disfarçar suaprópria personalidade. Sua atitude dizia às claras: gentedesse tipo costuma fazer as coisas dessa maneira.

Ele gostava de trabalhar nas montagens junto comseus discípulos. Geralmente se sentava na platéia e alidiscutia com eles em voz alta e formulava suas suges-tões aos atores sem subir ao palco, a fim de que todosouvissem. Esforçava-se em “ouvir enquanto falava”.Sempre repetia os achados felizes de seus colaboradorese não deixava de mencionar o autor da idéia: “X disse”,“Y pensa que...” Dessa maneira o trabalho era um tra-balho de todos.

B. dava muita importância às pausas entre os diá-logos e, dentro dos diálogos, ao que devia ser salien-tado. Indicava, mesmo aos melhores atores, quaiseram as palavras que convinha acentuar ou discutiao assunto com eles.

B. odiava as discussões prolongadas. Durante osensaios de O Preceptor, que consumiram mais de 200horas, o total de discussões entre platéia e cena nãodeve ter somado mais de um quarto de hora. B. erapartidário de ensaiar tudo. “Não explique tanto e re-presente!”, dizia. Ou “para que dar razões? Repre-sente o que está sugerindo!”.

As posições e os movimentos em cena deviam re-latar a história e ser belos.

Todos os atores deviam ter, ao menos por um ins-tante, olhos e ouvidos de espectador. “Nenhum ho-mem passa despercebido pela vida... Como se podepermitir que um ator passe despercebido pela cena?”

Naturalmente, no teatro de B. tudo tinha que res-ponder à verdade. Mas ele tinha predileção por umadeterminada forma de verdade, a que fazia o espec-tador exclamar: “Isso é muito certo!”. Em uma pala-vra, lhe encantava que a verdade se apresentassecomo descoberta. Era muito corriqueiro que durantea representação B. estendesse o braço e acenasse comexpressão radiante a um ator que acabava de mos-trar algo especial ou algo especialmente importanteda natureza humana ou da convivência humana.

“Este é seu momento – sempre gritava aos atores– por Deus não o deixe escapar. Ei-lo! Que a peça vápara os diabos.” Está claro que devia tratar-se de mo-mentos que a peça exigia... ou admitia. “Todos os queintervêm têm interesse em passar adiante o que foicompartilhado, e o senhor também está interessadonisso. Mas, além disso, existem seus próprios inte-resses, no meio de tudo, interesses que em certa me-dida contradizem o interesse geral: e essa contradi-ção é que faz tudo se mover”, dizia. Nunca permitiaque um ator – isto é, um ser humano da peça – fossesacrificado “em benefício” do suspense ou do ritmo.

B. gostava de mesclar alunos de arte dramática commestres. Dizia: “Dessa maneira os alunos aprendem aatuar como mestres e os mestres como alunos”.

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A direção de Brechtb

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“Quando certos diretores ou atores não podem ex-trair o conteúdo de uma peça ou de uma cena, a rechei-am com algo que não corresponde”, dizia B. “Não sedeve forçar as peças nem as cenas. Se uma coisa é depouca importância, isso significa que de alguma manei-ra é importante; mas se lhe é concedida demasiada im-portância, será destruída a pouca, mas legítima impor-tância que tem. Em todas as peças há ‘cenas débeis’ (e,em geral debilidades). Não se deve procurar dar-lhesforça. Porque quando a peça é bastante boa no conjun-to, existe um equilíbrio – às vezes difícil de descobrir –,que se perde com muita facilidade. Por exemplo, é fre-qüente que o autor atinja a particular força de uma cenaao custo da debilidade da anterior. Com freqüência nos-sos atores confiam muito pouco no que acontece nacena, confiam muito pouco em um momento da histó-ria que está sendo narrada, confiam muito pouco emuma frase vigorosa etc., etc. E nesse caso, não permitemque esse algo interessante ‘de per si’ atue por si só. Poroutro lado, é necessário que uma peça tenha poucas pas-sagens eficazes. Não há espectador que possa manter aatenção alerta durante toda a apresentação. É precisoter isso em conta.”.

ENCENAÇÃO(Perguntas sobre o trabalho do diretor)– O que faz o diretor quando encena uma peça?– Expõe ao público uma história.– Com que meios faz isso?– Um texto, um palco e atores.– O que é o mais importante na história?– O sentido, isto é, o que tem importância do ponto

de vista social.– Como se descobre o sentido da história?– Estudando o texto, as características do autor, a

época em que surgiu.– Se a história data de outra época é possível repre-

sentá-la com o sentido exato conferido pelo autor?– Não. O diretor tem que optar por uma leitura que

interesse à sua própria época.– Qual é o procedimento fundamental através do qual

o diretor apresenta a história ao público?– A disposição da cena, isto é, a distribuição das perso-

nagens, como se situam umas em relação às outras, seus des-locamentos, suas entradas e saídas. O arranjo dos elemen-tos da cena deve narrar a história com riqueza de nuances.

– Existem encenações que não fazem isso?– Muitas. Em vez de narrar uma história, se preocu-

pam com outras coisas. Determinados atores, as estre-las, ocupam na cena posições vantajosas (de modo queo olhar do público recaia sobre eles), ainda que seja emdetrimento da história; também criam no público de-terminados estados de ânimo que explicam os processossuperficial ou erroneamente; ou se criam tensões quenão coincidem com as da história, etc., etc...

– Quais são as encenações mais equivocadas do nos-so teatro?

– As do naturalismo nas quais se imitam aspectos dosacasos que se produzem na vida... As do expressionismo,nas quais se proporciona às pessoas a oportunidade de“expressar-se” sem ter em conta a história que, na reali-dade, só é utilizada como um meio... As do simbolismo,nas quais se procura fazer ressaltar “o que se oculta portrás”, as idéias sem ter em conta a realidade... As do for-malismo puro, nas quais se persegue um “agrupamentopictórico”, que não impulsiona a história.

Brecht e colaboradores do Berliner Ensemble

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EXPERIÊNCIASeria conveniente transmitir certas experiências aos

diretores teatrais: que o cômico não surte efeito na pe-numbra; que os atores levantam desnecessariamente avoz quando devem acelerar o ritmo de uma cena; que ascenas pequenas e até insignificantes podem deter a mar-cha da ação se não forem elaboradas até em seus maismínimos detalhes.

Em geral o efeito de uma cena desnecessariamentetediosa se fará sentir só na seguinte, que parecerá abor-recida (“demasiado longa”). Só então aparecerá o can-saço do espectador. Por isso, quando uma cena parecerlonga demais, será preciso examinar cuidadosamente aanterior; é possível que o excesso esteja nela.

Se um acontecimento é interrompido por outro nacena, a situação nunca poderá voltar a ser a mesmade antes, a situação inicial não poderá restabelecer-se. O acontecimento interposto influi sobre o todo, otransforma.

ILUMINAÇÃO CLARA E UNIFORMEPara determinadas peças, entre as quais figura O Se-

nhor Puntila e seu criado Matti, convém iluminar o palcocom luz clara e uniforme. O público se manterá, assim,consciente de que está presenciando teatro e não umepisódio da vida real, por mais natural e vívido que sejao trabalho dos atores. A ilusão de estar vendo um pe-daço de vida real no palco só é boa para as peças emque o público se limita a viver os acontecimentos, sempensar muito; isto é, aquelas em que lhe basta pensar omesmo que pensam as personagens na cena. Já as peçasem que se procura brindar o público com o prazer deperceber as conexões de ordem social que existem en-tre todos os atos cumpridos pelas personagens saem ga-nhando com uma iluminação clara e uniforme. Dessamaneira o espectador não cai com tanta facilidade nes-se torpor de sonho produzido pela luz crepuscular; per-manece lúcido, mais ainda, alerta. O cenógrafo pode seencarregar dos efeitos cromáticos e dos contrastes, semnecessidade de recorrer à luz colorida.

Os atores se vêem favorecidos pela ilu-minação clara e uniforme, quando se tra-ta de uma comédia. A comicidade surtemais efeito em um ambiente bem ilumina-do; qualquer ator cômico sabe disso. Poroutro lado, quando se representam acon-tecimentos não “risonhos”, a ausência des-sa penumbra que contribui para a criaçãode uma “atmosfera” obriga o ator a um tra-balho particularmente eficiente do pontode vista artístico. E por que não se have-ria de obrigá-lo? Os atores do Globe The-ater shakespeariano só contavam com afria luz das tardes londrinas. ■

Publicado em Escritos sobre Teatro, de BertoltBrecht, seleção de Jorge Hacker, tradução para o

espanhol de Nélida Mendilaharzu de Machaín.Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 1976,

volume 3, págs. 66 a 70. Tradução para o portuguêsde Márcio Marciano.Chaplin e Brecht

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Por Hans Bunge

Os ensaios da montagem de O Círculo de Giz Caucasianodirigida por Brecht no Berliner Ensemble se iniciaram em no-vembro de 1953. Com várias interrupções estenderam-se por125 dias até a estréia no ano seguinte. Durante esse período,foram feitas anotações e gravações destinadas a orientar umlivro-modelo da peça. Esse material foi publicado por WernerHecht na obra Brechts Theaterarbeit. Seine Inszenierungdes Kaukasischen Kreidekreises 1954 (Frankfurt:Suhrkamp, 1985). Os trechos aqui transcritos foram tradu-zidos por Tereza Castro para os estudos da montagem da Com-panhia do Latão.

A GOVERNADORANos ensaios do Primeiro Ato levantou-se várias vezes a

mesma objeção: a governadora descobre no final da cenade pânico o fogo da periferia em chamas e é carregada peloajudante – quase inconsciente e totalmente apática. Ob-jetou-se que a governadora não poderia ser responsabiliza-da pelo esquecimento da criança porque estava inconsci-ente e que não tem culpa pelo abandono da criança por-que ela mesmo não foge, mas sim é carregada. Brecht dissehoje que essa idéia de culpa e não-culpa da governadorapassa ao largo da peça. Seria um caso jurídico primitivo,como o de alguém que deixa uma bicicleta largada duran-te anos e não se preocupa – e de repente vem e a quer devolta. No caso da sentença judicial de Azdak, a questão sea governadora abandonou a criança levianamente ou nãolevianamente, se ela foi culpada ou não culpada, não temimportância alguma. O que vem à tona no julgamento in-teressa a ele no máximo para conhecer as duas partes doponto de vista humano. O engraçado é justamente queAzdak decida naquele momento. E que julgue quem temagora o direito de mãe sobre a criança. Aqui perde a gover-nadora. Pois a prova do círculo de giz é uma prova autên-tica. Azdak decide realmente através dela quem é maisadequada para ficar com a criança.

REFLEXÕES LÓGICASA cena é ensaiada na casa camponesa, diante da qual

Grusche deixou a criança. De repente Brecht percebe quea trouxa trazida por Grusche ficou menor do que antes.Ele pergunta à atriz pela razão e recebe a resposta : “Masé lógico. Originalmente trouxe um monte de coisas dopalácio. Entretanto embrulhei a criança e tive que usarcoisas da trouxa. Além disso estou usando agora, por causado frio, um pano nos ombros que também estava na trou-xa. Depois troquei outras peças de roupa – e tudo o quetinha na trouxa – por leite, abrigo e comida. Portanto atrouxa tem que ter diminuído e quero mostrar isso deforma realista”.

Brecht – Você parte da idéia de que uma reflexãológica sempre tem que estar certa. Mas esse não é ab-solutamente o caso. Aqui, por exemplo, partir-se-iado pressuposto de que Grusche não tivesse roubadoquando de sua fuga. Provavelmente isso seria justifi-cado pelo “caráter honesto” da Grusche , para quem“roubar” não entra em cogitação. E isso é perigoso.Nunca se deve partir do caráter de um personagem,pois o ser humano não tem caráter. No caso da Grus-che talvez até se exija – pelas condições em que vive– que ela roube, pelo menos quando é preciso – justa-mente assim ela seria um “caráter positivo”. Faz par-te do direcionamento da peça mostrar o que custa paraa Grusche cuidar da criança. Portanto, futuramente,faremos a trouxa novamente maior, talvez maior doque no começo. Existe naturalmente a questão se nos-sos espectadores percebem os “motivos” de tal medi-da , mas isto não é tão importante. Se refletirem arespeito – o que teriam que fazer também no caso deuma trouxa menor – chegarão talvez a uma soluçãosemelhante. O que fazemos é de qualquer maneirabom para estrutura de uma pessoa complexa como éa Grusche. E interessante – pelo menos para o dire-tor e aqueles que refletem agora a respeito – é o usoconsciente da contradição. ■

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Notas de ensaio no Berliner Ensemble

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Brecht – Acredito que não.Na Coragem pouco se vê a mu-dança. De forma geral, bastariaa impressão de que algo está sen-do preparado. Temos para cadapeça uma cortina diferente, cor-respondente à concepção globalda peça. No Círculo, por exem-plo, havíamos previsto uma cor-tina meio transparente. Mas nãodeu certo. No teatro sempre háplanos técnicos. Têm-se tantosplanos, projetos, princípios etc.Além disso, não é preciso matarprincípios, aplicando-os cem porcento. De forma geral é neces-sário que o palco não seja, comoregra, escondido, quando sãofeitas transformações.

Estudante – Na minha opiniãofoi cortada uma cena muito for-te, aquela em que Grucha, parasalvar a criança dos cavaleiros,atravessa sozinha a ponte, en-

quanto os comerciantes não se encorajam a ir até lá.Brecht – Quando se corta algo, tem-se que abrir

mão de algumas coisas. Ali houve uma certa perda, éverdade. Não se pode comer o bolo e guardá-lo. Éclaro que se tem que cortar algo. Em todas as coisasnão se podem estabelecer princípios rígidos. Não éverdade que as pessoas vêm ao teatro por causa doteatro, na realidade é o contrário. Temos que pensarsempre que as pessoas tiveram um pesado dia de tra-balho. Só quando tivermos uma jornada de trabalhomais curta – por exemplo, 6 ou 4 horas – estaremos

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Discussão com Brecht sobre OCírculo de Giz Caucasiano

Estudante – Gostaria de saber por que o Círculo é apre-sentado de forma tão abreviada.

Brecht – Não podemos apresentar a peça em sua to-talidade porque senão as pessoas não alcançariam o trem.Por esta razão tivemos que reduzir a peça.

Rülicke – O tempo de apresentação seria 4 horas seapresentássemos tudo.

Estudante – Tenho uma pergunta sobre as cortinas.Por exemplo, sentei-me no segundo balcão e de lá nãovi que haviam mudado o cenário. O senhor tinha umobjetivo determinado com isso ?

O Círculo de Giz Caucasiano, Berliner Ensemble, 1954

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em condições de ver peças mais longas. As peças nãorespeitam muito isto e exigem muito de pessoas que es-tão cansadas.

Estudante – O senhor falou da evolução do teatro.Tenho uma pergunta que se refere ao seu próprio tea-tro: o Círculo é uma peça com prólogo. O senhor a es-creveu assim para que um outro tipo de estranhamentopudesse se desenvolver?

Brecht – No Círculo, o prólogo se passa no ano de1947. São pontos de vista atuais. As pessoas têm quepensar. Tem-se que se acostumar a certas evoluções his-tóricas: nada é eterno. O que existe não existirá sem-pre. Algo pode acontecer e não acontecer, pode mudarvárias vezes durante uma única peça. Naturalmente sãograndes transformações no aspecto dramático.

Estudante – Por que se encenam tão poucas peças deBrecht na província? Devido a dificuldades de direitoseditoriais?

Brecht – De forma alguma por dificuldades de direi-tos editoriais. O que ouvimos é que os teatros mostramuma certa reserva porque temem uma intromissão, umcontrole a partir daqui. Também enfrentam dificulda-des com os atores: algumas peças exigem mais pessoasdo que os teatros têm. Além disso, há propaganda con-tra esse tipo de teatro. O único órgão que trata dos tea-tros da república é a revista Theater der Zeit. Você certa-mente já leu, também em obras históricas, que a luta donovo com o velho é sempre intensa. Na Literatura nãopoderia ser diferente. Não se pode dizer em um belo diaque agora se organiza o governo dos trabalhadores e cam-poneses e partir de então tudo muda. É preciso luta, tra-balho e produção etc. (Volta-se para os estudantes chine-ses) E os nossos colegas chineses? Que impressão têm?

Estudante chinês – Estamos felizes por poder vê-lo e oseu teatro. Gostamos muito. Um problema me interes-sou. No Círculo usam-se máscaras só para os persona-gens antipáticos, enquanto nós em Pequim usamos más-caras também para os simpáticos. O que significa isso?

Brecht – Primeiramente partimos do fato de que apeça tem 150 personagens e nós apenas 50 atores. Tí-nhamos que achar um jeito de representar 150 com 50.Assim chegamos às máscaras. Então pensamos o que

aconteceria se todos usassem máscaras. Constatamos quenão dá certo. Por exemplo, quando a Grucha usa umamáscara, perde-se muito daquela representação sutil.Pareceu-nos que ela precisa de seu rosto para a repre-sentação. Eu não diria para a Grucha nunca usar más-cara. Ainda hoje não chegamos ao ponto de poder re-presentar totalmente com máscaras. A pantomima aquinão é tão evoluída. Assim não conseguimos representartão bem muitos personagens com máscaras. A máscarachinesa é de culto e possui uma nobre função. Para nósela fixa a musculatura. Dá aos personagens uma apa-rência rígida. Achamos que podíamos usar isso muito

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Helene Weigel em Os Fuzis da Senhora Carrar, 1952

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bem. Partimos da idéia de que as classes dominantes têmrostos mais rígidos do que as trabalhadoras. Esses rostossão representativos. Certos criados, por exemplo, advo-gados, que são comprados pelos poderosos, também usammáscaras. A rigidez desce até às pessoas mais simples.

Estudante chinês – Seria possível também usar más-caras em uma peça da atualidade no seu teatro, sem queo presente fosse colocado em dúvida ?

Brecht – Já fizemos um experimento desse tipo, napeça Sr. Puntila e seu criado Matti. Na primeira vez nãousamos máscaras, mas grandes orelhas, grandes nari-zes etc. de forma que o todo ganhou um efeito carica-tural. Deu certo, e ninguém duvidou que não fosse opresente. Aqui isso só é possível na comédia. Na tra-gédia seria muito difícil de introduzir isso porque nos-sos atores ainda não o sabem fazer nem tem práticacom a aplicação correta.

Estudante chinês – Em certas cenas as paredes são uti-lizadas como bastidores. Qual é a explicação ?

Brecht – A montagem moderna de cenário entrou emcrise muito grande quando na verdade deveria ser eli-minada. No cenário partimos da idéia de não represen-tar apenas o lugar momentâneo, mas também sempreuma parte do ambiente, isto é, deixar entrar algo de forapara dentro.

Estudante chinês – Gostaria de saber se a iluminaçãono palco pode contribuir muito para o efeito de estra-nhamento. Na Mãe Coragem por exemplo foram feitasmuitas mudanças na iluminação.

Brecht – Mudanças na iluminação são necessáriaspara que surja uma luz uniforme. De forma geral nãopretendemos utilizar efeitos de iluminação. Não mos-tramos a noite, a manhã. Apenas insinuamos suavemen-te a noite. Por exemplo, na cena na taberna em MãeCoragem é noite, mas no palco está claro.

Weigel – Também é muito mais fácil de representarquando se vê tudo. O humor não surte efeito se aspiadas são contadas no ambiente escuro. Por exem-plo, na primeira cena em Mãe Coragem : se eu nãoficar na luz total, as coisas não chegam. As pessoasnão riem. É um fato antigo que, no palco, piadas sósurtem efeito com luz.

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Estudante – Os movimentos dos atores no Círculotêm algo de marionetes de madeira. Lembro-me es-pecialmente da primeira cena, da ida à igreja.

Brecht – Com aquele tipo de máscaras não se con-segue fazer quaisquer movimentos naturais.

Weigel – Justamente a ida à igreja – uma ocasiãooficial – transcorre dentro de uma certa etiqueta, quedetermina também o andar. A segunda cena já émuito mais solta em seus movimentos.

Brecht – Quando são escravos eles não podem semovimentar livremente. Você não pode esquecer que,quando vê uma tropa no desfile, não está vendo pes-soas. Quando você vê um padre rezar a missa vocêpercebe seus movimentos estudados. No Círculo istonão acontece sempre. Podem parecer coisas mecâni-cas, que então estão erradas. Mas também muita coisapode estar errada. Vocês não estão frente a um prin-cípio, mas a um teatro. E lá cometemos erros. Todasas peças têm erros, também as de Shakespeare. Porisso é esquisito quando justamente filólogos queremcomentar trechos discutíveis e acham 300 explica-ções para eles.

Estudante – O teatro épico tem, na minha opi-nião, um papel significativo na transição do capita-lismo para o socialismo. Ali ele interfere, tem umafunção progressista. Mas quando o socialismo foi atin-gido, quando as relações das pessoas se tornaramperfeitas, o teatro épico atingiu seu objetivo. O se-nhor acha que o teatro épico será possível tambémno futuro?

Brecht – Se o teatro épico será o teatro do futuro,isto eu não sei. Pelo que eu saiba não existe uma des-crição exata do futuro. De forma nenhuma o teatroépico é um fenômeno de transição, pois relações hu-manas perfeitas nunca podem acontecer, nem no co-munismo nem nas fases posteriores. Senão se teriaque negar qualquer evolução. Também no teatro temque ser aplicado o princípio da evolução. ■

Publicado em Brechts Theaterarbeit. Seine Inszenierung desKaukasischen Kreidekreises 1954, organização de Werner Hecht,

Frankfurt: Suhrkamp, 1985.

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(fragmento)

Vocês, artistas, que fazem teatroem grandes casas, sob a luz de sóis postiços,ante a platéia em silêncio, observem de vez em quandoesse teatro que tem na rua o seu palco:cotidiano, multifário, inglório.mas tão vivido e terrestre, feito da vida em comumdos homens – esse teatro que tem na rua o seu palco.

Aqui a vizinha, arremedando o senhorio,mostra com toda a clareza, rememorando o palavrório

dele,como ele faz para desviar a conversado cano d´água que furou. Pelos passeiosos moços mostram às moças, que o riso escondem,como é que elas à noite se defendemexpondo os seios habilmente. Adiante, um bêbadoimita o padre no sermão abrindo aos pobresos ricos paramos do Paraíso. Tãosério e engraçado, e tão dignoesse teatro! Não são como papagaios e macacosque representam por representar,indiferentes ao que estão representando, apenas para

dizeremque sabem: têm, ao contrário,propósitos em vista.

Oxalá possamvocês, artistas maiores, imitadores exímios,não ficar nisso abaixo deles! Não se afastem,por mais que se aperfeiçoem na arte,desse teatro de todos os diasque tem na rua o seu palco!

Aquele homem, no canto da rua, vejam:está mostrando como o acidente ocorreu, submetendo o

motoristaabertamente à sentença da multidão,pela maneira com que ia ao volante. E agorafaz o papel do atropelado, pelo vistoum ancião. De um e de outro ele só dizo indispensável para entender-se o desastre,mas é o que basta para apresentar os dois aos olhos de

vocês.não dá a entender que não pudessem ambosevitar o acidente. E o acidentee compreendido, embora incompreensível, pois tanto um

como outrobem poderia ter agido de outra forma: agora ele está

mostrandocomo os dois poderiam ter agido para que o acidentenão ocorresse. Nada de superstiçõesem seu testemunho ocular: não atribuia sorte dos mortais a estrela alguma,senão às próprias falhas.1

1 (Tradução de Geir Campos. Publicado em Teatro Dialético, de Bertolt Brecht, seleção de Luiz Carlos Maciel, pág. 49 a 51. Rio de Janeiro,Civilização brasileira, 1967).

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SOBRE O TEATRO DE TODOS OS DIAS

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Peter Palitzsch (1918-2004) foi um dos principais colabo-radores de Brecht no Berliner Ensemble, tendo coordenadoa versão para cinema de Mãe Coragem e seus filhos e dirigidodepois inúmeros espetáculos. O debate abaixo ocorreu comintegrantes da Companhia do Latão no segundo dia da ofi-cina realizada no Instituto Goethe, de 2 a 5 de setembro de1998, da qual também participaram integrantes da Compa-nhia Razões Inversas. As perguntas aqui editadas foram fei-tas pelos atores Georgette Fadel e Ney Piacentini.

(O trabalho se iniciou com a leitura do poema Sobre oTeatro de Todos os Dias, seguida de um debate.)

G.F. – Quais seriam os procedimentos para que o públicoidentificasse, através do trabalho do ator, que o acidente pode-ria ser evitado? Isso depende da atuação mostrar os dois lados?Eu não entendo qual é a diferença de uma representação épicae uma representação realista, pois quando você tem uma per-sonagem realista é possível que se pense, ao olhar para ela, napossibilidade de ter agido diferente. Como nunca assistimos auma peça dirigida por Brecht eu queria entender um poucoessa questão que parece ser muito prática.

P.P. – Sim, existe um elemento na atuação do ator quedeve permitir este distanciamento, deve provocar a per-cepção de que teria sido possível um outro tipo de compor-tamento. Se o ator não investir toda sua energia para re-presentar esse papel como psicologia, ele estará um poucofora dele, e assim terá condições de mostrar a viabilidadede um comportamento diferente. Uma questão famosa éde como a atriz que representa a Mãe Coragem pode mos-trar as contradições no comportamento dessa personagem.No final da peça, ela canta uma cantiga de ninar conheci-da em todo o mundo, que mostra o amor da mãe pelascrianças. Mas ao mesmo tempo em que ela tem um grandeamor pelos seus filhos ela é imediatamente responsável pela

morte deles. E Brecht, para mostrar que ela poderia teragido diferente, transforma a cantiga e faz com que aatriz saia da personagem e a acuse. Helene Weigel saida personagem e faz a denúncia: mesmo quanto cantao amor ela continua acreditando que pode fazer da guer-ra o seu ganha-pão. É preciso pelo menos aludir a essapossibilidade de um comportamento diferente, não es-tar totalmente possuído pelo papel, mas manter tam-bém um passo de lado do papel.

Uma outra observação sobre essa cena, a solução su-gerida por Brecht de que a atriz deveria sair do papel ecriticar Mãe Coragem a cinco minutos do final da peça.Eu participei de ensaios com Helene Weigel e com outragrande atriz alemã, Therese Giehse, ambas dirigidas porBrecht, e pessoalmente fiz várias outras encenações. Parafazê-la você necessariamente precisa ter uma grande atriz.E o que eu posso falar para vocês é que em nenhuma dasencenações que vi a atriz teve a coragem de levar a caboa sugestão de Brecht, ou seja, a cinco minutos antes dofinal da peça sair da personagem e assumir uma críticatão forte assim. Possivelmente porque a atriz sabe que opúblico espera uma heroína, que há uma expectativamuito forte em relação à protagonista da peça, ou por-que é um procedimento de fato muito duro a cinco mi-nutos do final. Nunca vi ser levado a cabo.

Uma solução interessantíssima que foi achada porLiv Ullmann – grande atriz de cinema – foi a seguinte:no final da cena ela passa a mão pelo rosto como setirasse sua pele e declama o texto de forma absoluta-mente seca, como Brecht queria que fosse feito. Depoisde ter encenado essa crítica duríssima à personagemela mostra a pele ao público, veste-a novamente, recu-pera a mãe e começa um pranto amargurado. Com essasolução genial ela de fato dividiu a personagem em duas:a personagem que precisa ser criticada e a mãe que cer-

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Trabalho de Peter Palitzschcom a Companhia do Latão

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tamente está sofrendo muito. O comportamento dela é bur-ro na relação com os negócios da guerra, mas ela não deixade ter amor pelos seus filhos. São soluções encontradaspor grandes atrizes.

G.F. – E durante toda a peça a interpretação dela era realista?P.P. – O resto da interpretação de Ullmann foi absoluta-

mente realista como era de se esperar, mas a encenaçãoapresentava várias intervenções através das canções queinterrompiam o fluxo da tragédia. A essa história de gran-de tensão emocional que está se desenrolando correspon-dem expectativas do publico face a ter diante de si a tragé-dia. Esses momentos quase que obrigam o espectador a sedistanciar daquilo que está acontecendo porque o ator saida personagem, critica-a na canção, comenta a persona-gem. Existem várias maneiras de se fazer esses cortes queprovocam o distanciamento e uma possibilidade importanteé a música. Eu pessoalmente utilizei muito também o re-curso da iluminação: jogava uma luz muito clara inclusivesobre o público, que não estava mais no escuro no mo-mento das canções, ficando assim obrigado a sair de den-tro da tragédia e assumir uma distância para poder criticaro que estava ocorrendo. São diferentes recursos utilizadospara a mesma finalidade.

Na montagem que assisti de vocês, Ensaio sobre o Latão,existe uma cena em que se realizam interrupções freqüentespara ajustes de luz, rupturas que têm um certo efeito cômi-co. É uma técnica de teatro épico usar a iluminação de ma-neira a fazer um corte antinaturalista. Brecht tinha um tipode luz especial que era muito difícil de ser conseguida, umailuminação totalmente chapada, uma luz sem sombra. Quan-do se conseguia essa luz sem sombras o efeito era maravi-lhoso. Mesmo nas cenas noturnas, ele rejeitava reproduzir aluz da lua no palco e preferia simplesmente pintar a imagemda lua ou fazer aparecer alguns elementos de sua luz, masnunca tentar reproduzir de maneira naturalista a naturezada noite. Se nós formos colocar de maneira bastante gros-seira a concepção do Brecht nesse sentido, seu conceito derealidade pressupõe trazer o mais próximo possível o espec-tador da realidade (o que inclui a realidade do artifício tea-tral). O conceito de realismo de Brecht é, portanto, um con-ceito totalmente antinaturalista. O realismo como não-na-

tureza. Isso Brecht tentava fazer o tempo todo, e nós tam-bém: trazer o espectador para perto da realidade não de umamaneira naturalista, mas ao mostrar que a realidade no pal-co não é a realidade. Na verdade, trata-se de um ser e aomesmo tempo não ser, como foi dito no poema. O públicodeve perceber que é inteligível e ao mesmo tempo não inte-ligível a situação. É uma relação dialética de possível e nãopossível, entender e não entender. Não é uma coisa somen-te inteligível ou somente não inteligível, os dois elementosna mesma cena.

N.P. – Não existem casos em que o texto já sugere o aspectoa ser criticado? Por exemplo, quando um boina-preta do Exér-cito da Salvação, Snyder, diz que está “acima do conflito social,portanto do lado dos ricos”, sua postura de distanciamento jánão está explícita?

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Mãe Coragem e Seus Filhos, Berliner Ensemble, 1949

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P.P. – Não, isso não é necessariamente distanciamento.Vou tentar responder de forma um pouco mais longa. O efeitode distanciamento nada mais é do que apresentar um even-to mostrando que esse evento é histórico, decorrência deum processo histórico. Esse efeito de estranhamento podeser utilizado pelo diretor de maneira consciente ou não cons-ciente. Se tomarmos a Mãe Coragem no momento em que ocapelão diz “O General está sendo enterrado: isso para mimé um momento histórico” e a Mãe Coragem lhe responde:“Não, para mim o momento histórico é saber que a minhafilha foi espancada e estuprada” – para Brecht isso é umrecurso de intervenção típico do teatro épico. Vocês certa-mente conhecem uma frase clássica do marxismo: “É a vidamaterial que determina a consciência”. O que acontece nessacena que você descreveu é que existe uma contradição doponto de vista do materialismo. A personagem está numacontradição. Ao mesmo tempo em que Snyder representa aideologia da religião, ele está o tempo todo brigando em nomede Deus. Nesse sentido deveria se abster de toda e qualquerpreocupação material. Na hora da verdade é o dinheiro quevai decidir, e ele de certa forma acaba se vendendo ao capi-tal. Assim esse momento ideal acaba se revelando ideolo-gia, no sentido em que não corresponde ao comportamentode fato. Tal procedimento de desmascaramento ideológico éaplicado a todas as personagens da Santa Joana. Ele possibi-lita mostrar a contradição entre ideologia e a base material,ou seja, os boinas pretas estão dizendo “Não procurem oparaíso. Aqui na terra isso significa, inclusive, abrir mão doparaíso na terra que poderia ser a revolução”. O que mostraque essa pregação deles é no fundo a manutenção do statusquo. Isso também se aplica aos boinas-pretas como um todo.Parece que eles são corajosos e que estão lutando contra oPedro Bocarra mas no fim das contas eles acabam sendocooptados pelo capital, inclusive através do grande funeralque é dado a Joana. Então eles acabam se esquecendo desua pregação anterior, não pensam mais nisso. O comporta-mento da Joana também era tratado de maneira semelhan-te em versões anteriores da peça, mas foi se modificando nareescritura. Brecht falava de uma coisa que seria epicizar,trabalhar de uma forma epicizante, transformar o materialem épico. Vou lhes falar sobre duas formas, duas técnicas detrabalho de epicização, esdrúxulas talvez, mas que eram uti-

lizadas de vez em quando, ao se sentir que havia necessi-dade de fazer um trabalho desse tipo.

Uma delas era fazer com que o ator trabalhasse seutexto não de forma presente “eu Mãe Coragem estoufalando” e sim de um modo tal em que a atriz dissesse:“Neste momento, Mãe Coragem diz tal coisa e se refereao outro de tal maneira.” É o recurso ao discurso indi-reto, na terceira pessoa: o que eu estou falando não é omeu texto, eu estou falando o texto que é da persona-gem. Para os atores isso ficava muito palpável. Retiravao pathos, retirava o estar dentro do personagem. Reco-nheciam, assim, estar representando, não sendo a per-sonagem, mas a relatando.

O outro recurso utilizado – muito valorizado porBrecht – era o uso de dialetos alemães, alguns do Sul,outros de Berlim. Brecht dava muito valor a sua utili-zação. Isso porque o dialeto tem raízes. A língua ofici-al, a língua da televisão, do rádio, da imprensa alemãé chamada alto alemão. Mas é uma língua que perdeusuas raízes. Quando você representa Shakespeare eaparecem frases de um dialeto no meio, Shakespeareadquire um novo caráter. Ele deixa de ter aquela pom-pa. É interessante que Schiller, um grande escritor clás-sico alemão, escrevia em um determinado dialeto epensava nele. E sua construção frasal, a sua sintaxe,era a desse dialeto. Dessa maneira, se uma pessoa re-conhece o dialeto na leitura, todo pathos se perde. Elareconhece uma coisa que é própria a seu dialeto. Alinguagem oral não permite esse pathos. Com o diale-to você retira a dramaticidade da representação, o quepermite um certo distanciamento.

Retornando ao poema Sobre o Teatro de Todos os Dias,nela Brecht apresenta como que um resumo das con-cepções básicas do teatro épico. Principalmente sua tesesobre o que é a arte. É importante ler e se perguntar oque ele está dizendo com essa questão: o que é a arte? ■

Um resumo em tópicos dessa oficina de Peter Palitzschfoi publicado na Vintém 3. O fragmento aqui editado foi

extraído de um registro em vídeo feito por Luciana Barone elocalizado dentro do trabalho de documentação do ProjetoCompanhia do Latão 10 anos. Transcrição de Lia Urbini.

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Por Márcio Marciano

Em olhar retroativo, pode-se dizer que Visões Siamesasrepresenta para a Companhia do Latão a síntese e, ao mes-mo tempo, a superação dos procedimentos dramatúrgicosexperimentados e assimilados durante sete anos de pes-quisa coletiva. Desde seu surgimento com o Ensaio sobre oLatão, espetáculo de 1997 até hoje, o grupo vem se rein-ventando a partir da confrontação sistemática das exigên-cias da atualidade com a apropriação crítica das experiên-cias precedentes, tanto no que se refere ao projeto de umadramaturgia brasileira ainda por se realizar, quanto às ten-tativas isoladas de alguns poucos artistas precursores queapesar de não superarem as contradições de seu tempo,contribuíram com o benefício de seus equívocos e os male-fícios de seus acertos.

Talvez por isso mesmo Visões Siamesas assuma, já desdeseu título e de forma deliberada, a ambigüidade como prin-cipal recurso narrativo. E o faz não somente por escolha deestilo, mas como recuo dialético, se pensarmos em termosde método. Aliás, procedimento semelhante ao utilizadopor Machado de Assis para desvelar o precário equilíbrioentre antagonismos inclusivos que parece constituir a so-ciabilidade brasileira. Isto quer dizer que, a exemplo do“caráter nacional”, sempre avesso a definições, o sentidodesta parábola de molde orientalista antes de ser fixadodeverá ser incessantemente conquistado no embate derri-sório com o público.

Assim como o bruxo, que se valeu de formas consagra-das como o folhetim e o subverteu radicalmente, porémcom mestria tal que o manteve palatável ao leitor médio, aCompanhia lança mão de artifício similar, talvez sem amesma sutileza: nesta peça, o espectador é brindado nãoapenas com cenas de corte quase dramático (lembremosque a dramaturgia do Latão sempre se pautou pela cons-trução épico-dialética de suas cenas), mas, além disso, compersonagens que numa apreciação desatenta poderiam seralcunhadas protagonistas, como é o caso de Kinara, a cam-

ponesa tangida de seu lugar a um êxodo aleatório e Kala-fanko, o soberano em crise de identidade ideológica.

A inspiração do título vem de As Academias de Sião, contoobscuro e pouco representativo de Machado de Assis, masrepleto de sugestões, cuja excentricidade serviu de estímuloà criação da fábula oriental que o grupo utiliza como pretex-to para o exame da suposta alternativa “místico-metafísica”imposta desde sempre à escória social como única saída. Aconjugação dos termos que compõem o título (e, por exten-são, a totalidade da peça) dá bem conta dessa indetermina-ção, que utiliza a suspeição do ato narrativo como estratégiade aproximação em chave pseudodramática de um públicoinfenso a perceber a “cultura do favor” como elemento cons-titutivo da mentalidade nacional. Tema, diga-se de passa-gem, freqüente na obra de Machado.

Por gosto da controvérsia arriscamos avançar sobre asevidências: além do significado manifesto a que o título serefere, as “visões siamesas” podem também ser sinônimasde pontos de vista unívocos, o que implica certa contradi-ção de base em face da oposição entre as concepções demundo de Kinara, a camponesa expulsa da terra e Kala-fanko, o soberano torturado por sua impotência ante a ló-gica do poder e das exigências do Estado. Outra leiturapossível refere-se às “visões” como fantasmagorias gême-as, algo tão estrambótico que nos faz pensar nos eternosacorrentados da caverna platônica, conformados e felizesa tomar por verdadeiras as sombras de objetos fabricados,o que em linguagem corrente significa aceitar como natu-rais quaisquer falsificações ideológicas.

Essas interpretações sugerem uma opção metafísica, algoque é reforçado pelo entrecho da fábula que dá conta datransmigração das almas de Kinara e Kalafanko, a exem-plo do que ocorre no conto original. Entretanto, aqui comoem Machado, as personagens centrais são menos oposiçõescomplementares, tão ao gosto das mediações metafísicas doque determinações reflexivas, em termos dialéticos. Quere-mos com isso afirmar que Kinara e Kalafanko, mais do que“faces da mesma moeda” só podem de fato cobrar existên-

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Companhia do LatãoVisões Siamesas: uma dramaturgia do limite

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cia dialeticamente enquanto contrários que se interpene-tram. O que, de resto, preside a construção de toda a nar-rativa. Mas é preciso ressaltar que um título não é maisque uma promessa, portanto é necessário examinar até queponto essa ambigüidade a que fazemos menção de fato seconstitui em elemento decisivo no processo de construçãoda narrativa e, mais do que isso, refletir sobre sua eficácia.

VISÃO DE CLASSE COMO CONTEÚDO EM MUTAÇÃOSe aceitarmos as razões que põem em marcha a jovem

Kinara, após ser expulsa da terra, razões de sobrevivência,diga-se de passagem, somos forçados a reconhecer na ambi-güidade de suas ações o eixo narrativo que faz girar os de-mais acontecimentos da fábula. Através da transmutaçãode suas necessidades vitais em vontade férrea, de alguémdisposto a sair de si mesmo (ação que poderia parecer posi-tiva, em termos dramáticos), presenciamos o processo detransformação interna dos procedimentos narrativos, de for-ma a refletir tanto a gradual desagregação de sua consciên-cia, como a sistemática destruição do conceito clássico deforça de trabalho nas atuais relações de produção.

Para a melhor compreensão do que acabamos de suge-rir, julgamos necessário situar brevemente o percurso deKinara, desde sua partida das terras do senhor Tchong, atésua morte na fronteira do grande Império: o velho propri-etário rural a quem a jovem Kinara é agregada vê-se obri-gado a vender suas terras, dando-lhes nova destinaçãoeconômica e social. Como mão-de-obra desqualificada, ajovem parte para a capital em busca de trabalho, aindaque subjetivamente sua ação seja determinada pela inten-ção de procurar Kalafanko, única força a seu ver capaz demodificar sua condição (nunca é demais lembrar que, em-bora se sentindo porta-voz da totalidade dos camponesesafetados pela decisão de Tchong, sua intenção trai a marcado favoritismo, posto que confunde a figura do soberanoKalafanko a tal ponto que assumirá ser ela própria sua ima-gem. Na grande cidade, Kinara percorre em vertiginosadescendência os vários estágios de degradação do traba-lho: atendente em uma taberna para serviços que vão damesa ao quarto, catadora de dejetos industrializados; noi-va de encomenda; oficiante em um templo que cultua anova ordem econômica, sem nunca se submeter ou se ade-

quar às exigências de cada uma dessas ocupações até olimite de partir para a fronteira em busca de nova vida emnovas terras.

Ao longo dessa acidentada trajetória, suas atitudes su-postamente baseadas na autoconsciência tornam-se umdesmentido constante de sua integridade enquanto indi-víduo, o que chama a atenção do público para o processode despersonalização das sempre renovadas formas deopressão econômica e lhe impõe uma atitude crítica; alémde confrontá-lo a um falso dilema moralizante, já que oobriga a se perguntar se é mesmo possível deixar-se aban-donar a uma identificação que não se realiza na persona-gem, uma vez que Kinara nega a si mesma seu estatuto desujeito e age apenas reativamente, num jogo de espelha-mentos em que nenhuma imagem reclama legitimidade.

De modo semelhante, o potencial de crença nas aspira-ções de Kalafanko, vistas pela perspectiva de Kinara, é des-mentido pelo mesmo jogo de ambigüidades, sendo suas ati-tudes ridicularizadas ora como meros subterfúgios de auto-preservação, representativos de sua classe, ora como proje-ções arrebatadas da consciência em suspeição de Kinara,via pela qual se estabelecem os parâmetros da narrativa. .

É por esta razão que o aparente protagonismo das perso-nagens se dilui antes mesmo de ser reconhecido como tal,o que gera certo desconforto que a dramaturgia irá explo-rar até as últimas conseqüências. Menos do que acompa-nhar o desdobramento dessas personagens, que se “desre-alizam” à medida que avançam suas trajetórias, marcadaspor indeterminações, o que fica evidenciado é o processopelo qual a imaterialidade do capital se impõe, por inter-médio da ação ideológica, como forma transcendente deopressão, procedimento desmascarado pela comicidadegrossa dos sábios conselheiros do soberano, ocupados emdar sentido às injunções da ordem econômica mundial.

FORMA COMO CONTEÚDO EM TRANSFORMAÇÃOTrocando em miúdos: cada movimento da peça não

apenas coincide com os lances decisivos da vida de Kinarae Kalafanko, como refletem certa crise de ordem drama-túrgica. Como exemplo e sem a pretensão de esgotar o as-sunto, comparemos o primeiro e o último quadros. Apósum prólogo que mistura tiradas confucianas de sabedoria

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duvidosa com um pragmatismo que faz corar até o mais renhido corretorda Bolsa, o primeiro quadro retrata a fuga de Tchong, o proprietário deterras coagido pelas injunções da nova ordem econômica a trocar os velhoshábitos patrimonialistas de sua bucólica vida camponesa por novas formasde exploração e acumulação na grande cidade, deixando atrás de si umrastro de desolação, miséria e violência. Kinara, a “favorita”, supostamentefilha bastarda, tenta ainda convencê-lo a cuidar dos desfavorecidos queficarão na terra, submetidos aos novos proprietários.

Pode-se dizer que apesar de certo enfoque dialetizante, a cena é conce-bida segundo os pressupostos do que poderíamos considerar um realismoclássico, com personagens constituídas pela medida de sua ação. Entretan-to, a suposta progressão dramática desse modelo é solapada por contínuasinterferências de imposição épica, a ponto de no final do quadro prevalecercerta arbitrariedade narrativa que, ao deslocar a ação do plano real para oplano onírico, aponta antes para as contradições do processo de desmante-lamento de um sistema econômico – e, por conseqüência, para a desestru-turação de incerta “visão de mundo” – do que para as incongruências sub-jetivas de caracteres em conflito. Essa coincidência nada casual revela aintenção da Companhia de fazer da dramaturgia do espetáculo um sucedâ-neo estético do processo de mutação das relações de sociabilidade, no con-texto das transformações impostas pelo capital em vias de imaterialização.

Apesar da urgência da fuga e da sedição dos camponeses, são aindaindivíduos, supostamente cientes de seu particularismo, que estão às vol-tas com as acachapantes inversões da Fortuna. Aos poucos, no entanto,fica claro (para o público e não para Kinara) que as inversões da Fortunanada têm de mítico ou sobre-humano, e que a individualidade é moedafalsa no âmbito das reais, embora virtuais, inversões do capital. Essa cla-rividência ofertada ao público reduzirá os transportes místicos e libertári-os de Kinara no último quadro, tão ao gosto da literatura dramática deantanho, à sua verdadeira e ridícula dimensão. A percepção da impotên-cia de representar o mundo contemporâneo pela perspectiva do indiví-duo, por mais consciente que ele seja (o que é a crença de Kinara, muitoembora as evidências mostrem o contrário), torna-se a matéria constitu-tiva do último quadro. Neste, já não cabem as relações intersubjetivas, aspersonagens já não detêm o estatuto de sua particularidade, são, quandomuito, funções de um sistema que não se materializa. A crise dramatúrgi-ca apontada no primeiro quadro se confirma e se desdobra: não há divin-dades nem demônios no céu da nova ordem econômica imprecando con-tra os pobres mortais. No entanto, a imaterialidade do capital assombraas consciências de tal maneira que a dramaturgia se vê obrigada a aban-donar o realismo da representação em troca de um realismo que dialeti-camente se afirma em sua negação. ■

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Visões Siamesas

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Companhia do Latão

EM VISÕES SIAMESAS, GRUPO REALIZA UM CASAMENTO PERFEITO AOMONTAR O TEXTO DO ESCRITOR BRASILEIRO RECORRENDO ÀSPRÁTICAS BRECHTIANAS

Por Mariângela Alves de Lima

Em sete anos de trabalho, a Companhia do Latão definiu um perfil singularno panorama teatral brasileiro. Todos os espetáculos que produziu até hoje sãoexplorações analíticas das forças sociais em movimento. Em uma visão retros-pectiva poderíamos dizer que o drama, na acepção vulgar, está fora de cenaporque o que as encenações contemplam é o modo como os indivíduos ou osmovimentos coletivos são afetados pelo regime capitalista. Dramático pro-priamente é o que se conclui dessas representações. Ao todo rememoram parao público o sentimento de opressão de um sistema que sabemos ser uma pro-dução histórica, mas que sentimos como um determinismo. E é exatamenteneste interstício, entre o conhecimento e o sentimento das coisas, que a artepode intervir. São, portanto, espetáculos sintonizados com um fenômeno con-temporâneo que afeta a um só tempo a vida cotidiana e intelectual: as coisasque precisam ser transformadas nos parecem, pela sua dimensão e durabilida-de, irremediavelmente eternas. É contra os sintomas da rendição incondicio-nal que impregnam de modo tão evidente as instituições que se aparelha essamodalidade de teatro crítico.

Visões Siamesas, a mais recente criação apresentada agora em um sistemade repertório em que se incluem espetáculos anteriores do grupo, apóia-semais no espírito do que na letra de um conto de Machado de Assis. A refe-rência a um só tempo legitima e ironiza o legado crítico dos intelectuaisbrasileiros. Salva-se o patrono do espetáculo, sabidamente um dos mais ar-gutos observadores da sociedade do século 19. Da sua narrativa o espetáculoutiliza a idéia da duplicidade da escrava e do rei e a jocosa imagem dos aca-dêmicos produzindo cosmogonias ajustadas às suas próprias necessidades.Há um “céu econômico” decifrado por esses sábios, ou seja, está tudo escritonas estrelas. Cabe a esses sábios justificar um modo de produção, cuja con-seqüência é a marginalização de imensos contingentes populacionais de qual-quer forma de riqueza.

Quanto à protagonista, a jovem Kinara, seu percurso é emblemático dossucessivos deslocamentos que afetam as populações do planeta. É a campone-

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Companhia do Latão ganhaao unir Machado e Brecht

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Estreou no Sesc-Consolação, no dia 21 de outubro de 2004

AtuaçãoAlessandra FernandezEmerson RossiniFernando PazHeitor GoldflusHelena AlbergariaIzabel LimaMarina HenriqueNey PiacentiniVictória Camargo

Execução e direção musical: Martin EikmeierCo-direção musical: Walter GarciaCenários e figurinos: Fábio NamatameIluminação: Domingos QuintilianoOficinas técnicas: Alice K (teatro oriental), MônicaMontenegro (voz)Colaborador da direção: Rogério MarcianoCoordenação de produção: Ney PiacentiniPalestras preparatórias sobre Machado de Assis: JohnGledson, José Antonio Pasta Jr., Roberto Schwarz

Dramaturgia e direção: Sérgio de Carvalho e MárcioMarciano

Espetáculo apoiado pelo Programa de Fomento ao Teatropara a Cidade de S. Paulo e Instituto Goethe.

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Companhia do Latãosa expulsa da terra convertida em especulação financeira, é a trabalhadorasem salário na cidade, a catadora dos restos urbanos e, em uma sucessãoconhecida, a peregrina caminhando para o deserto de expectativas e possi-bilidades. Mas é, além disso, uma figura tentando reinventar a si mesmacom o auxílio do mito do rei que tudo pode. Por meio da transmigraçãoimaginária em que assume a coroa real, a moça questiona, investiga e ousagestos de rebeldia. Aprende que todos os que oprimem e exploram isentama si mesmos de responsabilidade por essa cadeia de exploração. “Em ummundo ideal...”, diz uma das personagens.

São de uma ironia machadiana as conseqüências ambíguas dessa dupli-cidade entre o rei e a mendiga. É, aliás, uma qualificação positiva do espe-táculo o valor cambiante da ficção. Kinara teve um único livro e desse estí-mulo extrairá diferentes proveitos.

É estranho, por essa razão, que o texto criado em conjunto pelo grupotenha alguns pontos de excessiva definição explicando direitinho, com to-das as letras, a necessidade de enfrentar um “presente incompreensível”.Há outras frases conclusivas salpicadas ao longo do texto que poderiamestar implícitas na estrutura narrativa. Sendo um espetáculo de inspiraçãobrechtiana, o coro desempenha com muita eficiência as sínteses de cadaepisódio e parecem desnecessárias afirmações de reforço intercaladas nosdiálogos. Aliás, são excepcionalmente espirituosas as intervenções coraisindicando um talento especial dos autores do texto para a versificação. Deum modo geral, os textos produzidos por um coletivo dispensam vestígiosartesanais e se limitam à prosa. Neste caso houve o cuidado minucioso como vocabulário e o ritmo das partes musicais com um evidente desígnio dealiciar esteticamente. Embora o significado seja derrisório, a execução mu-sical (orientada por Martin Eikmeier) tem a sedução das teorias aliciatóriasque disfarçam sob bela aparência conteúdos intragáveis.

No trato do espetáculo, a sugestão oriental do texto machadiano casa-se perfeitamente com a recorrência às práticas brechtianas. O Oriente épara nós uma alteridade fantasiosa e, portanto, um fator de distancia-mento. Por outro, o valor metafórico da narrativa estilizada, feita à modaoriental, torna-se mais evidente. Esta fábula permite analogia com meca-nismos de alcance planetário. As referências aos gestos, ao comportamento,aos recursos narrativos tradicionais do teatro oriental são um modo deexpandir o trajeto dessa protagonista, que vive do mesmo modo sob dife-rentes bandeiras.

“Quebrar o sortilégio” é, assim, o derradeiro incitamento desse espetá-culo do Latão. ■

Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo,26 de novembro de 2004.

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Desde janeiro de 2006, aCompanhia do Latão realiza umasérie de atividades dedocumentação, pesquisa teatral eorganização de seu acervo, comvistas à comemoração dos 10anos de atividade do grupo. OProjeto Companhia do Latão 10anos conta com o suporte doPrograma de Fomento ao Teatroda Cidade de São Paulo e temcomo objetivo principal refletirsobre a Pesquisa em TeatroDialético da Companhia atravésda produção de um amplomaterial literário e videográfico.

São diversas as frentes detrabalho do projeto: organizaçãode uma sede (atualmente na ruaIperó, em São Paulo), quecentraliza os acervos artístico,fotográfico e videográfico;reorganização do site daCompanhia do Latão, queatualmente disponibiliza boaparte desse material; econtinuidade da pesquisamusical, dramatúrgica e cênica, oque se manifestou no recenteespetáculo O Círculo de GizCaucasiano.

Para as atividades referentes àmemória videográfica formou-seo Núcleo de Cinema e Vídeo doLatão, que vem estudando asrelações entre teatro e cinema eproduzindo material novo sobre aCompanhia. Experimentam-se

agrupar livros e DVDs comomateriais conjugados. A cadalivro da coleção Companhia doLatão 10 anos corresponde umDVD com documentários críticossobre diversos aspectos dotrabalho, segundo uma divisãotemática que até o momento é aseguinte:

Volume I: Ensaios sobre oLatão: teoria e prática

Corpo de texto:1. Ensaio teórico geral sobre a

trajetória do grupo;2. Pesquisa de uma

dramaturgia no Brasil;3. Pesquisa de uma encenação

épico-dialética;4. Processos musicais do

Latão;5. Latão e a mercantilização

da vida;6. Texto ficcional da peça

Ensaio sobre o Latão.Acrescido do DVD do volume

I: Brecht na Companhia do Latão,um documentário que discutedidaticamente a utilizaçãoestética de Brecht feita pelaCompanhia ao longo dos anos. Ovídeo apresenta demonstraçõesde processos de construção decenas épicas e cenas dosespetáculos Santa Joana dosMatadouros, Ensaio Sobre oLatão e O Círculo de GizCaucasiano, entre outros.

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assim meios de realizar releiturasdas montagens, numa linguagemde investigação sobre aspossibilidades de diálogo entrediferentes meios.

A memória literária do grupoirá acolher trabalhos artísticos eteóricos, ensaios e peçasconsiderados pelos seusrealizadores exemplares de umafase em que a sala de ensaiosfoi o núcleo gerador de diversosprocessos coletivizados deescrita. Por conta disso, osdramaturgos Sérgio de Carvalhoe Márcio Marciano dedicam-seatualmente a expandir cada umdos textos, de forma a dotá-losde rubricas capazes de supriralgumas das ausências doselementos materiais da cena noespetáculo. São peças ereflexões compreendidas,entretanto, menos como textosautônomos e mais comoroteiros para um teatro críticoatual. Sua natureza ensaísticaserá, contudo, complementada(sem que isso implique aproposição de uma formamodelar) por um amplotrabalho videográfico queacompanhará os escritos,contendo informações,descrições e reflexões poéticas epedagógicas.

Neste sentido, a tendênciaatual do projeto editorial é

Projeto Companhia do Latão 10 anos

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Volume II: Fragmentosbrasileiros: O Nome doSujeito e Auto dos BonsTratos

Corpo de texto:1. Estudo introdutório sobre

dramaturgia do volume;2. Texto integral da peça O

Nome do Sujeito, de 1998;3. Texto integral da peça

Auto dos bons tratos, de 2001;Acrescido do DVD do volume

II: O Brasil segundo aCompanhia do Latão, umdocumentário sobre os temashistóricos e estéticos de Autodos Bons Tratos junto a umdocumentário experimentalsobre O Nome do Sujeito, quecombina materiais da versão de1998 aos ensaios da retomadade 2007.

Volume III: Cenas damercantilização: VisõesSiamesas, O Mercado do Gozo,Valor de Troca

1. Estudo introdutório sobredramaturgia do volume;

2. Texto integral da peçaO Mercado do Gozo, de 2003;

3. Texto integral da peçaValor de Troca, de 2003;

4. Texto integral da peçaVisões Siamesas, de 2004;

Acrescido do DVD do volumeIII: Cenas da Mercantilização,que reúne um documentáriosobre Visões Siamesas, OMercado do Gozo e umexercício de ficção sobre Valorde Troca.

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Companhia do LatãoVolume IV: Roteiros de

intervenção1. Estudo introdutório sobre a

dramaturgia do volume;2. Texto do roteiro A Comédia

do Trabalho, de 2000;3. Texto do exercício O Grande

Circo da Ideologia, de 2001.Acrescido do DVD do volume

IV: O trabalho politizado daCompanhia do Latão, que reúneum documentário sobre AComédia do Trabalho e outrosobre alguns breves exercícios deagitprop, cenas de intervençãoproduzidas pelo grupo emdiferentes contextos.

Volume V: Releituras doLatão

1. Estudo introdutório sobre adramaturgia do volume;

2. Texto integral da peçaEnsaio para Danton, versão de1999;

3. Texto integral doexperimento Equívocoscolecionados, de 2004.

Acrescido do DVD do volumeV: Releituras do Latão, contendoum documentário sobre Ensaiopara Danton e um exercício livrede ficção baseado no roteiro deEquívocos Colecionados.

No que tange à memóriamusical, diversas atividadesintegram o projeto, sendo aprincipal delas a gravação dasmúsicas – em novos arranjos – dascanções compostas para osúltimos espetáculos: Equívocos

Colecionados, Visões Siamesas eO Círculo de Giz Caucasiano.

Ao longo de 2006, aCompanhia do Latão deucontinuidade a seu trabalhopedagógico em relação ao teatroépico-dialético. Para tanto, o gruporealizou atividades como as oficinasrealizadas em março no TUSP euma série de palestras poruniversidades do país. Em 2007esse trabalho se ampliará,chegando ao exterior. Talvez oprincipal testemunho desseencontro entre pedagogia, arte ereflexão crítica seja a oficinarealizada em junho com integrantesdo Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra, no assentamentoCarlos Lamarca de Sarapuí. Otrabalho junto ao grupo de jovensartistas Filhos da Mãe Terra resultounum belo documentário que setornou o prólogo da montagem deO Círculo de Giz Caucasiano,realizada com a equipe do Latão eartistas convidados de gruposimportantes do teatro de pesquisabrasileiro.

O Projeto Companhia do Latão10 anos tem sido responsável pelarenovação da estrutura de trabalhoe do sentido artístico do grupo. Aomesmo tempo em que reavalia seupassado e organiza sua memória, aCompanhia do Latão abre hojefrentes inéditas de pesquisa eintercâmbio, superando através deuma nova prática os caminhos atéaqui percorridos.

(Lia Urbini)

Page 52: vintém - companhiadolatao.com.brcompanhiadolatao.com.br/site/wp-content/uploads/2016/01/Vintem6.pdf · Você tem o caso do Joaquim Pedro, que faz o Padre e a Moça, depois faz o